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ANO I - Nº 1 - DEZEMBRO - 2014 - ISSN: 2446-5941

Revista
DIGITAL
SIMONSEN
o Pensar
Escrevendo
Índice

Pedagogia
4 - A educação doméstica em Campos dos Goytacazes na segunda metade do século XIX: notas
provisórias (Alexandre Mérida)

D
i
19 -a
32 l- Competência de interpretação x construção do conhecimento: uma análise
ósobre o papel do professor e o processo de interação com os alunos da
g
i educação de jovens e adultos (EJA) no Rio de Janeiro. (Terezinha Machado)
c
a
Antropologia
e
41 -i “Lords anthropologists ” - Debate sobre a origem da teoria clássica britânica e
nsuas influências teóricas metodológicas na obra de Evans – Pritchard (Cleiton
t Maia)
e
r
a
Trajetória
t
i
51 -vSintoma de Poesia (Andreia Martins)
i
d
a
Históriad
e
55 - Fotografia e História: uma relação complexa (Fernando Gralha)
e
73 m- “Não quero servir ao meu senhor”: negociação, conflito e historiografia da
escravidão urbana no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX.
e (Rodrigo Amaral)
d
u
85 -cVisões da religiosidade católica no Brasil Colonial (Sérgio Chahon)
a
ç
Letras ão
100o- Machadoescreve com a pena do corvo: intertextualidade de Edgar Allan Poe
nno conto machadiano “o enfermeiro” (Adriel de Carvalho Ramos)
-
l
i
Memória
n
109e- Realengo: um bairro, uma estação e muitas bicicletas (Allan Oliveira)
(
S
Entrevista
a
n
111d- Leonardo Cioti : A Simonsen e o Profissional de T.I. (Rodrigo Amaral
r e Fernando Gralha)
a
S
i
l
v
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D
i
a
Revista Digital Simonsen 2

Editorial

O lançamento do primeiro número da


Revista Digital Simonsen é para
todos nós, Direção, Coordenações,
Machado, nos quais temas como Escravidão,
educação, tecnologia, História, práticas de
ensino, Irmandades Religiosas, Fotografia,
Docentes e Discentes, motivo de muita linguística, entre outros desenham um cenário
satisfação. Trabalho realizado a muitas mãos de extrema diversidade e articulação da escrita
a Revista nasce do interesse da Faculdade do nosso corpo docente.
Simonsen pela excelência no ensino e por
Voltamo-nos também para a divulgação
saber que ensino e pesquisa caminham hoje,
de pesquisas de intelectuais de outras
lado a lado.
instituições com a publicação do trabalho do
De cunho interdisciplinar e voltada para Prof. Ms. Cleiton Maia, Doutorando pela
as diversas áreas do conhecimento que Universidade Estadual do Rio de Janeiro
representam os cursos oferecidos pela (UERJ) que nos leva a caminhar pelo
faculdade, a revista terá publicação semestral e fascinante mundo da antropologia,
caracteriza-se por apresentar trabalhos tanto de apresentando um trabalho sobre os primórdios
professores com larga experiência na produção da “fundação” da antropologia britânica.
acadêmica como o de abrir oportunidades e
Publicamos ainda uma entrevista com o
primeiros caminhos aos graduandos e pós
Professor Leonardo Cioti que leciona nos
graduandos da Instituição Simonsen. Desta
Cursos de Administração, Ciências Contábeis,
forma acreditamos que nosso trabalho se torna
Licenciatura em Informática, Tecnologia em
um diferencial no campo da divulgação do
Análise e Desenvolvimento de Sistemas
saber e produção acadêmica.
(TADS) e Tecnologia em Processos Gerenciais
Neste número apresentamos já uma das (Gestão Empresarial) da Simonsen. Leonardo
nossas maiores joias: as pesquisas de Mestrado Cioti é também empresário na área de
e Doutorado de seis professores da Faculdade Tecnologia da Informação (T.I.) e nos concedeu
Simonsen: Prof. Ms. Alexandre Mérida, Prof. uma entrevista onde fala sobre a graduação em
Ms. (Doutorando) Fernando Gralha, Prof. Dr. áreas tecnológicas, mercado de trabalho e o
Rodrigo Amaral, Profa. Ms. Sandra Dias, Prof. desenvolvimento da Simonsen como um polo de
Dr. Sérgio Chahon e Profa. Ms. Terezinha formação de profissionais
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gabaritados, num claro convite a todos construção histórica nos discursos dos
aqueles que acreditam que uma boa formação moradores, e, finalizando, na seção
é capaz de mudar a vida de qualquer um. “Trajetória” Andreia Martins, ex-aluna e hoje
escritora e poetisa, apresenta sua relação com
Além destes oito textos, três de nossos
a poesia e a importância do curso de letras em
ex-alunos abrilhantam nossa primeira edição
sua vida e escrita.
com seus artigos: Adriel de Carvalho Ramos
faz excelente diálogo entre os estilos literários Este é o caminho que esperamos trilhar,
de Edgar Alan Poe e do nosso bruxo maior, boa produção acadêmica articulada com os
Machado de Assis, já Allan de Oliveira nos caminhos iniciados em nossa instituição.
leva a passear de bicicleta pela memória do
bairro de Realengo em uma interessante
análise sobre o bicicletário de Realengo e sua
Boa Leitura!

Rodrigo Amaral
Fernando Gralha
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Pedagogia

A EDUCAÇÃO DOMÉSTICA EM CAMPOS DOS


GOYTACAZES NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX: NOTAS
PROVISÓRIAS

1
Por Alexandre Mérida
Ideias Chave: Processos Educacionais, Educação doméstica e agentes de educação

A educação no Brasil sempre foi um tema


polêmico e de difícil consenso.
Apesar de existir
Este artigo abordará
processos educacionais que ocorriam na
segunda metade do século XIX em Campos
alguns

discurso de valorização da educação escolar dos Goytacazes, focando a educação


2
como um meio de ascensão social e de doméstica como uma das principais
superação das desigualdades sociais, o que se estratégias de diferenciação social das
verifica no dia a dia das escolas é uma camadas abastadas.
educação distante da realidade dos alunos.
O contexto histórico selecionado
Uma educação dual, oferecida de forma
para essa pesquisa compreende a segunda
diferente para os diferentes membros da 3
metade do século XIX, na região de Campos
sociedade.
dos Goytacazes no norte fluminense. Trata-se
de uma das principais regiões da província

1
Mestre em Educação pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP) com a dissertação: Quando a casa é a escola:
A Educação doméstica em Campos dos Goytacazes na segunda metade do século XIX. (2013) e Professor das
Faculdades Integradas Simonsen e da Universidade Cândido Mendes.
2
Entende-se por educação doméstica aquela que ocorre na casa do aprendiz por meio de preceptores,
professores particulares, clérigos ou mesmo algum membro letrado da família.
3
Uso a terminologia "região" no sentido dado por José D’Assunção Barros, em seu livro "A expansão da história", publicado
em 2013, pela editora Vozes. Dessa forma, "a região, para a operação historiográfica, não é ponto de partida; frequentemente é
o ponto de chegada" (op. cit., p. 175). Não se refere necessariamente ao espaço geográfico, mas, sim, a recortes
administrativos, culturais e até mesmo didáticos, para auxiliar o trabalho de reconstrução de uma determinada coletividade por
parte do historiador. Tal explicação torna-se necessária, pois ao longo da pesquisa me referirei a Campos dos Goytacazes
como uma região formada por diferentes freguesias, cada qual com sua especificidade. Não há espaço para a verificação da
educação doméstica em cada freguesia que compunha a região de Campos dos Goytacazes no século XIX, por esse motivo, e
ciente das limitações, optei por uma análise mais abrangente. As principais freguesias que faziam parte da região de Campos
dos Goytacazes no espaço delimitado por esta pesqusia, são São Salvador, São Sebastião, São José, Santa Rita da Lagoa de
Cima, São Gonçalo, Santo Antonio de Guarulhos, Santo Antônio de Pádua, entre outras.
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do Rio de Janeiro no século XIX, nação, alinhavando o grande mosaico que era
principalmente devido ao crescimento e a sociedade brasileira de então, dando um
fortalecimento de sua indústria canavieira, o sentido para cada estrato da população, ao
que possibilitou a complexão das relações mesmo tempo em que concentrava o poder
sociais, econômicas e culturais. Associado a nas mãos de uma pequena parcela dessa
esses fenômenos pode-se perceber o mesma sociedade.
desenvolvimento da rede educacional na
Até 1759, a educação ficou tutelada
região, Campos dos Goytacazes possuía
pela Igreja, no caso do Brasil, pela
dezenas de escolas particulares e algumas
Companhia de Jesus, que durante 210 anos
públicas, além de um forte sistema de comandou grande parte dos processos ligados
educação doméstica, tornando-se lócus 6
à educação brasileira . A educação era
privilegiado para o estudo proposto.
destinada apenas a quem podia pagar por ela,
Segundo Vasconcelos, o Período não sendo uma realidade para a grande
Imperial caracteriza-se por ser o "de maior maioria da população que vivia na colônia.
desenvolvimento das práticas educativas, que "Entre as camadas humildes, por outro lado,
atendia as expectativas de uma sociedade que difundiu-se o aprender-fazendo: extramuros
buscava na instrução a definição de sua da escola, na luta pela sobrevivência,
própria identidade, afirmação de sua adquiriam-se os rudimentos necessários para
4 7
civilidade e de seus espaços de dominação." garantir a subsistência [...]". As atividades
Mattos assegura essa perspectiva, ao afirmar desenvolvidas nas unidades produtivas pouco
que a política de instrução pública mantinha demandavam da instrução formal, exigindo
grande proximidade com a centralização do um saber prático aprendido no dia a dia
Estado Imperial: "Assim a instrução cumpria através da observação e imitação. De acordo
– ou deveria cumprir – um papel com Romaneli,
fundamental, que permitia – ou deveria
O ensino que os padres jesuítas
permitir – que o Império se colocasse ao lado ministravam era completamente alheio
5 à realidade da vida da Colônia.
das ‘Nações Civilizadas’" Tratava-se de um Desinteressado, destinado a dar cultura
processo de construção da "identidade" da geral básica, sem a preocupação de
qualificar para o

4 6
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e seus Havia outras ordens religiosas que se encarregavam
mestres – a educação no Brasil de Oitocentos. Rio de da educação, porém nenhuma com a abrangência da
Janeiro: Gryphus, 2005. p. 17. Companhia de Jesus.
5 7
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê:
a formação do estado imperial. São Paulo: Editora língua, instrução e leitura. In: MELLO E SOUZA,
Hucitec, 1987. p. 259 Laura de (org). História da vida privada no Brasil:
cotidiano e vida privada na América portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 331-385. p.333.
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trabalho, uniforme e neutro [...]. As emanava do interior, das grandes unidades


atividades de produção não exigiam produtivas e de seus dirigentes.
preparo, quer do ponto de vista de sua
administração, quer do ponto de vista
Somente a partir da segunda metade
da mão-de-obra. O ensino, assim, foi
conservado à margem, sem utilidade do século XVIII e durante todo o século XIX,
prática visível para uma economia com as mudanças sócio-políticas e
fundada na agricultura rudimentar e no
trabalho escravo. Podia, portanto, econômicas, essa situação foi revertida, com a
servir tão somente à ilustração de crescente valorização da educação entre as
alguns espíritos ociosos que, sem serem 9
diretamente destinados à administração classes intermediárias , como forma de
da unidade de produção, embora alcançarem status social e acesso aos cargos
sustentados por ela, podiam dar-se ao 10
8 de direção. Somam-se a isso as ações
luxo de se cultivarem.
implantadas na metrópole e,
consequentemente, em suas colônias, de uma
Dessa forma, a educação formal era
política centralizadora por parte da Coroa
privilégio de poucos, pois somente alguns
Portuguesa.
dispunham de tempo e recursos financeiros
para acessá-la, com exceção dos filhos Após a expulsão da Companhia de
primogênitos, que, via de regra, eram Jesus pelo Marquês de Pombal, em 1759, foi
destinados à administração de suas heranças introduzido o sistema de Aulas Régias, com

e dos negócios na colônia. Outro motivo professores pagos pelo erário do governo,

igualmente importante, para a pouca mediante a cobrança de um imposto

instrução da população colonial, diz respeito específico, o “subsídio literário”. Xavier

à extensão territorial da colônia e à baixa relata que tais recursos eram insuficientes

demografia de várias regiões, onde as para atender à demanda por instrução,


fazendo com que a Coroa chegasse a "delegar
pessoas encontravam-se espalhadas pelo
aos pais a responsabilidade pelo pagamento
mundo rural. As cidades ainda não haviam
dos mestres, o que mostra como a educação,
se tornado centros importantes dentro da
tornada pública pela lei, esteve, em grande
realidade colonial e grande parte do poder
11
parte, circunscrita ao âmbito da família" .

