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LUCAS 9-24
DAVID A. NEALE
((Q
ACADÊMICO
COMENTÁRIO BÍBLICO
LUCAS 9-24
COMENTÁRIO BÍBLICO
LUCAS 9-24
DAVID A. NEALE
GERÊNCIA EDITORIAL Luke 9-24 New Beacon Bible Commentary / David A. Neale / © 2013
E DE PRODUÇÃO Published by Beacon Hill Press of Kansas City, A division of Nazarene Publishing
House. Kansas City, Missouri, 64109 USA. This edition published by arrangement
Jefferson Magno
with Nazarene Publishing House. All rights reserved.
Copyright © 2015 por Editora Central Gospel.
COORDENAÇÃO
EDITORIAL
Michelle Candida Caetano
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
COORDENAÇÃO
DE COMUNICAÇÃO Autor: NEALE, David. A.
E DESIGN Título em português: Novo Comentário Bíblico Beacon: Lucas 9-24
Regina Coeli Título original: Lucas 9 -24 New Beacon Bible Commentary
Rio de Janeiro: 2015
304 páginas
TRADUÇÃO ISBN: 978-85-7689-393-6
Elias Santos Silva 1. Bíblia - Teologia I. Título II.
REVISÃO
Maria José Marinho
Queila Memória
Welton Torres
É proibida a reprodução total ou parcial do texto deste livro por quaisquer
meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos etc.), a não ser
CAPA E em citações breves, com indicação da fonte bibliográfica. Este livro está de
acordo com as mudanças propostas pelo novo Acordo Ortográfico, que entrou
PROJETO GRÁFICO
em vigor a partir de janeiro de 2009.
Eduardo Souza
Nota do edito r no Brasil: Com o objetivo de facilitar a compreensão do co
mentário original, em alguns casos, a Central Gospel fez traduções livres de
DIAGRAMAÇÃO
termos e palavras em inglês que não encontram equivalência nas versões ofi
Raquel Frazão
ciais do texto bíblico traduzido para o Português. Ressalte-se, todavia, que
foram preservadas a ideia e a estrutura textual idealizadas pelo autor.
IMPRESSÃO E
ACABAMENTO
Rotaplan
1a edição: Outubro/2015
A Matthew e Thomas
EDITORES DO COMENTÁRIO
Editores gerais
Editores secionais
10
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ÍNDICE DE ANOTAÇÕES COMPLEMENTARES
ÍNDICE DE ANOTAÇÕES
COMPLEMENTARES
Uma comparação entre Lucas 10.25-37 e 18.18-25 í 18.18-25
Fontes de oposição das autoridades religiosas em Lucas 20.1-8 Por trás do texto
11
PREFÁCIO DOS EDITORES GERAIS
14
PREFÁCIO DO AUTOR
Com raras exceções, estas abreviações seguem as que estão no livro The SBL Handbook o f
Style (Alexander, 1999).
Geral
Versões bíblicas
A MENSAGEM A Mensagem
ARA Almeida Revista e Atualizada
ARC Almeida Revista e Corrigida
ARIB Almeida Revisada Imprensa Bíblica
GW Gods Word Translation
NASB New American Standard Bible
N IV 11 New Internacional Version (2011)
NKJV New King James Version
NRSV New Revised Standard Version
N TLH Nova Tradução na Linguagem de Hoje
NVI Nova Versão Internacional (1984)
Por trás do texto: Informações históricas ou literárias preliminares que os leitores
medianos podem não inferir apenas pela leitura do texto bíblico.
No texto: Comentários sobre o texto bíblico, palavras, gramática, e assim
por diante.
A partir do texto: O uso do texto por intérpretes posteriores, relevância contem
porânea, implicações teológicas e éticas do texto, com ênfase es
pecial nas questões wesleyanas.
Antigo Testamento
Gênesis Gn
Êxodo Êx
Levítico Lv
Números Nm
Deuteronômio Dt
Josué Js
Juízes Jz
Rute Rt
1 Samuel 1 Sm
2 Samuel 2 Sm
1 Reis 1 Rs
2 Reis 2 Rs
1 Crônicas 1 Cr
2 Crônicas 2 Cr
Esdras Ed
Neemias Ne
Ester Et
Jó Jó
Salmos SI
Provérbios Pv
Eclesiastes Ec
Cantares Ct
Isaías Is
18
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES
Jeremias Jr
Lamentações Lm
Ezequiel Ez
Daniel Dn
Oseias Os
Joel J1
Amós Am
Obadias Ob
Jonas Jn
Miqueias Mq
Naum Na
Habacuque Hc
Sofonias Sf
Age ii Ag
Zacarias Zc
Malaquias Ml
(Nota: A numeração de capítulo e versículo no TM e na LXX geralmente difere em com
paração com as Bíblias em inglês/português. Para evitar confusão, todas as referências bí
blicas seguem a numeração de capítulo e versículo das traduções para o português, mesmo
quando o texto TM e LXX está em discussão.)
Novo Testamento
Mateus Mt
Marcos Mc
Lucas Lc
João Jo
Atos dos Apóstolos At
Romanos Rm
1 Corindos 1 Co
2 Corindos 2 Co
Gaiatas G1
Efésios Ef
Filipenses Fp
Colossenses Cl
1 Tessalonicenses 1 Ts
2 Tessalonicenses 2 Ts
1 Tim óteo 1 Tm
2 Tim óteo 2 Tm
Tito Tt
Filemom Fm
Hebreus Hb
Tiago Tg
1 Pedro 1 Pe
2 Pedro 2 Pe
1 João 1Jo
19
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
2 João 2 Jo
3 João 3 Jo
Judas Jd
Apocalipse Ap
Apócrifos
Bar. Baruque
3 Bar. 3 Baruque
1—2 Mac. 1—2 Macabeus
3—4 Mac. 3—4 Macabeus
O. Man. A Oração de Manassés
Tob. Tobias
SS A Sabedoria de Salomão
Sir. Sabedoria de Siraque, Eclesiástico ou Sirácida
2 Ed. 2 Esdras
Pais da Igreja
a alfa a
ß beta b
y gama g
y gama nasal n (antes de y, k, f)
§ delta d
g epsilon e
5 zeta z
eta ë
e teta th
t iota i
K capa k
lambda 1
P mu/mi m
V nu/ni n
l csi X
0 omicron o
TT P1 P
P rô r
P rô (em inicio de palavra) rh
ç sigma s
T tau t
y upsilon y
y upsilon u (em ditongos: au, eu, eu, ou, ui
fi ph
chi ch
t psi ps
w oméga ô
' respiração elaborada h ( a n t e s d e v o g a is in ic ia is o u d ito n g o s )
21
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Transliteração do hebraico
Hebraico/Aramaico Letra Transliteração
X á lef
3 bêt b; v (fricativa)
} guímel g
1 dálet d
n he h
1 vav V ou w
T zain z
n hêt h
ü tét t
iode y
3 caf k
*7 âmed 1
a mem m
3 nun n
0 sâmeq s
y áin
D pê p; í (fricativa)
X tsade s
P cof q
rêsh r
V sin s
V shin s
n tau t
22
BIBLIOGRAFIA
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Publishing House, 1967. Originalmente publicado em 1917.
ADAMS, Dwayne. The Sinner in Luke. Eugene, Ore.: Pickwick Publications,
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1984.
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________ . Jesus and the Eyewitnesses: The Gospels as Eyewitnesses Testimony.
Grand Rapids: Eerdmans, 2006.
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Old Testament. Grand Rapids: Baker Academic, 2007.
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BERTRAM, Georg, zaõ, zõé e bios na Septuaginta. De TDNT. 1964. p. 85T854.
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University of Chicago Press, 1961.
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BOCK, Darrell L. Luke 1:1—9:50. Baker Exegetical Commentary on the New
Testament. Grand Rapids: Baker Books, 1994. v. 1.
______ . Luke 9:51—24:53. Baker Exegetical Commentary on the New
Testament. Grand Rapids: Baker Books, 1996. v. 2.
BIBLIOGRAFIA NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON BIBLIOGRAFIA
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BIBLIOGRAFIA NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON BIBLIOGRAFIA
32
INTRODUÇÃO
1. Autoria e data
Já que o nome do autor não aparece em lugar algum na narrativa, o Evangelho
é uma obra anônima. A atribuição a alguém chamado Lucas é uma questão de
tradição pela qual a evidência externa é escassa. O título encontrado na última pá
gina do manuscrito mais antigo é euangelion kata Loukan - O Evangelho Segundo
Lucas (o códice de papiro P75é datado de 175—225 d.C.; Fitzmyer, 1981, 1:35).
Além disso, vários manuscritos antigos indicam que a atribuição do Evangelho a
Lucas já era comum no final do segundo século e no início do terceiro.
A referência mais antiga à autoria de Lucas encontra-se no Cânone Mura-
toriano (170—180 d.C.). “O terceiro livro do Evangelho: Segundo Lucas. Esse
Lucas era um médico. Após a ascensão de Cristo, quando Paulo o levou consigo
como alguém dedicado a cartas, ele a escreveu sob o seu próprio nome, por meio
do que ouvia dizer. Ele não havia visto o Senhor pessoalmente, mas, na medida
em que conseguia acompanhar (tudo isso), começou, então, seu relato a partir do
nascimento de João” (citado de Fitzmyer, 1981, 1:37).
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
2. Fontes sinóticas
O assim chamado Problema Sinótico é um debate constante sobre a inter
dependência de Mateus, Marcos e Lucas como fontes literárias. Embora não
universalmente aceita, a “primazia de Marcos” é a ideia de que o Evangelho
dele foi escrito primeiro e depois usado por Mateus e Lucas. E razoável dizer
35
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
que essa tenha sido a visão majoritária nos estudos dos Evangelhos por dois
séculos.
A posição assumida neste comentário é que Lucas molda livremente o
Evangelho de Marcos aos seus próprios propósitos literários. Ele inclui quase
todo o texto de Marcos de uma forma ou de outra. Entretanto, isso é entrelaça
do tão habilidosamente que até mesmo o leitor atento mal consegue discernir
as emendas. Mesmo assim, Lucas não escreveu um comentário sobre Marcos,
mas uma nova narrativa sobre Jesus (Evans e Sanders, 1993, p. 4). Ele, presu
mivelmente, pensava que seu material fosse melhor do que o que já havia sido
produzido ou supria um material essencial que faltava em Marcos.
Lucas também expande a história de Marcos com o acréscimo de materiais
de outra fonte. Estes incluem uns 230 ditos de Jesus, que estão contidos tanto
em Mateus quanto em Lucas. Alguns eruditos acreditam que existiu uma única
fonte Q (de Quelle, significando “fonte”). Outros disputam isso (sobre esse
debate, veja Tuckett, 1996, p. 1-39, e Goodacre, 2002). De qualquer forma,
Mateus e Lucas possuem um significativo corpo de material em comum que
Marcos não tinha ou escolheu não incluir. Estudos do Evangelho não resolve
ram se Lucas usou a suposta fonte Q ou se tinha o Evangelho de Mateus para
consultar.
bíblicos para construir cenas inteiras. Em ambos os volumes [Lucas e Atos], histó
rias peculiares de Lucas parecem depender da imitação de modelos bíblicos, seja
por detalhes linguísticos ou pela completa estrutura da história” (Johnson, 1991,
p. 409). O mundo histórico de Lucas não é um mundo novo, de forma alguma;
é uma extensão de um mundo existente de significado já conhecido dos leitores.
Nesse sentido, a “reescrita parabíblica” descreve precisamente a atividade literária
de Lucas. O ponto-chave é que ele usa a história do AT para explicar o mundo no
qual o seu público vive — uma história viva constantemente desenvolve novos
níveis de significado para Lucas e seus leitores.
Todos os escritores dos Evangelhos usaram o AT como fundamento de seu
mundo histórico, mas Lucas usou essa abordagem de forma muito mais ampla.
Isso pode ser visto de duas formas importantes. A primeira é a forma como a estru
tura das narrativas de Lucas sobre a infância de João e de Jesus referem-se ao AT.
Dentre os muitos exemplos que serão notados neste comentário, observe a esterili
dade de Isabel (1.6,7 — Gênesis; Êxodo; Deuteronômio), a tradição dos nazireus
por detrás da abstinência de João (1.15 — Números; Levítico), a semelhança do
ministério de João com o de Elias (1.17 — Malaquias), a sucessão do poder daví-
dico (1.32,33 — 2 Samuel; Isaías; Salmos), a dependência intertextual do cântico
de Maria com o cântico de Ana (1.46-56 — 1 Samuel; Salmos; Miqueias) e até as
referências à estatura física de Jesus, que reflete as histórias de Samuel, Saul e Davi
(1.80 — 1 Samuel). Essas são apenas algumas maneiras pelas quais o primeiro ca
pítulo depende dos temas do AT para obter-se uma estrutura mais profunda do
mundo histórico. Cada página do Evangelho contém alguma conexão com o AT.
Segunda importância: o Jesus de Lucas relê o AT extensivamente em Suas
aparições pós-ressurreição. No último capítulo do Evangelho, o Jesus de Lucas
engaja-se em um extensivo estudo bíblico, que faz uma releitura e reaplica nume
rosos textos do AT, para que sejam agora compreendidos à luz do evento da res
surreição. Jesus censura os dois discípulos no caminho de Emaús: “Como vocês
custam a entender e como demoram a crer em tudo o que os profetas falaram!
Não devia o Cristo sofrer estas coisas, para entrar na sua glória?
E começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que constava a res
peito dele em todas as Escrituras” (24.25-27).
Os discípulos, de fato, recebem novas lentes hermenêuticas com as quais re
leem suas Bíblias e reinterpretam o significado de crucificação e ressurreição. As
respostas estão lá em Moisés e nos profetas, e Jesus argumenta-as. No entanto, é
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
somente por meio da ressurreição que os discípulos recebem a chave para compre
enderem o que estava escondido naqueles textos.
Essa observação tem significação para o autoconhecimento da comunidade
de Lucas. Aquelas pessoas não eram meramente canais para a tradição do AT, mas
eram esclarecedoras dessa tradição. Por intermédio do Jesus ressuscitado, elas pos
suíam um novo e profundo conhecimento, escondido das gerações prévias e agora
revelado pela ressurreição.
4. Os primeiros leitores
Para quem Lucas escreveu o seu Evangelho? Já que nada se sabe sobre a comu
nidade na qual ele vivia, as tentativas de descrevê-la são uma questão de conjectura.
Todavia, a informação sobre a comunidade dos primeiros leitores pode ser deduzi
da por sua abordagem teológica.
Primeiro, a mensagem tem um apelo fundamental àqueles que estão fora do
judaísmo étnico. Ela é um convite para os que eram anteriormente excluídos, a fim
de que se unam à salvação do Deus de Israel. Numerosas histórias no Evangelho
tornam esse ponto evidente (a viúva de Sarepta em Sidom, Naamã, o sírio [ambos
do material L], o centurião, o endemoninhado geraseno [ambos do material sinó-
tico], o banquete messiânico, no qual os filhos de Israel são excluídos e outros são
incluídos [material QJ). Quando essa ênfase é combinada com a mensagem do
evangelho de Atos aos gentios, sugere-se que, pelo menos parcialmente, o público
de Lucas não era judeu.
Entretanto, essa não é a história completa, já que Lucas, assim como todos os
Evangelhos, também apela à exclusão dos judeus étnicos dentro de Israel (os lepro
sos, os publicanos e pecadores, a mulher com o fluxo de sangue [todos Sinóticos],
a mulher pecadora, os samaritanos, o filho pródigo, Lázaro, Zaqueu [todos L], o
grande banquete ignorado [QJ). Logo, é difícil categorizar o público do Evange
lho como judeu ou como gentio, já que ele apela a todos os que estão sofrendo
uma exclusão baseada na ortodoxia religiosa. O primeiro público de Lucas quase
certeiramente incluía tanto judeus quanto gentios.
Se esse Lucas for o companheiro de Paulo, que viveu viajando amplamente
pela bacia do Mediterrâneo, podemos concluir que o seu público era, em gran
de parte, não palestino. Sua pouca noção de geografia palestina sugere que o seu
Evangelho foi a criação de uma diáspora; e o seu apelo principal seria o público
daquele mundo.
39
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
2. A eleição redefinida
Em Lucas, os termos usados para descrever o relacionamento da huma
nidade com Deus são mudados de eleitos (Israel) e não eleitos (as nações ou
os gentios) do AT para “perdidos” e “achados” do Evangelho. Colocando isso
de outra forma, os israelitas, como o povo de Deus no centro da história da
salvação, são substituídos por um novo povo — aquele que se arrepende e é
perdoado. A categoria de “nações”, característica da teologia do AT, é suplan
tada por uma nova categoria, os perdidos — todos os que se recusam a aceitar
o Messias de Israel.
Nesse novo conceito de salvação, Israel é privilegiado ou excluído, conde
nado ou salvo; é um povo que simplesmente perde sua posição de ser singu
lar entre os escolhidos. Assim como todos os povos, ele deve arrepender-se e
humilhar-se diante de Deus. Para usar a ilustração de Lucas 13.22-30, aqueles
que não se arrependerem, sejam judeus ou gentios, achar-se-ão excluídos do
banquete messiânico. Eles serão deixados de fora, nas ruas escuras e perigosas.
“Em Lucas/Atos, a expansão da salvação e a inclusão de todas as pessoas da
família de Deus representam o plano do Senhor. Além do mais, a reação de
arrependimento do homem à oferta da salvação abrange uma parte vital desse
plano” (Nave, 2002, p. 29).
Em Lucas, então, a aliança entre Deus e Sua vinha, Israel (Is 5), ficou
subordinada a uma mensagem de salvação mais ampla. Essa é uma inovação
teológica tão radical dentro da narrativa que os discípulos de Jesus respondem:
“Que isso nunca aconteça!” (20.16; veja 20.9-19). No paradigma de Lucas,
Israel tem pleno acesso à salvação, porém não mais baseado na eleição. Ao
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
3. Outros temas
Jerusalém. Lucas é um autor cujo olhar repousa sobre o centro geográfico do
judaísmo do templo — Jerusalém. A história viaja em um circuito, começando
em Jerusalém e seus arredores com as narrativas do nascimento de João e do de
Jesus, e depois vai da Galileia de volta a Jerusalém, nos capítulos 5— 19, em que
o drama final acontece nos capítulos 20—24. Como é a cidade de Seu destino
(9.31,44,51), Jesus não pode perecer em nenhum outro lugar (13.33). Ele parte
de Jerusalém após a Sua ressurreição, indicando a trajetória exterior que o evange
lho, então, percorrerá (24.15,46,47). Dessa órbita em torno da cidade mais santa
do judaísmo, esse centro de gravidade, a mensagem será lançada ao mundo gentio.
Esperança suspensa. Existe também um forte sentimento de expectativa
messiânica davídica no decorrer do Evangelho (1.32; 18.35-43). A comunida
de de Lucas havia ficado desanimada na antecipação de seu livramento. Mui
tas décadas se passaram desde que Jesus andara pelas montanhas da Galileia,
e Paulo já havia morrido há tempos. Aquela era uma comunidade que queria
desistir. Lucas lidou com esse tema em seu material especial em 18.1-8 (veja
também o comentário em 21.19). A hostilidade contra o movimento cristão
havia se tornado a realidade dominante na época em que o Evangelho de Lucas
foi escrito. A perseverança da comunidade da fé é uma das lentes fundamentais
pela qual a narrativa de Lucas deve ser lida. É nesse sentido de esperança sus
pensa que o material de Lucas sobre a expectativa messiânica discorre.
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
D. Estrutura e trama
Algumas observações gerais podem ser feitas sobre a trama do Evangelho
de Lucas. Em Marcos e Mateus, o ministério de Jesus, quando adulto, aparece
completamente formado no capítulo 1. Lucas, seguindo um prólogo normal,
expõe um complexo contexto cronológico e religioso para as origens de Jesus.
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
Sua história começa com uma extensa narrativa do precursor do Messias, João
Batista. Tendo criado esse contexto, Lucas passa para o nascimento de Cristo, e
dois acontecimentos no templo confirmam a Sua identidade como o escolhido
de Deus (Simeão e Ana). Pulando para 12 anos depois, Lucas traz uma ilustra
ção do menino Jesus no templo, trazendo mais confirmação e complexidade à
imagem do jovem. Com outro salto cronológico de 18 anos, a história começa
a convergir com o retrato sinótico do início do ministério de João como um
homem já adulto.
Seguindo o teste inaugural de sua lealdade a Deus no deserto, a parte cen
tral do Evangelho de Lucas começa recontando o ministério de Jesus em Sua
cidade natal e nos arredores. A porção galileia de Seu ministério estende-se até
9.50. Em uma série de eventos de curas, exorcismos e ensinamentos, o ministé
rio de Jesus é apresentado com a aprovação de Seus seguidores e do público em
geral. Obscuridades começam a surgir, entretanto, quando os líderes religiosos
fazem objeção à Sua conduta. Desde questões legais, do tipo de companhia que
Ele tinha até as referências cada vez mais evidentes à Sua identidade como Fi
lho de Deus, um ethos de conflito começa a formar-se em torno de Jesus como
uma figura controversa. O auge dessa seção é a transfiguração, na qual a Sua
identidade é plenamente revelada, e Seus oponentes são claramente revelados
como injustos. O palco agora est dark edges á preparado para o restante da
história.
No final do capítulo 9, numerosas referências ao martírio começam a surgir
no texto, e o Seu percurso para Jerusalém, cidade de Seu destino, fica estabele
cido. Ali, Ele encontrará a Sua morte preordenada. Dos capítulos 10 a 19, Jesus
ministra no caminho para Jerusalém em um contexto narrativo cronológico e
geográfico levemente apresentado. Na medida em que a narrativa desenvolve -
-se rumo à climática entrada em Jerusalém, muito do material peculiar de Lu
cas é encontrado: Suas parábolas sobre o filho perdido, o administrador astuto,
o fariseu e o publicano e a história de Zaqueu. Essas características constituem
a influência mais marcante de Lucas na tradição do Evangelho.
Uma vez que Jesus entra na cidade sagrada, a história de Seu sofrimento
fica bem paralela à tradição sinótica. Seguidamente à Sua morte, Lucas
novamente traz um material exclusivo para lançar na narrativa pós-ressurreição,
no caminho de Emaús. Ali, o Jesus ressurreto torna-se o Jesus da Igreja — um
mestre interpretando as Escrituras para encorajar Seus discípulos que, agora,
serão comissionados a ensinarem o Seu evangelho às nações. Nesse ponto,
termina a história do Evangelho, que será continuada no “segundo volume” de
Lucas, o livro de Atos dos Apóstolos.
47
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
E. Conflito
A trama tem uma máquina de conflito impulsionando a história adiante.
Em Lucas, cinco histórias de conflito fornecem o combustível para a contro
vérsia em torno de Jesus: a cura do paralítico (5.17-26); o chamado de Levi
(5.27-32); a questão do jejum (5.33-39); a colheita do grão no sábado (6.1-5)
e a cura do homem da mão atrofiada, no sábado (6.6-11). Lucas segue Marcos
nesse material (Mc 2.1—3.6).
Todas as cinco histórias têm um formato comum:
• Uma cura ou acontecimento provocante ocorre no ministério.
• Os adversários de Jesus fazem objeção e desafiam-no verbalmente.
• Jesus responde com um provérbio, que traz resolução à passagem.
• Além do mais, todas elas identificam os fariseus como os principais opo
nentes.
• Todas registram um incidente que gera oposição.
• Todas concluem com um ditado ou com uma ação que justifique Jesus.
Essas são histórias de conflitos partidários, é claro, e possuem valor limi
tado na reconstrução do judaísmo histórico nesse período de tempo. Ainda
assim, nós conseguimos ter uma percepção de como Jesus provavelmente se
diferenciava de Seus contemporâneos.
Da perspectiva do leitor, as histórias apelam para um sentimento inato
daquilo que é correto e apropriado na prática religiosa. Jesus e Seus seguidores
veem o senso comum; e os fariseus são caracterizados como religiosos sérios,
que não conseguem enxergar a verdade inequívoca. Esse retrato dos fariseus é
contrastado rigidamente com o dos pecadores e enfermos que aceitam a autoi-
dentificação de Jesus como o Filho do Homem e alegram-se com Suas palavras
e Seus feitos. Esses são pecadores “sadios”, aqueles que, de fato, já ouviram o
médico de 5.31.
Cada um desses dois grupos paradigmáticos representa a extrema margem
dos injustos (Isto é, os pecadores que realmente são os santos!) e dos justos
(Isto é, os fariseus e outros que realmente são os pecadores!). Eles são colocados
em conflito, com Jesus mediando no centro.
As raízes dessa ideia estão na retórica de “as ovelhas perdidas de Israel”, vis
ta primeiro em Ezequiel 34 (veja A partir do texto, em Lc 5.29-32; Por trás do
texto, em Lc 15. TIO, e o comentário; e a história de Zaqueu, em 19.1-10). Essa
ideia é reiterada por Jesus; e, assim, ela entra na tradição do Evangelho. O fato
de alguns membros de Israel serem considerados “ovelhas perdidas” provém
48
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
F. Caracterização
Os autores constroem personagens para preencherem seus mundos his
tóricos. Em certos pontos do comentário, alguma referência será feita sobre
como Lucas constrói os seus personagens. Ele confere aos personagens de sua
história, entre outras coisas, opiniões, motivação, padrões de comportamento
e falas, emoções, ambição, defeitos e fracassos. Os personagens desenvolvem
uma relação uns com os outros. Alguns são protagonistas, outros, antagonistas,
e ainda outros, espectadores. Por meio dos relacionamentos entre esses perso
nagens, o autor constrói um mundo histórico de significado.
Na narração do Evangelho por Lucas, encontramos o diabo, Deus, os
profetas, Jesus, José, Maria, Zacarias e Isabel, João Batista, Simeão e Ana, os
discípulos, as multidões, os pecadores e os cobradores de impostos, Herodes,
Zaqueu, o filho pródigo, o bom samaritano, os fariseus e os mestres da lei, e
muitos outros. Esses são os protagonistas da história, e o que sabemos sobre
eles vem inteiramente da caracterização do autor sobre cada um. Uma rápida
olhada para Jesus e para os fariseus pode demonstrar esse ponto.
Em todos os quatro Evangelhos, Jesus é uma figura complexa, alguém que
faz uma ponte entre o mundo divino e o humano. Em Lucas, Jesus consegue
vencer todo tipo de oposição e tem confiança em Sua missão como o Filho
de Deus. Ele surpreende aquele à Sua volta, falando e agindo de maneira que
transforma aqueles a quem Ele encontra. No decorrer da narrativa, Cristo so
brepõe o diabo e os fariseus por um lado, e a doença física, a insanidade e a
morte (do filho da viúva de Naim) por outro lado. Os demônios, os centuriões
e as multidões obedecem à Sua palavra e cumprem Suas ordens. Sua divindade
é atestada por todos esses feitos, pela voz do próprio Deus e pelos profetas da
antiguidade, que ficaram ao Seu lado no monte da Transfiguração.
Quando Jesus entra em Jerusalém, entretanto, Ele entrega-se aos poderes
ceifadores da morte e voluntariamente se submete às autoridades de Jerusalém,
até mesmo à morte na cruz. E necessário que Ele “sofra” e “seja morto” (9.22),
conforme a narrativa nos diz. E uma questão de compulsão redentora, e Ele,
final e prontamente, submete-se à autoridade dos sacerdotes por uma questão
de escolha. Quando Jesus morre, Ele o faz porque assim escolhe (“não seja feita
a minha vontade, mas a tua” [22.42]). E é aí que a força moral e espiritual da
49
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
morte reside. Ele é uma figura complexa e sobrenatural, mas é alguém com
quem o leitor rapidamente se simpatiza de maneira plena.
A escolha que Ele faz de submeter-se à cruz é central ao significado de Sua
morte. Pode-se até dizer que, da perspectiva de Lucas, Jesus sujeita-se à morte na
cruz como o Seu supremo ato de humildade. Essa é a mesma característica que
salva a todos no Evangelho de Lucas (veja mais no comentário em 23.32-43).
Toda essa caracterização faz parte da estrutura teológica de referência de
Lucas. Embora o mal tenha o seu dia de glória na crucificação de Jesus, isso
acontece com a permissão divina. Ao mesmo tempo, Jesus tem uma responsa
bilidade que surge de Sua existência humana. O drama duplo da providência e
da agência humana mistura-se na apresentação da paixão por parte de Lucas.
O aspecto humano da natureza de Jesus está livre para agir (como afirma a
teologia wesleyana). Contudo, isso tudo ocorre dentro da agência soberana de
Deus. Esse é o supremo mistério da vinda de Cristo para o meio dos homens
— Deus e os homens como coautores em um mundo. A força da teologia wes
leyana está na disposição de abraçar o mistério da função humana na ação di
vina e de tentar entender a vida na ambiguidade desse mistério. Nesse sentido,
a caracterização de Jesus carrega o coração da mensagem teológica de Lucas.
A caracterização dos fariseus, por outro lado, é quase inteiramente nega
tiva no terceiro Evangelho. Os fariseus servem como uma perfeita frustração
para a sabedoria e o poder de Jesus, os quais eles não conseguem compreender.
Eles são o exemplo negativo dos leitores, instruindo-os em como não devem
pensar e agir em relação à reivindicação de Jesus quanto à filiação.
Os leitores contemporâneos não devem, porém, adotar a caracterização
como um retrato histórico dos líderes judaicos em geral ou como a seita dos
fariseus em particular. Embora alguns de Seus contemporâneos realmente se
oponham a Jesus, essa caracterização dos líderes judaicos em oposição a Ele
deve ser reconhecida como um artifício literário. O estereótipo dos “fariseus”
como oponentes de Jesus originou-se em Marcos e foi assimilado por Mateus e
Lucas. Cada escritor deu à caracterização dos fariseus uma pátina exclusiva, às
vezes, simpática, mas geralmente negativa.
No Evangelho de João, essa tipologia alcançou sua forma mais importuna
quando os oponentes de Jesus foram chamados simplesmente de “os judeus”.
Esse uso reflete a crescente fenda entre o cristianismo e o judaísmo nos anos
mais avançados do primeiro século. Frequentemente, no passado do cristianis
mo, a caracterização negativa dos Evangelhos era tomada literalmente como
uma descrição histórica, tornando o judaísmo em um implacável inimigo da
verdade.
50
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
1. O apocalipse
A passagem desta presente época e a chegada do tempo futuro era uma ca
racterística central na ideologia do cristianismo primitivo. As primeiras escritas
de Paulo são evidências de que o fim da história era tido como iminente, especial
mente em 1 e 2 Tessalonicenses. A tradição sinótica também contém material que
lida com o fim da história e a introdução do mundo celestial que virá. Analisadas
em conjunto, as testemunhas dos Evangelhos e os escritos de Paulo indicam que
havia um grande sentimento entre os primeiros seguidores de Jesus de que o pre
sente século estava rapidamente chegando ao fim e que o Reino de Deus seria logo
estabelecido.
O conceito de uma era futura, que suplantaria o mundo histórico, não começou
com o cristianismo. Suas raízes originais então em algum lugar nas distantes
origens da religião persa. A ideia da culminação da história foi provavelmente
trazida ao cristianismo pelas peregrinações dos judeus no exílio, na Babilônia no
quinto século a.C.. Ela começou a entrar no judaísmo do primeiro século, antes
de Jesus. Nos dois séculos anteriores a Jesus, os fariseus adotaram a ideia de uma
vida após a morte e um fim da história e incorporaram esse pensamento em sua
teologia. O judaísmo tradicional do AT tinha pouco a dizer sobre o céu e a vida
futura, conceitos completamente formados nos ensinos tanto de Paulo como de
Jesus.
51
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Diversas características dão vazão a essa observação: a mais óbvia é que Lu
cas escreveu uma obra em dois volumes, que contava não só a história de Jesus,
mas também a história da Igreja primitiva, isto é, Lucas viu o drama da história
desenrolando-se em três estágios: a era da lei e dos profetas, a era de Jesus na terra
e a era da Igreja (à qual o livro de Atos é dedicado; Conzelmann, 1982, p. 95). O
último estágio era entendido por Lucas como um longo espaço de tempo, a era da
Igreja. Essa ênfase deu ânimo à jovem Igreja para viver no mundo assim como ele
era, enfrentar as perseguições e engajar-se nos empreendimentos missionários em
um esforço para transformar o mundo.
A inclinação para amenizar o sentimento apocalíptico do material do Evan
gelho pode ser visto de outras formas. Lucas é conhecido, como abundantes evi
dências neste comentário demonstrarão, por sua preocupação com o atual sofri
mento do pobre, do enfermo e do marginalizado. A evidência do Reino é a cura
dos doentes e a expulsão dos demônios no tempo presente, isto é, na mitigação do
sofrimento neste mundo.
Em Lucas 6.20, a bem-aventurança diz: “Bem-aventurados vocês, os pobres, e
não os pobres em espírito”, como em Mateus 5.3. Em Lucas, a teologia do arrepen
dimento e do perdão parece cobrir a teologia da redenção pela obra da cruz. Seus
seguidores são exortados a tomar aquela cruz e a carregá-la “diariamente” (9.23).
A comunidade de Lucas aceitou a vida cristã como um compromisso para a vida
toda, sem expectativa alguma de uma morte prematura trazida pelo fim do mundo.
Considerar que Marcos 13 é ou não um texto apocalíptico é uma questão de
debate. Entretanto, Lucas especificamente lança o denominado “pequeno apoca
lipse” no contexto da destruição de Jerusalém. Para Lucas, os eventos de 17.22-37
e 21.5-38 são uma exortação para suportar-se a conquista de Jerusalém pelo exér
cito romano em 70 d.C.. Logo, Lucas escolhe lançar o material apocalíptico de
Marcos no cenário sócio-histórico do período da destruição de Jerusalém.
2. Discipulado
A próxima observação na distinta teologia de Lucas vem da nova visão de dis
cipulado que emerge na narrativa pós-ressurreição. Há muito se observa que Lucas
conserva uma perspectiva da “história da salvação” em sua obra de dois volumes.
Isso significa que ele coloca a experiência cristã em um contexto no qual uma am
pla longevidade da Igreja é esperada. Logo, o segundo volume de sua obra (Atos)
lida com os primeiros dias da Igreja e com a transformação de um movimento
sectário em Jerusalém para um movimento religioso em Roma. O Evangelho de
53
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Lucas desenvolve uma teologia para levar a Igreja àquela vida amplificada na terra
após a partida de Jesus, na ascensão.
O fundamento para essa tradução em Lucas/Atos é o esclarecimento dos
discípulos no período da pós-ressurreição. Como notaremos no comentário em
24.13-27, o encontro com o Jesus ressurreto no caminho de Emaús é uma indica
ção de que o discipulado implicará em um compromisso para toda a vida, e não
apenas um breve interlúdio antes da chegada do Reino. Ali e nas subsequentes apa
rições aos discípulos, Jesus torna-se o Mestre ressurreto. Ele reinterpreta as Escri
turas hebraicas para os Seus seguidores em luto. Ele repreende-os, dizendo: “Não
devia o Cristo sofrer estas coisas, para entrar na sua glória?”.
Ele, então, coloca em operação uma nova exegese da Escritura hebraica à luz
da ressurreição: “E começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que
constava a respeito dele em todas as Escrituras” (24.27). Aos discípulos reunidos,
Ele diz: “Foi isso que eu lhes falei enquanto ainda estava com vocês: Era necessário
que se cumprisse tudo o que a meu respeito estava escrito na Lei de Moisés, nos
Profetas e nos Salmos” (v. 44).
Isso é tão importante quanto o aspecto eficaz da vida cristã em Lucas e o seu es
plendor no período pós-ressurreição. Os discípulos não receberão a esperada vindica-
ção pública da identidade messiânica de Jesus na parusia. Ao contrário, eles serão cha
mados para viver a duração da vida em fé, em estudo e em reflexão. Os discípulos da
pós-ressurreição terão de buscar um novo entendimento da Escritura. Então, eles deve
rão viver em testemunho da verdade, que permanece velado a todos, exceto aos cristãos.
A compreensão da vida cristã como uma longa jornada de serviço a Deus está
no fundamento do compromisso wesleyano do viver santo. E uma vida capacitada
pelo Espírito, mas também uma vida vigorosa de testemunho, estudo, oração e
persistência. De acordo com o Jesus ressuscitado de Lucas, essas eram as novas
realidades da experiência cristã da pós-ressurreição. Uma vida de esforço para ser
santo em fé e palavra é transmitida à Igreja, no caminho de Emaús, naquele dia. E a
partir desse novo paradigma de discipulado que os cristãos obtêm o seu chamado,
e a vida santa obtém sua necessidade.
Outro aspecto importante do novo discipulado em Lucas é a observância da
Ceia do Senhor. Essa é uma experiência que conecta os cristãos em um ritual sa
grado de união (veja o comentário em 24.28-35, A partir do texto). Já que isso
representa a presença de Jesus dentro da Igreja, o símbolo teológico da comunhão
reside próximo ao centro da teologia da santificação. Antes de Sua paixão, Jesus
encontrou-se com Seus discípulos para instituir a Santa Ceia. O pão e o vinho
representam a Sua presença em memória.
