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COMENTÁRIO BÍBLICO

LUCAS 9-24

DAVID A. NEALE

((Q
ACADÊMICO
COMENTÁRIO BÍBLICO

LUCAS 9-24
COMENTÁRIO BÍBLICO

LUCAS 9-24
DAVID A. NEALE
GERÊNCIA EDITORIAL Luke 9-24 New Beacon Bible Commentary / David A. Neale / © 2013

E DE PRODUÇÃO Published by Beacon Hill Press of Kansas City, A division of Nazarene Publishing
House. Kansas City, Missouri, 64109 USA. This edition published by arrangement
Jefferson Magno
with Nazarene Publishing House. All rights reserved.
Copyright © 2015 por Editora Central Gospel.
COORDENAÇÃO
EDITORIAL
Michelle Candida Caetano
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

COORDENAÇÃO
DE COMUNICAÇÃO Autor: NEALE, David. A.
E DESIGN Título em português: Novo Comentário Bíblico Beacon: Lucas 9-24
Regina Coeli Título original: Lucas 9 -24 New Beacon Bible Commentary
Rio de Janeiro: 2015
304 páginas
TRADUÇÃO ISBN: 978-85-7689-393-6
Elias Santos Silva 1. Bíblia - Teologia I. Título II.

REVISÃO
Maria José Marinho
Queila Memória
Welton Torres
É proibida a reprodução total ou parcial do texto deste livro por quaisquer
meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos etc.), a não ser

CAPA E em citações breves, com indicação da fonte bibliográfica. Este livro está de
acordo com as mudanças propostas pelo novo Acordo Ortográfico, que entrou
PROJETO GRÁFICO
em vigor a partir de janeiro de 2009.
Eduardo Souza
Nota do edito r no Brasil: Com o objetivo de facilitar a compreensão do co­
mentário original, em alguns casos, a Central Gospel fez traduções livres de
DIAGRAMAÇÃO
termos e palavras em inglês que não encontram equivalência nas versões ofi­
Raquel Frazão
ciais do texto bíblico traduzido para o Português. Ressalte-se, todavia, que
foram preservadas a ideia e a estrutura textual idealizadas pelo autor.
IMPRESSÃO E
ACABAMENTO
Rotaplan
1a edição: Outubro/2015

Editora Central Gospel Ltda


Estrada do Guerenguê, 1851 - Taquara
Cep: 22.713-001
Rio de Janeiro - RJ
TEL: (21)2187-7000
www.editoracentralgospel.com
DEDICATÓRIA

A Matthew e Thomas
EDITORES DO COMENTÁRIO
Editores gerais

Alex Varughese George Lyons


Ph.D., Drew University Ph.D., Emory University
Professor de Literatura Bíblica Professor do Novo Testamento
M ount Vernon Nazarene University Northwest Nazarene University
M ount Vernon, Ohio Nampa, Idaho
Roger H ahn
Ph.D., Duke University
Reitor do Corpo Docente
Professor do Novo Testamento
Nazerene Theological Seminary
Kansas City, Missouri

Editores secionais

Joseph Coleson Jim Edlin


Ph.D., Brandels University Ph.D., Southern Baptist Theological Seminary
Professor do Antigo Testamento Professor de Literatura Bíblica e Línguas
Nazarene Theological Seminary Coordenador do Departamento
Kansas City, Missouri de Religião e Filosofia
R obert Branson MidAmerica Nazarene University
Ph.D., Boston University Olathe, Kansas
Professor Emérito de Literatura Bíblica Kent Brower
Olivet Nazarene University Ph.D., The University of Manchester
Bourbonnais, Illinois Vice-reitor
Alex Varughese Palestrante Senior de Estudos Bíblicos
Ph.D., Drew University Nazarene Theological College
Professor de Literatura Bíblica Manchester, Inglaterra
M ount Vernon Nazarene University George Lyons
M ount Vernon, Ohio Ph.D., Emory University
Professor do Novo Testamento
Northwest Nazarene University
Nampa, Idaho
SUMÁRIO

índice de anotações complementares....................................................................11


Prefácio dos editores gerais...................................................................................13
Prefácio do autor.................................................................................................. 15
Abreviações.......................................................................................................... 17
Bibliografia...........................................................................................................23
INTRODUÇÃO.................................................................................................33
A. Lucas e sua comunidade.......................................................................... 33
1. Autoria e data...................................................................................... 33
2. Fontes sinóticas....................................................................................35
3. A fonte do Antigo Testamento.............................................................36
4. Os primeiros leitores............................................................................39
B. Temas teológicos em Lucas......................................................................40
L Os pecadores encontram o arrependimento.........................................40
2. A eleição redefinida..............................................................................42
3. Outros temas.......................................................................................44
C. Temas e métodos literários......................................................................45
D. Estrutura e trama.................................................................................... 46
E. Conflito...................................................................................................48
E Caracterização.........................................................................................49
G. Lucas e a vida cristã............................................................................... 51
1. O apocalipse........................................................................................51
2. Discipulado..........................................................................................53
Dissertação: As parábolas em Lucas......................................................................56
COMENTÁRIO................................................................................................ 61
IV. A jornada para Jerusalém (9.51 —19.44)................................................. 61
A. O custo do discipulado (9.51-62)..........................................................61
L A rejeição na aldeia samaritana (9.5T56)............................................ 61
2. Mais sobre o custo do discipulado (9.57-62)...................................... 68
SUMÁRIO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

B. A missão dos setenta e dois (10.1-24)......... .................... .......................72


1. O comissionamento dos setenta e dois (10.1-7)...................................72
2. Ai das cidades (10.8-16)......................................................................75
3. A voltados setenta e dois (10.17-24)..................................................80
C. Exemplos de amor ao próximo e a Deus (10.25-42) .....................82
1. A parábola do bom samaritano (10.25-37)................ „........................82
2. Na casa de Marta e Maria (10.38-42)...................................................90
D. Ensinos e expulsões de demônios (11.1 -36)............................................92
1.0 caminho da oração (11.1-13)...........................................................92
2. Expulsando demônios pelo dedo de Deus (11.14-28)........................ 101
3.0 sinal de Jonas (11.29-32)..................................................................104
4.0 ensino sobre a luz (11.33-36)................................................ . 107
E. A diatribe contra os fariseus (11.37—12.12)............................. ............ 107
1. A disputa sobre a lavagem das mãos (11.37-41)................................... 107
2. Os ais contra os fariseus (11.42-52)......................................................110
3. Os fariseus armam uma cilada para Jesus (11.53,54).............................114
4.0 fermento dos fariseus (12.1-12).......................................................114
E O ensino sobre a abundância e a gestão (12.13-48)............................~.... 119
1. O ho mem rico e seus celeiros (12.13-21).............................................120
2. Não se preocupe com sua vida (12.22-34)...........................................123
3. Esteja prontamente trajado para servir (12.35-40)...............................125
4.0 administrador fiel e sensato (12.41-48)............................................126
G. A expectativa do Reino de Deus (12.49—13.35).................................... 127
1. Eu vim trazer fogo sobre a terra (12.49-53)......................................... 132
2. Interpretando o tempo presente (12.54-59).........................................134
3. Os galileus e a torre de Siloé (13.1-5)...................................................135
4. A parábola da figueira (13.6-9)............................................................ 138
5. Jesus cura uma mulher no sábado (13.10-17).......................................139
6. Duas parábolas (13.18-21)...................................................................141
7. Quem será salvo? (13-22-30)............................................................... 143
8. O lamento por Jerusalém (13.31-35)...................................................147
H. Jesus é o hóspede de um fariseu (14.1-24)...............................................149
1. A cura do homem hidrópico (14.1-6)................................................ 150
8
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON SUMÁRIO

2. O orgulho do lugar ao banquete (14.7-11)..........................................152


3. Não convide os seus amigos (14.12-14)............................................... 153
4. A história do grande banquete ignorada (14.15-24)............................ 154
I. Jesus prossegue ensinando (14.25-35)......................................................156
1. A família e as posses (14.25-33)..........................................................156
2. A parábola do sal (14.34,35)...............................................................159
J. O perdido e o achado: o coração do Evangelho (15.1-32).........................160
1. A ovelha e a moeda perdidas são achadas (15.1-10)............................. 164
2. O filho perdido é encontrado (15.11-32)............................................ 169
K. A gestão da riqueza (16.1 -31)................................................................. 177
1. O administrador astuto (16.1-9).........................................................177
2. A gestão da riqueza secular (16.10-13)................................................181
3. Os fariseus, amantes do dinheiro (16.14,15)....................................... 182
4. A Lei e os Profetas são até João (16.16-18)..........................................183
5. O rico e Lázaro (16.19-31)..................................................................185
L. Ensinamentos diversos aos discípulos (17.1 —18.17)..............................190
1. Ocasiões para tropeçar (17.1-4)..........................................................190
2. A fé do tamanho de um grão de mostarda (17.5,6)..............................194
3. O escravo servil (17.7-10)................................................................... 194
4. Os dez leprosos (17.11-19)..................................................................195
5. O Reino está entre vocês! (17.20,21) ................................................. 198
6. A vinda do Pilho do Homem (17.22-37)............................................ 199
7. O juiz injusto (18.1-8)........................................................................ 204
8. O fariseu e o publicano (18.9-14)....................................................... 208
9. Deixem que as crianças venham a mim (18.15-17)..............................211
M. As riquezas e o Reino de Deus (18.18-30)............................................. 212
1. O rico frustrado (18.18-25)................................................................212
2. Então, quem pode ser salvo? (18.26,27)..............................................214
3. Deixando tudo pelo Reino de Deus (18.28-30)..................................216
N. A subida para Jerusalém (18.31 —19.44)................................................216
1. Jesus prediz a Sua morte (18.31 -34)....................................................216
2. O mendigo cego na estrada de Jerico (18.35-43)................................. 218
3. Zaqueu convida Jesus à sua casa (19.1-10)...........................................220
9
SUMÁRIO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

4. A parábola das dez minas (19.11 -28)...................................................224


5. O Senhor aproxima-se da cidade (19.29-40)........................................ 229
6. Jesus chora pela cidade (19.41 -44)........................................................230
V. Jesus em Jerusalém (19.45—21.38)............................................................233
A. Jesus retira os vendedores do templo (19.45-48).....................................233
B. Jesus ensina no templo (20.1 - 21.4)...................................................... 234
1. Sob que autoridade? (20.1-8)............................................................... 234
2. A parábola da vinha (20.9-19)............................................................. 238
3. Os espiões fazem três perguntas a Jesus (20.20-47)...............................241
a. Sobre o pagamento dos impostos (20.20-26)...................................242
b. Sobre o levirato do casamento (20.27-40)........................................243
c. Sobre Davi (20.41-47)......................................................................245
4. As moedas da pobre viúva (21.1-4)......................................................247
C. A predição da destruição de Jerusalém (21.5-38).....................................248
1. Nenhuma pedra ficará sobre outra (21.5-8)..........................................248
2. Guerras e revoluções (21.9-28).............................................................250
3. A parábola da figueira (21.29-38)........................................................ 257
VI. A paixão, a morte e a ressurreição de Jesus (22.1—24.53).........................259
A. A última ceia (22.1 -38)...........................................................................260
B. A traição e a prisão (22.39-65).................................................................270
C. Jesus diante do Sinédrio e de Pilatos (22.66—23.25)..............................273
D. A crucificação (23.26-56)........................................................................279
E. A descoberta do túmulo vazio (24.1-12)................................................. 284
F. As aparições após a ressurreição (24.13-49).............................................289
1. No caminho de Emaús (24.13-35)....................................................... 289
2. Em Jerusalém, aos Onze e aos outros (24.36-49)..................................300
G. A ascensão (24.50-53)............................................................................302

10
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ÍNDICE DE ANOTAÇÕES COMPLEMENTARES

ÍNDICE DE ANOTAÇÕES
COMPLEMENTARES
Uma comparação entre Lucas 10.25-37 e 18.18-25 í 18.18-25

Uma comparação entre Lucas 9.45 e 18.34 18.31-34

A identidade davídica e a expectativa messiânica 18.35-43

A política da transição na Palestina 19.11-17

A destruição de Jerusalém 19.41-44

Fontes de oposição das autoridades religiosas em Lucas 20.1-8 Por trás do texto

A perspectiva da narrativa no discurso apocalíptico de 21.5-8 Por trás do texto


Lucas

A instabilidade política na Palestina 21.12-19

As descrições sinóticas da destruição do tem plo 21.20-24

Alusões a Daniel em Lucas e em Atos dos Apóstolos 21.20-24


r ~ .... - .. -i
Os adversários de Jesus em 19.47,48 e 22.2 22.1-6
,

A justaposição da soberba e da humildade em Lucas 22.24-27

Material lucano sobre a destruição de Jerusalém Í 23.26-31

Diálogo, cognição, percepção e texto na história do 24.13,14


caminho de Emaús

Textos de Lucas e de Atos acerca de como a Lei e os • 24.27


Profetas confirm am o Messias ís
H _ ---------------------------------------------------

11
PREFÁCIO DOS EDITORES GERAIS

O propósito do Novo Comentário Bíblico Beacon é tornar disponível a pas­


tores e alunos um comentário bíblico do século 21 que reflita a melhor cultura
da tradição teológica wesleyana. O projeto deste comentário visa tornar essa
cultura acessível a um público mais amplo, a fim de auxiliá-lo na compreensão
e na proclamação das Escrituras como Palavra de Deus.
Os escritores dos volumes desta série, além de serem eruditos na tradição
teológica wesleyana e especialistas em suas áreas de atuação, têm também um
interesse especial nos livros designados a eles. A tarefa é comunicar claramente
o consenso crítico e o amplo alcance de outras vozes confiáveis que já comen­
taram sobre as Escrituras. Embora a cultura e a contribuição eruditas para a
compreensão das Escrituras sejam as principais preocupações desta série, esta
não tem como objetivo ser um diálogo acadêmico entre a comunidade erudita.
Os comentaristas desta série, constantemente, visam demonstrar em seu traba­
lho a significância da Bíblia como o Livro da Igreja e, também, a relevância e a
aplicação contemporânea da mensagem bíblica. O objetivo geral deste projeto
é tornar disponível à Igreja e ao seu serviço os frutos do trabalho dos eruditos
que são comprometidos com a fé cristã.
A Nova Versão Internacional (NVI) é a versão de referência da Bíblia usa­
da nesta série; entretanto, o foco do estudo exegético e os comentários são o
texto bíblico em sua linguagem original. Quando o comentário usa a NVI, ele
é impresso em negrito. O texto impresso em negrito e itálico é a tradução do
autor. Os comentaristas também se referem a outras traduções em que o texto
possa ser difícil ou ambíguo.
A estrutura e a organização dos comentários nesta série procuram faci­
litar o estudo do texto bíblico de uma forma sistemática e metodológica. O
estudo de cada livro bíblico começa com uma Introdução, que fornece uma
visão panorâmica de autoria, data, proveniência, público-alvo, ocasião, pro­
pósito, questões sociológicas e culturais, história textual, características literá­
rias, questões hermenêuticas e temas teológicos necessários para entender-se o
livro. Essa seção também inclui um breve esboço do livro e uma lista de obras
gerais e comentários padrões.
A seção de comentários para cada livro bíblico segue o esboço do livro
apresentado na introdução. Em alguns volumes, os leitores encontrarão súmu­
las seccionais de grandes porções da Bíblia, com comentários gerais sobre sua
PREFÁCIO DOS EDITORES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

estrutura literária global e outras características literárias. Uma característica


consistente do comentário é o estudo de parágrafo por parágrafo dos textos
bíblicos. Essa seção possui três partes: Por trás do texto, No texto e A partir do
texto.
O objetivo da seção Por trás do texto é fornecer ao leitor todas as informa­
ções relevantes necessárias para a compreensão do texto. Isso inclui situações
históricas específicas refletidas no texto, no contexto literário do texto, nas
questões sociológicas e culturais e nas características literárias do texto.
No texto explora o que o texto diz, seguindo sua estrutura, versículo por
versículo. Essa seção inclui uma discussão dos detalhes gramaticais, dos estudos
de palavras e da ligação do texto com livros/passagens bíblicas ou outras partes
do livro em estudo (o relacionamento canônico). Além disso, fornece transli-
terações de palavras-chaves em hebraico e grego e seus significados literais. O
objetivo aqui é explicar o que o autor queria dizer e/ou o que o público-alvo
teria entendido como o significado do texto. Essa é a seção mais ampla do co­
mentário.
A seção A partir do texto examina o texto em relação às seguintes áreas:
significância teológica, intertextualidade, história da interpretação, uso das ci­
tações do Antigo Testamento no Novo Testamento, interpretação na história,
na atualização e em aplicações posteriores da Igreja.
O comentário fornece anotações complementares sobre tópicos de inte­
resse que são importantes, mas não necessariamente fazem parte da explanação
do texto bíblico. Esses tópicos são itens informativos e podem conter ques­
tões históricas, literárias, culturais e teológicas que sejam relevantes ao texto
bíblico. Ocasionalmente, discussões mais detalhadas de tópicos especiais são
incluídas como digressões.
Oferecemos esta série com nossa esperança e oração, a fim de que os leito­
res a tenham como um recurso valioso para a compreensão da Palavra de Deus
e como uma ferramenta indispensável para um engajamento crucial com os
textos bíblicos.

Roger Hahn, Editor-geral da Iniciativa Centenária


Alex Varughese, Editor-geral (Antigo Testamento)
George Lyons, Editor-geral (Novo Testamento)

14
PREFÁCIO DO AUTOR

Muitas histórias do Evangelho de Lucas já entraram em nossa imaginação


compartilhada. Somente Lucas nos conta sobre Zacarias e Isabel e sobre o nas­
cimento de João Batista. Do mesmo modo, é ele quem nos conta sobre a visita
de Gabriel a Maria e o jubiloso encontro com Isabel alguns meses mais tarde.
Lucas fala do cântico de júbilo de Maria, dos pastores na manjedoura e da ado­
ração de Ana e Simeão no templo.
Outras histórias famosas são encontradas somente em Lucas: o menino
Jesus no templo, o bom samaritano, o filho pródigo, o fariseu e o publicano
orando no templo, e o pequeno Zaqueu lá no alto da árvore. Em sua narrativa
pós-ressurreição, somente ele retrata os discípulos andando cabisbaixos pela
estrada de Emaús após a ressurreição, conversando com o Cristo ressuscitado.
E sozinho entre os evangelistas, Lucas descreve a ascensão de Jesus em detalhes
no capítulo 24 do seu Evangelho e depois em Atos, capítulo 1.
Todas essas histórias são uma rica parte da herança cristã contribuída pelo
Evangelho de Lucas. Entretanto, não é só o seu material especial que faz dele
um estudo tão gratificante. Ao escrever sob um sentimento de divina compul­
são, ele pegou essas histórias e combinou-as com diversos materiais existentes a
seu dispor, para criar um documento histórico e teológico peculiar. Começan­
do no Evangelho e continuando em Atos, Lucas estabelece um novo paradig­
ma para a história da salvação. No mundo do Evangelho de Lucas, as boas-no­
vas eclodem do confinamento de seu contexto original judaico e espalham-se
pelo mundo romano, convidando todos os povos, judeus e gentios, a uma nova
comunidade de fé baseada no arrependimento e no perdão no nome de Jesus.
Todas essas imagens tornam o seu Evangelho peculiar. No entanto, a ênfa­
se na liberdade do espírito humano é a sua marca característica. E a liberdade
de escolher uma vida antiga ou uma vida nova. A semente daquilo que pode
ser interpretado como uma salvação universalmente acessível está presente em
todos os Evangelhos. Contudo, o Evangelho de Lucas codifica esse acesso em
um novo paradigma teológico. Ele oferece aos leitores, seja qual for a identi­
dade deles, a chance de começarem uma vida nova toda vez em que houver um
arrependimento. É essa liberdade humana de escolher a redenção que destaca
a ênfase teológica distinta de Lucas. O Evangelho dele é de segundas chances.
Muitas das histórias que só ele preservou possuem esse tema preponderante.
Uma obra literária torna-se um clássico porque possui uma qualidade
atemporal que toca os leitores de diversas culturas, gerações e séculos. Toda a
PREFÁCIO DO AUTOR NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Escritura pertence a essa categoria, como certamente pertence o Evangelho de


Lucas. Desde Agostinho, Tertuliano, Orígenes e Ambrósio, no início da era
cristã (veja Kealy, 2005, p. 12,13,28), até a pintura de Return of the Prodigal,
por Rembrandt, Lucas tem capturado o coração das gerações passadas.
Na imaginação moderna, pelo menos entre os biblicamente instruídos,
Lázaro ainda se reclina no seio de Abraão, e as imagens da parábola do bom
samaritano continuam ressoando. Todas essas histórias demonstram a atração
do Evangelho de Lucas acima dos limites da cultura e do tempo.
O Evangelho de Lucas permanece popularmente relevante entre os Evan­
gelhos por causa de seu otimismo para cura da condição humana. E aí que o
seu Evangelho conecta-se incisivamente com a abertura e o otimismo da teo­
logia wesleyana. Lucas dirige-nos não só pelo seu gênio literário, mas por sua
compreensão da experiência humana do pecado e do sofrimento. Ele refere-se
a isso na linguagem tradicional da Escritura: pecado, enfermidade e impureza.
Ao longo do caminho de sua narrativa, esses fardos humanos são aliviados na
medida em que o pecado dá lugar à retidão; a impureza dá lugar à pureza; e
a enfermidade dá lugar à cura. Os meios pelos quais essa redenção surge são
o arrependimento, o perdão e a salvação por intermédio do Filho do gracio­
so Deus. O mais importante é que isso está disponível a todos na história de
Lucas: aos leprosos, às mulheres pecadoras, ao rei gentio, aos cobradores de
impostos, aos fariseus, aos judeus e aos centuriões romanos.
A história que Lucas conta parece argumentar que, como família huma­
na, nós nunca conseguimos colocar de lado a experiência que compartilhamos
com o pecado, a impureza e a enfermidade e nem com a nossa necessidade de
salvação. O Evangelho de Lucas permanece relevante porque a sua solução para
o problema do sofrimento humano continua relevante. Emborao nosso mun­
do tenha mudado desde que ele escreveu o seu Evangelho, parece claro que a
natureza humana permanece a mesma.
Lucas oferece conforto ao coração moderno do mesmo modo que ele o
fez com o coração do povo da era antiga. Nós estamos alienados do sentimen­
to divino pelo nosso egoísmo deliberado e encontramos o nosso caminho de
volta a esse sentimento divino por meio do humilde arrependimento. Estamos
contaminados de culpa e remorso pelos fracassos de nossa vida, e Lucas dá-nos
o caminho de volta à santidade, por meio do perdão e da presença capacitadora
do Espírito. E assim, ao revisitarmos essa história com uma perspectiva moder­
na, renovamos o seu significado para o leitor moderno. Uma releitura de Lucas
é sempre valiosa, e as poderosas ideias encontradas nele trarão um sentido re-
descoberto de esperança, uma segunda chance para todos.
16
ABREVIAÇÕES

Com raras exceções, estas abreviações seguem as que estão no livro The SBL Handbook o f
Style (Alexander, 1999).
Geral

II Paralelo aos Evangelhos Sinóticos


Veja o comentário em
a.C. antes de Cristo
Ad loc. Ad locum, no local discutido
AT Antigo Testamento
B. C.E. antes da Era Comum
C.E. Era Comum
ca. cerca de, tempo aproximado
cap. capítulo/capítulos
cf. confira
d.C. depois de Cristo
esp. especialmente
etc. et cetera, e o restante
ex. por exemplo
i.e. id est, isto é
ktl. kai to loipa (significa etc. na transliteração grega)
lit. literalmente
LXX Septuaginta (Tradução grega do AT)
MS Manuscrito
MSS Manuscritos
n. nota
nn. notas
NT Novo Testamento
s.d. sem data
s.e. sem editora
s.v. sub verbo, implícito
ss. e os seguintes
TM Texto Massorético (do AT)
V. versículo(s)
vs. versus
Palavras de referência frequentemente citadas
ABD Anchor Bible Dictionary. Veja Freedman.
DBI Dictionary of Biblical Imagery. Veja Ryken, Wilhoit, e Longman
1988.
DJG Dictionaty of Jesus and the Gospels. Veja Green e Mcknight
1992.
TD NT Theological Dictionary ofthe New Testament. Veja Kittel.
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Versões bíblicas
A MENSAGEM A Mensagem
ARA Almeida Revista e Atualizada
ARC Almeida Revista e Corrigida
ARIB Almeida Revisada Imprensa Bíblica
GW Gods Word Translation
NASB New American Standard Bible
N IV 11 New Internacional Version (2011)
NKJV New King James Version
NRSV New Revised Standard Version
N TLH Nova Tradução na Linguagem de Hoje
NVI Nova Versão Internacional (1984)
Por trás do texto: Informações históricas ou literárias preliminares que os leitores
medianos podem não inferir apenas pela leitura do texto bíblico.
No texto: Comentários sobre o texto bíblico, palavras, gramática, e assim
por diante.
A partir do texto: O uso do texto por intérpretes posteriores, relevância contem
porânea, implicações teológicas e éticas do texto, com ênfase es
pecial nas questões wesleyanas.

Antigo Testamento

Gênesis Gn
Êxodo Êx
Levítico Lv
Números Nm
Deuteronômio Dt
Josué Js
Juízes Jz
Rute Rt
1 Samuel 1 Sm
2 Samuel 2 Sm
1 Reis 1 Rs
2 Reis 2 Rs
1 Crônicas 1 Cr
2 Crônicas 2 Cr
Esdras Ed
Neemias Ne
Ester Et
Jó Jó
Salmos SI
Provérbios Pv
Eclesiastes Ec
Cantares Ct
Isaías Is

18
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES

Jeremias Jr
Lamentações Lm
Ezequiel Ez
Daniel Dn
Oseias Os
Joel J1
Amós Am
Obadias Ob
Jonas Jn
Miqueias Mq
Naum Na
Habacuque Hc
Sofonias Sf
Age ii Ag
Zacarias Zc
Malaquias Ml
(Nota: A numeração de capítulo e versículo no TM e na LXX geralmente difere em com­
paração com as Bíblias em inglês/português. Para evitar confusão, todas as referências bí­
blicas seguem a numeração de capítulo e versículo das traduções para o português, mesmo
quando o texto TM e LXX está em discussão.)
Novo Testamento

Mateus Mt
Marcos Mc
Lucas Lc
João Jo
Atos dos Apóstolos At
Romanos Rm
1 Corindos 1 Co
2 Corindos 2 Co
Gaiatas G1
Efésios Ef
Filipenses Fp
Colossenses Cl
1 Tessalonicenses 1 Ts
2 Tessalonicenses 2 Ts
1 Tim óteo 1 Tm
2 Tim óteo 2 Tm
Tito Tt
Filemom Fm
Hebreus Hb
Tiago Tg
1 Pedro 1 Pe
2 Pedro 2 Pe
1 João 1Jo

19
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

2 João 2 Jo
3 João 3 Jo
Judas Jd
Apocalipse Ap
Apócrifos
Bar. Baruque
3 Bar. 3 Baruque
1—2 Mac. 1—2 Macabeus
3—4 Mac. 3—4 Macabeus
O. Man. A Oração de Manassés
Tob. Tobias
SS A Sabedoria de Salomão
Sir. Sabedoria de Siraque, Eclesiástico ou Sirácida
2 Ed. 2 Esdras
Pais da Igreja

Irineu Haer. Contra as Heresias


Eusébio Hist. Ecl. História Eclesiástica
Tertuliano Marc. Contra Marcião
Pseudoepígrafos do AT
1 En. 1 Enoque (Apocalipse Etiópico)
3 Em. 3 Enoque
As. Mo. A Assunção de Moisés
los. Asen. José e Asenate
Jub. Os Jubileus
S. Sal. Os Salmos de Salomão
T. Ab. Testamento de Abraão
T.Jac. Testamento de Jacó
Pergaminhos do mar Morto e textos relacionados
Q Qumrã
lQ H a Hodayota ou Hinos de Ações de Graças
1QM Milhamah ou Pergaminho da Guerra
1QS Serek Hayahad ou Regra da Comunidade
Josefo
Ant. Antiguidades Judaicas
G.J. Guerras Judaicas
Textos rabínicos
Avot Aboth
b. Talmude Babilónico
Ber. Berakot
20
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES

Êx. Rab. Êxodo Rabá


Hag Hagigah
Kelim Kelim
KU KiVayim
m. Mixná
Sabb. Sabbat
Sank. Sinédrio
t. Tosefra
Tamid Tamid
Tehar. Teharot
Yoma Yoma
Apócrifo do NT
Ev. Tomé O Evangelho de Tomé
Transliteração do grego
Grego Letra Transliteração

a alfa a
ß beta b
y gama g
y gama nasal n (antes de y, k, f)
§ delta d
g epsilon e
5 zeta z
eta ë
e teta th
t iota i
K capa k
lambda 1
P mu/mi m
V nu/ni n
l csi X

0 omicron o
TT P1 P
P rô r
P rô (em inicio de palavra) rh
ç sigma s
T tau t
y upsilon y
y upsilon u (em ditongos: au, eu, eu, ou, ui
fi ph
chi ch
t psi ps
w oméga ô
' respiração elaborada h ( a n t e s d e v o g a is in ic ia is o u d ito n g o s )

21
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Transliteração do hebraico
Hebraico/Aramaico Letra Transliteração
X á lef
3 bêt b; v (fricativa)
} guímel g
1 dálet d
n he h
1 vav V ou w
T zain z
n hêt h
ü tét t
iode y
3 caf k
*7 âmed 1
a mem m
3 nun n
0 sâmeq s
y áin
D pê p; í (fricativa)
X tsade s
P cof q
rêsh r
V sin s
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n tau t

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32
INTRODUÇÃO

A. Lucas e sua comunidade

1. Autoria e data
Já que o nome do autor não aparece em lugar algum na narrativa, o Evangelho
é uma obra anônima. A atribuição a alguém chamado Lucas é uma questão de
tradição pela qual a evidência externa é escassa. O título encontrado na última pá­
gina do manuscrito mais antigo é euangelion kata Loukan - O Evangelho Segundo
Lucas (o códice de papiro P75é datado de 175—225 d.C.; Fitzmyer, 1981, 1:35).
Além disso, vários manuscritos antigos indicam que a atribuição do Evangelho a
Lucas já era comum no final do segundo século e no início do terceiro.
A referência mais antiga à autoria de Lucas encontra-se no Cânone Mura-
toriano (170—180 d.C.). “O terceiro livro do Evangelho: Segundo Lucas. Esse
Lucas era um médico. Após a ascensão de Cristo, quando Paulo o levou consigo
como alguém dedicado a cartas, ele a escreveu sob o seu próprio nome, por meio
do que ouvia dizer. Ele não havia visto o Senhor pessoalmente, mas, na medida
em que conseguia acompanhar (tudo isso), começou, então, seu relato a partir do
nascimento de João” (citado de Fitzmyer, 1981, 1:37).
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Em uma passagem datada do final do segundo século, Irineu refere-se à au­


toria desse Evangelho (Haer 3.1.1): “Lucas, também companheiro de Paulo, es­
creveu em um livro o evangelho assim como lhe fora pregado” Um documento
do final do segundo século, conhecido como o Prólogo do Evangelho, registrou:
“Lucas era um sírio da Antioquia, médico de profissão, discípulo dos apóstolos
e seguidor de Paulo até o seu martírio. Ele serviu ao Senhor sem distração, sem
esposa e sem filhos. E morreu com a idade de 84 anos, na Beócia, cheio do Espírito
Santo” (Tradução de Fitzmyer, [1981, 1:38]; para o grego, veja Aland, 1964, p.
333). Na obra de Tertuliano, Against Marcion 4.2.2 (início do terceiro século),
encontramos: “Lucas, entretanto, não era um apóstolo, mas apenas um homem
da era apostólica; não era mestre, mas discípulo, portanto, inferior ao mestre — e
pelo menos muito posterior (do que eles) ao apóstolo a quem ele seguiu, sem dú­
vida, Paulo (foi posterior aos outros)” (Fitzmyer, 1981, 1:40).
Outras referências primárias sobre Lucas como o autor do Evangelho foram
feitas por Tertuliano (207—208 d.C.), Orígenes (254 d.C.), Eusébio (303 d.C.)
e Jerônimo (398 d.C.; veja Fitzmyer, 1981, 1:39,40). Esses textos estabelecem que
Lucas era considerado o autor do terceiro Evangelho. Contudo, eles dão apenas
datas indiretas sobre a sua identidade e sobre quando ele viveu.
A evidência interna do NT para a identidade de Lucas é de dois tipos. O primeiro
refere-se a ele fora da tradição Lucas/Atos. Aqui, temos três referências. Em Colossen-
ses 4.14, Paulo envia saudações de seu “amado amigo Lucas, o médico,” aos Colossenses.
Nas saudações de Paulo a Filemom, ele escreveu: “Epafras, meu companheiro de prisão
por causa de Cristo Jesus, envia-lhe saudações, assim como também Marcos, Aristarco,
Demas e Lucas, meus cooperadores” (Fm 1.23,24). Em 2 Timóteo 4.11, Paulo confi­
dencia: “Só Lucas está comigo”. Essas passagens, escritas antes de 60 d.C., estabelecem
Lucas como um companheiro íntimo de Paulo. Porém, elas não podem conectá-lo di-
retamente ao Evangelho que leva o seu nome, já que ele ainda não havia sido escrito.
O segundo tipo de evidência para a autoria do terceiro Evangelho é de natu­
reza indutiva — evidência interna dentro do Evangelho e de Atos. Primeiro, nós
sabemos que o autor não foi uma testemunha ocular dos eventos de Jesus, porque
ele nos diz isso (Lc 1.2). Entretanto, as seções “nós”, em Atos (16.10-17; 20.5-15;
21.1-18; 27.1—28.16), sugerem que o autor era um companheiro de Paulo.
Se o homem que escreveu o terceiro Evangelho era o Lucas das cartas de Pau­
lo, é interessante considerar qual conexão existia entre as comunidades de Paulo e
a tradição sinótica, mesmo que isso não seja aparente a partir dos escritos de Paulo.
Deve ter havido uma presença generalizada da tradição sinótica no primeiro sécu­
lo do judaísmo da Palestina, o qual gerou a tradição pela forma como ela espalhou-
-se pela bacia do Mediterrâneo, por meio de evangelistas itinerantes como Paulo.
34
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

A partir da evidência interna do Evangelho, outras observações podem ser


feitas sobre as ideias do autor. Os mapas não estavam amplamente disponíveis na­
quela época, e ele tem uma vaga noção da geografia da Palestina, particularmente
da Samaria (Lc 17.11-19). Logo, ele não é palestino e é provável que nunca esteve
lá. No entanto, ele é um ardoroso admirador do judaísmo do templo, como fica
evidente pelas narrativas da infância de João e de Jesus. Ele tem o sacerdócio em
alta honra (1.5) e considera a obediência à Lei desejável (1.6,7). Para Lucas, João
Batista é um profeta palestino judeu. Essas características demarcam a perspectiva
de Lucas na história de Jesus com base no templo e na Torá.
Mais especificamente, Lucas dirige a sua obra, tanto no Evangelho quanto em
Atos, a um homem de sua comunidade chamado Teófilo. O nome grego significa
“amigo de Deus”, então, a identidade desse indivíduo é questionada (veja 0 ’toole,
1992, 6:511,512). Alguns creem que ele era uma pessoa real, um benfeitor que
patrocinava o projeto literário de Lucas. Outros sugerem que o nome represente
um pseudônimo inteligente para proteger o destinatário da perseguição política,
escondendo a sua identidade. O Evangelho de Lucas é o único dirigido a um in­
divíduo.
E provável que a escrita de Lucas date do primeiro século (década de 80). Isso
pode ser visto, de forma indireta, em outro aspecto da narrativa. O seu Evangelho,
mais notavelmente o capítulo 21, parece interpretar a narrativa escatológica (apa­
rentemente derivada de Marcos 13) de uma forma não apocalíptica. Em particular,
a destruição de Jerusalém (70 d.C.), já um fato histórico na época em que Lucas
escreveu, não é um sinal do fim dos tempos, mas um sinaleiro ao longo do caminho
rumo à culminação da história (veja o comentário em 21.20-24). A destruição de
Jerusalém existe dentro do drama da Igreja; porém ela não é a culminação desse
drama. Na visão de Lucas, a significativa diferença sobre o mundo, às vezes, é cha­
mada de sua visão sobre a “história da salvação” — o longo drama da vida da Igreja
ainda por ser concluído. Essa é outra razão pela qual Lucas parece tão relevante
para a Igreja moderna. Para ele, o drama da vida humana é contínuo, e ele molda a
sua apresentação do Evangelho nessa perspectiva.

2. Fontes sinóticas
O assim chamado Problema Sinótico é um debate constante sobre a inter­
dependência de Mateus, Marcos e Lucas como fontes literárias. Embora não
universalmente aceita, a “primazia de Marcos” é a ideia de que o Evangelho
dele foi escrito primeiro e depois usado por Mateus e Lucas. E razoável dizer
35
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

que essa tenha sido a visão majoritária nos estudos dos Evangelhos por dois
séculos.
A posição assumida neste comentário é que Lucas molda livremente o
Evangelho de Marcos aos seus próprios propósitos literários. Ele inclui quase
todo o texto de Marcos de uma forma ou de outra. Entretanto, isso é entrelaça­
do tão habilidosamente que até mesmo o leitor atento mal consegue discernir
as emendas. Mesmo assim, Lucas não escreveu um comentário sobre Marcos,
mas uma nova narrativa sobre Jesus (Evans e Sanders, 1993, p. 4). Ele, presu­
mivelmente, pensava que seu material fosse melhor do que o que já havia sido
produzido ou supria um material essencial que faltava em Marcos.
Lucas também expande a história de Marcos com o acréscimo de materiais
de outra fonte. Estes incluem uns 230 ditos de Jesus, que estão contidos tanto
em Mateus quanto em Lucas. Alguns eruditos acreditam que existiu uma única
fonte Q (de Quelle, significando “fonte”). Outros disputam isso (sobre esse
debate, veja Tuckett, 1996, p. 1-39, e Goodacre, 2002). De qualquer forma,
Mateus e Lucas possuem um significativo corpo de material em comum que
Marcos não tinha ou escolheu não incluir. Estudos do Evangelho não resolve­
ram se Lucas usou a suposta fonte Q ou se tinha o Evangelho de Mateus para
consultar.

3. A fonte do Antigo Testamento


O relacionamento do texto de Lucas com o cânone do AT é central para o es­
tudo literário do Evangelho. Como fica óbvio pela tradição sinótica em geral, Jesus
estava intimamente inteirado da história bíblica do judaísmo — a Torá, os Profetas
e as Escrituras. Ele frequentemente se valia do AT para fornecer o contexto de Sua
mensagem aos Seus contemporâneos. Certo autor identificou 590 referências di­
retas ou indiretas somente a Isaías no NT. Essas alusões cobrem toda a extensão de
Isaías, e muitas dessas citações ocorrem nos Evangelhos (Evans e Sanders, 1993, p.
14). Os textos sagrados do AT eram o léxico compartilhado de significância entre
os palestinos do primeiro século, dos judeus da diáspora e dos gentios tementes a
Deus. Não é de surpreender, então, que o NT seja cheio de referências ao AT.
Vários termos foram usados nas pesquisas recentes para descrever o uso do AT
no NT. Dizem que os autores do NT “releram” o texto do AT e reinterpretaram-
-no para a sua época. Esse fenômeno, às vezes, é chamado de “a Bíblia reescrita”
ou “intertextualidade”. Outros usam o termo “midrash comparativo” para ressaltar
como o tratamento do NT em relação aos textos do AT tem alguma afinidade com
36
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

o hábito judaico de explanar os textos sagrados em forma de comentário. Outros


termos, como “hagadã dentro da Escritura”, “exegese centro-bíblica” e “reescrita
parabíblica”, também têm sido usados para descrever o hábito dos escritores do
NT de remodelar o significado dos textos do AT dentro dos contextos literários
do NT (Evans e Sanders, 1993, p. 3).
Por uma questão de fato histórico e literário, Jesus usou o AT como base de
Sua mensagem evangelística. E é assim que todos os evangelistas retratam a men­
sagem de Jesus. Contudo, no Evangelho de Lucas, os ensinamentos do Mestre são
relidos pelas lentes da própria compreensão de Lucas quando ao AT.
Isso faz parte do processo humano para preservar a tradição sagrada. Na me­
dida em que as décadas passam, essa tradição é readaptada para mantê-la relevante
a uma nova geração de leitores. Esse processo é feito gradativamente, de forma a
não quebrar a cadeia da tradição de nenhuma forma substancial, para que a rein-
terpretação não seja rejeitada pelos guardiões da tradição. A reinterpretação do
texto sempre viaja pela mente e pelo coração de seus intérpretes mais recentes,
e não em torno deles, como se a história fosse uma entidade com uma existência
independente. Uma leitura retórica e literária sugere que o significado do texto re­
side, em última análise, no coração e na mente do próximo leitor. Lucas é um leitor
do AT que o interpreta para uma nova geração, que, por sua vez, leva o seu próprio
coração e sua mente à tarefa da interpretação.
Esse é um processo no qual se entende que a inspiração divina requer a parti­
cipação humana. O autor do Evangelho ocupa a função fundamental no processo
de inspiração. Entretanto, a inspiração do Espírito Santo continua em cada nova
geração de leitores que acessam o significado do texto. Isso não é uma concepção
mecânica ou verbal da inspiração divina, mas uma compreensão enraizada na cren­
ça de que o engajamento de Deus com os homens é real — até o ponto da partici­
pação humana na criação do texto das sagradas Escrituras.
Logo, a interpretação do AT apresentada em Lucas pode dizer-nos muita coi­
sa sobre como a mensagem do Evangelho foi atualizada para a um novo público.
Ele usa o texto do AT para mostrar aos primeiros leitores como os eventos da vida
de Jesus deviam ser entendidos na comunidade contemporânea e nas situações de
vida deles próprios. Isso significa que a apresentação do AT por Lucas não só re­
flete os alicerces da mensagem histórica de Jesus, mas também explica o momento
presente aos seus leitores.
Essa dependência do AT não é apenas uma cobertura para a história de Jesus,
um aceno obrigatório para a tradição escriturai judaica. Ela é, de fato, a profunda
estrutura sobre a qual a história do Evangelho apoia-se. “Lucas usa protótipos
37
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

bíblicos para construir cenas inteiras. Em ambos os volumes [Lucas e Atos], histó­
rias peculiares de Lucas parecem depender da imitação de modelos bíblicos, seja
por detalhes linguísticos ou pela completa estrutura da história” (Johnson, 1991,
p. 409). O mundo histórico de Lucas não é um mundo novo, de forma alguma;
é uma extensão de um mundo existente de significado já conhecido dos leitores.
Nesse sentido, a “reescrita parabíblica” descreve precisamente a atividade literária
de Lucas. O ponto-chave é que ele usa a história do AT para explicar o mundo no
qual o seu público vive — uma história viva constantemente desenvolve novos
níveis de significado para Lucas e seus leitores.
Todos os escritores dos Evangelhos usaram o AT como fundamento de seu
mundo histórico, mas Lucas usou essa abordagem de forma muito mais ampla.
Isso pode ser visto de duas formas importantes. A primeira é a forma como a estru­
tura das narrativas de Lucas sobre a infância de João e de Jesus referem-se ao AT.
Dentre os muitos exemplos que serão notados neste comentário, observe a esterili­
dade de Isabel (1.6,7 — Gênesis; Êxodo; Deuteronômio), a tradição dos nazireus
por detrás da abstinência de João (1.15 — Números; Levítico), a semelhança do
ministério de João com o de Elias (1.17 — Malaquias), a sucessão do poder daví-
dico (1.32,33 — 2 Samuel; Isaías; Salmos), a dependência intertextual do cântico
de Maria com o cântico de Ana (1.46-56 — 1 Samuel; Salmos; Miqueias) e até as
referências à estatura física de Jesus, que reflete as histórias de Samuel, Saul e Davi
(1.80 — 1 Samuel). Essas são apenas algumas maneiras pelas quais o primeiro ca­
pítulo depende dos temas do AT para obter-se uma estrutura mais profunda do
mundo histórico. Cada página do Evangelho contém alguma conexão com o AT.
Segunda importância: o Jesus de Lucas relê o AT extensivamente em Suas
aparições pós-ressurreição. No último capítulo do Evangelho, o Jesus de Lucas
engaja-se em um extensivo estudo bíblico, que faz uma releitura e reaplica nume­
rosos textos do AT, para que sejam agora compreendidos à luz do evento da res­
surreição. Jesus censura os dois discípulos no caminho de Emaús: “Como vocês
custam a entender e como demoram a crer em tudo o que os profetas falaram!
Não devia o Cristo sofrer estas coisas, para entrar na sua glória?
E começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que constava a res­
peito dele em todas as Escrituras” (24.25-27).
Os discípulos, de fato, recebem novas lentes hermenêuticas com as quais re­
leem suas Bíblias e reinterpretam o significado de crucificação e ressurreição. As
respostas estão lá em Moisés e nos profetas, e Jesus argumenta-as. No entanto, é
38
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

somente por meio da ressurreição que os discípulos recebem a chave para compre­
enderem o que estava escondido naqueles textos.
Essa observação tem significação para o autoconhecimento da comunidade
de Lucas. Aquelas pessoas não eram meramente canais para a tradição do AT, mas
eram esclarecedoras dessa tradição. Por intermédio do Jesus ressuscitado, elas pos­
suíam um novo e profundo conhecimento, escondido das gerações prévias e agora
revelado pela ressurreição.

4. Os primeiros leitores
Para quem Lucas escreveu o seu Evangelho? Já que nada se sabe sobre a comu­
nidade na qual ele vivia, as tentativas de descrevê-la são uma questão de conjectura.
Todavia, a informação sobre a comunidade dos primeiros leitores pode ser deduzi­
da por sua abordagem teológica.
Primeiro, a mensagem tem um apelo fundamental àqueles que estão fora do
judaísmo étnico. Ela é um convite para os que eram anteriormente excluídos, a fim
de que se unam à salvação do Deus de Israel. Numerosas histórias no Evangelho
tornam esse ponto evidente (a viúva de Sarepta em Sidom, Naamã, o sírio [ambos
do material L], o centurião, o endemoninhado geraseno [ambos do material sinó-
tico], o banquete messiânico, no qual os filhos de Israel são excluídos e outros são
incluídos [material QJ). Quando essa ênfase é combinada com a mensagem do
evangelho de Atos aos gentios, sugere-se que, pelo menos parcialmente, o público
de Lucas não era judeu.
Entretanto, essa não é a história completa, já que Lucas, assim como todos os
Evangelhos, também apela à exclusão dos judeus étnicos dentro de Israel (os lepro­
sos, os publicanos e pecadores, a mulher com o fluxo de sangue [todos Sinóticos],
a mulher pecadora, os samaritanos, o filho pródigo, Lázaro, Zaqueu [todos L], o
grande banquete ignorado [QJ). Logo, é difícil categorizar o público do Evange­
lho como judeu ou como gentio, já que ele apela a todos os que estão sofrendo
uma exclusão baseada na ortodoxia religiosa. O primeiro público de Lucas quase
certeiramente incluía tanto judeus quanto gentios.
Se esse Lucas for o companheiro de Paulo, que viveu viajando amplamente
pela bacia do Mediterrâneo, podemos concluir que o seu público era, em gran­
de parte, não palestino. Sua pouca noção de geografia palestina sugere que o seu
Evangelho foi a criação de uma diáspora; e o seu apelo principal seria o público
daquele mundo.
39
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

B. Temas teológicos em Lucas

1. Os pecadores encontram o arrependimento


No mundo teológico de Lucas, os pecadores arrependem-se e encontram um
caminho para a salvação por meio do encontro com Jesus. Esse é o paradigma te­
ológico principal de seu Evangelho. Em seu tratamento recente com o papel e a
função do arrependimento em Lucas/Atos, Guy Nave descreve a ênfase de Lucas:
A principal palavra grega para “arrepender” e “arrependimento” ocorre 25
vezes em Lucas/Atos. Isso significa mais de 45% de todas as ocorrências no
Novo Testamento inteiro. Somente Lucas apresenta João Batista definin­
do a aparência dos “frutos dignos de arrependimento”. Apenas ele conta
histórias de Jesus convocando o povo para arrepender-se. Lucas ilustra,
exclusivamente, Jesus convencendo o perverso a arrepender-se e apagar de
volta seus ganhos ilícitos. Somente Lucas/Atos oferece relatos explícitos
de pessoas respondendo aos chamados ao arrependimento proferidos por
João Batista, por Jesus e pelos discípulos. Apenas Atos retrata Pedro eco­
ando João Batista e convocando as pessoas: “Arrependam-se, e cada um de
vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo para perdão dos seus pecados”
(At 2.38). E o livro Atos, e não as epístolas paulinas, que registra Paulo
declarando (em duas ocasiões) que o seu ministério incluía proclamar a
mensagem do arrependimento. O arrependimento é, sem dúvida alguma,
um aspecto fundamental de Lucas/Atos. (2002, p. 3)
A teologia do arrependimento, em Lucas, está baseada na dicotomia na
qual as pessoas estão separadas em grupos: aquelas que entendem e aceitam a
posição divina de Jesus; e aquelas que a rejeitam. Os personagens da história
são, por um lado, os pecadores, os discípulos e as multidões que aceitam a Jesus
como um homem de Deus. Por outro lado, são a elite religiosa: os sacerdotes,
os fariseus, os escribas e seus associados que estão indispostos a aceitarem Jesus
como um profeta. A tremenda ironia, é claro, para todos os Evangelhos, é que
os pecadores possuem visão espiritual, e a elite religiosa é espiritualmente cega.
A proclamação inicial do convite ao arrependimento é feita por João Ba­
tista em Lucas 3.3,8. O tema do arrependimento é depois materializado na
vida de seis indivíduos que se encontram com Jesus (veja Tannehill, 2005, p.
84-101). A confissão de Simão Pedro introduz o tema: “Afasta-te de mim, Se­
nhor, porque sou um homem pecador!” (5.8). Isso aparece próximo à história
40
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

do chamado de Levi (5.27-32) e da controvérsia entre Jesus e os fariseus sobre


a comunhão com os pecadores. No final dessa história, Jesus anuncia: “Eu não
vim chamar justos, mas pecadores ao arrependimento”.
O arrependimento também é a proclamação paradigmática da parte cen­
tral de Lucas. Depois, vem o arrependimento da mulher pecadora em 7.36-50,
do filho pródigo em 15.11-32, do publicano em 18.1-8 e, finalmente, do arre­
pendimento de Zaqueu, o cobrador de impostos em 19.1-10.
Na passagem final sobre Zaqueu nessa temática, um anúncio conclusivo
sobre o arrependimento dos pecadores é encontrado: “Hoje houve salvação
nesta casa! Porque este homem também é filho de Abraão. Pois o Filho do
homem veio buscar e salvar o que estava perdido” (Lc 19.9,10). Essa declaração
faz o encerramento do ministério galileu, quando Jesus entra em Jerusalém no
final do capítulo 19. Talvez seja o objetivo de Lucas que aqueles que lessem cui­
dadosamente pudessem encontrar a oportunidade para a sua própria redenção
nas histórias desses penitentes. Se esses terríveis pecadores podiam ser salvos,
os leitores concluiriam muito bem que eles também poderiam ser salvos. Se for
assim, o propósito retórico de Lucas não é apenas contar a história de Jesus,
mas induzir os leitores ao arrependimento.
As causas para o arrependimento de seus leitores são variadas: um milagre
(Pedro), um chamado (Levi), estar na presença de Jesus (a mulher pecadora), a
experiência de uma necessidade extrema (o pródigo), a santidade no templo (o
publicano) e uma visita de Jesus (Zaqueu). Os resultados da experiência tam­
bém são diferentes: Pedro prostra-se de joelhos; Levi abandona sua mesa de
coleta; a mulher pecadora fica cheia de remorso e gratidão; o pródigo humi­
lha-se e volta para casa; o publicano bate no peito, e Zaqueu promete devolver
o dinheiro. Contudo, todos são transformados de alguma maneira.
Existe uma linha de narrativa que permeia a ilustração desses pecadores —
um sentimento compartilhado de santidade. Todos eles experimentam temor e
reverência em seu encontro com Jesus. E há um resultante sentimento de culpa
pessoal (e institucional) que leva ao arrependimento e à transformação. Essas
experiências dos personagens de Lucas alimentam o seu paradigma de arrepen­
dimento e perdão no decorrer do Evangelho.
Na perspectiva da teologia prática, será que essa salvação pelo
arrependimento e perdão é expressa na plena transformação do indivíduo?
Nós não vemos nesse Evangelho o resultado de discípulos transformados
em cristãos cheios do Espírito. Na ilustração dos pecadores, enxergamos o
exterior da operação do arrependimento e do perdão, mas não o interior. Pedro
permanece uma figura quebrantada no final do Evangelho. Não sabemos do
41
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

destino da mulher pecadora do capítulo 7 ou do futuro do filho pródigo do


capítulo 15, nem do destino do publicano arrependido do capítulo 18.
A vida do cristão cheio do Espírito, a culminação desse tema, será traçada
na história do Pentecostes e além, no livro de Atos dos Apóstolos. Nele, en­
contraremos muitos exemplos de como o arrependido será capacitado a viver
uma vida no Espírito. Contudo, aqui, no Evangelho, os “frutos que mostrem
arrependimento”, descritos por João, permanecem escondidos.
E por meio dos encontros de Jesus com esses indivíduos e do conflito que
isso gera com os religiosos contemporâneos que Lucas define o que Jesus veio
realizar. Os pecadores arrependem-se, e os líderes religiosos demonstram ape­
nas o escárnio dos desprezados. Essa é a máquina do conflito que impulsiona a
narrativa do Evangelho adiante.

2. A eleição redefinida
Em Lucas, os termos usados para descrever o relacionamento da huma­
nidade com Deus são mudados de eleitos (Israel) e não eleitos (as nações ou
os gentios) do AT para “perdidos” e “achados” do Evangelho. Colocando isso
de outra forma, os israelitas, como o povo de Deus no centro da história da
salvação, são substituídos por um novo povo — aquele que se arrepende e é
perdoado. A categoria de “nações”, característica da teologia do AT, é suplan­
tada por uma nova categoria, os perdidos — todos os que se recusam a aceitar
o Messias de Israel.
Nesse novo conceito de salvação, Israel é privilegiado ou excluído, conde­
nado ou salvo; é um povo que simplesmente perde sua posição de ser singu­
lar entre os escolhidos. Assim como todos os povos, ele deve arrepender-se e
humilhar-se diante de Deus. Para usar a ilustração de Lucas 13.22-30, aqueles
que não se arrependerem, sejam judeus ou gentios, achar-se-ão excluídos do
banquete messiânico. Eles serão deixados de fora, nas ruas escuras e perigosas.
“Em Lucas/Atos, a expansão da salvação e a inclusão de todas as pessoas da
família de Deus representam o plano do Senhor. Além do mais, a reação de
arrependimento do homem à oferta da salvação abrange uma parte vital desse
plano” (Nave, 2002, p. 29).
Em Lucas, então, a aliança entre Deus e Sua vinha, Israel (Is 5), ficou
subordinada a uma mensagem de salvação mais ampla. Essa é uma inovação
teológica tão radical dentro da narrativa que os discípulos de Jesus respondem:
“Que isso nunca aconteça!” (20.16; veja 20.9-19). No paradigma de Lucas,
Israel tem pleno acesso à salvação, porém não mais baseado na eleição. Ao
42
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

contrário, o seu acesso é na base do arrependimento e do perdão, assim como


todas as demais nações.
Embora seja demonstrado em cada uma das ilustrações dos pecadores an­
teriormente relatadas, isso alcança sua plena expressão na história do filho pró­
digo, no coração do Evangelho de Lucas. No capítulo 15, Lucas mostra o que
devemos sentir (humildade) e o que devemos fazer (arrepender-nos) para en­
trarmos no caminho da bondosa vontade de Deus. Dessa forma, o Evangelho
de Lucas fornece a antropologia da nova experiência da salvação. A essência
existencial da reação apropriada ao evangelho é a experiência da humildade e
do arrependimento — duas emoções muito humanas.
A capacidade de o perdido encontrar seu caminho de volta a Deus está no
centro desse novo paradigma de salvação. Não é somente por meio de Sua von­
tade que eles deverão ser salvos, mas também pelo que eles sentem e fazem em
resposta a essa graça. Isso se torna possível pela graça de Deus e é possibilitado
pela graça antecipada (como os wesleyanos diriam). No entanto, o que é novo
aqui, da perspectiva dos Evangelhos Sinóticos, é a profunda função da vontade
humana e sua capacidade de buscar e encontrar a salvação do Senhor. Aliás, no
entendimento de Lucas sobre o evangelho, a salvação de Deus não pode ser
encontrada sem o movimento do coração do homem em direção a Ele. Nesse
sentido, a teologia de Lucas funciona com a visão que os wesleyanos têm adota­
do como uma premissa teológica: aquilo que fazemos e até aquilo que sentimos
têm significância para a nossa salvação. As ações e as atitudes do coração não
causam a salvação. Elas não são nem mesmo o mecanismo operativo central da
salvação (que é a graça de Deus). Entretanto, a salvação não pode ser experi­
mentada sem a ação correta e um coração humilde. Isso está completamente de
acordo com os ensinos de Jesus, conforme apresentados por Lucas.
Os exemplos dos pecadores da especial temática de Lucas demonstram essa
questão. A mulher pecadora, em 7.36-50, chora em penitência aos pés de Jesus.
E seus pecados são declarados “perdoados” (v. 48). O filho pródigo, humilhado
e cheio de remorso por causa de suas monumentais transgressões, encontra um
abraço do pai e a restauração à sua família (15.11-32). O fariseu e o publicano
ficam lado a lado no altar do templo. Contudo, é o homem que bate no peito e
evidencia um coração humilde de arrependimento que vai “para casa justificado”
(18.14). Jesus declarou que Zaqueu era um dos perdidos que Ele “veio buscar e
salvar” (19.10), porque ele zelosamente prometeu ser justo e promover devoluções
por quaisquer delitos de seu passado. Todos esses pecadores demonstraram como
a salvação funciona. A conduta deles como pecadores arrependidos exemplifica
a vida de santidade e plenitude que Jesus veio disseminar.
43
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Os gentios realmente encontram o caminho para Jesus no Evangelho, ali­


ás, demonstram uma grande fé (7.1-10; 23.7). A semente da integração do gen­
tio está contida no sermão inaugural de Jesus em Nazaré. Nele, Cristo exalta a
bondosa inclusão de Deus quanto aos gentios por intermédio de Elias e Eliseu
(4.25-30). Todavia, a significância desse novo paradigma não é plenamente re­
alizada na teologia de Lucas antes de seu segundo volume, Atos dos Apóstolos.
Neste, os primeiros não judeus a serem incluídos no movimento cristão fazem
isso na base do arrependimento e do perdão, demonstrando que não é pela
identidade étnica ou pelos termos históricos da referência de Deus e de Sua
nação eleita que a salvação funciona (At 10.43).
O novo mecanismo da salvação é a atitude do coração — independente­
mente se o indivíduo é judeu ou gentio. E aí, no deslocamento do evangelho
de Jerusalém para Roma, em Atos, que a nova visão de Lucas sobre o acesso
universal à salvação emerge — o estágio da salvação é vastamente expandido
para a nova era da Igreja (veja mais, Por trás do texto, Lc 15.1-10).

3. Outros temas
Jerusalém. Lucas é um autor cujo olhar repousa sobre o centro geográfico do
judaísmo do templo — Jerusalém. A história viaja em um circuito, começando
em Jerusalém e seus arredores com as narrativas do nascimento de João e do de
Jesus, e depois vai da Galileia de volta a Jerusalém, nos capítulos 5— 19, em que
o drama final acontece nos capítulos 20—24. Como é a cidade de Seu destino
(9.31,44,51), Jesus não pode perecer em nenhum outro lugar (13.33). Ele parte
de Jerusalém após a Sua ressurreição, indicando a trajetória exterior que o evange­
lho, então, percorrerá (24.15,46,47). Dessa órbita em torno da cidade mais santa
do judaísmo, esse centro de gravidade, a mensagem será lançada ao mundo gentio.
Esperança suspensa. Existe também um forte sentimento de expectativa
messiânica davídica no decorrer do Evangelho (1.32; 18.35-43). A comunida­
de de Lucas havia ficado desanimada na antecipação de seu livramento. Mui­
tas décadas se passaram desde que Jesus andara pelas montanhas da Galileia,
e Paulo já havia morrido há tempos. Aquela era uma comunidade que queria
desistir. Lucas lidou com esse tema em seu material especial em 18.1-8 (veja
também o comentário em 21.19). A hostilidade contra o movimento cristão
havia se tornado a realidade dominante na época em que o Evangelho de Lucas
foi escrito. A perseverança da comunidade da fé é uma das lentes fundamentais
pela qual a narrativa de Lucas deve ser lida. É nesse sentido de esperança sus­
pensa que o material de Lucas sobre a expectativa messiânica discorre.
44
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

C. Temas e métodos literários


Todos os comentários têm bases metodológicas com as quais abordam o
texto, e as ferramentas do estudo do N T têm sido ricamente variadas na his­
tória da erudição. No período pré-moderno, os métodos interpretativos liam a
Escritura pelas lentes da piedade pessoal, da autoridade de Igreja, da alegoria e
até da pesquisa filosófica. Esse período era caracterizado pela ausência do ceti­
cismo histórico tão característico do período moderno.
Quando as questões sobre a precisão histórica dos Evangelhos começaram
a surgir em meados do século 19, outros métodos mais científicos começaram
a ser aplicados ao estudo da Escritura. Esses métodos, frequentemente, busca­
vam estabelecer “o que realmente aconteceu” e remover aquilo que se acredi­
tava ser uma aparência de mito piedoso, o qual se acumulara à literatura nos
estágios iniciais de sua preservação.
No século passado, muitos tipos de métodos interpretativos produziram
novos esclarecimentos quanto ao significado da Escritura. Os nomes são fami­
liares aos alunos da literatura bíblica: criticismo da forma, criticismo da fon­
te, criticismo textual e linguístico, para citar apenas alguns. Intérpretes mais
recentes têm usado métodos de teoria histórica, sociológica, feminista, pós-
-moderna e literária para minerar os textos antigos do AT, a fim de alcançarem
dimensões adicionais de significado.
A preocupação primordial neste volume é ler Lucas como uma unidade
literária. Isso equivale dizer que o propósito aqui é mais “interpretativo” do
que “documentário” (como em Green, 1997, p. 15). Os métodos empregados
concentram-se nos temas, nas mensagens e em mecanismos distintos de Lucas.
Uma quantidade significativa de material encontrado em Lucas não é nem de
Marcos, nem de Mateus. Logo, um material “especial” de Lucas é especialmen­
te importante para os propósitos desta leitura literária, cuja análise provê a fon­
te mais rica para a compreensão das perspectivas peculiares de Lucas e recebe
uma atenção particular.
Nós iremos também enfatizar plenamente as forças retóricas persuasivas
que Lucas traz aos seus leitores. Ele é um evangelista no sentido de que busca
convencer seus leitores a adotar uma vida de arrependimento e redenção. Existe
uma forte corrente de reação do leitor em ação na narrativa, que Lucas procura
influenciar seus leitores a tomarem decisões redentoras sobre a sua mensagem.
Ocasionalmente, faremos uma pausa e consideraremos a reação que o Evange­
lho de Lucas procura extrair de seus leitores.
45
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Este comentário não presume apresentar uma análise literária altamente


técnica. Ao contrário, ele lida com as realidades simples da história como uma
literatura, a fim de garimpar o significado e a intenção de Lucas. Alguns dos
elementos que serão comumente referidos são: a intertextualidade da narrativa
com o AT, o desenvolvimento de sua trama, a estrutura da narrativa e, espe­
cialmente, o modo pelo qual o autor desenvolve os seus personagens (carac­
terização). O uso frequente do termo “narrativa”, por exemplo, indica que o
Evangelho deve ser entendido como uma criação literária unitária. Essa simples
estrutura literária de referência pretende elucidar um significado que, às vezes,
passa despercebido pela pesquisa histórica tão somente.
Ocasionalmente, o termo “mundo histórico” é usado. Ele refere-se à ideia
geral que constitui o mundo do pensamento do autor. No mundo histórico
de Lucas, por exemplo, as intervenções sobrenaturais são reais: Deus previu o
advento do Messias, os demônios existem, vozes do céu são ouvidas, os mortos
são ressuscitados, e os enfermos são curados milagrosamente. Essas realidades
constituem a base do mundo histórico de Lucas, sua estrutura ideológica de re­
ferência. Nós podemos compartilhar a crença nessas realidades com Lucas; ou
podemos achar esses acontecimentos fantásticos e até incríveis. Contudo, eles
são reais para Lucas, e nenhum dos Evangelhos pode ser lido proveitosamente
sem que haja um apreço por essa visão de primeiro século do mundo e sua rica
riquíssima variedade de poderes espirituais.
A análise literária não se preocupa muito com a pesquisa histórica. Ela
enfatiza a função do autor em transmitir o significado, em vez de avaliar sua
precisão histórica ou procurar descobrir “o que realmente aconteceu”. Esse uso
do método literário não tem a intenção de depreciar a pesquisa histórica, nem
mesmo de suplantá-la. Ele tem a intenção de suplementar o método histórico
que está interessado em outros tipos de questões. Enquanto a pesquisa históri­
ca também estiver presente neste comentário, a análise literária trará ferramen­
tas alternativas para descobrirem-se outros níveis de significado no texto.

D. Estrutura e trama
Algumas observações gerais podem ser feitas sobre a trama do Evangelho
de Lucas. Em Marcos e Mateus, o ministério de Jesus, quando adulto, aparece
completamente formado no capítulo 1. Lucas, seguindo um prólogo normal,
expõe um complexo contexto cronológico e religioso para as origens de Jesus.
46
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Sua história começa com uma extensa narrativa do precursor do Messias, João
Batista. Tendo criado esse contexto, Lucas passa para o nascimento de Cristo, e
dois acontecimentos no templo confirmam a Sua identidade como o escolhido
de Deus (Simeão e Ana). Pulando para 12 anos depois, Lucas traz uma ilustra­
ção do menino Jesus no templo, trazendo mais confirmação e complexidade à
imagem do jovem. Com outro salto cronológico de 18 anos, a história começa
a convergir com o retrato sinótico do início do ministério de João como um
homem já adulto.
Seguindo o teste inaugural de sua lealdade a Deus no deserto, a parte cen­
tral do Evangelho de Lucas começa recontando o ministério de Jesus em Sua
cidade natal e nos arredores. A porção galileia de Seu ministério estende-se até
9.50. Em uma série de eventos de curas, exorcismos e ensinamentos, o ministé­
rio de Jesus é apresentado com a aprovação de Seus seguidores e do público em
geral. Obscuridades começam a surgir, entretanto, quando os líderes religiosos
fazem objeção à Sua conduta. Desde questões legais, do tipo de companhia que
Ele tinha até as referências cada vez mais evidentes à Sua identidade como Fi­
lho de Deus, um ethos de conflito começa a formar-se em torno de Jesus como
uma figura controversa. O auge dessa seção é a transfiguração, na qual a Sua
identidade é plenamente revelada, e Seus oponentes são claramente revelados
como injustos. O palco agora est dark edges á preparado para o restante da
história.
No final do capítulo 9, numerosas referências ao martírio começam a surgir
no texto, e o Seu percurso para Jerusalém, cidade de Seu destino, fica estabele­
cido. Ali, Ele encontrará a Sua morte preordenada. Dos capítulos 10 a 19, Jesus
ministra no caminho para Jerusalém em um contexto narrativo cronológico e
geográfico levemente apresentado. Na medida em que a narrativa desenvolve -
-se rumo à climática entrada em Jerusalém, muito do material peculiar de Lu­
cas é encontrado: Suas parábolas sobre o filho perdido, o administrador astuto,
o fariseu e o publicano e a história de Zaqueu. Essas características constituem
a influência mais marcante de Lucas na tradição do Evangelho.
Uma vez que Jesus entra na cidade sagrada, a história de Seu sofrimento
fica bem paralela à tradição sinótica. Seguidamente à Sua morte, Lucas
novamente traz um material exclusivo para lançar na narrativa pós-ressurreição,
no caminho de Emaús. Ali, o Jesus ressurreto torna-se o Jesus da Igreja — um
mestre interpretando as Escrituras para encorajar Seus discípulos que, agora,
serão comissionados a ensinarem o Seu evangelho às nações. Nesse ponto,
termina a história do Evangelho, que será continuada no “segundo volume” de
Lucas, o livro de Atos dos Apóstolos.
47
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

E. Conflito
A trama tem uma máquina de conflito impulsionando a história adiante.
Em Lucas, cinco histórias de conflito fornecem o combustível para a contro­
vérsia em torno de Jesus: a cura do paralítico (5.17-26); o chamado de Levi
(5.27-32); a questão do jejum (5.33-39); a colheita do grão no sábado (6.1-5)
e a cura do homem da mão atrofiada, no sábado (6.6-11). Lucas segue Marcos
nesse material (Mc 2.1—3.6).
Todas as cinco histórias têm um formato comum:
• Uma cura ou acontecimento provocante ocorre no ministério.
• Os adversários de Jesus fazem objeção e desafiam-no verbalmente.
• Jesus responde com um provérbio, que traz resolução à passagem.
• Além do mais, todas elas identificam os fariseus como os principais opo­
nentes.
• Todas registram um incidente que gera oposição.
• Todas concluem com um ditado ou com uma ação que justifique Jesus.
Essas são histórias de conflitos partidários, é claro, e possuem valor limi­
tado na reconstrução do judaísmo histórico nesse período de tempo. Ainda
assim, nós conseguimos ter uma percepção de como Jesus provavelmente se
diferenciava de Seus contemporâneos.
Da perspectiva do leitor, as histórias apelam para um sentimento inato
daquilo que é correto e apropriado na prática religiosa. Jesus e Seus seguidores
veem o senso comum; e os fariseus são caracterizados como religiosos sérios,
que não conseguem enxergar a verdade inequívoca. Esse retrato dos fariseus é
contrastado rigidamente com o dos pecadores e enfermos que aceitam a autoi-
dentificação de Jesus como o Filho do Homem e alegram-se com Suas palavras
e Seus feitos. Esses são pecadores “sadios”, aqueles que, de fato, já ouviram o
médico de 5.31.
Cada um desses dois grupos paradigmáticos representa a extrema margem
dos injustos (Isto é, os pecadores que realmente são os santos!) e dos justos
(Isto é, os fariseus e outros que realmente são os pecadores!). Eles são colocados
em conflito, com Jesus mediando no centro.
As raízes dessa ideia estão na retórica de “as ovelhas perdidas de Israel”, vis­
ta primeiro em Ezequiel 34 (veja A partir do texto, em Lc 5.29-32; Por trás do
texto, em Lc 15. TIO, e o comentário; e a história de Zaqueu, em 19.1-10). Essa
ideia é reiterada por Jesus; e, assim, ela entra na tradição do Evangelho. O fato
de alguns membros de Israel serem considerados “ovelhas perdidas” provém
48
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

da crítica profética do AT do judaísmo do templo (veja as seções citadas ante­


riormente) e coloca o conflito principal do Evangelho na base desse criticismo.

F. Caracterização
Os autores constroem personagens para preencherem seus mundos his­
tóricos. Em certos pontos do comentário, alguma referência será feita sobre
como Lucas constrói os seus personagens. Ele confere aos personagens de sua
história, entre outras coisas, opiniões, motivação, padrões de comportamento
e falas, emoções, ambição, defeitos e fracassos. Os personagens desenvolvem
uma relação uns com os outros. Alguns são protagonistas, outros, antagonistas,
e ainda outros, espectadores. Por meio dos relacionamentos entre esses perso­
nagens, o autor constrói um mundo histórico de significado.
Na narração do Evangelho por Lucas, encontramos o diabo, Deus, os
profetas, Jesus, José, Maria, Zacarias e Isabel, João Batista, Simeão e Ana, os
discípulos, as multidões, os pecadores e os cobradores de impostos, Herodes,
Zaqueu, o filho pródigo, o bom samaritano, os fariseus e os mestres da lei, e
muitos outros. Esses são os protagonistas da história, e o que sabemos sobre
eles vem inteiramente da caracterização do autor sobre cada um. Uma rápida
olhada para Jesus e para os fariseus pode demonstrar esse ponto.
Em todos os quatro Evangelhos, Jesus é uma figura complexa, alguém que
faz uma ponte entre o mundo divino e o humano. Em Lucas, Jesus consegue
vencer todo tipo de oposição e tem confiança em Sua missão como o Filho
de Deus. Ele surpreende aquele à Sua volta, falando e agindo de maneira que
transforma aqueles a quem Ele encontra. No decorrer da narrativa, Cristo so­
brepõe o diabo e os fariseus por um lado, e a doença física, a insanidade e a
morte (do filho da viúva de Naim) por outro lado. Os demônios, os centuriões
e as multidões obedecem à Sua palavra e cumprem Suas ordens. Sua divindade
é atestada por todos esses feitos, pela voz do próprio Deus e pelos profetas da
antiguidade, que ficaram ao Seu lado no monte da Transfiguração.
Quando Jesus entra em Jerusalém, entretanto, Ele entrega-se aos poderes
ceifadores da morte e voluntariamente se submete às autoridades de Jerusalém,
até mesmo à morte na cruz. E necessário que Ele “sofra” e “seja morto” (9.22),
conforme a narrativa nos diz. E uma questão de compulsão redentora, e Ele,
final e prontamente, submete-se à autoridade dos sacerdotes por uma questão
de escolha. Quando Jesus morre, Ele o faz porque assim escolhe (“não seja feita
a minha vontade, mas a tua” [22.42]). E é aí que a força moral e espiritual da
49
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

morte reside. Ele é uma figura complexa e sobrenatural, mas é alguém com
quem o leitor rapidamente se simpatiza de maneira plena.
A escolha que Ele faz de submeter-se à cruz é central ao significado de Sua
morte. Pode-se até dizer que, da perspectiva de Lucas, Jesus sujeita-se à morte na
cruz como o Seu supremo ato de humildade. Essa é a mesma característica que
salva a todos no Evangelho de Lucas (veja mais no comentário em 23.32-43).
Toda essa caracterização faz parte da estrutura teológica de referência de
Lucas. Embora o mal tenha o seu dia de glória na crucificação de Jesus, isso
acontece com a permissão divina. Ao mesmo tempo, Jesus tem uma responsa­
bilidade que surge de Sua existência humana. O drama duplo da providência e
da agência humana mistura-se na apresentação da paixão por parte de Lucas.
O aspecto humano da natureza de Jesus está livre para agir (como afirma a
teologia wesleyana). Contudo, isso tudo ocorre dentro da agência soberana de
Deus. Esse é o supremo mistério da vinda de Cristo para o meio dos homens
— Deus e os homens como coautores em um mundo. A força da teologia wes­
leyana está na disposição de abraçar o mistério da função humana na ação di­
vina e de tentar entender a vida na ambiguidade desse mistério. Nesse sentido,
a caracterização de Jesus carrega o coração da mensagem teológica de Lucas.
A caracterização dos fariseus, por outro lado, é quase inteiramente nega­
tiva no terceiro Evangelho. Os fariseus servem como uma perfeita frustração
para a sabedoria e o poder de Jesus, os quais eles não conseguem compreender.
Eles são o exemplo negativo dos leitores, instruindo-os em como não devem
pensar e agir em relação à reivindicação de Jesus quanto à filiação.
Os leitores contemporâneos não devem, porém, adotar a caracterização
como um retrato histórico dos líderes judaicos em geral ou como a seita dos
fariseus em particular. Embora alguns de Seus contemporâneos realmente se
oponham a Jesus, essa caracterização dos líderes judaicos em oposição a Ele
deve ser reconhecida como um artifício literário. O estereótipo dos “fariseus”
como oponentes de Jesus originou-se em Marcos e foi assimilado por Mateus e
Lucas. Cada escritor deu à caracterização dos fariseus uma pátina exclusiva, às
vezes, simpática, mas geralmente negativa.
No Evangelho de João, essa tipologia alcançou sua forma mais importuna
quando os oponentes de Jesus foram chamados simplesmente de “os judeus”.
Esse uso reflete a crescente fenda entre o cristianismo e o judaísmo nos anos
mais avançados do primeiro século. Frequentemente, no passado do cristianis­
mo, a caracterização negativa dos Evangelhos era tomada literalmente como
uma descrição histórica, tornando o judaísmo em um implacável inimigo da
verdade.
50
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

A erudição, desde o meado do século 20, tem mostrado que o judaísmo


era diversificado no primeiro século d.C.. Uma caracterização negativa de to­
dos os judeus da Palestina naquele período não é nada mais apropriada do que
seria para qualquer grupo religioso em qualquer época. Jesus era judeu, afinal
de contas, assim como eram todos os discípulos e os primeiros cristãos. No en­
tanto, a realidade histórica era que alguns, talvez muitos, na liderança religiosa
do judaísmo, sentissem que o Mestre da Galileia fosse uma ameaça à prática do
judaísmo tradicional, como eles entendiam. Isso era particularmente verdadei­
ro com relação à lei e à santidade ritual. Todos os mestres, naquela época, deba­
tiam essas questões. Entretanto, Jesus era um operador de maravilhas e alguém
que tinha posições controversas sobre a lei, o Messias, e outras questões. Com
grandes multidões seguindo-o, Ele atraía atenção de pessoas influentes. Isso o
separava para uma violenta controvérsia (Lc 11.53; 19.47).

G. Lucas e a vida cristã

1. O apocalipse
A passagem desta presente época e a chegada do tempo futuro era uma ca­
racterística central na ideologia do cristianismo primitivo. As primeiras escritas
de Paulo são evidências de que o fim da história era tido como iminente, especial­
mente em 1 e 2 Tessalonicenses. A tradição sinótica também contém material que
lida com o fim da história e a introdução do mundo celestial que virá. Analisadas
em conjunto, as testemunhas dos Evangelhos e os escritos de Paulo indicam que
havia um grande sentimento entre os primeiros seguidores de Jesus de que o pre­
sente século estava rapidamente chegando ao fim e que o Reino de Deus seria logo
estabelecido.
O conceito de uma era futura, que suplantaria o mundo histórico, não começou
com o cristianismo. Suas raízes originais então em algum lugar nas distantes
origens da religião persa. A ideia da culminação da história foi provavelmente
trazida ao cristianismo pelas peregrinações dos judeus no exílio, na Babilônia no
quinto século a.C.. Ela começou a entrar no judaísmo do primeiro século, antes
de Jesus. Nos dois séculos anteriores a Jesus, os fariseus adotaram a ideia de uma
vida após a morte e um fim da história e incorporaram esse pensamento em sua
teologia. O judaísmo tradicional do AT tinha pouco a dizer sobre o céu e a vida
futura, conceitos completamente formados nos ensinos tanto de Paulo como de
Jesus.
51
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Os profetas do sétimo e oitavo séculos do AT olhavam para o futuro para dis­


cernir o caminho de Deus para a nação. Todavia, eles não olhavam muito adiante
no porvir. A profecia hebraica tinha a tendência de preocupar-se com as realidades
sociais e históricas de médio prazo da nação de Israel, e não com o amanhã distante
e o fim do mundo, que era uma característica da literatura apocalíptica do primeiro
século. Essa profecia de médio prazo era ancorada em um cenário sócio-histórico,
em particular, e baseada na esperança de que uma reforma da ordem atual estava
para chegar. Nesse tipo de profecia, Deus deveria operar por intermédio do Seu
povo para efetuar a reforma; o profeta interpretava “sua visão da presença de Deus
em uma realidade sócio-histórica real” (Chance e Home, 2000, p. 122).
A posição nacional de Israel foi corroída pelas potências estrangeiras no meio
do milênio, antes de Cristo. Concomitante com isso, o surgimento da ideia apoca­
líptica fez aparecer uma mudança no ímpeto profético. O seu foco foi mudado do
futuro próximo para o futuro distante. Nesse novo foco, a presente ordem mun­
dial terminaria, e a opressão e a injustiça dos inimigos do Senhor seriam varridas
para longe, pela intervenção final de Deus na história.
Enquanto a esperança de uma preeminência terrena de Israel declinava-se, a
confiança em uma visão mundial na qual a história seria engolida por uma nova
realidade mundial ganhava popularidade. Essa visão mundial era caracterizada por
uma falta de esperança de que o mundo, assim como existia, poderia ser redimido.
Isso significa que o tempo presente era tão corrupto que a sua reforma era impos­
sível. Ele deveria ser apagado, substituído por uma nova realidade celestial na qual
Deus reinasse sem a coação do mal. Nessa forma mais apocalíptica da escatologia,
Deus opera em favor de Seu povo para efetuar a introdução do Seu Reino.
Logo, temos essas duas visões competitivas do futuro no registro bíblico. Será
que Jesus era mais como um profeta hebraico preocupado em reformar o presente?
Ou será que Ele concebia um Reino na terra que logo chegaria? Nos estudos do
Evangelho, Marcos parece, para muitos, ser o mais apocalíptico em sua tonalidade
(Mc 13; veja, porém, as visões expressas por Brower, Marcos, também presente nes­
ta série, que enxerga Marcos 13 primariamente como estando relacionado à des­
truição do templo). A reedição de Marcos por Mateus também é considerada mais
inclinada ao apocalíptico. Lucas, entretanto, parece ter amenizado a natureza apo­
calíptica desse material (veja Fitzmyer, 1981, 1:18-22), assim como nós também.
A comunidade de todos os evangelistas tinha a sua própria perspectiva sobre
a transformação dos séculos. Quando mais desesperada fosse a situação dela com
respeito às potências da região, mais se engajaria em uma especulação apocalíptica
para aliviar o aparente desespero de sua luta. Lucas parece ter amenizado ainda
mais o tom apocalíptico de Marcos e Mateus.
52
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Diversas características dão vazão a essa observação: a mais óbvia é que Lu­
cas escreveu uma obra em dois volumes, que contava não só a história de Jesus,
mas também a história da Igreja primitiva, isto é, Lucas viu o drama da história
desenrolando-se em três estágios: a era da lei e dos profetas, a era de Jesus na terra
e a era da Igreja (à qual o livro de Atos é dedicado; Conzelmann, 1982, p. 95). O
último estágio era entendido por Lucas como um longo espaço de tempo, a era da
Igreja. Essa ênfase deu ânimo à jovem Igreja para viver no mundo assim como ele
era, enfrentar as perseguições e engajar-se nos empreendimentos missionários em
um esforço para transformar o mundo.
A inclinação para amenizar o sentimento apocalíptico do material do Evan­
gelho pode ser visto de outras formas. Lucas é conhecido, como abundantes evi­
dências neste comentário demonstrarão, por sua preocupação com o atual sofri­
mento do pobre, do enfermo e do marginalizado. A evidência do Reino é a cura
dos doentes e a expulsão dos demônios no tempo presente, isto é, na mitigação do
sofrimento neste mundo.
Em Lucas 6.20, a bem-aventurança diz: “Bem-aventurados vocês, os pobres, e
não os pobres em espírito”, como em Mateus 5.3. Em Lucas, a teologia do arrepen­
dimento e do perdão parece cobrir a teologia da redenção pela obra da cruz. Seus
seguidores são exortados a tomar aquela cruz e a carregá-la “diariamente” (9.23).
A comunidade de Lucas aceitou a vida cristã como um compromisso para a vida
toda, sem expectativa alguma de uma morte prematura trazida pelo fim do mundo.
Considerar que Marcos 13 é ou não um texto apocalíptico é uma questão de
debate. Entretanto, Lucas especificamente lança o denominado “pequeno apoca­
lipse” no contexto da destruição de Jerusalém. Para Lucas, os eventos de 17.22-37
e 21.5-38 são uma exortação para suportar-se a conquista de Jerusalém pelo exér­
cito romano em 70 d.C.. Logo, Lucas escolhe lançar o material apocalíptico de
Marcos no cenário sócio-histórico do período da destruição de Jerusalém.

2. Discipulado
A próxima observação na distinta teologia de Lucas vem da nova visão de dis­
cipulado que emerge na narrativa pós-ressurreição. Há muito se observa que Lucas
conserva uma perspectiva da “história da salvação” em sua obra de dois volumes.
Isso significa que ele coloca a experiência cristã em um contexto no qual uma am­
pla longevidade da Igreja é esperada. Logo, o segundo volume de sua obra (Atos)
lida com os primeiros dias da Igreja e com a transformação de um movimento
sectário em Jerusalém para um movimento religioso em Roma. O Evangelho de
53
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Lucas desenvolve uma teologia para levar a Igreja àquela vida amplificada na terra
após a partida de Jesus, na ascensão.
O fundamento para essa tradução em Lucas/Atos é o esclarecimento dos
discípulos no período da pós-ressurreição. Como notaremos no comentário em
24.13-27, o encontro com o Jesus ressurreto no caminho de Emaús é uma indica­
ção de que o discipulado implicará em um compromisso para toda a vida, e não
apenas um breve interlúdio antes da chegada do Reino. Ali e nas subsequentes apa­
rições aos discípulos, Jesus torna-se o Mestre ressurreto. Ele reinterpreta as Escri­
turas hebraicas para os Seus seguidores em luto. Ele repreende-os, dizendo: “Não
devia o Cristo sofrer estas coisas, para entrar na sua glória?”.
Ele, então, coloca em operação uma nova exegese da Escritura hebraica à luz
da ressurreição: “E começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que
constava a respeito dele em todas as Escrituras” (24.27). Aos discípulos reunidos,
Ele diz: “Foi isso que eu lhes falei enquanto ainda estava com vocês: Era necessário
que se cumprisse tudo o que a meu respeito estava escrito na Lei de Moisés, nos
Profetas e nos Salmos” (v. 44).
Isso é tão importante quanto o aspecto eficaz da vida cristã em Lucas e o seu es­
plendor no período pós-ressurreição. Os discípulos não receberão a esperada vindica-
ção pública da identidade messiânica de Jesus na parusia. Ao contrário, eles serão cha­
mados para viver a duração da vida em fé, em estudo e em reflexão. Os discípulos da
pós-ressurreição terão de buscar um novo entendimento da Escritura. Então, eles deve­
rão viver em testemunho da verdade, que permanece velado a todos, exceto aos cristãos.
A compreensão da vida cristã como uma longa jornada de serviço a Deus está
no fundamento do compromisso wesleyano do viver santo. E uma vida capacitada
pelo Espírito, mas também uma vida vigorosa de testemunho, estudo, oração e
persistência. De acordo com o Jesus ressuscitado de Lucas, essas eram as novas
realidades da experiência cristã da pós-ressurreição. Uma vida de esforço para ser
santo em fé e palavra é transmitida à Igreja, no caminho de Emaús, naquele dia. E a
partir desse novo paradigma de discipulado que os cristãos obtêm o seu chamado,
e a vida santa obtém sua necessidade.
Outro aspecto importante do novo discipulado em Lucas é a observância da
Ceia do Senhor. Essa é uma experiência que conecta os cristãos em um ritual sa­
grado de união (veja o comentário em 24.28-35, A partir do texto). Já que isso
representa a presença de Jesus dentro da Igreja, o símbolo teológico da comunhão
reside próximo ao centro da teologia da santificação. Antes de Sua paixão, Jesus
encontrou-se com Seus discípulos para instituir a Santa Ceia. O pão e o vinho
representam a Sua presença em memória.
54
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Após a ressurreição, o Jesus ressurreto senta-se à mesa com os dois que o en­
contraram no caminho de Emaús. “Quando estava à mesa com eles, tomou o pão,
deu graças, partiu-o e o deu a eles. Então os olhos deles foram abertos e o reco­
nheceram, e ele desapareceu da vista deles” (24.30,31). A ideia de Jesus presente
durante a refeição aparece novamente, quando Ele come na presença de Seus discí­
pulos, em 24.41-44. Durante aquela refeição, as mentes deles foram “abertas” por
Jesus.
No mundo histórico de Lucas, a Igreja da pré-ressurreição é unida com a Igre­
ja da pós-ressurreição, na mesa compartilhada com Jesus. A mesa da comunhão
une e santifica os cristãos de todos os tempos, da pré-ressurreição e da pós-ressur-
reição. E, de maneira semelhante, ela une todos os cristãos na presença de Cristo,
independentemente de denominação, doutrina ou nacionalidade. A santificação é
mediada à Igreja pela presença de Jesus à mesa. E Lucas quem mostra como a mesa
cobre o abismo entre o Seu ministério terreno e a Sua presença ressurreta na Igreja.
Acrescentando ainda à vida do cristão, existe uma ênfase wesleyana no tópi­
co da persistência na oração em 18.1-8 (veja A partir do texto). Nessa passagem,
encontramos a história de um juiz injusto que cede à súplica da pobre viúva, para
fazer-lhe justiça. Nessa história, Deus é representado pela figura de um juiz que
responde à súplica humana (11.1-4). De modo semelhante, nos versículos 5-8,
Deus é análogo ao amigo importuno ou ao compassivo Pai celestial, que não é
menos amável que o pai humano nos versículos 9-13. Em outras palavras, a von­
tade e a ação humanas podem mover Deus quando vêm em forma de um coração
ardente e santo.
Essa é a teologia de Lucas sobre a necessidade da oração. E uma teologia dis­
tintamente relacional, que enfatiza o dinamismo entre Deus e o cristão. A escolha
tem uma importância moral, e as responsabilidades do discipulado determinam
o relacionamento de alguém com Deus. A responsabilidade humana é relevante
para a vida. Esse destaque está na ênfase da teologia wesleyana sobre a graça res­
ponsável.
Finalmente, Lucas conduz o nosso coração a pensar sobre as questões morais.
Ele desafia-nos a aceitarmos um chamado radical para a santidade. E, na verdade, a
confusão moral de nosso mundo de mudanças rápidas que convida uma interpre­
tação renovada de Lucas e dos outros Evangelhos. Em tempos de rápidas mudan­
ças, um anseio pelo permanente e pela verdade leva-nos de volta à história de Jesus.
Qualquer leitor que se engajar seriamente no texto do Evangelho encontrará
nele uma produtiva experiência moral. Entretanto, aqueles que o fazem com um
coração de fé também o acharão espiritualmente vivificante, abrindo novas janelas
55
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de possibilidades para a vida de santidade. O presente de Lucas para a teologia do


Evangelho é a liberdade do espírito humano de escolher a redenção. A respon­
sabilidade de escolher a santidade vem junto com essa liberdade. Ao abraçar as
boas-novas da liberdade e da graça para escolher a redenção, o Evangelho também
convida seus leitores ao imperativo da vida santa.

