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CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER

SAMUEL FERNANDES DO NASCIMENTO JÚNIOR

TRADUÇÃO LIVRE E LEITURA CRÍTICA DAS PASSAGENS DO TALMUD A RESPEI-


TO DE JESUS E DO CRISTIANISMO

São Paulo
2019
SAMUEL FERNANDES DO NASCIMENTO JÚNIOR

TRADUÇÃO LIVRE E LEITURA CRÍTICA DAS PASSAGENS DO TALMUD A RESPEI-


TO DE JESUS E DO CRISTIANISMO
SAMUEL FERNANDES DO NASCIMENTO JÚNIOR

TRADUÇÃO LIVRE E LEITURA CRÍTICA DAS PASSAGENS DO TALMUD A RESPEI-


TO DE JESUS E DO CRISTIANISMO

Dissertação apresentada ao Centro Presbiteriano de


Pós-Graduação Andrew Jumper como requisito pa-
ra obtenção do grau de Master Divinitatis em Estu-
dos Bíblicos Hermenêuticos do Antigo Testamen-
to.

Orientador: Prof. Dr. Daniel Santos Jr.

São Paulo
2019
SAMUEL FERNANDES DO NASCIMENTO JÚNIOR

TRADUÇÃO LIVRE E LEITURA CRÍTICA DAS PASSAGENS DO TALMUD A RESPEI-


TO DE JESUS E DO CRISTIANISMO

Dissertação apresentada ao Centro Presbiteriano de


Pós-Graduação Andrew Jumper como requisito pa-
ra obtenção do grau de Master Divinitatis em Estu-
dos Bíblicos Hermenêuticos do Antigo Testamen-
to.

Orientador: Prof. Dr. Daniel Santos Jr.

Aprovada em ___/___/____

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________________
Prof. Dr.

__________________________________________________________________________
Prof. Dr.

__________________________________________________________________________
Prof. Dr.

São Paulo
2019
DEDICATÓRIA

Ao Senhor Jesus Cristo, Deus encarnado, meu Salvador, meu amigo;


Ao Dimitri, meu yedid, filho da minha alma;
Às minhas irmãs muito amadas: Léa, Marta;
Ao meu irmão muito amado: Vilamar (in memorian);
Ao amado presbítero Falcão (amigo de infância);
A Humberto Medeiros, bom amigo;
À igreja presbiteriana de Monte Sião, minha casa;
Ao Reverendo Dr. Hermisten Maia, mestre excelente e boníssimo amigo;
Ao Reverendo Dr. Daniel Santos, caríssimo Rabi;
Aos professores do CPAJ .
Sumário
‫ אגדת משיח‬................................................................................................................................ 6
INTRODUÇÃO........................................................................................................................ 10
1. UMA APRESENTAÇÃO DO TALMUD ............................................................................ 15
1.1 A LEI ORAL E SEU SIGNIFICADO PARA O JUDAISMO .......................................... 18
1.2 MIDRASHIM................................................................................................................ 20
1.2.1 Midrash Halachah .................................................................................................... 21
1.2.2 Midrash Agadah ....................................................................................................... 21
2. AS DIVISÕES DA LEI ORAL EM CATEGORIAS .......................................................... 23
2.1 Explicações do Texto da Torá Recebidas e Transmitidas por Moisés ........................ 24
2.2 Leis Transmitidas Oralmente A Moisés No Sinai....................................................... 24
2.3 Leis Oriundas das Regras e Interpretação e do Raciocínio Talmúdico....................... 25
2.4 Guezeirot (promulgações Protetivas).......................................................................... 26
2.5 Takanot (alterações) e Minhaguim (costumes)............................................................ 27
III. O TALMUD – HISTÓRIA, ESSÊNCIA, ESTRUTURA ...............Destino não encontrado!
IV. TALMUD VERSUS CRISTIANISMO: UMA QUESTÃO DE INTERPRETAÇÃO?..... 56
1. Citações Diretas Do Talmud Ao Cristianismo .............................................................. 56
2. Citações Diretas Do Talmud A Jesus De Nazaré .......................................................... 58

CONSIDERAÇÕES FINAIS........…….…………………………………………………….121

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................122
“[O Talmud é] uma das grandes realizações intelectuais da humanidade, um documento tão denso, tão
rico, tão sutil que tem ocupado os espíritos brilhantes por mais de um milênio e meio.”

— Jacob Neusner, erudito judeu.

“O Talmud é inegavelmente uma das produções literárias mais notáveis de todos os tempos.”

— The Universal Jewish Encyclopedia.

“Vive bem! Esta é a maior das vinganças.”

— Talmud Bavli.

“Os costumes são mais poderosos do que as leis.”

— Talmud Bavli.
RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo apresentar um panorama da literatura rabínica a partir
do período conhecido como a Grande Sinagoga, com Esdras o escriba, passando pela era dos
Zugot, dos Taanaim, considerando a obra inicial do Rabi Judah HaNasi, até as primeiras edi-
ções impressas da Mishná. O lugar da Torá Oral no judaismo como revelação divina prece-
dente à Torá Escrita, pois tendo Deus transmitido a Moisés as duas leis no Sinai, é a Lei Oral
que imediatamente entra em vigor, a Lei Escrita tornando-se real apenas nos últimos dias de
Moisés. As ações de perseguição e censura à literatura rabínica também são aqui apresentadas
de maneira pontual, destacando alguns fatos de especial relevância para a pesquisa, como no
caso de citações diretas à pessoa de Jesus de Nazaré que foram suprimidas ou ‘apagadas’ de
versões impressas do Talmud Bavli, ou ainda de manuscritos lançados às chamas, séculos an-
tes do surgimento da imprensa. A Lei Oral é apresentada aqui em cinco categorias, sendo as
explicações do texto da Torá transmitida a Moises, as leis em si transmitidas oralmente por
Deus a Moisés, as regras de interpretação, as Guezeirot como regras de proteção da Torá, e as
Takanot, ou alterações, e Minhaguim, ou costumes. A essência e estrutura do Talmud Bavli
será apresentada de maneira concisa mas objetiva, considerando o método de abordagem à
verdade, teologia, e divisões principais. Em seguida, as passagens do Talmud Bavli que fazem
referência direta a Jesus de Nazaré, ou mesmo referência indireta pelo uso de codinomes co-
mo Ben Stada ou Ben Pandira, bem como referências a Maria, mãe de Jesus, aos discípulos
de Jesus, e ao “apóstolo aos gentios,” Paulo de Tarso, são livremente traduzidas para a língua
portuguesa, seguidas de uma leitura crítica. Longe de querer fomentar qualquer atitude negati-
va para com a literatura judaica e, consequentemente, contra a religião judaica, a ideia deste
trabalho é uma simples apresentação histórica e leitura analítica de determinadas passagens da
literatura rabínica, levando em consideração vários aspectos desta literatura que são determi-
nantes na interpretação.

Palavras-chave: Torá Oral; Torá Escrita; literatura rabínica; Mishná; Midrash; Targum; Tal-
mud Bavli; Talmud Yerushalmi; Ben Stada; Ben Pandira.
ABSTRACT

This paper aims to present an overview of rabbinic literature from the period known as the
Great Synagogue, with Ezra the scribe, through the era of the Zugot, the Taanaim, considering
the initial work of Rabbi Judah HaNasi, to the first printed editions of the Mishnah. The place
of the Oral Torah in Judaism as divine revelation preceding the Written Torah is also conside-
red here, for God having transmitted to Moses the two laws at Sinai, is the Oral Law which
immediately takes effect, the Written Law becoming real only in the last days of Moses. The
actions of persecution and censorship of rabbinic literature are also presented here in a timely
manner, highlighting some facts of particular relevance to the research, such as direct quota-
tions to the person of Jesus of Nazareth that were suppressed or roughly erased from printed
versions of the Talmud Bavli, or the manuscripts thrown into the flames, centuries before the
rise of the press. The Oral Law is presented here in five categories as the explanations of the
Torah text being transmitted to Moses, the laws themselves transmitted orally by God to Mo-
ses, the rules of interpretation, the Guezeirot as rules of protection of the Torah, and the Taka-
not, or alterations, and Minhagim, or customs. The essence and structure of the Bavli Talmud
will be presented concisely but objectively, considering the method of approach to truth, theo-
logy, and major divisions. Next, the Talmud Bavli passages that make direct reference to Jesus
of Nazareth, or even indirect reference by the use of nicknames like Ben Stada or Ben Pandi-
ra, as well as references to Mary, the mother of Jesus, the disciples of Jesus, and “the apostle
to the Gentiles,” Paul of Tarsus, are freely translated into the Portuguese language, followed
by a critical reading. Far from wishing to foster any negative attitude towards Jewish literatu-
re and, consequently, against the Jewish religion, the idea of ​this work is a simple historical
presentation and an analytical reading of certain passages of rabbinic literature, taking into ac-
count various aspects of this literature that are crucial in the interpretation.

Keywords: Oral Torah; Written Torah; rabbinic literature; Mishna; Midrash; Targum; Talmud
Bavli; Talmud Yerushalmi; Ben Stada; Ben Pandira.
INTRODUÇÃO

Ler um texto, seja ele qual for, tenha a origem que tiver, os propósitos os mais varia-
dos, é ser transformado, uma vez que o texto modificará todo aquele que dele se aproximar,
mudando-lhe, mesmo que de modo imperceptível, o olhar sobre o mundo e, consequentemen-
te sobre o Criador do mundo. Na língua hebraica o termo ~lw[ designa tanto o “mundo” ou
“universo” quanto a qualidade do que é “eterno.” Ambos os termos se encontram na raiz ~l[
ou “esconder.” A ideia por trás disto é que a eternidade se encontra “oculta” nas obras da cria-
ção, como um tesouro a ser buscado, encontrado, e gozado. Ao mesmo tempo, a Escritura re-
vela que a ordem da criação expõe dois aspectos da deidade, sua glória e sua atividade criado-
ra. Deus é aquele que se oculta mas também se revela nas coisas criadas. Descobrir o mundo é
descobrir o Deus que está oculto no mundo. Esta descoberta do mundo se dá por meio da pala-
vra, de modo que o homem que não lê viverá à margem do universo que o circunda. Efabular
é preciso. Pois será pela leitura que o homem se desenvolverá como homem, e terá aumentado
sua percepção do instransponível abismo entre ele e as bestas. O homem lê porque reflete a
imagem de Deus. Somente o homem aborda o texto como objeto transcendente, nele entra e
dele sai modificado.
Pensando assim, a Torá abrange tudo que há no mundo criado. Os sábios entenderam
que a Torá permeia o mundo de tal maneira que nada lhe foge ao alcance e suas vidas se con-
fundem com a Torá, de modo tal a eliminar o conceito de educação formal, ex cathedra. Até
mesmo o gesticular dos sábios deveria ser estudado como ‘Torá.’ Estudar a Torá é portanto
buscar entender a realidade criada em toda a sua complexidade.
O objetivo inicial deste estudo é apresentar a literatura babínica de maneira panorâmi-
ca, destacando alguns de seus aspectos literários e teológicos através da tradução e interpreta-
ção de alguns textos colhidos especialmente como unidades destes mesmos aspectos. A tarefa
de ‘apresentar’ a literatura rabínica no limitado escopo de um trabalho como este pode pare-
cer presunçosa, pelo menos por duas razões. A primeira delas é o fato de que estamos falando
de um corpo magnífico de literatura hebraica e aramaica, produzido ao longo de séculos, care-
cendo de tradução e sujeito a inúmeras interpretações, como no caso presente das passagens
aqui traduzidas e interpretadas. É evidente que passagens cuidadosamente selecionadas não
dão conta de uma obra tão extensa e ainda se corre o risco de apresentar ao leitor uma percep-
ção distorcida da obra. A consciência deste risco esteve presente desde o início deste trabalho,
o que nos levou a ter como método a seleção das passagens mais explícitas em torno de um te-
ma específico escolhido, além de omitir outras tantas passagens, transcrever algumas delas em
sua totalidade para que o contexto ficasse tão evidente quanto o possível, e a comparar ver-
sões disponíveis. O tema Jesus de Nazaré segundo o Talmud, portanto, foi escolhido como al-
vo para esta pesquisa histórico-literária. Outros documentos da literatura rabínica serão men-
cionados alhures, sempre que representarem alguma contribuição para o tema escolhido, mas
nossa fonte principal será o Talmud Bavli.
O estudo e a prática de ensino da língua hebraica, a leitura e consulta de alguns trata-
dos do Talmud Bavli e a convivência com expositores da Mishná1 são, neste caso, apenas sim-
ples ferramentas na apropriação de algo do que possa ser a essência desta literatura. Há muito
a ser explorado na literatura rabínica e esta apresentação não pretende ser mais do que um vis-
lumbre da vastidão do oceano diante de nós.
Outro alvo a ser atingido neste escrito é ‘traduzir,’ sendo isto ler, entender, e expor o
significado de algumas passagens da Mishná e da Guemará em torno de Jesus de Nazaré e de
outras personagens de destaque no cristianismo do primeiro século, como é o caso de Maria,
mãe de Jesus, e do “apóstolo aos gentios,” Paulo de Tarso. Trata-se obviamente de tarefa ár-
dua e espinhosa e que carece de justificativa plausível. Nosso interesse não é destacar o aspec-
to ofensivo das passagens apresentadas, mas simplesmente afirmar que os nomes de Ben Sta-
da e Ben Pandira são inequivocamente codinomes para o Jesus de Nazaré dos cristãos. É sa-
bido que na edição censurada de Basel, por exemplo, quase todas as referências a Jesus e ao
cristianismo no Talmud foram apagadas. O proprio termo Talmud sofreu censura, sendo even-
tualmente substituído por Guemará ou Shas (um acróstico das primeiras letras das palavras
hebraicas para seis ordens). O termo geralmente usado para “herege,” sendo empregado para
muitas seitas, entre elas o cristianismo, é !ym que também foi apagado ou substituído por tze-
dokim ou epícoro. Outras censuras e omissões em várias edições revelam não somente a into-
lerância do poder da igreja em algum momento da história, mas igualmente um escrúpulo por
parte da sinagoga ao reconhecer certos textos como desnecessariamente ofensivos. Portanto
não cabe aqui uma denúncia dessas passagens, mas a simples exposição delas, deixando o jul-
gamento aos leitores.
Nem tudo na literatura rabínica deve ser entendido de maneira literal.2 A este respeito

1
O autor viveu em Israel (1996) e estudou, ainda que por breve tempo, o Talmud Bavli na Beit Knesset Magen
Avraham, Efrat, sob orientação do Rabino Mordechai Scharf. O autor leciona língua hebraica e Antigo Testa-
mento há mais de duas décadas.
2
SCHOCHET, Rabbi Jacob Immanuel, Judaism: Discourse Questions and Answers with Immanuel Schochet
disponível em www.youtube.com
é importante que se diga algo do caráter místico da literatura rabínica. Temas como a quiro-
mancia astrológica, por exemplo, são amplamente tratados nesta literatura, ao longo dos sécu-
los.3 Anjos e demônios, animais a estes associados, situações e comportamentos esdrúxulos,
enigmas, contos deste mundo e do além, consulta aos mortos, quiromancia, um Deus que can-
ta e dança alegremente com os sábios do Talmud, e um demônio em forma de mulher que nas
noites solitárias ataca os homens que moram sozinhos, são alguns dos elementos que com-
põem os cenários múltiplos e dão o mote para as histórias presentes nas Agadot da Mishná.
Para que uma obra seja entendida corretamente é necessário que se tenha em mente seu foco
literário. Portanto, determinadas passagens nas quais Jesus de Nazaré teria sido invocado dos
mortos por meio de encantamentos ou quiromancia, sendo entrevistado em seguida, deve cair
na categoria de uma Agadah, de caráter místico, lendário.4 Este tipo de literatura encontra um
paralelo no Novo Testamento, na parábola que descreve os destinos opostos de um homem ri-
co e de um pedinte chamado Lázaro após a morte de ambos. Um diálogo entre a alma do ho-
mem rico e o patriarca Abraão é registrado nesta parábola de Jesus, revelando a facilidade
com a qual as histórias da vida após a morte eram empregadas pelos mestres e aceitas pelos
ouvintes. A literatura rabínica, portanto, lançará mão deste e de outros recursos literários.
Os variados documentos da literatura rabínica mostrados em suas peculiaridades nos
dão uma ideia generalizada dos gêneros literários presentes neste corpo de literatura. Termos
como Midrash, Targum, Agadah, Halachah, Mishná, e Guemará, precisam ser elucidados pa-
ra que as referências a estas obras no decorrer do trabalho façam sentido.
Midrash é um termo que deriva da raiz hebraica vrd que significa “buscar,” ou “exa-
minar.”As questões de ordem prática e teológica são respondidas pelos Midrashim que, aqui
como substantivo representa o ato de interpretar. Midrash é o mergulho, o oceano é a Torá e
as questões derivadas das mitzvot (mandamentos). Há basicamente dois tipos de Midrashim:
quando o assunto em questão é de natureza religiosa prática, temos um Midrash Halachah, ou
Midrash da Lei.5 Mas quando o assunto envolve questões mais ligadas à narrativa bíblica, co-
mo no episódio de natureza ética da mentira de Raabe ao esconder em sua casa os espias do
exército de Josué, temos um Midrash Agadah, ou Midrash da Narrativa.6 Esta segunda catego-
ria de Midrash apresenta uma maior variedade de interpretação e exposição,7 apresentando
verdades e princípios atemporais e úteis a todas as gerações.
3
BOEHM, F., Handwoerterbuch des deutschen Aberglaubens, 2 1930, s.l.; sn. p. 37–53.
4
SCHOLEM, Gershom, On The Kabbalah and Its Symbolism, New York, Schocken Books, 1996,1965.
5
Após a queda do SegundoTemplo, os Midrashim Halachah foram compilados em três obras: Mechilta de Exo-
do; Sifrá de Levítico; Sifrei de Números e Deutronômio.
6
A maioria dos Midrashim Hagadah foram compilados entre os anos 200 e 1000 da era cristã.
7
PRASCH, Jacob, Explaining the Midrash, artigo completo disponível em www.cw.co.za/moriel/midrash.html
Targum, é a palavra aramaica para “tradução,” ou ~grt. O termo indicava original-
mente qualquer tradução do Antigo Testamento. Entre os muitos Targumim o mais conhecido
e importante é o babilônico Onkelos. Há neste Targum uma fiel representação da exegese rabí-
nica. Há muito material homilético nos Targumim, o que os torna muito didáticos.
Agadah, é um termo de origem aramaica, hdga e significa “conto.” As Agadot se en-
contram no Talmud e no Midrash. A Agadah é o gênero não-legal de literatura mais ‘livre,’
uma vez que compreende lendas folclóricas, anedotas, conselhos de ordem moral, além dos
sermões rabínicos englobando uma enormidade de áreas do conhecimento e do fazer da huma-
nidade. As ideias de “expandir” e “extrair” habitam igualmente o campo semântico dessa pa-
lavra, no sentido de que os sábios do Talmud buscavam “expandir” o sentido do texto, trans-
mitindo assim suas ideias. GÍGLIO (2000, p. 85) entende que todo o conteúdo da Agadah foi
igualmente transmitido oralmente por Deus no Sinai, a exemplo da Halachah. Ele escreve:

Através da interpretação de trechos das Escrituras aparentemente de significados mais obscuros, a Aga-
dá revela princípios como a Unidade de Deus, o livre arbítrio, a imortalidade da alma, os mistérios da
providência Divina e da profecia, etc. Além destes conteúdos, a ênfase no aperfeiçoamento individual
através do enaltecimento das boas qualidades, do caráter e da ética tornou a Agadá um importante ins-
trumento de progresso do povo judeu, rumo ao ideal de converter-se em uma comunidade santificada
pela prática de princípios que foram outorgados por Deus.

Halachah, da raiz verbal hebraica para “ir” %lh pode ser entendida como o ‘cami-
nho’ da lei judaica. Tudo que o judeu precisa saber para se conduzir de modo decente neste
mundo está compreendido nas leis civil, criminal, e religiosa. É disto que trata a Halachah,
que é a Lei Oral em si, o resultado de um processo de interpretação, modificação e promulga-
ção das leis de conduta.
Mishná, é a coleção ou arranjo das Halachot, iniciado após a destruição do Segundo
Templo (70 aD). A Mishná contempla a vida de santificação em torno das mitzvot como se o
Templo ainda estivesse de pé, adaptando as halachot para os judeus da diáspora que não ti-
nham acesso ao Templo. A Mishná não é um compêndio de lei, mas uma obra em torno da lei,
estudando-a, e por isso está repleta de discussões dos rabis sobre muitos e variados assuntos
sobre os quais se apresentam inúmeras opniões.
Guemará pode ser entendida como a segunda parte do Talmud, sendo a primeira parte
a Mishná. Trata-se de uma tentativa de harmonizar os ensinos bíblicos com as tradições rabí-
nicas, mostrando as diferenças entre ambos, e explicando as leis a partir dos textos da Torá. O
termo ‘Guemará’ deriva da raiz aramaica rmg equivalente ao hebraico dml, ou ‘ensino.’ O
termo Talmud deriva da raiz hebraica dml e significa basicamente “estudo.” Trata-se da cole-
ção de documentos que explicam e expandem a Mishná. De estilo lacônico, o Talmud é obra
para estudo, não um texto para simples leitura. Ademais, o Talmud não pode ser entendido co-
mo literatura “fechada,” ou “completa,” mas se trata de livro “aberto” ou “em composição.”
‫אגדת משיח‬ ‫‪8‬‬

‫]בית המדרש ח״ג[‬

‫דרך כוכב מיעקב )פ׳ בלק(‪ ,‬תנא משום רבנן שבוע שבן דוד בא בו שנה ראשונה אין‬
‫בה מזון כל צורכה‪ ,‬שניה חצי רעב משתלחין‪ ,‬שלישית רעב גדול‪ ,‬ברביעית לא רעב‬
‫ולא שובע‪ ,‬בחמישית שובע גדול‪ ,‬ויצמח כוכב ממזרח והוא כוכבו של משיח והוא עושה‬
‫במזרח ט״ו יום ואם האריך הוא לטובתן של ישראל‪ ,‬ששית קולות ושמועות‪ ,‬השביעית‬
‫מלחמות ומוצאי שביעית יצפה למשיח‪ .‬ויתגאו בני מערב ויבואו ויחזיקו מלכות בלא‬
‫אפסים ויבאו עד מצרים וישבו כל השביה‪ .‬ובימים ההם יקום מלך עז פנים על עם עני‬
‫ודל )דניאל י״א( והוא מחזיק מלכות בחלקלקות‪ ,‬ועל אותו הזמן אמר ישעיה )כ״ו( לך‬
‫עמי בוא בחדריך וגו׳‪ .‬אמרו חכמים רבי חייא צוה לדורו כשתשמעו שעמד מלך עז‬
‫פנים לא תשבו שם‪ ,‬שהוא גוזר כל מי שהוא אומר "אחד" הוא אלהי העברים יהרג‪ ,‬והוא‬
‫אומר נהיה כולנו לשון אחד ואומה אחת‪ ,‬והוא מבטל זמנים ומועדים ושבתות וראשי‬
‫חדשים‪ ,‬ומבטל תורה מישראל‪ ,‬שנאמר ויסבר להשניה זמנין ודת ויתיהבון בידיה עד‬
‫עידן עידנין ופלג עידן )דניאל ז׳(‪ ,‬עידן שנה עידנין תרתי ופלג עידן חצי שנה‪ .‬אמרו לו‬
‫מרי להיכן ננצל? אמר להם לגליל העליון שנאמר כי בהר ציון ובירושלם תהיה פליטה‬
‫)יואל ג׳(‪ ,‬ובהר ציון‬

‫‪).‬׳תהיה פליטה והיה קדש )עובדיה א‬

‫‪8‬‬
‫‪Agadat Mashiach.‬‬
1 UMA APRESENTAÇÃO DO TALMUD

Muitas são as fontes a jorrar informações sobre o Talmud e igualmente inúmeros os


caminhos a serem percorridos na busca de um entendimento da obra como um todo. Os co-
mentários acima nos dão uma ideia da grandiosidade da Guemará (Talmud) para o povo ju-
deu, que entende a Lei Oral, ou hp l[bX hrwt neste trabalho abreviada em p¹[bXwt como

revelação divina no mesmo nível da Torá Escrita, a btkbX hrwt neste trabalho abreviada em
k¹bXwt, sendo a primeira o meio de apropriação e interação do povo judeu com a segunda. O
alvo final do Talmud é estudar a k¹bXwt, sendo esta a identidade do povo judeu, mesmo em
tempos de crise, não raros em sua história.9