54
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
Após a ressurreição, o Jesus ressurreto senta-se à mesa com os dois que o en
contraram no caminho de Emaús. “Quando estava à mesa com eles, tomou o pão,
deu graças, partiu-o e o deu a eles. Então os olhos deles foram abertos e o reco
nheceram, e ele desapareceu da vista deles” (24.30,31). A ideia de Jesus presente
durante a refeição aparece novamente, quando Ele come na presença de Seus discí
pulos, em 24.41-44. Durante aquela refeição, as mentes deles foram “abertas” por
Jesus.
No mundo histórico de Lucas, a Igreja da pré-ressurreição é unida com a Igre
ja da pós-ressurreição, na mesa compartilhada com Jesus. A mesa da comunhão
une e santifica os cristãos de todos os tempos, da pré-ressurreição e da pós-ressur-
reição. E, de maneira semelhante, ela une todos os cristãos na presença de Cristo,
independentemente de denominação, doutrina ou nacionalidade. A santificação é
mediada à Igreja pela presença de Jesus à mesa. E Lucas quem mostra como a mesa
cobre o abismo entre o Seu ministério terreno e a Sua presença ressurreta na Igreja.
Acrescentando ainda à vida do cristão, existe uma ênfase wesleyana no tópi
co da persistência na oração em 18.1-8 (veja A partir do texto). Nessa passagem,
encontramos a história de um juiz injusto que cede à súplica da pobre viúva, para
fazer-lhe justiça. Nessa história, Deus é representado pela figura de um juiz que
responde à súplica humana (11.1-4). De modo semelhante, nos versículos 5-8,
Deus é análogo ao amigo importuno ou ao compassivo Pai celestial, que não é
menos amável que o pai humano nos versículos 9-13. Em outras palavras, a von
tade e a ação humanas podem mover Deus quando vêm em forma de um coração
ardente e santo.
Essa é a teologia de Lucas sobre a necessidade da oração. E uma teologia dis
tintamente relacional, que enfatiza o dinamismo entre Deus e o cristão. A escolha
tem uma importância moral, e as responsabilidades do discipulado determinam
o relacionamento de alguém com Deus. A responsabilidade humana é relevante
para a vida. Esse destaque está na ênfase da teologia wesleyana sobre a graça res
ponsável.
Finalmente, Lucas conduz o nosso coração a pensar sobre as questões morais.
Ele desafia-nos a aceitarmos um chamado radical para a santidade. E, na verdade, a
confusão moral de nosso mundo de mudanças rápidas que convida uma interpre
tação renovada de Lucas e dos outros Evangelhos. Em tempos de rápidas mudan
ças, um anseio pelo permanente e pela verdade leva-nos de volta à história de Jesus.
Qualquer leitor que se engajar seriamente no texto do Evangelho encontrará
nele uma produtiva experiência moral. Entretanto, aqueles que o fazem com um
coração de fé também o acharão espiritualmente vivificante, abrindo novas janelas
55
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
pelo texto bíblico ou pelos subsequentes intérpretes. Uma vez que os intérpretes
afastam-se do método alegórico, múltiplos significados de parábolas emergem, e a
complexidade da tarefa interpretativa multiplica-se.
Enquanto a pesquisa da parábola progredia no decorrer do século 20, outras
definições mais técnicas surgiam. Estas enfatizavam a natureza sofisticada do gê
nero. Bernard Brandon Scott descreveu a parábola como “curta narrativa de ficção
que faz referência a um símbolo transcendente” (1989, p. 8). Evans referiu-se às
parábolas como “pronunciamentos oraculares em forma de história conclamando
atenção a algum aspecto da regra de Deus ou do propósito divino” (1990, p. 372).
Shillington chama-as de “imagens criptografadas de uma nova realidade”, que ex
plicam o símbolo transcendente do Reino de Deus (ex.: 8.1,10; 19.11; 21.29-31;
também Mt 13.24,31,33; 1997, p. 1).
Essas definições destacam o poder das parábolas de comunicar ideias meta
físicas complexas, e não apenas simples lições de vida. Para balancear, o consenso
moderno é que as parábolas são muito mais do que simples histórias folclóricas
com uma moral única e simples.
Uma das questões mais controversas da pesquisa moderna da parábola é se as
interpretações fornecidas nos Evangelhos são originais de Jesus ou são fornecidas
pela Igreja. Em 18 das parábolas de Lucas, ele fornece uma interpretação para seus
significados (Stein, 2000, p. 33). A maioria dos eruditos modernos pensa que essas
interpretações surgiram nas comunidades que preservaram as parábolas (veja as
anotações complementares sobre Jesus e a alegoria nas parábolas). Essas interpre
tações refletem, argumentam os eruditos, a situação da comunidade do autor, e
não o cenário de Jesus. Nessa visão, as interpretações são consideradas aplicações
das parábolas originais (e geralmente ambíguas) de Jesus no contexto posterior
das diversas comunidades que as preservaram. Se essa conclusão for aceita (i.e., se
a aplicação for uma expansão secundária da parábola original), estudar a parábo
la sem adornos pode trazer outros níveis de significado além daqueles fornecidos
pelos evangelistas.
Talvez as ambiguidades que surgem na interpretação das parábolas são as fon
tes mais ricas de significado. Quando envoltas em suas ambiguidades, as parábolas
podem ser, como sugeriu Dodd, tanto históricas como modernas, tanto literais
como não literais, tanto diretas como metafóricas, em fascinantes combinações.
Elas “interpretam a vida para nós” e, logo, são “históricas e contemporâneas no
mais profundo sentido possível” (1958, p. vii).
As ambiguidades e os dilemas morais não resolvidos das parábolas causam
reflexão. Eles forçam os ouvintes a lutarem com o seu significado, projetando seu
poder de ensino mais profundamente na mente. Ambos não são apenas “ostenta-
58
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
59
COMENTÁRIO
Espírito Santo é apresentado como uma força dinâmica, que está constantemente
em movimento (1.15,35,41,67; 2.25,26; 3.16,22; 4.1). Quanto aos discípulos, a
ação de “seguir”Jesus sempre envolvia uma mudança na localização física (5.11,28;
9.23,57,59,61; 14.27; 18.22,28). Essa é a ênfase teológica sobre pessoas e forças
que estão em movimento propagando o evangelho, em oposição à estagnação da
religião baseada no templo.
Segundo, a seção da viagem está focada em um destino — Jerusalém. Lucas
segue o ministério de Jesus desde a Galileia até Jerusalém, no primeiro volume de
sua obra. No segundo volume, Atos, ele documenta a propagação da mensagem
de Jesus além de Jerusalém e da terra de Israel para o restante do mundo gentio.
Lucas refere-se a Jerusalém 31 vezes em sua narrativa do Evangelho, três vezes com
mais frequência do que seus companheiros sinóticos. Suas referências incluem
19, que são exclusivas de seu Evangelho (5.17; 9.31,51; 10.30; 13.4,22,33; 17.11;
19.11,41; 21.20,24; 23.7,28; 24.13,18,33,47,52; 9.28-36, Por trás do texto).
Para citar apenas alguns poucos exemplos dessa ênfase, vimos que Jerusalém é
o lugar para onde Moisés e Elias enviam Jesus (9.31), o lugar no qual Ele proclama
que deve morrer (13.33), e o lugar para o qual Ele resolutamente vira o Seu rosto
(9.51,53 NRSV). Na mensagem geral de Lucas, as boas-novas da salvação viajam
pelo meio do mundo judaico em seu caminho, para as outras nações.
Terceiro, essa temática da jornada também enfatiza a propagação da mensa
gem do evangelho dentro e fora da própria comunidade judaica. Ao longo de Suas
viagens, Jesus encontra numerosos judeus marginalizados e um menor número de
gentios fiéis. Todos estes respondem à Sua mensagem frequentemente rejeitada
pelos fariseus e doutores da lei (veja Johnson, 1991, p. 164,165). Esse tema já está
bem estabelecido na narrativa (1.79; 2.29-32; 7.1-10; 8.26-39) e se expande na se
ção da jornada (10.13-15,29-37; 13.22-30; 17.11-19; veja o comentário adicional
em 7.1 -10). A culminação desse tema é a partida de Jesus de Jerusalém no caminho
de Emaús, após a ressurreição. Quando Jesus “abre a mente” dos dois discípulos
com quem Ele anda, ambos entendem que, radiando do centro de Jerusalém, Sua
mensagem agora será proclamada a “todas as nações” (24.13-49).
Quarto, o tema da jornada está intrinsecamente ligado à Samaria, a odiada
vizinha de Israel. Na estrutura mais ampla de Lucas em Atos dos Apóstolos, o tema
de Samaria mostra que o evangelho terá sucesso fora do judaísmo convencional
centrado em Jerusalém. Apenas Lucas registra a história do samaritano que resgata
um homem ferido (10.33). Somente Lucas nos diz que apenas o samaritano lepro
so volta para agradecer a Jesus pela cura (17.16).
As implicações da “política samaritana” de Lucas são articuladas por completo,
inicialmente em Atos 1.8: “Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer
63
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Samaria
A PARTIR DO TEXTO
(9.58-60) são material Q (“as raposas têm suas tocas”, “deixe-me ir primeiro
sepultar meu pai”; compare com Mt 8.18-22). A terceira é exclusiva a Lucas:
o pedido de uma oportunidade de dizer adeus à família antes de partir (Lc
9.61,62). Mais amplamente, essas frases sobre o custo do discipulado ocorrem
entre a missão dos Doze (9.1-10) e a missão dos setenta (10.1-20), e servem
para alertar o discípulo/leitor sobre as exigências radicais de seguir Jesus. Ana
lisadas em conjunto com a nova informação sobre a Sua identidade apresenta
da no capítulo 9, essas injunções apresentam aos leitores a sóbria realidade do
preço que se paga por levar a cruz.
O estilo de vida da itinerância (veja 9.1-8) envolve a alienação da intimi
dade da família (8.19; também 12.53; 15.26; 18.28-30), o desligamento do
domicílio e do emprego (5.11,28; 9.57-62; 18.28-30) e uma dependência da
caridade como meio de sustento (8.3; 9.3; 10.4). Esses temas estão na vanguar
da desses três contextos.
NO TEXTO
(Ne 4.3; sobre Lucas e as raposas, veja Darr, 1992, p. 139-346). Herodes é, de
acordo com o Jesus de Lucas, apenas uma “raposa” astuta, em 13.32, que não é
digna de sérias preocupações (veja Ct 2.15).
Aqui, em Lucas 9.58, os animais inferiores, como a raposa, têm um domicí
lio, mas os discípulos do Filho do Homem não têm onde dormir. Embora um
quarto em uma hospedaria comercial seja apenas um degrau acima do chão frio
(10.34), até mesmo essa acomodação inconveniente está indisponível aos po
bres discípulos (sobre a má reputação das hospedarias, veja Oakman, 2008, p.
175-177). Siraque 36.27 descreve o infeliz estado de tais peregrinos sem-teto:
“Assim é o homem que não tem ninho e se deita onde a noite o surpreende”
(NRSV, tradução livre; Bock 1996, p. 978,979). Esse é o custo do discipulado.
■ 59-60 Jesus, então, convida outro homem: Siga-me. Ele responde: Se
nhor, deixa-me ir primeiro sepultar meu pai (v. 59). O pedido do homem
tem diversas aplicações possíveis:
Talvez ele queira esperar até que seu pai morra. A urgência do pedido, entre
tanto, sugere uma morte recente. Logo, o pedido seria uma permissão para
cumprir as responsabilidades familiares por um curto período de tempo antes
de juntar-se à comitiva itinerante, talvez semanas ou meses depois. Contudo, é
improvável que um homem estivesse no meio da sociedade durante o período
inicial de sete dias de impureza e luto após uma morte na família (Bock, 1996,
p. 980).
Outra possibilidade é que ele se referia ao segundo enterro, que acontecia um
ano depois que o corpo havia sido posto para descansar sobre uma plataforma
tumular (Green, 1997, p. 408). Depois que a carne se decompunha, os ossos
eram “recolhidos aos seus pais”, ou coletados e lançados sobre a pilha de ossos
dos residentes anteriores do túmulo. Nessa interpretação, o homem estava pe
dindo permissão para esperar até um ano para seguir Jesus.
Jesus responde: Deixe que os mortos sepultem os seus próprios mortos;
você, porém, vá e proclame o Reino de Deus. A resposta de Jesus é dura e “fica
em oposição à piedade e à moral judaica” (Fitzmyer, 1981, p. 834). A descrição
do sepultamento que Abraão fez para Sara em Gênesis 23.3-20 é uma pungente
história sobre a responsabilidade de sepultar-se os mortos (Evans e Sanders,
1993, p. 253; veja também Tob. 4.3,4; 12.12-14). E, embora a lei bíblica não
ordenasse que o filho enterrasse o pai, o quinto mandamento de honrar pai e
mãe assim exigia (Ex 20.12). Não existem paralelos no discurso de Jesus na
70
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
literatura daquela época. Alguns sugerem que Sua severidade argumenta por
causa de Sua autenticidade (Evans e Sanders, 1993, p. 252; Fitzmyer, 1981, p.
835).
A interpretação mais comumente aceita sobre a resposta de Jesus considera a
frase uma metáfora. Os “mortos” que devem enterrar o morto são aqueles que
tomaram a decisão de não seguir Jesus. Eles são os espiritualmente mortos, que
devem ficar para trás para cumprir as obrigações de enterrar os que estão fisica
mente mortos (Fitzmyer, 1981, p. 836). O discurso é não apenas metafórico,
mas também hiperbólico. Ele se parece com o de Lucas 14.26, no qual Jesus or
dena que Seus discípulos aborreçam seus pais. Aliás, a resposta de Jesus remove
a “melhor desculpa” que uma pessoa poderia ter para não segui-lo imediata
mente (Bock, 1996, p. 981). Isso eleva o custo do discipulado ao nível extremo
(compare a negativa de Deus sobre a atitude de Ezequiel por lamentar a morte
de sua esposa, em Ez 24.15-24; veja também Jr 16.1-9).
■ 6 1 -6 2 No terceiro discurso, Jesus repreende um pretenso seguidor. Esse
discípulo quer dizer adeus à sua família antes de unir-se aos discípulos na cami
nhada. Jesus responde: Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é
apto para o Reino de Deus (v. 62). Essa história parece fazer um eco da unção
de Eliseu por Elias, em 1 Reis 19.19-21.
Significativamente, Elias encontra o seu novo pupilo Eliseu arando com seus
bois. “Elias o alcançou e lançou a sua capa sobre ele. Eliseu deixou os bois e
correu atrás de Elias. ‘Deixa-me dar um beijo de despedida em meu pai e mi
nha mãe’, disse, ‘e então irei contigo/ ‘Vá e volte’, respondeu Elias (...). E Eliseu
voltou” (1 Rs 19.19-21). A resposta de Jesus pode aludir a esse incidente. Os
primeiros leitores teriam entendido que a decisão deles de seguirem Jesus não
permitiria a cortesia que Elias demonstrou a Eliseu de despedir-se de sua casa
antes de entrar no caminho.
A PARTIR DO TEXTO
moramos, o que fazemos e até os dias da nossa vida devem ser oferecidos de
forma a cumprir os compromissos para os quais Ele nos chama.
NO TEXTO
Essa passagem pode ter servido de base para uma revisão formal do mo
vimento de Jesus pelas cidades e aldeias locais (veja Wright, 1996a, p. 439-
441). A advertência aplicava-se aos profetas que haviam passado no teste de
autenticidade porque suas profecias haviam-se cumprido (Dt 18.21,22; veja
Dt 13.2), mas, não obstante, eram culpados de deslealdade para com o Senhor.
Em outra parte do NT, eles certamente realizaram “sinais e maravilhas” e foram
acusados de desviar o povo (Lc 23.2,5,14; compare com At 19.26; veja Stanton
em Green e Turner, 1994, p. 175-180). Para as autoridades civis e religiosas, os
sinais realizados por pessoas tidas como desleais ao judaísmo tradicional repre
sentavam um problema. Realizavam milagres, mesmo que isso fosse desleal à
tradição do judaísmo. “Intolerava-se alguém cujos atos poderosos atraíam inte
resse, multidões e seguidores regulares, e cujos ensinamentos de tal seguimento
soassem como uma deslealdade radical” (Wright, 1996a, p. 441).
Os grandes centros mencionados por Lucas de forma específica já haviam
evidentemente tomado a decisão de que os ensinamentos de Jesus não eram or
todoxos. Além do mais, Sua identificação como profeta (4.24; 7.16,39 et al.) e
Messias (9.20; 22.67) era considerada falsa e equivalia a desviar o povo. Já que
Deuteronômio 13 mandava que as cidades julgassem os profetas, elas, igual
mente, levavam o castigo de destruição se apoiassem um falso profeta.
As cidades judaicas podem ter banido profetas questionáveis ou tentado
matá-los, mesmo que isso envolvesse membros da família. Os moradores de Na
zaré tentaram apedrejar Jesus até a morte (Lc 4.29; compare com Lc 12.52,53)i
exatamente a punição prescrita em Deuteronômio 13.10. Lucas 11.53,54 tam
bém reflete o procedimento de Deuteronômio de capturar aquele que causava
o desvio do outro — era permitido flagrar o infrator colocando testemunhas
escondidas contra ele (veja Sanh. 7.4; Mc 3.6; 14.1,55 || Mt 26.59-61 também
parecem referir-se a esse tipo de prática). Enquanto tal ação vigilante fosse pro
vavelmente rara, esse paradigma poderia justificar o comportamento da turba
enfurecida em Nazaré e, é possível, por outros atos de violência contra Jesus
que são, de outra forma, difíceis de explicar (ex.: Lc 7.34, compare com Dt
21 .20 ).
77
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
Reino de Deus está engiken eph’hymas {perto de vocês) é entendido como uma
promessa de bênção, mesmo que a hora da vinda do Reino seja indefinida (>à
17.20,21).
A jornada de Jesus em direção a Jerusalém desenvolveu-se sem nenhuma es
pontaneidade benigna. Quando os Seus emissários não fossem bem recebidos,
Ele instruiu-os a saírem pelas ruas da cidade {eis tas plateias) e a fazerem uma
declaração pública de sua condenação. As ruas simbolizavam a declamação
pública de lealdade, em Lucas 13.26 e 14.21. Uma rejeição cívica gerava uma
repreensão cívica nas ruas: Até o pó da sua cidade, que se apegou aos nossos
pés, sacudimos contra vocês. Fiquem certos disto: O Reino de Deus está
próximo (10.11). Esse versículo aparece apenas em Lucas. Há uma estratégia
de confronto público na missão, completa com uma declamação pública nas
ruas das cidades e aldeias. A jornada de Jesus para Jerusalém desenvolveu-se
sem nenhuma espontaneidade benigna.
I 1 3 -1 6 O fato de o Reino estar “próximo” (engiken) implica em uma ame
aça de julgamento apocalíptico. Eu lhes digo: Naquele dia haverá mais to
lerância para Sodoma do que para aquela cidade (v. 12). Os habitantes de
Sodoma (veja Gn 18 e 19), a quem Deus destruiu com fogo do céu, terão me
lhor chance na vinda do Reino de Deus — no dia do julgamento. Corazim e
Betsaida, semelhantemente, tiveram seu dia de milagres e recusaram-se a acre
ditar. Tiro e Sidom (...) teriam se arrependido, vestindo roupas de saco e
cobrindo-se de cinzas se tivessem visto o que Corazim e Betsaida viram (v.
13). Jesus parece referir-se ao arrependimento das pessoas de Nínive em rela
ção às roupas de saco e às cinzas por causa da advertência de Jonas (Jn 3.6-9).
Tiro e Sidom são cidades pagãs da costa do Mediterrâneo, logo ao norte de
Israel. A reivindicação de que cidades pagãs e pervertidas estariam em melhor
situação do que as cidades israelitas é uma amarga crítica profética e talvez uma
evidência da acrimônia que se desenvolveu em cidades galileias, aldeias e vila
rejos em resposta a Jesus e Seus emissários.
Cafarnaum (v. 15) era a base de operações de Jesus e a casa de muitos dos Doze.
De início, Ele foi bem recebido ali (4.31-44) — o povo até tentou impedi-lo de
sair de lá. No entanto, eventualmente, uma ruptura com seus habitantes ou seus
líderes judeus tornou-o uma pessoa não bem-vinda naquela localidade (veja Jo
6.41-71). Jesus declarou que Cafarnaum agora descerá até ao Hades (Lc 10.15)
no dia do julgamento. “Quem lhes dá ouvidos está me dando ouvidos; quem os
rejeita está me rejeitando; mas quem me rejeita está rejeitando quem me enviou”
(v. 16 NIV11’tradução livre; veja também v. 22) soa como o quarto Evangelho.
79
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
Também temos palavras que descrevem a parte de cima da hierarquia vertical: céu
(v. 18,20), “Senhor do céu e da terra” (v. 21), “profetas e reis” (v. 24). A passagem
não parece ter o sentido apocalíptico de Apocalipse 12.7-12, em que uma grande
batalha universal está em vista. Aqui, em Lucas, Satanás é destronado pela cura e
pregação dos discípulos. Essa é uma realidade presente, uma evidência da presença
do Reino de Deus no meio deles (veja Lc 17.21).
H 21 De maneira semelhante, Jesus contrasta os adultos com as crianças. As crian
ças estão em baixo na escada hierárquica, e os adultos estão nos níveis superiores.
Contudo, com ironia (veja 9.48), Lucas compara a abertura e o esclarecimento das
crianças com a obstinação e a cegueira dos adultos (veja 18.15-17).
Jesus estava exultando no Espírito Santo. Lucas descreve esse estado extático
como sendo causado pelas novidades de Seus discípulos que acabavam de retornar.
Ele descreve-os como os pequeninos em contraste com os sábios e cultos. Pesso
as como os fariseus não conseguiam entender o significado dos ensinamentos de
Jesus. Os ensinamentos estavam escondidos delas (8.9,10).
■ 22-24 A reivindicação de Jesus — Todas as coisas me foram entregues por
meu Pai — tem uma importância cristológica muito abrangente. Ele afirma o Seu
domínio sobre toda a criação de Deus. Ele prossegue: Ninguém sabe quem é o
Filho, a não ser o Pai; e ninguém sabe quem é o Pai, a não ser o Filho e aqueles
a quem o Filho o quiser revelar.
Essas afirmações interpõem Jesus entre Deus e os homens como o único árbitro do
conhecimento divino. Isso é um significativo avanço na teologia da divindade de
Jesus em Lucas. Tais declarações soariam como blasfêmias para os tradicionalistas
do judaísmo. Primeiro, Ele removeu a Torá do centro do relacionamento de Israel
com o Senhor. Em vez disso, identificou o Messias como o mediador entre Israel
e Deus. No lugar da Lei e do culto sacrificial, Jesus reivindicou que Ele era o me
diador da presença de Jeová. Essa declaração, compartilhada por Lucas e Mateus, é
surpreendentemente alusiva ao Evangelho de João.
Jesus faz essa declaração cristológica somente na presença dos discípulos. Ela, en
tão, constitui uma parte da identidade secreta de Jesus compartilhada pelo nar
rador, pelo círculo íntimo do movimento e pelo leitor. Os profetas e reis (v. 24)
há muito ansiavam ver o Messias. Contudo, eles não foram abençoados com essa
oportunidade. Os discípulos de Jesus são testemunhas privilegiadas de um evento
histórico da história da salvação.
81
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
H 25-28 Uma pergunta é feita a Jesus por um perito na lei. Ele disse a Jesus:
Mestre, o que preciso fazer para herdar a vida eterna? (v. 25). Os paralelos
sinóticos em Mateus 22.34-40 || Marcos 12.28-34 contêm apenas a pergunta
do perito, e não a parábola. A pergunta é diferente nos paralelos sinóticos: “De
todos os mandamentos, qual é o mais importante?” (Mc 12.28; Mt 22.36).
Todas as três versões citam Deuteronômio 6.5 e Levítico 19.18 em resposta à
pergunta do perito na lei.
A pergunta é: O que preciso fazer para herdar a vida eterna? (v. 25, zõên
aiõniõn). Essa frase grega é rara nos Sinóticos: na história do homem rico (Lc
18.18-23 || Mc 10.17-22 || Mt 19.16-22; veja também Mt 25.46). Por compa
ração, João usa essa frase 16 vezes; Paulo, nove vezes.
Na LXX, a expressão “vida eterna” aparece somente em Daniel 12.2, possivel
mente a referência primordial da ressurreição na Bíblia. Na literatura posterior
do segundo templo, a expressão “vida eterna” é encontrada no pseudoepígrafo
Os Salmos de Salomão 3.12 (primeiro século a.C.). O livro 4 Macabeus (final
do primeiro século) apresenta o martírio como o portal para a imortalidade da
alma (15.3; 16.25; 17.11,12; 18.18; veja Bertram, 1964, p. 852).
Em geral, a ideia de vida eterna não é típica da teologia do AT. A vida (ex.: khyh
ou nps) é fundamentalmente um conceito temporal (Bultmann, 1964a, p. 849-
851). A inclusão na teologia pactuai de Israel é uma questão de identidade, e
não de desempenho. O que alguém faz não deixa de ser importante, é claro,
como fica evidente na pergunta sinótica: “De todos os mandamentos, qual é o
mais importante ?”. Contudo, a pergunta sobre a vida eterna em Lucas dirige-se
à inclusão ou exclusão na comunidade salva.
O questionamento do perito na lei sobre o que ele deveria “fazer” (ti poiêsas)
para adquirir a vida eterna é coerente com o tema de Lucas sobre como um
discípulo deve agir (pôr em “prática” [6.49]; “siga-me” [9.59]; “vão” [10.3];
veja Green, 1997, p. 425,426). “Fazer” é o objetivo da parábola. O perito na lei
é aconselhado a “ir e fazer o mesmo”, na conclusão da parábola.
O perito na lei levanta-se para pôr Jesus à prova (ekpierazõ, “colocar à prova,
instigar, tentar”; também em 4.12; veja Green, 1997, p. 428). O perito queria
testá-lo. Em Lucas 10.29, o perito na lei tenta vindicar ou “justificar [dikaiõsai\
a si mesmo”. Essa tática destinada a envergonhar os oponentes de alguém é vista
em outro lugar (uma boruth\ 5.20-26; 20.22; Mc 12.18-27; veja Snodgrass,
2008, p. 353). A armadilha podería ter sido uma tentativa de atrair Jesus a dizer
85
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
algo herético concernente à Lei. A resposta de Jesus evita esse potencial ao redi
recionar a pergunta de volta ao perito.
O perito na lei recebe uma pergunta complementar provocativa sobre a defi
nição de “próximo”. Ele tem tanto características positivas quanto negativas
(Green, 1997, p. 427). Ele procurou Jesus e chamou-o de Mestre. Entretanto, a
caracterização mais ampla de Lucas quanto aos fariseus na narrativa é quase uni
formemente negativa. Portanto, os leitores ficam na expectativa de um desafio, e
não de uma pergunta sincera.
A resposta de Jesus à pergunta sobre a herança da vida eterna é a mesma — obe
deça à lei. Ele responde à pergunta com outra pergunta. “O que está escrito na
Lei?” respondeu Jesus. “Como você a lê?” (v. 26). O Jesus de Lucas respeita
o AT, em geral, e a Lei, em particular (-> Introdução, A fonte do Antigo Tes
tamento e Lc 2.22-24,27,39). Todavia, a contínua legitimidade da Lei tem um
aspecto condicional baseado no surgimento de uma nova era (16.16,17 e 24.44-
49). Alguns halacás sobre a pureza ritual (“^ 7.6-10) são desconsiderados. Essa
passagem mostra, entretanto, que o Jesus de Lucas permanece dependente do
coração da Lei, até mesmo para o conhecimento da salvação: Faça isso, e viverá
(v. 28).
O perito na lei responde com referências às “duas tábuas da lei”. A primeira vem
de Deuteronômio 6.5, o Shemá, escritura recitada diariamente pelos judeus fiéis.
Esse mandamento está no cerne da fé judaica (Marshall, 1978, p. 443; Beale e
Carson, 2007, p. 320-322): Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração,
de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento. E a
segunda referência é de Levítico 19.18: “O seu próximo como a si mesmo”. Esses
dois textos estão fundidos em uma única sentença, com a elisão do verbo agapeõ
na segunda parte (Lc 10.27; compare com Mc 12.30,31 || Mt 22.37-39).
A “primeira tábua” são as quatro leis dos Dez Mandamentos, que lidam com o
relacionamento dos homens com Deus. A “segunda tábua”, representada pela
citação de Levítico, lida com os últimos seis mandamentos que governam as
relações humanas (veja Fitzmyer para o aparelhamento delas no judaísmo pré-
-cristão, 1985, p. 878,879).
Novamente, a ênfase está naquilo que a pessoa precisafazer. O debate emergen
te entre Jesus e o perito na lei gira em torno da definição de quem é o próximo
(p/êsion). A parábola trata de um samaritano. A Lei não obrigava alguém a amar
tais inimigos, pois era necessário o amor para com os estrangeiros que viviam
ali (Lv 19.34; Marshall, 1978, p. 444). Esse texto reflete a significativa divisão
cultural e étnica existente entre os judeus e os samaritanos na época de Jesus.
De maneira teológica, as duas tábuas da Lei representam uma expressão ple
namente circular da responsabilidade de alguém em demonstrar fidelidade a
86
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
Deus e tratar seus companheiros seres humanos com dignidade e amor. O pa
radigma da herança é “especialmente deuteronomista” (Evans, 1990, p. 465;
também Marshall, 1978, p. 443). Os comentaristas mantêm a necessidade da
fé em Deus e a responsabilidade de agirem compassivamente em um delicado
equilíbrio. Ninguém adquire um lugar com Deus por meio de ações bondosas;
ao contrário, os atos de compaixão fluem do amor bondoso. Jesus aprova a
resposta correta do perito sobre a lei dupla do amor. Sua “expressão de total
aliança e devoção... Em outros contextos, podería ser chamada de fé” (Bock,
1996, p. 1025).
Quando você ama a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma, de
todas as suas forças e de todo o seu entendimento, fica evidente que isso
envolve a “totalidade da mente e da vontade que devem ser trazidas à adoração
a Deus” (Marshall, 1978, p. 445). A combinação de amor e ação é um “amor
compreensivo de Deus, aliança globalizante e inflexível e conformidade com o
Seu propósito, de onde emana o amor aos outros” (Green, 1997, p. 428). Su
mariamente afirmado, o Jesus de Lucas afirma que o relacionamento com Deus
deve sempre ser evidenciado pela prática do amor e respeito pela dignidade
humana (veja também Rm 13.8-10; G1 5.13,14; Tg 2.8). Isso está no coração
da descrição de Wesley sobre a vida santa.
Nessa passagem, Jesus apresenta as duas tábuas da lei sendo colocadas em prá
tica, como o suficiente para adquirir-se a vida eterna: Faça isso, e viverá (v.
28). Em um estilo típico de Lucas, a ênfase está no fazer. Como ocorre aqui,
ele frequentemente usa o verbo poieõ (“fazer”) com força imperativa. Ele tam
bém o utiliza de forma amiúde, com força subjuntiva, como no versículo 25: O
que preciso fazer? {tipoiêsas, veja, ex.: Lc 12.17; 18.41; 20.13,15). Embora o
perito na lei interprete a Lei corretamente, “internalizá-la e realizá-la” é outra
coisa (Green, 1997, p. 428). Essa pergunta complementar implica que a sua
compreensão da Lei excedia a sua aderência a ela mesma.
BI 29 O perito na lei quis justificar-se perguntando a Jesus: E quem é o meu
próximo? (v. 29). A resposta de Jesus a essa pergunta é a história do bom sa-
maritano.
I 30-33 Os personagens secundários dessa história são um sacerdote e um
levita, dois membros do estabelecimento religioso judaico. Os personagens
principais são um samaritano e um homem que, quando descia de Jerusalém
a Jerico, “foi atacado por assaltantes” (v. 30 NIV11, tradução livre). O cenário
era a estrada que ligava as duas cidades, uma descida de 22 km, deserta, de mais
900 m de altura, um notório refúgio para ladrões.
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LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
■ 3 6 -3 7 Jesus perguntou ao perito na lei: Qual destes três (...) foi o pró
ximo do homem? O perito na lei respondeu: Aquele que teve misericórdia
dele. Em resposta, Jesus lhe disse: “Vá e faça o mesmo”
Os estudiosos debatem a presença de uma metáfora na parábola e se essa histó
ria faz referência ao Reino de Deus (Snodgrass, 2008, p. 350-353). Contudo,
o sentido pleno da parábola parece ser o de uma história com uma moral. As
ações do samaritano permanecem como um encorajamento, para que o leitor
oriente suas ações dessa mesma forma.
A PARTIR DO TEXTO
Suas ações também funcionam como uma exortação para o leitor integrar
o amor pessoal a Deus com o amor ao próximo: “Vá e faça o mesmo” (v. 37).
Não pode haver uma nova realidade social sem um calor humano radical, nas
cido do espírito de santidade compreendido em termos amplos e não cultuais.
Esse princípio reside no centro da prática e da teologia wesleyana. Visto que o
Reino de Deus possa ser realizado nesta era, ele só pode ser demonstrado pela
mudança baseada no amor e na compaixão. O samaritano modelou o estilo de
vida que trará o poder de transformação do Reino ao nosso mundo.
A dependência da história em sua base no Antigo Testamento também de
monstra que não pode haver uma verdadeira santidade sem a revelação orien
tadora da Lei de Deus. O samaritano renegado cruza as barreiras social e reli
giosa. Ele estende um cuidado compassivo a uma vítima atacada pela violência,
sem preocupação com sua própria segurança ou com a religião ou etnia da víti
ma. O sacerdote e o levita representam uma compreensão falha da propriedade
religiosa em sua relação com a compaixão humana. O samaritano representa
uma verdadeira santidade pessoal, que é verdadeira para a Torá.
o reverenciam e fazem o que é bom aos seus olhos. Bendito és tu que ouves as
orações” (veja Taylor, 1997, p. 152 e também Lachs, 1987, p. 118). Compare
também m. Ber. 4.4: “Aquele que viaja para um lugar de perigo deve fazer uma
breve oração, dizendo: ‘Salve, ó Senhor, o remanescente de Israel; em cada
período de transição em que estiver, que as suas necessidades cheguem diante
de ti. Bendito és tu, ó Senhor, que ouve as orações!” A oração de Lucas é para
as “pessoas cuja coragem precisa ser despertada” (Jeremias, 1967, p. 88). Isso
está de acordo com o contexto literário da Oração do Senhor em Lucas: os
discípulos de Jesus aprendem a orar em meio a um conflito — os perigos e o
desespero da jornada para Jerusalém.
0 discípulo chama Jesus de Senhor {kyrie). O vocativo kyrios usado aqui tem a
ver com o caso de uma abordagem direta em grego. Senhor, às vezes, significa
simplesmente “homem”. Entretanto, às vezes, tem uma importância cristoló-
gica (como em 5.8,12; 6.46; 9.54 e 10.17), como aqui. Em um momento an
terior, o leitor viu os dois termos de abordagem em referência direta a Deus:
“Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra” (10.21). O “Pai” é dado a conhecer
somente àqueles “a quem o Filho o quiser revelar” (10.22).
1 2 Em resposta ao pedido de Seu discípulo, Jesus começa dizendo: Quando
vocês orarem, digam. O futuro do subjuntivo orarem (proseuchêsthe) com ho-
tan reflete instruções gerais para a oração, e não um exemplo específico (Culy,
Parsons e Stigall, 2010, p. 373). Logo, a oração é provavelmente um modelo
para qualquer oração e espiritualidade. As palavras expressam comunhão ínti
ma, dirigindo o suplicante à presença de Deus por meio do direcionamento e
da brevidade da oração. As ideias são panorâmicas em escopo e profundamente
significativas. Contudo, são apresentadas com economia de expressão. Isso dá à
oração uma potência singular.
Jesus dirige-se a Deus simplesmente como o Pai. O familiar “Pai-nosso” vem
da versão de Mateus. Essa é uma forma íntima da abordagem judaica a Deus no
período do N T (Charlesworth, Harding e Kiley, 1994, p. 7-11; Jeremias, 1978,
p. 95; também encontrado em 2.49; 10.22; 22.29; 24.49). A forma aramaica
subjacente de Pai (patcr) nos Evangelhos é Abba (abbã), um termo de parti
cular intimidade (Jeremias, 1978, p. 15-29). Embora não seja frequentemente
chamado de “Pai” no AT, Deus é ilustrado como o Pai de Israel; os israelitas
são Seus filhos (Dt 14.1; 32.6; 2 Sm 7.14; Jr 3.19; Is 63.16; SI 103.13; veja
Fitzmyer, 1985, p. 902,903). Essas referências do AT tendem a ser corporativas
em natureza. Logo, a forma de abordagem aqui contém uma ressonância com
o relacionamento histórico de Israel com Deus e uma nova intimidade nascida
do relacionamento peculiar de Jesus com Deus. O uso do termo “Pai” por Jesus
95
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
possui uma objetividade que é muito mais íntima do que o uso normal no AT.