Dissertação: As parábolas em Lucas


Uma característica central do ensino de Jesus nos Evangelhos é o uso do
gênero da parábola. Lucas usa inicialmente o termo parábola, parabolè, em
4.23, 5.36 e 6.39 ARC. Entretanto, esses ditados são mais parecidos com os
provérbios do que com os exemplos amplamente desenvolvidos desse gênero
(Evans, 1990, p. 369). Em 4.23, a NVI traduz essa palavra como provérbio. Em
8.4, Lucas usa a palavra no primeiro exemplo substancial de uma parábola na
narrativa (|| Mt 13.1-23 e Mc 4.1-20).
Lucas contém muitas parábolas exclusivas. Jeremias identifica 37 parábolas
sinóticas, das quais 14 aparecem somente em Lucas (1972, p. 247,248). Com
uma concentração tão pesada de um material exclusivo, Jesus é, como certo au­
tor expressou, o autor dessa parte do terceiro Evangelho (Shillington, 1997, p.
xiii).
As questões que surgem na interpretação das parábolas em Lucas são, obvia­
mente, comuns aos três Evangelhos Sinóticos. Primeiro, a definição: O que é uma
parábola? E uma breve história ilustrativa que tem uma moral a contar. Contudo,
questões complexas de interpretação surgem na leitura das parábolas. Será que as
parábolas são charadas designadas a esconder algum significado? Ou são histórias
autoexplanatórias, cujas lições são designadas a ser óbvias a todos? Será que elas
transmitem apenas um significado objetivo de baixo nível, como nas interpreta­
ções alegóricas? Ou são metáforas complexas, cuja experiência é diferente para
leitores em diferentes épocas e lugares ?
Essas são algumas das perguntas que a pesquisa da parábola tem feito. No
final do século 19, Adolfjülicher (Die Gleinchnisreden Jesu, 1886) foi o primeiro a
desafiar o antigo método de interpretação alegórica para as parábolas, um método
no qual tanto os evangelistas do NT quanto os pais da Igreja primitiva eram
particularmente apegados. Jülicher, seguindo Aristóteles, pensava que as parábolas
tivessem uma única moral — livre da preocupação alegórica com detalhes (Young,
1989, p. 23). Ademais, ele distinguiu o uso “direto” e “indireto” (literal e não
literal) da linguagem nas parábolas. O primeiro transmite o sentido convencional
56
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

PARÁBOLAS EXCLUSIVAS EM LUCAS


Os dois devedores 7.41-43

0 bom sam aritano 10.25-37

0 amigo im portuno 11.5-8

O rico insensato 12.16-21

A figueira infrutífera 13.6-9

Os lugares no banquete 14.7-11

O construtor de torre e o rei indo para a guerra 14.28-32

A dracma perdida 15.8-10

0 filho pródigo 15.11-32

0 adm inistrador injusto 16.1-8

, 0 homem rico e Lázaro 16.19-31

A recompensa do servo 17.7-10

O juiz injusto 18.1-8

0 fariseu e o publicano 18.9-14

(títulos segundo Jeremias, 1972)


da língua. O último comunica um mundo mais complexo de metáfora (Kjárgaard,
1986, p. 136). Essa distinção torna-se importante quando inquirimos se Jesus
intencionava esconder ou revelar Seu significado pelas parábolas.
No século 20, C. H. Dodd (Parables of the Kingdom, inicialmente publicado
em 1958) e Joachim Jeremias {The Parables of Jesus, inicialmente publicado em
1954) falaram da significância escatológica das parábolas de Jesus e elucidaram
seu fundamento judaico. Eles acreditavam que a chave para a interpretação das
parábolas estava em entender o Sitz im Leben delas, ou a “situação em vida” condi­
cionada histórica e socialmente (veja Young, 1989, p. 20-54).
A obra deles apoiava a visão de que os leitores modernos deviam entender as
parábolas como metáforas, e não como alegorias. Isso tem o efeito de libertar o sig­
nificado da parábola das amarras das interpretações alegóricas — aquelas impostas
57
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

pelo texto bíblico ou pelos subsequentes intérpretes. Uma vez que os intérpretes
afastam-se do método alegórico, múltiplos significados de parábolas emergem, e a
complexidade da tarefa interpretativa multiplica-se.
Enquanto a pesquisa da parábola progredia no decorrer do século 20, outras
definições mais técnicas surgiam. Estas enfatizavam a natureza sofisticada do gê­
nero. Bernard Brandon Scott descreveu a parábola como “curta narrativa de ficção
que faz referência a um símbolo transcendente” (1989, p. 8). Evans referiu-se às
parábolas como “pronunciamentos oraculares em forma de história conclamando
atenção a algum aspecto da regra de Deus ou do propósito divino” (1990, p. 372).
Shillington chama-as de “imagens criptografadas de uma nova realidade”, que ex­
plicam o símbolo transcendente do Reino de Deus (ex.: 8.1,10; 19.11; 21.29-31;
também Mt 13.24,31,33; 1997, p. 1).
Essas definições destacam o poder das parábolas de comunicar ideias meta­
físicas complexas, e não apenas simples lições de vida. Para balancear, o consenso
moderno é que as parábolas são muito mais do que simples histórias folclóricas
com uma moral única e simples.
Uma das questões mais controversas da pesquisa moderna da parábola é se as
interpretações fornecidas nos Evangelhos são originais de Jesus ou são fornecidas
pela Igreja. Em 18 das parábolas de Lucas, ele fornece uma interpretação para seus
significados (Stein, 2000, p. 33). A maioria dos eruditos modernos pensa que essas
interpretações surgiram nas comunidades que preservaram as parábolas (veja as
anotações complementares sobre Jesus e a alegoria nas parábolas). Essas interpre­
tações refletem, argumentam os eruditos, a situação da comunidade do autor, e
não o cenário de Jesus. Nessa visão, as interpretações são consideradas aplicações
das parábolas originais (e geralmente ambíguas) de Jesus no contexto posterior
das diversas comunidades que as preservaram. Se essa conclusão for aceita (i.e., se
a aplicação for uma expansão secundária da parábola original), estudar a parábo­
la sem adornos pode trazer outros níveis de significado além daqueles fornecidos
pelos evangelistas.
Talvez as ambiguidades que surgem na interpretação das parábolas são as fon­
tes mais ricas de significado. Quando envoltas em suas ambiguidades, as parábolas
podem ser, como sugeriu Dodd, tanto históricas como modernas, tanto literais
como não literais, tanto diretas como metafóricas, em fascinantes combinações.
Elas “interpretam a vida para nós” e, logo, são “históricas e contemporâneas no
mais profundo sentido possível” (1958, p. vii).
As ambiguidades e os dilemas morais não resolvidos das parábolas causam
reflexão. Eles forçam os ouvintes a lutarem com o seu significado, projetando seu
poder de ensino mais profundamente na mente. Ambos não são apenas “ostenta-
58
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

dores de significado”, no sentido objetivo, como na similitude e na alegoria, mas


“criam um significado ao forçarem o leitor a participar do evento parabólico”
(Stein, 2000, p. 35).
Um erudito sobre parábolas, certa vez, escreveu: “Nós ficamos bem diante de
Jesus quando lemos as Suas parábolas” (Jeremias, 1972, p. 12). Elas são uma janela
para o mundo do pensamento de Jesus. A linguagem das parábolas parece revelar
como Sua mente funcionava — deslocando-se dos símbolos diários, comuns, para
os níveis mais profundos de significado espiritual. Seu uso de parábolas indica a
vivacidade de Sua mente. Ele expressava-se coloridamente, de forma humana, não
falando de doutrinas ou pronunciamentos legais.
As parábolas não são um atalho para a sabedoria. Elas nutrem a sabedoria
pela reflexão, para meditação e para engajamento emocional. Elas desafiam as nor­
mas aceitas e subvertem as tentativas de atribuir-se um significado simplista (ex.:
veja os comentários em 5.36-39). Ao interpretar as parábolas, deve-se trabalhar
pela recompensa e, depois, apossar-se do resultado. Ironicamente, as tentativas de
explicar as parábolas arriscam arruinar a beleza delas. Que as parábolas de Jesus
continuam a estimular, mesmo séculos depois que foram pronunciadas, prova que
Ele era um mestre desse gênero.

59
COMENTÁRIO

IV. A JORNADA PARA JERUSALÉM (9.51-19.44)

A. O custo do discipulado (9.51-62)

1. A rejeição na aldeia samaritana (9.51-56)

POR TRÁS DO TEXTO

A seção central de Lucas está disposta na estrutura narrativa da jornada da


Galileia para Jerusalém (9.51 —19.44). A função dessa jornada é nitidamente pro­
eminente comparada ao tratamento das viagens de Jesus nos outros três Evange­
lhos: Marcos trata da transição de Jesus da Galileia para Jerusalém em 52 versículos
(10.1-52) e, depois, somente como um aparte nos versículos 1, 32 e 46. A jornada
61
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

também ocupa uma quantidade de material relativamente pequena na estrutura


geral de Mateus. Ela prediz a jornada em Mateus 16.21 (compare com Mc 10.33).
No entanto, Jesus não sai da Galileia até Mateus 19.1 e chega a Jerusalém em 21.1.
O Evangelho de João descreve duas viagens, mas o material da narrativa também é
mínimo (2.13; 5.1; 7.10).
A narrativa da jornada em Lucas, descrita como a “grande interpolação” de
Lucas no esquema narrativo de Marcos (Fitzmyer, 1981, p. 824), consiste de 11
capítulos. Ela contém 82 unidades distintas de histórias. Estas começam com o
início da jornada em Lucas 9.51 e concluem com a entrada de Jesus no templo, em
Lucas 19.45. Cerca de 40% desse material aparecem em todos os três Evangelhos
Sinóticos; aproximadamente 35% aparecem apenas em Mateus e Lucas. Cerca de
25% são exclusivos do material de Lucas (veja Fitzmyer, 1981, p. 75-85; e as ta­
belas em Aland, 1972, p. 347-357). Setenta e cinco por cento do material dessa
seção são compartilhados com os outros escritores dos Evangelhos. Logo, a seção
da jornada em Lucas não é tanto uma interpolação como um material sinótico re­
formulado com o tema de uma viagem, com a adição de uma generosa quantidade
de material especial (veja mais em Bock, 1996, 2:959).
Apesar da importância do tema da viagem em Lucas, ela não possui uma es­
trutura óbvia (veja Conzelmann, 1982, p. 60-73). Marcadores temporais e geo­
gráficos são encontrados apenas em 10.1; 11.53; 14.1; 18.35; 19.1 ( ^ 17.11-19).
Jesus e Seus discípulos estão na estrada (9.57; 10.4) e prosseguem viajando (10.38;
13.31,33; 17.11; 19.28). Contudo, nada disso afeta as histórias individuais. Aliás,
enquanto se lê a seção central do Evangelho, quase se pode esquecer de que Jesus
está em uma jornada ao destino final (veja Fitzmyer, 1981, p. 824,825 e mais am­
plamente no tema em 823-827). Isso significa que ele “viaja, mas não faz progresso
algum” (Schimdt, citado por Fitzmyer, 1981, p. 825).
Por que Lucas reorganiza seu material compartilhado dessa forma? A razão
pela qual ele faz isso não é para fornecer uma descrição histórica da jornada de
Jesus para Jerusalém, já que pouca informação desse tipo está presente (veja a pes­
quisa de Bock [1996, p. 960-963] sobre opções na historicidade da jornada). A
jornada é provavelmente um artifício transmitindo aspectos da visão de Lucas so­
bre a salvação (Conzelmann, 1982, p. 73).
Primeiro, há um acentuado senso de dinamismo geográfico na narrativa, que
já foi percebido nos primeiros nove capítulos. Em Lucas, Jesus proclama o Reino
não de um simples local, mas em todo tempo, em constante movimento ao viajar
de cidade em cidade (“^ 4.38-44; 8.1-3). Há uma frequente referência a movimento
e lugar ao longo da narrativa. Todos os personagens centrais estão em movimento
(ex.: 1.26,39,56; 2.3,15,22,39,41,51; 3.3; 4.1,5,9; 5.11,28). Em particular, o
62
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Espírito Santo é apresentado como uma força dinâmica, que está constantemente
em movimento (1.15,35,41,67; 2.25,26; 3.16,22; 4.1). Quanto aos discípulos, a
ação de “seguir”Jesus sempre envolvia uma mudança na localização física (5.11,28;
9.23,57,59,61; 14.27; 18.22,28). Essa é a ênfase teológica sobre pessoas e forças
que estão em movimento propagando o evangelho, em oposição à estagnação da
religião baseada no templo.
Segundo, a seção da viagem está focada em um destino — Jerusalém. Lucas
segue o ministério de Jesus desde a Galileia até Jerusalém, no primeiro volume de
sua obra. No segundo volume, Atos, ele documenta a propagação da mensagem
de Jesus além de Jerusalém e da terra de Israel para o restante do mundo gentio.
Lucas refere-se a Jerusalém 31 vezes em sua narrativa do Evangelho, três vezes com
mais frequência do que seus companheiros sinóticos. Suas referências incluem
19, que são exclusivas de seu Evangelho (5.17; 9.31,51; 10.30; 13.4,22,33; 17.11;
19.11,41; 21.20,24; 23.7,28; 24.13,18,33,47,52; 9.28-36, Por trás do texto).
Para citar apenas alguns poucos exemplos dessa ênfase, vimos que Jerusalém é
o lugar para onde Moisés e Elias enviam Jesus (9.31), o lugar no qual Ele proclama
que deve morrer (13.33), e o lugar para o qual Ele resolutamente vira o Seu rosto
(9.51,53 NRSV). Na mensagem geral de Lucas, as boas-novas da salvação viajam
pelo meio do mundo judaico em seu caminho, para as outras nações.
Terceiro, essa temática da jornada também enfatiza a propagação da mensa­
gem do evangelho dentro e fora da própria comunidade judaica. Ao longo de Suas
viagens, Jesus encontra numerosos judeus marginalizados e um menor número de
gentios fiéis. Todos estes respondem à Sua mensagem frequentemente rejeitada
pelos fariseus e doutores da lei (veja Johnson, 1991, p. 164,165). Esse tema já está
bem estabelecido na narrativa (1.79; 2.29-32; 7.1-10; 8.26-39) e se expande na se­
ção da jornada (10.13-15,29-37; 13.22-30; 17.11-19; veja o comentário adicional
em 7.1 -10). A culminação desse tema é a partida de Jesus de Jerusalém no caminho
de Emaús, após a ressurreição. Quando Jesus “abre a mente” dos dois discípulos
com quem Ele anda, ambos entendem que, radiando do centro de Jerusalém, Sua
mensagem agora será proclamada a “todas as nações” (24.13-49).
Quarto, o tema da jornada está intrinsecamente ligado à Samaria, a odiada
vizinha de Israel. Na estrutura mais ampla de Lucas em Atos dos Apóstolos, o tema
de Samaria mostra que o evangelho terá sucesso fora do judaísmo convencional
centrado em Jerusalém. Apenas Lucas registra a história do samaritano que resgata
um homem ferido (10.33). Somente Lucas nos diz que apenas o samaritano lepro­
so volta para agradecer a Jesus pela cura (17.16).
As implicações da “política samaritana” de Lucas são articuladas por completo,
inicialmente em Atos 1.8: “Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer
63
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria,


e até os confins da terra” A propagação geográfica do evangelho em Samaria é
realizada pela pregação de Filipe (At 8.5-8) e pelo ato de receber o dom do Espírito
Santo (At 8.14-17), validados por Pedro e João (At 8.25).
De maneira clara, Lucas retrata o evangelho como destinado ao sucesso fora
do ambiente centrado em Jerusalém. Primeiro, a salvação é para os judeus margi­
nalizados dentro de Israel. Depois, estende-se aos que estão além das fronteiras de
Israel, tanto geográfica quanto étnica. Esse tema se desloca para frente da narrativa,
começando em Lucas 9.
Por fim, essa seção é introduzida por três convocações para “seguir” Jesus
em 9.57-62. Previamente, os discípulos, Levi e grandes multidões “seguem” Jesus
(5.11,28; 7.9; 9.11; 7.11-7, Por trás do texto; veja 14.27; 18.22); Esse novo con­
vite à itinerância em 9.57-62 enfatiza o profundo compromisso com o Reino que
o discipulado exige. Nessas três curtas histórias, o custo do discipulado é “seguir”
Jesus a Jerusalém.
NO TEXTO

H 51 Aqui começam um novo tom e uma nova direção programática


para a narrativa. Aproximando-se o tempo em que seria elevado ao céu
\anãlêmpseõs\ Jesus partiu resolutamente em direção a Jerusalém. A jor­
nada para Jerusalém agora dominará a história. Essa jornada é uma questão
de um empreendimento resoluto para Jesus. Lucas tem um prólogo em 1.1-4
e um “segundo prólogo” em 2.1-5, e talvez outro no início do capítulo 3. Esse
versículo é outro “prólogo” que serve para introduzir a próxima seção principal
(como 18.31-34 introduz a seção final).
Esse versículo recapitula diversos temas. O primeiro tema é o sentimento de
realização cronológica que se desenrola no decorrer da narrativa. Essa temática
começa em Lucas 1.1, com a referência “dos fatos que se cumpriram entre nós”.
Outras referências, especialmente aquelas do início do Evangelho, indicam
que o tempo está aproximando-se de uma junção universal (ex.: 1.20,45,57;
2.20,38,52; 3.1-6). Aproximando-se o tempo para Ele... O movimento line­
ar do tempo impulsiona a narrativa. As batidas do relógio criam uma tensão
dramática na história. Veja Atos 2.1 em que a mesma frase grega é usada em re­
ferência à descida do Espírito no Pentecostes (cm tõ symplêrousthai, uma frase
característica demonstrando o cumprimento da vontade divina [Green, 1997,
P- 403]).
64
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

A ascensão em Atos 1.1-12 é a intercessão entre o ministério terreno de Jesus


e o estabelecimento da Igreja. Lucas alude a esse evento quando Jesus se
estabelece na estrada para Jerusalém. Quando essa conjuntura se aproxima, Ele
deve ser elevado aos céus. O termo analêmpsis, ascensão, ocorre somente em
Lucas 9.51, no NT. Contudo, encontramos a forma verbal em Atos 1.2,11,22.
O verbo usado nessas passagens parece referir-se à transição de Jesus do reino
terreno para o celestial (Fitzmyer, 1981, p. 828; somente em S, Sal, 4.18, o
termo refere-se à morte de alguém).
Outras figuras do AT fornecem um possível fundamento para entender-se o
uso do termo aqui. De Enoque, diz-se que Deus repentinamente o “havia ar­
rebatado” (Gn 5.24). Da mesma forma, Elias “foi levado ao céu num redemoi­
nho” (2 Rs 2.11; compare 1 Mac. 2.58 e Sir. 48.9. Judas 9 insinua a ascensão
celestial de Moisés em contraste com Dt 34.5).
Jesus partiu resolutamente em direção a Jerusalém (autos to prosõpon
estêrisen, “voltou o rosto para ir a Jerusalém” [NRSV]). A expressão bíblica
“voltar o rosto” geralmente sugere oposição contra uma pessoa ou nação (veja
Lv 17.10; 20.3; 26.17). Aqui, ela expressa determinação de permanecer fiel ao
propósito de Sua jornada. Em Isaías 50.4,7, o Senhor deu a Isaías “a língua de
um mestre (...) [e] pôs o [seu] rosto como pederneira” (NRSV).
Há também um aparente eco intertextual da viagem a Jerusalém em Ezequiel
(Ez 8— 11). O profeta refere-se ao filho do homem dirigindo o rosto para o
“sul” e para “Jerusalém” (Ez 20.46; 21.2). Lucas repetidamente chama Jesus de
Filho do Homem (-> Lc 5.20-26; 9.44,57,58; 19.9,10). Ezequiel faz um uso
estereotipado de “Filho do homem, vire o rosto (...)” em seus oráculos contra
as nações (Ez 25.2; 28.21; 29.2; 35.2; 38.2).
Ele vai para Jerusalém. Isso é mencionado primeiro em Lucas 9.31. Lucas tem
um interesse especial por essa cidade (-> 9.28-36). Afirma-se que Jesus conti­
nua a viagem em 13.22. Em 13.33,34, Ele reafirma a conexão entre a Cidade
Santa e a Sua “partida”, indicando que um profeta não pode morrer em nenhum
outro lugar (veja 17.11; 18.31; 19.11,41; 21.20,24; 23.7,28; 24.13,18,33,47,52
para referências exclusivas de Lucas sobre Jerusalém).
■ 5 2 -5 3 E enviou mensageiros [angelloi] à sua frente. Isso sugere um plano
de viagem. Os mensageiros vão para lhe fazer os preparativos (v. 52). An­
gelloi (em outros lugares, anjos) é usado somente aqui e em 7.24 para referir-se
aos discípulos. Os angelloi servem como uma equipe avançada, sugerindo um
estado de organização como o de uma comitiva. Notamos a transição do mi­
nistério de um só líder com poucos seguidores para um movimento que envia
os Doze, em 9.1 (e os setenta, em 10.1). Esse estado avançado de organização
65
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

é um passo a mais na narrativa ao longo do caminho em direção a um movi­


mento.
Em Lucas 9.10, a narrativa localiza Jesus em Betânia, à margem nordeste do
mar da Galileia. A transfiguração é sobre “um monte”, em 9.28. Tradicional­
mente, este está associado ao monte Tabor, no lado sul da baixa Galileia, cerca
de dez quilômetros ao norte de Samaria, perto de Nazaré. O monte Tabor é
uma figura tão marcante da planície da baixa Galileia que não é de surpreender
que não esteja associado a esse acontecimento.
Curiosamente, o Evangelho de Lucas situa Jesus ao lado norte de Samaria, por
pelo menos oito capítulos. Ele entra em Lucas 9.52; e, em Lucas 17.11, Ele ain­
da está viajando “pela divisa entre Samaria e Galileia”. Em Lucas 19.1, Jesus, de
repente, entra em Jerico sem nenhuma referência geográfica quanto aos quilôme­
tros intermediários da fronteira norte de Samaria com a Judeia central ao leste.
Jesus entrou num povoado samaritano. Essa é a primeira menção a Samaria
feita em Lucas (também em 10.25-37; 17.1 T I 9). Na outra única referência si-
nótica a Samaria, Mateus 10.5, Jesus instrui os Doze ao enviá-los: “Não se diri­
jam aos gentios, nem entrem em cidade alguma dos samaritanos”. Ao contrário,
Samaria ou samaritanos aparecem 12 vezes em Lucas/Atos. Todas, exceto uma,
dessas referências são positivas (veja a seguir). De maneira interessante, Lucas
indica que Jesus prosseguiu para Jerusalém passando por Samaria (Lc 17.11),
enquanto que Marcos e Mateus dizem que Ele viajou para Jerusalém passando
pelo lado leste do rio Jordão, pela Pereia (Mt 19.1; Mc 10.1; Fitzmyer, 1981, p.
824). Somente João preserva a história de Jesus encontrando-se com a mulher
no poço de Samaria (Jo 4.1-30; veja também Jo 8.25,48).
A saída de Jesus da Galileia e Sua entrada em Samaria descritas em Lucas têm
uma importância simbólica. Samaria é “a terra que simboliza a oposição” (Fit­
zmyer, 1981, p. 824). Isso demonstra o tema globalizante de Lucas de alcance
aos marginalizados. A reconstrução erudita da história samaritana é um campo
de estudo em si (veja Crown, 1989). No entanto, aqui, o termo “samaritano”
funciona como uma categoria religiosa. Lucas utiliza-o não como uma questão
de referência histórica àquele longo conflito político-religioso, mas como um
artifício literário, semelhante a “pecadores” e “fariseus”. Os samaritanos cum­
prem a função narrativa daqueles habitualmente considerados odiados para os
judeus (Mt 10.5; Jo 4.9). Contudo, no Evangelho de Lucas, de modo significa­
tivo, eles encontram um lugar na comunidade da fé.
Apesar da disposição pacífica de Jesus em relação aos samaritanos, eles não o re­
ceberam porque se notava em seu semblante que ele se dirigia para Jerusa­
lém (v. 53). A antipatia cruzava-se em ambas as direções, entre os samaritanos
66
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

e os judeus. Esse é um dos numerosos cenários de rejeição civil em Lucas (->


4.29 e 10.8-16, Por trás do texto). Todavia, é o único dentre os Evangelhos que
descreve a rejeição específica a Jesus por um povoado samaritano.
■ 5 4 -5 6 Essa rejeição dá ocasião para que Jesus repreenda Tiago e João, que
queriam destruir a cidade com fogo, assim como Elias destruiu as tropas do rei
de Samaria por causa da incredulidade do rei (veja 2 Rs 1.1-18).
Essa característica na história de Lucas indica aos leitores que os samaritanos
são inimigos dos judeus ligados à Jerusalém e, portanto, além das fronteiras
de Israel. Isso também coloca a ironia posterior de Lucas em alto relevo. A
fidelidade e a compaixão dos samaritanos nas histórias do bom samaritano e
do samaritano leproso grato, ou “estrangeiro” (17.18), enquadram-nos em Sua
nova comunidade. Ironicamente, os samaritanos rejeitados primeiro rejeitam
aquele que veio libertá-los.

Samaria

Samaria é a área trib a l de Efraim que foi conquistada e quase to ta l­


m ente destruída pelos assírios em 721 a.C.. D urante a reabilitação da
região, os assírios repovoaram -na com pessoas de m uitas áreas de seu
reino. Isso gerou uma religião sincretista naquela localidade. Ela te m vestí­
gios de adoração ao Senhor, mas ta m b é m de m uitas práticas de adoração
pagã (sobre os sam aritanos, veja m ais em W illiam son, 1992, p. 724-728).
Veja 2 Reis 17.29-41 para um a descrição dessa região na perspectiva ju ­
daica (i.e., do sul).
Havia ta m b é m persistentes anim osidades entre judeus da antiga
oposição sam aritana qu anto à reconstrução do te m p lo de Jerusalém, após
o retorno da Babilônia (Ed 4.2-24; Ne 2.19; 4.2-9). Foi contra essa form a
sam aritana de judaísm o, com pleta com seu próprio te m p lo e a Torá (te m ­
plo este destruído pelo rei m acabeu João Hircano, em 128 a.C.), que a
aversão por Samaria desenvolveu-se entre os judeus que tin h a m a fé ba­
seada em Jerusalém. O se n tim e n to era m ú tuo (veja Jo 4.9). A ne gativida-
de de Mateus e João e o silêncio de Marcos sobre Samaria são indicativos
da anim osidade que persistia no período romano.

A PARTIR DO TEXTO

De todos os aspectos distintos de Lucas, o mais proeminente é o seu apelo


particular aos pecadores e àqueles que estavam às margens da sociedade. Os
67
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

samaritanos denotam uma característica importante da preocupação especial


de Lucas com os marginalizados. Estamos muito distantes em matéria de tempo
e cultura para entender a profundidade da divisão sectária que, provavelmente,
existia entre os judeus e os samaritanos.
Contudo, o mundo de hoje fornece muitas analogias de animosidades re­
ligiosas e étnicas letais que podem existir entre grupos tribais. É verdadeiro o
adágio que diz que aqueles que estão mais próximos na política e na religião
tornam-se os piores inimigos. Ambos os grupos reverenciavam Abraão, Moi­
sés e a Torá, contudo, suas reivindicações proprietárias sobre o caminho reto
transformaram-nos em inimigos. A injunção do evangelho de manter-se um
coração aberto para com seus inimigos, especialmente aqueles que estão bem
no seu quintal, é uma das mensagens mais importantes do evangelho para o
mundo moderno. Falhar nisso é falhar no dogma central da fé de que Deus
ama todas as pessoas. Jesus abraçou não só o Seu próprio povo, mas também os
romanos, os samaritanos, os publicanos e os pecadores. Um amor tão amplo e
globalizante é o preceito de Jesus para todos os Seus seguidores.

2. Mais sobre o custo do discipulado (9.57-62)

POR TRÁS DO TEXTO

Um cerco obscuro estava formando-se em torno da missão de Jesus no de­


correr de toda a porção galileia de Seu ministério. Ele inicia-se com o incidente
em Nazaré, em Lucas 4.16-30, mas aprofunda-se em 5.17—6.11, com a inclusão
de cinco histórias de conflito. Uma significativa oposição a Jesus vai formando-se
("^ Estrutura e trama e conflito, na Introdução). Isso serve de contraponto para a
aprovação das multidões nos capítulos de abertura do Evangelho de Lucas.
No capítulo 9, novas indicações de um futuro obscuro para Jesus entram
no mundo histórico. Jesus prediz Sua própria morte (9.22). Seus seguidores
poderiam “perder a vida” por causa dele (9.24 ARC), e o Filho do Homem
será “traído” (9.44). Os conflitos da comunidade aumentam enquanto os dis­
cípulos são repreendidos por causa de sua falta de fé e por discutirem sobre a
grandeza de si próprios (9.40,46-48). Os episódios de conflito na vida itineran­
te dos discípulos ocorrem durante a missão dos Doze (veja 9.5) e adiante, na
missão dos setenta (10.3-12).
Contra esse cenário, três frases sobre o tópico relacionado ao apego ao lar
e à família introduzem a seção da jornada (9.51 — 19.27). As duas primeiras
68
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

(9.58-60) são material Q (“as raposas têm suas tocas”, “deixe-me ir primeiro
sepultar meu pai”; compare com Mt 8.18-22). A terceira é exclusiva a Lucas:
o pedido de uma oportunidade de dizer adeus à família antes de partir (Lc
9.61,62). Mais amplamente, essas frases sobre o custo do discipulado ocorrem
entre a missão dos Doze (9.1-10) e a missão dos setenta (10.1-20), e servem
para alertar o discípulo/leitor sobre as exigências radicais de seguir Jesus. Ana­
lisadas em conjunto com a nova informação sobre a Sua identidade apresenta­
da no capítulo 9, essas injunções apresentam aos leitores a sóbria realidade do
preço que se paga por levar a cruz.
O estilo de vida da itinerância (veja 9.1-8) envolve a alienação da intimi­
dade da família (8.19; também 12.53; 15.26; 18.28-30), o desligamento do
domicílio e do emprego (5.11,28; 9.57-62; 18.28-30) e uma dependência da
caridade como meio de sustento (8.3; 9.3; 10.4). Esses temas estão na vanguar­
da desses três contextos.
NO TEXTO

H 5 7 -5 8 Tendo deixado a aldeia dos samaritanos, a comitiva de Jesus foi


“para outro povoado” (v. 56). A ocasião da primeira frase é a entusiástica de­
claração de um homem ao longo do caminho: Eu te seguirei por onde quer
que fores (v. 57). A palavra-chave aqui e em todas as três frases é seguirei
(akaloutheõ). Em Lucas, as multidões seguem Jesus (7.9; 9.11); os discípulos
mais íntimos abandonam tudo para seguir Jesus (5.11,28; 18.28); e os preten­
sos discípulos são desafiados a seguir Jesus, como nessa ocasião.
Jesus posteriormente desafiará o “jovem rico importante” a segui-lo: “Falta-lhe
ainda uma coisa. Venda tudo o que vocé possui e dê o dinheiro aos pobres, e
você terá um tesouro nos céus. Depois venha e siga-me” (Lc 18.22). O signifi­
cado de akaloutheõ nesses contextos é deixar fisicamente o lar e unir-se a Jesus
na estrada, de cidade em cidade. Isso significa que os discípulos não terão um
lugar para dormir, terão pouco ou nenhum alimento e estarão alienados dos
relacionamentos normais.
Ao pretenso discípulo, Jesus responde: As raposas têm suas tocas e as aves
do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a
cabeça (v. 58). As raposas não são proeminentes no cenário bíblico, mas, onde
as encontramos, elas são leves de pés e de pouca importância. Sambalate usa a
raposa para zombar dos judeus que presumiam a reconstrução dos muros de Je­
rusalém: “Basta que uma raposa suba lá, para que esse muro de pedras desabe!”
69
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

(Ne 4.3; sobre Lucas e as raposas, veja Darr, 1992, p. 139-346). Herodes é, de
acordo com o Jesus de Lucas, apenas uma “raposa” astuta, em 13.32, que não é
digna de sérias preocupações (veja Ct 2.15).
Aqui, em Lucas 9.58, os animais inferiores, como a raposa, têm um domicí­
lio, mas os discípulos do Filho do Homem não têm onde dormir. Embora um
quarto em uma hospedaria comercial seja apenas um degrau acima do chão frio
(10.34), até mesmo essa acomodação inconveniente está indisponível aos po­
bres discípulos (sobre a má reputação das hospedarias, veja Oakman, 2008, p.
175-177). Siraque 36.27 descreve o infeliz estado de tais peregrinos sem-teto:
“Assim é o homem que não tem ninho e se deita onde a noite o surpreende”
(NRSV, tradução livre; Bock 1996, p. 978,979). Esse é o custo do discipulado.
■ 59-60 Jesus, então, convida outro homem: Siga-me. Ele responde: Se­
nhor, deixa-me ir primeiro sepultar meu pai (v. 59). O pedido do homem
tem diversas aplicações possíveis:
Talvez ele queira esperar até que seu pai morra. A urgência do pedido, entre­
tanto, sugere uma morte recente. Logo, o pedido seria uma permissão para
cumprir as responsabilidades familiares por um curto período de tempo antes
de juntar-se à comitiva itinerante, talvez semanas ou meses depois. Contudo, é
improvável que um homem estivesse no meio da sociedade durante o período
inicial de sete dias de impureza e luto após uma morte na família (Bock, 1996,
p. 980).
Outra possibilidade é que ele se referia ao segundo enterro, que acontecia um
ano depois que o corpo havia sido posto para descansar sobre uma plataforma
tumular (Green, 1997, p. 408). Depois que a carne se decompunha, os ossos
eram “recolhidos aos seus pais”, ou coletados e lançados sobre a pilha de ossos
dos residentes anteriores do túmulo. Nessa interpretação, o homem estava pe­
dindo permissão para esperar até um ano para seguir Jesus.
Jesus responde: Deixe que os mortos sepultem os seus próprios mortos;
você, porém, vá e proclame o Reino de Deus. A resposta de Jesus é dura e “fica
em oposição à piedade e à moral judaica” (Fitzmyer, 1981, p. 834). A descrição
do sepultamento que Abraão fez para Sara em Gênesis 23.3-20 é uma pungente
história sobre a responsabilidade de sepultar-se os mortos (Evans e Sanders,
1993, p. 253; veja também Tob. 4.3,4; 12.12-14). E, embora a lei bíblica não
ordenasse que o filho enterrasse o pai, o quinto mandamento de honrar pai e
mãe assim exigia (Ex 20.12). Não existem paralelos no discurso de Jesus na
70
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

literatura daquela época. Alguns sugerem que Sua severidade argumenta por
causa de Sua autenticidade (Evans e Sanders, 1993, p. 252; Fitzmyer, 1981, p.
835).
A interpretação mais comumente aceita sobre a resposta de Jesus considera a
frase uma metáfora. Os “mortos” que devem enterrar o morto são aqueles que
tomaram a decisão de não seguir Jesus. Eles são os espiritualmente mortos, que
devem ficar para trás para cumprir as obrigações de enterrar os que estão fisica­
mente mortos (Fitzmyer, 1981, p. 836). O discurso é não apenas metafórico,
mas também hiperbólico. Ele se parece com o de Lucas 14.26, no qual Jesus or­
dena que Seus discípulos aborreçam seus pais. Aliás, a resposta de Jesus remove
a “melhor desculpa” que uma pessoa poderia ter para não segui-lo imediata­
mente (Bock, 1996, p. 981). Isso eleva o custo do discipulado ao nível extremo
(compare a negativa de Deus sobre a atitude de Ezequiel por lamentar a morte
de sua esposa, em Ez 24.15-24; veja também Jr 16.1-9).
■ 6 1 -6 2 No terceiro discurso, Jesus repreende um pretenso seguidor. Esse
discípulo quer dizer adeus à sua família antes de unir-se aos discípulos na cami­
nhada. Jesus responde: Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é
apto para o Reino de Deus (v. 62). Essa história parece fazer um eco da unção
de Eliseu por Elias, em 1 Reis 19.19-21.
Significativamente, Elias encontra o seu novo pupilo Eliseu arando com seus
bois. “Elias o alcançou e lançou a sua capa sobre ele. Eliseu deixou os bois e
correu atrás de Elias. ‘Deixa-me dar um beijo de despedida em meu pai e mi­
nha mãe’, disse, ‘e então irei contigo/ ‘Vá e volte’, respondeu Elias (...). E Eliseu
voltou” (1 Rs 19.19-21). A resposta de Jesus pode aludir a esse incidente. Os
primeiros leitores teriam entendido que a decisão deles de seguirem Jesus não
permitiria a cortesia que Elias demonstrou a Eliseu de despedir-se de sua casa
antes de entrar no caminho.

A PARTIR DO TEXTO

O sacrifício do conforto da família e do lar, retratado no Evangelho de


Lucas, é um lembrete austero do custo de seguir Jesus. Deus, às vezes, chama os
Seus seguidores para longe de tudo o que é familiar, forçando-os a abnegarem
a segurança do que conhecem e a aceitarem os riscos do desconhecido. Onde
71
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

moramos, o que fazemos e até os dias da nossa vida devem ser oferecidos de
forma a cumprir os compromissos para os quais Ele nos chama.

B. A missão dos setenta e dois (10.1-24)

1. O comissionamento dos setenta e dois (10.1-7)

POR TRÁS DO TEXTO

Lucas fundamenta a missão dos Doze, descrita em Lucas 9.1-6, no relato


de Marcos, que diz respeito ao envio dos discípulos por Jesus (Mc 6.7-13 || Mt
10.1- 23). Nessa segunda missão, em Lucas 10.1-12, o Jesus de Lucas envia 72
discípulos adiante dele, em duplas. Mateus registra um só empreendimento
missionário dos Doze, em Mateus 10.1-23. O material compartilhado em Ma­
teus 10.7-16 e Lucas 10.1-12 inclui um significativo acréscimo de Lucas (ou
será que é uma omissão de Mateus?) — Lucas 10.10. Lucas cria uma segunda
jornada em sua estrutura narrativa para apresentar o material adicional.
Há uma dupla estrutura comum em todas essas histórias do envio. A pri­
meira parte é o envio dos discípulos, e a segunda parte é o surgimento do con­
flito cívico em decorrência disso. Em Marcos, temos 6.7-11; em Mateus, temos
10.1- 15; e, em Lucas, temos 9.1-5 e 10.1-12. Nessas representações sinóticas, a
pregação do Reino de Deus é recebida com rejeição tanto por parte da família
como no nível cívico (oikia/polis —família/cidade) .
Lucas enfatiza especialmente esse tema ao inserir o material “ai das cida­
des”, de 10.13-16, no meio do envio dos setenta e dois. Mateus reserva esse ma­
terial para mais tarde, em sua narrativa (Mt 11.21-23). Essa tensão de apresen­
tação e rejeição aparece inicialmente em Lucas 4.16-30 e é reforçada ao longo
da narrativa da viagem.
O comissionamento dos setenta e dois estabelece padrões de conduta para
Seus discípulos quando eles propagam a mensagem do Reino, de cidade em
cidade (10.4-12). Até aqui, o retrato de Jesus tinha sido o de um carismáti­
co operador de maravilhas com uma pequena comitiva. Essa passagem ofere­
ce uma perspectiva diferente da liderança de Jesus dentro de um movimento
emergente. Ele torna-se o gestor do movimento, exigindo uma disciplina de
grupo altamente desenvolvida. Certo erudito acredita que essa representação
do grupo viajante indique “onde se pode ver o coração do movimento de Jesus
72
NOVO COxMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

de modo mais claro... Eles compartilham um milagre e um Reino, e recebem,


em retorno, uma mesa e uma casa... Um igualitarismo compartilhado de recur­
sos espiritual e material” (Crossan, 1991, p. 333, 341). Decerto, a história foi
mudada de forma significativa pela representação literária do movimento de
Jesus como um ministério público maior e mais altamente organizado.

NO TEXTO

I 1-2 O número setenta e dois não é encontrado em nenhum outro lugar


na Bíblia (mas o pseudoepígrafo tem 72 príncipes e nações no mundo [3 En.
17.8; 18.2,3; 30.2]). Alguns textos antigos dizem “setenta” em vez de “setenta
e dois”, e Marshall chama a evidência externa de “bem equilibrada” (1978, p.
414,415). Setenta é reminiscente do número de pessoas que desceram ao Egito
com Jacó (Gn 46.27), dos anciãos de Israel (Êx 24.1; Nm 11.25), da mesa das
nações em Gênesis 10— 11, e o número tradicional de membros do Sinédrio
em Jerusalém.
Esse novo grupo de “setenta” (margem da NVI) / setenta e dois discípulos
representa algo como um corpo fundador do emergente movimento pente-
costal. São eles, e não os Doze, que são enviados nessa segunda missão. Quem
são eles? Será que eles eram os “curadores curados”, os quais Jesus libertara de
suas próprias enfermidades e demônios (também Crossan, 1991, p. 334)? Eles
podem ser simplesmente aqueles que aceitaram o convite de Jesus ao longo do
caminho. De qualquer forma, eles agora recebem a ordem para que “curem os
doentes” (v. 9).
Embora essa corporação fundadora não tenha uma estrutura organizacional
formal em si, possui, porém, suas regras de conduta (v. 4-12). Os discípulos
saem dois a dois (v. 1). Essa combinação tem precedente na prática judaica.
Na jurisprudência, uma só testemunha é insuficiente para as questões da lei
(Dt 19.15); daí a necessidade de duas testemunhas. Em Atos, há uma tradição
de duplas de missionários: Paulo e Barnabé, Paulo e Silas, e Barnabé e Marcos
(At 13.2; 15.39,40). Jesus pode ter seguido a prática por causa do decoro legal,
indicando a autenticidade do testemunho que eles estão levando ou, talvez,
por interesse de segurança pessoal.
As únicas instruções explícitas para os emissários são para que “curem os
doentes” e proclamem que “o Reino de Deus está próximo de vocês” (Lc 10.9).
No entanto, as instruções completas dadas aos Doze em 9.1 ainda estão na
mente do leitor. AJi, soubemos que os Doze deveriam expulsar demônios,
73
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

curar enfermidades e proclamar o Reino de Deus. Quando os setenta e dois


voltam, eles relatam expulsões de demônios como sua atividade principal
(10.17, compare com Mt 10.6-8; Mc 6.7,12,13).
Jesus enviou representantes para que fossem a todas as cidades e lugares para
onde ele estava prestes a ir (Lc 10.1). Isso indica um alto grau de organização,
planejamento e liderança. Há um itinerário, com preparações não especifica­
das, para ser feito para a Sua chegada e um código explícito de conduta en­
quanto estivessem em cada cidade. O restante da seção da viagem não continua
com seu foco inicial. Quando a jornada vai desenvolvendo-se, raramente sabe­
mos da localização de Jesus ou quanto tempo se passou.
A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos (v. 2). A colheita é um
tema apocalíptico nos sinóticos, como a linguagem nos versículo 11-16 mostra
aqui (Mt 9.37,38; 13.30,39; Mc 4.29; compare com Ap 14.15). Esse material
Q e Mateus 9.37,38 têm as exatas palavras de Lucas 10.2. O Senhor da colheita
ocorre apenas aqui na Bíblia, mas a ideia de colheita como uma atividade evan-
gelística é comum a Paulo e outros escritores do N T (ex.: Rm 1.13; Gl 6.9; Hb
12.11).
I 3 -7 Os discípulos devem viajar com pouca bagagem — sem bolsa, nem
saco de viagem, nem sandálias (v. 4). Isso reitera as instruções para a pressa
em Lucas 9.1-6 e 61,62. Também sugere a urgência do fim dos tempos men­
cionado em 10.15b. Semelhantemente, abster-se de conversas no caminho cria
uma sensação de urgência e foco para a missão: Não saúdem ninguém pelo
caminho (compare com as palavras de Eliseu para Geazi, em 2 Rs 4.29).
A urgência de continuar andando é inerente ao tema da jornada. O destino de
Jesus está em Jerusalém, mas é importante que a Sua presença seja sentida nas
muitas cidades ao longo do caminho. Aqui, novamente, a visão do ministério
como um movimento é evidente. A agenda de viagem de Jesus é proclamar o
evangelho e curar os doentes, de cidade em cidade. Esse é um movimento co­
munitário.
As regras de conduta em Lucas 10.5-12 fornecem-nos a ideia mais próxima
de um “Regimento Comunitário” (o famoso documento Qmnrã sobre a vida
comunitária) que temos do movimento cristão primitivo. Aliás, esse retrato de
disciplina comunitária no ministério itinerante é exclusivo de Lucas. Aos olhos
de Lucas, Jesus é um disciplinador rígido, com firmes opiniões sobre como Seus
discípulos deveriam comportar-se nos lares e em público.
Alguns têm considerado os versículos 4-12 como uma reflexão de regras que
se desenvolveram na medida em que a Igreja gerenciava a conduta dos missio­
nários em meados do primeiro século e posteriormente (veja Fitzmyer, 1985,
74
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

p. 843). Elas assemelham-se às instruções da Didaqué. Esse documento surgiu


algum tempo depois de 70 d.C. (Kraft, 1992, p. 197). Suas regras para os pro­
fetas cristãos viajantes invocam: breves estadas (um ou dois dias, no máximo),
recusa em pedir dinheiro, comer o que lhe for oferecido e levar apenas pão
(.Didaqué \ \). Marcos 6.7-13, a fonte básica de Lucas sobre a conduta itineran­
te, data do mesmo período ou um pouco antes. E provável que a comunidade
cristã estivesse lidando com essas questões quando a tradição sinótica começou
(compare 1 Co 4.11,12; 9.3-18; 2 Ts 3.10).
Não é necessário concluir, porém, que essas regras comunitárias em Lucas não
foram estabelecidas por Jesus. O assunto da itinerância levanta naturalmente
tais questões sobre a hospitalidade nas casas e nas cidades. Como alguém deve
lidar com a situação quando a hospitalidade não é oferecida? Ou, o que alguém
deve fazer quando a hospitalidade é oferecida e depois retirada pela mesma
razão? Uma comitiva teria sido difícil de liderar sem essas regras. A disciplina
seria necessária, dado especialmente o crescente conflito com os Sinédrios lo­
cais e outros grupos cívicos quando eles viajavam (veja a seguir).
Fiquem naquela casa, e comam e bebam o que lhes derem (v. 7).
Quando os emissários de Jesus forem “bem-vindos” em uma cidade, o sinal
será o compartilhamento de uma refeição. A implicação é que o oposto será
verdadeiro em algumas cidades. A comensalidade, às vezes, será negada devido
a alguma relutância civil de receber os mensageiros (v. 10;“^ v. 8-15). Compar­
tilhar a refeição é um tema que já vimos na associação de Jesus com publica-
nos e pecadores em Lucas (“^ 5.29-32) e que veremos novamente (15.2; 19.7;
”^24.13-43). A união à mesa constituía uma sagrada ligação de comunhão.
Aqui, como foi com Levi e seus amigos, aqueles que tiverem a coragem e o dis­
cernimento espiritual de acolher os emissários do Filho do Homem, o Messias,
farão isso por meio de uma refeição de paz com Seus seguidores (v. 5,6).

2. Ai das cidades (10.8-16)

POR TRÁS DO TEXTO

O conflito com as autoridades locais, gerado pelo ministério galileu de


Jesus, não é apenas um tema de Lucas. A passagem original sobre a rejeição
popular está em Marcos 6.11 (Lc 9.5 || Mt 10.14): “E, se algum povoado não
os receber nem os ouvir, sacudam a poeira dos seus pés quando saírem de lá,
como testemunho contra eles”. Lucas acrescenta um material de sua fonte Q,
75
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

que expande e intensifica a temática (Lc 10.1,2). A ampla afirmação do confli­


to popular sugere que isso seja uma realidade na vida de Jesus. Esse tema recor­
rente nos Evangelhos demonstra sua constante relevância em relação à situação
da vida da jovem Igreja. Isso obviamente ressoava com os leitores dos anos 80
quando Lucas escreveu. Durante esse período, a Igreja primitiva enfrentava um
crescente conflito judaico-gentio e uma pressão imperial.
A estrutura da narrativa dos versículos 8-12 indica que a rejeição de Jesus
pelos líderes civis em Corazim, Betsaida, Cafarnaum e Nazaré já havia acontecido
(4.29). De início, Jesus foi bem-vindo em Cafarnaum e Nazaré, mas subsequente­
mente rejeitado (4.22; 10.15; Mc 2.1,2; 3.19b,20). Logo, o Jesus de Lucas envia os
Seus emissários com o conhecimento de que eles encontrariam a mesma rejeição
que Ele já havia experimentado. Eles estão indo como “cordeiros entre lobos” (Lc
10.3). Na história, o envio é uma tática que desafia outras cidades e aldeias a to­
marem uma decisão quanto ao movimento de Jesus. Isso tem a aparência de uma
estratégia para estabelecer uma base popular (até revolucionária?) de suporte.
O que pode ter causado essa rejeição civil? Ela provavelmente deriva de
Deuteronômio 13.1-15. Este texto discute o tratamento dos profetas que fa­
ziam sinais prodigiosos, contudo “desviavam o povo...”:
“Se aparecer entre vocês um profeta ou alguém que faz predições por meio
de sonhos e lhes anunciar um sinal miraculoso ou um prodígio, e se o sinal
ou prodígio de que ele falou acontecer, e ele disser: ‘Vamos seguir outros
deuses que vocês não conhecem e vamos adorá-los’, não dêem ouvidos às
palavras daquele profeta ou sonhador. (...) Aquele profeta ou sonhador
terá que ser morto, pois pregou rebelião contra o Senhor, contra o seu
Deus (...). Se o seu próprio irmão ou filho ou filha, ou a mulher que você
ama ou o seu amigo mais chegado secretamente instigá-lo, dizendo: ‘Va­
mos adorar outros deuses!’ — deuses que nem você nem os seus antepassa­
dos conheceram, deuses dos povos que vivem ao seu redor, quer próximos,
quer distantes, de um ao outro lado da terra — não se deixe convencer
nem ouça o que ele diz. Não tenha piedade nem compaixão dele e não o
proteja. Você terá que matá-lo. (...) Apedreje-o até a morte (...). Se vocês
ouvirem dizer que numa das cidades que o Senhor, o seu Deus, lhes dá para
nelas morarem, surgiram homens perversos e desviaram os seus habitantes,
dizendo: ‘Vamos adorar outros deuses!’, deuses que vocês não conhecem,
vocês deverão verificar e investigar. Se for verdade e ficar comprovado que
se praticou esse ato detestável entre vocês, matem ao fio da espada todos os
que viverem naquela cidade. Destruam totalmente a cidade, matando tanto
os seus habitantes quanto os seus animais” (v. 13.1-3a,5a,6-9a,10a,12-15).
76
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Essa passagem pode ter servido de base para uma revisão formal do mo­
vimento de Jesus pelas cidades e aldeias locais (veja Wright, 1996a, p. 439-
441). A advertência aplicava-se aos profetas que haviam passado no teste de
autenticidade porque suas profecias haviam-se cumprido (Dt 18.21,22; veja
Dt 13.2), mas, não obstante, eram culpados de deslealdade para com o Senhor.
Em outra parte do NT, eles certamente realizaram “sinais e maravilhas” e foram
acusados de desviar o povo (Lc 23.2,5,14; compare com At 19.26; veja Stanton
em Green e Turner, 1994, p. 175-180). Para as autoridades civis e religiosas, os
sinais realizados por pessoas tidas como desleais ao judaísmo tradicional repre­
sentavam um problema. Realizavam milagres, mesmo que isso fosse desleal à
tradição do judaísmo. “Intolerava-se alguém cujos atos poderosos atraíam inte­
resse, multidões e seguidores regulares, e cujos ensinamentos de tal seguimento
soassem como uma deslealdade radical” (Wright, 1996a, p. 441).
Os grandes centros mencionados por Lucas de forma específica já haviam
evidentemente tomado a decisão de que os ensinamentos de Jesus não eram or­
todoxos. Além do mais, Sua identificação como profeta (4.24; 7.16,39 et al.) e
Messias (9.20; 22.67) era considerada falsa e equivalia a desviar o povo. Já que
Deuteronômio 13 mandava que as cidades julgassem os profetas, elas, igual­
mente, levavam o castigo de destruição se apoiassem um falso profeta.
As cidades judaicas podem ter banido profetas questionáveis ou tentado
matá-los, mesmo que isso envolvesse membros da família. Os moradores de Na­
zaré tentaram apedrejar Jesus até a morte (Lc 4.29; compare com Lc 12.52,53)i
exatamente a punição prescrita em Deuteronômio 13.10. Lucas 11.53,54 tam­
bém reflete o procedimento de Deuteronômio de capturar aquele que causava
o desvio do outro — era permitido flagrar o infrator colocando testemunhas
escondidas contra ele (veja Sanh. 7.4; Mc 3.6; 14.1,55 || Mt 26.59-61 também
parecem referir-se a esse tipo de prática). Enquanto tal ação vigilante fosse pro­
vavelmente rara, esse paradigma poderia justificar o comportamento da turba
enfurecida em Nazaré e, é possível, por outros atos de violência contra Jesus
que são, de outra forma, difíceis de explicar (ex.: Lc 7.34, compare com Dt
21 .20 ).

A interdependência de cidades e aldeias

As pequenas cidades e aldeias eram provave lm en te inte rligad as com


os Sinédrios locais das cidades m aiores (veja Schürer, 1979, p. 188-190).
Na segunda m etade do prim eiro século, havia Sinédrios em Jerusalém,
Jerico e Séforis (Schürer, 1979, p. 190). As cidades m enores (C afarnaum )

77
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

e as aldeias (Nazaré) te ria m sido subordinadas a Séforis. “A subordinação


de aldeias e cidades é indicada com frequência, já no A ntigo Testam ento...
C orrespondentem ente, a cidade principal de um d is trito era designada
“ m ã e" (2 Sm 20.19). Está claro, de qu a lq u e r form a, que as aldeias, por
todos os lados, eram dependentes das cidades" (Schürer, 1979, p. 189).
Essas conexões te ria m tornad o a aceitação de Jesus difícil nas cidades
cujo conselho patrono já houvesse julga do contra Ele (veja Neale, 1993,
p. 89-101). Logo, a rejeição de Jesus em uma localidade não é apenas a
resposta de um a população local, mas é um desencadeam ento por um a
rede de conselhos e sinagogas, com o previsto em Mateus 10.17. Essas
questões criam um rico fu n d a m e n to social sobre o qual podem os in te rp re ­
ta r o relacionam ento de Jesus com as cidades locais. Elas podem ta m b é m
exp lica r por que o m inisté rio de Jesus é am p la m e n te cam pestre em sua
natureza. Ele sim ple sm en te não era bem -vindo nas cidades e aldeias da
Galileia. A rejeição generalizada de Jesus na Galileia era devida, talvez, a
uma com binação de questões religiosas e decretos a d m in istra tivo s locais.

NO TEXTO

■ 8-12 Há uma reiteração da injunção de comer o que lhes oferecerem sem


fazer perguntas: “Comam e bebam o que lhes derem” (v. 7) / comam o que
for posto diante de vocês (v. 8). Jesus instrui Seus emissários a não levantarem
questões sobre o estado do dízimo ou da pureza do alimento que está sendo
servido. Ele pode muito bem ser demai, não dizimado (“> 5.29-32), ou trans­
mitir uma impureza ritual por causa de seu preparo descuidado. As dúvidas
sobre o dízimo podem facilmente ser remediadas separando-se o dízimo no
prato. Os mandamentos bíblicos concernentes à pureza do alimento só se apli­
cam aos sacerdotes. Então, o encorajamento de Jesus para comerem sem escrú­
pulos reflete isso.
Alguns fariseus se subjugavam à carga sacerdotal voluntariamente, como uma de­
monstração de piedade que excede às expectativas. O comentário de Jesus sugere
que eram exatamente esses valores farisaicos supérfluos que Ele rejeitava. O Jesus
de Lucas mostra uma tendência distinta de relaxar a observância na purificação e
no dízimo. Isso alimenta Seu conflito com os fariseus e os doutores da Lei.
O propósito da missão dos setenta e dois é que curem os doentes que ali hou­
ver e digam-lhes: O Reino de Deus está próximo de vocês (10.9). Que o
78
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Reino de Deus está engiken eph’hymas {perto de vocês) é entendido como uma
promessa de bênção, mesmo que a hora da vinda do Reino seja indefinida (>à
17.20,21).
A jornada de Jesus em direção a Jerusalém desenvolveu-se sem nenhuma es­
pontaneidade benigna. Quando os Seus emissários não fossem bem recebidos,
Ele instruiu-os a saírem pelas ruas da cidade {eis tas plateias) e a fazerem uma
declaração pública de sua condenação. As ruas simbolizavam a declamação
pública de lealdade, em Lucas 13.26 e 14.21. Uma rejeição cívica gerava uma
repreensão cívica nas ruas: Até o pó da sua cidade, que se apegou aos nossos
pés, sacudimos contra vocês. Fiquem certos disto: O Reino de Deus está
próximo (10.11). Esse versículo aparece apenas em Lucas. Há uma estratégia
de confronto público na missão, completa com uma declamação pública nas
ruas das cidades e aldeias. A jornada de Jesus para Jerusalém desenvolveu-se
sem nenhuma espontaneidade benigna.
I 1 3 -1 6 O fato de o Reino estar “próximo” (engiken) implica em uma ame­
aça de julgamento apocalíptico. Eu lhes digo: Naquele dia haverá mais to­
lerância para Sodoma do que para aquela cidade (v. 12). Os habitantes de
Sodoma (veja Gn 18 e 19), a quem Deus destruiu com fogo do céu, terão me­
lhor chance na vinda do Reino de Deus — no dia do julgamento. Corazim e
Betsaida, semelhantemente, tiveram seu dia de milagres e recusaram-se a acre­
ditar. Tiro e Sidom (...) teriam se arrependido, vestindo roupas de saco e
cobrindo-se de cinzas se tivessem visto o que Corazim e Betsaida viram (v.
13). Jesus parece referir-se ao arrependimento das pessoas de Nínive em rela­
ção às roupas de saco e às cinzas por causa da advertência de Jonas (Jn 3.6-9).
Tiro e Sidom são cidades pagãs da costa do Mediterrâneo, logo ao norte de
Israel. A reivindicação de que cidades pagãs e pervertidas estariam em melhor
situação do que as cidades israelitas é uma amarga crítica profética e talvez uma
evidência da acrimônia que se desenvolveu em cidades galileias, aldeias e vila­
rejos em resposta a Jesus e Seus emissários.
Cafarnaum (v. 15) era a base de operações de Jesus e a casa de muitos dos Doze.
De início, Ele foi bem recebido ali (4.31-44) — o povo até tentou impedi-lo de
sair de lá. No entanto, eventualmente, uma ruptura com seus habitantes ou seus
líderes judeus tornou-o uma pessoa não bem-vinda naquela localidade (veja Jo
6.41-71). Jesus declarou que Cafarnaum agora descerá até ao Hades (Lc 10.15)
no dia do julgamento. “Quem lhes dá ouvidos está me dando ouvidos; quem os
rejeita está me rejeitando; mas quem me rejeita está rejeitando quem me enviou”
(v. 16 NIV11’tradução livre; veja também v. 22) soa como o quarto Evangelho.
79
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

3. A volta dos setenta e dois (10.17-24)

NO TEXTO

H 17 Os discípulos retornam de sua missão regozijando-se: Até os demônios se


submetem a nós, em teu nome (v. 17). Jesus responde com três frases:
■ 18 Primeira: Eu vi Satanás caindo do céu como relâmpago (v. 18). Alguns
intérpretes sugerem que essa frase represente algo que Jesus viu em uma visão ou
em Seu estado preexistente. Lucas, entretanto, não se refere explicitamente à pre­
existência de Jesus. Ele também não fala, em geral, como uma figura apocalíptica
em Lucas. E mais provável que a declaração hiperbólica caracterize o sucesso dos
discípulos na expulsão de demônios, no sentido de efetuar a retirada do próprio
Satanás.
Fitzmyer identifica o contexto dos versículos 17-20 como “exortatório”. A princi­
pal preocupação de Jesus é exortar Seus discípulos quanto ao valor da salvação —
“porque seus nomes estão escritos nos céus” (v. 20). O verbo vi (v. 18, etheõron), no
tempo perfeito, parece indicar não uma ação completa, mas contínua: Eu estava
vendo Satanás cair.
Ler Lucas 10.15 com o versículo 17 sugere uma alusão a Isaías 14.15: “Mas às
profundezas do Sheol você será levado, irá ao fundo do abismo!” Aiguns intér­
pretes sugerem que esse oráculo se refira a uma queda primordial de Satanás. Em
seu contexto original, porém, isso claramente se refere ao “rei da Babilônia” (Is
14.4). Logo, a melhor posição interpretativa é que as expulsões de demônios bem-
-sucedidas, realizadas pelos discípulos, anunciavam simbolicamente a derrota de
Satanás, uma palavra usada aqui, em Lucas, pela primeira vez em relação ao diabo.
(Sobre a cosmologia de Lucas 4.38-44; 11.14-23; 20.1-8.)
H 19 Segunda: a frase de Jesus se refere à autoridade dos discípulos de pisarem
sobre cobras e escorpiões, e sobre todo o poder do inimigo. E ainda reivindica:
Nada lhes fará dano.
I 20 Terceira: isso contrasta com a frase que aconselha os discípulos a não se
alegrarem com a segurança terrena. Ao contrário, eles devem regozijar-se porque
seus nomes estão escritos no céu.
Os versículos 17-24 retratam um quadro hierárquico. As palavras “submetem” (v.
17), “caindo” (v. 18), “pisarem” (v. 19) e “vencer” (v. 19 NTLH) indicam a vitória
sobre Satanás e sua jornada declinante de rei deste mundo a um déspota subjugado.
80
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Também temos palavras que descrevem a parte de cima da hierarquia vertical: céu
(v. 18,20), “Senhor do céu e da terra” (v. 21), “profetas e reis” (v. 24). A passagem
não parece ter o sentido apocalíptico de Apocalipse 12.7-12, em que uma grande
batalha universal está em vista. Aqui, em Lucas, Satanás é destronado pela cura e
pregação dos discípulos. Essa é uma realidade presente, uma evidência da presença
do Reino de Deus no meio deles (veja Lc 17.21).
H 21 De maneira semelhante, Jesus contrasta os adultos com as crianças. As crian­
ças estão em baixo na escada hierárquica, e os adultos estão nos níveis superiores.
Contudo, com ironia (veja 9.48), Lucas compara a abertura e o esclarecimento das
crianças com a obstinação e a cegueira dos adultos (veja 18.15-17).
Jesus estava exultando no Espírito Santo. Lucas descreve esse estado extático
como sendo causado pelas novidades de Seus discípulos que acabavam de retornar.
Ele descreve-os como os pequeninos em contraste com os sábios e cultos. Pesso­
as como os fariseus não conseguiam entender o significado dos ensinamentos de
Jesus. Os ensinamentos estavam escondidos delas (8.9,10).
■ 22-24 A reivindicação de Jesus — Todas as coisas me foram entregues por
meu Pai — tem uma importância cristológica muito abrangente. Ele afirma o Seu
domínio sobre toda a criação de Deus. Ele prossegue: Ninguém sabe quem é o
Filho, a não ser o Pai; e ninguém sabe quem é o Pai, a não ser o Filho e aqueles
a quem o Filho o quiser revelar.
Essas afirmações interpõem Jesus entre Deus e os homens como o único árbitro do
conhecimento divino. Isso é um significativo avanço na teologia da divindade de
Jesus em Lucas. Tais declarações soariam como blasfêmias para os tradicionalistas
do judaísmo. Primeiro, Ele removeu a Torá do centro do relacionamento de Israel
com o Senhor. Em vez disso, identificou o Messias como o mediador entre Israel
e Deus. No lugar da Lei e do culto sacrificial, Jesus reivindicou que Ele era o me­
diador da presença de Jeová. Essa declaração, compartilhada por Lucas e Mateus, é
surpreendentemente alusiva ao Evangelho de João.
Jesus faz essa declaração cristológica somente na presença dos discípulos. Ela, en­
tão, constitui uma parte da identidade secreta de Jesus compartilhada pelo nar­
rador, pelo círculo íntimo do movimento e pelo leitor. Os profetas e reis (v. 24)
há muito ansiavam ver o Messias. Contudo, eles não foram abençoados com essa
oportunidade. Os discípulos de Jesus são testemunhas privilegiadas de um evento
histórico da história da salvação.
81
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

C. Exemplos de amor ao próximo e a Deus


(10.25-42)

1. A parábola do bom samaritano (10.25-37)

POR TRÁS DO TEXTO

A parábola do bom samaritano é uma das quatro “parábolas exemplares”


da tradição do Evangelho. Todas as quatro são encontradas em Lucas: o homem
rico e seus celeiros (12.13-21); o rico e Lázaro (16.19-31); e o fariseu e o pu-
blicano (18.9-14). Essas parábolas exemplares também são descritas por alguns
como “parábolas de reversão”, por razões óbvias (veja York, 1991, p. 126,127).
Esse tipo de “parábola única de narrativa indireta” conta uma história, não
diretamente ao leitor, mas para o seu benefício, por meio de uma exortação.
Elas são parábolas narrativas porque têm o desenvolvimento de uma trama:
algo acontece; eventos subsequentes se seguem; elas eventualmente alcançam
uma resolução. A resolução exorta os ouvintes a imitarem ou não imitarem
aquilo que o personagem da história faz (Snodgrass, 2008, p. 13,14).
Cada parábola exemplar tem uma aplicação direta ou indireta para o lei­
tor. Aqui está: “Vá e faça o mesmo” (v. 37; compare com 12.21; 16.31; 18.14).
Essa é uma característica de Lucas, particularmente dado o contexto de arre­
pendimento e perdão tão proeminente em sua teologia (veja Tannehill, 2005,
p. 87-89). A parábola do bom samaritano demonstra a definição de quem é o
próximo em resposta à conversa de Jesus com o “perito na lei” (v. 25, vomikos).
Bem diferentes dos bons e saudáveis pecadores (“^ 5.1-11, Por trás
do texto), Lucas tem dois personagens importantes, que são destacados
especificamente para o leitor como exemplos positivos: o centurião (7.1-10) e
o bom samaritano. Diversos personagens secundários e, sem dúvidas, também
positivos podem ser identificados: Marta (10.38-42); o administrador fiel e
sensato (12.41-48); o administrador astuto (ironicamente) (16.1-9); o leproso
samaritano que retorna (17.11-19); e o mendigo cego na estrada de Jericó
(18.35-43). Talvez, com exceção de Marta e do administrador fiel, todos esses
personagens estão à margem da aceitação no mundo histórico: um centurião
romano, um samaritano, um homem desonesto, um leproso e um cego.
Com sua ironia típica, os personagens marginalizados de Lucas entendem e
demonstram o caminho de Deus ao leitor.
82
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

O bom samaritano se enquadra em uma categoria singular, como um re­


ligioso exemplar (Bock, 1996, p. 1021). Depois de Jesus, ele é a personagem
mais heroica no Evangelho de Lucas. Ele faz o mesmo que alguém santificado
deve fazer — cuida da pessoa ferida e doa altruisticamente em benefício alheio.
Contudo, o tema de Lucas tem um sentido duplo aqui. Embora o samaritano
seja uma pessoa religiosa, ele também representa os marginalizados no mundo
histórico, os pecadores (“^ 9.52,53 e 18.9-14; Snodgrass, 2008, p. 345). Ele é
um samaritano, um pecador simplesmente por causa de sua identidade étnica
e nacional. Do ponto de vista comum, ele é unicamente digno de destruição
(9.51-56).

Os bons sam aritanos do A ntigo Testam ento


Alguns com enta ristas sugerem que essa parábola tenha a v e r com 2
Crônicas 28.1-15 (e Os 6.1-11; Snodgrass, 2008, p. 345). Nessa história
do AT, Deus castiga o ím pio jove m judeu, o rei Acaz, por sua deslealdade:
ele é entregue aos aram eus e israelitas (sam aritanos) em uma batalha.
Os israelitas descem da Judeia, de Sam aria, e levam 200 mil cativos e
seus despojos para o norte, em um "m in ie x ílio " (D illard, 1987, p. 219). O
profeta israelita Obede acusa o exército sam aritano por usar brutalid ade
excessiva contra a Judeia. Samaria arrepende-se e vai aju dar os cativos.
Os sam aritanos levam os prisioneiros judeus e, com os despojos, vestem
todos os que estão nus. Eles dão-lhes a lim e n to e bálsam o para que curem
suas feridas. “ Puseram sobre ju m e n to s todos aqueles que estavam fracos.
Assim os levaram de volta a seus patrícios residentes em Jerico, a cidade
das Palmeiras, e vo lta ra m para S am aria" (2 Cr 28.15).
Logo, tem os um a história do AT que m ostra a com paixão dos sa m a ri­
tanos para com os judeus, um tem a sem elhante à história de Lucas. (Veja
ta m b é m um interessante paralelo greco-rom ano do tem a do bom sam a­
ritano no con texto egípcio, por Diodorus Siculus [p rim e iro século d .C ] em
Snodgrass, 2008, p. 341).

Diversas opções interpretativas têm sido propostas para essa parábola


(veja Snodgrass, 2008, p. 347,348). Os pais da Igreja primitiva liam-na como
uma alegoria da Igreja e de Cristo (também recentemente Gerhardsson, 2001).
Outros a têm identificado como uma história exemplar. Para alguns, ela é uma
metáfora para a “reversão de valores que o Reino traz”. E, para outros, ela é um
83
LUCAS 9 -24 NOVO COiMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

debate haláquico sobre a importância relativa do mandamento de evitar-se a


impureza dos cadáveres e do mandamento de amar ao próximo. Essas diversas
propostas mostram a complexidade e a profundidade dessa parábola.
Os três últimos tipos não precisam ser vistos como mutuamente exclusi­
vos. O paralelo é, com certeza, uma história exemplar (“Vá e faça o mesmo”),
mas também funciona por meio da reversão de valores (assim como as parábo­
las em Lc 12.13-21; 16.19-31; 18.9-14). E o paralelo faz isso enquanto se refere
às questões da impureza ritual e à compaixão que seriam reconhecidas pelos
judeus do primeiro século como um ponto de contenda haláquica.
O poder da parábola reside no conhecimento do leitor de que havia um
desentendimento sobre: se seria a pureza ritual ou a compaixão que deveria
ter precedência na vida santa. Essa é pelo menos uma das perguntas que a pa­
rábola tenta responder — ela ensina-nos a agirmos quando valores religiosos
conflitantes se chocam. Contudo, é mais do que isso. Essa parábola tem sido
corretamente descrita como um “conto metafórico” que redesenha “o mapa do
mundo social e sagrado” (Funk e Hoover, 1993, p. 324).
A expressão de Lucas acerca da experiência de salvação é distinta, e isso
começa a emergir nessa história. Somente Lucas chama Jesus de “Salvador”.
Ele usa os termos sõtêria/sõzõ {salvação/salvar) mais frequentemente do que
os outros Evangelhos Sinóticos (Fitzmyer, 1981, p. 222,223). Em outra parte
dos Sinóticos, diz-se que alguns querem “ter” a vida eterna (Mt 19.16) e “irão
para” a vida eterna (Mt 23.46; Mc 10.30; veja Bultmann, 1964b, p. 864). No
entanto, Lucas fala apenas de “herdar” a vida eterna {klêronomeõ, Lc 10.25;
18.18; encontramos a herança apenas em Mt 19.29 || Mc 10.17). Klêronomeõ
refere-se à herança do pai para os filhos — a transmissão de direitos da terra e
do progenitor (veja Foster, 1965, p. 781; Evans, 1990, p. 465).
Essa ideia é reformulada em Lucas para referir-se à herança do Reino. As
leis da herança são alteradas para estabelecer uma nova base para a inclusão
dos gentios na comunidade salva. Esse mesmo tema ocorre em outro lugar: em
Atos 26.17,18, por exemplo, os judeus e os gentios recebem o perdão dos peca­
dos e um “lugar” (/klhros, “lote, porção, parte”) entre os santificados. Na soterio-
logia de Lucas, os herdeiros tradicionais da promessa de Abraão são reinventa­
dos como membros de uma nova comunidade escatológica, incluindo gentios e
judeus (“^ Introdução, A eleição redefinida). A terra da promessa é redefinida
como a promessa da vida eterna. Aqui, a questão de como alguém obtém essa
vida é encontrada ironicamente nos lábios do tradicional professor da Lei.
84
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

NO TEXTO

H 25-28 Uma pergunta é feita a Jesus por um perito na lei. Ele disse a Jesus:
Mestre, o que preciso fazer para herdar a vida eterna? (v. 25). Os paralelos
sinóticos em Mateus 22.34-40 || Marcos 12.28-34 contêm apenas a pergunta
do perito, e não a parábola. A pergunta é diferente nos paralelos sinóticos: “De
todos os mandamentos, qual é o mais importante?” (Mc 12.28; Mt 22.36).
Todas as três versões citam Deuteronômio 6.5 e Levítico 19.18 em resposta à
pergunta do perito na lei.
A pergunta é: O que preciso fazer para herdar a vida eterna? (v. 25, zõên
aiõniõn). Essa frase grega é rara nos Sinóticos: na história do homem rico (Lc
18.18-23 || Mc 10.17-22 || Mt 19.16-22; veja também Mt 25.46). Por compa­
ração, João usa essa frase 16 vezes; Paulo, nove vezes.
Na LXX, a expressão “vida eterna” aparece somente em Daniel 12.2, possivel­
mente a referência primordial da ressurreição na Bíblia. Na literatura posterior
do segundo templo, a expressão “vida eterna” é encontrada no pseudoepígrafo
Os Salmos de Salomão 3.12 (primeiro século a.C.). O livro 4 Macabeus (final
do primeiro século) apresenta o martírio como o portal para a imortalidade da
alma (15.3; 16.25; 17.11,12; 18.18; veja Bertram, 1964, p. 852).
Em geral, a ideia de vida eterna não é típica da teologia do AT. A vida (ex.: khyh
ou nps) é fundamentalmente um conceito temporal (Bultmann, 1964a, p. 849-
851). A inclusão na teologia pactuai de Israel é uma questão de identidade, e
não de desempenho. O que alguém faz não deixa de ser importante, é claro,
como fica evidente na pergunta sinótica: “De todos os mandamentos, qual é o
mais importante ?”. Contudo, a pergunta sobre a vida eterna em Lucas dirige-se
à inclusão ou exclusão na comunidade salva.
O questionamento do perito na lei sobre o que ele deveria “fazer” (ti poiêsas)
para adquirir a vida eterna é coerente com o tema de Lucas sobre como um
discípulo deve agir (pôr em “prática” [6.49]; “siga-me” [9.59]; “vão” [10.3];
veja Green, 1997, p. 425,426). “Fazer” é o objetivo da parábola. O perito na lei
é aconselhado a “ir e fazer o mesmo”, na conclusão da parábola.
O perito na lei levanta-se para pôr Jesus à prova (ekpierazõ, “colocar à prova,
instigar, tentar”; também em 4.12; veja Green, 1997, p. 428). O perito queria
testá-lo. Em Lucas 10.29, o perito na lei tenta vindicar ou “justificar [dikaiõsai\
a si mesmo”. Essa tática destinada a envergonhar os oponentes de alguém é vista
em outro lugar (uma boruth\ 5.20-26; 20.22; Mc 12.18-27; veja Snodgrass,
2008, p. 353). A armadilha podería ter sido uma tentativa de atrair Jesus a dizer
85
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

algo herético concernente à Lei. A resposta de Jesus evita esse potencial ao redi­
recionar a pergunta de volta ao perito.
O perito na lei recebe uma pergunta complementar provocativa sobre a defi­
nição de “próximo”. Ele tem tanto características positivas quanto negativas
(Green, 1997, p. 427). Ele procurou Jesus e chamou-o de Mestre. Entretanto, a
caracterização mais ampla de Lucas quanto aos fariseus na narrativa é quase uni­
formemente negativa. Portanto, os leitores ficam na expectativa de um desafio, e
não de uma pergunta sincera.
A resposta de Jesus à pergunta sobre a herança da vida eterna é a mesma — obe­
deça à lei. Ele responde à pergunta com outra pergunta. “O que está escrito na
Lei?” respondeu Jesus. “Como você a lê?” (v. 26). O Jesus de Lucas respeita
o AT, em geral, e a Lei, em particular (-> Introdução, A fonte do Antigo Tes­
tamento e Lc 2.22-24,27,39). Todavia, a contínua legitimidade da Lei tem um
aspecto condicional baseado no surgimento de uma nova era (16.16,17 e 24.44-
49). Alguns halacás sobre a pureza ritual (“^ 7.6-10) são desconsiderados. Essa
passagem mostra, entretanto, que o Jesus de Lucas permanece dependente do
coração da Lei, até mesmo para o conhecimento da salvação: Faça isso, e viverá
(v. 28).
O perito na lei responde com referências às “duas tábuas da lei”. A primeira vem
de Deuteronômio 6.5, o Shemá, escritura recitada diariamente pelos judeus fiéis.
Esse mandamento está no cerne da fé judaica (Marshall, 1978, p. 443; Beale e
Carson, 2007, p. 320-322): Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração,
de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento. E a
segunda referência é de Levítico 19.18: “O seu próximo como a si mesmo”. Esses
dois textos estão fundidos em uma única sentença, com a elisão do verbo agapeõ
na segunda parte (Lc 10.27; compare com Mc 12.30,31 || Mt 22.37-39).
A “primeira tábua” são as quatro leis dos Dez Mandamentos, que lidam com o
relacionamento dos homens com Deus. A “segunda tábua”, representada pela
citação de Levítico, lida com os últimos seis mandamentos que governam as
relações humanas (veja Fitzmyer para o aparelhamento delas no judaísmo pré-
-cristão, 1985, p. 878,879).
Novamente, a ênfase está naquilo que a pessoa precisafazer. O debate emergen­
te entre Jesus e o perito na lei gira em torno da definição de quem é o próximo
(p/êsion). A parábola trata de um samaritano. A Lei não obrigava alguém a amar
tais inimigos, pois era necessário o amor para com os estrangeiros que viviam
ali (Lv 19.34; Marshall, 1978, p. 444). Esse texto reflete a significativa divisão
cultural e étnica existente entre os judeus e os samaritanos na época de Jesus.
De maneira teológica, as duas tábuas da Lei representam uma expressão ple­
namente circular da responsabilidade de alguém em demonstrar fidelidade a
86
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Deus e tratar seus companheiros seres humanos com dignidade e amor. O pa­
radigma da herança é “especialmente deuteronomista” (Evans, 1990, p. 465;
também Marshall, 1978, p. 443). Os comentaristas mantêm a necessidade da
fé em Deus e a responsabilidade de agirem compassivamente em um delicado
equilíbrio. Ninguém adquire um lugar com Deus por meio de ações bondosas;
ao contrário, os atos de compaixão fluem do amor bondoso. Jesus aprova a
resposta correta do perito sobre a lei dupla do amor. Sua “expressão de total
aliança e devoção... Em outros contextos, podería ser chamada de fé” (Bock,
1996, p. 1025).
Quando você ama a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma, de
todas as suas forças e de todo o seu entendimento, fica evidente que isso
envolve a “totalidade da mente e da vontade que devem ser trazidas à adoração
a Deus” (Marshall, 1978, p. 445). A combinação de amor e ação é um “amor
compreensivo de Deus, aliança globalizante e inflexível e conformidade com o
Seu propósito, de onde emana o amor aos outros” (Green, 1997, p. 428). Su­
mariamente afirmado, o Jesus de Lucas afirma que o relacionamento com Deus
deve sempre ser evidenciado pela prática do amor e respeito pela dignidade
humana (veja também Rm 13.8-10; G1 5.13,14; Tg 2.8). Isso está no coração
da descrição de Wesley sobre a vida santa.
Nessa passagem, Jesus apresenta as duas tábuas da lei sendo colocadas em prá­
tica, como o suficiente para adquirir-se a vida eterna: Faça isso, e viverá (v.
28). Em um estilo típico de Lucas, a ênfase está no fazer. Como ocorre aqui,
ele frequentemente usa o verbo poieõ (“fazer”) com força imperativa. Ele tam­
bém o utiliza de forma amiúde, com força subjuntiva, como no versículo 25: O
que preciso fazer? {tipoiêsas, veja, ex.: Lc 12.17; 18.41; 20.13,15). Embora o
perito na lei interprete a Lei corretamente, “internalizá-la e realizá-la” é outra
coisa (Green, 1997, p. 428). Essa pergunta complementar implica que a sua
compreensão da Lei excedia a sua aderência a ela mesma.
BI 29 O perito na lei quis justificar-se perguntando a Jesus: E quem é o meu
próximo? (v. 29). A resposta de Jesus a essa pergunta é a história do bom sa-
maritano.
I 30-33 Os personagens secundários dessa história são um sacerdote e um
levita, dois membros do estabelecimento religioso judaico. Os personagens
principais são um samaritano e um homem que, quando descia de Jerusalém
a Jerico, “foi atacado por assaltantes” (v. 30 NIV11, tradução livre). O cenário
era a estrada que ligava as duas cidades, uma descida de 22 km, deserta, de mais
900 m de altura, um notório refúgio para ladrões.
87
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

No mundo narrativo de Lucas, esses dois líderes religiosos simbolizam os tí­


picos representantes do judaísmo (o sacerdote, em 1.5-8; 5.14; 22.50 e 54; o
levita aparece apenas aqui, em Lucas, e em At 4.36). O samaritano representa
a minoria étnica odiada de Samaria (“^ Lc 9.52,53 sobre Samaria; veja Snod-
grass, 2008, p. 342,343,345,46). O que é importante aqui é a justaposição des­
ses personagens polarizados em relação ao tratamento que deram ao homem
anônimo ferido.
A parábola demonstra o que alguém deve fazer para herdar a vida eterna. Ao
encontrarem o homem, os dois religiosos demonstraram uma completa falta
de bondade. Cada um, assim que viu o homem ferido, moveu-se pelo outro
lado da estrada para evitá-lo enquanto passava (v. 31,32). A frase é repetida
para enfatizar. Ao observarem a urgente necessidade do outro viajante que está
sem roupas e quase morto, os religiosos, porém, recuam, colocando mais dis­
tância entre eles e o homem ferido, e recusam-se a oferecer ajuda.
Em pleno contraste com os religiosos judeus que mantiveram distância, o
samaritano chegou onde se encontrava o homem (êlthen kafautori). Lucas
frequentemente usa distância física e local para demonstrar a teologia prática.
Quando o samaritano viu o homem, ele fisicamente diminuiu a distância e
teve piedade da vítima (esplanchnisthê, compaixão sentida , uma palavra que
Lucas raramente usa; 7.13 e 15.20, na parábola do filho perdido).
■ 3 4 -3 5 O samaritano enfaixou as feridas do homem e colocou nelas vi­
nho e óleo, uma antiga prática medicinal. Ele, então, providenciou generosa­
mente meios para a recuperação do homem, cuidando de sua estada em uma
hospedaria e pagando as despesas dele com “dois denários” (NIV11, tradução
livre), uma quantidade que normalmente daria para alimentar uma família in­
teira durante, mais ou menos, uma semana e meia (veja Oakman, 2008, p. 40-
45,164-180).
Nos versículos 31-33, o verbo ver (idõn ) é repetido três vezes, cada vez seguido
por um verbo de ação {antiparêlthen || esplanchnisthe), Isso chama a atenção
para o ponto fundamental de contraste na parábola.
• O sacerdote > idõn antip ar êlthen, vendo-o, passou ao largo.
• O levita > idõn antip ar êlthen, vendo-o, passou ao largo.
• O samaritano > idõn esplanchnisthê, vendo-o, demonstrou compaixão.
Ver o necessitado e, depois, distanciar-se dele justapõem-se com vê-lo e apro­
ximar-se dele. A antipatia quanto ao sofrimento alheio é contrastada com a
compaixão.
88
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

■ 3 6 -3 7 Jesus perguntou ao perito na lei: Qual destes três (...) foi o pró­
ximo do homem? O perito na lei respondeu: Aquele que teve misericórdia
dele. Em resposta, Jesus lhe disse: “Vá e faça o mesmo”
Os estudiosos debatem a presença de uma metáfora na parábola e se essa histó­
ria faz referência ao Reino de Deus (Snodgrass, 2008, p. 350-353). Contudo,
o sentido pleno da parábola parece ser o de uma história com uma moral. As
ações do samaritano permanecem como um encorajamento, para que o leitor
oriente suas ações dessa mesma forma.
A PARTIR DO TEXTO

Enquanto caminhava no centro da cidade certo dia, deparei-me com um


homem inebriado, deitado inerte na calçada. Não querendo deixar o pobre
homem ali, chamei os serviços de emergência. Enquanto fiquei naquele local
meio sem jeito, esperando que o socorro chegasse, um indivíduo que morava
na rua aproximou-se. Ele ajoelhou-se, cutucou o homem e falou gentilmente
com ele. Por acaso, ele ajudou-o a levantar-se. Embora, de forma aparente, ele
não conhecesse o homem, tratou-o como um próximo e ajudou-o em sua situ­
ação difícil. Eu gostaria de ter demonstrado essa simples bondade e compaixão.
Falhar em demonstrar um simples ato de bondade é provavelmente algo que
todos nós entendemos.
O sacerdote e o levita funcionam como exemplos dos que colocam todo
tipo de valor (ex.: etnia ou religiosidade) acima da preocupação com o próxi­
mo. Essa história é uma ficção, é claro. Esses dois personagens imperfeitos não
devem ser vistos como típicos representantes do judaísmo histórico. Entretan­
to, eles, de forma caricatural, representam o segmento daquela população cuja
visão se tornou desequilibrada.
Se a compaixão pela humanidade é a melhor prática religiosa, então apre­
sentar uma fachada de legitimidade religiosa enquanto se falha na compaixão é
a pior prática. Aqueles que “passaram pelo outro lado” (10.31) podem tê-lo fei­
to para preservar sua pureza ritual. No entanto, eles estavam “descendo” (v. 30
NTLH) de Jerusalém, e não “subindo”; eles estavam voltando para casa após
cumprir as suas obrigações (“^ 5.1-11,12-16). Talvez as razões deles fossem até
mais complexas, esbarrando em um estigma social e em uma prática sectária.
Possivelmente, eles tivessem medo de que aquilo fosse uma armadilha e que os
ladrões estivessem escondidos por perto (10.30). De qualquer forma, as ações
heroicas do samaritano convidam-nos a um novo conceito social baseado na
compaixão.
89
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Suas ações também funcionam como uma exortação para o leitor integrar
o amor pessoal a Deus com o amor ao próximo: “Vá e faça o mesmo” (v. 37).
Não pode haver uma nova realidade social sem um calor humano radical, nas­
cido do espírito de santidade compreendido em termos amplos e não cultuais.
Esse princípio reside no centro da prática e da teologia wesleyana. Visto que o
Reino de Deus possa ser realizado nesta era, ele só pode ser demonstrado pela
mudança baseada no amor e na compaixão. O samaritano modelou o estilo de
vida que trará o poder de transformação do Reino ao nosso mundo.
A dependência da história em sua base no Antigo Testamento também de­
monstra que não pode haver uma verdadeira santidade sem a revelação orien­
tadora da Lei de Deus. O samaritano renegado cruza as barreiras social e reli­
giosa. Ele estende um cuidado compassivo a uma vítima atacada pela violência,
sem preocupação com sua própria segurança ou com a religião ou etnia da víti­
ma. O sacerdote e o levita representam uma compreensão falha da propriedade
religiosa em sua relação com a compaixão humana. O samaritano representa
uma verdadeira santidade pessoal, que é verdadeira para a Torá.

2. Na casa de Marta e Maria (10.38-42)

POR TRÁS DO TEXTO

Lucas, conscientemente, coloca essa pequena história de conflito familiar


como complemento da história do samaritano. A história do samaritano exem­
plifica o amor ao próximo. Maria exemplifica o amor a Deus e à Sua sabedoria.
Logo, as duas tábuas da Lei, o amor a Deus e o amor às pessoas, são vistas em
exemplos humanos. A história cria uma sutil distinção entre a hospitalidade e
o amor a Deus. Ambos são recomendados na Lei; e nenhum dos dois pode ser
ignorado. Contudo, ao final, o amor a Deus é o que pesa mais; estudar aos pés
do Senhor é a “melhor” parte.
NO TEXTO

H 3 8 -4 2 Lucas desloca-se suavemente da esfera da parábola fictícia para um


incidente real na vida de Jesus. Esse é intrinsecamente um material de Lucas,
porém, Maria e Marta também aparecem como as irmãs de Lázaro de Betânia,
no Evangelho de João (11.1-44; 12.1-8). Essas histórias parecem ter pouca co­
nexão direta com essa breve perícope. Em Lucas 10.38, Jesus entra numa aldeia
90
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

(ARC, kõmên tina), na fronteira de Samaria (9.52), enquanto que a Betânia


de João está nos arredores de Jerusalém, a aproximadamente 90 km ao sul. Se
Lucas sabe sobre Lázaro de Betânia, ele nunca o menciona (mas à 16.19-31).
Diversos temas de Lucas aparecem nessa história. O incidente ocorre em uma
refeição (5.29; 7.36; 14.1; 15.2; 24.30,43). Esse é um local especial de comu­
nhão para o Jesus de Lucas e um lugar onde Ele se associa com os libertos. A
cena da refeição é a fonte de um trocadilho duplo.
Jesus diz à apressada Marta que apenas uma coisa é necessária (10.42), uma
aparente referência a um prato único de jantar. Esse é um comentário que ser­
ve de referência para a natureza essencial do “ouvir” (Fitzmyer, 1985, p. 892).
Sobre Maria, é dito, então, que ela recebeu a melhor parte ao escolher ouvir, em
vez de servir à mesa (v. 42: “escolheu a boa parte”).
Em primeira leitura, Marta fez exatamente o que deveria ter feito. Ela o re­
cebeu em sua casa e, assim, para o Reino de Deus (v. 38; compare com 10.7;
9.4,5). Marta, a anfitriã hospitaleira é uma boa discípula. Previamente na nar­
rativa, as mulheres foram colocadas como modelo de discipulado pela forma
com que forneceram suporte para a missão de Jesus, em 8.2,3.
No entanto, no desenrolar da história, torna-se visível que a preocupação de
Marta com a hospitalidade ultrapassou o aspecto contemplativo de atender à
palavra do Senhor (v. 39). Sua irmã Maria é elogiada por Jesus porque ela ficou
sentada aos pés do Senhor, ouvindo a sua palavra (v. 39).
O tema “ouvir” foi enfatizado em 8.11-15e2LO conflito entre Marta e Maria
cristaliza o tema. A proclamação de Lucas 8.18 ecoa instrutivamente aqui, na
gentil repreensão de Jesus a Marta: “Por isso, considere cuidadosamente como
vocês escutam. Aquele que tem mais lhe será dado; daquele que não tem, até o
que pensa que tem, ser-lhe-á tirado” (NIV11, tradução livre).
O elogio pela hospitalidade na narrativa é, po’rtanto, temperado pela necessi­
dade da atividade mais essencial de ouvir a palavra do Senhor. No final, os que
ouvem a Palavra e a praticam são os verdadeiros discípulos (8.15,21). Signifi-
cantemente, o papel das mulheres como árbitras da hospitalidade naquela cul­
tura não as impede de assumirem as plenas responsabilidades do discipulado
(veja Green, 1997, p. 435-437).
Outro tema frequente para Lucas é o da figura exemplar em contraste com
a figura negativa: os pecadores (ironicamente exemplares), com os fariseus, a
mulher pecadora com Simão, o samaritano com o sacerdote e o levita, e assim
por diante. Maria, um exemplo de discípula ideal, é contrastada com Marta,
que está preocupada em servir. O fato de serem mulheres promove o tema
das mulheres em funções importantes no Evangelho. Já vimos a função que as
91
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

mulheres desempenham nas narrativas dos nascimentos e especialmente em


8.2,3, na descrição dos companheiros de viagem de Jesus.
As palavras de Jesus para Marta são relevantes para a ansiedade de nossos tem­
pos modernos: Marta! Marta! Você está preocupada e inquieta com muitas
coisas; todavia apenas uma é necessária. Maria escolheu a boa parte, e esta
não lhe será tirada (v. 41,42). Há uma ressonância aqui com 9.25: “De que
adianta o homem ganhar o mundo inteiro e perder-se ou destruir-se ?” (NIV11,
tradução livre).
Quem dentre nós não entende bem a frase preocupada e inquieta com mui­
tas coisas? A boa parte é prestar atenção na alma e em sua subsistência. As
preocupações domésticas, as responsabilidades com os negócios, as ocupações
e o peso dos cuidados mundanos são todos resolvidos mais facilmente com
uma espiritualidade bem atendida. (Sermão de João Wesley sobre 1 Co 7.35,
“Na Dissipação”, dê atenção a Lucas 10.39).