8
ROMANELI, Otaíza de Oliveira. História da educação intermediária que a educação formal apareceu no século
no Brasil. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982. p.34. XIX, como possibilidade de ascensão e distinção.
9 10
A autora refere-se à construção de uma classe Idem, p.37.
11
intermediária entre os detentores do poder colonial, os XAVIER, Libânia Nacif. Oscilações do público e do
grandes fazendeiros proprietário de terras e os privado na história da educação brasileira. In: Dossiê:
desprovidos de recursos, como os trabalhadores pobres da O público e o privado na educação brasileira. Revista
cidade e do campo. Essa classe intermediária teria sua Brasileira de História da Educação. 1 número.
gênese no enriquecimento de estratos inferiores, Campinas, SP: Editora Autores Associados, 2003. p.
iniciando-se com o período das minerações e o posterior 233-251. p. 236.
crescimento das cidades. Foi justamente nessa classe
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Sobre essa temática, Gondra e Schueler 13


valorizar o saber escolar, a ciência". Torna-
acrescentam: se importante, contudo, ressaltar que o
desinteresse ou o interesse pela instrução
No Império Português, inclusive
na sua colônia americana, os formal variou conforme a posição que os
professores régios aportaram nas indivíduos ocuparam dentro da estrutura
primeiras vilas, ainda em fins do século
XVIII, encontrando aqui também a social e dos vários momentos históricos
diversidade e a heterogeneidade das vivenciados por eles. Se, "no conjunto da
práticas educativas. No que se refere à
instrução e ao ensino de letras, a sociedade predominou o desprestígio da
inserção dos indivíduos na cultura
escrita, em sociedades de tradição educação escolar, entretanto esteve longe de
14
predominantemente oral, se fazia no inexistir qualquer apreço à escola".
contato direto com os grupos originais
de convivência e a partir de iniciativas Com a chegada da Família Real, em
muito distintas, tais como a educação 1808, os processos ligados à educação
doméstica ou a contratação de mestres
e preceptores, leigos e religiosos, pelas tomam novo fôlego, com a criação da
famílias, as ordens religiosas, as Academia Real de Marinha e dos Cursos
irmandades, os seminários, os
recolhimentos e asilos, as associações Médico-Cirúrgicos do Rio de Janeiro, neste
filantrópicas, as corporações de ofício e mesmo ano, da Academia Real Militar, em
12
as oficinas, entre outras.
1810, da Escola Real de Ciências, Artes e
Ofícios, em 1810, entre outras realizações.
Vê-se então, a insuficiência do Mesmo assim, era um claro movimento que
sistema em atender a população que residia visava a satisfazer as necessidades da Corte
no Brasil, ficando a responsabilidade de transplantada para os trópicos e não as
educação restrita ao âmbito privado, 15
necessidades da população aqui residente.
principalmente no final do século XVIII e Villalta chama a atenção para o impacto de
início do século XIX. Não havia professores tais ações:
régios em número suficiente para atender à
Tais iniciativas educacionais e
demanda por educação, ao mesmo tempo em científicas, no entanto, sendo marcadas
que havia um "desinteresse" da população por seu caráter pragmático, escasso e
circunstancial, não levaram a um
como um todo pelos processos formais de progresso científico expressivo e não
educação. "Numa realidade que ensejava alteraram, na prática, nem a tendência
de desprestigiar a educação escolar,
apenas a luta pela estrita sobrevivência, nem muito menos a dependência, em
ignorante do mundo, bruta, não havia como termos de ensino

12 13
GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra. VILLALTA, op. cit. p.353.
14
Educação, poder e sociedade no império brasileiro. Idem, p.354.
15
São Paulo: Cortez, 2008. pp.20-21. GONDRA & SCHUELER, op.cit. pp.24-25.
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superior, da Universidade de 18
16
preparatório" , como demonstrou Otaíza de
Coimbra. 19
Oliveira Romaneli.

Tem-se, dessa forma, uma educação Após essa breve exposição sobre a

segmentada, direcionada para um único educação desenvolvida no Brasil no período

estrato da população e não para todos que que antecede a sua emancipação, faz-se

dela fazem parte. As iniciativas de D. João VI necessário analisar a educação existente no

lograram efeito dentro de um único estamento século XIX, lócus desta pesquisa. O

e tinham como propósito a manutenção da Oitocentos é considerado lugar privilegiado


burocracia governamental, fornecendo mão para observar o nascimento e
de obra apta para desempenhar as várias desenvolvimento da escola pública, assim
funções requeridas. Não havia preocupação como outras formas de educação que estavam
com a educação de primeiras letras, tampouco sendo desenvolvidas nesse período,
com a educação secundária, que era vista de especificamente a educação doméstica, foco
forma propedêutica ao ensino superior, não de interesse deste estudo.
tendo especificidade em si mesma,
A instrução pública ganhou
característica essa que permaneceu durante
importância no Oitocentos, não apenas como
todo o século XIX, mesmo após o Brasil ter-
uma forma de dominação das classes
se tornado independente de Portugal. O
abastadas sobre as classes populares, mas
"17
próprio "Colégio Pedro II , criado para também como um discurso capaz de elevar o
servir de exemplo aos demais de mesmo nível Brasil à mesma condição dos países europeus
e o único mantido pelo governo central, tomados como modelo de desenvolvimento e
sucumbiu às pressões, tornando-se um "curso 20
civilidade . Além disso, havia um forte

16
VILLALTA, op.cit.p.359. passaram a desenvolver uma função propedêutica, ou
17
O Colégio Pedro II foi criado em 1837, no mesmo seja, deixaram de ter um sentido em si mesmos,
prédio que abrigava o Seminário de São Joaquim, na atual fornecendo somente os conhecimentos necessários para
Avenida Marechal Floriano. Seu principal objetivo era os alunos conseguissem entrar no ensino superior. O
ordenar as cadeiras avulsas dos estudos menores do caráter "preparatório" assumido pelo colégio Pedro II
município Neutro, reunindo-as em mesmo lugar e também foi evidenciado por Penna (2009), que ao
ordenando-as. Seu curso durava oito anos e estava analisar o currículo dessa instituição, verificou seu
dividido em várias aulas com diferentes disciplinas, tais caráter humanístico, que visava ao ingresso de seus
como: gramática nacional, grego, geografia, latim, alunos nos cursos superiores. Para um aprofundamento
matemática, desenho, entre outras. Para maiores dessa problemática, indica-se o texto: PENNA,
informações verificar: PENNA, Fernando de Araújo. O Fernando de Araújo. O "currículo colegial" do colégio
"currículo colegial" do Colégio Pedro II. In: CHAVES, Pedro II. In CHAVES, Miriam Waidenfeld; LOPES,
Miriam Waidenfeld; LOPES, Sonia de Castro. Sonia de Castro. Instituições educacionais da cidade
Instituições educacionais da cidade do Rio de Janeiro, do Rio de Janeiro: um século de história (1850-1950).
um século de história (1850-1950). Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: FAPERJ, 2009, p. 37-55.
19
Faperj, 2009, p. 37-56. ROMANELI, op.cit.p.40.
18 20
De acordo com Romaneli, os colégios secundários, Para maiores informações sobre a política
inclusive o Pedro II, no decorrer do século XIX, centralizadora desenvolvida no segundo reinado e suas
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interesse político de centralização do poder 22


assistidos pelo Estado Imperial. Nesses
em torno de um núcleo comum capaz de lhe 23
documentos, há referência à lei de 1827 ,
dar ordenamento e forma. que determinava a criação de escolas de
primeiras letras nas localidades com número
[...] observa-se que, na segunda
década dos Oitocentos, se intensificam suficiente de pessoas para serem assistidas.
as discussões, os projetos e as medidas Cabe notar que grande parte desses abaixo-
legais direcionadas à ampliação da
instrução pública, juntamente com os assinados e requerimentos foi feita por
processos de construção do Estado
independente e do amadurecimento da freguesias rurais, afastadas dos grandes
ideia de formação de um novo Império 24
centros.
21
– o Império do Brasil.
Em Campos dos Goytacazes parece

O interesse do Estado Imperial pela ter ocorrido algo semelhante. Em Relatório

educação pode ser verificado pelo número de da Câmara Municipal, publicado no dia 31

leis e regulamentos que se destinavam a de janeiro de 1850, na primeira página, seção

ordenar a educação pública, principalmente de Instrução Pública, encontra-se a seguinte

no município da Corte. No entanto, esse observação:

interesse, principalmente na segunda metade A criação da 2ª aula publica de


do século XIX, não deve ser visto apenas instrucção primaria da freguezia de S.
Salvador, e a abertura de mais algumas
como um movimento unilateral, em que o particulares na mesma freguezia, tem
Estado toma e conduz a população, ao satisfeito as exigencias da população
da cidade, porem algumas freguezias de
contrário, em diferentes momentos houve fora como a de Santa Ritta, S. Gonçalo,
participação de estratos da população em S. Sebastiao, S. Fidelis, e Aldêa da
Pedra, que se achao providas de
prol de uma educação que atendesse às suas escolas publicas, se resentem da falta
de instrucção, em razao de que uma só
necessidades. José Carlos Peixoto de Campos
aula, em freguezias tao extensas é
descreve uma série de abaixo- improficua para todos os habitantes;
assinados e requerimentos elaborados por pelo que reclamao os povos de taes
escolas, sendo os professores colocados
moradores de freguesias da Corte pouco em 2 ou 3 pontos das freguezias; e a
camara

interlocuções com os processos educacionais, verificar: cidades, vilas e lugares populosos, tanto para meninos
MATTOS, Ilma Rohloff. O tempo saquarema. São como para meninas. Nela encontramos determinações
Paulo: Editora Hucitec, 2004, p. 264-300. sobre o salário que deveria ser pago aos professores, o
21
MATTOS. op.cit. p.263. tipo de método preconizado pelas escolas, entre outras
22 providências. Essa Lei amplia e esclarece o artigo 179,
CAMPOS, José Carlos Peixoto de. Políticas de
Educação Pública na Cidade do Rio de Janeiro (1870- parágrafos 32 e 33, da Constituição de 1824. Para
1930): relações entre o público e o privado na maiores informações sobre o assunto, sugere-se a
construção da rede de escolas públicas. 2010. Tese leitura de FÁVERO, Osmar. A educação nas
(Doutorado em Educação) — Universidade Federal do constituintes brasileiras: 1823-1988. Campinas, SP:
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Autores Associados, 2001.
23 24
A Lei de 15 de outubro de 1827 diz respeito às escolas Idem, pp. 146-147.
de primeiras letras, que deveriam ser construídas em
Revista Digital Simonsen 10

reconhecendo essa conveniencia abastecimento de instrução primária nas


lembra a V. Ex.ª, que a quantia outras freguesias, sugeriu-se o incentivo de
destinada para o pagamento dos 26
professores de cada freguezia pode ser subvencionar escolas particulares ou
dividida em 2 ou 3 gratificações, 27
consignar professores particulares para essa
applicadas a aquelles professores que
estabelecerem suas escolas particulares função.
nos pontos que a camara lhes indicar,
como mais convenientes á instrucção Gondra e Schueler descrevem três
publica, sendo obrigados os ditos
professores a ensinar gratuitamente etapas pelas quais o processo de escolarização
certo numero limitado de meninos pode ser percebido durante o século XIX, são
25
pobres. elas: a elaboração de legislações e políticas
educacionais; a "construção de um aparato
Esse fragmento alerta para algo que
técnico e burocrático de inspeção e controle
foi uma constante no período estudado, as
dos serviços de instrução", tanto para
escolas públicas foram estabelecidas em
verificar as práticas existentes dentro das
regiões próximas aos centros de poder,
escolas, quanto para controlar o acesso e a
ficando as outras localidades desabastecidas
permanência de professores; além da
ou precariamente assistidas pelos programas
confecção de dados estatísticos que serviam
de instrução primária e secundária. São
"para conhecer e produzir representações
Salvador, principal freguesia de Campos dos
sobre o próprio Estado e a sua população,
Goytacazes e sede do governo municipal,
elementos fundamentais para a
sofreu de forma proeminente maior 28
governabilidade moderna".
interferência direta da administração pública,
com o oferecimento de instrução em
quantidade superior às das demais A promulgação de leis ligadas ao
freguesias. Também foi nessa região que se ordenamento da educação pública foi o mais

edificou o "Lycêo de Campos", um dos três notável até então; foram várias as leis, os

existentes no Rio de Janeiro, que se destinava regulamentos, os debates sobre a educação

à instrução secundária. Outro ponto pública, em especial, na província do Rio de

interessante diz respeito a uma não distinção, Janeiro. Dois anos após a independência, deu-

ou ao menos, uma falta de clareza entre o se a confecção de nossa primeira Carta


Magna, outorgada por D. Pedro I, após a
público e o privado. Como forma de sanar o

25 27
Jornal MONITOR CAMPISTA, 31/01/1850, ano A consignação refere-se ao auxílio prestado pelo
14, p. 1. governo aos professores particulares, que se
26 encarregariam de ensinar gratuitamente a alguns alunos
A subvenção era um auxílio dado pelo governo às
escolas particulares, que em contrapartida deveriam pobres.
oferecer um certo número de vagas para estudantes 28
GONDRA e SCHULER, op.cit.pp.32-33.
pobres.
Revista Digital Simonsen 11

dissolução da Assembleia Constituinte. Em províncias ficariam incumbidas da instrução


seu artigo 179, parágrafos 32 e 33, encontra- primária, promovendo-a e legislando sobre
se: ela, através das assembleias provinciais. A

XXXII – A Instrucção primaria, e gratuita a


educação superior ficaria a cargo do governo
todos os Cidadãos. central, assim como o ensino primário e
XXXIII – Collegios, e Universidades, onde secundário no município da Corte.
serão ensinados os elementos das Sciencias,
29
Bellas Letras, e artes.
Outras leis foram promulgadas ao
longo do período com o intuito de regular a
Percebe-se a demarcação de dois
instrução pública durante o Oitocentos, como
níveis de ensino, um destinado a todos os
o regulamento de instrução primária e
cidadãos e outro destinado às elites
econômicas e políticas do Império. Uma secundária do município da Corte, de 17 de
educação bipartida que atenderia de forma fevereiro de 1854. Tais ações visavam a
30
diferenciada os estratos da sociedade . A "certas noções, certas práticas e sentimentos
referência à gratuidade da educação e seu que deveriam ser gerais assim para as
oferecimento a todos os cidadãos, contudo, primeiras classes como para as classes
não garantiu sua efetivação na prática. superiores da sociedade. É essa instrução
Faltavam professores, livros, locais para as
comum, essa identidade de hábitos
aulas e uma definição mais específica sobre a
intelectuais e morais [...] que constituem a
estruturação da educação. Em 15 de outubro
31
de 1827, foi criada a primeira lei geral sobre a unidade e a nacionalidade."
instrução primária no Brasil, definindo, entre
Diante do cenário exposto, em que
outras coisas, os salários a serem pagos ao
professorado, o método que deveria ser se evidenciou, de forma breve, a trajetória de
utilizado nas escolas e outras providências. criação e consolidação de uma primeira
Em 06 de agosto de 1834, foi aprovada a Lei tentativa de “sistema educacional público”, o
n⁰ 16, que legislava sobre a competência da tema da presente pesquisa volta-se para um
instrução pública. As
outro sistema cuja coexistência esteve
29
Constituição política do Império do Brazil (25 de demarcada durante todo o século XIX, a
março de 1824). Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Con educação doméstica.
stituicao24.htm>. Acesso em: 16/10/2014.
30
GONDRA e SCHUELER lembram que a constituição
de 1824, outorgada por D. Pedro I, apesar de não haver
menção à palavra escravo ou escravidão, restringia o cidadãos, eram excluídos das práticas de instrução
acesso dos escravos ao sistema formal de ensino, visto oficial" (2008, p. 208). Entretanto, é importante notar
que este era acessado somente pelos cidadãos. "Nesse que os escravos e, de uma forma mais ampla, os negros
sentido, em primeiro lugar, os escravos, como não- criaram e recriaram estratégias para alcançar algum
tipo de instrução, apesar de, em grande parte, sua
educação ser alicerçada na aprendizagem direta de
algum tipo de ofício (op. cit., p. 226-227).
31
MATTOS, 1990, p. 271 apud GONDRA
e SCHULER. op. cit. p.36.
Revista Digital Simonsen 12

Embora se trate de uma modalidade Gráfico 1 – Oferta de educação doméstica e


de colégios particulares na segunda metade
constatada em diferentes fontes
do século XIX.33
contemporâneas ao momento estudado, fato é
também, que seus registros, muitas vezes
estiveram alijados dos documentos oficiais,
uma vez que era um processo educacional
que ocorria na casa, sob sua escolha,
vigilância e controle, o que dificulta,
sobremaneira, a investigação de suas práticas.