O discurso inicial ao Pai é seguido de duas afirmações e três petições.
A primeira afirmação é uma declaração da santidade de Deus: Santificado seja
o teu nome. O ato de invocar a Deus reconhece a Sua santidade. E também
declara a nossa responsabilidade de afirmar a santidade de Deus no mundo por
meio de ações (compare Ez 36.16-32; veja Green, 1997, p. 441).
A segunda afirmação é uma profunda declaração sobre o relacionamento de
Deus com o mundo criado e o homem ansioso para que o Seu domínio seja
realizado na terra: Venha o teu reino. O Pai é também Rei. Embora o Seu
Reino ainda não esteja plenamente presente no mundo, ele não é menos real
(veja 17.21). A aparente ausência do Reino nos assuntos humanos é confusa
para os discípulos. Entretanto, a esperança de sua rápida realização os sustenta.
A comunidade pode apressar o aparecimento do Reino de Deus por causa de
Sua fidelidade.
Uma ideia similar está no centro do Kadish: “Estabeleça o seu reino... rapida
mente e em um tempo próximo”. Apesar de todas as aparências contrárias, a
Oração do Senhor proclama que o mundo não sucumbirá aos seus problemas
caóticos. E, contudo, ainda há uma fiel paciência trabalhando na petição. O
discípulo aguardará o advento do Reino, não importa o quanto demore até que
seja completamente realizado.
3 Lucas enxerga a história como uma realidade de longo prazo para a Igreja (“^
Introdução, Lucas e a vida cristã, o apocalipse). Sua narrativa de dois volumes
apresenta a vida de Jesus (o Evangelho de Lucas) e, depois, a vida da Igreja
(Atos).
Essa ênfase é refletida na petição pelo pão. Tanto em Mateus como em Lucas,
o pão é ton arton hêmõn ton epiousion, o nosso pão de cada dia (Mt 6.11 11 Lc
11.3). O uso do imperativo do verbo dar (didou), em Lucas, indica a natureza
contínua do pedido. Em 9.23, Lucas torna o carregar da cruz uma responsa
bilidade “diária”. Em ambos os casos (9.23 e 11.2), significam uma questão de
prática diária: Dá-nos o pão nosso de cada dia. O pão é um potente símbolo
no decorrer da literatura bíblica. A petição de um pão cotidiano tem uma
significância em quatro perspectivas:
Na primeira, ela tem fortes intertextos com a história do AT, começando com
o maná para o povo de Israel (Ex 16.4 e 15; compare com SI 78.25). Quando
o povo peregrinou pelo deserto, Deus alimentou-o miraculosamente com o
maná do deserto. Esse foi um precursor do legado de Deus daquela terra e a
fonte da bênção para o Seu povo (Ex 3.8). No mesmo dia em que os israelitas
entraram na terra, “eles comeram pães sem fermento e grãos de trigo tostados,
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
passagem é: Ore para que você não seja obrigado a passar pelo teste da fé. Nesse
contexto, isso funciona como uma exortação à fidelidade.
H 5-8 A ênfase sobre a oração continua. Somente Lucas preserva essa história
do amigo importuno, que acorda seu amigo no meio da noite para pedir pão
emprestado. A lição é resumida no versículo 8: Eu lhes digo: Embora ele não
se levante para dar-lhe o pão por ser seu amigo, por causa da importunação
se levantará e lhe dará tudo o que precisar. Semelhantemente, Lucas 18.1-9
reforça esse tema com a história do juiz injusto: “Então Jesus contou aos seus
discípulos uma parábola, para mostrar-lhes que eles deviam orar sempre e nun
ca desanimar” (Lc 18.1).
A fidelidade diária é importante para Lucas (ex.: 9.23; 11.3). Isso fica mais
evidenciado em sua preocupação com o pobre, o doente e os pecadores deste
mundo. A mesma preocupação com a prática diária é refletida nessa passagem
que elogia a persistência. Não é a intensidade da crença, nem a ausência de
dúvida que torna uma oração eficaz (compare com Mt 21.22 || Mc 11.23). E a
persistência, a prática diária da oração, que a torna eficaz.
Isso não só ameniza o tom apocalíptico de Lucas em geral, mas também se
alinha com sua ênfase no arrependimento como um paradigma central de sua
narrativa da viagem. Assim como a resposta humana de arrependimento à ofer
ta da graça e do perdão de Deus, a persistência em oração reflete a teologia de
Lucas quanto à responsabilidade pessoal: um cristão pode comover Deus pela
persistência da prática.
Esse pragmatismo realça a descrição que Lucas faz de Jesus. Seguindo as ins
truções específicas sobre a oração nos versículos 1-4, o convite à persistente
oração funciona como uma exortação para a persistente recitação da Oração
do Senhor. Os versículos 1-4 dizem-nos por que devemos orar, e os versículos
5-8 dizem-nos como orar. A Didaqué 8.3, referindo-se à Oração do Senhor,
aconselha: “Orem assim três vezes ao dia”.
H 9-13 Para demonstrar o poder de um pedido persistente, Lucas usa um
argumento a minori ad maius — uma “história de quanto mais’” {posõ mallon).
Esse artifício era comum no ensino judaico (-^ 12.24-26 e 27,28). Isso de
monstra que o que é verdade em um caso fácil é “ainda mais” verdadeiro em
um caso difícil (veja Talbert, 1992, p. 132,133). Nesse exemplo, a compaixão
natural de um pai terreno significa que ele nunca deixará de dar aquilo que seus
filhos pedem ou necessitam. Se um filho pede um peixe ou um ovo, nenhum
pai terreno dará ao seu filho uma cobra ou um escorpião (v. 11,12).
A compaixão de Deus está presente no coração humano como parte de Sua
imagem em nós. Deus é a fonte de toda compaixão e é sua mais pura expressão.
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LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
A PARTIR DO TEXTO
e te a m a m e n to u " .
Ele lhe respondeu: "M inha mãe
e meus irm ãos são aqueles que Ele re sp o n d e u : "Antes, fe lize s são
A PARTIR DO TEXTO
104
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
NO TEXTO
NO TEXTO
H 33-36 Lucas repete o contexto já usado em Lucas 8.16,17. Uma lâmpada
é colocada em um suporte para que todos possam ver a luz. Antes, ele se
guiu Marcos (Lc 8.17; veja Mc 4.21,22). Aqui, Lucas reúne dois ditos de Ma
teus com o Sermão da Montanha (Mt 5.15; 6.22,23): o acender da lâmpada
(11.33) e o olho como luz do corpo (11.34-36). Em cada um, Lucas aplica as
palavras de forma diferente.
O âmago da mensagem é encontrado no versículo 35: Portanto, cuidado
para que a luz que está em seu interior não sejam trevas. A visão física é
uma metáfora comum para o esclarecimento espiritual da Escritura (ex.: Sl
119.18; Ef 1.17,18). Lucas 8.10 carrega um significado semelhante: “A vocês
foi dado o conhecimento dos mistérios do Reino de Deus, mas aos outros falo
por parábolas, para que Vendo, não vejam; e ouvindo, não entendam’”.
A breve admoestação em Lucas 11.35 fala da responsabilidade que temos em
escolher a luz espiritual. Um olho sadio enche o interior do corpo de luz, mas é
possível ter olhos fisicamente saudáveis e permanecer na escuridão espiritual. A
rejeição espontânea da vida espiritual pode não só lançar a alma nas trevas, mas
também aprisioná-la (compare com Lc 11.26), tornando-a, por fim, incapaz de
ter discernimento espiritual.
Lucas (Lc 11.42-52 | |Mt 23.23-26). Somente Lucas coloca esse material em
um cenário de refeição (Lc 11.37), como ele sempre faz quando Jesus confronta
Seus adversários (5.29-39; 7.36-50; 14.1-24; 15.1,2; 19.1-10). E é Lucas quem
mais frequentemente identifica Seus adversários como sendo fariseus (5.21;
6.7). A hostilidade de Lucas contra os fariseus é confirmada pela rejeição deles
ao batismo de João (7.30), algo que apenas Lucas registra.
O conflito concentra-se na questão do perdão dos pecados para os mar
ginalizados. Lucas trata desse tema mais uma vez no capítulo 15. Ele retrata
os fariseus como sendo totalmente desqualificados para a salvação. “Lucas tira
deles o direito a Deus, à lei, e ao Reino” (Moxnes, 1988, p. 152). Essa abor
dagem quanto aos “fariseus” como um antítipo é simplesmente isto: um tipo.
Os fariseus como um todo não eram mais dados à impiedade do que qualquer
outra seita ou tipo de indivíduo (ex.: “pecadores”). O uso desse estereótipo é
semelhante ao uso da expressão “os judeus” por João.
Na leitura do contexto, os “fariseus” não entendem o que o livro de Jonas
ensina: Deus ama todos. Assim, eles representam todos aqueles que definem
o amor de Deus tão estreitamente que acabam excluindo os que não compar
tilham do entendimento deles sobre a tradição. A descrição retórica de Lucas
pressiona os leitores rumo à incontroversa conclusão de que Deus ama os pe
cadores, até mesmo aqueles aparentemente além dos limites. Ela também os
impulsiona a concluírem que os que resistem a essa visão globalizante do amor
de Deus, com base em escrúpulos religiosos, estão em trevas.
Jesus passou muito tempo em companhia de indivíduos do movimento
sectário que mais criticaram Suas ações. Claramente, essa impressão serve à
agenda narrativa do evangelista. No entanto, o tema é tão penetrante nos Evan
gelhos por ter sido uma característica real do ministério de Jesus. E humano
evitar aqueles que achamos serem desagradáveis, mas Jesus parecia procurá-los
como um profeta faria ou deveria fazer.
NO TEXTO
H 3 7 -4 1 Jesus está à mesa na casa de um fariseu. Três aspectos da prática
religiosa são abordados nos versículos 37-44: o primeiro (v. 37-41) trata da
tradição do ritual da lavagem das mãos antes das refeições, juntamente com a
exigência correspondente da pureza dos utensílios. O segundo é o dízimo (v.
42). O terceiro é o orgulho indevido que aparece com a prática estrita de tal se
paração cultual (v. 43). Todos os três eram importantes assuntos religiosos para
os fariseus daquela época, e Jesus censurou Seus oponentes nesse monólogo.
108
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
que tudo lhes ficará limpo. Ou, como a NTLH diz: “Portanto, dêem aos
pobres o que está dentro dos seus copos e pratos, e assim tudo ficará limpo para
vocês” (veja m. Kelim 25 sobre o interior e exterior dos vasos). O significado
básico parece claro: Se os fariseus vencerem sua ganância e maldade por meio
do ato social de dar esmolas, tudo se tornará limpo para eles (Green, 1997, p.
473; veja mais em Marshall, 1978, p. 493).
NO TEXTO
H 42-44 Depois ocorre uma série de seis proclamações proféticas de ais pronun
ciadas contra os fariseus e os peritos na lei (v. 42,43,44,46,47,52). As três primeiras
são direcionadas aos “fariseus”; as três últimas são direcionadas aos “peritos na lei”
(nomikoí)\ compare a frase característica de Mateus “os mestres da lei e os fariseus”
(grammateis kai Pharisaioí). O grito de ai, na tradição do AT, imita o som do luto
após uma morte. Aqui, ele prediz o fim daqueles descritos por Jesus.
A proclamação do primeiro ai trata do hábito farisaico de dar o dízimo de tudo o
que possuíam (v. 42). A lei bíblica exigia que o dízimo fosse pago sobre os produtos
da terra de Israel — sua produção agrícola e pecuária — e mais nada. Os fariseus
eram conhecidos por serem meticulosos em relação ao dízimo e davam um décimo
de tudo o que possuíam. Logo, eles dizimavam até sobre o lucro dos negócios ou de
qualquer coisa que comprassem no mercado, mesmo quando estes já haviam sido
dizimados. Em Lucas 18.12, Jesus conta que o fariseu no templo vangloria-se de dar
o dízimo de tudo quanto ganho. Esse ato de piedade foi além das mínimas expec
tativas bíblicas. Isso servia para garantir que o dízimo havia sido pago sobre tudo o
que era necessário. Hortelã, da arruda e de toda a sorte de hortaliças (11.42) são
mencionadas como pequenas hortaliças facilmente esquecidas na hora do dízimo.
Jesus não condena a prática do dízimo: Vocês deviam praticar estas coisas, sem
deixar de fazer aquelas (v. 42). Entretanto, embora os fariseus tomem um cuidado
minucioso em dar o dízimo de todas as pequenas ervas, eles desprezam a justiça
e o amor de Deus. A estrutura do argumento é semelhante a 6.41,42: “Por que
você repara no cisco que está no olho do seu irmão e não se dá conta da viga que
está em seu próprio olho?” A ironia é palpável, e a distância entre a boa prática e a
má não poderia ser maior. Os fariseus são minuciosos quanto à hortelã, porém, tre
mendamente despreocupados com a justiça e o amor de Deus. Assim como existe
110
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
Já que a Torá não aborda todas (nem m esm o a m aioria) das aplica
ções da lei na vida, um conjunto de tra dição oral foi desenvolvido para
aju dar os judeus para saberem com o ag ir em cada situação. Esse foi espe
cialm e nte o caso em relação à guarda da pureza ritual. Legalm ente, esse
m ateria l foi cham ado de halacá; e o seu desenvo lvim ento já estava bem
adiantado na época de Jesus.
A criação da halacá foi disputável em natureza, colocando escriba
contra escriba, até que um consenso e ve n tu a lm e n te surgisse sobre com o
m e lh or observar a Torá. Esse processo aconteceu no decurso de m uitas
gerações, e, logo, a “ tra dição dos anciãos" carregava um grande peso. A
tra dição oral foi fin a lm e n te transform ada em escrita, e o Mixná é o do
cum ento do segundo para o terceiro século d.C. que preserva o halacá.
O ta lm u d e é uma expansão p o sterio r das tradições orais preservadas na
Mixná. Existem dois co n stitu in te s principais da obra ta lm ú d ica : o palestino
(q uarto século d.C.) e o babilónico (q uinto século d.C.).
Um perito na lei interrompeu Jesus e disse: Mestre, quando dizes essas coi
sas, insultas também a nós (Lc 11.45). O homem referia-se ao que é percebido
como criticismo implícito do processo inteiro da halacá. Ele diz, com efeito: “Será
que você está sugerindo que não devemos fazer todo o esforço para observarmos
a Torá? Será que as gerações de nossas melhores mentes podem ter sido desviadas
na busca de um objetivo tão nobre?” A resposta de Jesus mostra que Ele não se
opunha à halacá, mas, ao contrário, à corrupção dela. Quanto a vocês, peritos na
lei, disse Jesus, ai de vocês também!, porque sobrecarregam os homens com
fardos que dificilmente eles podem carregar, e vocês mesmos não levantam
nem um dedo para ajudá-los (v. 46).
Jesus emprega uma imagem evocativa, e até polêmica. Os judeus comuns trabalham
debaixo de uma esmagadora carga de mandamentos, mas os peritos na lei recusam-se a
levantar pelo menos um dedo para ajudá-los. E esse tipo de preocupação pastoral entre
os peritos na lei que ganha a desaprovação de Jesus. Jesus chama os fariseus e os peritos
na lei de volta à sua obrigação fundamental de serem pastores de Israel e buscarem Suas
ovelhas perdidas. Essa declaração é uma expansão da crítica profética em 5.29-32.
Jesus discorda do modo como a halacá havia agregado regulamentos pesados
sobre a piedade. Aqui, o pragmatismo de Jesus quanto à vida santa é visto: Ele é
112
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
NO TEXTO
■ 53-54 Nesse ponto, os adversários de Jesus expressaram surpresa e indig
nação contra Ele (5.30; 6.7; 7.39,49; 10.10), mas nunca hostilidade ostensi
va. Agora, eles começaram a opor-se fortemente a ele e a interrogá-lo com
muitas perguntas (11.53) para atraí-lo a repetir ideias suspeitas (veja Neale,
1993, p. 89-101). Do ponto de vista da narrativa, a hostilidade aberta deles
contra Jesus marca o ponto irreversível no caminho que levará Cristo a Jerusa
lém para a Sua morte.
Certamente, a acusação de blasfêmia era uma das que Seus adversários estavam
ansiosos para estabelecer (5.21; Mt 26.65). Essa acusação só poderia ser estabe
lecida com a palavra de múltiplas testemunhas. Contudo, para uma acusação
de desviar os israelitas para longe do Senhor, até observação dissimulada e cila
da eram permitidas (m. Sanh. 7.10; 12.1-3). Logo, Seus oponentes ficavam
esperando apanhá-lo em algo que dissesse (11.54; 12.52,53 e 20.20).
12 não podem mais serem vistos simplesmente como lições de moralidade; eles
são colocados no contexto de uma transição de uma era para outra.
Agora, o custo do discipulado (9.51-62), a missão dos discípulos (10.1-
24), o amor a Deus, ao próximo e às nações (10.25-42; 11.29-32), o ensino so
bre a expulsão de demônios e a oração (11.1-36) são todos reformulados como
atividades em uma luta universal. A luta de vida ou morte de Jesus e daqueles
que o seguiam envolve mais do que reais adversários humanos. A verdadeira
ameaça de morte e perseguição acontece em um palco redentor, no qual os
resultados finais são decididos. Logo, Jesus volta-se para a instrução sobre a
perseguição e o martírio em 12.4-12.
Vários outros temas bíblicos também se interceptam no capítulo 12. Dois
deles vêm do profeta Miqueias (oitavo século a.C.). Sua peculiar predição
sobre a primeira destruição de Jerusalém foi citada por Jeremias, quando os
babilônios estavam às portas de Judá 200 anos depois (Mq 3.12; Jr 26.18).
A imagem de Miqueias sobre a destruição de Jerusalém funciona como um
intertexto para a preocupação de Lucas em relação a essa cidade (-^ 9.28-36,
Por trás do texto). A iminente destruição de Jerusalém é a imagem espelhada
de sua destruição pela Babilônia. O destino dela é a evidência e a causa da vira
da dos tempos. Uma menção explícita da destruição de Jerusalém não aparece
em Lucas até 21.21-24. No entanto, a linguagem sobre o advento do Filho do
Homem em 12.8,10 e 40 pressagia o seu fim (“^ 5.20-26 quanto à linguagem
sobre o do Filho do Homem; 17.22-25; 18.31-34). A profecia de Miqueias
e o seu subsequente cumprimento cria uma imagem ameaçadora na história
lucana. Essa é a emenda dos tempos para a qual Lucas agora retorna.
Miqueias também prega contra a corrupção da elite religiosa e suas im
plicações para a família de Israel. Os líderes “estão à espreita para derramar
sangue”; eles aceitam subornos e pervertem a justiça (Mq 7.2,3). Mais objetiva
mente, a confiança até mesmo entre os membros da família havia desaparecido
(Mq 7.5,6; Lc 12.53). O conflito torna -se cada vez mais tenebroso, alcançando
até a intimidade do lar.
Finalmente, o tema do Filho do Homem desloca-se para o centro da narra
tiva de Lucas (11.30; 12.8,10,40). Essa expressão já havia sido usada em Lucas
por Jesus, como uma referência a si mesmo nos capítulos 5— 11 (5.24; 6.5,22;
7.34; 9.22,26,44,58; 11.30), e evoca Daniel 7.13: “Vi alguém semelhante a um
filho de homem, vindo com as nuvens dos céus”. Essas temáticas de destruição
de Jerusalém no AT, corrupção da elite religiosa e Filho do Homem agora con
vergem na retórica de Jesus sobre a perseguição vindoura.
115
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
H 1 Observamos o ponto de inflexão na narrativa no final do capítulo 11, no qual
“os fariseus e os peritos na lei” começaram a mancomunar ativamente contra Jesus.
A tensão dramática aumenta no capítulo 12, no qual as multidões que seguiam
Cristo agora se multiplicaram para milhares de pessoas. A palavra grega é myrias,
da qual deriva “miríade”, também traduzida como “dezenas de milhares” (veja At
19.19). As pessoas na multidão estavam a ponto de se atropelarem umas às ou
tras, tornando o ambiente caótico.
Essa escalada aumenta a intensidade da disputa de Jesus com Seus contemporâne
os. Da perspectiva da narrativa, essa acusação de hipocrisia é uma acusação pública
de incompetência e perda de integridade, feita primeiramente aos seus discípu
los, mas também diante de “milhares”. Eles são acautelados para que tenham cui
dado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia. O fermento dos fariseus
é o ensinamento deles (veja Mt 16.12). A preocupação farisaica com as minúcias
da prática ameaçava os Seus discípulos, e, então, eles precisavam tomar cuidado!
Em Mateus e Marcos, o comentário sobre o fermento dos fariseus traz à tona a
referência sobre a alimentação dos quatro mil/cinco mil (Mc 8.14-21 || Mt 16.5-
12). Lucas vai direto para a condenação de Jesus quanto à hipocrisia dos fariseus.
1 2 - 3 Na transição para a nova era, a hipocrisia seria exposta: Não há nada es
condido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser conhe
cido. O que vocês disseram nas trevas será ouvido à luz do dia, e o que vocês
sussurraram aos ouvidos dentro de casa, será proclamado dos telhados.
Existe outro possível nível de significado nessa passagem. Foi afirmado no comen
tário em 11.53,54 que os Seus oponentes começaram a “opor-se fortemente a ele
e a interrogá-lo com muitas perguntas, esperando apanhá-lo em algo que dissesse”.
Uma halacá rabínica consentiu no posicionamento de testemunhas ocultas que
tentavam atrair idólatras suspeitos a repetirem sua deslealdade ao Senhor: “Eles
não podem colocar testemunhas ocultas contra qualquer que se torne passível à
pena de morte prescrita na Lei, exceto somente neste caso” (ênfase adicionada, m.
Sanh. 7.10).
Já que nós sabemos que as atividades de Jesus foram consideradas merecedoras da
pena de morte por Seus adversários (19.47), Suas atividades podem ter sido vis
tas pelos Seus opositores como compreendidas na exceção quanto à proibição ao
aprisionamento. Na tentativa de prenderem um infrator no ato de blasfêmia, eles
estariam sendo fiéis ao seu entendimento de Deuteronômio 13 (“^ Lc 4.23-30 e
6.20-26).
116
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
Logo, isso poderia ser entendido como um aviso aos Seus discípulos sobre as táticas
que eles esperariam de seus adversários. Até mesmo os sussurros “dentro de casa”
poderíam ser ouvidos. Aquela era uma época perigosa, e sua lealdade à missão es
tava tornando-se pública; não existia um discípulo que fosse particular. Aliás, não
há nada escondido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser
conhecido. Devido aos comentários sobre a lealdade pública nos versículos 8-12,
isso é um aviso aos discípulos sobre como eles, em breve, serão tratados — possivel
mente sujeitos a métodos de ostensiva hostilidade, incluindo ciladas.
H 4-7 A referência ao medo é feita cinco vezes em Lucas 12.1-7. Esse é um novo
ambiente de perigo para Jesus e Seus discípulos, que é caracterizado por medo e
ansiedade. Os versículos 4-7 são uma exortação para temer a Deus, e não àqueles
que podem matar apenas o corpo. Contudo, o perigo também é espiritual. No NT,
aquele que tem o poder para lançar alguém no inferno é Deus, e não o diabo
(Marshall, 1978, p. 513; veja Mc 9.45,47; Tg4.12). Todavia, devido à exortação
para não temer, em Lucas 12.7, parece improvável que o objeto do temor seja Deus.
Ao contrário, devemos temer os perigos da hipocrisia e aqueles que fermentam
seus ensinos com ela.
Esse tipo de instrução é uma preparação para o martírio, tanto dele como de Seus
seguidores. O custo do discipulado foi dramaticamente avultado na narrativa, e
os leitores estarão cientes da gravidade de seu próprio compromisso de lealdade a
Jesus.
Contra esse contexto, uma terna declaração da atenção de Deus para com os par
dais (v. 6) e as pessoas é especialmente compassiva. Até os cabelos da cabeça de
vocês estão todos contados (v. 7). Isso constitui, mais uma vez, um argumento
a minori ad maius (“^ 11.11-13; Fitzmyer, 1985, p. 957). Se Deus cuida tão inti
mamente de cada pardal, quanto mais Ele cuidará de Seus filhos humanos? Esse é
um conforto para aqueles que deverão sofrer perseguição: “Deus está vendo o seu
sofrimento e não se esquecerá de vocês”. Portanto, não tenham medo (...).
1 8-9 Os versículos 8,9 e 10 contêm, cada um, um par de ideias contrastantes. Se
você reconhece Jesus diante dos outros, será reconhecido pelo Filho do Homem
diante dos anjos de Deus (v. 9). Entretanto, se você negar Jesus diante dos outros,
será negado diante dos anjos de Deus (v.9).
A confissão é “diante dos homens” (emprosthen tõn anthropõn; ARC, NIV11, tradu
ção livre) e diante dos anjos de Deus. Essa linguagem sugere um significado mais
forte do que um testemunho pessoal informal. Talvez as práticas de Deuteronômio
13 sejam a estrutura para a indagação das lealdades de alguém (-^ 1.26-28, Por
trás do texto; 9.T6; 10.8-16, Por trás do texto). Essa exortação pode estar ligada às
ações formais dos Sinédrios locais (veja 12.11).
117
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
A PARTIR DO TEXTO
devem desprezar o acúmulo de riquezas e vender o que têm para dar aos pobres
(v. 13-21,33). Contudo, eles nunca passarão necessidade. Diante das provações,
eles não deverão “temer”, nem se “preocupar” como as nações fazem quanto a
essas coisas. Essas vinhetas convidam o leitor a separar-se das preocupações
materiais, fazendo isso em espírito de calma beatífica. Elas são também uma
preparação para a nova ordem do Reino. Isso é caracterizado pela vigilância e
pelo trabalho na expectativa da vinda do Filho do Homem.
A quem Jesus está dirigindo-se? Até Pedro fica incerto das intenções de
Jesus: “Senhor, estás contando esta parábola para nós ou para todos?” (v. 41).
Essas exortações são direcionadas à multidão (v. 1,13), aos “amigos” (v. 4) e aos
discípulos (v. 22,32). Isso cria um desequilíbrio para o leitor, que procura ser
confortado com esses pronunciamentos, mas é perturbado pela linguagem de
julgamento e conflito. Existe um colapso dos personagens em uma só “plateia
universal” (Green, 1997, p. 497).
mercador. Talvez Ele fosse algum tipo de artesão que geralmente trabalhava em
Séforis, o centro administrativo romano próximo a Nazaré. Seus seguidores de
Cafarnaum eram pescadores. Eles eram homens que tinham lares, famílias e
meios de subsistência antes de começarem sua vida itinerante com Jesus. Esses
personagens renderam tudo isso para seguir Jesus (18.28-30).
Ser itinerante era viver pobremente. Os Evangelhos registram que Jesus era
sustentado por um grupo leal de mulheres que lhe davam do que tinham (Lc 8.1-
3; 10.38; Mc 15.40,411| Lc 23.49 || Mt 27.55,56; veja Cohick, 2009, p. 309-320).
Estudiosos modernos têm dado atenção à experiência sociológica da itinerância,
sugerindo como teria sido a vida real de Jesus e de Seus seguidores. Eles estavam
sempre famintos, com frio, e dormindo expostos ao tempo. Os invernos galileus
podem ser desconfortáveis, e Jesus pode ter enfrentado mais do que um inverno
durante a Sua peregrinação. Essa atenção aos sofrimentos práticos da vida de Jesus
dá uma melhor apreciação das realidades físicas de Sua vida. Isso, em troca, pode
levar a uma doutrina mais adequada da natureza humana de Cristo.
A arte retórica de Lucas é vista na repetição das palavras com meri-, como
um artifício alternativo (ex.: v. 11: merimnêsête; v. 13: merisasthai; v. 14:
merisên\ etc., nos v. 22,25,26,51 e 53). Outros temas repetidos incluem “alma”,
“vida”, “possessões” e “celeiros”. Tudo isso é evidência da arte literária de Lucas
(Snodgrass, 2008, p. 394,395).
NO TEXTO
H 13-15 Alguém na multidão pede a Jesus para servir de árbitro em uma questão
de herança: Mestre, dize a meu irmão que divida a herança comigo (v. 13). As
pessoas frequentemente procuravam os peritos religiosos naquela cultura pedindo
direcionamento sobre questões práticas; então, essa pergunta não é surpreendente.
Contudo, Jesus responde com uma advertência: Tenham cuidado com todo tipo
de ganância (v. 15). Os males da ganância eram um tópico comum no mundo gre-
co-romano; e esses pensamentos eram compartilhados com os judeus (Snodgrass,
2008, p. 395). Jesus descreve os fariseus como “cheios de ganância e de maldade”
(l 1.39; veja também 16.14,15).
De acordo com Deuteronômio 21.17, o filho mais velho recebia uma parte dupla
na divisão da herança. Ele não tinha obrigação de compartilhar sua herança. To
davia, aqui, o irmão mais novo aparentemente pede que Jesus intervenha. Jesus in
terpreta aquele pedido como ganância: Cuidado! Fiquem de sobreaviso contra
todo tipo de ganância. Jesus inequivocamente desvaloriza as possessões materiais:
“A vida não consiste na abundância de bens” (Lc 12.15 NIV11, tradução livre).
121
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
1 16-21 A parábola do rico tolo contrasta a vida de Jesus e Seus discípulos, uma
vida de escassa subsistência de esmolas (9.1-6; 10.4-7), com a vida de um fictício
homem rico que possui muito mais do que consegue consumir. O excedente é o
produto da terra de Israel. Logo, é uma bênção de Deus. Entretanto, essa bênção
se torna uma maldição quando o egoísmo é acrescentado. A aparente seguridade
econômica daquele homem era uma ilusão. Afinal, ele não estava no controle dos
acontecimentos de sua vida.
A parábola também desmonta a noção de que resguardar a segurança de nossa
própria prosperidade deve ser uma prioridade na vida: “A tolice consiste em pen
sar que as responsabilidades terminam quando se garante o futuro econômico de
alguém” (Snodgrass, 2008, p. 399).
O oposto do egoísmo é ser rico para com Deus (v. 21). O homem rico poderia
ser rico para com Deus se não fosse culpado de auto-obsessão: Guarda[r] para si
riquezas.
O homem rico começa a conversar consigo mesmo no versículo 17. Lucas geral
mente dá aos seus leitores acesso ao pensamento de seus personagens (Simão em
7.39; os fariseus em 5.21,22 e 6.7,8; o filho mais novo em 15.17-19; o administra
dor astuto em 16.3; o injusto juiz em 18.4,5; etc.). As caracterizações mais pungen
tes de Lucas ocorrem nesses solilóquios reveladores. Nós vemos o funcionamento
interno da luta moral quando os leitores sabem o que os personagens estão pensan
do (5.22; 6.8; 7.40).
O perigo moral que o homem rico enfrenta tem a ver com as colheitas abundantes
que ele desfruta, mas com sua reação a essas bênçãos. Ele volta-se para si, pensan
do somente em sua própria segurança: E direi a mim mesmo: Você tem grande
quantidade de bens, armazenados para muitos anos. Descanse, coma, beba e
alegre-se (v. 19). Não há menção de dar esmolas ou atos públicos de compaixão
elogiados pelo Jesus de Lucas (11.41; 12.33).
Os “ricos” são denegridos, em geral, no material lucano especial (1.53; 6.24,25;
16.19-31). Entretanto, essa parábola não trata dos males da aquisição em si (veja
também Lc 18.24 || Mt 19.23 || Mc 10.23; Lc 21.1-4 || Mc 21.41,42). É a “ganân
cia” dele e o seu “amor ao dinheiro” que o condenam como quem guarda para si
riquezas (v. 21, ênfase adicionada; veja 11.39; 12.15; 16.14,15). Logo, Lucas ex
põe a psicologia do erro moral e seus processos interiores. Nenhum outro escritor
dos Evangelhos tenta fazer isso.
122
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
NO TEXTO
■ 22-23 A maioria das pessoas na história da civilização já ficou ansiosa sobre
as necessidades da vida — abrigo, alimentação, bem-estar, vestimenta, e assim por
diante. Somente nos tempos modernos, e somente nas culturas ocidentais, a pro
visão das necessidades básicas da vida tornou-se mais garantida. Contudo, mesmo
assim, nós nos preocupamos. Essas questões eram certamente uma preocupação
constante para os palestinos do primeiro século.
Esse ensino extraordinariamente íntimo para os Seus discípulos sobre a preocu
pação (veja v. 22,25,26,29; || Mt 6.25-34,19-21) se enquadra na ênfase de Lucas
sobre o pensamento interior de seus personagens. Nós nos preocupamos com o
alimento, a roupa e a bebida. A advertência de Jesus no tempo presente é pertinente
a uma condição ativa: “Não andeis inquietos” (v. 29 ARC). Ele dirigiu-se aos Seus
discípulos: Portanto eu lhes digo. Eles devem considerar o caso do homem rico
cuja vida terminou de repente. Sua riqueza não lhe fez bem algum, e ele perdeu a
123
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
sua alma no processo de adquirir riquezas. Logo, a essa básica experiência humana
de vida, Jesus disse: Não se preocupem com sua própria vida (v. 22). Ainda assim,
nós nos preocupamos!
■ 24-28 No familiar argumento a minori ad maius (“^ 11.9-13), o cuidado de
Deus com corvos ou lírios é um sinal da graça divina com a Sua criação. O mundo
no qual os homens vivem não é apenas o nosso mundo de problemas. Não estamos
sozinhos e expostos. Compartilhamos a ordem criada na qual Deus vê tudo (até os
cabelos de nossa cabeça [12.7]) e provê abundantemente para as necessidades de
toda a criação. Jesus presume que exista uma hierarquia de importância: os homens
têm maior valor do que os pássaros e as ervas (v. 24 e 28, quanto mais). Entretanto,
tudo está sob os cuidados do único Deus da criação. A conscientização de nossa
unidade com o mundo natural ajuda-nos a aliviar a ansiedade de estarmos sozinhos.
Existe uma plenitude nessa teologia do mundo natural e o lugar do homem nele.
Essa visão não promove a ideia da família humana acima de seu ambiente, tam
pouco contempla o ambiente como despojado da vida humana. Ao contrário, essa
é uma visão do mundo natural que concebe todos os seres vivos como nobres. E
a admoestação de evitarmos a preocupação e a ambição, permitindo que o nosso
conhecimento sobre Deus como o Criador ilumine a nossa experiência de vida.
■ 29-31 Não busquem ansiosamente o que comer ou beber; não se preocu
pem com isso (v. 29). Esse traço diferencia o povo de Deus dos pagãos que não têm
a esperança de um Deus bondoso: Pois o mundo pagão é que corre atrás dessas
coisas; mas o Pai sabe que vocês precisam delas (v. 30). Entender o seu lugar na
ordem criada é estar livre da ansiedade.
■ 32-34 Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai
dar-lhes o Reino (v. 32). A imagem do pastor/rebanho (-^ 5.29-32, A partir do
texto) não é comum nos Evangelhos. Essa é a única passagem na qual a terna ex
pressão pequeno rebanho ocorre na Bíblia. Na literatura profética, o pastor era
encarregado de cuidar do rebanho como uma metáfora para a responsabilidade de
os líderes cuidarem de Israel: essa era a função deles (Ez 34.2; veja também Zc 9.16;
10.2-17; Mq 5.2-4 aplicado ao ministério de Jesus em Mt 2.5,6). No contexto luca-
no, a imagem de pastor/rebanho sugere segurança, abundância e bem-estar — uma
metáfora para libertar-se da preocupação com a alimentação e o vestuário (veja
DBI, p. 292,293; veja Dt 8.13; 15.14; 2 Cr 32.29).
Ao lutarmos pelo Reino, seremos supridos com tudo de que necessitamos. Porém,
essa necessidade é redefinida por uma noção contraditória: Vendam o que têm e
dêem esmolas (v. 33). Essa frase é exclusiva de Lucas e Atos. A Igreja primitiva,
talvez em resposta a essa admoestação, seguia isso de maneira literal (At 2.44-45).
124
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
NO TEXTO
H 35-40 O versículo 35 marca a transição do cuidado gentil para a advertên
cia. O tema agora é a prontidão, representada pela conduta de pessoas da família
romana. A antecipação pela vinda do Filho do Homem exige estar pronto para o
serviço, mantendo acesas as suas candeias (v. 35). Isso tem a ver com iluminar a
casa do seu Senhor em preparação para a Sua volta de um banquete de casamento.
“Cingir-se” (v. 37 ARA) é amarrar a veste para realizar um trabalho físico (em Êx
12.11, isso significava prontidão para o êxodo).