D. Ensinos e expulsões de demônios (11.1-36)

1. O caminho da oração (11.1-13)

POR TRÁS DO TEXTO

O início do ministério galileu de Jesus concentra-se em Sua identidade e


em Seus feitos (4.1 — 10.42). Agora, a caracterização de Jesus como um mestre
começa a emergir. Os ensinamentos nos capítulos 11 — 19 apresentam os pen­
samentos sobre a vida de Jesus, tanto espiritual como física. Os tópicos são de
ampla abrangência: oração, perseverança, demônios, Lei, mordomia, a vinda
do Reino, relacionamentos familiares, fé e Seu destino futuro. A sabedoria prá­
tica e os esclarecimentos espirituais de Jesus estão à mostra. A revelação do pen­
samento interior de Jesus começa com a Oração do Senhor, em Lucas 11.1-4.
A oração sumariza “a forma com a qual Ele lia e respondia aos sinais dos
tempos, a maneira com a qual Ele entendia Sua própria vocação e missão e
convidava Seus seguidores a compartilharem” (Wright, 1996b, p. 2). É um
“sumário dos fundamentos” da proclamação de Jesus (Jeremias, 1967, p. 77).
Claramente, a oração é de grande importância para o pensamento e a espiritu­
alidade cristã.
92
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

A confiança de Lucas em modelar suas fontes é cada vez mais evidente na


seção central da jornada. Com exclusividade, 37 perícopes de Lucas e 40 perí-
copes Q se entrelaçam no material fundamental de Marcos, em Lucas 9.50—
19.48. Somente 14 perícopes L e 20 perícopes Qocorrem antes do capítulo 11
(veja Fitzmyer, 1981, p. 77-79 e 83,84). Lucas é um “perfeito artista literário”,
que entrelaça suas fontes tão habilidosamente que as emendas desaparecem
(Streeter citado por Fitzmyer, 1981, p. 92). O conjunto é moldado por Lucas
para servir aos seus próprios propósitos. Ele “aperfeiçoa” e “reescreve”, abre­
viando, omitindo e transpondo o material. Ele modera o teor emocional de
Marcos em diversos lugares (Fitzmyer, 1981, p. 92-96).
No capítulo ll,o material de suas três fontes é mesclado de uma forma cada
vez mais complexa, alternando entre o material compartilhado com Mateus e o
material Q de Lucas (v. 1-4,9-13,24-26,34-54), o material L (v. 5-8,27,28) e a
tradição tripla (v. 14-23,29-32,33,37-54). Mais proeminente nessa montagem
é o material compartilhado com o Sermão da Montanha de Mateus (Mt 6.9-13
|| Lc 11.2-4; Mt 7.7-11 || Lc 11.9-13; Mt 5.15; 6.22,23 || Lc 11.33-35). Lucas
reorganiza a apresentação de Mateus desse material familiar para adequar-se
aos seus propósitos (veja também 12.22-31,33,34,58,59; 13.24-29; 14.34,35;
16.13,16-18).
Essa mesma liberdade também é óbvia no Sermão da Montanha de Lucas,
no capítulo 6. Nele, Lucas coloca a parte maior do material do sermão imedia­
tamente após cinco histórias de conflito (5.17—6.11), enquanto Mateus usa o
material de conflito bem depois do sermão (Mt 9.1-17; 12.1-14; 6.17-26, Por
trás do texto). Novamente, aqui, em Lucas 11, ele enquadra o ensino de Jesus
no contexto do conflito. Muito do restante do material do sermão de Mateus,
que não foi usado antes, é incluído aqui. Ele é seguido de um vitriólico ataque
contra a hipocrisia dos fariseus (Lc 11.37-53). Esse material de conflito em
Mateus é introduzido apenas como um prelúdio da paixão, no qual alguém
esperaria encontrar uma linguagem forte (Mt 23.1-36).
O tema da oração (Lc 11.1-8), da guerra espiritual (v. 14-26), do pecado
de Jonas (v. 29-32) e da cegueira quanto à luz (v. 33-36) são preparativos para
o ataque contra os fariseus e os peritos na lei (v. 37-54). O contexto do debate
sectário torna-os um tratado sobre o conflito religioso. Se os leitores de Lucas
enfrentassem pressão por parte de seus oponentes, seu material reformatado os
teria encorajado a perseverarem diante da oposição.
A oração de Jesus em Lucas é mais curta do que a versão em Mateus 6.9-13
(e na.Didaqué&.2, derivada de Mateus). A versão de Lucas consiste de instrução
93
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sobre como dirigir-se a Deus, seguida de cinco petições simples. A doxologia


de Mateus não está presente em Lucas.
Metzger observa a marcante resistência das testemunhas primitivas em
assimilar a oração de Lucas em detrimento da forma mais litúrgica de Mateus
(1971, p. 154). Muitos copistas subsequentes expandiram a oração de Lucas
com o discurso mais completo de Mateus, mas o original de Lucas era mais
esparso e conciso. Alguns acham que a versão mais curta de Lucas seja a origi­
nal, já que os textos antigos eram mais prováveis de serem expandidos do que
encurtados (Jeremias, 1978, p. 89-91; Fitzmyer, 1985, p. 897). Outros discor­
dam (ex.: Charlesworth, Hardinge Kiley, 1994, p. 1-5).
O acordo entre Lucas e Mateus indica que a oração estava circulando em
uma forma tradicional que a Igreja primitiva adotara. Esses acordos se esten­
dem às particularidades da gramática. Lucas, mais cedo, resistiu à tentação de
estender a oração ou apenas conhecia a forma mais curta. A oração é o primeiro
dos três ensinamentos do tópico no capítulo 11: a Oração do Senhor (v. 1-4),
0 amigo importuno (v. 5-8) e o poder da oração (v. 9-13).
NO TEXTO

1 1 A oração é tema proeminente em Lucas. Essa oração apenas aprofunda


essa ênfase (1.10,46-55; 2.28-33,37; 6.12; 9.18,28,29; 10.21). O contexto da
Oração do Senhor está no pedido por instrução feito por um discípulo: Se­
nhor, ensina-nos a orar, como João ensinou aos discípulos dele (para as
práticas de João, veja 5.33).
As orações judaicas diárias são bem confirmadas no período final do segundo
templo. Os pergaminhos do mar Morto contêm muitas orações, assim como ou­
tros textos apócrifos e pseudoepígrafos daquela época. As 18 bendições da litur­
gia judaica são recitadas três vezes ao dia. A décima quinta bênção trata da oração:
“Ouça, ó Senhor, nosso Deus, a voz das nossas orações e tenha compaixão de nós,
pois tu és um Deus bondoso e compassivo. Bendito és tu, ó Senhor, que ouve as
orações” (veja mais em Charlesworth, 1992, p. 449,450). O Kadish é uma oração
de doxologia da liturgia padrão da sinagoga com temas semelhantes à Oração do
Senhor. “Exaltado e santificado seja o seu grande nome no mundo que ele criou
segundo a sua vontade. Que ele possa estabelecer o seu reino no tempo da sua
vida e em seus dias, e durante os dias de vida da casa de Israel, rapidamente e em
tempo próximo” (Green, 1997, p. 439,440; veja também Lachs, 1987, p. 118).
Semelhante à Oração do Senhor, há uma oração curta para tempos de desespero:
“Realize a sua vontade no céu e conceda satisfação na terra sobre aqueles que
94
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

o reverenciam e fazem o que é bom aos seus olhos. Bendito és tu que ouves as
orações” (veja Taylor, 1997, p. 152 e também Lachs, 1987, p. 118). Compare
também m. Ber. 4.4: “Aquele que viaja para um lugar de perigo deve fazer uma
breve oração, dizendo: ‘Salve, ó Senhor, o remanescente de Israel; em cada
período de transição em que estiver, que as suas necessidades cheguem diante
de ti. Bendito és tu, ó Senhor, que ouve as orações!” A oração de Lucas é para
as “pessoas cuja coragem precisa ser despertada” (Jeremias, 1967, p. 88). Isso
está de acordo com o contexto literário da Oração do Senhor em Lucas: os
discípulos de Jesus aprendem a orar em meio a um conflito — os perigos e o
desespero da jornada para Jerusalém.
0 discípulo chama Jesus de Senhor {kyrie). O vocativo kyrios usado aqui tem a
ver com o caso de uma abordagem direta em grego. Senhor, às vezes, significa
simplesmente “homem”. Entretanto, às vezes, tem uma importância cristoló-
gica (como em 5.8,12; 6.46; 9.54 e 10.17), como aqui. Em um momento an­
terior, o leitor viu os dois termos de abordagem em referência direta a Deus:
“Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra” (10.21). O “Pai” é dado a conhecer
somente àqueles “a quem o Filho o quiser revelar” (10.22).
1 2 Em resposta ao pedido de Seu discípulo, Jesus começa dizendo: Quando
vocês orarem, digam. O futuro do subjuntivo orarem (proseuchêsthe) com ho-
tan reflete instruções gerais para a oração, e não um exemplo específico (Culy,
Parsons e Stigall, 2010, p. 373). Logo, a oração é provavelmente um modelo
para qualquer oração e espiritualidade. As palavras expressam comunhão ínti­
ma, dirigindo o suplicante à presença de Deus por meio do direcionamento e
da brevidade da oração. As ideias são panorâmicas em escopo e profundamente
significativas. Contudo, são apresentadas com economia de expressão. Isso dá à
oração uma potência singular.
Jesus dirige-se a Deus simplesmente como o Pai. O familiar “Pai-nosso” vem
da versão de Mateus. Essa é uma forma íntima da abordagem judaica a Deus no
período do N T (Charlesworth, Harding e Kiley, 1994, p. 7-11; Jeremias, 1978,
p. 95; também encontrado em 2.49; 10.22; 22.29; 24.49). A forma aramaica
subjacente de Pai (patcr) nos Evangelhos é Abba (abbã), um termo de parti­
cular intimidade (Jeremias, 1978, p. 15-29). Embora não seja frequentemente
chamado de “Pai” no AT, Deus é ilustrado como o Pai de Israel; os israelitas
são Seus filhos (Dt 14.1; 32.6; 2 Sm 7.14; Jr 3.19; Is 63.16; SI 103.13; veja
Fitzmyer, 1985, p. 902,903). Essas referências do AT tendem a ser corporativas
em natureza. Logo, a forma de abordagem aqui contém uma ressonância com
o relacionamento histórico de Israel com Deus e uma nova intimidade nascida
do relacionamento peculiar de Jesus com Deus. O uso do termo “Pai” por Jesus
95
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

possui uma objetividade que é muito mais íntima do que o uso normal no AT.
O discurso inicial ao Pai é seguido de duas afirmações e três petições.
A primeira afirmação é uma declaração da santidade de Deus: Santificado seja
o teu nome. O ato de invocar a Deus reconhece a Sua santidade. E também
declara a nossa responsabilidade de afirmar a santidade de Deus no mundo por
meio de ações (compare Ez 36.16-32; veja Green, 1997, p. 441).
A segunda afirmação é uma profunda declaração sobre o relacionamento de
Deus com o mundo criado e o homem ansioso para que o Seu domínio seja
realizado na terra: Venha o teu reino. O Pai é também Rei. Embora o Seu
Reino ainda não esteja plenamente presente no mundo, ele não é menos real
(veja 17.21). A aparente ausência do Reino nos assuntos humanos é confusa
para os discípulos. Entretanto, a esperança de sua rápida realização os sustenta.
A comunidade pode apressar o aparecimento do Reino de Deus por causa de
Sua fidelidade.
Uma ideia similar está no centro do Kadish: “Estabeleça o seu reino... rapida­
mente e em um tempo próximo”. Apesar de todas as aparências contrárias, a
Oração do Senhor proclama que o mundo não sucumbirá aos seus problemas
caóticos. E, contudo, ainda há uma fiel paciência trabalhando na petição. O
discípulo aguardará o advento do Reino, não importa o quanto demore até que
seja completamente realizado.
3 Lucas enxerga a história como uma realidade de longo prazo para a Igreja (“^
Introdução, Lucas e a vida cristã, o apocalipse). Sua narrativa de dois volumes
apresenta a vida de Jesus (o Evangelho de Lucas) e, depois, a vida da Igreja
(Atos).
Essa ênfase é refletida na petição pelo pão. Tanto em Mateus como em Lucas,
o pão é ton arton hêmõn ton epiousion, o nosso pão de cada dia (Mt 6.11 11 Lc
11.3). O uso do imperativo do verbo dar (didou), em Lucas, indica a natureza
contínua do pedido. Em 9.23, Lucas torna o carregar da cruz uma responsa­
bilidade “diária”. Em ambos os casos (9.23 e 11.2), significam uma questão de
prática diária: Dá-nos o pão nosso de cada dia. O pão é um potente símbolo
no decorrer da literatura bíblica. A petição de um pão cotidiano tem uma
significância em quatro perspectivas:
Na primeira, ela tem fortes intertextos com a história do AT, começando com
o maná para o povo de Israel (Ex 16.4 e 15; compare com SI 78.25). Quando
o povo peregrinou pelo deserto, Deus alimentou-o miraculosamente com o
maná do deserto. Esse foi um precursor do legado de Deus daquela terra e a
fonte da bênção para o Seu povo (Ex 3.8). No mesmo dia em que os israelitas
entraram na terra, “eles comeram pães sem fermento e grãos de trigo tostados,
96
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

produtos daquela terra. Um dia depois de comerem do produto da terra, o


maná cessou. Já não havia maná para os israelitas, e naquele mesmo ano eles
comeram do fruto da terra de Canaã” (Js 5.11,12). Logo, o pão de cada dia tem
ligações simbólicas com a promessa da terra (SI 145.15,16; 146.5-7). A alimen­
tação da Sua nação é fundamental para a aliança de Deus.
Segunda, o pão transmite o sentido da comunhão sagrada, especialmente na
história do Evangelho. Comer juntos constitui uma ligação sagrada de comu­
nhão (“^ Lc 5.29-32). Jesus come com os marginalizados que reconhecem a
Sua identidade como o Messias. Seus oponentes não o reconhecem e acusam-
mo de inconveniência à mesa. Eles maldizem-no, chamando-o de “comilão e
beberrão, amigo de publicanos e pecadores’” (Lc 7.34). No entanto, esses leais
seguidores recebem pão em abundância quando estão com fome. Quando são
enviados para fora, eles não precisam levar pão, já que Deus o proverá (9.3).
Jesus orienta os discípulos das mãos vazias a darem “algo para comer” aos cinco
mil homens, e “todos comeram e ficaram satisfeitos” (9.13,17). Assim como
a provisão do pão caracteriza a aliança do AT entre Deus e o Seu povo, assim
Jesus provê o “maná” para os Seus próprios seguidores.
Terceira, o pão é um símbolo do Reino que há de vir. Em Lucas 14.15, um
seguidor exclama: “Bem-aventurado é aquele que comer no banquete do Rei­
no de Deus” (NIV11, tradução livre). Aqueles que seguem Jesus festejarão no
banquete escatológico. Aqueles que não o seguem não poderão adentrar pelas
portas ("^ 13.23-29).
Quarta, o pão tem um significado escatológico na história de Lucas acerca da
ressurreição. A observância da Ceia do Senhor conectou os cristãos em um
ritual sagrado de união antes de Sua crucificação (“^ 24.28-35, A partir do
texto). O vinho e o pão são símbolos de Sua presença em memória. Após a
Sua ressurreição, o Jesus ressurreto aparece à mesa com os dois discípulos no
caminho de Emaús. “Quando estava à mesa com eles, tomou o pão, deu graças,
partiu-o e o deu a eles. Então os olhos deles foram abertos e o reconheceram, e
ele desapareceu da vista deles” (24.30,31).
A presença de Jesus na refeição ocorre novamente quando Ele come na presen­
ça de Seus discípulos, em Lucas 24.41-44 (veja Mc 14.25). Quando alguém lê
a narrativa da ressurreição, a função do pão no decorrer do Evangelho é lançar
uma nova luz — ele é relido como um símbolo da ressurreição e da vida pós-
-ressurreição da Igreja.
I 4 Lucas diz: Perdoa-nos os nossos pecados (tas hamartias; ênfase adicio­
nada) em vez de “dívidas” {ta opheilêmata), como em Mateus. Isso reflete a
ênfase nos pecadores e no arrependimento como a proclamação paradigmática
97
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

da seção central de Lucas (-> Introdução, Os pecadores encontram o arrepen­


dimento).
Ainda mais marcante é a frase de Lucas: Pois também perdoamos a todos os
que nos devem. Essa não é uma expressão de contingência, como em Mateus:
“Perdoa as nossas dívidas, assim como \hõs\ perdoamos aos nossos devedores”.
E uma simples afirmação de fato. O discípulo que está orando diz: Você nos
perdoa, nós perdoamos os outros. O perdão não é uma negociação, nem uma
recompensa, é parte da “capacidade” que o coração cristão é destinado a pos­
suir (“>■ 7.36-50, A partir do texto).
O conceito de perdão em Lucas ecoa o paradigma levítico do perdão (-> 5.17-
19 anotação complementar, “A teologia do perdão no judaísmo”). Isso requer
confissão, restituição e oferta, partes componentes do processo de busca de
restauração pelos erros. A absolvição divina é necessária, mas o erro de homem
para homem deve ser tratado. Em Levítico, isso é realizado pela restituição —
a restauração da propriedade (veja Lc 19.8; At 5.1-11). Em Lucas, o pecado é
a condição que exige remediação. E mais do que simplesmente uma obriga­
ção econômica, judicial ou política (ex.: 5.8; 7.38; 15.21; 18.13; veja Konstan,
2010, p. 2,3, para vários tipos de perdão).
Na Oração do Senhor, aquele que ora é simultaneamente devedor e credor. Os
pecadores buscam o perdão divino (perdoa-nos os nossos pecados). Contu­
do, eles também liberam perdão para os seus próprios devedores (pois tam­
bém perdoamos a todos os que nos devem). O processo de obtenção do per­
dão é tanto uma graça divina como um ato de responsabilidade de comunhão.
Isso envolve Deus e também um “processo humano variável e... uma prática
com versões culturalmente distintas” (Walker, citado por Konstan, 2010, p. 1).
A plenitude de Deus envolve a absolvição divina, certamente. Entretanto, os
discípulos liberam perdão também. Assim como o suplicante recebe o perdão
de Deus, o pecador beneficia-se do perdão entregue ao suplicante. Isso está de
acordo com o forte sentimento de comunidade santa de Lucas e com a impor­
tância da igreja como um lugar de bondade, do homem para o homem.
A petição final da oração é obscura: E não nos deixes cair em tentação. Por que
Deus conduziria alguém à tentação {peirasmon)? No contexto de Lucas, essa
palavra é “teste”, e não tentação em termos de incitar ao erro. Jesus foi testado
no deserto, assim como os Seus precursores também foram, para verificar o
Seu preparo para a missão (->4.13, Por trás do texto). Nos momentos de teste,
o fraco pode cair na apostasia (8.13, também Fitzmyer, 1985, p. 906,907).
Quando Jesus enfrenta Sua crucificação, Ele encoraja Seus discípulos a orarem
para que não falhem no teste da fé (22.28,40). Uma melhor tradução da
98
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

passagem é: Ore para que você não seja obrigado a passar pelo teste da fé. Nesse
contexto, isso funciona como uma exortação à fidelidade.
H 5-8 A ênfase sobre a oração continua. Somente Lucas preserva essa história
do amigo importuno, que acorda seu amigo no meio da noite para pedir pão
emprestado. A lição é resumida no versículo 8: Eu lhes digo: Embora ele não
se levante para dar-lhe o pão por ser seu amigo, por causa da importunação
se levantará e lhe dará tudo o que precisar. Semelhantemente, Lucas 18.1-9
reforça esse tema com a história do juiz injusto: “Então Jesus contou aos seus
discípulos uma parábola, para mostrar-lhes que eles deviam orar sempre e nun­
ca desanimar” (Lc 18.1).
A fidelidade diária é importante para Lucas (ex.: 9.23; 11.3). Isso fica mais
evidenciado em sua preocupação com o pobre, o doente e os pecadores deste
mundo. A mesma preocupação com a prática diária é refletida nessa passagem
que elogia a persistência. Não é a intensidade da crença, nem a ausência de
dúvida que torna uma oração eficaz (compare com Mt 21.22 || Mc 11.23). E a
persistência, a prática diária da oração, que a torna eficaz.
Isso não só ameniza o tom apocalíptico de Lucas em geral, mas também se
alinha com sua ênfase no arrependimento como um paradigma central de sua
narrativa da viagem. Assim como a resposta humana de arrependimento à ofer­
ta da graça e do perdão de Deus, a persistência em oração reflete a teologia de
Lucas quanto à responsabilidade pessoal: um cristão pode comover Deus pela
persistência da prática.
Esse pragmatismo realça a descrição que Lucas faz de Jesus. Seguindo as ins­
truções específicas sobre a oração nos versículos 1-4, o convite à persistente
oração funciona como uma exortação para a persistente recitação da Oração
do Senhor. Os versículos 1-4 dizem-nos por que devemos orar, e os versículos
5-8 dizem-nos como orar. A Didaqué 8.3, referindo-se à Oração do Senhor,
aconselha: “Orem assim três vezes ao dia”.
H 9-13 Para demonstrar o poder de um pedido persistente, Lucas usa um
argumento a minori ad maius — uma “história de quanto mais’” {posõ mallon).
Esse artifício era comum no ensino judaico (-^ 12.24-26 e 27,28). Isso de­
monstra que o que é verdade em um caso fácil é “ainda mais” verdadeiro em
um caso difícil (veja Talbert, 1992, p. 132,133). Nesse exemplo, a compaixão
natural de um pai terreno significa que ele nunca deixará de dar aquilo que seus
filhos pedem ou necessitam. Se um filho pede um peixe ou um ovo, nenhum
pai terreno dará ao seu filho uma cobra ou um escorpião (v. 11,12).
A compaixão de Deus está presente no coração humano como parte de Sua
imagem em nós. Deus é a fonte de toda compaixão e é sua mais pura expressão.
99
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Contudo, os homens são maus {ponêroi, v. 13 || Mt 7.11; 12.34; 15.19), com­


parados a Deus. Em Lucas, as multidões dão apoio a Jesus (-> 2.15-21; 5.12-16;
7.11-17). Os fariseus, por outro lado, são maus (veja 11.42-54). Essa caracteriza­
ção de pessoas como malvadas está fora da harmonia da descrição geral de Lucas
a respeito do povo. Aqui, ela meramente estabelece a base da argumentação, em
vez de ser uma afirmação teológica sobre a pecaminosidade humana.
Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quan­
to mais o Pai que está nos céus dará o Espírito Santo a quem o pedir! (v. 13).
O assunto da súplica é o dom do Espírito e a certeza da resposta de Deus para
tal pedido. O Espírito Santo é descrito como um “dom” apenas aqui, nos Evan­
gelhos. A versão de Mateus diz: “Quanto mais o Pai de vocês, que está nos céus,
dará coisas boas aos que lhe pedirem!” (Mt 7.11). O modo como Lucas usa isso
prefigura a concessão do Espírito como um dom, em Atos dos Apóstolos (1.4;
2.38; 10.45; 11.17; veja também Hb 6.4).
Esse é o único caso no Evangelho de Lucas no qual a presença do Espírito San­
to é descrita como comum para a vida espiritual dos cristãos. A referência no
contexto da história do amigo importuno é uma exortação para a persistência
na busca de uma vida cheia do Espírito. E uma passagem na qual a busca pela
santificação encontra uma particular garantia das Escrituras. Somente aqui, nas
tradições do Evangelho, somos encorajados a buscar persistentemente o legado
do Espírito Santo.

A função do Espírito Santo em Lucas

Há seis referências ao Espírito Santo na narrativa da infância


(1.15,35,41,67; 2.25,26), três na inauguração do m inisté rio de Jesus
(3.16,22; 4.1) e apenas quatro em toda a narrativa da viagem (10.21;
11.13; 12.10,12), a últim a delas encontra-se no capítulo 12. D entre essas
referências, a m aioria aplica-se às circunstâncias extraordiná rias em to r­
no do nascim ento e do início do m inisté rio de Jesus. Isso significa que os
personagens im p o rta n te s são im buídos da presença profética do Espírito
Santo — Isabel, Zacarias, Maria, João, Simeão e Jesus. Duas outras pas­
sagens referem -se à função in te rve n to ra do Espírito Santo em situações
co n flita n te s (12.10,12).
Essa descrição geral do Espírito Santo é com um a todos os Evangelhos.
As referências ao Espírito Santo estão confinadas aos personagens centrais
na narrativa e nas situações de conflito. Isso é especialm ente m arcante
quando com parado a Atos. Neste, o Espírito Santo é m encionado 41 vezes
e desem penha um papel proem in en te na vida dos m em bros da Igreja.

100
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

O tra ta m e n to de Lucas qu anto ao Espírito Santo aqui está de acordo


com a tra dição sinótica, e não com sua posterio r e mais explícita agenda
teológica para a propagação do Espírito em Atos dos Apóstolos.

A PARTIR DO TEXTO

A Oração do Senhor contém os itens teológicos essenciais da vida crista.


• Ela enfatiza a consciência da santidade da presença divina como uma rea­
lidade cotidiana.
• Ela expressa uma vida cheia de esperança da vitória em Deus, se essa vida
ainda não estiver plenamente realizada.
• Ela enfatiza o envolvimento de Deus na experiência comum da vida, no
pedido do sustento diário.
• Ela aponta para a necessidade do nascimento de Cristo, a expressão final
da identificação de Deus com a situação humana.
O pedido franco de perdão e a expressão inqualificável da vontade de es­
tender o perdão aos outros retratam a vida em termos da necessidade para a re­
conciliação, tanto da parte de Deus em relação a nós como da nossa parte para
com o próximo. Rogar a Deus para que preserve o Seu povo dos perigos da vida
dá voz ao medo que sentimos sobre o caos que nos rodeia, tanto no físico como
no espiritual. Isso nos assegura da presença de Deus em meio a esses perigos. Os
fundamentos da vida santificada são simples e profundamente expressos nessas
ideias teológicas principais.

2. Expulsando demônios pelo dedo de Deus (11.14-28)

POR TRÁS DO TEXTO

O “dedo de Deus” (Lc 11.20) é um símbolo da autoridade de Deus. Em


Êxodo, o dedo de Deus escreveu os Dez Mandamentos (Êx 31.18). Ele é tam­
bém um símbolo de poder nos milagres de Êxodo, quando os sacerdotes de Fa­
raó exclamaram: “Isso é o dedo de Deus” (Êx 8.19). Um símbolo mais comum
do poder de Deus é a Sua mão ou Seu braço. Na presente passagem, o “dedo
de Deus” pode simplesmente estar insinuando que a expulsão de um demônio
não era uma questão difícil para Jesus (compare com Lc 11.46).
101
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A etimologia do nome Belzebu para Satanás é incerta. Pode significar “Se­


nhor das moscas”. Isso parece derivar do autor de 2 Reis 1.2, que assim amal­
diçoa o deus de Ecrom, cujos adeptos o chamam de “Senhor do céu” (Lewis,
1992, p. 639).
NO TEXTO

H 14-23 Em Lucas 4.31-37, percebemos a autoridade de Jesus sobre o reino


espiritual. A expulsão de demônios maravilhou aqueles que a viram, e a multi­
dão disse entre si: “Que palavra é esta? Até aos espíritos imundos ele dá ordens
com autoridade e poder, e eles saem!” (Lc 4.36). Nesse contexto, a controvérsia
de Belzebu é sobre a fonte da autoridade de Jesus (veja 20.1-8; Mt 21.23-27 ||
Mc 11.27-33).
Aqui, assim como em Lucas 20.1-8, a questão é a autoridade de Jesus. Ele apre­
senta uma boruth, uma tradicional pergunta rabínica judaica destinada a enver­
gonhar o oponente com uma lógica inescapável (veja também 4.21-24; 5.20-
26; 14.1-6; 20.1-8,22). Eis a pergunta retórica de Jesus em 11.18: Se Satanás
está dividido contra si mesmo, como o seu reino pode subsistir? Se um rei
destrói o seu próprio povo, ele transforma o seu reino em um deserto — dessa
forma, como poderia Satanás expulsar seus próprios demônios? Jesus descreve
uma pessoa forte, cujo adversário ataca e o vence (v. 21,22). Logo, a história
implica que Satanás encontrou um adversário forte em Jesus de Nazaré, que
tirou a armadura dele e despojou os seus domínios.
Esse triunfo sobre Satanás refere-se à vitória de Jesus na provação do deserto
(Lc 4.1-13; Fitzmyer, 1985, p. 919). O inimigo agora foi eliminado. A seguir,
Jesus sumariza Seus comentários sobre a guerra espiritual com um desafio a
uma aliança: Aquele que não está comigo é contra mim, e aquele que comi­
go não ajunta, espalha (v. 23).
Como em outros desafios à autoridade de Jesus (4.31-37; 20.1-8), garantir que
a Sua autoridade vem de Deus cria a necessidade de uma decisão sobre a alian­
ça. A neutralidade é uma oposição, e deixar de unir-se à obra é equivalente a
opor-se a ela. Isso reverbera o desafio de Josué aos israelitas para escolherem
fazer uma aliança com o Senhor (Js 5.13; 24.14,15).
Aqueles que pedem um sinal em Lucas 11.16 são criticados por Jesus. Outros
o punham à prova, pedindo-lhe um sinal do céu. Essas palavras, inseridas
102
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

um pouco artificialmente aqui, são desenvolvidas de modo mais completo na


narrativa de Jonas (v. 29-32). Assim como Jonas foi um sinal para época dele,
Jesus era um sinal para Sua época (2.34). Enquanto alguns procuravam “sinais”
autenticadores da identidade de Jesus, em Lucas, a Sua própria presença é o
sinal, visível apenas para aqueles que têm esclarecimento espiritual (11.33-36).
H 24-26 Na demonologia judaica e palestina, os espíritos maus não gostam
de ficar sem um lugar para morar. O demônio feminino Lilith procurava um
lugar para descansar na passagem sobre o dia da vingança do Senhor (Is 34.14
NRSV). Diz-se que Lilith saiu perambulando à procura de pessoas para delas
apoderar-se, especialmente homens que dormiam sozinhos. Em Marcos 5, a
história do endemoninhado geraseno conta como os demônios rogaram para
não serem enviados para “fora do país” (v. 10 ARA) e pediram que fossem en­
viados para os porcos que estavam por perto. No desejo de evitar as regiões
desertas, os demônios lançaram-se com os suínos no mar. Os demônios pas­
saram por lugares áridos procurando descanso, e, não o encontrando (...)
(Lc 11.24). Os desertos, locais normais do banimento deles, são evitados pelos
demônios. Na tentação de Jesus, Ele encontra o diabo morando no deserto.
0 demônio aqui, nos versículos 24-26, procura voltar à sua antiga casa e tornar
a possuí-la. Dessa vez, ele leva outros sete espíritos piores do que ele, talvez
sugerindo a perfeição do mal ou a contraparte dos sete anjos da presença do
Senhor (v. 26; compare com Tob. 12.15).
1 27-28 Quando Jesus termina Seu ensino sobre os poderes demoníacos,
certa mulher exclama: Feliz é a mulher que te deu à luz e te amamentou.
Esse incidente não parece óbvio para acompanhar os versículos 14-26. Ainda
assim, é um convite à decisão, não diferente do versículo 23. Somente Lucas
dá proeminência à figura de Maria na história do Evangelho. Essa referência
à bem-aventurança dela relembra aquele material do início do Evangelho (Lc
1.26-56).
A resposta de Jesus à mulher reitera Sua declaração anterior sobre a Sua ver­
dadeira família, em Lucas 8.20,21. Mais desenvolvimento do tema da família
ocorre em 12.52,53. Cada expressão se refere à família de Jesus e, correspon­
dentemente, diminui a importância de tais ligações no Reino de Deus. A im­
portância do nascimento de Jesus dentro de uma família santa acaba sendo
suplantada pela desvalorização da importância daquela família no ministério
do Reino. Somente aqueles que praticam/obedecem à Palavra de Deus perten­
cem à Sua verdadeira família.
103
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Lucas 8.20,21 Lu ca s 11.27,28

Alguém lhe disse: "Tua mãe e teus Q u a n d o Jesus dizia e s ta s co isa s.

irmãos estão lá fora e querem ver- um a m u lh e r da m u ltid ã o e xcla m o u :

-te". " F e liz é a m u lh e r q u e t e d e u à luz

e te a m a m e n to u " .
Ele lhe respondeu: "M inha mãe
e meus irm ãos são aqueles que Ele re sp o n d e u : "Antes, fe lize s são

ouvem a palavra de Deus e a pra- a q u e le s q u e o u vem a p a la v ra d e

ticam ". D e u s e lhe o b e d e c e m " .

A PARTIR DO TEXTO

Embora a possessão demoníaca não seja retratada como sendo causada


pelo pecado em Lucas, existem indicações de um componente moral nessa his­
tória. Quando a vida que servia de residência anterior a um demônio está “var­
rida e em ordem” (v. 25), ela está limpa de toda influência maligna. No entanto,
se não houver uma ação preventiva, a “casa” será novamente tomada por uma
influência maligna ainda maior. “Então vai e traz outros sete espíritos piores do
que ele, e entrando passam a viver ali. E o estado final daquele homem torna-se
pior do que o primeiro” (v. 26).
A insinuação não expressa na história é que, sem uma ação moral, a per­
sistência do mal não pode ser vencida. A natureza perniciosa do mal faz da
resistência simples uma defesa insuficiente. Em Isaías, o lugar onde Deus não
está presente é capturado em um nome: Eles o chamarão de Não Há Reino Ali
(Is 34.12 NRSV).
Em contraste, Jesus reivindicou que, “se é pelo dedo de Deus que eu expulso
demônios, então chegou a vocês o Reino de Deus” (Lc 11.20). A esterilidade e a
presença invasiva do mal estão colocadas em forte oposição à presença do Reino.
Em uma poderosa metáfora, as assustadoras consequências do fracasso em agir
para evitar a presença do mal são indicadas — total possessão demoníaca.

3. O sinal dejonas (11.29-32)

POR TRÁS DO TEXTO

A alusão à história dejonas é uma significativa referência intertextual (veja


Mt 12.38-42 || Mc 8.11,12). Os leitores da história dejonas estão cientes do

104
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

irônico arrependimento dos ninivitas em resposta à pregação do profeta. A


relutância do profeta é conhecida por nós por meio de 2 Reis 14.25. Quando
foi chamado a pregar em Nínive, ele tentou escapar do Deus de Israel abando­
nando a terra de Israel: “Mas Jonas fugiu da presença do Senhor, dirigindo-se
para Társis” (Jn 1.3a). A história demonstra que Deus não só está presente no
templo de Israel, mas também onipresente em todas as nações. Além disso,
Ele ama todas as pessoas e almeja o arrependimento delas. As nações pagãs, às
vezes, responderam apropriadamente ao convite do Senhor, e toda a cidade de
Nínive apresentou-se diante de Deus vestida de sacos e cinzas.
A rainha de Sabá, do Sul, de 1 Reis 10.1-10, é outra referência a uma pagã
temente a Deus. Ela ficou de “boca aberta” com o esplendor e a sabedoria de
Salomão e seu palácio (1 Rs 10.5 NTLH). No julgamento vindouro, a dispo­
sição tanto da rainha de Sabá quanto dos ninivitas em arrependerem-se conde­
nará os ouvintes de Jesus por sua relutância em fazer isso (Lc 11.31,32).
Nínive e o reino de Sabá ficavam no extremo norte e no extremo sul do
alcance da Ásia Central, separados por quase 2.100 km. A ideia do templo
como um centro geográfico da presença de Deus é desmentida por essas remo­
tas nações pagãs que honram ao Senhor (veja m, Kelim 1.6-9 sobre a geografia
da pureza: “A terra de Israel é mais santa do que qualquer outra terra”). Embora
separados por enormes distâncias e por muitas gerações (espaço e tempo) essas
nações reconheceram o chamado do Senhor. A onipresença de Deus entre as
nações longínquas ao longo do tempo é um componente essencial no emergen­
te paradigma de salvação em Lucas.
O espírito de humildade dos ninivitas e da rainha de Sabá fica em forte
contraste com a orgulhosa intransigência dos oponentes de Jesus. Isso coloca o
seguinte discurso contra os fariseus em alto relevo (v. 37-53) e reforça o tema
de Lucas sobre o arrependimento como o novo paradigma da salvação.

NO TEXTO

■ 29-32 Jesus é a pessoa que abraça o amor radicalmente amplo previsto no


livro de Jonas — um amor que inclui a salvação de judeus e gentios. Jesus com­
para o Seu ministério ao de Jonas: Pois assim como Jonas foi um sinal para os
ninivitas, o Filho do homem também o será para esta geração (v. 30). Am­
bas as histórias desafiam o exclusivismo farisaico centrado na identidade étnica
e na pureza. Os propósitos de Deus são para todos, sejam judeus ou gentios.
105
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Os Evangelhos Sinóticos raramente se referem aos gentios de forma direta.


Entretanto, quando se referem, é com uma singular combinação de negativida-
de (Mt 10.5; 20.19 || Mc 10.33 || Lc 18.32; Mt 20.25 || Mc 10.42 || Lc 22.25)
e compaixão (Mc 7.24-29 || Mt 15.21-28). Em Lucas, a eleição é redefinida de
suas categorias tradicionais de inclusão étnica (judeus) vs. estrangeira (gentios)
para a comunidade dos arrependidos e perdoados.
Isso cria um paradigma muito mais inclusivo de salvação na teologia de Lucas.
Os gentios recebem a promessa da salvação (Lc 1.79; 2.29-32; 3.6; 4.16-30) e
demonstram uma grande fé nas tradições dupla e tripla (7.1-10 |j Mt 8.5-13;
Lc 8.26-36 11Mt 8.28-34 11Mc 5.1 -20; Lc 10.13-15 11Mt 11.20-24), mas espe­
cialmente nas fontes exclusivas de Lucas (10.29-37; 13.22-30; 17.11-19). Essa
questão é desenvolvida de forma extensiva em Atos, no qual a mensagem da
salvação é direcionada tanto aos judeus quanto aos gentios (At 26.20,23; tam­
bém 2.5-15; 10.1-43, esp.v. 43; 11.18; 15.17; 18.6; 28.28 etc.).
Mais uma vez, Jesus usa um argumento a minori ad maius para reforçar Seu
ponto de vista (“^ 11.13). Os ninivitas arrependeram-se pelas palavras de Jo-
nas; a rainha do Sul honrou ao Senhor por causa do esplendor de Salomão.
Contudo, está aqui quem é maior do que Salomão (...) está aqui quem é
maior do que Jonas (v. 31,32). É uma ironia atentar para o fato de que esses
piedosos pagãos levantarão no juízo com esta geração e a condenarão (v.
32). Em certo sentido, os pecadores e os publicanos do Evangelho de Lucas
desempenham o mesmo papel que esses pagãos piedosos. Embora fossem con­
siderados excluídos da salvação por alguns, eles responderam ao chamado do
arrependimento e são recebedores da graça particular de Deus.
A expressão esta geração (hêgenea aute) ocorre quatro vezes (v. 29,30,31,32).
E uma geração perversa, como crianças petulantes (veja 7.31), destinada a re­
jeitar o Filho do Homem (veja 17.25). O uso do termo geração sempre traz
a ideia um julgamento negativo em sua utilização por Jesus, em Lucas (veja
7.31; 9.41; 11.50; 17.25). Como tal, esse é distintamente um sentimento apo­
calíptico. A condenação “desta geração” culmina em 11.50-52. Isso também
conecta esse tema ao longo discurso apocalíptico em Lucas 21, especificamente
o versículo 32: “Eu lhes asseguro que não passará esta geração até que todas
essas coisas aconteçam”. Na corrente passagem, as “gerações” representam uma
caracterização mais ampla do que “multidões”, que geralmente são retratadas
de forma positiva em Lucas (H^ 2.15-21; 5.12-16; 7.11-17, Por trás do texto).
106
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

4. O ensino sobre a luz (11.33-36)

NO TEXTO
H 33-36 Lucas repete o contexto já usado em Lucas 8.16,17. Uma lâmpada
é colocada em um suporte para que todos possam ver a luz. Antes, ele se­
guiu Marcos (Lc 8.17; veja Mc 4.21,22). Aqui, Lucas reúne dois ditos de Ma­
teus com o Sermão da Montanha (Mt 5.15; 6.22,23): o acender da lâmpada
(11.33) e o olho como luz do corpo (11.34-36). Em cada um, Lucas aplica as
palavras de forma diferente.
O âmago da mensagem é encontrado no versículo 35: Portanto, cuidado
para que a luz que está em seu interior não sejam trevas. A visão física é
uma metáfora comum para o esclarecimento espiritual da Escritura (ex.: Sl
119.18; Ef 1.17,18). Lucas 8.10 carrega um significado semelhante: “A vocês
foi dado o conhecimento dos mistérios do Reino de Deus, mas aos outros falo
por parábolas, para que Vendo, não vejam; e ouvindo, não entendam’”.
A breve admoestação em Lucas 11.35 fala da responsabilidade que temos em
escolher a luz espiritual. Um olho sadio enche o interior do corpo de luz, mas é
possível ter olhos fisicamente saudáveis e permanecer na escuridão espiritual. A
rejeição espontânea da vida espiritual pode não só lançar a alma nas trevas, mas
também aprisioná-la (compare com Lc 11.26), tornando-a, por fim, incapaz de
ter discernimento espiritual.

E. A diatribe contra os fariseus (11.37— 12.12)

I. A disputa sobre a lavagem das mãos (11.37-41)

POR TRÁS DO TEXTO

O discurso de Jesus contra os fariseus domina a narrativa desde Lucas


II. 37 a 12.12. Mateus reserva a sua ira contra os fariseus até mais tarde em
seu Evangelho (Mt 23). Lucas, porém, coloca bastante desse material aqui no
centro de sua narrativa da viagem. Um pouco desse material é da tradição tripla
(Lc 11.37-4l||Mc 7.1-9||Mt 15.1-9). No entanto, muito do material adicional
que trata da hipocrisia dos fariseus é compartilhado apenas entre Mateus e
107
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Lucas (Lc 11.42-52 | |Mt 23.23-26). Somente Lucas coloca esse material em
um cenário de refeição (Lc 11.37), como ele sempre faz quando Jesus confronta
Seus adversários (5.29-39; 7.36-50; 14.1-24; 15.1,2; 19.1-10). E é Lucas quem
mais frequentemente identifica Seus adversários como sendo fariseus (5.21;
6.7). A hostilidade de Lucas contra os fariseus é confirmada pela rejeição deles
ao batismo de João (7.30), algo que apenas Lucas registra.
O conflito concentra-se na questão do perdão dos pecados para os mar­
ginalizados. Lucas trata desse tema mais uma vez no capítulo 15. Ele retrata
os fariseus como sendo totalmente desqualificados para a salvação. “Lucas tira
deles o direito a Deus, à lei, e ao Reino” (Moxnes, 1988, p. 152). Essa abor­
dagem quanto aos “fariseus” como um antítipo é simplesmente isto: um tipo.
Os fariseus como um todo não eram mais dados à impiedade do que qualquer
outra seita ou tipo de indivíduo (ex.: “pecadores”). O uso desse estereótipo é
semelhante ao uso da expressão “os judeus” por João.
Na leitura do contexto, os “fariseus” não entendem o que o livro de Jonas
ensina: Deus ama todos. Assim, eles representam todos aqueles que definem
o amor de Deus tão estreitamente que acabam excluindo os que não compar­
tilham do entendimento deles sobre a tradição. A descrição retórica de Lucas
pressiona os leitores rumo à incontroversa conclusão de que Deus ama os pe­
cadores, até mesmo aqueles aparentemente além dos limites. Ela também os
impulsiona a concluírem que os que resistem a essa visão globalizante do amor
de Deus, com base em escrúpulos religiosos, estão em trevas.
Jesus passou muito tempo em companhia de indivíduos do movimento
sectário que mais criticaram Suas ações. Claramente, essa impressão serve à
agenda narrativa do evangelista. No entanto, o tema é tão penetrante nos Evan­
gelhos por ter sido uma característica real do ministério de Jesus. E humano
evitar aqueles que achamos serem desagradáveis, mas Jesus parecia procurá-los
como um profeta faria ou deveria fazer.
NO TEXTO
H 3 7 -4 1 Jesus está à mesa na casa de um fariseu. Três aspectos da prática
religiosa são abordados nos versículos 37-44: o primeiro (v. 37-41) trata da
tradição do ritual da lavagem das mãos antes das refeições, juntamente com a
exigência correspondente da pureza dos utensílios. O segundo é o dízimo (v.
42). O terceiro é o orgulho indevido que aparece com a prática estrita de tal se­
paração cultual (v. 43). Todos os três eram importantes assuntos religiosos para
os fariseus daquela época, e Jesus censurou Seus oponentes nesse monólogo.
108
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

I 38 A observância farisaica do lavar das mãos era o que Marcos chama de


“tradição dos anciãos” (||Mc 7.1-9||Mt 15.1-9; 23.25,26). A prática deles exi­
gia lavar as mãos para estarem ritualmente puros antes de comerem. Lavar tra­
duz ebaptisthê, a fonte da nossa palavra “batismo” (veja Lc 11.38). De maneira
metafórica, na literatura bíblica, as mãos são o instrumento do coração. Elas
realizam feitos de justiça ou feitos de maldade. “Mãos limpas” simbolizam a
pureza de coração (Gn 20.5; Dt 21.6; Jó 17.9: SI 24.4; 26.6; Mt 27.24; Tg4.8;
para outros exemplos, veja AD/, p. 362,363).
A lavagem das mãos é uma “ordenança perpétua” na aproximação sacerdotal
do altar no tabernáculo (Êx 30.17-21). A prática tornou-se generalizada para
todos os judeus piedosos (.D BI, p. 362,363). Entre os fariseus, a tradição refle­
tia uma visão de que todo alimento deveria ser consumido em um estado de
pureza ritual. Os judeus comuns nem sempre eram tão escrupulosos como os
fariseus em relação a isso. Logo, Jesus não quebrou lei bíblica alguma em deixar
de lavar as mãos antes de comer. Contudo, o objetivo da crítica de Jesus não era
exonerar a si mesmo.
H 39 Um mandamento bíblico para lavar-se as vasilhas é referido aqui: Vocês,
fariseus, limpam o exterior do copo e do prato (Lv 11.32,33; 15.12; veja o
novo tratado do Mixná Kelim para uma abordagem detalhada sobre a pureza
dos vasos; também Tehar 2.2-8). A preocupação de Jesus não era com o exte­
rior do copo, isto é, com as questões da pureza ritual, mas com o interior da
vida das pessoas, onde há ganância e maldade (Lc 11.39,40). O exterior e o
interior do copo são referências metafóricas para as práticas religiosas públicas
e privadas. Uma mistura de questões está em jogo: “Ambos, o Antigo e o Novo
Testamento, registram as questões humanas de pureza ritual, pureza simbólica
do coração, e até as simples necessidades diárias de limpeza convergem para
tornar nossas mãos, que são plenamente visíveis, um símbolo poderoso da con­
dição de nosso coração invisível” {DBI, 1998, p. 363).
I 40 Jesus deveria saber que deixar de lavar as mãos naquele ambiente ofen­
deria o Seu anfitrião. A mostra de religiosidade desacompanhada da verdadeira
piedade era sempre criticada por Jesus. Isso explica o tom severo do discurso, ca­
racterizado por palavras, como: insensatos! (v. 40) e ai de vocês (v. 42,43,44).
0 irrisório termo insensatos traduz aphrones, “tolos, sem juízo, bobos”. Obser­
var as tradições dos anciãos e ainda ser simultaneamente “cheio de ganância e
maldade” (v. 39) é, na visão de Jesus, uma violação da piedade judaica.
1 41 O remédio de Jesus para a hipocrisia deles é uma admoestação para
darem esmolas: Mas dêem o que está dentro do prato como esmola, e verão
109
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

que tudo lhes ficará limpo. Ou, como a NTLH diz: “Portanto, dêem aos
pobres o que está dentro dos seus copos e pratos, e assim tudo ficará limpo para
vocês” (veja m. Kelim 25 sobre o interior e exterior dos vasos). O significado
básico parece claro: Se os fariseus vencerem sua ganância e maldade por meio
do ato social de dar esmolas, tudo se tornará limpo para eles (Green, 1997, p.
473; veja mais em Marshall, 1978, p. 493).

2. Os ais contra os fariseus (11.42-52)

NO TEXTO

H 42-44 Depois ocorre uma série de seis proclamações proféticas de ais pronun­
ciadas contra os fariseus e os peritos na lei (v. 42,43,44,46,47,52). As três primeiras
são direcionadas aos “fariseus”; as três últimas são direcionadas aos “peritos na lei”
(nomikoí)\ compare a frase característica de Mateus “os mestres da lei e os fariseus”
(grammateis kai Pharisaioí). O grito de ai, na tradição do AT, imita o som do luto
após uma morte. Aqui, ele prediz o fim daqueles descritos por Jesus.
A proclamação do primeiro ai trata do hábito farisaico de dar o dízimo de tudo o
que possuíam (v. 42). A lei bíblica exigia que o dízimo fosse pago sobre os produtos
da terra de Israel — sua produção agrícola e pecuária — e mais nada. Os fariseus
eram conhecidos por serem meticulosos em relação ao dízimo e davam um décimo
de tudo o que possuíam. Logo, eles dizimavam até sobre o lucro dos negócios ou de
qualquer coisa que comprassem no mercado, mesmo quando estes já haviam sido
dizimados. Em Lucas 18.12, Jesus conta que o fariseu no templo vangloria-se de dar
o dízimo de tudo quanto ganho. Esse ato de piedade foi além das mínimas expec­
tativas bíblicas. Isso servia para garantir que o dízimo havia sido pago sobre tudo o
que era necessário. Hortelã, da arruda e de toda a sorte de hortaliças (11.42) são
mencionadas como pequenas hortaliças facilmente esquecidas na hora do dízimo.
Jesus não condena a prática do dízimo: Vocês deviam praticar estas coisas, sem
deixar de fazer aquelas (v. 42). Entretanto, embora os fariseus tomem um cuidado
minucioso em dar o dízimo de todas as pequenas ervas, eles desprezam a justiça
e o amor de Deus. A estrutura do argumento é semelhante a 6.41,42: “Por que
você repara no cisco que está no olho do seu irmão e não se dá conta da viga que
está em seu próprio olho?” A ironia é palpável, e a distância entre a boa prática e a
má não poderia ser maior. Os fariseus são minuciosos quanto à hortelã, porém, tre­
mendamente despreocupados com a justiça e o amor de Deus. Assim como existe

110
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

o contraste entre o cisco e a viga, há também um aspecto cômico. O abismo entre a


prática da genuína obediência era absurdamente largo.
A expressão amor de Deus {tên agapên tou theou) é encontrada somente aqui e
em alguns poucos lugares no NT (Jo 5.42; Rm 5.5; 2 Co 13.14; 2 Ts 3.5; 1 Jo 2.5;
3.17; 4.9; 5.3). A expressão “amor de Deus” tem duplo sentido. Dado o ensino de
Jonas de que Deus ama os pagãos, a expressão pode ser entendida como o amor de
Deus por todos. De forma recíproca, ela pode referir-se ao amor que as pessoas têm
por Deus, que é demonstrado pela compaixão para com os outros. Esse é o caso
no conselho para dar-se esmolas em Lucas 11.41, e mais amplamente nos maio­
res mandamentos (10.27). De maneira irônica, aqueles que tentam demonstrar a
maior piedade com a minúcia do dízimo são acusados de não terem amor a Deus
e ao próximo.
O segundo ai é uma condenação do orgulho evidenciada no amor aos lugares de
honra nas sinagogas e as saudações em público (v. 43; “^14.7-11). Esse amor
pela posição social torna-os como túmulos que não são vistos, por sobre os quais
os homens andam sem o saber — uma acusação mordaz (v. 44). “E tem mais, em
vez de separarem-se da impureza dos outros, os fariseus agora estão realmente co­
locando em risco a pureza relativa dos que estão à volta deles. Uma renúncia mais
compreensiva do projeto farisaico é difícil de imaginar” (Green, 1997, p. 473).
■ 45-52 Os três ais são pronunciados contra os peritos na lei (v. 46,47,52). A
NVI evita a tradicional tradução de “advogados” para nomikos, preferindo peritos
na lei (v. 45). A tradução usual para grammateus é “escriba”, mas a NVI prefere
mestres da lei (v. 53). Os fariseus, membros de um grupo particular, poderiam ser
escribas ou advogados. Escribas e advogados poderiam ser fariseus sectários. Para os
propósitos práticos dentro da narrativa, os termos escribas e advogados podem ser
usados como sinônimos, como enfatiza a abordagem da NVI.
A prática farisaica deve ser considerada uma nuance sectária do tipo de pensamento
religioso que caracterizava todos esses grupos. Essas designações se referem àqueles
que estão preocupados com o desenvolvimento da halacá, do esforço extrabíblico
ou suprabíblico para delinear a conduta apropriada, a fim de evitar o rompimento
da lei judaica. Isso era um empreendimento nobre, e Jesus não o desencorajava. No
versículo 42, Ele afirmou que eles deviam “fazer essas coisas” (ARC), suas práticas
de dízimo minuciosas e suprabíblicas, sem ignorar o coração da Lei — amar ao
próximo. Na famosa diatribe de Mateus contra os fariseus, Jesus disse: “Os mestres
da lei e os fariseus se assentam na cadeira de Moisés. Obedeçam-lhes e façam tudo
o que eles lhes dizem. Mas não façam o que eles fazem, pois não praticam o que
pregam” (Mt 23.2,3).
111
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O desenvolvim ento da halacá

Já que a Torá não aborda todas (nem m esm o a m aioria) das aplica­
ções da lei na vida, um conjunto de tra dição oral foi desenvolvido para
aju dar os judeus para saberem com o ag ir em cada situação. Esse foi espe­
cialm e nte o caso em relação à guarda da pureza ritual. Legalm ente, esse
m ateria l foi cham ado de halacá; e o seu desenvo lvim ento já estava bem
adiantado na época de Jesus.
A criação da halacá foi disputável em natureza, colocando escriba
contra escriba, até que um consenso e ve n tu a lm e n te surgisse sobre com o
m e lh or observar a Torá. Esse processo aconteceu no decurso de m uitas
gerações, e, logo, a “ tra dição dos anciãos" carregava um grande peso. A
tra dição oral foi fin a lm e n te transform ada em escrita, e o Mixná é o do­
cum ento do segundo para o terceiro século d.C. que preserva o halacá.
O ta lm u d e é uma expansão p o sterio r das tradições orais preservadas na
Mixná. Existem dois co n stitu in te s principais da obra ta lm ú d ica : o palestino
(q uarto século d.C.) e o babilónico (q uinto século d.C.).

Um perito na lei interrompeu Jesus e disse: Mestre, quando dizes essas coi­
sas, insultas também a nós (Lc 11.45). O homem referia-se ao que é percebido
como criticismo implícito do processo inteiro da halacá. Ele diz, com efeito: “Será
que você está sugerindo que não devemos fazer todo o esforço para observarmos
a Torá? Será que as gerações de nossas melhores mentes podem ter sido desviadas
na busca de um objetivo tão nobre?” A resposta de Jesus mostra que Ele não se
opunha à halacá, mas, ao contrário, à corrupção dela. Quanto a vocês, peritos na
lei, disse Jesus, ai de vocês também!, porque sobrecarregam os homens com
fardos que dificilmente eles podem carregar, e vocês mesmos não levantam
nem um dedo para ajudá-los (v. 46).
Jesus emprega uma imagem evocativa, e até polêmica. Os judeus comuns trabalham
debaixo de uma esmagadora carga de mandamentos, mas os peritos na lei recusam-se a
levantar pelo menos um dedo para ajudá-los. E esse tipo de preocupação pastoral entre
os peritos na lei que ganha a desaprovação de Jesus. Jesus chama os fariseus e os peritos
na lei de volta à sua obrigação fundamental de serem pastores de Israel e buscarem Suas
ovelhas perdidas. Essa declaração é uma expansão da crítica profética em 5.29-32.
Jesus discorda do modo como a halacá havia agregado regulamentos pesados
sobre a piedade. Aqui, o pragmatismo de Jesus quanto à vida santa é visto: Ele é
112
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

impaciente com todas as formas de piedade que são superficiais ou meramente


uma mostra exterior. Somente a parte “interna” do copo importa, de fato, nas
questões do coração (11.39).
O próximo ai trata da edificação de túmulos para os profetas assassinados (v.
47). Jesus equaciona os fariseus, os peritos na lei e os escribas com os grupos do pas­
sado que se opuseram aos profetas do Senhor e perseguiram-nos até a morte. Uma
condenação de todos os adversários históricos de Jeová recai sobre os escribas e os
peritos na lei. Assim vocês dão testemunho de que aprovam o que os seus ante­
passados fizeram. Eles mataram os profetas, e vocês lhes edificam os túmulos
(v. 48). A ira de Jesus leva-o a uma vasta censura de todos os oponentes de Deus
na história — uma denúncia cheia de frustração e indignação. Talvez, em nenhum
outro lugar nos Evangelhos, a humanidade de Jesus é vista mais claramente.
A condenação é tão completa que esta geração será considerada culpada pelo
sangue de todos os profetas, derramado desde o princípio do mundo: desde
o sangue de Abel até o sangue de Zacarias, que foi morto entre o altar e o san­
tuário (v. 50,51). Essa é uma referência a Gênesis 4.8-10, que registra o primeiro
assassinato na Bíblia. O livro de 2 Crônicas, que eventualmente se tornou o último
livro da Bíblia hebraica, termina com o apedrejamento de Zacarias nos átrios da
casa do Senhor (2 Cr 24.20-22).
Jesus compara os peritos na lei com aquelas pessoas da época de Zacarias, que
apedrejavam os profetas de Deus quando Ele as castigava por quebrarem os man­
damentos. A construção de túmulos em memória dos profetas era uma prática
comum no tempo de Jesus. A destruição romana de Jerusalém em 70 d.C. pro­
vavelmente explica por que não existem evidências arqueológicas desses túmulos.
Jesus reinterpretou aqueles memoriais piedosos como evidência da participação de
Seus contemporâneos na rebelião que causou a morte dos profetas.
O último ai sobre os peritos na lei critica-os porque se apoderaram da chave
do conhecimento — uma metáfora para a sabedoria (veja 7.35). Os peritos na lei
não praticavam a sabedoria e impediam que os outros a conhecessem. A natureza
técnica e frequentemente diminuta da tradição dos anciãos é comparada com o
tipo autorreferencial de conhecimento disponível a todos na literatura da sabedo­
ria. Os peritos, como todos nós sabemos, podem facilmente obscurecer a verdade
em vez de elucidá-la. Isso é uma coisa da qual nenhum bom professor quer ser
culpado.
A principal característica do ensino de Jesus é recomendar a si mesmo ao
senso comum de Seus ouvintes. Mais tarde, Ele prometeria aos Seus seguido­
res que, no calor da perseguição, eles experimentariam a mesma capacidade de
comunicação: “Pois eu lhes darei palavras e sabedoria a que nenhum dos seus
113
LUCAS 9-24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

adversários será capaz de resistir ou contradizer” (21.15). Esse é ainda outro


aspecto do Seu pragmatismo nas questões do coração e da mente.

3. Os fariseus armam uma cilada para Jesus


(11.53,54)

NO TEXTO
■ 53-54 Nesse ponto, os adversários de Jesus expressaram surpresa e indig­
nação contra Ele (5.30; 6.7; 7.39,49; 10.10), mas nunca hostilidade ostensi­
va. Agora, eles começaram a opor-se fortemente a ele e a interrogá-lo com
muitas perguntas (11.53) para atraí-lo a repetir ideias suspeitas (veja Neale,
1993, p. 89-101). Do ponto de vista da narrativa, a hostilidade aberta deles
contra Jesus marca o ponto irreversível no caminho que levará Cristo a Jerusa­
lém para a Sua morte.
Certamente, a acusação de blasfêmia era uma das que Seus adversários estavam
ansiosos para estabelecer (5.21; Mt 26.65). Essa acusação só poderia ser estabe­
lecida com a palavra de múltiplas testemunhas. Contudo, para uma acusação
de desviar os israelitas para longe do Senhor, até observação dissimulada e cila­
da eram permitidas (m. Sanh. 7.10; 12.1-3). Logo, Seus oponentes ficavam
esperando apanhá-lo em algo que dissesse (11.54; 12.52,53 e 20.20).

4. O fermento dos fariseus (12.1-12)

POR TRÁS DO TEXTO

A repreensão de Jesus aos fariseus e aos mestres da lei é o marco de uma


divisão da narrativa na história (11.37-54). Os adversários de Jesus agora
“começaram a opor-se fortemente a ele e a interrogá-lo com muitas perguntas,
esperando apanhá-lo em algo que dissesse” (11.53,54). Em breve, eles e outros
armarão complôs para matá-lo (veja 13.31; 19.47,48). O tom da narrativa
fica apocalíptico com esse novo tema de oposição mortal. Jesus fala de uma
conjuntura da história; há uma emenda entre as eras. Essa ideia delineará a
interpretação da história que prossegue. Os ensinos éticos dos capítulos 11 e
114
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

12 não podem mais serem vistos simplesmente como lições de moralidade; eles
são colocados no contexto de uma transição de uma era para outra.
Agora, o custo do discipulado (9.51-62), a missão dos discípulos (10.1-
24), o amor a Deus, ao próximo e às nações (10.25-42; 11.29-32), o ensino so­
bre a expulsão de demônios e a oração (11.1-36) são todos reformulados como
atividades em uma luta universal. A luta de vida ou morte de Jesus e daqueles
que o seguiam envolve mais do que reais adversários humanos. A verdadeira
ameaça de morte e perseguição acontece em um palco redentor, no qual os
resultados finais são decididos. Logo, Jesus volta-se para a instrução sobre a
perseguição e o martírio em 12.4-12.
Vários outros temas bíblicos também se interceptam no capítulo 12. Dois
deles vêm do profeta Miqueias (oitavo século a.C.). Sua peculiar predição
sobre a primeira destruição de Jerusalém foi citada por Jeremias, quando os
babilônios estavam às portas de Judá 200 anos depois (Mq 3.12; Jr 26.18).
A imagem de Miqueias sobre a destruição de Jerusalém funciona como um
intertexto para a preocupação de Lucas em relação a essa cidade (-^ 9.28-36,
Por trás do texto). A iminente destruição de Jerusalém é a imagem espelhada
de sua destruição pela Babilônia. O destino dela é a evidência e a causa da vira­
da dos tempos. Uma menção explícita da destruição de Jerusalém não aparece
em Lucas até 21.21-24. No entanto, a linguagem sobre o advento do Filho do
Homem em 12.8,10 e 40 pressagia o seu fim (“^ 5.20-26 quanto à linguagem
sobre o do Filho do Homem; 17.22-25; 18.31-34). A profecia de Miqueias
e o seu subsequente cumprimento cria uma imagem ameaçadora na história
lucana. Essa é a emenda dos tempos para a qual Lucas agora retorna.
Miqueias também prega contra a corrupção da elite religiosa e suas im­
plicações para a família de Israel. Os líderes “estão à espreita para derramar
sangue”; eles aceitam subornos e pervertem a justiça (Mq 7.2,3). Mais objetiva­
mente, a confiança até mesmo entre os membros da família havia desaparecido
(Mq 7.5,6; Lc 12.53). O conflito torna -se cada vez mais tenebroso, alcançando
até a intimidade do lar.
Finalmente, o tema do Filho do Homem desloca-se para o centro da narra­
tiva de Lucas (11.30; 12.8,10,40). Essa expressão já havia sido usada em Lucas
por Jesus, como uma referência a si mesmo nos capítulos 5— 11 (5.24; 6.5,22;
7.34; 9.22,26,44,58; 11.30), e evoca Daniel 7.13: “Vi alguém semelhante a um
filho de homem, vindo com as nuvens dos céus”. Essas temáticas de destruição
de Jerusalém no AT, corrupção da elite religiosa e Filho do Homem agora con­
vergem na retórica de Jesus sobre a perseguição vindoura.
115
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO
H 1 Observamos o ponto de inflexão na narrativa no final do capítulo 11, no qual
“os fariseus e os peritos na lei” começaram a mancomunar ativamente contra Jesus.
A tensão dramática aumenta no capítulo 12, no qual as multidões que seguiam
Cristo agora se multiplicaram para milhares de pessoas. A palavra grega é myrias,
da qual deriva “miríade”, também traduzida como “dezenas de milhares” (veja At
19.19). As pessoas na multidão estavam a ponto de se atropelarem umas às ou­
tras, tornando o ambiente caótico.
Essa escalada aumenta a intensidade da disputa de Jesus com Seus contemporâne­
os. Da perspectiva da narrativa, essa acusação de hipocrisia é uma acusação pública
de incompetência e perda de integridade, feita primeiramente aos seus discípu­
los, mas também diante de “milhares”. Eles são acautelados para que tenham cui­
dado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia. O fermento dos fariseus
é o ensinamento deles (veja Mt 16.12). A preocupação farisaica com as minúcias
da prática ameaçava os Seus discípulos, e, então, eles precisavam tomar cuidado!
Em Mateus e Marcos, o comentário sobre o fermento dos fariseus traz à tona a
referência sobre a alimentação dos quatro mil/cinco mil (Mc 8.14-21 || Mt 16.5-
12). Lucas vai direto para a condenação de Jesus quanto à hipocrisia dos fariseus.
1 2 - 3 Na transição para a nova era, a hipocrisia seria exposta: Não há nada es­
condido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser conhe­
cido. O que vocês disseram nas trevas será ouvido à luz do dia, e o que vocês
sussurraram aos ouvidos dentro de casa, será proclamado dos telhados.
Existe outro possível nível de significado nessa passagem. Foi afirmado no comen­
tário em 11.53,54 que os Seus oponentes começaram a “opor-se fortemente a ele
e a interrogá-lo com muitas perguntas, esperando apanhá-lo em algo que dissesse”.
Uma halacá rabínica consentiu no posicionamento de testemunhas ocultas que
tentavam atrair idólatras suspeitos a repetirem sua deslealdade ao Senhor: “Eles
não podem colocar testemunhas ocultas contra qualquer que se torne passível à
pena de morte prescrita na Lei, exceto somente neste caso” (ênfase adicionada, m.
Sanh. 7.10).
Já que nós sabemos que as atividades de Jesus foram consideradas merecedoras da
pena de morte por Seus adversários (19.47), Suas atividades podem ter sido vis­
tas pelos Seus opositores como compreendidas na exceção quanto à proibição ao
aprisionamento. Na tentativa de prenderem um infrator no ato de blasfêmia, eles
estariam sendo fiéis ao seu entendimento de Deuteronômio 13 (“^ Lc 4.23-30 e
6.20-26).
116
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Logo, isso poderia ser entendido como um aviso aos Seus discípulos sobre as táticas
que eles esperariam de seus adversários. Até mesmo os sussurros “dentro de casa”
poderíam ser ouvidos. Aquela era uma época perigosa, e sua lealdade à missão es­
tava tornando-se pública; não existia um discípulo que fosse particular. Aliás, não
há nada escondido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser
conhecido. Devido aos comentários sobre a lealdade pública nos versículos 8-12,
isso é um aviso aos discípulos sobre como eles, em breve, serão tratados — possivel­
mente sujeitos a métodos de ostensiva hostilidade, incluindo ciladas.
H 4-7 A referência ao medo é feita cinco vezes em Lucas 12.1-7. Esse é um novo
ambiente de perigo para Jesus e Seus discípulos, que é caracterizado por medo e
ansiedade. Os versículos 4-7 são uma exortação para temer a Deus, e não àqueles
que podem matar apenas o corpo. Contudo, o perigo também é espiritual. No NT,
aquele que tem o poder para lançar alguém no inferno é Deus, e não o diabo
(Marshall, 1978, p. 513; veja Mc 9.45,47; Tg4.12). Todavia, devido à exortação
para não temer, em Lucas 12.7, parece improvável que o objeto do temor seja Deus.
Ao contrário, devemos temer os perigos da hipocrisia e aqueles que fermentam
seus ensinos com ela.
Esse tipo de instrução é uma preparação para o martírio, tanto dele como de Seus
seguidores. O custo do discipulado foi dramaticamente avultado na narrativa, e
os leitores estarão cientes da gravidade de seu próprio compromisso de lealdade a
Jesus.
Contra esse contexto, uma terna declaração da atenção de Deus para com os par­
dais (v. 6) e as pessoas é especialmente compassiva. Até os cabelos da cabeça de
vocês estão todos contados (v. 7). Isso constitui, mais uma vez, um argumento
a minori ad maius (“^ 11.11-13; Fitzmyer, 1985, p. 957). Se Deus cuida tão inti­
mamente de cada pardal, quanto mais Ele cuidará de Seus filhos humanos? Esse é
um conforto para aqueles que deverão sofrer perseguição: “Deus está vendo o seu
sofrimento e não se esquecerá de vocês”. Portanto, não tenham medo (...).
1 8-9 Os versículos 8,9 e 10 contêm, cada um, um par de ideias contrastantes. Se
você reconhece Jesus diante dos outros, será reconhecido pelo Filho do Homem
diante dos anjos de Deus (v. 9). Entretanto, se você negar Jesus diante dos outros,
será negado diante dos anjos de Deus (v.9).
A confissão é “diante dos homens” (emprosthen tõn anthropõn; ARC, NIV11, tradu­
ção livre) e diante dos anjos de Deus. Essa linguagem sugere um significado mais
forte do que um testemunho pessoal informal. Talvez as práticas de Deuteronômio
13 sejam a estrutura para a indagação das lealdades de alguém (-^ 1.26-28, Por
trás do texto; 9.T6; 10.8-16, Por trás do texto). Essa exortação pode estar ligada às
ações formais dos Sinédrios locais (veja 12.11).
117
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Um debate sobre a identidade de Jesus pode ter desencadeado a acusação de Seus


discípulos (ou mesmo de Jesus) diante dos líderes locais sobre sua lealdade quanto
à ortodoxia. Isso também vislumbra a traição de Judas a Jesus (22.48), o Seu “jul­
gamento” diante do sumo sacerdote (22.54,67: “Se você é o Cristo, diga-nos”) e a
interrogação de Pilatos quanto à Sua identidade (23.3).
H 10 Este dístico segue um padrão ligeiramente diferente: Todo aquele que dis­
ser uma palavra contra o Filho do homem será perdoado, mas quem blasfe­
mar contra o Espírito Santo não será perdoado.
As interpretações para o versículo 10 correm em diversas direções. Marcos 3.29,30
registra um aparte que apresenta uma solução: “’Mas quem blasfemar contra o
Espírito Santo nunca terá perdão: é culpado de pecado eterno’.Jesus falou isso por­
que eles estavam dizendo: ‘Ele está com um espírito imundo’”. Os mestres da lei
vindos de Jerusalém haviam acabado de dizer, em Marcos, que Jesus estava possuí­
do “com Belzebu” (Mc 3.22). Dizer que Jesus está endemoninhado é, nessa leitura
de Marcos, blasfemar contra o Espírito Santo, o que é imperdoável.
Outra interpretação diz que a rejeição do Filho do Homem é perdoável, mas a
obstinada rejeição da obra contínua do Espírito Santo é blasfêmia. Entender mal o
Jesus terreno é uma coisa, mas rejeitar a conversão do Espírito é outra. Nessa inter­
pretação, a constante e obstinada rejeição da bondade do Espírito Santo é o ponto
essencial, o qual pode tornar a salvação ineficaz (veja Brown, 1994, p. 964,965).
Green sugere que a rejeição ao Filho do Homem é perdoável, porque são os incré­
dulos que fazem isso. No entanto, a blasfêmia contra o Espírito Santo só pode ser
feita por pessoas em quem Ele habita. Nessa leitura, é o pecado em Hebreus 6.4-6,
a apostasia de um cristão que está em vista (também Green, 1997, p. 484). Se fosse
ocasionada pela perseguição, como Green sugere, uma nova motivação para a apos­
tasia seria o medo e a autopreservação.
1 11-12 O versículo 11 descreve uma perseguição programática: Quando vocês
forem levados às sinagogas e diante dos governantes e das autoridades. Jesus e
Seus discípulos, provavelmente, enfrentaram essas questões durante seu ministério
itinerante. A missão dos setenta (10.1-12) poderia facilmente ter gerado conflitos
com as sinagogas locais ansiosas por evitarem o acolhimento a pregadores itine­
rantes causadores de problemas. Esse conselho era também pertinente às décadas
vindouras após a ressurreição.

A PARTIR DO TEXTO

Essas palavras devem ser compreendidas no contexto; a advertência contra


a blasfêmia contra o Espírito Santo é pertinente à circunstância imediata de
118
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Seus discípulos. Eles estão experimentando uma resistência pública e sistêmica


contra o ministério de Jesus em sinagogas e conselhos de suas cidades (“^ 10.8-
16). O enfraquecimento no testemunho do Messias não pode ser tolerado.
Os cristãos modernos, em várias partes do mundo, enfrentam circunstân­
cias semelhantes até hoje. Aqueles dentre nós que são privilegiados por viverem
em sociedades tolerantes e abertas têm responsabilidade para com outros cris­
tãos. No entanto, essa passagem traz o entendimento de que os cristãos, cuja
fé é provada até o final, devem ser apoiados diariamente nas orações da Igreja.

F. O ensino sobre a abundância e a gestão


(12.13-48)
Nessa seção, dois valores fundamentais permanecem sob tensão. Por um
lado, temos a garantia de que a provisão daquilo de que necessitamos está se­
gura nas mãos de Deus, que está atento à Sua criação. Os discípulos não pre­
cisam “preocupar-se” ou “temer”, mas descansar no conhecimento da provisão
de Deus (v. 22-34).
Por outro lado, essa provisão depende de uma aliança em todas as circuns­
tâncias, com terríveis consequências pelo fracasso (v. 1-21 e 35,36). Todas as
ações serão levadas à luz e julgadas, os corpos serão mortos, e o Filho do H o­
mem apenas reconhecerá aqueles que o reconheceram. Semelhantemente, os
servos desatentos e preguiçosos sofrem a perda do pouco que possuem, o fogo
cai sobre a terra, e as famílias são divididas.
Aqueles que passarem nesses testes de fidelidade serão reconhecidos “dian­
te dos anjos de Deus”. Aqueles que não passarem serão dissipados, e aquilo que
possuem lhes será tirado. Ao ler essa seção, a emoção do leitor chega aos extre­
mos, confortado pelos cuidados de Deus, mas desafiado a demonstrar lealda­
de. Essas correntes conflitantes desafiam a lealdade e a posição emocional do
leitor, ao mesmo tempo confortado e perturbado.
Os versículos 13-48 abordam os temas da abundância e da mordomia das
posses materiais. A linha unificadora é o relacionamento da pessoa com as pos­
ses terrenas, como é evidenciado no desapego da ordem material. Os discípu­
los devem praticar atos de desapego. Eles reconhecem o Filho do Homem nos
julgamentos diante das sinagogas e dos governantes (v. 8-12), demonstrando o
seu desapego das opiniões dos homens.
Reciprocamente, a lealdade deles, ou compromisso com Deus, evidencia-
se por reconhecerem o Filho do Homem diante dos homens. Os discípulos
119
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

devem desprezar o acúmulo de riquezas e vender o que têm para dar aos pobres
(v. 13-21,33). Contudo, eles nunca passarão necessidade. Diante das provações,
eles não deverão “temer”, nem se “preocupar” como as nações fazem quanto a
essas coisas. Essas vinhetas convidam o leitor a separar-se das preocupações
materiais, fazendo isso em espírito de calma beatífica. Elas são também uma
preparação para a nova ordem do Reino. Isso é caracterizado pela vigilância e
pelo trabalho na expectativa da vinda do Filho do Homem.
A quem Jesus está dirigindo-se? Até Pedro fica incerto das intenções de
Jesus: “Senhor, estás contando esta parábola para nós ou para todos?” (v. 41).
Essas exortações são direcionadas à multidão (v. 1,13), aos “amigos” (v. 4) e aos
discípulos (v. 22,32). Isso cria um desequilíbrio para o leitor, que procura ser
confortado com esses pronunciamentos, mas é perturbado pela linguagem de
julgamento e conflito. Existe um colapso dos personagens em uma só “plateia
universal” (Green, 1997, p. 497).

1. O homem rico e seus celeiros (12.13-21)

POR TRÁS DO TEXTO

Essa parábola reflete a tremenda preocupação de Lucas com os desprivile-


giados. Dadas as rígidas realidades econômicas da maioria das pessoas daquela
época, os ensinamentos de Jesus sobre o dinheiro eram pragmáticos. A nossa
interpretação desses textos se expandirá se aproximarmo-nos deles cientes de
que o próprio Mestre vivia em pobreza. Talvez seja natural que Ele enfatize
uma perspectiva adequada sobre o dinheiro e a prática da boa mordomia.
A mordomia está presente no decorrer dos Evangelhos Sinóticos (Lc 9.1-6
|| Mt 10.1,7-11,14 || Mc 6.6b-13; Lc 11.39-41 || Mt 23.25,26; Lc 19.11-27 ||
Mt 25.14-30; Lc 21.1-4 || Mc 12.41-44). No entanto, é uma preocupação par­
ticular em Lucas (15.3-31; 16.1-9,10-12,14,15,19-31). Aqui, no capítulo 12,
começamos com o rico e seus celeiros, um material exclusivo de Lucas.
Os livros sobre Jesus raramente tratam das implicações do estilo de vida de
pobreza que atende à itinerância. Debaixo das principais categorias para consi­
deração sobre a vida de Jesus, geralmente encontramos “Jesus como profeta” ou
“Jesus como o operador de milagres”, mas raramente “Jesus, o pobre,” ou “Jesus,
o itinerante”. Todavia, Jesus viveu como um homem sem teto, sem nenhum
meio de sustento, por um extenso período. Antes de viver uma vida estabili­
zada, Ele foi um teknõn (somente em Mc 6.3 || Mt 13.55), um construtor ou
120
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

mercador. Talvez Ele fosse algum tipo de artesão que geralmente trabalhava em
Séforis, o centro administrativo romano próximo a Nazaré. Seus seguidores de
Cafarnaum eram pescadores. Eles eram homens que tinham lares, famílias e
meios de subsistência antes de começarem sua vida itinerante com Jesus. Esses
personagens renderam tudo isso para seguir Jesus (18.28-30).
Ser itinerante era viver pobremente. Os Evangelhos registram que Jesus era
sustentado por um grupo leal de mulheres que lhe davam do que tinham (Lc 8.1-
3; 10.38; Mc 15.40,411| Lc 23.49 || Mt 27.55,56; veja Cohick, 2009, p. 309-320).
Estudiosos modernos têm dado atenção à experiência sociológica da itinerância,
sugerindo como teria sido a vida real de Jesus e de Seus seguidores. Eles estavam
sempre famintos, com frio, e dormindo expostos ao tempo. Os invernos galileus
podem ser desconfortáveis, e Jesus pode ter enfrentado mais do que um inverno
durante a Sua peregrinação. Essa atenção aos sofrimentos práticos da vida de Jesus
dá uma melhor apreciação das realidades físicas de Sua vida. Isso, em troca, pode
levar a uma doutrina mais adequada da natureza humana de Cristo.
A arte retórica de Lucas é vista na repetição das palavras com meri-, como
um artifício alternativo (ex.: v. 11: merimnêsête; v. 13: merisasthai; v. 14:
merisên\ etc., nos v. 22,25,26,51 e 53). Outros temas repetidos incluem “alma”,
“vida”, “possessões” e “celeiros”. Tudo isso é evidência da arte literária de Lucas
(Snodgrass, 2008, p. 394,395).
NO TEXTO

H 13-15 Alguém na multidão pede a Jesus para servir de árbitro em uma questão
de herança: Mestre, dize a meu irmão que divida a herança comigo (v. 13). As
pessoas frequentemente procuravam os peritos religiosos naquela cultura pedindo
direcionamento sobre questões práticas; então, essa pergunta não é surpreendente.
Contudo, Jesus responde com uma advertência: Tenham cuidado com todo tipo
de ganância (v. 15). Os males da ganância eram um tópico comum no mundo gre-
co-romano; e esses pensamentos eram compartilhados com os judeus (Snodgrass,
2008, p. 395). Jesus descreve os fariseus como “cheios de ganância e de maldade”
(l 1.39; veja também 16.14,15).
De acordo com Deuteronômio 21.17, o filho mais velho recebia uma parte dupla
na divisão da herança. Ele não tinha obrigação de compartilhar sua herança. To­
davia, aqui, o irmão mais novo aparentemente pede que Jesus intervenha. Jesus in­
terpreta aquele pedido como ganância: Cuidado! Fiquem de sobreaviso contra
todo tipo de ganância. Jesus inequivocamente desvaloriza as possessões materiais:
“A vida não consiste na abundância de bens” (Lc 12.15 NIV11, tradução livre).
121
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

1 16-21 A parábola do rico tolo contrasta a vida de Jesus e Seus discípulos, uma
vida de escassa subsistência de esmolas (9.1-6; 10.4-7), com a vida de um fictício
homem rico que possui muito mais do que consegue consumir. O excedente é o
produto da terra de Israel. Logo, é uma bênção de Deus. Entretanto, essa bênção
se torna uma maldição quando o egoísmo é acrescentado. A aparente seguridade
econômica daquele homem era uma ilusão. Afinal, ele não estava no controle dos
acontecimentos de sua vida.
A parábola também desmonta a noção de que resguardar a segurança de nossa
própria prosperidade deve ser uma prioridade na vida: “A tolice consiste em pen­
sar que as responsabilidades terminam quando se garante o futuro econômico de
alguém” (Snodgrass, 2008, p. 399).
O oposto do egoísmo é ser rico para com Deus (v. 21). O homem rico poderia
ser rico para com Deus se não fosse culpado de auto-obsessão: Guarda[r] para si
riquezas.
O homem rico começa a conversar consigo mesmo no versículo 17. Lucas geral­
mente dá aos seus leitores acesso ao pensamento de seus personagens (Simão em
7.39; os fariseus em 5.21,22 e 6.7,8; o filho mais novo em 15.17-19; o administra­
dor astuto em 16.3; o injusto juiz em 18.4,5; etc.). As caracterizações mais pungen­
tes de Lucas ocorrem nesses solilóquios reveladores. Nós vemos o funcionamento
interno da luta moral quando os leitores sabem o que os personagens estão pensan­
do (5.22; 6.8; 7.40).
O perigo moral que o homem rico enfrenta tem a ver com as colheitas abundantes
que ele desfruta, mas com sua reação a essas bênçãos. Ele volta-se para si, pensan­
do somente em sua própria segurança: E direi a mim mesmo: Você tem grande
quantidade de bens, armazenados para muitos anos. Descanse, coma, beba e
alegre-se (v. 19). Não há menção de dar esmolas ou atos públicos de compaixão
elogiados pelo Jesus de Lucas (11.41; 12.33).
Os “ricos” são denegridos, em geral, no material lucano especial (1.53; 6.24,25;
16.19-31). Entretanto, essa parábola não trata dos males da aquisição em si (veja
também Lc 18.24 || Mt 19.23 || Mc 10.23; Lc 21.1-4 || Mc 21.41,42). É a “ganân­
cia” dele e o seu “amor ao dinheiro” que o condenam como quem guarda para si
riquezas (v. 21, ênfase adicionada; veja 11.39; 12.15; 16.14,15). Logo, Lucas ex­
põe a psicologia do erro moral e seus processos interiores. Nenhum outro escritor
dos Evangelhos tenta fazer isso.
122
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

A economia agrária da Palestina

Embora Jesus fosse um artesão de uma pequena aldeia, a base da


econom ia da Palestina na época dele era a a g ricultu ra. Havia 700 m il hec­
tares de terra arável em Israel. Mais de 70% da população tra balh ava na
a g ricultu ra; 90% vivia em áreas rurais (S tegem ann e Stegem ann, 1995,
p. 42,43). A m aior fazenda da época era p ro vave lm en te a de Q aw arant
Beni-Hassan, perto de Siquém, um a fazenda de m il hectares. Operações
tão grandes com o essas provave lm en te deram origem a algum as das his­
tórias de Jesus sobre os grandes proprietários e a gestão dessas fazendas
(12.16-21; 16.1-9,10-13; 19.12-27).
A vasta m aioria daqueles que se engajavam na a g ricultu ra era fo rm a ­
da por agricultores arrendatários sujeitos a m uitos perigos: mau tem po,
pouca produção, enferm idades e ferim en tos, dívidas. As m ultidões a quem
Jesus direcionava Sua m ensagem eram , ao todo, a m aioria desfavorecida.
Cabia a elas a econom ia de subsistência, pessoas para as quais a palavra
de Jesus em Lucas 12 te ve um apelo p a rtic u la r (veja Oakm an, 2008).

2. Não se preocupe com sua vida (12.22-34)

NO TEXTO
■ 22-23 A maioria das pessoas na história da civilização já ficou ansiosa sobre
as necessidades da vida — abrigo, alimentação, bem-estar, vestimenta, e assim por
diante. Somente nos tempos modernos, e somente nas culturas ocidentais, a pro­
visão das necessidades básicas da vida tornou-se mais garantida. Contudo, mesmo
assim, nós nos preocupamos. Essas questões eram certamente uma preocupação
constante para os palestinos do primeiro século.
Esse ensino extraordinariamente íntimo para os Seus discípulos sobre a preocu­
pação (veja v. 22,25,26,29; || Mt 6.25-34,19-21) se enquadra na ênfase de Lucas
sobre o pensamento interior de seus personagens. Nós nos preocupamos com o
alimento, a roupa e a bebida. A advertência de Jesus no tempo presente é pertinente
a uma condição ativa: “Não andeis inquietos” (v. 29 ARC). Ele dirigiu-se aos Seus
discípulos: Portanto eu lhes digo. Eles devem considerar o caso do homem rico
cuja vida terminou de repente. Sua riqueza não lhe fez bem algum, e ele perdeu a
123
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sua alma no processo de adquirir riquezas. Logo, a essa básica experiência humana
de vida, Jesus disse: Não se preocupem com sua própria vida (v. 22). Ainda assim,
nós nos preocupamos!
■ 24-28 No familiar argumento a minori ad maius (“^ 11.9-13), o cuidado de
Deus com corvos ou lírios é um sinal da graça divina com a Sua criação. O mundo
no qual os homens vivem não é apenas o nosso mundo de problemas. Não estamos
sozinhos e expostos. Compartilhamos a ordem criada na qual Deus vê tudo (até os
cabelos de nossa cabeça [12.7]) e provê abundantemente para as necessidades de
toda a criação. Jesus presume que exista uma hierarquia de importância: os homens
têm maior valor do que os pássaros e as ervas (v. 24 e 28, quanto mais). Entretanto,
tudo está sob os cuidados do único Deus da criação. A conscientização de nossa
unidade com o mundo natural ajuda-nos a aliviar a ansiedade de estarmos sozinhos.
Existe uma plenitude nessa teologia do mundo natural e o lugar do homem nele.
Essa visão não promove a ideia da família humana acima de seu ambiente, tam­
pouco contempla o ambiente como despojado da vida humana. Ao contrário, essa
é uma visão do mundo natural que concebe todos os seres vivos como nobres. E
a admoestação de evitarmos a preocupação e a ambição, permitindo que o nosso
conhecimento sobre Deus como o Criador ilumine a nossa experiência de vida.
■ 29-31 Não busquem ansiosamente o que comer ou beber; não se preocu­
pem com isso (v. 29). Esse traço diferencia o povo de Deus dos pagãos que não têm
a esperança de um Deus bondoso: Pois o mundo pagão é que corre atrás dessas
coisas; mas o Pai sabe que vocês precisam delas (v. 30). Entender o seu lugar na
ordem criada é estar livre da ansiedade.
■ 32-34 Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai
dar-lhes o Reino (v. 32). A imagem do pastor/rebanho (-^ 5.29-32, A partir do
texto) não é comum nos Evangelhos. Essa é a única passagem na qual a terna ex­
pressão pequeno rebanho ocorre na Bíblia. Na literatura profética, o pastor era
encarregado de cuidar do rebanho como uma metáfora para a responsabilidade de
os líderes cuidarem de Israel: essa era a função deles (Ez 34.2; veja também Zc 9.16;
10.2-17; Mq 5.2-4 aplicado ao ministério de Jesus em Mt 2.5,6). No contexto luca-
no, a imagem de pastor/rebanho sugere segurança, abundância e bem-estar — uma
metáfora para libertar-se da preocupação com a alimentação e o vestuário (veja
DBI, p. 292,293; veja Dt 8.13; 15.14; 2 Cr 32.29).
Ao lutarmos pelo Reino, seremos supridos com tudo de que necessitamos. Porém,
essa necessidade é redefinida por uma noção contraditória: Vendam o que têm e
dêem esmolas (v. 33). Essa frase é exclusiva de Lucas e Atos. A Igreja primitiva,
talvez em resposta a essa admoestação, seguia isso de maneira literal (At 2.44-45).
124
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Ironicamente, adquirimos segurança ao vendermos nossos bens materiais e darmos


o dinheiro aos pobres.
A PARTIR DO TEXTO

Esses versículos registram algumas das palavras mais memoráveis e con­


fortadoras de Jesus. Ele trata dos temores do nosso coração e nos traz segu­
rança. As promessas da provisão são desafiantes em um mundo onde vemos
diariamente aqueles que sofrem por causa da fome. Ainda assim, essas palavras
ensinam algo essencial sobre a natureza de Deus e de Seu relacionamento com
a criação: o caos não é a realidade final. Podemos não entender o sofrimento do
mundo, mas, em meio ao sofrimento, os homens não estão sozinhos.
A solução de celeiros maiores para o excesso de nossas provisões soa como
uma propaganda de aposentadoria: “E direi a mim mesmo: Você tem grande
quantidade de bens, armazenados para muitos anos. Descanse, coma, beba e
alegre-se” (v. 19). A maioria de nós entende que não podemos encontrar a su­
prema satisfação na autoabsorção ou no armazenamento de coisas para nós
mesmos. Para vivermos significativamente, o nosso foco deve estar fora de nós,
no serviço ao próximo e na adoração a Deus.
Na teologia bíblica, ser “rico para com Deus” (v. 21) nada tem a ver com
posses materiais. Quer sejamos bem de vida ou vivamos na subsistência (ou
abaixo), Jesus desafia-nos a temperarmos a nossa autoabsorção com o serviço
aos outros. De acordo com Cristo, se vivermos inteiramente no interesse pró­
prio, seremos chamados de tolos.

3. Esteja prontamente trajado para servir (12.35-40)

POR TRÁS DO TEXTO

A narrativa entenebrece novamente. Lucas fala da vigilância (v. 37), “à


meia-noite” (v. 38 NTLH), dos ladrões arrombando (v. 39) e do Filho do H o­
mem chegando inesperadamente (v. 40).
Ao desenvolver o tema da prontidão, Lucas expande a tradição de Marcos
13.33-37 e também da parábola das dez virgens em Mateus (25.1-12). Aqueles
que amam a Deus são encorajados a viver em prontidão para a volta do Filho
do Homem (Lc 12.40; v. 1-12, Por trás do texto).
125
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO
H 35-40 O versículo 35 marca a transição do cuidado gentil para a advertên­
cia. O tema agora é a prontidão, representada pela conduta de pessoas da família
romana. A antecipação pela vinda do Filho do Homem exige estar pronto para o
serviço, mantendo acesas as suas candeias (v. 35). Isso tem a ver com iluminar a
casa do seu Senhor em preparação para a Sua volta de um banquete de casamento.
“Cingir-se” (v. 37 ARA) é amarrar a veste para realizar um trabalho físico (em Êx
12.11, isso significava prontidão para o êxodo).
Felizes são aqueles que o Senhor encontra preparados quando Ele chega em uma
hora inesperada (Lc 12.36; veja 6.20-22; 7.23; 10.23; 11.28). Em uma típica rever­
são lucana de posição social, é o Senhor quem se cinge para servir aos Seus servos
(12.37).
As seções apocalípticas de Lucas são, geralmente, desenvolvidas à mesa (veja, por
exemplo, 5.29-32; 13.22-30; 22.14-23,24-27; 24.30,31). Há um contraste entre a
alegria do banquete do casamento e a aprovação condicional do Senhor quando
Ele volta para casa. O relacionamento de Jesus com Seus discípulos foi descrito
como o de um Noivo para com Sua Noiva, em 5.34-35. Aqui, o Senhor é simples­
mente um convidado no casamento de outra pessoa.
Em 12.40, Jesus disse que o Filho do homem virá numa hora em que não o es­
peram. Essa afirmação declara a urgência do Reino. Os discípulos já sabem que
Jesus é o Messias e o Filho do Homem (Lc 9.20,22). Agora, Jesus prepara-os para
o conflito que se levanta entre os Seus adversários em resposta à revelação de Sua
identidade messiânica. Esse é um ambiente social de curto prazo, que é típico da
maioria da utilização que Lucas faz da linguagem apocalíptica ("^ 17.33.37).

4. O administrador fiel e sensato (12.41-48)

NO TEXTO
H 41-48 Pedro indaga a Jesus concernente à aplicação das histórias sobre vestir-
-se e estar pronto para servir e acerca do ladrão à noite: Senhor, estás contando
esta parábola para nós ou para todos? (v. 41). Ele pergunta, na realidade: “Nós
estamos incluídos nesse convite à prontidão? Ou isso é somente para aqueles que
não conhecem a Sua identidade?”
Em resposta, Jesus conta a história do administrador fiel e sensato. Essa história
reitera o tema dos servos preparados, que são encontrados nos versículos 35-40.
Ambas as passagens descrevem os bons servos (v. 37,43,44). Na segunda história,
126
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

porém, a preguiça do servo torna-se o foco quando ele começa a farrear e a bater
nos servos e nas servas (v. 45). Todavia, quando o Senhor chegar inesperadamen­
te, ele o punirá severamente e lhe dará um lugar com os infiéis e ele receberá
muitos açoites (v. 46,47).
O conhecimento da vontade do Senhor carrega consigo a responsabilidade de agir
de maneira adequada. O conhecimento iguala-se à responsabilidade. Essa afirma­
ção parece particularmente apropriada para Pedro e os discípulos, que conhecem a
identidade de Jesus (10.21-24). Logo, a afirmação resumida: Mas aquele que náo
a conhece e pratica coisas merecedoras de castigo, receberá poucos açoites. A
quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito
mais será pedido (12.48). Os discípulos serão responsabilizados por aquilo que
tiveram o privilégio de observar.

G. A expectativa do Reino de Deus (12.49—13.35)

POR TRÁS DO TEXTO

Essa seção se conecta tematicamente com a diatribe contra os fariseus em


11.37 — 12.12. A crítica da prática religiosa deles foi mais desenvolvida nas his­
tórias sobre o fracasso de agir sabiamente nas questões da abundância material
e da mordomia (12.13-48). Essas advertências apocalípticas foram intensifica­
das no solilóquio de Jesus sobre as relações familiares em tempos de conflito e
a questão do discernimento dos tempos (12.49-59). A narrativa, então, retorna
ao arrependimento como um aspecto daquele tema apocalíptico.
O arrependimento é central ao paradigma teológico de Lucas (-^ Introdu­
ção, Temas teológicos em Lucas, Os pecadores encontram o arrependimento).
As referências incluem:
1. O batismo de João “de arrependimento para o perdão dos pecados” (Lc 3.3,8).
2. No banquete de Levi, Jesus proclama: “Eu não vim chamar justos, mas
pecadores ao arrependimento” (Lc 5.32).
3. Duas vezes no capítulo 13, versículos 3 e 5: “Eu lhes digo que não! Mas se
não se arrependerem, todos vocês também perecerão”.
4. Em resposta ao “arrependimento” de Zaqueu, Jesus declara: “Hoje houve
salvação nesta casa! Porque este homem também é filho de Abraão. Pois o Fi­
lho do homem veio buscar e salvar o que estava perdido” (Lc 19.9,10).
127
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

5. A declaração sumária de Jesus no final do Evangelho: “Está escrito que


o Cristo haveria de sofrer e ressuscitar dos mortos no terceiro dia, e que em
seu nome seria pregado o arrependimento para perdão de pecados a todas as
nações, começando por Jerusalém” (Lc 24.46,47).
Embora Lucas 3.3 seja da tradição tripla e Lucas 3.8 seja compartilhado
com Mateus e Lucas, todo o restante é unicamente material lucano, incluindo a
declaração em 5.32, à qual Lucas acrescenta a afirmação de Jesus de que Ele não
veio para chamar os justos, mas os pecadores “ao arrependimento”.
Em Atos, o arrependimento é o tema do sermão do Pentecostes, de Pedro:
“Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo,
para perdão dos seus pecados, e receberão o dom do Espírito Santo” (At 2.38).