Entretanto, o Talmud também já foi chamado de “mar de trevas e de lama,” sendo tido
como texto blasfemo, de inspiração demoníaca. Recentemente, o rabino extremista Shlomo
Avner, líder religioso do assentamento Beit El, sugeriu que o incêndio da catedral de Notre
Dame, em Paris,10 teria sido uma resposta divina aos vinte e quatro blocos de manuscritos do
Talmud que foram queimados na Place de Grève, também em Paris, no ano de 1242,11 dando
origem a muitos outros incêndios de milhares de cópias do Talmud por toda a Europa,12 muito
embora incêndios de catedrais tenham sido lugar comum na Europa medieval, que assistiu a
dois incêndios da Catedral de Chartres (sec. XII) antes de sua inauguração. A igreja de Reims
também sofreu dois incêndios (sec. XIII, XV), sendo um deles numa festa de São João. Desse
modo, a interpretação radical do rabino Avner sobre o incêndio da catedral de Notre Dame pa-
rece ignorar certos fatos importantes da história das catedrias, mas não deixa de ser sintomáti-
co da atitude de muitos judeus para com o cristianismo e os cristãos. Até que ponto as pala-
vras do Talmud são responsáveis por essa atitude? De que maneira as passagens apresentadas

9
TOLAN, John V., “Lachrymabilem judeorum questionem: La brève histoire de la communauté juive de Bre-
tagne au XIIIe siècle,” in Hommes, cultures et paysage de l'Antiquité à la période moderne: Mélanges offerts à
Jean Peyras, ed. Isabelle Pimouguet-Pédarros, Monique Clavel-Levêque, and Fatima Ouachour (Rennes: Presses
Universitaires de Rennes, 2013), 417-432.
10
https://www.lefigaro.fr/actualite-france/dossier/notre-dame-paris-incendie-cathedrale-reconstruction
11
Periodical Times of Israel (full article, 17 April, 2019), Rabbi Shlomo Aviner, the rabbi of the Beit El settle-
ment and head of the Ateret Yerushalayim yeshiva, said that Jews should not commit arson against churches, but
also that there was no duty to be saddened by the fire, which gutted the famed 12th-century cathedral. After ini-
tially balking at the assertion that the Notre Dame fire was divine vengeance, as “we don’t know the secrets of
God,” Aviner went on to say it was “possible to say so.” Christianity, he explained, “is our number one enemy
throughout history. [They] tried to convert us by arguments and by force, carried out an inquisition against us,
burned the Talmud, expulsions, pogroms. Western anti-Semitism draws from Christianity’s hatred of the ‘mur-
derers of God.’ It also had a role in the Holocaust.”https://www.timesofisrael.com/radical-rabbi-says-notre-
dame-fire-retribution-for-13th-century-talmud-burning/
12
TUILIER, André, “La condamnation du Talmud par les maîtres universitaires parisiens, ses causes et ses con-
séquences politiques et idéologiques,” in Le brûlement du Talmud, 59-78.
como ofensivas e blasfemadoras contra Cristo, a Virgem Maria, e o apóstolo Paulo agridem o
cristianismo ou motivam e alimentam a rixa milenar entre judeus e cristãos? Por que milhares
de cópias do Talmud e de outras obras judaicas foram queimadas durante a Idade Média, nu-
ma era em que se queimava igualmente pessoas, se não pelos mesmos motivos, mas com a
mesma fleuma?

Para o público cristão em geral, o Talmud permanece envolto numa nuvem de obscuri-
dade, o que não impede que seja na maioria das vezes alvo das mais variadas formas de discri-
minação, desde comentários preconceituosos e infundados, até à censura implacável e destrui-
dora das autoridades, segundo HOFF (2012, p. 182), como se deu no caso da controvérsia de
Paris,13 (1241/42), no episódio já mencionado da Place de Grève, quando a intolerância reli-
giosa fez desaparecer em cinzas muitas cópias e uma parte considerável do Talmud, diga-se
cópias manuscritas, num tempo em que não havia imprensa.14

Exemplo público e permanente desta ojeriza para com os judeus pode ser visto na fa-
chada o frontispício da catedral de Paris, onde é possível se ver uma curiosa estátua, conheci-
da como a ‘Sinagoga de Satanás,’15 na qual uma bela mulher é representada tendo os olhos
vendados por uma das voltas de uma repulsiva serpente, cuja cabeça se funde com seus cabe-
los. Há ainda uma coroa caída aos pés da mulher, que segura em uma das mãos um cetro que-
brado, enquanto a outra mão esconde as tábuas da Lei, viradas de cabeça para baixo, envoltas
num manto.

13
HOFF, Jean Connell, FRIEDMAN, John, and CHAZAN, Robert. The Trial of the Talmud: Paris, 1240. Toron-
to: Pontifical Institute of Medieval Studies, 2012. p. ix-182. Em junho de 1239, o Papa Gregório IX encetou uma
investigação a respeito do Talmud (bula papal Si vera sunt) a pedido do francês convertido Nicolas Donin. As
acusações contra o Talmud incluíam a falsidade de sua suposta origem mosaica e o fato de conter blasfêmias
contra a religião cristã, declarações hostis contra cristãos, ilogicidade e obscenidades. A investigação culminou
no julgamento de Paris de 1240, seguido pelo confisco e queima de um grande número de manuscritos talmúdi-
cos em 1241 (ou 1242). Eventos similares seguiram até à discussão de 1248 entre o Papa Inocêncio IV e seu
emissário na França, Odo de Châteauroux, quando a política da igreja sobre o Talmud começou a mudar, de per-
seguição aberta a censura rigorosa.
14
WIGODER, Geoffrey, Ed. The New Standard Jewish Encyclopedia. NY: Facts on File, 1992; e HOFF, Jean
Connell, FRIEDMAN, John, and CHAZAN, Robert. The Trial of the Talmud: Paris, 1240. Toronto: Pontifical
Institute of Medieval Studies, 2012. p. ix-182
15
BLUMENKRANZ, Beranrd, Le Juif médiéval an miroir de l’art chrétien. Paris, 1966. Il a dit qui la statue da-
te en réalité […] de la campagne de restauration dirigée par Jean-Baptiste-Antoine Lassus et Eugène Viollet-le-
Duc entre 1845 et 1864, elle existait avant avec les yeux voilés et le serpent a été inspiré par Strasbourg (1285),
fidèle à l’esprit de la fin du XIIIème et […] à Viollet-le-Duc qui, comme à son habitude, force le trait [...] La sta-
tue résume assez bien l’ambiance de l’époque pour les juifs, ces diables qui ont perdu la couronne de leurs rois
d’antan et réfléchissent à l’envers. La caricature du juif absente au Haut Moyen Age et jusque dans la statuaire
romane clunisienne se développe d’abord dans les manuscrits et les chansons populaires seulement à partir de la
première croisade (1095) avant de toucher la statuaire gothique. La femme altière et insoumise des années 1240
se transforme en femme diabolique à partir de la seconde moitié du XIIIème siècle.
A controvérsia de Paris e a “Sinagoga de Satanás” são apenas dois exemplos históricos
da atitude cristã para com um dos mais importantes documentos da fé judaica. O Talmud já te-
ve seu estudo proibido ao longo da história. O rabino e erudito judeu STEINSALTZ (1976,
p.3), escreve:

O povo judeu sempre teve uma tácita consciência de que sua contínua sobrevivência e desenvolvimento
dependem do estudo do Talmud e os que são hostis ao judaismo sempre foram conscientes desse fato. O
livro foi insultado, caluniado, e consignado às chamas por vezes incontáveis na Idade Média e tem sido
sujeitado a indignidades semelhantes no passado recente. As vezes, o estudo do Talmud tem sido proibi-
do por se tornar abundantemente claro que uma sociedade judaica que cessa de estudar esta obra, realm-
ente não pode ter esperança de sobrevivência.

O que veremos a seguir é um panorama do Talmud, uma breve contemplação de sua


história, natureza, e estrutura.

1.1 A Lei Oral e Seu Significado Para o Judaismo

A Torá (heb. Torah, ‘Lei’) é vista no judaísmo como composta de duas partes princi-
pais. A k¹bXwt, consiste dos vinte e quatro livros da Bíblia Hebraica, ou Antigo Testamento
(numa designação cristã), ou ainda Tanach (acróstico para as três divisões da Bíblia Hebraica,
sendo hrwt ou Lei, ~yaybn ou Profetas, e ~ybwtk ou Escrituras.16 Os sábios do judaísmo infe-

rem das palavras de Deus a Moisés, “Então, disse o SENHOR a Moisés: Sobe a mim, ao mon-
te, e fica lá; dar-te-ei tábuas de pedra, e a lei, e os mandamentos que escrevi, para os ensina-
res,”17 que a palavra “mandamentos” inclui tudo o que não foi escrito na Torá, sendo portanto
uma indicação clara da existência de uma Lei Oral dada a Moisés no monte Sinai juntamente
com a Lei Escrita, e transmitida oralmente de pai para filho, de mestre para discípulo ao longo
dos séculos. A própria Torá Escrita prescreveria a obediência à p¹[bXwt.18 Esta p¹[bXwt con-

siste de especificações detalhadas da k¹bXwt, explicando por exemplo o que significariam na


prática as proibições para o dia de Shabat, ou as leis relativas aos Totafot, ou filactérios.19 Tais
detalhes são tidos como imprescindíveis para a correta interpretação e observância das Mitz-
vot (mandamentos).

16
Esta parece ser a divisão vigente no judaísmo dos dias de Jesus. Há duas referências nos evangelhos do Novo
Testamento que nos apontam esta direção: Lucas 24.27, 44; Mateus 23.35.
17
Shemot (Exodo) 24.12
18
Devarim (Deuteronômio) 17.11
19
Devarim (Deuteronômio) 6.8
Vale ressaltar logo de início, para se combater uma concepção equivocada a respeito
da p¹[bXwt, que esta não se trata de uma interpretação ou comentário da k¹bXwt. Segundo a
tradição dos sábios do judaísmo, quando o povo de Israel se reuniu ao pé do Monte Sinai,
Deus teria comunicado as seiscentas e treze mitzvot a Moisés, juntamente com uma explica-
ção clara e detalhada de como essas mitzvot deveriam ser obedecidas. Portanto, a p¹[bXwt
precede a k¹bXwt, que se tornará uma realidade somente nos anos que antecederam imediata-
mente a morte de Moisés. Para o judaísmo, portanto, todos os ensinos que nortearam o povo
de Israel durante a caminhada no deserto eram orais. O Rabi KAPLAN (1979) explica:

A Torá Oral foi originalmente transmitida pela fala. Foi transmitida de mestre para discípulo de tal ma-
neira que se o estudante tivesse qualquer pergunta, ele deveria ser capaz de fazê-la, e assim evitar am-
biguidades. Um texto escrito, por outro lado, por perfeito que seja, estará sempre sujeito à interpreta-
ções equivocadas. Ademais, a Torá Oral deveria cobrir uma infinitude de casos que surgiriam no curso
do tempo. Ela jamais poderia ter sido escrita em sua inteireza. Está escrito assim (Eclesiastes 12.12),
“Não há limites para se escrever livros.” Deus, portanto, deu a Moisés um conjunto de regras através
das quais a Torá poderia ser aplicada a cada caso possível. Se toda a Torá tivesse sido dada de forma
escrita, cada um seria capaz de interpretá-la como desejasse. Isto levaria a divisões e discórdias entre o
povo que seguia a Torá de diferentes maneiras. A Torá Oral, por outro lado, requeriria uma autoridade
central para preservá-la, assegurando assim a unidade de Israel [...]

Mas a p¹[bXwt não traz somente explicações, como também uma metodologia para a
derivação dessas leis (ou Halachot), através da análise e interpretação do texto da k¹bXwt pe-
lo uso de determinadas regras. Segundo GÍGLIO (2000, p. 19),

Este método permitia aos eruditos de uma determinada geração legislar sobre novas situações não abor-
dadas explicitamente na Torá escrita. Podemos citar como exemplos destas novas situações, regulamen-
tadas pelos sábios, as leis de funcionamento das cortes de justiça e a estruturação do serviço religioso a
ser conduzido na sinagoga. A prece Shemone-Esrê (“Dezoito Bênçãos”), por exemplo, recitada em pé e
em posição de sentido, foi originalmente composta pela Grande Assembléia [...] mas uma bênção adici-
onal (“Contra os hereges etc.”) foi adicionada mais tarde.

Três componentes básicos fazem a p¹[bXwt. O primeiro deles diz respeito às leis da-
das a Moisés no monte Sinai (Halachah l’Moshé b’Sinai). Os judeus que ouviram de Moisés
estas instruções implementaram-nas e pelo uso na vida cotidiana as transmitiram aos filhos e
estes às gerações seguintes. Segundo, os treze princípios de exegese da Torá (Shlosh Esrê Mi-
dot shehaTorah Nidreshet baHem)20. Juntamente com a Torá, Deus teria dado a Moisés deter-
minados princípios para estudo e entendimento da Torá, como chaves para a descoberta de se-
us segredos. O terceiro elemento de composição da p¹[bXwt é o que se chama de Editos
(Guezayrot), que são acréscimos feitos pelos rabinos de acordo com as necessidades de seus
dias. Há uma autorização na Torá para que os rabinos protejam as palavras da Lei por meio de
Guezayrot.21

1.2 Midrashim

Como dito acima, o termo vrdm deriva da raiz hebraica vrd significando “examinar,
inquirir, pesquisar.” Trata-se de uma coleção clássica dos ensinos homiléticos dos sábios so-
bre a Torá. O plural Midrashim diz respeito às duas divisões principais ou Midrash Halachah

20
Os trezes princípios de interpretação da Torá são na verdade métodos de abstração onde uma série de novos
elementos podem ser derivados de uma passagem bíblica. O Rabi Ishmael (sec. II AD), propôs estas treze regras
de hermenêutica que fazem parte da Midrash Halachah. Elas são: 1) rmwxw lq – a inferência do menor para o
maior em termos de sua importância e vice-versa. Permissões em situações maiores, são permitidas igualmente
em situações menores, e proibições em situações menores, também serão proibidas em situações maiores; 2) hwv
hryzg – analogia de uma seção ou de uma mitzvah. Trata-se de uma inferência feita através de uma analogia entre
dois textos da Escritura com o objetivo duplo de explicar (exegese) as passagens e criar leis; 3) ba !ynb – uma
generalização. Sempre que uma lei é restrita em termos de sua aplicação, mas a razão de sua existência é geral,
ela pode ser entendida em seu contexto geral; 4) jrpw llk – quando uma afirmativa geral é seguida de uma
mais restrita, restringe a primeira somente às condições particulares formuladas na segunda; 5) llkw grp –
quando uma afirmativa restrita é seguida de uma geral, a segunda adiciona à primeira todas as circunstâncias
abarcadas pela segunda; 6) llkw grpw llk – quando uma afirmativa geral é seguida de uma restrita, que por sua
vez é seguida de uma mais geral, as situações não presentes na afirmativa restrita devem ser incluídas; 7) llkl
&yrc awhv jrpw jrp &yrc awhv llk – uma afirmativa geral requer uma mais restrita, ao passo que uma restri-
ta necessita de uma geral; 8) acy wlk llkx l[ dwmll ala acy wmc[ l[ dwmll al dwmll llkh !m acyw llkb
hyhv rbd lk – quando uma situação particular, mesmo já incluído na lei geral, é mencionado, o que nele se pre-
vê aplica-se a todas as instâncias previstas na lei geral; 9) rymxhl alw lqhl acy wnyn[k awhv ![wj !w[jl acyw
llkb hyhv rbd lk – quando uma situação particular é mencionada explicitamente, mesmo já estando incluída
e sendo semelhante ao conteúdo de uma regra geral, esta menção alivia e não agrava a extensão da aplicação da
regra geral; 10) rymxhl lqhl acy wnyn[k alv dxa !w[j !w[jl acyw llkb hyhv rbd lk – quando uma situa-
ção particular é mencionada sem que esteja incluída ou seja semelhante a uma regra geral, esta menção alivia e
agrava a extensão da aplicação da regra geral; 11) vwrypb wllkl bwtkh wnryzxyv d[ wllkl wryzxm hta ya vdx
rbdb !wdl llkh !m acyw llkb hyhv rvd lk – quando uma situação particular, mesmo incluída na regra geral,
é separada desta por uma nova circunstância, este caso não deve mais ser tratado sob a regra geral, salvo explici-
tamente recomendado pela Torá; 12) wpwmm dmlh rbdw wnyn[m dmlh rbd – o sentido de uma passagem da Escri-
tura pode ser entendido em seu contexto ou por uma outra afirmativa presente no mesmo trecho da Escritura; 13)
~hynyb [yrkyw yvylvh bwtkh abyv d[ hz ~yvyxkmh ~ybwtk ynv – quando há aparente conflito entre dois versí-
culos, um terceiro deve ser encontrado que os harmonize.
21
Devarim (Deuteronômio) 17.8-11
O Kehot Prayer Book, p. 26 O mais antigo livro de oração que chegou até nós é o livro de oração de Rav Am-
ram Gaon, Líder da Yeshiva de Sura, na Babilônia, há cerca de 1100 anos. Ele o preparou a pedido dos judeus de
Barcelona, Espanha. O livro contém os arranjos das orações para o ano inteiro, incluindo ainda algumas leis con-
cernentes a oração e costumes. A obra foi copiada e usada nõa somente pelos judeus da Espanha, mas também
pelos judeus da França e da Alemanha, e era de fato o livro de oração padrão para todas as comunidades judai-
cas. O Seder Rav Amram Gaon permaneceu em formato manuscrito por cerca de 1000 anos, até ser impresso pe-
la primeira vez em Varsóvia, em 1865.
e Midrash Agadah. O Rabi Moshe Ben Nahman (1194-1270), conhecido como Ramban, fala
de um terceiro livro chamado Midrash, significando sermões. Nas palavras de CHAZAN
(1992, p. 151) “Acerca desse livro, se alguém acredita nele, tudo bem. Se não acredita nele,
não ficará [espiritualmente] prejudicado.” Sobre o método de composição dos Midrashim, o
RAMBAM (2003), explica:

[Nossos sábios] usam o texto bíblico como um tipo de linguagem poética, e não pretendem com isso in-
terpretar o texto[...] Esse estilo era popular nos dias antigos. Todos o adotaram da mesma maneira que
os poetas… Nossos sábios dizem, acerca das palavras: “E entre as tuas armas [azenekha] terás uma pá”
[Dt. 23:14] – Não leia azenekha (tuas armas) mas oznekha (teus ouvidos) – se você ouvir uma pessoa
proferindo algo vergonhoso, coloque teus dedos em teus ouvidos. Agora, eu me pergunto se essas pes-
soas ignorantes [que consideram esses comentários como literais] acreditam que o autor desse dito o
considerou como a verdadeira interpretação do versículo citado, e como o sentido desse preceito… Não
posso pensar que qualquer pessoa cujo intelecto é saudável possa aceitar isso. O autor empregou o texto
como uma bela frase poética, para ensinar uma excelente lição moral poeticamente ligada ao texto aci-
ma. Da mesma forma se deve compreender a frase: ‘Não leia isso, mas aquilo’ sempre que ocorre no
Midrash.

1.2.1 Midrash Halachah

A primeira forma de Midrash é chamada de Halachah (“caminho”), e pode ser defini-


da como a exegese das porções legais da Torá. Trata-se da derivação das Mitzvot básicas de
alguma passagem bíblica. Cada frase ou versículo, depois de citado, é seguido por uma expli-
cação.22 O foco desta exegese é o mandamento e a prática. O contexto das santas Mitzvot pode
tornar difícil a interpretação do que significam as várias regras e leis no cotidiano. O Midrash
Halachah tenta explicar, por exemplo, por que se usa Tefilin durante as preces e como se deve
colocá-los, uma vez que o texto da Torá simplesmente prescreve seu uso.23

1.2.2 Midrash Agadah

Juntamente com o componente legal da p¹[bXwt, há um componente filosófico, reple-


to de ensinamentos de ética, histórias, e exposições das narrativas bíblicas, além de ensinos
místicos. A Agadah tem a mesma fonte da Halachah, ou seja, algo da tradição transmitida, al-
go derivado das regras de interpretação e algo de autoria dos Sábios.

22
Encyclopaedia Judaica, s.v. “Midreshu Halakhah” Jerusalem Keter Publishing House, 1972
23
Devarim (Deuteronômio) 6.8
Uma melhor definição desta segunda forma de Midrash, a Agadah, seria uma forma de
contação de histórias que explora a ética e os valores morais nas passagens bíblicas. Se o foco
da Halachah são as leis, na Agadah o foco são as personagens bíblicas. Literalmente, Agadah
significa “história, conto.” Há uma certa liberdade para se tomar qualquer palavra ou verso do
texto bíblico e interpretar de maneira que responda uma determinada pergunta ou que expli-
que algo.24 Distintos da Halachah quanto à objetividade, os comentários da Agadah são de ca-
ráter poético ou místico em sua maioria. Em seu comentário sobre a Mishnah, o RAMBAM
(1990) comenta que nesta seção agádica do Talmud a sabedoria se encontra oculta nas metá-
foras:

‫ כי‬,‫ או שתועלתו מעטה‬,‫ אין לחשוב שהוא קל חשיבות‬,‫הדרש שהובא התלמוד‬


‫ במה שהוא כולל מן הרמזים העמוקים והענינים‬,‫הוא לתכלית גדולה מאד‬
‫ יובן מהם מהטוב‬,‫ לפי שאם יעויין עיון מעמיק באותם הדרשות‬.‫הנפלאים‬
‫ ויתגלו מהם מן הענינים האלקיים וענינים‬,‫המוחלט מה שאין למעלה ממנו‬
‫אמתיים ככל אשר הסתירו אנשי המדע וככל אשר כלו בו הפילוסופים‬
25
.‫דורותיהם‬

As passagens agádicas do Talmud não devem ser menosprezadas como demasiado simples,
nem se deve pensar que tenham pouco valor. Pelo contrário, são profundamente benéficas,
uma vez que incluem alusões que visam aprofundar conceitos e questões grandiosas. Se al-
guém pesquisar o significado destas passagens de maneira completa, entenderá a maior e
mais absoluta bondade, e semelhantemente conceitos sobre Deus e assuntos profundos ainda
por serem revelados. Os homens de sabedoria tem ocultado estes ensinos e os filósofos de to-
das as gerações os tem compreendido somente após esforços incansáveis da parte deles.

Este caráter filosófico da Agadah eventualmente torna muito difícil sua interpretação,
muito embora as mesmas regras de interpretação aplicadas na Halachah funcionem igualmen-
te para a Agadah. Em sua famosa obra The Juggler and the King, o rabino FELDMAN (1991)
comenta:

Enquanto as discussões na Halachah são de caráter rigorosamente lógico, a Aggadah é notavelmente


obscura. Esta obscuridade é intencional: a mensagem da Aggadah – geralmente algumas das ideias
mais básicas do judaismo – é vestida no que parecem ser parábolas, enigmas, ou até mesmo conselhos
práticos sem conteúdo religioso aparente.

24
Um exemplo de Midrash Hagadah explica que Abraão, em tenra idade, ainda na Mesopotâmia, teria destruído
os ídolos da loja de seu pai, pois já sabia que há somente um Deus.
25
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
2. AS DIVISÕES DA LEI ORAL EM CATEGORIAS

Há basicamente cinco categorias gerais da p¹[bXwt. Cada uma deles será apresentada
brevemente com exemplos ilustrativos.

