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RESUMO
A importância do texto bíblico analisado neste artigo gira em torno da identificação do servo
apresentado em Isaías 53. A pergunta do oficial etíope ao diácono Filipe, no primeiro século da
era cristã, “a quem se refere o profeta? fala de si mesmo ou de algum outro?” tem sido
revisitada ao longo dos séculos, atingindo dimensões e revelando implicações muito
provavelmente não contempladas pelo eunuco de Atos 8. A identidade do servo na profecia de
Isaías cairá necessariamente em duas grandes categorias: individual ou coletiva. As teorias
individualistas costumam identificá-lo como uma figura histórica, com o próprio autor, ou ainda
Zorobabel, Jó, Jeoaquim, Moisés, Uzias, Ezequiel, Ciro e a figura mais tradicionalmente aceita,
Jesus o messias.. As teorias coletivistas, por sua vez, tendem a interpretar o servo como sendo a
nação de Israel como um todo ou um remanescente justo do povo de Israel. Da interpretação
judaica, que a partir de um determinado período do desenvolvimento histórico da hermenêutica
judaica, unanimemente enxerga o servo como sendo o remanescente justo de Israel, passando
pela hermenêutica cristã, que vê o servo como seu Messias, Jesus Cristo, até uma visão lírico-
poética de viés estético-ético da profecia, quatro escolas de interpretação são aqui visitadas e
analisadas por meio de comparação em suas distintas metodologias e resultados na interpretação
da passagem. Finalmente, o método canônico linguístico será empregado numa interpretação da
passagem, estabelecendo sua harmonia com o cânon bíblico e o testemunho da comunidade da
fé, como apresentado no Novo Testamento.
PALAVRAS-CHAVE:
Isaías 53, Servo do Senhor, Hermenêutica Judaica, Rashi, Talmude, Midrash, Targumim,
Orígenes, Lutero, John Donne, Interpretação Canônico-Linguística, Cânon, Comunidade da Fé.
INTRODUÇÃO
A segunda metade do Livro do profeta Isaías, também chamada de Deutero Isaías,
contém quatro passagens principais comumente conhecidas como as Quatro Canções do Servo.
Elas são: (1) Isaías 42.1-4, (2) Isaías 49.1-6, (3) Isaías 50.4-9, (4) Isaías 52.13-53:12. O termo
ydb[ (meu servo) está presente de modo explícito nas canções 1,2,4, mas ausente na terceira
1
Bacharel em Teologia pela Faculdade de Teologia Evangélica do Rio de Janeiro, Mestre em Estudos Bíblicos
Hermenêuticos do Antigo Testamento pelo CPAJ, professor de hebraico e teologia exegética do Antigo
Testamento, Introdução ao Antigo Testamento e História de Israel, tradutor.
canção. A despeito da monumental beleza destas passagens, sobretudo no texto hebraico, e de
sua significância teológica, as Canções do Servo apresentam alguns desafios de ordem
interpretativa. Estudiosos judeus, por exemplo, divergem quanto à identidade do servo nas três
primeiras canções mencionadas acima, mas são unânimes em afirmar o servo como o
remanescente justo de Israel, numa leitura peshat, 2 exatamente na quarta canção, onde se
encontra o texto de nosso interesse, Isaías 53. A erudição cristã, por sua vez, em sua maioria,
interpreta Isaías 53 como a principal prova textual da messianidade da profecia de Isaías,
identificando o servo das canções com o Messias. Jesus Cristo é visto como o Servo Sofredor em
seu suplício vicário para expiar os pecados de seu povo. Ainda uma terceira via procura
combinar as duas maiores interpretações, judaica e cristã, buscando eliminar o antagonismo
hermenêutico, propondo haver no texto de Isaías 53 uma dupla aliança: uma para o Israel da
carne, que frequenta a sinagoga, e outra para o Israel espiritual, de não-judeus, que assiste na
congregação da igreja.
O profeta, portanto, estaria prevendo não somente o sofrimento vicário do Messias, Jesus
de Nazaré, mas também a perseguição sofrida pelos judeus, vítimas do antissemitismo,
fornecendo ambos e igualmente um vislumbre da oportunidade de redenção e salvação? A
mística envolvendo a interpretação da identidade do Servo tem gerado novas e distintas
interpretações, em termos de quantidade e qualidade. Este artigo não se propõe a apresentar um
panorama da literatura e abundantes teorias sobre o assunto, mas uma simples análise
comparativa de quatro interpretações consideradas relevantes, consideradas em seus
pressupostos, finalizando com uma interpretação do mesmo texto a partir do método canônico
linguístico.
1. O TEXTO DE ISAÍAS 53
2
Quatro são os níveis de interpretação exegética hebraica: (1) jvP PeSHaT, ou leitura simples, (2) zmr ReMeZ, ou
leitura simbólica, (3) vrd DRaSH, ou leitura exegética, (4) dws SoD, ou leitura mística. Os quatro níveis de
interpretação resultaram no acrônimo s¹drp PaRDeS. Segundo as regras da exegese judaica, o significado real de
uma passagem bíblica deve ser derivado do nível jvP, não podendo ser alterado pelos demais níveis.
2
o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido.
ּומ ֻע ֶּנָֽה׃
ְׁ ֹלהים
ִ֖ ִ ֲח ַש ְׁב ָּ֔ ֻנהּו נָ ג֛ ַּוע ֻמ ִ֥כה ֱא
5 Mas ele foi ferido por causa das nossas
מּוסר
ֵּ֤ ַ הּוא ְׁמח ָֹלֶ֣ל ִמ ְׁפ ָש ָּ֔ענּו ְׁמ ֻד ָ ִ֖כא מ ֲעֹונ ֵֹ֑תינּו
ַּ֙ ְׁ ו5
transgressöes, e moído por causa das nossas
iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre א־לנּו׃
ָֽ ָ ּוב ֲח ֻב ָר ִ֖תֹו נִ ְׁר ָפ
ַ לֹומ ַּ֙נּו ָע ָּ֔ ָליו
ַּ֙ ְׁש
ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.