Felizes são aqueles que o Senhor encontra preparados quando Ele chega em uma
hora inesperada (Lc 12.36; veja 6.20-22; 7.23; 10.23; 11.28). Em uma típica rever
são lucana de posição social, é o Senhor quem se cinge para servir aos Seus servos
(12.37).
As seções apocalípticas de Lucas são, geralmente, desenvolvidas à mesa (veja, por
exemplo, 5.29-32; 13.22-30; 22.14-23,24-27; 24.30,31). Há um contraste entre a
alegria do banquete do casamento e a aprovação condicional do Senhor quando
Ele volta para casa. O relacionamento de Jesus com Seus discípulos foi descrito
como o de um Noivo para com Sua Noiva, em 5.34-35. Aqui, o Senhor é simples
mente um convidado no casamento de outra pessoa.
Em 12.40, Jesus disse que o Filho do homem virá numa hora em que não o es
peram. Essa afirmação declara a urgência do Reino. Os discípulos já sabem que
Jesus é o Messias e o Filho do Homem (Lc 9.20,22). Agora, Jesus prepara-os para
o conflito que se levanta entre os Seus adversários em resposta à revelação de Sua
identidade messiânica. Esse é um ambiente social de curto prazo, que é típico da
maioria da utilização que Lucas faz da linguagem apocalíptica ("^ 17.33.37).
NO TEXTO
H 41-48 Pedro indaga a Jesus concernente à aplicação das histórias sobre vestir-
-se e estar pronto para servir e acerca do ladrão à noite: Senhor, estás contando
esta parábola para nós ou para todos? (v. 41). Ele pergunta, na realidade: “Nós
estamos incluídos nesse convite à prontidão? Ou isso é somente para aqueles que
não conhecem a Sua identidade?”
Em resposta, Jesus conta a história do administrador fiel e sensato. Essa história
reitera o tema dos servos preparados, que são encontrados nos versículos 35-40.
Ambas as passagens descrevem os bons servos (v. 37,43,44). Na segunda história,
126
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
porém, a preguiça do servo torna-se o foco quando ele começa a farrear e a bater
nos servos e nas servas (v. 45). Todavia, quando o Senhor chegar inesperadamen
te, ele o punirá severamente e lhe dará um lugar com os infiéis e ele receberá
muitos açoites (v. 46,47).
O conhecimento da vontade do Senhor carrega consigo a responsabilidade de agir
de maneira adequada. O conhecimento iguala-se à responsabilidade. Essa afirma
ção parece particularmente apropriada para Pedro e os discípulos, que conhecem a
identidade de Jesus (10.21-24). Logo, a afirmação resumida: Mas aquele que náo
a conhece e pratica coisas merecedoras de castigo, receberá poucos açoites. A
quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito
mais será pedido (12.48). Os discípulos serão responsabilizados por aquilo que
tiveram o privilégio de observar.
NO TEXTO
isso é muito mais intenso. É como se a frustração dele viesse à tona. Os termos
usados demonstram a intensidade: fogo, aceso, batismo, angustiado, divisão e
contra. Essa passagem é o centro apocalíptico do Evangelho.
A maioria dos comentaristas acredita que o fogo que Jesus anseia acender seja
o fogo do julgamento (12.49). Note o tema semelhante na visão de João Batista
(3.9,17; 12.28; ou dos discípulos, 9.54). No entanto, pode ser o fogo da Sua pre
sença, como em Lucas 3.16: “Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo”. O
fogo simboliza a presença purificadora de Deus no AT e em Atos.
Encontrar esse tema em uma seção sobre prontidão para a chegada do Filho do
Homem é surpreendente (veja Gn 15.17,18; Êx 3.2; 19.16-18; Is 6.6,7; Ml 3.2; At
2.3). O batismo (Lc 12.50) indica a paixão de Cristo que estava por vir (Marshall,
1978, p. 547). A narrativa torna-se cada vez mais explícita sobre esse tópico (veja
9.22,24,31,44,45; compare com Mc 10.39).
Jesus está incomodado, falando sobre o quanto está angustiado (Lc 12.50b). A
tradução da NTLH para synechõ (na voz passiva aqui) é “como estou aflito”, para
descrever Sua experiência de tormento ou sofrimento. Para o Jesus de Lucas, a re
alidade da Sua humanidade significa o completo espectro das emoções humanas.
Intensa angústia, pressão e medo fazem parte da experiência emocional de Jesus.
Aqui, o verbo synechõ alerta o leitor para o crescente drama que eventualmente
levará à narrativa da paixão.
Lucas volta ao tema do conflito dentro da família, já discorrido em 8.19-21 e
11.27,28 (-^ 14.26; 18.28-30). A presente passagem é a peça central desse tema
em Lucas: “Estarão divididos pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e
filha contra mãe, sogra contra nora e nora contra sogra” (12.53).
Lucas obtém isso de Miqueias 7.6 (|| Mt 10.21,35,36). Mateus 10.21 particular
mente destaca o conflito na família: “O irmão entregará à morte o seu irmão, e o
pai o seu filho; filhos se rebelarão contra seus pais e os matarão”. Isso ecoa Deute-
ronômio 13.6-9:
NO TEXTO
NO TEXTO
H 1-5 Pôncio Pilatos era o governador ou procurador da Judeia no período de
26 a 36 d.C.. Ele era responsável pela administração do sistema judicial, da coleta
de impostos e de sua subsequente distribuição. Ele também possuía poder militar.
Nenhuma fonte extrabíblica faz uma referência específica da matança dos galileus
135
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
por Pilatos. Contudo, Josefo relata que Pilatos matou judeus por estes protesta
rem contra o uso do dinheiro do templo por Pilatos na construção de um aque
duto (Ant. 18.3.2, §§60-62; G.J. 2.9.4, §§175-77). Naquela ocasião, seus sodados
haviam-se escondido entre a multidão e começaram a espancar os protestadores
tão selvagemente que muitos morreram. A referência no versículo 1 indica que
os galileus estavam trazendo sacrifícios, o que certamente favoreceria Jerusalém
como o local em questão. Não obstante, não podemos ter certeza de que esse era o
incidente específico ao qual Jesus se refere. Josefo descreve outra “revolta” em Jeru
salém causada por Pilatos (veja Lc 23.19 e Mc 15.7\Ant. 18.3.1, §§55-59).
As notícias de Jerusalém eram obviamente intencionadas a solicitar de Jesus algum
“comentário sobre a significância desse acontecimento, (...) talvez (...) uma decla
ração política” (Nolland, 1993a, p. 718). Todavia, Jesus parece mais preocupado
com o espírito vingativo daqueles que relataram a tragédia do que com a injustiça
de Pilatos. Ele claramente contesta “a possibilidade de determinar-se um grau de
pecaminosidade a partir da experiência de calamidade” e desvia o foco de julgar os
outros para o de colocar nossa casa em ordem (Nolland, 1993a, p. 718). Mesmo
assim, Jesus não trata da perene questão da teodiceia em lugar algum nos Evange
lhos. Ele, aparentemente, encontra esforços humanos para justificar Deus em face
ao sofrimento.
136
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
quem caiu a torre de Siloé. A destruição de Jerusalém é definida por Lucas como
um exemplo dessa falta de arrependimento, em 13.34 (veja 21.20). Aliás, aqueles
que se recusarem a arrepender-se serão congregados com os “ímpios” do AT, irre
mediavelmente perdidos e excluídos da salvação.
Embora o plano da salvação em Lucas não mais seja exclusivo, existe uma cláu
sula excludente, caso o relacionamento torne-se desgastado ou rompido. De modo
irônico, a ética radicalmente inclusiva de Lucas é em si mesma, em última análise,
exclusivista — uma ameaça de separar os que estão “dentro” dos que estão “fora”.
Esse potencial para a exclusão é proeminente nos capítulos 12 e 13. Sua contribui
ção para a teologia do universalismo de Lucas é semelhante em propósito à ameaça
de revogação da aliança do AT por Deus e a correspondente condenação do ímpio.
No AT, a aliança da fidelidade de Deus é o tema dominante, e a Sua hesed é
quase avassaladora em seu efeito. Mal podemos imaginar um Israel abandonado,
apesar de sua infidelidade e da frustração de Deus. Todavia, a ameaça de revogação
é um subtema essencial, senão implícito, que previne a complacência no relaciona
mento.
A ênfase globalizante de Lucas está no sucesso e na eficácia do arrependimento
no decorrer de seu Evangelho. No entanto, essa cláusula excludente serve como
uma advertência de que o arrependimento não pode tornar-se complacente. As
sim como a reação humana da obediência funciona na história deuteronomista, o
mesmo acontece com a reação do homem ao arrependimento no paradigma lucano
(veja Lc 12.16-21,35-38,41-46; 13.25-27).
Todos aqueles que se recusam a arrepender-se estão em perigo de encontra
rem-se banidos na rua enquanto o banquete acontece dentro de casa (13.25). Ironi
camente, a ética universalista da teologia de Lucas tem em sua base a mesma ameaça
profunda de exclusão que a teologia do AT quanto à condenação do ímpio.
NO TEXTO
H 6-9 A matança dos galileus e a morte daquelas pessoas na torre de Siloé servem de
base para a parábola da figueira. Essa parábola é o convite ao arrependimento. Aqueles
que produzem fruto são o símbolo daqueles que aceitam o convite. No princípio, João
Batista convidou os seus seguidores a produzirem “frutos que mostrem arrependimen
to” (Lc 3.8). A árvore que não o faz, uma metáfora para os endurecidos, é “cortada e
lançada no fogo” (3.9). No Sermão da Montanha, as árvores boas “produzem bons
138
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
A PARTIR DO TEXTO
NO TEXTO
■ 18-19 Três características do arbusto da mostarda dão força à parábola:
Primeira, a pequenez da semente é comparada com a grandeza do arbusto ou da
árvore que provém dela. A pequenez poderia ser uma propriedade negativa: o
Reino de Deus não pode ser pequeno (Scott, 1989, p. 381).
No entanto, para Lucas, a pequenez é uma virtude no Reino de Deus. Não deve
ser exaltado aquele que é grande, mas o que é pequeno. Nós relembramos que
Jesus coloca uma criança pequena no meio deles e sugere que “aquele que for o
menor \mikroteros\ será o maior [megas]” (9.48 NIV11, tradução livre). A salva
ção chega aos desvantajosos e aos aparentemente insignificantes e humildes neste
mundo. Contudo, o futuro Reino de Deus procede deles. Dos mikroteros proce
dem os megas. A analogia se enquadra ao ministério de Jesus, que cresce em um
ritmo acelerado (12.1) e começa a ficar bastante considerável.
Segunda, a semente de mostarda invade e destrói a ordem da horta. A mostarda é
uma planta anual que lança sementes para si e logo consegue dominar uma horta
cultivada. Por essa razão, na tradição rabínica sobre “tipos diversos” de semen
tes, era proibido plantar mostarda em áreas cultivadas (m. Kil. 3.2; Lv 19.19;
Dt 22.9). A semente germina imediatamente após cair no solo e alastra-se de
maneira rápida. Isso também parece uma analogia apta para o crescente sucesso
do ministério de Jesus.
Aqui, a proliferação da semente de mostarda é uma metáfora para a natureza
invasiva e até subversiva do Reino de Deus. Ele chega à noite, quando ninguém
espera; ele cresce e eventualmente domina por causa de sua persistência (compare
com 11.5-8).
Terceira, a semente de mostarda, aliás, transforma-se em um arbusto, e não em
uma árvore (dendron). Ela tem cerca de dois metros de altura máxima. Alguns
intérpretes pensam que Lucas pode ter mudado a frase de Marcos, meizon pantõn
tõn lachanõn, maior do que todas as outras ervas (4.32), para kai egeneto eis den
dron, “e se tornou uma árvore” (Lc 13.19). Ele pode ter ficado relutante por re
tratar o Reino de Deus como um humilde arbusto de mostarda (veja Chance e
Home, 2000, p. 279-288, para um sumário de várias interpretações).
Talvez Mateus e Lucas mudassem o arbusto de Marcos para uma árvore, pensan
do que fosse um símbolo mais apropriado para o Reino (Mt 13.31,32). Contudo,
ao fazerem isso, eles perderam o foco da parábola de Jesus. O Reino não é uma
grande árvore afinal, mas um humilde arbusto da plantação de Deus. O arbusto
foi intencionado como uma metáfora para a humildade e a reversão da expecta
tiva sobre a natureza e a forma do Reino de Deus. Possivelmente, a dendron de
142
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
Lucas possa ter sido a sua fonte. Se for assim, uma forma variante da parábola já
havia mudado o arbusto para árvore.
A árvore é descrita como um local para ninhos: E as aves do céu fizeram ninhos
em seus ramos (Lc 13.19). Em diversas ocasiões, uma grande nação no AT é des
crita como uma grande árvore. Em Ezequiel 31.3-6, a Assíria é chamada de cedro
no Líbano: “Todas as aves do céu se aninhavam em seus ramos, todos os animais
do campo davam à luz debaixo dos seus galhos; todas as grandes nações viviam à
sua sombra” (v. 6). Em Daniel 4.12, a imagem de uma grande árvore representa a
Babilônia: “Tinha belas folhas, muitos frutos, e nela havia alimento para todos.
Debaixo dela os animais do campo achavam abrigo, e as aves do céu viviam em
seus galhos; todas as criaturas se alimentavam daquela árvore”.
O tema comum é a metáfora da árvore como uma cobertura protetora para todas
as criaturas, desde as que habitam debaixo de seus galhos às que se aninham nela
no ar. Em Ezequiel 17.23,24, Israel é descrito como “um cedro viçoso” e os “pás
saros de todo tipo se aninharão nele; encontrarão abrigo à sombra de seus galhos.
Todas as árvores do campo saberão que eu, o Senhor, faço cair a árvore alta e faço
crescer bem alto a árvore baixa”. Se os ouvintes de Jesus fossem familiarizados
com esse texto, eles poderiam ter visto a árvore da parábola como um símbolo de
uma futura grandeza do Reino de Deus, uma grandeza para a qual as nações do
mundo olhariam em busca de abrigo.
■ 20-21 A segunda parábola diz respeito à atividade do fermento no trigo. Pa
rece ser uma metáfora semelhante para a natureza invasiva e secreta do Reino de
Deus. Da mesma forma como milhares de pequeninas sementes de mostarda in
vadem a horta, assim também é o fermento, quando o trigo é adicionado; ele pre
meia o todo. A quantidade sugerida aqui é impossivelmente grande — sata atria,
“três medidas (ARC) de farinha. Isso é um pouco menos que um alqueire (um
ephah), considerado o suficiente para alimentar 160 pessoas (Marshall, 1978, p.
561; Gn 18.6; Jz 6.19; 1 Sm 1.24). Na visão de Jesus, o Reino inevitavelmente
infiltraria e influenciaria todo o contexto. Até a menor quantidade de fermento
tem esse tipo de influência no Reino de Deus.
todo esforço para entrar (v. 24, agõnizesthe, “disputar, lutar, esforçar”). O fato de
que seja “estreita” sugere a dificuldade de uma multidão comprimindo-se para en
trar. Contudo, Lucas também registra que ela está aberta por apenas um período
limitado (v. 25).
H 2 5 -2 7 Um banquete do fim dos tempos está do outro lado dessa porta, em
glorioso progresso. A imagem ecoa o banquete de coroação de Davi em 1 Crôni
cas 12.38-40, no qual os guerreiros de Israel vêm para passar o reino de Saul para
Davi. Eles estavam também acompanhados dos vizinhos de Israel, que se uniram na
celebração do novo reino de Davi. “Ficaram com Davi três dias, comendo e beben
do, pois as suas famílias haviam fornecido provisões para eles. (...) Trouxeram-lhes
muitas provisões em jumentos, camelos, mulas e bois. (...) Farinha, bolos de figo,
bolos de uvas passas, vinho, azeite, bois e ovelhas, pois havia grande alegria em Isra
el” (1 Cr 12.39,40). Lucas 14.15-24 expande ainda mais o motivo do banquete na
história do grande banquete ignorado pelos convidados. Nele, como também aqui,
o assunto é a base da discussão da exclusão de alguns.
A cena nos versículos 25-27 é dramática. A rua é um lugar de perigo; e o lar, o lugar
de segurança. A rua é tenebrosa e hostil. Porém, ao outro lado da porta, um cálido
e suntuoso banquete está em progresso. Os que estão ao lado de fora batem à porta,
ansiosos, e até em desespero para entrar: Senhor, deixe-nos entrar (v. 25)!
O Senhor responde lá de dentro, negando a entrada (como em 11.7; note o uso
cristológico de como em 7.19; 10.1,39,41; 11.39; 12.42; 13.15; 17.5,6; 18.6;
19.31; 22.61).
A porta é estreita, sugerindo que apenas os indivíduos podem entrar, e não as mul
tidões. A entrada é permitida para um de cada vez. Muitos tentarão entrar de uma
vez e não conseguirão (13.24). Um grupo de pessoas não conseguirá negociar sua
entrada (digamos) baseado em sua etnicidade. Isso se torna uma parte importante
da teologia da salvação de Lucas. Ele redefine a eleição do foco nacional para o in
dividual. Como veremos, especialmente em Lucas 15, não é uma nação eleita que
será salva, mas os indivíduos perdidos que se arrependerem.
Quem são esses ao lado de fora rogando para que possam entrar? O texto não diz.
O interlocutor é um dos “aldeãos”, presumivelmente um nativo palestino de descen
dência judaica (v. 22 —Jesus está viajando na fronteira de Samaria [9.52; 17.11]).
A parábola é direcionada aos que são apenas casualmente familiarizados com Jesus,
mas que, contudo, esperam obter uma acomodação no banquete escatológico. Na
narrativa de Mateus, os forasteiros são “filhos do Reino” (Mt 8.12 ARC — judeus,
145
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
I 1-6 Essa história sobre um homem curado de hidropisia é uma das quatro his
tórias de controvérsias do Sábado em Lucas (6.1-5,6-11; 13.10-17 e 14.1-6). Lucas
14.1-6 peculiarmente combina os temas da comunhão à mesa com a controvérsia
do Sábado. Todas essas passagens usam o formato familiar de evento/oposição/
declaração (-> 13.10-17 anotação complementar, “Uma comparação das histórias
sabáticas”).
150
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
NO TEXTO
13.30, “há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos” (veja tam
bém 1.52). Essa é uma característica fundamental do Evangelho de Lucas.
NO TEXTO
Ele desafia aqueles entre nós que estão em posições privilegiadas a cuidar dos ne
cessitados - “os pobres, os aleijados, os mancos, e os cegos” (v. 13). Esse sobrepu-
jante sentimento de obrigação social é uma característica marcante do pensamento
de Jesus.
O Jesus de Lucas destaca uma enorme significância quanto ao cuidado com
os necessitados. Quando essa obrigação social é cumprida na igreja, ela está em
sua melhor forma. Historicamente, isso tem sido uma força particular da herança
wesleyana. Quando nós, cristãos ocidentais, usamos a nossa posição privilegiada
para cumprir nossa responsabilidade é que podemos esperar ser recompensados na
ressurreição (v. 14).
são tranquilamente rejeitados. As refeições públicas dos ricos são vazias e têm fal
ta de respeito mútuo. Elas são completamente diferentes do banquete messiânico
de 13.22-30, no qual as pessoas anseiam entrar alegremente de todas as partes do
mundo.
Então, a história não é apenas sobre a rejeição da reciprocidade nos relacionamen
tos sociais, mas sobre a rejeição da estrutura sobre a qual esses relacionamentos
sociais estão baseados. Lucas reitera isso três vezes nos capítulos 13 e 14.
• “De fato, há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos”
(13.30).
• “Todos os que se exaltam serão humilhados, e aqueles que se humilham
serão exaltados” (14.11 NIV11, tradução livre).
• “Eu lhe digo, nenhum daqueles que foram convidados provará do meu
banquete” (14.24 NIV11, tradução livre).
A mesa da nova comunidade de Jesus é um lugar de santa comunhão onde as dis
tinções de classe, de poder e de riqueza são inteiramente apagadas. O fundamento
sobre o qual a sociedade humana atualmente funciona é desconstruído. É por isso
que a nova ética introduz o fim dos tempos. O antigo fundamento da sociedade foi
abolido; o novo fundamento é um prenúncio do futuro. A passagem talvez esteja
convidando a igreja a ser um modelo para essa nova sociedade.
H 20-24 Assim como no banquete messiânico (-^ cap. 13), os convidados re
crutados das ruas convergem para um banquete do qual não esperavam participar.
O versículo 21 quase reitera o versículo 13: não são os ricos que entram, mas os po
bres, os aleijados, os cegos e os mancos de Lucas (v. 21; veja também 4.18; 7.22;
14.13; 18.35). Jesus vira a economia social de ponta-cabeça; os marginalizados jan
tam como ricos. As convenções da reciprocidade social são anuladas baseadas na
ética do novo reino marcado pela generosidade e compartilhamento de riqueza.
A conclusão da história contém diversas ênfases dignas de nota (14.23,24):
Primeiro, na segunda tentativa de encher o local do banquete, os servos vão além
das ruas e becos da cidade (v. 21) até aos caminhos {tas odous) e valados (v. 23). A
mesma referência a ruas de uma cidade que a cena da seleção dos participantes do
grande banquete apresentado em 13.24-30. No processo de estabelecer as tão ex
pandidas fronteiras da inclusão, Lucas empurra as margens para ainda mais longe.
Segundo, alguns são até forçados {anankason) a entrar (compare com o verbo
biazetai no imperativo em 16.16). Essa passagem tem sido interpretada como se
permitisse o uso da violência na conversão (ex.: por Agostinho e pelos donatistas;
veja Kealy, 2005, p. 8). A austera resolução do anfitrião de ter um banquete cheio
dá ao seu convite um ímpeto militar. Tanto a inclusão como a exclusão são de
155
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
grau extremo. Mas, está vastamente fora de caráter com os caminhos de Jesus
nos Evangelhos defender a conversão pela coerção. Isso deve ser entendido como
uma hipérbole - linguagem figurativa destacando a urgência de incluir todos os
desejosos de entrar na nova comunidade.
Terceiro, a declaração sumária é: “Eu lhe digo, nenhum daqueles que foram convi
dados provará do meu banquete” (v. 24 NIV11, tradução livre). A inclusão radical
das massas é contrabalanceada pela exclusão radical da elite. Nesse caso, a inclusão
cria a exclusão (como em 24.46 e At 18.6, onde Paulo diz aos judeus teimosos e
resistentes de Corinto, “Caia sobre a cabeça de vocês o seu próprio sangue! Estou
livre da minha responsabilidade. De agora em diante irei para os gentios”). Nesse
texto do banquete messiânico de Lucas 13.22-30, a exclusão das aldeias criou uma
inclusão para os quatro cantos do mundo.
Esse equilíbrio dos incluídos e excluídos diferencia o universalismo de Lucas da
quele no qual todos irão eventualmente ser salvos. E perfeitamente compreensível
e até amável e nobre o sentimento de ansiar ver todos livres da dor da exclusão do
Reino. Realmente, todos podem arrepender-se. Contudo, no mundo de Lucas, ain
da há pessoas perdidas. Elas não estão perdidas pela eleição, mas porque recusam-
-se a arrepender-se. A reversão da ordem social resulta do arrependimento e perdão
do pecador, e da recusa do orgulhoso de entrar humildemente no Reino.
Veremos ainda, no capítulo 15, como Lucas continua a redefinir o conceito da
salvação. As novas categorias são “perdidos” e “achados” em vez de eleitos de Israel
e nações não eleitas (para outras perspectivas veja Evans e Sanders, 1993, p. 106-
120).
• A perda dos laços familiares como a “cruz” dos discípulos (v. 25-27).
• O construtor que falha em prever os custos de construir uma torre (v. 28-
30).
• O rei que vai para a guerra contra 20 mil soldados levando apenas dez mil
(v. 31-33).
A questão da primeira historieta já foi levantada (em 8.19-21; 11.27,28;
12.52,53). As duas seguintes introduzem novas ênfases à narrativa.
NO TEXTO
Logo, a frase kai ou misei, e não aborrece (ARA), refere-se à escolha de lealdade
face à oposição, em vez de dar prioridade à afeição. A natureza visceral da palavra
odiar é hiperbólica, e não uma ordem literal aqui para odiar-se alguém.
Essa difícil escolha é descrita em Lucas como o carregar da cruz (v. 27). A lingua
gem é severa, mas também é o dilema para o discípulo. Parece convincente en
tender essa afirmação particular como derivada da comunidade cristã posterior,
embora outros argumentem por uma origem anterior (-> 9.23).
H 28-33 Duas histórias exclusivas a Lucas ilustram o custo do discipulado: es
timar o custo de um projeto de construção e as desvantagens estratégicas ao ir à
guerra contra um exército o dobro maior do que o seu. Em ambos os casos, a falta
de planejamento leva à humilhação. No primeiro caso, isso consiste de uma ridicu
larização (v. 29); no segundo, da humilhação do perdedor (v. 32).
A conexão entre as duas histórias fornecidas pela declaração sumária no versículo
33 é reforçada: “Da mesma forma, aquele de vocês que não renunciar a tudo o que
tem não pode ser meu discípulo” (NIV11, tradução livre). O objetivo parece ser que
o caminho ao discipulado tem um componente de “análise de custo”. O discípulo
precisa estar disposto a abrir mão da conexão íntima com a família e com todos os
bens. Jesus/Lucas fala de “discípulos” repetidamente, mas somente aqui menciona
sobre meu discípulo (singular) e, somente aqui, ao indivíduo, em vez de à comu
nidade.
Em cada um desses três casos (v. 26,27,33), a exigência é expressa negativamente,
tanto na condição como no resultado. Você não pode falhar em odiar a família,
falhar em carregar a cruz, ou falhar em abrir mão de tudo. Isso é seguido da mesma
frase, também expressa na negativa: você não pode ser meu discípulo. A negativa
“qualquer de vocês que não” é usada para ênfase, e, combinada aqui com a segunda
negativa, você não pode ser meu discípulo, dobra o efeito. Expressado positiva
mente, nós devemos honrar a Deus primeiro, levar a nossa cruz, e abrir mão de
tudo a fim de sermos discípulos de Jesus.
A PARTIR DO TEXTO
em Lucas, deve ser dito que o intenso apego das pessoas às coisas bloqueia o cami
nho da completa espiritualidade.
I 34-35 Agora, segue uma breve metáfora sobre inclusão e exclusão na comu
nidade do Reino. O material aqui tem paralelos nos outros dois Evangelhos Sinó-
ticos e reflete a afirmação de Mateus de que os discípulos são “o sal da terra” (Mt
5.13 || Mc 9.49,50).
O sal é bom, mas é capaz de perder o sabor (mõranthêi\ mostrar ser tolo, como,
ex.: em Rm 1.22; 1 Co 1.20; caso contrário, somente em Mt 5.13).
O sal m etafórico
159
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
161
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
ad maius (do menor para o maior). Salvar os animais do rebanho era uma res
ponsabilidade universal dentro de uma comunidade agrícola (14.5). Quanto mais
ainda, diz o argumento, é a responsabilidade de a comunidade procurar as pessoas
perdidas do rebanho de Deus?
A primeira dessas duas parábolas tem um paralelo em Mateus 18.10-14. A segun
da, contudo, é de material lucano especial, assim como a terceira, a parábola do
filho perdido. Lucas traz essas três histórias juntas em sua estrutura narrativa. As
duas primeiras parábolas possuem uma estrutura semelhante: uma breve descrição
dos atores, uma declaração da perda, uma pergunta retórica, uma reação e uma
afirmação sumária. Elas são quase idênticas em significado e determinam o funda
mento lógico sobre o qual a terceira parábola será compreendida.
O s a to re s (...) Q u al d e v o c ê s q u e (...) q u a l é a m u lh e r q u e
(tis a n th rõ p o s ) (tis gunê)
Afirm ação sum ária (...) da m esm a form a, h a ve (...) da m esm a form a, há ale
rá m ais alegria no céu por gria na presença dos anjos de
um p ecad o r que se arre Deus por um p ecad o r que se
p en d e do que por noventa arrepende.
e nove ju stos q u e não preci
sam arrepender-se.
166
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
O mesmo tema de separação está em evidência, embora de uma forma mais sutil. A
separação agora é do filho mais velho para com seu pai e seu irmão que voltou. O fi
lho mais velho recusa-se a entrar na festa. Ele permanece do lado de fora, enquanto
os outros divertem-se na acolhida do banquete de boas-vindas. Note a ressonância
com o tema do grande banquete de 13.22-30 (“^).
A crise existencial está no centro dessas vinhetas. O filho mais novo lutou com
a vergonha e a necessidade. O filho mais velho lutou com o ressentimento e seu
senso de direito. Ele tinha arcado com as responsabilidades da casa como um filho
modelo, enquanto seu irmão irresponsável esteve fora de casa. O contraste entre a
completa humilhação do irmão mais novo e a arrogância hipócrita do irmão mais
velho é óbvio. O pai tenta reconciliar os dois com sua ética de amor.
O tema primário da parábola é a separação: a propriedade é separada de seu
dono (v. 12); o filho mais novo, de seu país de origem (v. 13); de seu dinheiro (v.
14); da pureza ritual quando entre os porcos (v. 15); e depois, do amável cuidado
da família e da compaixão humana (v. 16). Finalmente, o filho mais velho é separa
do de seu irmão e de seu pai por ressentimento.
O contraponto do tema da separação é o tema da volta e restauração. Nos versícu
los 22-24, o filho perdido é restaurado ao seu país, aos seus bens materiais, ao seu lar e ao
favor de seu pai. A alienação do irmão mais velho é deixada sem resolução na parábola.
NO TEXTO
H 11-16 Havia três níveis no sistema de parentesco israelita: tribo, clã e a “casa
do pai” (bet av). Esta última é a base dessa parábola. A conexão do indivíduo com
a família não só era a identidade social fundamental da pessoa, mas também de
finia o lugar de alguém em termos do relacionamento econômico e teológico na
comunidade.
170
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
Dentro desse contexto, o pedido do irmão mais novo para a divisão da pro
priedade de seu pai (v. 12) foi um drástico ato de separação (veja Sir. 33.20-24):
Isso era desejar que seu pai estivesse morto (Wright, 1996a, p. 129). O pai do ho
mem que pediu a Jesus para mandar que seu irmão dividisse a propriedade da fa
mília com ele (em Lc 12.13) já estava morto (veja Nm 27.6-11). O filho mais velho
pode escolher distribuir a propriedade do pai morto (Safrai e Stern, 1974, p. 519).
Mas aqui, o patriarca ainda estava vivo.
O pai poderia escolher dividir sua propriedade entre os filhos, retendo o di
reito de beneficiar-se da propriedade até a sua morte. Em tais casos, o filho mais
novo recebería um terço (Fitzmyer, 1985, p. 1087). A divisão da propriedade co
loca em risco todo o bet av, expondo-o a perdas econômicas. Ao exigir sua parte e
desperdiçá-la, esse filho insensivelmente reduz o meio de vida do pai.
A divisão da propriedade é o primeiro ato no tema da separação na parábola.
O segundo ato de separação é que o filho removeu a si mesmo de sua terra para uma
região distante, levando consigo tudo o que tinha (Lc 15.13). Logo, a separação
geográfica é acrescentada à divisão econômica e à separação pessoal. O movimento
na história é para longe da terra de Israel e do centro familiar.
Para piorar a chocante separação, o filho depois desperdiçou os seus bens vi
vendo irresponsavelmente. Agora, ele está separado de sua riqueza. A extinção de
sua ligação familiar está completa - lar, relacionamentos e riqueza, tudo se foi. A
desolação do filho implicitamente adverte contra a tentação de substituir a riqueza
e a vida dissoluta pelo suporte do lar e da família. Nada pode jamais substituir o
consolo que o lar e os familiares trazem à nossa vida.
Uma fome na região fez com que o filho pródigo se tornasse empregado de um
cidadão local, que o envia aos seus campos para alimentar porcos (v. 15). Como
171
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
uma virada final nessa queda em espiral, o jovem judeu encontra-se entre os porcos
imundos, o máximo da impureza ritual (Fitzmyer, 1985, p. 1088). Logo, ele é sepa
rado da santidade ritual também.
A fome leva o filho perdido a desejar o alimento que os porcos comiam, mas
ninguém lhe dava nada (v. 16). Quase morrendo de fome numa criação de porcos,
numa terra distante, é a absoluta antítese da proteção que ele desfrutava no bet
av. O tema da separação alcança seu clímax na parábola em sua total alienação do
amor e segurança do lar.
O cuidadoso desenvolvimento dessa queda espiralar pode ecoar a descrição
de um filho rebelde em Deuteronômio 21.18-21 (Snodgrass, 2008, p. 125). Ali, o
pai e a mãe devem trazer o filho até à porta da cidade. Quando o fazem, eles devem
repetir esta frase, “Este nosso filho é obstinado e rebelde. Não nos obedece! E de
vasso e vive bêbado” (v. 20). A penalidade de apedrejamento indica o perigo que tal
filho representava para o sistema familiar na cultura israelita.
172
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
Assim que o pai vê o filho de longe, ele fica cheio de compaixão por ele (v. 20,
esplanchnisthê; veja 7.13; 10.33) e corre para receber seu filho em casa. A maioria
dos comentaristas observa que um típico pai judeu daquela época nunca exibiria
um comportamento tão indigno quanto sair correndo. Esse comportamento desa
gradável é uma resposta emocional e compassiva ao resgate de seu filho. Essa com
paixão era também o tema unificador nas quatro controvérsias dos Sábados em
Lucas (-> 13.10-17, Por trás do texto).
O pai efetua uma imediata reversão de cada aspecto da separação do filho. Ele é
reunido à sua propriedade, ao seu país de origem, ao alimento e ao pai. A declara
ção do pai é paradigmática para o Evangelho: Pois este meu filho estava morto e
voltou à vida; estava perdido e foi achado (v. 24).
H 25-32 Quando o filho mais velho voltou de seus afazeres nos campos, ele en
controu uma celebração acontecendo pelo retorno do filho mais novo. A conversa
entre o filho mais velho e o pai elucida o tema de Lucas quanto à salvação para os
pecadores.
As observações do filho mais velho refletem o sistema social que correlaciona a res
ponsabilidade e a recompensa. Aqueles que vivem responsavelmente no trabalho,
na comunidade, no lar e na família são o fundamento de uma cultura. Consequen
temente, eles colhem as recompensas do trabalho árduo e da abnegação. Isso fica
bem esclarecido na reclamação do filho mais velho: Olha! todos esses anos tenho
trabalhado como um escravo ao teu serviço e nunca desobedeci às tuas ordens.
Mas tu nunca me deste nem um cabrito para eu festejar com os meus amigos.
Mas quando volta para casa esse teu filho, que esbanjou os teus bens com as
prostitutas, matas o novilho gordo para ele! (v. 29,30).
O irmão mais velho representa os valores padrões da sociedade, incluindo aqueles
dos leitores de Lucas. Se esses valores não são respeitados, a ordem da cultura é
radicalmente subvertida - a anarquia reina. A reclamação do filho mais velho não
é simplesmente um empecilho para enfatizar o amor do pai. Ela representa aquilo
que todos nós cremos sobre a responsabilidade social. Essa parábola subverte os
valores normais da sociedade.
Quando o pai colocou a importância do filho mais novo enquanto ser humano aci
ma dos valores da sociedade civil, ele fez uma profunda declaração sobre o valor do
homem. O amor do pai pelo filho perdido estava acima de qualquer outra preocu
pação. Todas as regras da justiça, a reciprocidade, a recompensa e a punição foram
colocadas de lado. O amor redentor pelo filho perdido prevaleceu. Todas as tolices
do filho, de lascívia, autodestruição, de falta de visão, de dissipação e rejeição do
amor da família, foram perdoadas. Nessa história, a cultura do bet av é requisitada
a reestruturar-se em torno de uma ética superior de retorno do perdido.
174
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
Como leitores, nossa percepção interior avisa-nos que, se construirmos uma co
munidade sobre essa base, toda ordem desaparecerá. O filho mais velho argumenta
que, se a comunidade permanecer aberta aos que ignoram suas regras de responsa
bilidade, então a comunidade perderá sua identidade e até mesmo sua existência.
Como pode a sociedade sobreviver com essa nova ética radical de amor? O profun
do amor perdoador torna essa parábola poderosa e perturbadora. As palavras do
pai ao filho mais velho são as mesmas faladas pelo filho mais novo: esse seu irmão
estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi achado (v. 32; veja v. 24). Aqui,
jaz o desafio da antropologia da salvação de Lucas. Ela permanece um desafio para
todos os que professam ser cristãos.
A PARTIR DO TEXTO
de terror que esse filho pode ter sofrido em sua bondosa recepção - vestido,
adornado, calçado e alimentado com o que havia de mais fino na casa de seu
pai.
O filho pródigo humilhado desejava apenas se esconder em algum canto
dos aposentos dos servos e nutrir sua vergonha. Ao contrário, ele encontra-se
honrado na cabeceira da mesa de seu pai numa grande festa. Ali, a sua tolice
está no centro do palco. Era difícil para o filho mais velho aceitar essa celebra
ção, deve ter sido ainda mais difícil para o filho envergonhado. O maior desafio
é sempre perdoar a si mesmo. A parábola tem mais do que uma grande lição a
ensinar.