2.1 Explicações do Texto da Torá Recebidas e Transmitidas por Moisés

O Rabi Maimônides (1138-1204), físico, cientista, astrônomo, filósofo, e teólogo,


identifica a explanação do texto da k¹bXwt como a primeira categoria da p¹[bXwt. A correta
leitura da k¹bXwt e a tradução de suas palavras do modo como Deus ensinou a Moisés. RAM-
BAM (1990) escreve em seu Commentary on the Mishnah,

‫ הפירושים המקובלים ממשה שיש להם רמז בכתוב או שאפשר‬,‫החלק הראשון‬


‫ אלא כל זמן שיאמר אדם‬,‫ וזה אין בו מחלוקת כלל‬,‫ללמדם באחת המדות‬
26
.‫קבלתי כך וכך מסתלק כל וכוח‬

A primeira seção [da sabedoria da Torá Oral] contém as explicações recebidas por Moisés
que são mencionadas nos versos ou que podem ser derivadas das palavras escritas usando
métodos tradicionais. Não é possível desafiar ou refutar estes ensinos; uma vez estabelecido
que alguém recebeu tal tradição [remontando até Moisés], todas as bases para o debate tem
sido dissipadas.

A Mitzvah relativa ao festival de Sukkot (“tendas”)27 prescreve que se deve tomar fru-
tos e ramos de árvores frondosas, mas não especifica que fruto deve ser usado no cumprimen-
to desta Mitzvah. A Torá Oral recebida por Moisés, entretanto, explica que se trata de uma fru-
ta cítrica.

2.2 Leis Transmitidas Oralmente a Moisés no Sinai28

A p¹[bXwt contém informação legal sem referência na k¹bXwt. Segundo o judaísmo,


Deus teria ensinado a Moisés um conjunto de leis conhecidas como Halachah leMosheh miSi-
nai, ou Leis Dadas a Moisés no Sinai. Estas leis foram cuidadosamente preservadas de gera-

26
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
27
Vayqrah (Levítico) 23.40
28
RAMBAM Ibid., …‫ הם הדינים שנלמדו באחת המדות‬, ‫החלק השלישי‬
ção em geração,29 razão pela qual jamais são discutidas no Talmud. Num sentido mais abran-
gente, a p¹[bXwt inclui todas as interpretações e conclusões deduzidas pelos escribas a partir

da k¹bXwt. Compreendendo assim todo o ensino tradicional presente na Mishná, Toseftá e


nos Midrashim. Embora se tenha declarado alhures que todos os ensinos rabínicos, até mesmo
os que posteriormente foram promulgados, tenham sido revelados por Deus a Moisés no Si-
nai, tais declarações não devem ser tomadas como literais, pois não se concebe como tal reve-
lação seria possível. Há mesmo um Midrash que sugere que Moisés teria recebido o corpo de
ensino rabínico em forma de esboço, condensado, de maneira que o desenvolvimento posteri-
or como o temos hoje seria fruto da exegese dedutiva a partir da Lei Escrita, segundo o julga-
mento dos rabinos. Uma mitzvah em Deuteronômio 17.10-11 é usada para justificar essa afir-

mação:

E farás conforme o mandado da palavra que te anunciarão do lugar que escolher o SENHOR;
e terás cuidado de fazer conforme tudo o que te ensinarem. Conforme o mandado da lei que te
ensinarem e conforme o juízo que te disserem, farás; da palavra que te anunciarem te não
desviarás, nem para a direita nem para a esquerda.

A k¹bXwt prescreve a redação particular de uma Meguilah (“rolo”)30 da Torá. Entre-

tanto, é o Talmud Yerushalmi31 que determina o tipo de pergaminho a ser usado, o tipo de tinta
e as regras a respeito da escrita dos rolos da Torá.

2.3 Leis Oriundas das Regras de Interpretação e do Raciocínio Talmúdico

Juntamente com as Mitzvot, Moisés também teria recebido de Deus, segundo Rambam,
determinadas regras ou princípios de derivação da k¹bXwt, já mencionados acima.32 Um

exemplo destas leis de interpretação tem a ver com a correta prática de colocação do Tefilin de
cabeça, como Zicharon prescrito na Torá.33 O Talmud Bavli entende que “entre os teus olhos”
é uma referência a um lugar na testa, não literalmente entre os olhos:

29
RAMBAM Ibid.,
‫ וגם זה‬,‫ ואין עליהם ראיה כמו שאמרנו‬,‫ הם הדינים שבהם אמרו שהם הלכה למשה מסיני‬,‫החלק השני‬
‫ממה שאין בו מחלוקת‬
30
Devarim (Deuteronômio) 31.19
31
Meguilah, Perek I Halachah 9.
32
Sanhedrin 99a.
33
Shemot (Exodo) 13.9
‫ זו גובה‬:‫ זו גובה שבראש; אתה אומר‬- ‫ בין עיניך‬:‫גובה שבראש מנלן דת”ר‬
‫יח( בין עיניך ונאמר‬:‫ או אינו אלא בין עיניך ממש? נאמר כאן )דברים יא‬,‫שבראש‬
‫ מה להלן בגובה שבראש‬,‫א( לא תשימו קרחה בין עיניכם למת‬:‫להלן )דברים יד‬
‫ אף כאן בגובה של ראש מקום שעושה קרחה‬,‫מקום שעושה קרחה‬
34

[Tefilin de cabeça devem ser colocados] na parte superior da cabeça – de onde vem esta deri-
vação? Os sábios tem ensinado: “Entre os teus olhos,” se refere à parte superior da cabeça,
mas pode ser que realmente significa literalmente entre os olhos [Resposta] É dito aqui (uma
referência ao uso do Tefilin em Devarim 11.18) entre os teus olhos, e também ali se diz (uma
referência a Devarim 14.1 onde há uma proibição quanto à auto-mutilação)..”35

2.4 Guezeirot (promulgações protetivas)

Acima descrevemos as três primeiras categorias da p¹[bXwt incluindo as halachot. As


duas últimas categorias compreendem as halachot introduzidas pelos sábios. A quarta catego-
ria tem a ver com guezeirah, ou seja, uma lei que proibe ou restringe uma ação. Os sábios pro-
mulgaram as guezeirot como “cercas” para evitar que o povo transgredisse as leis da Torá.
RAMBAM (1990), escreve:

‫והחלק הרביעי הם הדינים שקבעום הנביאים והחכמים שבכל דור ודור על‬36
‫ והם שצוה ה’ לעשותם באופן כללי באמרו ושמרתם‬,‫דרך הגדר והסייג לתורה‬
‫את אמשמרתי ובא בקבלה עשו משמרת למשמרתי והם שקוראים אותם חז”ל‬
‫גזרות‬

A quarta categoria inclui as leis promulgadas pelos profetas e sábios decretadas em cada ge-
ração como uma “cerca de proteção” ao redor das leis da Torah (i.e. para distanciar as pes-
soas de virem a transgredir as proibições bíblicas). Deus ordenou aos sábios que instituíssem
tais medidas com um mandamento geral, “Portanto, guardareis o meu mandado” (Levítico
18.30). A tradição ensina que este meio “institui uma salvaguarda para aquelas coisas que
quero que sejam protegidas” (Yevamot 21a). Os sábios chamaram estes decretos de guezeirot.

No ensino de Jesus podemos identificar algo que pode ser denominado de uma guezei-
rah. Em seu conhecido “Sermão do Monte,” Jesus considera a ética do reino dos céus e faz re-

34
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
35
Menachot 37b
36
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
ferência à Torá e ao que “foi dito.” Duas mitzvot são mencionadas por Jesus, “Não matarás,” e
“Não adulterarás”:

Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. Eu, porém,
vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão será réu de juízo, e qualquer
que chamar a seu irmão de raca será réu do Sinédrio; e qualquer que lhe chamar de louco será réu do
fogo do inferno [...] Ouvistes que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério. Eu porém, vos digo que
qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar já em seu coração cometeu adultério com ela. Por-
tanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti, pois te é melhor que se
perca um dos teus membros do que todo o teu corpo seja lançado no inferno.37

Sem discutir o significado ou implicações da expressão “Ouvistes o que foi dito aos
antigos,” chamamos a atenção para o fato de que o Rabi Jesus ao mencionar uma mitzvah,
promulga outra como guezeirah, ou “cerca de proteção” à mitzvah principal. Entendendo que
o assassinato proibido na Torá38 é a culminação de um processo iniciado com a ira não resolvi-
da, com a ofensa não perdoada, Jesus promulga uma nova mitzvah guezeirah para “proteger”
aquela miztvah tão cara. Semelhantemente, a mitzvah correspondente ao adultério39 também é
“protegida” por Jesus com outra mitzvah guezeirah, uma vez que as ‘vias de fato’ do adultério
são o ponto culminante de um processo que teve início muito antes, com um jogo de sedução,
uma armadilha, o precipício e, finalmente, a queda.

2.5 Takanot (alterações) e Minhaguim (costumes)

A quinta categoria inclui leis instituidas pelos sábios ao descobrirem o que seria benéfico pa-
ra o povo judeu. Isto inclui (a) práticas civis considerando as relações pessoais; estas práticas
não estão conectadas à observância de uma mitzvah e não acrescentam ou subtraem das mitz-
vot da Torá, e (b) regras que mehoram a observância e cumprimento das mitzvot. Estas regras
são chamadas de minhagim (costumes) e takanot (instituições). É proibido transgredi-las uma
vez que foram universalmente ratificadas pela nação.40

Alguns exemplos destas takanot ou ‘emendas’ são os feriados de Purim e Hanucá.41


Outro exemplo de takanah pode ser visto na mitzvah na qual a Torá invalida o testemunho de
um ladrão. Os sábios ampliaram a mitzvah, invalidando também o testemunho do jogador e
dos usurários.42 Lemos na Mishná:

37
Evangelho Segundo Mateus 5. 21-22, 27-28.
38
Shemot (Êxodo) 20.13
39
Shemot (Êxodo) 20.14
40
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
41
Meguilah 7b; Shabbat 21b.
42
Sanhedrin 24b.
Agora que podemos saber a data exata de cada novo mês, por que observamos dois dias?
Porque eles enviaram uma mensagem da [terra de Israel]: Assegurai-vos de perpetuardes o
costume de vossos ancestrais, uma vez que pode chegar o tempo quando os não-judeus proibi-
rão a prática da halachah e as pessoas perderão o costume.43

43
‫ הזהרו במנהג‬:‫ משום דשלחו מתם‬- ?‫והשתא דידעינן בקביעא דירחא מאי טעמא עבדינן תרי יומי‬
‫ זמנין דגזרו המלכות גזרה ואתי לאקלקולי‬,‫אבותיכם בידיכם‬.
3. O TALMUD – HISTÓRIA, ESSÊNCIA, ESTRUTURA

3.1 Panorama Histórico do Talmud

3.1.1 A Grande Sinagoga (539-332 A.c.)

O judaísmo da Grande Sinagoga no início do Segundo Templo, conduzido por Esdras


o escriba, foi responsável por codificar uma parte considerável da Lei Oral, de modo a facili-
tar a memorização da Lei. Surge então a Mishná, que também deveria ser transmitida palavra
por palavra. Quando Esdras, o escriba, leu a Torá diante do povo remanescente que voltara da
Babilônia (445 a.C.), um grupo de soferim se postou ao seu lado a fim de dar explicações, ex-
pondo o sentido completo do texto ao povo leigo. Segundo STEINSALTZ (1976), Esdras foi,
portanto, o precursor da era dos escribas anônimos desse período conhecido como a Knesset
Guedolah, ou Grande Sinagoga. Qual teria sido de fato a natureza desta instituição é algo ain-
da incerto. Seu tempo de duração e influência também permanecem na obscuridade. Quase
não há registros desse período, que corresponde mais ou menos ao tempo do domínio persa
sobre a Palestina (539-332 a.c.). É possível que o nome Grande Sinagoga dê conta somente da
grandeza dos mestres escribas de destaque daqueles dias. É nesse período que se consagrará a
figura e trabalho do escriba (heb. Sôfer).44 Mais do que escrever, o ofício do escriba tem a ver
com a contagem das 304.805 letras, 79.976 palavras, 5.844 versos, e 345 colunas da Torá es-
crita.

Portanto, a primeira obra dos escribas da Grande Sinagoga foi a padronização do texto
da k¹bXwt, dando a cada página e livro sua forma e estilo finais. Ao término de cada livro da
Torá podem ser encontradas informações quanto ao número total de versículos, o total de se-
darim (termo hebraico para ‘ordens’) indicando as ordens de leitura, o número de parashot
(leituras complementares ou paralelas), o número total de palavras, de letras e de versos, além
do verso que marca com exatidão o centro do livro, com a palavra central e a letra central.
Nas versões modernas esta palavra e letra centrais da Torá são destacadas por uma fonte de ta-

44
O termo deriva da raiz hebraica rps (safar) “contar,” porque o Talmud diz que o sôfer “conta as letras da
Torá.” O termo sôfer significa, portanto, ‘aquele que escreve,’ e ‘aquele que conta.’
manho maior.45 As mesmas informações massoréticas se encontram ao final de cada divisão
maior da Bíblia Hebraica, Torá, Neviim, e Ketuvim. Uma obra de referência na padronização
do texto é o chamado Likut Sifrei Stam, que inclui leis que orientam a escrita de uma Torá kos-
her.46

3.1.2 A Era dos Zugôt (332-37 A.c.)

O período dos “pares” (heb. zugôt) é muito extenso e marcado por conflitos civis e re-
ligiosos. É por esse tempo também que se dá o surgimento do princípio de yehareg ve-al
ya’avor ou “é preferível morrer a pecar.” Para BEN-SASSON (1976, p. 254-256), a designa-
ção Zugôt ou “pares” é uma referência à representação política dos sábios na corte conhecida
como Sanhedrin, na qual um deles era o nasi ou ‘presidente,’ enquanto o outro era o av beit
din, ou ‘cabeça da corte.’

Acredita-se que estas duplas representavam duas escolas de pensamento legislativo.


Elas estabeleceram muitas máximas e regras gerais. Com a morte de Alexandre o Grande, sua
viúva Salomé devolveu alguns poderes ao Sanhedrin. O Talmud Sanhedrin 2a diz:

O grande Sanhedrin consistia de setenta e um membros; o Sanhedrin menor de vinte e três. Mas de on-
de deduzimos que o Sanhedrin maior se compunha de setenta e um homens?—É dito, ajuntai-me seten-
ta homens; com Moisés à sua frente temos setenta e um. Rabi Judah disse que o Sanhedrin consistia so-
mente de setenta homens. De onde sabemos que o Sanhedrin menor compunha-se de apenas vinte e três
homens?—É dito, e a Edah [congregação] julgará... e a Edah absolverá. Uma Edah julga, [i.e. conde-
na] e a outra pode absolver, portanto temos vinte, mas de onde sabemos que uma congregação consiste
de não menos do que dez?—Está escrito: ‘Até quando suportarei esta má Edah? excluindo Josué e Ca-
lebe, temos dez. E de onde derivamos os outros três?—pelas implicações do texto, tu não seguirás a
maioria para o mal, infiro que posso segui-los para o bem; se assim o for, por que é dito, inclinar-se
pela maioria? Para ensinar que a maioria ‘inclinar-se para’ o bem [i.e. para uma decisão favorável]
não é ‘inclinar-se para’ para o mal [i.e. para uma decisão adversa] uma vez que para o mal, a maioria
de um é suficiente; ao passo que para o bem, é requerida uma maioria de dois.47

A figura de grande destaque do início do período dos zugôt foi o Sumo Sacerdote Shi-
meon Ha-Tsadiq (heb ‘o justo’), segundo o Livro de Ben Sira, que destaca Shimeon como um

45
A letra que se encontra no meio da Torá Escrita é um vav na palavra !wxg ou “ventre.” A letra encontra-se de-
w
stacada pelo tamanho em relação às demais letras, assim: ! xg Curiosamente, a primeira letra da Torá é um beit
(b) e a última, um lámed (l). Assim, as letras do início, meio, e fim da Torá formam a palavra lwb ou “selo.” Os
sábios entenderam que a Torá é uma “carta” de Deus para os homens.
46
Por exemplo, o sôfer, antes de escrever um dos dez nomes santos de Deus, deve dizer, “Estou escrevendo por
causa da santidade de Deus.” O Likut Sifrei Stam também prescreve que cada palavra da Torá deve ser pronunci-
ada em voz alta antes de ser escrita. Desse modo, ao concluir a escrita da Torá, o sôfer também terá concluido
sua leitura.
47
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
homem de notável liderança, sacerdócio, e santidade. Ele é tido como um dos “remanescen-
tes” da Grande Sinagoga.

O domínio hasmoneu, de natureza política e religiosa, inicialmente favoreceu os sá-


bios e a corte dos judeus, mas esta boa relação chegou ao fim quando os Tzedokim (saduceus)
cairam nas graças dos sacerdotes hasmoneus. A seita dos tzedokim deixou pouquíssimos ras-
tros na história, de modo que pouco se sabe sobre sua origem. Apesar de serem poucos em nú-
mero, os tzedokim exerciam grande influência política, pois entre eles havia muitos sacerdotes
e homens de grandes posses. Uma das características dos tzedokim era sua rejeição da
p¹[bXwt e seu apelo ao retorno à k¹bXwt como única fonte da revelação divina. Para mostrar
seu desprezo pela interpretação judaica da p¹[bXwt, os Kohanin Guedolim entre os tzedokim
invertiam a ordem do incenso de Yom Kippur, colocando-o primeiro no incensário, fora do lu-
gar santíssimo, para então trazê-lo diante do Senhor, numa desobediência clara à Torá que es-
pecifica exatamente a ordem contrária.48 Segundo o Talmud, esta prática resultava invariavel-
mente na morte do Kohen Ha-Gagol diante do Senhor. O Talmud registra que trezentos Koha-
nim Guedolim serviram no Segundo Templo, enquanto apenas dezoito serviram no Primeiro
Templo, durante o mesmo período de tempo.

Outros três grupos de destaque entre o povo judeu eram os Amei Ha-Aretz, (heb “o po-
vo da terra”), os Essênios, e os Perushim (heb “separatistas”). Este último grupo, cuja transli-
teração do termo hebraico resultou na palavra fariseus, representava a maioria dos sábios que
era fiel à Torá e que se destacava pelas práticas de separação da população, a fim de evitarem
o contato com alguém que porventura estivesse ritualmente impuro. Segundo DELITZSCHE
(1867), o Talmud menciona e descreve sete tipos de Perushim: 1) O Parish siquemita, que
guarda a lei porque dela quer tirar proveito, como Siquém, que se deixou circuncidar para
conquistar a filha de Jacó, Diná (Bere’shit [Gênesis] 34.19); 2) O Parish que tropeça; aquele
que tem aparência humilde, anda de cabeça baixa, prestes a cair; 3) O Parish que sangra;
aquele que vive se ferindo porque anda de olhos fechados para não ver as mulheres; 4) O Pa-
rish do tampão; aquele que usa um tampão nos olhos, a fim de que não veja impurezas ou in-
decências; 5) O Parish do tipo ‘O-Que-Ainda-Há-Para-Eu-Fazer’; porque ele não conhece
muito da Torá e vive a perguntar: “Diga-me o que devo fazer agora, e o farei;” 6) O Parish do
medo; aquele que obedece o Senhor por causa do medo do juízo futuro; 7) O Parish do amor;
aquele que obedece o Senhor porque o ama de todo o seu coração.

48
Vayqrah (Levítico) 16.12-13
Os Amei Ha-Aretz, eram os judeus observadores da Lei mas sem educação formal nos
rituais de purificação.49 Estas pessoas eram segregadas em muitas situações da vida social, co-
mo as refeições por exemplo, pois os que guardavam a halachah de maneira mais escrupulosa
não podiam sequer comer uma comida preparada pelos Amei Ha-Aretz e muito menos comer
com estes. Muitos eruditos entendem que os Amei Ha-Aretz não eram uma classe especial do
povo de Israel, mas a gente comum, distinta dos sábios e mestres da Torá.50 O Novo Testa-
mento registra um acontecimento no qual o desprezo de alguns Perushuim pelos Amei Ha-
Aretz fica evidente:

Então, os que dentre o povo tinham ouvido estas palavras diziam: Este é verdadeiramente o profeta; ou-
tros diziam: Ele é o Cristo; outros, porém, perguntavam: Porventura, o Cristo virá da Galiléia? Não diz
a Escritura que o Cristo vem da descendência de Davi e da aldeia de Belém, donde era Davi? Assim,
houve uma dissensão entre o povo por causa dele; alguns dentre eles queriam prendê-lo, mas ninguém
lhe pôs as mãos. Voltaram, pois, os guardas à presença dos principais sacerdotes e fariseus, e estes lhes
perguntaram: Por que não o trouxestes? Responderam eles: Jamais alguém falou como este homem. Re-
plicaram-lhes, pois, os fariseus: Será que também vós fostes enganados? Porventura, creu nele alguém
dentre as autoridades ou algum dos fariseus? Quanto a esta plebe que nada sabe da lei, é maldita. Ni-
codemos, um deles, que antes fora ter com Jesus, perguntou-lhes: Acaso, a nossa lei julga um homem,
sem primeiro ouvi-lo e saber o que ele fez? Responderam eles: Dar-se-á o caso de que também tu és da
Galiléia? Examina e verás que da Galiléia não se levanta profeta.51

Segundo POMERANZ (2016, p. 59-76), apesar de se fundamentar em fontes pseude-


pígrafas do Talmud Bavli tardio, o conceito de que os Amei Ha-Aretz eram desprezados pelos
sábios da Palestina certamente encontra eco nos escritos rabínicos. O tratado Pessachim 49ab
contém algumas detratações52 aos amei ha-‘aretz que chegam a ser desumanizadoras. As dife-
renças sociais entre as classes eram bem acentuadas, o que se pode ver, por exemplo, nos ca-
samentos arranjados:

Nossos rabis ensinaram: Que um homem sempre venda tudo o que tem e se case com a filha de
um talmid hakhamim.53 Porque se ele morrer ou for exilado - está garantido que seus filhos se-
rão talmidei hakhamim. Mas não se case com a filha de um am-ha’aretz. Porque se ele assim o
fizer e morrer ou for exilado, seus filhos serão ammei-haaretz.54
Nossos rabis ensinaram: Que um homem sempre venda tudo que tem e se case com a filha de
um talmid hakhamim e case sua filha com um talmid hakhamim. Isto equivale a comparar as
uvas da vinha às uvas da vinha - algo agradável e aceito. Mas não se case com a filha de um

49
POMERANZ, Jonathan, “Ordinary Jews in the Babylonian Talmud: Rabbinic Representations and Historical
Interpretation” (Dissertação de PhD., Yale University, 2016), p. 59-76.
50
WIMPFHEIMER, Barry S., Narrating the Law: A Poetics of Talmudic Legal Stories, Philadelphia: University
of Pennsylvania Press, 2011, p. 79-80.
51
Evangelho Segundo João 7.40-52
52
Omitiremos nestas passagens os textos em hebraico. A tradução pode ser conferida com os originais a aprtir
das referências.
53
Discípulo dos sábios. Uma referência a alguém que estuda formalmente a Torá.
54
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
am-ha’aretz - isto equivale a comparar as uvas da vinha aos espinhos dos arbustos - algo mui-
to feio e inaceitável.55

A classe do “povo da terra” era preterida em todos os casos, sendo relegada ao mais
baixo nível da sociedade. O último estágio ou nível mais baixo no qual se deve buscar um es-
poso para a filha casadoira é o “mestre de crianças,” alguém cuja autoridade era altamente
questionável, pela falta de integridade.56 O am-ha’aretz ainda se encontrava muito abaixo des-
ta última categoria e deveria assim ser preterido, suas filhas sendo comparadas a animais. A
comparação parece uma forma sutil de indução da consciência à culpa. Para isto é citado um
mandamento da Torá, relegando aquele casamento à categoria de pecado abominável. Há ain-
da a segregação das atividades comuns, como as refeições públicas em grupo.