6 Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas;
ֻכ ָ ַּ֙ל ַּ֙נּו ַכ ֶ֣צ ֹאן ָת ָּ֔ ִעינּו ִ ִ֥איש לְׁ ַד ְׁר ִ֖כֹו ָפ ִנֵ֑ינּו ַוָֽיהוָ ַּ֙ה ִה ְׁפ ִג ֶַ֣יע ָּ֔בֹו6
cada um se desviava pelo seu caminho; mas o
SENHOR fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos. ִ֖את ֲעֹוִ֥ ן ֻכ ָ ָֽלנּו׃
7 Ele foi oprimido e afligido, mas näo abriu a sua boca;
יּובל
ָָּ֔ ח־פיו֒ ַכ ֶש ַּ֙ה לַ ֶ ֶ֣ט ַבח
ִ נִ גַַּ֙ ש וְׁ ֶ֣הּוא נַ ֲענֶ ֘ה וְׁ ֶ֣ל ֹא י ְִׁפ ַת7
como um cordeiro foi levado ao matadouro, e como a
ovelha muda perante os seus tosquiadores, assim ele ִ֖יה נֶ ֱא ָל ֵָ֑מה וְׁ ִ֥ל ֹא י ְִׁפ ַ ִ֖תח ִ ָֽפיו׃
ָ ּוכ ָר ֵ֕חל לִ ְׁפנִ֥י גֹזְׁ ֶז
ְׁ
näo abriu a sua boca.
8 Da opressäo e do juízo foi tirado; e quem contará o
שֹוח ַח ִ ֵּ֤כי נִ גְׁ זַ ַּ֙ר
ֵ֑ ת־ּדֹורֹו ִ ֶ֣מי ְׁי
ִ֖ ּומ ִמ ְׁש ָפ ַּ֙ט לֻ ָ ָּ֔קח וְׁ ֶא
ִ מ ֵּ֤עֹ ֶצר8
tempo da sua vida? Porquanto foi cortado da terra dos
viventes; pela transgressäo do meu povo ele foi מ ֶ ֶ֣א ֶרץ ַח ִָּ֔יים ִמ ֶ ִ֥פ ַשע ַע ִ ִ֖מי ֶ ִ֥נֶ֥גַ ע ָ ָֽלמֹו׃
atingido.
9 E puseram a sua sepultura com os ímpios, e com o
ת־ע ִ ִ֖שיר ְׁבמ ָ ֵֹ֑תיו ַ ַ֚על
ָ ים ִק ְׁב ָּ֔רֹו וְׁ ֶא
ַּ֙ ת־ר ָש ִע
ְׁ וַ יִ ֵּ֤תן ֶא9
rico na sua morte; ainda que nunca cometeu injustiça,
nem houve engano na sua boca. ֹא־ח ָ ֶ֣מס ָע ָָּ֔שה וְׁ ִ֥ל ֹא ִמ ְׁר ָ ִ֖מה ְׁב ִ ָֽפיו׃
ָ ל
10 Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o
ם־ת ִ ֵּ֤שים ָא ָש ַּ֙ם נַ ְׁפ ָּ֔שֹו
ָ אֹו ֶ ָֽה ֱח ָּ֔ ִלי ִא
ַּ֙ יהוה ָחפֵּ֤ץ ַּד ְׁכ
ָ֞ ָ ַ ו10
enfermar; quando a sua alma se puser por expiaçäo do
pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus ְׁהוִ֖ה ְׁבי ִָ֥דֹו ִי ְׁצ ָ ָֽלח׃
ָ ְׁיִר ֶ ִ֥אה ֶ ִ֖ז ֶַ֥רע ַי ֲא ִ ֶ֣ריְך ָי ִ ֵ֑מים וְׁ ִ֥ח ֶפץ י
dias; e o bom prazer do SENHOR prosperará na sua
mäo.
11 Ele verá o fruto do trabalho da sua alma, e ficará
שֹו י ְִׁר ֶ ֶ֣אה ִי ְׁש ָָּ֔בע ְׁב ַד ְׁע ָ֗תֹו ַי ְׁצ ִ ִּ֥דיק ַצ ִ ּ֛דיק ַע ְׁב ִ ִּ֖די
ַּ֙ מ ֲע ַ ֵּ֤מל נַ ְׁפ11
satisfeito; com o seu conhecimento o meu servo, o
justo, justificará a muitos; porque as iniqüidades deles ָ ָֽל ַר ִ ֵ֑בים וַ ֲעֹונ ָ ִֹ֖תם ִ֥הּוא י ְִׁס ָֽבֹל׃
levará sobre si.
12 Por isso lhe darei a parte de muitos, e com os
֒ צּומים֘ ְׁי ַחלֶ֣ק ָשלָ ל
ִ ת־עֲ לָ ָ֞כן ֲא ַחלֶ ק־לֶ֣ ֹו ָב ַר ִָ֗בים וְׁ ֶא
poderosos repartirá ele o despojo; porquanto derramou
a sua alma na morte, e foi contado com os ָ֗ ַת ַחת ֲא ֶַּ֙שר ֶה ֱע ָ ֵּ֤רה לַ ַּ֙ ָמוֶ ַּ֙ת נַ ְׁפ ָּ֔שֹו וְׁ ֶאת־פ ְֹׁש ִ ִ֖עים נִ ְׁמ ָנֵ֑ה
transgressores; mas ele levou sobre si o pecado de
muitos, e intercedeu pelos transgressores. א־ר ִ ֶ֣בים נָ ָָּ֔שא וְׁ לַ פ ְֹׁש ִ ִ֖עים י ְַׁפ ִ ָֽג ַיע׃ ס
ַ הּוא ח ְׁט
ַּ֙ ְׁו
3
The Babylonian Talmud, I Epstein Soncino Press, London 1935 20:658.
4
Ibid.
5
Ibid. Discussion on Sanedrin 98b
3
alguns possíveis nomes para ele, como Shiloh, Haninah, Yinnon, e Menahem. 6 O Midrash
Rabbah faz cerca de trinta e nove referências às Canções do Servo. Uma delas, um midrash
específico para Rute 2.6, apresenta o Messias compartilhando as características de realeza e
sofrimento. Privado de sua soberania ao tempo do sofrimento, ele seria restaurado ao seu trono.