O amor do pai irradia do centro da história, iluminando todos ao seu re
dor - o ressentido filho mais velho e o humilhado filho mais novo. O filho que
estava morto agora está vivo, estava perdido, mas agora foi achado. Podemos
antecipar um final que Jesus não forneceu. Será que a família toda abraçou o
amor radical do pai e celebrou juntamente a redenção do filho ? Será que a alie
nação foi curada, e a unidade restaurada?
Em geral, o ensino de Jesus não revoga os valores fundamentais da socie
dade trabalhadora. Isso pode ser visto em diversas passagens que precedem
essa suprema expressão de graça para com os caídos em Lucas 15. Em Lucas
5.31,32, Jesus disse, “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas
sim os doentes. Eu não vim chamar justos, mas pecadores ao arrependimento”.
Os que estão sãos não precisam de médico. Os que são justos estão seguros
dentro do curral (15.7). As moedas encontradas não são causa de preocupação
(15.8-10). E o filho mais velho é dono de tudo o que o pai tem; ele tem a sua
recompensa por sua responsabilidade. Seu pai lhe disse: "Meu filho, você está
sempre comigo, e tudo o que tenho é seu” (v. 31).
E dentro desse contexto que o perdido se torna de tanta importância. A
preocupação com o perdido torna-se possível pelo bem-estar dos que estão se
guros dentro da comunidade.
A parábola também tem implicações para a vida da comunidade. A
“política da santidade” funcionava como um sistema para proteger a santidade
do templo de Deus e da sociedade da impureza ritual. “O mundo social judaico
e sua sabedoria convencional tornaram-se crescentemente estruturados em
torno das polaridades da santidade como uma separação: limpo e impuro,
pureza e impureza, sagrado e profano, judeu e gentio, justo e pecador” (Borg,
1991, p. 86,87). Deuteronômio e Levítico têm essa questão como seu foco
principal. Como Israel diferencia a si mesmo da impureza de seus vizinhos, e
assim preserva seu relacionamento exclusivo com um Deus santo? A separação
176
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
cômica, como o bobo da corte que astutamente consegue o melhor de seu público.
0 senhor, que deveria ficar horrorizado com aqueles disparates, elogiou a enge-
nhosidade do administrador. Tais ofensas são, às vezes, perdoadas a um bobo da
corte; aqui, cria-se uma história peculiar na tradição do Evangelho.
Existem importantes semelhanças entre essa história e a história do filho per
dido (Snodgrass, 2008, p. 94,124):
• Ambas apresentam um homem que esbanja a riqueza dos outros. O verbo
grego que descreve o administrador astuto “desperdiçando” os bens de seu
senhor (16.1, diaskorpizõ) é o mesmo que caracteriza o filho pródigo esban
jando a riqueza de seu pai (15.13). Essa palavra é usada nesse sentido somente
em Lucas.
• Ambas possuem um dramático confronto com aquele para com quem são
responsáveis, mas com resultados muito diferentes. O filho perdido encon
tra compaixão; o administrador astuto é duramente chamado a um acerto de
contas.
• Em ambas, nós ouvimos os pensamentos íntimos dos pecadores concernentes
aos seus pecados (15.17; 16.3). Nós ouvimos o desespero do filho perdido e as
maquinações perspicazes e corruptas do administrador astuto.
A colocação dessas histórias consecutivamente realça a justiça do arrependi
mento do filho perdido em contraste com a conivência do administrador injusto.
Zaqueu, em 19.1-10 é outro contraponto.
Diferentemente do filho pródigo, o administrador astuto reage à sua repre
ensão exatamente da maneira errada. Quando ele é chamado para prestar contas
de seu pecado, ele deveria confessar, restaurar e fazer uma oferta pelo pecado (“^
5.17-26). Mas, ele faz o oposto. O filho pródigo e Zaqueu agem com o verdadeiro
arrependimento; o bobo da corte trapaceiro realiza um tipo de antiarrependimen-
to ao piorar o seu pecado com mais truques sujos!
Essas duas parábolas oferecem os retratos exclusivos de Lucas do pecado, dos
pecadores e das possibilidades e consequências do pecado. Ao enfatizar essas his
tórias, Lucas direciona o leitor para o caminho do arrependimento como nenhum
outro escritor do Evangelho. Nesse caso, ele o faz ironicamente e comicamente.
NO TEXTO
1 1-3 0 público para essa parábola são os discípulos (16.1), a descrição usual de
Lucas quanto ao grupo maior dos seguidores de Jesus (e não o círculo mais íntimo;
178
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
180
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
NO TEXTO
H 10-12 Esse novamente é um material de Lucas, e o tema continua sendo a rique
za terrena. O marco linguístico que liga essa expressão à história do administrador
desonesto (v. 9) é a frase mamõna tês adikias (v. 9) /adikõ mamona (v. 11), riquezas
deste mundo. A expressão “riquezas injustas” da ARC gera maior conotação nega
tiva na frase do que se justifica. Lucas não parece enxergar a riqueza como má em
si mesma, mas apenas se obtida por meios desonestos ou usada para fins egoístas
ou propósitos maléficos. Mamom, ou riqueza, é “do mundo” ou “injusta” apenas
no sentido mais amplo, quando é usada para o enriquecimento pessoal contra os
valores do Reino.
0 versículo 10 prossegue com o tema da responsabilidade no uso do dinheiro:
Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito, e quem é desonesto no pou
co, também é desonesto no muito. Esse aforismo usa dos artifícios de ensino
frequentemente empregado por Jesus, os “tipos semelhantes” (veja 3.8,9; 6.43-45;
8.15) e o argumento a minori ad maius (do menor para o maior) (veja 11.11-13;
12.4-7,22-34; 15.1-10).
Na analogia dos “tipos semelhantes”, um indivíduo que é honesto ou desonesto
nas pequenas questões, como uma árvore que sempre dá frutos segundo a sua es
pécie, mostrará honestidade ou desonestidade nas questões maiores. E na lógica
argumentativa, se a honestidade é importante nas questões pequenas, ela é ainda
mais importante nas questões maiores. Adicionalmente, se o seguidor for honesto
nas questões de interesse secular, a ele serão confiadas as verdadeiras riquezas do
Reino (16.11; veja 12.33).
Esse princípio é ampliado em 16.12. Se os seguidores forem fiéis nas riquezas dos
outros, eles serão considerados dignos por Deus de receberem os seus próprios re
cursos. Um argumento mais simples e atraente para um estilo de vida de honesti
dade não dá para ser feito.
1 13 “Ninguém pode servir a dois senhores. Ou você vai odiar a um, e amar o ou
tro, ou você vai ser dedicado a um, e desprezará o outro. Vocês não podem servir a
Deus e ao dinheiro” (NIV11, tradução livre). Essa afirmação (também em Mt 6.24)
resume a preocupação de Lucas quanto à riqueza.
A palavra traduzida como dinheiro é novamente mamõna (“^ Lucas 16.9 e 11).
Acabamos de ter dois exemplos de pessoas que colocaram o valor maior nos bens
materiais. O filho pródigo abriu mão de sua casa para obter os bens do pai, e o
181
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
■ 14-15 0 uso que Lucas faz de fariseus como antítipos de Jesus está bastante
em evidência nesta passagem. Tendo acabado de descrever os perigos do materia
lismo em duas histórias compridas e diversos aforismos, o narrador agora se volta
diretamente para os fariseus e acusa-os de serem “amantes do dinheiro” {philar-
gyroi\ v. 14 NRSV; suas únicas outras ocorrências no NT estão em 2 Timóteo 3.2).
Pior ainda, os fariseus zombavam de Jesus por causa de Sua visão sobre a
integridade e a lealdade a Deus com respeito ao dinheiro. A resposta de Jesus é uma
182
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
NO TEXTO
H 16-17 O forçoso criticismo dos fariseus continua. Pela primeira vez, Jesus
refere-se explidtamente ao advento do Reino, um conceito já insinuado em nume
rosas passagens (10.9,11; 11.20).
As boas novas do Reino de Deus apontam para uma nova dispensação e evoca o
uso da frase em 4.43 e 8.1 (16.16; compare com At 8.12). A frase a Lei e os Pro
fetas é usada frequentemente por Mateus, mas por Lucas foi somente aqui. No
tratamento de Lucas, o período da Lei e dos Profetas está no passado em contraste
com a era presente do Reino de Deus.
A Lei e os Profetas profetizaram até João. Desse tempo em diante estão sendo
pregadas as boas novas do Reino de Deus (v. 16). João Batista previu essa mu
dança de tempos em seu próprio ministério (3.5,16,17) e agora Jesus proclama que
o mesmo está presente. Isso prepara o caminho para o material apocalíptico do
capítulo 17. Mas, no todo, Lucas concebe o Reino como uma grande realidade que
está próxima ou já está presente.
183
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
A frase todos tentam forçar sua entrada nele é difícil. Fitzmyer comenta que a
frase literalmente significa, “‘todos são forçados a ele’, i.e. com um convite exigente,
urgente (do próprio pregador do reino)” (1985, p. 1117). O verbo grego para for
çar pode ser visto como mediano ou passivo na voz. Se sua força for passiva, isso
pode significar, “todos são pressionados a entrar nele” (Fitzmyer, 1985, p. 1117) ou
“todos são apressados a entrar nele” (Green, 1997, p. 603; semelhantemente, John
son, 1991, p. 249; compare a tradução marginal na NRSV: “todos são fortemente
encorajados a entrar nele”).
Isso não tem sido adotado pela maioria dos tradutores, devido, em parte, ao parale
lo em Mateus 11.12. Ali, o elemento de força e de violência parece ambíguo, e até
sobrenatural: “Desde os dias de João Batista até agora, o Reino dos céus é tomado
à força, e os que usam de força se apoderam dele”.
Mas o sentido passivo parece ser a escolha mais convincente do significado em
Lucas. A urgência da nova era emergente de João e Jesus empresta uma força parti
cular para o convite de entrada no Reino (compare com 14.23).
Que todos {pas) tentem entrar ressoa com o universalismo de Lucas e a ampla
oferta de salvação a todos, especialmente aos marginalizados. O Reino está ampla
mente aberto em Lucas. Relembre a imagem das pessoas tumultuando em volta das
portas do banquete messiânico (-> 14.22-30).
No entanto, essa mudança nos tempos não sinaliza que a Lei não seja mais válida.
Reminiscente de uma passagem bem conhecida em Mateus 5.17-20, Lucas indica
que será mais fácil para o mundo passar do que cair da Lei o menor traço (v. 17).
Essa afirmação da eternidade da Lei não se estendeu à sua interpretação. Nisso,
Jesus mostrou uma grande independência, às vezes mais tolerante do que os Seus
adversários (como em 11.37-41), e outras vezes mais rígido.
I 18 Jesus foi definitivamente mais rígido em relação ao divórcio. Em Marcos
10.11,12, o divórcio tanto do homem pela mulher como da mulher pelo homem é
proibido e igualado ao adultério.
Em Mateus 5.31,32; 19.3-9, o divórcio também é igualado ao adultério, mas ne
nhuma menção é feita do divórcio do homem por parte da mulher.
Nessa questão, Lucas oferece uma interpretação que logo presume a autoridade
vigente da Lei (Dt 24.1-4), torna os regulamentos mosaicos mais rigorosos do que
aparecem em Deuteronômio, e desafia o relaxamento da Lei entre seus contempo
râneos (Green, 1997, p. 603,604). O AT, em nenhum lugar, iguala o divórcio ao
adultério (Johnson, 1991, p. 251).
184
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
NO TEXTO
Carson, 2007, p. 345). O rico é enviado ao “Hades” (Lc 16.23; veja também 10.15,
“descerá até o Hades”). De lá, o homem rico olhou para cima e viu Abraão de
longe.
Ironicamente, os portões do Hades agora aprisionam o homem rico, assim como
Lázaro estava aprisionado pela injustiça ao portão do homem rico (veja Mt 16.18).
O destino dos dois homens são exatamente revertidos: um desfruta do conforto
da companhia de Abraão; o outro é atormentado, “sofrendo muito neste fogo” (Lc
16.24) [uma alusão a Is 66.24?]; compare com 1 En.).
Na teologia popular dos dias de Jesus, a prosperidade sinalizava a bênção de Deus.
A ideia certamente tem um sentimento deuteronomista em si. Não podemos ter
certeza se os antigos alguma vez fizerem essa conexão.
Como “amantes do dinheiro”, os fariseus zombaram de Jesus quando Ele disse que
a riqueza e o serviço a Deus eram incompatíveis (Lc 16.15). A teologia deles presu
mia que o homem rico fosse divinamente abençoado. Mas ele, de fato, seria amal
diçoado na vida porvir: “Aquilo que tem muito valor entre os homens é detestável
aos olhos de Deus”. Em contraste, Lázaro, que anteriormente era um pobre miserá
vel, herda uma vida eternamente abençoada.
Hades era o deus grego do subm undo. Em sua form a m ais antiga no
pensam ento grego, Hades ta m b é m era um lug ar de m eia-luz, onde todos
os m ortos habitava m in d iscrim inad am e nte . Não havia m em ória do passa
do deles. Eles e xp e rim e n ta va m uma existência que expirava le n tam e nte
em um lugar de triste za e fa lta de esperança, mas não de to rm e n to .
Essa é bem a ideia do Sheol no AT (ex.: SI 6.5; 16.10 etc.). A in flu ê n
cia das ideias zoroastrianas de ressurreição dos m ortos d u ran te o período
pós-exílico, provave lm en te, fez com que o e n te n d im e n to de Hades fosse
desenvolvido ao que co m um e nte cham am os de inferno (ex.: Sir. 21.9,10).
No NT, “ inferno" tra d u z a tra n slite ra çã o grega geennan, Geena (ex.:
Lc 12.5). O destino pós-m orte dos hom ens é diferenciado. O inferno é um
lugar de extrem o so frim en to para o ím pio; o paraíso é um lug ar de recom
pensa para o justo. O lu ta r de so frim e n to deverá ser estabelecido após
a ressurreição dos m ortos e o ju lg a m e n to de todos por Deus (Ap 1.18;
20.13-15).
Na história do rico e Lázaro, encontram os ecos dos fra g m e n to s não
canônicos de Jannes e Jambres (C harlesw orth, 1985, p. 427-436; veja 2
Tm 3.8). Essas duas fig u ra s eram os m ágicos que se opuseram a Moisés e
Arão. A história conta com o Jannes volto u do subm undo para e xo rta r o seu
187
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
irm ão para o bem. "Agora então, irm ão Jambres, tenha o cuidado de faze r
o bem em sua vida para com seus filhos e am igos; pois, no subm undo,
nenhum bem existe, som ente triste za e trevas. Depois que você m orrer e
v ie r para o subm undo, entre os m ortos, sua m orada será de dois côvados
de largura e dois côvados de co m p rim e n to " (C harlesw orth, 1985, p. 441).
S em elhantem ente, o hom em rico im plora para que Lázaro envie alguém
dos m ortos para avisar os seus parentes dos perigos do subm undo.
O rico olhou para cima e viu Abraão com Lázaro reclinado em consolação ao seu
lado (v. 23). O rico faz dois pedidos, ambos negados por Abraão. Ironicamente,
quase comicamente, ele pede para que Lázaro se tornasse o seu servo no além:
manda que Lázaro molhe a ponta do dedo na água e refresque a minha língua,
porque estou sofrendo muito neste fogo (v. 24; veja Is 5.13; 50.2; e esp. 65.13:
“Os meus servos comerão, e vocês passarão fome; os meus servos beberão, e vocês
passarão sede; os meus servos se regozijarão, e vocês passarão vergonha”).
Nem o fato de ser enviado para o Hades faz o rico humilhar-se, tampouco o ensina
a demonstrar as atitudes e ações que Lucas encontra nos pecadores arrependidos.
O fogo como tema de julgamento já foi visto em Lucas. Mas aqui, ele é pessoal,
portanto, muito mais íntimo (ex.: Lc 3.9,17; 9.54).
De acordo com Lucas, o rico sofrerá fome no mundo vindouro, enquanto o pobre
será confortado (veja 1.53; 6.21,24,25). O rico não é retratado como um pecador
que geralmente viola os Dez Mandamentos. Ele não é retratado como particular
mente ímpio. Ao contrário, ele é culpado de falhar em sua obrigação de ajudar o
pobre. Em 16.30, aprendemos que finalmente os ricos são enviados ao Hades por
sua falta de arrependimento, presumivelmente por aquela irresponsabilidade co
mum que acarretou o sofrimento dos pobres.
Aqui, há um eco da liderança fracassada dos pastores de Israel em Ezequiel 34, um
tema que tem caracterizado o criticismo de Jesus contra os fariseus (-> Lc 5.29-32,
A partir do texto). “Filho do homem, profetize contra os pastores de Israel; profeti
ze e diga-lhes: Assim diz o Soberano, o Senhor: Ai dos pastores de Israel que só cui
dam de si mesmos! Acaso os pastores não deveriam cuidar do rebanho?” (Ez 34.2).
Embora essa característica possa não ser suficiente para garantir que o homem rico
represente os fariseus para Lucas, a falha de assumir as responsabilidades da lide
rança tanto dos fariseus como do homem rico é a mesma.
H 2 5 -3 1 Abraão é gentil em sua resposta ao sofrido homem rico: Filho, lembre -
-se de que durante a sua vida você recebeu coisas boas, enquanto que Lázaro
188
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
recebeu coisas más. Agora, porém, ele está sendo consolado aqui e você está
em sofrimento (v. 25). O homem pobre sofreu em sua vida terrena, e assim en
contra consolo no outro mundo. Essa é a visão de Lucas sobre um universo justo.
A indulgência egoísta leva ao castigo no mundo vindouro, e o sofrimento leva ao
consolo.
Esse é o cerne do entendimento de Lucas sobre a natureza universal da salvação.
Isso engloba a ideia de responsabilidade pessoal, mas também se estende às injus
tiças de uma sociedade pecadora. O tratamento para com os nossos semelhantes,
especialmente para com os pobres, é o tema principal de Deuteronômio (Beale e
Carson [2007, p. 345] citam Deuteronômio 14.28,29; 15.1-3,7-12; 22.1,2; 23.19;
24.7-15,19-21; 25.13,14; etc.; veja Evans e Sanders, 1993, p. 121-139). Esses desfa
vorecidos serão redimidos na teologia da salvação de Lucas também (veja Por trás
do texto, 14.1-24). Aqueles que sofrem sob a opressão da injustiça serão consola
dos. Novamente, sua teologia de salvação é bem ampla.
A arquitetura espacial da santidade é representada pelo símbolo de um grande
abismo (Lc 16.26) colocado entre os dois polos do submundo. As habitações dos
atormentados e dos consolados estão à vista umas das outras, mas um divisor in
transponível separa-os. Um está em cima, e o outro está embaixo. Uma habitação é
santa; e a outra é impura.
Isso espelha a santidade do templo no meio da impureza da sociedade. Como um
símbolo de realidade espiritual, as paredes do templo separam o santo do profano.
Não pode haver trânsito entre essas duas esferas sem garantias de que o impuro não
contaminará os recintos do templo. Os sacerdotes mediam a interação no reino
terreno.
Segundo, o próximo pedido do homem rico a Abraão é para uma intervenção es
pecial que alertaria a família dele sobre os perigos da autossatisfação. O pedido, é
claro, já é uma autossatisfação! Por que a família dele e não os outros? O homem
rico ainda falhava em enxergar aquilo que lhe havia levado ao seu presente desespe
ro, e o seu orgulho ainda impedia o arrependimento.
Já vimos isso antes nos fariseus (16.14), no filho mais velho (15.25-30) e à mesa
com os fariseus (14.11; 7.39). Novamente, o rico espera que Lázaro sirva aos seus
interesses: envie-o para que os avise a fim de que eles não venham também para
este lugar de tormento (16.28).
Jesus havia dito anteriormente em Lucas, “Que mérito vocês terão, se amarem aos
que os amam? Até os pecadores’ amam aos que os amam” (6.32; veja v. 33,34; com
pare com 14.12-14). O pedido do homem rico não tem mérito moral na economia
do Reino de Jesus. Sua preocupação era somente com aqueles que o amavam.
A resposta de Abraão mostra a suficiência do AT: ‘Eles têm Moisés e os Profetas;
189
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
que os ouçam’ (v. 29; veja também 18.18-24). O ponto é claro: a Escritura clara
mente estipula a conduta justa para com o pobre. Aqueles que falham em cum
prir essas responsabilidades não têm desculpas. Para o Jesus de Lucas, esses são os
fundamentos do judaísmo, e eles constituem a fé salvadora dentro desse contexto
(compare com 16.17; Mt 5.17-20).
O Evangelho de Lucas baseia-se no fundamento do AT. E não o abandona. Supor
que a salvação cristã opera para a exclusão desse fundamento é uma compreensão
incompleta da fé bíblica. Embora o processo de revelação tenha seguido adiante
com a cruz, a cruz não anulou os princípios fundamentais da revelação de Deus por
Moisés e os profetas. Isto é, Deus revelou-se pela história e declara Sua vontade à
humanidade em termos da lei de Moisés e das mensagens dos profetas.
Ainda permanece algo distintamente lucano nessa história. Lázaro não é um aluno
de Moisés e dos profetas; contudo, ele é salvo. São os ricos que têm uma particular
responsabilidade de “ouvir” e responder como líderes de Israel. O homem rico es
taria na companhia de Abraão também se ele tivesse seguido o conselho que Jesus
dá ao homem em Lucas 18.22: “Venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos
pobres, e você terá um tesouro nos céus. Depois venha e siga-me”.
Na teologia de Lucas, as pessoas sempre vêm em primeiro lugar, e o amor pelos
outros é sempre o caminho da santidade e da salvação. Esse é o fundamento da
salvação e ainda que ressuscite alguém dentre os mortos (v. 31), essa verdade
não será mudada. E por isso que não adianta enviar aparições aos cinco irmãos que
ainda não se arrependeram. Curiosamente, o Evangelho de João demonstra que
o retorno de Lázaro de entre os mortos, além de não convencer os impenitentes,
serviria somente para aumentar a animosidade contra Jesus (Jo 11; 12.9,10).
I 1 4 0 capítulo inicia com uma referência a coisas que fazem com que as pes
soas caiam em pecado (v. 1 NTLH; ta skandala; também em Mt 13.41; 16.23;
18.7; e em Paulo: Rm 9.33; 11.9; 14.13; 16.17; 1 Co 1.23; G1 5.11; compare com
proskomma em Is 8.14 e Rm 14.20). As pedras de tropeço certamente virão, disse
Jesus, mostrando Sua compaixão pelos obstáculos que os fiéis encontram no cami
nho da vida santa.
Porém, palavras mais fortes seguem: mas ai da pessoa por meio de quem elas
acontecem (v. 1). A adversativa mas é importante. São aqueles por intermédio de
191
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
ampla. É muita pressão enxergar o uso de “irmão” em 17.3 como referência a uma
comunidade fechada de seguidores de Jesus, o que exclui outros judeus.
A comunidade de Jesus não era um grupo fechado. Ela não excluía os judeus em ge
ral, nem os fariseus em particular. O termo irmão simplesmente significa “compa
nheiros judeus”. Em 8.21, Jesus definiu o termo como aqueles que “ouvem a palavra
de Deus e a executam” (ARC). O termo irmão aqui tem uma aplicação inclusiva,
salvífica. Não é uma categoria destinada a excluir os não seguidores de Jesus, muito
menos uma declaração de laços familiares. Tampouco, como a nossa tradução do
texto tenta mostrar, deveria ser entendida como um comentário sobre a exclusão
baseado no sexo.
A exortação de perdoar sete vezes (17.4) encoraja os discípulos a perdoar Seus
correligionários desobedientes, seus irmãos, os fariseus. Não são todos eles irmãos e
irmãs no judaísmo ? Nessa leitura, a declaração poderia facilmente ter levado a uma
exclamação atônita dos discípulos ao Senhor, “Aumenta a nossa fé!” (v. 5).
Os discípulos de Jesus foram instruídos a estender o perdão para sete vezes no dia
(v. 4) àqueles cujo orgulho mantinha-os longe de Deus, inclusive os apontados por
Deus para liderar Israel (compare com Mt 23.2). O número não era destinado a
encorajar um registro meticuloso. Como um número completamente inclusivo, o
objetivo era perdoar qualquer erro.
A declaração também ecoa uma afirmação anterior de Jesus na qual Ele disse: “Que
mérito vocês terão, se amarem aos que os amam? Até os pecadores’ amam aos que
os amam” (Lc 6.32). Nós recebemos “mérito” apenas se amarmos e perdoarmos os
nossos inimigos.
Alternativamente, a exortação poderia ser entendida como uma continuação da
advertência aos fariseus. Ou seja, os fariseus devem perdoar os seus companheiros
na fé (irmãos), os seguidores de Jesus, aqueles para quem eles receberam a res
ponsabilidade, da parte de Deus, de ser pastores. Numerosas histórias em Lucas
retratam os fariseus como desinclinados a perdoar os pecadores. Uma exortação
aos fariseus para perdoarem os pecadores concordaria com o tema global em Lucas
sobre os pastores chamados a cumprir sua responsabilidade de cuidar de seus reba
nhos (-> 5.29-32, A partir do texto; e 15.3-7).
Nessa leitura, a ética do arrependimento e perdão engloba todos os personagens da
história - os fariseus, os discípulos e Jesus. Todos são chamados aos atos de arre
pendimento radical e de perdão mútuo. De todas as formas possíveis de se enten
der essa passagem, essa parece capturar melhor o tema do perdão para os pecadores
em Lucas. Em, talvez, a maior ironia da história do Evangelho até então, Jesus dá
aos fariseus a oportunidade de arrependimento e perdão sete vezes ao dia.
193
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
NO TEXTO
H 7-10 Essa curta parábola é concernente a um escravo que faz aquilo que lhe
fora ordenado, e o faz sem receber elogios. Não se ganha crédito pelo que se faz por
questão de obrigação, como amar aqueles que o amam, ou emprestar para aqueles
194
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
que podem pagar de volta (6.32-36). O trabalho dos servos não é meritório. É o
que eles têm de fazer para ser o que são.
O coração da história está na pergunta de Jesus em 17.9: Será que o senhor agra
decerá ao servo por ter feito o que lhe foi ordenado ? Os apóstolos (e também os
fariseus) devem aprender a ser humildes: ‘Somos servos inúteis; apenas cumpri
mos o nosso dever’ (v. 10). É um privilégio distinto ser servo de Deus.
Como nos versículos 1-6, essa história é dirigida aos discípulos, irmãos e irmãs, e
apóstolos (v. 1,3,5). Essa história é uma exortação à humildade cristã e a evitar a
arrogância em fazer simplesmente aquilo que se espera que façamos. Mas o texto
pode, mais uma vez, ter uma aplicação também quanto aos fariseus.
Como já notamos previamente, o tema do pastor em Lucas 5.29-32 e 15.3-7 deve
ser interpretado à luz de Ezequiel 34 e da crítica profética da liderança fracassada
de Israel. Uma das principais reclamações de Jesus contra os líderes religiosos ju
deus era a negligência deles quanto às ovelhas perdidas. Eles tinham fracassado em
cumprir a chamada de Deus a eles para buscarem e cuidarem de Seu rebanho. Aqui
o tema ressurge.
Se o pastor do versículo 7 aplicar-se aos líderes de Israel, a passagem é outra exorta
ção para eles para fazerem o que foram ordenados a fazer, e a fazer isso sem esperar
nenhum elogio. Ou seja, a passagem pode ser uma exortação ao serviço e humil
dade para os pastores de Israel e não uma referência vergonhosa à vida comunal
dentro do movimento de Jesus.
viajando ao longo da fronteira de Samaria por quase dez capítulos (9.51 —19.1).
A ênfase em Samaria na seção central é mais importante teologicamente do que
historicamente ou geograficamente.
Os samaritanos fazem parte da agenda mais extensa de Lucas/Atos dos Após
tolos. Jesus é atraído da Galileia, passando por Samaria, a Jerusalém, onde Sua mis
são é cumprida. Esse registro aparece apenas no Evangelho de Lucas. Em Atos,
o evangelho irradia para fora de Jerusalém em direção ao mundo, passando por
Samaria (At 1.8). A reação dos samaritanos à mensagem do evangelho representa o
avanço das boas-novas além dos ambientes do judaísmo étnico em geral e do juda
ísmo baseado em Jerusalém em particular. Os samaritanos representam os “meio-
-judeus”, aqueles que não são propriamente judeus, mas também não são gentios.
NO TEXTO
H 12-14 Lucas faz a ligação de duas noções em sua história: um leproso sarna-
ritano seria o pior marginalizado. O tema do leproso já foi mencionado na cura de
Naamã, o sírio (4.27), do leproso curado (5.12-16), no pronunciamento de João
Batista (7.22) e, talvez, em Lázaro, cujas chagas podem indicar lepra (16.19-31;
Lucas omite a estada de Jesus na casa de Simão, o leproso [Mt 26.6 || Mc 14.3]).
A cura do leproso representava dois importantes subtemas lucanos (veja Lc 5.12-
16):
Primeiro, a restauração daqueles que estavam na mais longínqua extremidade da
sociedade naquela comunidade. Os leprosos nessa história ficavam a certa distân
cia enquanto clamavam por misericórdia (17.12). O isolamento físico espelha o
isolamento social deles. Jesus removeu isso ao curá-los, capacitando-os a ir e mos
trar-se aos sacerdotes (v. 14). O leproso samaritano que foi curado volta fisica
mente e prostra-se “aos pés de Jesus”. Isso, semelhantemente, indica o seu retorno à
sociedade (v. 16; compare com 5.8,11).
Segundo, um leproso curado restaurado à vida religiosa da comunidade: vai mos-
trar-se aos sacerdotes (Lc 17.14; veja 5.14). Novamente, a distinção entre a impu
reza ritual e a cura física é obscura. Os leprosos são purificados (17.14) enquanto
iam. Mas, eles também são fisicamente curados: Levante-se e vá; a sua fé o salvou
(v. 19).
Em Lucas, o pecado, a impureza e a doença são parte da condição humana. Ser
curado de um mal é ser curado em todos os aspectos. Embora os personagens de
Lucas sofram de males diferentes, todos eles possuem o requisito da fé quando se
encontram com Jesus (-> 5.1-11). Então aqui, os leprosos são ritualmente purifi
cados e fisicamente curados pela fé.
Há dez leprosos (17.12), assim como havia dez moedas em 15.8-10. Em ambos os
casos, um em dez é “encontrado”. O leproso é como uma das ovelhas perdidas de
15.3-7 e o filho pródigo de 15.11-32. Ele volta ao Mestre (17.13) em gratidão e
humildade. Isso reforça ainda mais a ética de arrependimento de Lucas (15.18-21;
17.15,16).
H 15-19 O herói dessa história é um leproso. Mas ele também é um samaritano
(v. 16). A identidade étnica dos outros não é mencionada, mas somente o leproso
samaritano é chamado de estrangeiro (v. 18). Será que isso implica que os outros
nove leprosos seriam judeus que viviam marginalizados em Samaria?
Imagine o isolamento de um leproso samaritano vivendo na Judeia. Um severo
ostracismo de dois tipos é acoplado de uma forma complexa - a maldição da lepra
e a tensão do conflito étnico e religioso. A que sacerdotes e templo ele deveria ir?
A Jerusalém ou a Gerizim, o seu rival samaritano (Green, 1997, p. 621; Fitzmyer,
1985,p. 1154)?
197
LUCAS 9-24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
A falha dos nove de retornar em gratidão não é um pecado egrégio. Afinal, eles
estavam simplesmente obedecendo à ordem de Jesus: “Vão” (v. 14)! Não obstan
te, Jesus especificamente criticou-os, chamando atenção para a etnia/religião do
samaritano agradecido. Jesus perguntou (...) Não se achou nenhum que voltasse
e desse louvor a Deus, a não ser este estrangeiro? (v. 17,18). O termo grego para
estrangeiro aqui é allogenés, de outro grupo étnico, raça ou nação. Em uma alusão
à própria identidade judaica de Jesus, o leproso curado prostrou-se aos pés de Jesus
louvando a Deus (v. 15,16).
Assim como o perdão deveria ser estendido aos fariseus sete vezes (v. 4), a cura é
estendida ao mais extremo marginalizado possível, um leproso judeu vivendo em
Samaria. Tal é a natureza radical da inclusão que irá caracterizar a comunidade de
Jesus. O samaritano sai daquele encontro curado pela fé. Os excluídos são convida
dos para entrar, enquanto os incluídos falham em demonstrar gratidão.
NO TEXTO
está ele’, ou ‘Lá está’; porque o Reino de Deus está entre vocês (v. 20b,21).
Jesus tem pouca paciência com aqueles que pedem sinais da vinda do Reino
(11.16,29-32; veja 19.11). A resposta dele implica que o Reino de Deus deve ser
conhecido pela voz profética de outrora. Assim como foi com Jonas e os ninivitas
(veja 11.29-32), o arrependimento é a resposta esperada. Os fariseus procuram no
vamente um sinal, mas eles não se arrependem quando ouvem a palavra de Deus. A
voz de Moisés e dos profetas são toda a evidência essencial para a necessidade de se
estar preparado para a vinda do Reino de Deus (veja 16.29-31).
Para Lucas, toda a expectativa do Reino de Deus deve estar fundamentada na men
sagem de Moisés e dos profetas. Essas expectativas incluem a compaixão pelos mar
ginalizados. Elas não incluem uma correspondente hegemonia religiosa, nacional
ou racial. Lembre-se da resposta dos mensageiros de João Batista: “os cegos veem,
os aleijados andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são res
suscitados e as boas novas são pregadas aos pobres” (7.22). Tudo isso já ocorreu e
está ocorrendo no presente Reino de Deus. Para o Jesus de Lucas, é um erro pensar
no Reino como uma realidade política.
No entanto, o que é o Reino de Deus para Lucas? Somente ele nos diz: o Reino
de Deus está entre | entos\ vocês (17.21). A melhor tradução da preposição é de
batida (veja Bock, 1996, p. 1413-1419). Duvida-se que esta signifique “dentro de
vocês”. Em nenhum outro lugar em Lucas, o Reino é simplesmente uma realidade
interior dentro dos crentes (Fitzmyer, 1985, p. 1161). Ela podería significar “ao seu
alcance ou em seu poder”, o que pode indicar possibilidades presentes ou futuras
(Marshall, 1978, p. 655,656). A tradução “em sua presença ou meio” pode referir-
-se à presença física de Jesus (Fitzmyer, 1985, p. 1159).
Claramente, Lucas acredita que o Reino esteja, de certa forma, presente, não um
reino inteiramente futuro. Mas, presente em que sentido? Será que está presente
na pessoa de Jesus, na igreja, em certos eventos ou pessoas? Para Lucas, o Reino é
realizado pelo caminho do arrependimento e perdão. Nesse sentido, o caminho do
Reino de Deus está “dentro”.
teofania particular; a segunda promete ser pública. Logo, assim como as estrelas estão
presentes no céu para que todos vejam, o Filho do Homem aparecerá no Seu dia.
Essa não é a segunda vinda no sentido que a teologia popular sugere. Já que Lucas
não tem uma existência preexistente para Jesus, ele não usa a linguagem da “pri
meira vinda”. E, se não há uma primeira vinda, não pode haver uma segunda vinda
(Conzelmann, 1982, p. 185). Embora o advento do Messias seja encontrado no
entendimento de Lucas quanto à mensagem do AT, a missão de Jesus começa em
Nazaré e culmina em Jerusalém. Ela, então, expande-se aos gentios em Atos dos
Apóstolos.
Na história de Lucas, Jesus não vem uma vez e depois outra vez, como em uma
segunda Parousia (uma palavra que, nos Evangelhos, só é encontrada em Mateus).
Lucas não usa a palavra “volta” ao descrever o evento escatológico. Ao contrário,
Jesus “vem” apenas uma vez (geralmente erchomai, ex.: 3.16; 5.32; 7.19; 12.40,49,
mas também phanõ em 11.20 e episkeptomai em 1.68 e 7.16). Ele vem de forma
particular para alguns seletos na narrativa do nascimento; depois, para determi
nados discípulos na seção da viagem. Finalmente, Ele será publicamente revelado
(17.24,28-30).
Lucas considera o versículo 20 indicativo, de certa forma, de um evento futuro, já
que ele detalha suas circunstâncias extensivamente nos versículos 22-37 e 21.7-28
(Fitzmyer, 1985, p. 1158; Marshall, 1978, p. 659). Não só esse acontecimento é
iminente, mas é também retratado como imanente (17.20; 19.11; 21.7; At 1.6;
Conzelmann, 1982, p. 121-123). Essas duas ideias estão, de certa forma, em desa
cordo e mostram um grau de complexidade na compreensão de Lucas quanto ao
Reino.