Foi ensinado: Rabi Meir costumava dizer: Qualquer que case sua filha com um am-ha’aretz, é
como se ele a amarrasse e a pusesse diante de um leão. Tal qual um leão que ataca e come e
não tem pudores - tal é um am-ha’aretz que ataca e tem intercurso [com a moça] sem qual-
quer escrúpulo.57
Nossos rabis ensinaram: Que um homem sempre venda tudo que tem e se case com a filha de
um talmid hakhamim. Se ele não encontrar a filha de um talmid hakhamim, que se case coma
filha de um dos grandes de sua geração. Se não encontrar a filha de um dos grandes de sua
geração, que se case com a filha dos líderes da sinagoga. Se ele não encontrar a filha de um
dos líderes da sinagoga, que se case com a filha de alguém que seja reconhecido pela carida-
de, se ele não encontrar a filha de alguém que seja apontado pela caridade, que se case com a
filha de um mestre de crianças. Mas jamais deve se casar com a filha de um am-ha’aretz, pois
eles são abominações e suas esposas são répteis e a respeito de suas filhas é dito que: ‘Maldi-
to aquele que se deitar com animal.’ (Devarim [Deuteronômio] 27.21).58
Rabi Hiyya ensinou: Qualquer um que estuda a Torá na presença de uma am-ha’aretz, é como
se ele tivesse intercurso [carnal] com sua noiva em sua presença. Como se diz: Moisés nos
ordenou na Torá, a herança ‫( מורשה‬Devarim [Deuteronômio] 33.4). Não se leia “herança”
(‫ )מורשה‬mas “noiva” (‫)מאורסה‬.59
Foi ensinado: Diz o Rabi: Um am-ha’aretz não tem permissão para fazer uma refeição. Como foi dito:
Esta é a Torá a respeito das bestas e dos pássaros... (Vayqrá [Levítico] 11.46). Qualquer um que estuda
a Torá - tem permissão para comer a carne de bestas e de pássaros, e quem não estuda a Torá - está
proibido de comer a carne de bestas e de pássaros.60

Rabi Elazar disse: É proibido se fazer acompanhar de uma am-ha’aretz na estrada. Como está
escrito: Porque disto depende a tua vida e a tua longevidade (Dvarim [Deuteronômio] 30.20)
- ele não tem interesse pela própria vida - por que se interessaria pela vida de seu amigo?61

55
Ibid.
56
A expressão “mestre de crianças” é empregada no Novo Testamento pelo apóstolo São Paulo, na epístola aos
Romanos 2.20, como uma forma de detração ao judeu cuja vida e o ensino são marcados pela falta de integri-
dade. No Talmud, este homem ainda é preferível ao am-ha’aretz, quando o assunto é o casamento de uma moça
virgem.
57
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
58
Ibid.
59
Ibid.
60
Ibid.
61
Ibid.
Relegada uma determinada classe social ao nível de meras bestas, não demoram a sur-
gir textos que ‘sancionem’ e tornem legítima, sobretudo num apelo imoral ao texto sagrado,
toda e qualquer forma de violência contra tais pessoas, num assustador embrutecimento da
consciência.

Rabi Elazar disse: é permitido ferir um am-ha’aretz no dia de Yom Kippur que caia num Shab-
bat. Seus discípulos perguntaram a ele: ‘O Rabi quer dizer “matá-lo.?” Ele lhes disse: ‘[ma-
tar] requer uma bênção, enquanto que [ferir] não requer uma bênção.’62
Rabi Shmuel Ben Nahmani disse em nome do Rabi Yehonatan: é permitido retalhar um am-
ha’aretz como se faz com um peixe. Disse o Rabi Shmuel Bar Ytzhaq: ‘Nas suas costas.’
Foi ensinado: Rabi Akiva disse: ‘Quando eu era um am-ha’aretz eu dizia: Quem dera alguém
me desse um talmid hakhamim, de modo que eu pudese mordê-lo como um asno!’ Seus discí-
pulos disseram a ele. ‘Rabi, diga “como um cão!” Ele lhes disse: ‘[Um asno ] morde e quebra
ossos, enquanto que [um cão] morde mas não quebra ossos.’63
Maior é o ódio com o qual os amei-ha’aretz odeiam os talmidei hakhamim do que o ódio com
que as nações do mundo odeiam Israel, e suas esposas [odeiam os talmidei hakhamim] ainda
mais do que eles.64

Legitimada a violência contra uma classe social, pela palavra dos sábios, banaliza-se o
assassinato como medida lógica, desejável, profilática:

Foi ensinado: Diz o Rabi Eliezer: Se não precisássemos deles para o comércio, os mataría-
mos.65

Segundo STEINSALTZ (1976, p. 198, 213), a comunidade dos essênios, por sua vez,
era um grupo menor composto exclusivamente de homens que se retiraram para o deserto com
o intuito de viverem isolados nas cavernas ao sul da Palestina observando práticas extremas
de ascetismo, sem nenhum respaldo na Lei Escrita. A este grupo de ascetas é atribuída uma
extensa produção de documentos escatológicos, cópias de livros bíblicos e obras de cunho re-
ligioso determinando certos rituais de purificação. Estes manuscritos foram guardados em va-
sos de cerâmica, tendo dido encontrados no anos de 1947, acidentalmente, por um pastor be-
duino.66

3.1.3 A Era dos Taanaim

O termo Taanaim, plural de taná, é uma referência àquele que estuda, repete, e anota o
que aprendeu de seus mestres. A era dos Taanaim tem início nos primeiros dias do governo de
62
Ibid.
63
Ibid.
64
Ibid.
65
Ibid.
66
https://www.deadseascrolls.org.il/learn-about-the-scrolls/introduction
Herodes. A destruição do templo (70 a.D.), assim como a expansão do cristianismo e de seitas
como o gnosticismo ameaçaram a unidade da fé judaica. Internamente, porém, a cultura judai-
ca floresceu em novos métodos de estudo e de memorização. Segundo STEINSALTZ (1976,
p. 43), o título de “rabi” foi criado neste período para se referir aos mestres que recebiam or-
denação (heb semikhah) oficial.

Nesse período surge um fenômeno novo em Israel, as duas escolas de Beit Hillel e Beit
Shammai. Estas “casas” (heb Beit) davam o tom das discussões halachicas e assim se deu por
muitas gerações, prevalecendo finalmente o pensamento hermenêutico da Beit Hillel. O rabi
Hillel era de traço modesto, gentil e amável. O rabi Shammai, por sua vez, era extremista, de
temperamento notavelmente irascível e de julgamento severo. Dizia-se, por exemplo, que a
escola da Shammai ‘amarra,’ enquanto que a escola de Hillel ‘solta.’ O Talmud registra deze-
nas de disputas entre as duas escolas, ao ponto de afirmar que a Torá como que “se tornara du-
as Torás.”67 No que diz respeito à mentira, por exemplo, a escola de Shammai não admitia que
se elogiasse a beleza de uma noiva feia, uma vez que isto se constituiria uma mentira, sendo
essencialmente uma transgressão da lei, independetemente do grau desta mentira. Segundo o
rabino Hillel, todas as noivas são lindas no dia do casamento, princípio sábio que previniria a
mentira.68

A escola de Shammai sempre se identificou politicamente com os princípios revolu-


cionários dos zelotes,69 de quem recebia apoio. A escola de Shammai ganhou popularidade

67
Sanhedrin 88b; Sotah 47b. Estas disputas incluíam muitos assuntos, como por exemplo quem deveria ser ad-
mitido ao estudo da Torá. A escola do rabino Shammai entendia que o estudo da Torá deveria se restringir às pes-
soas dignas, excluindo-se assim a maioria. Já a escola do rabino Hillel entendia que a leitura e estudo da Torá
produziria na maioria das pessoas o arrependimento, o que as tornaria dignas. Esta visão mais graciosa e compla-
cente caracterizou a pessoa e a escola de Hillel, o que não se podia dizer necessariamente do rabino Shammai. O
tratado Berachot 8.7 trata do Birkat Hamazon, ou ação de graças pelo alimento, sobre o qual as escolas também
discordavam. Quando um judeu esquecesse de dar graças pelo alimento e, mais tarde, se lembrasse, tendo já dei-
xado o lugar onde fizera sua refeição, teria que retornar ao lugar específico, segundo a escola de Shammai, e faz-
er ali a devida oração de Birkat Hamazon. O entendimento da casa de Hillel era mais flexível, permitindo ao dis-
plicente fiel realizar a prece no local onde ele percebeu o esquecimento. O Birkat Hamazon diz: “Bendito sejas
Tu, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que fazes brotar o pão da terra.”
68
Ketuvot 16b-17a.
69
Os zelotes apareceram como um grupo distinto sob o reinado (37-34 aC.) de Herodes o Grande. No ano 6 aD,
quando a Judéia foi colocada diretamente sob governo romano e as autoridades pediram um censo para definir
impostos, muitos fanáticos, liderados por Judas da Galiléia, se revoltaram. Reconhecer a autoridade do impera-
dor romano pagão, dizima eles, significaria negar a autoridade de Deus e submeter-se à escravidão. A revolta foi
rapidamente sufocada, e muitos deles, provavelmente entre eles também Judas da Galiléia, foram mortos, mas os
outros continuaram a pregar a resistência absoluta aos romanos. Um dos discípulos de Jesus, Simão, era um des-
ses fanáticos (Evangelho segundo são Lucas, VI, 15). De acordo com Flavius Josephus, um historiador judeu, os
fanáticos desempenharam um papel importante em incitar e apoiar a revolta judaica geral contra os romanos, que
começou em 66 D.C. Embora tenham continuado a atacar outros grupos judeus, eles valentemente defenderam
Jerusalém até sua queda em 70 aD. Outro grupo de fanáticos manteve a fortaleza de Massada cercada por tropas
romanas até 73 aD., preferindo cometer suicídio a se render.
(Extraído e traduzido de https://franckgintrand.com/2017/10/11/qui-sont-les-zelotes/)
com a crescente revolta e indignação pública dos judeus contra os romanos no primeiro sécu-
lo. A escola do rabino Shammai realizava atos públicos de oração, segundo BEN-SASSON
(1976, p. 254-256), dos quais a escola de Hillel ficava excluída, por causa de sua atitude gen-
til e conciliatória em relação ao odiado poder romano.

Os Taanaim também ficaram conhecidos por outro fenômeno, sua memória extraordi-
nária. Indivíduos dotados de extremo poder de memorização povoavam as grandes academias
e, como verdadeiros arquivos vivos, ajudavam os sábios na elucidação de lacunas textuais no
estudo da Mishná.

3.1.4 A Era dos Três Sábios da ‘Vinha de Yavneh’

Três nomes de destaque merecem atenção na próxima geração dos tanaítas. O Sanhe-
drin passou a ser liderado pelo Rabban Gamaliel de Yavneh (aposto usado para diferenciá-lo
de seu avô famoso). Gamaliel de Yavneh (55-118) foi responsével pela reorganização do San-
hedrin, elevando aquela instituição ao nível de suprema autoridade legislativa e judicial do
povo judeu. O cunhado de Gamaliel, Rabban Eliezer o Grande, embora tendo iniciado seus es-
tudos em idade bastante avançada, destacou-se por sua memória extraordinária e uma person-
alidade simpática.70 Finalmente, o Rabban Josué Ben Hananiah, homem pobre, ferreiro de pro-
fissão, tornou-se, inquestionavelmente o erudito mais importante de seus dias. A ‘Vinha de
Yavneh’ foi o nome dado ao grupo liderado pelos três grandes sábios, em torno dos quais se
desenvolveu a maioria dos debates da halachah. Boa parte da literatura mishnaica é fruto des-
sa ‘era dourada’ de estudo da Lei Oral.

3.1.5 A Revolta de Bar-Kochba e o Rabino Akiva Ben Yosef

O nome do Rabino Akiva Ben Yosef desponta como uma figura inigualável que ofus-
cou todos os seus contemporâneos. STEINSALTZ (1076, p. 26-29) diz que os sábios reconhe-
ceram a grandeza de Akiva e passaram a tratá-lo como um de seus iguais. Ao Rabi Akiva é at-
ribuída a sistematização da halachah, como o trabalho de um agricultor que vai ao campo
com um grande cesto às costas, recolhe todos os frutos que estão disponíveis e, chegando em
casa, os dispõe sobre a mesa e inicia a tarefa de separá-los, arranjando-os por espécie. Esta foi

70
O mestre de Eliezer chegou a dizer que se todos os sábios de Israel fossem colocados num dos pratos da balan-
ça e o Rabban Eliezer do lado oposto, este ainda pesaria mais do que todos os outros sábios, superando-os em
conhecimento. Conquanto discípulo do Rabi Yohanan Ben Zakkai, Eliezer pendia para os ensinos da escola de
Shammai, sendo portanto mais conservador e rígido em seus ensinos da halachah.
a metáfora empregada pelos seus contemporâneos para descrever sua obra em relação a hala-
chah.

O empreendimento da reorganização da vida e disciplina do povo de Israel coube ao


Raban Shimeon Ben Gamaliel, o Segundo, da casa de Hillel. Ele foi sucedido pelo filho, R.
Judá Ha-Nasi, que pela erudição e piedade veio a ser conhecido como “nosso santo rabi” ou
rabbenu hakadosh, que mais tarde viria a ser chamado simplesmente de o Rabi. A Enciclopé-
dia Britânica diz a respeito do Rabbi Judah Ha-Nasi:

Judah ha-Nasi, (nascido em 135—falecido c. 220), um dos últimos dos tannaim, o pequeno grupo dos
mestres palestinos da Lei Oral judaica, partes da qual ele colecionou como a Mishna (Ensino). A Mish-
na tornou-se o assunto de interpretação no Talmud, o compêndio rabínico fundamental da lei [...] Por
causa de sua santidade, erudição, e eminência, Judah era chamado de ha-Nasi (“o príncipe”), rabi
(“mestre”), rabbenu (“nosso mestre”), e rabbenu ha-qadosh (“nosso santo mestre”). 71

3.1.6 A Compilação da Mishná

Tendo em vista a enorme complexidade do material a ser organizado e padronizado, as


gerações subsequentes à Grande Sinagoga ampliaram as discussões da Mishná, expandindo e
revelando muitas variações e novos mestres. A necessidade de arranjo e edição de todas as
tradições orais da Lei, segundo EISENBERG (2004), se tornava cada vez mais evidente, uma
vez que as discussões aumentavam e precisavam de um registro por razões essencialmente
mnemônicas. Entendendo que tais discussões não teriam fim, o Rabi Judá HaNasi empreen-
deu a tarefa singular da redação do que seria a forma final da Mishná como a temos até hoje,
concluindo sua obra no ano 188 da era cristã, publicando-a três décadas mais tarde. A Mishná
é o livro de Halachah (“lei”), obra do Rabi, e contribuiu para o florescimento das escolas tal-
múdicas em Israel e na Babilônia.

Nos dias do Rabi Judah surge o conceito de asmachtah (heb. “sustentação”), que con-
siste na citação de um determinado texto bíblico combinado por algum método exegético à
halachah, sem ser sua fonte direta, tendo uma halachah conhecida funcionando como recurso
mnemônico. Este método foi amplamente difundido, mas alguns assuntos foram classificados

71
https://www.britannica.com/biography/Judah-ha-Nasi
simplesmente por números, como no caso dos trinta e nove halachot ou trabalhos proibidos
no Shabat.72

3.1.7 A Era dos Amoraim

Após a morte do Rabi Judah Ha-Nasi, entrará em cena uma nova geração de estudio-
sos, discípulos das mentes mais brilhantes daquele século. Esse grupo será conhecido como os
Amoraim, termo derivado do verbo hebraico amar (“dizer,” “interpretar”). A função deste
grupo era basicamente de tradução ou popularização das halachot na língua vernacular daque-
les dias, o aramaico. O conhecimento da língua hebraica não era privilégio da maioria, de mo-
do que a leitura e exposição da halachah pelos sábios carecia de mediação. Tradução e inter-
pretação de cada versículo para a língua aramaica era o que faziam os amoraim. A leitura pú-
blica da Torá conseguia assim atingir um número muito maior de pessoas. Os amoraim inicia-
lmente simplesmente explicavam o sentido do texto conforme os sábios os transmitiam em he-
braico, mas depois vieram a se tornar mestres do poo, introduzindo assim suas próprias inova-
ções na halachah, embora continuassem a ser chamados de amoraim. Novas coleções da Lei
Oral surgirão naqueles dias.

3.1.8 O Talmud Bavli

Um outro fenômeno daquela geração foi o surgimento de um importantíssimo centro


de estudos da Torá na Babilônia, na cidade de Sura pelas mãos do Rav73 Abba Ben Ibo, um
amorah, membro do Sanhedrin, educado sob a orientação do próprio Rabi Judah Ha-Nasi e
por este ordenado como compilador oficial de mishnayot. Outro sábio de renome na Babilônia
foi Shmuel, médico e astrônomo, que estabeleceu uma segunda academia, esta na cidade de

72
Há 39 categorias gerais de trabalhos que são proibidos no Shabat. Cada uma destas categorias inclui uma ga-
ma de leis e atividades derivadas, algumas das quais são descritas nas "Leis do Shabat." As Melachot são geral-
mente divididas em seis grupos, classificados de acordo com as atividades da Mishkan com as quais estão asso-
ciados. As atividades proibidas são: arar, semear, colher, ajuntar a colheita, debulhar, separar os grãos ao ven-
to, selecionar os grãos e separá-los, moer, peneirar, preparar a massa, assar/cozer/fritar, tosquiar, lavar a lã,
desembaraçar a lã, tingir, fiar, esticar os fios para tecer, passar o fio entre dois anéis, tecer, desfazeros fios, atar,
desatar, costurar, rasgar para depois suturar, caçar, abater o animal, tirar o couro do animal, curtir o couro, ali-
sar o couro, demarcar o couro para o cortar, cortar o couro, escrever, apagar o que foi escrito, construir, demo-
lir, acender fogo, apagar o fogo, concluir a feitura de algum objeto, transportar.

73
Segundo a halachah, não era possível ordenar um Rabi fora da Palestina e por esta razão os sábios da
Babilônia não serão chamados de Rabi, mas de Rav, título que lhes atestava a erudição, sem contudo lhes con-
ceder o status oficial de halachah.
Nehardea. Juntos, Rav Abba e Rav Shmuel, dominaram a cena da erudição babilônica e sua
tradição perdurou por séculos.

A escrita do texto e suas divisões em seções ficou a cargo do Rav Ashi e Rav Ravina
II. Temendo que todo o material da p¹[bXwt caisse no esquecimento o Rav Ashi assumiu a gi-
gantesca tarefa da redação da Guemará, ou Talmud Bavli. Ele construiu uma estrutura para o
Talmud Bavli, empreendimento que lhe custou os sessenta anos nos quais ele liderou a acade-
mia. A forma final do Talmud foi obra dos Savoraim (heb “expositores”). Sobre a redação do
Talmud Bavli, STEINSALTZ (1976, p. 56), diz:

O método de redação do Talmud reflete sua natureza e os modos nos quais ele difere da Mishná. Esta é
basicamente um livro da lei, consistitndo quase sempre de regras em todas as esferas da legislação oral.
Diferenças de opinião entre os sábios aparecem de forma abreviada, e as disputas originais raramente
são citadas ou outras áreas, tais como o midrash sobre a halacha e aggadah, raramente são exploradas. O
Talmud, porém, não é uma obra completa em si e deve ser considerado como uma espécie de esboço su-
marizado dos debates dos sábios. Sua principal significância não está em suas conclusões da halachah
mas nos métodos de pesquisa e análise pelos quais as conclusões são deduzidas. A despeito da edição e
sumarização, o Talmud reflete os métodos de estudo das academais da Babilônia, e deve ser visto como
uma fatia da vida, como a essência da experiência intelectual de gerações.

3.1.9 As Primeiras Edições Impressas ‘Censuradas’

Das edições impressas do Talmud não se pode dizer que sejam completas, mas a maio-
ria delas foi de alguma forma “mutilada.” Recebendo censuras papais a respeito das passagens
que tratavam de Jesus ou do cristianismo, por razões óbvias, os editores do Talmud também
recebem das autoridades judaicas certas advertências, como no caso da encíclica rabínica da
Polônia em 1631, citada por DRACH (1844, p. 168):

“Nós nos solidarizamos convosco, sob a dor da grande excomunhão, que não imprimais nada nas edi-
ções futuras, seja da Mishná, seja da Guemará, que se relacione aos bons ou maus atos de Jesus o Naza-
reno, e que substituais o seu nome por um círculo como este ‘0’ que advertirá os Rabis e mestres da aca-
demia a que ensinem aos jovens estas passagens somente por viva voz. Por meio desta precaução os
aprendizes entre os nazarenos não terão qualquer pretexto para nos atacar a respeito deste assunto.”

A primeira edição “completa” do Talmud, segundo HELLER (2005, p. 61-78) foi obra
dos editores cristãos Daniel Bomberg e Felice da Prato, frei agostiniano que se convertera do
judaismo. Bomberg dedicou quase toda sua vida e fortuna à publicação de mais de duzentas
obras judaicas, dentre elas os Talmudim, Yerushalmi e Bavli, além da Mikraot Gedolot, ou Bí-
blia Rabínica com todos os comentários. No ano de 1520, com autorização do Papa Leão X,
ele deu ao mundo a primeira edição impressa completa do Talmud.74 Poucos anos mais tarde,
precisamente em 1553, o Papa Julius III ordenou que todos os exemplares do Talmud fossem
incendiados, mas muitas cópias já tinham sido espalhadas pela Europa. A condenação papal
por Julius III era um eco da censura do Papa Leão X, que mesmo tendo autorizado a impres-
são do Talmud, decretara fossem retiradas deste todas as referências a Jesus, a Maria, bem co-
mo as referências a disputas entre cristãos e judeus.

Para BOER (1931), a Disputa de Tortosa, ocorrida nos anos de 1413 a 1414 é talvez a
mais importante da história, não somente por sua duração, que segundo Boer teria sido de vin-
te meses com sessenta e nove longas sessões, mas sobretudo por ter sido presidida pelo sumo
pontífice, o Papa Bento, este mesmo participando ativamente das disputas, e por causa da na-
tureza das questões sob discussão, dentre elas a tentativa de se provar a messianidade de Jesus
de Nazaré a partir de textos judaicos, falando-se em demonstrar a verdade do cristianismo que
emergue do Talmud, além de apresentar os erros e heresia do Talmud contra a religião cristã.75
Sobre a argumentação judaica a respeito do Messias, LÓPEZ (1957, p. 67) diz:

Las seis condiciones que según los judíos debía tener el Mesias eran las seguientes: 1) Que los sacaría
de la cautividad, los llevaría a todos a la tierra de promisión e alli los estabeleceria. 2) Que al tiempo de
sacarlos de esa cautividad se había de hacer milagros como se hicieron a la salida de Egipto. 3) Que ha-
bían de ser mateiralmente reedificados Jerusalen y su templo. 4) Que en tiempo del Mesías guardaría Is-
rael la Ley, con todas sus ceremonias y sacrificios, qual se habia hecho antiguamente. 5) Que el Mesías
había de dominar en paz todo el universo. 6) Que en tiempo del Mesías había de acaecer la guerra de
Gog y Magog.

A quinta pergunta lançada aos judeus dizia respeito à doutrina da transmissão do peca-
do original à raça humana após a queda:

Quinta pregunta: ¿Fué el pecado de Adán remitido antes de la venida del Mesías o no?
Responde el judio: El pecado de Adán no ha sido en modo alguno remitido aún, puesto que padecemos
las penas infligidas a Adán y Eva por aquel pecado, que está expresadas en el capitulo III de Genesis.
En quanto a lo que se pregunta se será remitido o no antes de la venida del Mesías, el judío dice que lo
ignora.
Sexta pregunta: ¿Debía o no el Mesías padecer la muerte el Mesías para purgar el dicho pecado (de
Adán)?
Séptima pregunta: ¿Deberá slavar el Mesías a alguna otra nación además de aquellos que desciedem de
Israel?