Nas duas primeiras décadas, 1850 e


Ainda assim, “vasculhando” em
1860, a educação doméstica equipara-se, em
diferentes acervos, foi possível a reconstrução
números totais, à educação oferecida em
de alguns aspectos que podem sugerir a
colégios particulares e, mesmo nas décadas
educação doméstica em Campos dos
de 1870 e 1880, quando a educação oferecida
Goytacazes, atrelada a suas elites e ao
em colégios sofre grande impulso, ela
pensamento de fortalecimento do Império do
permanece constante.
Brasil, majoritário durante algumas das
décadas estudadas. Em relação aos agentes da educação
doméstica, verificou-se uma incidência maior
Ao analisar a educação doméstica ao
de homens em relação ao número de mulheres
longo da segunda metade do século XIX,
que se prontificavam a exercer essa atividade,
percebe-se que houve continuidade em sua
principalmente nas décadas iniciais da
oferta e procura, mesmo com o crescimento
segunda metade do século XIX. Através da
dos colégios particulares, principalmente nas
análise do Gráfico 2, percebe-se que o
décadas de 1870 e 1880, ela permaneceu
verificável nos anúncios. Através da análise número de mulheres na década de 1850 é
32 extremamente baixo, se comparado com o
do Gráfico 1 , observa-se sua oferta em
número de homens no mesmo período. Essa
relação à da educação em colégios
situação muda nas décadas de 1870 e 1880,
particulares.
com o aumento dos anúncios ligados à oferta
de educação doméstica por parte das
mulheres. Apesar de a amostra ser menor em

32
Todos os gráficos expostos neste artigo foram orientação de Maria Celi Chaves Vasconcelos,
elaborados com base na minha dissertação de mestrado defendida em outubro de 2013.
33
apresentado ao Programa de Pós-graduação em Gráfico elaborado com o material colhido ao longo
Educação da Universidade Católica de Petrópolis, sob das análises de nossa dissertação de mestrado.
Revista Digital Simonsen 13

1880, em relação aos períodos anteriores, é Já em relação ao lugar social


justamente nesse momento que foi pretendido, conforme o Gráfico 3, verificou-
encontrado certo equilíbrio entre a oferta de se que variou ao longo do período sob análise,
homens e mulheres para a função de mestres porém a categoria de mestre-escola foi a
da casa. menos anunciada no jornal Monitor
Campista, sendo sua maior incidência na
Gráfico 2 – Gênero dos agentes da
educação doméstica na segunda metade do década de 1850, com três referências
século XIX. 34
exclusivas a essa categoria. Nas décadas
posteriores, ela só aparece associada a outras
categorias de educação, como a de professor
particular. Tal fato pode significar que os
mestres-escola já não respondiam ao anseio
da população, ou ainda, esta categoria estaria
limitada a apenas um segmento da população:
caso fosse homem, ensinaria meninos; caso
Ao longo do período, somente em
fosse mulher, ensinaria meninas. O mesmo
dois anúncios não foi possível identificar o
não ocorreria com o professor particular que
gênero do anunciante, pois havia somente
oferecia seus serviços por casas, pois estaria
menção vaga a esse respeito, prevalecendo
sob a vigilância da família do aluno.
palavras como "uma pessoa", sem outros
indícios que auxiliassem na identificação do
gênero do anunciante. Em outros, os indícios A categoria de professor particular
encontrados nos anúncios facilitaram a foi a que apresentou aumento contínuo, seja
demarcação do gênero do anunciante, como na oferta ou na demanda. Também foi a
no anúncio publicado em 14 de fevereiro de categoria que apresentou maior diversidade
1861, no qual "uma pessoa" oferecia-se para entre os agentes, sendo a presença feminina
ensinar "primeiras letras", ou ainda, "tomar maior que nas outras categorias analisadas,
conta de qualquer fazenda, onde não esteja como se verificou no capítulo três desta
seu dono". O fato de o anunciante se oferecer dissertação.
para tomar conta de uma fazenda indica que
A preceptoria sofreu poucas
se tratava de um homem, visto não ser essa
variações, sendo sua oferta/demanda
uma atribuição da mulher na época. constante durante as quatro décadas

34
Gráfico elaborado com o material colhido ao
longo das análises de nossa dissertação de mestrado.
Revista Digital Simonsen 14

analisadas. Em relação ao gênero dos ser uma região agrária, com a maior parte da
preceptores, pode-se afirmar que a presença população vivendo nos campos, pode ter
de homens foi muito maior que a presença de colaborado para a supremacia masculina.
mulheres, mesmo nas duas décadas finais, Além disso, o papel da mulher era associado
onde o interesse pela educação feminina ao lar, ao casamento, em sentido "lato",
cresceu em Campos dos Goytacazes, com a estava circunscrito ao domínio privado e não
proliferação de colégios particulares e ao público. O trabalho como
escolas públicas para meninas. Dos 14 professora/preceptora parece ter sido uma
anúncios que faziam referência exclusiva ou concessão ou uma contingência de certas
preferencial para o trabalho fora da cidade, adversidades, como a morte de marido, como
em fazendas da região, 11 se referem a se verificou ao longo da análise.
homens, dois apresentavam designação vaga,
Em relação à posição social
como "uma pessoa", e somente três dos
pretendida pelos mestres da casa, observou-se
anúncios relacionavam-se ao trabalho de
bastante variação entre as quatro décadas
mulheres. Vasconcelos (2005) encontrou
estudadas, sendo a função de preceptor
situação diferente em sua análise sobre a
constante. No entanto, pode-se verificar, pelo
educação doméstica no município da Corte,
Gráfico 3, que a posição de professor foi a
como sinaliza:
mais anunciada, em especial na década de
Quanto ao gênero, a década de 1880, seguida dos anúncios que faziam
70 marca, de acordo com a amostra referência à preceptoria.
analisada, o início da supremacia das
mulheres nas funções relativas à
educação doméstica e,
consequentemente, o declínio do
número de anúncios colocados por
homens nessas funções, principalmente
no que se refere a professores
particulares, pois, na preceptoria, a
hegemonia feminina já era observada
desde a década anterior (p. 59).
Dessa forma, percebe-se que a
educação doméstica em Campos dos Gráfico 3 – Lugar social
pretendido pelos agentes da educação
Goytacazes esteve associada em maior doméstica na segunda metade do século
número ao trabalho de professores e XIX.
preceptores, sendo as professoras e
preceptoras em menor número, exceção à
Já a figura do mestre-escola vai
última década, quando há uma aproximação perdendo espaço no Monitor Campista,
entre os gêneros dos anunciantes. O fato de
Revista Digital Simonsen 15

sendo sua presença nos anúncios quase nula e, amplo, numa das principais ruas da cidade,
quando aparece, está associada à figura do sua função primeira seria a moradia de uma
professor, ou seja, o anunciante se oferece família, porém era "muito propria até para
para lecionar em sua própria casa ou em casas collegio de meninos".
particulares. A abertura de colégios Sobre esse assunto, Vasconcelos
particulares parece estar associada a esse afirma que,
fenômeno, uma vez que os mestres-escolas
O crescimento do número de
optavam por abrir colégios para receber
colégios particulares e a emergência da
alunos. Normalmente, esses colégios eram escola pública estatal foram, sem
dúvida, fatores que influenciaram a
abertos na própria residência do professor ou
mudança não só de designação, como a
em algum prédio próximo ao centro urbano, postura dos agentes da educação
como demonstra o anúncio (Figura 1): doméstica. Além disso, a perspectiva de
trabalhar em colégios particulares ou
em estabelecimentos oficiais, foi, pouco
a pouco, seduzindo esses sujeitos, seja
pela titulação recebida, seja pelo lugar
social ocupado, ou, o que é mais
provável, pelas condições de trabalho
36
relativas à segurança e estabilidade.

Em Campos dos Goytacazes, o


crescimento do número de colégios
particulares parece estar associado ao
interesse simbólico que as famílias de elite
passaram a ter na educação. Nessa época,
35 grande parte das grandes fortunas já haviam
Fonte: Acervo pessoal do autor .
sido formadas e consolidadas, necessitava-
se, dessa forma, de outros marcadores que
Os colégios abertos nas décadas
fizessem a “diferenciação dos iguais”. A
pesquisadas não podem ser comparados ao
educação parece ter sido um instrumento de
que conhecemos hoje como colégio,
diferenciação da elite agrária na segunda
normalmente eram locais adaptados para o
metade do século XIX, em Campos dos
funcionamento dessas unidades de ensino.
Goytacazes.
Como o anúncio deixa claro, o sobrado era

35
Fotografia realizada a partir do exemplar do Monitor Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de
Campista de 6 de dezembro de 1860, do acervo do Oliveira, em Campos dos Goytacazes.
36
VASCONCELOS, op.cit. p. 61.
Revista Digital Simonsen 16

Como verificado ao longo da educação em Campos dos Goytacazes, na


pesquisa, parte significativa dos anúncios segunda metade do século XIX, como a
referiam-se ao ensino de meninos, no entanto, oferta de educação em colégios particulares
na década de 1870 e 1880, os anúncios e públicos, a educação doméstica continuou
passam a não identificar o gênero dos a ser uma modalidade muito importante,
estudantes, havendo a presença de expressões correspondendo a grande parte dos anúncios
que tanto poderiam significar o ensino de publicados no Monitor Campista do período.
meninos, quanto o ensino de meninas.
Através do Gráfico 4, é possível perceber essa
Referências
variação. Nele nota-se que, na década de
1880, não há nenhuma referência direta ao
ensino de meninos, a grande parte dos ALDABALDE, Taiguara Villela. A presença
do arquivo nos relatórios dos presidentes
anúncios não identifica o gênero ao qual se da província (1835-1889). 2010.
Dissertação (Mestrado em História
destinava à educação. Tal situação contrasta
Social) - Universidade de São Paulo, São
com a década de 1850, quando a educação de Paulo.
meninos apareceu como a de maior monta – ALENCASTRO, L. F. (org). História da vida
privada no Brasil Império: a corte e a
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na segunda metade do século XIX. 37 de Janeiro (1870-1930): relações entre o
público e o privado na construção da rede
de escolas públicas. 2010. Tese
Assim, pode-se afirmar, a partir das (Doutorado em Educação) —
fontes estudadas, ao logo dessa pesquisa que, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro.
apesar do crescimento de outras formas de

37
Gráfico elaborado com o material colhido ao
longo das análises de nossa dissertação de mestrado.
Revista Digital Simonsen 17

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ALMANAK mercantil, industrial e


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de Campos (Rio de Janeiro). Como citar: MÉRIDA, Alexandre. A
educação doméstica em Campos dos
ALMANAK mercantil, industrial, Goytacazes na segunda metade do século
administrativo e agrícola da cidade e XIX: notas provisórias. In: Revista Digital
município de Campos. Campos, RJ: Simonsen. Rio de Janeiro, n.1, Dez. 2014.
Tipografia do Monitor Campista, 1885. Disponível em:
ALMANAK LAEMMERT. Almanak <www.simonsen.br/revistasimonsen>
administrativo, mercantil e industrial.
Revista Digital Simonsen 19

Pedagogia

DIALÓGICA E INTERATIVIDADE EM EDUCAÇÃO ON-LINE

1
Por Sandra Silva Dias
Ideias Chave: Educação à distância, dialogismo e interatividade.

Considerações iniciais

O presente artigo exporá os principais


aspectos desenvolvidos
dissertação de título “Dialógica
na
Dialogismo e interatividade: novos
paradigmas para a educação contemporânea

e Iinteratividade em educação on-line”, cujo Na sociedade contemporânea as


objetivo principal foi discutir a presença do tecnologias da informação assumem singular
dialogismo e da interatividade na elaboração e importância, condicionando de maneira
desenvolvimento do curso on-line “Educação evidente a formação/apreensão e propagação
a Distância na Prática”. Nesse intuito, após dos saberes, bem como a própria ação dos
uma extensa discussão dos principais sujeitos em conseqüência desse processo
conceitos relacionados ao tema, o referido cognitivo-comunicacional. De acordo com
curso on-line foi apresentado e seus principais Lévy (1993) é característico das tecnologias
recursos foram analisados. Devido às comunicacionais — tecnologias da
limitações inerentes a um artigo, a detalhada inteligência, segundo o autor — a
análise do curso será sumarizada, buscando-se especificidade da circulação de informação
perceber como ocorre a presença/ausência dos nas sociedades pós-modernas, sendo incrível a
conceitos de dialogismo e interatividade nos velocidade com que grande número de saberes
diferentes segmentos do curso em questão. é produzido, veiculado e substituído, devido