O arrependim ento em Atos dos Apóstolos


• 3.19,20: "Arrependam -se, pois, e voltem -se para Deus, para que
os seus pecados sejam cancelados, para que venham tem pos de
descanso da parte do Senhor, e ele m ande o Cristo, o qual lhes foi
designado, Jesus".
• 5.31: "D eus o exaltou, colocando-o à sua dire ita com o Príncipe e
Salvador, para da r a Israel arrep end im ento e perdão de pecados".
• 11.18: "O uvindo isso, não apresentaram mais objeções e louvaram
a Deus, dizendo: E n tã o , Deus concedeu arrep end im ento para a
vida até m esm o aos g e n tio s !'".
• 17.30: "No passado Deus não levou em conta essa ignorância, mas
agora ordena que todos, em todo lugar, se arrependam ".
• 20.21: "Testifiquei, ta n to a judeus com o a gregos, que eles preci­
sam converter-se a Deus com arrep end im ento e fé em nosso Se­
nhor Jesus".
• 26.20: "Preguei em prim eiro lugar aos que estavam em Damasco,
depois aos que estavam em Jerusalém e em toda a Judeia, e ta m ­
bém aos gentios, dizendo que se arrependessem e se voltassem para
Deus, praticando obras que mostrassem o seu arrependim ento".

A ênfase de Lucas no arrependimento também foi demonstrada pelos


exemplos de vários pecadores que se arrependeram (-^ 5.1-11). Pedro ajoelha-
-se diante de Jesus, em arrependimento: “Afasta-te de mim, Senhor, porque
sou um homem pecador!” (Lc 5.8). Semelhantemente, Levi é um exemplo de
arrependimento em Lucas 5.29-32, ocasionando a declaração de Jesus que con­
vida os pecadores ao arrependimento. A mulher pecadora em Lucas 7.36-50
128
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

demonstra humildade e arrependimento aos pés de Jesus, e seus pecados são


“perdoados”.
Em 13.1-5, Lucas retorna a essa ideia com duas histórias sobre a morte.
Cada uma termina com declarações idênticas sobre a importância do arrepen­
dimento: “Mas se não se arrependerem, todos vocês também perecerão” (v. 3 e
5). Mais adiante, no Evangelho, ele dá um lugar de destaque ao filho arrepen­
dido, em Lucas 15.11-32, e aos publicanos arrependidos, em Lucas 18.9-14 e
19.1-10.
A premissa subjacente nesse esquema é a liberdade do homem de escolher
o seu destino. Todos os personagens de Lucas devem escolher o caminho do ar­
rependimento. Adicionalmente, Jesus escolhe submeter-se à cruz (-> Introdu­
ção, Caracterização). De repente, Ele se sujeita aos poderes das trevas quando
entra em Jerusalém, e essa decisão é o centro moral da teologia da crucificação
em Lucas: Jesus morreu por uma questão de Sua própria escolha.
O Cristo de Dostoievski escolheu a liberdade humana para o Seu povo,
com seus encargos inerentes sobre o determinismo dos milagres, do mistério e
da autoridade 4.9-12, A partir do texto). Semelhantemente, os seguidores
de Jesus em Lucas podem escolher o destino deles; esse é o mecanismo operati­
vo central da salvação em sua teologia. Os seguidores de Jesus devem escolher
seu próprio caminho. Todos os pecadores típicos de Lucas fazem a escolha do
arrependimento e do perdão. Esse princípio de escolha alicerça a declaração
sumária de Lucas sobre o assunto em 24.46,47. Todas as nações devem escolher
o caminho do arrependimento.
Entretanto, para que condição o arrependimento é o remédio? Para Lucas,
o pecado, a impureza e a doença são as experiências comuns de seus persona­
gens (-> 5.T H , Por trás do texto; e 5.12-16, anotação complementar, “Peca­
do, impureza e enfermidade em Lucas”). Esses males afligem os personagens de
Lucas em diferentes combinações. Lucas demonstra pouca preocupação sobre
como o pecado difere da impureza, ou como a doença está relacionada ao pe­
cado, ou como a impureza ritual ou moral funciona. Seus personagens sofrem
de todas essas aflições, e a solução para todos eles, na perspectiva de Lucas, é
o arrependimento e o perdão. Um complexo grupo de problemas humanos é
totalmente tratado em Lucas com essa única solução.
As raízes da teologia de Lucas encontram-se profundamente firmadas
na Escritura. Gênesis e Exodo estabelecem a aliança como a base para o
relacionamento entre Deus e Seu povo. O arrependimento não figura
129
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

proeminentemente ali. Ao contrário, a Torá enfatiza a prerrogativa de Deus


para estabelecer o relacionamento (promessa abraâmica) e as condições que o
governam (a Lei de Moisés). Contudo, esse relacionamento original é rompido
pela desobediência de Israel. Na narrativa deuteronomista (Deuteronômio,
Josué, juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis), a história do declínio nacional de Israel
é sumarizada por seu(s) autor(es) do sexto século a.C.. Israel e seus líderes são
responsáveis por aquele declínio marcado por um desvio para a idolatria e a
incredulidade, apesar do amor de um Deus tolerante e longânimo. O remédio
é “voltar” a Deus e obedecer à Torá.
Durante esse período, o arrependimento e o perdão tornaram-se temas re­
levantes. Os profetas chamavam os israelitas de volta ao caminho da fidelidade
ao Senhor por meio do arrependimento. O longo sermão de Moisés em Deu­
teronômio é uma advertência para voltarem à aliança por meio do arrependi­
mento e da obediência, especialmente nos capítulos 4 e 29—30 (veja também
Jz 2.1-3; 1 Sm 7.3; 2 Sm 12; 1 Rs 8.46-53; 2 Rs 17.13; 23.25; Boda e Smith,
2006, p. 7-13).
A contrição e a obediência são condições de restauração do relacionamen­
to da aliança. Isso não é simplesmente uma fórmula mecânica. A penitência
dos pecadores vai ao encontro da promessa de fidelidade e misericórdia de
Deus. Os membros da comunidade da aliança são capacitados por Deus para
encontrar o caminho de volta ao relacionamento correto. Essa “tendência pro­
missória” da representação do arrependimento caracteriza os antigos profetas
(Boda e Smith, 2006, p. 31). Os pais da igreja descreveram esse contexto de
fidelidade e misericórdia da aliança de Deus como “uma dispensação divina de
misericórdia” (veja Konstan, 2010, p. 134).
O profeta admoesta os israelitas: “Procurem [o Senhor] de todo o seu co­
ração e de toda a sua alma” (Dt 4.29; 30.2). O arrependimento sincero fica “no
cerne da teologia deuteronomista da penitência” (Boda e Smith, 2006, p. 11).
O rompimento entre o Senhor e o Seu povo foi tão profundo que resultou
no castigo e quase no abandono do Seu povo. Semelhantemente, em Lucas,
o tema do julgamento motiva o chamado ao arrependimento (Conzelmann,
1982, p. 227). Existe, então, uma forte intercessão entre a ameaça do relaciona­
mento da aliança encontrado na história deuteronomista e a teologia de Lucas
do arrependimento e perdão.
Em Lucas, a graça e a responsabilidade ficam lado a lado com uma
misteriosa sinergia. Certamente, há uma forte ênfase na iniciativa humana
em Lucas. Contudo, também se reconhece o papel da graça no processo da
salvação. Alguns consideram a teologia de Lucas superficial, porque confia
130
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

muito fortemente na reação humana ao convite para o arrependimento.


Tannehill é um representante disso:
Primeiro, a narrativa sugere que o arrependimento humano deve ser en­
tendido como uma ação tanto divina como humana... O propósito e a ação
salvadora de Deus são manifestos no ato do arrependimento em si. O mes­
mo ato de arrependimento pode ser visto como a ação salvadora de Deus
na vida da pessoa e como uma decisão humana... Ambas as perspectivas
são importantes na obra de dois volumes. (2005, p. 91)
Conzelmann reúne a iniciativa divina e a humana em Lucas: “A proclama­
ção [de arrependimento] dá a informação necessária sobre este caminho. Daí,
então, é responsabilidade do homem seguir este caminho com a ajuda de Deus”
(1982 [1961], p. 227). Tannehill expressa esse sinergismo desta forma: “O arre­
pendimento e o perdão, juntamente, referem-se à transformação na vida do ho­
mem, que resulta da ação salvadora de Deus no cumprimento das promessas de
salvação por intermédio do Messias de Israel, Jesus” (2005, p. 88; veja também
p. 90). O arrependimento é “uma ação humana que, teologicamente discerni­
da, é também uma ação divina nos indivíduos e na sociedade” (ibid., p. 89).
Na narrativa de Lucas, vimos os estágios iniciais de um processo de ar­
rependimento e perdão por meio de seus personagens; o restante das histó­
rias deles permanece oculto (“^ Introdução, Temas teológicos, Os pecadores
encontram o arrependimento). Lucas enxerga a penitência e o perdão como
equivalentes à conversão. Não importa mais se o penitente é um membro da
comunidade da aliança original. Até as nações gentias podem ser restauradas.
Esse é o mecanismo operativo central de seu paradigma de salvação.
O arrependimento e o perdão na descrição de Lucas tomam uma varieda­
de de formas: às vezes, são interpessoais em natureza (6.37; 11.4; 17.3,4; veja
também Mt 6.14,15; 18.21). As vezes, o perdão interpessoal e o divino estão
ligados, mesmo contingentes, como em Lucas 6.37 e 11.4. Contudo, o tema
dominante é o perdão divino para todos (5.21,24; 6.37; 11.4; 23.34; 24.46-48;
veja também Mt 6.12; 9.6; Mc 2.7-10).
O perdão vem “por intermédio de Jesus”: o arrependimento deve ser
proclamado “em seu nome (...) a todas as nações” (24.47). Isso é desenvolvido
um pouco mais em Atos dos Apóstolos, no qual Jesus é a presença mediadora
no ato do arrependimento (At 3.19,20; 5.31). Como Paulo diz: “Testifiquei,
tanto a judeus como a gregos, que eles precisam converter-se a Deus com
arrependimento e fé em nosso Senhor Jesus” (At 20.21).
131
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Da perspectiva teológica de Lucas, o arrependimento que leva ao per­


dão divino possui certas características necessárias: o arrependimento deve
demonstrar a aceitação da responsabilidade moral, resultar em humildade e
confissão da culpa e evidenciar a reforma do comportamento que confirma o
perdão (ex.: Lc 3.8; At 26.20 — aos gentios, “que se arrependessem (...), prati­
cando obras dignas de arrependimento” [ARA]). No NT, “os autores do Evan­
gelho entendiam o arrependimento como uma exigência para uma mudança
fundamental no pensamento e/ou na vida” (Boda e Smith, 2006, p. 90). Essa
mudança de pensamento e ação especificamente cria um acesso à salvação para
todas as pessoas em Lucas. Ele recria uma comunidade inclusiva sobre um novo
fundamento (Boda e Smith, 2006, p. 91).
Atos, então, é a história de como os judeus são “convertidos” à ideia de
uma missão gentia. Pedro arrepende-se de seus pensamentos imperfeitos quan­
to ao exclusivismo judaico em seu encontro com Cornélio, o centurião gentio.
Ele declara: “Então, Deus concedeu arrependimento para a vida até mesmo aos
gentios!” (At 11.18). Em Atos 10.34,35, ele indica os resultados de seu “arre­
pendimento”: “Agora eu percebo quão verdadeiro é Deus, que não faz acepção
de pessoas, mas de todas as nações aceita quem o teme e faz o que é certo”
(NIV11, tradução livre; Boda e Smith, 2006, p. 98).
Embora Lucas enxergue o perdão como de suma importância, os atos de
pecado podem ser uma evidência de um problema mais profundo. Existem
“pecados” e existem “pecadores”, assim como há “crimes” e “criminosos”. O an­
tecedente é o feito; o último toca na natureza essencial do indivíduo. No en­
tanto, esses são assuntos que estão além do alcance da história do Evangelho de
Lucas (veja Conzelmann, 1982, p. 227; veja 5.8). Somente mais tarde a Igreja
começou a analisar a natureza plena do arrependimento e do perdão e seus
imperativos inerentes (veja Konstan, 2010, p. 125-145).

1. Eu vim trazer fogo sobre a terra (12.49-53)

NO TEXTO

■ 49-53 As trevas continuam aglomerando-se na descrição de Jesus sobre os


efeitos de Seu ministério. A turbulência interior de Jesus é revelada claramente
nos versículos 49-53. A súbita digressão de Sua identidade e função é uma erupção
emocional na narrativa. O leitor é repentinamente confrontado com um Jesus ati-
picamente emocional. Mais cedo, Ele castiga as multidões (11.14-23,29-32), mas
132
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

isso é muito mais intenso. É como se a frustração dele viesse à tona. Os termos
usados demonstram a intensidade: fogo, aceso, batismo, angustiado, divisão e
contra. Essa passagem é o centro apocalíptico do Evangelho.
A maioria dos comentaristas acredita que o fogo que Jesus anseia acender seja
o fogo do julgamento (12.49). Note o tema semelhante na visão de João Batista
(3.9,17; 12.28; ou dos discípulos, 9.54). No entanto, pode ser o fogo da Sua pre­
sença, como em Lucas 3.16: “Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo”. O
fogo simboliza a presença purificadora de Deus no AT e em Atos.
Encontrar esse tema em uma seção sobre prontidão para a chegada do Filho do
Homem é surpreendente (veja Gn 15.17,18; Êx 3.2; 19.16-18; Is 6.6,7; Ml 3.2; At
2.3). O batismo (Lc 12.50) indica a paixão de Cristo que estava por vir (Marshall,
1978, p. 547). A narrativa torna-se cada vez mais explícita sobre esse tópico (veja
9.22,24,31,44,45; compare com Mc 10.39).
Jesus está incomodado, falando sobre o quanto está angustiado (Lc 12.50b). A
tradução da NTLH para synechõ (na voz passiva aqui) é “como estou aflito”, para
descrever Sua experiência de tormento ou sofrimento. Para o Jesus de Lucas, a re­
alidade da Sua humanidade significa o completo espectro das emoções humanas.
Intensa angústia, pressão e medo fazem parte da experiência emocional de Jesus.
Aqui, o verbo synechõ alerta o leitor para o crescente drama que eventualmente
levará à narrativa da paixão.
Lucas volta ao tema do conflito dentro da família, já discorrido em 8.19-21 e
11.27,28 (-^ 14.26; 18.28-30). A presente passagem é a peça central desse tema
em Lucas: “Estarão divididos pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e
filha contra mãe, sogra contra nora e nora contra sogra” (12.53).
Lucas obtém isso de Miqueias 7.6 (|| Mt 10.21,35,36). Mateus 10.21 particular­
mente destaca o conflito na família: “O irmão entregará à morte o seu irmão, e o
pai o seu filho; filhos se rebelarão contra seus pais e os matarão”. Isso ecoa Deute-
ronômio 13.6-9:

Se o seu próprio irmão ou filho ou filha, ou a mulher que você ama ou o


seu amigo mais chegado secretamente instigá-lo, dizendo: “Vamos adorar
outros deuses!” — deuses que nem você nem os seus antepassados conhe­
ceram, deuses dos povos que vivem ao seu redor, quer próximos, quer dis­
tantes, de um ao outro lado da terra — não se deixe convencer nem ouça o
que ele diz. Não tenha piedade nem compaixão dele e não o proteja. Você
terá que matá-lo. Seja a sua mão a primeira a levantar-se para matá-lo, e
depois as mãos de todo o povo ( ^ Lc 10.8-16).
133
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Essas passagens de Deuteronômio, Miqueias e Mateus são a base intertex-


tual para a descrição de Lucas quanto ao conflito familiar. Por que Jesus preve­
ria que o Seu ministério dividiria a família três contra dois e dois contra três?
A pessoa que é a fonte dessa tensão é um “profeta” cujos sinais e maravilhas re­
almente parecem autênticos. Logo, ele não é o falso profeta de Deuteronômio
18, que é exposto pelo não cumprimento de suas predições.
O ministério de Jesus causou divisão de famílias durante o Seu tempo de
vida, quando as pessoas lutavam com a questão da legitimidade de Suas reivin­
dicações como profeta: Será que Ele é realmente um profeta ou um engana­
dor? Se for uma fraude, Ele deve ser detido. As exortações à aliança em Lucas
12.8-12 e em outros lugares nessa parte do Evangelho tem esse imediato con­
texto narrativo (veja Evans e Sanders, 1993, p. 121-139).
Essa dissolução prepara o cenário para a “formação de um novo grupo de
parentesco em torno de Jesus” (Green, 1997, p. 510; ^ 8.19-21, em que Jesus é
visitado por Sua família natural, a qual é deixada de lado). Os relacionamentos
familiares na nova comunidade não são simplesmente de importância secun­
dária ao discipulado; eles são suplantados pela nova família.
O parentesco na nova comunidade é baseado na obediência à Palavra de
Deus: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e
a praticam” (8.21). E, afinal, uma questão de lealdade. A abnegação, o carregar
de sua cruz e o ato de seguir Jesus são a “base para a lealdade cristã” (Fitzmyer,
1981, p. 784). Suplantar os laços familiares com o novo parentesco da fé é sim­
plesmente outro exemplo de abnegação.

2. Interpretando o tempo presente (12.54-59)

NO TEXTO

I 54-56 Prever o clima é um tópico comum de conversa em todas as culturas e


épocas. Todos nós olhamos para cima, para o céu, e fazemos os nossos pronuncia­
mentos! Nós também observamos nossa situação histórica e fazemos predições so­
bre as perspectivas para o futuro. A pergunta retórica de Jesus para os Seus ouvintes
é: Hipócritas! Vocês sabem interpretar o aspecto da terra e do céu. Como não
sabem interpretar o tempo presente? (v. 56).
O verbo traduzido como interpretar (dokimazein) significa “colocar à prova,
examinar”. O sujeito dessa análise é o tempo presente (ton kairon), que aqui
significa estação ou era. Isso se refere à estação durante a qual o Messias está
134
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

fisicamente presente na terra. Cada momento do tempo presente contém em si o


potencial para uma profunda mudança. O reconhecimento do tempo como uma
oportunidade de abraçar o Messias é esse momento.
Jesus acusa Seus ouvintes de hipocrisia, já que eles não conseguem julgar correta­
mente o tempo. Se aqueles que observavam a vida e as obras dele soubessem que
estavam na presença do ungido de Deus, mas negassem essa verdade, eles eram
considerados hipócritas.
H 57-59 A parábola sobre ser chamado perante um juiz reflete um julgamento
diante de um magistrado em um tribunal romano (Green, 1997, p. 512). A ideia
de julgar o tempo agora está sendo enfocada, em vez da ideia de interpretação dos
tempos, como no versículo 56: Por que vocês não julgam por si mesmos o que é
justo? Os testes vindouros acerca da aliança, aos quais Jesus havia-se referido repe­
tidamente (12.4,5,42,43), invocarão um pensamento independente e um compro­
misso de fazer o que é certo, e não o que é conveniente.
O pragmatismo da tentativa para se reconciliar com seu acusador é como outros
conselhos, às vezes, dispensados no Evangelho de Lucas (16.9). E uma exortação a
um comportamento mais sábio no futuro conflito com as autoridades.
A PARTIR DO TEXTO

O conselheiro mais valorizado é aquele que consegue dar um passo para


trás da pressão da situação e colocá-la em um contexto mais amplo. As decisões
difíceis podem ser tomadas mais sabiamente se tiverem uma maior base em vis­
ta. A maioria das pessoas é boa em enxergar as árvores, mas poucas conseguem
enxergar a floresta. A pergunta de Jesus convida à reflexão: Por que, na verdade,
não sabemos julgar o nosso tempo presente ? E fácil ficarmos tão absorvidos
pelos detalhes do presente que perdemos as implicações da era em que estamos.
O momento presente exige um espírito calmo para encontrarmos a presença
de Deus na confusão da vida.

3. Os galileus e a torre de Siloé (13.1-5)

NO TEXTO
H 1-5 Pôncio Pilatos era o governador ou procurador da Judeia no período de
26 a 36 d.C.. Ele era responsável pela administração do sistema judicial, da coleta
de impostos e de sua subsequente distribuição. Ele também possuía poder militar.
Nenhuma fonte extrabíblica faz uma referência específica da matança dos galileus
135
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

por Pilatos. Contudo, Josefo relata que Pilatos matou judeus por estes protesta­
rem contra o uso do dinheiro do templo por Pilatos na construção de um aque­
duto (Ant. 18.3.2, §§60-62; G.J. 2.9.4, §§175-77). Naquela ocasião, seus sodados
haviam-se escondido entre a multidão e começaram a espancar os protestadores
tão selvagemente que muitos morreram. A referência no versículo 1 indica que
os galileus estavam trazendo sacrifícios, o que certamente favoreceria Jerusalém
como o local em questão. Não obstante, não podemos ter certeza de que esse era o
incidente específico ao qual Jesus se refere. Josefo descreve outra “revolta” em Jeru­
salém causada por Pilatos (veja Lc 23.19 e Mc 15.7\Ant. 18.3.1, §§55-59).
As notícias de Jerusalém eram obviamente intencionadas a solicitar de Jesus algum
“comentário sobre a significância desse acontecimento, (...) talvez (...) uma decla­
ração política” (Nolland, 1993a, p. 718). Todavia, Jesus parece mais preocupado
com o espírito vingativo daqueles que relataram a tragédia do que com a injustiça
de Pilatos. Ele claramente contesta “a possibilidade de determinar-se um grau de
pecaminosidade a partir da experiência de calamidade” e desvia o foco de julgar os
outros para o de colocar nossa casa em ordem (Nolland, 1993a, p. 718). Mesmo
assim, Jesus não trata da perene questão da teodiceia em lugar algum nos Evange­
lhos. Ele, aparentemente, encontra esforços humanos para justificar Deus em face
ao sofrimento.

A contam inada to rre de Pilatos

Josefo relata que a década de reinado de Pilatos incluiu um a conside­


rável a tivid ade de construção. A renovação dos aquedutos com o antigo
poço de Siloé foi financiada pela expropriação corrupta de Pilatos, dos
fundos m onetários do tesouro do te m p lo (G.J. 2.9.4).
A to rre de Siloé (v. 4) estava localizada no vale de Cedrom, a 150 m
ao noroeste do tan qu e de Siloé. Uma pequena ruína antiga ali pode ser a
sua base. O propósito dela é desconhecido, em bora outras torres em áre­
as rurais tivessem utilida de agrícola. Estando a pouca distância do m onte
das Oliveiras, ela pode te r servido a um propósito sem elhante.
Talvez, alguns dentre o público de Jesus acreditassem que os que
m orreram quando a torre caiu m erecessem isso. Eles deveriam receber
seu ilícito salário, uma vez que descobriram sua fo n te ilegítim a (Plum m er,
1896, p. 339).

136
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Quando os que estavam presentes naquela ocasião contaram a Jesus sobre a


morte dos galileus pelas mãos de Pilatos, Ele respondeu: Vocês pensam que esses
galileus eram mais pecadores que todos os outros, por terem sofrido dessa ma­
neira? (v. 2). Semelhantemente, Ele pergunta se aqueles sobre os quais caiu a torre
de Siloé deveriam ser considerados mais culpados do que os outros de Jerusalém
naquela ocasião (v. 4). O Jesus de Lucas acaba de argumentar que o julgamento está
vindo para aqueles que falham em preparar-se para a vinda do Senhor (12.1-5,41-
48). Os feitos e o julgamento têm uma correlação.
A pergunta retórica de Jesus corrige a visão popular de que a calamidade é
sempre uma evidência do julgamento de Deus (Green, 1997, p. 514; compare com
12.51). Aliás, todos (13.2,3,4,5) estão, eventualmente, sujeitos ao julgamento, e o
arrependimento é a resposta apropriada para esse conhecimento. Isso se enquadra
no paradigma teológico de Lucas.
Para Lucas, a redefinição da realidade social tem sido uma ênfase especial.
Aqueles previamente excluídos da comunhão do Reino, judeus e gentios margina­
lizados, encontraram um caminho para a inclusão. A eleição tradicional baseada na
etnia foi suplantada por uma nova comunidade na qual o arrependimento é cen­
tral. Agora, a graça de Deus é mediada pelo arrependimento e pelo perdão, em vez
de uma aliança israelita. Lucas insere uma “conclusão ameaçadora” à estrutura da
aliança de fidelidade estabelecida entre o Senhor e o Seu povo (Eichrodt, 1961, p.
457). Eu lhes digo que não! Mas se não se arrependerem, todos vocês também
perecerão (v. 3).
A frase “se não se arrependerem” ocorre apenas aqui, nos Evangelhos. A ame­
aça de perecer {apoleisthe) ecoa o mandamento de Moisés aos israelitas quando es­
tavam à beira da Terra Prometida. Caso tornem-se complacentes na terra e façam o
mal, “vocês serão rapidamente eliminados da terra, da qual estão tomando posse ao
atravessar o Jordão. Vocês não viverão muito ali; serão totalmente destruídos” (Dt
4.26 ; veja também Lv 26.38; Dt 8.19; 11.16,17; 30.15-20; Et 4.14).
As consequências de não se arrepender, em Lucas 13.2 e 5, são trágicas. A ma­
tança dos galileus e daqueles que foram esmagados pela torre de Siloé é uma metá­
fora para a destruição apocalíptica que vingará essa falha. Ela é pessoal e também
uma questão de vida ou morte. Esse tipo de metáfora remonta ao tratamento dos
“ímpios” nos salmos imprecatórios. No Salmo 7, Deus “afia a sua espada” (v. 12)
contra aqueles que não se “arrependerem” (v. 12 NLTH). “Sua maldade se voltará
contra ele; sua violência cairá sobre a sua própria cabeça” (SI 7.16; veja SI 58.3-9;
68.1,2). Ironicamente, o castigo reservado a Edom e à Babilônia (que destruíram
Jerusalém) agora será visitado sobre aqueles que se recusam a arrepender-se. Os seus
filhos serão esmagados nas pedras (SI 137.7-9), assim como foram aqueles sobre
137
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

quem caiu a torre de Siloé. A destruição de Jerusalém é definida por Lucas como
um exemplo dessa falta de arrependimento, em 13.34 (veja 21.20). Aliás, aqueles
que se recusarem a arrepender-se serão congregados com os “ímpios” do AT, irre­
mediavelmente perdidos e excluídos da salvação.
Embora o plano da salvação em Lucas não mais seja exclusivo, existe uma cláu­
sula excludente, caso o relacionamento torne-se desgastado ou rompido. De modo
irônico, a ética radicalmente inclusiva de Lucas é em si mesma, em última análise,
exclusivista — uma ameaça de separar os que estão “dentro” dos que estão “fora”.
Esse potencial para a exclusão é proeminente nos capítulos 12 e 13. Sua contribui­
ção para a teologia do universalismo de Lucas é semelhante em propósito à ameaça
de revogação da aliança do AT por Deus e a correspondente condenação do ímpio.
No AT, a aliança da fidelidade de Deus é o tema dominante, e a Sua hesed é
quase avassaladora em seu efeito. Mal podemos imaginar um Israel abandonado,
apesar de sua infidelidade e da frustração de Deus. Todavia, a ameaça de revogação
é um subtema essencial, senão implícito, que previne a complacência no relaciona­
mento.
A ênfase globalizante de Lucas está no sucesso e na eficácia do arrependimento
no decorrer de seu Evangelho. No entanto, essa cláusula excludente serve como
uma advertência de que o arrependimento não pode tornar-se complacente. As­
sim como a reação humana da obediência funciona na história deuteronomista, o
mesmo acontece com a reação do homem ao arrependimento no paradigma lucano
(veja Lc 12.16-21,35-38,41-46; 13.25-27).
Todos aqueles que se recusam a arrepender-se estão em perigo de encontra­
rem-se banidos na rua enquanto o banquete acontece dentro de casa (13.25). Ironi­
camente, a ética universalista da teologia de Lucas tem em sua base a mesma ameaça
profunda de exclusão que a teologia do AT quanto à condenação do ímpio.

4. A parábola da figueira (13.6-9)

NO TEXTO

H 6-9 A matança dos galileus e a morte daquelas pessoas na torre de Siloé servem de
base para a parábola da figueira. Essa parábola é o convite ao arrependimento. Aqueles
que produzem fruto são o símbolo daqueles que aceitam o convite. No princípio, João
Batista convidou os seus seguidores a produzirem “frutos que mostrem arrependimen­
to” (Lc 3.8). A árvore que não o faz, uma metáfora para os endurecidos, é “cortada e
lançada no fogo” (3.9). No Sermão da Montanha, as árvores boas “produzem bons
138
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

frutos” (6.43), e, na parábola do semeador, aqueles que realmente ouvem a Palavra de


Deus produzem abundantemente: “Mas as que caíram em boa terra são os que, com co­
ração bom e generoso, ouvem a palavra, a retêm e dão fruto, com perseverança” (8.15;
vejaGreen, 1997, p. 515).
Essa parábola pode conectar-se com a história da figueira que Jesus amaldiçoou, em
Marcos e Mateus (Mc 11.12-14 || Mt 21.18,19). Uma figueira é difícil de ser culti­
vada e exige um cuidado paciente durante vários anos. Seu fruto é símbolo da bênção
de Deus sobre Israel (veja 2 Rs 18.31; Ct 2.13; Mq 4.4). Essa figueira infrutífera está
prestes a ser cortada pela ordem do Mestre: Corte-a! Por que deixá-la inutilizar a
terra? (Lc 13.7; veja 3.9). Contudo, agora, a paciência e a esperança são aplicadas por
um jardineiro compassivo: Senhor, deixe-a por mais um ano, e eu cavarei ao redor
dela e a adubarei. Se der fruto no ano que vem, muito bem! Se não, corte-a (v. 8,9).
Os pronunciamentos de julgamento são, geralmente, acompanhados de uma segunda
chance. Esse padrão não é novo na história da Bíblia. Deus retirou Sua mão da aniqui­
lação da humanidade, salvando Noé e sua família (Gn 6.7,8). Um ciclo do julgamento
à compaixão e à salvação ocorre repetidamente em Isaías 1—5. Essa parábola não faz
uma aplicação e deixa os leitores tirarem suas próprias conclusões sobre a eficácia do
adubo aplicado na árvore. No entanto, a sugestão de um final feliz é inevitável.
Talvez, o ponto contextuai seja a paciência de Deus para com os pecadores, que é quase
infinita. Testar nossas raízes e aplicar adubo pode não parecer a bondade que é. Isso
pode até ser confundido com um julgamento. Assim como a árvore, nós não podemos
tornar-nos frutíferos por conta própria. Entretanto, a nossa frutificação não é apenas a
obra de Deus; nós podemos e devemos arrepender-nos.

5. Jesus cura uma mulher no sábado (13.10-17)

POR TRÁS DO TEXTO

A narrativa agora retorna à controvérsia sobre a observação do sábado.


Esse tópico foi introduzido em Lucas 6.1-5,6-11. Lucas agora expande o tema
acrescentando duas histórias de controvérsias, que somente ele registra (Lc
13.10-17 e 14.1-6). Três das quatro histórias de controvérsias sobre o sábado
descritas em Lucas levam o evento e a oposição/declaração mais adiante, com
o acréscimo de uma reação da multidão.
139
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

UMA COMPARAÇÃO ENTRE AS


HISTÓRIAS SABÁTICAS
E v e n to s O p o s iç ã o D e c la ra ç ã o R e a çã o

6.1-5 Os discípulos d e ­ "Por que vocês estão 0 e xem plo de


b ulham espigas fa ze n d o o que não é Davi: " 0 Filho do
de cereais. p e rm itid o no sába­ hom em é Senhor
do?" do sábado".

6.6-11 Cura o h o m e m da O b se rva va m -no para É p e rm itid o fa ze r "F icaram fu rio ­


m ão a tro fia d a . acusá-lo. (...) o bem? sos".

1 3.10-17 Cura a m u lh e r Líderes indignados: "Cada um de


que tin h a um a "Há seis dias em que vocês não Ficaram en ­
e n fe rm id a d e há se deve tra b a lh a r". desam arra no vergonhados,
18 anos. sábado o seu e o povo se
boi ou ju m e n to alegrou.
do e stá b u lo e o
leva dali para
dar-lhe água?"
14.1-6 Cura o h o m e m Os líderes "o b se rva ­ "É p e rm itid o ou Nada puderam
leproso. va m -n o a te n ta m e n ­ não c u ra r no responder.
te ". sábado?"
Ou o boi c a ir no
poço?

O denominador comum dessas histórias é que todas elas estão baseadas


na compaixão para com o faminto e o doente. Davi e seus soldados e os dis­
cípulos de Jesus estavam famintos, e isso supera as leis religiosas sobre os pães
consagrados e a colheita no sábado (6.1-5). O homem com a mão atrofiada, a
mulher enferma por 18 anos e o homem leproso foram pessoas de quem Jesus
teve compaixão (6.6-11; 13.10-17; 14.1-6). Na teologia de Lucas, o sábado é
um dia perfeitamente apropriado para aliviar-se o sofrimento.
NO TEXTO

■ 1 0 -1 7 A introdução em Lucas 13.10 é quase idêntica à introdução da história


em Lucas 6.6. Em ambos os casos, Jesus está ensinando em uma sinagoga no sábado,
como de costume. Em 13.11, a mulher tinha um padecimento físico ocasionado
por um espírito que a mantinha doente {pneuma echousa astheneias). A indicação
é de uma possessão demoníaca, e não de uma enfermidade crônica. Jesus a descreve
como presa por Satanás (v. 16).
Para enfatizar, Lucas diz duas vezes que essa tinha sido sua condição por dezoito
anos (v. 11 e 16) e que a pobre mulher estava duplamente encurvada com sua
140
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

aflição. Movido de compaixão, Jesus a curou instantaneamente: Então lhe impôs


as mãos; e imediatamente ela se endireitou, e passou a louvar a Deus (v. 13). E
uma linda cena e a primeira vez nesse Evangelho que Ele toca a pessoa a ser curada.
O seu antagonista, o dirigente da sinagoga, apelava ao povo: Há seis dias em que
se deve trabalhar. Venham para ser curados nesses dias, e não no sábado. A insinua­
ção dessa declaração diz que curar era um “trabalho” e, logo, era proibido no dia de
descanso (“^ 6.6-11).
Jesus novamente faz um argumento baseado na comparação de algo de pouco valor
com algo de muito valor (“^ 12.4-7,22-31; 14.5). Nesse caso, a comparação é entre
um jumento e uma filha de Abraão (v. 15,16). Essa mesma compaixão é ainda mais
exigida para com a filha de Israel que estava sofrendo. Em um aparte, Lucas nota
que, quando Jesus disse isso, todos os seus oponentes ficaram envergonhados,
mas o povo se alegrava com todas as maravilhas que ele estava fazendo (v. 17).

A PARTIR DO TEXTO

A compaixão de Jesus pelo sofrimento humano ultrapassa novamente o


decoro religioso. Qual força vencerá na vida? As controvérsias do sábado tra­
zem essa preocupação à frente do evangelho. A compaixão é superior ao decoro
em Suas ações, porque Ele entende a dor da experiência humana. A humanida­
de de Jesus é a fonte da preocupação com a compaixão, em Lucas.

6. Duas parábolas (13.18-21)

POR TRÁS DO TEXTO

A parábola do grão de mostarda é um exemplo de uma sucinta, porém po­


derosa parábola. A analogia do Reino de Deus é simples o bastante: ele é como
a semente de mostarda que cresce e vira uma árvore, na qual os pássaros fazem
ninhos. A significância de sua interpretação fica bem desproporcional quanto
à sua brevidade.
A parábola é encontrada na tradição tripla (Mt 13.31,32 || Mc 4.30-32 ||
Lc 13.18-21), e as opiniões quanto ao relacionamento dessas versões são com­
plexas (veja Scott, 1989, p. 373-379). Lucas é a versão mais escassa, porém, a
mais poderosa das três.
141
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO
■ 18-19 Três características do arbusto da mostarda dão força à parábola:
Primeira, a pequenez da semente é comparada com a grandeza do arbusto ou da
árvore que provém dela. A pequenez poderia ser uma propriedade negativa: o
Reino de Deus não pode ser pequeno (Scott, 1989, p. 381).
No entanto, para Lucas, a pequenez é uma virtude no Reino de Deus. Não deve
ser exaltado aquele que é grande, mas o que é pequeno. Nós relembramos que
Jesus coloca uma criança pequena no meio deles e sugere que “aquele que for o
menor \mikroteros\ será o maior [megas]” (9.48 NIV11, tradução livre). A salva­
ção chega aos desvantajosos e aos aparentemente insignificantes e humildes neste
mundo. Contudo, o futuro Reino de Deus procede deles. Dos mikroteros proce­
dem os megas. A analogia se enquadra ao ministério de Jesus, que cresce em um
ritmo acelerado (12.1) e começa a ficar bastante considerável.
Segunda, a semente de mostarda invade e destrói a ordem da horta. A mostarda é
uma planta anual que lança sementes para si e logo consegue dominar uma horta
cultivada. Por essa razão, na tradição rabínica sobre “tipos diversos” de semen­
tes, era proibido plantar mostarda em áreas cultivadas (m. Kil. 3.2; Lv 19.19;
Dt 22.9). A semente germina imediatamente após cair no solo e alastra-se de
maneira rápida. Isso também parece uma analogia apta para o crescente sucesso
do ministério de Jesus.
Aqui, a proliferação da semente de mostarda é uma metáfora para a natureza
invasiva e até subversiva do Reino de Deus. Ele chega à noite, quando ninguém
espera; ele cresce e eventualmente domina por causa de sua persistência (compare
com 11.5-8).
Terceira, a semente de mostarda, aliás, transforma-se em um arbusto, e não em
uma árvore (dendron). Ela tem cerca de dois metros de altura máxima. Alguns
intérpretes pensam que Lucas pode ter mudado a frase de Marcos, meizon pantõn
tõn lachanõn, maior do que todas as outras ervas (4.32), para kai egeneto eis den­
dron, “e se tornou uma árvore” (Lc 13.19). Ele pode ter ficado relutante por re­
tratar o Reino de Deus como um humilde arbusto de mostarda (veja Chance e
Home, 2000, p. 279-288, para um sumário de várias interpretações).
Talvez Mateus e Lucas mudassem o arbusto de Marcos para uma árvore, pensan­
do que fosse um símbolo mais apropriado para o Reino (Mt 13.31,32). Contudo,
ao fazerem isso, eles perderam o foco da parábola de Jesus. O Reino não é uma
grande árvore afinal, mas um humilde arbusto da plantação de Deus. O arbusto
foi intencionado como uma metáfora para a humildade e a reversão da expecta­
tiva sobre a natureza e a forma do Reino de Deus. Possivelmente, a dendron de
142
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Lucas possa ter sido a sua fonte. Se for assim, uma forma variante da parábola já
havia mudado o arbusto para árvore.
A árvore é descrita como um local para ninhos: E as aves do céu fizeram ninhos
em seus ramos (Lc 13.19). Em diversas ocasiões, uma grande nação no AT é des­
crita como uma grande árvore. Em Ezequiel 31.3-6, a Assíria é chamada de cedro
no Líbano: “Todas as aves do céu se aninhavam em seus ramos, todos os animais
do campo davam à luz debaixo dos seus galhos; todas as grandes nações viviam à
sua sombra” (v. 6). Em Daniel 4.12, a imagem de uma grande árvore representa a
Babilônia: “Tinha belas folhas, muitos frutos, e nela havia alimento para todos.
Debaixo dela os animais do campo achavam abrigo, e as aves do céu viviam em
seus galhos; todas as criaturas se alimentavam daquela árvore”.
O tema comum é a metáfora da árvore como uma cobertura protetora para todas
as criaturas, desde as que habitam debaixo de seus galhos às que se aninham nela
no ar. Em Ezequiel 17.23,24, Israel é descrito como “um cedro viçoso” e os “pás­
saros de todo tipo se aninharão nele; encontrarão abrigo à sombra de seus galhos.
Todas as árvores do campo saberão que eu, o Senhor, faço cair a árvore alta e faço
crescer bem alto a árvore baixa”. Se os ouvintes de Jesus fossem familiarizados
com esse texto, eles poderiam ter visto a árvore da parábola como um símbolo de
uma futura grandeza do Reino de Deus, uma grandeza para a qual as nações do
mundo olhariam em busca de abrigo.
■ 20-21 A segunda parábola diz respeito à atividade do fermento no trigo. Pa­
rece ser uma metáfora semelhante para a natureza invasiva e secreta do Reino de
Deus. Da mesma forma como milhares de pequeninas sementes de mostarda in­
vadem a horta, assim também é o fermento, quando o trigo é adicionado; ele pre­
meia o todo. A quantidade sugerida aqui é impossivelmente grande — sata atria,
“três medidas (ARC) de farinha. Isso é um pouco menos que um alqueire (um
ephah), considerado o suficiente para alimentar 160 pessoas (Marshall, 1978, p.
561; Gn 18.6; Jz 6.19; 1 Sm 1.24). Na visão de Jesus, o Reino inevitavelmente
infiltraria e influenciaria todo o contexto. Até a menor quantidade de fermento
tem esse tipo de influência no Reino de Deus.

7. Quem será salvo? (13.22-30)

POR TRÁS DO TEXTO

A jornada para Jerusalém agora é novamente mencionada (13.22; compa­


re com 9.51-56, à 17.11-19; 18.31; 19.28,41-44). Durante a jornada, alguém
143
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

pergunta a Jesus: “Senhor, serão poucos os salvos?” O comentário sobre Jeru­


salém dá à pergunta um contexto geográfico. Jerusalém é a cidade de destino de
Jesus, e os acontecimentos apocalípticos não poderiam ocorrem em nenhum
outro lugar (13.33-35). A rejeição que Jerusalém tinha por Jesus já fornece
uma resposta parcial para a pergunta do camponês.
Aquela indagação leva a um discurso sobre o grande banquete escato-
lógico. Uma boa parte do Evangelho de Lucas concentra-se na inclusão dos
marginalizados. Todavia, essa história é sobre a exclusão — especificamente
direcionada contra aqueles que não serão permitidos a entrar. Essa passagem
poderia ser chamada de a Grande Exclusão, o lado oposto do tema da salvação
O tratamento de Lucas sobre esse material é mais convincente do que o de
Mateus. Essa parábola é considerada independente por muitos comentaristas.
Mateus dissipa um material que é semelhante, mas não idêntico, por diversos
lugares: Mateus 7.13,14,22,23; 8.11,12; 19.30; 25.10-12. Será que Mateus es­
palha o material Q que ele compartilha com Lucas, ou será que Lucas inten­
cionalmente ajunta essas tradições semelhantes encontradas em Mateus (veja
Bock, 1993, p. 1230,1231)? E difícil dizer, mas Bultmann acreditava que Ma­
teus tivesse a estrutura original (Bultmann, 1963, p. 115).
Se isso for verdade, traz uma grande sensação de intenção para a Grande
Exclusão de Lucas. Os detalhes de Lucas são, de certa forma, diferentes, e a
função que esse tema desempenha em sua estrutura é mais claramente definida.
O Evangelho que incide sobre a inclusão dos marginalizados da sociedade tam­
bém se dirige à exclusão daqueles que presumem estarem salvos.
NO TEXTO
H 2 2 -2 4 Retoricamente, a pergunta Senhor, serão poucos os salvos? (v. 23)
espera uma resposta positiva: “Sim, somente poucos serão salvos”. A base dessa per­
gunta é uma crença comum de que Israel tem uma porção completa no Reino vin­
douro (Is 60.21; m. Sanh. 10.1; Fitzmyer, 1985, p. 1022). Em contrapartida, 2 (4)
Esdras 8.1 diz: “O Altíssimo fez este mundo para o bem de muitos, mas o mundo
vindouro por causa de poucos” (também 2 Ed. 9.15). Essa resposta é presumida
pelo autor da pergunta.
Em resposta à pergunta, Jesus utilizou a metáfora da porta estreita, que serve de
entrada para o Reino da salvação (v. 24). A porta é o principal símbolo dessa se­
ção, ocorrendo três vezes (v. 24,25). A noção de uma porta “estreita” é encontrada
somente aqui, no NT (|| Mt 7.13,14; compare com Jo 10.1,2). Nós devemos fazer
144
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

todo esforço para entrar (v. 24, agõnizesthe, “disputar, lutar, esforçar”). O fato de
que seja “estreita” sugere a dificuldade de uma multidão comprimindo-se para en­
trar. Contudo, Lucas também registra que ela está aberta por apenas um período
limitado (v. 25).
H 2 5 -2 7 Um banquete do fim dos tempos está do outro lado dessa porta, em
glorioso progresso. A imagem ecoa o banquete de coroação de Davi em 1 Crôni­
cas 12.38-40, no qual os guerreiros de Israel vêm para passar o reino de Saul para
Davi. Eles estavam também acompanhados dos vizinhos de Israel, que se uniram na
celebração do novo reino de Davi. “Ficaram com Davi três dias, comendo e beben­
do, pois as suas famílias haviam fornecido provisões para eles. (...) Trouxeram-lhes
muitas provisões em jumentos, camelos, mulas e bois. (...) Farinha, bolos de figo,
bolos de uvas passas, vinho, azeite, bois e ovelhas, pois havia grande alegria em Isra­
el” (1 Cr 12.39,40). Lucas 14.15-24 expande ainda mais o motivo do banquete na
história do grande banquete ignorado pelos convidados. Nele, como também aqui,
o assunto é a base da discussão da exclusão de alguns.
A cena nos versículos 25-27 é dramática. A rua é um lugar de perigo; e o lar, o lugar
de segurança. A rua é tenebrosa e hostil. Porém, ao outro lado da porta, um cálido
e suntuoso banquete está em progresso. Os que estão ao lado de fora batem à porta,
ansiosos, e até em desespero para entrar: Senhor, deixe-nos entrar (v. 25)!
O Senhor responde lá de dentro, negando a entrada (como em 11.7; note o uso
cristológico de como em 7.19; 10.1,39,41; 11.39; 12.42; 13.15; 17.5,6; 18.6;
19.31; 22.61).
A porta é estreita, sugerindo que apenas os indivíduos podem entrar, e não as mul­
tidões. A entrada é permitida para um de cada vez. Muitos tentarão entrar de uma
vez e não conseguirão (13.24). Um grupo de pessoas não conseguirá negociar sua
entrada (digamos) baseado em sua etnicidade. Isso se torna uma parte importante
da teologia da salvação de Lucas. Ele redefine a eleição do foco nacional para o in­
dividual. Como veremos, especialmente em Lucas 15, não é uma nação eleita que
será salva, mas os indivíduos perdidos que se arrependerem.
Quem são esses ao lado de fora rogando para que possam entrar? O texto não diz.
O interlocutor é um dos “aldeãos”, presumivelmente um nativo palestino de descen­
dência judaica (v. 22 —Jesus está viajando na fronteira de Samaria [9.52; 17.11]).
A parábola é direcionada aos que são apenas casualmente familiarizados com Jesus,
mas que, contudo, esperam obter uma acomodação no banquete escatológico. Na
narrativa de Mateus, os forasteiros são “filhos do Reino” (Mt 8.12 ARC — judeus,
145
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

uma expressão que evidencia uma posterior polêmica judaico-cristã). Embora


professassem fidelidade, sua lealdade era falsa e não os qualificava para a entrada
na festa do fim dos tempos. Eles são como aqueles descritos em Lucas 6.46, que
clamavam “Senhor, Senhor”, mas não faziam o que Ele dizia (|| Mt 7.22,23). Em
Mateus, esses são os que realizam milagres e expulsam demônios no nome de Jesus,
todavia, são falsos profetas.
Os discípulos desapontados procuram o Senhor: Comemos e bebemos contigo,
e ensinaste em nossas ruas (Lc 13.26). Esse é o retorno da questão da aceitação
cívica e da rejeição observadas nos comentários em Lucas 10.8-16. Por mais que
esses suplicantes descritos em 13.25,26 não expulsassem Jesus e Seus seguidores de
sua cidade, eles não criam. Logo, o pó foi figurativamente sacudido dos pés de Jesus
contra eles (“^ 9.5e 10.11). De modo significativo, no capítulo 10, esse material é
seguido da condenação de Corazim e Betsaida por causa de sua rejeição aos emis­
sários de Jesus. Já que eles rejeitam Jesus, Ele também os rejeita, dizendo: Não os
conheço, nem sei de onde são vocês (v. 25).
H 28-30 Essa rejeição ocasionará choro e ranger de dentes (v. 28). Ranger de
dentes é um símbolo bíblico para ira e escárnio (SI 35.16; At 7.54). Ele também
expressa a angústia dos que estão no inferno, especialmente em Mateus (por exem­
plo, Mt 13.42). Os patriarcas estão presentes no banquete (Abraão, Isaque, Jacó
e os profetas), mas esses contemporâneos de Jesus são excluídos (Lc 13.28). De
maneira semelhante, no banquete de 14.15-24, os que foram originalmente convi­
dados são excluídos.
Os que estão incluídos no banquete são os que vieram do oriente e do ocidente, do
norte e do sul. Eles ocuparão os seus lugares à mesa no Reino de Deus (13.29).
Isso descreve os parentes da família da humanidade cujas fronteiras se encontram
nas quatro direções da bússola. No vocabulário bíblico, eles são as “nações” — os
gentios. A insinuação é que eles estão fora da terra de Israel, todavia, festejarão no
Reino de Deus, como em Isaías 25.6-8. Em Isaías, por fim, Israel encontrará o seu
lugar à mesa da redenção, mas juntamente com as outras nações.
Essa exclusão dos que são falsos em sua lealdade a Jesus tem um propósito progra­
mático. Ela, finalmente, serve ao propósito mais amplo de Lucas de mostrar como
o evangelho leva povos e nações à sua esfera de alcance. A irônica afirmação de que
há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos (v. 30) é a agenda
do evangelho. A inclusão das nações e a exclusão de seus próprios coabitantes é um
bom exemplo desse truísmo.
146
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

8. O lamento por Jerusalém (13.31-35)

POR TRÁS DO TEXTO

O lamento por Jerusalém é a coroação da narrativa sobre a Grande Exclu­


são. Jesus estava fazendo Sua caminhada rumo a Jerusalém (v. 22). Que a jorna­
da terminaria em Sua morte foi prefigurado no capítulo 9 (9.21,22,3l,43b-45).
Enquanto Ele caminha em direção à cidade de Seu destino, a terrível verdade é
reiterada, que Ele morrerá ali.
NO TEXTO

H 31-33 Os fariseus aconselham Jesus a fugir de Herodes. Esse comentário pró-


-farisaico assemelha-se à imagem positiva dos fariseus que Lucas apresentará em
Atos. Mas aqui, isso se destaca como uma anomalia (Ziesler, 1979, p. 146-157).
As intenções violentas de Herodes não são explicadas aqui. A narrativa também
está fora de sintonia com sua retratação em outros lugares do Evangelho (veja co­
mentário em 9.7-9). Mas, do ponto de vista da narrativa, a ameaça de Herodes
de matar Jesus serve como uma forma para introduzir o lamento sobre Jerusalém.
Isso é semelhante à comunicação de Jesus com João por intermédio dos discípulos
de João (7.18-24). Aqui, Jesus semelhantemente comunica via intermediários. O
conteúdo é similar, destacando a expulsão dos demônios e a cura (compare com
7.21,22).
Jesus enviou os fariseus informantes para que dissessem a Herodes: Vão dizer
àquela raposa: Expulsarei demônios e curarei o povo hoje e amanhã, e no
terceiro dia estarei pronto. Mas, preciso prosseguir hoje, amanhã e depois de
amanhã, pois certamente nenhum profeta deve morrer fora de Jerusalém! (Lc
13.32,33). Chamar Herodes de “raposa” era depreciativo. Esse termo implica que
Herodes era uma figura astuta, contudo patética e sem poder, que pensava que
podia subverter o propósito divino da marcha de Jesus para Jerusalém. “Jesus con­
sidera o Tetrarca como um verme no campo do Senhor” (Darr, 1992, p. 144; veja
Green, 1997, p. 536).
A referência a hoje, amanhã e no terceiro dia (v. 33) aguça a sensação de movi­
mento cronológico na narrativa. Alguns interpretam isso como uma referência ao
dia da ressurreição (ex.: Johnson, 1991, p. 218).
H 3 4 -3 5 Jerusalém, Jerusalém. No AT, a destruição de Jerusalém e o fim da mo­
narquia foi o resultado da desobediência de Israel. De modo semelhante, a história
147
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de Lucas coloca a responsabilidade da destruição de Jerusalém aos pés dos judeus


que se recusam a reconhecer o seu Messias (13.33-35; 21.20-24; 23.28-30). Embo­
ra Jerusalém não fosse conhecida por maltratar os profetas, Zacarias foi morto ali
(Lc 11.51; 2 Cr 24.21).
O lamento de Jesus ecoa Jeremias 35.12-17. Ali, a frustração profética com a obs­
tinação de Israel transbordou-se em condenação para os residentes de Jerusalém.
Eles não ouviram nem obedeceram a Deus (Jr 35.15). Apesar de repetidas adver­
tências dos profetas, eles provaram ser desleais. Logo, o Senhor disse pelo profeta
Jeremias, “Trarei sobre Judá e sobre todos os habitantes de Jerusalém toda a desgra­
ça da qual os adverti; porque falei a eles, mas não me ouviram, chamei-os, mas não
me responderam” (Jr 35.17). Como na história deuteronomista em geral, “A des­
truição de Jerusalém é completamente justificada, dada à infiel idolatria de Israel
ao relacionamento com Deus. O final calamitoso de Israel é devido ao seu próprio
pecado, e não por um descuido ou falha divina” (Boda e Smith, 2006, p. 25).
Jesus desabafa Sua frustração com Seus companheiros israelitas em um similar espí­
rito. A pergunta agora é, “Como a cidade santa responderá ao Filho do Homem?”
(Green, 1997, p. 538). As diversas cidades da Galileia haviam rejeitado Jesus, pos­
sivelmente banindo-o de seus distritos. O teste final para Israel será a resposta da
própria Jerusalém.
Os comentaristas têm especulado que o lamento contra Jerusalém represente a voz
da Sabedoria da tradição judaica (Bultmann, 1963, p. 114,115; Fitzmyer, 1985, p.
1034). Jesus adota um tipo de discurso que tinha personificado a frustração pro­
fética com Jerusalém na figura supra-histórica da Sabedoria. De que outra forma,
poderíamos dizer que Jesus havia desejado reuni-la como a galinha reúne os seus
pintinhos debaixo das suas asas (v. 34)? Essa imagem sugere que Jesus estava dis­
posto a colocar-se em perigo para proteger o povo da cidade.
Há um pessimismo na pergunta, pois parece improvável que Israel irá responder
corretamente. Eis que a casa de vocês ficará deserta. Eu lhes digo que vocês não
me verão mais até que digam: ‘Bendito o que vem em nome do Senhor’ (v.
35). A citação do Salmo 118.26 tem conotações messiânicas (veja Beale e Carson,
2007, p. 337,338).
O tema de ver e ouvir é trazido a um relevo especialmente aguçado. Em Lucas
8.4-8, essa questão definia os que estavam por dentro do Reino. Agora, o narra­
dor deixa a definitiva impressão de que a população de Jerusalém irá inicialmente
proclamar a identidade de Jesus (cumprida em 19.38). Mas, finalmente, tanto eles
como os oficiais de Jerusalém se recusarão a “ver e ouvir” o seu Messias quando Ele
aparecer.
148
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

H. Jesus é o hóspede de um fariseu (14.1-24)

POR TRÁS DO TEXTO

Uma série de acontecimentos transpira na casa de um fariseu em um sába­


do. É a familiar cena da refeição (5.29-32; 7.36-50; 11.37-41; 14.1-24; 15.1,2;
19.1-10). Numerosos temas em Lucas estão centrados na mesa da comunhão.
O primeiro é aquele da comunhão com os pecadores, introduzida no banquete
de Levi em 5.29-32. Um texto rabínico identifica três comendo juntos à “mesa
de Deus”. Os fariseus discordaram com os auxiliares de Jesus, perguntando por
que Ele “comia” com os publicanos e pecadores. No capítulo 7, um fariseu con­
vida Jesus para comer em sua casa, e a entrada de uma mulher pecadora, o ar­
rependimento e o perdão entram em questão. Em 11.37-41, enquanto jantava
com um fariseu, uma controvérsia sobre o lavar as mãos motiva a longa crítica
de Jesus sobre a hipocrisia de seu hospedeiro. Aqui, em 14.1-24, a prática fari­
saica defeituosa é novamente criticada.
Nessa seção, há uma cura em um sábado (v. 1-6), uma discussão sobre o
lugar de honra no banquete (v. 7-11), a questão de quem deve ser convidado
para o banquete (v. 12-14) e a história de um homem que ofereceu um grande
jantar e convidou a muitos (v. 15-24). Na superfície, esses acontecimentos tra­
tam de questões sociais corriqueiras tais como a conduta em um banquete, o
protocolo dos assentos e o tratamento da vergonha de oferecer uma festa onde
ninguém comparece.
Essas vinhetas oferecem uma rara janela para o mundo social da época e
mostram que os relacionamentos sociais não mudam tanto no decorrer dos
tempos. No entanto, os textos não são primordialmente sobre boas maneiras,
como o convidado à mesa do fariseu entendeu perfeitamente (“Bem-aventu­
rado é aquele que comerá no banquete no Reino de Deus” [v. 15] NIV11, tra­
dução livre). Eles são sobre algo muito mais significativo - a composição da
comunidade escatológica.
No final de uma jornada, encontra-se a exclusão da comunidade do Reino
e, no final de outra, encontra-se a inclusão. E dessa dura realidade que deriva
o ímpeto do acesso universal de Lucas à salvação. O ponto inicial do peniten­
te não importa. Quer o indivíduo comece como um membro da comunidade
da aliança de Israel ou como um forasteiro gentio, o caminho da inclusão na
comunidade da Nova Aliança organizada por Jesus é o mesmo - o arrependi­
mento e o perdão em Seu nome.
149
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Da perspectiva da narrativa, todos os acontecimentos dos versículos 1-24


ocorrem à mesa do fariseu. Não é necessário pensar nisso como um único evento
histórico, mas, ao contrário, como um material típico de comunhão à mesa, organi­
zado no centro físico do Evangelho. O clímax desse tema acontecerá à mesa do che­
fe dos publicanos, Zaqueu (cap. 19), após o qual, o mesmo desaparece da narrativa.
A teologia do arrependimento e do perdão de Lucas ecoa o tema em Deu-
teronômio. Israel deve “voltar-se” para Deus em fidelidade e obediência. Existe
um padrão de apostasia e arrependimento, com a esperança de livramento, não
completamente realizado no passado de Israel (veja Brueggemann e Wolff, 1982,
p. 83-100). Lucas usa uma sucessão de pecadores nessa seção central para destacar
o arrependimento como o caminho de salvação. O padrão é tão proeminente aqui
que C. F. Evans chamou-o de “Deuteronômio cristão” e traçou um extenso paralelo
entre Deuteronômio e Lucas (Nineham, 1957, p. 37-53; Evans e Sanders, 1993, p.
121-139). Em ambas as tradições, o comportamento correto é a ideia condutora
à restauração a Deus. Então, no capítulo 13, a necessidade de arrependimento é
presumida por todos. No capítulo 14, existem numerosos exemplos de comporta­
mento ético adequado do penitente: o cuidado com os doentes, a humildade ao pé
da mesa, convidar “os pobres, os aleijados, os mancos, e os cegos” para a sua mesa e
doar as suas posses.
No capítulo 15, o resultado desse comportamento é demonstrado nas três pa­
rábolas dos perdidos e achados (v. 1-10), e especialmente na história do filho pró­
digo (v. 11-32). O padrão da salvação é demonstrado: arrependimento (cap. 13),
comportamento reformado (cap. 14) e uma bondosa recepção de volta ao abraço
do pai amoroso (cap. 15).

1. A cura do homem hidrópico (14.1-6)

NO TEXTO

I 1-6 Essa história sobre um homem curado de hidropisia é uma das quatro his­
tórias de controvérsias do Sábado em Lucas (6.1-5,6-11; 13.10-17 e 14.1-6). Lucas
14.1-6 peculiarmente combina os temas da comunhão à mesa com a controvérsia
do Sábado. Todas essas passagens usam o formato familiar de evento/oposição/
declaração (-> 13.10-17 anotação complementar, “Uma comparação das histórias
sabáticas”).
150
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Todas essas controvérsias sabáticas concentram-se na necessidade de compaixão


pelo doente, mantendo a ênfase de Lucas nas exigências éticas do arrependimento.
Todas as pessoas devem ser tratadas com compaixão, inclusive esse homem com hi­
dropisia, e também “os aleijados, os mancos e os cegos” (v. 13,21). A palavra hidro­
pisia é encontrada no NT somente aqui. Marshall descreve-a como uma doença
na qual as juntas incham-se devido aos fluidos. De acordo com os rabis posteriores,
acreditava-se que isso era causado pela imoralidade (1978, p. 578,579).
O anfitrião de Jesus é um dos chefes dosfariseus (tinos tõn archontõn Pharisaiòn,
v. l), e não meramente proeminente. Os fariseus observavam-no atentamente
f>aratêroumenoi\ veja 6.7). Ou seja, eles estavam “observando com intenção mali­
ciosa, à espreita” (Bauer, Arndt e Gingrich, 1957, p. 622; veja 20.20 e At 9.24). O
convite para a refeição do Sábado era uma tentativa finamente velada para apanhá-
-lo em alguma transgressão. A lei judaica permitia a cilada em certos casos (-^
11.53,54; 20.20). Diversas testemunhas eram exigidas para acusar alguém de blas­
fêmia. Mas, isso não é especificamente indicado aqui. Embora Jesus não violasse
nenhuma lei (veja 6.6-11), o assunto da controvérsia é certamente pronunciado.
Os questionadores de Jesus aderem a uma estrita interpretação da observância do
Sábado. Como em todas as quatro histórias de controvérsias, Jesus faz uma leitura
mais branda da Torá, argumentando que a compaixão é maior do que outras ques­
tões de escrúpulos religiosos. Esse é um argumento perfeitamente defensável, bem
representado na literatura rabínica, e os oponentes de Jesus parecem irracionais e
insensíveis na posição deles. Esse é o objetivo da história - a compaixão faz sentido
e é obviamente o caminho de Deus. Aqueles que resistem à compaixão estão do
lado errado do debate, e até do lado errado de Deus.
Percebendo a cilada, Jesus respondeu aos seus anfitriões com um boruth, ou uma
pergunta destinada a colocá-los na defensiva: “E permitido ou não curar no sá­
bado?” (v. 3; veja 5.23; 6.9; 11.14-28; 13.15,16). Jesus sabia que eles não poderiam
responder satisfatoriamente: “Mas eles ficaram em silêncio” (14.4; veja 6.10), as­
sim, Jesus curou o homem e despediu-o. Jesus, então, repetiu o argumento de 13.15
sobre o bem-estar dos animais. Se isso é permitido, certamente o cuidado com os
homens doentes também o é. “Se um de vocês tiver um filho ou um boi, e este
cair num poço no dia de sábado, não irá tirá-lo imediatamente?” (14.5). Isso res­
soa Lucas 12.24-31: todos na ordem criada são objetos do amor e do cuidado de
Deus. A compaixão pelo doente e pelo faminto está acima das halacás dos fariseus,
como já vimos em todas as quatro histórias de controvérsias do Sábado.
151
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

2. O orgulho do lugar ao banquete (14.7-11)

NO TEXTO

■ 7-10 As práticas de refeição judaicas naquela época eram geralmente seme­


lhantes às do mundo greco-romano (Corley, 1993, p. 68). A importância do con­
vidado era representada pelo arranjo dos assentos. Essas situações estavam “rechea­
das de mensagens sobre quem está por cima e quem está por baixo quanto ao status;
sobre quem está dentro e quem está fora do círculo social e político” {DBIyp. 71).
Logo, a agenda central sobre a inclusão do marginalizado na nova comunidade é
bem servida por sua história peculiar.
Toda referência à inclusão leva consigo uma implicação correspondente de exclu­
são. A linguagem que descreve o humilde ou o exaltado, o orgulhoso ou o pobre,
o pecador e o justo é mais ideológica em natureza do que histórica. Similarmente,
o termo “fariseus” serve à função literária de uma categoria religiosa mais do que
como uma referência histórica. Isso permite ao artista literário construir uma visão
mundial moral dentro do mundo histórico.
A nova comunidade terá estratificação social, é claro (veja Oakman, 2008, p. 161).
Mas, a estratificação social será ideologicamente invertida - com o último toman­
do o primeiro lugar, e o primeiro ficando em último. Isso funciona na base da ex­
clusão do orgulhoso tanto como da inclusão do humilde. Sendo assim, a parábola
comenta os perigos do desejo por uma posição social na presente era.
Essa reunião foi pintada como um banquete de hospitalidade. Os banquetes, ge­
ralmente, marcavam ocasiões formais, tais como celebração de vitórias, a honra da
elite, ou a observância de um festival em particular, como o jantar do Seder. Mas,
Lucas indica que Jesus entrou simplesmente “para comer” (v. 1), dando ao ambien­
te um aspecto comum.
A parábola em si caracteriza um banquete de casamento (v. 8; 5.33-35 sobre
cenas de casamento). A celebração de um casamento era um significativo evento
público no qual a humilhação teria uma ferroada ainda pior. Contudo, a história
também tem um certo aspecto cômico. Os convidados do fariseu, provavelmente,
riram quando Jesus falou da vergonha de ser removido para uma posição inferior e
não superior à mesa. Com o uso do humor irônico, Jesus “envergonhou o caçador
de prestígio” (Phipps, 1993, p. 92).
■ 11 A declaração sumária soa como um tema familiar em Lucas: “Todos os que
se exaltam serão humilhados, e aqueles que se humilham serão exaltados” (NIV11,
tradução livre). Isso reitera a afirmação que concluiu o banquete messiânico em
152
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

13.30, “há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos” (veja tam­
bém 1.52). Essa é uma característica fundamental do Evangelho de Lucas.

3. Não convide os seus amigos (14.12-14)

NO TEXTO

I 12-14 O conselho de Jesus ao que o tinha convidado é a segunda vez que


Ele critica o princípio da reciprocidade nos relacionamentos humanos (-> 6.32-
36). Não há mérito para as boas obras ou bondade se o potencial da reciprocidade
estiver presente. A frase é repetida três vezes em referência ao fazer as boas obras
que podem ser retribuídas: “que mérito terão?” (Lc 6.33). Embora isso seja um ma­
terial compartilhado entre Mateus e Lucas (Mt 5.46-48 11Lc 6.27,28,32-36), Lucas
expande significativamente ao acrescentar os versículos 34,35. Esses versículos rei­
teram o princípio da não reciprocidade, acrescentando que, quando emprestarmos
algo, não devemos esperar nada em troca.
Aqui, Jesus adverte o seu anfitrião contra convidar somente os hóspedes que irão
retribuir. O fariseu deveria evitar fazer isso já que eles poderão também, por sua
vez, convidá-lo, e assim você será recompensado (v. 12b). A piedade desinte­
ressada pode ser exibida apenas ao convidar os marginalizados e os doentes: os
pobres, os aleijados, os mancos, e os cegos (v. 13, repetido no v. 21).
O verbo recompensar é encontrado somente aqui nos Evangelhos. Ele tem um
sentido positivo (veja também em 1 Ts 3.9). Mas, ele também carrega uma co­
notação negativa de julgamento (como em Rm 12.19; Hb 10.30, citação de Dt
32.35,36, “A mim pertence a vingança”; 2 Ts 1.6). Lucas enfatiza a anulação do in­
teresse próprio nos relacionamentos humanos. Haverá uma recompensa somente
na ressurreição dos justos (14.14).
A PARTIR DO TEXTO

Os relacionamentos humanos são geralmente baseados na reciprocidade. A


sociedade civil funciona na base do dar e receber, para o benefício mútuo de todos.
Isso é verdade na família e nas esferas social, econômica e política - ao que Jesus se
referiu como “seus amigos, irmãos ou parentes, (...) seus vizinhos ricos” (v. 12). E
claro que a completa eliminação da reciprocidade nos relacionamentos humanos
faria com que a sociedade parasse de funcionar!
Jesus chama a atenção para o abuso da reciprocidade entre a classe privilegiada
quando Ele se dirige ao líder representativo da comunidade que promovia a festa.
153
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Ele desafia aqueles entre nós que estão em posições privilegiadas a cuidar dos ne­
cessitados - “os pobres, os aleijados, os mancos, e os cegos” (v. 13). Esse sobrepu-
jante sentimento de obrigação social é uma característica marcante do pensamento
de Jesus.
O Jesus de Lucas destaca uma enorme significância quanto ao cuidado com
os necessitados. Quando essa obrigação social é cumprida na igreja, ela está em
sua melhor forma. Historicamente, isso tem sido uma força particular da herança
wesleyana. Quando nós, cristãos ocidentais, usamos a nossa posição privilegiada
para cumprir nossa responsabilidade é que podemos esperar ser recompensados na
ressurreição (v. 14).

4. A história do grande banquete ignorada (14.15-24)

■ 15 A crítica do Evangelho quanto ao abuso da riqueza continua nessa parábola


(1.53; 6.24; 12.16-21; 14.12). Essa é a quarta cena de jantar em 14.1-24. Ela conti­
nua o tema da santa comensalidade à mesa (-> 5.29-32). Esse parece ser um mate­
rial compartilhado com Mateus (22.1-14). No entanto, as diferenças entre Mateus
e Lucas são tão significativas que Snodgrass considera-as duas parábolas diferentes
(2008, p. 300). Em Lucas, ela é simplesmente um banquete para os muitos amigos
de um homem rico. A frustração pela recusa deles ao seu convite faz com que o
anfitrião encha as alas de seu banquete com pessoas das “ruas e becos” (v. 21), final­
mente, até compelindo (“obrigue-os”: o verbo grego anankazõ insinua o exercício
de uma pressão quase coerciva) os convidados dos “caminhos e valados” (v. 23).
Um dos convidados do jantar proclama: “Feliz será aquele que comer no ban­
quete do Reino de Deus” (v. 15). Isso parece referir-se ao esperado banquete mes­
siânico ("^ 13.22-30; veja Is 25.6; Mt 26.5; Ap 19.9). Lucas 13.29 e 14.15 descre­
vem a refeição como especificamente, estar à mesa.
H 1 6 - 1 9 Superficialmente, essa história continua o tema de evitar-se a reciproci­
dade (v. 12-14). Os banquetes eram tipicamente para reivindicar-se posição social
e construir influências dentro da comunidade, e não para alimentar pessoas. O fa­
riseu que promoveu esse banquete é um exemplo de alguém que convida somente
aqueles que podem retribuir a sua hospitalidade. Entre os convidados, há um pro­
prietário de terras (v. 18), um dono de bois (v. 19) e alguém que tinha condições de
se casar (v. 20). Essas eram pessoas de bens, mas estavam consumidas pelos afazeres
do dia, e não puderam atender.
Jesus expôs as falhas da política da reciprocidade nos relacionamentos sociais. O
rico convida o rico para jantar, mas a hospitalidade não é apreciada, e os convites
154
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

são tranquilamente rejeitados. As refeições públicas dos ricos são vazias e têm fal­
ta de respeito mútuo. Elas são completamente diferentes do banquete messiânico
de 13.22-30, no qual as pessoas anseiam entrar alegremente de todas as partes do
mundo.
Então, a história não é apenas sobre a rejeição da reciprocidade nos relacionamen­
tos sociais, mas sobre a rejeição da estrutura sobre a qual esses relacionamentos
sociais estão baseados. Lucas reitera isso três vezes nos capítulos 13 e 14.
• “De fato, há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos”
(13.30).
• “Todos os que se exaltam serão humilhados, e aqueles que se humilham
serão exaltados” (14.11 NIV11, tradução livre).
• “Eu lhe digo, nenhum daqueles que foram convidados provará do meu
banquete” (14.24 NIV11, tradução livre).
A mesa da nova comunidade de Jesus é um lugar de santa comunhão onde as dis­
tinções de classe, de poder e de riqueza são inteiramente apagadas. O fundamento
sobre o qual a sociedade humana atualmente funciona é desconstruído. É por isso
que a nova ética introduz o fim dos tempos. O antigo fundamento da sociedade foi
abolido; o novo fundamento é um prenúncio do futuro. A passagem talvez esteja
convidando a igreja a ser um modelo para essa nova sociedade.
H 20-24 Assim como no banquete messiânico (-^ cap. 13), os convidados re­
crutados das ruas convergem para um banquete do qual não esperavam participar.
O versículo 21 quase reitera o versículo 13: não são os ricos que entram, mas os po­
bres, os aleijados, os cegos e os mancos de Lucas (v. 21; veja também 4.18; 7.22;
14.13; 18.35). Jesus vira a economia social de ponta-cabeça; os marginalizados jan­
tam como ricos. As convenções da reciprocidade social são anuladas baseadas na
ética do novo reino marcado pela generosidade e compartilhamento de riqueza.
A conclusão da história contém diversas ênfases dignas de nota (14.23,24):
Primeiro, na segunda tentativa de encher o local do banquete, os servos vão além
das ruas e becos da cidade (v. 21) até aos caminhos {tas odous) e valados (v. 23). A
mesma referência a ruas de uma cidade que a cena da seleção dos participantes do
grande banquete apresentado em 13.24-30. No processo de estabelecer as tão ex­
pandidas fronteiras da inclusão, Lucas empurra as margens para ainda mais longe.
Segundo, alguns são até forçados {anankason) a entrar (compare com o verbo
biazetai no imperativo em 16.16). Essa passagem tem sido interpretada como se
permitisse o uso da violência na conversão (ex.: por Agostinho e pelos donatistas;
veja Kealy, 2005, p. 8). A austera resolução do anfitrião de ter um banquete cheio
dá ao seu convite um ímpeto militar. Tanto a inclusão como a exclusão são de
155
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

grau extremo. Mas, está vastamente fora de caráter com os caminhos de Jesus
nos Evangelhos defender a conversão pela coerção. Isso deve ser entendido como
uma hipérbole - linguagem figurativa destacando a urgência de incluir todos os
desejosos de entrar na nova comunidade.
Terceiro, a declaração sumária é: “Eu lhe digo, nenhum daqueles que foram convi­
dados provará do meu banquete” (v. 24 NIV11, tradução livre). A inclusão radical
das massas é contrabalanceada pela exclusão radical da elite. Nesse caso, a inclusão
cria a exclusão (como em 24.46 e At 18.6, onde Paulo diz aos judeus teimosos e
resistentes de Corinto, “Caia sobre a cabeça de vocês o seu próprio sangue! Estou
livre da minha responsabilidade. De agora em diante irei para os gentios”). Nesse
texto do banquete messiânico de Lucas 13.22-30, a exclusão das aldeias criou uma
inclusão para os quatro cantos do mundo.
Esse equilíbrio dos incluídos e excluídos diferencia o universalismo de Lucas da­
quele no qual todos irão eventualmente ser salvos. E perfeitamente compreensível
e até amável e nobre o sentimento de ansiar ver todos livres da dor da exclusão do
Reino. Realmente, todos podem arrepender-se. Contudo, no mundo de Lucas, ain­
da há pessoas perdidas. Elas não estão perdidas pela eleição, mas porque recusam-
-se a arrepender-se. A reversão da ordem social resulta do arrependimento e perdão
do pecador, e da recusa do orgulhoso de entrar humildemente no Reino.
Veremos ainda, no capítulo 15, como Lucas continua a redefinir o conceito da
salvação. As novas categorias são “perdidos” e “achados” em vez de eleitos de Israel
e nações não eleitas (para outras perspectivas veja Evans e Sanders, 1993, p. 106-
120).

I. Jesus prossegue ensinando (14.25-35)

1. A família e as posses (14.25-33)

POR TRÁS DO TEXTO

O tema dos versículos 25-33 é a exortação para despojar-se da família e das


posses pelo bem do discipulado: “Da mesma forma, aquele de vocês que não re­
nunciar a tudo o que tem não pode ser meu discípulo” (v. 33 NIV11, tradução li­
vre). O tema é demonstrado por estas três histórias de apoio:
156
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

• A perda dos laços familiares como a “cruz” dos discípulos (v. 25-27).
• O construtor que falha em prever os custos de construir uma torre (v. 28-
30).
• O rei que vai para a guerra contra 20 mil soldados levando apenas dez mil
(v. 31-33).
A questão da primeira historieta já foi levantada (em 8.19-21; 11.27,28;
12.52,53). As duas seguintes introduzem novas ênfases à narrativa.

NO TEXTO

H 2 5 -2 7 A afirmação sobre a família é direcionada a uma grande multidão


[<ochloipolloi, o plural enfatiza o tamanho; 5.15] acompanhando Jesus (v. 25).
Em 12.1, “uma multidão de milhares de pessoas”, e estas atropelavam umas às ou­
tras. O mesmo sentido de caos comunitário é comunicado aqui.
Jesus dirige Suas observações àquela enorme multidão: voltando-se para ela, dis­
se (...) (14.25). As vibrantes exigências do discipulado são dirigidas à vasta gama de
seguidores, e não somente aos principais discípulos. Isso torna as exigências ainda
mais rígidas. Esses não são requisitos para alguns da elite, mas para muitos, inclu­
sive para os leitores de Lucas.
O contexto adequado no qual interpretar os difíceis comentários de Jesus sobre
as relações familiares é Lucas 12.52,53. Esse texto é delineado por Deuteronômio
13.6-11 (veja Mq 7.6; Mt 10.21,35,36). Aquele que realizava milagres deveria ser
rejeitado se a sua ortodoxia fosse suspeita. Os da família desse mesith, ou “enga­
nador”, deveriam ser os primeiros a tomar oposição e a apedrejar o ofensor. Isso
incluiria até o filho, a filha, o cônjuge ou o amigo íntimo. Isso pode representar a
real experiência de Jesus e Seus discípulos ("^ Lc 12.52,53).
Aqui em 14.26, Jesus diz: Se alguém vem a mim e ama o seu pai, sua mãe, sua
mulher, seus filhos, seus irmãos e irmãs, e até sua própria vida mais do que a
mim, não pode ser meu discípulo. Como poderemos nós entender essa exigência
radical e contracultural ?
Será que isso é uma questão de prioridade de afeição: Deus primeiro, família em
segundo lugar? Provavelmente não. Essa divisão deve referir-se ao conflito gerado
pelo debate sobre a identidade de Jesus (veja Neale, 1993, p. 94-96). Jesus avisa
aos Seus seguidores que, se a acusação de que Ele é um enganador fosse julgada
contra Ele, os discípulos deveriam escolher a lealdade a Ele em vez de renderem-se
à pressão da família, mesmo que isso também significasse um rompimento familiar.
157
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Logo, a frase kai ou misei, e não aborrece (ARA), refere-se à escolha de lealdade
face à oposição, em vez de dar prioridade à afeição. A natureza visceral da palavra
odiar é hiperbólica, e não uma ordem literal aqui para odiar-se alguém.
Essa difícil escolha é descrita em Lucas como o carregar da cruz (v. 27). A lingua­
gem é severa, mas também é o dilema para o discípulo. Parece convincente en­
tender essa afirmação particular como derivada da comunidade cristã posterior,
embora outros argumentem por uma origem anterior (-> 9.23).
H 28-33 Duas histórias exclusivas a Lucas ilustram o custo do discipulado: es­
timar o custo de um projeto de construção e as desvantagens estratégicas ao ir à
guerra contra um exército o dobro maior do que o seu. Em ambos os casos, a falta
de planejamento leva à humilhação. No primeiro caso, isso consiste de uma ridicu­
larização (v. 29); no segundo, da humilhação do perdedor (v. 32).
A conexão entre as duas histórias fornecidas pela declaração sumária no versículo
33 é reforçada: “Da mesma forma, aquele de vocês que não renunciar a tudo o que
tem não pode ser meu discípulo” (NIV11, tradução livre). O objetivo parece ser que
o caminho ao discipulado tem um componente de “análise de custo”. O discípulo
precisa estar disposto a abrir mão da conexão íntima com a família e com todos os
bens. Jesus/Lucas fala de “discípulos” repetidamente, mas somente aqui menciona
sobre meu discípulo (singular) e, somente aqui, ao indivíduo, em vez de à comu­
nidade.
Em cada um desses três casos (v. 26,27,33), a exigência é expressa negativamente,
tanto na condição como no resultado. Você não pode falhar em odiar a família,
falhar em carregar a cruz, ou falhar em abrir mão de tudo. Isso é seguido da mesma
frase, também expressa na negativa: você não pode ser meu discípulo. A negativa
“qualquer de vocês que não” é usada para ênfase, e, combinada aqui com a segunda
negativa, você não pode ser meu discípulo, dobra o efeito. Expressado positiva­
mente, nós devemos honrar a Deus primeiro, levar a nossa cruz, e abrir mão de
tudo a fim de sermos discípulos de Jesus.

A PARTIR DO TEXTO

O convite para seguir carrega consigo uma advertência sobre o custo. Há um


desapego dos engajamentos humanos que o discipulado supremo exige. Epor meio
desse desapego que a vida espiritual plena floresce. Nesse convite ao desapego, o
cristianismo mostra alguma afinidade com outras religiões orientais. Qualquer que
quiser manter a sua vida deve estar preparado para entregá-la (9.24). Certamente,
158
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

em Lucas, deve ser dito que o intenso apego das pessoas às coisas bloqueia o cami­
nho da completa espiritualidade.

2. A parábola do sal (14.34,35)

I 34-35 Agora, segue uma breve metáfora sobre inclusão e exclusão na comu­
nidade do Reino. O material aqui tem paralelos nos outros dois Evangelhos Sinó-
ticos e reflete a afirmação de Mateus de que os discípulos são “o sal da terra” (Mt
5.13 || Mc 9.49,50).
O sal é bom, mas é capaz de perder o sabor (mõranthêi\ mostrar ser tolo, como,
ex.: em Rm 1.22; 1 Co 1.20; caso contrário, somente em Mt 5.13).

O sal m etafórico

Como podem os com preende o sentido de um sal t o lo ? O sal usado


no processo de cozim ento torna-se um a escória inútil no fundo do forno. A
extração do sal do m ar M orto ta m b é m produz resíduos quím icos inúteis.
O sal era usado na a g ricultu ra para e v ita r o a la stram ento de ervas da ni­
nhas, e, às vezes, no esterco para re ta rd a r o processo de decom posição.
Mas, essas analogias antigas parecem in te ira m e n te irrelevantes a essa
passagem.
Na Escritura, o sal serve com o preservativo, tem pero e p u rifica n te (2
Rs 2.21; Cl 4.6). Ele é exigido com o um com ponente de todas as ofe ren­
das (Lv 2.13). Isso se torna um a m etáfora na eterna "aliança do sal" que
Deus estabeleceu com o sacerdócio aarônico (em Nm 18.19). O utra refe­
rência do AT a essa aliança te m um a conexão davídica: "Não vos convém
saber que o SENHOR, Deus de Israel, deu para sem pre a Davi a soberania
de Israel, a ele e a seus filhos, por um a aliança de sal?" (2 Cr 13.5 ARA).
Esses ecos do AT sugerem um nível mais profundo de significado na
presente passagem , especialm ente em um co n te xto enfatizando o disci-
pulado (veja Hagner, 1993, p. 99). Mas, isso é apenas especulativo. Cer­
ta m e n te , aqueles que são m em bros da "aliança de sal" são leais ao seu
fu n d a m e n to davídico e, logo, prováveis de serem retidos na com unidade.
Os que não são fiéis foram sujeitos à rejeição (com o Lucas 14.35 indica).
O sal ta m b é m pode ser um a m etáfora para a sabedoria ou m o ra lid a ­
de (M arshall, 1978, p. 595). N egativam ente, o sal sim boliza uma m aldição
e a in fe rtilid a d e do solo (em D t 29.23 e Jr 17.6). A plicado aqui, o aforism o
de Jesus se referiria à in u tilid ade dos discípulos que não pagam o preço

159
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

do discipulado. Mais provavelm ente, o uso de m õ ra n th é é um jog o de pa­


lavras, referindo-se à to lice dos discípulos que não seguem as exigências
daquela vida (veja Marshall, 1978, p. 595,596).

A ênfase na inclusão/exclusão de Lucas 14 é apropriadamente resumida pela


referência ao sal insatisfatório sendo jogado fora (v. 35). Aquele que tem ouvidos
para ouvir, ouça (v. 35; 15.1) reitera a exortação em 8.8 (->). O convite do dis­
cipulado exige muita atenção à nossa resposta de persistirmos até o fim. A ameaça
de exclusão/julgamento aplica-se se não agirmos corretamente.

J. O perdido e o achado: o coração do Evangelho


(15.1-32)

POR TRÁS DO TEXTO

As histórias sobre a propriedade perdida e do filho perdido que foram encon­


trados (v. 3-7,8-10,11-32) são uma unidade que tratam de um único tema - aquilo
que se perde é encontrado. O capítulo 15 é o centro físico, emocional e teológico
de Lucas. Ele culmina e cristaliza o tema do arrependimento dos pecadores. No
coração do capítulo, está a “profunda e singularmente fecunda” história do filho
perdido (Volf, 1996, p. 156), uma das histórias mais amadas e influentes do NT.
As pessoas que exemplificaram o arrependimento em ação na narrativa até esse
ponto incluem Pedro (5.8), Levi (5.27-32) e a mulher pecadora (7.36-50). Eles são
os principais personagens nessas histórias, com os “fariseus” e outros “pecadores”
diversos desempenhando papéis coadjuvantes. Diversas histórias, como aqui no
capítulo 15, estão inseridas no contexto da comunhão à mesa. Em 15.1,2, Lucas
sinaliza a retomada desses temas: “Todos os publicanos e pecadores’ estavam se
reunindo para ouvi-lo. Mas os fariseus e os mestres da lei o criticavam: ‘Este ho­
mem recebe pecadores e come com eles” (veja 5.29-32; 7.36-50; 11.37-44; 13.22-
31; 14.1-24).
A história da ovelha perdida (15.3-7) tem um paralelo em Mateus 18.10-14.
Ali, o contexto focaliza no desejo do Pai celestial de que “nenhum destes pequeni­
nos se perca”. Em Lucas, o foco em todas as três histórias está no arrependimento
como o caminho do pecador de volta à comunidade (15.7,10,18,19,21). Devido
seus temas lucanos peculiares, todo o material no capítulo 15 deve ser considerado
160
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

material especial de Lucas, com alguma interdependência indireta com o material


compartilhado com Mateus (veja Forbes, 2000, p. 109-113).
A estrutura retórica do capítulo 15 é a de um amplo argumento a minori ad
maius (menor para o maior) (-> 11.11-13; 12.4-7,22-34). Nessa passagem, esse
artifício governa a estrutura do capítulo inteiro.
Todos nós entendemos o desejo de procurar coisas valiosas que foram perdi­
das e o prazer de encontrá-las (o caso menor). Ao ilustrar essa experiência nessas
histórias, o autor prepara seus leitores para uma aplicação dessa mesma verdade na
vida do filho perdido (o caso maior). A expansão do argumento na terceira história
é pressagiada nos versículos 7 e 10, nos quais a “alegria” por causa de “um pecador
que se arrepende” conclui ambas as primeiras histórias.
Retoricamente, o capítulo funciona na lógica de que a ovelha perdida e a mo­
eda são uma coisa, mas pessoas perdidas são completamente diferentes. Logo, o
argumento cruza do reino literal para o reino teológico. Está claro o que “perdido”
significa no mundo dos animais e dos objetos inanimados. Mas, o que significa
“perdido” em termos de seres humanos ?
O argumento a minori ad maius sugere que o que é verdadeiro quanto à per­
da das coisas inanimadas é verdadeiro sobre a perdição humana - o problema é a
separação. Tudo isso está inserido no contexto da resposta de Jesus à reclamação
do fariseu quanto aos hábitos de comunhão de Jesus à mesa. Lucas permite que os
leitores escutem os fariseus ouvirem “as histórias sobre si mesmos” (Darr, 1992, p.
109). Os capítulos 13 e 14 preparam o cenário para esse argumento com suas ênfa­
ses nos imperativos em torno da exclusão e inclusão na comunidade.

A inclusão e a exclusão em Lucas 13 e 14

• 13.3,5 - "Mas se não se arrependerem , todos vocês ta m b é m pe­


recerão".
• 13.24 - "Esforcem -se para e n tra r pela porta estreita, porque eu
lhes digo que m uitos te n ta rã o e n tra r e não conseguirão".
• 13.28-30 - "Ali haverá choro e ranger de dentes, quando vocês v i­
rem Abraão, Isaque e Jacó, e todos os profetas no Reino de Deus,
mas vocês excluídos. Pessoas virão do orie nte e do ocidente, do
norte e do sul, e ocuparão os seus lugares à mesa no Reino de
Deus. De fa to , há últim o s que serão prim eiros, e prim eiros que
serão ú ltim o s".

161
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

• 13.34,35 - “Jerusalém, Jerusalém, você, que m ata os profetas e


apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis re unir
os seus filhos, com o a galinha reúne os seus pintinhos debaixo
das suas asas, mas vocês não quiseram ! Eis que a casa de vocês
ficará deserta. Eu lhes digo que vocês não me verão mais até que
digam : 'B end ito o que vem em nom e do S enhor"'.
• 14.11 - “ Todos os que se exaltam serão hum ilhados, e aqueles
que se hu m ilham serão e xa ltado s" (NIV11, tra duçã o livre).
• 14.23,24 - “ Então o senhor disse ao servo: 'Vá pelos cam inhos e
valados e obrigue-os a en trar, para que a m inha casa fiqu e cheia.
Eu lhes digo: Nenhum daqueles que foram convidados provará do
meu b a n q u e te "'.
• 14.26 - “ Se alguém vem a m im , e não odiar pai e mãe, [cônjuge]
e filhos, irm ãos e irm ãs, sim, até m esm o sua própria vida - esse
não pode ser meu discípulo" (NIV11, tra duçã o livre).
• 14.27 - “ E quem não carrega sua cruz e não me segue não pode
ser meu discípulo" (Nlvn , tra duçã o livre).
• 14.33 - “ Da m esm a form a, aquele de vocês que não renunciar
a tu d o o que te m não pode ser meu discípulo" (NIV11, tradução
livre).
• 14.34,35 - “ O sal é bom, mas se ele perder o seu sabor, com o
poderá salgar-se de novo? Não presta nem para terra, nem para
adubo; ele é jogado fora. Quem te m ouvidos para ouvir, ouça"
(NIV11, tra duçã o livre).