74
Encyclopaedia Judaica, 1972: XV p. 1270-1271. Quanto às críticas feitas a Bomberg de uma edição censura-
da, é importante lembrar que após a chamada Disputa de Tortosa (1414), as autoridades da Espanha censuraram
partes da edição da família Soncino. Bomberg. portanto, teria herdado material já censurado.
75
Ibid.
Responde el judío que cree que principalmente salvará al pueblo de Israel que está en cautividad, pero
los que en tiempo del Mesías se convertirán a la Ley mosaica se salvarán también[...]76

Segundo Boer, os judeus, já desgastados pela duração exacerbada da disputa,77 bem


como pela pressão psicológica das inúmeras ameaças que lhes tinham sido lançadas em rosto
até aquele momento, se confessaram incapazes de responder aos argumentos, afirmando, po-
rém, que os sábios dos dias do Talmud os teriam respondido facilmente.78 Concluíam que o
valor do Talmud não poderia ser deduzido a partir do momento de fraqueza no qual se encon-
travam. Após a Disputa de Tortosa, todos os judeus daquela cidade foram forçados à conver-
são cristã. Todas as pessagens acusadas pelo cardeal Gerônimo, principal delegado católico e
líder absoluto da disputa, foram apagadas do Talmud, de acordo com LÓPEZ (1957).

3.1.9.1 As Passagens Censuradas

O nome de yrcwnh wvy ou Jesus de Nazaré ocorre de maneira franca no Talmud de


Munique, sem os mascaramentos literários empregados pelo Talmud Bavli ou por seus edito-
res. Segundo David Instone-Brewer:

O Talmud de Munique é portanto a única cópia não censurada de todo o Talmud, embora tenha sido cen-
surado em alguns aspectos. O nome de Jesus e outras palavras são frequentemente muito apagadas, coo
se alguém tenha tentado apagá-las. Na passagem sobre o julgamento de Jesus as duas ocorrências do no-
me ‘Yeshu ha-Notzri’ forma parcialmente apagadas desta maneira, assim como partes dea passagem se-
guinte sobre os nomes dos seus discípulos. Porém, o hebraico original é ainda visível e foi reconstruído
pelo exame do manuscrito.79

Noutras vezes, os nomes de adjs !b (Ben Stada) e arydnp !b (Ben Pandira) são
empregados para se referir a Jesus de Nazaré, o que fica clara pela referência de Sanhedrin
67a, onde se lê que os dois nomes são usados em referência àquele “que foi crucificado na
Tarde de Pêssach,” mesma expressão usada em Sanhedrin 43a. No Talmud de Munique, esta
passagem encontra-se na página 697 e traz o seguinte texto, onde na reconstrução de HER-
FORD (1903, p. 406) a partir do manuscrito, as palavras hebraicas sublinhadas indicam o tex-

76
Ibid., p.67-68.
77
Os delegados convocados para a disputa permaneceram quase dois anos longe de suas casas e de suas comuni-
dades.
78
Ibid.
79
INSTONE-BREWER, David in JESUS OF NAZARETH’S TRIAL IN THE UNCENSORED TALMUD
to parcialmente apagado. Na seguinte tradução mantivemos o recurso de sublinhar as palavras
que no manuscrito hebraico foram quase apagadas:

‫ והכרוז יוצא לפניו‬.‫ והתניא בערב הפסח תלאוהו לישו הנרצרי‬:‫לא‬80


‫ארבעים יום ישו הנוצרי יוצא ליסקל‬

‫על שכישף והסית והדיח את ישראל כל מי שיודע לו זכות יבוא וילמד‬


‫עליו ולא מצאו לו זכות ותלאוהו בערב פסח‬
Não: Foi ensinado - Na Tarde de Pêssach eles crucificaram Yeshu Ha-Notzri e saiu o arauto a
proclamar por quarenta dias[que] Yeshu Ha-Notzri será apedrejado por feitiçaria, por enga-
nar e incitar Israel [a idolatria]. Quem quer que saiba [de algo que porventura possa ser usa-
do] em sua defesa, que venha e se pronuncie sobre ele. E ninguém veio em sua defesa, de mo-
do que o crucificaram na Tarde de Pêssach.

3.2 A Essência do Talmud

3.2.1 Método

Em termos da estrutura lógica de pensamento do Talmud, chamamos a atenção para al-


guns princípios subjacentes ao seu pensamento como identificados e exemplificados por
STEINSALTZ (1976, p. 227-233). Um conceito sob questão tem a ver com uma possível es-
trutura lógica interna do Talmud que o diferencia de outros sistemas lógicos de pensamento e
exposição. Isto levaria à conclusão de que um método especial de interpretação teria que ser
empregado para uma leitura legítima da Guemará. O primeiro destes princípios é a atitude de
evasão em relação à abstração. Há uma preferência pelo modelo concreto, em vez da abstra-
ção, típica da parábola, por exemplo, segundo WIMPFHEIMER (2011, p. 79-80). O resulta-
do, naturalmente, é a objetividade prática. Assim, um termo como ‘espiritualidade,’ por exem-
plo, dificilmente ocorrerá no Talmud. O que se vê são histórias e casos em que o conceito de
espiritualidade é tratado de modo concreto e objetivo.

Um segundo princípio subjacente ao sistema de pensamento do Talmud, segundo a ob-


servação de STEINSALTZ (1976, p. 230), é o tratamento para com as questões fundamentais.
Ele diz:

Um outro aspecto singular da discussão talmúdica é a atitude para com as questões fundamentais. A vi-
são básica do Talmud é sempre a de que o assunto sob discussão não é “lei,” no sentido sócio-legal do
termo, mas a elucidação dos fatos e situações reais de importância intrínseca. Esta atitude produz conse-
quências que são claramente evidentes no próprio Talmud. Uma destas conseqências é a falta de diferen-
80
Ibid.
ciação entre assutnos importantes e menores, entre o útil e o irrelevante. nenhum valor é atribuído à sig-
nificância prática ou básica de um determinado problema. O objetivo é chegar à verdade, que não pode
ser classificada em componentes por ordem de importância. Quando é necessário discutir a solução de
qeustões práticas, certas medidas restritivas são empregadas de modo a determinar a forma da discussão
pura de halachah. Mas o Talmud não trata exclusivamente com soluções legais que podem ser postas
em prática; qualquer problema que demande elucidação e envolva a busca da verdade é considerado co-
mo digno de análise.

O método de demonstração da verdade é o terceiro aspecto a ser observado no Tal-


mud, segundo STEINSALTZ (1976). O raciocinio lógico, matemático, presente e necessário
nas demais ciências, não terá valor no método talmúdico de exposição da verdade. O que de
fato interessa aos sábios é provar a validade de suas conclusões. Um mestre pode provar uma
certa verdade por meio de um método excelente de argumentação, o que não quer dizer que
outro mestre não possa, por um método mais simples e até improvável, provar o contrário, le-
vando à rejeição do método original e estabelecendo assim uma nova discussão. Este é o fun-
damento do raciocínio dialético do Talmud, ou Pilpul. A lógica deste raciocínio naturalmente
exclui qualquer resquício de “senso comum” nas discussões, validando como legítimo todo
método de argumento, sem que se exerça sobre ele qualquer juízo de valor.

Não há intrinsecamente no método talmúdico de argumentação e de exposição de uma


verdade um apelo necessário à historicidade de um fato específico, quando o objetivo é apre-
sentar a veracidade de um argumento envolvendo o suposto fato. Esta percepção do método
do Talmud se mostra eficaz na interpretação de muitas passagens que, caso sejam interpreta-
das dentro de um arcabouço no qual a historicidade dos fatos descritos seja necessária ao esta-
belecimento da verdade, resultaria em prejuizo da leitura. Por exemplo, a respeito da morte de
Balaam, o registro no livro de Josué (13.22) descreve o método empregado como tendo sido a
espada. O Rav diz o seguinte:

81
‫אמר רב שקיימו בו ארבע מיתות סקילה ושריפה הרג וחנק‬
Rav diz que eles realizaram nele quatro execuções: apedrejamento, fogo, decaptação, e es-
trangulamento.82

Evidentemente, a historicidade do método empregado na morte de Balaam não é o


ponto em questão nesta passagem, mas a ira dos filhos de Israel contra o profeta que os enga-
nara e os fizera pecar. Logo, assim como em outros gêneros literários, há elementos periféri-
cos na história cuja historicidade ou não-historicidade não estão em foco e não afetam a vera-

81
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
82
Sanhedrin 106b.
cidade do argumento. Os elementos apresentados na descrição talmúdica dos fatos que envol-
veram o julgamento e a morte de Jesus caem nesta mesma categoria. Não há acordo histórico
entro o que diz o Talmud e o relato dos Evangelhos do Novo Testamento.83 Entretanto, a histo-
ricidade dos fatos não está em questão no Talmud. Lado a lado, os relatos apresentam dispari-
dades:

Evangelho de Mateus Evangelho de Marcos Evangelho de Lucas Sanhedrin 43a


Por cima da sua cabeça E obrigaram a Simão Cire- Então, os soldados o leva- Um arauto sai à frente do
puseram escrita a sua acu- neu, que passava, vindo do ram para dentro do palá- homem [condenado] e não
sação: ESTE É JESUS, O campo, pai de Alexandre e cio, que é o pretório, e reu- é assim ensinado? [numa
REI DOS JUDEUS. E fo- de Rufo, a carregar-lhe a niram todo o destacamen- baraitah] Na Tarde de Pês-
ram crucificados com ele cruz. E levaram Jesus pa- to. Vestiram-no de púrpu- sach eles crucificaram a
dois ladrões, um à sua di- ra o Gólgota, que quer di- ra e, tecendo uma coroa de Yeshu Ha-Notzri e um
reita, e outro à sua esquer- zer Lugar da Caveira. De- espinhos, lha puseram na
arauto saiu diante dele
da. Os que iam passando ram-lhe a beber vinho com cabeça. E o saudavam, di-
[por] quarenta dias [dizen-
blasfemavam dele, me- mirra; ele, porém, não to- zendo: Salve, rei dos jude-
neando a cabeça e dizen- mou. Então, o crucifica- us! Davam-lhe na cabeça do] Yeshu Ha-Notzri será
do: Ó tu que destróis o ram e repartiram entre si com um caniço, cuspiam apedrejado por ter pratica-
santuário e em três dias o as vestes dele, lançando- nele e, pondo-se de joe- do feitiçaria, incitado Is-
reedificas! Salva-te a ti lhes sorte, para ver o que lhos, o adoravam. Depois rael [à idolatria] e desvia-
mesmo, se és Filho de levaria cada um. Era a de o terem escarnecido, do o povo. Qualquer que
Deus, e desce da cruz! De hora terceira quando o despiram-lhe a púrpura e souber [de algo que possa
igual modo, os principais crucificaram E, por cima, o vestiram com as suas ser usado] a favor dele de-
sacerdotes, com os escri- estava, em epígrafe, a sua próprias vestes. Então, ve vir e ensinar em favor
bas e anciãos, escarnecen- acusação: O REI DOS JU- conduziram Jesus para fo- dele. E não se achou [al-
do, diziam: Salvou os ou- DEUS. Com ele crucifica- ra, com o fim de o crucifi- guém para depor] em fa-
tros, a si mesmo não pode ram dois ladrões, um à sua carem. vor dele, eles o crucifica-
salvar-se. É rei de Israel! direita, e outro à sua es-
ram na Tarde de Pêssach.
Desça da cruz, e creremos querda. [E cumpriu-se a
nele. Confiou em Deus; Escritura que diz: Com
pois venha livrá-lo agora, malfeitores foi contado.]
se, de fato, lhe quer bem; Os que iam passando,
porque disse: Sou Filho de blasfemavam dele, me-
Deus. E os mesmos impro- neando a cabeça e dizen-
périos lhe diziam também do: Ah! Tu que destróis o
os ladrões que haviam si- santuário e, em três dias, o
do crucificados com ele. reedificas! Salva-te a ti
mesmo, descendo da cruz!

83
Versão Almeida Revista e Atualizada, Sociedade Bíblia do Brasil, 1993.
3.2.2 Antropologia / Ética

A antropologia da antiga literatura rabínica combina com o entendimento cristão do


homem quanto à sua origem. O homem é obra das mãos de Deus, formado a partir do pó da
terra, daí ser chamado de ~da ou aquele que veio da hmda, criado à imagem e semelhança
de Deus, no sexto dia da criação, segundo o relato bíblico de Gênesis 1.27.
Entretanto, segundo a interpretação dos sábios, a imagem de Deus no homem parece
estar associada diretamente à sexualidade. O homem é completo somente por causa da mu-
lher. A justaposição dos termos em Genesis 1.27 parece corroborar esta ideia por meio de um
paralelismo quiástico:
1 2 3 3 2 1

‫ויברא אלהים את ־האדם בצלמו בצלם אלהים ברא אתו זכר ונקבה ברא אתם‬

O homem também precisa ter terra para ser considerado homem de fato, segundo o texto da
Yevamot 63a

[Um recurso mnemônico]: Mulher, e terra, auxiliadora, isto, dois, as bênçãos, mercadores, bai-
xo. Rabi Elazar disse: Qualquer homem que não tenha uma esposa não é um homem, como es-
tá declarado: ‘Homem e mulher os criou e chamou o seu nome Adam” (Genesis 5.2). E Rabi
Elazar disse: Qualquer homem que não tenha terra não é homem, como foi declarado: ‘Os cé-
us são os céus do Senhor; mas a terra deu-a ele aos filhos dos homens’ (Salmos 115.16).

Uma divergência exegética é apresentada pelo Rabi Elazar quanto à natureza da mu-
lher criada para ser auxiliadora do homem:

E Rabi Elazar disse: O que significa o que está escrito: ‘Far-lhe-ei uma auxiliadora’ (Genesis
2.18)? Digno, o ajudará. Não digno, será contra ele. Rabi Elazar levantou uma contradição:
Está escrito: ‘contra ele’ [‫ ] כניגדו‬mas lemos ‘para ele’ [‫]כנגדו‬: Se ele for digno, ‘para ele’
[‫]כנגדו‬, se não, ‘contra ele.’84

O mesmo Rabi continua a apresentar suas considerações sobre a criação do homem,


afirmando algo muito improvável a respeito de Adão. Dizendo a Bíblia que após dar nome a
todos os animais que o Senhor lhe trouxera, Adão não encontrou alguém que lhe fizesse par.
O Rabi discorre sobre o “método” empregado por Adão para chegar a afirmar que a mulher
que Deus lhe deu era “osso dos meus ossos.”

84
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
E Rabi Elazar disse: O que significa o que está escrito: ‘Esta é agora osso dos meus ossos e
carne da minha carne’ (Genesis 2.23)? Ensina que Adão teve intercurso sexual com todos os
animais e bestas do campo e sua mente não se conformava, até que ele teve intercurso com
Eva.85

YEVAMOT 59b

Uma mulher que perdesse a virgindade seria considerada uma prostituta. A virgindade
da mulher é considerada de alto valor religioso, sobretudo no que diz respeito ao sacerdócio.

Se de acordo com Rabi Elazar, por que especificamente [ela está proibida a ele] porque ela
não é virgem? Deduz-se que ela é uma zoná como disse Rabi Elazar: Um homem não casado
que tem intercurso com uma mulher não casada não para o propósito de se casar com ela, ele
a transformou numa zoná.86

Rav Yosef disse: a [uma mulher] que tem intercurso sexual com um animal, [se torna desquali-
ficada] não como uma não-virgem, mas porque é zoná.

Abaye disse a ele: Se ela é não-virgem, ele é uma zoná, e se não é uma zoná, ela não é uma
não-virgem. E para que não digas comparado ao caso de uma mulher que perdeu sua virginda-
de por penetração por um objeto estranho, incomum. Sendo este o caso, não tens aí uma mu-
lher adequada para o sumo sacerdócio, que não tenha perdido sua virgindade por um objeto
estranho, por um seixo.

Um grupo de textos retrata algumas situações no mínimo esdrúxulas a respeito da ética


do matrimônio. Observe:

Outro principiou a dizer: Uma vez aconteceu que quarenta [...] custavam um dinar e então o
preço baixou. E eles conferiram e encontraram um pai e um filho que se engajaram em inter-
curso sexual com uma jovem noiva no dia de Yom Kippur. Eles [os] trouxeram à corte e o ape-
drejaram, e então o preço voltou ao normal.

Outro, começou a falar e disse: ‘Um caso envolvendo um homem que pôs os olhos na esposa
para divorciá-la, mas seu contrato era de alto preço. O que ele fez? Ele convidou seus amigos,
deu-lhes comida e bebida, os embriagou e os deitou numa cama.87 Trouxe a clara de um ovo88 e
colocou-a entre eles. Trouxe testemunhas. E os levou à corte.89

Um ancião dos discípulos do Rabi Shammai, o velho, estava ali, e seu nome era Bava Ben Bu-
ta. Ele lhes disse: Este é o que recebi de Shammai o velho: Clara de ovo se contrai [endurece]
pelo fogo. Eles conferiram e constataram de acordo com sua declaração. Eles trouxeram [o
marido] à corte, chicotearam-no e o fizeram pagar o contrato de casamento.

85
Ibid.
86
Ou seja, uma prostituta.
87
Juntamente com sua esposa que dormia.
88
Com a intenção de simular a emissão seminal.
89
Ele acusou injustamente a esposa de adultério, livrando-se da obrigação de lhe pagar o contrato de divórcio.
Nestes textos, a despeito da estranha linguagem, o alvo é estabelecer princípios mo-
rais, a fim de que o leitor se detenha não nos detalhes das pasagens, usados aqui como ele-
mentos de ilustração, mas nos ensinos éticos subjacentes aos textos.
A pena de morte é aplicada sumariamente ao que pratica a zoofilia. “Todo o que se
deitar com animal será morto.” Entretanto, o Rabi Shimi Bar Ḥiyya pensa diferente:

Rabi Shimi Bar Ḥiyya disse: [Uma mulher que] ‘teve intercurso sexual com um animal é ade-
quada ao sacerdócio.90 Também foi ensinado [Se uma mulher] ‘teve intercurso com algo que
não é homem,91 embora [sendo digna de] apedrejamento, ela é contudo apta para o sacerdó-
cio.

Quando Rav Dimi veio ele disse: ‘Um incidente uma certa garota em Hitlu que estava varren-
do a casa e um cão do vilarejo sodomizou-a por trás. E Rabi permitiu-a ao sacerdócio. Shmuel
disse: E até ao Sumo Sacerdote. Havia ali um sumo Sacerdote nos dias do Rabbi? Mas ela es-
tava apta para o Sumo Sacerdote.

YEVAMOT 60a

As questões envolvendo o sacerdócio são de difícil interpretação, também por causa


das questões morais envolvendo estupro e sedução de mulheres e crianças. Impressiona no
texto o modo como um assunto tão delicado é tratado como periférico de questões como o ca-
samento, por exemplo. Se uma mulher foi vítima de sedução e violência sexual, tudo o mais
deve ser periférico. Segundo a Torá,92 o tratamento dado a um homem que violentou uma mu-
lher ou que adulterou com ela por mútuo consentimento, é a pena de morte. Porém, os sábios
parecem tratar o assunto da violência de modo periférico na situação descrita abaixo:

Os sábios ensinaram: [O sumo Sacerdote] não deve se casar [com uma mulher] que ele mesmo
violentou e ele mesmo seduziu. E se casou, está casado. Violentada por outro e seduzida por
outro ele não pode desposá-la. E se a desposou, Rabi Eliezer Ben Ya’akov diz que o filho é um
ḥalal, e os Rabis dizem que a prole é imaculada.

Os sábios ensinaram: a irmã prometida, Rabi Meir e Rabi Yehuda dizem: Ele [o sacerdote] de-
ve se tornar impuro por ela. Rabi Yosei e Rabi Shimon dizem: Ele não se torna impuro por cau-
sa dela. Violentada ou seduzida, todos concordam, ele não se torna impuro por ela cujo hímem
foi rompido acidentalmente, ele não se torna impuro por ela. A declaração do Rabi Shimon, co-
mo diria o Rabi Shimon, [sendo a irmã] adequada ao Sumo Sacerdote, ele não se torna impuro
por causa dela.

90
Pois neste caso, a Guemará afirma que é como se ela tivesse perdido a virgindade acidentalmente, não sendo
pois considerada uma ‘zoná’ (ou prostituta).
91
Ou seja, um animal.
92
Devarim (Deuteronômio) 22.22-24
SANHEDRIN 55b
93
‫מדסיפא תקלה וקלון רישא תקלה בלא קלון והיכי דמי עובד כוכבים הבא על‬
‫הבהמה‬
Daquela frase última, calamidade e opróbrio. A primeira frase: calamidade e vergonha. De
que? Um gentio que se engaja em intercurso sexual com um animal.

94
‫דבעי רב המנונא ישראל הבא על הבהמה בשוגג מהו תקלה וקלון בעינן והכא קלון‬
‫איכא תקלה ליכא או דילמא קלון אע"פ שאין תקלה‬
Como pôs um dilema o Rav Hamnuna: um judeu que involuntariamente se engaja em intercur-
so com um animal. O que [é a halachah para isto]? Precisamos de calamidade e vergonha. Te-
mos aqui vergonha, mas não há calamidade, ou talvez vergonha [é suficiente] quando não há
calamidade?

SANHEDRIN 69b

A violência contra uma criança é tratada neste texto como algo banal. O estuprador
não somente não é punido, como passa a ter direitos de marido sobre uma menina na mais ten-
ra idade.

Rav Yosef diz: Vinde e ouvi [tendo uma garota] três anos de idade e um dia95 está com-
prometida pelo intercurso sexual e se o yavam se engaja em intercurso com ela, ele a
adquire [...]96

SANHEDRIN 69a

‫ומטמאה את בועלה לטמא משכב תחתון כעליון ניסת לכהן אוכלת בתרומה בא‬
97
‫עליה אחד מן הפסולים פסלה מן הכהונה‬
E ela transmite impureza98 àquele que se engaja em intercurso sexual com ela, que torna impu-
ros como. [Se] Ela se casar com um sacerdote, pode compartilhar de uma terumá, alguém ina-
dequado se engaja em intercurso sexual com ela, está desqualificado para o sacerdócio.

SANHEDRIN 55b
93
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
94
Ibid.
95
Esta garota teve seu noivado arranjado pelo pai.
96
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
97
Ibid.
98
A impureza neste caso se refere à menstruação.
99
‫ואם בא עליה אחד מכל העריות האמורות בתורה מומתין על ידה והיא פטורה‬

E se algum daqueles com quem as relações são proibidas,100 como declarado na Torá, se enga-
jou em intercurso sexual com ela, eles serão executados por causa dela e ela estará isenta.