1
Mestre em Educação pela Universidade Estácio de Sá. Professora das Faculdades integradas Simonsen e autora
da dissertação “Dialogia e Interatividade em Educação On-Line”.
Revista Digital Simonsen 20

aos novos suportes digitais, caracterizando- se convergência das inteligências, forma uma
um fenômeno que tem sido denominado de “a inteligência coletiva e, consequentemente,
era digital” ou “sociedade da informação". uma cultura que implica novas formas de
escrever, ler e lidar com o conhecimento, ou
A partir das tecnologias digitais
seja, maneiras diferentes de pensar e de
(ciberespaço, simulação, tempo real, processos
aprender, gerando, dessa forma, outros modos
de virtualização, etc) a sociedade
de ensinar.
contemporânea desenvolve uma nova relação
entre tecnologia e vida social que Lemos Dentro desse contexto social e cultural a
(2002), entre outros, denomina de cibercultura. educação on-line ganha espaço, sendo
O desenvolvimento da cibercultura se inicia a reconhecida como um “novo ambiente
partir dos anos 70, com o surgimento da micro- comunicacional que surge a partir da
informática nos anos 70, com a convergência interconexão mundial de computadores”.
tecnológica e o estabelecimento do personal (SILVA, 2003). Quando se fala em educação
computer (PC) e com a popularização, nas on-line está em causa referindo a uma
décadas de 80-90, da Internet. Atualmente o modalidade de ensino-aprendizagem que
termo tem sido amplamente empregado para se substitui o contato presencial entre professor e
referir a uma estrutura virtual transnacional de aluno, possibilitando, além da flexibilização
comunicação interativa. temporal e geográfica, a criação e a
manutenção de um novo espaço linguístico
A cibercultura configura uma nova forma
em que se planta e se cultiva o processo
de lidar com a escrita, e, logo, com o
educacional.
conhecimento, porque até ser impresso o
produto cultural e os textos podem ser De acordo com Aretio (2001) as
indefinidamente alterados e transformados, principais características da EAD são:
permanecendo na imaterialidade da página separação professor-aluno; utilização dos
virtual (AMARAL, 2002). Lévy (1994) define meios técnicos; organização de apoio-tutoria;
cibercultura como “o conjunto de técnicas aprendizagem independente e flexível;
(materiais e intelectuais), de práticas, de comunicação bidirecional; enfoque
atitudes, de modos de pensamento e de valores tecnológico; comunicação massiva; e
que se desenvolvem juntamente com o procedimentos industriais (relacionado ao
crescimento do ciberespaço” (p.17). A geração número de estudantes atendidos). Apoiada em
desse espaço do saber ocorre por intermédio das recursos didáticos diversos, com suporte de
redes e dos serviços telemáticos. Visto como tecnologia de informação bidirecional e da
espaço do saber, baseado na possibilidade da construção dialógica e
Revista Digital Simonsen 21

também polifônica, a EAD é gerenciada por através da pesquisa; do isolamento


individual aos trabalhos em equipe
uma estrutura administrativa e, do ponto de interdisciplinar e complexas; da
vista didático, se baseia no sistema de tutoria autoridade no processo de educação
para a cidadania. (BELLONI, 1999,
e na auto-aprendizagem que tem nos p.83, grifo nosso)
conceitos dialogismo, e interatividade os
pressupostos básicos norteadores de sua
A EAD caracteriza-se pelo método
prática.
tutorial de ensino-aprendizado, onde o professor
Belloni (1999) afirma que uma atua propiciando, mesmo sem estar ao lado do
característica fundamental da EAD é a aluno, o suporte necessário para que o mesmo
transformação do professor de entidade possa gerir seu processo de aprendizado. Assim,
individual a entidade coletiva, isto é, na EAD o a figura do tutor se associa a um papel de apoio
conhecimento é construído por meio dos e não a de transmissão de conhecimentos.
diálogos e das possibilidades de pesquisa a Assim, já não tem lugar a figura do educador
partir da dedicação do sujeito. Este processo faz “banco de dados”, que atua como mero
do sujeito um promotor de sua autonomia e de transferidor de saberes previamente legitimados
sua percepção de mundo: a dialogicidade da a alunos que funcionam como meros receptores
educação on-line pode proporcionar a passivos nesse processo, conforme a clássica
flexibilização das fronteiras entre diversas áreas denúncia de Paulo Freire. Um novo paradigma
do conhecimento o que implica em uma série de educativo se apresenta, demandando do
diferenças na definição e atuação do professor educador uma nova postura, menos autocrática e
no ensino presencial e na EAD. Para a autora, monológica.
há uma mudança paradigmática na relação entre
O conceito de monologismo nos leva a
professor-aluno, que deixa de ser hierárquica e
seu duplo simétrico — o dialogismo — e, com
passa a ser uma relação de parceria em
ele, a Bakhtin, teórico fundamental para se
atividades de pesquisa investigação pedagógica.
pensar esse novo ambiente comunicacional e as
Há uma verdadeira revolução na lógica do
práticas pedagógicas mais adequadas ao mesmo.
processo educativo, e agora o professor deverá
Para o pesquisador russo, a linguagem humana,
“ensinar a aprender”, o que implica que sua
e conseqüentemente os ‘produtos culturais’ nela
atuação deixe de ser
engendrados, obedece a um princípio dialógico,
(...) o monólogo sábio da sala de isto é, pressupõe a intensa troca e a ‘negociação’
aula para o diálogo dinâmico dos
laboratórios, sala de meios, e-mail, de sentido entre os sujeitos implicados. Os
telefone e outros meios de interação discursos são sempre construções de sentido que
mediatizada; do monopólio do saber à
construção coletiva do conhecimento, se estruturam a
Revista Digital Simonsen 22

partir de um constante jogo de alteridades, o vinte, com a obra do teórico da linguagem


que destrói a aparente univocidade do ‘texto’, Mickail Bakhtin. Segundo esse autor, todo
com a supremacia de uma voz autoral signo procede de um consenso (com-sentir)
autocentrada e auto-suficiente. Interessa-se entre indivíduos socialmente organizados, no
Bakhtin por analisar as construções de sentido transcorrer de um processo de interação que
nas artes e na literatura a partir de um viés não deve ser dissociado da sua realidade
que priorize o aspecto interativo dos mesmos. material e das formas concretas da
Guia-se pela convicção de que as palavras de comunicação social (1978).
um produtor de sentido estão sempre e
A consciência individual que caracteriza o
inevitavelmente atravessadas pelas palavras
sujeito social é, portanto, um fato social e
do outro, em permanente diálogo com essa
ideológico. Dito de outra forma, a realidade da
alteridade, ainda quando inexiste a
consciência é um fenômeno suscitado pela
consciência desse processo.
linguagem a qual interliga as identidades
Assim, dialogismo é um dos princípios sociais. São os fatores sociais que determinam o
teóricos fundamentais para se pensar uma conteúdo da consciência — do conjunto dos
prática educativa que não se pretende mais discursos que atravessam o indivíduo ao longo
estática e ‘bancária’, mas sim, em palavras de de sua vida, é que se forma a consciência. O
Freire (1987), onde o educador se assuma pensamento de Bakhtin se apóia em dois
como aquele ‘provocador’ de experiências alicerces: a alteridade, que pressupõe a
que abrem as possibilidades para a existência de um “outro” reconhecido pelo “eu”,
produção/construção dos saberes através de e ambos — eu e outro — inseridos dentro de um
uma progressiva consciência de que ser espaço político e social historicamente
humano é ‘ser inacabado’, é o estar em determinado; e o dialogismo, que rege as
permanente ‘estado de busca’. Já não cabe à relações entre ambos sujeitos. As minhas
escola e ao educador a função de transmissão próprias palavras estão atravessadas pelo outro,
de conhecimento, já que outros meios existem pelo dito e o não dito do corpo social em que me
com tal eficiência e, sim, possibilitar o insiro, a ponto de Bakhtin afirmar:
aprendizado usando as múltiplas e variadas “Mergulhando ao fundo de si mesmo o
modalidades de informação já disponíveis. homem encontra os olhos do outro ou vê com
os olhos do outro” (1978, p.328)

Bakhtin e Freire: a dialogicidade inerente Ao perceber e problematizar a


à prática pedagógica lingüística do séc XIX, Bakhtin buscou uma
O dialogismo surge enquanto discussão nova compreensão das formas de produção do
no campo da lingüística a partir da década de
Revista Digital Simonsen 23

sentido, na direção de uma ética e estética da A atual sociedade da informação


linguagem, contribuindo para um novo ponto de demanda mudanças significativas na
vista a respeito da linguagem humana, educação, entre elas a substituição da
estabelecendo uma nova postura em relação à transmissão unidirecional de informação pela
dimensão sócio-histórica dos sujeitos. Bakhtin troca interativa entre os sujeitos da
confere ao discurso de ser esse ‘engenheiro de aprendizagem, bem como a ideologia de uma
pontes’ interativas entre os indivíduos, diz-nos educação continuada e centrada no aluno e a
o teórico: “A palavra é uma espécie de ponte rejeição daquele tipo de ensino ‘bancário’,
lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia entre outras mudanças paradigmáticas. A
sobre mim numa extremidade, na outra se apóia educação on-line, constitui uma interessante
sobre meu interlocutor” (1988, p. 113 apud oportunidade para o necessário deslocamento
FREITAS, 1996, p. 140). da pedagogia da transmissão para a pedagogia
do diálogo. Isto porque a educação on-line
Para Bakhtin o olhar do outro funciona
tem na interatividade o seu fundamento
como uma espécie de horizonte que molda
irrecusável, e a veracidade dessa afirmativa se
nossos valores, percepções e concepções de
comprova pelo fato de que a utilização dos
mundo, e é pelo embate entre diferentes
recursos midiáticos e de hipertexto dentro de
cosmovisões (as nossas e as dos outros) que o
uma concepção tradicional de ensino não surte
novo emerge e o conhecimento se engendra.
quaisquer efeitos significativos sobre o
Como ser sociocultural que é, o homem não
desempenho dos alunos e a pretendida
pode prescindir do olhar do outro, um outro que
qualidade da educação.
é historicamente determinado, e não uma
abstração metafísica. Reconhecer o caráter A posição de Bakhtin é bastante fértil em
intrinsecamente dialógico da linguagem e, logo, termos de prática interacional tanto na educação
dos saberes nela produzidos é o primeiro passo a distância quanto na presencial, e nesse sentido
para a substituição de um modelo pedagógico é interessante constatar algumas aproximações
‘monológico’ — no qual o professor é o entre Bakthin e um importante educador
guardião de verdades absolutas que precisam brasileiro que concentrou os esforços de sua
ser transmitidas com ‘fidelidade’ para os alunos vida em repensar a educação como práxis
— para um modelo que se baseia no diálogo impossível de ser desvinculada da realidade
mútuo, e as vezes, dissonante, entre os sócio-histórica e cultural em que ela se dá.
diferentes ‘discursos’ proferidos por Trata-se de Paulo Freire, que concebe o humano
aprendentes e ‘mestres’. como um ser inacabado e em permanente
construção; uma construção que se dá a partir de
uma práxis concretamente
Revista Digital Simonsen 24

situada e historicizada. Logo, ambos autores de sua própria educação. Não pode ser
apostam na capacidade desse sujeito histórico objeto dela. Por isso, ninguém educa
ninguém. (1978, p.27-28)
assumir-se enquanto sujeito da própria
formação, que não se dá em um vácuo social e
sim pela interação e diálogo com outros Assim, a educação é bem mais do que
um conjunto de teorias pedagógicas e
sujeitos historicizados e também
didáticas, uma prática de liberdade e para a
potencialmente capazes de assumirem os
liberdade. Prática para liberdade porque tem
compromissos desse estar-no-mundo
por princípio que os homens não podem ser
compartilhado. O que se procura enfatizar é
tratados como “objetos” a que se deve
que os pressupostos construtivistas, que
“encher” com conteúdos prontos, de forma a-
postulam o homem como um animal bio-
crítica e passiva; antes, devem ser convidados
psíquico-sócio-cultural que se “constrói” ao
a tornarem-se sujeitos do próprio processo
mesmo tempo em que “constrói” o outro,
educativo, o que implicará, por sua vez, em
fundamentam ambos pensadores a afirmar a
uma prática da liberdade, pelo fato de não ser
importância do jogo de alteridade na formação
possível desvincular a educação dos demais
humana. Assinala Bakhtin,
âmbitos da vida desse sujeito (sócio-cultural,
Se eu mesmo sou um ser acabado familiar, político, afetivo, etc), assim sendo, o
e se o acontecimento é algo acabado,
não posso nem viver nem agir: para exercício da liberdade se estenderá a todos
viver, devo estar inacabado, aberto eles, iniciando um processo de transformação
para mim mesmo — pelo menos no que
constitui o essencial de minha vida —, política e social.
devo ser para mim mesmo um valor
ainda por-vir, devo não coincidir com a A proposta de Freire é ideológica: é
minha própria atualidade (BAKHTIN,
preciso que o educador se comprometa com a
apud FRANÇOIS, 1997, p.206)
mudança, com a solidariedade e com a
“humanização” do mundo dos homens: “O
Para Freire o próprio núcleo de nossa
verdadeiro compromisso é a solidariedade, e
experiência existencial seria a consciência
não a solidariedade dos que negam o
desse inacabamento ou inconclusão, e o
compromisso solidário, mas com aqueles que,
impulso para a educação se dá como resposta à
na situação concreta, se encontram convertidos
finitude que somos:
em “coisas” (1978, p.19)”. Entretanto, o que
A educação é possível para o importa destacar em Freire é a denúncia que o
homem, porque este é inacabado e
mesmo faz da “coisificação” do educando,
sabe-se inacabado. Isto leva-o à sua
perfeição. A educação, portanto implica transformado em objeto passivo de um tipo de
uma busca realizada por um sujeito que
ensino classificado por ele como bancário.
é o homem. O homem deve ser o sujeito
Revista Digital Simonsen 25

“Coisas” não dialogam, não trocam, não alteram interação será harmoniosa ou simétrica: pode
suas perspectivas pré-determinadas, nem haver conflitos e divergência, culminando em
constroem a utopia de um mundo melhor. relações de força-poder-submissão. Mas
Coisas não olham para o outro, não exercitam a também pode haver trocas, diálogo,
alteridade, nem a liberdade, ou a solidariedade. “revelação”, pois posso me encontrar no olhar
Nesse sentido Freire e Bakhtin se encontram, do outro, conhecendo-me melhor através dele.
pois para esse último “a minha visão precisa do Freire (1998) discute a educação como um
outro para eu me ver e me completar, minha processo interativo não prescinde das relações
palavra precisa do outro para significar”. de autoridade do educador, entretanto, é preciso
(JOBIM e SOUZA, 2003, p.84) que essa necessária autoridade se dê dentro do
binômio autoridade-liberdade, onde o elemento
Freire elabora uma ‘pedagogia do
regulador será o respeito mútuo: “O bom seria
oprimido’ em que a vocação de “ser mais’
que experimentássemos o confronto realmente
própria do homem é “afirmada no anseio de
tenso em que a autoridade de um lado e a
liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos,
pela recuperação de sua humanidade roubada” liberdade do outro, medindo-se, se avaliassem e
fossem aprendendo a ser ou a estar sendo elas
(NÓVOA, 1981, p.30). As considerações de
mesmas, na produção de situações dialógicas”
Paulo Freire sobre a educação partem do
(1998, p.100).
princípio de que vivemos em uma sociedade
dividida em classes, marcada pela Tais situações dialógicas exigirão do
desigualdade das oportunidades e de educador uma tomada de posição em relação
distribuição de renda e bens culturais. Sua ao aluno, no sentido de “ouvir” o que ele tem
pedagogia tem caráter extremamente crítico e a dizer, em todos os sentidos que a palavra
politizado, por implicar em devolver ao ouvir possa assumir. Isto implica em que o
homem seu lugar central na História, aluno seja desalienado de seu papel de mero
“despertando-o” para seu caráter de sujeito receptáculo de conteúdos, tornando-se
ativo. ‘sujeito’ que toma a palavra e se “narra”, o
que pode ter consequências imprevisíveis para
A educação como prática de liberdade
o processo pedagógico, exigindo do professor
pressupõe o exercício da alteridade, pois se
não apenas uma mudança “didática” mas uma
funda na convicção de que é o outro, é seu
nova postura política e ideológica:
olhar, que nos define e nos forma; entretanto,
nesse jogo de reflexos não existe passividade Aceitar e respeitar a diferença é
possível, o sujeito sempre estará em interação uma das virtudes sem o que a escuta não
pode se dar. Se discrimino o menino ou a
com o outro, entretanto, nem sempre essa menina pobre, a mulher, a camponesa, a
operária, não posso evidententemente
Revista Digital Simonsen 26

escutá-las e se não as escuto, não posso colocado em situação de interatividade”.