As duras linhas da inclusão e da exclusão desenhadas no capítulos 13 e 14 são


mais sutilmente redesenhadas no capítulo 15. A distância entre o filho perdido e
a sua família é entendida, não em termos escatológicos rígidos da exclusão final da
salvação, mas em termos mais humanos de separação da família da comunidade.
Existe uma separação física do filho perdido e sua família e também uma alienação
espiritual e emocional. A parábola do filho perdido interpreta a “perdição” huma­
na como relacionamentos rompidos entre pessoas.
O Evangelho de Lucas retrata a separação das pessoas da comunidade redimi­
da como o principal problema, na concepção de Jesus, quanto ao Reino de Deus.
A família humana está polarizada em perdidos e achados, os que estão dentro e os
que estão fora. Os dois precisam reconciliar-se. A alienação precisa ser resolvida.
A representação da alienação familiar na história do filho perdido funciona
em múltiplos níveis. Os pais da igreja pensavam que os personagens representassem
162
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

uma alienação entre os judeus e os gentios (Jerônimo e Agostinho) ou cristãos


errantes alienados da igreja (Ambrósio). Os autores modernos têm adotado outras
interpretações, tais como a representação do exílio e restauração de Israel (Wright,
1996a), um “Deuteronômio Cristão” (Nineham, 1957; veja Evans e Sanders,
1993, p. 121-139,130'132), e até interpretações sociológicas e freudianas (veja
Snodgrass, 2008, p. 126-128).
No contexto da narrativa lucana, as histórias servem como uma metáfora para
a alienação dos indivíduos da comunidade do Reino de Jesus. Mesmo assim, em seu
nível mais fundamental, as histórias dos perdidos em Lucas 15 serve de guia aos
leitores, um mapa rodoviário para a redenção pessoal. Se o filho perdido consegue
alcançar o perdão, então os leitores de Lucas também conseguem.
Essas três parábolas exploram as causas da separação, como ela opera, e os
meios pelos quais ela é reparada. Essa é a ideia central do Evangelho de Lucas:
• Em 2.31,32, Lucas lança o projeto teológico de inclusão para todos por in­
termédio da declaração de Simeão de que Deus preparou £a vista de todos
os povos: luz para revelação aos gentios e para a glória de Israel, teu povo”.
Jesus se tornará a luz para as nações, diz Simeão.
• Em 3.7-9, João Batista desafia a autocompreensão de Israel como o povo
escolhido de Deus, “pois eu lhes digo que destas pedras Deus pode fazer
surgir filhos a Abraão” (Lc 3.8).
• O centurião gentio de Lucas tem fé, humildade e compaixão, traços que
Jesus declara não ter encontrado “nem em Israel” (Lc 7.9).
• E, no capítulo 13, as fronteiras tradicionais da eleição são completamente
subvertidas no grande banquete escatológico, indicando que alguns ju­
deus se encontrarão excluídos (Lc 13.22-30).
O universalismo da história do AT é sobre o relacionamento de Israel para
com os gentios e sua eventual inclusão na salvação. Essa é a clássica solução pro­
fética do problema da exclusividade da aliança de Israel (assim como Simeão, que
menciona Isaías 52.10; também em Is 9.T3; 42.6; 49.6; 51.4; 60.3, e assim por
diante).
O conceito de universalismo, no entanto, é sutilmente redefinido por Lucas.
O novo paradigma não é sobre a dicotomia judeu/gentio, mas sobre os perdidos e
os achados. No novo universalismo de Lucas, a identidade étnica/nacional não é
um fator. Ela transcende as velhas categorias de judeu e gentio, justo e ímpio, e pe­
cador e santo. Nesse sentido, as parábolas de Jesus sobre a inclusão para o perdido
são verdadeiramente radicais.
163
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Esse novo paradigma ofendia os judeus porque removia Israel da condição de


nação favorita. Os israelitas, assim acredita o Jesus de Lucas, podem ser achados
ou perdidos, de acordo com a postura do coração deles. O fato é que isso é verda­
deiro para qualquer um (veja 13.1-5). A substituição dessa nova dicotomia repele
toda a ideia de uma nação eleita. “Se não pudermos confiar em nossa eleição”, os
da perspectiva tradicional podem refletir, “então, estamos expostos às balanças do
julgamento, assim como todas as outras nações”.
A representação de Lucas quanto ao universalismo de Jesus é completamente
igualitária. Ela promete a salvação a todos os que forem achados. Contudo, ameaça
destruir todos os que não se arrependerem (13.5). Ninguém tem posição privile­
giada - todos serão julgados por sua penitência. Todos são pecadores nessa con­
cepção de salvação; e todos têm igual acesso ao mecanismo da graça para serem
reconciliados a Deus - o arrependimento.

1. A ovelha e a moeda perdidas são achadas (15.1-10)

NO TEXTO

H 1-2 Esse cenário é típico, e os diversos personagens desempenham seus papéis


designados. Lucas não está registrando os eventos de um dia em particular, mas
caracterizando as diferentes respostas dos ouvintes de Jesus sobre a Sua mensagem
de inclusão e exclusão.
No versículo 1, todos os publicanos e pecadores estavam se reunindo para ouvi-lo.
O fato de que tenham vindo para ouvi-lo liga o capítulo 15 com o versículo final do
capítulo 14: Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça (Lc 14.35). A resposta dos
publicanos e “pecadores” ilustra que o ensinamento de Jesus é aberto a “todos” os
marginalizados. Lucas coloca todos os publicanos epecadores na multidão.
Essa é a única vez que pantes, todos, é prefixada em uma frase. A mesma descrição
categórica dos ouvintes da mensagem de Jesus marca cada vez que Lucas usa essa
linguagem (5.30,32; 6.34; 7.34; 13.2; 15.2). No capítulo 5, o banquete de Levi é
frequentado por “muita gente (...) publicanos e outras pessoas” (v. 29), que esta­
vam com Jesus à mesa. Eles não são apenas indivíduos, mas uma categoria literária
representando “todos” os marginalizados a quem a mensagem do capítulo 15 é
direcionada.
Enquanto os fariseus e os mestres da lei ajuntaram-se à mesa, eles murmuravam
(ARC) sobre o hábito de Jesus comer com os publicanos e pecadores. O verbo
164
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

diagongyzõ (murmuravam, ARC) aqui e em 19.7 (“murmurar”) descreve o mur­


múrio sobre a associação de Jesus com os publicanos e pecadores. Na LXX, isso
é usado para a murmuração de Israel contra Moisés e Arão no deserto (Êx 15.24;
16.2,7,8; Nm 14.2,36; 16.1 l;D t 1.27; Beale e Carson, 2007, p. 293).
Os fariseus também estavam em cena em 5.29-32 para criticar o hábito de Jesus de
comer com tais pessoas. Ali, Lucas usou o cognato gongyzõ (v. 30), com as mesmas
alusões a Êxodo (Êx 17.3; Nm 11.1; 14.27,29; 17.5; SI 106.25).
Os fariseus são como os israelitas murmuradores que não queriam reconhecer a
liderança do profeta de Deus. Wright, que lê esse capítulo por meio das lentes do
exílio e da restauração, enxerga os fariseus no papel dos samaritanos, que se opuse­
ram aos exilados que voltavam da Babilônia (1996a, p. 125-131).
Como em 5.29-32, a questão é a comunhão de Jesus com os pecadores à mesa (->
5.29-32). A mesa é o potente símbolo de inclusão para os marginalizados em Lu­
cas. Os leitores, raramente, podem deixar de ver a significância desse alvo na nar­
rativa. Lucas 7 tem uma cena diferente, personagens similares e o mesmo assunto:
um pecador no meio deles (7.39). A outra proeminente cena de refeição em Lucas
está em 14.1-24 (compare também com 19.1-10).
Os adversários de Jesus alegam que Ele recebe [prosdexetai: aceita, recebe\ peca­
dores (v. 2b). Em outro lugar, Lucas usa essa palavra para conotar uma ansiosa
expectativa do Reino (2.25,38; 12.36; 23.51). A comunhão de Jesus com persona­
gens sem reputação é calorosa e amigável.
Contudo, há um significado mais profundo. A salvação baseada em estar perdido
e achado desafia o conceito da eleição. Se as pessoas supostamente eleitas por Deus
não puderem confiar em sua eleição, elas devem também se arrepender e ser pesa­
das na balança do julgamento juntamente com as nações/os gentios.
A recepção geral de Jesus aos pecadores desconstrói o paradigma teológico de elei­
ção étnica e o seu entendimento de santidade como uma separação marcada entre
os salvos e os condenados. Desde que essa noção seja preservada, e com o lugar
privilegiado do Reino desfrutado apenas pelos eleitos, as leis da religião são claras.
Mas, o convite de Jesus substitui esse paradigma por outro em que a penitência de
cada pessoa é o fator decisivo. O princípio orientador no qual a nova comunidade
de Jesus está baseada não é a eleição, mas a reunião dos separados.
Tendo estabelecido esse contexto em 15.1,2, Lucas volta às suas parábolas. A narra­
tiva continua mostrando a diferença entre os pecadores arrependidos e os religio­
sos orgulhosos (-^ 3.18-20, A partir do texto).
I 3 -7 As parábolas da ovelha perdida e da moeda perdida estão intimamente
interligadas textualmente. Ambas fazem parte da estrutura argumentativa a minori
165
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ad maius (do menor para o maior). Salvar os animais do rebanho era uma res­
ponsabilidade universal dentro de uma comunidade agrícola (14.5). Quanto mais
ainda, diz o argumento, é a responsabilidade de a comunidade procurar as pessoas
perdidas do rebanho de Deus?
A primeira dessas duas parábolas tem um paralelo em Mateus 18.10-14. A segun­
da, contudo, é de material lucano especial, assim como a terceira, a parábola do
filho perdido. Lucas traz essas três histórias juntas em sua estrutura narrativa. As
duas primeiras parábolas possuem uma estrutura semelhante: uma breve descrição
dos atores, uma declaração da perda, uma pergunta retórica, uma reação e uma
afirmação sumária. Elas são quase idênticas em significado e determinam o funda­
mento lógico sobre o qual a terceira parábola será compreendida.

A estrutura das parábolas da ovelha


e da moeda perdidas
P a rá b o la d a o v e lh a p e rd id a P a rá b o la d a m o e d a p e rd id a

O s a to re s (...) Q u al d e v o c ê s q u e (...) q u a l é a m u lh e r q u e
(tis a n th rõ p o s ) (tis gunê)

A p erd a (...) p e rd e n d o u m a [ o v e lh a ] (...) p erd en d o uma [m oeda]

Pergunta retórica (...) não d e ix a a s n o v e n ta (...) não acen de uma


e n o v e no c a m p o e vai candeia, varre a casa
a tr á s da o v e lh a p e rd id a , e procura a te n ta m e n ­
a té e n c o n trá -la ? { heõs e u r ê
te, até encontrá-la?
a u to )
[h eõ s o u eurê)

Reação (...) coloca-a a le g re ­


m ente nos om bros e
vai para casa

(...) reúne seus am igos e v i­ (...) reúne suas am igas e v i­


zinhos e diz: A le g re m -se co ­ zinhas e diz: A le g re m -se co ­
m igo, pois encontrei m inha migo, pois encontrei minha
ovelha perdida' (S y n c h a rê te m oeda perdida' [S y n ch a rê te
m o i h o ti e u ro n to n p ro b a to n mo\ h o ti e u ro n tén d ra c h m ê n
m o u to ap olõlos). h é n a p õ lesa).

Afirm ação sum ária (...) da m esm a form a, h a ve­ (...) da m esm a form a, há ale­
rá m ais alegria no céu por gria na presença dos anjos de
um p ecad o r que se arre­ Deus por um p ecad o r que se
p en d e do que por noventa arrepende.
e nove ju stos q u e não preci­
sam arrepender-se.

166
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

A concepção de pessoas como perdidas e achadas não é uma inovação de Lucas.


Suas raízes estão fundadas na crítica aos pastores (= líderes) incompetentes de Is­
rael no AT (veja também Jo 10.1-17). O AT, geralmente, usa a metáfora da ovelha
quando se refere ao povo de Israel, e, ocasionalmente, chama-o de “ovelhas perdi­
das” (SI 119.176; Is 53.6; Jr 23.1-4; Zc 11.16). A necessidade deles por um pastor
também se encontra no AT (ex.: Nm 27.17; 2 Sm 5.2; SI 23.1; 28.9; Jr 50.6). A
passagem mais importante nesse sentido é Ezequiel 34 (“^ Lc 5.29-32).
O Antigo Testamento, primariamente o livro de Salmos, polariza as pessoas nas
categorias de “justos” e “ímpios”. Essas duas categorias estruturavam a visão do AT
quanto ao universo moral (Neale, 1991, p. 75-97). Em Lucas, surge uma nova di­
cotomia, baseada, não em “justos” e “ímpios”, mas em “perdidos” e “achados”. A
narrativa de Lucas preparou-nos para essa nova compreensão da natureza do so­
frimento humano e sua solução. As pessoas não são “más”/ “rejeitadas”, mas “per­
didas”. Os “justos” não são “eleitos”/“escolhidos”, mas “achados”. Lucas redefine a
humanidade em termos de duas categorias: perdidos e achados.
A imagem da ovelha perdida carrega consigo uma explicação implícita: as ovelhas
perderam-se por causa da falha da liderança de Israel. A crítica implícita é que os
fariseus são os pastores fracassados de Ezequiel 34. Eles não cumpriram o seu dever
de procurar as ovelhas perdidas de Israel. Nessa parábola, esse tema ecoa novamente.
Segundo o ideal bíblico, os pastores simbolizam a terna proteção de Deus para o
rebanho (veja, por ex., SI 79.13). As vezes, porém, esse relacionamento era subver­
tido pelos líderes que vorazmente exploravam o rebanho e matavam as ovelhas:
“Ai do pastor imprestável, que abandona o rebanho!” (Zc 11.17; também v. 4-17;
compare com Ez 34.1-31). Finalmente, na terminologia bíblica, o fiel pastor é
Deus: “Vocês, minhas ovelhas, ovelhas da minha pastagem, são o meu povo, e eu
sou o seu Deus. Palavra do Soberano, o Senhor” (Ez 34.31).
Essa alusão intertextual não pode ter ficado perdida para aqueles que ouviram essa
parábola. Ela comunica não só a alegria de encontrar o que estava perdido, mas
também as distintas conotações da crítica de Ezequiel quanto à liderança fracas­
sada. Os fariseus de Lucas murmuram e recusam-se a aceitar sua responsabilidade
de procurar os perdidos. O pastor dessa parábola age como Deus agiu em Ezequiel
34 - ele procura o seu rebanho.
A alegria do pastor ao encontrar sua ovelha perdida é sem medida. Ele coloca-
-a alegremente nos ombros (Lc 15.5). Essa imagem sugere um pastor dançando
alegremente rumo a casa com sua ovelha resgatada.
Moisés foi o primeiro a mostrar seu preparo para a função de pastor de Israel. O
Êxodo Rabá, uma expansão midráshica de Êxodo, conta como Moisés procurou
167
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

um bode extraviado do rebanho de Jetro. Ele carregou-o em seus ombros de volta


ao rebanho. Deus diz a Moisés: “Você teve amor suficiente para guiar um rebanho
de carne e sangue, e assim irá, com a sua vida, guiar o meu rebanho Israel” (ÍLv. Rab.
2.68, tradução livre).
Depois de reunir todos os seus amigos e vizinhos (v. 6), eles celebram porque a
ovelha foi encontrada. Isso demonstra o contexto comunitário do bem-estar dos
indivíduos: a preocupação de um era a preocupação de todos.
A narrativa desloca-se do literal para o teológico com a declaração sumária a respei­
to da perspectiva divina sobre o encontro da pessoa “perdida”: Eu lhes digo que,
da mesma forma, haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende
do que por noventa e nove justos que não precisam arrepender-se (v. 7).
O arrependimento era, é claro, uma parte rotineira da prática judaica. A culpa era
exposta, e a pureza, restaurada, pelo arrependimento, reparação e sacrifício (Lv 6.1 -
7; Nm 5.5-7; Lucas 5.20-26 anotação complementar, “A teologia do perdão
no judaísmo” e “A contaminada torre de Pilatos”). Mas, deixar de arrepender-se
naquele paradigma resultava em impureza ritual e moral, e não em exclusão de
Israel. Em Lucas, o arrependimento assume uma função operativa e existencial
muito mais central na salvação. Ele é o meio pelo qual a redenção funciona para
os indivíduos. Sua ausência leva à perdição, à exclusão da comunidade da salvação
(13.3,5,26-30; 14.11,24,26,33,35).
As histórias do capítulo 15 enfatizam a possibilidade do retorno e da inclusão (con­
versão/retorno; veja Méndez-Moratalla, 2004). A nova comunidade não é uma
comunidade eleita, mas uma comunidade de pecadores arrependidos.
Há mais alegria pelo encontro de um pecador que se arrepende do que por no­
venta e nove justos que não precisam arrepender-se (v. 7). Isso não quer dizer
que os justos não sejam amados, pois estão seguros no aprisco (v. 4; 5.31,32). Mas,
a alegria está reservada para aqueles que são encontrados depois que estiveram per­
didos, e é isso que é peculiar sobre esta apresentação do Reino de Deus (sobre a lin­
guagem de pecador/justo veja mais em Neale, 2011, p. 29-32,35,37; 5.29-32).
H 8 -1 0 Em sua busca metódica pela moeda perdida, a mulher acendeu uma can­
deia, [varreu] a casa e [procurou] atentamente (v. 8). Ela possuía dez moedas
de prata (NTLH) {drachmas deka), uma das quais valia um dia de trabalho (veja
Tob. 5.15).
As coisas saem do lugar quando variamos nossa rotina. A definição de “perdido”
para os objetos inanimados é que falhamos em colocá-los no lugar de costume. A
moeda perdida deveria estar com as outras nove, e a ovelha perdida deveria estar
com as noventa e nove. A lógica sugere que o mesmo seja o caso do pecador. O
pecador deve ficar dentro da comunidade, e não afastado dela - a separação é o
168
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

problema. A comunidade do reino que está experimentando a alienação entre seus


membros é aquela que ainda está manchada pela pecaminosidade de seus pecado­
res não arrependidos.
A intensa busca da mulher expressa a intensidade da preocupação de Deus para
recuperar os perdidos. Logo, há “mais alegria” no céu por um pecador encontrado
do que por noventa e nove que não necessitam de arrependimento. A expressão
“não precisam arrepender-se” (v. 7) refere-se àqueles que estão seguros dentro da
comunidade da fé.

2. O filho perdido é encontrado (15.11-32)

POR TRÁS DO TEXTO

A parábola do filho perdido é a mais longa narrativa fictícia nos ensinos de


Jesus. Ela fica no centro do Evangelho de Lucas tanto física como teologicamente.
Ela já foi chamada de “o coração do terceiro Evangelho” (Ramaroson, 1979, p. 356,
e outros desde então).
Essa parábola é diferente de qualquer outra parábola de Jesus quanto ao seu
tom. O estilo tem alguma ressonância com a história de Jó: a proveniência desco­
nhecida da história, as detalhadas descrições de riqueza, as celebrações em casas
cheias de familiares, as conversas particulares que ocorrem aos ouvidos do leitor,
os detalhes dos relacionamentos dentro da família. Tudo isso é bem semelhante à
pitoresca narrativa de Jó 1—3. Jó certamente conhecia a dolorosa perda dos filhos
queridos, já que todos os seus foram mortos no ataque devastador do acusador.
Há talvez também uma ressonância com as histórias bíblicas do conflito entre os
irmãos - Caim e Abel (Gn 4), Jacó e Esaú (Gn 25), Moisés e Arão (Ex 32.21), e até
José e seus irmãos (Gn 37; Wright, 1996a, p. 127). Apesar desses ecos, essa história
fica bem fora do âmbito normal do mundo histórico do AT.
A parábola consiste de duas vinhetas: a primeira é a história da remoção do
filho para um país distante e seu retorno (Lc 15.1 T24). Essa acentua a remoção
física do filho de sua terra natal e depois a sua volta para o lar. Ele começa sua jorna­
da com uma abundância de bens e com o favor de seu pai. Mas, em sua localização
física distante de casa, ele perde tudo. Ele volta fisicamente para casa e readquire
seus bens materiais e o favor de seu pai.
A segunda vinheta é a resposta do filho mais velho e sua conversa com o pai
(v. 25-32). A estrutura é mais direta. Isso transpira em uma cena do lado de fora da
casa enquanto a celebração pela volta de seu irmão mais novo acontecia lá dentro.
169
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O mesmo tema de separação está em evidência, embora de uma forma mais sutil. A
separação agora é do filho mais velho para com seu pai e seu irmão que voltou. O fi­
lho mais velho recusa-se a entrar na festa. Ele permanece do lado de fora, enquanto
os outros divertem-se na acolhida do banquete de boas-vindas. Note a ressonância
com o tema do grande banquete de 13.22-30 (“^).
A crise existencial está no centro dessas vinhetas. O filho mais novo lutou com
a vergonha e a necessidade. O filho mais velho lutou com o ressentimento e seu
senso de direito. Ele tinha arcado com as responsabilidades da casa como um filho
modelo, enquanto seu irmão irresponsável esteve fora de casa. O contraste entre a
completa humilhação do irmão mais novo e a arrogância hipócrita do irmão mais
velho é óbvio. O pai tenta reconciliar os dois com sua ética de amor.
O tema primário da parábola é a separação: a propriedade é separada de seu
dono (v. 12); o filho mais novo, de seu país de origem (v. 13); de seu dinheiro (v.
14); da pureza ritual quando entre os porcos (v. 15); e depois, do amável cuidado
da família e da compaixão humana (v. 16). Finalmente, o filho mais velho é separa­
do de seu irmão e de seu pai por ressentimento.
O contraponto do tema da separação é o tema da volta e restauração. Nos versícu­
los 22-24, o filho perdido é restaurado ao seu país, aos seus bens materiais, ao seu lar e ao
favor de seu pai. A alienação do irmão mais velho é deixada sem resolução na parábola.
NO TEXTO

H 11-16 Havia três níveis no sistema de parentesco israelita: tribo, clã e a “casa
do pai” (bet av). Esta última é a base dessa parábola. A conexão do indivíduo com
a família não só era a identidade social fundamental da pessoa, mas também de­
finia o lugar de alguém em termos do relacionamento econômico e teológico na
comunidade.

As leis do le vira to e o B e t 'Av

No m undo econôm ico, as leis protegiam a terra p a trim o nial para


m a n te r a propriedade dentro da fam ília. Se a propriedade caísse nas mãos
de estranhos por causa de dívidas ou de sventura, era de ver do clã pro­
tegê-la, assum indo a dívida. As leis sabáticas exigiam que a propriedade
devesse ser retornada ao seu b e t 'a v original no quinquagésim o ano do
ciclo sabático para m a n te r a distrib u içã o da terra ao nível da fam ília. Não
existe um exem plo sequer de israelitas vendendo te rra fora de sua fam ília
em tod o o AT (W right, 1992, p. 761; veja ta m b é m p. 761-791).

170
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

As leis do le vira to exigiam que o hom em se casasse com a esposa do


irm ão falecido que não tivesse deixado um filh o herdeiro. Dessa form a,
um m em bro do clã protegia a sucessão da propriedade dentro do b e t 'av
do irm ão ao produzir um filh o para aquela casa.
No nível religioso, a ligação de alguém com a aliança do Senhor era
por m eio do b e t 'av. O povo de Deus e a sua terra eram com ponentes es­
senciais ao relacionam ento de aliança com o Senhor. Se eles tivessem em
perigo com a perda da propriedade ou por casam entos m istos, a aliança
estava em perigo.

Dentro desse contexto, o pedido do irmão mais novo para a divisão da pro­
priedade de seu pai (v. 12) foi um drástico ato de separação (veja Sir. 33.20-24):
Isso era desejar que seu pai estivesse morto (Wright, 1996a, p. 129). O pai do ho­
mem que pediu a Jesus para mandar que seu irmão dividisse a propriedade da fa­
mília com ele (em Lc 12.13) já estava morto (veja Nm 27.6-11). O filho mais velho
pode escolher distribuir a propriedade do pai morto (Safrai e Stern, 1974, p. 519).
Mas aqui, o patriarca ainda estava vivo.
O pai poderia escolher dividir sua propriedade entre os filhos, retendo o di­
reito de beneficiar-se da propriedade até a sua morte. Em tais casos, o filho mais
novo recebería um terço (Fitzmyer, 1985, p. 1087). A divisão da propriedade co­
loca em risco todo o bet av, expondo-o a perdas econômicas. Ao exigir sua parte e
desperdiçá-la, esse filho insensivelmente reduz o meio de vida do pai.
A divisão da propriedade é o primeiro ato no tema da separação na parábola.
O segundo ato de separação é que o filho removeu a si mesmo de sua terra para uma
região distante, levando consigo tudo o que tinha (Lc 15.13). Logo, a separação
geográfica é acrescentada à divisão econômica e à separação pessoal. O movimento
na história é para longe da terra de Israel e do centro familiar.
Para piorar a chocante separação, o filho depois desperdiçou os seus bens vi­
vendo irresponsavelmente. Agora, ele está separado de sua riqueza. A extinção de
sua ligação familiar está completa - lar, relacionamentos e riqueza, tudo se foi. A
desolação do filho implicitamente adverte contra a tentação de substituir a riqueza
e a vida dissoluta pelo suporte do lar e da família. Nada pode jamais substituir o
consolo que o lar e os familiares trazem à nossa vida.
Uma fome na região fez com que o filho pródigo se tornasse empregado de um
cidadão local, que o envia aos seus campos para alimentar porcos (v. 15). Como
171
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

uma virada final nessa queda em espiral, o jovem judeu encontra-se entre os porcos
imundos, o máximo da impureza ritual (Fitzmyer, 1985, p. 1088). Logo, ele é sepa­
rado da santidade ritual também.
A fome leva o filho perdido a desejar o alimento que os porcos comiam, mas
ninguém lhe dava nada (v. 16). Quase morrendo de fome numa criação de porcos,
numa terra distante, é a absoluta antítese da proteção que ele desfrutava no bet
av. O tema da separação alcança seu clímax na parábola em sua total alienação do
amor e segurança do lar.
O cuidadoso desenvolvimento dessa queda espiralar pode ecoar a descrição
de um filho rebelde em Deuteronômio 21.18-21 (Snodgrass, 2008, p. 125). Ali, o
pai e a mãe devem trazer o filho até à porta da cidade. Quando o fazem, eles devem
repetir esta frase, “Este nosso filho é obstinado e rebelde. Não nos obedece! E de­
vasso e vive bêbado” (v. 20). A penalidade de apedrejamento indica o perigo que tal
filho representava para o sistema familiar na cultura israelita.

O sistem a fa m ilia r israelita

O sistem a fa m ilia r era o fu n d a m e n to da sociedade israelita desde a


entrada na terra da Palestina nos dias de Josué. Os reinos m onárquicos
dos séculos seguintes introdu ziram duras realidades a esse sistem a. Os
reis podiam to m a r terras, filhas e filhos sem referência ao sistem a fa m ilia r
(1 Sm 8.10-18). Um sistem a fa m ilia r que não era hierárquico e baseado na
posse da terra em pe rpe tuida de foi suplantado pelo sistem a m onárquico
de alista m en to, trib u ta çã o e concentração da posse da terra nas mãos de
poucos. Já na época rom ana, diferentes form as de lei de aquisição e posse
de propriedades haviam consum ido ainda mais os aspectos do sistem a
fam iliar. A cen tralid ade do b e t 'av para um a e stru tu ra social mais am pla
já era um anacronism o na época de Jesus. Mas a parábola teria evocado
m em órias do antigo ideal e ressoado com os judeus.
O b e t 'av incluía m em bros do núcleo fa m ilia r, mas ta m b é m todos os
que entrassem na fam ília pelo casam ento e os que trabalhassem com o
servos das fam ílias. Tais unidades com punham -se de 50 a 100 pessoas nas
fam ílias ricas. Isso parece te r sido presum ido nessa parábola. A santidade
do b e t 'av na cultu ra tra d icio n a l é mais bem -vista nos dez m andam entos,
que a protege. Deve-se sem pre respeita r os pais, e v ita r o ad ultério, não
roubar e não cob içar a propriedade do vizinho. Se essas prescrições fos­
sem ignoradas, a unidade básica da sociedade estaria em perigo.

172
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

■ 17-19 No fundo daquela espiral decrescente, o jovem finalmente reconhece


sua situação desanimadora. A história de Jesus permite-nos entrar nos pensamen­
tos particulares do jovem e ouvir seu raciocínio de arrependimento. Caindo em
si (v. 17), literalmente em grego “quando ele caiu em si”. A separação do lar e dos
bens também o tinha separado de seu bom senso. Essa separação é revertida por sua
autopercepção. Assim começa o processo do seu retorno, ambos espiritualmente
e fisicamente.
O jovem disse para si mesmo, Eu me porei a caminho e voltarei para meu pai,
e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e contra ti. Não sou mais digno de ser
chamado teu filho; trata-me como um dos teus empregados (v. 18,19). Para
enfatizar, a frase é repetida duas vezes, uma em sua mente e outra na presença de
seu pai (v. 21).
A penitência dele não é meritória com um claro reconhecimento teológico de pe­
cado. Ao contrário, é uma contundente admissão de fracasso motivada pela fome e
pela necessidade. “Quando ele cai em si, ele pensa em si mesmo. Ponto final” (pa­
rada completa; Breech, 1983, p. 195). Quando o orgulho já não consegue levá-lo
para mais longe do amor de seu lar, ele finalmente percebe o que havia perdido. Ele
poderia morrer ou voltar. Essa não é a piedade altruísta de um homem justo (como
Jó). E o ato desesperado de alguém no final dos recursos pessoais.
Lucas estava preparando seus leitores para esse momento. Em dezenas de lugares,
publicanos e pecadores arrependidos receberam Jesus e Sua mensagem. Isso estava
prefigurado na profecia de Zacarias (1.77) e na pregação de João (3.3; veja também
3.8). É o propósito declarado de Jesus (5.32). Esse propósito foi validado pelo ar­
rependimento de Pedro (5.8). Levi, o cobrador de impostos e um pecador proto­
típico, deixou tudo e seguiu Jesus. A mulher pecadora arrepende-se de seu pecado
e encontra perdão aos pés de Jesus (7.37). Em 13.3, Jesus diz aos Seus ouvintes que
eles perecerão se não se arrependerem. Agora aqui, no coração do Evangelho, esse
tema é plenamente exemplificado no arrependimento do filho perdido. Ele per­
sonifica a reação que Jesus procura entre os perdidos. O arrependimento retórico
foi plenamente explicado. Os leitores podem entender como se deve retornar para
o pai.
H 20-24 A seguir, levantou-se e foi. O retorno físico do jovem ao seu pai co­
meça no versículo 20. Isso antecipa a reunião do homem ao seu bet av c a remoção
de sua alienação. Talvez, o filho pensasse que um apedrejamento o esperava em
casa (veja Dt 21.18-21; Snodgrass, 2008, p. 125; Wright, 1996a, p. 440, nota 273).
Mas Lucas prepara seus leitores para um resultado inesperado, garantindo-nos da
compaixão do pai (Darr, 1992, p. 50-59).
173
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Assim que o pai vê o filho de longe, ele fica cheio de compaixão por ele (v. 20,
esplanchnisthê; veja 7.13; 10.33) e corre para receber seu filho em casa. A maioria
dos comentaristas observa que um típico pai judeu daquela época nunca exibiria
um comportamento tão indigno quanto sair correndo. Esse comportamento desa­
gradável é uma resposta emocional e compassiva ao resgate de seu filho. Essa com­
paixão era também o tema unificador nas quatro controvérsias dos Sábados em
Lucas (-> 13.10-17, Por trás do texto).
O pai efetua uma imediata reversão de cada aspecto da separação do filho. Ele é
reunido à sua propriedade, ao seu país de origem, ao alimento e ao pai. A declara­
ção do pai é paradigmática para o Evangelho: Pois este meu filho estava morto e
voltou à vida; estava perdido e foi achado (v. 24).
H 25-32 Quando o filho mais velho voltou de seus afazeres nos campos, ele en­
controu uma celebração acontecendo pelo retorno do filho mais novo. A conversa
entre o filho mais velho e o pai elucida o tema de Lucas quanto à salvação para os
pecadores.
As observações do filho mais velho refletem o sistema social que correlaciona a res­
ponsabilidade e a recompensa. Aqueles que vivem responsavelmente no trabalho,
na comunidade, no lar e na família são o fundamento de uma cultura. Consequen­
temente, eles colhem as recompensas do trabalho árduo e da abnegação. Isso fica
bem esclarecido na reclamação do filho mais velho: Olha! todos esses anos tenho
trabalhado como um escravo ao teu serviço e nunca desobedeci às tuas ordens.
Mas tu nunca me deste nem um cabrito para eu festejar com os meus amigos.
Mas quando volta para casa esse teu filho, que esbanjou os teus bens com as
prostitutas, matas o novilho gordo para ele! (v. 29,30).
O irmão mais velho representa os valores padrões da sociedade, incluindo aqueles
dos leitores de Lucas. Se esses valores não são respeitados, a ordem da cultura é
radicalmente subvertida - a anarquia reina. A reclamação do filho mais velho não
é simplesmente um empecilho para enfatizar o amor do pai. Ela representa aquilo
que todos nós cremos sobre a responsabilidade social. Essa parábola subverte os
valores normais da sociedade.
Quando o pai colocou a importância do filho mais novo enquanto ser humano aci­
ma dos valores da sociedade civil, ele fez uma profunda declaração sobre o valor do
homem. O amor do pai pelo filho perdido estava acima de qualquer outra preocu­
pação. Todas as regras da justiça, a reciprocidade, a recompensa e a punição foram
colocadas de lado. O amor redentor pelo filho perdido prevaleceu. Todas as tolices
do filho, de lascívia, autodestruição, de falta de visão, de dissipação e rejeição do
amor da família, foram perdoadas. Nessa história, a cultura do bet av é requisitada
a reestruturar-se em torno de uma ética superior de retorno do perdido.
174
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Como leitores, nossa percepção interior avisa-nos que, se construirmos uma co­
munidade sobre essa base, toda ordem desaparecerá. O filho mais velho argumenta
que, se a comunidade permanecer aberta aos que ignoram suas regras de responsa­
bilidade, então a comunidade perderá sua identidade e até mesmo sua existência.
Como pode a sociedade sobreviver com essa nova ética radical de amor? O profun­
do amor perdoador torna essa parábola poderosa e perturbadora. As palavras do
pai ao filho mais velho são as mesmas faladas pelo filho mais novo: esse seu irmão
estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi achado (v. 32; veja v. 24). Aqui,
jaz o desafio da antropologia da salvação de Lucas. Ela permanece um desafio para
todos os que professam ser cristãos.

Casamento d e n tro da trib o , do clã e da fam ília

As ofensas do filh o m ais novo contra o b e t 'av foram repugnantes em


diversos níveis (W right, 1992, p. 762). Ele expôs a propriedade à ruína
econôm ica. Porém, um assunto m ais sério estava em questão: o versículo
13b relata que o filh o “ desperdiçou os seus bens vivendo irresponsavel­
m e n te ". O filh o m ais velho contesta que seu irm ão "esbanjou os teus [do
pai] bens com as p ro stitu ta s" (v. 30).
No sistem a social fa m ilia r, a inte g rid a d e étnica da fam ília estava ba­
seada num cuidadoso sistem a de casam ento endógam o. Isto é, o casa­
m ento era m antido dentro das tribos, dos clãs e das fam ílias (desde que
as proibições quanto ao incesto fossem observadas). A dissipação do filh o
m ais novo representava um a recusa de produzir herdeiros para g a ra n tir o
fu tu ro do b e t 'av. Sua vida dissoluta falhou em preservar a terra e os bens
da fam ília para as gerações futura s. Im prudentes ligações conjugais fora
da trib o am eaçavam a trib o e a sociedade israelita. A disposição do pai
em perdoar suas indiscrições, considerando-se a gravidade das m esmas,
é um notável aspecto da parábola.

A PARTIR DO TEXTO

O caminho da restauração do filho mais novo ao seu bet av é o seu arre­


pendimento. A força motivadora por trás desse arrependimento não é a humil­
dade, mas a humilhação. Pode-se imaginar o choque e o crescente sentimento
175
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de terror que esse filho pode ter sofrido em sua bondosa recepção - vestido,
adornado, calçado e alimentado com o que havia de mais fino na casa de seu
pai.
O filho pródigo humilhado desejava apenas se esconder em algum canto
dos aposentos dos servos e nutrir sua vergonha. Ao contrário, ele encontra-se
honrado na cabeceira da mesa de seu pai numa grande festa. Ali, a sua tolice
está no centro do palco. Era difícil para o filho mais velho aceitar essa celebra­
ção, deve ter sido ainda mais difícil para o filho envergonhado. O maior desafio
é sempre perdoar a si mesmo. A parábola tem mais do que uma grande lição a
ensinar.
O amor do pai irradia do centro da história, iluminando todos ao seu re­
dor - o ressentido filho mais velho e o humilhado filho mais novo. O filho que
estava morto agora está vivo, estava perdido, mas agora foi achado. Podemos
antecipar um final que Jesus não forneceu. Será que a família toda abraçou o
amor radical do pai e celebrou juntamente a redenção do filho ? Será que a alie­
nação foi curada, e a unidade restaurada?
Em geral, o ensino de Jesus não revoga os valores fundamentais da socie­
dade trabalhadora. Isso pode ser visto em diversas passagens que precedem
essa suprema expressão de graça para com os caídos em Lucas 15. Em Lucas
5.31,32, Jesus disse, “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas
sim os doentes. Eu não vim chamar justos, mas pecadores ao arrependimento”.
Os que estão sãos não precisam de médico. Os que são justos estão seguros
dentro do curral (15.7). As moedas encontradas não são causa de preocupação
(15.8-10). E o filho mais velho é dono de tudo o que o pai tem; ele tem a sua
recompensa por sua responsabilidade. Seu pai lhe disse: "Meu filho, você está
sempre comigo, e tudo o que tenho é seu” (v. 31).
E dentro desse contexto que o perdido se torna de tanta importância. A
preocupação com o perdido torna-se possível pelo bem-estar dos que estão se­
guros dentro da comunidade.
A parábola também tem implicações para a vida da comunidade. A
“política da santidade” funcionava como um sistema para proteger a santidade
do templo de Deus e da sociedade da impureza ritual. “O mundo social judaico
e sua sabedoria convencional tornaram-se crescentemente estruturados em
torno das polaridades da santidade como uma separação: limpo e impuro,
pureza e impureza, sagrado e profano, judeu e gentio, justo e pecador” (Borg,
1991, p. 86,87). Deuteronômio e Levítico têm essa questão como seu foco
principal. Como Israel diferencia a si mesmo da impureza de seus vizinhos, e
assim preserva seu relacionamento exclusivo com um Deus santo? A separação
176
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

e a exclusão são as duas principais características do sistema. A separação


ou a santidade dos recintos do templo nasceu lá fora com um sacerdócio
ritualmente puro. O sacerdócio intercedia em favor do povo, que organizava
sua vida nacional em torno do princípio da separação de seus vizinhos pagãos.
Jesus substitui uma política obsoleta de santidade por uma nova política
de compaixão. A comunidade santa deveria ser baseada na abertura aos ritual­
mente e moralmente impuros. As comunidades não deveriam ser fundadas na
exclusão (fechamento), mas na inclusão (abertura). A amplitude da graça no
coração do Evangelho de Lucas desafia a teologia da santidade como separação.
O amor e a inclusão substituem a teologia da santidade baseada na separação
por outra baseada na compaixão.

K. A gestão da riqueza (16.1-31)

1. O administrador astuto (16.1-9)

POR TRÁS DO TEXTO

Lucas frequentemente discute as posses materiais. 15 de 40 seções identifica­


das entre 9.51 —19.44 (quase 40%) tratam sobre o tópico do dinheiro, possessões
materiais e administração (10.1-7,35-37; 12.13-21,22-34,41-48; 14.15-24,25-33;
15.1-10,11-32; 16.1-9,10-13,14,15,19-31; 19.1-10,11-28). Jesus fala sobre forne­
cer assistência aos que foram roubados e aos pobres e critica o estilo de vida dos
ricos. Ele dá conselhos sobre a conduta nos negócios e sobre os relacionamentos da
família. Dessas 15 seções, dez (66%) são exclusivas de Lucas.
Claramente, esse tópico é de particular preocupação para o terceiro Evange­
lho. Mas, por quê? Em um Evangelho no qual a responsabilidade pessoal e a ação
são enfatizadas, não é de surpreender que a administração se torne um critério para
medir a responsabilidade pessoal. Uma premissa básica da teologia de Lucas é que,
desde que a igreja continue a viver no mundo, a conduta em relação ao dinheiro
permanece como uma preocupação importante.
A parábola do administrador astuto ilustra a abordagem de Lucas como con­
tador de histórias e seu irônico senso de humor. Essa é uma “comédia picaresca”
(Scott, 1989, p. 265) - uma comédia baseada em um personagem trapaceiro. To­
dos os que ouviram essa história de Jesus devem ter rido da astuta criatividade cri­
minosa do gerente, pela qual ele se eximiu de uma situação difícil. Ele é uma figura
177
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

cômica, como o bobo da corte que astutamente consegue o melhor de seu público.
0 senhor, que deveria ficar horrorizado com aqueles disparates, elogiou a enge-
nhosidade do administrador. Tais ofensas são, às vezes, perdoadas a um bobo da
corte; aqui, cria-se uma história peculiar na tradição do Evangelho.
Existem importantes semelhanças entre essa história e a história do filho per­
dido (Snodgrass, 2008, p. 94,124):
• Ambas apresentam um homem que esbanja a riqueza dos outros. O verbo
grego que descreve o administrador astuto “desperdiçando” os bens de seu
senhor (16.1, diaskorpizõ) é o mesmo que caracteriza o filho pródigo esban­
jando a riqueza de seu pai (15.13). Essa palavra é usada nesse sentido somente
em Lucas.
• Ambas possuem um dramático confronto com aquele para com quem são
responsáveis, mas com resultados muito diferentes. O filho perdido encon­
tra compaixão; o administrador astuto é duramente chamado a um acerto de
contas.
• Em ambas, nós ouvimos os pensamentos íntimos dos pecadores concernentes
aos seus pecados (15.17; 16.3). Nós ouvimos o desespero do filho perdido e as
maquinações perspicazes e corruptas do administrador astuto.
A colocação dessas histórias consecutivamente realça a justiça do arrependi­
mento do filho perdido em contraste com a conivência do administrador injusto.
Zaqueu, em 19.1-10 é outro contraponto.
Diferentemente do filho pródigo, o administrador astuto reage à sua repre­
ensão exatamente da maneira errada. Quando ele é chamado para prestar contas
de seu pecado, ele deveria confessar, restaurar e fazer uma oferta pelo pecado (“^
5.17-26). Mas, ele faz o oposto. O filho pródigo e Zaqueu agem com o verdadeiro
arrependimento; o bobo da corte trapaceiro realiza um tipo de antiarrependimen-
to ao piorar o seu pecado com mais truques sujos!
Essas duas parábolas oferecem os retratos exclusivos de Lucas do pecado, dos
pecadores e das possibilidades e consequências do pecado. Ao enfatizar essas his­
tórias, Lucas direciona o leitor para o caminho do arrependimento como nenhum
outro escritor do Evangelho. Nesse caso, ele o faz ironicamente e comicamente.
NO TEXTO

1 1-3 0 público para essa parábola são os discípulos (16.1), a descrição usual de
Lucas quanto ao grupo maior dos seguidores de Jesus (e não o círculo mais íntimo;
178
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

6.12-16). Ela representa um ensino íntimo, só para a comunidade, e não uma


proclamação pública. Mesmo assim, na narrativa, os fariseus ouviam “tudo isso”
(16.14) e zombavam de Jesus por Suas palavras sobre a gestão de riquezas.
Existe uma falta de unidade da narrativa nos versículos 1-13 (veja Scott, 1989, p.
256-266). Alguns sentem que as declarações sumárias dos versículos 8 e 9 foram
acrescentadas à história pelo narrador. A natureza confusa delas sugere uma emen­
da entre o versículo 8 e o versículo 9. Mas as lições avulsas das declarações sumárias
devem ser aceitas como parte do desafio da interpretação. A ambiguidade que elas
criam sobre o significado da história faz parte do seu poder de ensino.
Havia um homem rico (v. 1) cujo administrador é acusado de desperdiçar os
seus bens. Os ricos (hoi plousioi) são um tópico favorito de Lucas. Ele usa o ter­
mo 11 vezes comparado com as três vezes de Mateus e duas de Marcos (veja Lc
16.19,21,22,23,25; 21.1). A imagem dos ricos é uniformemente negativa com ex­
ceção do arrependido Zaqueu (em 19.2).
Os personagens de Lucas são dados à introspecção (ex.: 7.39; 18.4). O adminis­
trador fala “consigo mesmo”: Meu senhor está me despedindo. Que farei? Para
cavar não tenho força, e tenho vergonha de mendigar (16.3). Sua evidente pre­
guiça e soberba tornam-no uma figura cômica. Lucas revela a torpeza moral do ad­
ministrador ao dar voz aos seus esforços coniventes para manter sua vida tranquila.
H 4-7 Ao chamar os credores do dono e reduzir a dívida deles de 20 a 50%, o
administrador obtém favores dos negociantes locais: Já sei o que vou fazer para
que, quando perder o meu emprego aqui, as pessoas me recebam em suas casas
(v. 4; para a função da dívida na vida do camponês palestino, veja Oakman, 2008,
p. 33-39).
A solução do mordomo para os seus problemas é uma contabilidade criativa. Mas,
o que essas práticas envolvem? Várias possibilidades têm sido propostas:
A sugestão mais simples é que ele simplesmente descontou a dívida, e, logo, privou
seu senhor daquela quantia. O senhor não poderia voltar aos devedores exigindo
o pagamento completo, já que os registros foram alterados. Tampouco poderia ar­
riscar arruinar sua reputação ao reverter um gesto generoso. Outros sugerem que a
quantidade descontada pelo administrador fosse o juro secretamente e ilegalmente
cobrado naquelas contas. Neste caso, rescindir a usura seria um ato piedoso dele,
e um ato de arrependimento segundo a lei (Derrett, 1970, p. 66). Ainda outros
sugerem que o gerente desonesto descontou o valor de suas próprias comissões,
portanto, isso não custou nada ao seu senhor (Marshall, 1978, p. 615).
Todas as coisas sendo consideradas, o administrador parece mais um vigarista do
que um santo. Se ele está fazendo o bem, por que isso precisa ser feito depressa (v.
179
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

6)? O rótulo “administrador desonesto” (v. 8) parece excluir quaisquer motivos


justos. Ele também foi “acusado” (v. 1,diaballõ) pelo dono. Isso implica algum erro,
e não piedade, na perspectiva do dono.
H 8-9 A primeira declaração sumária encontra-se no versículo 8. Para a nossa
surpresa, o senhor elogiou o administrador desonesto por sua astúcia. O narra­
dor acrescenta a lição: “os filhos deste mundo são mais astutos (...) do que os filhos
da luz”. A palavra “astuto” {phronimõs, prudentemente, astutamente, sabiamente)
ocorre somente aqui no NT. O termo não justifica nem mascara a natureza da
conduta do administrador. Em seu coração, ele era desonesto. A diferença entre
astúcia e desonestidade é real. Os filhos da luz não são chamados para uma vida de
ingenuidade; mas também não são chamados para uma vida de desonestidade. A
astúcia pode ser usada para um bom propósito assim como para o mal.
A linguagem dualística defilhos da luz vs. os outros é incomum para Lucas (veja Jo
12.36; Ef 5.8; 1 Ts 5.5). Mas, o conceito está em harmonia com seus pensamentos
sobre os pecadores e os justos.
A segunda declaração sumária está em Lucas 16.9. Eu lhes digo: usem a riqueza
deste mundo ímpio para ganhar amigos, de forma que, quando ela acabar, es­
tes os recebam nas moradas eternas. Essa é uma das passagens mais enigmáticas
do NT (veja Snodgrass, 2008, p. 401,402,406). Talvez isso seja uma recomendação
à prudência ao tratar com a riqueza (Fitzmyer, 1985, p. 1106). Outras soluções
vão desde uma afirmação de um absurdo cômico (Snodgrass, 2008, p. 409) ao sar­
casmo ou ironia. Será que Lucas desconstrói a estrutura metafórica da parábola
(Scott, 1989, p. 265), intencionalmente deixando os leitores lutando com o seu
significado ?
A solução mais satisfatória é a sugestão de que os filhos da luz (v. 8) devam exer­
cer vigilância, fidelidade e prudência nas questões da riqueza material. Eles devem
usar as comodidades do mundo, até o dinheiro, para realizar o bem que trará uma
recompensa eterna. Se a astúcia puder ser usada para um bom efeito, também o
poderá as “riquezas injustas” (v. 11 ARC).
Os leitores são deixados confusos quanto aos valores expressos na parábola. Mas,
isso leva-os à “crise” da reflexão sobre a função do dinheiro na vida e na fé (Snod­
grass, 2008, p. 416). Lucas continua a desenvolver esse tema no restante do capí­
tulo.
Aqueles que lidam adequadamente com as riquezas desse mundo serão bem rece­
bidos nas moradas eternas. Deus ou Seus anjos o receberão no Reino da salvação.
Talvez o ponto de vista de Lucas fosse que os pobres agiriam como representantes
de Deus nisso (Snodgrass, 2008, p. 415).

180
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

2. A gestão da riqueza secular (16.10-13)

NO TEXTO
H 10-12 Esse novamente é um material de Lucas, e o tema continua sendo a rique­
za terrena. O marco linguístico que liga essa expressão à história do administrador
desonesto (v. 9) é a frase mamõna tês adikias (v. 9) /adikõ mamona (v. 11), riquezas
deste mundo. A expressão “riquezas injustas” da ARC gera maior conotação nega­
tiva na frase do que se justifica. Lucas não parece enxergar a riqueza como má em
si mesma, mas apenas se obtida por meios desonestos ou usada para fins egoístas
ou propósitos maléficos. Mamom, ou riqueza, é “do mundo” ou “injusta” apenas
no sentido mais amplo, quando é usada para o enriquecimento pessoal contra os
valores do Reino.
0 versículo 10 prossegue com o tema da responsabilidade no uso do dinheiro:
Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito, e quem é desonesto no pou­
co, também é desonesto no muito. Esse aforismo usa dos artifícios de ensino
frequentemente empregado por Jesus, os “tipos semelhantes” (veja 3.8,9; 6.43-45;
8.15) e o argumento a minori ad maius (do menor para o maior) (veja 11.11-13;
12.4-7,22-34; 15.1-10).
Na analogia dos “tipos semelhantes”, um indivíduo que é honesto ou desonesto
nas pequenas questões, como uma árvore que sempre dá frutos segundo a sua es­
pécie, mostrará honestidade ou desonestidade nas questões maiores. E na lógica
argumentativa, se a honestidade é importante nas questões pequenas, ela é ainda
mais importante nas questões maiores. Adicionalmente, se o seguidor for honesto
nas questões de interesse secular, a ele serão confiadas as verdadeiras riquezas do
Reino (16.11; veja 12.33).
Esse princípio é ampliado em 16.12. Se os seguidores forem fiéis nas riquezas dos
outros, eles serão considerados dignos por Deus de receberem os seus próprios re­
cursos. Um argumento mais simples e atraente para um estilo de vida de honesti­
dade não dá para ser feito.
1 13 “Ninguém pode servir a dois senhores. Ou você vai odiar a um, e amar o ou­
tro, ou você vai ser dedicado a um, e desprezará o outro. Vocês não podem servir a
Deus e ao dinheiro” (NIV11, tradução livre). Essa afirmação (também em Mt 6.24)
resume a preocupação de Lucas quanto à riqueza.
A palavra traduzida como dinheiro é novamente mamõna (“^ Lucas 16.9 e 11).
Acabamos de ter dois exemplos de pessoas que colocaram o valor maior nos bens
materiais. O filho pródigo abriu mão de sua casa para obter os bens do pai, e o

181
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

administrador desonesto colocou a segurança financeira acima da lealdade para


com o seu patrão. Essa afirmação traz uma resolução para ambas as histórias.
A PARTIR DO TEXTO

O Antigo Testamento enfatiza a integridade e a lealdade em servir a Deus. O


exemplo principal é Davi, que teve um coração segundo o próprio coração de Deus
(1 Sm 13.14), e que andou diante de Deus “com integridade de coração e com
retidão” (1 Rs 9.4). Integridade significa uma aderência constante a um grupo de
valores com honestidade, transparência e franqueza. Retidão sugere um compro­
misso profundo de justiça. Na vida de Davi, esses traços uniam-se e foram expressos
em sua lealdade ao Senhor. Em contraste, quando Salomão caiu, disseram: “o seu
coração já não era totalmente dedicado ao Senhor, o seu Deus, como fora o coração
do seu pai Davi” (1 Rs 11.4).
Integridade e lealdade a Deus são questões que estão no coração do uso da
riqueza na vida dos crentes. A lealdade é primariamente uma questão de relacio­
namento. Quando a lealdade é dedicada aos bens materiais, o relacionamento fiel
a Deus é subvertido. Até comparar o serviço ao dinheiro como serviço a Deus en­
fatiza o poder ofuscante do materialismo. O seu poder é tão grande que os bens
materiais conseguem competir com os afetos da pessoa, e até com respeito à gran­
deza de Deus, assim como aconteceu com o filho pródigo e com o administrador
desonesto.
Você não pode servir a “ambos Deus e dinheiro” (Lc 16.13 NIV11, tradução
livre, ênfase adicionada). Isso é um princípio do primeiro mandamento, “Não terás
outros deuses além de mim” (Ex 20.3). A integridade e a lealdade são os melhores
guias no caminho da santidade ao lidar com o dinheiro.

3. Os fariseus, amantes do dinheiro (16.14,15)

NO TEXTO

■ 14-15 0 uso que Lucas faz de fariseus como antítipos de Jesus está bastante
em evidência nesta passagem. Tendo acabado de descrever os perigos do materia­
lismo em duas histórias compridas e diversos aforismos, o narrador agora se volta
diretamente para os fariseus e acusa-os de serem “amantes do dinheiro” {philar-
gyroi\ v. 14 NRSV; suas únicas outras ocorrências no NT estão em 2 Timóteo 3.2).
Pior ainda, os fariseus zombavam de Jesus por causa de Sua visão sobre a
integridade e a lealdade a Deus com respeito ao dinheiro. A resposta de Jesus é uma
182
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

fulminante condenação: “Vocês são os que se justificam a si mesmos aos olhos


dos homens, mas Deus conhece o coração de vocês. Aquilo que tem muito
valor entre os homens é detestável aos olhos de Deus” (v. 15). Três temas do AT
ficam transparentes nessa condenação:
Primeiro, é o “escárnio”, que é característico do ímpio: “Todo homem arrogante
é abominação ao Senhor; certamente não ficará impune” (Pv 16.5 ARIB; veja Pv
15.9).
O segundo tema é a linguagem de abominação em Lucas 16.15b ARC (no grego:
bdelygma\ no hebraico: toebab) - detestável na NVI. Uma abominação é algo
que, por sua própria existência, provoca a ira de Deus.
O terceiro tema é que Deus vê o coração. Logo, as aparências externas não o enga­
nam. O coração de Davi, de integridade e lealdade, tornava-o justo diante de Deus,
que vê o coração de todos os homens. Os fariseus pareciam justos por fora, mas por
dentro eram desleais e desonestos.
Esses três temas reúnem-se para condenar os fariseus como inimigos de Deus. A
caracterização dos fariseus não é um retrato histórico do farisaísmo ou judaísmo
per si naquela época. Aqui, a caricatura é usada para enfatizar a importância da
integridade e da lealdade diante de Deus que tudo vê.

4. A Lei e os Profetas são até João (16.16-18)

NO TEXTO
H 16-17 O forçoso criticismo dos fariseus continua. Pela primeira vez, Jesus
refere-se explidtamente ao advento do Reino, um conceito já insinuado em nume­
rosas passagens (10.9,11; 11.20).
As boas novas do Reino de Deus apontam para uma nova dispensação e evoca o
uso da frase em 4.43 e 8.1 (16.16; compare com At 8.12). A frase a Lei e os Pro­
fetas é usada frequentemente por Mateus, mas por Lucas foi somente aqui. No
tratamento de Lucas, o período da Lei e dos Profetas está no passado em contraste
com a era presente do Reino de Deus.
A Lei e os Profetas profetizaram até João. Desse tempo em diante estão sendo
pregadas as boas novas do Reino de Deus (v. 16). João Batista previu essa mu­
dança de tempos em seu próprio ministério (3.5,16,17) e agora Jesus proclama que
o mesmo está presente. Isso prepara o caminho para o material apocalíptico do
capítulo 17. Mas, no todo, Lucas concebe o Reino como uma grande realidade que
está próxima ou já está presente.
183
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A frase todos tentam forçar sua entrada nele é difícil. Fitzmyer comenta que a
frase literalmente significa, “‘todos são forçados a ele’, i.e. com um convite exigente,
urgente (do próprio pregador do reino)” (1985, p. 1117). O verbo grego para for­
çar pode ser visto como mediano ou passivo na voz. Se sua força for passiva, isso
pode significar, “todos são pressionados a entrar nele” (Fitzmyer, 1985, p. 1117) ou
“todos são apressados a entrar nele” (Green, 1997, p. 603; semelhantemente, John­
son, 1991, p. 249; compare a tradução marginal na NRSV: “todos são fortemente
encorajados a entrar nele”).
Isso não tem sido adotado pela maioria dos tradutores, devido, em parte, ao parale­
lo em Mateus 11.12. Ali, o elemento de força e de violência parece ambíguo, e até
sobrenatural: “Desde os dias de João Batista até agora, o Reino dos céus é tomado
à força, e os que usam de força se apoderam dele”.
Mas o sentido passivo parece ser a escolha mais convincente do significado em
Lucas. A urgência da nova era emergente de João e Jesus empresta uma força parti­
cular para o convite de entrada no Reino (compare com 14.23).
Que todos {pas) tentem entrar ressoa com o universalismo de Lucas e a ampla
oferta de salvação a todos, especialmente aos marginalizados. O Reino está ampla­
mente aberto em Lucas. Relembre a imagem das pessoas tumultuando em volta das
portas do banquete messiânico (-> 14.22-30).
No entanto, essa mudança nos tempos não sinaliza que a Lei não seja mais válida.
Reminiscente de uma passagem bem conhecida em Mateus 5.17-20, Lucas indica
que será mais fácil para o mundo passar do que cair da Lei o menor traço (v. 17).
Essa afirmação da eternidade da Lei não se estendeu à sua interpretação. Nisso,
Jesus mostrou uma grande independência, às vezes mais tolerante do que os Seus
adversários (como em 11.37-41), e outras vezes mais rígido.
I 18 Jesus foi definitivamente mais rígido em relação ao divórcio. Em Marcos
10.11,12, o divórcio tanto do homem pela mulher como da mulher pelo homem é
proibido e igualado ao adultério.
Em Mateus 5.31,32; 19.3-9, o divórcio também é igualado ao adultério, mas ne­
nhuma menção é feita do divórcio do homem por parte da mulher.
Nessa questão, Lucas oferece uma interpretação que logo presume a autoridade
vigente da Lei (Dt 24.1-4), torna os regulamentos mosaicos mais rigorosos do que
aparecem em Deuteronômio, e desafia o relaxamento da Lei entre seus contempo­
râneos (Green, 1997, p. 603,604). O AT, em nenhum lugar, iguala o divórcio ao
adultério (Johnson, 1991, p. 251).
184
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

5. O rico e Lázaro (16.19-31)

POR TRÁS DO TEXTO

A história do rico e Lázaro serve de culminação para o material sobre a ques­


tão das “riquezas deste mundo” (15.11 —16.19). Em uma sociedade moderna
como esta, o dinheiro pode ser adquirido por pessoas inteligentes que têm a opor­
tunidade, que trabalham arduamente e que estão dispostas a fazer os sacrifícios
necessários. Os indivíduos mais ricos do mundo hoje são geralmente pessoas que
começaram com pouca coisa ou do nada. Mas, no antigo Oriente Próximo não era
assim.
Em uma sociedade do sistema de classe, como o da Palestina na época de Jesus,
a elite dominante era uma pequena porcentagem da população. Os que recebiam a
proteção deles era uma pequena classe de indivíduos que desfrutavam do privilégio
e do poder por causa de seu nascimento ou por conexão política.
Os assessores, aqueles indivíduos que serviam esse elemento de elite da so­
ciedade, compartilhavam da prosperidade residual da classe dominante e gozavam
de certo respeito. A esses, poderiam ser incluídos os cobradores de impostos, os
fornecedores do governo e as privilegiadas classes sacerdotais (ex., Caifás, 22.66).
Entre as classes operárias, os mercadores poderiam tornar-se ricos. Mas os escalões
mais baixos da sociedade operária, como os artesãos e comerciários, levavam a vida
em um nível de subsistência. Esses trabalhadores eram encontrados nas aldeias e
nas cidades.
O maior segmento da população era a classe camponesa. Esta, geralmente,
não era tão afortunada. A população camponesa consistia, em sua maioria, de agri­
cultores de subsistência e operários, para quem a existência cotidiana era uma luta
contra a necessidade e a fome.
Além dessas classes, havia aqueles que eram considerados marginalizados. Eles
eram os impuros, os aleijados e cegos, os cronicamente enfermos e os destituídos.
Lázaro era das mais desesperadamente empobrecidas de todas essas classes. Para
aqueles que faziam parte do público de Jesus, essa história de riqueza desperdiçada
e de necessidade desesperadora teria sido uma dolorosa reflexão sobre a realidade
da vida cotidiana deles.
A história demonstra as lições sobre a riqueza encontradas no decorrer dos
capítulos 15 e 16 (especificamente 16.10-15). Ser encarregado de alguma riqueza
tinha grandes responsabilidades sociais na teologia do AT. A história do homem
rico é uma caricatura de alguém cuja riqueza foi dedicada ao prazer egoísta em vez
de aliviar a sociedade sofredora.
185
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO

H 19-21 Essa história/parábola sobre o rico e Lázaro é um estudo sobre lados


extremos do espectro econômico da sociedade. O estilo de vida de ambos é descri­
to aqui.
As vestimentas luxuosas do rico são de púrpura e de linho fino (v. 19; veja Pv
31.22; a vestimenta dos reis; Fitzmyer, 1983, p. 1130). Ele vivia no luxo todos os
dias. A frase participial eupharainomenos kath*hêmeron lamprõs significa estando
feliz, desfrutando de si mesmo, alegrando-se, divertindo-se, e fazendo isso luxu-
riosamente e diariamente (veja 12.19; 15.23,24,29,32). A ARA traduz isso como
“todos os dias, se regalava esplendidamente”.
Nos dias de Jesus, o custo de uma libra (quase meio quilo) de carne todos os dias
do ano era equivalente ao emprego de 30 trabalhadores durante um ano inteiro
(Hammel citado em Green, 1997, p. 607). Logo, a disparidade entre o estilo de
vida de Lázaro e do homem rico não poderia ser maior. Os excessos do rico tinham
um custo para os que estavam do lado inferior do espectro econômico. A concen­
tração da riqueza nas mãos de alguns, como hoje, significava a miséria de muitos.
Em contraste, Lázaro estava coberto de chagas, sentado ao portão (v. 20) da man­
são do rico. O portão deveria ser um lugar de justiça, mas aqui, ele é um lugar de
injustiça (veja Pv 31.23; Am 5.12-15; Green, 1997, p. 609). Lázaro estava entre os
cães, competindo com eles pelas sobras da mesa do rico. Os cães vinham lamber
as suas feridas (Lc 16.21; veja 1 Rs 14.11; 16.4; 21.24; SI 22.16; veja Beale e Car-
son, 2007, p. 345). Os cães eram considerados imundos no Oriente Médio e não
eram usados como animais domésticos. Eles representavam os elementos mais bai­
xos dos animais da cidade, um nível acima do qual Lázaro não conseguia erguer-se.
■ 22-24 Na morte, a situação do homem rico e de Lázaro é revertida. Os co­
mentaristas apontam para um conto folclórico egípcio como o precursor dessa
história (Jeremias, 1972, p. 183; Marshall, 1978, p. 633). Um pobre erudito e um
rico publicano cumprem os papéis contrastantes. Em um sonho, um amigo vê-los
com suas sortes revertidas no paraíso. Em Lucas, a história afirma-se como um
cumprimento da narrativa da canção de Maria em 1.53, “Encheu de coisas boas
os famintos, mas despediu de mãos vazias os ricos”. Ela também ecoa 6.21,24,25:
“Bem-aventurados vocês, que agora têm fome, pois serão satisfeitos. (...) Mas ai de
vocês, os ricos, pois já receberam sua consolação. Ai de vocês, que agora têm fartu­
ra, porque passarão fome”.
A reversão das sortes na vida no além é imaginada como espacial. Lázaro é “levado
pelos anjos” para o lado de Abraão (v. 22 ARC; veja Gn 5.24; 2 Rs 2.1; Beale e
186
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Carson, 2007, p. 345). O rico é enviado ao “Hades” (Lc 16.23; veja também 10.15,
“descerá até o Hades”). De lá, o homem rico olhou para cima e viu Abraão de
longe.
Ironicamente, os portões do Hades agora aprisionam o homem rico, assim como
Lázaro estava aprisionado pela injustiça ao portão do homem rico (veja Mt 16.18).
O destino dos dois homens são exatamente revertidos: um desfruta do conforto
da companhia de Abraão; o outro é atormentado, “sofrendo muito neste fogo” (Lc
16.24) [uma alusão a Is 66.24?]; compare com 1 En.).
Na teologia popular dos dias de Jesus, a prosperidade sinalizava a bênção de Deus.
A ideia certamente tem um sentimento deuteronomista em si. Não podemos ter
certeza se os antigos alguma vez fizerem essa conexão.
Como “amantes do dinheiro”, os fariseus zombaram de Jesus quando Ele disse que
a riqueza e o serviço a Deus eram incompatíveis (Lc 16.15). A teologia deles presu­
mia que o homem rico fosse divinamente abençoado. Mas ele, de fato, seria amal­
diçoado na vida porvir: “Aquilo que tem muito valor entre os homens é detestável
aos olhos de Deus”. Em contraste, Lázaro, que anteriormente era um pobre miserá­
vel, herda uma vida eternamente abençoada.

Sheol, Hades, Geena e inferno

Hades era o deus grego do subm undo. Em sua form a m ais antiga no
pensam ento grego, Hades ta m b é m era um lug ar de m eia-luz, onde todos
os m ortos habitava m in d iscrim inad am e nte . Não havia m em ória do passa­
do deles. Eles e xp e rim e n ta va m uma existência que expirava le n tam e nte
em um lugar de triste za e fa lta de esperança, mas não de to rm e n to .
Essa é bem a ideia do Sheol no AT (ex.: SI 6.5; 16.10 etc.). A in flu ê n ­
cia das ideias zoroastrianas de ressurreição dos m ortos d u ran te o período
pós-exílico, provave lm en te, fez com que o e n te n d im e n to de Hades fosse
desenvolvido ao que co m um e nte cham am os de inferno (ex.: Sir. 21.9,10).
No NT, “ inferno" tra d u z a tra n slite ra çã o grega geennan, Geena (ex.:
Lc 12.5). O destino pós-m orte dos hom ens é diferenciado. O inferno é um
lugar de extrem o so frim en to para o ím pio; o paraíso é um lug ar de recom ­
pensa para o justo. O lu ta r de so frim e n to deverá ser estabelecido após
a ressurreição dos m ortos e o ju lg a m e n to de todos por Deus (Ap 1.18;
20.13-15).
Na história do rico e Lázaro, encontram os ecos dos fra g m e n to s não
canônicos de Jannes e Jambres (C harlesw orth, 1985, p. 427-436; veja 2
Tm 3.8). Essas duas fig u ra s eram os m ágicos que se opuseram a Moisés e
Arão. A história conta com o Jannes volto u do subm undo para e xo rta r o seu

187
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

irm ão para o bem. "Agora então, irm ão Jambres, tenha o cuidado de faze r
o bem em sua vida para com seus filhos e am igos; pois, no subm undo,
nenhum bem existe, som ente triste za e trevas. Depois que você m orrer e
v ie r para o subm undo, entre os m ortos, sua m orada será de dois côvados
de largura e dois côvados de co m p rim e n to " (C harlesw orth, 1985, p. 441).
S em elhantem ente, o hom em rico im plora para que Lázaro envie alguém
dos m ortos para avisar os seus parentes dos perigos do subm undo.

O rico olhou para cima e viu Abraão com Lázaro reclinado em consolação ao seu
lado (v. 23). O rico faz dois pedidos, ambos negados por Abraão. Ironicamente,
quase comicamente, ele pede para que Lázaro se tornasse o seu servo no além:
manda que Lázaro molhe a ponta do dedo na água e refresque a minha língua,
porque estou sofrendo muito neste fogo (v. 24; veja Is 5.13; 50.2; e esp. 65.13:
“Os meus servos comerão, e vocês passarão fome; os meus servos beberão, e vocês
passarão sede; os meus servos se regozijarão, e vocês passarão vergonha”).
Nem o fato de ser enviado para o Hades faz o rico humilhar-se, tampouco o ensina
a demonstrar as atitudes e ações que Lucas encontra nos pecadores arrependidos.
O fogo como tema de julgamento já foi visto em Lucas. Mas aqui, ele é pessoal,
portanto, muito mais íntimo (ex.: Lc 3.9,17; 9.54).
De acordo com Lucas, o rico sofrerá fome no mundo vindouro, enquanto o pobre
será confortado (veja 1.53; 6.21,24,25). O rico não é retratado como um pecador
que geralmente viola os Dez Mandamentos. Ele não é retratado como particular­
mente ímpio. Ao contrário, ele é culpado de falhar em sua obrigação de ajudar o
pobre. Em 16.30, aprendemos que finalmente os ricos são enviados ao Hades por
sua falta de arrependimento, presumivelmente por aquela irresponsabilidade co­
mum que acarretou o sofrimento dos pobres.
Aqui, há um eco da liderança fracassada dos pastores de Israel em Ezequiel 34, um
tema que tem caracterizado o criticismo de Jesus contra os fariseus (-> Lc 5.29-32,
A partir do texto). “Filho do homem, profetize contra os pastores de Israel; profeti­
ze e diga-lhes: Assim diz o Soberano, o Senhor: Ai dos pastores de Israel que só cui­
dam de si mesmos! Acaso os pastores não deveriam cuidar do rebanho?” (Ez 34.2).
Embora essa característica possa não ser suficiente para garantir que o homem rico
represente os fariseus para Lucas, a falha de assumir as responsabilidades da lide­
rança tanto dos fariseus como do homem rico é a mesma.
H 2 5 -3 1 Abraão é gentil em sua resposta ao sofrido homem rico: Filho, lembre -
-se de que durante a sua vida você recebeu coisas boas, enquanto que Lázaro
188
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

recebeu coisas más. Agora, porém, ele está sendo consolado aqui e você está
em sofrimento (v. 25). O homem pobre sofreu em sua vida terrena, e assim en­
contra consolo no outro mundo. Essa é a visão de Lucas sobre um universo justo.
A indulgência egoísta leva ao castigo no mundo vindouro, e o sofrimento leva ao
consolo.
Esse é o cerne do entendimento de Lucas sobre a natureza universal da salvação.
Isso engloba a ideia de responsabilidade pessoal, mas também se estende às injus­
tiças de uma sociedade pecadora. O tratamento para com os nossos semelhantes,
especialmente para com os pobres, é o tema principal de Deuteronômio (Beale e
Carson [2007, p. 345] citam Deuteronômio 14.28,29; 15.1-3,7-12; 22.1,2; 23.19;
24.7-15,19-21; 25.13,14; etc.; veja Evans e Sanders, 1993, p. 121-139). Esses desfa­
vorecidos serão redimidos na teologia da salvação de Lucas também (veja Por trás
do texto, 14.1-24). Aqueles que sofrem sob a opressão da injustiça serão consola­
dos. Novamente, sua teologia de salvação é bem ampla.
A arquitetura espacial da santidade é representada pelo símbolo de um grande
abismo (Lc 16.26) colocado entre os dois polos do submundo. As habitações dos
atormentados e dos consolados estão à vista umas das outras, mas um divisor in­
transponível separa-os. Um está em cima, e o outro está embaixo. Uma habitação é
santa; e a outra é impura.
Isso espelha a santidade do templo no meio da impureza da sociedade. Como um
símbolo de realidade espiritual, as paredes do templo separam o santo do profano.
Não pode haver trânsito entre essas duas esferas sem garantias de que o impuro não
contaminará os recintos do templo. Os sacerdotes mediam a interação no reino
terreno.
Segundo, o próximo pedido do homem rico a Abraão é para uma intervenção es­
pecial que alertaria a família dele sobre os perigos da autossatisfação. O pedido, é
claro, já é uma autossatisfação! Por que a família dele e não os outros? O homem
rico ainda falhava em enxergar aquilo que lhe havia levado ao seu presente desespe­
ro, e o seu orgulho ainda impedia o arrependimento.
Já vimos isso antes nos fariseus (16.14), no filho mais velho (15.25-30) e à mesa
com os fariseus (14.11; 7.39). Novamente, o rico espera que Lázaro sirva aos seus
interesses: envie-o para que os avise a fim de que eles não venham também para
este lugar de tormento (16.28).
Jesus havia dito anteriormente em Lucas, “Que mérito vocês terão, se amarem aos
que os amam? Até os pecadores’ amam aos que os amam” (6.32; veja v. 33,34; com­
pare com 14.12-14). O pedido do homem rico não tem mérito moral na economia
do Reino de Jesus. Sua preocupação era somente com aqueles que o amavam.
A resposta de Abraão mostra a suficiência do AT: ‘Eles têm Moisés e os Profetas;
189
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

que os ouçam’ (v. 29; veja também 18.18-24). O ponto é claro: a Escritura clara­
mente estipula a conduta justa para com o pobre. Aqueles que falham em cum­
prir essas responsabilidades não têm desculpas. Para o Jesus de Lucas, esses são os
fundamentos do judaísmo, e eles constituem a fé salvadora dentro desse contexto
(compare com 16.17; Mt 5.17-20).
O Evangelho de Lucas baseia-se no fundamento do AT. E não o abandona. Supor
que a salvação cristã opera para a exclusão desse fundamento é uma compreensão
incompleta da fé bíblica. Embora o processo de revelação tenha seguido adiante
com a cruz, a cruz não anulou os princípios fundamentais da revelação de Deus por
Moisés e os profetas. Isto é, Deus revelou-se pela história e declara Sua vontade à
humanidade em termos da lei de Moisés e das mensagens dos profetas.
Ainda permanece algo distintamente lucano nessa história. Lázaro não é um aluno
de Moisés e dos profetas; contudo, ele é salvo. São os ricos que têm uma particular
responsabilidade de “ouvir” e responder como líderes de Israel. O homem rico es­
taria na companhia de Abraão também se ele tivesse seguido o conselho que Jesus
dá ao homem em Lucas 18.22: “Venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos
pobres, e você terá um tesouro nos céus. Depois venha e siga-me”.
Na teologia de Lucas, as pessoas sempre vêm em primeiro lugar, e o amor pelos
outros é sempre o caminho da santidade e da salvação. Esse é o fundamento da
salvação e ainda que ressuscite alguém dentre os mortos (v. 31), essa verdade
não será mudada. E por isso que não adianta enviar aparições aos cinco irmãos que
ainda não se arrependeram. Curiosamente, o Evangelho de João demonstra que
o retorno de Lázaro de entre os mortos, além de não convencer os impenitentes,
serviria somente para aumentar a animosidade contra Jesus (Jo 11; 12.9,10).

L. Ensinamentos diversos aos discípulos


(17.1—18.17)

1. Ocasiões para tropeçar (17.1-4)

POR TRÁS DO TEXTO

Após uma preponderância de material lucano nos capítulos 15 e 16, a narra­


tiva no capítulo 17 retorna a uma composição semelhante aos capítulos 13 e 14.
190
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Ambos usam a combinação do material da tradição tripla, o material compartilha­


do por Lucas e Mateus e o material lucano especial:
• 17.1-3a é da tradição tripla (Mt 18.6,7 || Mc 9.42).
• 17.3b,4 é material compartilhado entre Lucas e Mateus (Mt 18.15).
• 17.5,6 é da tradição tripla (Mt 17.19-21 || Mc 9.28,29).
• As histórias do servo escravo, dos dez leprosos e da vinda do Reino em
17.7-20 é estritamente material lucano.
• 17.21 tem paralelos com Mateus 24.23 e Marcos 13.21.
• 17.22-37 inclui o material da tripla tradição do pequeno apocalipse de
Marcos em Marcos 13.14-16 e 19-23 (|| Mt 24.23-41, rearranjado).

Isso leva a uma sensação de descontinuidade na narrativa, já que a integração é


realizada menos habilmente do que previamente na narrativa.
A estrutura da narrativa para esse capítulo continua sendo a viagem para Jeru­
salém: “A caminho de Jerusalém, Jesus passou pela divisa entre Samaria e Galiléia”
(Lc 17.11). Os marcos da narrativa são poucos, e a pessoa quase se esquece de que
esta é uma narrativa de viagem (veja Fitzmyer, 1985, p. 824-826). Jesus entra em
Samaria em 9.51; e somente em 13.22 e 33 mencionam a viagem.
Logo, o tema é um pouco mais do que uma estrutura geral que Lucas usa para
organizar o imenso disparate do material de narrativa (“> 9.51-56, Por trás do tex­
to). Lucas integra esses temas maiores de arrependimento, conflito com os fariseus
e salvação para os marginalizados. Os ensinamentos do capítulo não são “comple­
tamente sem relação com o capítulo anterior ou com a parábola” como afirmam
alguns (também Fitzmyer, 1985, p. 1136). Ao contrário, eles fazem parte de um
conflito corrente com os adversários de Jesus (Green, 1997, p. 611).
NO TEXTO

I 1 4 0 capítulo inicia com uma referência a coisas que fazem com que as pes­
soas caiam em pecado (v. 1 NTLH; ta skandala; também em Mt 13.41; 16.23;
18.7; e em Paulo: Rm 9.33; 11.9; 14.13; 16.17; 1 Co 1.23; G1 5.11; compare com
proskomma em Is 8.14 e Rm 14.20). As pedras de tropeço certamente virão, disse
Jesus, mostrando Sua compaixão pelos obstáculos que os fiéis encontram no cami­
nho da vida santa.
Porém, palavras mais fortes seguem: mas ai da pessoa por meio de quem elas
acontecem (v. 1). A adversativa mas é importante. São aqueles por intermédio de
191
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

quem as oportunidades de pecar surgem que experimentarão o ai. A maioria dos


eruditos entende que a advertência sobre levar um desses pequeninos a pecar (v.
2) aplica-se à comunhão dos discípulos cristãos (ex.: Jonhson, 1991, p. 261; Cra-
ddock, 1990, p. 198,199; Evans, 1990, p. 620; Fitzmyer, 1985, p. 1137). Nos para­
lelos sinóticos, essa afirmação também é direcionada aos “discípulos” (Mt 18.6; Mc
9.42). Mas, se a advertência de Lucas 17.1-3 for para os de dentro da comunidade
cristã, ela é uma advertência vergonhosa sobre os discípulos cristãos levando outros
a pecar - algo para o qual não temos nenhum precedente na narrativa.
No âmbito geral, parece mais consistente com a narrativa mais ampla entender
essas afirmações no contexto do conflito de Jesus com os fariseus. Os capítulos
antecedentes enfatizaram a ausência de compaixão nos fariseus pelos perdidos, o
debate sobre a identidade de Jesus e as repetidas advertências aos fariseus sobre a
arrogância e o amor ao dinheiro. Os comentários de Jesus sobre o tropeço podem
ter em vista os fariseus (como Green permite, 1997, p. 611). Note, por exemplo,
que Lucas diz ai da pessoa por meio de quem a tentação do pecado vier (v. 1).
A exclamação ouai (ai) nunca é usada para os que estão no aprisco em Lucas, so­
mente aos que estão de fora. Ela é usada para os ricos, para os bem-alimentados e
para os falsos profetas (6.24-26). Ela é usada para Corazim (10.13) e para os fari­
seus e advogados seis vezes (11.42-52). Ela também é usada uma vez para o traidor
de Jesus (22.22). Ela, geralmente, não é usada em referência aos crentes (exceto
Judas, Lc 22.22). Logo, lê-la em referência a eles parece distintamente fora de lugar.
Isso é especialmente verdade dada a visão inclusiva de Lucas quanto à comunidade.
Ao contrário, são os fariseus que exibem os pecados de hipocrisia e de orgulho,
levando-os a opor-se ao ungido do Senhor.
Para tais pessoas, o castigo parece ser adequado à ofensa: “Seria melhor para elas
serem lançadas ao mar com uma pedra de moinho amarrada ao redor de seu pesco­
ço” (Lc 17.2 NIV11, tradução livre). Jesus dirige Sua advertência com referência aos
discípulos e aos fariseus: Tomem cuidado (v. 3; veja 12.1; “Tenham cuidado com
o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”). A força da declaração aos discípulos é
que eles “não devem ser como os fariseus” (Green, 1997, p. 611).
Essa linha de interpretação produz resultados interessantes. Se o seu irmão pecar,
repreenda-o e, se ele se arrepender, perdoe-lhe (v. 3). Em vez de apenas uma exor­
tação ao perdão dentro da comunidade cristã, essa afirmação convida a uma atitude
perdoadora para com osfariseus. Seu irmão aqui é literalmente irmão {adelphos
ou adelphoí). Em Lucas, essa palavra geralmente se refere aos parentes de sangue.
De 18 ocorrências da palavra irmão em Lucas, 14 referem-se a relações familiares.
Somente em 6.41,42; 8.21; 17.3 e 22.32, o termo refere-se a uma comunidade mais
192
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

ampla. É muita pressão enxergar o uso de “irmão” em 17.3 como referência a uma
comunidade fechada de seguidores de Jesus, o que exclui outros judeus.
A comunidade de Jesus não era um grupo fechado. Ela não excluía os judeus em ge­
ral, nem os fariseus em particular. O termo irmão simplesmente significa “compa­
nheiros judeus”. Em 8.21, Jesus definiu o termo como aqueles que “ouvem a palavra
de Deus e a executam” (ARC). O termo irmão aqui tem uma aplicação inclusiva,
salvífica. Não é uma categoria destinada a excluir os não seguidores de Jesus, muito
menos uma declaração de laços familiares. Tampouco, como a nossa tradução do
texto tenta mostrar, deveria ser entendida como um comentário sobre a exclusão
baseado no sexo.
A exortação de perdoar sete vezes (17.4) encoraja os discípulos a perdoar Seus
correligionários desobedientes, seus irmãos, os fariseus. Não são todos eles irmãos e
irmãs no judaísmo ? Nessa leitura, a declaração poderia facilmente ter levado a uma
exclamação atônita dos discípulos ao Senhor, “Aumenta a nossa fé!” (v. 5).
Os discípulos de Jesus foram instruídos a estender o perdão para sete vezes no dia
(v. 4) àqueles cujo orgulho mantinha-os longe de Deus, inclusive os apontados por
Deus para liderar Israel (compare com Mt 23.2). O número não era destinado a
encorajar um registro meticuloso. Como um número completamente inclusivo, o
objetivo era perdoar qualquer erro.
A declaração também ecoa uma afirmação anterior de Jesus na qual Ele disse: “Que
mérito vocês terão, se amarem aos que os amam? Até os pecadores’ amam aos que
os amam” (Lc 6.32). Nós recebemos “mérito” apenas se amarmos e perdoarmos os
nossos inimigos.
Alternativamente, a exortação poderia ser entendida como uma continuação da
advertência aos fariseus. Ou seja, os fariseus devem perdoar os seus companheiros
na fé (irmãos), os seguidores de Jesus, aqueles para quem eles receberam a res­
ponsabilidade, da parte de Deus, de ser pastores. Numerosas histórias em Lucas
retratam os fariseus como desinclinados a perdoar os pecadores. Uma exortação
aos fariseus para perdoarem os pecadores concordaria com o tema global em Lucas
sobre os pastores chamados a cumprir sua responsabilidade de cuidar de seus reba­
nhos (-> 5.29-32, A partir do texto; e 15.3-7).
Nessa leitura, a ética do arrependimento e perdão engloba todos os personagens da
história - os fariseus, os discípulos e Jesus. Todos são chamados aos atos de arre­
pendimento radical e de perdão mútuo. De todas as formas possíveis de se enten­
der essa passagem, essa parece capturar melhor o tema do perdão para os pecadores
em Lucas. Em, talvez, a maior ironia da história do Evangelho até então, Jesus dá
aos fariseus a oportunidade de arrependimento e perdão sete vezes ao dia.
193
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

2. A fé do tamanho de um grão de mostarda (17.5,6)

NO TEXTO

H 5-6 Os comentaristas frequentemente notam a falta de uma linha narrativa no


capítulo 17. Então, essa admoestação à grande fé parece estar sem um cenário. Mas
o tema dominante de conflito com os fariseus fornece um contexto interpretativo
adequado.
Os apóstolos (v. 5) pedem a Jesus para aumentar-lhes a fé. Ele responde, Se vo­
cês tiverem fé do tamanho de uma semente de mostarda, poderão dizer a esta
amoreira: ‘Arranque-se e plante-se no mar’, e ela lhes obedecerá (v. 6). O ter­
mo apostoloi em Lucas refere-se ao grupo mais íntimo dos discípulos de Jesus - os
Doze (6.13; 9.10; 22.14; 24.10).
Os líderes da comunidade de Jesus clamam por recursos que somente Jesus pode
dar-lhes - ser reconciliados e radicalmente perdoadores a todos. Eles querem acre­
ditar que todas as pessoas podem mudar, até os fariseus! Explicando de outra for­
ma, Jesus assegura-lhes: “Se vocês tiverem o mínimo de fé nas pessoas, elas poderão
produzir resultados miraculosos”. A exortação serve para os dois lados. Os segui­
dores de Jesus deveriam perdoar os fariseus por sua falha em enxergar a verdade
(e assim convencê-los), e os fariseus deveriam adotar uma atitude perdoadora em
relação aos pecadores!
A melhor abordagem interpretativa para o capítulo 17 mantém os seguidores de
Jesus e os fariseus em vista. “Cada um ouve a instrução que foi dada ao outro, de
forma que a mensagem fundamental de Jesus tem um propósito para os Seus discí­
pulos e outro para os fariseus” (Green, 1997, p. 611). Lucas apresenta o evangelho
de tal forma a levar os seus leitores à conclusão de que o perdão é possível até para
os piores pecadores. Por extensão, os leitores enxergam sua vida por meio dessa
lente de perdão radical.

3. O escravo servil (17.7-10)

NO TEXTO

H 7-10 Essa curta parábola é concernente a um escravo que faz aquilo que lhe
fora ordenado, e o faz sem receber elogios. Não se ganha crédito pelo que se faz por
questão de obrigação, como amar aqueles que o amam, ou emprestar para aqueles
194
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

que podem pagar de volta (6.32-36). O trabalho dos servos não é meritório. É o
que eles têm de fazer para ser o que são.
O coração da história está na pergunta de Jesus em 17.9: Será que o senhor agra­
decerá ao servo por ter feito o que lhe foi ordenado ? Os apóstolos (e também os
fariseus) devem aprender a ser humildes: ‘Somos servos inúteis; apenas cumpri­
mos o nosso dever’ (v. 10). É um privilégio distinto ser servo de Deus.
Como nos versículos 1-6, essa história é dirigida aos discípulos, irmãos e irmãs, e
apóstolos (v. 1,3,5). Essa história é uma exortação à humildade cristã e a evitar a
arrogância em fazer simplesmente aquilo que se espera que façamos. Mas o texto
pode, mais uma vez, ter uma aplicação também quanto aos fariseus.
Como já notamos previamente, o tema do pastor em Lucas 5.29-32 e 15.3-7 deve
ser interpretado à luz de Ezequiel 34 e da crítica profética da liderança fracassada
de Israel. Uma das principais reclamações de Jesus contra os líderes religiosos ju­
deus era a negligência deles quanto às ovelhas perdidas. Eles tinham fracassado em
cumprir a chamada de Deus a eles para buscarem e cuidarem de Seu rebanho. Aqui
o tema ressurge.
Se o pastor do versículo 7 aplicar-se aos líderes de Israel, a passagem é outra exorta­
ção para eles para fazerem o que foram ordenados a fazer, e a fazer isso sem esperar
nenhum elogio. Ou seja, a passagem pode ser uma exortação ao serviço e humil­
dade para os pastores de Israel e não uma referência vergonhosa à vida comunal
dentro do movimento de Jesus.

4. Os dez leprosos (17.11-19)

POR TRÁS DO TEXTO

Jerusalém é a cidade de destino de Jesus em Lucas. Desde a transfiguração,


onde Moisés e Elias fizeram referência à sua “partida” (9.31), até a seção da viagem
em 9.51—19.28, Jerusalém é o objetivo (“^ 13.22,33,34; 17.11; 18.31; 19.11).
Aqui, o subtema samaritano (“^ 9.51-56, Por trás do texto), implícito na organiza­
ção geográfica de Lucas, emerge novamente. Dessa vez, ele aparece no contexto do
ministério de Jesus na cura dos leprosos.
Samaria já foi citada em relação à rejeição a Jesus pela aldeia samaritana (em
9.52-56) e na história do bom samaritano (10.29-37). Essaé a terceira vez que esta
ênfase distinta aparece.
O domínio de Lucas quanto à geografia de Galileia e Samaria reflete o estado
inexato de tal conhecimento na época dele (veja mais em Hengel, 1983). Jesus vem
195
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

viajando ao longo da fronteira de Samaria por quase dez capítulos (9.51 —19.1).
A ênfase em Samaria na seção central é mais importante teologicamente do que
historicamente ou geograficamente.
Os samaritanos fazem parte da agenda mais extensa de Lucas/Atos dos Após­
tolos. Jesus é atraído da Galileia, passando por Samaria, a Jerusalém, onde Sua mis­
são é cumprida. Esse registro aparece apenas no Evangelho de Lucas. Em Atos,
o evangelho irradia para fora de Jerusalém em direção ao mundo, passando por
Samaria (At 1.8). A reação dos samaritanos à mensagem do evangelho representa o
avanço das boas-novas além dos ambientes do judaísmo étnico em geral e do juda­
ísmo baseado em Jerusalém em particular. Os samaritanos representam os “meio-
-judeus”, aqueles que não são propriamente judeus, mas também não são gentios.
NO TEXTO

Gi 11 A caminho de Jerusalém, Jesus passou pela divisa entre Samaria e Gali-


léia (v. 11). Alguns comentaristas têm observado a “inaptidão geográfica” de Lu­
cas (C. C. McCowan, como citado em Fitzmyer, 1981, p. 164; 1985, p. 1152).
A descrição de Lucas das viagens de Jesus em sua seção central parece sugerir que
ele tinha um domínio precário da geografia da Palestina (mas à Por trás do texto
anteriormente).
Samaria é uma área montanhosa que se estende do vale de Jezreel, ao norte, a Jeru­
salém, ao sul. A parte sul das colinas de Samaria não possuía estradas transitáveis.
Então, os viajantes da Galileia para Jerusalém tipicamente rodeavam a região mon­
tanhosa central de Samaria do lado leste do rio, no vale do Jordão. Lucas descreve
Jesus viajando a Jerusalém passando “pela divisa entre Samaria e Galiléia” (v. 11).
A frase dia meson Samarieas kai Galilaias, “entre as regiões da Samaria e da Galiléia”
(NTLH), parece sugerir uma estrada do oeste para o leste ao longo da margem sul
do vale de Jezreel. Em 9.52, Jesus entra em um “povoado samaritano”. Contudo, em
17.11, Ele ainda viaja ao longo da fronteira norte de Samaria, sem ter feito nenhum
progresso no sentido sul. O tempo parece passar vagarosamente em 9.51 —17.11.
Inversamente, o rápido progresso entre 17.11 e Sua entrada em Jerico em 19.1 dá
uma sensação de que o tempo corria rapidamente (Green, 1997, p. 615,616).
Em 17.11, Jesus presumivelmente teria virado para o sul, mas, ao longo da divisa
leste das colinas samaritanas para a fenda do vale do rio Jordão em direção a Jerico
(em 19.1). Isso sugere uma rota na margem sudeste da região samaritana. Somente
Lucas registra Jesus viajando rumo ao sul passando por Samaria em direção a Jeru­
salém. Mateus e Marcos sugerem que Jesus usou o lado leste do rio Jordão, “além
do Jordão” (Mt 19.1 ARC; Mc 10.1 ARC).
196
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

H 12-14 Lucas faz a ligação de duas noções em sua história: um leproso sarna-
ritano seria o pior marginalizado. O tema do leproso já foi mencionado na cura de
Naamã, o sírio (4.27), do leproso curado (5.12-16), no pronunciamento de João
Batista (7.22) e, talvez, em Lázaro, cujas chagas podem indicar lepra (16.19-31;
Lucas omite a estada de Jesus na casa de Simão, o leproso [Mt 26.6 || Mc 14.3]).
A cura do leproso representava dois importantes subtemas lucanos (veja Lc 5.12-
16):
Primeiro, a restauração daqueles que estavam na mais longínqua extremidade da
sociedade naquela comunidade. Os leprosos nessa história ficavam a certa distân­
cia enquanto clamavam por misericórdia (17.12). O isolamento físico espelha o
isolamento social deles. Jesus removeu isso ao curá-los, capacitando-os a ir e mos­
trar-se aos sacerdotes (v. 14). O leproso samaritano que foi curado volta fisica­
mente e prostra-se “aos pés de Jesus”. Isso, semelhantemente, indica o seu retorno à
sociedade (v. 16; compare com 5.8,11).
Segundo, um leproso curado restaurado à vida religiosa da comunidade: vai mos-
trar-se aos sacerdotes (Lc 17.14; veja 5.14). Novamente, a distinção entre a impu­
reza ritual e a cura física é obscura. Os leprosos são purificados (17.14) enquanto
iam. Mas, eles também são fisicamente curados: Levante-se e vá; a sua fé o salvou
(v. 19).
Em Lucas, o pecado, a impureza e a doença são parte da condição humana. Ser
curado de um mal é ser curado em todos os aspectos. Embora os personagens de
Lucas sofram de males diferentes, todos eles possuem o requisito da fé quando se
encontram com Jesus (-> 5.1-11). Então aqui, os leprosos são ritualmente purifi­
cados e fisicamente curados pela fé.
Há dez leprosos (17.12), assim como havia dez moedas em 15.8-10. Em ambos os
casos, um em dez é “encontrado”. O leproso é como uma das ovelhas perdidas de
15.3-7 e o filho pródigo de 15.11-32. Ele volta ao Mestre (17.13) em gratidão e
humildade. Isso reforça ainda mais a ética de arrependimento de Lucas (15.18-21;
17.15,16).
H 15-19 O herói dessa história é um leproso. Mas ele também é um samaritano
(v. 16). A identidade étnica dos outros não é mencionada, mas somente o leproso
samaritano é chamado de estrangeiro (v. 18). Será que isso implica que os outros
nove leprosos seriam judeus que viviam marginalizados em Samaria?
Imagine o isolamento de um leproso samaritano vivendo na Judeia. Um severo
ostracismo de dois tipos é acoplado de uma forma complexa - a maldição da lepra
e a tensão do conflito étnico e religioso. A que sacerdotes e templo ele deveria ir?
A Jerusalém ou a Gerizim, o seu rival samaritano (Green, 1997, p. 621; Fitzmyer,
1985,p. 1154)?
197
LUCAS 9-24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A falha dos nove de retornar em gratidão não é um pecado egrégio. Afinal, eles
estavam simplesmente obedecendo à ordem de Jesus: “Vão” (v. 14)! Não obstan­
te, Jesus especificamente criticou-os, chamando atenção para a etnia/religião do
samaritano agradecido. Jesus perguntou (...) Não se achou nenhum que voltasse
e desse louvor a Deus, a não ser este estrangeiro? (v. 17,18). O termo grego para
estrangeiro aqui é allogenés, de outro grupo étnico, raça ou nação. Em uma alusão
à própria identidade judaica de Jesus, o leproso curado prostrou-se aos pés de Jesus
louvando a Deus (v. 15,16).
Assim como o perdão deveria ser estendido aos fariseus sete vezes (v. 4), a cura é
estendida ao mais extremo marginalizado possível, um leproso judeu vivendo em
Samaria. Tal é a natureza radical da inclusão que irá caracterizar a comunidade de
Jesus. O samaritano sai daquele encontro curado pela fé. Os excluídos são convida­
dos para entrar, enquanto os incluídos falham em demonstrar gratidão.