O divórcio é tratado no caso de uma relação sexual com uma criança de nove anos que
contrai obrigações matrimoniais pelo ato do sexo:

Rava diz: Vinde e ouvi [Se um menino de] nove anos e um dia que se engajou em intercurso
com sua yevama,101 ele a adquiriu, mas ele não pode lhe dar carta de divórcio até que alcance
a maioridade. Ele se torna ritualmente impuro como uma mulher menstruada torna impuros.102

3.3. A Estrutura do Talmud

Fundamentalmente, o Talmud se divide em duas partes principais que são: a Mishná


escrita em hebraico, e a Guemará, escrita predominantemente em aramaico, língua dos povos
arameus há 3000 anos. A Mishná é a Lei Oral em si, ou p¹[bXwt e compreende tudo que foi
transmitido oralmente desde Moisés, autor da Torá Escrita k¹bXwt até o Rabi Judá HaNasi, o
Príncipe (130-220 a.D.), que a registrou por escrito. A segunda parte do Talmud chama-se
Guemará, ou tradição. Esta se constitui um comentário à Mishná. GÍGLIO (2000, p. 74-77)
apresenta e explica com brevidade os vinte e um componentes básicos da Guemará como: 1)
Tosefta (adição) ou material mishnaico não incluído na Mishná, mas aceito como lei; 2) Be-
raita (material externo) incluindo todo o material mishnaico transmitido pelos sábios após a
edição da Mishná; 3) Perush (explicação) elucidação de assuntos contidos na Mishná, geral-
mente iniciada pelas palavras “o que é isto?,” seguidas pela explicação; 4) Sheelá, ou pedido
para que se promulgue uma lei; 5) Teshuvá resposta dada à Sheelá, estabelecida como lei; 6)
Cushiá (dificuldade) uma objeção levantada contra uma opinião de um Amorá através de uma
citação (aparentemente) conflitante; 7) Resolução é uma resposta dada para resolver uma difi-
culdade; 8) Refutação de uma lei por meio de provas claras, onde a lei é decidida de acordo
com a força das provas; 9) Apoio, quando uma fonte é citada para corroborar uma determina-
da lei; 10) Contradição, ou uma aparente contradição entre duas afirmativas; 11) Necessida-
de, é uma demonstração de que cada uma de duas ou mais afirmativas aparentemente simila-

99
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
100
Entenda-se aqui casos de incesto.
101
A viuva de seu irmão.
102
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
res é necessária em determinada fonte; 12) Ataque, ou objeção; 13) Caso, citação de um fato
real no qual se registra uma decisão; 14) Tradição, dito popular que traz informação sobre um
assunto legal; 15) Suguiá, passagem da Guemará contendo perguntas e respostas; 16) Hilche-
ta, decisão tomada em disputa; 17) Teicu, ocorre quando na Guemará há dúvida sobre algum
ponto da Halachá e não há definição. ‘Teicu’ significa literalmente “deixa estar;” 18) Inter-
pretação, quando uma contradição é encontrada a respeito de uma fonte aceita e o sábio tenta
reinterpretá-la para evitar contradições futuras; 19) Agadá, aplica-se a tudo que é mencionado
na Guemará e que não possua um caráter diretamente haláchico de uma passagem; 20) Ensi-
no, tradição em relação a um mandamento pronunciado pelos sábios; 21) Shitá, vários sábios
individuais, cada um deles emitindo uma opinião semelhante e citdaos em grupo na Guemará.
A organização do Talmud se dá por meio de Sederim (heb “ordens,” ou divisões) e tra-
tados (livros). A ordem seguinte segue a publicação da Editora Soncino nos anos 1935-1948.
O Talmud de Soncino tem aproximadamente 12.800 páginas, sem contar as introduções, índi-
ces, e glossários. As seis ordens ou Sederim são:

‫זרעים‬ ‫מועד‬ ‫נשים‬ ‫נזיקין‬ ‫קדשים‬ ‫טהרות‬


Sementes Estações Mulheres Danos Coisas Sagradas Pureza

3.3.1 Seder Zera‘im (Sementes: 11 tratados)


Todas as leis relacionadas à agricultura e às colheitas de Israel; entrega das ofertas
aos sacerdotes e levitas; ofertas aos pobres.
Berakoth (Bênçãos: 9 capítulos, 64 folios, 405 páginas)
Pe‘ah (Ponta: 8 capítulos, 46 páginas)
Demai (Dúvida: 7 chapters, 82 páginas)
Kil‘ayim (Misturas: 9 capítulos, 68 páginas)
Shebi‘ith (Sétimo: 10 capítulos, 52 páginas)
Terumoth (Ofertas Alçadas: 11 Capítulos, 57 páginas)
Ma‘aseroth (Dízimos: 5 capítulos, 29 páginas)
Ma‘aser Sheni (Segundo Dízimo: 5 capítulos, 33 páginas)
Hallah (Massa 4 capítulos, 40 páginas)
‘Orlah ('Incircuncisão', sc. de árvores: 3 capítulos, 29 páginas)
Bikkurim (Primeiros Frutos: 4 capítulos, 4 folios, 24 páginas)
3.3.2 Seder Mo‘ed (Estações: 12 tratados)
Todas as leis relevantes ao Shabbat, os festivais, dias de jejum, e outros feriados signi-
ficantes.

Shabbath (Sábado: 24 capítulos, 157 folios, 806 páginas)


‘Erubin (Misturas: 9 capítulos, 105 folios, 733 páginas)
Pesahim (Cordeiros de Pêssach: 10 capítulos, 121 folios, 623 páginas)
Yoma (O Dia: 8 capítulos, 88 folios, 441 páginas)
Sukkah (Tenda: 5 capítulos, 56 folios, 27 páginas)
Beitzah (Ovo: 5 capítulos, 40 folios, 203 páginas)
Rosh Hashana (Ano Novo: 4 capítulos, 35 folios, 174 páginas)
Ta‘anith (Jejum: 4 capítulos, 31 folios, 165 páginas)
Shekalim103 (Shekels: 8 capítulos, 36 páginas)
Megillah (O Rolo: 4 capítulos, 32 folios, 195 páginas)
Mo‘ed Katan (Festa Menor: 3 capítulos, 29 folios, 192 páginas)
Hagigah (Oferta do Festival: 3 capítulos, 27 folios, 171 páginas)

3.3.3 Seder Nashim (Mulheres: 7 tratados)


Todas as leis pertinentes ao relacionamento conjugal marido/esposa, começando com
a cerimônia do casamento, passando pelo adultério, incesto, divórcio, votos, e propriedade.
Yebamoth (Cunhadas: 16 capítulos, 122 folios, 871 páginas)
Kethuboth (Contextos de Casamento: 8 capítulos, 112 folios, 728 páginas)
Nedarim (Votos: 9 capítulos, 91 folios, 283 páginas)
Nazir (Nazireado: 9 capítulos, 66 folios, 253 páginas)
Sotah (Suspeita de Adultério: 9 capítulos, 49 folios, 271 páginas)
Gittin (Cartas de Divórcio: 9 capítulos, 90 folios, 439 páginas)
Kiddushin (Consagrações: 4 capítulos, 82 folios, 425 páginas)

3.3.4 Seder Nezikin (Danos: 10 tratados)


Todas as leis considerando a jurisprudência civil e a lei penal; cortes Rabínicas; erros
de julgamento; votos; punições, etc. A lei de crimes religiosos também será tratada nesta or-
dem.
Baba Kamma (Primeiro Portão: 10 capítulos, 119 folios, 719 páginas)

103
Moeda, conhecida nas versões da Bíblia em português como ‘siclo.’
Baba Mezi‘a (Portão do Meio: 10 capítulos, 119 folios, 676 páginas)
Baba Bathra (Último Portão: 10 capítulos, 176 folios, 780 páginas)
Sanhedrin (Corte Judicial: 11 capítulos, 113 folios, 781 páginas)
‘Abodah Zarah (Adoração Estranha: 5 capítulos, 76 folios, 366 páginas)
Horayoth (Regras: 3 capítulos, 14 folios, 106 páginas)
Shebu‘oth (Juramentos: 8 capítulos, 49 folios, 309 páginas)
Makkoth (Açoites: 3 capítulos, 24 folios, 175 páginas)
‘Eduyyoth (Testemunhos: 8 capítulos, 50 páginas)
Aboth (Pais: 6 capítulos, 91 páginas)

3.3.5 Seder Kodashim (Coisas Sagradas: 11 tratados)


Todas as leis pertinentes ao templo e seus sacrifícios; leis do sacrifício ritual; alimentos kos-
her e não-kosher.
Zebahim (Ofertas-animais: 13 capítulos, 120 folios, 596 páginas)
Menahoth (Ofertas-cereais: 13 capítulos, 110 folios, 682 páginas)
Hullin (Não-santificado: 11 capítulos, 142 folios, 825 páginas)
Bekoroth (Primícias: 9 capítulos, 61 folios, 418 páginas)
‘Arakin (Estimativas: 9 capítulos, 34 folios, 204 páginas)
Temurah (Substituição: 7 capítulos, 34 folios, 253 páginas)
Kerithoth (Excisões: 6 capítulos, 28 folios, 220 páginas)
Me‘ilah (Transgressão: 6 capítulos, 22 folios, 86 páginas)
Tamid ([A Oferta] Contínua: 7 capítulos, 33 folios, 38 páginas)
Middoth (Dimensões: 5 capítulos, 23 páginas)
Kinnim (Ninhos [Pássaros]: 3 capítulos, 24 páginas)

3.3.6 Seder Tohoroth (Pureza: 12 tratados)


Todas as leis de purificação ritual e de impureza; os ciclos mentruais das mulheres; pureza
familiar.
Niddah (A Mulher Menstruada: 10 capítulos, 73 folios, 509 páginas)
Kelim (Vasos: 30 capítulos, 142 páginas)
Oholoth (Tendas: 18 capítulos, 86 páginas)
Nega‘im (Lepras: 14 capítulos, 70 páginas)
Parah (Novilha: 12 capítulos, 58 páginas)
Tohoroth (Pureza: 10 capítulos, 60 páginas)
Mikwa'oth (Tanques de Imersão: 10 capítulos, 46 páginas)
Makshirin (Predisposições: 6 capítulos, 36 páginas)
Zabim (Os Que Sofrem de Fluxo: 5 capítulos, 24 páginas)
Tebul Yom (Imerso no Dia: 6 capítulos, 20 páginas)
Yadayim (Mãos: 4 capítulos, 26 páginas)
Ukzin (Hastes: 3 capítulos, 20 páginas)
4. TALMUD VERSUS CRISTIANISMO: UMA QUESTÃO DE INTERPRETAÇÃO?

O contexto sócio-religioso da produção escrita da Mishná e da Guemará é claramente


o de uma rixa acentuada entre a igreja e a sinagoga. Segundo MULLER (2009, p. 181-199),
documentos oficiais dos dois primeiros séculos da era cristã dão conta de uma animosidade re-
ciprocamente alimentada. As disputas entre cristãos e judeus se perpetuaram por séculos, se-
gundo BRAUDE (1952) em todos os âmbitos da sociedade palestina mas também em qual-
quer outra região do mundo romano onde judeus e cristãos fossem forçados à convivência, se-
gundo KESSLER (2010). No Birchat Ha-Shacher (heb “Bênção da Manhã”) há um trecho da
prece em que o judeu agradece por não ter nascido goy (heb “gentio”) “Bendito sejas tu, Se-
nhor nosso Deus, Rei da eternidade, que não me fizeste gentio.”104

Flavio Josefo registra que era corrente que os judeus de Alexandria tinham tomado vo-
to deliberado de jamais mostrar qualquer misericórdia para com um gentio e que as cerimôni-
as religiosas judaicas começavam com o sacrifício anual de um gentio.105 BARCLAY (1958,
p. 11) escreve:

Os amigos de Antiochus Sidetes insistiram com ele para que exterminasse os judeus porque “de todas
as somente eles se recusam a ter comunhão e relação com outras nações e reputam todos os homens por
inimigos” (Diodorus Siculus 31: i, i). Josephus cita a acusação de certo Lysimachus de que Moisés teria
proibido os judeus de mostrarem boa vontade para com os homens e que também os havia proibido de
darem bons conselhos, mas somente maus conselhos, e que os teria exortado a que destruissem todos os
altares e templos de deuses que pudessem encontrar. O próprio Apion afirmou que os judeus tinham ju-
rado pelo Deus dos céus e da terra e do mar jamais mostrarem boa vontade para com qulquer homem de
outra nação, e especialmente para com os gregos (Josephus, Against Apion, I:34; 2:10).

4.1 Citações Diretas do Talmud ao Cristianismo

Um dos principais líderes do crstianismo do primeiro século, o apóstolo Paulo, é men-


cionado na Guemará,106 que parece dar margem a uma confusão que se estabeleceu entre os
nomes de Paulo e Simão o Mago. A Escola de Tübingen desenvolveu a teoria de que o após-
tolo Paulo e Simão o mago, ambos citados no Novo Testamento e na literatura patrística eram
exatamente a mesma pessoa, sendo Simão o Mago nada mais do que um apelido jocoso dado
ao apóstolo Paulo por seus antagonistas judeus. Embora estudos posteriores tenham revelado
ser Simão o Mago uma personalidade histórica, não um simples codinome, vamos conferir as
passagens da literatura rabínica que supostamente se referem ao apóstolo de Tarso. A figura

104
SIDUR TEFILAT KOL PEH ‘ym haqeryot sefarad, Jerusalém, Eshkol J. S. Weinfeld, p. 13.
105
Josephus, Against Apion, 2, 8, 10.
106
HIRSCHBERG, Harris, in “ALLUSIONS TO THE APOSTLE PAUL IN THE TALMUD” The Journal of
Biblical Literature.
do apóstolo Paulo se faz importante na discussão das passagens do Talmud a respeito de Jesus
de Nazaré porque, segundo estudiosos judeus, entre eles o Rabi Michael Skobac,107 afirmam
que Jesus e seus discípulos jamais se apartaram do judaismo, tendo se mantido observadores
da Torá e que, somente depois de Paulo, esse sim, apóstata do judaismo, os judeus seguidores
de Cristo foram ensinados a se apartarem da Lei de Moisés. Na Mishná Yoma III, 6 encontra-
mos uma menção a uma câmara do Templo chamada ‫בית הפרוה‬. Na Guemará do Talmud Bavli
que trata desta passagem da Mishná, é dito que ‫ פרוה‬significa “mago.”108 Coincidentemente, o
termo Parva (que não possui origem hebraica ou aramaica), provavelmente de origem latina,
é o sinônimo de Paulus. O caráter vago da afirmação, porém, não é suficiente para que se pos-
sa afirmar que as passagens sobre ‫ פרוה‬se referem mesmo ao apóstolo Paulo.
O Avodah Zarah 22b menciona “não-judeus” como pessoas contaminadas de pecados
e faz uma menção a Maria “mãe de deus,” dizendo:

Penso termos ouvido aqui um entendimento rabínico ontológico de não-judeus, que ecoa em muitas cul-
turas tentando delinear e separá-los de quem quer que os defina como “os outros.” Não-judeus são pes-
soas ireparavelmente carregadas de luxúria. Esta terrível contaminação é sua herança genética desde os
tempos de Eva, e nela foi inoculada pela serpente [sim, penso que isto seja uma alusão sexual.] Assim,
todos os não-judeus são cheios de incontrolável luxúria [...] Por todo o período medieval os cristãos
identificaram os judeus com eva, que caiu, enquanto os cristãos eramidentificados com Maria, mãe de
deus, redimida do pecado original através de Cristo [...].

No Sefer HaIkkarim, Maamar 3 25:26 lemos a respeito de Jesus de Nazaré e seus dis-
cípulos em seu tratamento da guarda do Shabbat,

‫ובירידת המן נראה אות אמת שיום השבת בעצמו קדוש בכח אלהי לא מצד המנוחה‬
,‫ ועל כן אמר הכתוב ראו כי ה׳ נתן לכם את השבת וגו׳‬,‫בלבד כהנחות הנימוסיות‬
‫כלומר כי בהיות המן יורד בששת ימי השבוע ולא ביום השבת והיותו יורד בששי לחם‬
‫ ולזה אי‬,‫ הוא אות מורה על קדושת השבת בעצמו ושהוא מאת ה׳ מן השמים‬,‫יומים‬
‫ וכל שכן שהיא אחת מעשרת הדברות והיא מצוה שקימוה‬,‫אפשר לשום אדם לבטלו‬
‫ישו וכל תלמידיו‬
A descida do maná é um sinal válido de que o dia do sábado é essencialmente santo pelo poder
de Deus e não apenas pelo descanso, como seria o caso de uma regra convencional estabeleci-
da pelo homem. Portanto, a Bíblia diz: “Veja que o Senhor lhe deu o sábado ...” O significado
é que, quando o maná desceu nos seis dias da semana e não no sábado, e no sexto dia, desceu
em dobro a quantidade , este era um sinal da santidade essencial do dia de sábado e de sua
origem divina. Ninguém pode aboli-lo, especialmente porque é um dos dez mandamentos. Je-
sus e todos os seus discípulos observaram o sábado[...]

107
Palestra disponível em formato de vídeo em https://www.youtube.com/watch?v=jVr6ouBA-3Q acessado em
15 de agosto de 2019.
108
Shabbat 75a.
Nesta passagem do Sefer Halkkarim é importante notarmos a menção a Jesus de Naza-
ré como Yeshu, uma vez que esta abreviação do nome de Yeshua é usada para negar que a re-
ferência seja ao mesmo Jesus de nazaré.

4.2 Citações Diretas do Talmud a Jesus de Nazaré

Tendo essas passagens contribuído para um movimento de censura, bem como para to-
do um histórico de perseguições à literatura rabínica, como tratado de forma breve e pontuada
neste trabalho, é necessário dizer que, quase como reação natural, algumas autoridades do ju-
daísmo moderno negam que tais passagens sob acusação sejam de fato insultos a Jesus de
Nazaré. Entretanto, mui dificilmente estas passagens teriam causado tanto barulho na Europa
medieval caso se tratassem de simples coincidência com o nome do Jesus do cristianismo.
Igualmente, não teriam sido alvo de censura das próprias autoridades judaicas. Iniciaremos,
portanto, esta seção apresentando parte da argumentação da erudição judaica a respeito das
passagens talmúdicas que fazem referência a Jesus de Nazaré.
O primeiro e mais comum argumento, também apresentado pelo Rabi Skobac em pal-
estra mencionada acima, consta da afirmação de que o nome de Jesus era muito comum no
primeiro século. JOSEPHUS (2017), por exemplo, menciona pelo menos vinte pessoas com
este nome. O Novo Testamento109 também menciona outro “Jesus” que não o Rabi de Nazaré.
O mesmo princípio de argumentação se aplica à forma abreviada Yeshu. Entretanto, é dito
também que a forma Yeshu poderia ser uma pecha, onde wvy seria um acróstico para wrxzw wmv
xmy significando “Que sejam apagados seu nome e sua memória,” o que, embora sem evidên-
cia robusta, corrobora com a ideia de um sentimento de inidsposição para com Jesus de Naz-
aré.
Uma segunda linha de argumentação, pontualmente considerando o episódio da cruci-
ficação de Yeshu em Sanhedrin 43a, passagem traduzida abaixo, questiona simplesmente o
momento da crucificação, a tarde de Pessach, sem negar os outros detalhes da passagem que
apontam diretamente para Jesus de Nazaré, como será analisado na tradução da passagem.
As citações da Guemará a Jesus de Nazaré são hoje discutidas e postas à prova por
parte da erudição judaica, após milênios de desenvolvimento do pensamento e do sentimento
antissemita que não encontra legitimação no cristianismo bíblico, a despeito do mal-estar pro-
vocado por nomes e autoridades de destaque no cristianismo católico romano e também pro-
109
Epístola de Paulo aos Colossenses 4.11: “e Jesus, conhecido por Justo, os quais são os únicos da circuncisão
que cooperam pessoalmente comigo pelo reino de Deus. Eles têm sido o meu lenitivo.”
testante.110 Apesar do sentimento anticristão por parte da religião judaica, o Novo Testamento
não pode jamais ser entendido como um documento antissemita, uma vez que registra as per-
seguições sofridas pelos primeiros cristãos sem expressar qualquer juízo de valor contra os ju-
deus.111 ECKER (1884) fala do Deus encarnado dos cristãos como um judeu. O judeu Jesus de
Nazaré, como disse a profecia de Isaías, “era desprezado e o mais rejeitado entre os homens...
como um de quem os homens escondem o rosto” (Isaías 53.3). A animosidade em relação a
Jesus e à seita do Caminho naturalmente se refletiria num documento como a Guemará. Mais
do que historicamente compreensível, um tratamento acintoso contra Jesus era esperado, dada
a atitude de desprezo e ódio da parte de muitos judeus, também registrada no Novo Testamen-
to. Ocasião houve quando a origem do poder de Jesus de Nazaré sobre os demônios foi atri-
buída a Baal Zvuv.112 Mateus 12.22-24, diz:

110
A partir do ano 315 a.D., com o Edito de Milão, após a conversão do imperador Constantino ao cristianismo,
a sanha dos imperadores romanos que perseguiu com ânimo incansável os cristãos, voltou-se de repente contra
os judeus, que tiveram todos os seus direitos cassados pelo estado. O concílio de Niceia, 325 a.D., tornou a viuda
ainda mais difícil para os judeus ao criminalizar a conversão ao judaismo e decretar como heresia as observ-
âncias judaicas. No ano 339 o imperador Constantino decretou que todo casamento entre cristãos e judeus, e a
circuncisão de escravos cristãos fosse punida com a morte. No ano 391 a.D., o cristianismo foi declarado como
religião oficial do império. A partir daí observar-se-á ua onda crescente de perseguição que se traduzia em
conversões e batismos forçados. A perseguição se espalhou por regiões como Espanha, Constantinopla, Itália, e
outros países. No século XI, o Papa Urbano II (1095) convocou uma expedição católica a fim de retomar a terra
santa, capturada pelos árabes. Apesar do alvo das Cruzadas ser os árabes, muitos judeus foram espoliados e mor-
tos. A inquisição espanhola, iniciada no ano de 1478 e perdurando até o anos de 1834, convocada pelo Papa Six-
tus IV, deu continuidade à perseguição aos judeus. A ideia do tribunal do Santo Ofício era caçar os judeus que,
tendo sido forçados à conversão cristã e ao batismo, não praticavam sua nova fé, ou que porventura ainda prati-
cassem às ocultas suas tradições judaicas proibidas. Vistos pelo rei Ferdinando e a rainha Isabela como maus ex-
emplos para os novos cristãos recém convertidos, mais de 100.000 judeus fugiram para Portugal, onde se sentir-
am seguros até o dia que o rei Manoel I assinou um contrato de casamento com a infanta Isabela da Espanha.
Um dos itens do contrato de casamento era a expulsão de todos os judeus de Portugal. A inquisição portuguesa
teve início em 1536 e perdurou até 1821.
Martinho Lutero (1483-1546) também perseguiu os judeus por meio de seus escritos. Testemunhando o
poder do livro sobre o indivíduo e a sociedade, a obra Von den Juden und Ihren Lügen (“Dos Judeus e Suas Men-
tiras”) não somente revelou o sentimento negativo do reformador em relação aos judeus, mas também produziu
maus frutos.
De 1932 até o fim da Segunda Grande Guerra, Julius Streicher dirigiu o jornal nazista Der Stürmer, im-
portante veículo de propaganda nazista, anticomunista, e antissemita, de grande circulação nas américas, em paí-
ses como Estados Unidos, Canadá, Argentina, e Brasil. Streicher pedia em seu jornal a aniquilação dos judeus.
Em seu julgamento em Nuremberg (23 de maio de 1945), Streicher apelou para os escritos de Lutero em sua de-
fesa, afirmando que jamais dissera em seu jornal algo que o reformador não tivesse dito ou escrito contra os ju-
deus. Streicher foi sentenciado à morte.
Um excerto do capítulo 15 do livro Von den Juden und Ihren Lügen, diz: “Primeiro, incendiai suas sina-
gogas ou escolas e enterrai e cobri com sujeira o que não se queimar, de modo que ninguém jamais veja uma pe-
dra ou cinza deles. Isso deve ser feito em honra de nosso Senhor e da cristandade, para que Deus possa ver que
somos cristãos, e não mostramos conivência ou conscientemente toleramos tal mentira pública, maldição ou
blasfêmia contra seu filho e seus cristãos.”
111
O livro de Atos dos Apóstolos narra as inúmeras e intensas perseguições dos judeus aos cristãos, começando
pelo apóstolo Paulo, egresso do judaismo. As referências bíblicas a seguir não mencionam qualquer juízo de val-
or sobre as perseguições sofridas pelos cristãos: Atos dos Apóstolos 9.23; 10.39; 11.19; 13.50; 14.2-5; 14.19;
17.5, 13; 18.12; 20.3, 19; 21.11, 21, 27; 22.30; 23.12, 27; 24.5, 9, 27; 25.2-10, 15, 24; 26.2, 7, 21; 28.19, 29.
112
Baal Zvuv, ou “senhor das moscas,” é um título extraído de uma onomatopeia do ruído produzido pelas asas
da mosca varejeira, “zvuv.” Baal Zvuv é o nome dado ao maioral dos demônios, cuja transliteração em português
nos é conhecida como “Belzebu.”
Então, lhe trouxeram um endemoninhado, cego e mudo; e ele o curou, passando o mudo a falar e a
ver. E toda a multidão se admirava e dizia: É este, porventura, o Filho de Davi? Mas os fariseus, ou-
vindo isto, murmuravam: Este não expele demônios senão pelo poder de Belzebu, maioral dos demô-
nios.