falar com eles, mas a eles, de cima para
baixo. Se me sinto superior ao diferente, Discorrendo sobre as práticas e desafios com
não importa quem seja, recuso-me que se depara o educador no ambiente de
escutá-lo ou escutá-la. O diferente não
EAD virtual, Almeida (2002) faz as seguintes
é o outro a merecer respeito, é um isto
ou aquilo destratável. (FREIRE, 1998, observações:
p.136)
É fundamental superar a
concepção de EAD como mera
Os posicionamentos de Bakthin e Freire distribuição de informações de um
centro emissor para receptores passivos
parecem comprovar a hipótese de que o e investir na criação de referências
‘segredo’ do êxito do processo de construção sobre tecnologias em EAD
considerando-se os diferentes meios e
de comunidades aprendentes está, mais do que linguagens que entrelaçam forma e
nos métodos didático-pedagógicos, na criação conteúdo nas representações de fatos,
fenômenos, conceitos, informações,
de um ambiente de interatividade entre os objetos e problemas em estudo, o que
implica em considerar docentes e
sujeitos envolvidos nesse processo; entretanto,
alunos, sujeitos ativos da
a interatividade já estará pressupondo uma aprendizagem, comunicação, interação,
seleção, articulação e representação de
‘pedagogia do diálogo’ como alicerce de onde informações. (p.2)
se erigirá todo o direcionamento curricular,
didático-metodológico e ideológico desse
A interatividade não é só um elemento
processo.
dentre alguns outros elementos que compõem
a educação on-line, mas é o produto e a fonte
Ressignificando o papel do professor na irradiadora de todas as estratégias dialógicas
EAD
que podem compor o processo educacional a
A perspectiva dialógica de ensino distância. Esta distância orgânica pode dar
pressupõe uma via de mão dupla, onde espaço para a criação de um novo modelo de
professor e aluno trabalham juntos na
interatividade entre humanos: a interação
construção do conhecimento, dividindo
virtual intensifica a necessidade de uma
responsabilidades, dificuldades, desafios e
linguagem vista como dinâmica e interativa.
alegrias. Entretanto, nem sempre essa será
Por conta destas afirmações, o professor deve
uma situação “confortável” para o professor,
buscar na interatividade um canal fértil de
que precisará aceitar a mudança de paradigma
conexão com seus alunos:
de que fala Marchand (p. 264), em que “o
esquema clássico da informação, que se O professor que busca
interatividade com seus alunos propõe o
baseava numa ligação unilateral ou conhecimento, não o transmite. Em sala
unidirecional emissor-receptor, se acha mal de aula é mais que instrutor, treinador,
parceiro, conselheiro, guia, facilitador,
Revista Digital Simonsen 27

colaborador. É formulador de verdade, como também os alunos não mais


problemas, provocador de situações,
assumem o papel exclusivo de ouvintes. A
arquiteto de percursos, mobilizador das
inteligências múltiplas e coletivas na interação aparece neste novo contexto
experiência do conhecimento.
educacional como ferramenta capaz de
Disponibiliza estados potenciais do
conhecimento de modo que o aluno modificar os métodos de ensino, deixando de
experimente a criação do conhecimento
basear-se apenas na transmissão de
quando participe, interfira, modifique.
Por sua vez, o aluno deixa o lugar da conhecimento. Uma abordagem teórica a
recepção passiva de onde ouve, olha
copia e presta contas para se envolver respeito dos papéis do professor, do tutor e do
com a proposição do professor. (SILVA, aprendiz no aprendizado, caracterizando suas
2003, p.269)
atuações, perfis, transformações e adaptações
em relação às novas demandas tecnológicas da
Nas últimas décadas, a aprendizagem sociedade contemporânea significa estabelecer
vem sofrendo adaptações em diversos níveis um posicionamento crítico perante a realidade.
devido às novas exigências sociais, Além disso, assumir como suporte teórico os
econômicas e, sobretudo, tecnológicas, que conceitos de interatividade e dialogismo,
afetam diretamente a sociedade moderna. Com problematizando a aplicação desses princípios
o advento da internet, a informação começou a na educação on-line e, igualmente, promove um
circular com maior agilidade, aperfeiçoando a debate a respeito de um fenômeno que não pode
troca entre os quatros continentes. Neste ser deixado de lado: as novas relações entre a
cenário, a educação não ficaria imune aos linguagem e a tecnologia.
acontecimentos, pois ela sempre se insere num
O emprego de tecnologias de
contexto e a prática de ensino deve objetivar a
informação e comunicação, na educação a
formação de cidadãos capazes de interagir em
distância, promove a interatividade graças ao
sociedade. Em decorrência de tais fatos, a
pluridimensionamento de novos ambientes de
escola ganhou uma nova dimensão, o que
aprendizagem via internet. As práticas
afetou todos os níveis e áreas da aprendizagem,
educativas a distância, entretanto, oscilam
desde a estrutura física com a possibilidade das
entre as tradicionais formas mecanicistas de
aulas não-presenciais do ensino a distância até
transmissão de conteúdos digitalizados e os
a formação dos professores/tutores
processos de produção colaborativa de
Não importa o tipo de educação, conhecimento em atividades de comunidades
presencial ou a distância, o ambiente de aprendizagem. De fato, pode-se pensar, em
comunicacional deve ser sempre valorizado. O termos de educação on-line, na criação de
professor não se põe como mais a figura central redes interdisciplinares e interativas de
do processo de aprendizagem, o detentor da conhecimentos em ambientes virtuais de
Revista Digital Simonsen 28

aprendizagem de novos saberes e dimensão político-existencial e espiritual. O


competências, sinalizando a importância da desenvolvimento destes ambientes de
utilização de interfaces entre diferentes áreas aprendizagem virtuais, como ferramentas da
do pensamento humano. Nesse sentido, é educação on-line, traz novos desafios
preciso avaliar as interações do indivíduo com inadiáveis como o aprimoramento das
seus colegas em vez de apenas progressos e técnicas que serão utilizadas e democratização
atividades individuais. destes novos procedimentos educacionais.

Talvez, um dos maiores desafios para a Antes de qualquer princípio, o educador


educação a distância seja como fazer emergir deve se preparar para o exercício de seu ofício
concretamente a colaboração e cooperação, on-line. A radicalização histórica da pedagogia
partindo dos conceitos de polifonia, da transmissão exigirá formação continuada e
interatividade e dialogismo em ambientes profunda capaz de levá-lo a redimensionar sua
virtuais de aprendizagem. Nesta busca, prática docente tendo claro que não basta ter o
destaca-se quatro dados que podem ser computador conectado em alta velocidade de
considerados importantes: (a) a manifestação acesso e ampla disponibilização de conteúdos
natural de intencionalidades coletivas; (b) para assegurar qualidade em educação. É
reflexões contextualizadas decorrentes de necessário que se ponha em prática a
trocas de experiências por meio dos próprios interatividade dos discursos produzidos
diálogos; (c) o jogo de alteridade, ou seja, a polifonicamente e dialogicamente. Ao invés de
colaboração resultada da parceria e do prazer ensinar meramente, o professor necessitará
em compartilhar conhecimentos; (d) a aprender a disponibilizar múltiplas
cooperação que tem como escopo à experimentações e expressões no plano da
transformação. interatividade. Da mesma forma, deve buscar a
instalação de conexões em rede que permita
Estas quatro propostas de ambientações
múltiplas ocorrências. Em lugar de comunicar
virtuais explicitam o objetivo do processo de
simplesmente, o professor será um formulador
aprendizagem on-line: a ampliação de cultura
de questões, provocador de idéias, arquiteto de
democrática de aprendizagem em espaços além
percursos, motivador da experiência do
dos presenciais, como o ciberespaço — Internet
conhecimento coletivo, interlocutor de
—, implementando uma linguagem de
fundamentos.
comunicação entre professores e alunos capaz
que promover os processos democráticos, seja A educação on-line possui como
na produção de conhecimentos e da cultura, seja especificidade a convergência e a integração,
na própria vida, entendida em sua em um mesmo aparato tecnológico, de
Revista Digital Simonsen 29

diferentes linguagens e mídias: verbais, ensino, desde que os professores saibam


icônicas, sonoras, visuais, textuais e empregá-las, dando-lhes uma finalidade.
hipertextuais, instaurando um espaço Diante dessas dimensões técnicas, o professor
discursivo polifônico que exige interatividade precisa conhecê-las para que possa saber quais
dos sujeitos em atuação, o que, conforme potencialidades podem ser empregadas nas
destacou Almeida, proporciona “novos modos atividades, de acordo com sua proposta
de criar, pensar, comunicar, interagir, aprender educacional. Observa-se ainda que o professor
e ensinar, viabilizando o exercício do diálogo, precisa buscar uma atualização, já que as
a polifonia em relação à forma e conteúdo e a tecnologias são superadas constantemente.
reconstrução de significados” (p.3). Assim, “a chegada das novas tecnologias afeta
Entretanto, o fato de empregar as tecnologias em primeiro lugar a mudança dos modos de
de informação e comunicação não significa em comunicação e dos modos de interação”
hipótese alguma que os recursos oferecidos (ALAVA, 2003, p.10).
pela internet serão a única referência
Finalmente, cabe lembrar que o êxito do
empregada pelas disciplinas. Nesse sentido, o
processo educacional não depende apenas dos
uso das tecnologias de informação e
suportes utilizados, o que vale também para a
comunicação em educação está voltado à
educação on-line. As características do ensino
promoção da aprendizagem, procurando
digital — plasticidade, conectividade,
despertar nos alunos/aprendizes o
hipertextualidade — não são garantias de
questionamento, a conscientização, para que
mudanças nas práticas educacionais. Os
consigam refletir sobre seus papéis e suas
problemas podem ocorrer tanto pela diminuição
ações. Nesse sentido,
de participações e comunicações, tornando o
Não basta o professor conhecer o ambiente digital pouco visitado, transformado e,
conteúdo de sua área de conhecimento principalmente, ampliado; quanto pela
para utilizar o computador na criação
de ambientes amigáveis que favoreçam passividade dos participantes, pois quando esses
a aprendizagem do aluno, nem é
param de socializar seus saberes isso tem como
suficiente encomendar a um técnico a
criação desses ambientes. A interação conseqüência a perda da potência desse espaço
entre as dimensões tecnológica,
digital, que torna-se apenas mais um depósito de
pedagógica e específica da área de
conhecimento é que torna mais efetivo o informações, ou um banco de dados. Resta
uso do computador na aprendizagem.
lembrar que a interatividade não é garantida
(ALMEIDA, 2002, p. 12)
nem pelos cursos presenciais nem pelo ensino a
distância, sendo antes resultante de uma
As tecnologias da informação e
abordagem mais aberta do processo educativo,
comunicação (TIC) podem potencializar o
onde o professor
Revista Digital Simonsen 30

aparece como mediador da aprendizagem e o aquele que assuma a responsabilidade de


aluno como agente ativo desse processo. “ensinar a aprender”, o que implicará em
outros pressupostos metodológicos e
pedagógicos para a educação que se queira
Considerações finais
eficaz.
Estivemos discutindo as possibilidades
Perceber os fenômenos relacionados
abertas pelas novas tecnologias digitais para a
com a EAD significa perceber uma tendência
educação a distância, que se alia a esses novos
que pode formar leitores mais autônomos,
suportes para torna-se on-line, o que implica
mais protagonistas dos próprios percursos,
em alterações paradigmáticas na concepção
com maior envergadura para pensar os textos
de papéis e objetivos do processo pedagógico.
e relacioná-los com intertextos. A EAD se
Assim, o ensino a distância on-line tem
processa em um contexto histórico de
forçado a problematização de concepções de
formação de novos sujeitos, resultado das
ensino que ficaram caracterizadas por uma
mudanças nas relações entre os humanos e as
assimetria entre ‘mestre’ e aluno que impede
inovações tecnológicas.
a comunicação interativa, bem como uma
profunda passividade do segundo. Assim, a educação on-line surge como
chave ou alternativa educacional para uma era
Atualmente o que se verifica é que,
dominada ideologicamente pela esfera do
independentemente do tipo de educação,
monólogo e, consequentemente, da exclusão. A
presencial ou a distância, esse paradigma de
polifonia e a interatividade são temas centrais
educação encontra-se ultrapassado, pois o
para a formação de um trabalho educativo
próprio ambiente comunicacional social no qual
constituído e processado dialogicamente. Esse
os alunos se encontram é “polifônico”,
tipo de ensino não presencial possui como
demandando dos mesmos intensa participação e
especificidade a convergência e a integração,
envolvimento. A escola não já ocupa o lugar
em um mesmo aparato tecnológico, de
central na formação educacional dos indivíduos,
diferentes linguagens e mídias: verbais,
e o professor também não é mais a figura
icônicas, sonoras, visuais, textuais e
central do processo de aprendizagem: se o aluno
hipertextuais, instaurando um espaço discursivo
é cotidianamente bombardeado por uma
polifônico que exige interatividade dos sujeitos
infinidade de informações as quais precisa saber
em atuação, o que, conforme destacou Almeida,
decodificar, interagir e responder
proporciona “novos modos de criar, pensar,
adequadamente, já não tem lugar o educador
comunicar, interagir, aprender e ensinar,
“detentor” de saberes (pois as informações já viabilizando o exercício do
não são seu patrimônio exclusivo), mas sim
Revista Digital Simonsen 31