Os midrashim do Saltério7 e os Targumim seguem o mesmo padrão de interpretação. Samson
Levey, escrevendo sobre a interpretação messiânica do Targum, observa:
O targumista jamais demonstrou qualquer dúvida ou incerteza quanto ao que ele entendia
[e desejava comunicar] em suas interpretações; se sentisse que um determinado texto
comportava uma interpretação messiânica, ele o diria indubitavelmente [...] O Targum
[...] menciona o Messias sem restrição, todas as vezes que o intérprete sente que um
significado messiânico está presente ou é implicado no texto.8
6
Ibid.
7 BRAUDE, W. G. The Midrash on Psalms, Yale Judaica Series, New Haven: Yale University Press, 1976
8 LEVEY, Samson H, The Messiah: An Aramaic Interpretation, Monographs of the Hebrew Union College, No 2
4
(1150), que admitiu uma dupla interpretação, dando mais ênfase à interpretação coletivista, 12
Joseph Albo, para quem tudo na profecia de Isaías 52, 53 se refere a Israel,13 Abraham Fairssol
(1500), que também afirmou ter a punição dos gentios caído sobre Israel em caráter de
substituição:
[…] supomos com muita segurança que [o profeta Isaías] se refere propriamente à
congregação de Israel, a quem os profetas chamam pelo termo servo, no singular,
exatamente como faz [Isaías], por hábito e preferência, em muitas de suas profecias
anteriores.14
12
Ibid p.303
13
BARON, David, The Servant of Jehovah Zondervan, Grand Rapids p. 10
14
REMBAUM, p. 304
15
Ao final do século XVIII a erudição liberal, começando com Doderlein (1789) e Eichhorn (1783), questiona a
unidade do livro de Isaías, dividindo-o a partir do capítulo 40. Inicia-se uma distinção entre Isaias ben Amoz (ou
“Isaias de Jerusalem”) e Segundo Isaias (ou Deutero-Isaias). Havia três linhas maiores de argumento para atribuir
Isaias 40-66 a outro autor. 1. A Situação Histórica: A primeira metade do livro presume um contexto em Jerusalém
no oitavo século, quando a Assíria dominava a região. Porém, na segunda metade do livro os ouvintes já estão no
exílio da Babilônia (48:20). Eles antecipam uma redenção iminente e o retorno a Sião (40:9-11; 42:1-9; 43:1-7;
44:24-28; 48:12-22; 49:8-23; 51:11; 52:1-12) e o julgamento divino contra seus inimigos (43:14-15; 47:1-15; 48:14;
49:24-26; 51:21-23). Eles vivem um contexto em que o templo se encontra em ruínas, mas antecipam a
restauração (5:13; 51:3; 54:11-14; 58:12; 60:10; 61:4). Porém, nos dias de Isaias ben Amoz, Babilonia não era ainda
um império mundial, nem tinha se tornado o opressor de Israel que justificasse o juizo divino contra si. Ciro, rei da
Persia, é citado pelo nome (44:28; 45:1, 13). 2. Diferenças Teológicas: Isaias 1-39 enfatiza a majestade de Deus, ao
passo que 40-66 enfatiza seu domínio universal e infinitude. Na primeira parte do livro o povo é conduzido por um
rei da linhagem de Davi (11.1); na segunda, a liderança pertence aos sacerdotes, levitas, e príncipes (61:6; 66:21), e
não há menção da dinastia Davídica. 3. Linguagem e Estilo: A segunda metade do livro é descrito como muito mais
“lírica, fluente, sem afetação, hinódica” do que a primeira parte. Tratam-se de generalizações impressionistas, para
as quais numerosos exemplos podem ser achados em Isaias 1-39; há ainda o uso frequente de pronomes
interrogativos, imperativos, onomatopeias, e perguntas retóricas em Isaias 40-66. O vocabulário exclusivo da
segunda metade também é usado para estabelecer a divisão de fontes.
5
em razão de que os eventos descritos na segunda parte do livro (cap. 40-66) claramente se
referem ao período do retorno do exílio babilônio e obviamente não poderiam ser conhecidos ao
tempo da redação da primeira parte do livro. Por esta razão, numa discussão da ordem dos livros
proféticos, o Talmude situa Isaías após Jeremias e Ezequiel.16 Na Idade Média, os rabinos Ibn
Gikatilla,17 Abraham Ibn Ezra e Isaac Abravanel mostraram uma forte tendência de desintegrar o
livro de Isaías, pelas mesmas razões já citadas. Até mesmo um terceiro Isaías é considerado no
comentário de Israel Slotki.18
De fato, a expressão hwhy db[ “servo do Senhor” figura em oito ocorrências na profecia
de Isaías como se referindo a Israel. O contexto de todas as referências fornece uma identificação
positiva de Israel como o servo do Senhor. As referências diretas ao servo como sendo Israel são
as seguintes:
• Isaias 41.8-9 - Mas tu, ó Israel, servo meu,[ydb[] tu, Jacó, a quem elegi, descendente de Abraão,
meu amigo, tu, a quem tomei das extremidades da terra, e chamei dos seus cantos mais remotos,
e a quem disse: Tu és o meu servo [ydb[], eu te escolhi e não te rejeitei.
• Isaias 44.1-2 - Agora, pois, ouve, ó Jacó, servo meu [ydb[], ó Israel, a quem escolhi. Assim diz o
SENHOR, que te criou, e te formou desde o ventre, e que te ajuda: Não temas, ó Jacó, servo meu
[ydb[], ó amado, a quem escolhi.
• Isaías 44.21 - Lembra-te destas coisas, ó Jacó, ó Israel, porquanto és meu servo [ydb[]! Eu te
formei, tu és meu servo [ydb[], ó Israel; não me esquecerei de ti.
• Isaías 45.4 - Por amor do meu servo [ydb[] Jacó e de Israel, meu escolhido, eu te chamei pelo teu
nome e te pus o sobrenome, ainda que não me conheces.
• Isaías 49.3 - e me disse: Tu és o meu servo [ydb[], és Israel, por quem hei de ser glorificado.