O Talmud não somente corrobora o pensamento dos perushim mencionado no Evange-


lho Segundo Mateus, como vai além, estabelecendo uma relação natural entre Jesus e Satanás.
Um dos nomes atribuídos a Jesus de Nazaré no Talmud é Ben Stada.113 Aparentemente, Stada
nada significa, não tendo o termo tradução conhecida. A expressão adjs !b pode ser um es-
crúpulo judaico para não escrever o nome blasfemo de Satanás,114 mas uma leve alteração da
letra dálet pela letra nun resultaria na expressão anjs !b (filho de Satanás),115 implicando
que Jesus seria um herege, praticante de feitiçarias. Se este for um caso de ketib e qerê, o lei-
tor poderia muito bem deduzir anjs !b ao ler adjs !b.
Como dito acima, a expressão Ben Stada sugere muito mais do que uma simples ori-
gem satãnica do poder de Jesus sobre os demônios, insinuando uma personalidade demoníaca,
por mais absurdo que isto possa parecer. Das discussões de Jesus com alguns perushim de se-
us dias, entretanto, pode revelar esse tipo de tratamento atribuído a Jesus por alguns líderes re-
ligiosos. Os Evangelhos sinóticos registram um questionamento de Jesus a um grupo dos pe-
rushim: “Então, convocando-os Jesus, lhes disse, por meio de parábolas: Como pode Satanás
expelir a Satanás?,”116 questionamento este que pode ter sido provocado por algum insulto di-
rigido a Jesus associando-o a Satanás, ou Baal Zvuv. É seguro que nos séculos seguintes, com
o crescimento e expansão do cristianismo, as divergências e animosidades entre judeus e cris-
tãos cresceram, tornando-se cada vez mais acirradas. Se no primeiro século, quando o cristia-
nismo era visto ainda como uma seita inexpressiva e sem maiores consequências, Jesus foi as-
sim tratado por parte da liderança judaica, não é preciso muita imaginação para se supor como
ele seria tratado nos escritos judaicos séculos mais tarde, quando a inimizade entre as duas re-
ligiões se encontrava mais viva do que nunca.

113
Shabbat 104b; Sanhedrin 67a; Toseftá Hullin 2, 23; Sanhedrin 43a; Toseftá Shabbat 11, 15.
114
LAIBLE, H., Jesus Christus im Talmud Der Tamudischen Texte Mitgeteilt von Lic. Dr Gustaf Dauman Berlin
Reuthers Verlagsbuchhandling.
115
Esta interpretação, entretanto, é questionada por um Rabi que afirmou ser adjs o nome da mãe de Jesus, por
causa da semelhança com a palavra hjws cujo significado é ‘infiel.’ Mas outros mestres afirmam que o nome de
sua mãe era de fato Mirian—i.e. Maria (Shabbat 104b)
116
Evangelhos Sinóticos: Segundo Marcos 3.23; Segundo Mateus 12.22-23; Segundo Lucas 11.18.
O Manuscrito do Talmude de Munique117 de Sanhedrin 43a traz um registro do julga-
mento e condenação de Jesus de Nazaré ou ‘Yeshu Notzri.’ Ao texto que diz: “Na Tarde de
Pêssach crucificaram Yeshu Notzri por feitiçaria e por ter desgarrado Israel,” outras tradi-
ções teriam sido acrescentadas para justificar, dentre outras dificuldades, o fato de Jesus de
Nazaré ter sido condenado durante uma festa. Passamos agora a apresentar os textos da Mish-
ná ou da Guemará que fazem referência direta a Jesus de Nazaré, na maioria das vezes sob a
alcunha de Ben Stada ou Ben Pandira. Nalgumas vezes há confusão quanto a estes nomes.
Vejamos cada um destes textos, na transcrição hebraica com tradução.

2.1 SHABBAT 104b

118
‫ תניא אמר להן רבי אליעזר לחכמים והלא בן סטדא הוציא‬:‫המסרט על בשרו‬
:‫כשפים ממצרים בסריטה שעל בשרו אמרו לו שוטה היה ואין מביאין ראיה מן השוטים‬
‫בן סטדא בן פנדירא הוא אמר רב חסדא בעל סטדא בעל פנדירא‬
‫אמו מרים מגדלא שער נשיא‬
Sobre aquele que marca sua própria carne: Ensinou-lhes dizendo o Rabi Eliezer aos sábios:
E não foi porventura Ben Stada que trouxe do Egito feitiçaria por meio de marcas sobre sua
carne? Ele era um tolo e não se pode apresentar provas vindas de um tolo. Ben Stada Ben
Pandira, disse o Rabi Chisda. [de sua mãe o] marido era Stada [mas o amante de sua mãe] o
marido Pandira... Sua mãe Miriam que trançava os cabelos das mulheres.

A referência neste texto é à origem de Jesus de Nazaré como tendo aprendido no Egito
artesde encantamento e profanação. Embora o assunto seja ainda alvo de especulação, em vir-
tude de nenhum documento antigo do Egito sobre tatuagens ter sobrevivido, egiptólogos en-
tendem que as marcas sobre a carne condenadas no Talmud seriam sinais de culto à deusa
Hathor, adorada como a divindade da fertilidade. Não há acordo sobre o assunto. Mas o nosso
interesse aqui é destacar a acusação de feitiçara a Ben Stada, além da pecha de infidelidade à
sua mãe. “Miriam, que trançava os cabelos das mulheres,” é uma referência muito específica,
como que a não deixar dúvida a respeito de quem se falava.

117
STRACK, H. L., e STEMBERGER, G., Introduction to the Talmud and Midrash Edinburgh: T&T Clark,
1991 p. 227-230. Redigido no ano de 1343, este é um dos pouquíssimos manuscritos que sobreviveram antes da
invenção da imprensa em 1500. Sua importância reside no fato de conter parte do material que foi censurado nas
várias edições impressas do Talmud. Muitos destes arquivos e fragmentos dizem respeito a Jesus de Nazaré.
118
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
2.2 SANHEDRIN 67a

119
‫כיצד עושין לו מדליקין לו את הנר בבית הפנימי ומושיבין לו עדים בבית החיצון כדי‬
‫שיהו הן רואין אותו ושומעין את קולו והוא אינו רואה אותן והלה אומר לו אמור מה‬
‫שאמרת לי ביחוד והוא אומר לו והלה אומר לו היאך נניח את אלהינו שבשמים ונעבוד‬
‫עבודת כוכבים אם חוזר בו מוטב ואם אמר כך היא חובתנו וכך יפה לנו העדים‬
‫ששומעין מבחוץ מביאין אותו לבית דין וסוקלין אותו‬
Como fazer [isto] a ele? Acendei para ele uma candeia na câmara interior e disponde teste-
munhas a ele na cãmara ao lado de modo que possam vê-lo e ouvir sua voz e ele não os possa
ver. E o outro o dirá a ele: ‘Diz o que me disseste na reclusão.’ E dirá a ele [sobre a idola-
tria] E o outro dirá a ele: ‘Como poderíamos abandonar nosso Deus dos céus e adorar ído-
los?’ Se ele se retratar, isto é bom. Mas se disser; ‘Esta é a nossa tarefa, e isto nos convém,’
os que estiverem ouvindo-o do lado de fora tragam-no à corte e o apedrejem[...]

120
‫וכן עשו לבן סטדא בלוד ותלאוהו בערב הפסח‬
[...]E assim fizeram a Ben Stada e o crucificaram na Tarde de Pêssach.

A referência a Ben Stada como uma menção a Jesus de Nazaré é corroborada pelos de-
talhes da passagem, como o modo de execução por crucificação e o tempo desta execução. No
texto a seguir, esses detalhes se somam a outros e ao nome Yeshu, tornando o argumento mais
robusto em favor da ideia de que também nesta passagem é Jesus de Nazaré que está sendo re-
tratado.

2.3 SANHEDRIN 43a

121
‫וכרוז יוצא לפניו לפניו אין מעיקרא לא והתניא בערב הפסח תלאוהו לישו והכרוז‬
‫יוצא לפניו מ' יום ישו יוצא ליסקל על שכישף והסית והדיח את ישראל כל מי שיודע לו‬
‫זכות יבא וילמד עליו ולא מצאו לו זכות ותלאוהו בערב הפסח‬
Um arauto sai à frente do homem [condenado] e não é assim ensinado? [numa baraitah] Na
Tarde de Pêssach eles crucificaram a Yeshu Ha-Notzri e um arauto saiu diante dele [por]
quarenta dias [dizendo] Yeshu Ha-Notzri será apedrejado por ter praticado feitiçaria, incita-
do Israel [à idolatria] e desviado o povo. Qualquer que souber [de algo que possa ser usado]
a favor dele deve vir e ensinar em favor dele. E não se achou [alguém para depor] em favor
dele, eles o crucificaram na Tarde de Pêssach.

Observamos nesta passagem que os detalhes em torno da personagem Yeshu apontam


diretamente para Jesus de Nazaré. O nome, Yeshu Ha-Notzri, as acusações de: “prática de feit-

119
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
120
Ibid.
121
Ibid.
çaria,” que obviamente é uma menção do Talmud aos milagres de Jesus, de incitação do povo
“à idolatria,” como uma menção clara aso ditos de Jesus que o igualavam a Deus, assim como
a sentença de “crucificação,” e a ocasião da festa de Pessach. Aliás, nenhum desses detalhes é
questionado pelas autoridades do judaismo, senão apenas o tribunal, que seria a corte romana
em vez do sinédrio, como afirma COHN (2000), bom como o tempo da crucificação, como ar-
gumenta o Rabi Skobac. A linha de argumentação judaica considera uma aparente discrepân-
cia entre o Evangelho de João e os Evangelhos Sinóticos, o primeiro afirmando que Jesus te-
ria sido crucificado na Erev Pessach,122 como afirma o Talmud, enquanto que os demas evan-
gelhos123 afirmam que Jesus comeu com seus discípulos na Erev Pessach. Pela força do argu-
mento corroborado pelos detalhes, torna-se praticamente impossível negar que Yeshu seja uma
referência a Jesus de Nazaré em outras passagens do Talmud.

2.4 GITTIN 57a

124
‫אזל אסקיה ]ליש"ו[ בנגידא )לפושעי ישראל( א"ל מאן חשיב בההוא עלמא א"ל‬
‫ישראל מהו לאדבוקי בהו א"ל טובתם דרוש רעתם לא תדרוש כל הנוגע בהן כאילו‬
‫נוגע בבבת עינו‬
[Onkelos] Foi e levantou a Yeshu Ha-Notzri [dos mortos] por meio de necromancia. E disse a
ele: ‘Quem é o mais importante naquele mundo [no além]?’ [Yeshu] Disse-lhe: ‘O povo ju-
deu.’ [Onkelos] Disse-lhe: ‘Devo me juntar a eles?’ [Yeshu] Disse-lhe: ‘O bem estar do povo
buscarás, seu infortúnio não buscarás [pois] quem quer que neles tocar é [como se] tocasse
na menina do seu olho.’

A passagem que acabamos de ler temos um suposto diálogo Agádico (o que se faz cla-
ro pela menção à necromancia) entre Onkelos e Yeshu Ha-Notzri que se dá na dimensão do
reino dos mortos. Onkeos encontra-se nesta nossa dimensão, enquanto que Yeshu é invocado
dos mortos, para exaltar o povo judeu, que teria um lugar de primazia no mundo dos mortos,
ou além. Em seguida, o autor põe na boca da personagem a sentença de juízo contra si. Veja
abaixo:

GUITTIN 57a

‫במאי דפסיק אנפשיה כל יומא מכנשי ליה לקיטמיה ודייני ליה וקלו ליה ומבדרו אשב‬
‫ימי‬
O que ele decretou contra si mesmo: Todo dia suas cinzas são ajuntadas, e eles o julgam, e o
queimam, e o espalham aos sete mares.
122
Evangelho de João 18.39.
123
Marcos 14.16; Mateus 26.19-20; Lucas 22.15.
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O juízo, apesar de ser pronunciado numa lingagem figurada, dá conta de uma ausência
total de anistia, a punição de caráter perene sobre um pecado horrível.

‫אזל אסקיה לבלעם בנגידא אמר ליה מאן חשיב בההוא עלמא א"ל ישראל מהו‬
‫ ז( לא תדרוש שלומם וטובתם כל הימים א"ל דיניה‬,‫לאידבוקי בהו א"ל )דברים כג‬
‫דההוא גברא במאי א"ל בשכבת זרע רותחת‬
125
[Ele] foi e levantou a Balaam através de necromancia. E disse-lhe: ‘Quem é o mais impor-
tante no mundo de lá? Disse-lhe: ‘O povo judeu.’ Deveria eu atacá-los? [Balaam] Disse-lhe:
‘Não, deves buscar sua paz ou seu bem estar todos os dias (Deuteronômio 23.7). Disse-lhe
[Onkelos]: ‘Qual a punição daquele homem?’ Disse-lhe: [ser cozido]‘Em sêmem fervente.’

O mesmo diálogo Agádico do texto imediatamente anterior (Guittin 57a) é apresentado


aqui, desta vez com um pseudônimo para Yeshu Ha-Notzri, desta vez chamado de Balaam, o
profeta maldito. Desta feita alguns elementos são introduzidos no diálogo, além da mudança
de nome do interlocutor de Onkelos. O primeiro elemento é a referência ao texto de Devarim
23.7. O segundo elemento é a menção do juízo, “ser cozido em sêmen fervente.” A punição é
claramente dirigida a Balaam, que no mesmo diálogo do texto anterior, é Yashu Ha-notzri.

126
‫א"ל דיניה דההוא גברא במאי א"ל בצואה רותחת דאמר מר כל המלעיג על דברי‬
‫חכמים נידון בצואה רותחת תא חזי מה בין פושעי ישראל לנביאי אומות העולם עובדי‬
‫ע"ז‬
[Onkelos] Disse-lhe: ‘Qual é a punição daquele homem? Disse-lhe [Jesus]: [Será punido]
‘Com excremento fervente. Como disse o Senhor: ‘Aquele que zomba das palavras dos sábios
será sentenciado ao excremento fervente. Vinde e notai a diferença entre entre os pecadores de
Israel e os profetas das nações do mundo.

Esta passagem Agádica é uma variante das duas anteriores, sendo que o elemento “sê-
men” é aqui substituído por “excremento,” acrescentando-se a motivação para a punição, que
seria a zombaria das palavas dos sábios. Jesus de Nazaré foi muitas vezes detratado pelos sá-
bios de Israel e tantas outras vezes zombou de suas palavras.

Os textos a seguir seriam uma referência aos pais de Jesus de Nazaré, que vieram do
Egito após ter cessado a perseguição de Herodes? Optamos aqui pela tradução mais literal
possível, para levar o leitor a uma porximidade maior com o texto original.

125
Uma referência a Onkelos.
126
Ibid.
127
‫רב מניומי בר חלקיה ורב חלקיה בר טוביה ורב הונא בר חייא הוו יתבי גבי‬
‫הדדי אמרי אי איכא דשמיע ליה מילתא מכפר סכניא של מצרים לימא‬
Rav Minyumi Bar Ḥilkiya, Rav Ḥilkiya Bar Toviya, e Rav Huna Bar Ḥiyya estavam sentados
juntos. Eels disseram: ‘Se há alguém que tenha ouvido alguma coisa sobre Kefar Sekhanya do
Egito, que relate:

128
‫פתח חד מינייהו ואמר מעשה בארוס וארוסתו שנשבו לבין העובדי כוכבים‬
‫והשיאום זה לזה אמרה לו בבקשה ממך אל תגע בי שאין לי כתובה ממך ולא נגע‬
‫בה עד יום מותו‬
Um deles principiou e disse: ‘Deu-se um caso envolvendo um homem e uma mulher noivos que
foram levados cativos pelos gentios e se casaram separados um do outro. [A mulher] disse:
Por favor, não me toque, pois não tenho contigo um contrato de casamento. E até sua morte
não a tocou.

129
‫וכשמת אמרה להן סיפדו לזה שפטפט ביצרו יותר מיוסף דאילו ביוסף לא הוה‬
‫אלא חדא שעתא והאי כל יומא ויומא ואילו יוסף לאו בחדא מטה והאי בחדא‬
‫מטה ואילו יוסף לאו אשתו והא אשתו‬
E quando ele morreu [aquela mulher] disse: ‘Elogiai este homem que conquistou sua paixão
mais do que José. Pois José foi por pouco tempo. Já este, a cada dia. José, não na cama130 mas
este homem, na cama. José não sua esposa, mas este, sua esposa.

A menção a José e ao fato de ter ele guardado distância de sua mulher em relação às
obrigações sexuais, parece corroborar com uma tradição segundo a qual José jamais teria co-
nhecido Maria, mãe de Jesus, biblicamente. Segundo o texto, José teria logo falecido e Maria
teria contraído novas núpcias.
As seguintes passagens compõem um argumento geral em torno da sedução do profeta
indigno, Balaam e sua sedição a fim de levar o povo de Israel ao pecado e à idolatria. O perfil
ético e moral de Balaam será construído ao longo das narrativas. O perfil maligno do profeta-
adivinho é o fio condutor que une as narrativas. Ele é porque fez e por isto morrerá. Ao térmi-
no da leitura destas passagens, o perfil de Balaam terá sido fromado na mente do leitor de tal
maneira que seu nome será automaticamente associado aos pecados dos quais, curiosamente,
Yeshu Ha-Notzri será acusado e consequentemente sentenciado à morte.
As referências do Antigo Testamento não são acompanhadas dos textos bíblicos, mas
estão presentes de modo a situar os leitores no contexto histórico.

127
Ibid.
128
Ibid.
129
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
130
Indicando que José não se deitou com a Mulher de Potifar. Ou seja, sua tentação não foi tão intensa quanto a
deste homem que se deitava com esta mulher todas as noites e não a tocava.
2.5 SANHEDRIN 106ab131

‫ק״ו א‬132
‫מחליף ושרשיו מרובין ואפילו כל רוחות שבעולם באות ונושבות בו אין מזיזות אותו‬
‫ממקומו אלא הוא הולך ובא עמהן כיון שדוממו הרוחות עמד קנה במקומו‬
Ele se reproduz e suas raízes são numerosas. E mesmo que todos os ventos existentes no mun-
do venham e deem contra ele, não o moverão de seu lugar. Ainda que o vento sopre, a raiz
permanece no seu lugar.

133
‫אבל בלעם הרשע ברכן בארז מה ארז זה אינו עומד במקום מים ושרשיו מועטין ואין‬
‫גזעו מחליף אפילו כל הרוחות שבעולם באות ונושבות בו אין מזיזות אותו ממקומו כיון‬
‫שנשבה בו רוח דרומית מיד עוקרתו והופכתו על פניו ולא עוד אלא שזכה קנה ליטול‬
‫ממנו קולמוס לכתוב ממנו ס"ת נביאים וכתובים‬
Mas Balaam o ímpio os abençoou com um cedro. Assim como um cedro não permanece num
mesmo lugar [próximo à] água e suas raízes são poucas, e seu tronco não se reproduz e ainda
que todos os ventos do mundo deem contra ele, não se moverá de seu lugar. Dando o vento sul
imediatamente contra ele, a raiz privilegiada para dela se tirar uma pena para escrever os ro-
los da Torá, dos Profetas, e das Escrituras.

‫ כא‬,‫במדבר כד‬
Números 24.21
134
‫וירא את הקיני וישא משלו אמר לו בלעם ליתרו קיני לא היית עמנו באותה עצה מי‬
‫הושיבך אצל איתני עולם‬
E olhou ele para o queneu e tomou sua parábola. Balaam disse a Yitro: Queneu [Não estavas] tu no
Egito conosco naquele conselho? Quem te colocou com os poderosos do mundo?

135
‫והיינו דא"ר חייא בר אבא א"ר סימאי שלשה היו באותה עצה אלו הן בלעם איוב‬
‫ויתרו בלעם שיעץ נהרג איוב ששתק נידון ביסורין ויתרו שברח זכו בני בניו לישב‬
‫ נה( ומשפחות סופרים יושבי יעבץ‬,‫בלשכת הגזית שנאמר )דברי הימים א ב‬
‫תרעתים שמעתים סוכתים המה הקינים הבאים מחמת אבי בית רכב וכתיב )שופטים‬
‫ טז( ובני קיני חותן משה עלו מעיר התמרים‬,‫א‬
E o que diz o Rabi Ḥiyya bar Abba o que diz o Rabi Simai: Três estavam naqueleconselho e
eram Balaam, Jó, e Yitro. Balaam, que aconselhou [a matar os bebês machos] foi morto. Jó,
131
O texto de Sanhedrin 106ab, com muitas referências ao Tanach, será traduzido na íntegra para que não se per-
ca o contexto, importante para a interpretação.
132
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
133
Ibid.
134
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
135
Ibid.
que guardou silêncio foi sentenciado a suplícios. E Yitro, que fugiu, seus descendentes tiveram
o privilégio de se assentarem na Câmara da Pedra de Hewn, como foi declarado: ‘E as famíli-
as dos soferim que habitavam em Jabez: os tiratitas, os simeatitas, os sucatitas. Estes eram os
queneus que vieram de Hamate o pai da casa de Recabe’ (1 Crônicas 2.55). E está escrito ali
‘E os filhos do queneu, sogro de Moisés, subiu para a cidade das palmeiras’ (Juízes 1.16).

‫ כג‬,‫במדבר כד‬136
Números 24.22
(‫וישא משלו ויאמר אוי מי יחיה משמו אל )אמר רשב"ל אוי מי שמחיה עצמו בשם אל‬
‫א"ר יוחנן אוי לה לאומה שתמצא בשעה שהקב"ה עושה פדיון לבניו מי מטיל כסותו בין‬
‫לביא ללביאה בשעה שנזקקין זה עם זה‬
‘E ele tomou sua parábola e disse: ‘Aquele que vive do que Deus tem apontado para ele’ (Nú-
meros 24.23) Rabi Shimon Ben Lakish diz: Ai daquele que se sustenta no nome de Deus.137
Rabi Yohanan diz: ‘Ai da nação que seja encontrada no tempo em que venha o Santo, Bendito
seja Ele, redimir seus filhos. Quem colocaria sua vestimenta entre um leão macho e sua fêmea
quando estão copulando?’

‫ כד‬,‫במדבר כד‬138
Números 24.24
‫ כד( וענו אשור וענו עבר עד‬,‫וצים מיד כתים אמר רב ליבון אספיר )במדבר כד‬
‫אשור קטלי מיקטל מכאן ואילך משעבדי שיעבודי‬
‘E navios virão da costa de Quitim’ (Números 24.24), Rav diz: a legião romana e eles afigirão
a Assíria, e eles afligirão Eber’ (Números 24.24). Antes da Assiria eles matarão [o povo ju-
deu] antes de os escravizar.

139
‫ יד‬,‫במדבר כד‬
Números 24.14
‫הנני הולך לעמי לכה איעצך אשר יעשה העם הזה לעמך עמך לעם הזה מיבעי ליה‬
‫א"ר אבא בר כהנא כאדם שמקלל את עצמו ותולה קללתו באחרים‬
‘Eis que vou para o meu povo; vem e eu te aconselharei o que este povo fará ao teu povo (Nú-
meros 24.14). Ele deve ter o teu povo a este povo. Rabi Abba Bar Kahana diz: ‘Como uma
pessoa que amaldiçoa a si mesma e atribui sua maldição a outros.

140
‫אמר להם אלהיהם של אלו שונא זימה הוא והם מתאוים לכלי פשתן בוא ואשיאך‬
‫עצה עשה להן קלעים והושיב בהן זונות זקינה מבחוץ וילדה מבפנים וימכרו להן כלי‬
‫פשתן‬
Disse-lhes: ‘O Deus destes despreza o suborno, e eles desejam vestes de linho, vem e eu te da-

136
Ibid.
137
Numa referência a Balaam, que vivia de modo indigno, sendo sustentado pelas profecias que fazia em nome
de Deus.
138 TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
139
Ibid.
140
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
rei conselho. Faz para eles forcas dá-lhes prostitutas, uma velha do lado de fora e uma bela
jovem do lado de dentro e vende-lhes vestes de linho.

141
‫עשה להן קלעים מהר שלג עד בית הישימות והושיב בהן זונות זקינה מבחוץ וילדה‬
‫מבפנים ובשעה שישראל אוכלין ושותין ושמחין ויוצאין לטייל בשוק אומרת לו הזקינה‬
‫אי אתה מבקש כלי פשתן זקינה אומרת לו בשוה וילדה אומרת לו בפחות שתים ושלש‬
‫פעמים‬
‘Fez para eles forcas da montanha de neve até Beit HaYeshimot e lhes deu prostitutas, uma ve-
lha do lado de fora e uma bela jovem do lado de dentro. E quando o povo judeu estava co-
mendo e bebendo e se alegrando e saindo para comprar no mercado, a velha disse um judeu:
‘Não estás buscando vestes de linho? A velha citaria um preço igual e a bela jovem citaria
um [preço] menor duas ou três vezes.