Contrário à expectativa dos discípulos (At 1.6), e certamente contrário às expec
tativas dos fariseus (no cap. 17), nada disso se refere ao fim (como em uma conclu
são) da história. E mais significativo para a interpretação de 17.22-37, o leitor está
consciente de que a compreensão de Lucas quanto à destruição de Jerusalém como
um evento escatológico iminente em 21.7-28.
Embora a morte e a ressurreição de Jesus não sejam ainda um fato consumado den
tro da história, esses eventos estão logo a seguir (-^ 18.31-34). Os atores na nar
rativa ainda nem entenderam o significado de Sua predição quanto à Sua morte,
muito menos de uma manifestação após a mesma (18.34).
O narrador e o leitor, porém, têm um conhecimento compartilhado que cria uma
estrutura interpretativa para esse material apocalíptico. Isso empresta um ar de co
nhecimento interno à passagem que é característico de uma literatura apocalíptica.
O conhecimento daquilo que está por vir é discernível somente para os que rece
beram acesso aos segredos do Reino.
202
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
O resumo da lição para essa seção está no versículo 33, um tema já encontrado de
forma semelhante em 9.24. Ali, o contexto também é sobre a vinda do Filho do
Homem, e especificamente sobre a tentação de ter vergonha dele e de Suas pala
vras. O Filho do Homem se envergonhará dessas pessoas naquele dia. Semelhante
mente, no capítulo 17, aqueles que buscam a autopreservação perderão a sua vida,
e os que perdem sua identidade no Messias ganharão suas vidas.
L u c a s 9 .2 4 L u c a s 1 7 .3 3
salvará."
Em Lucas 18.31 Jesus reunirá os Doze e irá prepará-los para a subida a Jerusa
lém. “E tudo o que está escrito pelos profetas acerca do Filho do homem se cumpri
rá”. A seção que precede esse anúncio exorta os leitores a viverem como convém aos
discípulos. Há duas histórias unicamente lucanas: o juiz injusto (v. 1-8) e o fariseu
e o publicano (v. 9-14).
O restante do material (v. 18-30) é da tradição tripla:
• a história do homem rico desapontado (v. 18-25 || Mc 10.17-22 || Mt
19.16-22),
• o axioma sobre quem poderá ser salvo (v. 26,27 || Mc 10.23-31 || Mt
19.23-30), e
• a declaração de Pedro de que os discípulos deixaram tudo por causa do
Reino de Deus (v. 28-30 || Mc 10.28-30 || Mt 19.27-29).
As duas histórias lucanas descrevem novamente as mudanças fundamen
tais que o arrependimento deveria afetar. As observações de Terence Fretheim
sobre o arrependimento nos profetas anteriores poderiam aplicar-se igualmen
te a Lucas: “E intrigante para mim que a narrativa como um todo, em sua pró
pria narração, possa ser chamada de um ato de arrependimento (e não uma
chamada ao arrependimento). O propósito, ao que parece, era capacitar os lei
tores/ ouvintes a confessar essa história de infidelidade como a própria história
204
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
deles, tomar uma responsabilidade pessoal para os seus próprios pecados que
trouxeram aquela triste situação” (Fretheim em Boda e Smith, 2006, p. 45).
Lucas vê o arrependimento como, primariamente, um ato de conversão. E tão
fundamental que todos podem beneficiar-se da restauração que o mesmo traz, tan
to os judeus como os gentios. No entanto, o arrependimento também tem o papel
de “ritmo regular da vida no mundo caído” (Boda e Smith, 2006, p. 12). Ou seja, a
penitência não é só sobre entrar na vida do Reino, mas também sobre uma conduta
regular daqueles que procuram viver no Reino. O convite ao arrependimento re
quer uma mudança fundamental no ritmo normal da vida (Boda e Smith, 2006, p.
90). Logo, a resolução de Lucas para a narrativa da viagem trata de:
• persistência na oração (v. 1-8),
• os perigos do orgulho (v. 9-14), e
• o custo do total compromisso para com a vida penitente de salvação (v.
18-30).
O tema da persistência em oração inicialmente surgiu em 11.1-8. Lucas con
clui e culmina essa lição anterior consistindo da Oração do Senhor com a exorta
ção, “Peçam, e lhes será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta lhes será
aberta” (11.9).
Diferentemente de Lucas, Mateus toma a Oração do Senhor como um antído
to contra a hipocrisia, e não um convite à persistência. Ele coloca essa declaração
sobre oração incessante a alguma distância da Oração do Senhor (compare com
Mt 6.9-13; 7.7-11). Logo, a persistência em oração é peculiarmente um tema luca-
no. Aqui, Lucas retorna ao tema com a parábola do juiz injusto.
A estrutura de 11.1-13 e a de 18.1-8 são semelhantes. Em cada seção, há uma
configuração criada pelo narrador; uma parábola, que contém o tema; e uma de
claração sumária de Jesus, que torna a lição da persistência explícita. Tomadas em
conjunto, as duas seções enfatizam esse tema de maneira consistente.
205
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
Mas essa viúva não vai me dar sossego. Melhor eu tomar providências para que ela
receba justiça. Do contrário, vou acabar maluco com essa insistência” (Lc 18.5 A
Mensagem). Um juiz que não se importa com a justiça em si, não suporta a viúva
que não tem uma base legal, contudo recusa-se a desistir.
H 6-8 O melhor momento para se contar um assunto sério é seguido de uma
história hilária. E o Senhor continuou: “Ouçam o que diz o juiz injusto. Acaso
Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que clamam a ele dia e noite? Con
tinuará fazendo-os esperar? (v. 6,7). O uso de “Senhor” (ho kyrios) referindo-se a
Jesus é raro fora de Lucas. Ele carrega uma força cristológica sutil, como em seu uso
sumativo em 24.34: “O Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!”
Até alguém que não se importa com o que Deus ou as pessoas pensam pode ser
movido pela tenacidade. O argumento se/então demonstra que Deus irá recom
pensar a fé persistente muito mais. A história encoraja essa prática no ritmo da vida
normal do discípulo.
A PARTIR DO TEXTO
NO TEXTO
■ 9-12 Jesus descreve os dois personagens em termos paralelos. Para cada traço
negativo do fariseu, há um traço positivo correspondente no publicano. Isso é um
exemplo de uma “antítese” retórica, uma “comparação de opostos por justaposi
ção” (Snodgrass, 2008, p. 462). A ilustração é polarizada sem nenhum campo co
mum entre o vanglorioso religioso e o humilde pecador.
No paradigma teológico de Lucas, as pessoas ou estão perdidas ou estão encon
tradas. A compostura formal religiosa, representada pelos fariseus, não é um fator
mitigador na perda. Somente a orientação interior do coração importa para a sal
vação. Isso é representado pelo publicano na história. O orgulho é o supremo mal;
e a humildade, a suprema virtude. Assim, essa parábola reúne em uma história tudo
o que Lucas esteve desenvolvendo sobre os presumíveis justos e os presumíveis pe
cadores.
A estrutura da parábola
do fariseu e do publicano
O fa ris e u O p u b lic a n o
Os p e rsonag ens [co n fiava] em su a p ró p ria "to d o s os o u tro s " (v. 9 NIV11,
ju s tiç a e d e s p r e z a v a m os tra d u ç ã o livre )
o u tro s (v. 9)
P u b lic a n o (v. 10)
Era fa r is e u (v. 10)
A resposta d ivin a Este h o m e m não foi ju s tific a "E ste hom em (...) fo i para casa
do (v. 14b) ju s tific a d o d ia n te de D eus"
(v. 14a).
209
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Essa parábola possui camadas de ironia. A oração do fariseu é legítima. Não é im
piedade dar graças pelas vantagens que a pessoa tem na vida. Alguém pode muito
bem agradecer por uma vida livre do roupo ou da indecência sexual. Alguém pode
até agradecer por não ser um publicano!
Os hábitos religiosos dele também são louváveis. Ele jejua duas vezes por semana,
mais do que o que é exigido pela Lei. E ele dá dízimo de toda a sua renda, algo que
também não é exigido pela lei. Em tudo isso, o fariseu estava completamente cor
reto. Mas, a falha de sua oração está no orgulho. Ele coloca-se como uma categoria
à parte. Ele imagina-se como “não [sendo] como os outros homens” (v. 11 NIV11,
tradução livre).
H 13 O publicano, por outro lado, batia no peito, como um sinal de tristeza, e
rogava a Deus por misericórdia: ‘Deus, tem misericórdia de mim, que sou pe
cador5 (v. 13). O ambiente do altar traz ecos das orações de arrependimento em
Neemias 9; Esdras 9 e Daniel 9 (Boda e Smith, 2006, p. 72).
Em Esdras nove, o escriba registra como ele rasgou suas roupas e puxou os cabelos
da barba e da cabeça em angústia penitente (Ed 9.3). Ele ora assim: “Meu Deus,
estou por demais envergonhado e humilhado para levantar o rosto diante de ti,
meu Deus, porque os nossos pecados cobrem a nossa cabeça e a nossa culpa sobe
até os céus” (v. 6). Ele chora e prostra-se diante da casa de Deus (Ed 10.1). Seme
lhantemente, Daniel jejua vestido de pano de saco e cinzas e ora penitentemente
em Daniel 9.4,5.
O publicano arrependido de Lucas repete esse mesmo espírito de confissão (“^ Lc
5.29-32, A partir do texto, para uma comparação com a oração de Manassés). Toda
pretensão de decoro religioso deve ser abandonada na fome pela justificação dian
te de Deus. A ilustração do publicano convida à empatia, em vez do julgamento
racional. A conduta do cobrador de impostos revela o que está em seu coração, e
não o que está em sua mente. A teologia do arrependimento tem um forte aspec
to relacional/emotivo. O arrependimento só pode ocorrer entre pessoas. Ele não é
estéril, friamente irracional e legal. E uma questão do coração e de sua disposição.
H 1 4 A declaração conclusiva está em 18.14: “Todos aqueles que se exaltam serão
humilhados, e aqueles que se humilham serão exaltados” (NIV11, tradução livre).
Essa é uma reiteração literal do ensino de Jesus sobre os assentos em um banquete
em Lucas 14.11 (compare com Mt 23.12). Aquele cuja vida é vivida em orgulho
não pode esperar ir para casa justificado diante de Deus. No caso dessa parábola,
“ir para casa” significa deixar o local de adoração. Logo, a parábola tem um aspecto
eclesiástico. Os suplicantes que adoram com um coração genuíno diante de Deus
levam a santidade do templo para casa com eles.
210
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
O fariseu diante do altar não tinha compaixão pelos perdidos. Esse é um tema
frequente em Lucas. Os pastores de Israel têm a responsabilidade de ir atrás das
ovelhas perdidas, mas o fariseu não estendeu a mão ao pecador. A retidão exterior
do fariseu é desmentida por sua arrogância e frieza para com o publicano perdido.
Se ele tivesse estendido a mão, a história poderia ter terminado diferentemente
para ele - ele também poderia ter ido para casa justificado.
NO TEXTO
da experiência do menino Jesus, que foi tomado nos braços de Simeão (2.28).
Por sua vez, os pais trouxeram suas crianças (ta paidia) a Jesus. São a essas que Ele
compara os verdadeiros discípulos: Deixem vir a mim as crianças e não as impe
çam; pois o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas (v. 16). Não
é ao sábio ou ao mundano que o Seu novo Reino pertence, mas àqueles que creem
como uma criança.
NO TEXTO
212
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
0 in te rlo cu to r "Um perito na lei" (v. 25) C erto hom em im p o rtan te (v. 18)
A pergunta "M estre, o que preciso fazer para Bom M estre, que farei para
herdar a vida eterna?" (v. 25) h erdar a vida eterna? (v. 18)
Resposta de Jesus " 0 que está escrito na Lei?" (...) "Po r que vo cê me cham a
"Como você a lê?" (v. 26). bom ?" (...) "N ão há nin
guém que seja bom , a não
ser som ente D eus" (v. 19).
Resposta de Jesus "Você respondeu corretam ente. "Falta-lhe ainda uma coisa.
Faça isso, e vive rá " (v. 28). Venda tu d o o que você possui
e dê o d in h eiro aos pobres,
e você terá um teso u ro nos
céus. D epois venha e siga-
-me" (v. 22).
213
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
os outros. A esse líder não é exigido que faça nada além disso. Com o exemplo do
samaritano em nossa mente enquanto lemos o capítulo 18, enxergamos o homem
rico aqui por meio dessa lente. Aquele líder falhou em evidenciar compaixão, uma
questão de central importância para Jesus.
Depois venha e siga-me (v. 22). “Seguir” Jesus no jargão de Lucas é sair do
lugar, deixar os seus bens e unir-se a Jesus em Sua vida itinerante (“^ 9.23-27, A
partir do texto; 9.57-62, No texto). Os discípulos fizeram exatamente isso (veja
18.28-30). Logo, a instrução venda tudo não é só um convite à pobreza, mas tam
bém um convite à itinerância.
O terceiro Evangelho já insistiu que não podemos servir a Deus e às riquezas
(“^ 16.10-13; e 12.13-21, A partir do texto). Aqueles que ajuntam riquezas para si
ou deixam de fazer suas obrigações sociais ao pobre, têm falta de um componente
essencial da fé salvadora. Agora, essa mesma ideia recebe um toque humorístico.
A ideia de um camelo, o maior animal da Palestina, tentando passar pelo ori
fício de uma agulha é uma imagem cômica. Isso demonstra o papel cômico/trágico
que a riqueza desempenha nas lealdades humanas na história do Evangelho. Como
é difícil aos ricos entrar no Reino de Deus! (18.24). Os ricos são tão inflados
pelo apego aos seus bens materiais que a “porta estreita” (13.24) do Reino não
pode comportá-los assim como o fundo de uma agulha não pode comportar um
camelo. A solução de Jesus no Evangelho é severa: venda tudo.
NO TEXTO
O Jesus lucano afirma apenas que aqueles que demonstrarem completo desapego
dos bens materiais e relacionamentos e viverem da completa lealdade a Deus serão
salvos. A oferta da salvação pelo arrependimento e perdão tem um contraponto nas
extremas exigências do discipulado. O arrependimento e o perdão não oferecem
uma passagem fácil. As responsabilidades correspondentes do discípulo envolvem
o maior sacrifício. As duas realidades do arrependimento e responsabilidade devem
estar presentes para a salvação.
A PARTIR DO TEXTO
A narrativa da viagem (9.51 —19.44) está cercada, em cada extremidade, pela pre
dição de Jesus quanto ao Seu sofrimento e morte (9.22,31,44,45,51; 18.31-34).
Embora a iminente morte de Jesus tenha sido mencionada (11.49; 12.4; 13.31,33),
as predições estão além da compreensão dos discípulos (9.45; 18.34).
Do ponto de vista da narrativa, os discípulos estão despercebidos da iminente
morte de Jesus. Ironicamente, em 19.1 lb, eles parecem pensar que a entrada deles
em Jerusalém seria uma vitoriosa introdução ao Reino. Isso enfatiza ainda mais a
falta de compreensão deles. O narrador e seus leitores compartilham do privilégio
do conhecimento de Jesus sobre a Sua morte próxima. Mas, os personagens de Sua
história parecem desconhecer o perigo.
Nem Mateus nem Lucas inclui o comentário de Marcos 10.32 dizendo que os que
acompanhavam Jesus estavam com medo quando se aproximaram de Jerusalém.
A morte de Jesus toma Seus seguidores de surpresa, apesar de Suas tentativas para
prepará-los. Eventualmente, os discípulos em Lucas experimentam o esclarecimen
to. No entanto, isso ocorre apenas depois que os dois anjos aparecem às mulheres
em Seu túmulo vazio e dizem, “Lembrem-se do que ele lhes disse (...) Então se
lembraram das palavras de Jesus” (24.6,8).
A expressão Filho do homem agora se desloca para o centro da narrativa ( 1 2 . 1 -
12 e 17.22-37). Mais detalhes explícitos sobre a significância desse título são da
dos. Estamos subindo para Jerusalém, e tudo o que está escrito pelos profetas
acerca do Filho do homem se cumprirá (18.31).
Aqui, a expressão é usada por Jesus para referir-se ao Seu sofrimento (veja 9.22,44;
22.22,48,69; 24.7). Cada uso revela um detalhe maior. A sorte de Jesus em Jerusa
lém incluirá:
217
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
• Sofrimento (9.22a).
• Rejeição dos líderes religiosos (9.22a).
• Ser morto (9.22b).
• Ser ressuscitado “no terceiro dia” (9.22b).
• Tudo isso ocorrerá em Jerusalém, e esse é agora o destino deles (9.31,51).
• E mais:
• Ele “será traído e entregue nas mãos dos homens” (9.44), e
• isso acontecerá em breve (9.51; 9.18-22).
Depois, Ele será entregue aos gentios que zombarão dele, o insultarão, cuspi
rão nele, o açoitarão e o matarão. No terceiro dia ele ressuscitará (18.32,33;
também 17.25). Essa é a informação que o leitor absorveu no decorrer da narrativa,
mas os discípulos não entenderam nada disso.
A significância de ser entregue aos gentios (v. 32) está relacionada à importância
do sistema familiar israelita (“^ 15.1 T I6). Na história do filho pródigo, ele retirou
a si mesmo do bet av, clã e tribo, e sofreu a suprema humilhação nas mãos daqueles
de uma “região distante” (15.13). Não se pode sofrer separação maior do apoio do
sistema familiar do que ser entregue aos gentios. O que foi verdade para o filho
pródigo agora seria verdade para o Filho do Homem. O Seu exílio nas mãos dos
gentios significa Sua completa separação da casa de Israel.
H 35-43 O mendigo cego na estrada de Jerico grita, Jesus, filho de Davi, tem
misericórdia de mim! (18.38). Essa referência a Jesus como o Filho de Davi é a
primeira proclamação pública da identidade de Jesus como o Messias no Evangelho
de Lucas. As portas de Jerusalém, torna-se claro que Jesus entrará na cidade santa,
não como um sábio viajante, mas como o Messias de Israel.
O tema de Filho de Davi foi preparado na narrativa da infância em 1.32, mas essa é a
afirmativa mais direta da identidade de Jesus como o Filho de Davi nos Evangelhos.
Mateus sugere essa identidade em frequentes alusões (Mt 1.1; 9.27; 12.23; 15.22;
20.30; 21.9,15; 22.42). Lucas diz isso explicitamente para o seu público. O tema de
Davi não aparece abertamente em Lucas 2—18, mas há numerosas referências inter-
textuais significativas que revelam o entendimento de Lucas (“^ 1.15-25; 2.4; 6.1-5).
218
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
219
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
os poucos que estiveram com Jesus em Seus primeiros dias, mas uma multidão tão
grande que um homem pequeno como Zaqueu nem conseguia vê-lo.
Em resposta ao ato de arrependimento de Zaqueu, Jesus reitera Sua mensagem
de salvação aos marginalizados: “Hoje houve salvação nesta casa! Porque este ho
mem também é filho de Abraão. Pois o Filho do homem veio buscar e salvar o que
estava perdido” (v. 9,10; veja 5.32). Quatro características são semelhantes nesses
incidentes. Ambos:
• Envolvem um publicano como protótipo do perfeito pecador (5.27 ||
19.2).
• Ocorrem à mesa, enfatizando a importância da comensalidade (5.29 ||
19.7).
• Têm um protesto dos fariseus e mestres da Lei (5.30 || 19.7, “todo o povo”).
• Culminam com uma declaração paradigmática do propósito do ministé
rio de Jesus: buscar e salvar o perdido (5.32 || 19.9,10).
Essa mensagem é o dogma central da soteriologia de Lucas, remodelando a
mensagem para longe do nacionalismo e da eleição em direção a um convite uni
versal a todos os que estão perdidos ("^ 15.1-10, A partir do texto).
NO TEXTO
H 1-4 Zaqueu é um architelõnês, chefe dos publicanos (v. 2), a única ocorrência
dessa palavra na literatura grega. O título indica que ele tinha numerosos publica
nos sob sua autoridade e que era responsável aos romanos por toda aquela região.
Esse chefe judeu, filho de Abraão, é a figura culminante de todos os publicanos na
narrativa (3.12; 5.27-29; 7.29; 15.1; 18.13,14). Ele representa a margem mais dis
tante da sociedade judaica e é, aliás, o principal pecador do Evangelho.
O arrependimento de Zaqueu prova que o programa de salvação de Jesus foi eficaz.
A narrativa da viagem conclui com o grande sucesso de Jesus, o arrependimento do
chefe dos publicanos em Jericó. O nacionalismo e a eleição foram superados pelo
arrependimento e o perdão como o fundamento do novo Reino.
Zaqueu era um homem de pequena estatura (v. 3). O fato de não conseguir ver
Jesus pode ser uma alusão ao seu estado ignorante. Mas, o coração dele estava no lu
gar certo. Isso ecoa a história de Saul e Davi: Saul era alto, como se esperava dos reis
de então (“^ 1.72-80). Por outro lado, o coração dele não estava com Deus. Davi
era o mais baixo e o mais jovem de sua família (compare com 1 Sm 16.7; 9.2), mas
seu coração qualificava-o como rei. Da mesma forma, Zaqueu é aprovado diante de
Jesus por causa de seu coração arrependido, apesar de sua pouca estatura.
221
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
I 5-7 Jesus faz uma pausa em Seu caminho e olha para cima para ver Zaqueu.
Ele convida-se para ir à casa de Zaqueu: Zaqueu, desça depressa. Quero ficar em
sua casa hoje (v. 5). Essa ação exemplifica a compaixão de Cristo para com os pe
cadores. Isso também exemplifica o comportamento típico dos pecadores de Lucas
- eles fazem a coisa certa. Zaqueu o recebeu com alegria (v. 6). A ironia continua:
os “pecadores” são tipicamente justos. Os “justos” são tipicamente pecadores.
A multidão protesta contra a escolha da acomodação de Jesus, dizendo “Ele se
hospedou na casa de um ‘pecador’” (v. 7; compare com 5.8,30; 15.2). Previamen
te, foram os fariseus e mestres da Lei que expressaram essa objeção; agora todo o
povo (v. 7) discorda da escolha de Jesus. Mas, os hábitos de Cristo da comensalida-
de aberta não são recebidos por nenhum dos que estavam fora de Sua comitiva em
Jericó. Isso sinaliza que o perigo está aproximando-se e que a iminente entrada em
Jerusalém será perigosa.
H 8-10 Zaqueu proclama seu entusiástico apoio a Jesus. Mas, será que ele se ar
repende? E, levantando-se Zaqueu, disse ao Senhor: Senhor, eis que eu dou
aos pobres metade dos meus bens; e, se em alguma coisa tenho defraudado al
guém, o restituo quadruplicado (v. 8 ARC). Os verbos no presente (dar, didõmi;
restituir, apodidõmi) parecem ter uma força futurística. Eles indicam as intenções
de Zaqueu (Marshall, 1978, p. 697,698). Sua promessa de fazer restituição pelos
erros do passado, de mudar seu comportamento quanto ao pobre no futuro e de
ser reconciliado com sua comunidade parece ser um perfeito exemplo de arrepen
dimento (vejaNeale, 1993, p. 184-188).
Mas alguns intérpretes traduzem que esses verbos no presente indicam sua prática
normal, já existente. Se assim for, a afirmação de Zaqueu é um “arrepiante protesto
de farisaísmo” (Fitzmyer, 1985, p. 1220). Mas, isso não se enquadra no contexto
narrativo. Certamente, ele não pode estar dizendo que normalmente engana as
pessoas e depois as restitui quatro vezes mais. Logo, ele estaria falido como cobra
dor de impostos! Aliás, proclamar a inocência não é o que os pecadores fazem em
Lucas. Zaqueu simplesmente promete restaurar quaisquer fundos que ele tenha
adquirido fraudulentamente (se de alguém extorqui, sykophanteõ, um termo ine
quívoco). Sua declaração não é uma autodefesa. No contexto, a aprovação de Jesus
indica uma genuína virada na história de vida de Zaqueu. Zaqueu realmente se
arrependeu de seus erros passados.
A afirmação de Jesus é a essência do Evangelho de Lucas: “Hoje houve salvação
nesta casa! Porque este homem também é filho de Abraão. Pois o Filho do
homem veio buscar e salvar o que estava perdido” (v. 9,10). A palavra salvação
(.sõtêria) ocorre somente em Lucas na tradição sinótica (veja 1.69-77; 2.30; 3.6).
222
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
Da perspectiva da narrativa, o axioma de Jesus ecoa esse tema desde Lucas 1 e cum
pre a sua promessa.
Filho do homem (19.10) tem diversos usos em Lucas: como uma autorreferência
geral, como alguém que sofre, como alguém que retorna. No contexto da apro
ximação de Jesus a Jerusalém, o termo tem conotações de um Filho do Homem
sofredor (veja 9.22,44; 24.7).
Essa declaração paradigmática reitera o tema do pastor que sai à procura, que cuida
de suas ovelhas perdidas. Em 5.32, Jesus descreve Sua missão como uma chamada
ao arrependimento para os pecadores. Portanto, aqui também, a ênfase está nos
perdidos. Há também um eco do tema do filho perdido no capítulo 15. Zaqueu,
outro filho perdido de Abraão, agora está para ser recebido de volta com os braços
abertos.
Como com todos os principais pecadores da narrativa da viagem em Lucas, Za
queu torna-se “achado” por seu encontro com Jesus (“^ 5.29-32, A partir do texto;
e 15.LIO, Por trás do texto). Ele é também um bom exemplo do frequente tema
“quanto mais ainda” do ensino de Jesus. Se Zaqueu pode ser achado, todos os pe
cadores podem ser salvos.
A PARTIR DO TEXTO
Pela segunda vez em Lucas, um pecador fala por si mesmo (compare com 5.8).
Mas, dessa vez, o discurso defende o ministério de Jesus. As reclamações dos fari
seus, mestres da Lei e do povo estavam equivocadas. Assim como Levi (5.27-32),
a mulher pecadora (7.36-50), o filho perdido (15.11-32) e o penitente publicano
no templo (18.9-14), Zaqueu foi “achado”, e a reação adequada é a alegria! A ran
corosa resistência do povo quanto a essa graça libertadora é ilustrada por Lucas
como teimosa, e até mesmo intolerante. Esse é um dia de libertação para Zaqueu e
sua classe. Logo, os leitores ficam plenamente confirmados em sua compreensão de
que o arrependimento é para todos.
Assim como Jesus, Sua igreja deve estar desejosa de viajar para fora das mar
gens tradicionais da aceitação. Tão desconfortável quanto isso possa fazer-nos, Je
sus chama-nos para alcançar todos os pecadores.
Talvez, a tarefa mais difícil e persistente que a igreja enfrenta é manter as por
tas abertas. Não devemos excluir aqueles que não se enquadram em nossos “pa
drões”. Jesus considerou Zaqueu como um filho de Abraão, digno de Seu tempo.
A igreja só pode ser uma comunidade aberta quando abraçarmos a ética radical do
amor de Jesus.
223
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Essa é uma das mais longas histórias de parábolas de Jesus. Ela aparece somen
te em Mateus e Lucas. Marcos 13.34 tem uma história similar sobre “a vinda do
Filho do Homem”. (Snodgrass [2008, p. 523] aponta para histórias similares em
outras fontes antigas: Tob. 1.14; 4.20,21; 5.3; 3 Bar. 12-16, esp. 15.)
Tanto Mateus como Lucas usa essa parábola para ilustrar a aproximação do
Reino. Em Mateus 25.14-30, ela é uma entre várias parábolas semelhantes, conta
das após a limpeza do templo (Mt 24—25; “O Reino dos céus será, pois, semelhan
te” em Mt 25.1). Em Lucas, a história é o material final de ensino da narrativa da
viagem, quando Jesus se aproxima de Jerusalém (19.11). Essa é uma parábola sobre
líderes ausentes, sábios investimentos e o alinhamento das lealdades. Todas essas
são consideradas a partir da perspectiva da cataclísmica aproximação do Reino.
A parábola das dez minas (ou “libras” ou “talentos”) é uma história muito
difícil por diversas razões.
Primeiro, ela concentra-se em temas obscuros de ganância, prestação de con
tas e opressão econômica da elite. O tema subjacente de temor produz uma frené
tica atividade em alguns e paralisa outros.
Segundo, sua interpretação e aplicação permanecem obscuras. Será que o “no
bre” representa Deus/Cristo? Será que ele realmente é tão severo? Será que nós
jmos os “servos” que vivemos debaixo de semelhante julgamento pelo modo que
investimos nossa vida?
O que esses temas têm a ver com a graça? A profunda ênfase teológica de
ucas é no arrependimento e perdão. Seu Evangelho oferece inclusão para todas
as pessoas. Os pecadores de todos os tipos podem participar (7.36-50; 15.11-32).
Todavia, existem imperativos e responsabilidades na vida dos discípulos.
Existe uma bem fundamentada conscientização do fracasso de Israel em Lu
cas, e uma correspondente chamada ao arrependimento (-> 13.1-5). Existe inclu
são, mas também existe exclusão (13.22-30). Existe a graça do perdão, mas tam
bém a responsabilidade de levar diariamente a cruz (9.23). Existe a conversão, mas
também as obras que definem a vida dos discípulos. Existe uma recepção aberta ao
banquete para todos que se arrependem (14.15-24), mas também existem coisas
que os discípulos precisam “fazer” (10.25).
Em Lucas, a graça e a responsabilidade estão lado a lado em uma misteriosa
tensão. Embora a ênfase preponderante de sua teologia esteja na graça, essa
parábola também define a teologia de Lucas. E, se a proporção teológica de Lucas
224
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
Os que são testados são representados na parábola pelos dez servos (v. 13). Cada
um recebeu uma mina (v. 16), aproximadamente o equivalente a três anos de tra
balho. Embora dez servos recebessem o mesmo capital, somente três são chamados
226
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
para prestar contas na história. O primeiro recebeu dez minas pela única mina que
tinha, um aumento de dez vezes (v. 16). O homem nobre elogiou o sucesso dele:
Muito bem, meu bom servo! (v. 17).
■ 18-27 O segundo servo recebeu um aumento de cinco vezes mais (v. 18).
Ambos os escravos sáo recompensados com um número proporcional de cidades
para governar.
O terceiro servo, temendo que qualquer perda do dinheiro de seu patrão colocasse-
-o em risco, simplesmente o escondeu em um lugar seguro. Ele retornou exatamen
te aquilo que havia recebido sem nenhum rendimento. O homem nobre pegou a
mina devolvida dele e deu-a ao primeiro servo.
Aqueles que testemunharam essa injustiça protestaram: ‘Senhor5, disseram, ‘ele
já tem dez!5 (v. 25). Esse desabafo da multidão na história de Jesus força o Seu
“público à introspecção” (Scott, 1989, p. 232).
A parábola enfatiza a fidelidade dos servos/discípulos durante o período de teste,
enquanto o patrão estava ausente. O objetivo não é tanto quando o Reino virá, mas
sobre quem ele virá como uma bênção. A resposta é somente aqueles que são fiéis
ao seu senhor enquanto Ele está longe (Green, 1997, p. 675). Duas afirmações que
já encontramos em Lucas estão embutidas nesta história:
Primeiro, as palavras do senhor para o primeiro servo: “’Por ter sido confiável no
pouco, governe sobre dez cidades”’ (v. 17). Em 16.10-12, os que foram fiéis nas
questões pequenas receberam ainda mais responsabilidades. Ambas as histórias
enfatizam a fidelidade dos servos na ausência da supervisão de seus senhores.
Segundo, a afirmação no versículo 26: Eu lhes digo que a quem tem, mais será
dado, mas a quem não tem, até o que tiver lhe será tirado. Isso foi visto previa
mente em Lucas 8.18 e 12.48.
A parábola das dez minas concentra-se na importância do tempo presente em an
tecipação ao futuro advento do Reino. Sua premissa básica é que a disposição de al
guém no “ainda não” será a mesma disposição no “agora”. Aqueles que demonstram
responsabilidade no presente terão mais no mundo vindouro. A recompensa da
fidelidade agora será o aumento da responsabilidade. O Reino vindouro que Jesus
vislumbra não parece ser um reino em que Seus seguidores descansam confortavel
mente nas nuvens celestiais.
O acréscimo presente exige que os discípulos arrisquem a perda de tudo aquilo
que receberam. A parábola de Jesus parece instigar Seus discípulos a “viverem peri
gosamente” nos interesses do Reino iminente. Os discípulos deveriam concentrar
a atenção em quem eles são agora, e não no que eles se tornariam quando a nova
realidade viesse. A plena consciência no presente momento é de suprema impor
tância. A teologia wesleyana recusa-se a desvalorizar o presente na expectativa de
227
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
um futuro mais glorioso. O convite bíblico para “ser santo” é para o presente, e não
para o Reino futuro.
H 2 8 O fim da narrativa da viagem é marcado pela subida a Jerusalém no versículo
28: Depois de dizer isso, Jesus foi adiante, subindo para Jerusalém. Esse é o
contraponto de 9.51: “Aproximando-se o tempo em que seria elevado ao céu, Jesus
partiu resolutamente em direção a Jerusalém”.
Jesus, agora, chegou ao final de Sua jornada e começa a subida dos 22km (cerca de
14 milhas) para Jerusalém, saindo de Jerico (veja 10.30). E um aclive de aproxima
damente 900m (cerca de três mil pés). A estrada é chamada de Maaleh Adummim,
“subida vermelha”, devido ao solo avermelhado de sua parte inferior (Rogerson,
1989, p. 184). Essa é a estrada que apareceu na parábola de Lucas do bom samari-
tano (10.30). Os leitores atentos sabem que, enquanto Jesus sobe essa estrada, Sua
morte está próxima.
A PARTIR DO TEXTO
O terceiro servo opôs-se ao novo rei ao recusar investir a mina que lhe fora
confiada pelo rei. Será que isso foi uma resistência baseada em princípios quanto à
avareza e a corrupção do atual rei, ou um ato de fraqueza, recusando-se a arriscar
pelo menos o mínimo por medo de retaliação? Será que ele é um rebelde heroico
ou um covarde? Por um lado, a resistência do homem é moralmente corajosa. Ele
recusou participar de uma economia que ele considerava corrupta, na qual a re
compensa não flui para os seus legítimos beneficiários: “Tiras o que não puseste
e colhes o que não semeaste” (v. 21). O dilema dele é o mesmo daqueles que se
encontram sujeitos a uma força dominadora - a escolha pode, às vezes, ser a cola
boração ou a morte. Na história de Jesus, a morte aguardava os que resistiam o rei
injusto da parábola (v. 27).
A interpretação adequada da parábola não é uma questão simples. Ela pode ser
entendida como uma exortação aos discípulos para investirem nos dons que Deus
lhes tem dado para a propagação do Reino. Nessa leitura, o senhor da parábola,
metaforicamente, representa Deus, e os servos representam o Reino, ou seja, os
discípulos. Ou, a parábola pode ser um aviso aos adversários de Jesus para reconhe
cerem o novo rei que está subindo para Jerusalém. Ou, talvez, a parábola possa ser
entendida como uma celebração da resistência moral contra os abusos da usura.
Essa leitura tem muito a recomendar, dadas as opiniões de Lucas sobre a riqueza.
Como a maioria das parábolas, a busca pela interpretação correta é equivocada. As
parábolas são, geralmente, polivalentes - elas deixam em aberto diversos significa
dos possíveis.
228
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
A cena tem ecos da jubilosa procissão liderada por Davi quando ele trouxe a arca de
Deus para a Cidade de Davi (2 Sm 6.12-15; veja SI 118.27). O comentário de Jesus
sobre as pedras clamando sugere que toda a criação uniu-se no reconhecimento de
Sua unção como legítimo rei. Se aqueles que Deus criou à Sua imagem não clamas
sem, isso não mudaria o fato de que Jesus era rei. A própria criação se alegraria e
proclamaria a verdade.
A referência a pedras (Lc 19.40) oferece outro eco intertextual. Em diversas oca
siões, Lucas refere-se a Isaías 8.14,15. Ali, o Senhor dos Exércitos declara: “Para
os dois reinos de Israel ele será um santuário, mas também uma pedra de tropeço,
uma rocha que faz cair. E para os habitantes de Jerusalém ele será uma armadilha
e um laço. Muitos deles tropeçarão, cairão e serão despedaçados, presos no laço e
capturados” (-> Lc 7.23; 17.1-4 e 2.24). Ironicamente, as pedras que fazem os im
penitentes tropeçarem estão agora prontas para clamar a identidade de Jesus como
o Deus ungido.
NO TEXTO
A destruição de Jerusalém
232
V. JESUS EM JERUSALÉM (19.45-21.38)
NO TEXTO
E n c o n t r o s n a n a r r a t iv a d a p a ix ã o
NO TEXTO
patrão (como na parábola das dez minas em 19.11-27). Ou, pode estar referindo-
-se às correntes injustiças das autoridades do templo que tomavam os dízimos que
seriam dos sacerdotes (Snodgrass, 2008, p. 295). Se esse era o caso, a ira das autori
dades teria uma base forte em uma situação concreta da época. Acusar de roubo a
hierarquia do templo seria uma acusação grave.