Isaías 43.10 – Vós sois as minhas אתם עדי נאם־יהוה ועבדי אשר בחרתי
testemunhas []עדי, diz o SENHOR, o meu
servo [ ]עבדיa quem escolhi...
Oseias 11.1-2,5 – Quando Israel era menino, כי נער ישראל ואהבהו וממצרים קראתי לבני׃ קראו
eu o amei; e do Egito chamei o meu filho.
להם כן הלכו מפניהם לבעלים יזבחו ולפסלים
Quanto mais eu os chamava, tanto mais se
16
Jewish Encyclopedia, Vol. 6) (New York: Funk and Wagnalls, 1906) p. 641. 2. Baba Bathra 14b
17
Ibid., p. 644
18
SLOTKI, Israel Isaiah Soncino Press, London 1949) p. 10
6
iam da minha presença; sacrificavam a יקטרון׃ לא ישוב אל־ארץ מצרים ואשור הוא מלכו
baalins e queimavam incenso às imagens de
כי מאנו לשוב׃
escultura. Não voltará para a terra do Egito,
mas o assírio será seu rei, porque recusam
converter-se.
19
REMBAUM, p.297-298
20
Ibid. p. 299-300
7
Santa. Fazia-se necessário um consolo ou “explicação” dos eventos. A interpretação do papel
vicário de Israel na aliança foi apresentada como um bálsamo para a comunidade judaica tão
sofrida, que assistia perplexa a supremacia da barbárie.
A interpretação judaica de Israel como o servo sofredor na canção de Isaías é, portanto,
essencialmente circunstancial, historicamente particular, sem levar em consideração nem mesmo
a tradição rabínica anterior, sem um sistema exegético substancialmente elaborado.
A poesia convida o leitor a uma jornada pela Escritura por meio da imaginação e da
emotividade. O viés afetivo encontrado no texto de Isaías 53 é inegável. De fato, a
predominância da poesia hebraica na escrita profética do Antigo Testamento testemunha com
riqueza o uso recorrente da linguagem poética como apelo ao coração do povo de Deus.
O emprego das mais diversas figuras de linguagem na profecia, por exemplo, como
linguagem evocativa de efeito, busca não apenas despertar as emoções do leitor, mas, sobretudo
e primariamente, direcioná-lo para uma resposta emotiva adequada ao sofrimento, como é o caso
específico de Isaías 53. Sentir é tão importante quanto entender, no sentido de que aquilo que se
entende de fato é o que se guarda no coração. Mais do que nas mãos, nas frontes, nos umbrais
das portas, segundo a prescrição mosaica do uso21 do tefilin e da mezuzá, o salmista diz que é no
coração que a Palavra do Senhor deve ser guardada, a fim de que cumpra seu propósito de afastar
o homem do pecado: “guardo no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti”22
Dessa resposta emotiva do leitor, despertada pelo impacto do lirismo, dá conta a poesia
metafísica inglesa, que tem em John Donnes (1572-1631) seu maior expoente. Sua ‘escola’
inglesa de poesia religiosa é acentuadamente marcada pelo ‘humor’23 vívido. Alguns estudiosos
tem traçado diferentes características do pensamento cristão na poesia de Donne, incluindo as
considerações calvinistas de eleição, as práticas inacianas de espiritualidade e a contrição
anglicana.24 Ordenado na Igreja Anglicana em 1615, Donne serviu como sacerdote na Catedral
de São Paulo, de 1621 até sua morte em 1631.
Poesia metafísica é aquela caracterizada pelo uso de ‘humor,’ que pode ser entendido
como “aquilo que se é pensado mas jamais foi antes bem expresso.”25 É distinta do romance por
21
Deuteronômio 6.4-9
22
Salmo 119.11
23
O termo ‘humor’ será empregado aqui no sentido de “senso,” “percepção,” “inteligência,” “astúcia,” evocando a
ideia do termo inglês “wit.”
24
DONOGHUE, Denis, Introduction to The Complete Poetry and Selected Prose of John Donne, ed. Charles M.
Coffin, Random House, Inc., New York, 2001, p. 21-22, 30.
25
BLOOM, Harold, Introduction to John Donne and the Seventeenth-Century Metaphysical Poets, ed. Harold
Bloom, Chelsea House Publishers, New York, 1986 p. 1-3.
8
seu caráter inovador e original. O uso especial da metáfora é uma característica da poesia
metafísica, além de marcados extremos de abstração e concretude, onde a dessemelhança pode
tecer um argumento unificado pela força prevalecente do ‘humor.’26
Outro aspecto da poesia metafísica é a meditação religiosa. O caráter imagético e trágico
da Canção do Servo em Isaías 53 enquadra-se perfeitamente na descrição do caráter de
meditação religiosa proposto pela poesia metafísica. A profecia que inspirou Georg Friedrich
Händel (1685-1759) em seu Oratório Messias, 27 traz expressões que evocam dor, angústia,
humilhação, para despertar a meditação:
26
MARTZ, Louis L. Introduction to The Anchor Anthology of Seventeenth-Century Verse, ed. Louis L. Martz, Garden
City: Doubleday, 1969, p. 24
27
O Oratório Messias, de catalogação HWV 56, 1741, é uma peça sacra extensa, dividida originalmente em 3
partes maiores, subdivididas em 51 movimentos. A primeira parte apresenta a profecia de Isaías 9.6 relativa ao
nascimento de Jesus e a descrição do cumprimento nos evangelhos; a segunda parte relata os desdobramentos da
paixão, profetizados na Canção do Servo em Isaías 53, e o cumprimento nos evangelhos, culminando com o
popular coro “Aleluia”; a terceira parte aborda o tema da redenção.
9
No Santo Soneto XI, por exemplo Donne inicia com uma descrição dramática da dor
experimentada por Cristo, de modo a trazer a o leitor para a cena. Entretanto, em vez de
meramente meditar nos abusos sofridos por Cristo, o desejo do poeta é substitui-lo na cruz e
fazer reparação, sofrendo pelos próprios pecados.28 A expressão “Cuspi, ó judeus, em minha
face!”29 reflete a ênfase de Donne no sofrimento de Cristo e sua necessidade de conformar-se a
ele em seu sofrimento. Trata-se, portanto, de interpretação essencialmente mística e de caráter
subjetivo improvável.