diálogo, a polifonia em relação à forma e Referências


conteúdo e a reconstrução de significados”
ALAVA, Séraphin. Uma abordagem
(2002, p. 3). Entretanto, o fato de empregar as pedagógica e midiática do ciberespaço.
tecnologias de informação e comunicação não Pátio Revista Pedagógica. Ano VII, n°
26, maio/julho 2003.
significa em hipótese alguma que os recursos ALMEIDA, Elizabeth Bianconcini de.
oferecidos pela internet serão a única Educação, projetos, tecnologia e
conhecimento. São Paulo: PROEM,
referência empregada no processo de ensino- 2002.
aprendizagem. ARETIO, L.G. Formación a distancia para
el nuevo milenio. Cambios radicales o de
procedimiento, 2001.
Primeiramente, é preciso se pensar a
BAKHTIN, Mikhail (Volochinov).
prática pedagógica sob uma nova lógica, ao Marxismo e filosofia da linguagem. São
Paulo: Hucitec, 1978.
invés de se reproduzir o modelo de ensino
BELLONI, M. L. Educação a distância.
tradicional, pautado na pedagogia da Campinas, SP: Autores Associados, 1999.
transmissão, deve-se priorizar a autonomia e a FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
formação de um sujeito agente da própria FREITAS, Maria Teresa de Assunção.
construção de saberes. É preciso elaborar uma Vygotsky e Bakhtin: psicologia e
educação: um hipertexto. São Paulo:
lógica comunicacional interativa, que Ática, 1996.
disponibiliza ao estudante a participação, a LEMOS, A. Cibercultura: tecnologia e Vida
Social na Cultura Contemporânea.
manipulação e modificação das mensagens, as Porto Alegre: Sulina, 2002.
mais variadas informações e a co-autoria, LÉVY, Pierre. As tecnologias da
inteligência: o futuro do pensamento
facilitando as trocas, a colaboração, na era da informática. Rio de Janeiro:
associações e formulações. De acordo com Editora 34, 1993.
LÉVY, Pierre. Ciberculturaa. São Paulo: Ed.
esta lógica, é fundamental a alteração de 34, 1999.
procedimentos didáticos tradicionalistas, SILVA, Marco. Educação na cibercultura: o
desafio comunicacional do professor
tornando-se crucial a observação minuciosa presencial e on-line. Revista da FAEEBA
da proposta de uma educação on-line – Educação e Contemporaneidade.
Salvador, v. 12, n. 20, p. 261-271,
construída e direcionada pelos conceitos de jul/dez, 2003.
polifonia, interatividade e dialogicidade aqui
pensados, principalmente, a partir da obra do Como Citar: DIAS, Sandra Silva.
Dialógica e interatividade em Educação on-
teórico M. Bakhtin. line. In: Revista Digital Simonsen. Rio de
Janeiro, n.1, Dez. 2014. Disponível em:
<www.simonsen.br/revistasimonsen>
Revista Digital Simonsen 32

Letras

COMPETÊNCIA DE INTERPRETAÇÃO X CONSTRUÇÃO DO


CONHECIMENTO: UMA ANÁLISE SOBRE O PAPEL DO
PROFESSOR E O PROCESSO DE INTERAÇÃO COM OS ALUNOS
DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) NO RIO DE
JANEIRO.

1
Por Terezinha Machado
Ideias Chave: EJA, Linguagem, papel do professor

E ste artigo tem como objetivo discutir as


dificuldades do aluno da EJA diante
da mensagem dos textos
ótica dos alunos, buscando refletir sobre o que
os impedem de interpretar os textos com
maior facilidade.
trabalhados em sala de aula. Discuto se a
Algumas hipóteses para a dificuldade
linguagem é ou não dificultada pela forma
demonstrada pelos alunos do EJA na
como são escritos: realizo atualmente, uma interpretação de textos: seleção vocabular,
pesquisa de campo na Escola Municipal Pio X, sintaxe, utilização de metáforas,
em turmas de sexto e sétimo anos do Ensino desconhecimento de termos técnicos, falta ou
Fundamental deste segmento, onde estou excesso de imagens, entre outros.
colhendo dados para serem analisados
Minha pesquisa no Mestrado mostrou a
posteriormente em publicação mais ampla, mas
análise de dados que configuraram o Perfil do
acredito que já posso apresentar aqui neste
Professor do Ensino Supletivo (atual EJA),
pequeno artigo alguns elementos que discuta a

1
Possui graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1976), graduação em Letras pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1970) e mestrado em Educacao pela Fundação Getúlio Vargas (1989).
Atualmente é aluna do Doutorado em Língua Portuguesa pela UERJ, professora da Universidade Cândido Mendes e
das Faculdades Integradas Simonsen.
Revista Digital Simonsen 33

revelado pela categoria “linguagem”. Nela A situação da EJA é delicada, em


comprovei, pela análise da fala dos integrantes relação ao insucesso dos alunos e acaba por
do processo ensino-aprendizagem da EJA, que marcar também os professores, alguns colegas
havia uma rotulação que pesava sobre esta ainda marginalizam este segmento do Ensino
clientela. Grande parte dos entrevistados, de Fundamental. Muitas vezes senti isto na pele,
acordo com material gravado e analisado, tinha como professora municipal, estadual e no
uma ideia pré-concebida de que o aluno do setor privado, quando me perguntavam em
EJA, em sua maioria, não apresentava que escolas lecionava, quando falava da
condições de aprendizagem. Apontavam causas escola noturna, percebia um certo preconceito,
como: cansaço (pois a maioria trabalhava como se eu fosse menos preparada do que
durante o dia e seguia para a escola noturna), eles, apesar do concurso ser o mesmo e exigir
fome (algumas escolas públicas não ofereciam licenciatura plena.
merenda), sono (em virtude de terem que
Sobre a pesquisa realizada no
acordar muito cedo para ir ao trabalho) e,
Mestrado, apliquei alguns questionários em
sublinhavam um aparente desinteresse por parte
turmas que lecionava para relativizar a fala
dos alunos. Na verdade, cansaço, fome e sono
dos entrevistados: professores, supervisores
são três situações que levam a maioria das
pedagógicos e diretores. Uma das questões
pessoas a aparentar desinteresse. Havia outro
propostas era que o aluno apontasse que
complicador, grande parte dos professores
disciplina lhe trazia mais dificuldade para
também vinha de outra jornada de trabalho,
interpretar os textos trabalhados.
chegando cansado, com fome e sono. Ou seja,
Aproximadamente, 60% apontou Língua
professor e aluno da EJA possuem algumas
Portuguesa como a mais difícil, seguida pela
dificuldades em comum.
disciplina de História. Alguns poucos
A Educação de Jovens e Adultos é um apontaram Ciências e outros, Geografia.
sonho que não quero abandonar, apesar de
Existe uma diferença bem marcada na
todas as dificuldades, há caminhos que ainda
condição de comunicação do ser humano,
não foram experimentados pelos professores.
todos falam, mas nem todos possuem a
Felizmente, vejo aumentar o número de
mesma condição na hora de se expressar.
profissionais do ensino interessados em
Quando trabalhava os textos em sala de aula,
pesquisar sobre a EJA com a intenção de
fazia, preliminarmente, uma preparação com
colaborar para maior produtividade deste
os alunos sobre o que iríamos ler, o que eles já
setor de ensino.
conheciam sobre o assunto, se conheciam o
autor, se já haviam lido algum texto dele,
Revista Digital Simonsen 34

enfim, procurava dar condições aos alunos A questão do “erro” atinge


para que falassem sobre o texto, antevendo, profundamente o aluno adulto, pois há uma
pelo título sobre o que achavam que seria o carga subjetiva em nossa sociedade que “é
desenvolvimento do mesmo. Dessa forma, feio errar”. Dessa forma, vejo muitos alunos
evitava o que costumo chamar de aplicar uma do EJA desistirem de estudar, convencidos
“interpretação a sangue frio”, pois, sem pelos resultados obtidos na escola que estudar
preparação adequada (contextualização), não não é para eles. Isso não é dito abertamente,
se estará fazendo um trabalho de interpretação mas o aluno vai percebendo que tem algumas
e nem de construção de conhecimento e, sim, lacunas que o impedem de prosseguir no
uma avaliação da competência de processo ensino-aprendizagem. Após a
interpretação. primeira avaliação, é notório o número de
desistentes, uma turma que inicia o semestre
Um viés importante nesta questão é a
com cerca de cinquenta alunos, geralmente, ao
forma como o professor entende este tipo de
final do período letivo, não chega a trinta.
trabalho. A interpretação de um texto literário
Durante a pesquisa de campo, atualmente
pode e tem muitas formas de serem lidas.
realizada para o Doutorado em Língua
Quando o autor coloca no papel sua ideia e
Portuguesa, percebi que diminuiu a matrícula
seu texto chega ao leitor há todo um caminho
dos alunos da EJA. As turmas costumam ficar
que envolve muitas informações, habilidades,
entre dezoito e vinte e cinco alunos, no
nível de letramento, conhecimento do léxico e
máximo, bem diferente na década de noventa
estruturas sintáticas que possam levar o aluno
quando fiz a Pesquisa para o Mestrado.
a ter uma empatia com o autor em seu texto
ou não. Uma das causas que observei está na
grande distância entre a oralidade e o texto
Algumas entrevistas com autores de
escrito. Quando o aluno é convidado a
livros literários mostram que algumas
interpretar um texto, suas respostas, geralmente,
interpretações de seus escritos passam distante
carregam as marcas da oralidade. Entram aqui
de sua intenção inicial. Por isso a importância
algumas especificidades dos alunos jovens e
do professor tratar o texto com maior leveza,
sem procurar ser o “dono da verdade”, fato que adultos: embora estejam fora da idade escolar,

tanto aborrece o aluno, que na maior parte das trazem uma bagagem de vida, influências

vezes quer colaborar, ter voz em sala de aula, marcantes do falar de seu grupo social.

muitas vezes cortada pelo conceito de “certo ou Ninguém pula etapa na construção do

errado” que o professor carrega consigo. conhecimento, todos são falantes, mas nem
todos conseguem se expressar bem, tanto
oralmente como por escrito. É descabida a
Revista Digital Simonsen 35

exigência de observar os padrões gramaticais sobre o processo ensino-aprendizagem,


logo no início do Ensino Fundamental, envolvendo a construção do conhecimento,
independentemente da idade que tenha o tendo o aluno como centro deste processo,
aluno. Criança, jovem ou adulto têm as ainda enfrenta resistências por parte de
mesmas dificuldades de aprendizagem, o que algumas escolas e professores.
muda é a maior vivência, no caso do adulto.
A questão de como é selecionado o
Talvez, por falta de um preparo mais
conteúdo programático de Língua Portuguesa
específico no Curso de Formação de
pode ser uma dificuldade a mais para o aluno da
Professores para quem irá trabalhar com
EJA. Alguns planejamentos partem do
turmas da EJA, o professor entenda que
pressuposto de que os alunos devem trazer
“cobrar” correção gramatical logo no início,
determinados conteúdos que são pré-requisitos
irá ajudar seu aluno a se expressar melhor.
e, se o aluno, não recebeu aquele conteúdo ou se
Desconsidera que o falante da língua materna
não teve a aprendizagem, fica com uma lacuna
já possui uma gramática internalizada para
que dificultará seu desenvolvimento naquela
construir sua fala e nem sempre a sua lógica
série. Muitas vezes, o Professor percebe essa
encontra-se dentro dos padrões normativos.
defasagem e tenta saná-la, mas se julgar que
Liliana Tolchinsky e Mabel Pipikin, em essa demora em cumprir o programa poderá ser
seu artigo ”Seis Leitores em Busca de um cobrada pela equipe pedagógica, acabará por
Texto”, chamam a atenção para as diferentes deixar de lado tais dificuldades e tenderá seguir
maneiras de se ler um texto: “Há leituras o planejamento. Acompanhar o rendimento da
intensivas, minuciosas e atentas; há leituras turma e dizer que o Planejamento é flexível é
distraídas, seletivas ou verticais. Há leituras bastante difundido nas escolas, mas na prática, o
silenciosas entre leitores silenciosos ou leitura que se vê, em muitas escolas, é que o Professor
em voz alta enquanto os outros ficam calados.” que não cumpre o “programa” acaba sendo mal

Esta forma de se pensar o leitor, em sua relação visto.


com o texto, pode representar um universo de
Há muito que se pesquisar e estudar para
possibilidades diferentes de se atingir ao que foi
que se possa levar ao aluno da EJA uma
dito pelo autor. Um dos entraves que vejo na
possibilidade concreta de sucesso no
aula de Língua Portuguesa, é que muitos
aprendizado da língua. Uma delas centra-se nos
Professores são pressionados pela Instituição
critérios existentes para selecionar os textos a
onde trabalham para que cumpram o Programa.
serem lidos pelos alunos. Ainda com as autoras
As escolas tendem a ser conteudistas, o
Tolchinsky e Pipikin, faz-se a reflexão de que
movimento de renovação metodológica em
tipo de texto deve ser oferecido
relação a um novo pensar
Revista Digital Simonsen 36

ao aluno: o mais fácil, com vocabulário sem Como diz um compositor brasileiro em uma
maiores dificuldades, textos literários ou de suas músicas: “Ninguém sabe tudo,
informativos? E como consequência vem a ninguém sabe nada!”
pergunta antiga: o que é um texto literário? E
A leitura pode ter vários objetivos: obter
apontam para uma seleção com base numa
informação, distração, estudar determinado
possível apreciação e aceitação dos alunos:
assunto, entre outros. A leitura é um processo
“(...) Escolhemos livros que foram escritos que irá preenchendo lacunas em nosso
para serem lidos, interpretados, criticados e conhecimento, sempre. Não há verdades
sentidos, e não para ensinar a ler ou para
definitivas, todas são provisórias, então a
ensinar a compreensão da leitura (...)”.
forma mais adequada para se manter
É conhecida a ideia de que não forma atualizado é a leitura, seja em livros, revistas,
leitor quem não é leitor. Se não há prazer de ler, jornais, em sites na Internet, não importa a
como passar como verdade que é um prazer ler? forma e, sim, o conteúdo que é oferecido.
Professores que leem têm mais chances de
O Professor precisa estar preparado para
encantar seus alunos sobre a leitura.
intervir de forma positiva na dificuldade de
O aluno adulto, que já faz uma leitura leitura de seu aluno. Reforço o conceito de
de mundo, não consegue suportar um estudo que a leitura é um processo e, como tal,
de leitura que seja descontextualizado, precisa envolve vários personagens (autor, leitor,
ler textos que falem de alguma coisa que mediador, outros leitores), várias ideias e
tenha conexão com a sua experiência de vida diferentes atribuições de sentido ao texto,
ou que lhe aguce a curiosidade para que possa dependendo da vivência e da bagagem de
vencer o cansaço e o sono e trabalhar o texto conhecimentos de cada leitor.
em sala de aula.
A importância dada à leitura é básica,
O professor tem que assumir seu papel assim como a promoção de outras
de mediador entre texto e aluno, não competências de igual importância; falar
subestimar sua capacidade em vencer (expressão adequada a cada situação de fala),
obstáculos e chegar a uma leitura mais saber escutar (quem ouve mais tem condições
satisfatória, com uma interpretação que seja de aprender mais), escrita (necessidade de
aceitável. Dúvidas sempre acontecerão no colocar no papel ideias concatenadas). As
percurso do aluno-leitor, mesmo quem questões linguísticas não se fundamentam
costuma ler com frequência, que continua apenas na leitura, mas no que ela envolve de
seus estudos de forma regular e chega a Pós- conhecimentos importantes na aquisição do
Graduação enfrentará algumas barreiras. saber.
Revista Digital Simonsen 37