Os lavradores abusaram dos dois primeiros servos enviados pelo proprietário. Eles
0 espancaram e o mandaram embora de mãos vazias (20.10). O segundo, eles
espancaram e o trataram de maneira humilhante (v. 11). Ao terceiro, eles o fe
riram e o expulsaram da vinha (v. 12; veja 13.34, “Jerusalém, Jerusalém, você, que
mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados!”).
1 13-19 Então, o proprietário disse: ‘Que farei? Mandarei meu filho amado;
quem sabe o respeitarão’ (20.13). Dentro da narrativa de Lucas, a referência a
filho amado (v. 13, ton huion mou ton agapêton) ecoa a voz de Deus em 3.22: “Tu és
o meu Filho amado” (ho huios mou ho agapêtos). Ecoa também o pronunciamento
na transfiguração em 9.35: “Este é o meu Filho, o Escolhido” {ho huios mou ekleleg-
menos). A significância cristológica do tema é óbvia.
A esse mensageiro, os lavradores dizem, ‘Este é o herdeiro. Vamos matá-lo, e a
herança será nossa’ (20.14; os leitores interpretarão esse texto à luz da leitura de
9.22,31,44,51; 17.25; 18.31-34). Se os líderes de Israel são os lavradores, e Jesus é o
filho, nenhum dos temas é realmente novo para o leitor.
A sombria alusão a Isaías 5 não está perdida para os espectadores de Jesus. Eles
respondem à entrega da vinha a outros dizendo, Que isso nunca aconteça! (Lc
20.16). A insinuação é clara: o relacionamento do proprietário com avinha repre
senta a aliança da eleição de Israel com o Senhor.
Sugerir que a vinha será dada a outros representa a revogação da aliança da eleição.
“O que é tirado dos lavradores é o privilégio de estar envolvidos com os propósitos
de Deus, ou, em outras palavras, a eleição e as promessas de Deus” (Snodgrass, 2008,
p. 293).
O que está implícito no relato de Lucas quanto à parábola da vinha está explícito
em Mateus, que inclui uma frase que Lucas não inclui: “Portanto eu lhes digo que o
Reino de Deus será tirado de vocês e será dado a um povo que dê os frutos do Rei
no” (Mt 21.43). Os debates de Jesus com os fariseus ficam pálidos em comparação
com a mensagem do ensino de Cristo aqui entre os chefes dos sacerdotes. Agora,
Ele referiu-se abertamente à revogação da aliança de Deus de exclusividade para
com Israel. O debate religioso fez uma curva decisiva e perigosa. Diversas linhas da
narrativa encontram-se nesta revogação da aliança de exclusividade:
240
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
241
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
a. S o b re o p a g a m e n to d o s im p o s to s (20.20-26)
NO TEXTO
César, Jesus diz, deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus (v. 25).
A inteligente ambiguidade dele equivale ao enigma que Seus adversários desejavam
criar. Se Jesus responde que sim, Ele arrisca perder a simpatia de Seus compatriotas
judeus, que detestam o governo romano (Marshall, 1978, p. 735). Se Ele responde
que não, Ele poderia ser acusado de sedição contra Roma. Esta é, aliás, a acusação
eventualmente colocada contra Ele pelos Seus adversários em 23.2.
A resposta sim de Jesus sugere que Ele estava mais disposto a ofender os nacionalis
tas radicais do que o governo romano, pelo menos, segundo o relato de Lucas. Do
ponto de vista da narrativa, Lucas 20.25 exonera Jesus da acusação no julgamento
antes mesmo que a acusação fosse feita: “Encontramos este homem subvertendo a
nossa nação. Ele proíbe o pagamento de imposto a César e se declara ele próprio o
Cristo, um rei” (23.2).
A abordagem prática de Jesus quanto ao pagamento dos impostos aqui reflete a
mesma visão das riquezas expressa no capítulo 16 (“^ 16.10-13,A partir do texto).
Ali, Jesus disse que você não pode servir a “ambos Deus e dinheiro” (NIV11, tradu
ção livre, ênfase adicionada); aqui, a mesma ideia em termos diferentes. A integri
dade e a lealdade a Deus estão no coração do uso ou do abuso da riqueza material
no Evangelho de Lucas.
b. S o b re o le v ira to d o c a s a m e n to (20.27-40)
NO TEXTO
c. S o b re D a v i (20.41-47)
NO TEXTO
■ 41-44 A conversa continua com os que foram enviados para apanhar Jesus
em uma cilada. Agora, é Ele quem faz duas perguntas aos Seus interlocutores. Seus
adversários e a multidão ainda estão em cena. Mas, não fica claro a quem a pergunta
está sendo dirigida. Os chefes dos sacerdotes e mestres da Lei permanecem como
alvo do borutb (pergunta embaraçosa em Lc 20.1) de Jesus.
O enigma consiste de dois textos que parecem contradizer-se. O desafio dos opo
nentes é explicar como ambos podem ser verdadeiros. Jesus menciona a tradição
de que o Messias deve ser o Filho de Davi (2 Sm 7.12-14; Jr 30.9; S. Sal. 17.21):
Como dizem que o Cristo é Filho de Davi? (Lc 20.41).
245
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Lucas tem tomado um cuidado especial para estabelecer Jesus como o Filho de
Davi (1.32,33, “Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo. O Senhor Deus
lhe dará o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó; seu
Reino jamais terá fim”). Lucas presume que essa citação refira-se a Jesus. A pergun
ta de Jesus é retórica, e o enigma é preparado. A resposta é, “E claro, o Messias será
da casa de Davi”. Ele, então, cita Salmo 110.1: O Senhor disse ao meu Senhor:
Senta-te à minha direita até que eu ponha os teus inimigos como estrado para
os teus pés (v. 42,43). Ele continua a colocar a isca do enigma: Davi o chama ‘Se
nhor’ Então, como é que ele pode ser seu filho? (v. 44).
Alguns intérpretes argumentam que Jesus devesse estar tentando estabelecer que
não era necessário que o Messias fosse da linhagem de Davi. Esse argumento era
necessário, já que a reivindicação de Jesus a essa genealogia era apenas por parte
de seu padrasto José (Klausner citado em Fitzmyer, 1985, p. 1312). Nesta leitura,
Jesus cita Salmo 110.1 para mostrar como isso não pode ser o caso de que o Filho
de Davi também seja o Seu “senhor”. Mas, em Lucas, Jesus claramente é o Filho de
Davi.
Outros intérpretes argumentam que o propósito do enigma de Jesus era demons
trar que os textos são apenas superficialmente contraditórios. Ambos estão corre
tos. Nesta leitura, Jesus cita o Salmo 110.1 para convidar à reflexão naquele salmo
como um texto messiânico. Sim, o descendente físico de Davi será o Messias, con
tudo seu filho/Messias também é o preexistente Senhor divino que se assenta à
mão direita de Deus.
Não parece haver evidência de que o Salmo 110.1 fosse entendido em tais termos
messiânicos antes de Jesus. O uso dele nesse sentido originou-se com Jesus (Fit
zmyer, 1985, p. 1311). Se isso é verdade, Jesus trouxe uma nova interpretação a um
salmo que, para seus leitores originais, deveria estar referindo-se a um rei de Israel.
Nesta leitura, deve-se agora entender que o próprio Davi referiu-se prolepticamen-
te ao futuro Messias (veja At 2.25-28).
1 45-47 Segue-se uma breve seção na qual os pecados dos mestres da lei são rei
terados (v. 46). A passagem sumariza a imagem negativa dos chefes dos sacerdotes
e mestres da Lei encontrada em Lucas 20.1.
Sendo assim, é melhor entendido como um aviso contra os que estão entre eles que
querem (tõn thelotõri) ser vistos com roupas especiais, e gostam muito de receber
saudações nas praças e de ocupar os lugares mais importantes nas sinagogas e
os lugares de honra nos banquetes (Lc 20.46). Jesus não maldiz todos os mestres
da lei, mas somente os que se corromperam por sua própria arrogância, um peca
do corrosivo ao qual Lucas já se referiu extensivamente. Aqueles “escribas” (ARC,
246
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
ARA) que faziam manobras para provocar a morte de Jesus demonstravam o quão
destrutivo o orgulho pode ser para os ungidos de Deus.
o povo, mas são detestáveis “aos olhos de Deus” (16.15). A ação da viúva exemplifi
ca a pobreza à qual Jesus chamou Seus discípulos; como Pedro diz, “Nós deixamos
a nossa família e seguimos o senhor” (18.28 NTLH).
A doação da viúva ao templo demonstra a economia na qual o Reino de Jesus irá
operar: o pobre, em vez do rico, será honrado; o impotente governará o poderoso;
as mulheres fiéis envergonharão os homens gananciosos; os marginalizados suplan
tarão a elite religiosa; e as viúvas esquecidas terão o primeiro lugar. Alguém pode
facilmente reler o Magnificat e ver o espírito da oferta desta mulher para o templo.
Ali, a humilhação da serva é celebrada (1.48), a queda do soberbo é predita (1.51),
a elevação do humilde é anunciada (1.52), a exaltação do faminto e o contrastante
vazio do rico são declarados (1.53).
248
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
249
LUCAS 9-24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
ao que já ocorreu no ministério galileu: Vocês serão traídos até por pais, irmãos,
parentes e amigos, e eles entregarão alguns de vocês à morte. O tema do confli
to familiar tem sido visto no decorrer do ministério de Jesus (-^ 2.48-52; 8.19-21;
11.27,28; 12.49-53; 14.25-27; 18.28-30).
Especificamente, em 12.49-56, o conflito familiar é uma característica importante da
experiência futura dos discípulos. A reintrodução aqui no capítulo 21 projeta a ideia
de conflito familiar nos sofrimentos futuros de Seus seguidores. Embora esse tópico
não apareça novamente em Atos dos Apóstolos, o conflito familiar dentro da comu
nidade cristã era uma característica do cristianismo palestino primitivo.
Considere a vergonhosa posição dos cristãos judeus antes da Grande Revolta em uma
comunidade dividida quanto ao que constituía um comportamento patriota. Será
que os cristãos deveriam apoiar a revolução ou era dever deles dar “a César o que é de
César” (20.25).?A remoção da comunidade cristã judaica de Jerusalém para Pella nos
meados e no final da década de 60 fornece a resposta. Eles recusaram-se a unir-se à
revolução radical contra Roma.
Nesse contexto, a divisão familiar deve ter-se tornado grave quando membros da fa
mília tomaram lados opostos no conflito. A tensão teria sido sobre a identidade de
Jesus, o Messias, certamente. Mas, também estava preocupada com a postura política
que um judeu fiel deveria adotar diante da revolta. Isso pode explicar a tensão que
levou à afirmação de Jesus: Vocês serão traídos até por pais, irmãos, parentes e
amigos, e eles entregarão alguns de vocês à morte. Todos odiarão vocês por causa
do meu nome (21.16,17).
Finalmente, os que experimentaram essas tribulações são os que perseverando [en
tê hypomonê] (...) obterão a vida (v. 19). Esse conceito apropriadamente acontece
aqui pela primeira vez na história de Lucas. O coração e o propósito da literatura
apocalíptica é hypomonê, perseverança (compare com 8.15, o único outro uso dessa
palavra por Lucas).
O tema é bem desenvolvido no restante do NT e é essencial para uma comunidade
que precisa esperar uma futura redenção (compare com Rm 15.4; Hb 10.36; Tg 5.11;
Ap 1.9; 2.2,3; 3.10; 13.10 etc.). Nessa passagem, Lucas, pelas palavras de Jesus, enco
raja seus leitores a demonstrar paciência e perseverança em suas tribulações.
252
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
ano 6 d.C. já era bem-vindo por m uitos na Judeia. Quando Pôncio Pilatos se
tornou governador, a eficácia do reinado romano na Judeia já havia com e
çado a deteriorar-se (26-36 d.C.). Isso era devido, em parte, à crueldade
e à ganância de Pilatos (“> 13.1-5). Mas, subsequentes governadores ro
manos tam bém alim entaram a desilusão dos judeus, despertando anseios
messiânicos.
Questões como uma guarnição romana hostil sediada em Jerusalém,
a autoridade do governador de determ inar e reter as vestes do sumo-
-sacerdote, e os rígidos impostos, tudo isso fez aum entar as tensões na
província (Safrai e Stern, 1974, 1:346,1:347). Em certa ocasião, Pilatos
tentou introduzir um estandarte m ilita r com a imagem do im perador na
cidade. Os judeus indignados correram para Cesareia, a capital provin
cial, para protestarem. Quando ameaçados pelos soldados de Pilatos, os
judeus colocaram o pescoço à mercê da espada em protesto. O banho de
sangue foi evitado, e Pilatos desistiu de seus planos.
Aproxim adam ente na mesma época, Pilatos matou um samaritano
cujos seguidores haviam acendido as chamas da expectativa messiânica
naquela região. Esse ato levou à exoneração de Pilatos em 36 d.C. por
Vitélio, o procônsul da Síria. Houve um período de relativa calma, mas, o
im perador romano, Gaio, então, ordenou que uma estátua de Zeus fosse
colocada no tem plo de Jerusalém em 40 d.C.. Os cristãos devem te r te m i
do que “o sacrilégio terrível" de Daniel estivesse novamente acontecendo
(veja Mc 13.14). Um massivo protesto trouxe a intervenção de Petrônio, o
sim pático governador da Síria, que barrou a introdução da estátua.
Petrônio não podia perm itir o efeito desestabilizador de uma revolu
ção na Judeia, o que exporia toda a fronteira leste do Império Romano a
um possível ataque dos Partas (Safrai e Stern, 1974, 1:357). A agitação
na Judeia era uma questão de im portância geopolítica para o Império Ro
mano. A ascensão do extrem ism o judaico e da expectativa messiânica
não poderia ser tolerada. Isso explica a vontade de Pilatos de crucificar
alguém como Jesus rapidam ente na época de um grande festival.
Em 41 d.C., Herodes Agripa II (d.C. 41-44) foi restabelecido como rei
vassalo, term inando o período do governo romano direto que havia com e
çado em 6 d.C.. Ele defendia as sensibilidades judaicas. Mas, quando o go
verno romano direto foi restaurado em d.C. 44, a dissidência novamente
se tornou mais pronunciada. O caminho da Judeia para a Grande Revolta
havia começado.
Foi nesse ponto que o agitador messiânico Teudas de Atos 5.36 foi
decapitado pelo procurador Fado. Judas da Galileia (não o Judas de Atos
253
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
5.37) foi outro agitador dessa época; sua rebelião foi desfeita pelo procu
rador Tibério Alexandre. Outros numerosos incidentes ocorreram durante
a procuradoria de Ventídio Cumano (48-52 d.C ). Em um deles, um solda
do profanou o tem plo e, em outro, um soldado profanou um rolo da Lei em
público. No início dos anos 50 d.C., outro confronto sério aconteceu entre
os samaritanos e os judeus, quando os peregrinos galileus foram mortos
ao atravessarem a Samaria. Uma intervenção do im perador foi necessária
para acalm ar a situação.
Uma proem inente figura messiânica naquela época foi um egípcio
que levou milhares de seguidores ao monte das Oliveiras. Ele havia pro
clamado que a montanha seria derrubada ao seu comando (At 21.38). O
procurador Felix massacrou m uitos dos seguidores, mas o egípcio esca
pou. Safrai diz, “ O resultado foi que, no final do m andato de Felix, Roma
tinha pouco controle da região rural e das cidades do interior da Judeia"
(Safrai e Stern, 1974, 1:367; veja 1:368-1:372). Grupos armados contra
Roma estavam ativos na zona rural, e os sicários (assassinos que usavam
adagas) estavam fazendo uma destruição em Jerusalém.
Em 62 d.C., Tiago, irmão de Jesus e líder da igreja de Jerusalém, foi
m orto pelo sumo sacerdote saduceu Anás II. Essa conjuntura volátil antes
do início da Grande Revolta em 66 d.C. foi provavelm ente entendida pelos
cristãos prim itivos como "guerras e rebeliões" (Lc 21.9).
254
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
As descrições sinóticas
da destruição do templo
Lucas 21.20 M arco s 13.14 M a teu s 24.15,16
Q u an d o virem "Quando vocês virem 'o sacrilégio "Assim, quando vocês virem 'o
Jerusalém rodeada te rríve l' no lugar onde não deve sacrilégio te rríve l' do qual falou
de exércitos, vocês esta r - quem lê f entenda - então, o profeta Daniel, no Lugar San
sab erão q u e a sua os que estiverem na Judéia fujam to - quem lê, entenda - então, os
d eva sta ção está para os m ontes", que estiverem na Judéia fujam
próxim a. para os m ontes".
dos judeus da cidade já era uma realidade. Ele vê as palavras de Jesus no contexto
de uma realidade social/histórica de curto prazo que ele conhece. A história não
terminou com a destruição do templo. Aquilo era uma indicação do início da era
da igreja, que continuaria em sua missão durante o futuro previsível.
Lucas também altera o uso que Marcos faz de Daniel. Marcos cita a frase de Daniel
sobre a “abominação desoladora” (Dn 9.27; 11.31 ARC; 12.11 ARC; veja 1 Mac.
1.54). Isso se referia originalmente à profanação do templo por Antíoco IV Epifâ-
nio em 167 a.C.. Fora a narrativa de Marcos, “quem lê, entenda” cria um intertexto
para o leitor entre a profanação de Antíoco e a futura desolação do templo de Jeru
salém. Antíoco erigiu um altar a Zeus no templo e ofereceu sacrifícios pagãos ali.
A destruição vindoura, Marcos sugere, será do mesmo tipo.
Lucas evita citar o texto de Daniel, possivelmente porque ele não vê a destruição
em termos do fim dos tempos, uma conclusão que se pode chegar do uso de
Daniel 9.27. Ao contrário, a destruição de Jerusalém é vista por Lucas como o
cumprimento de tudo o que foi escrito (Lc 21.22). Lucas enfatiza o profundo
ceticismo de Jesus quanto ao potencial de Jerusalém de aceitar o Filho do Homem
255
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
2.28 21.9
4 .1 2 ,2 1 13.19
5.20 12.23
7.22 21.8
8 .1 6 1.19
9.21 1.19
9.24 10.43
9.26 21.24
12.2 24.15
12.7 21.24
256
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
sobrevindo ao mundo; e os poderes celestes serão abalados (v. 26). Tudo isso
fala de uma confusão que acompanhará a queda de Jerusalém.
A linha entre a realidade social/histórica de curto prazo da Palestina do primeiro
século e o dia futuro do Senhor torna-se obscura nos versículos 27-33. Então se
verá o Filho do homem vindo numa nuvem com poder e grande glória. Qua-
nestará próxima a redenção de vocês (v. 27,28).
A imagem do Filho do homem vindo numa nuvem deriva de Daniel 7.13,14. É
difícil entender como isso pode aplicar-se à destruição de Jerusalém. Então, talvez,
a visão de Jesus volta-se para um tempo futuro. No mundo histórico de Lucas, a
redenção e a volta do Filho do Homem não ocorrerão até o fim do longo drama
da história da salvação, com a Igreja sendo o seu principal personagem (At 1.8). O
esquema geral da narrativa de Lucas exige um tempo de intervenção entre a des
truição do templo e o fim dos tempos.
257
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
H 34-38 Os versículos 34-36 são uma exortação à prontidão. Isso reflete a pará
bola dos que aguardam o retorno do seu senhor de uma festa de casamento em
12.35-40. O acontecimento é descrito como aquele dia (v. 34, hêmera ekeinê, tam
bém usado com significação apocalíptica de Sodoma em 10.12). Bem-aventurados
são aqueles que o senhor encontra alerta em seu retorno. “Estejam também vocês
preparados, porque o Filho do Homem virá numa hora em que não o esperam”
(12.40). Na aplicação da parábola em 12.41-48, Jesus disse que o servo que está
preparado para a volta de seu senhor receberá o domínio sobre a casa (“^ 12.44;
veja 16.10-13; 18.29,30; 19.11-27; 20.9-19).
Semelhantemente, os discípulos que estiverem preparados, em todos os tempos,
para a volta do Filho do Homem não ficarão presos pela libertinagem, bebedeira
e ansiedades da vida (v. 34). Eles estarão sempre atentos (v. 36) para escapar das
calamidades do fim. Aqueles que não o fizerem cairão na armadilha daquele dia.
Os que estiverem de prontidão conseguirão permanecer em pé diante do Filho
do homem (v. 36). Aqueles que consideram a pureza como um hábito de vida não
serão pegos despercebidos pela vinda do Filho do Homem.
Jesus referia-se a si mesmo, frequentemente, como o Filho do Homem, mas com
uma variedade de significados (-> 17.22,23). Essa narrativa é sobre a Sua “volta” no
fim dos tempos. O que passou a ser conhecido, na teologia cristã, como a segunda
vinda do Filho do Homem só poderia ter sido compreendido pelos ouvintes de
Jesus como a vinda do Filho do Homem - a primeira e única. Seus ouvintes não
possuíam um construto de história que os permitisse ver Seu ministério terreno
como o primeiro de dois adventos (2.50; 8.10; 9.45; 18.34).
O que os Seus ouvintes não podiam entender era que avinda do Filho do Homem
em uma nuvem, com grande poder, deveria ser antecedida de uma terrível morte
na cruz, de uma ressurreição e de uma extensa era da igreja para o povo de Deus. O
que eles podem ter entendido como a predição de Jesus quanto ao iminente fim da
história, de fato, era algo completamente diferente - o alvorecer da era da igreja.
258
VI. A PAIXAO, A MORTE E A RESSURREIÇÃO DE JESUS
(22.1-24.53)
Lucas, agora, volta-se para a paixão de Jesus, começando com a Sua última
ceia. A declaração da narrativa da paixão como “a narrativa central da história
cristã” é realmente exata (Brown, 1994, p. vii). A paixão é o conflito conclusivo
dos poderes do reino espiritual (Satanás; 22.3,31) combinado com as autoridades
terrenas (22.2,66; 23.1) contra o Filho do Homem (22.69). Sem ela, as histórias
de Jesus deixariam o evangelho desprovido de seu clímax redentor e de seu poder
escatológico.
A narrativa da paixão relatada por Lucas reflete sua provia visão de Jesus.
Como Brown observou, “Comparando as quatro narrativas da paixão, vemos
uma semelhança geral na sequência narrativa, mas uma considerável diferença em
conteúdo. Cada evangelista organizou o material para destacar uma apresentação
diferente da paixão” (1994, p. 5).
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Jesus e Seus discípulos, agora, reúnem-se para celebrar “a Festa dos Pães sem
Fermento, chamada Páscoa” (v. 1). A Festa da Páscoa acontecia no décimo quarto
dia do primeiro mês do calendário judaico, nisã (março-abril). Ela comemorava o
dia em que o Senhor poupou o povo de Israel quando o anjo da morte matou os
primogênitos dos egípcios (Ex 12—13; Dt 16.1-8).
A Festa da Páscoa foi eventualmente anexada aos sete dias da Festa dos Pães
sem Fermento, uma celebração agrícola da primavera (Ex 12.18). Essas duas festas
são mencionadas como um único evento. A Páscoa era um dos três festivais dos
peregrinos; os judeus eram encorajados a celebrá-los em Jerusalém. Os outros dois
eram a Festa das Semanas (Pentecostes) e a Festa dos Tabernáculos (Dt 16.1-16).
260
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
Os adversários de Jesus
em 19.47,48 e 22.2
L u c a s 1 9 .4 7 ,4 8 L u c a s 2 2 .2
262
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
Qual era a intenção de Jesus com o Seu voto em 22.16? “Não comerei dela [da
refeição da Páscoa] novamente até que [a Páscoa] se cumpra no Reino de Deus”
(NRSV; gr. ou mêphagõ). Os copistas posteriores evidentemente inseriram ouketi
em vez de ou sob a influência de Marcos 14.25. Isso explica a familiar tradução:
Não comerei dela novamente (ênfase adicionada; veja Metzger, 1975, p. 173).
A Ceia do Senhor transforma a refeição da Páscoa em um segundo êxodo com o
tema de um banquete escatológico. O pleno poder redentor do êxodo finalmente
será realizado no Reino de Deus - um evento iniciado, mas não totalmente realiza
do. Semelhantemente, Jesus não beberá do fruto da videira até que venha o Reino
de Deus (Lc 22.18).
Jesus recusou o cálice que lhe foi oferecido na cruz (Mc 15.23; veja Lc 23.36). O
ponto essencial é que a Páscoa será cumprida na morte de Jesus, isto é, nesta Páscoa,
representada como a verdadeira expressão do significado original da Páscoa. A to
tal importância daquela noite, há muito tempo no Egito, é então revelada quando
Lucas reconta a história - a salvação é para todos, para os quais o sangue deste
cordeiro é derramado agora. O cordeiro pascal finalmente é compreendido nos
termos de Jesus, o Cordeiro de Deus. Logo, os Sinóticos reinterpretam a Páscoa
histórica original como um tipo desta verdadeira Páscoa espiritual.
Tendo tomado o pão, Jesus o reparte Isto é o meu corpo dado em favor de vocês;
façam isto em memória de mim (v. 19). Lucas suplementa essa fonte sinótica.
Marcos 14.22 diz, 'Tomem; isto é o meu corpo” (Mt 26.26 diz “Tomem e comam;
isto é o meu corpo”). Aqui, o corpo é dado em favor de vocês (hyper hymõn).
Lucas não associa explicitamente a morte de Jesus com a oferta sacrificial, nem a
identifica como um meio de propiciação para a obtenção do perdão (Conzelmann,
1982, p. 200; compare com Mt 26.28). Contudo, o acréscimo dessa frase, ausente
em Mateus e Marcos, realmente imprime na morte de Cristo uma significância
vicária. E importante dizer que “não há vestígio de qualquer misticismo da pai
xão, tampouco de qualquer significância soteriológica extraída do sofrimento ou
da morte de Jesus” em Lucas (Conzelmann, 1982, p. 200; Marshall [1978, p. 803]
acham que o tema sacrificial esteja presente).
O fato de o corpo de Jesus ser dado pode ecoar na descrição do servo sofredor
em Isaías 53.10 (Beale e Carson, 2007, p. 381). Que o mesmo seja dado em favor
de vocês {hyper hymõn) sugere algum tipo de sacrifício (talvez referindo-se a Lv
5.7; 6.23; Ez 43.21). A frase façam isto em memória de mim ecoa em um tema
primário da Páscoa (Êx 12.14,25-27; 13.3,9,14; Beale e Carson, 2007, p. 381; veja
Green, 1997, p. 762).
O cálice (Lc 22.20) tem significado tanto literal como simbólico: Este cálice é a
nova aliança no meu sangue, derramado em favor de vocês. No nível literal, ele
representa Seu sangue físico que está prestes a ser derramado. No nível simbólico,
265
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
ele representa o sangue do cordeiro morto na Páscoa do Egito, que foi aspergido
nos umbrais das casas israelitas com um ramo de hissopo (Ex 12.22).
O pão simboliza o pão da Páscoa do Egito. Comido apressadamente e, portanto,
sem fermento, esse pão é uma metáfora para a urgente necessidade de livramento
do iminente julgamento de Deus (Ex 12.19,23). Aqui, o pão representa o iminente
julgamento de Deus na cruz. Talvez também antecipe o julgamento da destruição
de Jerusalém (“^ Lc 21). Mais amplamente, a imagem da refeição pascal ressoa
com o tema do banquete messiânico de Lucas 13.29. Jesus esperava que pessoas de
todas as direções se ajuntassem e compartilhassem de uma tremenda refeição no
Reino de Deus.
O sangue refere-se ao sinal de uma nova aliança no meu sangue (v. 20). Essa é a
única referência à nova aliança nos sinóticos. A frase provavelmente entrou no
vocabulário de Lucas por meio do intertexto de Jeremias 31.31. A linguagem da
nova aliança também foi adotada por Paulo como uma referência ao evangelho (1
Co 11.23; 2 Co 3.6).
A mão do traidor de Jesus estava à mesa com Ele (Lc 22.21). Essa presença do mal
à mesa de Deus é uma metáfora para a necessidade da paixão. O supremo bem e o
supremo mal encontram-se lado a lado à mesa. O mal parece vitorioso na morte de
Jesus, mas o bem é justificado na ressurreição.
Todos os escritores sinóticos registram que essa traição era, de fato, parte do plano
divino: O Filho do homem vai, como foi determinado; mas ai daquele que o
trair! (v. 22; Mt 26.24 || Mc 14.21). Lucas sustenta que o mal triunfa somente
segundo a permissão divina e que os homens assumem plena responsabilidade por
suas más escolhas. Os dois dramas misturam-se, o da providência e o da agência
humana. Os homens estão livres para agir, mas a liberdade existe no ambiente da
agência soberana de Deus. Esse é o supremo mistério da encarnação, Deus e a hu
manidade cooperam em um mundo.
H 24-27 Surgiu também uma discussão entre eles, acerca de qual deles era
considerado o maior (v. 24). Jesus novamente enfatiza a importância da humil
dade ("^ 13.29,30). A participação no banquete messiânico será para os humildes,
não para os soberbos (1.52; 12.37; 13.23; 14.11; 18.14). Somente Lucas traz esse
assunto diretamente à cena da Páscoa (no entanto, veja João 13). Ele cria uma irô
nica justaposição do comportamento dos discípulos e da aproximação da morte de
Jesus. Em um versículo, eles perguntam uns aos outros quem dentre eles trairia Je
sus (Lc 22.23, ilustrado na Última Ceia, de Da Vinci), e, no próximo, eles discutem
sobre quem é o maior dentre eles (v. 24; 9.46).
Há um desgaste do espírito humano surgindo na narrativa: a linguagem de vingan
ça (21.22), sofrimento (22.15), traição (22.22,34), porfias (22.24), prisão e morte
(22.33). O eixo do mundo histórico está começando a oscilar fora do centro, na
266
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
escuridão da noite de Páscoa. A lealdade a Deus que Jesus enfatizou será testada em
Seus discípulos e eles serão achados em falta.
H 28-30 Uma sensação de crescente caos começa a surgir em Lucas 22.28-34.
A justaposição da soberba
e da humildade em Lucas
Lucas Lucas Lucas Lucas Lucas
9.46-48 12.37 13.23-30 14.8-11 22.24-27
267
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Esse caos torna-se um teste de lealdade para os discípulos de Jesus em três vinhetas.
Na primeira cena, o Reino é designado aos discípulos (v. 28-30). Eles passaram no
teste e apoiaram Jesus nas tentações dele (v. 28). Os discípulos desapontaram Jesus
repetidamente com a falta de fé, com a incapacidade de entender e com a soberba
infundada. Mas, ainda assim, eles persistiram no caminho (8.24,25; 9.40,45,54-
56; 18.34).
A análise de Jesus, aqui, é semelhante àquela que Ele fez de Pedro e de seus com
panheiros mais cedo na narrativa (18.28-30). Aqui, na sombra da Páscoa, chegou
a hora de o Reino ser conferido aos imperfeitos companheiros de Jesus. Eles irão
comer e beber à minha mesa no meu Reino e sentar-se em tronos, julgando as
doze tribos de Israel (22.30; 13.29; com alusões intertextuais a Daniel 7 e Salmo
122).
Esta atribuição de autoridade divina aos discípulos é a culminação da chamada de
les (Lc 5.1-11; 6.12-14) eo processo pelo qual eles tornam-se o círculo íntimo do
movimento (10.23-24; 18.29-30). É uma preparação necessária para a passagem
da liderança de Jesus aos Seus seguidores na Sua morte. O simbolismo dos Doze
recém-comissionados juízes de Israel é a restauração da estrutura prístina que Deus
dera à Sua nação no início de sua vida nacional (Gn 19.1-28). Eles não só irão
julgar Israel, mas também se assentarão à grande mesa do banquete (veja Evans e
Sanders, 1993, p. 154-170).
Olhando para trás, Lucas faz alusão à mesa da Comunhão da qual todos eles acaba
ram de levantar-se. Olhando adiante, ele aponta para o banquete escatológico do
Reino de Deus (veja Lc 13.29,30) e, depois, para as refeições da pós-ressurreição
com Jesus. A consumação do ministério de Jesus significa que é hora de participar
do banquete.
■ 31-34 A segunda vinheta traz Pedro de volta à proeminência. Pedro tem um
tratamento especial como personagem dessa história. Ele mantém longas conver
sas com Jesus como líder representativo dos discípulos e tem a confidência particu
lar de Jesus ao longo do ministério (5.3-11; 9.28-33; 22.54-61). Essa proeminên
cia ressurge aqui, na negação de Pedro (22.54-62), em sua visita ao túmulo vazio
(24.12) e na aparição individual do Senhor ressuscitado a ele (24.34).
Pedro trabalha como o líder representativo dos discípulos. Jesus dirige-se a ele:
Simão, Simão, Satanás pediu vocês para peneirá-los como trigo. Mas eu orei
por você, para que a sua fé não desfaleça. E quando você se converter, fortale
ça os seus irmãos e suas irmãs (22.31-32). Satanás pediu para peneirar todos os
discípulos (vocês, plural, hymas) como trigo. Mas Jesus ora especificamente para
Pedro (você, singular, sou) como o líder de seus companheiros de fé.
A frase peneirá-los como trigo significa algo como “despedaçar alguém” (Bock,
268
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
1994, p. 353). A declaração de Pedro quanto à sua prontidão para morrer traz
a predição de Jesus de que ele o negaria três vezes (22.54-62). A ironia é que os
recém-comissionados supremos juízes das 12 tribos de Israel, imediatamente, caem
vítimas da fraqueza humana. Jesus antecipa tanto a iminente falha de Pedro como
seu subsequente arrependimento (converter-se ao seu Senhor). Simão exemplifica
o tema do arrependimento e do perdão característico desse Evangelho (-^ 17.4).
■ 35-38 Na terceira vinheta, Jesus evoca a memória da missão dos setenta e dois
(22.35-38; 9.1-6; 10.1-12): Quando eu os enviei sem bolsa, saco de viagem
ou sandálias, faltou-lhes alguma coisa? (22.35). Os discípulos não passaram por
nenhuma necessidade física. A partir disso, aprenderam que a aprovação e a provi
são divinas eram suficientes para a missão deles.
Apesar disso, eles passaram por conflitos. Esse é o ponto ao qual Jesus retorna nesta
vinheta. Não, eles não passaram necessidade. Mas agora (v. 36), Jesus diz-lhes, a
situação será diferente: Eles deveriam esperar conflitos mais severos. O conflito
que inicialmente entrou na narrativa em 4.16-30, agora, encontra sua culminação
na narrativa da paixão. Quando os novos juízes de Israel assumem a liderança, eles
recebem a promessa de uma vida difícil.
Eles precisam fazer duas coisas em preparação para o novo estágio: Mas agora, se
vocês têm bolsa, levem-na, e também o saco de viagem; e se não têm espada,
vendam a sua capa e comprem uma (22.36). Contudo, eles precisam fazer uma
provisão financeira a fim de manter a missão na ausência de Jesus ("^ 8.3). Essas
questões práticas continuarão em Atos (2.43-47; 4.32; 6.1-2). O Jesus de Lucas
prepara Seus seguidores para essas situações. Isso é mais uma evidência de que Lu
cas via Jesus não apenas como um profeta, mas também como o fundador do mo
vimento cristão (“^ Lc 10.1-7, No texto).
Jesus exortou Seus discípulos a vender suas capas para comprar uma espada. A maio
ria dos comentaristas vê a compra da espada como um símbolo (Fitzmyer, 1985, p.
1432; Johnson, 1991, p. 347), uma indicação das tentações que viriam adiante, uma
“convocação ao preparo para a dureza e para o sacrifício” (Marshall, 1978, p. 825).
No nível metafórico, a referência à espada para os discípulos pode representar a
nova posição simbólica deles, julgando as doze tribos de Israel (22.30). A função
de Deus como juiz, às vezes, é referida simbolicamente em “Sua espada” (SI 7.12; Jr
12.12; Rm 13.4). Os discípulos, agora, trabalharão como juízes munidos de espa
das na nova ordem. Duas outras observações suportam a leitura metafórica.
Primeiro, em nenhum lugar no corpo do ensinamento de Jesus existe um convite
à resistência armada. Logo, a exortação aos discípulos não pode ser vista com uma
virada do entendimento geral do pacifismo de Jesus. Quando é preso no jardim,
Jesus rejeita a violência como reação a Sua prisão (Lc 22.51,52).
269
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Segundo, a maioria dos comentaristas entende que a reação de Jesus, quando eles
apresentam-lhe duas espadas, é de exasperação e não de aprovação: Basta! (hika-
non estin). Os discípulos ainda falham em entender a natureza da iminente conde
nação. Eles ainda estão preparados para usar a espada literalmente a fim receberem
o reino, mas Jesus repreende-os. Eles continuarão sem entender os propósitos dele.
O Jesus de Lucas enxerga a iminente paixão pelas lentes de Isaías 53. Ele cita uma
parte de Isaías 53.12: Está escrito: ‘E ele foi contado com os transgressores’ e eu
lhes digo que isso precisa cumprir-se em mim (Lc 22.37; compare com 24.26).