Para Orígenes, a passagem da Canção do Servo deve ser dividida em três partes, sendo
duas falas de Deus, uma de abertura (52.13-15) e outra de finalização (53.11-12), e um
intermezzo (53.1-10) onde se lê a fala dos narradores:
Fala Divina de Abertura – Introitus
Eis que o meu Servo procederá com prudência; אד׃ ַכ ֲא ֶַּ֙שר
ֹ ָֽ ִהּנִ֥ה ַי ְׁש ִ ִ֖כיל ַע ְׁב ִ ֵּ֑די י ָ֧רּום וְׁ נִ ָ ֛שא וְׁ גָ ַ ִ֖בּה ְׁמ
será exaltado e elevado e será mui sublime.
Como pasmaram muitos à vista dele, pois o seu ן־מ ְׁש ַ ִ֥חת מ ִ ִ֖איש ַמ ְׁר ֵ֑אהּו
ִ כ יך ַר ִָּ֔בים
ַּ֙ ָש ְׁמ ֵּ֤מּו ָע ֶ ַּ֙ל
aspecto estava mui desfigurado, mais do que o
וְׁ ת ֲֹא ִ֖רֹו ִמ ְׁבנִ֥י ָא ָ ָֽדם׃ כֵּ֤ן יַזֶ ַּ֙ה גֹויִ ֶ֣ם ַר ִָּ֔בים ָע ָל֛יו ִי ְׁק ְׁפ ִ֥צּו
de outro qualquer, e a sua aparência, mais do
que a dos outros filhos dos homens, assim א־ס ַ ֵּ֤פר לָ ֶה ַּ֙ם ָר ָּ֔אּו וַ ֲא ֶ ִ֥שר
ֻ ֹ יהם ִּ֠ ִכי ֲא ֶַּ֙שר ָֽל
ֵ֑ ֶ ְׁמלָ ִ ִ֖כים ִפ
causará admiração às nações, e os reis
fecharão a sua boca por causa dele; porque בֹונָֽנּו׃
ָ א־ש ְׁמ ִ֖עּו ִה ְׁת
ָ ֹ ָֽל
aquilo que não lhes foi anunciado verão, e aquilo
que não ouviram entenderão.
28
GRANT, Patrick, The Transformation of Sin: Studies in Donne, Herbert, Vaughan, and Traherne, University of
Massachusett’s Press, Amherst 1974, P. 57.
29
DONNE, John Holy Sonet XI
10
Fala Humana dos Narradores – Intermezzo
ל־מי נִ גְׁ ָ ָֽל ָתה׃ וַ יַַּ֙ ַעל ָ ִ ִ֥מי ֶה ֱא ִ ִ֖מין ִל ְׁש ֻמ ָע ֵ֑תנּו ּוזְׁ ִ֥ר ַֹוע יQuem creu em nossa pregação? E a quem foi
ִ֥ ִ ְׁהוִ֖ה ַע
revelado o braço do SENHOR? Porque foi
ת ַאר ִ֖לֹו וְׁ ֶ֣ל ֹא
ֹ ִ֥ יֹונק לְׁ ָפ ָ֗ ָניו וְׁ ַכ ַּ֙ש ֶֹר ַּ֙ש מ ֶ ֶ֣א ֶרץ ִצ ָָּ֔יה ל ֹא־
ֵ֜ ַכsubindo como renovo perante ele e como raiz
de uma terra seca; não tinha aparência nem
א־מ ְׁר ֶ ִ֖אה וְׁ נֶ ְׁח ְׁמ ָֽדהּו׃ נִ ְׁבזֶ ַּ֙ה וַ ֲח ַ ֶ֣דל
ַ ֹ ָה ָ ֵ֑דר וְׁ נִ ְׁר ִ֥אהּו וְׁ ָֽל
formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza
ים ִמ ֶָּ֔מּנּו
ַּ֙ ִּוכ ַמ ְׁס ֵּ֤תר ָפנ
ְׁ ישים ִ ִ֥איש ַמ ְׁכא ִֹ֖בֹות וִ ֶ֣יד ַּוע ֵ֑חֹ ִלי
ִָּ֔ ִא havia que nos agradasse. Era desprezado e o
mais rejeitado entre os homens; homem de
ּומ ְׁכאֹבִ֖ינּו
ַ נִ ְׁב ֶזִ֖ה וְׁ ִ֥ל ֹא ֲח ַש ְׁב ֻנָֽהּו׃ ָאכֵּ֤ן ֳח ָ ַּ֙לי ַּ֙נּו ֶ֣הּוא נָ ָָּ֔שא dores e que sabe o que é padecer; e, como
um de quem os homens escondem o rosto, era
ּומ ֻע ֶּנָֽה׃
ְׁ ֹלהים
ִ֖ ִ ְׁס ָב ָלֵ֑ם וַ ֲא ַנ ְֶׁ֣חנּו ֲח ַש ְׁב ָּ֔ ֻנהּו נָ ג֛ ַּוע ֻמ ִ֥כה ֱא
desprezado, e dele não fizemos caso.