142
‫ואח"כ אומרת לו הרי את כבן בית שב ברור לעצמך וצרצורי של יין עמוני מונח‬
‫אצלה ועדיין לא נאסר )יין של עמוני ולא( יין של נכרים אמרה לו רצונך שתשתה כוס‬
‫של יין כיון ששתה בער בו‬
E daqui por diante ela diria a ele: ‘És como um membro da nossa família, senta, escolhe para
ti.’ E uma jarra do vinho amonita foi colocada perto dela e nem vinho amonita ou gentil tinha
sido proibido. Ela disse a ele: ‘Desejas beber uma taça de vinho?’ Tendo ele bebido, sentiu
coo se queimasse dentro dele.

143
‫אמר לה השמיעי לי הוציאה יראתה מתוך חיקה אמרה לו עבוד לזה אמר לה הלא‬
‫יהודי אני אמרה לו ומה איכפת לך כלום מבקשים ממך אלא פיעור ]והוא אינו יודע‬
'‫שעבודתה בכך[ ולא עוד אלא שאיני מנחתך עד שתכפור בתורת משה רבך שנא‬
‫ י( המה באו בעל פעור וינזרו לבשת ויהיו שקוצים באהבם‬,‫)הושע ט‬
Ele disse a ela: ‘Submete-te a mim.’ Ela removeu dos joelhos o ídolo que ela adorava e disse
a ele: ‘Adora isto.’ Ele disse a ela: ‘Acaso não sou judeu?’ Ela lhe disse: ‘E o que te importa?
Não estamos te pedindo nada além de defecar.’ Mas ele não sabia que sua adoração [era rea-
lizada] daquela [maneira]. ‘Ademais, não te deixarei sair até que tenhas negado a Torá de
Moisés, teu mestre, como foi declarado: ‘Mas vindo eles a Baal-Peor se consagraram à igno-
miniosa idolatria e se tornaram tão abomináveis quanto aquilo que amaram’ (Oseias 9.10).144

‫ א‬,‫במדבר כה‬145
Números 25.1
‫וישב ישראל בשטים ר"א אומר שטים שמה רבי יהושע אומר שנתעסקו בדברי שטות‬
‘E Israel habitou em Sitim’ (Números 25.1), Rabi Eliezer diz: Sitim é nome de um lugar. Rabi

141
Ibid.
142
Ibid.
143
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
144
Ou seja, eles se devotaram à desgraça da defecação e assim profanaram o nome de Deus.
145
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
Yehoshua diz: eles se engajaram em assuntos absurdos [shetut].146

147
‫ותקראן לעם לזבחי אלהיהן רבי אלעזר אומר ערומות פגעו בהן רבי יהושע אומר‬
‫שנעשו כולן בעלי קריין‬
‘E eles chamaram o povo às ofertas de seus deuses’ (Números 25.2). Rabi Eliezer diz: ‘Mulhe-
res nuas os encontraram. Rabi Yehoshua diz: ‘Eles se tornaram os que experimentaram um
jorro seminal [kerayin].

148
‫מאי לשון רפידים רבי אליעזר אומר רפידים שמה רבי יהושע אומר שריפו עצמן‬
‫ ג( לא הפנו אבות אל בנים מרפיון ידים‬,‫מדברי תורה שנאמר )ירמיהו מז‬
O que a palavra Refidim [significa]? Rabi Eliezer diz: ‘Refidim [é] o nome. Rabi Yehoshua
diz que eles se afrouxaram com respeito aos termos da Torá, como foi dito: ‘Os pais não aten-
deram aos filhos por causa da frouxidão de suas mãos’ (Jeremias 47.3)

(‫ א‬,‫אמר רבי יוחנן כל מקום שנאמר וישב אינו אלא לשון צער שנא' )במדבר כה‬
‫ א( וישב יעקב‬,‫וישב ישראל בשטים ויחל העם לזנות אל בנות מואב )בראשית לז‬
‫בארץ מגורי אביו בארץ כנען ויבא יוסף את דבתם רעה אל אביהם ונאמר )בראשית‬
‫ כז( וישב ישראל בארץ גשן ויקרבו ימי ישראל למות‬,‫מז‬
Rabi Yohanan diz: Onde quer que seja declarado: E ele habitou, nada mais é do que uma ex-
pressão de dor, como foi declarado: ‘E Israel habitou em Sitim, e o povo começou a se prosti-
tuir com as filhas de Moabe’ (Números 25.1). ‘E jacó habitou ode seu pai peregrinara na ter-
ra de Canaã’ (Genesis 37.1). ‘E José trazia más notícias deles a seu pai’ (Genesis 372). E foi
declarado que Israel habitou na terra de Gosen’ (Genesis 47.27), e aproximava-se o tempo da
morte de Israel (Genesis 47.29).

149
‫ ח‬,‫במדבר לא‬
Números 31.8
‫ואת מלכי מדין הרגו על חלליהם וגו' את בלעם בן בעור הרגו בחרב בלעם מאי בעי‬
‫התם א"ר יוחנן שהלך ליטול שכר עשרים וארבעה אלף ]שהפיל מישראל[ אמר מר‬
‫זוטרא בר טוביה אמר רב היינו דאמרי אינשי גמלא אזלא למיבעי קרני אודני דהוו ליה‬
‫גזיזן מיניה‬
‘E mataram os reis de Midiã o restante dos seus e a Balaam, filho de Beor, mataram à espada
(Números 31.8).[Quanto a] Balaam, o que buscava ele ali? Rabi Yohanan diz: ‘Ele foi reco-
lher o pagamento de vinte e quatro mil do povo judeu, a quem ele desviara com seu conselho.
Mar Zutra Bar Toviya diz: Rav diz isto que o povo diz: O camelo vai em busca de chifres e
tem suas orelhas cortadas.’150

146
Ou seja, prostituição e adoração de ídolos.
147
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
148
Ibid.
149
Ibid.
150
Numa referêcia a Balaam, que buscava o preço do pagamento e terminou sendo assassinado por sua ganância.
‫ כב‬,‫יהושע יג‬151
‫ואת בלעם בן בעור הקוסם קוסם נביא הוא א"ר יוחנן בתחלה נביא ולבסוף קוסם‬
‘E Balaam, filho de Beor, o adivinho. Um adivinho? Ele é profeta, diz Rabi Yohanan. Primei-
ramente um profeta, mas depois um adivinho.

152
‫ק״ ו ב‬
‫ כב‬,‫יהושע יג‬
Josué 13.22
‫הרגו בני ישראל ]בחרב[ אל חלליהם אמר רב שקיימו בו ארבע מיתות סקילה‬
‫ושריפה הרג וחנק‬
Os filhos de Israel também mataram à espada a Balaam com os outros que mataram’ (Josué
13.22), Rav diz que eles realizaram nele quatro execuções: apedrejamento, fogo, decaptação,
e estrangulamento.

As assim chamadas “quatro execuções” dão conta do caráter agádico desta passagem,
chamando a atenção para o ódio contra Balaam, que teria sido morto quatro vezes, caso isto
fosse possível.

153
‫א"ל ההוא מינא לר' חנינא מי שמיע לך בלעם בר כמה הוה א"ל מיכתב לא כתיב‬
‫ כד( אנשי דמים ומרמה לא יחצו ימיהם בר תלתין ותלת שנין‬,‫אלא מדכתיב )תהלים נה‬
‫או בר תלתין וארבע א"ל שפיר קאמרת לדידי חזי לי פנקסיה דבלעם והוה כתיב ביה‬
‫בר תלתין ותלת שנין בלעם חגירא כד קטיל יתיה פנחס ליסטאה‬
Um certo herege disse ao Rabi Hanina: Sabes a idade de Balaam? Disse-lhe: ‘Não está escri-
to.’ Mas do que está escrito: ‘Homens sanguinários e enganosos não viverão a metade de se-
us dias’ (Salmos 55.24) trinta e dois ou trinta e quatro anos,’154 disse-lhe: ‘Disseste bem. Eu
mesmo vi as anotações de Balaam e estava escrito lá: ‘Balaam o coxo tinha trinta e dois anos
quando Fineias, o heroi, o matou.’

155
‫א"ל מר בריה דרבינא לבריה בכולהו לא תפיש למדרש לבר מבלעם הרשע‬
‫דכמה דמשכחת ביה דרוש ביה‬
Mar, filho de Ravina, disse a seu filho: ‘Todos aqueles não interpretam completamente exceto
Balaam, o ímpio, você descobrirá homileticamente a respeito dele.

151
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
152
Ibid.
153
Ibid.
154
Esta frase pode ser uma menção à idade da morte de Jesus de Nazaré, identificando-o como homem “sangui-
nário e enganador.”
155
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
(‫)סימן גבור ורשע וצדיק חיל וסופר‬
Um [recurso] mnemônico: Poderoso, ímpio, e justo virtuoso, e escriba.

156
‫ ג( מה תתהלל ברעה הגבור חסד אל כל היום‬,‫א"ר יצחק מאי דכתיב )תהלים נב‬
‫אמר לו הקב"ה לדואג לא גבור בתורה אתה מה תתהלל ברעה לא חסד אל נטוי‬
‫עליך כל היום‬
‘Rabi Ytzhaq diz: ‘O que é o que está escrito: ‘Por que te glorias, ó homem poderoso? A mise-
ricórdia de Deus dura para sempre’ (Salmos 52.3)? O Santo, Bendito Seja Ele, disse a Doe-
gue: ‘Não és tu poderoso na Torá? Por que te glorias do mal? A misericórdia de Deus não du-
rará perpetuamente sobre ti?157

158
‫ טז( ולרשע אמר אלהים מה לך לספר חוקי אמר‬,‫וא"ר יצחק מאי דכתיב )תהלים נ‬
‫לו הקב"ה לדואג הרשע מה לך לספר חוקי כשאתה מגיע לפרשת מרצחים ופרשת‬
'‫ טז( ותשא בריתי עלי פיך אמר ר‬,‫מספרי לשון הרע מה אתה דורש בהם )תהלים נ‬
‫אמי אין תורתו של דואג אלא משפה ולחוץ‬
Rabi Ytzhaq diz: ‘O que é o que está escrito: ‘Mas ao ímpio, diz Deus: ‘De que te serve repeti-
res os meus preceitos?’ (Salmos 50.16)? O Santo, Bendito Seja Ele, disse a Doegue o ímpio:
Por que repetes os meus preceitos e quando os encontras o bando de assassinos e o bando de
malfeitores, como os ensinas? E tendes tomado em tua boca a minha aliança’ (Salmos 50.16),
Rabi Ami diz: A Torá de Doegue está apenas nos lábios.

159
‫ ח( ויראו צדיקים וייראו ועליו ישחקו‬,‫ואמר רבי יצחק מאי דכתיב )תהלים נב‬
‫בתחילה ייראו ולבסוף ישחקו‬
E Rabi Ytzhaq diz: O que é que está escrito: ‘E os justos verão, e temerão, e se rirão dele’
(Salmos 52.8)? Inicialmente eles temerão e finalmente se rirão.’

(‫)סימן שלשה ראו וחצי וקראו‬160


Um [recurso] mnemônico: três, viram, e metade, e chamaram-no.

161
‫א"ר יוחנן שלשה מלאכי חבלה נזדמנו לו לדואג אחד ששכח תלמודו ואחד ששרף‬
‫נשמתו ואחד שפיזר עפרו בבתי כנסיות ובבתי מדרשות‬
Rabi Yohanan diz: ‘Três anjos de destruição encontraram Doegue: Um deles o fez esquecer
156
Ibid.
157
A referência é uma condição. A misericórdia de Deus permaneceria sobre ele, caso continuasse a estudar a
Torá.
158
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
159
Ibid.
160
Ibid.
161
Ibid.
sua Torá,162 outro queimou sua alma, e o outro espalhou suas cinzas nas sinagogas e centros
de estudos.

163
‫וא"ר יוחנן דואג ואחיתופל לא חצו ימיהם תניא נמי הכי אנשי דמים ומרמה לא יחצו‬
‫ימיהם כל שנותיו של דואג לא היו אלא שלשים וארבע ושל אחיתופל אינן אלא שלשים‬
‫ושלש‬
E Rabi Yohanan diz: Doegue e Aitofel não alcançaram a metade de seus dias. Isto é ensinado
‘Homens sanguinários e enganadores não viverão a metade de seus dias’ (Salmos 55.24); to-
dos os anos de Doegue foram trinta e quatro e os de Aitofel foram apenas trinta e três.

As referências aos pecados de Balaam, Doegue, e Aitofel, como feitiçaria e idolatria,


traição, sedição, práticas de adivinhação, bem como as referências à morte na “metade de seus
dias” como evidência de um viver marcado pela impiedade, parecem funcionar nestas passa-
gens, como dito acima, como elementos de uma forma sutil de linguagem na qual o perfil éti-
co e moral de uma personagem é construído tijolo por tijolo no decurso das narrativas. Quan-
do o nome da personagem dona daquele perfil construído é empregado noutro texto a quem
quer que seja, imediata e automaticamente toda a carga ética e moral é atribuída a esta nova
personagem, por associação direta. Assim, tendo construído sutilmente o perfil de Balaam, os
sábios do Talmud mais tarde atribuirão este nome a Yeshu Ha-Notzri, ou Jesus de Nazaré em
diálogos idênticos, como vimos acima.

2.6 SANHEDRIN 107b164

‫ק״ז א‬165
‫אוכל לחמי הגדיל עלי עקב‬
Aquele que come do meu pão, levantou contra mim o calcanhar (Salmos 41.10).

‫ק״ז ב‬166
‫תנו רבנן לעולם תהא שמאל דוחה וימין מקרבת לא כאלישע שדחפו לגחזי בשתי ידים‬
‫ולא כרבי יהושע בן פרחיה שדחפו ליש"ו בשתי ידים‬
Os sábios ensinaram: A mão esquerda sempre desvia os pecadores e a mão direita os traz de

162
Ou seja, tudo que ele havia estudado sobre a Torá durante sua vida, o que podia ser denominado de ‘sua
Torá,’ sendo aquilo do qual ele se apropriara na Torá e, portanto, lhe pertencia como ‘sua Torá.’ O anjo em ques-
tão o fizera perder tudo que absorvera do estudo da Torá, ou seja, seu maior bem.
163
Ibid.
164
O texto de Sanhedrin 107b também será traduzido na íntegra, pelas mesmas razões citadas na nota 76.
165
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
166
Ibid.
volta, de modo que os pecadores não se desesperem totalmente da expiação. Diferente de Eli-
seu, que puxou Geazi usando suas duas mãos, e diferente de Yehoshua Ben Perahya, que em-
purrou Yeshu usando suas duas mãos.

A referência ao profeta Eliseu empurrando Geazi com as duas mãos dá conta da maldi-

ção de Eliseu após o servo tê-lo desapontado ao aceitar presentes do siro Naamã. Em seguida,

outro exemplo é dado considerando um certo Yeshu, discípulo de Ben Perahya, criticado aqui

pelo Talmud, que também criticou o profeta Eliseu. A erudição judaica situa essa história no
segundo século a.C., o que parece fazer sentido por causa da menção ao rei Yannai (103-76
a.C.) no texto seguinte. A situação que gerou a ação de Ben Perahya descrita nos textos abai-
xo, teria sido a seguinte: De retorno do Egito, estando ambos, mestre e discípulo hospedados
numa estalagem, o mestre teria dito, ‘Que bela estalagem!,’ empregando para tal a palavra
hynska que não significa “estalagem,” mas “a funcionária da estalagem.” Yeshu teria dito que
o mestre estava elogiando a beleza física da dona da estalagem e, com isto, censurando-o.
‘Mas Rabi, ela tem olhos estreitos,’ dissera ao mestre. A ira de Ben Perahya se inflamou con-
tra Yeshu ao ponto de ser este empurrado pelo mestre com as duas mãos num gesto de vee-
mente reprovação. ‘Ímpio!’

167
‫ רבי יהושע בן פרחיה מאי הוא כדקטלינהו ינאי מלכא‬:‫הוספה מחסרונות הש"ס‬
‫לרבנן אזל רבי יהושע בן פרחיה ויש"ו לאלכסנדריא של מצרים כי הוה שלמא שלח‬
‫לי' שמעון בן שטח מני ירושלים עיר הקודש ליכי אלכסנדרי' של מצרים אחותי בעלי‬
‫שרוי בתוכך ואנכי יושבת שוממה‬
O que se deu com Yehoshua Ben Per: Quando o rei Yannai estava assassinando os sábios, Ye-
hoshua Ben Peraḥya e Yeshu, foram para Alexandria do Egito. Quando finalmente houve paz,
Shimon Ben Shataḥ enviou [uma mensagem?] De mim, Jerusalém, a santa cidade, para ti,
Alexandria do Egito: Minha irmã, meu marido, está entre vós e eu me quedo desolada.

168
‫קם אתא ואתרמי ליה ההוא אושפיזא עבדו ליה יקרא טובא אמר כמה יפה אכסניא זו‬
‫אמר ליה רבי עיניה טרוטות אמר ליה רשע‬
Levantou-se, veio, e aconteceu numa certa estalagem. Eles o trataram com muita honra. Dis-
se: ‘Quão bela é esta estalagem. Disse [Yeshu] a ele: ‘Meu mestre, os olhos são estreitos. Res-
pondeu [Perahya?] a ele: ‘Ímpio!

169
‫אתא לקמיה כמה זמנין אמר ליה קבלן לא הוי קא משגח ביה יומא חד הוה קא קרי‬

167
TALMUD BAVLI London: Socino Press, 1978.
168
Ibid.
169
Ibid.
‫קריאת שמע אתא לקמיה סבר לקבולי אחוי ליה בידיה הוא סבר מידחא דחי ליה אזל‬
‫זקף לבינתא והשתחוה לה אמר ליה הדר בך אמר ליה כך מקובלני ממך כל החוטא‬
‫ומחטיא את הרבים אין מספיקין בידו לעשות תשובה ואמר מר יש"ו כישף והסית והדיח‬
‫את ישראל‬
Veio diante sete vezes [e] disse a ele: Aceita me! Não deu atenção a ele. Um dia, estava reci-
tando o Shemá e [Yeshu?] veio diante dele. Resolveu aceitá-lo e fez sinal com sua mão. Pen-
sou: ‘Ele está me mandando embora. Então ele se foi, escolheu uma pedra e se prostou diante
dela. Disse-lhe: ‘Arrepende-te!’ [Yeshu] disse-lhe: ‘Isto, eu recebi de ti: ‘Todo aquele que pe-
car e levar o povo a pecar não terá a oportunidade de se arrepender. E o Mestre diz: Yeshu
170
praticou feitiçaria, incitou e desviou Israel.

A referência final a Yeshu como tendo praticado feitiçaria e incitado Israel a pecar não
parece combinar com a história que se passou na estalagem, mas por alguma razão, mais uma
vez, o nome Yeshu é aqui associado a pecados dignos de uma sentença de morte.

170
O adjetivo Ha-Notzri foi omitido aqui por não fazer parte dos manuscritos antigos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A consideração de uma obra da magnitude do Talmud Bavli, mesmo do ponto de vista


histórico e literário, não é tarefa fácil, por várias razões. A primeira delas tem a ver com a
apresentação do material a ser estudado. As dezenas de volumes do Talmud, as línguas de
apresentação, as lacunas de tempo, religião e cultura que nos afastam dos autores e de seus
primeiros leitores, são apenas alguns dos obstáculos que se apresentam logo de início a uma
abordagem a esse tipo de literatura. Não há, portanto, uma leitura ‘simples’ do Talmud em
virtude de tal literatura se encontrar envolta num labirinto de complexidades. Isto nos leva ao
entendimento de que uma boa leitura dependerá em muito da preparação do leitor ao se ache-
gar ao texto. Uma leitura e estudo abrangente do Talmud na língua original é experiência de
rico e extraordinário impacto, embora privilégio de poucos.
Entretanto, há hoje excelentes versões de muitos tratados do Talmud nas línguas ingle-
sa, espanhola, alemã, e francesa. Há também muitas obras sobre o Talmud Bavli em língua
portuguesa que podem ser de grande auxílio no entendimento desta obra magnífica da literatu-
ra rabínica. Das poucas linhas traduzidas aqui não suponha o leitor ter tido uma visão de todo
o escopo da obra, senão apenas ter lido ínfimas unidades, cuidadosamente pinçadas da vasti-
dão da obra, textos selecionados para a consideração de um tema específico.
O tema específico em questão é Jesus de Nazaré, assumindo-se que um tal Ben Stada
ou Ben Pandira mencionados no Talmud são o mesmo Jesus, filho de Maria, enteado de José,
o carpinteiro, que vocacionou um grupo de doze discípulos, pregou o evangelho do reino de
Deus, discordou das tradições rabínicas dos antepassados e dos mestres de seus dias e que foi
sentenciado à morte pela corte romana, instilada pelos judeus. Estes dados são fornecidos pe-
los quatro Evangelhos do Novo Testamento. Algumas das poucas referências a Jesus de Naza-
ré, mais especificamente ao seu julgamento e morte e ao suposto destino post mortem de sua
alma revelam muito do desconhecimento da pessoa e obra de Jesus por parte dos autores do
Talmud, o que confere a estes textos pouco ou quase nenhum caráter biográfico, mas na maio-
ria das vezes parecendo se tratar simplesmente de uma personagem literária, invocada para
ajudar a compor uma cena de parábola ou fábula, sem compromissos com a realidade históri-
ca. A vastidão e heterogeneidade dos textos das Agadot resultou em igual heterogeneidade de
interpretaçãos por parte dos próprios sábios judeus. Esse aspecto da literatura, pelo menos no
que diz respeito aos textos relacionados a Jesus de Nazaré é uma das lentes pelas quais se de-
ve ler essas passagens.
A história tem dado conta de atos extremos de violência despertados pela leitura e in-
terpretação de textos de cunho religioso ou político. A verdade é que pessoas matam e mor-
rem em nome de uma ideia, seja esta religiosa ou política. Isto depõe a favor do texto, cujo
poder pode transformar vidas e mudar realidades. Mas depõe igualmente contra a condição
humana, capaz de matar a imagem de Deus no seu semelhante. O pensamento de uma religi-
ão, povo, ou indivíduo sobre quem foi Jesus de Nazaré não deve motivar nos cristãos o ódio,
mas a reflexão, a compaixão, a oração. O próprio Jesus de Nazaré intercedeu pelos seus algo-
zes, de modo a não permitir que o mal alheio o contaminasse. O escândalo e a loucura perma-
necem confundindo e salvando os homens; sua mensagem salva e condena. Entretanto, a per-
seguição milenar envidada contra os judeus, por causa de sua rejeição da mensagem de Jesus
de Nazaré, o ódio desenfreado, a destruição de sua literatura, de suas sinagogas, de suas casas,
de seus corpos, diz muito sobre os perseguidores.
Consideramos importante dizer finalmente que assumir contra algumas autoridades do
judaísmo moderno que as referências do Talmud a Ben Stada, a Yeshu, e a Ben Pandira são de
fato menções a Jesus de Nazaré não é necessariamente uma questão de animosidade contra a
religião judaica mas simples e respeitosa divergência de pensamento. A força vital do argu-
mento aqui apresentado parece vir da própria história. As sanções, censuras, e perseguições
movidas contra esta obra no decorrer de tantos séculos por parte do poder papal da igreja cris-
tã não podem ter sido geradas por mero equívoco de interpretação, haja visto que determina-
dos textos do Talmud em referência a Jesus de Nazaré foram censurados pelas próprias autori-
dades judaicas. Entretanto, é preciso ler o Talmud, fazer de sua leitura e interpretação uma re-
alidade presente, antes de se precipitar em alguma opinião. Na exposição de determinados tex-
tos pela tradução corremos o risco de, arrancando-os de seus devidos contextos literários, des-
pertar sentimentos contrários ao Talmud e à religião que ele representa. Não foi a intenção
deste trabalho mas, lamentavelmente, é dos riscos de toda tradução, de toda escrita, ser livre-
mente interpretada, ser mal interpretada, não ser compreendida, enfim, despertar as mais di-
versas reações.
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