5. O Reino está entre vocês! (17.20,21)

NO TEXTO

H 2 0 -2 1 Os fariseus perguntaram a Jesus sobre quando viria o Reino de Deus


(v. 20). Os leitores atenciosos já têm uma expectativa quanto à resposta correta.
Na maioria das referências em Lucas, o Reino t geralmente uma realidade presente
(4.43; 6.20; 7.28; 8.1,16,17; 9.2,11,60,62; 13.18,20; 16.16; 18.24,25,29). Em al­
guns casos, ele é especificamente uma realidade presente (8.10; 9.27; 10.9,11; 11.20;
17.21). Em alguns casos, basicamente nos últimos capítulos, ele refere-se a uma
realidade futura, uma mudança esperada nos próximos tempos (13.28,29; 14.15;
19.11; 21.31; 22.16,18; 23.51). Aqui, ele é uma realidade presente. Suas boas-no­
vas estão sendo proclamadas (8.1); seus segredos já estão sendo revelados (8.10);
ele está “próximo de vocês” (10.9,11); ele está entre vocês (17.21).
A resposta de Jesus aos fariseus indica que o entendimento egoísta deles sobre o reino
é defeituoso. Para eles, o reino significa a hegemonia nacional e espiritual de Israel, e
talvez mais iminente do que tardio (compare com 19.11). A pergunta deles é essencial­
mente política/nacionalista. Eles presumem que terão algum poder nessa dispensação.
No entanto, Lucas entende que os pobres e os marginalizados serão os primeiros a
enquadrarem-se na visão de Jesus sobre o Reino. Jesus repreende a pergunta deles
porque ela fracassa em entender a verdadeira natureza do Reino.
Os fariseus estão buscando um sinal. A resposta de Jesus indica que eles não terão
nenhum sinal: O Reino de Deus não vem de modo visível, nem se dirá: ‘Aqui
198
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

está ele’, ou ‘Lá está’; porque o Reino de Deus está entre vocês (v. 20b,21).
Jesus tem pouca paciência com aqueles que pedem sinais da vinda do Reino
(11.16,29-32; veja 19.11). A resposta dele implica que o Reino de Deus deve ser
conhecido pela voz profética de outrora. Assim como foi com Jonas e os ninivitas
(veja 11.29-32), o arrependimento é a resposta esperada. Os fariseus procuram no­
vamente um sinal, mas eles não se arrependem quando ouvem a palavra de Deus. A
voz de Moisés e dos profetas são toda a evidência essencial para a necessidade de se
estar preparado para a vinda do Reino de Deus (veja 16.29-31).
Para Lucas, toda a expectativa do Reino de Deus deve estar fundamentada na men­
sagem de Moisés e dos profetas. Essas expectativas incluem a compaixão pelos mar­
ginalizados. Elas não incluem uma correspondente hegemonia religiosa, nacional
ou racial. Lembre-se da resposta dos mensageiros de João Batista: “os cegos veem,
os aleijados andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são res­
suscitados e as boas novas são pregadas aos pobres” (7.22). Tudo isso já ocorreu e
está ocorrendo no presente Reino de Deus. Para o Jesus de Lucas, é um erro pensar
no Reino como uma realidade política.
No entanto, o que é o Reino de Deus para Lucas? Somente ele nos diz: o Reino
de Deus está entre | entos\ vocês (17.21). A melhor tradução da preposição é de­
batida (veja Bock, 1996, p. 1413-1419). Duvida-se que esta signifique “dentro de
vocês”. Em nenhum outro lugar em Lucas, o Reino é simplesmente uma realidade
interior dentro dos crentes (Fitzmyer, 1985, p. 1161). Ela podería significar “ao seu
alcance ou em seu poder”, o que pode indicar possibilidades presentes ou futuras
(Marshall, 1978, p. 655,656). A tradução “em sua presença ou meio” pode referir-
-se à presença física de Jesus (Fitzmyer, 1985, p. 1159).
Claramente, Lucas acredita que o Reino esteja, de certa forma, presente, não um
reino inteiramente futuro. Mas, presente em que sentido? Será que está presente
na pessoa de Jesus, na igreja, em certos eventos ou pessoas? Para Lucas, o Reino é
realizado pelo caminho do arrependimento e perdão. Nesse sentido, o caminho do
Reino de Deus está “dentro”.

6. A vinda do Filho do Homem (17.22-37)

POR TRÁS DO TEXTO

A que período de tempo os acontecimentos do capítulo 17 referem-se? Será


que é o cenário socio-histórico de curto prazo da comunidade de Jesus e talvez a
comunidade posterior de Lucas (como no conhecimento deles quanto à destruição
199
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de Jerusalém) ? Ou será que esses versículos referem-se a um futuro distante, envol­


vendo a consumação da história?
A literatura apocalíptica é certamente capaz de atingir uma disjunção crono­
lógica. Amplos períodos de tempo podem parecer ter sido saltados sem nenhum
comentário. Essa é uma das características da literatura apocalíptica que a torna um
gênero difícil de assimilar e abre-a à interpretação especulativa. Símbolos, cores,
animais e portentos cósmicos - todas as características da literatura apocalíptica -
emprestam uma grande emoção ao gênero. No capítulo 21, onde a maior parte do
material apocalíptico é encontrado, tal atenuação será vista mais uma vez. A pre­
sença desse gênero no meio da narrativa do Evangelho é uma forte lembrança de
que a comunidade cristã primitiva estava oprimida e buscava uma realidade futura
para aliviar sua presente angústia.
Quando confrontados com uma decisão entre uma interpretação altamente
especulativa e uma que seria inteligível dentro do contexto socio-histórico imedia­
to da narrativa, a última é preferível. Isso é verdade mesmo que se estenda à comu­
nidade do narrador. Logo, parece melhor, tanto em Lucas 17 como em Lucas 21,
colocarmo-nos dentro do contexto socio-histórico do narrador e de seu público
em nossa interpretação.
A passagem traz-nos de volta à expressão “filho do homem”. Jesus já havia se
referido a si mesmo como o Filho do Homem desde 5.24 (“>): “o Filho do homem
tem na terra autoridade para perdoar pecados”. Dezenas de referências ao Filho
do homem na narrativa até esse ponto têm servido uma variedade de propósitos:
como uma autorreferência geral (5.24; 6.5; 7.34; 11.30); como Aquele que iria
sofrer (9.22,44; compare com 24.7); e em afirmações de conflitos (6.22; 12.8,10).
No capítulo 17 (v. 22,24,26,30), a expressão “Filho do homem” torna-se uma
referência explícita Aquele que será manifesto a todos. Essa ideia é inicialmente
abordada sobre o Filho do Homem em 12.40. Na narrativa da paixão, o Evangelho
retornará ao “Filho do homem” como uma denominação de autorreferência na
terceira pessoa (18.31; 19.10; 22.22,48,69; 24.7).
NO TEXTO

H 2 2 -2 5 Predições sobre a paixão já ocorreram na narrativa de Lucas:


• Jesus ressuscitará dos mortos como predito por Moisés e Elias (9.22).
• Ele partirá (i.e., morrerá, 9.31).
• Ele será “traído” (9.44).
• Ele será “elevado aos céus” (ascensão, 9.51).
200
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

• E indiretamente em 12.50 ele tem “que passar por um batismo”


• Ele será “morto” em Jerusalém (13.33 NTLH).
Agora, o começo do fim é novamente predito e expandido. O Filho do Homem
terá o seu dia, e o mesmo brilhará no céu em uma manifestação pública (v. 24).
Mas o sofrimento ocorrerá primeiro: Mas antes é necessário que ele sofra muito
e seja rejeitado por esta geração (v. 25).
Os versículos 22-37 inclinam-se para o futuro para descrever um período de tempo
que precede o sofrimento do Filho do Homem: Depois disse aos seus discípulos:
Chegará o tempo em que vocês desejarão ver um dos dias do Filho do homem,
mas não verão (v. 22). Nesse estado nostálgico, eles estarão vulneráveis aos que
irão alegar encontrá-lo encarnado em outra figura, dizendo, ‘Lá está ele!’ ou ‘Aqui
está!’ (v. 23).
Aqui, desenvolve-se o tema do sofrimento final de Jesus de uma maneira nova e
profunda. Agora, a Sua morte antecipada é vista não simplesmente como uma
iminente realidade humana. Ela será um acontecimento universal no maior flu­
xo de tempo. Com a Sua morte, o drama não terminará; mas, entrará em uma
nova fase de angústia inesperada. Os discípulos experimentarão a ansiedade (v. 22,
epithymêsetè) e angústia pelas expectativas não realizadas (v. 22, idein kai ouk opses-
the). Essas são emoções que não devem ser esperadas em uma época de concretiza­
ção de um reino político.
Pela primeira vez na narrativa lucana, a história da salvação torna-se uma visão
diacrônica que expande para o futuro. A morte de Jesus é vista como um evento
no curso da história. Mas, a presença de Cristo nessa história também se expande
acima e além do tempo. Jesus torna-se o que Conzelmann chamou de “realização
supratemporal” do Reino (1982, p. 185). A história não terminará na morte de Je­
sus, ela continuará. Contudo, em vez de um glorioso estabelecimento de um reino,
esse futuro será cheio de anseio e de angústia. Há uma expectativa de uma eventual
manifestação pública, mas somente em um quadro temporal mais amplo. Para a
igreja, entretanto, a identidade do Filho do Homem permanecerá conhecida ape­
nas para os que já o aceitaram.
Na transfiguração (em Lc 9.29), as vestes de Jesus são como o “relâmpago”
(<exastraptõn). Agora, o dia futuro do Filho do Homem aparecerá novamente como
uma luz brilhante, Pois o Filho do homem no seu dia será como o relâmpago
cujo brilho vai de uma extremidade à outra do céu (17.24, astrapê). Isso ecoa a
linguagem do AT na qual o relâmpago é simbólico para as teofanias (Beale e Car-
son, 2007, p. 346,347). A primeira aparição do relâmpago na transfiguração é uma
201
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

teofania particular; a segunda promete ser pública. Logo, assim como as estrelas estão
presentes no céu para que todos vejam, o Filho do Homem aparecerá no Seu dia.
Essa não é a segunda vinda no sentido que a teologia popular sugere. Já que Lucas
não tem uma existência preexistente para Jesus, ele não usa a linguagem da “pri­
meira vinda”. E, se não há uma primeira vinda, não pode haver uma segunda vinda
(Conzelmann, 1982, p. 185). Embora o advento do Messias seja encontrado no
entendimento de Lucas quanto à mensagem do AT, a missão de Jesus começa em
Nazaré e culmina em Jerusalém. Ela, então, expande-se aos gentios em Atos dos
Apóstolos.
Na história de Lucas, Jesus não vem uma vez e depois outra vez, como em uma
segunda Parousia (uma palavra que, nos Evangelhos, só é encontrada em Mateus).
Lucas não usa a palavra “volta” ao descrever o evento escatológico. Ao contrário,
Jesus “vem” apenas uma vez (geralmente erchomai, ex.: 3.16; 5.32; 7.19; 12.40,49,
mas também phanõ em 11.20 e episkeptomai em 1.68 e 7.16). Ele vem de forma
particular para alguns seletos na narrativa do nascimento; depois, para determi­
nados discípulos na seção da viagem. Finalmente, Ele será publicamente revelado
(17.24,28-30).
Lucas considera o versículo 20 indicativo, de certa forma, de um evento futuro, já
que ele detalha suas circunstâncias extensivamente nos versículos 22-37 e 21.7-28
(Fitzmyer, 1985, p. 1158; Marshall, 1978, p. 659). Não só esse acontecimento é
iminente, mas é também retratado como imanente (17.20; 19.11; 21.7; At 1.6;
Conzelmann, 1982, p. 121-123). Essas duas ideias estão, de certa forma, em desa­
cordo e mostram um grau de complexidade na compreensão de Lucas quanto ao
Reino.
Contrário à expectativa dos discípulos (At 1.6), e certamente contrário às expec­
tativas dos fariseus (no cap. 17), nada disso se refere ao fim (como em uma conclu­
são) da história. E mais significativo para a interpretação de 17.22-37, o leitor está
consciente de que a compreensão de Lucas quanto à destruição de Jerusalém como
um evento escatológico iminente em 21.7-28.
Embora a morte e a ressurreição de Jesus não sejam ainda um fato consumado den­
tro da história, esses eventos estão logo a seguir (-^ 18.31-34). Os atores na nar­
rativa ainda nem entenderam o significado de Sua predição quanto à Sua morte,
muito menos de uma manifestação após a mesma (18.34).
O narrador e o leitor, porém, têm um conhecimento compartilhado que cria uma
estrutura interpretativa para esse material apocalíptico. Isso empresta um ar de co­
nhecimento interno à passagem que é característico de uma literatura apocalíptica.
O conhecimento daquilo que está por vir é discernível somente para os que rece­
beram acesso aos segredos do Reino.
202
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

H 2 6 -3 7 Esses versículos localizam a passagem na estrutura da aproximação da


paixão de Jesus e da destruição de Jerusalém. O Filho do Homem “no seu dia” (v.
24) é aquele que deve “[sofrer] muito e [ser] rejeitado por esta geração” (v. 25).
As referências às histórias de Noé reforça este ponto. Assim como foi nos dias de
Noé, também será nos dias do Filho do homem (v. 26). Aconteceu a mesma
coisa nos dias de Ló (v. 28). O sofrimento e a morte do Filho do Homem virão
sobre o mundo assim como o dilúvio e a destruição de Sodoma, ou seja, no curso da
vida normal. Todos esses são acontecimentos catastróficos em si e são comparados
justamente.
Contudo, relacionar a afirmação de Jesus somente à Sua morte e ressurreição não
pode justificar plenamente as Suas palavras. O dilúvio e o fogo que caíram sobre
Sodoma, por exemplo, [destruíram] a todos (v. 27,29). A violência da paixão,
por outro lado, passará para a corrente da história, e a realidade socio-histórica
permanecerá ininterrupta. Nenhuma destruição em massa ocorre com Sua morte
e ressurreição.
Se as palavras de Jesus estiverem conectadas ao tema de ligação da destruição de
Jerusalém, entretanto, elas tornam-se mais claras. A destruição de Jerusalém forne­
ce o melhor quadro interpretativo para o capítulo 21. Ali, somente Lucas entre os
Sinóticos especificamente se refere aos exércitos que cercam Jerusalém (21.20), o
que se tornou uma verídica realidade socio-histórica em 70 d.C..
Nessa leitura, o capítulo 17 refere-se a um evento futuro de curto prazo com uma
disjunção cronológica. Lucas pula de uma aparente referência à paixão para um
evento corrente nos dias do narrador. A referência à destruição nos exemplos de
Noé e Ló são referências análogas à destruição da cidade de Jerusalém. Assim como
o fogo choveu sobre Sodoma e destruiu a cidade, da mesma forma também será no
dia em que o Filho do homem for revelado (v. 30), isso é no ano 70 d.C..
Logo, Naquele dia, quem estiver no telhado de sua casa, não deve descer para
apanhar os seus bens dentro de casa. Semelhantemente, quem estiver no cam­
po, não deve voltar atrás por coisa alguma (v. 31). Isso adverte aos cristãos sobre
sua posição quando Jerusalém viesse a ser sitiada: saiam da cidade imediatamente
ou vocês também serão destruídos, assim como nos dias de Noé e de Ló.
Semelhantemente, a alusão a duas pessoas juntas, com uma sendo “tomada”, é uma
referência à morte no contexto da destruição da cidade. Eu lhes digo: Naque­
la noite duas pessoas estarão numa cama; uma será tirada e a outra deixada.
Duas mulheres estarão moendo trigo juntas; uma será tirada e a outra deixada
(v. 34,35). Quando perguntaram para onde essas pessoas foram levadas, Jesus res­
pondeu, “Onde houver um cadáver, ali se ajuntarão os abutres” (v. 37).
203
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O resumo da lição para essa seção está no versículo 33, um tema já encontrado de
forma semelhante em 9.24. Ali, o contexto também é sobre a vinda do Filho do
Homem, e especificamente sobre a tentação de ter vergonha dele e de Suas pala­
vras. O Filho do Homem se envergonhará dessas pessoas naquele dia. Semelhante­
mente, no capítulo 17, aqueles que buscam a autopreservação perderão a sua vida,
e os que perdem sua identidade no Messias ganharão suas vidas.

L u c a s 9 .2 4 L u c a s 1 7 .3 3

"Pois quem quiser salvar a sua Q u e m te n ta r co n s e rv a r a sua

vida a perderá; mas quem perder v id a a p e r d e r á , e q u e m p e r d e r

a sua vida por minha causa, este a a s u a v id a a p r e s e r v a r á .

salvará."

7. O juiz injusto (18.1-8)

POR TRÁS DO TEXTO

Em Lucas 18.31 Jesus reunirá os Doze e irá prepará-los para a subida a Jerusa­
lém. “E tudo o que está escrito pelos profetas acerca do Filho do homem se cumpri­
rá”. A seção que precede esse anúncio exorta os leitores a viverem como convém aos
discípulos. Há duas histórias unicamente lucanas: o juiz injusto (v. 1-8) e o fariseu
e o publicano (v. 9-14).
O restante do material (v. 18-30) é da tradição tripla:
• a história do homem rico desapontado (v. 18-25 || Mc 10.17-22 || Mt
19.16-22),
• o axioma sobre quem poderá ser salvo (v. 26,27 || Mc 10.23-31 || Mt
19.23-30), e
• a declaração de Pedro de que os discípulos deixaram tudo por causa do
Reino de Deus (v. 28-30 || Mc 10.28-30 || Mt 19.27-29).
As duas histórias lucanas descrevem novamente as mudanças fundamen­
tais que o arrependimento deveria afetar. As observações de Terence Fretheim
sobre o arrependimento nos profetas anteriores poderiam aplicar-se igualmen­
te a Lucas: “E intrigante para mim que a narrativa como um todo, em sua pró­
pria narração, possa ser chamada de um ato de arrependimento (e não uma
chamada ao arrependimento). O propósito, ao que parece, era capacitar os lei­
tores/ ouvintes a confessar essa história de infidelidade como a própria história
204
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

deles, tomar uma responsabilidade pessoal para os seus próprios pecados que
trouxeram aquela triste situação” (Fretheim em Boda e Smith, 2006, p. 45).
Lucas vê o arrependimento como, primariamente, um ato de conversão. E tão
fundamental que todos podem beneficiar-se da restauração que o mesmo traz, tan­
to os judeus como os gentios. No entanto, o arrependimento também tem o papel
de “ritmo regular da vida no mundo caído” (Boda e Smith, 2006, p. 12). Ou seja, a
penitência não é só sobre entrar na vida do Reino, mas também sobre uma conduta
regular daqueles que procuram viver no Reino. O convite ao arrependimento re­
quer uma mudança fundamental no ritmo normal da vida (Boda e Smith, 2006, p.
90). Logo, a resolução de Lucas para a narrativa da viagem trata de:
• persistência na oração (v. 1-8),
• os perigos do orgulho (v. 9-14), e
• o custo do total compromisso para com a vida penitente de salvação (v.
18-30).
O tema da persistência em oração inicialmente surgiu em 11.1-8. Lucas con­
clui e culmina essa lição anterior consistindo da Oração do Senhor com a exorta­
ção, “Peçam, e lhes será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta lhes será
aberta” (11.9).
Diferentemente de Lucas, Mateus toma a Oração do Senhor como um antído­
to contra a hipocrisia, e não um convite à persistência. Ele coloca essa declaração
sobre oração incessante a alguma distância da Oração do Senhor (compare com
Mt 6.9-13; 7.7-11). Logo, a persistência em oração é peculiarmente um tema luca-
no. Aqui, Lucas retorna ao tema com a parábola do juiz injusto.
A estrutura de 11.1-13 e a de 18.1-8 são semelhantes. Em cada seção, há uma
configuração criada pelo narrador; uma parábola, que contém o tema; e uma de­
claração sumária de Jesus, que torna a lição da persistência explícita. Tomadas em
conjunto, as duas seções enfatizam esse tema de maneira consistente.

Sem elhanças entre Lucas 11.1-13 e 18.1-8


L u c a s 1 1 .1 - 1 3 L u c a s 1 8 .1 -8

Contexto de oração A Oração do Senhor Ore sempre (v. 1)


(v. 1-4)
A parábola Vizinho persistente Juiz injusto (v. 2-5)
(v. 5-7)

Declaração sumária A persistência vale a Justiça para os que cla­


pena (v. 8) mam dia e noite (v. 6-8)

205
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO

H 1-5 A introdução à parábola do juiz injusto contém um raro comentário pelo


narrador sobre o caráter da vida espiritual. Essa parábola especificamente encoraja
os discípulos: Nós devemos orar sempre e nunca desanimar (v. 1). Esse comentá­
rio serve de conselho pastoral para o público de Lucas.
Esse direcionamento pastoral oferece um vislumbre íntimo ao interior da comuni­
dade na qual esse Evangelho foi inicialmente circulado. Em que tipo de comunida­
de é necessária a paciência na oração? Quem precisa ser encorajado a perseverar?
A resposta parece ser uma comunidade desanimada, que abandonou sua alegria
inicial e está lutando na vida cristã como um padrão de vida de longo prazo. A
comunidade quer desanimar (<enkakeõ, v. 1). Essa palavra grega aparece somente
neste ponto nos Evangelhos.
Paulo frequentemente aborda o problema do desânimo em suas cartas às igrejas
jovens. “Portanto, visto que temos este ministério pela misericórdia que nos foi
dada, não desanimamos” [usando a mesma raiz, enkakeõ] (2 Co 4.1; veja 2 Co
4.16; G16.9; Ef 3.13; e 2 Ts 3.13). Contudo, essa exortação lucana é dirigida a uma
comunidade madura da oitava ou nona década do primeiro século. Os desafios da
vida como igreja em um mundo hostil é a realidade diária deles. Isso parece ser a
lente situacional pela qual nós deveríamos entender a comunidade cristã a qual
Lucas dirige-se.
Lucas, mais uma vez, usa o argumento a minori ad maius (do menor para o maior).
Se um juiz injusto concede o pedido por causa da persistência do requerente, quan­
to mais o Pai celestial irá responder à persistência de quem o pede? A comparação
é particularmente potente. Esse é um contraste não só do humano e do divino, mas
do injusto e do santo. Se um homem injusto sabe como fazer o bem, quanto mais
saberia o Deus santo?
O juiz é ímpio em três acusações. Primeiro, ele não temia a Deus nem se impor­
tava com os homens (Lc 18.2; veja 23.40). Em contraste, os justos no Evangelho
sempre demonstraram temor a Deus (veja 1.12,50,74; 2.9; 8.25). Segundo, ele não
se importava com os homens, ou “não respeitava” as pessoas (entrepõ, NTLH;
compare com 20.9-19). Terceiro, ele não cuidou da viúva (18.3), uma preocupação
particular de Lucas (2.36-40; 4.23-27; 7.11-17; 18.1-8; 20.47; 21.2; At 6.1; etc.).
O juiz é completamente injusto, contudo, ele concede o pedido da viúva persis­
tente.
A parábola tem uma dimensão cômica. O juiz nem sequer teme a Deus, mas ele
finalmente se entrega à insistente tagarelice de uma pobre e velha viúva! E como
se o juiz dissesse: “Não me importo com Deus, e menos ainda com as pessoas.
206
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Mas essa viúva não vai me dar sossego. Melhor eu tomar providências para que ela
receba justiça. Do contrário, vou acabar maluco com essa insistência” (Lc 18.5 A
Mensagem). Um juiz que não se importa com a justiça em si, não suporta a viúva
que não tem uma base legal, contudo recusa-se a desistir.
H 6-8 O melhor momento para se contar um assunto sério é seguido de uma
história hilária. E o Senhor continuou: “Ouçam o que diz o juiz injusto. Acaso
Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que clamam a ele dia e noite? Con­
tinuará fazendo-os esperar? (v. 6,7). O uso de “Senhor” (ho kyrios) referindo-se a
Jesus é raro fora de Lucas. Ele carrega uma força cristológica sutil, como em seu uso
sumativo em 24.34: “O Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!”
Até alguém que não se importa com o que Deus ou as pessoas pensam pode ser
movido pela tenacidade. O argumento se/então demonstra que Deus irá recom­
pensar a fé persistente muito mais. A história encoraja essa prática no ritmo da vida
normal do discípulo.
A PARTIR DO TEXTO

O tema da persistência na oração tem um distinto apelo wesleyano. Em todas


essas histórias, Deus responde à súplica dos homens: Ele é movido pelo pedido
persistente do suplicante (11.1-4); ele é análogo ao vizinho impertinente (11.5-8);
o compassivo Pai celestial não é menos amável do que o pai humano (11.9-13);
Ele está infinitamente mais ansioso para fazer justiça do que um juiz injusto que
finalmente se entrega à persistência de uma impotente, porém persistente viúva
(18.1-8).
Isso cria uma estrutura teológica de referência na qual a oração e as ações dos
homens importam para Deus. O resultado da atividade humana não é predeter­
minado. Um coração ardente e santo pode comover o coração de Deus a agir. No
mundo de hoje, de sofrimento generalizado, os questionamentos naturalmente
surgem quanto à eficácia da oração. Por que deveríamos orar? Será que isso re­
almente faz a diferença? O Evangelho de Lucas encoraja-nos a ver a nós mesmos
como atores significantes, agentes de livre arbítrio que ajudarão a moldar o curso
dos acontecimentos pela santa intervenção em oração. A teologia de Lucas é rela­
cional, a qual enfatiza o dinamismo entre Deus e os crentes.
Esse quadro de referência também tem algo a ensinar à igreja sobre os ritmos
da vida do discipulado. O desânimo e a fadiga podem, às vezes, caracterizar o ca­
minho dos crentes. Assim, a persistência em oração é característica da vida santa.
Contudo, quando Jesus usa o humor para ilustrar o juiz importunado, mostra que,
embora o caminho possa ser difícil, o discípulo sorri interiormente e prossegue
adiante. A persistência reflete uma abordagem otimista da vida.
207
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

8. O fariseu e o publicano (18.9-14)

POR TRÁS DO TEXTO

Aqui, encontramos outra parábola unicamente lucana provida de uma aplica­


ção pastoral. Assim, a vida espiritual da comunidade de Lucas parece estar prima­
riamente em vista (“^ 18.1-8). A história do fariseu e do publicano adverte aqueles
que “confiavam em sua própria justiça e desprezavam os outros” (v. 9). Várias pes­
soas altivas já apareceram na narrativa (o filho mais velho [cap. 15] e o homem rico
[cap. 16]). Mas, os fariseus são os principais representantes da hipocrisia e condes­
cendência no Evangelho. O texto funciona em dois níveis.
Primeiro, os fariseus eram os adversários históricos de Jesus. Como em qual­
quer movimento religioso, alguns desses fariseus provavelmente agiram hipocrita­
mente de quando em quando. Mas, é claro que seria injusto estereotipar todos os
fariseus históricos como uniformemente hipócritas.
Segundo, no nível da narrativa de Lucas, o fariseu tornou-se um símbolo da au-
tojustificação e da hipocrisia. Esse caráter altivo representa os perigos da hipocrisia
na vida dos cristãos professos. Nós leitores, implica Lucas, devemos evitar os erros
desse “fariseu”. O orgulho espiritual é uma aflição atemporal, e o texto discorre,
sem emendas, da história do simbolismo para a instrução pastoral.
Muitos exemplos positivos de arrependimento foram vistos desde o capítu­
lo cinco. Houve também repetidas advertências aos que deixam de arrepender-se.
Para Lucas, o arrependimento é eficiente para obter-se a salvação, mas a falha em
arrepender-se traz efetivamente o julgamento (13.3,25-28; 16.24; 17.28-30). O
homem rico do capítulo 16 é um dramático exemplo do que a falta de arrependi­
mento significa. A parábola do fariseu e do publicano identifica ainda mais o que
constitui o comportamento de arrependimento e como alguém pode deixar de ser
“justificado” diante de Deus (veja 18.14). Se a humildade torna o arrependimento
possível, o seu oposto, o orgulho diante de Deus, nega-o.
Essa não é uma representação histórica do farisaísmo. Esse fariseu é uma cari­
catura dos “perigos e perversões da religião rabínica” (Montefiore, 1927 [reimpres­
so KTAV, 1970], p. 396). O fariseu dessa história é um símbolo cômico e hiperbó­
lico da hipocrisia e da cegueira espiritual. A ilustração exagera as falhas e virtudes
de ator assim como os cartunistas exageram as características físicas ao caricaturar
os indivíduos reais. Logo, como na cena do juiz e da viúva, Jesus usa o humor sa­
tírico para ilustrar um ponto moral sobre a impiedade. O publicano, por outro
lado, é um símbolo mais sério, senão irônico, da piedade. Enquanto os fariseus
mostram-nos o que não devemos ser, o publicano apresenta-nos o que devemos
ser - penitentes.
208
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

NO TEXTO

■ 9-12 Jesus descreve os dois personagens em termos paralelos. Para cada traço
negativo do fariseu, há um traço positivo correspondente no publicano. Isso é um
exemplo de uma “antítese” retórica, uma “comparação de opostos por justaposi­
ção” (Snodgrass, 2008, p. 462). A ilustração é polarizada sem nenhum campo co­
mum entre o vanglorioso religioso e o humilde pecador.
No paradigma teológico de Lucas, as pessoas ou estão perdidas ou estão encon­
tradas. A compostura formal religiosa, representada pelos fariseus, não é um fator
mitigador na perda. Somente a orientação interior do coração importa para a sal­
vação. Isso é representado pelo publicano na história. O orgulho é o supremo mal;
e a humildade, a suprema virtude. Assim, essa parábola reúne em uma história tudo
o que Lucas esteve desenvolvendo sobre os presumíveis justos e os presumíveis pe­
cadores.
A estrutura da parábola
do fariseu e do publicano
O fa ris e u O p u b lic a n o

Os p e rsonag ens [co n fiava] em su a p ró p ria "to d o s os o u tro s " (v. 9 NIV11,
ju s tiç a e d e s p r e z a v a m os tra d u ç ã o livre )
o u tro s (v. 9)
P u b lic a n o (v. 10)
Era fa r is e u (v. 10)

A posição física Em pé (v. 11) "Ficou à d is tâ n c ia " (v. 13)


da oração

A a titu d e m e n ta l para O ra v a d e si p a ra si m e sm o "N e m ousava o lh a r para o


a ora çã o Reação (v. 11 ARA) cé u " (v. 13)

A ora çã o '"D e u s , eu te a g ra d e ço porque "'D e u s , te m m ise ricó rd ia de


não sou co m o os q ue são la­ m im , que sou p e c a d o r'" (v. 13).
drões, c o rru p to s , a d ú lte ro s, ou
m e sm o com o e ste c o b ra d o r de
im p o sto s. Jejuo duas vezes p or
sem ana e dou o d ízim o de tu d o
q u a n to g a n h o ” ' (v. 11,12 NIV11,
tra d u ç ã o livre ).

A resposta d ivin a Este h o m e m não foi ju s tific a ­ "E ste hom em (...) fo i para casa
do (v. 14b) ju s tific a d o d ia n te de D eus"
(v. 14a).

D eclaração c o n clu - "Todos aqu e le s q ue se exal- "e aqueles que se h u m ilh a m


siva ta m serão h u m ilh a d o s " (v. serão e x a lta d o s " (v. 14d NIV11,
14c NIV11, tra d u ç ã o livre ) tra d u ç ã o livre )

209
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Essa parábola possui camadas de ironia. A oração do fariseu é legítima. Não é im­
piedade dar graças pelas vantagens que a pessoa tem na vida. Alguém pode muito
bem agradecer por uma vida livre do roupo ou da indecência sexual. Alguém pode
até agradecer por não ser um publicano!
Os hábitos religiosos dele também são louváveis. Ele jejua duas vezes por semana,
mais do que o que é exigido pela Lei. E ele dá dízimo de toda a sua renda, algo que
também não é exigido pela lei. Em tudo isso, o fariseu estava completamente cor­
reto. Mas, a falha de sua oração está no orgulho. Ele coloca-se como uma categoria
à parte. Ele imagina-se como “não [sendo] como os outros homens” (v. 11 NIV11,
tradução livre).
H 13 O publicano, por outro lado, batia no peito, como um sinal de tristeza, e
rogava a Deus por misericórdia: ‘Deus, tem misericórdia de mim, que sou pe­
cador5 (v. 13). O ambiente do altar traz ecos das orações de arrependimento em
Neemias 9; Esdras 9 e Daniel 9 (Boda e Smith, 2006, p. 72).
Em Esdras nove, o escriba registra como ele rasgou suas roupas e puxou os cabelos
da barba e da cabeça em angústia penitente (Ed 9.3). Ele ora assim: “Meu Deus,
estou por demais envergonhado e humilhado para levantar o rosto diante de ti,
meu Deus, porque os nossos pecados cobrem a nossa cabeça e a nossa culpa sobe
até os céus” (v. 6). Ele chora e prostra-se diante da casa de Deus (Ed 10.1). Seme­
lhantemente, Daniel jejua vestido de pano de saco e cinzas e ora penitentemente
em Daniel 9.4,5.
O publicano arrependido de Lucas repete esse mesmo espírito de confissão (“^ Lc
5.29-32, A partir do texto, para uma comparação com a oração de Manassés). Toda
pretensão de decoro religioso deve ser abandonada na fome pela justificação dian­
te de Deus. A ilustração do publicano convida à empatia, em vez do julgamento
racional. A conduta do cobrador de impostos revela o que está em seu coração, e
não o que está em sua mente. A teologia do arrependimento tem um forte aspec­
to relacional/emotivo. O arrependimento só pode ocorrer entre pessoas. Ele não é
estéril, friamente irracional e legal. E uma questão do coração e de sua disposição.
H 1 4 A declaração conclusiva está em 18.14: “Todos aqueles que se exaltam serão
humilhados, e aqueles que se humilham serão exaltados” (NIV11, tradução livre).
Essa é uma reiteração literal do ensino de Jesus sobre os assentos em um banquete
em Lucas 14.11 (compare com Mt 23.12). Aquele cuja vida é vivida em orgulho
não pode esperar ir para casa justificado diante de Deus. No caso dessa parábola,
“ir para casa” significa deixar o local de adoração. Logo, a parábola tem um aspecto
eclesiástico. Os suplicantes que adoram com um coração genuíno diante de Deus
levam a santidade do templo para casa com eles.
210
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

No contexto lucano, a “justificação” não é tão teologicamente desenvolvida como é


em Romanos. Lucas usa o termo de uma maneira mais geral para descrever a posi­
ção de uma pessoa com Deus. Nesse caso, os que se humilham vão para casa justifi­
cados diante de Deus. Ou seja, eles estão em um relacionamento apropriado com
Deus. Embora Paulo não use regularmente a linguagem do arrependimento, ele é
capaz de equacionar a justificação com o seu fruto - a bênção do perdão (Rm 4.7).
A PARTIR DO TEXTO

O fariseu diante do altar não tinha compaixão pelos perdidos. Esse é um tema
frequente em Lucas. Os pastores de Israel têm a responsabilidade de ir atrás das
ovelhas perdidas, mas o fariseu não estendeu a mão ao pecador. A retidão exterior
do fariseu é desmentida por sua arrogância e frieza para com o publicano perdido.
Se ele tivesse estendido a mão, a história poderia ter terminado diferentemente
para ele - ele também poderia ter ido para casa justificado.

9. Deixem que as crianças venham a mim (18.15-17)

NO TEXTO

I 15-17 Aqui, Lucas volta a Marcos 10.13-31 e segue a sequência de Marcos


até Lucas 19.27. Ele insere a história de Zaqueu nesse material em 19.1-10, mas,
fora isso, segue Marcos. Em 18.15-17, as crianças são novamente colocadas como
exemplos de fé (veja 10.21).
Os últimos capítulos usaram uma série de comparações definindo a atitude correta
para com Deus, usando contrastes polares:
• A confiante simplicidade das crianças vs. a conivência do administrador
desonesto (16.3).
• O egocentrismo do rico vs. a humildade do pobre (16.19,20).
• Aquele que não teme a Deus vs. aquele que persevera na fé (18.2,7).
• A arrogância religiosa do fariseu vs. a humildade do publicano (18.9-14).
A inocência e a simplicidade das crianças em 18.15-17 acrescenta outra faceta ao
modelo dos verdadeiros discípulos. As pessoas traziam criancinhas {ta brephe) a
Jesus, para que Ele tocasse nelas e abençoasse-as (v. 15). Assim como o amor de
um pai que acaricia seus filhos, o Seu toque transmite bênção. Isso é reminiscente
211
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

da experiência do menino Jesus, que foi tomado nos braços de Simeão (2.28).
Por sua vez, os pais trouxeram suas crianças (ta paidia) a Jesus. São a essas que Ele
compara os verdadeiros discípulos: Deixem vir a mim as crianças e não as impe­
çam; pois o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas (v. 16). Não
é ao sábio ou ao mundano que o Seu novo Reino pertence, mas àqueles que creem
como uma criança.

M. As riquezas e o Reino de Deus (18.18-30)

POR TRÁS DO TEXTO

Lucas dá um extenso tratamento ao gerenciamento das riquezas terrenas no


capítulo 16. As próximas três histórias no capítulo 18 abordam o tópico das ri­
quezas. Novamente, Jesus adverte que o indevido apego às possessões materiais
pode bloquear a entrada no Reino de Deus. Reciprocamente, a entrega dos bens
materiais é um sinal de inclusão na comunidade do Reino.

1. O rico frustrado (18.18-25)

NO TEXTO

■ 18-25 A estrutura da parábola do bom samaritano (10.30-37) e essa história


têm componentes extraordinariamente semelhantes, incluindo perguntas idênti­
cas feitas pelo interlocutor. Somente Lucas faz da “vida eterna” o tema central (veja
Mt 22.36 || Mc 12.28). Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna? (Lc
18.18). A pergunta é feita por certo homem importante (tis arkõn). Em outras
ocorrências em Lucas, o termo é tipicamente conjugado com um genitivo, “da si­
nagoga” ou “de um fariseu” (8.41; 14.1). Aqui, o termo é solitário, como em 12.38,
onde o indivíduo é um “magistrado”. Quando Lucas pretende identificar um mem­
bro dos fariseus ou mestres da Lei, ele geralmente é explícito na questão.

212
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Uma comparação entre Lucas


10.25-37 e 18.18-25
Lucas 10.25-37 Lucas 10.25-37

0 in te rlo cu to r "Um perito na lei" (v. 25) C erto hom em im p o rtan te (v. 18)

A pergunta "M estre, o que preciso fazer para Bom M estre, que farei para
herdar a vida eterna?" (v. 25) h erdar a vida eterna? (v. 18)

Resposta de Jesus " 0 que está escrito na Lei?" (...) "Po r que vo cê me cham a
"Como você a lê?" (v. 26). bom ?" (...) "N ão há nin­
guém que seja bom , a não
ser som ente D eus" (v. 19).

A resposta "'A m e o Senhor, o seu Deus de V ocê co n h ece os m an dam en ­


todo o seu coração, de toda a sua tos: 'N ão adu ltera rás, não
alma, de todas as suas forças e m atarás, não fu rtarás, não
de todo o seu e n tend im e nto' e d arás fa lso testem u n h o, hon­
'Ame o seu próxim o como a si ra te u pai e tu a m ãe' (v. 20)
m esm o'" (v. 27).

Resposta de Jesus "Você respondeu corretam ente. "Falta-lhe ainda uma coisa.
Faça isso, e vive rá " (v. 28). Venda tu d o o que você possui
e dê o d in h eiro aos pobres,
e você terá um teso u ro nos
céus. D epois venha e siga-
-me" (v. 22).

A parábola do bom sam aritano "C o m o é difícil aos ricos en ­


Resposta parabólica
(v. 29-37). tra r no Reino de Deus! De
fato , é m ais fácii passa r um
ca m elo pelo fu n d o de uma
agu lha do q u e um rico e n tra r
no Reino d e D eus" (v. 24,25).

Em 18.20, Jesus cita os mandamentos da Escritura como o caminho que leva


à salvação. Em 10.27, os grandes mandamentos sumarizam as duas tábuas da Lei,
mas aqui, Jesus cita a segunda tábua, que trata das relações humanas. Contudo, ob­
servar a letra da Lei nos relacionamentos humanos é insuficiente: Falta-lhe ainda
uma coisa (18.22). A observância deve ser acompanhada de compaixão e da dispo­
sição para sacrificar-se pelo bem dos outros. A questão em ambos os capítulos, 10
e 18, é a mesma: as pessoas são mais importantes do que os bens. A exortação para
aquele chefe é: Venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos pobres, e você
terá um tesouro nos céus (v. 22).
Aquele líder ficou cabisbaixo. Mas, os leitores não ficam surpresos com as ins­
truções de Jesus. O samaritano (cap. 10) já havia dado de seus bens para beneficiar

213
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

os outros. A esse líder não é exigido que faça nada além disso. Com o exemplo do
samaritano em nossa mente enquanto lemos o capítulo 18, enxergamos o homem
rico aqui por meio dessa lente. Aquele líder falhou em evidenciar compaixão, uma
questão de central importância para Jesus.
Depois venha e siga-me (v. 22). “Seguir” Jesus no jargão de Lucas é sair do
lugar, deixar os seus bens e unir-se a Jesus em Sua vida itinerante (“^ 9.23-27, A
partir do texto; 9.57-62, No texto). Os discípulos fizeram exatamente isso (veja
18.28-30). Logo, a instrução venda tudo não é só um convite à pobreza, mas tam­
bém um convite à itinerância.
O terceiro Evangelho já insistiu que não podemos servir a Deus e às riquezas
(“^ 16.10-13; e 12.13-21, A partir do texto). Aqueles que ajuntam riquezas para si
ou deixam de fazer suas obrigações sociais ao pobre, têm falta de um componente
essencial da fé salvadora. Agora, essa mesma ideia recebe um toque humorístico.
A ideia de um camelo, o maior animal da Palestina, tentando passar pelo ori­
fício de uma agulha é uma imagem cômica. Isso demonstra o papel cômico/trágico
que a riqueza desempenha nas lealdades humanas na história do Evangelho. Como
é difícil aos ricos entrar no Reino de Deus! (18.24). Os ricos são tão inflados
pelo apego aos seus bens materiais que a “porta estreita” (13.24) do Reino não
pode comportá-los assim como o fundo de uma agulha não pode comportar um
camelo. A solução de Jesus no Evangelho é severa: venda tudo.

2. Então, quem pode ser salvo? (18.26,27)

NO TEXTO

6 2 6 -2 7 As exigências dos discípulos incluem:


• O convite para seguir o estilo de vida itinerante de Jesus (5.27; 9.57-62;
18.22).
• A abnegação expressa no levar a cruz (9.23).
• A rendição das lealdades à família (12.53; 14.26; 18.28-30).
• A dependência na caridade como meio de subsistência (8.3; 9.3; 10.4), e
agora.
• A rendição dos bens materiais (18.22).
• Na resposta a essa última exigência, não é de surpreender que os que ouvi­
ram respondessem: Então, quem pode ser salvo? (v. 26).
214
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

O Jesus lucano afirma apenas que aqueles que demonstrarem completo desapego
dos bens materiais e relacionamentos e viverem da completa lealdade a Deus serão
salvos. A oferta da salvação pelo arrependimento e perdão tem um contraponto nas
extremas exigências do discipulado. O arrependimento e o perdão não oferecem
uma passagem fácil. As responsabilidades correspondentes do discípulo envolvem
o maior sacrifício. As duas realidades do arrependimento e responsabilidade devem
estar presentes para a salvação.
A PARTIR DO TEXTO

Como essas extremas exigências de discipulado devem ser reconciliadas com a


mensagem de graça e de perdão para os pecadores ? Por um lado, há um imperativo
de uma fé penitente e persistente. Por outro, há as exigências do discipulado que
parecem ser impossíveis. Tanto é que Jesus disse, O que é impossível para os ho­
mens é possível para Deus (v. 27).
Essas duas realidades parecem colidir em Lucas para os discípulos. Existe a
abertura radical do universalismo de Lucas, mas há também a correspondente se­
veridade das exigências do discipulado que limitam o acesso ao Reino da vida. A
porta da salvação é larga e recebe todos os pecadores arrependidos. Contudo, a
porta também é estreita (13.24), e muitos não conseguirão entrar.
Como podem essas duas realidades opostas ser reconciliadas? A salvação é
fácil ou a salvação é impossivelmente difícil? O resultado do verdadeiro arrepen­
dimento no evangelho é entrar em um relacionamento de completa comunhão
com Deus. Mas, nessa comunhão, não pode haver questão de lealdades divididas
(12.8,9; 16.13). Os bens materiais não podem competir com os nossos afetos
(18.23). Até o aconchego do lar não pode competir com a nossa lealdade Àquele
que bondosamente nos recebeu de volta no aprisco (14.26,27).
Essas duas realidades - graça extrema e discipulado radical - convergem na
vida de santidade. Se a teologia enfatiza somente uma dessas realidades, essa é uma
teologia incompleta. Se apenas a graça extrema estiver presente, essa é, então, uma
fé oca, vazia de ação. Se apenas o discipulado extremo estiver presente, os perigos
do formalismo hipócrita aparecem. Jesus, ao que parece, enxergava essas duas rea­
lidades como partes de uma vida completa diante de Deus.
A teologia da santidade procura encontrar não só o equilíbrio entre essas duas
questões, mas uma energia espiritual dinâmica que é criada na intercessão destas
- a fé vivificada pela ação e a ação movida pelo profundo senso de gratidão. Essa
é a “vida cheia do Espírito”. Ela não pode ser adquirida pelo esforço humano, mas
215
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

também não pode surgir na ausência do esforço humano. Logo, a conversação


teológica que usa a linguagem “fé vs. obras” não tem a sutileza de referir-se a esse
equilíbrio de ação humana e capacitação divina. Existe uma misteriosa união de
ambas na vida santa. Sem ambas, não podemos estar espiritualmente inteiros.

3. Deixando tudo pelo Reino de Deus (18.28-30)


I 28-30 O sacrifício da riqueza como uma exigência do discipulado resultou na
resposta dos ouvintes de Jesus, “Então, quem pode ser salvo?” (v. 26). Analisado jun­
tamente com o chamado para renunciar o lar e os laços familiares (v. 26,27), estes
apresentam uma obrigação de abandonar todas as conexões terrenas para seguir Jesus.
Pedro afirmou que ele e outros discípulos haviam cumprido essas exigências ao
deixar para trás seus lares para seguir Jesus em Sua vida itinerante. A resposta de
Jesus a Pedro validou o sacrifício deles: Digo-lhes a verdade: Ninguém que te­
nha deixado casa, mulher, irmãos, pai ou filhos por causa do Reino de Deus
deixará de receber, na presente era, muitas vezes mais, e, na era futura, a vida
eterna (v. 29,30); veja as exigências de 14.26,27). Essa validação conclui a narrativa
da viagem. Depois, os discípulos entrarão em Jerusalém e acompanharão Jesus até
um tumulto maior e ao sacrifício.

N. A subida para Jerusalém (18.31— 19.44)

1. Jesus prediz a Sua morte (18.31-34)

POR TRÁS DO TEXTO

Os prólogos têm introduzido significativas mudanças na história de Lucas (->


9.51). Há o prólogo globalizante de 1.1-4. Há o “segundo prólogo” em 2.1-5. Alguns
intérpretes acham ainda outro no início do capítulo 3. No início da narrativa da viagem,
há uma declaração parecida com um prólogo em 9.51-53. Quando a narrativa da viagem
aproxima-se do fim em 19.44, há um sumário preambular transicional em 18.31-34.
NO TEXTO
I 31-34 Tradicionalmente, a narrativa da paixão de Lucas é tida como inician­
do em 22.1 com o princípio da Páscoa e a traição de Judas. Mas, de fato, a paixão
começa em 19.31 quando Jesus, nos arredores de Jerusalém, reitera pela terceira
vez Sua predição de morte.
216
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9-24

A narrativa da viagem (9.51 —19.44) está cercada, em cada extremidade, pela pre­
dição de Jesus quanto ao Seu sofrimento e morte (9.22,31,44,45,51; 18.31-34).
Embora a iminente morte de Jesus tenha sido mencionada (11.49; 12.4; 13.31,33),
as predições estão além da compreensão dos discípulos (9.45; 18.34).
Do ponto de vista da narrativa, os discípulos estão despercebidos da iminente
morte de Jesus. Ironicamente, em 19.1 lb, eles parecem pensar que a entrada deles

Uma comparação entre Lucas


9.45 e 18.34
Lucas 9.45 L u c a s 1 8 .3 4

"Mas eles não entendiam o que O s d is c íp u lo s n ã o e n t e n d e r a m

isso significava; era-lhes encober- n a d a d e s s a s c o is a s . O s ig n if ic a -

to, para que não o entendessem. d o d e s s a s p a la v r a s lh e s e s t a v a

E tinham receio de perguntar-lhe a o c u lt o , e e le s n ã o s a b ia m d o

respeito dessa palavra." q u e e le e s t a v a f a la n d o .

em Jerusalém seria uma vitoriosa introdução ao Reino. Isso enfatiza ainda mais a
falta de compreensão deles. O narrador e seus leitores compartilham do privilégio
do conhecimento de Jesus sobre a Sua morte próxima. Mas, os personagens de Sua
história parecem desconhecer o perigo.
Nem Mateus nem Lucas inclui o comentário de Marcos 10.32 dizendo que os que
acompanhavam Jesus estavam com medo quando se aproximaram de Jerusalém.
A morte de Jesus toma Seus seguidores de surpresa, apesar de Suas tentativas para
prepará-los. Eventualmente, os discípulos em Lucas experimentam o esclarecimen­
to. No entanto, isso ocorre apenas depois que os dois anjos aparecem às mulheres
em Seu túmulo vazio e dizem, “Lembrem-se do que ele lhes disse (...) Então se
lembraram das palavras de Jesus” (24.6,8).
A expressão Filho do homem agora se desloca para o centro da narrativa ( 1 2 . 1 -
12 e 17.22-37). Mais detalhes explícitos sobre a significância desse título são da­
dos. Estamos subindo para Jerusalém, e tudo o que está escrito pelos profetas
acerca do Filho do homem se cumprirá (18.31).
Aqui, a expressão é usada por Jesus para referir-se ao Seu sofrimento (veja 9.22,44;
22.22,48,69; 24.7). Cada uso revela um detalhe maior. A sorte de Jesus em Jerusa­
lém incluirá:
217
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

• Sofrimento (9.22a).
• Rejeição dos líderes religiosos (9.22a).
• Ser morto (9.22b).
• Ser ressuscitado “no terceiro dia” (9.22b).
• Tudo isso ocorrerá em Jerusalém, e esse é agora o destino deles (9.31,51).
• E mais:
• Ele “será traído e entregue nas mãos dos homens” (9.44), e
• isso acontecerá em breve (9.51; 9.18-22).
Depois, Ele será entregue aos gentios que zombarão dele, o insultarão, cuspi­
rão nele, o açoitarão e o matarão. No terceiro dia ele ressuscitará (18.32,33;
também 17.25). Essa é a informação que o leitor absorveu no decorrer da narrativa,
mas os discípulos não entenderam nada disso.
A significância de ser entregue aos gentios (v. 32) está relacionada à importância
do sistema familiar israelita (“^ 15.1 T I6). Na história do filho pródigo, ele retirou
a si mesmo do bet av, clã e tribo, e sofreu a suprema humilhação nas mãos daqueles
de uma “região distante” (15.13). Não se pode sofrer separação maior do apoio do
sistema familiar do que ser entregue aos gentios. O que foi verdade para o filho
pródigo agora seria verdade para o Filho do Homem. O Seu exílio nas mãos dos
gentios significa Sua completa separação da casa de Israel.

2. O mendigo cego na estrada de Jerico (18.35-43)

H 35-43 O mendigo cego na estrada de Jerico grita, Jesus, filho de Davi, tem
misericórdia de mim! (18.38). Essa referência a Jesus como o Filho de Davi é a
primeira proclamação pública da identidade de Jesus como o Messias no Evangelho
de Lucas. As portas de Jerusalém, torna-se claro que Jesus entrará na cidade santa,
não como um sábio viajante, mas como o Messias de Israel.
O tema de Filho de Davi foi preparado na narrativa da infância em 1.32, mas essa é a
afirmativa mais direta da identidade de Jesus como o Filho de Davi nos Evangelhos.
Mateus sugere essa identidade em frequentes alusões (Mt 1.1; 9.27; 12.23; 15.22;
20.30; 21.9,15; 22.42). Lucas diz isso explicitamente para o seu público. O tema de
Davi não aparece abertamente em Lucas 2—18, mas há numerosas referências inter-
textuais significativas que revelam o entendimento de Lucas (“^ 1.15-25; 2.4; 6.1-5).

218
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

A identidade davídica e a expectativa messiânica

A expressão “ filh o de D avi" carregava conotações políticas no decor­


rer do prim eiro século da era cristã, especialm ente na década após a m or­
te de Herodes, o Grande. Proclam ar Jesus com o o Filho de Davi carregava
im plicações além da esfera religiosa. Davi foi ungido com o rei som ente
após um período de guerrilha subsequente à sua proclam ação com o rei
por Samuel. Embora a ascensão ta n to de Saul com o de Davi fosse a te n d i­
da por sanção profética, a posse desses reis po pula rm e nte proclam ados
estava condicionada ao desem penho deles.
Davi foi, e ve n tu a lm e n te , rejeitado com o rei pelos que apoiaram a re­
volução popular liderada por seu filh o Absalão (2 Sm 15— 19; veja Horsley,
1992, p. 791-797). Logo, três fatores estavam em jog o na m udança dos
prim eiros m onarcas israelitas: aclam ação popular, aprovação condicional
dos governados e a tivid ade revolucionária (Horsley, 1992, p. 792).
Na década seguinte da m o rte de Herodes em 4 a.C., num erosos rei-
vindicadores m essiânicos surgiram na Palestina. Alguns, com o Judas, Si-
mão e A thronges (veja A n t 17.10.5-8,§271-285), aspiraram ser reis dos
judeus. Simão entrou em Jerico m uitos anos antes da visita de Jesus e
queim ou o palácio real.
Como os habitan tes de Jerico estavam bem cientes, o desassossego
criado pelas aspirações m essiânicas e v e n tu a lm e n te levou d ire ta m e n te ao
governo rom ano na província em 6 d .C . Pode te r sido por razões com o
essas que o povo em volta do hom em cego u rg e n te m e n te te n to u fazê-lo
calar-se (Lc 18.39).

A cura do homem cego serviu como uma afirmação da identidade de Jesus


como o filho de Davi. A ironia é que ele reconhece aquilo que os outros não con­
seguem ver. Embora enxerguem fisicamente, alguns permanecem espiritualmente
cegos (como em 8.10). Jesus veio trazer vista aos fisicamente cegos e espiritual­
mente cegos (4.18; 7.21). A crença desse homem de que Jesus era o Filho de Davi
traz-lhe a cura: Recupere a visão! A sua fé o curou (18.42; veja 8.48; 17.19). Em
seguida, Jesus entra em Jerico, sua última parada na jornada para Jerusalém.

219
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

3. Zaqueu convida Jesus à sua casa (19.1-10)

POR TRÁS DO TEXTO

A história de Zaqueu e Jesus encontra-se somente em Lucas. Ela apresenta


diversas ilustrações e temas caracteristicamente lucanos. Entre eles:
• A luta dos pecadores e a cordialidade de Jesus para com eles.
• A proeminência dos publicanos como exemplos de piores marginalizados
(5.29; 7.29).
• O tema dos perdidos que são procurados pelo cuidadoso pastor (veja 5.29-
32; 15.3-7).
• Os pensamentos interiores do pecador revelados (veja 7.36-50; 15.11-32;
16.19-30; 18.9-14).
• A ênfase na comunhão comensal (5.29-32; 7.33,34; 7.36-50; 13.29; 14.1-
24; etc.).
• A condenação dos ricos (19.2; veja 1.53; 16.19-31; 18.18-25).
A história é pitoresca, dramática e envolvente. Os personagens são animados.
O encontro de Jesus com Zaqueu tem uma sensação de casualidade e até um as­
pecto cômico. O pequeno pecador não conseguia ver Jesus por causa da multidão,
então subiu freneticamente em uma árvore. Jesus procurou a hospitalidade em um
homem que havia subido na copa de uma árvore!
O evento ocorreu em Jerico, a porta de entrada para Jerusalém e a cidade de
destino de Jesus (veja 9.51 —19.44, esp. 9.30,51; 13.33). Isso confere à história a
penúltima importância no Evangelho. Essa é também a conclusão cronológica da
narrativa da viagem e o início da narrativa da paixão - um importante ponto de
articulação da história.
A seção central de Lucas é cercada por duas declarações paradigmáticas do
propósito de Jesus, ambas envolvendo publicanos. Em 5.27-32, Levi representa a
margem extrema daqueles a quem Cristo iria estender Seu convite ao Reino. Sua
resposta determina o tom do ministério (veja 5.27-32): Jesus não veio “chamar
justos, mas pecadores ao arrependimento” (5.32). Isso anuncia a intenção de Jesus
de dirigir a Sua mensagem às ovelhas perdidas da casa de Israel.
A história de Zaqueu é o marco correspondente na culminação da seção da
viagem. Dessa vez, o perdido não é meramente um publicano, mas o “chefe dos pu­
blicanos” que também era “rico” (v. 2). A cena não é uma aldeia quieta da Galileia,
mas uma cena bem pública às portas de Jerusalém. Os que estavam ali não eram
220
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

os poucos que estiveram com Jesus em Seus primeiros dias, mas uma multidão tão
grande que um homem pequeno como Zaqueu nem conseguia vê-lo.
Em resposta ao ato de arrependimento de Zaqueu, Jesus reitera Sua mensagem
de salvação aos marginalizados: “Hoje houve salvação nesta casa! Porque este ho­
mem também é filho de Abraão. Pois o Filho do homem veio buscar e salvar o que
estava perdido” (v. 9,10; veja 5.32). Quatro características são semelhantes nesses
incidentes. Ambos:
• Envolvem um publicano como protótipo do perfeito pecador (5.27 ||
19.2).
• Ocorrem à mesa, enfatizando a importância da comensalidade (5.29 ||
19.7).
• Têm um protesto dos fariseus e mestres da Lei (5.30 || 19.7, “todo o povo”).
• Culminam com uma declaração paradigmática do propósito do ministé­
rio de Jesus: buscar e salvar o perdido (5.32 || 19.9,10).
Essa mensagem é o dogma central da soteriologia de Lucas, remodelando a
mensagem para longe do nacionalismo e da eleição em direção a um convite uni­
versal a todos os que estão perdidos ("^ 15.1-10, A partir do texto).
NO TEXTO
H 1-4 Zaqueu é um architelõnês, chefe dos publicanos (v. 2), a única ocorrência
dessa palavra na literatura grega. O título indica que ele tinha numerosos publica­
nos sob sua autoridade e que era responsável aos romanos por toda aquela região.
Esse chefe judeu, filho de Abraão, é a figura culminante de todos os publicanos na
narrativa (3.12; 5.27-29; 7.29; 15.1; 18.13,14). Ele representa a margem mais dis­
tante da sociedade judaica e é, aliás, o principal pecador do Evangelho.
O arrependimento de Zaqueu prova que o programa de salvação de Jesus foi eficaz.
A narrativa da viagem conclui com o grande sucesso de Jesus, o arrependimento do
chefe dos publicanos em Jericó. O nacionalismo e a eleição foram superados pelo
arrependimento e o perdão como o fundamento do novo Reino.
Zaqueu era um homem de pequena estatura (v. 3). O fato de não conseguir ver
Jesus pode ser uma alusão ao seu estado ignorante. Mas, o coração dele estava no lu­
gar certo. Isso ecoa a história de Saul e Davi: Saul era alto, como se esperava dos reis
de então (“^ 1.72-80). Por outro lado, o coração dele não estava com Deus. Davi
era o mais baixo e o mais jovem de sua família (compare com 1 Sm 16.7; 9.2), mas
seu coração qualificava-o como rei. Da mesma forma, Zaqueu é aprovado diante de
Jesus por causa de seu coração arrependido, apesar de sua pouca estatura.
221
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

I 5-7 Jesus faz uma pausa em Seu caminho e olha para cima para ver Zaqueu.
Ele convida-se para ir à casa de Zaqueu: Zaqueu, desça depressa. Quero ficar em
sua casa hoje (v. 5). Essa ação exemplifica a compaixão de Cristo para com os pe­
cadores. Isso também exemplifica o comportamento típico dos pecadores de Lucas
- eles fazem a coisa certa. Zaqueu o recebeu com alegria (v. 6). A ironia continua:
os “pecadores” são tipicamente justos. Os “justos” são tipicamente pecadores.
A multidão protesta contra a escolha da acomodação de Jesus, dizendo “Ele se
hospedou na casa de um ‘pecador’” (v. 7; compare com 5.8,30; 15.2). Previamen­
te, foram os fariseus e mestres da Lei que expressaram essa objeção; agora todo o
povo (v. 7) discorda da escolha de Jesus. Mas, os hábitos de Cristo da comensalida-
de aberta não são recebidos por nenhum dos que estavam fora de Sua comitiva em
Jericó. Isso sinaliza que o perigo está aproximando-se e que a iminente entrada em
Jerusalém será perigosa.
H 8-10 Zaqueu proclama seu entusiástico apoio a Jesus. Mas, será que ele se ar­
repende? E, levantando-se Zaqueu, disse ao Senhor: Senhor, eis que eu dou
aos pobres metade dos meus bens; e, se em alguma coisa tenho defraudado al­
guém, o restituo quadruplicado (v. 8 ARC). Os verbos no presente (dar, didõmi;
restituir, apodidõmi) parecem ter uma força futurística. Eles indicam as intenções
de Zaqueu (Marshall, 1978, p. 697,698). Sua promessa de fazer restituição pelos
erros do passado, de mudar seu comportamento quanto ao pobre no futuro e de
ser reconciliado com sua comunidade parece ser um perfeito exemplo de arrepen­
dimento (vejaNeale, 1993, p. 184-188).
Mas alguns intérpretes traduzem que esses verbos no presente indicam sua prática
normal, já existente. Se assim for, a afirmação de Zaqueu é um “arrepiante protesto
de farisaísmo” (Fitzmyer, 1985, p. 1220). Mas, isso não se enquadra no contexto
narrativo. Certamente, ele não pode estar dizendo que normalmente engana as
pessoas e depois as restitui quatro vezes mais. Logo, ele estaria falido como cobra­
dor de impostos! Aliás, proclamar a inocência não é o que os pecadores fazem em
Lucas. Zaqueu simplesmente promete restaurar quaisquer fundos que ele tenha
adquirido fraudulentamente (se de alguém extorqui, sykophanteõ, um termo ine­
quívoco). Sua declaração não é uma autodefesa. No contexto, a aprovação de Jesus
indica uma genuína virada na história de vida de Zaqueu. Zaqueu realmente se
arrependeu de seus erros passados.
A afirmação de Jesus é a essência do Evangelho de Lucas: “Hoje houve salvação
nesta casa! Porque este homem também é filho de Abraão. Pois o Filho do
homem veio buscar e salvar o que estava perdido” (v. 9,10). A palavra salvação
(.sõtêria) ocorre somente em Lucas na tradição sinótica (veja 1.69-77; 2.30; 3.6).
222
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Da perspectiva da narrativa, o axioma de Jesus ecoa esse tema desde Lucas 1 e cum­
pre a sua promessa.
Filho do homem (19.10) tem diversos usos em Lucas: como uma autorreferência
geral, como alguém que sofre, como alguém que retorna. No contexto da apro­
ximação de Jesus a Jerusalém, o termo tem conotações de um Filho do Homem
sofredor (veja 9.22,44; 24.7).
Essa declaração paradigmática reitera o tema do pastor que sai à procura, que cuida
de suas ovelhas perdidas. Em 5.32, Jesus descreve Sua missão como uma chamada
ao arrependimento para os pecadores. Portanto, aqui também, a ênfase está nos
perdidos. Há também um eco do tema do filho perdido no capítulo 15. Zaqueu,
outro filho perdido de Abraão, agora está para ser recebido de volta com os braços
abertos.
Como com todos os principais pecadores da narrativa da viagem em Lucas, Za­
queu torna-se “achado” por seu encontro com Jesus (“^ 5.29-32, A partir do texto;
e 15.LIO, Por trás do texto). Ele é também um bom exemplo do frequente tema
“quanto mais ainda” do ensino de Jesus. Se Zaqueu pode ser achado, todos os pe­
cadores podem ser salvos.
A PARTIR DO TEXTO

Pela segunda vez em Lucas, um pecador fala por si mesmo (compare com 5.8).
Mas, dessa vez, o discurso defende o ministério de Jesus. As reclamações dos fari­
seus, mestres da Lei e do povo estavam equivocadas. Assim como Levi (5.27-32),
a mulher pecadora (7.36-50), o filho perdido (15.11-32) e o penitente publicano
no templo (18.9-14), Zaqueu foi “achado”, e a reação adequada é a alegria! A ran­
corosa resistência do povo quanto a essa graça libertadora é ilustrada por Lucas
como teimosa, e até mesmo intolerante. Esse é um dia de libertação para Zaqueu e
sua classe. Logo, os leitores ficam plenamente confirmados em sua compreensão de
que o arrependimento é para todos.
Assim como Jesus, Sua igreja deve estar desejosa de viajar para fora das mar­
gens tradicionais da aceitação. Tão desconfortável quanto isso possa fazer-nos, Je­
sus chama-nos para alcançar todos os pecadores.
Talvez, a tarefa mais difícil e persistente que a igreja enfrenta é manter as por­
tas abertas. Não devemos excluir aqueles que não se enquadram em nossos “pa­
drões”. Jesus considerou Zaqueu como um filho de Abraão, digno de Seu tempo.
A igreja só pode ser uma comunidade aberta quando abraçarmos a ética radical do
amor de Jesus.
223
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

4. A parábola das dez minas (19.11-28)

POR TRÁS DO TEXTO

Essa é uma das mais longas histórias de parábolas de Jesus. Ela aparece somen­
te em Mateus e Lucas. Marcos 13.34 tem uma história similar sobre “a vinda do
Filho do Homem”. (Snodgrass [2008, p. 523] aponta para histórias similares em
outras fontes antigas: Tob. 1.14; 4.20,21; 5.3; 3 Bar. 12-16, esp. 15.)
Tanto Mateus como Lucas usa essa parábola para ilustrar a aproximação do
Reino. Em Mateus 25.14-30, ela é uma entre várias parábolas semelhantes, conta­
das após a limpeza do templo (Mt 24—25; “O Reino dos céus será, pois, semelhan­
te” em Mt 25.1). Em Lucas, a história é o material final de ensino da narrativa da
viagem, quando Jesus se aproxima de Jerusalém (19.11). Essa é uma parábola sobre
líderes ausentes, sábios investimentos e o alinhamento das lealdades. Todas essas
são consideradas a partir da perspectiva da cataclísmica aproximação do Reino.
A parábola das dez minas (ou “libras” ou “talentos”) é uma história muito
difícil por diversas razões.
Primeiro, ela concentra-se em temas obscuros de ganância, prestação de con­
tas e opressão econômica da elite. O tema subjacente de temor produz uma frené­
tica atividade em alguns e paralisa outros.
Segundo, sua interpretação e aplicação permanecem obscuras. Será que o “no­
bre” representa Deus/Cristo? Será que ele realmente é tão severo? Será que nós
jmos os “servos” que vivemos debaixo de semelhante julgamento pelo modo que
investimos nossa vida?
O que esses temas têm a ver com a graça? A profunda ênfase teológica de
ucas é no arrependimento e perdão. Seu Evangelho oferece inclusão para todas
as pessoas. Os pecadores de todos os tipos podem participar (7.36-50; 15.11-32).
Todavia, existem imperativos e responsabilidades na vida dos discípulos.
Existe uma bem fundamentada conscientização do fracasso de Israel em Lu­
cas, e uma correspondente chamada ao arrependimento (-> 13.1-5). Existe inclu­
são, mas também existe exclusão (13.22-30). Existe a graça do perdão, mas tam­
bém a responsabilidade de levar diariamente a cruz (9.23). Existe a conversão, mas
também as obras que definem a vida dos discípulos. Existe uma recepção aberta ao
banquete para todos que se arrependem (14.15-24), mas também existem coisas
que os discípulos precisam “fazer” (10.25).
Em Lucas, a graça e a responsabilidade estão lado a lado em uma misteriosa
tensão. Embora a ênfase preponderante de sua teologia esteja na graça, essa
parábola também define a teologia de Lucas. E, se a proporção teológica de Lucas
224
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

permanecer em mente, a parábola pode inspirar os leitores a colocar suas convicções


na prática diária.
Diversas interpretações têm sido propostas para essa parábola (veja Snodgrass,
2008, p. 528,529; Wright, 1996a, p. 632-639). Frequentemente, o nobre é identi­
ficado como Cristo; e o seu “retorno”, como a segunda volta. O investimento das
minas encoraja a igreja a usar sabiamente o tempo entre a primeira e a segunda vin­
da de Cristo. Os comentaristas notam que o uso de Lucas quanto à ordem Façam
esse dinheiro render (v. 13) seja uma indicação de um estilo de vida de serviço a
Deus. Esse significado, porém, teria feito pouco sentido aos primeiros ouvintes de
Jesus, e isso argumenta contra tal adoção.
Todos os leitores (antigos e modernos) estão inclinados a identificar-se com o
terceiro servo. Nós ficamos naturalmente indignados com o comportamento “in­
justo” do nobre. O terceiro servo não representa a igreja. Talvez, ele corresponda
aos judeus que, obstinadamente, preservam “o dom precioso” da Torá em detri­
mento de um futuro melhor. A história desafia esse pensamento tão conservador.
Ela convida à “liberdade de ação”, que nos libera da sabedoria convencional (Scott,
1989, p. 234). Isso harmoniza bem com os temas de Lucas que elevam a respon­
sabilidade individual e a iniciativa. Ela abre o caminho da redenção mais do que a
convenção permitia.
Outros encontram o significado da parábola no contexto do conflito de Jesus
com Seus contemporâneos. A imediata subida de Jesus para Jerusalém estava em
vista. Os “servos” representam Seus adversários, os fariseus e as autoridades reli­
giosas. Isso também encaixa-se bem com o plano narrativo de Lucas de conflito
quanto ao seu generoso tratamento para com os pecadores.
NO TEXTO

■ 11-17 0 tratamento de Lucas difere do de Mateus pelo acréscimo de um tema


da ascensão ao poder real do homem nobre (veja Snodgrass, 2008, p. 523-525).
Lucas coloca a parábola em conexão com a subida de Jesus a Jerusalém e a “ma­
nifestação” do Reino de Deus (v. 11). Logo, a história faz uma alusão à iminente
rejeição de Jesus como rei de Jerusalém.
Na versão de Mateus, o principal personagem é simplesmente “um homem” rico
{anthropos, Mt 25.14). Em Lucas, ele é um homem de nobre nascimento (eugenês,
“homem nobre” ARC) que sai para ser coroado rei (v. 12; ^ 19.38, onde Jesus é
proclamado rei em Sua entrada triunfal em Jerusalém). Lucas enfatiza a natureza
real da situação do homem ainda mais ao recompensar os servos sábios com o go­
verno de cidades (v. 17,19; veja Ap 2.26,27; SS 3.8).
225
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Somente Lucas menciona a ira contra o governante: os seus súditos o odiavam


(Lc 19.14), e o nobre descreve seus relutantes súditos como seus “inimigos” (tous
echthrous, v. 27). Semelhantemente, o povo proclama Jesus rei em Sua entrada
triunfal. Mas, os “fariseus” e “os chefes dos sacerdotes, os mestres da lei e os líderes
do povo” opõem-se à Sua proclamação de Seu estado real (v. 39,47). Eles planejam
matar o nobre odiado (v. 47,48). A história parece expressar o tema de Lucas do
conflito com os fariseus e as autoridades do templo.
O tema literário de conflito dentro da parábola também conecta com a história
política contemporânea. O fio da história da parábola está baseado nas realidades
da vida na Palestina do primeiro século. Quando Jesus se aproximava de Jerusalém,
alguns de Seus seguidores pensavam que o Reino de Deus ia se manifestar de
imediato (v. 11). Seus discípulos esperavam que uma mudança política em Jerusa­
lém estivesse às portas.
As transições políticas eram frequentemente acompanhadas de violência (v. 27).
Essa realidade social, sem dúvida, esclarece o modo como os ouvintes de Jesus te­
riam entendido a parábola das dez minas. Eles presumiam que a violência acom­
panharia o advento do Reino de Deus. Quando o poder real troca de mãos, as
lealdades de todos os súditos são testadas. Os que fracassam no teste enfrentam
consequências diretas.

A política da transição na Palestina

Um exem plo histórico da política da transição na Palestina é a jornada


de Arquelau a Roma em 4 a .C . Ali, ele buscava a confirm ação de A ugusto
para a sua ascensão ao tro no após a m o rte de seu pai, Herodes, o G ran­
de. Josefo registra a busca de Arquelau e os esforços para im pedirem a
ascensão dele (G.J. 2.2.2, §16; veja Green, 1997, p. 676; com pare com Lc
19.12,14).
Os adversários de Arquelau seguiram -no até Roma para opor-se à
sua indicação com o rei. Uma exp e cta tiva de tra nsição cataclísm ica para o
Reino de Deus poderia m u ito bem te r esclarecido a in te rp re ta çã o de Seus
discípulos quanto à parábola (v. 11). Jesus parecia ind ica r que o advento
do Reino seria um teste do ca rá te r de todos.

Os que são testados são representados na parábola pelos dez servos (v. 13). Cada
um recebeu uma mina (v. 16), aproximadamente o equivalente a três anos de tra­
balho. Embora dez servos recebessem o mesmo capital, somente três são chamados
226
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

para prestar contas na história. O primeiro recebeu dez minas pela única mina que
tinha, um aumento de dez vezes (v. 16). O homem nobre elogiou o sucesso dele:
Muito bem, meu bom servo! (v. 17).
■ 18-27 O segundo servo recebeu um aumento de cinco vezes mais (v. 18).
Ambos os escravos sáo recompensados com um número proporcional de cidades
para governar.
O terceiro servo, temendo que qualquer perda do dinheiro de seu patrão colocasse-
-o em risco, simplesmente o escondeu em um lugar seguro. Ele retornou exatamen­
te aquilo que havia recebido sem nenhum rendimento. O homem nobre pegou a
mina devolvida dele e deu-a ao primeiro servo.
Aqueles que testemunharam essa injustiça protestaram: ‘Senhor5, disseram, ‘ele
já tem dez!5 (v. 25). Esse desabafo da multidão na história de Jesus força o Seu
“público à introspecção” (Scott, 1989, p. 232).
A parábola enfatiza a fidelidade dos servos/discípulos durante o período de teste,
enquanto o patrão estava ausente. O objetivo não é tanto quando o Reino virá, mas
sobre quem ele virá como uma bênção. A resposta é somente aqueles que são fiéis
ao seu senhor enquanto Ele está longe (Green, 1997, p. 675). Duas afirmações que
já encontramos em Lucas estão embutidas nesta história:
Primeiro, as palavras do senhor para o primeiro servo: “’Por ter sido confiável no
pouco, governe sobre dez cidades”’ (v. 17). Em 16.10-12, os que foram fiéis nas
questões pequenas receberam ainda mais responsabilidades. Ambas as histórias
enfatizam a fidelidade dos servos na ausência da supervisão de seus senhores.
Segundo, a afirmação no versículo 26: Eu lhes digo que a quem tem, mais será
dado, mas a quem não tem, até o que tiver lhe será tirado. Isso foi visto previa­
mente em Lucas 8.18 e 12.48.
A parábola das dez minas concentra-se na importância do tempo presente em an­
tecipação ao futuro advento do Reino. Sua premissa básica é que a disposição de al­
guém no “ainda não” será a mesma disposição no “agora”. Aqueles que demonstram
responsabilidade no presente terão mais no mundo vindouro. A recompensa da
fidelidade agora será o aumento da responsabilidade. O Reino vindouro que Jesus
vislumbra não parece ser um reino em que Seus seguidores descansam confortavel­
mente nas nuvens celestiais.
O acréscimo presente exige que os discípulos arrisquem a perda de tudo aquilo
que receberam. A parábola de Jesus parece instigar Seus discípulos a “viverem peri­
gosamente” nos interesses do Reino iminente. Os discípulos deveriam concentrar
a atenção em quem eles são agora, e não no que eles se tornariam quando a nova
realidade viesse. A plena consciência no presente momento é de suprema impor­
tância. A teologia wesleyana recusa-se a desvalorizar o presente na expectativa de
227
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

um futuro mais glorioso. O convite bíblico para “ser santo” é para o presente, e não
para o Reino futuro.
H 2 8 O fim da narrativa da viagem é marcado pela subida a Jerusalém no versículo
28: Depois de dizer isso, Jesus foi adiante, subindo para Jerusalém. Esse é o
contraponto de 9.51: “Aproximando-se o tempo em que seria elevado ao céu, Jesus
partiu resolutamente em direção a Jerusalém”.
Jesus, agora, chegou ao final de Sua jornada e começa a subida dos 22km (cerca de
14 milhas) para Jerusalém, saindo de Jerico (veja 10.30). E um aclive de aproxima­
damente 900m (cerca de três mil pés). A estrada é chamada de Maaleh Adummim,
“subida vermelha”, devido ao solo avermelhado de sua parte inferior (Rogerson,
1989, p. 184). Essa é a estrada que apareceu na parábola de Lucas do bom samari-
tano (10.30). Os leitores atentos sabem que, enquanto Jesus sobe essa estrada, Sua
morte está próxima.
A PARTIR DO TEXTO

O terceiro servo opôs-se ao novo rei ao recusar investir a mina que lhe fora
confiada pelo rei. Será que isso foi uma resistência baseada em princípios quanto à
avareza e a corrupção do atual rei, ou um ato de fraqueza, recusando-se a arriscar
pelo menos o mínimo por medo de retaliação? Será que ele é um rebelde heroico
ou um covarde? Por um lado, a resistência do homem é moralmente corajosa. Ele
recusou participar de uma economia que ele considerava corrupta, na qual a re­
compensa não flui para os seus legítimos beneficiários: “Tiras o que não puseste
e colhes o que não semeaste” (v. 21). O dilema dele é o mesmo daqueles que se
encontram sujeitos a uma força dominadora - a escolha pode, às vezes, ser a cola­
boração ou a morte. Na história de Jesus, a morte aguardava os que resistiam o rei
injusto da parábola (v. 27).
A interpretação adequada da parábola não é uma questão simples. Ela pode ser
entendida como uma exortação aos discípulos para investirem nos dons que Deus
lhes tem dado para a propagação do Reino. Nessa leitura, o senhor da parábola,
metaforicamente, representa Deus, e os servos representam o Reino, ou seja, os
discípulos. Ou, a parábola pode ser um aviso aos adversários de Jesus para reconhe­
cerem o novo rei que está subindo para Jerusalém. Ou, talvez, a parábola possa ser
entendida como uma celebração da resistência moral contra os abusos da usura.
Essa leitura tem muito a recomendar, dadas as opiniões de Lucas sobre a riqueza.
Como a maioria das parábolas, a busca pela interpretação correta é equivocada. As
parábolas são, geralmente, polivalentes - elas deixam em aberto diversos significa­
dos possíveis.
228
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

5. O Senhor aproxima-se da cidade (19.29-40)


■ 29-40Jesus aproximou-se de Betfagé e de Betânia, no monte chamado das
Oliveiras (v. 29), vindo do leste, pela estrada de Jericó. A exata localização de Be­
tfagé é desconhecida, mas deveria ser perto de Betânia e separada de Jerusalém
pelo monte das Oliveiras e pelo vale de Cedrom (v. 30). Jesus, provavelmente,
planejava descer o monte das Oliveiras e atravessar o vale de Cedrom perto da an­
tiga porta de Jericó, conhecida hoje como a Porta de Santo Estêvão. Em preparação
para a Sua entrada, Ele enviou dois de Seus discípulos a Betânia para encontrar um
jumentinho para Ele montar entrando em Jerusalém (v. 30).
Lucas não faz uma referência específica a Zacarias 9.9 (compare Mt 21.5; Jo 12.15).
“A mula era o transporte dos reis (1 Rs 1.33), e o fato de o jumentinho estar amar­
rado é uma alusão a Gênesis 49.11. Esse é um texto sobre a profecia de Jacó sobre
Judá que tinha uma interpretação messiânica nas fontes rabi nicas” (.DB1, p. 215).
Outro eco bíblico nessa passagem encontra-se em 2 Reis 9.13. Ali, os servos de Jeú
gritaram “Jeú é rei!” e estenderam seus mantos sobre os degraus no momento de
sua unção. O relato de Lucas daquilo que tem sido tradicionalmente chamado de
entrada triunfal tem ricas alusões intertextuais e repete o sinal bíblico da peregri­
nação estendido a um rei recém-ungido.
Em reação à entrada de Jesus, o povo gritava uma aclamação a Ele como rei: “Ben­
dito é o rei que vem em nome do Senhor!” “Paz no céu e glória nas alturas!”
(Lc 19.38, citando SI 118.26; veja Evans e Sanders, 1993, p. 140-154). Isso cumpre
as palavras de Jesus em 13.35.
A confissão da multidão é crucial para Sua identidade lentamente revelada. Lu­
cas transita das afirmações proféticas (2.22,26; 4.41), aos rumores (9.7-9,18,19), e
para as revelações secretas (9.20-22,28-36,44,45; 17.22-37), à proclamação públi­
ca indireta (18.38,39), à proclamação pública (19.38). O ciclo revelador agora está
completo. A declaração pública foi feita: Jesus é Rei. O estágio da narrativa está
preparado para a paixão. As predições dos sofrimentos de Jesus em Lucas agora
serão cumpridas (9.22,44,51; 17.25; 18.31-34).
Quando os fariseus na multidão admoestam Jesus, repreende os teus discípulos!
(19.39), Ele responde que a própria criação falaria se eles calassem-se: “Eu lhes
digo”, respondeu ele, “se eles se calarem, as pedras clamarão” (v. 40); veja Hc
2.11). “Teria sido aceitável recitar o Salmo 118 como um entre muitos salmos em
celebração a um festival, mas seria blasfêmia encená-lo com seus significados reais
àqueles que não estivessem convencidos de suas reivindicações” (Evans e Sanders,
1993, p. 143,144).
229
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A cena tem ecos da jubilosa procissão liderada por Davi quando ele trouxe a arca de
Deus para a Cidade de Davi (2 Sm 6.12-15; veja SI 118.27). O comentário de Jesus
sobre as pedras clamando sugere que toda a criação uniu-se no reconhecimento de
Sua unção como legítimo rei. Se aqueles que Deus criou à Sua imagem não clamas­
sem, isso não mudaria o fato de que Jesus era rei. A própria criação se alegraria e
proclamaria a verdade.
A referência a pedras (Lc 19.40) oferece outro eco intertextual. Em diversas oca­
siões, Lucas refere-se a Isaías 8.14,15. Ali, o Senhor dos Exércitos declara: “Para
os dois reinos de Israel ele será um santuário, mas também uma pedra de tropeço,
uma rocha que faz cair. E para os habitantes de Jerusalém ele será uma armadilha
e um laço. Muitos deles tropeçarão, cairão e serão despedaçados, presos no laço e
capturados” (-> Lc 7.23; 17.1-4 e 2.24). Ironicamente, as pedras que fazem os im­
penitentes tropeçarem estão agora prontas para clamar a identidade de Jesus como
o Deus ungido.

6. Jesus chora pela cidade (19.41-44)

POR TRÁS DO TEXTO

Jesus foi identificado como o Filho de Davi. Essa identificação começou em


Lucas 1.32 e é confirmada quando Ele aproxima-se de Jerico, “filho de Davi, tem
misericórdia de mim!” (18.38; 18.35-43). Jerusalém é a cidade de destino tanto
para Davi como para Jesus (9.30,51; 13.33; 17.22-37). Logo, a identificação de
Jesus como Filho de Davi estende-se ao relacionamento íntimo com a cidade santa.
Jerusalém é para Jesus o que Jerusalém era para Davi, um símbolo de Sua autorida­
de real.
No passado, Jerusalém foi julgada e achada em falta por Deus por sua atitude
para com Seus profetas (Jr 35.12-17; Lc 13.31-35). A persistente pergunta,
desde o primeiro lamento de Lucas sobre a cidade em 13.31-35, é “Como a cidade
reagirá ao novo Filho de Davi ?”.
A pergunta ainda está em aberto no capítulo 13. No entanto, as alusões em
17.27-37 e aqui esclarecem: Jerusalém falhará em receber o Filho de Davi. A casa de
Jerusalém está “abandonada” (13.35 NTLH); seus habitantes serão “reduzido[s] a
pó” (20.18); e seus prédios, destruídos (19.44). Logo, o lamento de Jesus aqui tem
a força de uma denúncia profética da cidade. Jerusalém irá rejeitar o Filho de Deus
e, como resultado, será destruída. Quando Ele entra na cidade, os leitores esperam
que tudo, menos a tristeza aguarde-o.
230
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

NO TEXTO

H 41-44 Ao aproximar-se da cidade, Jesus diz, Se você compreendesse neste


dia, sim, você também, o que traz a paz! Mas agora isso está oculto aos seus
olhos (v. 42). A atitude de Jerusalém quanto aos profetas de Deus sempre foi a
prova de fogo do relacionamento de Israel com o Senhor.
No primeiro lamento de Jesus sobre a cidade (13.31-35), ouvimos um eco de Jere­
mias 35.12-17. A teimosa recusa de Israel de arrepender-se face à ameaça babilóni­
ca estava representada e centrada na cidade de Jerusalém. Logo, o julgamento foi
direcionado contra a cidade como o símbolo do povo de Deus.
Após o exílio, tanto no Proto-Zacarias (1—8) como no Deutero-Zacarias (9—
14), a cidade de Jerusalém ainda figurava como o barômetro da atitude de Israel
para com Deus. As vezes, Jerusalém estava “em paz e prosperava” (Zc 7.7), mas,
depois, vinham tempos de teimosia, quando seus habitantes viravam as costas para
o Senhor e “taparam os ouvidos” (Zc 7.11). “Reunirei todos os povos para lutarem
contra Jerusalém; a cidade será conquistada, as casas saqueadas e as mulheres vio­
lentadas” (Zc 14.2).
No AT, a paz de Jerusalém dependia de sua reação aos profetas e do convite deles à
justiça (Zc 7.9). O arrependimento na forma de justiça social para os oprimidos e
o reconhecimento do verdadeiro profeta de Deus é o que Jesus queria dizer com o
que traz a paz (Lc 19.42).
Outrora, a obstinada recusa de arrepender-se levou à destruição da cidade santa.
Agora, Jesus traz uma grave mensagem profética: os seus inimigos construirão
trincheiras contra você, a rodearão e a cercarão de todos os lados. Também a
lançarão por terra, você e os seus filhos. Não deixarão pedra sobre pedra, por­
que você não reconheceu a oportunidade que Deus lhe concedeu (v. 43,44).
Israel já perdeu sua oportunidade de responder. Faz parte do paradigma moral de
Lucas de que poderiam ter-se arrependido, mas não o fizeram. Isso reforça sua ên­
fase na eficácia do arrependimento e no perigo da obduração. Em certo sentido,
Jerusalém funciona como mais um personagem que fracassa a esse respeito. Do
jeito que as coisas estão, a sorte foi lançada e Jerusalém realmente cairá.
Por um lado, Jesus não veio trazer uma paz política e social por meio de Seu minis­
tério terreno (12.51). Por outro, o Jesus de Lucas tem uma ampla visão escatológica
de paz, o que é menos proeminente em Mateus e Marcos (Lc 1.79; 2.14; 19.38).
Atos 10.36 chama o evangelho de as “boas novas de paz por meio de Jesus Cristo”.
Mas, em Lucas, essa paz certamente não se estende a Israel ou à sua cidade santa por
causa de sua rejeição ao Messias.
231
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Quando Jesus se aproxima da cidade, ela já está no caminho de resoluta destruição.


Isso culminará na destruição da cidade pelos romanos em 70 d.Q. Para a narrativa
de Lucas, esse não é o fim da questão, entretanto. Jerusalém também será o local da
salvação após a morte e ressurreição de Jesus. O Cristo ressurreto dirá aos Seus dis­
cípulos que a mensagem do arrependimento para perdão será pregada “começando
por Jerusalém” (24.47; compare com At 1.8).
Até mesmo o At enxerga através da destruição de Jerusalém e vislumbra a sua re­
denção (Zc 12.3). E assim faz o Evangelho de Lucas. Eventualmente, de acordo
com Zacarias, a supremacia de Jerusalém como habitação de Deus na terra seria rei­
vindicada, e Deus iria, após a destruição, novamente pisar no monte das Oliveiras e
trazer a resolução da história (Zc 14.4). Assim também, Jesus subirá do monte das
Oliveirâs em Sua partida, inaugurando uma nova fase da história (Lc 24.50,31).

A destruição de Jerusalém

Os inim igos m encionados no versículo 43 são os rom anos, com o os


aco nte cim entos provarão nas décadas posteriores. Entre outras causas,
a G rande Revolta surgiu em resposta ao roubo dos recursos do te m p lo
pelo ú ltim o prefeito rom ano em Jerusalém, Gessius Florus, em 66 d .C .
Essa rebelião foi fin a lm e n te aplacada pelos rom anos em 70 d.C.. A revol­
ta resultou em a cidade ser sitiada por Tito e forçada a passar fom e até
subm eter-se.
Isso era re alm en te um a questão de realidade histórica para Lucas.
O seu Evangelho reflete a queda de Jerusalém realizada. Ele sabe que
os rom anos con struíram trin ch e ira s contra Jerusalém, rodeou a cidade e
cercou-a de todos os lados (v. 43).
Isso refere-se ao m étodo do cerco. As ram pas eram construídas para
penetras nas im ensas m uralhas de Jerusalém, e todas as vias de acesso
eram cortadas, de form a que o povo não pudesse sair, e nem os s u p rim e n ­
tos pudessem entrar. Embora algum as torres e m uralhas fossem deixadas
intactas, a destruição da cidade v irtu a lm e n te sofreu um a fatalidad e, na
qual não sobrou pedra sobre pedra (v. 44).