לֹומ ַּ֙נּו
ַּ֙ מּוסר ְׁש
ֵּ֤ ַ הּוא ְׁמח ָֹלֶ֣ל ִמ ְׁפ ָש ָּ֔ענּו ְׁמ ֻד ָ ִ֖כא מ ֲעֹונ ֵֹ֑תינּו
ַּ֙ ְׁו Certamente, ele tomou sobre si as nossas
enfermidades e as nossas dores levou sobre
א־לנּו׃ ֻכ ָ ַּ֙ל ַּ֙נּו ַכ ֶ֣צ ֹאן ָת ָּ֔ ִעינּו ִ ִ֥איש
ָֽ ָ ּוב ֲח ֻב ָר ִ֖תֹו נִ ְׁר ָפ
ַ ָע ָּ֔ ָליו si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de
לְׁ ַד ְׁר ִ֖כֹו ָפ ִנֵ֑ינּו ַוָֽיהוָ ַּ֙ה ִה ְׁפ ִג ֶַ֣יע ָּ֔בֹו ִ֖את ֲעֹוִ֥ ן ֻכ ָ ָֽלנּו׃ נִ גַַּ֙ ש וְׁ ֶ֣הּוא Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado
pelas nossas transgressões e moído pelas
ּוכ ָר ֵ֕חל ִל ְׁפנִ֥י
ְׁ יּובל
ָָּ֔ ח־פיו֒ ַכ ֶש ַּ֙ה ַל ֶ ֶ֣ט ַבח
ִ נַ ֲענֶ ֘ה וְׁ ֶ֣ל ֹא י ְִׁפ ַת nossas iniquidades; o castigo que nos traz a
paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras
ּומ ִמ ְׁש ָפ ַּ֙ט ֻל ָ ָּ֔קח
ִ ִ֖יה נֶ ֱא ָל ֵָ֑מה וְׁ ִ֥ל ֹא י ְִׁפ ַ ִ֖תח ִ ָֽפיו׃ מ ֵּ֤עֹ ֶצר
ָ גֹזְׁ ֶז fomos sarados. Todos nós andávamos
שֹוח ַח ִ ֵּ֤כי נִ גְׁ זַ ַּ֙ר מ ֶ ֶ֣א ֶרץ ַח ִָּ֔יים ִמ ֶ ִ֥פ ַשע ַע ִ ִ֖מי
ֵ֑ ת־ּדֹורֹו ִ ֶ֣מי ְׁי
ִ֖ וְׁ ֶא desgarrados como ovelhas; cada um se
desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez
ת־ע ִ ִ֖שיר ְׁבמ ָ ֵֹ֑תיו
ָ ים ִק ְׁב ָּ֔רֹו וְׁ ֶא
ַּ֙ ת־ר ָש ִע
ְׁ ֶ ִ֥נֶ֥גַ ע ָ ָֽלמֹו׃ וַ יִ ֵּ֤תן ֶא cair sobre ele a iniquidade de nós todos. Ele
foi oprimido e humilhado, mas não abriu a
יהוה ָחפֵּ֤ץ
ָ֞ ָ ַֹא־ח ָ ֶ֣מס ָע ָָּ֔שה וְׁ ִ֥ל ֹא ִמ ְׁר ָ ִ֖מה ְׁב ִ ָֽפיו׃ו
ָ ַ ַ֚ע ל ל
boca; como cordeiro foi levado ao matadouro;
ם־ת ִ ֵּ֤שים ָא ָש ַּ֙ם נַ ְׁפ ָּ֔שֹו י ְִׁר ֶ ִ֥אה ֶ ִ֖ז ֶַ֥רע יַ ֲא ִ ֶ֣ריְך
ָ אֹו ֶ ָֽה ֱח ָּ֔ ִלי ִא
ַּ֙ ַּד ְׁכ e, como ovelha muda perante os seus
tosquiadores, ele não abriu a boca. Por juízo
ְׁהוִ֖ה ְׁבי ִָ֥דֹו ִי ְׁצ ָ ָֽלח׃
ָ ָי ִ ֵ֑מים וְׁ ִ֥ח ֶפץ י opressor foi arrebatado, e de sua linhagem,
quem dela cogitou? Porquanto foi cortado da
terra dos viventes; por causa da transgressão
do meu povo, foi ele ferido. Designaram-lhe a
sepultura com os perversos, mas com o rico
esteve na sua morte, posto que nunca fez
injustiça, nem dolo algum se achou em sua
boca. Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo,
fazendo-o enfermar; quando der ele a sua
alma como oferta pelo pecado, verá a sua
posteridade e prolongará os seus dias; e a
vontade do SENHOR prosperará nas suas
mãos.
11
os transgressores; contudo, levou sobre si o נָ ָָּ֔שא וְׁ לַ פ ְֹׁש ִ ִ֖עים י ְַׁפ ִ ָֽג ַיע׃ ס
pecado de muitos e pelos transgressores
intercedeu.
12
viventes; por causa da transgressão do meu
povo, foi ele ferido.
Origenes claramente estende a ação da obra expiatória do servo em Isaías 53 aos mártires
da igreja de seus dias. Ele parte da pressuposição de que há uma espécie de colaboração dos
mártires na obra redentora de Cristo. O objetivo supremo é purificar o mundo, homem a homem,
e o mecanismo usado por Deus é o martírio. O “cálice da salvação” 33 é a melhor definição de
martírio. É precisamente a isto que Jesus se refere quando diz: “Podeis beber o cálice que estou
para beber?” 34 A obsessão pelo martírio, levou Origenes a defini-lo como um “segundo
batismo”35 para a remissão dos pecados. A morte do próprio Jesus se constituiu um martírio.
30
ORIGEN, Commentary on the Gospel According to John, Books 1-10, The Catholic University of America Press,
Washington, DC 1989, 1.233-1.234
31
Apocalipse 6.9
32
ORIGENES, p. 280
33
Salmo 116.13
34
Mateus 20.22
35
ORIGEN, An Exhortation to Martyrdom, Paulist Press, Mahwah, NJ 1979, XXVIII-XXXII, 58-63
13
exegética complexa e, até certo ponto, é resultado direto de sua formação católica e sua visão de
mundo e da religião judaica.
De imediato, não é o nível literal do texto que interessa a Lutero. Influenciado por
Orígenes e Jerônimo (347-420), ele parte diretamente para o nível alegórico da passagem,
embora identificando o servo diretamente com Cristo. Em seu comentário do capítulo 53 de
Isaías, Lutero se refere à passagem como sendo a “mais clara sobre o sofrimento e ressurreição
de Cristo e dificilmente há outra semelhante a ela.” 36 O interesse de Lutero sobre esta passagem
de Isaías estava associado à sua percepção dos judeus em sua rejeição de Cristo e de sua obra.
O contraste entre o servo sofredor e o rei exaltado não passa despercebido na
interpretação de Lutero, mas ele separa os dois momentos no tempo. Cristo veio como servo
sofredor, em sua aparência “desfigurada,” mas voltará em glória, exaltado. Somente a obra do
Espírito Santo permite ao crente aceitar a “absurda” aparência de Cristo que garante “seu reino
exaltado.”