Essa é a única ocasião nos Evangelhos em que Jesus descreve-se diretamente como
o homem de dores de Isaías 53 (veja Lc 22.19; veja também Mt 8.17).
Essa declaração pode ser entendida como uma alusão aos criminosos com quem
Jesus será crucificado (Lc 23.22), mas também poderia ser uma referência à autoi-
dentificação de Jesus com os pecadores (Green, 1997, p. 776). Isso alinha-se bem
com o tema geral de Lucas. Jesus expressa a conscientização de que a Sua crucifi
cação era, de certa forma, representativa para aqueles que eram de Sua principal
preocupação (5.31,32).
discípulo, aquele a quem havia concedido uma posição especial e sobre o qual havia
colocado a responsabilidade da liderança (v. 57-60).
A traição no âmbito privado já é dolorosa nas relações humanas, mas a traição em
público é humilhante. Jesus estava sofrendo isso agora. E um amargo fim ao qual o
Seu pequeno grupo chegou. E o final da passagem captura isso com a angústia de
Pedro: Saindo dali, chorou amargamente (v. 62). A humilhação pública de Jesus
fica em alto-relevo contra a cálida luz do cenáculo, do qual os discípulos e Jesus
tinham acabado de sair. Seus capturadores zombavam dele, batiam nele, vendaram
Seus olhos e desafiavam-no a profetizar acerca de quem lhe batia (v. 64, 65). As
palavras de Jesus aos Seus inimigos interpretam aquela cena, Mas esta é a hora de
vocês - quando as trevas reinam (v. 53).
também nas questões governamentais legais, desde que não invadisse a autorida
de do procurador romano” (Bauer, Arndt e Gingrich, 1957, p. 793). Esse é um
esclarecimento suficiente sobre esse grupo para uma análise narrativa.
O mundo histórico de Lucas tem um personagem principal que surge da com
pleta obscuridade para uma audiência com a maior corte religiosa à sombra do
templo. Jesus sai da obscuridade para a fama e para a infâmia. E uma rejeição real
mente oficial que Ele sofre nas mãos de Seus adversários agora.
Os eventos da ocasião da prisão de Jesus são uma jornada do mundo particular
para o mundo público. A narrativa começa na intimidade do cenáculo, onde Ele
prediz a Sua traição (Lc 22.14-23). A cena avança para a Sua captura no monte
das Oliveiras com uma “multidão” composta de um pequeno grupo de “chefes dos
sacerdotes, de oficiais da guarda do templo e de líderes religiosos” (Lc 22.52). Mas,
a prisão de Jesus ainda estava bem longe dos olhos do povo (22.47-53).
O cenário faz a transição para a casa do sumo sacerdote (22.54), onde há uma
reunião em particular de Jesus com “os chefes dos sacerdotes e com os mestres da
lei” (22.66). A decisão de prosseguir contra Jesus é feita nessa reunião (22.71). O
público mais amplo ainda não havia visto Jesus sob custódia, mas agora o sol já
havia nascido (22.66) e isso quer dizer que Sua captura começa a tornar-se pública.
Depois, virá a audiência pública diante de Pilatos, que novamente tem a pre
sença dos “chefes dos sacerdotes e do povo” (23.4). João enfatiza que esse evento
ocorreu bem em frente ao palácio de Pilatos, já que os oficiais judeus não queriam
incorrer em impureza ritual no dia de um festival (Jo 18.28,29). Somente Lucas
diz que Pilatos enviou Jesus a Herodes, aumentando novamente a natureza pública
da disputa (Lc 23.6-11).
Finalmente, a ação contra Jesus torna-se completamente pública na assem
bleia de Pilatos com “os chefes dos sacerdotes, as autoridades e o povo” em Lucas
23.13. Aqui, a cena passa para as deliberações mais judiciais das sessões privadas
para as cenas dominadas pelas multidões enfurecidas, que pressionou até que Jesus
fosse sentenciado à morte finalmente (23.13-25).
Esse movimento do privado para o público tem um movimento correspon
dente da atmosfera contemplativa do cenáculo para o caos da multidão enfurecida
- um caos que se torna o lúgubre etos da narrativa da paixão. Há também uma cor
respondência com a luz física quando a cena passa do cair da noite do sábado para
a luz da manhã na qual as acusações tornam-se públicas. O desfecho é ao meio-dia
do dia seguinte, quando toda a terra novamente entra em escuridão.
274
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
NO TEXTO
Primeiro, na opinião de Pilatos, Jesus não era culpado de incitar o povo à rebelião
(v. 14). A conclusão similar de Herodes apoia esse ponto de vista (v. 15). Herodes
não fica convencido de que a acusação acerca de Jesus ser um enganador é bastante
substancial para garantir-lhe a pena de morte. Logo, Pilatos indica que Ele será
açoitado e solto (v. 16).
Segundo, em resposta ao clamor do povo pela soltura de Barrabás, Lucas registra
que, desejando soltar aJesus, Pilatos dirigiu-se a eles novamente. (v. 20). É aqui
que a multidão clama pela crucificação: “Crucifica-o! Crucifica-o!” (v. 21). Essa
é a primeira vez que a pena de morte de Jesus é explicitamente mencionada na
narrativa da paixão (compare com Mt 23.34, a outra ocorrência nos sinóticos além
desta).
Terceiro, Pilatos finalmente exige: “Por quê? Que crime este homem cometeu?
Não encontrei nele nada digno de morte. Vou mandar castigá-lo e depois o
soltarei” (v. 22; Brown, 1994, p. 727,728 pesquisa as possíveis razões de Pilatos
ter refutado tão prontamente as acusações judaicas: Ele considerava as acusações
inadmissíveis ou nulas na perspectiva romana ou não via Jesus como um salteador,
cancelando as acusações imediatamente, ou acreditava que as acusações eram base
adas em evidências falsas).
Essa vindicação tripla do julgamento de Pilatos parece, ao leitor, absolver as auto
ridades romanas da responsabilidade da morte de Jesus. Talvez isso fosse parte do
propósito de Lucas. Enquanto todos os Evangelhos sinóticos fazem o mesmo, o
acréscimo de Lucas 23.6-17 reforça a ilustração geralmente positiva de Pilatos. Os
leitores estão perfeitamente conscientes de que a responsabilidade dele para com o
tratamento justo de um homem que nada fez que mereça a morte (v. 15) é muito
mais absoluta.
Pilatos convenientemente cede à vontade do povo a fim de acalmá-lo: Eles, po
rém, pediam insistentemente, com fortes gritos, que ele fosse crucificado; e a
gritaria prevaleceu. Então Pilatos decidiu fazer a vontade deles (Lc 23.23,24).
O que a narrativa oferece em uma mão para vindicar Pilatos, ela tira com a outra
mão imediatamente.
No final, todos os poderes alinham-se contra Jesus para selar a Sua sorte: Os
poderes do diabo (22.3), as autoridades locais do sumo sacerdote e dos anciãos
(22.2,52,66; 23.1,13), a multidão totalmente contra o profeta (23.18), o tetrarca
Herodes (23.11) e Pilatos, o representante do governo romano, o qual é cúmplice
por sua fraqueza judicial (23.23). Todos esses poderes estavam presentes e concen
trados naquele momento caótico diante de Pilatos, uma cena de verdadeira violên
cia da multidão.
278
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
A PARTIR DO TEXTO
Essas forças espirituais, religiosas e políticas têm sido os temas constantes da
narrativa. Ainda assim, até quando todas elas são liberadas no mesmo momento,
sua convergência é ilustrada pelo narrador como algo que se encontra dentro do
plano divino. E esse momento que a teologia precisa explicar. Nós queremos sa
ber como a vontade humana e a intenção divina interagem-se. Um criminoso sai
livre e um homem inocente é levado para a crucificação, como o povo deseja. Isso
parece ser a antítese da mão condutora de Deus, mas, de fato, essa é a Sua perfeita
vontade. Os propósitos de Deus são realizados por meio de atores humanos. Será
que eles são livres e completamente responsáveis por suas ações ? Ou será que eles
são marionetes no plano divino e absolvidos de qualquer culpa? Dentro dessa mis
teriosa contradição, existe um santo entrosamento entre Deus e os homens.
Significativamente, Jesus, como o Filho de Deus, participa plenamente desse
mistério. Ele entrega-se voluntariamente à cruz (“não a minha vontade”), mas faz
isso no contexto da vontade divina (“mas a tua vontade” [22.42]). Esse é o supremo
ato de amor, perfeitamente livre e, ao mesmo tempo, contudo, perfeitamente obe
diente. Jesus voluntariamente entrega-se ao caos sabendo que estava no controle
de tudo.
D. A crucificação (23.26-56)
H 26-31 A narrativa da crucificação em Lucas está baseada primariamente no
relato de Marcos, a narrativa básica para Mateus e Lucas (veja Brower 2012). Lu
cas omite diversas características da cena da crucificação que estão presentes nos
outros sinóticos:
• A cena “Eis o homem” de Mc 15.17-20 || Mt 27.28-31.
• Pilatos lavando as mãos em Mt 27.24-26.
• A zombaria dos soldados dentro do Pretório em Mc 15.16-20 11Mt 27.27-
31.
• A referência escarnecedora dos caluniadores de Jesus quanto à afirmação
da destruição do templo em três dias em Mc 15.29^,30 || Mt 27.40.
• Lucas também acrescenta três novas características ao cerne da narrativa:
• O breve discurso de Jesus sobre as filhas de Jerusalém enquanto Ele cami
nha em direção ao local da execução (Lc 23.27-31).
• As palavras do segundo criminoso que foi crucificado com Ele naquele dia
(v. 40-43).
279
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
os montes, os que e d is s e - lh e s :
"Jerusalém, Jeru isso está oculto aos
estiverem na cidade " F il h a s d e J e r u
salém, você, que seus olhos. Virão
saiam, e os que s a lé m , n ã o c h o
mata os profetas dias em que os seus
estiverem no campo r e m p o r m im ;
e apedreja os que inimigos construirão
não entrem na cida ch o re m p o r
lhe são enviados! trincheiras contra
de. Pois esses são vocês m esm as e
Quantas vezes você, a rodearão e
os dias da vingança, p o r s e u s f ilh o s !
eu quis reunir os a cercarão de todos
em cum prim ento de P o is c h e g a r á
seus filhos, como os lados. Também a
tudo o que foi escri a h o ra em q u e
a galinha reúne lançarão por terra,
to. Como serão ter v o c ê s d ir ã o :
os seus pintinhos você e os seus
ríveis aqueles dias 'F e liz e s a s e s t é
debaixo das suas filhos. Não deixarão para as grávidas e r e is , o s v e n
asas, mas vocês pedra sobre pedra, para as que estive tre s q u e n u n ca
não quiseram! porque você não re rem am amentando! g eraram e os
conheceu a oportu Haverá grande s e io s q u e n u n c a
Eis que a casa
nidade que Deus lhe aflição na terra e ira a m a m e n ta ra m !'
de vocês ficará
concedeu” . contra este povo. " 'E n t ã o d ir ã o
deserta. Eu lhes
Cairão pela espada à s m o n ta n h a s :
digo que vocês
e serão levados " C a ia m s o b r e
não me verão
como prisionei n ó s !" e à s c o li
mais até que
ros para todas as nas: "C u b ra m -
digam: 'Bendito
nações. Jerusalém - n o s ! " ' P o is , s e
o que vem em
será pisada pelos f a z e m is t o c o m
nome do Senhor'
gentios até que os a á rvo re ve rd e ,
cumpram. rá q u a n d o e la
e s t iv e r s e c a ? "
281
LUCAS 9-24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
propósito de Sua missão: Pois o Filho do homem veio buscar e salvar o que es
tava perdido (19.10).
H 44-49 Na hora sexta, ou seis horas após o alvorecer, por volta de meio-dia,
houve trevas em toda a terra (23.44 ARC). O dia da Páscoa começou ao cair
da noite (22.7). Os eventos da prisão de Jesus desenvolveram-se durante a escuri
dão da noite, uma metáfora para as trevas espirituais nas quais a história sucumbe.
Quando os chefes dos sacerdotes e os guardas do templo prenderam Jesus no jar
dim, Ele disse: “Mas esta é a hora de vocês - quando as trevas reinam” (22.53).
Esse tema reaparece nas trevas do meio-dia sobre a terra, pois o sol deixara de bri
lhar (23.45; veja 21.25,26). A morte do Messias está envolta em trevas espirituais
e trevas físicas. O mundo espiritual é lançado em seu mais profundo desespero, as
luzes do seu firmamento extinguiram-se.
Antes de Jesus morrer, Ele exclamou: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espíri
to”. Tendo dito isso, expirou (23.46). Assim como foi profetizado em Lucas 9.44,
Jesus seria traído pelas “mãos dos homens” (NRSV). Agora, Ele passou das mãos
dos homens para as mãos de Deus. Logo, a história deixa o ministério humano de
Jesus e entra em Seu ministério divino debaixo do completo domínio do poder de
Deus.
E o véu do santuário rasgou-se ao meio (23.45^). Isso pode ser um símbolo de
Deus saindo da centralidade do templo no futuro da missão de Jesus (Green, 1997,
p. 826) ou uma predição da destruição do templo (Marshall, 1978, p. 875). Con
tudo, talvez signifique a passagem de Jesus do espaço humano para o espaço trans
cendente. Essas duas realidades, terrena e celestial, são momentaneamente unidas
e Jesus passa silenciosamente pelo véu.
O centurião que observa o último suspiro de Jesus proclama que aquele homem
era justo (dikaios, v. 47). Marcos e Mateus relatam que ele proclamou que Jesus
era o “Filho de Deus” (Mc 15.39 || Mt 27.54). Lucas é reticente em colocar a frase
“Filho de Deus” nos lábios dos seguidores de Jesus (compare, ex.: Mt 16.16 com
Lc 9.20). Em Lucas, a frase “Filho de Deus” é usada pelo diabo e pelos demônios
(4.3,9,41; 8.28) e pelas autoridades no interrogatório em Jerusalém (22.70). Lucas
ameniza a tradição de Marcos e Mateus que colocam a confissão de Jesus como o
Filho de Deus nos lábios do centurião.
Será que isso faz parte do propósito consciente de Lucas? Isso é consistente com
sua abordagem narrativa nesse sentido - a identidade de Jesus é conhecida somente
em Seu círculo íntimo. Os que estão fora desse círculo não podem conhecer Jesus
como o Messias. Em Lucas, Jesus não é o Messias notório até que o Espírito desce
sobre Seus discípulos publicamente em Atos 2. Lucas e Atos são verdadeiramente
uma obra de dois volumes em estrutura e conteúdo.
283
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Quando Ele encontrou-se pela primeira vez com “os Onze”: “E disse-lhes:
“Foi isso que eu lhes falei enquanto ainda estava com vocês: Era necessário que se
cumprisse tudo o que a meu respeito está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e
nos Salmos”. Então lhes abriu o entendimento, para que pudessem compreender
as Escrituras” (v. 44,45). Lucas apresenta um entendimento muito mais desenvol
vido da natureza da influência pós-ressurreição de Jesus dentro da comunidade do
que os outros evangelistas. O Senhor ressurreto torna-se um mestre ressurreto que
reinterpreta a Escritura histórica do judaísmo à luz de Sua crucificação e de Sua
ressurreição.
Existe uma explícita releitum da tradição profética por intermédio de Jesus
ressurreto no capítulo 24. Nesse novo entendimento do AT, as predições da vida
de Jesus são revisitadas e examinadas. O significado das passagens que tinham sido
entendidas estritamente no contexto da história de Israel é relido como referências
prolépticas à vida do Messias sofredor. Jesus já os ensinara essas coisas — “Foi isso
que eu lhes falei enquanto ainda estava com vocês” (v. 44)—, mas agora elas fazem
sentido quando são reiteradas por Jesus ressurreto.
Essa reinterpretação da Escritura é de tal importância que o propósito da Lei de
Moisés, dos Profetas e dos Salmos (v. 44) é repensado. Agora, eles devem ser en
tendidos como escrituras que predizem a vida de Jesus enquanto contam a jornada
de Israel com o Senhor. Eles são lidos através de novas lentes messiânicas, que são
esclarecidas pela paixão e pela ressurreição de Jesus. Não é de admirar que os judeus
do primeiro século rebatessem essa prática exegética cristã.
O tratamento extensivo de Lucas acerca desse assunto, sem dúvida, refletia
debates em andamento em sua comunidade cristã com a sinagoga judaica na parte
final do primeiro século. Lucas, na verdade, introduziu um princípio hermenêutico
de longo alcance para a nova igreja. As Escrituras adquiriram um nível de significa
do completamente novo - um nível messiânico de significado. E essa releitura das
Escrituras é autenticada pela prática do próprio Jesus ressuscitado.
Essas observações esclarecem-nos sobre o propósito de Lucas criar sua obra em
dois volumes. O interesse dele certamente era registrar os eventos da vida de Jesus
com a maior precisão possível (1.1-4). Porém, seu propósito maior era contar esses
fatos no contexto de uma igreja que estava relendo sua Bíblia. Em Atos, ele volta-se
para um extensivo tratamento de como a história de Jesus leva ao surgimento da
nova comunidade cristã. Essas referências à nova fundação exegética colocada pelo
Jesus ressuscitado preparam o leitor para a reinterpretação mais ampla das Escritu
ras judaicas que virá em Atos (ex.: 2.16-21,25-28,34,35; 4.11,25,26 etc.).
O reconhecimento prolongado da “história da salvação” em Lucas não é visto
tão claramente em nenhum outro lugar como no capítulo 24. Dos quatro evan-
286
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
H 1-4 Após a crucificação, as mulheres que voltaram da Galileia com Jesus viram
onde o Seu corpo havia sido colocado (Lc 23.55). Depois do mandatório dia de
descanso de Sábado (veja Ex 20.8-11; Dt 5.12-15), elas voltaram com as especia
rias aromáticas que haviam preparado para embalsamar o corpo (Lc 24.1).
O fato de que as mulheres deveriam observar o dia de descanso, “em obediência ao
mandamento” (23.56), mostra que a nova comunidade retinha sua ligação com a
Lei. O Evangelho de João relata que o tratamento do corpo com especiarias estava
“de acordo com os costumes judaicos de sepultamento” (Jo 19.40). O outro único
uso bíblico da palavra especiarias (arõmata) em relação ao sepultamento é em co
nexão com a morte do rei Asa em 2 Crônicas 16.14.
Encontraram removida a pedra do sepulcro, mas, quando entraram, não en
contraram o corpo do Senhor Jesus (Lc 24.2,3). A designação Senhor Jesus é
usada para o Cristo ressurreto somente aqui, mas é um título usado frequente
mente em Atos (18 vezes). Achando o túmulo vazio, elas ficaram “perplexas” (v.
4 NRSV). Encontrar o túmulo vazio era contrário às expectativas delas. Aquelas
mulheres não haviam compreendido plenamente o que Jesus havia ensinado (veja
v. 7). De repente, dois homens com roupas que brilhavam como a luz do sol
colocaram-se ao lado delas e as relembraram das palavras de Jesus (v. 4; 9.28-
36). Os dois discípulos no caminho de Emaús caracterizaram a experiência das
mulheres como “uma visão de anjos” (Lc 24.23).
Os seres celestiais no versículo 4 são semelhantes aos mensageiros que haviam apa
recido em significantes pontos de transição na narrativa (1.11,28; 2.9; 9.29 || Mt
287
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Jesus e saíram do túmulo vazio como as primeiras testemunhas humanas das novas de
que Jesus havia sido ressuscitado dos mortos. Em contraste, os homens continuavam
demonstrando dúvida e medo. Com um fino senso de ironia, os homens descartam
o testemunho das mulheres como se fosse uma perplexa loucura (24.11; veja v. 22).
Pedro, o arruinado líder dos discípulos, correu até o túmulo e voltou admirado
com o que acontecera (Lc 24.12). A covardia (22.60) e a descrença (24.11,41,
apisteõ) dos discípulos começam a virar perplexidade. O restante da história de
Lucas sobre a ressurreição impulsionará esse tema adiante, inicialmente, pelo es
clarecimento dos dois discípulos no caminho de Emaús (nos versículos 13-35) e,
depois, com o aparecimento de Jesus diante dos discípulos nos versículos 36-56.
Essas aparições são unidas por um tema de releitura dos profetas, pelos quais a
morte do Messias havia sido prevista.
NO TEXTO
H 13-14 No fim da tarde, “no primeiro dia da semana” (v. 1), dois discípulos
estavam caminhando as sete milhas (dez quilômetros) no sentido oeste, de Jerusa
lém para Emaús (v. 13; veja v. 29). Essa é uma cena na qual o significado escondido
da vida e da morte de Jesus é finalmente revelado aos discípulos. Há tanto revelação
como resolução nesta cena evocativa. Os discípulos estavam consternados e confu
sos desde a execução (23.48; 24.4,5,11). Agora, eles refletem nos eventos da última
semana da vida de Jesus e tentam compreender o que havia acontecido.
Essa aparição pós-ressurreição é registrada apenas em Lucas. Ela tem todas as mar
cas de seu estilo característico - uma história maravilhosamente literária, cheia de
emoção e de confusão interior, seguida de esclarecimento, alegria e júbilo. Ela é
“cheia de motivos teológicos lucano” (Fitzmyer, 1985, p. 1557-1560) — geográfi
co, revelador, cristológico, cumprindo profecias do AT e Eucarístico.
Cleopas e seu companheiro anônimo (24.18) conversavam a respeito de tudo
o que havia acontecido (v. 14). Um estranho junta-se à caminhada dos dois
discípulos enquanto eles discutem os eventos da paixão de Jesus em termos
gerais. Eles descrevem os eventos ao estranho — o Jesus ressuscitado, mas ainda
289
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
irreconhecível — como as “coisas que ali aconteceram nestes dias” (v. 18). A paixão
é um conjunto de acontecimentos que requer uma interpretação como um todo. A
narrativa provê essa interpretação. Os leitores são privilegiados por saberem coisas
que os personagens da história não sabem (-^ 2.34,35; 7.18-35, 8.4-15, Por trás
do texto).
Após a segunda predição da paixão de Jesus (em 9.43b-45), Lucas caracteriza os
discípulos: “Mas eles não entendiam o que isso significava; era-lhes encoberto, para
que não o entendessem” (9.45; veja também 18.34). Aqui, os viajantes no caminho
para Emaús são acompanhados por Jesus, mas “foram impedidos de reconhecê-lo”
(24.16). Nos versículos 13-35, os leitores sabem o que realmente aconteceu — não
no futuro, mas no passado. Logo, eles presumem uma posição onisciente a respeito
da história.
É assim que Lucas molda os paradigmas ou a retórica da percepção (segundo Darr,
1992, p. 30,50-59). Qualquer um que tivesse as boas novas não podia esperar para
compartilhá-las, e assim é com os leitores do capítulo 24. Ficamos jubilosos e ma
ravilhados com as notícias da ressurreição e ansiamos ver esse esclarecimento alvo
recer em nossos personagens também. Lucas inclui alegria e expectativa na experi
ência da leitura. Os leitores tornam-se participantes da história, interagindo tanto
com o autor como com os personagens.
Os discípulos desenvolvem um diálogo um com o outro (v. 14,15,17,23), de
pois, com o desconhecido Jesus (v. 27,29) e, finalmente, com os outros discípulos
em Jerusalém (v. 35). O que eles percebem e pensam progride da ignorância (v.
16,17,18,24,25) à perplexidade (v. 22,23). Então, depois do partir do pão (v. 30),
eles encontram o esclarecimento (v. 31,32,34). Durante esse processo de diálogo e
pensamento, eles recebem a instrução do texto sagrado (v. 25,27,32).
Há dois pontos de virada na história. Primeiro, a declaração dos discípulos: “nós
esperávamos que” Jesus fosse “trazer a redenção a Israel” (v. 21). Isso cria a transi
ção da conversa quieta entre os discípulos e a repetição da história deles para Jesus.
Segundo, o coração da narrativa é a cena do partir do pão, na qual o esclarecimento
ocorre para os discípulos (v. 30). Embora Jesus ensinasse as Escrituras antes de eles
tornarem-se esclarecidos (v. 25,27), os olhos deles não foram “abertos” até que o
pão fosse partido.
290
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
Nesta cena, existe um padrão de ideias e expressões que evocam a emoção nos leito
res: primeiro, uma sensação de desorientação, tristeza e tolice; depois, de revelação
e descoberta por meio do diálogo. Lucas usa expressões acerca de:
• O diálogo sobre esses eventos e ideias
• Percepção e cognição
• Referências às Escrituras, que são sujeitas à exegese na cena
C onversavam e d iscu
15 tia m
m as os olhos deles fo ra m
16 im p e d id o s de reconhecê-lo.
291
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
34 0 Senhor ressuscitou e
apareceu a Simão!
O final mais abreviado dos Evangelhos de Marcos e Mateus termina a história com
as aparições da ressurreição, mas não com a ascensão. Lucas fornece relatos não
só da ressurreição e da ascensão, mas também de uma narrativa pós-ressurreição
sobre como os discípulos deveriam entender a crucificação. Eles recebem estrutura
e perspectiva bíblicas do Senhor ressurreto pelas quais eles podem “interpretar” os
fatos de Sua vida. Lucas completamente fornece revelação e resolução aos leitores e
prepara o caminho para a história da igreja em Atos. O partir do pão é o momento
decisivo para essa revelação e para essa resolução. Os discípulos e o leitor, por ex
tensão, não podem compreender a narrativa da paixão sem a revelação da verdade
pelo Jesus ressuscitado.
Lucas e João são semelhantes na forma como fornecem a resolução (veja João 20—
21). Quando fala sobre os fatos pós-ressurreição, João diz: “Mas estes foram escri
tos para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham
vida em seu nome” (Jo 20.31). Os acréscimos de Lucas à narrativa pós-ressurreição
tem um propósito similar. Há uma aplicação explícita da narrativa da paixão na
vida da igreja, na qual a morte é interpretada para o leitor.
■ 15-17 Por si mesmos, os discípulos foram incapazes de desvendar os mistérios
desses fatos. Contudo, enquanto caminhavam ombro a ombro com Jesus, a exposi
ção que Ele fazia das Escrituras transformava os discípulos em crentes. A busca e a
instrução trazem uma crença esclarecedora. Isso é apresentado por Lucas como um
padrão de vida para o discípulo no mundo da pós-ressurreição.
Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou
a caminhar com eles (v. 15). Os discípulos conversavam e discutiam enquanto
caminhavam. Homilein (conversar) só é encontrado em Lucas—Atos no NT. Essa
é a palavra da qual deriva o vocábulo “homilética” (Lc 24.14,15; At 20.11; 24.26;
292
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
desconfianças sobre sua percepção acerca Jesus: e nós esperávamos que era ele
que ia trazer a redenção a Israel (v. 21).
Apesar de tudo o que Ele tinha dito e feito, os discípulos tinham interpretado mal
a missão de Jesus como última instância de natureza política. Eles esperavam que
a ambiguidade que cercava a identidade dele fosse removida pela “redenção” de
Israel. O verbo lytroõ significa libertar/resgatar, Ele é bem comum nos textos do
AT, especialmente em Êxodo, Deuteronômio, Salmos e Isaías. Ele é relativamente
raro nessa forma no NT, mas é encontrado aqui, em Tito 2.14 e em 1 Pedro 1.18.
Numerosas ocorrências de verbos cognatos aparecem em outros lugares no NT,
mas a ênfase neste caso está no uso dentro desse Evangelho. A forma verbal lyh on
ocorre em Marcos 10.45 e Mateus 20.28 na explicação de Jesus sobre o significado
de Sua morte: “Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para
servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45).
O uso de redenção em Lucas 24.21 provavelmente deve ser entendido no senti
do de libertação do domínio de um país estrangeiro, um significado mais comum
quanto ao uso no AT (Procksch, 1967, p. 333). Em vez de vitória, os discípulos
continuam servindo a um senhor cuja identidade permanece sujeita à dúvida pú
blica e ao escárnio. Devastadoramente, ficou parecendo que o público poderia es
tar certo sobre aquele pretenso messias. Aquele não era o mundo que eles espera
vam herdar de Jesus, mas foi o que receberam.
O discurso de Cleopas continua com a descrição da visita das mulheres ao túmulo
de manhã cedo e de alguns discípulos que o visitaram mais tarde (v. 22-24; com
pare com Jo 20.3-10). Há diversas expressões sobre percepção nestes versículos.
As mulheres maravilharam os discípulos com sua história (Lc 24.22). Elas não
acharam o corpo dele (v. 23). Elas viram uma visão de anjos, que disseram que
ele está vivo (v. 23). Os discípulos foram investigar, mas não o viram (v. 24). Essas
referências mostram como o entendimento dos discípulos e das mulheres perma
necia confuso com a descoberta do túmulo vazio. Somente as aparições do Jesus
ressurreto esclarecem o pensamento deles. Isso torna a revelação da identidade de
Jesus nos versículos 25-27 ainda mais dramática.
H 2 5 -2 6 Embora eles estejam buscando a verdade, Jesus os repreende por sua le
targia da mente e da audição: Como vocês custam a entender e como demoram
a crer em tudo o que os profetas falaram! (v. 25). Deus lhes ocultou a identidade
de Jesus, mas, mesmo assim, espera que eles discirnam a verdade que já lhes foi re
velada. Essa responsabilidade já foi enfatizada na história de Lázaro (16.29): “Eles
têm Moisés e os Profetas; que os ouçam”.
A fonte de ambiguidade da identidade de Jesus surge porque a história é revelada nos
profetas. Contudo, a mesma permanece oculta aos olhos dos homens até que seja
295
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Foi dito que Jesus “explicou” as Escrituras aos Seus companheiros no caminho. O
verbo diermêneuõ {interpretar), no NT, só é encontrado aqui com este significado
(em outros lugares ele significa traduzir: em At 9.36; 1 Co 12.30; 14.5,13,27).
Lucas 22.37, Atos 8.26-35, e Marcos 14.27 são exemplos desse estilo de exegese
de Lucas 24. A primeira grande referência intertextual no Evangelho de Lucas é a
de Isaías 61.1-2, em Lucas 4.18,19. Esse texto proclama o propósito do ministério
de Jesus (veja Kimball, 1994). Sobre o Jesus ressuscitado de Lucas, essa passagem e
outros textos sagrados falam unanimemente acerca dessa importantíssima questão:
Ele é o Messias. Estava divinamente ordenado que Ele devesse sofrer. E tudo isso foi
previsto por todas as principais figuras do corpus bíblico.
Textos de Lucas e de Atos acerca de como
a Lei e os Profetas confirmam o Messias
Lucas 16.31 Lucas 24.27 Lucas 24.44 Atos 28.23
“Abraão respondeu: E com eçando por Moi- E disse-lhes: "Foi isso Assim combinaram
'Se não ouvem a Moi- sés e to d o s os profe- que eu lhes falei en- encontrar-se com
sés e aos Profetas, tas, explicou-lhes o quanto ainda estava Paulo em dia determ i-
tam pouco se deixa- que constava a res- com vocês: Era neces- nado, indo em grupo
rão convencer, ainda peito d e le em todas sério que se cumprisse ainda mais numeroso
que ressuscite al as Escrituras. tudo o que a meu res ao lugar onde ele es
guém dentre os mor peito está escrito na Lei tava. Desde a manhã
to s" (veja tam bém de Moisés, nos Profetas até a tarde ele lhes
16.16). e nos Salmos". deu explicações e
lhes testem unhou do
Reino de Deus, pro
curando convencê-los
a respeito de Jesus,
com base na Lei de
Moisés e nos Profetas,
(veja tam bém 13.15:
24.14).
A PARTIR DO TEXTO
da real ignorância histórica deles como uma ênfase narrativa sobre a nova era. À
luz da ressurreição de Jesus, todas as coisas ocultas tornaram-se claras e a cegueira
espiritual foi curada.
■ 46-47 A segunda característica do ensino da pós-ressurreição é síntese da ênfa
se teológica de Lucas desde o início: Jesus proclama que seria pregado o arrepen
dimento para perdão de pecados a todas as nações, começando por Jerusalém
(v. 47). Lucas consistentemente enfatiza que o arrependimento e o perdão definem
o novo paradigma da salvação.
Não é o eleito que é salvo, mas o perdoado. Não é a eleição que determina a inclusão
no novo Reino, mas o perdão dos pecados em Seu nome. Não são os judeus que são
privilegiados neste novo paradigma, mas todas as nações às quais esta mensagem
seja pregada. Isso não é para exclusão do povo histórico de Jesus, mas agora o alcan
ce da salvação estende-se além dos judeus e engloba toda a terra.
O local da nova proclamação é começando por Jerusalém, mas não é somente
para judeus. A mensagem que se originou com um Messias judeu na Palestina ju
daica precisa ser proclamada a todas as nações. A mensagem da salvação irá trans
cender Israel fisicamente, geograficamente e espiritualmente (v. 47).
■ 48 0 terceiro aspecto da nova hermenêutica consiste na tarefa de proclamar
a mensagem. Isso é deixado para os seguidores de Jesus. Seus discípulos devem ser
testemunhas destas coisas (v. 48). O termo “testemunha” tem uma conotação ju
rídica em Lucas. Os discípulos não são simplesmente observadores desses fatos;
ao contrário, eles serão chamados para dar testemunho em ambientes do tribunal
(como em Atos 5.32). Outros ambientes são simplesmente aqueles na tribuna da
opinião pública (At 2.32; 3.15; 10.39,41; 13.31).
■ 49 A fim de cumprir o papel deles como testemunhas, os discípulos precisam
ser revestidos do poder do alto (v. 49). Eles devem esperar por esse poder na
cidade de Jerusalém. Somente essa capacitação os permitirá dar um testemunho
eficiente do Jesus ressuscitado. O Deus Pai prometeu especificamente esse revesti
mento de poder.
A narrativa de Atos é a evidência dessa capacitação dos discípulos para o teste
munho. O poder que cai sobre os discípulos reunidos no primeiro capítulo desse
livro é diretamente relacionado à atividade de serem testemunhas: “Mas receberão
poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em
Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins dà terra” (At 1.8).
No Dia de Pentecostes, quando o Espírito Santo caiu sobre a assembleia de dis
cípulos, a primeira evidência da presença habilitadora do Espírito toma a forma
do testemunho público de Pedro (At 2.14-42). E também continua no decorrer
301
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
G. A ascensão (24.50-53)
■ 50-53 A ascensão no Evangelho de Lucas é extraordinariamente discreta. Essa
é uma característica de todos os Evangelhos sinóticos. Marcos sequer menciona a
ascensão. Até o final espúrio, mais longo, dedica apenas uma frase para a mesma.
Mateus não mencionou a ascensão. João presume uma ascensão (6.62; 20.17 [duas
vezes]), mas não a descreve. Em Lucas, longe de ser uma magnífica culminação,
ela é retratada em termos de quase apogeu. A ascensão tem poucos detalhes, se
comparada com sua correlação terrena, a transfiguração, e é relatada em um estilo
factual simples.
A ascensão ocorre, Lucas diz-nos, nas proximidades de Betânia, onde Jesus ergueu
as mãos e os abençoou, e os deixou e foi elevado ao céu. Todo esse conteúdo está
em duas frases sem adornos (v. 50,51; sobre os homens vestidos de branco, v.
4-7). Jesus simplesmente desaparece em um instante.
Até o Livro de Atos, que se concentra na atividade pós-ressurreição de Jesus em
1.1-8, menciona o momento da ascensão em termos ainda mais abreviados (At 1.9-
11). As referências à ascensão no final de Lucas e no início de Atos apontam para
302
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24
um único evento relatado duas vezes. Esse é o ponto de encontro entre o primeiro
e o segundo volumes de Lucas. O Evangelho termina aqui; Atos começa aqui. E
quando ele volta a esse assunto no início de Atos, ele expande significativamente
o período precedente à ascensão. Contudo, nada disso é insinuado no registro de
seu Evangelho.
Para Lucas, o Mestre ressurreto domina as palavras finais dessa narrativa. Quando
Jesus parte, Ele deixa um legado de quatro coisas: uma nova compreensão da Pa
lavra de Deus, um comissionamento para pregar o arrependimento e o perdão em
Seu nome a todas as nações, a prática da comunhão à mesa e a promessa do poder
do alto.
Os Seus discípulos o adoraram e voltaram para Jerusalém com grande alegria
(v. 52). Previamente, o diabo havia prometido a Jesus todos os reinos do mundo se
Ele o “adorasse” {proskuneõ). Jesus respondeu a isso: "Está escrito: Adore o Senhor,
o seu Deus, e só a ele preste culto” (4.8). Agora, os discípulos adoram [novamente
proskuneõ] a Jesus como uma adequada finalização para o drama de Sua vida, Sua
morte e Sua ressurreição.
Os discípulos voltam para Jerusalém e ficam continuamente no templo, louvando
a Deus e ocupando seus lugares como testemunhas no coração da Cidade Santa.
303
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LUCAS 9-24
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