232
V. JESUS EM JERUSALÉM (19.45-21.38)

A. Jesus retira os vendedores do templo


(19.45-48)

NO TEXTO

fl 45-48 Temos percebido os temas convergentes da filiação davídica e de Jeru­


salém como a Cidade de Davi e de Jesus (v. 41-44). Jerusalém era o local do templo
de Deus, e Jesus já foi publicamente proclamado o Filho de Davi e rei antes de
entrar na cidade santa. O drama dele dentro da cidade será encenado em relação
ao templo e à hierarquia. O templo é o ambiente da atividade de Jesus e de Seus
ensinamentos nos capítulos 20 e 21.
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O primeiro ato de Jesus ao entrar na cidade foi ir ao templo e começar a expulsar


os que estavam vendendo (v. 45). Os átrios do templo forneciam espaço para os
vendedores de animais e para o câmbio de dinheiro; serviços necessários para o
funcionamento dos cultos no templo. A afirmação de que o templo era mais apro­
priado para ser uma casa de oração (v. 46) pode parecer uma crítica profética ao
sistema sacerdotal de sacrifício.
No entanto, o texto que Jesus cita no versículo 46 é de Isaías 56.7. Ali, Isaías des­
creve que as orações e os sacrifícios são agradáveis a Deus. Em outro lugar, Lucas/
Jesus não expressa nenhuma reserva sobre a oferta de sacrifícios segundo o costume
cultual do dia (Lc2.24; 5.14; 17.14). A segunda parte da citação em 19.46b vem de
Jeremias 7.11: “Este templo, que leva o meu nome, tornou-se para vocês um covil
de ladrões?” Isso sugere que o desabafo de Jesus era devido mais à ira pela corrup­
ção dos serviços auxiliares nos átrios do templo do que rejeição ao próprio culto.
Lucas diz-nos que Jesus ensinava no templo “diariamente”, mas não oferece indi­
cação alguma sobre quantos dias isso perdurou. Lucas indica somente que o Seu
ensino causava oposição dos chefes dos sacerdotes, dos mestres da lei e dos líde­
res (Lc 19.47; 20.1). Na verdade, eles estavam procurando matá-lo (19.47), mas
não encontravam oportunidade por causa do favorecimento que Ele encontrou
por parte do povo (v. 48).
A narrativa passa rapidamente da entrada triunfal, durante a qual Jesus é procla­
mado rei, para a cena mortal, na qual Sua vida corre perigo a cada hora. A carac­
terização de Lucas da unânime oposição a Jesus entre os principais cidadãos de
Jerusalém, sem dúvida simplifica demasiadamente as complexas influências que
levaram à Sua morte. Ainda assim, da perspectiva da narrativa, a cena dos capítulos
subsequentes está preparada sobre o mais tenebroso palco possível.

B. Jesus ensina no templo (20.1—21.4)

1. Sob que autoridade? (20.1-8)

POR TRÁS DO TEXTO

A característica central da narrativa da paixão (19.45—24.52) é a luta de Jesus


com as autoridades do templo. Os “chefes dos sacerdotes” e seus aliados agora são o
principal desafio à autoridade divina de Cristo. A luta com os romanos não consta
proeminentemente até o capítulo 23.
234
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

A oposição da hierarquia do templo é prefigurada em 9.22. Ali, Jesus inicial­


mente prediz Sua morte: “E disse: ‘É necessário que o Filho do homem sofra mui­
tas coisas e seja rejeitado pelos líderes religiosos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos
mestres da lei, seja morto e ressuscite no terceiro dia ”. Subsequentemente, elas apa­
recem em 20.19; 22.2,4,52,66; 23.4,10,13; e 24.20.
Jesus encontra dois tipos distintos de oposição em Lucas. A primeira ocorre na
narrativa da viagem e vem dos fariseus e seus aliados. O segundo tipo surge da hie­
rarquia do templo na narrativa da paixão. Seus adversários na narrativa da viagem
tinham somente a autoridade da tradição. Jesus desafiava livremente esse tipo de
autoridade e, em cada caso, afirmava Sua própria visão da interpretação adequada
da Escritura e da prática. No entanto, na paixão, Jesus não se opõe à autoridade
sacerdotal, embora a autoridade que eles exerçam seja amparada pela força letal por
intermédio dos romanos.
Jesus mostrou-se capaz de triunfar sobre todo tipo de oposição. Ele venceu os
demônios, a insanidade, a enfermidade física, a morte e até o diabo. Ele confronta
a autoridade humana da tradição como era entendida pelos fariseus. Contudo, Ele
não irá, ao que parece, resistir à autoridade institucional representada pelos chefes
dos sacerdotes. Por que não ?
A agenda de Lucas de extrema inclusão estende-se a todas as pessoas, que­
brando as barreiras da aceitação convencional. Ele parece sempre estar desafian­
do as fronteiras em nível pessoal. Mas, o seu Evangelho nunca levanta um desafio
direto aos limites da autoridade institucional, seja a romana, ou o templo. Sejam
quais forem as razões históricas que fundamentem essa reticência, seu contínuo
fio condutor literário é aquele em que a morte de Jesus é preordenada dentro do
contexto do judaísmo do templo. A submissão de Jesus à autoridade sacerdotal é
uma exigência necessária para o drama a desenrolar-se. Nesse aspecto da narrativa,
Lucas é semelhante aos outros escritores dos Evangelhos. Nenhum desafia as estru­
turas políticas e institucionais diretamente, especialmente em termos da história
da morte de Jesus.
Para os propósitos da narrativa, os chefes dos sacerdotes são os representantes
oficiais da cidade de Jerusalém e de Israel. Esse grupo fornece a resposta definitiva
para a pergunta, “Como a cidade santa reagirá ao novo Filho de Davi ?”. A rejeição
a Jesus representa a rejeição oficial de Cristo como Filho de Davi por Israel na nar­
rativa, e, logo, sela o destino da cidade (19.42-44).
235
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Fontes de oposição das autoridades


religiosas em Lucas
E n c o n t r o s n a n a r r a t iv a d a v ia g e m

Líderes religiosos, chefes dos sacerdotes e 9.22


m estres da Lei
Fariseus 6.2; 7.36; 1 1 .3 9,4 2,43; 12.1; 13.31; 16.14;
17.20; 19.39
Fariseus e m estres da Lei 5.1 7 ,2 1 ,3 0 ; 6.7; 11.53; 15.2

Fariseus e p e rito s na Lei 7.30; 14.3

E n c o n t r o s n a n a r r a t iv a d a p a ix ã o

Chefes dos sacerdotes, m estres da Lei e


19.47
líderes do povo
Os chefes dos sacerdotes, ju n ta m e n te com 20.1
os m estres da Lei e os líderes religiosos

M estres da Lei e chefes dos sacerdotes 20.19

Chefes dos sacerdotes e m estres da Lei 22.2; 23.10

Chefes dos sacerdotes e o fic ia is da guarda


22.4
do te m p lo
Chefes dos sacerdotes, o ficia is da guarda do
22.52
te m p lo e líderes religiosos
C onselho dos anciãos, ta n to os chefes dos
22.66
sacerdotes, com o os m estres da Lei

Os chefes dos sacerdotes e o povo 23.4

Os chefes dos sacerdotes, as a u to rid a d e s e


o povo 23.13

Os chefes dos sacerdotes e as nossas a u to ­


24.20
ridades

NO TEXTO

I 1-3 Os chefes dos sacerdotes, juntamente com os mestres da lei e os líderes


religiosos (v. 1) questionam Jesus nos átrios do templo. Sem nenhuma tentativa
de desenvolver a narrativa, Lucas simplesmente os introduz como adversários de
Cristo.
Note a mudança de perspectiva sobre o ministério sacerdotal em relação ao pri­
meiro capítulo de Lucas. Lá, a posição de Zacarias como sacerdote fornece um
testemunho autoritário do nascimento de João (“^ 1.67). Isso não se traduz em
respeito pela liderança do templo aqui. Agora, os chefes dos sacerdotes são tão
236
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

cegos como os fariseus no decorrer da seção da narrativa da viagem. As linhas do


bem e do mal na paixão são firmes.
A pergunta dos chefes dos sacerdotes a Jesus é, Com que autoridade estás fazen­
do estas coisas? Quem te deu esta autoridade? (20.2). A fonte da autoridade de
Jesus foi um tema proeminente na narrativa da viagem (veja 4.6,33-37; 5.24; 9.1;
10.19). Esse surge novamente agora no contexto de Sua condenação pelas autori­
dades de Jerusalém. Jesus responde à pergunta com uma charada, ou boruth - uma
pergunta designada a envergonhar os oponentes.
H 4 -8 Aqui, a pergunta de Jesus tem a ver com a autoridade de João Batista.
“Além disso, vou fazer-lhe uma pergunta. Diga-me: o batismo de João era do céu,
ou de origem humana?” (v. 3,4 NIV11, tradução livre). A pergunta representa um
enigma para as autoridades. Em 7.30, a rejeição de João Batista pelos fariseus e
mestres da Lei desqualificava-os do Reino de Deus. Agora, os chefes dos sacerdotes
encontram-se no lado oposto da opinião popular sobre o assunto de João: “Mas,
se dissermos, ‘de origem humana’, todas as pessoas nos apedrejarão, porque elas
estão convencidas de que João era um profeta” (20.6 NIV11, tradução livre). Não
é apenas por causa da popularidade de João que eles equivocaram-se, mas também
devido à popularidade de Jesus - “todo o povo estava fascinado pelas suas palavras”
nos átrios do templo (19.48). As autoridades estão em uma situação insustentável,
e a paixão seguirá avante com um inimigo claramente definido na narrativa.
A PARTIR DO TEXTO

Na narrativa da viagem, Jesus triunfa sobre todas as sortes de forças espirituais


e físicas. Mas, ele não vencerá a vontade dos homens em Jerusalém. O texto apre­
senta aos leitores a seguinte questão: “Por que Jesus falha em vencer a autoridade
humana quando todas as outras forças cederam diante dele?” Ou, “Por que Jesus
escolheu morrer?”
Por um lado, a resposta simples é a compulsão universal: é o destino profético.
Essa é a abordagem de Lucas na primeira menção da morte de Jesus: “É necessário
que o Filho do homem sofra muitas coisas e seja rejeitado (...) Seja morto” (Lc
9.22, ênfase adicionada).
No entanto, a narrativa apresenta-nos mais um aspecto da morte de Jesus. O
mesmo Jesus a quem a autoridade foi dada para perdoar pecados, curar enfermida­
des e expulsar demônios (5.24; 9.1) opta por submeter-se à força letal das autori­
dades. Sua interação com os chefes dos sacerdotes não é inerte, de forma alguma.
Ele é enérgico em suas respostas, mas finalmente, voluntariamente se submete à
autoridade deles (compare com Mt 26.53).
237
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Nós já vimos o paradigma de salvação mudar de “eleição/não eleição” para


“perdidos/achados” com sua ênfase inerente na ação humana. Aqui, é também a
escolha que torna a paixão de Jesus significativa. Lucas movimenta seu paradigma
consistentemente. Assim como a escolha é central ao evangelho dos perdidos sen­
do encontrados (arrependimento e perdão), assim também é central na morte de
Jesus. A submissão voluntária torna a decisão de morrer nas mãos das autoridades
teologicamente e moralmente válida. Isso também justifica o destino que Jerusa­
lém sofrerá como resultado de sua rejeição.
Se Jesus fosse morrer apenas por causa da compulsão universal, Sua morte não
teria o mesmo significado. Assim como os perdidos podem decidir ser encontra­
dos, assim também Jesus decide cumprir Seu propósito redentor. A livre escolha é
inerente ao quadro teológico de Lucas, tanto na seção da viagem como na narrativa
da paixão.

2. A parábola da vinha (20.9-19)

POR TRÁS DO TEXTO

A parábola da vinha é do material da tripla tradição (Mt 21.33-46 || Mc 12.1-


12; também Ev. Tomé 65; 66). Pragmaticamente, a função dessa parábola na estru­
tura da história é aumentar o conflito entre Jesus e as autoridades do templo. Na
conclusão da parábola, eles querem “prendê-lo”, enviam “espiões” para “apanhar”
Jesus em Suas palavras e, assim, entregá-lo às autoridades (Lc 20.19,20). Dessa for­
ma, a parábola introduz a nova escala de oposição que logo levará à morte de Jesus.
A parábola tem sido chamada de “matagal de problemas” (Scott, 1989, p. 237;
veja p. 237-253) e “uma das mais significantes, mais discutidas e mais complicadas
das parábolas” (Snodgrass, 2008, p. 276; vejap. 276-299). Alguns intérpretes duvi­
dam que uma parábola tão claramente autorreferencial a Jesus como o “filho ama­
do” pudesse ter sido expressa por Ele. Outros questionam se Jesus teria usado uma
alegoria dessas em uma parábola. Muitos rastreiam as linhas gerais da parábola até
chegar a Jesus (veja Marshall, 1978, p. 726,727; e Fitzmyer, 1985, p. 1278-1280).
Além do mais, suas linhas alegóricas são bem diretas e essenciais à parábola.
O homem que planta a vinha representa Deus, ecoando os temas de Isaías
5.1-7. A vinha é Israel, e os lavradores são os líderes de Israel. Os servos podem
facilmente ser entendidos como referindo-se aos profetas do AT. O filho é Jesus.
Logo, diferentemente de outras parábolas do Evangelho, o significado desta está
primariamente em suas implicações quanto à cristologia.
238
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Em seu sumário em Lucas 20.17,18, Jesus refere a si mesmo como a pedra


rejeitada pelos construtores em Salmo 118.22,23. Ele é a pedra que faz com que
muitos tropecem (Is 8.14,15). Essas referências intertextuais enchem a parábola
de significados negativos dos quais os “mestres da lei e os chefes dos sacerdotes”
ofendem-se.
Essa parábola é um exemplo daquelas que possuem uma explicação alegórica
(veja Mc 4.1-9; Lc 8.4-15; Mt 13.37-43,49,50; Jo 10.1-18). Essas interpretações
parecem ser independentes das parábolas (“^ Lc 8.4-15). Ou seja, a aplicação do
evangelista é anterior à data da parábola.
Aqui, a estrutura é, de certa forma, diferente de nossos exemplos anteriores.
Em vez de uma explicação do significado da parábola, a história culmina com a
citação de Jesus e uma explicação de um texto do AT. A parábola (20.9-16), na ver­
dade, serve para introduzir e explicar a citação do Salmo 118.22 (em Lc 20.17,18).
Aliás, Jesus fornece uma exegese midráshica do texto antes de citá-lo. Esse é, talvez,
o exemplo mais claro de uma abordagem midráshica da Escritura usada por Jesus.
O midrash é um método de explicação de um texto bíblico por meio da livre ex­
pansão e explanação pelo acréscimo de material de apoio.
NO TEXTO

B 9-12 A vinha (v. 9) é um símbolo convencional bíblico de Israel. Sua principal


base no AT está em Isaías 5. “Nenhum judeu precisava ser informado de que a his­
tória de um dono e sua vinha, de certa forma, tinha a ver com Deus e o Seu povo”
(Snodgrass, 2008, p. 292).
Enquanto Mateus e Marcos mencionam diretamente a cerca, o tanque de prensar
uvas e a torre de Isaías 5.2, Lucas omite esses detalhes. Em Isaías 5, Israel é clara­
mente identificado como a vinha do Senhor: “a vinha do Senhor dos Exércitos é
a nação de Israel, e os homens de Judá são a plantação que ele amava” (Is 5.7). No
texto de Isaías, Deus procura justiça em Israel, contudo, em vez disso, só vê derra­
mamento de sangue. Ele procura retidão, mas encontra gritos de desespero.
Em Isaías e em Lucas, o homem planta uma vinha (compare Is 5.1 || Lc 20.9). A
vinha de Isaías fica em uma colina, como é Jerusalém (Is 5.1). E, em ambas as passa­
gens, os lavradores da vinha desapontam o dono. Em Isaías 5.5, a vinha é destruída,
“Pois eu lhes digo o que vou fazer com a minha vinha: Derrubarei a sua cerca para
que ela seja transformada em pasto; derrubarei o seu muro para que seja pisoteada”.
Em Lucas 20.16, a vinha é dada “a outros”.
O dono da terra enviou sucessivos servos para coletar parte do fruto da vinha (v.
10). Isso pode referir-se à expectativa padrão do lucro que um servo produz para o
239
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

patrão (como na parábola das dez minas em 19.11-27). Ou, pode estar referindo-
-se às correntes injustiças das autoridades do templo que tomavam os dízimos que
seriam dos sacerdotes (Snodgrass, 2008, p. 295). Se esse era o caso, a ira das autori­
dades teria uma base forte em uma situação concreta da época. Acusar de roubo a
hierarquia do templo seria uma acusação grave.
Os lavradores abusaram dos dois primeiros servos enviados pelo proprietário. Eles
0 espancaram e o mandaram embora de mãos vazias (20.10). O segundo, eles
espancaram e o trataram de maneira humilhante (v. 11). Ao terceiro, eles o fe­
riram e o expulsaram da vinha (v. 12; veja 13.34, “Jerusalém, Jerusalém, você, que
mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados!”).
1 13-19 Então, o proprietário disse: ‘Que farei? Mandarei meu filho amado;
quem sabe o respeitarão’ (20.13). Dentro da narrativa de Lucas, a referência a
filho amado (v. 13, ton huion mou ton agapêton) ecoa a voz de Deus em 3.22: “Tu és
o meu Filho amado” (ho huios mou ho agapêtos). Ecoa também o pronunciamento
na transfiguração em 9.35: “Este é o meu Filho, o Escolhido” {ho huios mou ekleleg-
menos). A significância cristológica do tema é óbvia.
A esse mensageiro, os lavradores dizem, ‘Este é o herdeiro. Vamos matá-lo, e a
herança será nossa’ (20.14; os leitores interpretarão esse texto à luz da leitura de
9.22,31,44,51; 17.25; 18.31-34). Se os líderes de Israel são os lavradores, e Jesus é o
filho, nenhum dos temas é realmente novo para o leitor.
A sombria alusão a Isaías 5 não está perdida para os espectadores de Jesus. Eles
respondem à entrega da vinha a outros dizendo, Que isso nunca aconteça! (Lc
20.16). A insinuação é clara: o relacionamento do proprietário com avinha repre­
senta a aliança da eleição de Israel com o Senhor.
Sugerir que a vinha será dada a outros representa a revogação da aliança da eleição.
“O que é tirado dos lavradores é o privilégio de estar envolvidos com os propósitos
de Deus, ou, em outras palavras, a eleição e as promessas de Deus” (Snodgrass, 2008,
p. 293).
O que está implícito no relato de Lucas quanto à parábola da vinha está explícito
em Mateus, que inclui uma frase que Lucas não inclui: “Portanto eu lhes digo que o
Reino de Deus será tirado de vocês e será dado a um povo que dê os frutos do Rei­
no” (Mt 21.43). Os debates de Jesus com os fariseus ficam pálidos em comparação
com a mensagem do ensino de Cristo aqui entre os chefes dos sacerdotes. Agora,
Ele referiu-se abertamente à revogação da aliança de Deus de exclusividade para
com Israel. O debate religioso fez uma curva decisiva e perigosa. Diversas linhas da
narrativa encontram-se nesta revogação da aliança de exclusividade:
240
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Primeiro, Jerusalém, como representante oficial de Israel para as iniciativas de


Deus, é reforçada quando os chefes dos sacerdotes rejeitam Jesus como o novo Fi­
lho de Davi (veja Lc 19.41-44).
Segundo, Jerusalém será destruída: ‘A pedra que os construtores rejeitaram tor-
nou-se a pedra angular.’ Todo o que cair sobre esta pedra será despedaçado, e
aquele sobre quem ela cair será reduzido a pó (20.17,18; veja Sl 118.22).
Terceiro, a pedra rejeitada se tornará a pedra de tropeço (veja Is 8.14,15). Isaías
8.14,15 significa Tropeçar na pedra” (veja Lc 7.18-23; também Rm 9.33). Aqui, o
mesmo argumento está em vista. A rejeição de Jesus pelas autoridades de Jerusalém
constitui a rejeição da aliança de Deus, e, logo, a sua revogação.
Contudo, ao revogar a aliança da eleição, Lucas não exclui Israel da salvação. Isso sim­
plesmente muda os termos de referência do relacionamento de Deus com Seu povo
escolhido. Exclusivo, até o acesso privilegiado é retirado. Mas, é substituído com a oferta
mais ampla de salvação a todos os que estão perdidos. Israel pode encontrar a salvação
somente nos mesmos termos que todas as outras nações: arrependimento e perdão.

3. Os espiões fazem três perguntas a Jesus (20.20-47)

POR TRÁS DO TEXTO

Esses acontecimentos têm o tenebroso contorno de uma conspiração. Jesus


já havia se deparado com intenções letais, sinistras, anteriormente (4.29; 13.31).
Mas, a primeira foi um ato de uma multidão; e a segunda, uma tentativa direta de
assassinato. Em Jerusalém, a tentativa de matá-lo é uma trama, completa com uma
cilada, um informante e subterfúgios que tentam burlar o escrutínio público.
Assim, as instruções dos chefes dos sacerdotes àqueles que foram enviados
a Jesus são descritas como segue: “Pondo-se a vigiá-lo, eles mandaram espiões”
(enkatheos), “que se fingiam justos para apanhar Jesus em alguma coisa que ele dis­
sesse, de forma que o pudessem entregar ao poder e à autoridade do governador”
(20 .20 ).
Os enviados dos chefes dos sacerdotes são “espiões” (enkatheos), um termo
usado nas Escrituras somente aqui. Em Mateus e Marcos, os fariseus e herodianos
simplesmente se aproximam de Jesus para questioná-lo (Mt 22.16 || Mc 12.13).
Em Lucas, eles são agentes secretos que estão vigiando-o de perto, fingindo ser
honestos. A onisciência da narrativa de Lucas é abrangente e transparente em
identificar os motivos de Seus adversários como uma trama combinada.

241
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A cilada era considerada legítima em certos casos na jurisprudência judaica


(“^ Lc 11.53,54, onde os fariseus ficavam “esperando apanhá-lo em algo que dis­
sesse” [v. 54]). Que um grupo selecionado de adversários de Jesus tenha se envolvi­
do em armar uma cilada é historicamente plausível.
Nesta seção, três perguntas são direcionadas a Jesus. Essas representam três dos
quatro modos de expressão do discurso rabínico (|| Mc 12.13-37 || Mt 22.23-46):
• A pergunta sobre a legitimidade de pagar impostos a César (Lc 20.20-26)
é uma questão haláquica de prescrição legal (“^ 6.6-11 anotações comple­
mentares, “Três modos de expressão no discurso religioso judaico: Halacá,
Hagadá e Midrash”).
• A pergunta sobre a mulher com os sete maridos (20.27-40) é um boruth
(-» 5.17-26).
• Uma pergunta hagadá ilegal sobre a aparente contradição na Escritura
(20.41-44).
• Nenhuma pergunta derech eretz é usada aqui (“^ 10.25-28).
Essas quatro perguntas assemelham-se às tradicionais “quatro perguntas” que
as crianças fazem aos anciãos na Páscoa Seder (Daube, 1956, p. 158,159). A haga­
dá da Páscoa é bem antigo e estava em uso no primeiro século d.C.. Essas perguntas
podem ter influenciado os evangelistas na escrita dos Evangelhos (embora a ausên­
cia da quarta pergunta conte contra isso). Os eventos que agora desenvolvem-se
ocorrem na véspera da Páscoa. Os evangelistas podem ter pensado que até a hagadá
da Páscoa testemunhasse quanto à vinda do Messias.

a. S o b re o p a g a m e n to d o s im p o s to s (20.20-26)

NO TEXTO

H 20-26 Segundo a narrativa, os questionadores são abertamente dissimulados.


Eles se fingiam justos e diziam a Jesus que Ele ensina o caminho de Deus confor­
me a verdade (v. 20,21). A pergunta em si é de natureza legítima, E certo [exestin\
pagar imposto a César ou não? (v. 22). Tanto a NKJV como a NRSV traduzem
o verbo grego como “legítimo”. Uma melhor tradução seria: E permitido pagarmos
os impostos a César? Ou seja, “O pagamento de impostos romanos é aceitável na
perspectiva da halacá judaica?”
Jesus, todavia, responde como um hagadista. Sua preocupação é o comportamento
diário, e não disputas legais. Ao ser-lhe mostrada uma moeda com a imagem de
242
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

César, Jesus diz, deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus (v. 25).
A inteligente ambiguidade dele equivale ao enigma que Seus adversários desejavam
criar. Se Jesus responde que sim, Ele arrisca perder a simpatia de Seus compatriotas
judeus, que detestam o governo romano (Marshall, 1978, p. 735). Se Ele responde
que não, Ele poderia ser acusado de sedição contra Roma. Esta é, aliás, a acusação
eventualmente colocada contra Ele pelos Seus adversários em 23.2.
A resposta sim de Jesus sugere que Ele estava mais disposto a ofender os nacionalis­
tas radicais do que o governo romano, pelo menos, segundo o relato de Lucas. Do
ponto de vista da narrativa, Lucas 20.25 exonera Jesus da acusação no julgamento
antes mesmo que a acusação fosse feita: “Encontramos este homem subvertendo a
nossa nação. Ele proíbe o pagamento de imposto a César e se declara ele próprio o
Cristo, um rei” (23.2).
A abordagem prática de Jesus quanto ao pagamento dos impostos aqui reflete a
mesma visão das riquezas expressa no capítulo 16 (“^ 16.10-13,A partir do texto).
Ali, Jesus disse que você não pode servir a “ambos Deus e dinheiro” (NIV11, tradu­
ção livre, ênfase adicionada); aqui, a mesma ideia em termos diferentes. A integri­
dade e a lealdade a Deus estão no coração do uso ou do abuso da riqueza material
no Evangelho de Lucas.

b. S o b re o le v ira to d o c a s a m e n to (20.27-40)

POR TRÁS DO TEXTO

Essa é a única menção aos saduceus no Evangelho de Lucas (como também em


|| Mc 12.18). Mateus, frequentemente, usa a fórmula “fariseus e saduceus”. Mas, o
único comparecimento substancial dos saduceus em Mateus é nesse paralelo aqui
(|| Mt 22.23). Os saduceus recebem um perfil maior em Atos dos Apóstolos. Lá, a
oposição dos saduceus à ideia da ressurreição torna-se explícita pela nota editorial
à parte: “(Os saduceus dizem que não há ressurreição nem anjos nem espíritos, mas
os fariseus admitem todas essas coisas.)” (At 23.8). Atos 5.17 identifica o sumo
sacerdote e seus associados como membros dos saduceus.
Aqui também, “os chefes dos sacerdotes, os mestres da lei e os líderes religio­
sos” (Lc 20.1) mostram que são membros dos saduceus. Diversos deles estão agora
recrutados para fazer a Jesus a pergunta sobre a ressurreição dos mortos. A pergun­
ta deles era provavelmente um argumento tolo contra a doutrina da ressurreição. A
pergunta é um típico enigma boruth (designado a envergonhar): “Na ressurreição,
de quem ela será esposa, visto que os sete foram casados com ela?” (Lc 20.33).
243
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO

H 2 7 -4 0 O levirato do casamento era designado a proteger a propriedade do bet


av do irmão (“^ 15.11-16). Manter a propriedade no clã preserva sua viabilidade
econômica. Um herdeiro varão gerado dessa união manteria os bens do bet av in­
tactos. Os saduceus afirmavam esse conceito tão antigo e central à cultura israelita.
Mas, eles acreditavam que isso não poderia ser reconciliado com a mais recente­
mente defendida doutrina da ressurreição dos mortos. Os saduceus defendiam que
o AT não continha essa ideia de imortalidade da alma ou de ressurreição corporal.
Logo, eles faziam objeção à doutrina que tinha se tornado quase universalmente
aceita entre os fariseus.
Embora a ressurreição de Jesus fosse prometida nas predições sinóticas da paixão,
essa é uma das poucas passagens na tradição do Evangelho em que a vida no além é
diretamente abordada. Ela é assumida em Lucas 14.14 (aA sua recompensa virá na
ressurreição dos justos”) e 16.22 (“Chegou o dia em que o mendigo morreu, e os anjos
o levaram para junto de Abraão”). Aqui, Jesus garante três coisas sobre a vida no além.
Primeiro, Ele ratifica a crença na ressurreição dos mortos (v. 35). Os que a alcan­
çarem não podem mais morrer e são como os anjos (isangeloi, usado apenas aqui
nas Escrituras) e são filhos da ressurreição (v. 36).
Segundo, Ele afirma algo como crença na imortalidade da alma em Seu argumento
da sarça ardente. Ali, Deus dirige-se a Abraão, Isaque e Jacó como estando vivos
(v. 37,38; compare 4 Mac. 7.19; 16.25). Somente Lucas acrescenta a frase pois
para ele todos vivem (Lc 20.38). Lucas pode ser mais grego em sua visão da vida
no além do que Mateus ou Marcos (Fitzmyer, 1985, p. 1301).
Terceiro, o casamento e a procriação não são mais necessários na vida no além. A
vida com Deus na ordem eterna não é o prosseguimento da vida terrena como a
conhecemos, com o casar e dar-se em casamento necessário para reprodução para
substituir os que morreram. Isso é cumprimento da promessa escatológica. A ques­
tão da fertilidade domina a fé no AT porque a procriação é a chave do cumprimen­
to da promessa de Deus a Abraão (Gn 15.5). A procriação é também a peça central
da doutrina da perpetuação e pureza da nação de Israel. Entre os que são conside­
rados dignos de tomar parte na era que há de vir (Lc 20.35), tais questões não
terão mais relevância.
A PARTIR DO TEXTO

O NT apresenta uma visão da história que culmina na realização do Reino


de Deus. Haverá uma resolução para todos os conflitos universais; o mal será
vencido. Embora a referência à ressurreição seja limitada nos Evangelhos, ela tem
244
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

uma grande proeminência em Paulo e em Apocalipse. Paulo até fala explicitamente


sobre o processo da ressurreição e a natureza do corpo ressurreto em 1 Coríntios
15. Em Apocalipse 20, mais coisas são ditas sobre uma “primeira” e a “segunda”
ressurreição.
É difícil desenvolver uma teologia bíblica da vida futura, e os comentários
de Jesus aqui realmente não esclarecem sua natureza. Será que isso é mais como
a imortalidade da alma? Será que os mortos vão diretamente para a presença de
Deus? Ou a vida da ressurreição começa somente no final da história?
Essas distinções são importantes, mas elas não obscurecem a teologia básica
do NT sobre a eternidade do Reino de Deus. A hipótese de uma vida futura infun­
de o NT com uma tremenda qualidade de afirmação da vida. Não só a expectativa
de uma vida após a morte física traz esperança a todos, mas também dá às nossas
escolhas diárias uma consequência suprema.
A visão do NT sobre a vida é a de uma continuidade da vida terrena para
a eterna. Não existem duas realidades separadas, uma agora e outra depois. Há
somente uma realidade; e ela está inteiramente imbuída da presença de Deus. O
ensinamento de Jesus constantemente enfatizava a importância do amor e do ca­
rinho na vida diária. Ele enfatizava que aquele que vive pelos princípios do Reino
de Deus na terra encontraria a habitação eterna. Aqui, Jesus refere-se aos dignos
de participar na era vindoura como filhos da ressurreição. Mas, Ele avisa sobre as
consequências do egoísmo, da imoralidade e da rejeição a Deus. Esses também car­
regam consequências na era vindoura (Lc 20.45-47).

c. S o b re D a v i (20.41-47)

NO TEXTO

■ 41-44 A conversa continua com os que foram enviados para apanhar Jesus
em uma cilada. Agora, é Ele quem faz duas perguntas aos Seus interlocutores. Seus
adversários e a multidão ainda estão em cena. Mas, não fica claro a quem a pergunta
está sendo dirigida. Os chefes dos sacerdotes e mestres da Lei permanecem como
alvo do borutb (pergunta embaraçosa em Lc 20.1) de Jesus.
O enigma consiste de dois textos que parecem contradizer-se. O desafio dos opo­
nentes é explicar como ambos podem ser verdadeiros. Jesus menciona a tradição
de que o Messias deve ser o Filho de Davi (2 Sm 7.12-14; Jr 30.9; S. Sal. 17.21):
Como dizem que o Cristo é Filho de Davi? (Lc 20.41).
245
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Lucas tem tomado um cuidado especial para estabelecer Jesus como o Filho de
Davi (1.32,33, “Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo. O Senhor Deus
lhe dará o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó; seu
Reino jamais terá fim”). Lucas presume que essa citação refira-se a Jesus. A pergun­
ta de Jesus é retórica, e o enigma é preparado. A resposta é, “E claro, o Messias será
da casa de Davi”. Ele, então, cita Salmo 110.1: O Senhor disse ao meu Senhor:
Senta-te à minha direita até que eu ponha os teus inimigos como estrado para
os teus pés (v. 42,43). Ele continua a colocar a isca do enigma: Davi o chama ‘Se­
nhor’ Então, como é que ele pode ser seu filho? (v. 44).
Alguns intérpretes argumentam que Jesus devesse estar tentando estabelecer que
não era necessário que o Messias fosse da linhagem de Davi. Esse argumento era
necessário, já que a reivindicação de Jesus a essa genealogia era apenas por parte
de seu padrasto José (Klausner citado em Fitzmyer, 1985, p. 1312). Nesta leitura,
Jesus cita Salmo 110.1 para mostrar como isso não pode ser o caso de que o Filho
de Davi também seja o Seu “senhor”. Mas, em Lucas, Jesus claramente é o Filho de
Davi.
Outros intérpretes argumentam que o propósito do enigma de Jesus era demons­
trar que os textos são apenas superficialmente contraditórios. Ambos estão corre­
tos. Nesta leitura, Jesus cita o Salmo 110.1 para convidar à reflexão naquele salmo
como um texto messiânico. Sim, o descendente físico de Davi será o Messias, con­
tudo seu filho/Messias também é o preexistente Senhor divino que se assenta à
mão direita de Deus.
Não parece haver evidência de que o Salmo 110.1 fosse entendido em tais termos
messiânicos antes de Jesus. O uso dele nesse sentido originou-se com Jesus (Fit­
zmyer, 1985, p. 1311). Se isso é verdade, Jesus trouxe uma nova interpretação a um
salmo que, para seus leitores originais, deveria estar referindo-se a um rei de Israel.
Nesta leitura, deve-se agora entender que o próprio Davi referiu-se prolepticamen-
te ao futuro Messias (veja At 2.25-28).
1 45-47 Segue-se uma breve seção na qual os pecados dos mestres da lei são rei­
terados (v. 46). A passagem sumariza a imagem negativa dos chefes dos sacerdotes
e mestres da Lei encontrada em Lucas 20.1.
Sendo assim, é melhor entendido como um aviso contra os que estão entre eles que
querem (tõn thelotõri) ser vistos com roupas especiais, e gostam muito de receber
saudações nas praças e de ocupar os lugares mais importantes nas sinagogas e
os lugares de honra nos banquetes (Lc 20.46). Jesus não maldiz todos os mestres
da lei, mas somente os que se corromperam por sua própria arrogância, um peca­
do corrosivo ao qual Lucas já se referiu extensivamente. Aqueles “escribas” (ARC,
246
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

ARA) que faziam manobras para provocar a morte de Jesus demonstravam o quão
destrutivo o orgulho pode ser para os ungidos de Deus.

4. As moedas da pobre viúva (21.1-4)

POR TRÁS DO TEXTO

A história das duas moedas de cobre da viúva dá prosseguimento à advertên­


cia contra os pecados dos “mestres da lei” em 20.45-47. A representação de viúvas
como exemplos de suprema desvantagem não é exclusiva de Lucas. O Evangelho
extrai a história das moedas dessa viúva de uma forma levemente truncada de Mar­
cos 12.41-44. Lucas 20.47 também segue ojargão de Marcos na crítica apresenta­
da contra os mestres da Lei que “devoram as casas das viúvas” (20.47). Seguindo,
Lucas mostra uma preocupação particular pelas viúvas: a profetiza Ana, a viúva
de Sarepta, a viúva de Naim, e a viúva e o juiz injusto (2.36-40; 4.23-27; 7.11-17;
18.1-8), todas essas aparecem somente em Lucas.
NO TEXTO

I 1 -4 Essa história tem elementos de outro tema que encontramos em Lucas - a


contínua crítica aos ricos e à sua recusa de aceitar a responsabilidade social quanto
ao pobre. Lucas considera a gestão apropriada da riqueza como um sinal de de­
voção a Deus (12.13-46; 14.15-24). Em certo sentido, essa é a história central do
filho pródigo (15.11-32; veja também 16.1-31; 18.18-25,28-30; 19.1-10; 20.20-
26). Note o uso da linguagem do dinheiro nesta presente história: ricos (v. 1),
pobre (v. 2,3), riqueza (v. 4), pobreza (v.4).
Os ricos [colocam] suas contribuições nas caixas de ofertas (v. 1), contudo a
viúva pobre não tem quase nada. A suposta piedade dos ricos é ilustrada como
egoísta. Logo, os abastados continuam recebendo um tratamento rígido em Lucas.
Pode haver também uma crítica implícita de o templo ser usado como um reposi­
tório de riqueza.
A viúva é o antítipo dos fariseus, a quem Lucas tem descrito como “amantes do
dinheiro” (16.14 NKJV, NRSV). Todos esses deram do que lhes sobrava; mas
ela, da sua pobreza, deu tudo o que possuía para viver (21.4). Ela é diferente dos
fariseus que “se justificam” com tais atos. Eles amam o que é de “muito valor” entre
247
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

o povo, mas são detestáveis “aos olhos de Deus” (16.15). A ação da viúva exemplifi­
ca a pobreza à qual Jesus chamou Seus discípulos; como Pedro diz, “Nós deixamos
a nossa família e seguimos o senhor” (18.28 NTLH).
A doação da viúva ao templo demonstra a economia na qual o Reino de Jesus irá
operar: o pobre, em vez do rico, será honrado; o impotente governará o poderoso;
as mulheres fiéis envergonharão os homens gananciosos; os marginalizados suplan­
tarão a elite religiosa; e as viúvas esquecidas terão o primeiro lugar. Alguém pode
facilmente reler o Magnificat e ver o espírito da oferta desta mulher para o templo.
Ali, a humilhação da serva é celebrada (1.48), a queda do soberbo é predita (1.51),
a elevação do humilde é anunciada (1.52), a exaltação do faminto e o contrastante
vazio do rico são declarados (1.53).

C. A predição da destruição de Jerusalém


(21.5-38)

1. Nenhuma pedra ficará sobre outra (21.5-8)

POR TRÁS DO TEXTO

O ensinamento de Jesus no templo começa em 20.1 e culmina em 21.37,38.


Ali, Lucas fala dos hábitos diários de Jesus de levantar cedo para ensinar “no tem­
plo”.
O material da narrativa em 21.5-8 deriva do discurso escatológico de Marcos
13. Mateus e Lucas seguem Marcos 13 bem de perto. Esse material menciona a des­
truição do templo judaico em 70 d.C.. Alguns intérpretes consideram esse material
uma profecia ex eventu, ou seja, uma profecia após o evento já ter ocorrido (como,
por exemplo, em algumas partes do livro de Daniel). Mas, Jesus indubitavelmen­
te tinha um genuíno pressentimento sobre o destino da cidade santa (13.31-35;
17.22-37; 19.41-45). No mínimo, Jesus tinha um pressentimento das realidades
políticas que levaram inevitavelmente à destruição da cidade. A predição dele pode
muito bem ter sido uma clara visão profética característica do tipo experimentado
por muitos dos profetas do judaísmo nas eras passadas.

248
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

A perspectiva da n a rra tiva no discurso apocalíptico de Lucas

A perspectiva da narrativa de Lucas é largam ente sincrônica. Ou seja,


os eventos ocorrem no tem po real para o narrador e o leitor. Ambos, o
narrador e o leitor, possuem um conhecim ento que os personagens da
história não possuem (como a compreensão da verdadeira identidade
de Jesus). Mesmo assim, os eventos da narrativa são apresentados como
uma história cronológica.
Em 21.5-24, o texto é uma discussão dos eventos futuros de curto
prazo (como em 17.22-37). Os discípulos perguntam a Jesus sobre a Sua
predição da destruição do tem plo: “ Mestre", (...) "quando acontecerão
essas coisas? E qual será o sinal de que elas estão prestes a acontecer?"
(21.7). Quando Jesus começa a responder, a narrativa faz um desvio da
perspectiva sincrônica para a perspectiva diacrônica. O Evangelho de
Lucas é posterior à destruição do tem plo, então, seus primeiros leitores
sabiam que o tem plo já havia sido destruído. Os leitores (antigos e m o­
dernos) tinham informação privilegiada, uma onisciência que transcende
a do narrador implícito. Eles não têm a necessidade de ser convencidos
de que Jesus falou uma profecia verdadeira - contudo, os personagens
da história ainda não estão sabendo. Os leitores tem o conhecim ento de
fatos que ninguém no mundo histórico reconhece. Contudo, eles tam bém
estão às cegas sobre m uitas características do futuro.
Lucas utiliza uma abordagem híbrida para o apocalíptico. O mesmo
tem característica de contexto social/histórico de curto prazo que tem sido
chamada de "escatologia profética". Mas também , refere-se a contexto do
futuro distante que faz referência à culminação dos tempos, "escatologia
apocalíptica" -> Introdução, Lucas e Apocalipse). O desafio para o intérpre­
te de Lucas é discernir quando as palavras de Jesus têm um contexto social/
histórico de curto prazo (como nas referências à destruição do templo), e
quando elas se referem a algo além do escopo da história.
Em geral, parece que os versículos 5-24 têm em vista o contexto
social/histórico de curto prazo da destruição de Jerusalém. Nos versículos
25-36, a questão torna-se um pouco incerta. Os versículos 25-28 parecem
referir-se ao fim dos tempos; ali, os leitores não têm mais o conhecim en­
to privilegiado. O texto, então, desloca-se para referências obscuras de
eventos futuros. As expressões simbólicas dos mesmos criam uma sensa­
ção de mau pressentim ento e confusão nos leitores. O gênero apocalíptico
é difícil; isso faz parte de seu poder e mistério. Essa sensação de poder e
de m istério está presente nesta seção de Lucas.

249
LUCAS 9-24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO

H 5-8 Enquanto alguns estavam comentando sobre a beleza do templo, Jesus


disse, “Disso que vocês estão vendo, dias virão em que não ficará pedra sobre
pedra; serão todas derrubadas” (v. 6). A expressão “pedra sobre pedra” é hiper-
bólica/metafórica para a tremenda destruição do centro nacional judaico.
Na real dizimação de Jerusalém no ano 70 d.C., muitas das muralhas foram, de
fato, derrubadas, mas não houve uma completa destruição do complexo do tem­
plo. Josefo conta-nos que três torres permaneceram de pé, assim como também
uma parte da muralha ocidental (G.J. 7.1, §1,2). Certamente, tudo o que era feito
de madeira no templo foi consumido pelo fogo, e milhares de habitantes da cidade
foram mortos pelos soldados romanos. Logo, as palavras de Jesus aqui contêm um
significado ameaçador.
O tempo desses acontecimentos está próximo (v. 8), marcado por uma crescente
atividade daqueles que reivindicavam ser figuras messiânicas (uma possível alusão a
Daniel 7.22). Os discípulos de Jesus devem ter cuidado, já que muitos virão em Seu
nome, dizendo, Sou eu (Lc 21.8). Aliás, vários líderes da Grande Revolta realmen­
te se representaram como figuras messiânicas {G.J. 5.2,3, §285-309; Green, 1997,
p. 735). O aviso de Jesus aos Seus discípulos parece antecipar o surgimento dessas
figuras messiânicas na época da aproximação do caos nacional.
O aviso para fugirem deve ser entendido no contexto da fuga dos cristãos judeus de
Jerusalém para Pella, uma cidade não judaica na Decápolis, no ano 67 d.C.. “Então
os que estiverem na Judéia fujam para os montes, os que estiverem na cidade saiam,
e os que estiverem no campo não entrem na cidade” (v. 21). Os leitores na sétima
década do século provavelmente sabiam que os cristãos haviam escapado de Jerusa­
lém logo antes de os romanos a sitiarem.

2. Guerras e revoluções (21.9-28)


H 9-11 Jesus indicou que “o sinal” (v. 7) anunciando a destruição do templo seria
quando [ouvissem] falar de guerras e rebeliões (v. 9). Esse sinal é descrito ainda
como um tempo de instabilidade geopolitical Nação se levantará contra nação,
e reino contra reino (v. 10). Isso descreve corretamente a conjuntura política da
Palestina de meados do primeiro século à destruição em 70 d.C. v. 12-19 ano­
tação complementar a seguir).
Essa lista de catástrofes no versículo 11 deve, em geral, estar situada próxima à con­
juntura social/histórica do mesmo período: grandes terremotos, fomes e pestes
250
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

em vários lugares, e acontecimentos terríveis e grandes sinais provenientes do


céu. A destruição de Jerusalém foi acompanhada de uma terrível fome quando os
romanos sitiaram a cidade. E o incêndio no qual o templo foi destruído, sem dúvi­
da, foi visto como um sinal do céu para o fim de Israel.
Jesus disse, É necessário que primeiro aconteçam essas coisas, mas o fim não virá
imediatamente (v. 9). Aqui, a passagem introduz uma incerteza sincrônica/diacrô-
nica (“> Por trás do texto, anotação complementar anteriormente, “A perspectiva
da narrativa no discurso apocalíptico de Lucas”). Será que o “fim” refere-se à des­
truição do templo ou à culminação dos tempos? Não podemos ter certeza; mas, a
perspectiva histórica de Lucas enfatiza um relacionamento contínuo com o mun­
do. Suas preocupações são a vida da igreja no mundo, e não a igreja no final dos
tempos. Ele não enfatizou, em geral, uma escatologia apocalíptica em detrimento
à escatologia profética.
H 12-19 Mateus e Marcos também predizem as perseguições preditas aqui em
21.12-19 (compare com Mt 24.9-14 || Mc 13.9-13). Contudo, esses Evangelhos
não fornecem outros contextos nos quais interpretamos essas perseguições. Será
que eles devem ser entendidos como perseguições sociais/históricas de curto prazo
ou será que a luta é um sinal do fim dos tempos ? Mateus e Marcos não comentam
essa questão porque a narrativa deles termina na ressurreição.
A continuação de Lucas em Atos dos Apóstolos fornece um contexto no qual a
igreja experimenta perseguição e denúncia. Nessa estrutura, então, esses aconte­
cimentos tomam um significado concreto. Mas antes de tudo isso, prenderão
e perseguirão vocês. Então os entregarão às sinagogas e prisões, e vocês se­
rão levados à presença de reis e governadores, tudo por causa do meu nome
(Lc 21.12). Todas essas predições são cumpridas na narrativa de Atos (veja Green,
1997, p. 736; At 4.1-22; 5.17-40; 6.8—7.60; 8.1-3; 9.1,2,23-25; 16.19-24; 17.5;
18.12; 23.1—26.32). E assim que Lucas crê que essas palavras de Jesus devem ser
entendidas.
Quem são vocês e [eles, implícito no texto] em Lucas 21.12? Em certo nível, vocês
são obviamente os discípulos de Jesus. Eles, entretanto, não tinham visão alguma
de uma comunidade organizada no período pós-ressurreição. Logo, ocorre uma
mudança sutil no significado. Dentro da estrutura narrativa de Lucas, Jesus agora
também fala sobre os discípulos como umafutura comunidade, a qual os leitores en­
tendem que seja a igreja pós-ressurreição. [Eles] são os protagonistas daquela comu­
nidade. Não há referências específicas em vista, simplesmente aqueles que, em dias fu­
turos, iriam opor-se ao movimento. Isso pode muito bem ser outra indicação de que
os leitores de Lucas estivessem sob pressão de algum tipo de perseguição (veja 18.1).
O versículo 16 do capítulo 21 mostra que a natureza daquele conflito será semelhante
251
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ao que já ocorreu no ministério galileu: Vocês serão traídos até por pais, irmãos,
parentes e amigos, e eles entregarão alguns de vocês à morte. O tema do confli­
to familiar tem sido visto no decorrer do ministério de Jesus (-^ 2.48-52; 8.19-21;
11.27,28; 12.49-53; 14.25-27; 18.28-30).
Especificamente, em 12.49-56, o conflito familiar é uma característica importante da
experiência futura dos discípulos. A reintrodução aqui no capítulo 21 projeta a ideia
de conflito familiar nos sofrimentos futuros de Seus seguidores. Embora esse tópico
não apareça novamente em Atos dos Apóstolos, o conflito familiar dentro da comu­
nidade cristã era uma característica do cristianismo palestino primitivo.
Considere a vergonhosa posição dos cristãos judeus antes da Grande Revolta em uma
comunidade dividida quanto ao que constituía um comportamento patriota. Será
que os cristãos deveriam apoiar a revolução ou era dever deles dar “a César o que é de
César” (20.25).?A remoção da comunidade cristã judaica de Jerusalém para Pella nos
meados e no final da década de 60 fornece a resposta. Eles recusaram-se a unir-se à
revolução radical contra Roma.
Nesse contexto, a divisão familiar deve ter-se tornado grave quando membros da fa­
mília tomaram lados opostos no conflito. A tensão teria sido sobre a identidade de
Jesus, o Messias, certamente. Mas, também estava preocupada com a postura política
que um judeu fiel deveria adotar diante da revolta. Isso pode explicar a tensão que
levou à afirmação de Jesus: Vocês serão traídos até por pais, irmãos, parentes e
amigos, e eles entregarão alguns de vocês à morte. Todos odiarão vocês por causa
do meu nome (21.16,17).
Finalmente, os que experimentaram essas tribulações são os que perseverando [en
tê hypomonê] (...) obterão a vida (v. 19). Esse conceito apropriadamente acontece
aqui pela primeira vez na história de Lucas. O coração e o propósito da literatura
apocalíptica é hypomonê, perseverança (compare com 8.15, o único outro uso dessa
palavra por Lucas).
O tema é bem desenvolvido no restante do NT e é essencial para uma comunidade
que precisa esperar uma futura redenção (compare com Rm 15.4; Hb 10.36; Tg 5.11;
Ap 1.9; 2.2,3; 3.10; 13.10 etc.). Nessa passagem, Lucas, pelas palavras de Jesus, enco­
raja seus leitores a demonstrar paciência e perseverança em suas tribulações.

A in stabilidade política na Palestina

Após a m orte de Herodes, o Grande, (4 a.C.), seu filho Arquelau rei­


nou em seu lugar (4 a.C.—6 d.C ). A insatisfação entre a população judaica
era tão grande com a dinastia herodiana que o governo romano direto no

252
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

ano 6 d.C. já era bem-vindo por m uitos na Judeia. Quando Pôncio Pilatos se
tornou governador, a eficácia do reinado romano na Judeia já havia com e­
çado a deteriorar-se (26-36 d.C.). Isso era devido, em parte, à crueldade
e à ganância de Pilatos (“> 13.1-5). Mas, subsequentes governadores ro­
manos tam bém alim entaram a desilusão dos judeus, despertando anseios
messiânicos.
Questões como uma guarnição romana hostil sediada em Jerusalém,
a autoridade do governador de determ inar e reter as vestes do sumo-
-sacerdote, e os rígidos impostos, tudo isso fez aum entar as tensões na
província (Safrai e Stern, 1974, 1:346,1:347). Em certa ocasião, Pilatos
tentou introduzir um estandarte m ilita r com a imagem do im perador na
cidade. Os judeus indignados correram para Cesareia, a capital provin­
cial, para protestarem. Quando ameaçados pelos soldados de Pilatos, os
judeus colocaram o pescoço à mercê da espada em protesto. O banho de
sangue foi evitado, e Pilatos desistiu de seus planos.
Aproxim adam ente na mesma época, Pilatos matou um samaritano
cujos seguidores haviam acendido as chamas da expectativa messiânica
naquela região. Esse ato levou à exoneração de Pilatos em 36 d.C. por
Vitélio, o procônsul da Síria. Houve um período de relativa calma, mas, o
im perador romano, Gaio, então, ordenou que uma estátua de Zeus fosse
colocada no tem plo de Jerusalém em 40 d.C.. Os cristãos devem te r te m i­
do que “o sacrilégio terrível" de Daniel estivesse novamente acontecendo
(veja Mc 13.14). Um massivo protesto trouxe a intervenção de Petrônio, o
sim pático governador da Síria, que barrou a introdução da estátua.
Petrônio não podia perm itir o efeito desestabilizador de uma revolu­
ção na Judeia, o que exporia toda a fronteira leste do Império Romano a
um possível ataque dos Partas (Safrai e Stern, 1974, 1:357). A agitação
na Judeia era uma questão de im portância geopolítica para o Império Ro­
mano. A ascensão do extrem ism o judaico e da expectativa messiânica
não poderia ser tolerada. Isso explica a vontade de Pilatos de crucificar
alguém como Jesus rapidam ente na época de um grande festival.
Em 41 d.C., Herodes Agripa II (d.C. 41-44) foi restabelecido como rei
vassalo, term inando o período do governo romano direto que havia com e­
çado em 6 d.C.. Ele defendia as sensibilidades judaicas. Mas, quando o go­
verno romano direto foi restaurado em d.C. 44, a dissidência novamente
se tornou mais pronunciada. O caminho da Judeia para a Grande Revolta
havia começado.
Foi nesse ponto que o agitador messiânico Teudas de Atos 5.36 foi
decapitado pelo procurador Fado. Judas da Galileia (não o Judas de Atos

253
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

5.37) foi outro agitador dessa época; sua rebelião foi desfeita pelo procu­
rador Tibério Alexandre. Outros numerosos incidentes ocorreram durante
a procuradoria de Ventídio Cumano (48-52 d.C ). Em um deles, um solda­
do profanou o tem plo e, em outro, um soldado profanou um rolo da Lei em
público. No início dos anos 50 d.C., outro confronto sério aconteceu entre
os samaritanos e os judeus, quando os peregrinos galileus foram mortos
ao atravessarem a Samaria. Uma intervenção do im perador foi necessária
para acalm ar a situação.
Uma proem inente figura messiânica naquela época foi um egípcio
que levou milhares de seguidores ao monte das Oliveiras. Ele havia pro­
clamado que a montanha seria derrubada ao seu comando (At 21.38). O
procurador Felix massacrou m uitos dos seguidores, mas o egípcio esca­
pou. Safrai diz, “ O resultado foi que, no final do m andato de Felix, Roma
tinha pouco controle da região rural e das cidades do interior da Judeia"
(Safrai e Stern, 1974, 1:367; veja 1:368-1:372). Grupos armados contra
Roma estavam ativos na zona rural, e os sicários (assassinos que usavam
adagas) estavam fazendo uma destruição em Jerusalém.
Em 62 d.C., Tiago, irmão de Jesus e líder da igreja de Jerusalém, foi
m orto pelo sumo sacerdote saduceu Anás II. Essa conjuntura volátil antes
do início da Grande Revolta em 66 d.C. foi provavelm ente entendida pelos
cristãos prim itivos como "guerras e rebeliões" (Lc 21.9).

H 20-24 No versículo 20, Lucas posiciona o discurso apocalíptico em direção ao


contexto social/histórico de curto prazo do ano 70 d.C.: Quando virem Jerusa­
lém rodeada de exércitos, vocês saberão que a sua devastação está próxima (v.
20). Esse evento ocorreu apenas algumas décadas depois de Jesus.
A maioria dos intérpretes acha que Marcos foi escrito antes da destruição do tem­
plo. Seu Evangelho registra os pensamentos de Jesus sobre esse assunto enquanto o
templo ainda estava de pé; o inimaginável ainda estava por acontecer. O tratamen­
to de Marcos (e talvez o de Mateus também) poderia prever a futura destruição de
Jerusalém no contexto do final dos tempos. Lucas não tem essa visão, mas, ao con­
trário, ele vê a destruição como um acontecimento dentro da história da salvação.
Lucas escreve depois que a destruição de Jerusalém já havia acontecido e o êxodo

254
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

As descrições sinóticas
da destruição do templo
Lucas 21.20 M arco s 13.14 M a teu s 24.15,16

Q u an d o virem "Quando vocês virem 'o sacrilégio "Assim, quando vocês virem 'o
Jerusalém rodeada te rríve l' no lugar onde não deve sacrilégio te rríve l' do qual falou
de exércitos, vocês esta r - quem lê f entenda - então, o profeta Daniel, no Lugar San­
sab erão q u e a sua os que estiverem na Judéia fujam to - quem lê, entenda - então, os
d eva sta ção está para os m ontes", que estiverem na Judéia fujam
próxim a. para os m ontes".

dos judeus da cidade já era uma realidade. Ele vê as palavras de Jesus no contexto
de uma realidade social/histórica de curto prazo que ele conhece. A história não
terminou com a destruição do templo. Aquilo era uma indicação do início da era
da igreja, que continuaria em sua missão durante o futuro previsível.
Lucas também altera o uso que Marcos faz de Daniel. Marcos cita a frase de Daniel
sobre a “abominação desoladora” (Dn 9.27; 11.31 ARC; 12.11 ARC; veja 1 Mac.
1.54). Isso se referia originalmente à profanação do templo por Antíoco IV Epifâ-
nio em 167 a.C.. Fora a narrativa de Marcos, “quem lê, entenda” cria um intertexto
para o leitor entre a profanação de Antíoco e a futura desolação do templo de Jeru­
salém. Antíoco erigiu um altar a Zeus no templo e ofereceu sacrifícios pagãos ali.
A destruição vindoura, Marcos sugere, será do mesmo tipo.
Lucas evita citar o texto de Daniel, possivelmente porque ele não vê a destruição
em termos do fim dos tempos, uma conclusão que se pode chegar do uso de
Daniel 9.27. Ao contrário, a destruição de Jerusalém é vista por Lucas como o
cumprimento de tudo o que foi escrito (Lc 21.22). Lucas enfatiza o profundo
ceticismo de Jesus quanto ao potencial de Jerusalém de aceitar o Filho do Homem

255
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Alusões a Daniel em Lucas


e em Atos dos Apóstolos
D aniel Lucas A to s dos
A póstolos

2.28 21.9

4 .1 2 ,2 1 13.19

5.20 12.23

7.1 4 1.33; 21.27

7.22 21.8

8 .1 6 1.19

9.21 1.19

9.24 10.43

9.26 21.24

12.2 24.15

12.7 21.24

12.1-12; 13.31-35; 17.25-32 e 19.41-44). Lucas 21.22 é a conclusão sumária:


destruição de Jerusalém foi causada por sua desobediência, mas também foi
prevista na Escritura: Pois esses são os dias da vingança, em cumprimento de
tudo o que foi escrito.
B 25-28 Os versículos 25 e 26 usam símbolos apocalípticos para catástrofe. Ha­
verá sinais no sol, na lua e nas estrelas (v. 25). Sendo assim, as fontes de luz sobre
a terra serão alteradas, como um símbolo da dissolução dos tempos (Ap 8.12). Na
cosmologia bíblica, os luminares eram considerados parte de uma tenda esticada
como uma cúpula no céu (Gn 1.14). No “dia do Senhor”, o sol se escurecerá quan­
do o aspecto mais seguro e permanente do firmamento falhar (Is 13.10; Jl 2.10).
A aflição nas nações se levantará com o bramido e a agitação do mar (Lc 21.25).
O caos primordial é o significado tradicional dos mares tempestuosos na simbo-
logia bíblica. Os homens desmaiarão de terror, apreensivos com o que estará

256
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

sobrevindo ao mundo; e os poderes celestes serão abalados (v. 26). Tudo isso
fala de uma confusão que acompanhará a queda de Jerusalém.
A linha entre a realidade social/histórica de curto prazo da Palestina do primeiro
século e o dia futuro do Senhor torna-se obscura nos versículos 27-33. Então se
verá o Filho do homem vindo numa nuvem com poder e grande glória. Qua-
nestará próxima a redenção de vocês (v. 27,28).
A imagem do Filho do homem vindo numa nuvem deriva de Daniel 7.13,14. É
difícil entender como isso pode aplicar-se à destruição de Jerusalém. Então, talvez,
a visão de Jesus volta-se para um tempo futuro. No mundo histórico de Lucas, a
redenção e a volta do Filho do Homem não ocorrerão até o fim do longo drama
da história da salvação, com a Igreja sendo o seu principal personagem (At 1.8). O
esquema geral da narrativa de Lucas exige um tempo de intervenção entre a des­
truição do templo e o fim dos tempos.

3. A parábola da figueira (21.29-38)


I 29-33 A parábola da figueira (v. 29; 13.6-9) refere-se especificamente à cro-
nometragem dos eventos no discurso apocalíptico. Assim como é possível ver a
chegada da primavera, também é possível discernir a cronometragem dos eventos
referidos aqui. Diversas questões interpretativas aparecem.
Jesus disse: Assim também, quando virem estas coisas acontecendo, saibam que o
Reino de Deus esta próximo (v. 31). O contexto social daquele tempo identificaria
essas coisas, como a destruição de Jerusalém. Provavelmente, isso não se refere à
alteração literal no “sol, na lua e nas estrelas” (v. 25). No geral, essa linguagem é
melhor compreendida como um símbolo para a confusão em torno da destruição
de Jerusalém. É questionável se o reino, nesse caso, é aludido ao fim da história ou
ao início da era da igreja.
A afirmação não passara esta geração \hêgenea\ até que todas essas coisas aconte­
çam (v. 32) é ainda mais problemática. Talvez Jesus tenha se referido àqueles con­
temporâneos que o ouviram naquele dia. Ele poderia referir-se à raça de Seu povo.
Porém, isso é improvável, pois a frase não é usada por Lucas com este significado
em outra situação além desta. Talvez Ele se refira àquela geração que estará vivendo
no final dos tempos. Fitzmyer acredita que Jerusalém é a referência primária, mas
também tem em vista a humanidade no final dos tempos (veja Fitzmyer, 1985, p.
1353). As dificuldades interpretativas nessa questão mostram como é impossível
estabelecer um cronograma para os eventos baseados em textos apocalípticos.

257
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

H 34-38 Os versículos 34-36 são uma exortação à prontidão. Isso reflete a pará­
bola dos que aguardam o retorno do seu senhor de uma festa de casamento em
12.35-40. O acontecimento é descrito como aquele dia (v. 34, hêmera ekeinê, tam­
bém usado com significação apocalíptica de Sodoma em 10.12). Bem-aventurados
são aqueles que o senhor encontra alerta em seu retorno. “Estejam também vocês
preparados, porque o Filho do Homem virá numa hora em que não o esperam”
(12.40). Na aplicação da parábola em 12.41-48, Jesus disse que o servo que está
preparado para a volta de seu senhor receberá o domínio sobre a casa (“^ 12.44;
veja 16.10-13; 18.29,30; 19.11-27; 20.9-19).
Semelhantemente, os discípulos que estiverem preparados, em todos os tempos,
para a volta do Filho do Homem não ficarão presos pela libertinagem, bebedeira
e ansiedades da vida (v. 34). Eles estarão sempre atentos (v. 36) para escapar das
calamidades do fim. Aqueles que não o fizerem cairão na armadilha daquele dia.
Os que estiverem de prontidão conseguirão permanecer em pé diante do Filho
do homem (v. 36). Aqueles que consideram a pureza como um hábito de vida não
serão pegos despercebidos pela vinda do Filho do Homem.
Jesus referia-se a si mesmo, frequentemente, como o Filho do Homem, mas com
uma variedade de significados (-> 17.22,23). Essa narrativa é sobre a Sua “volta” no
fim dos tempos. O que passou a ser conhecido, na teologia cristã, como a segunda
vinda do Filho do Homem só poderia ter sido compreendido pelos ouvintes de
Jesus como a vinda do Filho do Homem - a primeira e única. Seus ouvintes não
possuíam um construto de história que os permitisse ver Seu ministério terreno
como o primeiro de dois adventos (2.50; 8.10; 9.45; 18.34).
O que os Seus ouvintes não podiam entender era que avinda do Filho do Homem
em uma nuvem, com grande poder, deveria ser antecedida de uma terrível morte
na cruz, de uma ressurreição e de uma extensa era da igreja para o povo de Deus. O
que eles podem ter entendido como a predição de Jesus quanto ao iminente fim da
história, de fato, era algo completamente diferente - o alvorecer da era da igreja.

258
VI. A PAIXAO, A MORTE E A RESSURREIÇÃO DE JESUS
(22.1-24.53)

Lucas, agora, volta-se para a paixão de Jesus, começando com a Sua última
ceia. A declaração da narrativa da paixão como “a narrativa central da história
cristã” é realmente exata (Brown, 1994, p. vii). A paixão é o conflito conclusivo
dos poderes do reino espiritual (Satanás; 22.3,31) combinado com as autoridades
terrenas (22.2,66; 23.1) contra o Filho do Homem (22.69). Sem ela, as histórias
de Jesus deixariam o evangelho desprovido de seu clímax redentor e de seu poder
escatológico.
A narrativa da paixão relatada por Lucas reflete sua provia visão de Jesus.
Como Brown observou, “Comparando as quatro narrativas da paixão, vemos
uma semelhança geral na sequência narrativa, mas uma considerável diferença em
conteúdo. Cada evangelista organizou o material para destacar uma apresentação
diferente da paixão” (1994, p. 5).
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A ilustração de Lucas é totalmente consistente com a imagem de Jesus na se­


ção da viagem. Ele é uma figura amável e perdoadora, um Messias gentil e caridoso.
Aliás, Dante chamou Lucas de “o cronista da caridade de Cristo” {De Monarchia
1.16.2, citado por Brown, 1994, p. 72). Semelhantemente, na narrativa da paixão,
o Jesus de Lucas é menos censurador dos discípulos (como em Mc 14.50). Ele elo­
gia a fidelidade deles (Lc 22.28-30). Ele encontra-os dormindo somente uma vez,
e não três vezes como afirmam os paralelos sinóticos (22.45,46 || Mt 26.36-46 ||
Mc 14.32-42). Ele encoraja Pedro antes de sua provação (Lc 22.31-34). Ele evita a
violência e cura a orelha do centurião (22.35-38,51). Ele concede perdão aos Seus
crucificadores (23.34). E, significativamente, Ele concede o paraíso a um dos ho­
mens crucificados com Ele (23.39-43). O Jesus da paixão de Lucas faz o que o Jesus
da seção da viagem faz - Ele procura os perdidos para levar-lhes a salvação (veja
Brown, 1994, p. 30,31,68,69).
Tanto Mateus (26—28) como Lucas (22—24) seguem Marcos 14—16 em
termos gerais, acrescentando e omitindo material de acordo com seus próprios
propósitos literários. A diferença entre Lucas e Marcos é “principalmente peque­
nas omissões e acréscimos’’ (Fitzmyer, 1985, p. 1365; veja mais em p. 1365-1368).
Contudo, o material de Lucas começa a divergir mais significativamente no capí­
tulo 24, quando ele acrescenta seu material especial à narrativa da pós-ressurreição.
Esses acréscimos não são insignificantes (-> 22.1-38,39-46; 24.1-12, Por trás do
texto).

A. A última ceia (22.1-38)

POR TRÁS DO TEXTO

Jesus e Seus discípulos, agora, reúnem-se para celebrar “a Festa dos Pães sem
Fermento, chamada Páscoa” (v. 1). A Festa da Páscoa acontecia no décimo quarto
dia do primeiro mês do calendário judaico, nisã (março-abril). Ela comemorava o
dia em que o Senhor poupou o povo de Israel quando o anjo da morte matou os
primogênitos dos egípcios (Ex 12—13; Dt 16.1-8).
A Festa da Páscoa foi eventualmente anexada aos sete dias da Festa dos Pães
sem Fermento, uma celebração agrícola da primavera (Ex 12.18). Essas duas festas
são mencionadas como um único evento. A Páscoa era um dos três festivais dos
peregrinos; os judeus eram encorajados a celebrá-los em Jerusalém. Os outros dois
eram a Festa das Semanas (Pentecostes) e a Festa dos Tabernáculos (Dt 16.1-16).
260
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

A Páscoa era uma celebração nacional para os israelitas e a ocasião de um haj,


ou peregrinação. Em 2.41-51, Lucas relata que os pais do menino Jesus viajavam
para a cidade santa a fim de festejar a Páscoa. Em Lucas 22, já adulto, Jesus final­
mente retorna para uma última Páscoa em Jerusalém. Na história, essa visita serve
como um fechamento de parênteses para aquela primeira visita, quando Ele ainda
era criança.
As ruas da cidade ficavam inundadas de peregrinos, inflando a população com
mais 125 mil pessoas (Jeremias, 1962, p. 82,83). Duas observações um pouco con­
traditórias podem ser feitas sobre a prisão e a morte de Jesus em Jerusalém baseadas
neste antecedente histórico.
Por um lado, Ele e Sua comitiva faziam parte de uma enorme onda humana
que afluiu à cidade. A peregrinação de Jesus era insignificante quando considerada
na escala daquela celebração. Muitos rabis, operadores de maravilhas e outros rei-
vindicadores messiânicos estariam presentes na cidade e no templo, possivelmente,
todos acompanhados por seus discípulos, ensinando e admoestando seus seguido­
res. Nesse sentido, a visita de Jesus não era extraordinária de forma alguma.
Por outro lado, era impossível que as autoridades ignorassem qualquer um que
cativasse multidões com sua retórica ou com suas atividades públicas (veja João 9;
11) e que tivesse demonstrado comportamento turbulento como na “purificação”
do templo. Jesus enquadrava-se no perfil dos perturbadores que ambas as autori­
dades, judaica e romana, precisavam suprimir em uma cidade cheia de peregrinos
fervorosos. A constante insatisfação da população com o governo romano tornava
inaceitável qualquer aparente agitação civil aos detentores do poder. O compor­
tamento de Jesus teria sido cuidadosamente monitorado pelas autoridades. Qual­
quer indicação de atividade subversiva causaria alarme tanto nos líderes do templo
como nas autoridades romanas.
Geralmente, Lucas depende da história de Marcos na narrativa da paixão.
Quando ele afasta-se de Marcos, ele retém o estilo mais simples de Marcos. Se ti­
véssemos apenas Lucas, seria difícil localizar as emendas entre o material de Marcos
e suas próprias inovações (Brown, 1994, p. 65,66). Ainda assim, em numerosos
pontos, Lucas inova; 22.15-18 é o primeiro exemplo. Ao incluir este prólogo pecu­
liar para a última ceia, ele cria um contexto mais evocativo para o evento. O relato
de Lucas a trata como uma refeição pessoal, cheia de compaixão e significância.
Em outro acréscimo à ilustração sinótica, Lucas dá um significante passo teológico
ao afirmar que o corpo de Jesus é dado “em favor de vocês” (hyper hymün, v. 19b).
Lucas inova em outros lugares:
• Acréscimos em 22.3,8b-9,15-18,28,29(0),31,32,35-38,51.
• Uma narrativa bem curta da tentação em 22.66 (compare com Mc 14.55-61).
• Acréscimos em 23.2,4,5,6-16.
261
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

• Detalhe adicional sobre Barrabás em 23.17 (compare com Mc 15.6-11 ||


Mt 27.15-23).
• Não há descrição da flagelação após 23.23 (compare com Mc 15.17-20 ||
Mt 27.28-31).
• Não há o escárnio dos soldados após 23.25 (compare com Mc 15.16-
20,27-31,39-43).
• Jesus não exclama na cruz em 23.45 (compare com Mc 15.34,35 || Mt
27.46,47).
• Não há menção da cortina do templo rasgando-se em 23.46 (compare
com Mc 15.38 || Mt 27.51)
NO TEXTO

H 1 -6 No final do capítulo 21, Jesus está ensinando no templo por um período


de tempo indeterminado (21.38). Marcos diz-nos que foram “dois dias” (Mc 14.1)
antes da Páscoa, quando Judas Iscariotes foi às autoridades. Lucas diz-nos simples­
mente que a Páscoa estava próxima (Lc 22.1 NKJV, NRSV).
Os antagonistas continuam sendo aqueles introduzidos em Lucas 19.47, quando
Jesus entrou em Jerusalém: os chefes dos sacerdotes e os mestres da lei (Lc 22.2).
As intenções violentas dos chefes dos sacerdotes e dos outros foram diminuídas
pela boa vontade do povo (v. 2). Isso confirma a ilustração geral do povo em Lucas,
o qual seguia Jesus em grandes números e proclamava Sua chegada a Jerusalém
(19.36,37).

Os adversários de Jesus
em 19.47,48 e 22.2
L u c a s 1 9 .4 7 ,4 8 L u c a s 2 2 .2

"Todos os dias ele ensinava no O s c h e fe s d o s s a c e rd o te s e os

tem plo. Mas os chefes dos sacerdo­ m e s t r e s d a le i e s t a v a m p r o c u ­

tes, os mestres da lei e os líderes r a n d o u m m e io d e m a t a r J e s u s ,

do povo procuravam matá-lo. m a s t in h a m m e d o d o p o v o .

Todavia, não conseguiam encontrar


uma forma de fazê-lo, porque todo
o povo estava fascinado pelas suas
palavras".

262
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Satanás finalmente reaparece na narrativa: Então Satanás entrou em Judas,


chamado Iscariotes, um dos Doze (v. 3). Essa é a primeira menção da presença
pessoal de Satanás deste a tentação de Jesus em 4.4-13. Lá, porém, ele é chamado
de diabolos, o “diabo” Somente Lucas dentre os evangelistas atribui a ação de Judas
diretamente à intervenção de Satanás (mas veja Jo 13.2). O reaparecimento do dia­
bo na narrativa é significante para a visão de Lucas quanto à paixão de Jesus.
Da perspectiva da narrativa, o Satanás lucano imporia pouca ameaça ao plano de
Deus para a história. Ele tem apenas um papel secundário na terrível morte do
Messias. Contudo, seu reaparecimento na narrativa indica aos leitores que a bata­
lha espiritual - presente nas epifanias que acompanharam o nascimento de Jesus,
na tentação no deserto, e em outros pontos da narrativa - agora fechou um círculo
completo. Uma grande batalha terá lugar. Dessa vez, contra o verdadeiro e supre­
mo inimigo - não o diabo, mas a morte. Nessa derrota da morte, os verdadeiros
poderes do Messias são manifestados.
Os chefes dos sacerdotes e os oficiais da guarda do templo discutiam com Ju­
das como lhes poderia entregar Jesus (v. 4). O plano muito os alegrou, e lhe
prometeram dinheiro (v. 5). Judas e os oficiais do templo tornaram-se cúmplices,
alinhados com o plano de Satanás. Os atrativos oferecidos ajudas enfatizam o en­
sino de Jesus sobre a lealdade a Deus, especialmente em comparação com a riqueza
mundana (-> 16.10-15, esp. 16.15b). A conspiração é, então, retratada como tipo
de negociação sórdida. Em seu contexto narrativo, esta é a própria essência do mal
e a absoluta antítese dos ensinamentos de Jesus - tramar a morte do Messias por
algumas moedas gravadas com a imagem de César.
■ 7 -1 3 A Festa dos Pães sem Fermento chegou. Esse era o dia em que devia ser
sacrificado o cordeiro pascal (v. 7). O cordeiro tinha de ser sacrificado ao cair
da tarde, o início do novo dia segundo o cálculo judaico. O pôr do sol marcava o
começo da Páscoa. O cair da escuridão da noite, uma metáfora para a escuridão
espiritual que paira, desce agora sobre todos os envolvidos nessa história: sobre Je­
sus, sobre Seus discípulos, sobre todo o mundo e sobre os leitores (22.53b; também
1.79; 11.34,35).
Vão preparar a refeição da Páscoa (v. 8). A refeição da Páscoa era tipicamen­
te compartilhada por um grupo familiar. A refeição era uma “função para marcar
fronteira” (Green, 1997, p. 756). Os participantes são Jesus e os “apóstolos” (v. 14),
uma designação que significa o círculo mais íntimo de Jesus pelo menos e, talvez,
outros (ex. 24.18). Isso é quase um ministério ou uma função para Lucas (veja 6.13;
9.10; 17.5; 24.10; At 1.21,22,26). Somente aqueles que estiveram com Jesus desde
o início recebem o status de “apóstolos”.
263
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A refeição é reconhecível em formato de Sêder, ou refeição pascal, especialmente em


sua sequência cálice-pão-cálice (“^ Lc 22.14-23). Lucas já mostrou uma conscienti­
zação das perguntas propostas pelas crianças que caracterizam a Páscoa Hagadá (“^
20.20-47, Por trás do texto). A refeição inclui o primeiro cálice que é compartilhado,
uma exposição de Deuteronômio 26.5-11 sobre a primeira Páscoa, o segundo cálice,
o pão sem fermento, a refeição e mais dois cálices de vinho; e, depois, eles cantam
(Green, 1997, p. 757,758). Essa refeição de Páscoa tem a natureza de um "segundo
Êxodo” para os seus participantes, aqui, de certa forma, reinterpretada como um ban­
quete escatológico com um tema de realização (Lc 22.16; Green, 1997, p. 757-761).
As preparações da refeição ocorreram clandestinamente devido ao perigo que Jesus
e Seus seguidores corriam. Se Seus inimigos soubessem do local da festa, isso seria
uma perfeita oportunidade para prendê-lo fora dos olhos do povo. Logo, as pre­
parações foram cuidadosamente organizadas para proteger o grupo. Os discípulos
foram levados ao salão por um homem carregando um pote de água (v. 10). Isso
era uma cena incomum, já que normalmente esse era o trabalho das mulheres. Isso
pode ter sido um sinal pré-determinado a fim de que seguissem o homem até o
local secreto do evento.
H 14-23 Lucas insere um breve discurso de Jesus nos versículos 15-18, que ser­
ve como um preâmbulo litúrgico para a refeição. Marcos 14.25 e Mateus 26.29
também registram o voto de abstinência do preâmbulo de Lucas, mas inserem-no
posteriormente no relato da refeição. O preâmbulo contém:
• A declaração do desejo de Jesus de compartilhar a refeição (v. 15).
• O voto de abster-se de comer até que a Páscoa fosse cumprida "no reino de
Deus” (v. 16 NKJV, NRSV).
• A distribuição do vinho (v. 17).
• O voto de não voltar a beber até que “venha o reino de Deus” (v. 18).
Lucas usa a sequência cálice-pão-cálice comparada com a sequência pão-cálice de
Mateus e de Marcos, uma alusão mais distinta à ordem de uma tradicional refeição
da Páscoa.
Desejei ansiosamente comer esta Páscoa com vocês antes de sofrer (v. 15). Jesus
anunciou em Lucas 9.22 que o Filho do homem “deveria sofrer”, “seria morto”
pelas autoridades e “ressuscitaria“ no terceiro dia. Em Lucas 17.25, Lucas registra
Jesus dizendo que o Filho do homem “sofreria muito e seria rejeitado por aquela
geração”. O versículo 15 do capítulo 22 traz essas previsões para o cumprimento
na narrativa. O contexto narrativo adicional para o “sofrimento” é encontrado no
tema do Filho do homem/Daniel proeminente no capítulo 21: Pois estes são dias de
vingança, como o cumprimento de tudo o quefoi escrito (21.22 NRSV).
264
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Qual era a intenção de Jesus com o Seu voto em 22.16? “Não comerei dela [da
refeição da Páscoa] novamente até que [a Páscoa] se cumpra no Reino de Deus”
(NRSV; gr. ou mêphagõ). Os copistas posteriores evidentemente inseriram ouketi
em vez de ou sob a influência de Marcos 14.25. Isso explica a familiar tradução:
Não comerei dela novamente (ênfase adicionada; veja Metzger, 1975, p. 173).
A Ceia do Senhor transforma a refeição da Páscoa em um segundo êxodo com o
tema de um banquete escatológico. O pleno poder redentor do êxodo finalmente
será realizado no Reino de Deus - um evento iniciado, mas não totalmente realiza­
do. Semelhantemente, Jesus não beberá do fruto da videira até que venha o Reino
de Deus (Lc 22.18).
Jesus recusou o cálice que lhe foi oferecido na cruz (Mc 15.23; veja Lc 23.36). O
ponto essencial é que a Páscoa será cumprida na morte de Jesus, isto é, nesta Páscoa,
representada como a verdadeira expressão do significado original da Páscoa. A to­
tal importância daquela noite, há muito tempo no Egito, é então revelada quando
Lucas reconta a história - a salvação é para todos, para os quais o sangue deste
cordeiro é derramado agora. O cordeiro pascal finalmente é compreendido nos
termos de Jesus, o Cordeiro de Deus. Logo, os Sinóticos reinterpretam a Páscoa
histórica original como um tipo desta verdadeira Páscoa espiritual.
Tendo tomado o pão, Jesus o reparte Isto é o meu corpo dado em favor de vocês;
façam isto em memória de mim (v. 19). Lucas suplementa essa fonte sinótica.
Marcos 14.22 diz, 'Tomem; isto é o meu corpo” (Mt 26.26 diz “Tomem e comam;
isto é o meu corpo”). Aqui, o corpo é dado em favor de vocês (hyper hymõn).
Lucas não associa explicitamente a morte de Jesus com a oferta sacrificial, nem a
identifica como um meio de propiciação para a obtenção do perdão (Conzelmann,
1982, p. 200; compare com Mt 26.28). Contudo, o acréscimo dessa frase, ausente
em Mateus e Marcos, realmente imprime na morte de Cristo uma significância
vicária. E importante dizer que “não há vestígio de qualquer misticismo da pai­
xão, tampouco de qualquer significância soteriológica extraída do sofrimento ou
da morte de Jesus” em Lucas (Conzelmann, 1982, p. 200; Marshall [1978, p. 803]
acham que o tema sacrificial esteja presente).
O fato de o corpo de Jesus ser dado pode ecoar na descrição do servo sofredor
em Isaías 53.10 (Beale e Carson, 2007, p. 381). Que o mesmo seja dado em favor
de vocês {hyper hymõn) sugere algum tipo de sacrifício (talvez referindo-se a Lv
5.7; 6.23; Ez 43.21). A frase façam isto em memória de mim ecoa em um tema
primário da Páscoa (Êx 12.14,25-27; 13.3,9,14; Beale e Carson, 2007, p. 381; veja
Green, 1997, p. 762).
O cálice (Lc 22.20) tem significado tanto literal como simbólico: Este cálice é a
nova aliança no meu sangue, derramado em favor de vocês. No nível literal, ele
representa Seu sangue físico que está prestes a ser derramado. No nível simbólico,
265
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ele representa o sangue do cordeiro morto na Páscoa do Egito, que foi aspergido
nos umbrais das casas israelitas com um ramo de hissopo (Ex 12.22).
O pão simboliza o pão da Páscoa do Egito. Comido apressadamente e, portanto,
sem fermento, esse pão é uma metáfora para a urgente necessidade de livramento
do iminente julgamento de Deus (Ex 12.19,23). Aqui, o pão representa o iminente
julgamento de Deus na cruz. Talvez também antecipe o julgamento da destruição
de Jerusalém (“^ Lc 21). Mais amplamente, a imagem da refeição pascal ressoa
com o tema do banquete messiânico de Lucas 13.29. Jesus esperava que pessoas de
todas as direções se ajuntassem e compartilhassem de uma tremenda refeição no
Reino de Deus.
O sangue refere-se ao sinal de uma nova aliança no meu sangue (v. 20). Essa é a
única referência à nova aliança nos sinóticos. A frase provavelmente entrou no
vocabulário de Lucas por meio do intertexto de Jeremias 31.31. A linguagem da
nova aliança também foi adotada por Paulo como uma referência ao evangelho (1
Co 11.23; 2 Co 3.6).
A mão do traidor de Jesus estava à mesa com Ele (Lc 22.21). Essa presença do mal
à mesa de Deus é uma metáfora para a necessidade da paixão. O supremo bem e o
supremo mal encontram-se lado a lado à mesa. O mal parece vitorioso na morte de
Jesus, mas o bem é justificado na ressurreição.
Todos os escritores sinóticos registram que essa traição era, de fato, parte do plano
divino: O Filho do homem vai, como foi determinado; mas ai daquele que o
trair! (v. 22; Mt 26.24 || Mc 14.21). Lucas sustenta que o mal triunfa somente
segundo a permissão divina e que os homens assumem plena responsabilidade por
suas más escolhas. Os dois dramas misturam-se, o da providência e o da agência
humana. Os homens estão livres para agir, mas a liberdade existe no ambiente da
agência soberana de Deus. Esse é o supremo mistério da encarnação, Deus e a hu­
manidade cooperam em um mundo.
H 24-27 Surgiu também uma discussão entre eles, acerca de qual deles era
considerado o maior (v. 24). Jesus novamente enfatiza a importância da humil­
dade ("^ 13.29,30). A participação no banquete messiânico será para os humildes,
não para os soberbos (1.52; 12.37; 13.23; 14.11; 18.14). Somente Lucas traz esse
assunto diretamente à cena da Páscoa (no entanto, veja João 13). Ele cria uma irô­
nica justaposição do comportamento dos discípulos e da aproximação da morte de
Jesus. Em um versículo, eles perguntam uns aos outros quem dentre eles trairia Je­
sus (Lc 22.23, ilustrado na Última Ceia, de Da Vinci), e, no próximo, eles discutem
sobre quem é o maior dentre eles (v. 24; 9.46).
Há um desgaste do espírito humano surgindo na narrativa: a linguagem de vingan­
ça (21.22), sofrimento (22.15), traição (22.22,34), porfias (22.24), prisão e morte
(22.33). O eixo do mundo histórico está começando a oscilar fora do centro, na
266
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

escuridão da noite de Páscoa. A lealdade a Deus que Jesus enfatizou será testada em
Seus discípulos e eles serão achados em falta.
H 28-30 Uma sensação de crescente caos começa a surgir em Lucas 22.28-34.

A justaposição da soberba
e da humildade em Lucas
Lucas Lucas Lucas Lucas Lucas
9.46-48 12.37 13.23-30 14.8-11 22.24-27

Começou Felizes os Alguém lhe Quando Surgiu tam bém


uma discus­ servos cujo perguntou: aiguém o uma discussão
senhor os Senhor, serão convidar para entre eles, acer­
são entre os
um banquete ca de qual deles
discípulos encontrar v i­ poucos os
de casamento, era considerado
acerca de giando, quan­ salvos? não ocupe o o maior. Jesus
qual deles do voltar. lugar de hon­ lhes disse: Os
seria o maior. ra, pois pode reis das nações
ser que tenha dominam sobre
sido convida­ elas; e os que
do alguém de exercem autori­
m aior honra dade sobre elas
do que você. são chamados
benfeitores.

Aquele que Eu lhes De fato, há Pois todo o Mas, vocês não


entre vocês afirmo que últim os que que se exalta serão assim.
Ao contrário.
fo r o menor. ele se vestirá serão prim ei­ será hum ilha­
o m aior entre
este será o para servir, ros, e prim ei­ do, e o que se vocês deverá
maior fará que se ros que serão humilha será ser como o
reclinem à últimos. exaltado. mais jovem , e
aquele que go­
mesa, e virá
verna, como o
servi-los. que serve. Pois
quem é maior:
o que está à
mesa, ou o que
serve? Não é
o que está à
mesa? Mas eu
estou entre vo­
cês como quem
serve.

267
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Esse caos torna-se um teste de lealdade para os discípulos de Jesus em três vinhetas.
Na primeira cena, o Reino é designado aos discípulos (v. 28-30). Eles passaram no
teste e apoiaram Jesus nas tentações dele (v. 28). Os discípulos desapontaram Jesus
repetidamente com a falta de fé, com a incapacidade de entender e com a soberba
infundada. Mas, ainda assim, eles persistiram no caminho (8.24,25; 9.40,45,54-
56; 18.34).
A análise de Jesus, aqui, é semelhante àquela que Ele fez de Pedro e de seus com­
panheiros mais cedo na narrativa (18.28-30). Aqui, na sombra da Páscoa, chegou
a hora de o Reino ser conferido aos imperfeitos companheiros de Jesus. Eles irão
comer e beber à minha mesa no meu Reino e sentar-se em tronos, julgando as
doze tribos de Israel (22.30; 13.29; com alusões intertextuais a Daniel 7 e Salmo
122).
Esta atribuição de autoridade divina aos discípulos é a culminação da chamada de­
les (Lc 5.1-11; 6.12-14) eo processo pelo qual eles tornam-se o círculo íntimo do
movimento (10.23-24; 18.29-30). É uma preparação necessária para a passagem
da liderança de Jesus aos Seus seguidores na Sua morte. O simbolismo dos Doze
recém-comissionados juízes de Israel é a restauração da estrutura prístina que Deus
dera à Sua nação no início de sua vida nacional (Gn 19.1-28). Eles não só irão
julgar Israel, mas também se assentarão à grande mesa do banquete (veja Evans e
Sanders, 1993, p. 154-170).
Olhando para trás, Lucas faz alusão à mesa da Comunhão da qual todos eles acaba­
ram de levantar-se. Olhando adiante, ele aponta para o banquete escatológico do
Reino de Deus (veja Lc 13.29,30) e, depois, para as refeições da pós-ressurreição
com Jesus. A consumação do ministério de Jesus significa que é hora de participar
do banquete.
■ 31-34 A segunda vinheta traz Pedro de volta à proeminência. Pedro tem um
tratamento especial como personagem dessa história. Ele mantém longas conver­
sas com Jesus como líder representativo dos discípulos e tem a confidência particu­
lar de Jesus ao longo do ministério (5.3-11; 9.28-33; 22.54-61). Essa proeminên­
cia ressurge aqui, na negação de Pedro (22.54-62), em sua visita ao túmulo vazio
(24.12) e na aparição individual do Senhor ressuscitado a ele (24.34).
Pedro trabalha como o líder representativo dos discípulos. Jesus dirige-se a ele:
Simão, Simão, Satanás pediu vocês para peneirá-los como trigo. Mas eu orei
por você, para que a sua fé não desfaleça. E quando você se converter, fortale­
ça os seus irmãos e suas irmãs (22.31-32). Satanás pediu para peneirar todos os
discípulos (vocês, plural, hymas) como trigo. Mas Jesus ora especificamente para
Pedro (você, singular, sou) como o líder de seus companheiros de fé.
A frase peneirá-los como trigo significa algo como “despedaçar alguém” (Bock,
268
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

1994, p. 353). A declaração de Pedro quanto à sua prontidão para morrer traz
a predição de Jesus de que ele o negaria três vezes (22.54-62). A ironia é que os
recém-comissionados supremos juízes das 12 tribos de Israel, imediatamente, caem
vítimas da fraqueza humana. Jesus antecipa tanto a iminente falha de Pedro como
seu subsequente arrependimento (converter-se ao seu Senhor). Simão exemplifica
o tema do arrependimento e do perdão característico desse Evangelho (-^ 17.4).
■ 35-38 Na terceira vinheta, Jesus evoca a memória da missão dos setenta e dois
(22.35-38; 9.1-6; 10.1-12): Quando eu os enviei sem bolsa, saco de viagem
ou sandálias, faltou-lhes alguma coisa? (22.35). Os discípulos não passaram por
nenhuma necessidade física. A partir disso, aprenderam que a aprovação e a provi­
são divinas eram suficientes para a missão deles.
Apesar disso, eles passaram por conflitos. Esse é o ponto ao qual Jesus retorna nesta
vinheta. Não, eles não passaram necessidade. Mas agora (v. 36), Jesus diz-lhes, a
situação será diferente: Eles deveriam esperar conflitos mais severos. O conflito
que inicialmente entrou na narrativa em 4.16-30, agora, encontra sua culminação
na narrativa da paixão. Quando os novos juízes de Israel assumem a liderança, eles
recebem a promessa de uma vida difícil.
Eles precisam fazer duas coisas em preparação para o novo estágio: Mas agora, se
vocês têm bolsa, levem-na, e também o saco de viagem; e se não têm espada,
vendam a sua capa e comprem uma (22.36). Contudo, eles precisam fazer uma
provisão financeira a fim de manter a missão na ausência de Jesus ("^ 8.3). Essas
questões práticas continuarão em Atos (2.43-47; 4.32; 6.1-2). O Jesus de Lucas
prepara Seus seguidores para essas situações. Isso é mais uma evidência de que Lu­
cas via Jesus não apenas como um profeta, mas também como o fundador do mo­
vimento cristão (“^ Lc 10.1-7, No texto).
Jesus exortou Seus discípulos a vender suas capas para comprar uma espada. A maio­
ria dos comentaristas vê a compra da espada como um símbolo (Fitzmyer, 1985, p.
1432; Johnson, 1991, p. 347), uma indicação das tentações que viriam adiante, uma
“convocação ao preparo para a dureza e para o sacrifício” (Marshall, 1978, p. 825).
No nível metafórico, a referência à espada para os discípulos pode representar a
nova posição simbólica deles, julgando as doze tribos de Israel (22.30). A função
de Deus como juiz, às vezes, é referida simbolicamente em “Sua espada” (SI 7.12; Jr
12.12; Rm 13.4). Os discípulos, agora, trabalharão como juízes munidos de espa­
das na nova ordem. Duas outras observações suportam a leitura metafórica.
Primeiro, em nenhum lugar no corpo do ensinamento de Jesus existe um convite
à resistência armada. Logo, a exortação aos discípulos não pode ser vista com uma
virada do entendimento geral do pacifismo de Jesus. Quando é preso no jardim,
Jesus rejeita a violência como reação a Sua prisão (Lc 22.51,52).
269
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Segundo, a maioria dos comentaristas entende que a reação de Jesus, quando eles
apresentam-lhe duas espadas, é de exasperação e não de aprovação: Basta! (hika-
non estin). Os discípulos ainda falham em entender a natureza da iminente conde­
nação. Eles ainda estão preparados para usar a espada literalmente a fim receberem
o reino, mas Jesus repreende-os. Eles continuarão sem entender os propósitos dele.
O Jesus de Lucas enxerga a iminente paixão pelas lentes de Isaías 53. Ele cita uma
parte de Isaías 53.12: Está escrito: ‘E ele foi contado com os transgressores’ e eu
lhes digo que isso precisa cumprir-se em mim (Lc 22.37; compare com 24.26).
Essa é a única ocasião nos Evangelhos em que Jesus descreve-se diretamente como
o homem de dores de Isaías 53 (veja Lc 22.19; veja também Mt 8.17).
Essa declaração pode ser entendida como uma alusão aos criminosos com quem
Jesus será crucificado (Lc 23.22), mas também poderia ser uma referência à autoi-
dentificação de Jesus com os pecadores (Green, 1997, p. 776). Isso alinha-se bem
com o tema geral de Lucas. Jesus expressa a conscientização de que a Sua crucifi­
cação era, de certa forma, representativa para aqueles que eram de Sua principal
preocupação (5.31,32).