Para Lutero, a importância central de Isaías 53 é que esta passagem forma a base para a fé
da igreja num reino sobrenatural de Cristo, um reino que essencialmente não é deste mundo.
Isaías 53 não tem a ver com a ação redentora do mundo externo, físico, mas com o mundo
espiritual, não terreno, onde Cristo espiritualmente suporta nossa destruição física.
Lutero faz uma leitura reducionista de Isaías 53, pelo princípio hermenêutico de dividir a
Escritura em lei e evangelho, entendendo que a função primária de Cristo, a razão da encarnação,
é redimir, a raça humana. Somente a morte e ressurreição de Cristo realizam esta redenção.
A Escritura enquanto lei, primeiramente restringe os pecadores e revela a vontade de
Deus; em segundo lugar, mata por meio do julgamento a velha criatura, direcionando o homem
ao conforto do evangelho. A Escritura como evangelho, por sua vez, revela Cristo na palavra,
age na alma dos que ouvem para assegurar, pacificar e encorajar os crentes à prática da vontade
de Deus. Desse modo, elementos literários da passagem são desprezados. Lutero ainda lê Isaías
53 numa versão do sacrifício do templo levítico, acontecendo agora não no sentido físico, mas
espiritual.
36
LUTHER, Martin, Luther’s works, vol. 17: Lectures on Isaiah: Chapters 40-66.
14
pela comunidade da fé. Seguindo este pressuposto da abordagem canônico-linguística proposta
por Brevard Childs,37 para quem é necessário deixarmos o Antigo Testamento falar de acordo
com seu contexto histórico, literário e canônico.38
Sobre a identidade do Servo Sofredor, o que se pode dizer? Quem é ele? Israel, o
Messias? O Remanescente fiel? A resposta não é simples, e está diretamente relacionada à
exegese de muitas passagens que parecem apontar em três direções. A ênfase doutrinária recai
sobre a origem e meios da expiação dos pecados de Israel.
Empregando o esquema de Orígenes, da divisão do poema em três unidades distintas,
sendo (1) uma fala divina de abertura, (2) a fala dos narradores e (3) a fala divina de
encerramento, podemos identificar a origem e o meio e o objeto de expiação dos pecados, numa
leitura simples do texto.
A palavra divina de abertura (Is 52.13-15), apresentando o servo, jamais poderia se referir
a Israel em virtude da incompatibilidade dos termos empregados com a história da nação. Os
termos em destaque no verso 13 apontam para alguém moral e essencialmente diferente de
Israel:
37
Brevard Spring Childs é teólogo, presbiteriano, graduou-se em Princeton em 1950, e concluiu o doutorado na
University of Basel em 1955. Leciona Antigo Testamento desde 1958 na Yale University Divinity School.
38
CHILDS, Brevard “Toward Recovering Theological Exegesis,” in Pro Ecclesia 6 (1997) p. 22-23
39 Holy Bible, New International Reader's Version Copyright © 1995, 1996, 1998 by International Bible Society
www.ibs.org. All rights reserved worldwide: “After he suffers, he will see the light that leads to life. And he will be
satisfied. My godly servant will make many people godly because of what he will accomplish. He will be punished
for their sins.”
15
tradução da locução adverbial “ מעמלapós o sofrimento,” que é construto de “ נפשוsua
alma,” relação esta (de construto) ausente nas versões em português:
6.1.2 A identidade do Servo como Agente da Expiação por meio do Sofrimento e da Nação de
Israel como Objeto Direto da Ação na Fala do Narrador (Isaías 53.1-10)
4
Certamente, ele tomou sobre si as
אכן חלינו הוא נשא ומכאבינו סבלם4
nossas enfermidades e as nossas dores
levou sobre si; e nós o reputávamos por ואנחנו חשבנהו נגוע מכה אלהים
aflito, ferido de Deus e oprimido.
5
Mas ele foi traspassado pelas nossas והוא מחלל מפשענו מדכא5 ומענה׃
transgressões e moído pelas nossas
iniquidades; o castigo que nos traz a paz מעונתינו מוסר שלומנו עליו ובחברתו
estava sobre ele, e pelas suas pisaduras
[nós] fomos sarados. נרפא־לנו׃
A mesma porção identifica o objeto direto da expiação vicária. O narrador (ou
narradores) identifica-se com o povo de Israel, falando sempre na primeira pessoa do plural,
como visto acima. A interpretação rabínica de Rashi, segundo a qual Israel é instrumento de
40
Minha tradução livre
16
expiação das iniquidades dos gentios se torna insustentável, por colocar as nações no papel de
narrador. As transgressões e iniquidades expiadas são “nossas,” ou seja, do narrador e de
quantos estão com ele, confessando as próprias faltas. Mesmo uma leitura peshat deixa claro que
o narrador, o profeta Isaías, jamais se identificaria com os gentios, mas com seu povo, Israel.
Isso coloca a nação dos descendentes de Jacó necessariamente na posição de objeto direto da
expiação, em vez de sujeito.
O fluxo resultante de ideias hermenêuticas apresentadas nas três seções do texto são:
Isaías 1.4-6 descreve Israel como impuro e de indigna condição, ao passo que o servo em
Isaías 52.13-15 é descrito como “mui sublime.” A igreja entendeu que a descrição do servo de
Isaías não caberia a ninguém mais exceto Jesus Cristo. 43 Um Targum aramaico dos Profetas, de
grande importância, atribuído a Jonathan Ben Uziel, 44 contemporâneo de Gamaliel (cf. Atos
5.34; 22.3), traduz Isaías 53.13 assim: “Eis o meu servo, o Messias, prospera: ele será elevado e
florescerá e será mui poderoso.”
O servo e sua obra redentora são identificados com Jesus de Nazaré pela comunidade da
fé. Os escritos de Mateus, Marcos, Lucas, João, Paulo e Pedro, fazem referências diretas à
Canção do Servo, identificando-a com Jesus, o Messias prometido e revelado a Israel. Estes
41
CHILDS, “Recovering” p. 24
42
CHILDS, B S Isaiah, John Knox, Westminster Atlanta 2001, p. 423
43
Atos 8.30-35
44
Jonathan Ben Uziel, discípulo de Hillel, perito em tradução para o aramaico, é mencionado no Talmude como
tendo produzido um Targum dos Profetas, denominado Targum Jonathan.