Irandé Antunes, uma das autoras que que exercemos na sociedade. É bonito ouvir
tem se dedicado à pesquisa sobre a falar da relevância de nossa profissão na
aprendizagem da leitura, enfatiza que “(...) construção da sociedade, permanentemente
ainda falta perceber que uma língua é muito em mudança. Mas, o que precisamos é
mais do que uma gramática. Muito mais, assumir algumas atitudes de forma concreta
mesmo. Toda a história, toda a produção no dia a dia de sala de aula.
cultural que uma língua carrega, extrapola os
Precisamos levar em conta o papel do
limites de sua gramática. (...)”.
aprendizado da língua na construção da
A questão apontada por Antunes é tão identidade nacional e na formação da
simples de ser entendida e tão difícil de ser cidadania plena. Sem condição de leitura e
colocada em prática. O que costumo ver é o escrita não há condição de promoção de
professor utilizar o texto como pretexto para desenvolvimento nos grupos sociais. E menor
ensinar gramática: classes gramaticais, funções será a chance de vermos nosso país melhorar a
sintáticas, classificação de orações etc. qualidade de vida através da tão sonhada
melhoria da qualidade em educação.
Algumas vezes o texto nem ao menos é
lido antes de se trabalhar a gramática, ou seja, Em que momento a escola deve parar e
o texto fica como pano de fundo numa aula de se perguntar: - Quem é o leitor que queremos
Língua Portuguesa, quando deveria ocupar preparar? O Planejamento de uma aula de
um lugar de destaque. Uma discussão com os Língua Portuguesa reflete a realidade do aluno
alunos sobre o texto poderia aguçar a da EJA? O Professor desse segmento tem o
curiosidade do aluno sobre o mesmo, nesse perfil de seus alunos? O Planejamento é
envolvimento, nessa interação aluno-texto, o confeccionado de forma hipotética,
Professor tem uma função importante de “imaginando” o perfil do aluno ao qual se
destacar algumas estratégias utilizadas pelo destina? Ou o Planejamento é apenas uma
autor, falar sobre o léxico selecionado, enfim, exigência administrativo-pedagógica?
mostrar por sua atitude frente ao texto que,
Para o Professor comprometido com a
antes de se valorizá-lo como um celeiro de
aprendizagem do aluno, este aluno para o qual
fatos gramaticais, tem que se olhar a sua
planejou é real, concreto, tem dúvidas,
tessitura. A contextualização é muito
desconhecimentos, mas possui a matéria-prima
importante para que se possa dimensionar o
para ser trabalhado. É necessário que a escola
alcance da mensagem do texto.
tenha a consciência que não formará leitor sem
Nós, professores de Língua Portuguesa, a soma perfeita de livro+texto+leitor e que o
temos que nos dar conta da função importante Professor detém conhecimento sobre as
Revista Digital Simonsen 38

estratégias de leitura que possibilitarão seu a possibilidade de ler e tirar suas próprias
aluno a desenvolver o processo da aquisição conclusões. Isto dá ao ser humano o que deveria
da leitura com interpretação. ser um direito respeitado por todos: construir e
definir suas ideias, reforçando-as através de
Voltando ao enfoque dos textos
aquisição de conhecimento onde quiser, não
literários, quando inseridos nos livros
didáticos, os alunos do EJA sentem-se apenas no livro didático da escola, mas no
jornal, na revista, no mural, no outdor, nos
“desprotegidos”, o seu encaixe numa unidade
cartazes da rua, enfim, como ensinou Paulo
que, por exemplo, pretenda trabalhar os
pronomes pessoais, dependendo da ótica do Freire (citação de memória): “Ninguém é

autor, poderá minimizar toda a beleza e analfabeto oral e antes de ingressar na escola,
o sujeito já faz a leitura do mundo”.
variadas possibilidades deste texto num
“armazém” onde se possa comprar os A postura de um professor deve ser
pronomes pessoais. Somente. antes de tudo, reflexiva. Não se pode imaginar
depois de tantas pesquisas levando em
Não sou contra o livro didático, pelo
consideração a prática e a teoria que um
contrário, há coleções imperdíveis, que os
professor do século XXI deixe de refletir
alunos gostam de trabalhar, entretanto o apelo
sobre o porquê de suas ações em sala de aula.
que faço é sobre a forma de utilizá-los. Não
Precisa-se de uma boa base teórica para
podem ser “os senhores” da aula. Pedir para o
desenvolverem-se as teorias que envolvem a
aluno abrir o livro na página tal, ler o texto e
Língua, suas normas e suas regras. Mas não
responder às perguntas de interpretação e depois
há como deixar de lado outro aspecto, talvez
fazer os exercícios sobre o vocabulário e,
mais importante, que é a língua em uso.
finalmente, trabalhar com os exercícios
gramaticais empobrece demais a aula de Língua Penso que a boa interação entre texto-
Portuguesa e o aluno fica na impressão que aula leitor será feita por um Professor-mediador
de português é assim mesmo: “chata”. que tenha conhecimentos advindos da
Psicolinguística, da Linguística, da
Ler e interpretar representa um objetivo a
Sociolinguística, da Pedagogia, da Sociologia
ser alcançado por todos. Na maioria das
e da Psicopedagogia Cognitiva, entre outras
entrevistas, se não na totalidade das realizadas
áreas do conhecimento.
pelos canais que têm programação educativa,
todas as vezes que vejo adultos analfabetos que Foram tantos anos de trabalho com
voltam à escola para aprender a ler, a resposta é alunos jovens e adultos por escolha, não por
unânime: sentem-se melhor porque estão agora acaso, pois ninguém se fixa num determinado
aprendendo algo que é muito importante: segmento de ensino se não for por total
Revista Digital Simonsen 39

afinidade com esse grupamento. Via em meus mim como a verdade que vivi em salas de aula

alunos o olhar da esperança em poder da EJA. Nesta comunicação, há alguns


aprender a falar, ler e escrever melhor, eles parágrafos falei sobre a questão do Professor e
sentiam que eu acreditava neles, que torcia o cumprimento do Planejamento, mas:
pelo crescimento e sucesso deles. Acho que
foi este o diferencial que me fez, em tantos
Tão importante quanto o cuidado
anos nunca desistir deles, nunca. Uma das para cumprir esse programa é a
lembranças mais marcantes destes alunos, foi postura que pode ser adotada na
abordagem de suas questões (...). O
de uma turma de alfabetização de adultos que Professor que está em sala de aula é
estava sem Professor. Eu estava em função também ‘ator’ participante de sua
própria vida, da vida de outros falantes,
pedagógica, mas resolvi assumir a turma. Foi de outros atores do espetáculo verbal!
uma das turmas que tive mais retorno em tudo
que levava para a aula. Ao final do semestre,
Descartar o aluno da EJA através de um
fui surpreendida com uma das minhas alunas
ensino que use a aula como um texte de
escolhida para representar o nosso Núcleo de
“competência de interpretação” ao invés de
EJA/Jacarepaguá/RJ, como a aluna mais idosa
incluí-lo numa aula que busque a “construção
a terminar, com aproveitamento, a turma de
do conhecimento” é um dos grandes erros que
Alfabetização.
os professores tem cometido neste segmento.
A alegria de um aluno que entra com Alterar esta perspectiva seria o primeiro passo
quase oitenta anos numa turma de na tentativa de melhorar os resultados na
Alfabetização e obtém sucesso, deixa em nós Educação de Jovens e Adultos.
uma marca que jamais será apagada, a função
primordial do Professor é exatamente esta,
possibilitar que nossos alunos alcancem um Referências
lugar melhor no grupo social.

ANTUNES, Irandé. Aula de Português:


Conclusão encontro &interação/Irandé Antunes.-São
Paulo: Parábola Editorial, 2003-(Série
Finalizo com um fragmento de Irandé
Aula;1).
Antunes (2012), falando sobre “As armadilhas
da rotina da escolarização dos conteúdos” e _______________. Língua, texto e ensino:
com uma reflexão que tem motivado minhas outra escola possível/ Irandé Antunes.-
pesquisas e atuação docente. Muito do que São Paulo: Parábola Editorial, 2009-
Antunes coloca em seus livros repercute em (Estratégias de Ensino;10).
Revista Digital Simonsen 40

_______________.O território das palavras.- TOLCHINSKY, Liliana e PIPKIN, Mabel.


São Paulo: Parábola Editorial, 2012- Seis leitores em busca de um texto. In
(Estratégias de Ensino;28). Compreensão de Leitura – A Língua como
procedimento.-Porto Alegre: Artmed,
HENRIQUES, Claudio Cezar. Léxico e
1995.
Semântica: estudos produtivos sobre
palavra e significação/Claudio Cezar
Henriques.- Rio de Janeiro: Elsevier,
Como Citar: MACHADO, Terezinha.
2011. Il.-(Português na Prática) Competência de interpretação x Construção
do conhecimento: uma análise sobre o papel
Ler e escrever; compromisso de todas as do professor e o processo de interação com os
áreas/organizado por Iara Conceição alunos da educação de jovens e adultos (EJA)
no Rio de Janeiro. In: Revista Digital
Bittencourt Neves... [et al.]-9.ed.-Porto Simonsen. Rio de Janeiro, n.1, Dez. 2014.
Alegre: Editora da UFRGS, 2011. Disponível em:
<www.simonsen.br/revistasimonsen>
Revista Digital Simonsen 41

Antropologia

1
“LORDS ANTHROPOLOGISTS ” - DEBATE SOBRE A ORIGEM DA
TEORIA CLÁSSICA BRITÂNICA E SUAS INFLUÊNCIAS
TEÓRICAS METODOLÓGICAS NA OBRA DE EVANS –
PRITCHARD

2
Por Cleiton Machado Maia
Ideias Chave: Antropologia, Evans-Pritchard, fenômeno religioso

No debate da fundação da escola

O artigo tem como proposta analisar a


influência na obra de Evans-Pritchard à luz
das teorias clássicas, em uma breve leitura de
antropológica britânica demonstrarei
influência que a obra e ideias de Durkheim
a

suas obras “Bruxaria, exerceram no início da antropologia -


oráculos e magia entre os Azande”, “Os principalmente sobre a obra de Radcliffe –
Nuer” e “Religião dos Nuer”, buscando Brown – e os debates que se desenvolveram
entender dentro da formação dos “pais com Malinowski e suas propostas teóricas
fundadores” da antropologia britânica, como metodológicas de trabalho antropológico.
o autor relacionou e fundamentou sua Demonstrando assim as influências que as
proposta no decorrer de suas obras. obras de Durkheim vão exercer sobre os dois
autores, e suas discordâncias teóricas e

1
O “Lords” do título é uma referência à posição que esses primeiros antropólogos exerciam dentro do Império
Britânico, muitas vezes como funcionários ou como “Sir”, o que por muito levanta questionamento sobre seus
posicionamentos em suas obras.
2
Doutorando em Ciências Sociais do PPCIS/UERJ e professor da Universidade Cândido Mendes – Santa Cruz,
profmachadomaia@hotmail.com .
Revista Digital Simonsen 42

metodológicas dessa primeira geração de simbólicos da vida social, comum a todos os


antropólogos influentes da escola britânica. grupos humanos. Para Durkheim, essas
imagens seriam socialmente construídas e em
Na segunda parte desse projeto pretendo
uma realidade totalizante sendo assim tão reais
demonstrar o foco principal desse artigo: a obra
quanto o mundo material.
de Evans-Pritchard. No decorrer de uma
releitura sobre as suas principais obras na área A religião seria um ponto importante de
de religião, pretendo demonstrar a sua estudo para Durkheim, pois ela seria, entre
utilização de uma etnografia e teoria clássica na todas essas representações coletivas, o
análise do fenômeno religioso - suas influências elemento em que os indivíduos estabeleceriam
na obra de Malinowski e Radcliffe-Brown, e e fortificariam – mais do que em qualquer
influências indiretas de Durkheim por esses outra parte – essas representações coletivas,
autores - abrindo assim caminho para uma dando a elas o poder de coesão social,
segunda geração de antropólogos da escola desenvolvendo o apego emocional do
britânica que conseguiram conciliar indivíduo as representações coletivas, com
metodologia e teorias de maneira eficaz. grande importância ao ritual.

Demonstrarei como esse novo modelo O ritual, segundo Durkheim, seria


teórico e metodológico de Evans-Pritchard – essencial para exercer a ligação com o físico e
usando influências de seus professores nas corporal – por experiência direta. O ritual seria
universidades inglesas, Malinowski e o lugar sagrado em que o indivíduo se circunda
Radcliffe Brown – nasceu influenciando e do mágico, sendo assim separado do profano
teve continuidade nas obras de autores dia-a-dia, e são essas diferenças que demarcam
consagradas como Mary Douglas e outros e intensificam a experiência que os indivíduos
autores da terceira geração da escola têm de como o mundo é realmente. Essa
antropológica britânica até nossos dias. complexa variedade e necessidades de
entender os símbolos e costumes dos outros foi
o ponto de partida de algumas pesquisas
Durkheim e suas influências sobre
a antropologia antropológicas.