B. A traição e a prisão (22.39-65)

POR TRÁS DO TEXTO

Em Lucas 22.39—23.1, Lucas segue a história básica de Marcos 14.32-72,


com estas significantes mudanças (para detalhes, veja Brown, 1994, p. 64-75):
• Uma ocorrência, em vez de três, em que Jesus volta-se aos discípulos dor­
minhocos em Lucas 22.45,46 (veja Mc 14.37-42).
• Uma abreviada narrativa da prisão em Lucas 22.47 (veja Mc 14.43-45).
• A cura da orelha do servo do sumo sacerdote em Lucas 22.51 (veja Mc
17.47-48).
• Uma abreviada narrativa da tentação em Lucas 22.66-71 (veja Mc 14.55-
61).
• A ambiguidade da resposta de Jesus à pergunta do sumo sacerdote sobre
Sua identidade feita em Lucas 22.67,68 (veja Mc 14.62).
• O acréscimo de Pilatos enviando Jesus para Herodes em Lucas 23.6-12.
• A remoção da maior parte da tradição de Barrabás em Lucas 23.18 (veja
Mc 15.6-11).
270
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

• A remoção do escárnio e do açoitamento pelos soldados de Pilatos em Lu­


cas 23.26 (veja Mc 15.17-20).
• As filhas de Jerusalém são exortadas por Jesus em Lucas 23.26-32.
• Jesus concede perdão aos Seus crucificadores em Lucas 23.34.
• O povo não ridiculariza Jesus nem zomba dele em Lc 23.35-38 (veja Mc
15.29,30).
• Os soldados zombam de Jesus crucificado, e não o povo em Lucas 23.36,37.
• Um dos homens crucificados com Jesus zomba dele e, ao outro, é concedi­
do o paraíso em Lucas 23.39-43.
A obra completa de Raymond Brown, em The Death of the Messiah (1994),
descreve a paixão como a “narrativa central da história cristã” (p. vii). Sendo a nar­
rativa mais longa dos Evangelhos, ela é composta de quatro atos de um drama:
l.Jesus no jardim do Getsêmani (Mt 26.30-56 || Mc 14.26-52 || Lc 22.39-53
II Jo 18.1-11),
2Jesus diante das autoridades judaicas (Mt 26.57—27.10 || Mc 14.53—
15.1 || Lc 22.54—23.1 || Jo 18.12-28a),
3.Jesus diante de Pilatos (Mt 27.11-3la || Mc 15.2-20a || Lc 23.2-25 || Jo
18.28b— 19.16a), e
4Jesus é crucificado, Ele morre e é enterrado (Mt 27.31b-66 || Mc 15.20b-
47 || Lc 23.26-56 || Jo 19.l6b-42) (adaptado de Brown, 1994, p. xiii-xv).
NO TEXTO

■ 39-46 A cena muda do cenáculo para as ruas de Jerusalém e para o caminho ao


monte das Oliveiras (v. 39). Quando Jesus e Seus discípulos surgem nos becos da
cidade, ecoando o cenário de Lucas 13.24-30, eles estão entrando em um mundo
diferente. A descida para a escuridão da execução estava começando.
No banquete messiânico de Lucas 13.24-30, os que estavam na rua esforçavam-se
para entrar pela “porta estreita” da ala do banquete. Muitos tentarão entrar, mas
serão impedidos e permanecerão na rua. Isso é uma metáfora para a geena, onde os
malfeitores irão chorar e ranger os dentes quando virem os que conseguirão entrar
(Lc 13.28). Lá dentro, o banquete estará em pleno progresso, em segurança e abun­
dância, mas as ruas estarão escuras e perigosas, cheias dos excluídos. Agora, Jesus e
Seus discípulos saem da segurança do banquete para os perigos da rua; o Messias
entra no reino dos perdidos para resgatá-los.
271
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Os acontecimentos desencadeiam-se caoticamente até Lucas 23.49, culminando


na violenta morte de Jesus. Essa violência é a maior ironia da história do Evangelho.
Jesus pregou a obediência a Deus e o amor aos homens. Para piorar a ironia, a cru­
cificação não é simplesmente a visitação da violência sobre um homem inocente.
Ela é a visitação da violência sobre o Filho, o Profeta de Deus. Esse Filho sofreu
um destino completamente imerecido quando Seu próprio amor e Sua bondade
depararam-se com a violência mortal.
A cena da oração acontece no monte das Oliveiras, cerca de um tiro de pedra de
onde os discípulos dormiam (Lc 22.39,41 ARA). A exortação de Jesus ecoa a ora­
ção que Ele ensinara aos discípulos anteriormente no ministério, Orem para que
vocês não caiam em tentação (v. 40; compare mê eiselthein eisperasmon aqui com
mê eisenenkês hêmasperiasmon em 11 Ab).
O pedido na oração do Senhor — “e não nos deixes cair em tentação” (11.4b ARA)
- é esclarecido pela exortação aos discípulos. O objetivo da oração é manter a ten­
tação distante quando as trevas do caos sobrevierem. A vigilância é a prática do dis­
cípulo fiel. O antídoto para a tentação do sono e do cansaço é uma vida de oração.
Quando Jesus retorna de Suas orações e encontra-os dormindo, Ele novamente os
exorta: “Levantem-se e orem para que não entrem em tentação” (Lc 22.46 NRSV).
Essa segunda exortação reforça objetivo.
A mão onisciente do narrador é evidente na segunda narrativa da oração de Jesus.
Todos estavam dormindo e as palavras foram expressas na intimidade da oração;
mas os leitores são privilegiados em saber o que ocorreu. Os discípulos estavam
dormindo, esgotados pela angústia. Contudo, os leitores estão acordados e sabem
que é da vontade de Deus que Jesus tenha de morrer. Os leitores compartilham
desse conhecimento com Jesus, que expressa Seu entendimento ao dizer, não seja
feita a minha vontade, mas a tua (v. 42). A sonolência dos discípulos torna-se
uma lição para os leitores.
■ 4 7 - 6 5 A traição pública de Jesus pelo Seu círculo íntimo ocorre na presença
de uma multidão, que veio pegá-lo no jardim (v. 47). Essa também ocorre na pre­
sença dos chefes dos sacerdotes, dos oficiais da guarda do templo e dos líderes
religiosos no monte das Oliveiras e na casa do sumo sacerdote (v. 52,54). Final­
mente, Pedro nega Jesus na presença da serva (v. 56). Ele não pôde declarar sua
lealdade diante de uma multidão anônima, nem mesmo diante de alguém do nível
mais inferior da sociedade, muito menos diante das autoridades.
A traição de Jesus está completa. Ele é traído por Judas, um dos recém-comissiona-
dos juízes de Israel (v. 47,48). Ele é traído por um discípulo que opta pela violência
da espada em resposta à voz de prisão. Ao fazer isso, Judas demonstrou que o en­
sino de Jesus havia caído em ouvidos surdos (v. 50). Ele é traído por Seu principal
272
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

discípulo, aquele a quem havia concedido uma posição especial e sobre o qual havia
colocado a responsabilidade da liderança (v. 57-60).
A traição no âmbito privado já é dolorosa nas relações humanas, mas a traição em
público é humilhante. Jesus estava sofrendo isso agora. E um amargo fim ao qual o
Seu pequeno grupo chegou. E o final da passagem captura isso com a angústia de
Pedro: Saindo dali, chorou amargamente (v. 62). A humilhação pública de Jesus
fica em alto-relevo contra a cálida luz do cenáculo, do qual os discípulos e Jesus
tinham acabado de sair. Seus capturadores zombavam dele, batiam nele, vendaram
Seus olhos e desafiavam-no a profetizar acerca de quem lhe batia (v. 64, 65). As
palavras de Jesus aos Seus inimigos interpretam aquela cena, Mas esta é a hora de
vocês - quando as trevas reinam (v. 53).

C. Jesus diante do Sinédrio e de Pilatos


(22.66 - 23.25)

POR TRÁS DO TEXTO

A oposição a Jesus durante a narrativa da viagem vinha dos fariseus e dos


mestres da lei. Jesus geralmente desconsiderava esse tipo de oposição. Contudo,
a oposição agora é diferente: “reuniu-se o Sinédrio tanto os chefes dos sacerdotes
quanto os mestres da lei, eJesus foi levado perante eles” (22.66; veja 19.47; 20.1,19;
22.2,4,52; 23.4,10,13; 24.20). Essa oposição é simplesmente um fato da história.
A oposição da hierarquia do templo fica em grande contraste com a ilustração
favorável do templo e de seus sacerdotes na narrativa do nascimento. Aqui, esse
grupo faz o anônimo papel de oposição final ao plano de Deus. Eles não são repre­
sentados como homens individuais, mas como marionetes na batalha espiritual.
A oposição de todos esses partidos representa a rejeição ao Filho do homem por
Israel em geral e por Jerusalém em particular. Do ponto de vista da narrativa, esses
oponentes anônimos selam o destino de uma nação obstinada (Lc 19.42-44).
Os problemas histórico e original que devem ser considerados quanto às
apresentações de Jesus diante das autoridades romanas têm sido exaustivamente
estudados (veja, por exemplo, Fitzmyer, 1985, p. 1452-1493; Brown, 1994, p. 661-
877). As autoridades, os chefes dos sacerdotes e os mestres da lei estavam reunidos
no Sinédrio, que era “a suprema autoridade não só nos problemas religiosos, mas
273
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

também nas questões governamentais legais, desde que não invadisse a autorida­
de do procurador romano” (Bauer, Arndt e Gingrich, 1957, p. 793). Esse é um
esclarecimento suficiente sobre esse grupo para uma análise narrativa.
O mundo histórico de Lucas tem um personagem principal que surge da com­
pleta obscuridade para uma audiência com a maior corte religiosa à sombra do
templo. Jesus sai da obscuridade para a fama e para a infâmia. E uma rejeição real­
mente oficial que Ele sofre nas mãos de Seus adversários agora.
Os eventos da ocasião da prisão de Jesus são uma jornada do mundo particular
para o mundo público. A narrativa começa na intimidade do cenáculo, onde Ele
prediz a Sua traição (Lc 22.14-23). A cena avança para a Sua captura no monte
das Oliveiras com uma “multidão” composta de um pequeno grupo de “chefes dos
sacerdotes, de oficiais da guarda do templo e de líderes religiosos” (Lc 22.52). Mas,
a prisão de Jesus ainda estava bem longe dos olhos do povo (22.47-53).
O cenário faz a transição para a casa do sumo sacerdote (22.54), onde há uma
reunião em particular de Jesus com “os chefes dos sacerdotes e com os mestres da
lei” (22.66). A decisão de prosseguir contra Jesus é feita nessa reunião (22.71). O
público mais amplo ainda não havia visto Jesus sob custódia, mas agora o sol já
havia nascido (22.66) e isso quer dizer que Sua captura começa a tornar-se pública.
Depois, virá a audiência pública diante de Pilatos, que novamente tem a pre­
sença dos “chefes dos sacerdotes e do povo” (23.4). João enfatiza que esse evento
ocorreu bem em frente ao palácio de Pilatos, já que os oficiais judeus não queriam
incorrer em impureza ritual no dia de um festival (Jo 18.28,29). Somente Lucas
diz que Pilatos enviou Jesus a Herodes, aumentando novamente a natureza pública
da disputa (Lc 23.6-11).
Finalmente, a ação contra Jesus torna-se completamente pública na assem­
bleia de Pilatos com “os chefes dos sacerdotes, as autoridades e o povo” em Lucas
23.13. Aqui, a cena passa para as deliberações mais judiciais das sessões privadas
para as cenas dominadas pelas multidões enfurecidas, que pressionou até que Jesus
fosse sentenciado à morte finalmente (23.13-25).
Esse movimento do privado para o público tem um movimento correspon­
dente da atmosfera contemplativa do cenáculo para o caos da multidão enfurecida
- um caos que se torna o lúgubre etos da narrativa da paixão. Há também uma cor­
respondência com a luz física quando a cena passa do cair da noite do sábado para
a luz da manhã na qual as acusações tornam-se públicas. O desfecho é ao meio-dia
do dia seguinte, quando toda a terra novamente entra em escuridão.
274
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

NO TEXTO

■ 22.66-71 As duas características notáveis do tratamento de Lucas quanto ao


interrogatório de Jesus diante do Sinédrio são (1) a falta de detalhe e (2) a obscu­
ridade da resposta de Jesus. Marcos e Mateus descrevem o processo com certa pro­
fundidade. Há a produção de testemunhas e uma acusação específica de que Jesus
proclamou que destruiría “este templo” (Mc 14.58 NIV11 || Jo 2.19) ou “santuário
de Deus” (Mt 26.61). Lucas omite esses detalhes.
Marcos e Mateus também registram respostas mais diretas para a pergunta do
sumo sacerdote: “Você é o Cristo, o Filho do Deus Bendito? / Se você é o Cristo,
o Filho de Deus, diga-nos” (Mc 14.61 11Mt 26.63) - “Sou / Tu mesmo o disseste”
(Mc 14.62 || Mt 26.64).
O Jesus lucano foi ambíguo: “Se eu vos disser, não crereis em mim e, se eu vos
perguntar, não me respondereis. Mas de agora em diante o Filho do homem
estará assentado à direita do Deus todo-poderoso” Perguntaram-lhe todos:
“Então, você é o Filho de Deus?” (Lc 22.67b-7Qa). A resposta de Jesus para essa
pergunta é hymeis legete hoti egõ eimi, “Vocês dizem que eu sou” (v. 70b NRSV,
NIV11, tradução livre). A paráfrase seguinte é menos ambígua do que o grego: “Vo­
cês estão certos em dizer que Eu sou” (GW, tradução livre).
Por que o equívoco, nesse momento, quando o equilíbrio estava em perigo mor­
tal? A resposta dele é consistente com a revelação de Sua identidade ao longo de
Lucas. Em Lucas, a verdadeira identidade de Jesus é um grande segredo detido por
poucos. As alusões a ela estão ocultas nas parábolas e escondidas dos corações obs­
tinados. Relembre-se de Lucas 8.10: “A vocês foi dado o conhecimento dos mis­
térios do Reino de Deus, mas aos outros falo por parábolas, para que” Vendo, não
vejam; e ouvindo, não entendam’”. Aqui, a ambiguidade de Jesus parece concordar
mais com o esquema narrativo de Lucas. Não obstante, os interlocutores de Jesus
tomam Sua resposta como uma afirmação, e esta, finalmente, deve ser interpretada
como sendo assim.
■ 23.1-5 Então toda a assembleia levantou-se (v. 1) de suas deliberações na
casa do sumo sacerdote para trazer Jesus diante de Pilatos. Os versículos 1 e 2 suma-
rizam as três acusações contra Jesus (repetidas nos versículos 5 e 14):
1. Encontramos este homem subvertendo a nossa nação.
2. Ele proíbe o pagamento de imposto a César e
3.Se declara ele próprio o Cristo, um rei (v. 2).
O que as autoridades queriam dizer com a reivindicação de que Jesus era culpado
de subverter a nossa nação? Em Mateus e Marcos, Jesus é acusado de ameaçar
275
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

destruir o templo e de blasfemar (Mt 26.61,65 ||Mc 14.58,64; veja Jo 2.19-21).


Lucas não menciona essas acusações e não oferece nenhum detalhe ao leitor sobre
a natureza desta acusação.
O verbo traduzido como subverter é diastrephonta. No contexto lucano, isso seria
mais adequadamente traduzido como “afastar” ou “desviar” (Lc 9.41; At 13.8,10;
20.30). Em Atos 13.8, o mágico judeu Elimas tenta “desviar” o procônsul romano
da fé cristã. Em Atos 20.30, Paulo adverte os anciãos da igreja de Efeso a não serem
enganados pelos que “induziam” os discípulos ao erro. Esse significado concorda
com Lucas 23 melhor do que a compreensão mais política de diastrephõ. Logo, o
versículo 2a deve ser traduzido como Este homem está tentando desviar a nossa
nação, isto é, para a heresia. Nesse caso, isso deve ser entendido como uma preten­
são de ser o Messias.
Lucas menciona, frequentemente, Deuteronômio 13 quanto ao desvio dos fiéis
(veja Green, 1997, p. 800). Em Deuteronômio 13, os membros da família que in­
duziam os outros a abandonar o Senhor deveriam ser apedrejados até a morte. Nos
comentários de Lucas 10.8-13; 12.49-53; 14.25-27, e aqui, a alienação da família
pode ser explicada em termos de Deuteronômio 13. Os discípulos serão conside­
rados entre os que desviaram Israel do caminho. Essa acusação tinha implicações
dentro do coração da família judaica (veja Lucas 12.49-53 e 14.25-27), da lideran­
ça das sinagogas e dos líderes dos sinédrios locais (-> 10.8-13).
A cena do julgamento em Jerusalém deve ser vista como uma extensão daquelas
questões locais. A acusação de deslealdade ao Senhor foi evidenciada no relaciona­
mento rompido do ofensor com sua família e com a sinagoga local. Da sinagoga,
isso passou para os sinédrios locais. Esses oficiais das aldeias e das cidades forma­
vam uma rede na qual a expulsão de um “enganador” de certa jurisdição resultaria
em outros banimentos civis. Logo, as acusações em Lucas 22.66-71 são o funda­
mento das acusações diante de Pilatos em Lucas 23.2.
Em Lucas 23.2, a reivindicação messiânica de Jesus e a proibição do pagamento
dos impostos não explicam como Ele subverte politicamente a nação de Roma.
Nem são elas desconectadas das questões do julgamento particular pelos chefes
dos sacerdotes em Lucas 22.66-71 (como em Fitzmyer, 1985, p. 1471, 1473). An­
tes, pelo contrário, a posição da assembleia contra Jesus vem das questões já bem
desenvolvidas por Lucas, aquelas que cercaram Jesus e Seus discípulos no decorrer
de Seu ministério nas sinagogas da região e nos sinédrios locais. Este é o fundamen­
to de todas as acusações que os líderes judeus trouxeram contra Jesus em diversos
julgamentos, pelo menos do ponto de vista da narrativa.
A acusação de que Jesus não permitia o pagamento de impostos prova-se vazia
quando baseada no incidente no qual os fariseus tentaram pegar Jesus em uma
276
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

cilada especificamente nesse assunto (20.22-26). Os leitores sabem que Jesus,


de fato, não proibia o pagamento de impostos a César. Ele simplesmente disse:
“Portanto, deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lc 20.25).
Logo, as insuportáveis acusações mostram a ilegitimidade do julgamento informal.
A justiça não estava sendo feita. Essa é a parte do entendimento básico da narrativa
da paixão.
A acusação da reivindicação messiânica é mais complexa. Por um lado, Jesus nunca
reivindicou publicamente que era o Messias em Lucas. Tampouco admite direta­
mente que Ele é o Messias durante o interrogatório inicial na casa do sumo sacer­
dote. Cristo havia feito isso em particular; mas essa admissão caía dentro do rela­
cionamento confidencial que Ele tinha com Seus seguidores - um relacionamento
do qual os leitores estão ciente. Nessas conversas, Ele indicava especificamente que
a verdade desses assuntos estava escondida para os que estavam de fora do Seu cír­
culo (9.21,36; veja 8.9-11).
Lucas é consistente em seu relato de que Jesus dera uma resposta evasiva à pergunta
do sinédrio sobre Ele ser ou não ser o Messias (“^ 22.70, “Vocês dizem que eu sou”
[NRSV, NIV11, tradução livre]). A ambiguidade dessa resposta não é uma negação
de Sua identidade como o Messias. Isso apenas preserva o segredo público da ilus­
tração que Lucas faz de Jesus.
■ 6-12 O interesse particular de Lucas em Herodes Antipas é visível aqui (-^3.1).
Já que Jesus era um galileu e o tetrarca estava na cidade por acaso, Pilatos enviou-
-lhe Jesus para um interrogatório (v. 7). Em Lucas 9.7, Herodes expressa perplexidade
quanto ao rumor de que Jesus era João Batista ressuscitado dos mortos. “Herodes
disse: “João, eu decapitei! Quem, pois, é este de quem ouço essas coisas?” E procurava
vê-lo” (9.9; veja Mt 14.1 || Mc 6.14). O Herodes de Lucas sempre teve uma intensa
curiosidade sobre Jesus e ainda esperava vê-lo realizar algum milagre (23.8).
Em uma prévia explicação à parte, em Lc 13.31, Herodes foi descrito por Lucas
como alguém que desejava matar Jesus. Alguns fariseus amigos avisaram-no para
que escapasse. Herodes aparece novamente em Atos 4.27,28 como um dos respon­
sáveis pela morte de Jesus (também Atos 13.1; Antipas não deve ser confundido
com Herodes Agripa I de Atos 12). Herodes, e não Pilatos, zomba de Jesus e veste-
-o com uma elegante túnica (Lc 23.11; compare com Mc 15.17 || Mt 27.28).
Ironicamente, a ação contra Jesus cria uma amizade entre Herodes e Pilatos, que
eram inimigos até então (v. 12). O conflito supremo desenrola-se com todos os
adversários de Jesus posicionados à Sua volta em um completo círculo de oposição.
■ 13-25 Pilatos fica relutante em conceder o pedido dos chefes dos sacerdotes,
das autoridades e do povo (v. 13) para continuar processando o caso de Jesus. Há
três repetições de sua base para arquivar o caso em Lc 23.13-25.
277
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Primeiro, na opinião de Pilatos, Jesus não era culpado de incitar o povo à rebelião
(v. 14). A conclusão similar de Herodes apoia esse ponto de vista (v. 15). Herodes
não fica convencido de que a acusação acerca de Jesus ser um enganador é bastante
substancial para garantir-lhe a pena de morte. Logo, Pilatos indica que Ele será
açoitado e solto (v. 16).
Segundo, em resposta ao clamor do povo pela soltura de Barrabás, Lucas registra
que, desejando soltar aJesus, Pilatos dirigiu-se a eles novamente. (v. 20). É aqui
que a multidão clama pela crucificação: “Crucifica-o! Crucifica-o!” (v. 21). Essa
é a primeira vez que a pena de morte de Jesus é explicitamente mencionada na
narrativa da paixão (compare com Mt 23.34, a outra ocorrência nos sinóticos além
desta).
Terceiro, Pilatos finalmente exige: “Por quê? Que crime este homem cometeu?
Não encontrei nele nada digno de morte. Vou mandar castigá-lo e depois o
soltarei” (v. 22; Brown, 1994, p. 727,728 pesquisa as possíveis razões de Pilatos
ter refutado tão prontamente as acusações judaicas: Ele considerava as acusações
inadmissíveis ou nulas na perspectiva romana ou não via Jesus como um salteador,
cancelando as acusações imediatamente, ou acreditava que as acusações eram base­
adas em evidências falsas).
Essa vindicação tripla do julgamento de Pilatos parece, ao leitor, absolver as auto­
ridades romanas da responsabilidade da morte de Jesus. Talvez isso fosse parte do
propósito de Lucas. Enquanto todos os Evangelhos sinóticos fazem o mesmo, o
acréscimo de Lucas 23.6-17 reforça a ilustração geralmente positiva de Pilatos. Os
leitores estão perfeitamente conscientes de que a responsabilidade dele para com o
tratamento justo de um homem que nada fez que mereça a morte (v. 15) é muito
mais absoluta.
Pilatos convenientemente cede à vontade do povo a fim de acalmá-lo: Eles, po­
rém, pediam insistentemente, com fortes gritos, que ele fosse crucificado; e a
gritaria prevaleceu. Então Pilatos decidiu fazer a vontade deles (Lc 23.23,24).
O que a narrativa oferece em uma mão para vindicar Pilatos, ela tira com a outra
mão imediatamente.
No final, todos os poderes alinham-se contra Jesus para selar a Sua sorte: Os
poderes do diabo (22.3), as autoridades locais do sumo sacerdote e dos anciãos
(22.2,52,66; 23.1,13), a multidão totalmente contra o profeta (23.18), o tetrarca
Herodes (23.11) e Pilatos, o representante do governo romano, o qual é cúmplice
por sua fraqueza judicial (23.23). Todos esses poderes estavam presentes e concen­
trados naquele momento caótico diante de Pilatos, uma cena de verdadeira violên­
cia da multidão.
278
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

A PARTIR DO TEXTO
Essas forças espirituais, religiosas e políticas têm sido os temas constantes da
narrativa. Ainda assim, até quando todas elas são liberadas no mesmo momento,
sua convergência é ilustrada pelo narrador como algo que se encontra dentro do
plano divino. E esse momento que a teologia precisa explicar. Nós queremos sa­
ber como a vontade humana e a intenção divina interagem-se. Um criminoso sai
livre e um homem inocente é levado para a crucificação, como o povo deseja. Isso
parece ser a antítese da mão condutora de Deus, mas, de fato, essa é a Sua perfeita
vontade. Os propósitos de Deus são realizados por meio de atores humanos. Será
que eles são livres e completamente responsáveis por suas ações ? Ou será que eles
são marionetes no plano divino e absolvidos de qualquer culpa? Dentro dessa mis­
teriosa contradição, existe um santo entrosamento entre Deus e os homens.
Significativamente, Jesus, como o Filho de Deus, participa plenamente desse
mistério. Ele entrega-se voluntariamente à cruz (“não a minha vontade”), mas faz
isso no contexto da vontade divina (“mas a tua vontade” [22.42]). Esse é o supremo
ato de amor, perfeitamente livre e, ao mesmo tempo, contudo, perfeitamente obe­
diente. Jesus voluntariamente entrega-se ao caos sabendo que estava no controle
de tudo.
D. A crucificação (23.26-56)
H 26-31 A narrativa da crucificação em Lucas está baseada primariamente no
relato de Marcos, a narrativa básica para Mateus e Lucas (veja Brower 2012). Lu­
cas omite diversas características da cena da crucificação que estão presentes nos
outros sinóticos:
• A cena “Eis o homem” de Mc 15.17-20 || Mt 27.28-31.
• Pilatos lavando as mãos em Mt 27.24-26.
• A zombaria dos soldados dentro do Pretório em Mc 15.16-20 11Mt 27.27-
31.
• A referência escarnecedora dos caluniadores de Jesus quanto à afirmação
da destruição do templo em três dias em Mc 15.29^,30 || Mt 27.40.
• Lucas também acrescenta três novas características ao cerne da narrativa:
• O breve discurso de Jesus sobre as filhas de Jerusalém enquanto Ele cami­
nha em direção ao local da execução (Lc 23.27-31).
• As palavras do segundo criminoso que foi crucificado com Ele naquele dia
(v. 40-43).
279
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

• O comentário do centurião sobre a inocência de Jesus no versículo 47.


Esse material peculiarmente lucano será o foco de nossa atenção neste comentário.
Lucas enfatiza Jerusalém o tempo todo (-^ 9.28-36,51-56). De suas 24 referências
a Jerusalém, 19 delas são exclusivas desse Evangelho. Ela é o local do destino de Je­
sus em 9.31; 13.22,33,34; 17.11; 18.31; 19.11. O acréscimo do solilóquio das filhas
de Jerusalém é uma extensão do tema e serve como expressão de uma Jerusalém que
abandonou a fidelidade.
Jerusalém tem representado frequentemente a obstinação de Israel na literatura
profética (vejajr 35.12-17 e Lc 13.31-35). Para os profetas, a nação vai do modo
como Jerusalém vai. Logo, a execução de Jesus em Jerusalém representa o fracasso
de toda a nação diante de Deus. Esse fracasso levará destruição à cidade, o que, por
sua vez, deve ser entendido como a destruição da nação. Isso foi predito no material
lucano ao longo do Evangelho, especificamente em Lc 19.41-44 e Lc 21.20-24. A
morte do Messias é tanto um resultado da rejeição de Jerusalém como a causa de
sua destruição e da destruição da nação.
As mulheres que acompanhavam Jesus ao longo do caminho até o local da cruci­
ficação “batiam no peito” (NRSV) como sinal de luto e lamentavam em angústia
(23.27). O amamentar das crianças e a bênção de amamentar nos seios da mãe é
um tema que aparece no tratamento de Lucas quanto à destruição de Jerusalém (”>
13.33-35; 19.41-44; 21.20-24; 23.27-31; e a anotação complementar abaixo).
Todas essas referências falam da desolação e da destruição de Israel, particularmen­
te de suas mulheres e de seus filhos, especialmente os de peito: Felizes as estéreis,
os ventres que nunca geraram e os seios que nunca amamentaram! (v. 29). Os
seios simbolizam o consolo e a segurança nas Escrituras. Os ais das mulheres signi­
ficam a perda de tudo o que é seguro: o consolo e a segurança maternais estão em
perigo porque Jerusalém rejeitou Jesus.
A imagem da amamentação também denota fertilidade e garante a continuidade
da existência de Israel e o cumprimento da promessa a Abraão. Os ventres estéreis e
os seios que não podem amamentar apontam para as terríveis perspectivas de con­
tínua existência de Israel como nação. Jerusalém é descrita na Escritura como quem
amamenta Israel em seus seios:
Regozijem-se com Jerusalém e alegrem-se por ela, todos vocês que a amam;
regozijem-se muito com ela, todos vocês que por ela pranteiam. Pois vocês
irão mamar e saciar-se em seus seios reconfortantes, e beberão à vontade e
se deleitarão em sua fartura. (Isaías 66.10,11)
O ai simboliza o rompimento da intimidade materna entre Deus e o Seu povo (veja
Gn 49.25; SI 22.9; Is 49.14,15). Em Lucas, esse rompimento só pode ser sarado
pelo arrependimento e pelo perdão do pecado, mediante a morte de Jesus na cruz.
280
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Material lucano sobre a destruição de Jerusalém


Lucas Lucas Lucas Lucas
13.33-35 19.41-44 21.20-24 23.27-31

Mas, preciso Quando se aproxi­ "Quando virem Um g ra n d e n ú ­

prosseguir hoje, mou e viu a cidade, Jerusalém rodeada m e ro d e p e s ­

amanhã e depois Jesus chorou sobre de exércitos, vocês s o a s o s e g u ia ,

de amanhã, ela e disse: "Se você saberão que a sua in c lu s iv e m u lh e ­

pois certam ente compreendesse devastação está re s q u e la m e n ­

nenhum profeta neste dia, sim, você próxima. Então os ta v a m e c h o ­

deve m orrer fora tam bém , o que traz que estiverem na r a v a m p o r e le .

de Jerusalém! a paz! Mas agora Judéia fujam para J e s u s v o lt o u - s e

os montes, os que e d is s e - lh e s :
"Jerusalém, Jeru­ isso está oculto aos
estiverem na cidade " F il h a s d e J e r u ­
salém, você, que seus olhos. Virão
saiam, e os que s a lé m , n ã o c h o ­
mata os profetas dias em que os seus
estiverem no campo r e m p o r m im ;
e apedreja os que inimigos construirão
não entrem na cida­ ch o re m p o r
lhe são enviados! trincheiras contra
de. Pois esses são vocês m esm as e
Quantas vezes você, a rodearão e
os dias da vingança, p o r s e u s f ilh o s !
eu quis reunir os a cercarão de todos
em cum prim ento de P o is c h e g a r á
seus filhos, como os lados. Também a
tudo o que foi escri­ a h o ra em q u e
a galinha reúne lançarão por terra,
to. Como serão ter­ v o c ê s d ir ã o :
os seus pintinhos você e os seus
ríveis aqueles dias 'F e liz e s a s e s t é ­
debaixo das suas filhos. Não deixarão para as grávidas e r e is , o s v e n ­
asas, mas vocês pedra sobre pedra, para as que estive­ tre s q u e n u n ca
não quiseram! porque você não re­ rem am amentando! g eraram e os
conheceu a oportu­ Haverá grande s e io s q u e n u n c a
Eis que a casa
nidade que Deus lhe aflição na terra e ira a m a m e n ta ra m !'
de vocês ficará
concedeu” . contra este povo. " 'E n t ã o d ir ã o
deserta. Eu lhes
Cairão pela espada à s m o n ta n h a s :
digo que vocês
e serão levados " C a ia m s o b r e
não me verão
como prisionei­ n ó s !" e à s c o li­
mais até que
ros para todas as nas: "C u b ra m -
digam: 'Bendito
nações. Jerusalém - n o s ! " ' P o is , s e
o que vem em
será pisada pelos f a z e m is t o c o m
nome do Senhor'
gentios até que os a á rvo re ve rd e ,

tem pos deles se o q u e a c o n te c e ­

cumpram. rá q u a n d o e la

e s t iv e r s e c a ? "

281
LUCAS 9-24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A invocação “Caiam sobre nós!” e às colinas: “Cubram-nos!” no versículo 30


cita Oseias 10.8, um lamento sobre a falta de fidelidade de Israel. A ira de Deus que
deverá ser visitada em Jerusalém fará com que todos os que nela habitam desejem a
morte. Em vez de amamentar-se nos seios da cidade, os habitantes de Jerusalém se
acharão desejando a morte. Esse tema de vida e morte é visto na descrição de Jesus
sobre si mesmo como árvore verde (Lc 23.31), isto é, uma árvore viva. Contudo,
quando essa “árvore” secar, ou morrer, os líderes de Jerusalém cometerão crimes
ainda maiores contra Deus.
H 32-43 O povo (Lc 23.35) permanece ali para observar a morte de Jesus. Ele é
escarnecido por três grupos diferentes: as autoridades (v. 35), os soldados (v. 36)
e um dos criminosos com quem Ele é crucificado (v. 39). Em cada caso, a zombaria
tem a ver com salvação. Ele salvou os outros, as autoridades escarneciam, salve-se
a si mesmo, se é o Cristo de Deus, o Escolhido (v. 35). Da mesma forma, os sol­
dados: Se você é o rei dos judeus, salve-se a si mesmo (v. 37).
Finalmente, o criminoso diz: Salve-se a si mesmo e a nós! (v. 39). A palavra salvar
neste contexto é um trocadilho. Aqueles que zombavam dele sugeriam que se sal­
vasse da morte física. Todavia, a palavra tem um significado muito mais profundo
na narrativa. Jesus veio especificamente “buscar e salvar o que estava perdido” (Lc
19.10). É a salvação da perdição espiritual, não simplesmente da morte física. O
tema da interação de Jesus com o povo nesse Evangelho aponta que o caminho da
salvação é o arrependimento e o perdão (-> 5.31,32; 19.9,10), não a autopreserva-
ção. A ironia é que, deixando de salvar a si mesmo, Ele torna-se o Salvador de todos.
O criminoso humilde parece demonstrar a mesma ética de arrependimento que
tem caracterizado o Evangelho de Lucas (Fitzmyer, 1985, p. 1508,1509). Somente
Lucas coloca essas palavras nos lábios do companheiro de cruz de Jesus. O homem
que estava sendo executado com Jesus repreende o outro criminoso por insultar
verbalmente a Cristo. Ele disse: Nós estamos sendo punidos com justiça, por­
que estamos recebendo o que os nossos atos merecem. Mas este homem não
cometeu nenhum mal (Lc 23.41).
Logo, o segundo criminoso evidencia o arrependimento que era exatamente o ob­
jetivo da história de Jesus. Consequentemente, ele recebe o perdão de Cristo: Eu
lhe garanto: Hoje você estará comigo no paraíso (v. 43).
A urgência da absolvição é a demonstração do poder do arrependimento. Lucas já
relatou que publicanos e pecadores, a mulher pecadora, o filho pródigo, e o notó­
rio Zaqueu, todos encontraram o perdão. Mas, finalmente, até o criminoso crucifi­
cado com Jesus pode encontrar a salvação por uma palavra de arrependimento e de
absolvição de Jesus. As palavras finais de Jesus, quando está sucumbindo à morte,
são palavras de perdão ao homem na cruz ao Seu lado. Essas palavras afirmam o
282
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

propósito de Sua missão: Pois o Filho do homem veio buscar e salvar o que es­
tava perdido (19.10).
H 44-49 Na hora sexta, ou seis horas após o alvorecer, por volta de meio-dia,
houve trevas em toda a terra (23.44 ARC). O dia da Páscoa começou ao cair
da noite (22.7). Os eventos da prisão de Jesus desenvolveram-se durante a escuri­
dão da noite, uma metáfora para as trevas espirituais nas quais a história sucumbe.
Quando os chefes dos sacerdotes e os guardas do templo prenderam Jesus no jar­
dim, Ele disse: “Mas esta é a hora de vocês - quando as trevas reinam” (22.53).
Esse tema reaparece nas trevas do meio-dia sobre a terra, pois o sol deixara de bri­
lhar (23.45; veja 21.25,26). A morte do Messias está envolta em trevas espirituais
e trevas físicas. O mundo espiritual é lançado em seu mais profundo desespero, as
luzes do seu firmamento extinguiram-se.
Antes de Jesus morrer, Ele exclamou: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espíri­
to”. Tendo dito isso, expirou (23.46). Assim como foi profetizado em Lucas 9.44,
Jesus seria traído pelas “mãos dos homens” (NRSV). Agora, Ele passou das mãos
dos homens para as mãos de Deus. Logo, a história deixa o ministério humano de
Jesus e entra em Seu ministério divino debaixo do completo domínio do poder de
Deus.
E o véu do santuário rasgou-se ao meio (23.45^). Isso pode ser um símbolo de
Deus saindo da centralidade do templo no futuro da missão de Jesus (Green, 1997,
p. 826) ou uma predição da destruição do templo (Marshall, 1978, p. 875). Con­
tudo, talvez signifique a passagem de Jesus do espaço humano para o espaço trans­
cendente. Essas duas realidades, terrena e celestial, são momentaneamente unidas
e Jesus passa silenciosamente pelo véu.
O centurião que observa o último suspiro de Jesus proclama que aquele homem
era justo (dikaios, v. 47). Marcos e Mateus relatam que ele proclamou que Jesus
era o “Filho de Deus” (Mc 15.39 || Mt 27.54). Lucas é reticente em colocar a frase
“Filho de Deus” nos lábios dos seguidores de Jesus (compare, ex.: Mt 16.16 com
Lc 9.20). Em Lucas, a frase “Filho de Deus” é usada pelo diabo e pelos demônios
(4.3,9,41; 8.28) e pelas autoridades no interrogatório em Jerusalém (22.70). Lucas
ameniza a tradição de Marcos e Mateus que colocam a confissão de Jesus como o
Filho de Deus nos lábios do centurião.
Será que isso faz parte do propósito consciente de Lucas? Isso é consistente com
sua abordagem narrativa nesse sentido - a identidade de Jesus é conhecida somente
em Seu círculo íntimo. Os que estão fora desse círculo não podem conhecer Jesus
como o Messias. Em Lucas, Jesus não é o Messias notório até que o Espírito desce
sobre Seus discípulos publicamente em Atos 2. Lucas e Atos são verdadeiramente
uma obra de dois volumes em estrutura e conteúdo.
283
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

■ 50-56 O último suspiro de Jesus na cruz é quase como se a própria narrativa


expirasse em alívio. A narrativa desvia da luta espiritual de tortura para a quietude
do túmulo. Uma sensação de resolução paira sobre a história.
Todavia, é uma resolução que também possui uma imensa sensação de expectativa.
Os leitores sabem muito bem que o túmulo não é o final da história. Logo, do ver­
sículo 50 em diante, um relato de estilo mais factual predomina.
Nós somos informados da identidade do homem que cuidou do enterro de Jesus:
José, membro do Conselho, homem bom e justo (v. 50). Ele é justo (dikaios),
igualmente como Jesus foi descrito pelo centurião. Com um pouco de ironia, o ho­
mem é membro do conselho que o condenara. João identifica-o como um seguidor
secreto de Jesus (Jo 19.38). Depois de pedir permissão a Pilatos, tirar o corpo de
Jesus da cruz e colocá-lo em um túmulo vazio, o homem de Arimateia desaparece
da história do Evangelho.
A presença de mulheres ao lado de Jesus tem sido um tema da narrativa 8.1-3).
Elas também ajudaram a financiar o ministério dele. Logo, elas teriam de ser mu­
lheres de influência no movimento. Diferentemente dos discípulos, elas estiveram
presentes nos momentos finais da vida de Jesus, testemunhando a Sua morte (Mt
27.55; Mc 15.40).
Desde Lucas 23.55 a 24.10, as mulheres seguidoras de Jesus passam novamente
para o palco central da narrativa. Elas não só testemunham a crucificação, mas
também cuidam do corpo (23.56) e são as primeiras a descobrir o túmulo vazio
(24.1,2).
As mulheres observaram José sepultar Jesus e prepararam perfumes e especiarias
aromáticas que eram usadas para preservar e ungir o corpo antes do sepultamento.
No dia seguinte, o Sábado judaico, elas descansaram... em obediência ao man­
damento (v. 56). Mulheres fiéis são proeminentes na narrativa do nascimento em
Lucas e na narrativa da paixão. Assim como o início da vida de Jesus foi cuidadosa­
mente apresentado por Lucas em completo acordo com a Torá (-> 1.6-7; 2.41-52),
assim também o fim é cercado pela mesma preocupação.

E. A descoberta do túmulo vazio (24.1-12)

POR TRÁS DO TEXTO

O relato de Lucas sobre a descoberta do túmulo vazio na manhã da ressurrei­


ção é baseado em Marcos 16.1-8 (compare com Mt 28.1-8). Desses três evange­
listas, Lucas tem o relato menos adornado. Ele usa um estilo de narrativa simples.
Diferentemente de Mateus, não há terremoto e o anjo não rolou a pedra (Mt 28.2).
284
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Diferentemente de Marcos, as mulheres não se preocupam com quem irá rolar a


pedra para elas (Mc 16.3) e elas não ficam sem fala quando têm medo (Mc 16.8).
Todos os três evangelistas, porém, registram seres celestiais no túmulo: em
Mateus, “um anjo do Senhor” (28.2-3); em Marcos, “um jovem vestido de roupas
brancas” (16.5); em Lucas, “dois homens com roupas que brilhavam como a luz do
sol” (24.4).
Depois da cena do túmulo, os evangelistas divergem na estrutura de seus re­
latos. Em Mateus, a história passa da ressurreição de Jesus (“Ele não está aqui; res­
suscitou” [28.6]) para a aparição dele no caminho enquanto as mulheres corriam
para contar aos outros (v. 9,10). Somente Mateus inclui a história que os guardas
inventaram para o governador (v. 11-15). Uma aparição aos discípulos na Galileia
e a Grande Comissão são a sequência em Mateus, sem a narrativa da ascensão (v.
16.20). O relato de Mateus é curto, com apenas 20 versículos dedicados à narrativa
da ressurreição. Lucas usa 53 versículos.
A narrativa de Marcos, famosamente truncada, sobre a descoberta do túmulo
vazio é de apenas oito versículos (16.1-8). Assim, finalizações curtas e longas têm
sido acrescentadas por editores posteriores. Na versão mais longa, o relato de Mar­
cos ainda é apenas de 20 versículos, quase do mesmo tamanho que o de Mateus.
O final secundário mais longo de Marcos inclui uma aparição a dois discípulos
no campo (Mc 16.12-13), análogo à narrativa de Emaús em Lucas (Lc 24.13-35).
Marcos registra uma aparição aos Onze discípulos (Mc 16.14-18), que inclui a
Grande Comissão (compare com Mt 28.19-20) e os sinais que acompanhariam a
missão deles. Uma só sentença no longo final de Marcos relata a ascensão de Jesus
(Mc 16.19 || Lc 24.51).
A narrativa da ressurreição em Lucas é bem mais longa do que a dos outros
sinóticos por causa do acréscimo de dois relatos exclusivos: o primeiro é o encontro
de Jesus ressurreto com Cleopas e outro discípulo no caminho de Emaús no tercei­
ro dia após a ressurreição de Jesus (v. 13-35). O segundo é um relato do primeiro
encontro de Jesus com “os Onze” (v. 33,36-43; veja o paralelo em Jo 20.24-29).
Lucas conclui (em 24.44-53) com um relatório sobre Jesus comissionando os dis­
cípulos (compare Mt 28.16-20).
O material adicional de Lucas tem um significado particular porque lida princi­
palmente com a reinterpretação das Escrituras que Jesus deu aos Seus discípulos que
ainda não as compreendiam. No caminho de Emaús, Jesus fala aos Seus dois compa­
nheiros de viagem: “E começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que
constava a respeito dele em todas as Escrituras” (Lc 24.27). Depois que Ele os deixou,
eles ficaram relembrando do encontro: “Não estava queimando o nosso coração, en­
quanto ele nos falava no caminho e nos expunha as Escrituras ?” (Lc.24.32).
285
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Quando Ele encontrou-se pela primeira vez com “os Onze”: “E disse-lhes:
“Foi isso que eu lhes falei enquanto ainda estava com vocês: Era necessário que se
cumprisse tudo o que a meu respeito está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e
nos Salmos”. Então lhes abriu o entendimento, para que pudessem compreender
as Escrituras” (v. 44,45). Lucas apresenta um entendimento muito mais desenvol­
vido da natureza da influência pós-ressurreição de Jesus dentro da comunidade do
que os outros evangelistas. O Senhor ressurreto torna-se um mestre ressurreto que
reinterpreta a Escritura histórica do judaísmo à luz de Sua crucificação e de Sua
ressurreição.
Existe uma explícita releitum da tradição profética por intermédio de Jesus
ressurreto no capítulo 24. Nesse novo entendimento do AT, as predições da vida
de Jesus são revisitadas e examinadas. O significado das passagens que tinham sido
entendidas estritamente no contexto da história de Israel é relido como referências
prolépticas à vida do Messias sofredor. Jesus já os ensinara essas coisas — “Foi isso
que eu lhes falei enquanto ainda estava com vocês” (v. 44)—, mas agora elas fazem
sentido quando são reiteradas por Jesus ressurreto.
Essa reinterpretação da Escritura é de tal importância que o propósito da Lei de
Moisés, dos Profetas e dos Salmos (v. 44) é repensado. Agora, eles devem ser en­
tendidos como escrituras que predizem a vida de Jesus enquanto contam a jornada
de Israel com o Senhor. Eles são lidos através de novas lentes messiânicas, que são
esclarecidas pela paixão e pela ressurreição de Jesus. Não é de admirar que os judeus
do primeiro século rebatessem essa prática exegética cristã.
O tratamento extensivo de Lucas acerca desse assunto, sem dúvida, refletia
debates em andamento em sua comunidade cristã com a sinagoga judaica na parte
final do primeiro século. Lucas, na verdade, introduziu um princípio hermenêutico
de longo alcance para a nova igreja. As Escrituras adquiriram um nível de significa­
do completamente novo - um nível messiânico de significado. E essa releitura das
Escrituras é autenticada pela prática do próprio Jesus ressuscitado.
Essas observações esclarecem-nos sobre o propósito de Lucas criar sua obra em
dois volumes. O interesse dele certamente era registrar os eventos da vida de Jesus
com a maior precisão possível (1.1-4). Porém, seu propósito maior era contar esses
fatos no contexto de uma igreja que estava relendo sua Bíblia. Em Atos, ele volta-se
para um extensivo tratamento de como a história de Jesus leva ao surgimento da
nova comunidade cristã. Essas referências à nova fundação exegética colocada pelo
Jesus ressuscitado preparam o leitor para a reinterpretação mais ampla das Escritu­
ras judaicas que virá em Atos (ex.: 2.16-21,25-28,34,35; 4.11,25,26 etc.).
O reconhecimento prolongado da “história da salvação” em Lucas não é visto
tão claramente em nenhum outro lugar como no capítulo 24. Dos quatro evan-
286
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

gelistas, apenas Lucas contempla o futuro da vida da igreja na abordagem de sua


narrativa. O Jesus ressurreto de Lucas convida a igreja para viver uma nova exegese
do AT, na qual o Messias sofredor está no centro da teologia, baseada no Servo
crucificado do Senhor. Para os leitores, essa é a “nova teologia”; apenas agora seus
olhos foram abertos para a nova exegese. Ao mesmo tempo, o Jesus de Lucas apre­
senta essa visão esclarecida como a intenção original do AT. Essa é, para o Jesus
ressuscitado, a mais antiga e adequada teologia do AT.
O mundo narrativo de Lucas revela algo da situação em sua própria comu­
nidade de fé. Os leitores dele já haviam se engajado há muito tempo no debate
com judeus tradicionais sobre a maneira adequada de ler Moisés, os Profetas e os
Salmos. Na narrativa de Lucas, o Jesus ressurreto inicia esse debate e estabelece a
estrutura hermenêutica para a reinterpretação do AT. Jesus é o Senhor ressurreto e
o mestre em Lucas.
NO TEXTO

H 1-4 Após a crucificação, as mulheres que voltaram da Galileia com Jesus viram
onde o Seu corpo havia sido colocado (Lc 23.55). Depois do mandatório dia de
descanso de Sábado (veja Ex 20.8-11; Dt 5.12-15), elas voltaram com as especia­
rias aromáticas que haviam preparado para embalsamar o corpo (Lc 24.1).
O fato de que as mulheres deveriam observar o dia de descanso, “em obediência ao
mandamento” (23.56), mostra que a nova comunidade retinha sua ligação com a
Lei. O Evangelho de João relata que o tratamento do corpo com especiarias estava
“de acordo com os costumes judaicos de sepultamento” (Jo 19.40). O outro único
uso bíblico da palavra especiarias (arõmata) em relação ao sepultamento é em co­
nexão com a morte do rei Asa em 2 Crônicas 16.14.
Encontraram removida a pedra do sepulcro, mas, quando entraram, não en­
contraram o corpo do Senhor Jesus (Lc 24.2,3). A designação Senhor Jesus é
usada para o Cristo ressurreto somente aqui, mas é um título usado frequente­
mente em Atos (18 vezes). Achando o túmulo vazio, elas ficaram “perplexas” (v.
4 NRSV). Encontrar o túmulo vazio era contrário às expectativas delas. Aquelas
mulheres não haviam compreendido plenamente o que Jesus havia ensinado (veja
v. 7). De repente, dois homens com roupas que brilhavam como a luz do sol
colocaram-se ao lado delas e as relembraram das palavras de Jesus (v. 4; 9.28-
36). Os dois discípulos no caminho de Emaús caracterizaram a experiência das
mulheres como “uma visão de anjos” (Lc 24.23).
Os seres celestiais no versículo 4 são semelhantes aos mensageiros que haviam apa­
recido em significantes pontos de transição na narrativa (1.11,28; 2.9; 9.29 || Mt
287
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

28.2,3 e Mc 16.5). As vestes de Jesus na transfiguração, semelhantemente, torna-


ram-se “alvas e resplandecentes como o brilho de um relâmpago” (Lc 9.29).
A escuridão da crucificação, o sepultamento e o Sábado de Páscoa transformam-se
em uma luz brilhante quando os mensageiros celestiais iluminam o túmulo vazio.
Agora, a luz dentro do túmulo (24.4) ficava em contraste com as trevas do meio-
-dia na crucificação (23.44). Isso leva a narrativa a um ciclo completo.
H 5-12 Os dois visitantes angelicais dizem: Por que vocês estão procurando
entre os mortos aquele que vive? Ele não está aqui! Ressuscitou! (24.5-6a). Essa
linguagem evoca a pergunta dos saduceus em 20.38 (Green, 1997, p. 837,838):
“Ele não é Deus de mortos, mas de vivos, pois para ele todos vivem”.
Lembrem-se do que ele lhes disse, quando ainda estava com vocês na Gali-
léia: ‘E necessário que o Filho do homem seja entregue nas mãos de homens
pecadores, seja crucificado e ressuscite no terceiro dia’. Então se lembraram
das palavras de Jesus (v. 6b-8). Essa admoestação angelical é útil para lembrar e
reforçar a ênfase do capítulo na releitura. A reflexão nas palavras do Senhor leva
à reflexão nas palavras das Escrituras. A ressurreição começa a trazer um esclareci­
mento das Escrituras. Todavia, a nova exegese da vida de Jesus também está acon­
tecendo. Com a exortação dos anjos, as mulheres lembraram-se daquilo que Jesus
havia dito. Isso inicia a reinterpretação dos dias de Jesus no meio delas (v. 8). Essa
atividade de lembrar-se será de central importância para a igreja emergente. A igre­
ja será capaz de permanecer fiel ao Senhor ressuscitado somente pela recordação
(ex.: At 11.16).
Essa é a primeira indicação de que os discípulos da comunidade da pós-ressurreição
se tornarão esclarecidos. A morte de Jesus foi acompanhada da escuridão do meio-
-dia, representante das trevas espirituais daquela hora. Então, a luz da aurora da
manhã do terceiro dia significa um alvorecer no esclarecimento dos discípulos.
Como é característico em Lucas, as mulheres são as primeiras a compreender (
Lc 8.1-3).
As mulheres testemunham a descoberta que fizeram — elas contaram todas estas
coisas aos Onze e a todos os outros (24.9). Tipicamente, a dúvida e a confusão
persistiram entre os discípulos: Mas eles não acreditaram nas mulheres; as pa­
lavras delas lhes pareciam loucura (v. 11). Os homens da história de Lucas são
alternadamente incrédulos (fariseus, Pedro, Judas), argumentativos e egoístas (os
discípulos, Lc 9.46; Lc 22.24; e aqui).
Essas mulheres da Galileia (23.55) - Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de
Tiago, e as outras que estavam com elas (24.10) - tinham sido verdadeiramente
fiéis, crédulas e penitentes no decorrer do Evangelho. Elas financiavam o ministério
(8.1-3) e foram testemunhas da crucificação (23.55). Elas foram cuidar do corpo de
288
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Jesus e saíram do túmulo vazio como as primeiras testemunhas humanas das novas de
que Jesus havia sido ressuscitado dos mortos. Em contraste, os homens continuavam
demonstrando dúvida e medo. Com um fino senso de ironia, os homens descartam
o testemunho das mulheres como se fosse uma perplexa loucura (24.11; veja v. 22).
Pedro, o arruinado líder dos discípulos, correu até o túmulo e voltou admirado
com o que acontecera (Lc 24.12). A covardia (22.60) e a descrença (24.11,41,
apisteõ) dos discípulos começam a virar perplexidade. O restante da história de
Lucas sobre a ressurreição impulsionará esse tema adiante, inicialmente, pelo es­
clarecimento dos dois discípulos no caminho de Emaús (nos versículos 13-35) e,
depois, com o aparecimento de Jesus diante dos discípulos nos versículos 36-56.
Essas aparições são unidas por um tema de releitura dos profetas, pelos quais a
morte do Messias havia sido prevista.

F. As aparições após a ressurreição (24.13-49)

1. No caminho de Emaús (24.13-35)

NO TEXTO

H 13-14 No fim da tarde, “no primeiro dia da semana” (v. 1), dois discípulos
estavam caminhando as sete milhas (dez quilômetros) no sentido oeste, de Jerusa­
lém para Emaús (v. 13; veja v. 29). Essa é uma cena na qual o significado escondido
da vida e da morte de Jesus é finalmente revelado aos discípulos. Há tanto revelação
como resolução nesta cena evocativa. Os discípulos estavam consternados e confu­
sos desde a execução (23.48; 24.4,5,11). Agora, eles refletem nos eventos da última
semana da vida de Jesus e tentam compreender o que havia acontecido.
Essa aparição pós-ressurreição é registrada apenas em Lucas. Ela tem todas as mar­
cas de seu estilo característico - uma história maravilhosamente literária, cheia de
emoção e de confusão interior, seguida de esclarecimento, alegria e júbilo. Ela é
“cheia de motivos teológicos lucano” (Fitzmyer, 1985, p. 1557-1560) — geográfi­
co, revelador, cristológico, cumprindo profecias do AT e Eucarístico.
Cleopas e seu companheiro anônimo (24.18) conversavam a respeito de tudo
o que havia acontecido (v. 14). Um estranho junta-se à caminhada dos dois
discípulos enquanto eles discutem os eventos da paixão de Jesus em termos
gerais. Eles descrevem os eventos ao estranho — o Jesus ressuscitado, mas ainda
289
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

irreconhecível — como as “coisas que ali aconteceram nestes dias” (v. 18). A paixão
é um conjunto de acontecimentos que requer uma interpretação como um todo. A
narrativa provê essa interpretação. Os leitores são privilegiados por saberem coisas
que os personagens da história não sabem (-^ 2.34,35; 7.18-35, 8.4-15, Por trás
do texto).
Após a segunda predição da paixão de Jesus (em 9.43b-45), Lucas caracteriza os
discípulos: “Mas eles não entendiam o que isso significava; era-lhes encoberto, para
que não o entendessem” (9.45; veja também 18.34). Aqui, os viajantes no caminho
para Emaús são acompanhados por Jesus, mas “foram impedidos de reconhecê-lo”
(24.16). Nos versículos 13-35, os leitores sabem o que realmente aconteceu — não
no futuro, mas no passado. Logo, eles presumem uma posição onisciente a respeito
da história.
É assim que Lucas molda os paradigmas ou a retórica da percepção (segundo Darr,
1992, p. 30,50-59). Qualquer um que tivesse as boas novas não podia esperar para
compartilhá-las, e assim é com os leitores do capítulo 24. Ficamos jubilosos e ma­
ravilhados com as notícias da ressurreição e ansiamos ver esse esclarecimento alvo­
recer em nossos personagens também. Lucas inclui alegria e expectativa na experi­
ência da leitura. Os leitores tornam-se participantes da história, interagindo tanto
com o autor como com os personagens.
Os discípulos desenvolvem um diálogo um com o outro (v. 14,15,17,23), de­
pois, com o desconhecido Jesus (v. 27,29) e, finalmente, com os outros discípulos
em Jerusalém (v. 35). O que eles percebem e pensam progride da ignorância (v.
16,17,18,24,25) à perplexidade (v. 22,23). Então, depois do partir do pão (v. 30),
eles encontram o esclarecimento (v. 31,32,34). Durante esse processo de diálogo e
pensamento, eles recebem a instrução do texto sagrado (v. 25,27,32).
Há dois pontos de virada na história. Primeiro, a declaração dos discípulos: “nós
esperávamos que” Jesus fosse “trazer a redenção a Israel” (v. 21). Isso cria a transi­
ção da conversa quieta entre os discípulos e a repetição da história deles para Jesus.
Segundo, o coração da narrativa é a cena do partir do pão, na qual o esclarecimento
ocorre para os discípulos (v. 30). Embora Jesus ensinasse as Escrituras antes de eles
tornarem-se esclarecidos (v. 25,27), os olhos deles não foram “abertos” até que o
pão fosse partido.

290
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Diálogo, cognição, percepção e te x to na história


do cam inho de Emaús

Nesta cena, existe um padrão de ideias e expressões que evocam a emoção nos leito­
res: primeiro, uma sensação de desorientação, tristeza e tolice; depois, de revelação
e descoberta por meio do diálogo. Lucas usa expressões acerca de:
• O diálogo sobre esses eventos e ideias
• Percepção e cognição
• Referências às Escrituras, que são sujeitas à exegese na cena

V. D iálogo Lucas Atos dos A póstolos

14 No ca m in h o , co n ve rsa va m a re sp e ito de tu d o o que havia acontecido.

C onversavam e d iscu­
15 tia m

m as os olhos deles fo ra m
16 im p e d id o s de reconhecê-lo.

Sobre o que vocês estão Eles p a ra ra m , com os


17 d is c u tin d o e n q u a n to rostos e n triste cid o s.
cam inham ?

não sabe das coisas que ali


18 a co n te ce ra m nestes dias?

Nós e sp e rá va m o s que era ele que ia tra z e r a redenção a Israel.


21

A lgum as das m ulheres


22 e n tre nós nos de ra m um
susto hoje.

V o lta ra m e nos co n ta ra m um a visão de anjos, que


23 d isse ram qu e ele está
vivo.

m as (os discípulos) não o


24 (Jesus) v ira m

vocês cu sta m a e n te n d e r tu d o o que os profetas


25 e com o d e m o ra m a cre r fa la ra m !
E com eçando p o r Moisés e
to d o s os p rofetas, explicou-
E xplicou-lhe s lhes o que constava a
27
re sp e ito dele em todas as
Escrituras.

29 Mas eles in s is tira m m u ito


com ele: Fique conosco

291
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

30 0 momento do esclarecimento ao partir do pão

Então os olhos deles


foram abertos e o recon­
31 heceram, e ele desapare­
ceu da vista deles.
Não estava queimando
32 o nosso coração, en­ e nos expunha as Es­
quanto ele nos falava no crituras?
caminho

34 0 Senhor ressuscitou e
apareceu a Simão!

Então os dois contaram o e como Jesus fora recon­


35 que tinha acontecido no hecido por eles quando
caminho partia o pão.

O final mais abreviado dos Evangelhos de Marcos e Mateus termina a história com
as aparições da ressurreição, mas não com a ascensão. Lucas fornece relatos não
só da ressurreição e da ascensão, mas também de uma narrativa pós-ressurreição
sobre como os discípulos deveriam entender a crucificação. Eles recebem estrutura
e perspectiva bíblicas do Senhor ressurreto pelas quais eles podem “interpretar” os
fatos de Sua vida. Lucas completamente fornece revelação e resolução aos leitores e
prepara o caminho para a história da igreja em Atos. O partir do pão é o momento
decisivo para essa revelação e para essa resolução. Os discípulos e o leitor, por ex­
tensão, não podem compreender a narrativa da paixão sem a revelação da verdade
pelo Jesus ressuscitado.
Lucas e João são semelhantes na forma como fornecem a resolução (veja João 20—
21). Quando fala sobre os fatos pós-ressurreição, João diz: “Mas estes foram escri­
tos para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham
vida em seu nome” (Jo 20.31). Os acréscimos de Lucas à narrativa pós-ressurreição
tem um propósito similar. Há uma aplicação explícita da narrativa da paixão na
vida da igreja, na qual a morte é interpretada para o leitor.
■ 15-17 Por si mesmos, os discípulos foram incapazes de desvendar os mistérios
desses fatos. Contudo, enquanto caminhavam ombro a ombro com Jesus, a exposi­
ção que Ele fazia das Escrituras transformava os discípulos em crentes. A busca e a
instrução trazem uma crença esclarecedora. Isso é apresentado por Lucas como um
padrão de vida para o discípulo no mundo da pós-ressurreição.
Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou
a caminhar com eles (v. 15). Os discípulos conversavam e discutiam enquanto
caminhavam. Homilein (conversar) só é encontrado em Lucas—Atos no NT. Essa
é a palavra da qual deriva o vocábulo “homilética” (Lc 24.14,15; At 20.11; 24.26;
292
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

no AT, somente em Pv 15.12; 23.31; e Dn 1.19). Pela primeira vez na história do


evangelho, temos discípulos que não estão apenas atônitos, confusos e descrentes.
Agora, eles são indivíduos pensantes que interagem em uma conversa inteligente
sobre o significado da vida de Jesus.
Esse é o novo paradigma do discipulado. Os discípulos conversam, refletem e até de­
batem sobre o que têm visto na vida de Jesus. Eles estão fazendo o que os discípulos da
pós-ressurreição precisam fazer — procurar entender a crucificação e a ressurreição.
Em Lucas 11.9,10, Jesus ensinou que, para encontrar a verdade, é necessário buscar a
verdade. Esse é um tema proeminente no decorrer da narrativa de Emaús.
Enquanto os discípulos ainda estavam discutindo o significado desses aconte­
cimentos, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles (Lc
24.15). O fato de Jesus aproximar-se significa mais do que uma simples aproxi­
mação física nesse texto. Cristo vai aos discípulos como o Revelador. Ironica­
mente, eles foram impedidos de reconhecê-lo (Lc 24.16). Esse é um exemplo
de “ocultação dramática”, provavelmente, algo para ser entendido teologicamente
(Fitzmyer, 1985, p. 1563). A identidade de Jesus foi escondida deles, isto é, Deus
tinha um propósito em esconder a identidade de Jesus (compare 9.45; 18.34).
O tema de uma figura divina aparecendo em forma humana é comum nas Escritu­
ras (Gn 18.2; 32.34; Mc 16.5; Jo 20.14; 21.4; Hb 13.2). Tais aparições significam
a presença do divino na experiência humana comum. Todavia, somente aqueles
com “olhos para ver” discernirão a presença divina. Os dois discípulos ainda não
tinham tal percepção. Ironicamente, eles andam vários quilômetros com Jesus e,
inclusive, comem com Ele sem reconhecê-lo.
A conclusão teológica a qual chegamos é que entender a real identidade de Jesus é
uma verdade revelada que surge apenas por meio da releitura da história e do partir
do pão. Não é algo obtido pela observação humana.
A interpretação da crucificação deve estar nos termos divinos, e o relacionamento
de Lucas com seus leitores preserva esse senso de esclarecimento sagrado. A narra­
tiva tanto preserva como media o conhecimento sagrado aos seus leitores.
Como ? Os dois discípulos estão em circunstâncias semelhantes a dos leitores, os
quais estão lutando para interpretar os acontecimentos que acabaram de ler. O
evangelho fornece a resposta para essa luta emocional e intelectual: a crucificação
era o plano de Deus desde sempre. A narrativa do caminho de Emaús conta aos
leitores que esse drama está finalizando como Deus queria. A crucificação não é o
desastre caótico que parecia ser nos últimos capítulos. Dessa forma, Lucas conduz
seus leitores à conclusão que deseja vê-los alcançar: Jesus está vivo!
Jesus questiona os discípulos, dizendo: Sobre o que vocês estão discutindo
enquanto caminham? (v. 17). Jesus é um interlocutor agora. Esse é um novo
293
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

papel para o Messias na era da pós-ressurreição. Ele entra em um diálogo do


tipo socrático, puxando e empurrando os discípulos ao longo de sua jornada de
descobrimento.
Os discípulos são participantes ativos na busca pelo significado, tanto emocional
como intelectualmente. Eles precisam pensar*para conhecer esse novo Cristo res­
suscitado. Jesus sempre fora o mestre deles, mas essa ruminação pós-ressurreição é
um tipo de processo diferente para eles. A fim de adquirir um novo conhecimento
como discípulos, eles precisam engajar-se na busca pelo conhecimento. Essa busca
é reveladora em natureza, mas também exige reflexão e uma nova compreensão de
si mesmo.
H 18-20 Um dos discípulos é identificado como Cleopas. A pergunta dele a Jesus
dá lugar a um breve sumário das coisas que ali aconteceram nestes dias (v. 18),
culminando com o relatório da morte de Jesus de Nazaré (v. 19). Esse é o nome
usado para apontar Jesus como o operador de milagres (Green, 1997, p. 846).
Os versículos 19^-24 são um discurso direto de Cleopas. (O nome e o sexo do
outro discípulo não são mencionados) Ele descreve Jesus como um profeta, pode­
roso em palavras e em obras (v. 19). Isso corresponde a um aspecto da ilustração
geral que Lucas faz de Jesus (4.24; 7.16,39; 13.33; veja At 10.37,38). Há conota­
ções da descrição de Lucas sobre o profeta Moisés nestas palavras também (“Moi­
sés foi educado em toda a sabedoria dos egípcios e veio a ser poderoso em palavras
e obras” [At 7.22]; Green, 1997, p. 846).
A linguagem de Lucas 24.20 já presume um tom estereotipado na descrição do so­
frimento e da morte de Jesus. Os líderes judeus o entregaram {paredõkan)\ como
em 24.7: “E necessário que o Filho do homem seja entregue [paradothênai] nas
mãos de homens pecadores, seja crucificado e ressuscite no terceiro dia”.
O verbo paradidõmi é usado em relação ao sofrimento de Jesus em 9.44; 18.32;
20.20; 23.25; 24.7; At 3.13; 12.4. Ele também descreve o ato da traição de Judas
(Lc 22.4,6,21,22,48). Isso lança novas tonalidades escuras sobre os atos das autori­
dades de Jerusalém — Os chefes dos sacerdotes e as nossas autoridades (v. 20a;
veja 23.13). Eles o entregaram para ser condenado à morte, e o crucificaram (v.
20b; veja também 24.7). Essa descrição de Sua morte também aparece em expres­
sões em Atos 2.36 e 4.10. As palavras do relato de Cleopas dão a sensação de um
hino, como se pudessem ser recitadas de cor em um drama ou em uma liturgia.
H 21-24 Os discípulos estavam esperando por uma resolução quanto à ambi­
guidade da identidade de Jesus. Em Lucas, a verdadeira identidade de Jesus tem
sido caracterizada por ambiguidade pública, dúvida privada e desentendimento
por parte dos discípulos. O mistério de Sua identidade em vida só aumenta na Sua
morte. Na ausência de uma certeza sobre a Sua ressurreição, os discípulos já têm
294
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

desconfianças sobre sua percepção acerca Jesus: e nós esperávamos que era ele
que ia trazer a redenção a Israel (v. 21).
Apesar de tudo o que Ele tinha dito e feito, os discípulos tinham interpretado mal
a missão de Jesus como última instância de natureza política. Eles esperavam que
a ambiguidade que cercava a identidade dele fosse removida pela “redenção” de
Israel. O verbo lytroõ significa libertar/resgatar, Ele é bem comum nos textos do
AT, especialmente em Êxodo, Deuteronômio, Salmos e Isaías. Ele é relativamente
raro nessa forma no NT, mas é encontrado aqui, em Tito 2.14 e em 1 Pedro 1.18.
Numerosas ocorrências de verbos cognatos aparecem em outros lugares no NT,
mas a ênfase neste caso está no uso dentro desse Evangelho. A forma verbal lyh on
ocorre em Marcos 10.45 e Mateus 20.28 na explicação de Jesus sobre o significado
de Sua morte: “Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para
servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45).
O uso de redenção em Lucas 24.21 provavelmente deve ser entendido no senti­
do de libertação do domínio de um país estrangeiro, um significado mais comum
quanto ao uso no AT (Procksch, 1967, p. 333). Em vez de vitória, os discípulos
continuam servindo a um senhor cuja identidade permanece sujeita à dúvida pú­
blica e ao escárnio. Devastadoramente, ficou parecendo que o público poderia es­
tar certo sobre aquele pretenso messias. Aquele não era o mundo que eles espera­
vam herdar de Jesus, mas foi o que receberam.
O discurso de Cleopas continua com a descrição da visita das mulheres ao túmulo
de manhã cedo e de alguns discípulos que o visitaram mais tarde (v. 22-24; com­
pare com Jo 20.3-10). Há diversas expressões sobre percepção nestes versículos.
As mulheres maravilharam os discípulos com sua história (Lc 24.22). Elas não
acharam o corpo dele (v. 23). Elas viram uma visão de anjos, que disseram que
ele está vivo (v. 23). Os discípulos foram investigar, mas não o viram (v. 24). Essas
referências mostram como o entendimento dos discípulos e das mulheres perma­
necia confuso com a descoberta do túmulo vazio. Somente as aparições do Jesus
ressurreto esclarecem o pensamento deles. Isso torna a revelação da identidade de
Jesus nos versículos 25-27 ainda mais dramática.
H 2 5 -2 6 Embora eles estejam buscando a verdade, Jesus os repreende por sua le­
targia da mente e da audição: Como vocês custam a entender e como demoram
a crer em tudo o que os profetas falaram! (v. 25). Deus lhes ocultou a identidade
de Jesus, mas, mesmo assim, espera que eles discirnam a verdade que já lhes foi re­
velada. Essa responsabilidade já foi enfatizada na história de Lázaro (16.29): “Eles
têm Moisés e os Profetas; que os ouçam”.
A fonte de ambiguidade da identidade de Jesus surge porque a história é revelada nos
profetas. Contudo, a mesma permanece oculta aos olhos dos homens até que seja
295
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

revelada pela explanação de Jesus. Ainda permanece a responsabilidade de “vê-la”, em­


bora isso exija uma assistência divina. O texto aponta que Jesus, o Mestre ressurreto,
é essencial à experiência deles quanto à ressurreição. Eles não podem entendê-la sem
a revelação do Cristo ressuscitado e sem Sua revelação esclarecedora. As aparições da
ressurreição terminam com a ascensão. Todavia, os mistérios da fé cristã continuarão
a ser mediados pela pessoa de Jesus nesse ambiente de pós-ressurreição.
Em um contraponto das expressões que indicam uma falha no esclarecimento (aci­
ma, 24.11-24), Lucas começa a usar verbos positivos de percepção. Os discípulos
“reconheceram” Jesus (v. 31,35). O Mestre “explicou” as Escrituras a eles (v. 27).
Os “olhos deles foram abertos” (v. 31). Cristo “expôs as Escrituras” para eles (v.
32). Jesus foi “reconhecido por eles quando partia o pão” (v. 35). Ele “lhes abriu o
entendimento, para que pudessem compreender as Escrituras” (v. 45).
H 27 E começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que cons­
tava a respeito dele em todas as Escrituras. Essa é a declaração que sintetiza a
intertextualidade no evangelho (veja Porter, 2006, p. 104-126 para um esboço do
uso que Lucas faz do AT). Lucas não indica quais textos do AT Jesus explica. Ele
espera que os leitores relembrem das inúmeras referências e alusões ao AT no de­
correr da narrativa do evangelho.
A palavra de Lucas afirma que as Escrituras são compostas da “Lei de Moisés,
dos Profetas e dos Salmos” (v. 44; em 16.31 - “Moisés e os Profetas”; em 16.16
e At 13.15 - “a Lei e os Profetas”; compare com Mt 7.12; 11.13; 22.40; 23.29).
Lucas tem cerca de 30 referências explícitas ao AT em seu Evangelho (dependen­
do de como você conta-as, veja Archer e Chirichigno, 1983, xx: 1.15; 2.23,24;
4.4,8,10,11,12,18,19; 7.22,27; 8.10; 9.54; 10.27; 13.19,35; 18.20; 19.38,46;
20.17,28,37,42,43; 21.26,27,37,69; 23.24,30,46; veja mais: Kimball, 1994, p. 46-
49). Se expandirmos a contagem para incluir as alusões, o número sobe dramatica­
mente para 525 (Kimball, 1994, p. 49,206-212)!
Da perspectiva da narrativa, a frase o que constava a respeito dele em todas as
Escrituras engloba todas essas referências intertextuais. Jesus não reivindica que
toda a Escritura aponta para Ele, mas o Jesus de Lucas reivindica que uma teologia
bíblica de base ampla é completamente messiânica.
A futura releitura do AT pela igreja, tanto a Igreja primitiva como as igrejas
vindouras, está fundamentada nessa reivindicação. Lucas explicitamente estabelece
uma fundação compreensiva para uma futura teologia bíblica. Essa exegese
centrada no Messias representa a abordagem hermenêutica adotada pelos cristãos
primitivos e é refletida na interpretação cristã do AT até hoje (veja Holmgren,
1999, p. 38-42; sobre a questão da profecia/cumprimento, veja Squires, 1993, p.
121-154; vejaBehm 1964, 665-666).
296
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

Foi dito que Jesus “explicou” as Escrituras aos Seus companheiros no caminho. O
verbo diermêneuõ {interpretar), no NT, só é encontrado aqui com este significado
(em outros lugares ele significa traduzir: em At 9.36; 1 Co 12.30; 14.5,13,27).
Lucas 22.37, Atos 8.26-35, e Marcos 14.27 são exemplos desse estilo de exegese
de Lucas 24. A primeira grande referência intertextual no Evangelho de Lucas é a
de Isaías 61.1-2, em Lucas 4.18,19. Esse texto proclama o propósito do ministério
de Jesus (veja Kimball, 1994). Sobre o Jesus ressuscitado de Lucas, essa passagem e
outros textos sagrados falam unanimemente acerca dessa importantíssima questão:
Ele é o Messias. Estava divinamente ordenado que Ele devesse sofrer. E tudo isso foi
previsto por todas as principais figuras do corpus bíblico.
Textos de Lucas e de Atos acerca de como
a Lei e os Profetas confirmam o Messias
Lucas 16.31 Lucas 24.27 Lucas 24.44 Atos 28.23

“Abraão respondeu: E com eçando por Moi- E disse-lhes: "Foi isso Assim combinaram
'Se não ouvem a Moi- sés e to d o s os profe- que eu lhes falei en- encontrar-se com
sés e aos Profetas, tas, explicou-lhes o quanto ainda estava Paulo em dia determ i-
tam pouco se deixa- que constava a res- com vocês: Era neces- nado, indo em grupo
rão convencer, ainda peito d e le em todas sério que se cumprisse ainda mais numeroso
que ressuscite al­ as Escrituras. tudo o que a meu res­ ao lugar onde ele es­
guém dentre os mor­ peito está escrito na Lei tava. Desde a manhã
to s" (veja tam bém de Moisés, nos Profetas até a tarde ele lhes
16.16). e nos Salmos". deu explicações e
lhes testem unhou do
Reino de Deus, pro­
curando convencê-los
a respeito de Jesus,
com base na Lei de
Moisés e nos Profetas,
(veja tam bém 13.15:
24.14).

■ 2 8 -3 5 Os dois discípulos imploram ao estrangeiro que fique com eles, pois a


noite estava chegando. A cena faz lembrar a refeição da Páscoa de 22.14-23. Lucas
marca os eventos da morte e da ressurreição com a comunhão à mesa:
• Ambas as refeições ocorrem ao cair da noite.
• Ambas ocorrem em uma mesa servida por Jesus.
• A primeira é a “última ceia”, que inaugura a refeição sacramental.
• A refeição noturna em Emaús é a “primeira ceia”, inaugurando a refeição
sacramental no período dapós-ressurreição.
297
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

• A linguagem de instituição é semelhante.


• Em 22.19, temos: Tomando o pão, deu graças, partiu-o e o deu aos
discípulos, dizendo: “Isto é o meu corpo dado em favor de vocês; fa­
çam isto em memória de mim”
• Em 24.30,31, temos: Quando estava à mesa com eles, tomou o pão,
deu graças, partiu-o e o deu a eles. Então os olhos deles foram abertos
e o reconheceram, e ele desapareceu da vista deles.
• Há pão, ação de graças e partir do pão em ambas as passagens.
• Aqui, em 24.30,31, o partir do pão é uma continuação da instituição
da Eucaristia no capítulo 22.
• A lembrança de Jesus na “última ceia” torna-se a presença de Jesus na “pri­
meira ceia”.
Essas duas ceias intermediam o mistério da vida de Jesus. Elas representam o co­
nhecimento oculto sendo outorgado. E elas acontecem em um ambiente de confli­
to que circula ao redor de Jesus. Contudo, há diferenças nos contextos: A primeira
é a iminente melancolia da morte; a segunda é a glória da ressurreição. O tema da
refeição unifica esses dois lados do divisor de águas que é a ressurreição. Essa reve­
lação de Jesus na primeira ceia da pós-ressurreição estabelece o ritual sacramental
que estará no centro da experiência pós-ressurreição dos discípulos.
O ato de partir e abençoar o pão abriu os olhos deles: Então os olhos deles foram
abertos [diênoichthêsan] e o reconheceram (v. 31). Eles confirmam isso depois
que Jesus desapareceu da vista deles (v. 31); eles perguntaram um ao outro: 'Não
estava queimando o nosso coração, enquanto ele nos expunha [diênoigen\ as
Escrituras?” (v. 32; veja v. 45).
A ideia é reiterada e parafraseada no versículo 35. Ali, os dois discípulos de Emaús
contam aos Onze como Jesus fora reconhecido por eles quando partia o pão.
Cristo come com eles novamente em Sua aparição no versículo 42. Logo, a morte
é marcada dos dois lados pela presença de Jesus à mesa com os discípulos. Essa é a
última coisa que Jesus faz com eles antes de Sua morte e a primeira coisa que faz
com eles após a Sua ressurreição.
Quando os discípulos de Emaús correm de volta para Jerusalém, eles encontram
a revelação de Jesus espalhando-se entre os Onze (v. 33): “E verdade! O Senhor
ressuscitou e apareceu a Simão!” (v. 34). Assim, a experiência reveladora vai ga­
nhando impulso na narrativa e culminará em uma aparição física de Jesus entre os
Onze nos versículos 36-43.
298
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

A PARTIR DO TEXTO

O caminho de Emaús funciona como uma metáfora para o caminho do dis-


cipulado. Nessa estrada, enquanto os discípulos questionavam sobre tudo o que
haviam experimentado, Jesus “se aproximou e começou a caminhar com eles” e
começou a abrir a mente deles quanto ao significado das Escrituras (v. 15 e 27). Na
contemplação das Escrituras, o Jesus ressurreto, por intermédio do Seu Espírito,
aproxima-se e começa a caminhar conosco.
Se a fé cristã fosse simplesmente um conjunto objetivo de verdades para se­
rem compreendidas, então, a iluminação divina seria desnecessária. Contudo, o
cristianismo é uma religião revelada. Suas verdades não podem ser completamente
sondadas pelo pensamento racional. Uma experiência de iluminação espiritual é
necessária para informar ao nosso entendimento sobre Jesus e sobre o significado
de Sua vida. Os discípulos permaneceram confusos no entendimento até que Jesus
aproximou-se deles e lhes abriu a mente.
A natureza eficiente da iluminação cristã é importante para a vida cheia do
Espírito na teologia wesleyana. Como uma metáfora para o caminho mais profun­
do da fé, a estrada de Emaús aponta para a necessidade de reflexão, de pesquisa, de
humildade e de abertura que devem estar presentes para a instrução que vem do
Espírito.
Se alguém buscar, orar, e imergir-se nas Escrituras, então, o Senhor aproxima-
-se para iluminar e abrir sua mente. Isso sugere que a vida no Espírito é a vida de re­
flexão na Bíblia e no significado dela para a nossa experiência. A iluminação surge
dessa combinação de atividade intelectual e afetiva (tentando descobrir o que todas
aquelas coisas significavam [v. 14]; “estava queimando o nosso coração” [v. 32]).
Lucas enfatiza que as aparições pós-ressurreição de Jesus ocorreram em co­
nexão com o recomeço da comunhão à mesa de Seus discípulos. Esse foco sobre
Jesus à mesa com Seus discípulos é instrutivo do ponto de vista teológico. A mesa
da comunhão é o fato definidor que liga as experiências pré-ressurreição e pós-
-ressurreição dos discípulos. Jesus une-se com eles à mesa tanto em Seu ministério
terreno como em Sua glória ressurreta. A mesa é o local da revelação onde o mis­
tério é mediado aos Seus seguidores. A mesa da comunhão une a igreja pós-Páscoa
com o Jesus ressurreto. O pão, o símbolo do Seu corpo, e o vinho, o símbolo do Seu
sangue, unem todos os cristãos na presença de Cristo diacronicamente.
A teologia wesleyana frequentemente fala da santificação dos cristãos. O sím­
bolo teológico da mesa reside próximo ao centro da experiência de Cristo para
muitos cristãos. Um povo santificado “reside à mesa” com o Jesus ressurreto e uns
com os outros, tanto figuradamente pela comunhão como literalmente pela ceia.
299
LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

2. Em Jerusalém, aos Onze e aos outros (24.36-49)


NO TEXTO

I 36-43 Enquanto falavam sobre isso, o próprio Jesus apresentou-se entre


eles e lhes disse: “Paz seja com vocês! (v. 36). Do ponto de vista da narrativa, o
aparente propósito dos versículos 36-43 é afirmar que a ressurreição de Jesus foi
uma ressurreiçãofísica e não apenas uma experiência visionária. Há um amplo le­
que de emoções na reação dos discípulos quanto às aparições de Jesus.
Por um lado, eles ficam assustados e com medo (v. 37); por outro lado, eles ex­
pressam alegria e espanto (v. 41). Jesus trata das dúvidas persistentes (v. 38) que
brotavam na mente dos “Onze e dos que estavam com eles” (v. 33) sobre a Sua
corporeidade. Ele convida-os: Toquem-me e vejam (v. 39). Assim, a narrativa não
deixa nenhuma dúvida na mente dos leitores de que a ressurreição era de natureza
corpórea.
O trecho onde diz que Jesus tomou um pedaço de peixe assado e o comeu na
presença deles é o símbolo máximo de Sua fisicalidade (v. 42,43; Veja Tob. 12.19
— espíritos não comem nem bebem). Esse ato corpóreo afirma a natureza de Seu
corpo. Todavia, também reitera o tema de que o mistério de Sua ressurreição é me­
diado pela mesa (v. 30,31,35). Além disso, ao comer na presença deles, a mesa do
banquete do Reino é evocada mais uma vez (13.29).
H 44-45 Nos versículos de fechamento do Evangelho de Lucas, a ênfase conti­
nua a focar Jesus como o Mestre ressurreto. Ele é aquele que reinterpreta o Antigo
Testamento para os Seus discípulos (v. 44-46^). Repetindo o verbo diênoigõ encon­
trado nos versículos 31 e 32, Jesus lhes abriu [diênoixen\ o entendimento, para
que pudessem compreender as Escrituras (v. 45).
O alcance dessa nova exegese é longo, abrangendo, como fez no caminho de Emaús,
a Lei de Moisés e os Profetas. Os Salmos são acrescentados à lista: e nos Salmos (v.
44; compare com o v. 27). Assim como Ele havia feito mais cedo com os discípulos
no caminho de Emaús, Jesus novamente lhes conta sobre todas as Escrituras con­
cernentes a Ele. O novo centro hermenêutico do ensino do Jesus ressuscitado tem
três características: Escrituras, arrependimento e perdão, e testemunho do Cristo
ressuscitado.
Primeiro, a morte e a ressurreição do Messias foram preditas no decorrer das Escri­
turas do Antigo Testamento (v. 45) - na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Sal­
mos (v. 44). Isso não era uma nova instrução, mas eles não entenderam o que Jesus
lhes havia ensinado anteriormente (24.6-8,25-27,44). A falha em compreender o
significado de Sua exegese da pré-paixão das Escrituras não é, talvez, tanto acerca
300
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

da real ignorância histórica deles como uma ênfase narrativa sobre a nova era. À
luz da ressurreição de Jesus, todas as coisas ocultas tornaram-se claras e a cegueira
espiritual foi curada.
■ 46-47 A segunda característica do ensino da pós-ressurreição é síntese da ênfa­
se teológica de Lucas desde o início: Jesus proclama que seria pregado o arrepen­
dimento para perdão de pecados a todas as nações, começando por Jerusalém
(v. 47). Lucas consistentemente enfatiza que o arrependimento e o perdão definem
o novo paradigma da salvação.
Não é o eleito que é salvo, mas o perdoado. Não é a eleição que determina a inclusão
no novo Reino, mas o perdão dos pecados em Seu nome. Não são os judeus que são
privilegiados neste novo paradigma, mas todas as nações às quais esta mensagem
seja pregada. Isso não é para exclusão do povo histórico de Jesus, mas agora o alcan­
ce da salvação estende-se além dos judeus e engloba toda a terra.
O local da nova proclamação é começando por Jerusalém, mas não é somente
para judeus. A mensagem que se originou com um Messias judeu na Palestina ju­
daica precisa ser proclamada a todas as nações. A mensagem da salvação irá trans­
cender Israel fisicamente, geograficamente e espiritualmente (v. 47).
■ 48 0 terceiro aspecto da nova hermenêutica consiste na tarefa de proclamar
a mensagem. Isso é deixado para os seguidores de Jesus. Seus discípulos devem ser
testemunhas destas coisas (v. 48). O termo “testemunha” tem uma conotação ju­
rídica em Lucas. Os discípulos não são simplesmente observadores desses fatos;
ao contrário, eles serão chamados para dar testemunho em ambientes do tribunal
(como em Atos 5.32). Outros ambientes são simplesmente aqueles na tribuna da
opinião pública (At 2.32; 3.15; 10.39,41; 13.31).
■ 49 A fim de cumprir o papel deles como testemunhas, os discípulos precisam
ser revestidos do poder do alto (v. 49). Eles devem esperar por esse poder na
cidade de Jerusalém. Somente essa capacitação os permitirá dar um testemunho
eficiente do Jesus ressuscitado. O Deus Pai prometeu especificamente esse revesti­
mento de poder.
A narrativa de Atos é a evidência dessa capacitação dos discípulos para o teste­
munho. O poder que cai sobre os discípulos reunidos no primeiro capítulo desse
livro é diretamente relacionado à atividade de serem testemunhas: “Mas receberão
poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em
Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins dà terra” (At 1.8).
No Dia de Pentecostes, quando o Espírito Santo caiu sobre a assembleia de dis­
cípulos, a primeira evidência da presença habilitadora do Espírito toma a forma
do testemunho público de Pedro (At 2.14-42). E também continua no decorrer
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LUCAS 9 -24 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

do drama de atos. O Espírito Santo cai sobre os cristãos e os charismata, dons do


Espírito, ficam em evidência. O propósito da capacitação é sempre o testemunho
(At 2.32; 3.15; 10.39,41; 13.31).
Da perspectiva de Atos, essa experiência do Espírito Santo deve ser entendida em
termos do testemunho corporativo e público. Os termos pessoal e efetivo nunca
são o foco especificamente. Eles estão presentes, é claro, mas nunca são o propósito
propulsor para a presença do Espírito na nova comunidade.
Essa capacitação também se conecta tematicamente com a transfiguração anterior
de Jesus. Em ambos os casos, a demonstração de poder é o revestimento de poder
(compare 9.29 e 24.49). Contudo, no caso da transfiguração, o revestimento de
poder sobre Jesus não levou ao testemunho, mas ao silêncio. O segredo da glorifi­
cação dele ainda não era para ser revelado: “Os discípulos guardaram isto somente
para si; naqueles dias, não contaram a ninguém o que tinham visto” (Lc 9.36).
Em Mateus 17.9 e Marcos 9.9, a orientação para não dar testemunho ainda é ex­
plícita: “Jesus lhes ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até
que o Filho do homem tivesse ressuscitado dos mortos” (Mc 9.9). Agora, a antiga
era da confusão e do silêncio foi superada pela nova era da ressurreição e da procla­
mação. Agora, o revestimento de poder é precisamente em favor do propósito do
testemunho vocal e visível.

G. A ascensão (24.50-53)
■ 50-53 A ascensão no Evangelho de Lucas é extraordinariamente discreta. Essa
é uma característica de todos os Evangelhos sinóticos. Marcos sequer menciona a
ascensão. Até o final espúrio, mais longo, dedica apenas uma frase para a mesma.
Mateus não mencionou a ascensão. João presume uma ascensão (6.62; 20.17 [duas
vezes]), mas não a descreve. Em Lucas, longe de ser uma magnífica culminação,
ela é retratada em termos de quase apogeu. A ascensão tem poucos detalhes, se
comparada com sua correlação terrena, a transfiguração, e é relatada em um estilo
factual simples.
A ascensão ocorre, Lucas diz-nos, nas proximidades de Betânia, onde Jesus ergueu
as mãos e os abençoou, e os deixou e foi elevado ao céu. Todo esse conteúdo está
em duas frases sem adornos (v. 50,51; sobre os homens vestidos de branco, v.
4-7). Jesus simplesmente desaparece em um instante.
Até o Livro de Atos, que se concentra na atividade pós-ressurreição de Jesus em
1.1-8, menciona o momento da ascensão em termos ainda mais abreviados (At 1.9-
11). As referências à ascensão no final de Lucas e no início de Atos apontam para
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 9 -24

um único evento relatado duas vezes. Esse é o ponto de encontro entre o primeiro
e o segundo volumes de Lucas. O Evangelho termina aqui; Atos começa aqui. E
quando ele volta a esse assunto no início de Atos, ele expande significativamente
o período precedente à ascensão. Contudo, nada disso é insinuado no registro de
seu Evangelho.
Para Lucas, o Mestre ressurreto domina as palavras finais dessa narrativa. Quando
Jesus parte, Ele deixa um legado de quatro coisas: uma nova compreensão da Pa­
lavra de Deus, um comissionamento para pregar o arrependimento e o perdão em
Seu nome a todas as nações, a prática da comunhão à mesa e a promessa do poder
do alto.
Os Seus discípulos o adoraram e voltaram para Jerusalém com grande alegria
(v. 52). Previamente, o diabo havia prometido a Jesus todos os reinos do mundo se
Ele o “adorasse” {proskuneõ). Jesus respondeu a isso: "Está escrito: Adore o Senhor,
o seu Deus, e só a ele preste culto” (4.8). Agora, os discípulos adoram [novamente
proskuneõ] a Jesus como uma adequada finalização para o drama de Sua vida, Sua
morte e Sua ressurreição.
Os discípulos voltam para Jerusalém e ficam continuamente no templo, louvando
a Deus e ocupando seus lugares como testemunhas no coração da Cidade Santa.

303
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DAVID A. NEALE é vice-presidente e reitor acadêmico da Booth University College, em


Winnipeg, e professor emérito na Ambrose University College (antiga Canadian Nazarene
University College), em Calgary. Ele é bacharel em Sociologia pela Idaho State University,
possui mestrado em Teologia pelo Fuller Theological Seminary e PhD pela University o f
Sheffield, na Inglaterra.

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