17
escritores representam, respectivamente, algumas das principais seções do Novo Testamento:
Evangelhos, Epístolas Paulinas, Epístolas Gerais e Apocalipse.
A rejeição de Jesus por Israel é interpretada por João e Paulo como sendo cumprimento
de Isaías 53.1:
“para se cumprir a palavra do profeta Isaías, que diz: Senhor, quem creu em nossa
pregação? E a quem foi revelado o braço do Senhor?”45 e “Mas nem todos obedeceram
ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem acreditou na nossa pregação?”46
O ministério de curas realizado por Jesus foi interpretado por Mateus como cumprimento
de Isaías 53.4:
“para que se cumprisse o que fora dito por intermédio do profeta Isaías: Ele mesmo
tomou as nossas enfermidades e carregou com as nossas doenças.”47
O sofrimento passivo de Jesus, para Pedro, fora predito por Isaías. Pedro abrange o
significado da passagem, estendendo o sacrifício do Messias aos gentios:
“pois ele, quando ultrajado, não revidava com ultraje; quando maltratado, não fazia
ameaças, mas entregava-se àquele que julga retamente, carregando ele mesmo em seu
corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos para os pecados,
vivamos para a justiça; por suas chagas, fostes sarados.”48
A passagem mais extensa da Canção do Servo é citada por Lucas e atribuída a Jesus no
contexto da evangelização internacional:
“Ora, a passagem da Escritura que estava lendo era esta: Foi levado como ovelha ao
matadouro; e, como um cordeiro mudo perante o seu tosquiador, assim ele não abriu a
boca. Na sua humilhação, lhe negaram justiça; quem lhe poderá descrever a geração?
Porque da terra a sua vida é tirada.”49
e
“Então, vi, no meio do trono e dos quatro seres viventes e entre os anciãos, de pé, um
Cordeiro como tendo sido morto. Ele tinha sete chifres, bem como sete olhos, que são os
sete Espíritos de Deus enviados por toda a terra.”50
45
João 12.38
46
Romanos 10.16
47
Mateus 8.17
48
1 Pedro 2.24-25
49
Atos 8.32-33
50
Apocalipse 5.6
18
Pedro, referindo-se ao caráter perfeito e santo do cordeiro de Isaías, identifica-o com Jesus
Cristo:
“o qual não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em sua boca.”51
“E cumpriu-se a Escritura que diz:“Com malfeitores foi contado”52 e de Lucas “Pois vos
digo que importa que se cumpra em mim o que está escrito: Ele foi contado com os
malfeitores. Porque o que a mim se refere está sendo cumprido.”53
6.3 Esboço das Principais Ideias Hermenêuticas de Isaías 52.13-53.12 a Canção do Servo
CONCLUSÃO
Das interpretações acima comparadas, cada uma delas sendo resultado dos pressupostos
de seus proponentes, a hermenêutica canônico-linguística se mostra a que mais compreende a
realidade em todos os seus aspectos canônicos, literários, históricos, linguísticos e exegéticos. As
demais escolas se concentram em um ou outro aspecto do texto. É o caso da abordagem poética
de John Donne, cujo lirismo do texto é revestido de um alto valor interpretativo, valor este que
não encontra eco na comunidade da fé...
A relação do texto com o restante Cânon e com o testemunho da comunidade da fé
legitima o processo interpretativo. A comunidade do Israel crente dialoga com a comunidade da
igreja do novo Testamento, refletindo unanimidade na interpretação da profecia sobre Jesus. A
identidade do Servo Sofredor e da natureza e objeto de sua obra permanece assunto de discussão
51
1 Pedro 2.22
52
Marcos 15.28
53
Lucas 22.37
19
no debate acadêmico, enquanto não se reconhece o kerygma da igreja como fator hermenêutico
crucial e autêntico quando se trata de qualquer apropriação do Antigo Testamento pelos
escritores do Novo Testamento.
20
WHO IS THE LORD’S SERVANT? – A COMPARED READING OF ISAIAH 53
Samuel Fernandes do Nascimento Júnior54
ABSTRACT
The value of the biblical text we analyze here in this paper is about the identity of the servant as
it is presented by the prophet Isaiah in chapter 53. The Ethiopian Official`s question to Deacon
Philip two thousand years ago was “Tell me, please. Who is the prophet talking about? Himself,
or someone else?” has been revisited through the centuries, reaching out dimensions e revealing
implications probably not imagined by the Ethiopian eunuch of Acts 8. The servant`s identity in
Isaiah`s prophecy falls necessarily into two major categories: individual or collective ones. The
individualist theories use to identify the servant as a historical character, like the author himself,
or maybe Zerubbabel, Job, Jehoiakim, Moses, Uziah, Ezekiel, Cirus and, of course, the most
traditionally accepted character, Jesus the Messiah. The collectivists theories on the other hand,
see the servant as the Israeli nation as a whole, or the righteous remnant of Israel. From the
unanimous Jewish interpretation of the servant as their entire nation or the just remnant, going
through the Christian hermeneutics of the servant as their Messiah, Jesus Christ, coming down to
a lyrical view of the servant, four hermeneutical schools shall be reviewed and their
methodologies and results compared. The Brevard Childs’ approach, namely canonical, shall be
applied on the last interpretation, setting its bond to the biblical canon and the testimony of the
Church community, as presented by the New Testament.
KEYWORDS:
Isaiah 53; Servant of the Lord; Jewish Hermeneutics; Rashi; Talmud; Midrash; Targum; Origen;
Martin Luther; John Donne; Canonical Approach; Canon; Church Community.
54
Bacharel em Teologia pela Faculdade de Teologia Evangélica do Rio de Janeiro, Mestre em Estudos Bíblicos
Hermenêuticos do Antigo Testamento pelo CPAJ, professor de hebraico e teologia exegética do Antigo
Testamento, Introdução ao Antigo Testamento e História de Israel, tradutor.
21