Na sua última – e talvez mais Um deus não é unicamente uma


importante obra – “As formas elementares da autoridade de que dependemos, é
também uma força sobre a qual se
vida religiosa” lança a polêmica, inovadora e apóia a nossa força. O homem que se
até hoje atual teoria das “representações obedeceu a seu deus e que, por essa
razão, acredita tê-lo consigo,
coletivas”. Onde defende essas representações enfrentando o mundo com confiança e
coletivas como símbolos, imagens e modelos com sentimento de energia fortificada”
(DURKHEIM, 1989, p. 263-264).
Revista Digital Simonsen 43

No início do século XX, os dos primeiros trabalhos antropológicos. Em


antropólogos ingleses aderiram as ideias de torno da I guerra mundial, a disciplina
Durkheim e começaram a usar suas teorias antropologia se desenvolveu e começou a
para um grande número de estudos sobre a ganhar nome com “quatro pais”: Franz Boas,
religião – influenciando várias características Marcel Mauss, Malinowski e Radcliffe-
da escola britânica conhecidas – Brown. Estes antropólogos que iniciariam os
principalmente os sistemas de parentesco e debates estruturais das principais escolas que
sistemas legais. Sendo descrito como “pai temos hoje em dia. – um nos Estados Unidos,
fundador” do estruturalismo-funcionalista que um na França e dois na Inglaterra. –
foi desenvolvida posteriormente por considerando aqui a grande importância da
Radcliffe-Brown usando os fenômenos escola alemã e russa que acabou se
sociais – coisas – e as representações transplantando em ideias com Boas e
coletivas como ciências objetivas. Malinowski – em suas respectivas “novas”
nações – que por motivos políticos de guerra
não conseguiu dar continuidade de suas ideias
Pais fundadores - Antropologia britânica
dentro de suas nações (ERIKSEN, 2007, p.
A antropologia nasce no final do 51).
século XIX – período vitoriano – logo depois
Cabe aqui uma breve retrospectiva
das guerras napoleônica, junto com liderança
destes autores que se tornaram as colunas da
expansionista da Grã-Bretanha. As teorias de
antropologia, antes de entrar no ponto principal
sonho e subconsciente de Freud e Albert
de nossa análise, que é a escola britânica.
Einstein desconstruindo a física ofereceram
Temos Franz Boas nos Estados Unidos, Marcel
uma visão mais aberta da verdade e do
Mauss na França e Bronislaw Malinowski e A.
progresso.
R. Radcliffe-Brown na Inglaterra. Umas das
Algumas questões de relativismo questões que influenciaram para a visão
cultural – ignoradas pelos antropólogos desde “marginal” da antropologia nos seus primeiros
o início do século dezenove – voltaram à tona anos de sua fundamentação teórica e
com a filologia alemã e seus estudos sobre as metodológica. Apesar da influenciada escola
línguas indoeuropéias. Isso sem contar com o britânica sobre a obra de Durkheim, havia uma
apoio militar e político que muitos indefinição nos parâmetros básicos da
antropólogos encontraram nas campanhas disciplina, e o ponto de vista social dos pais
neocolonialistas das nações imperialistas fundadores da antropologia provirem
européias, com suas campanhas de expansão e socialmente de grupos estrangeiros aos países
conquistas que financiaram e muito se usaram que desenvolveram sua
Revista Digital Simonsen 44

pesquisa – Mauss era judeu, Radcliffe-Brown destacou nos primeiros anos (ERIKSEN, 2007,

era de classe trabalhadora em uma Inglaterra p. 53).


elitista, Malinowski era estrangeiro e Boas era
estrangeiro e judeu – lutando e tentando
Influências da etnografia e trabalho
romper com os evolucionistas como Morgan e de campo de Malinowski
Tylor e os parâmetro que tinham estabelecido
Em sua obra, Bronislaw Malinowski
nas ciências sociais.
trabalha com uma visão de sociedade
Na França, os estudos de povos não holística, onde partes se entrelaçam em um
europeus de Durkheim, foi à abertura que Maus todo sincrônico – não histórico – desde seus
encontrou para fundamentar sua entrada primeiros trabalhos e os mais importantes

acadêmica e dar continuidade à obra de seu tio. como “Os argonautas do pacífico ocidental”

Nos Estados Unidos da América, Boas (1984) que teve sua primeira publicação logo
encontrou respeito na transição acadêmica e se após a I Guerra mundial, e considerada a obra
tornou ponto de referência na antropologia. Na mais revolucionária da antropologia, o que lhe
Inglaterra, porém essa transição acabou deu prestígio e atraiu inúmeros pesquisadores
ocorrendo com mais força – sendo vista como para sua universidade, Universidade de
uma revolução intelectual e ruptura, diferente Londres, e que mais tarde seriam conhecidos
da França e Estados unidos da América onde na antropologia.
uma visão de continuidade vigorou – já que a
Em “Os argonautas do pacífico
influência dos evolucionistas foi criticada por ocidental” podemos concentrar nosso
Malinowski e Radcliffe- Brown. O que acaba entendimento e análise das principais
sendo à base dos críticos da história características metodológicas e teóricas que
antropológica para sustentarem que a escola Malinowski desenvolveu e influenciou outras
britânica é o local de surgimento da gerações – e são o foco de nossa reflexão sobre
antropologia moderna com Malinowski e esse autor para esse artigo - como em Evans-
Radcliffe-Brown. Onde a “ciência de Pritchard. A obra é extremamente detalhada e
parentesco”, que é um método britânico criado vigorosa, que busca descrever o sistema de
por Malinowski e uma teoria desenvolvida por 3
comércio de Kula e sua relação com outras
Radcliffe-Brown, se consolidou como uma
instituições de moradores da ilha da Melanésia
“ciência da sociedade” – em quanto às muitas – como liderança política, economia
áreas da antropologia americana não se

3
“O kula é, portanto, uma instituição enorme e abarca em enorme conjunto de atividades inter-
extraordinariamente complexa, não só em extensão relacionadas e interdependentes de modo a formar um
geográfica mas também na multiplicidade de seus todo orgânico” (MALINOWSKI, 1978, p. 71-72).
objetivos. Ele vincula um grande número de tribos e
Revista Digital Simonsen 45

doméstica, posição social e parentesco (grifo individuais e propõe a inter-relação como


meu). essencial para qualquer análise etnográfica,
teoria que os antropólogos consideram menos
Durante dois anos Malinowski ficou
que a sua metodologia posteriormente. O seu
entre os Trobriand – período entre guerras – o
funcionalismo – diferente de Durkheim – põe
que possibilitou uma obra meticulosa e
o indivíduo como objetivo do sistema e não a
sistemática (FIRTH, 1957, p. 56, in TEIXEIRA,
sociedade, as instituições existiriam para as
2010, p. 128), relacionado com a sua facilidade
pessoas.
de aprendizado de novas línguas

– influência da antropologia alemã já citada Durante algumas décadas, após sua


anteriormente – levando-o a padrões morte, a teoria malinowskiana continuou em
metodológicos rigorosos e a invenção de destaque até as críticas de um “individualismo
método de campo inovador chamado metodológico” disfarçado, mas voltaria com
“observação participante”, que constitui força com a defesa de Radcliffe-Brown para a
participar no máximo possível das vidas e das importância de captar o ponto de vista do nativo
atividades dos “nativos”. Para Malinowski, no que ficou conhecido como campanha
permanecer entre os “nativos” é “anti-histórica” na antropologia britânica,
extremamente importante, assim se pode transformando Malinowski em obra menos
aprender sua língua e costumes, o que criticada.
dispensaria o uso de interpretes e entrevistas –
Malinowski se denominava
que seria nocivo ao trabalho -, o que levou-o a
funcionalista, apesar de críticos e
morar em uma cabana entre os Trobriand.
comentadores colocarem como fundador das
A “observação participante” de ideias de seus rivais estrutural-funcionalista
Malinowski estabeleceu uma nova base para (ERIKSEN, 2007, p. 58), onde para ele o
as pesquisas etnográficas, onde a vida no dia- indivíduo era o fundamento da sociedade e
a-dia devia ser registrada coletando detalhes tinha agencia por ser criador da sociedade. Já
de produções, padrões, trocas e conflitos, os estrutural-funcionalistas viam os
demonstrando o universo altamente complexo indivíduos como um fenômeno da sociedade e
e multifacetado – contra os autores de pouca agencia de interesses – com grande
evolucionistas que o precederam nas ciências influência direta de Durkheim. Essa corrente
sociais britânicas – e rompendo como nova “funcionalista” malinowskiana e “estrutural-
proposta para a antropologia e seu método. funcionalista” de Radcliffe-Brown foram
Com essa obra, Malinowski coloca em xeque ditas como opostas e inimigas por anos, até a
projetos comparativos de características obra de Evans-Pritchard, que as conciliou de
Revista Digital Simonsen 46

maneira inovadora e bem eficientes – como para ele as estruturas sociais existem
teoria e metodologia. independentes dos atores individuais que a
reproduzem e contribuem para a manutenção
da estrutura social como um todo.
Influências da abordagem teórica
de Radcliffe-Brown A influência de Durkheim em
Foi seguidor de Durkheim em suas Radcliffe-Brown está principalmente na
ideias e considerava o indivíduo produto da afirmação que as instituições existem porque
sociedade; admirador e grande conhecedor da elas mantêm o social; ele articulou a teoria
obra durkheineana “Formas elementares da social e o método etnográfico gerando uma
vida religiosa” que estudou e lecionou durante disciplina na Universidade de Oxford e
anos na Universidade de Oxford. Apesar de influenciando posteriormente autores como
seus primeiros trabalhos sobre os moradores Morgan, que começaram a ver o “parentesco”
das Ilhas Andaman na Índia terem sido como uma chave da organização social em
considerados no estilo difusionista, quando pequenos grupos sociais. O uso do sistema de
conheceu melhor a obra de Durkheim tentou parentesco começava a se tornar uma entrada
aplicar a sociologia com materiais para Radcliffe-Brown para relacionar o
etnográficos. conceito de Durkheim vinculado com o

Durante o período entre guerras, a parentesco como sistema jurídico de

antropologia britânica teve dois períodos bem Malinowski – sendo assim o parentesco uma

marcantes, o primeiro marcado pelas obras forma de interação social complexo – com

etnográficas detalhadas na região do pacífico direitos e deveres – fundamental para a

sobre influência de Malinowski – e após a sua estrutura social. “(...) estrutural-funcionalistas

partida para os Estado Unidos da América – e passaram a estudar outras instituições em

segunda influência de trabalhos que foram as sociedades primitivas: política, economia,

análises estruturais no estilo durkheimianas religião, adaptação ecológica e etc.”

sobre a África. “Enquanto Malinowski (ERIKSEN, 2010, p. 60), onde o parentesco


preparava seus alunos para irem a campo e serviria para ver como se estrutura e
procurarem as motivações humanas e a funcionam os grupos e as corporações nessas

lógica da ação, Radcliffe-Brown pedia aos sociedades.

seus que descobrissem princípios estruturais


abstratos e mecanismos de integração social”
Evans-Pritchard e sua obra
(ERIKSEN, 2010, p. 59). Esses mecanismos
que Radcliffe-Brown procurava encontrar eram O período das maiores publicações do
estrutural-funcionalismo foi na década de 40
as representações coletivas de Durkheim,
Revista Digital Simonsen 47

do século XX, onde Radcliffe-Brown e fazer (KUPER, 1999, p. 89). Para melhor
Evans-Pritchard estavam em Oxford, que entender esse teoria de abstração etnográfica
concentrava seus estudos nos “mecanismos” e desenvolvida, podemos dividi-la em três níveis
em princípios estruturais da sociedade – dos ou fases.
quais Radcliffe-Brown considerou o sistema
Às vezes ouço dizer que qualquer
de parentesco como o motor das sociedades pessoa pode observar e escrever um livro
sobre um povo primitivo. Talvez qualquer
“primitivas”, mantendo-a unida. Influenciando pessoa possa, mas não vai estar
os antropólogos ingleses que começavam seus necessariamente acrescentando algo à
antropologia. Na ciência como na vida só
estudos na década de 40 e 50, como o próprio
se acha o que se procura. Não se podem
Evans-Pritchard que tinha estudado com ter respostas quando não se sabe quais
são as perguntas. Por conseguinte, a
Malinowski e Radcliffe-Brown, tendo grande
primeira exigência para que se possa
influência na primeira parte do seu trabalho. realizar uma pesquisa de campo é um
treinamento rigoroso em teoria
Destaco Evans-Pritchard como o antropológica, que dê as condições de
saber o que e como observar, e o que é
pesquisador que melhor conseguiu teoricamente significativo. É essencial
desenvolver a relação entre teoria e trabalho percebermos que os fatos em si não tem
significado. Para que o possuam devem
de campo em sua obra, usando assim a ter certo grau de generalidade. É inútil
metodologia de trabalho de campo de partir para campo as cegas. (EVANS-
PRITCHAD, 1962, p. 243).
Malinowski e a teoria desenvolvida por
Radcliffe-Brown, o que não lhe limitou a
desenvolver uma crescente e original No primeiro nível de sua teoria, Evans-
construção intelectual partindo do funcional- Pritchard tenta compreender a sociedade e as
estruturalismo a sua análise da “função para o tradições sociais estudadas nos seus níveis
significado” (TEIXEIRA, 2010, p. 126). mais complexos, buscando assim suas
características mais significativas. Depois de
A obra de Evans-Pritchard desenha com
entendida deve ser traduzida para a sua própria
uma experiência metodológica e teórica bem
cultura – o que posteriormente foi muito
particular, usando a influência metodológica
criticado por alguns comentadores e novos
de Malinowski e sua observação participativa
autores. Em um segundo momento, o autor
e a contribuição da experiência teórica de
propõe uma análise com o propósito de
Radcliffe-Brown e seus relatos selecionados e
decodificar as formas – ou estruturas –
articulados para demonstrar a estrutura, para
subjacentes da cultura. Lembrando que para
construir nas suas características uma
Evans-Pritchard essa estrutura não é visível de
abstração estrutural na análise etnográfica,
maneira imediata, mas sim depende de um
que só Evans-Pritchard souber relacionar e
trabalho de abstração do próprio pesquisador
Revista Digital Simonsen 48

“Relacionar logicamente essas observações “oposição segmentar” acaba garantindo a


entre si de forma que venham a compor um manutenção do sistema como um todo.
modelo, torna-se possível ver a sociedade em No seu primeiro trabalho de campo
seus elementos essenciais, como um todo
“Bruxaria, Oráculos e magia entre os Azande”
(EVANS-PRITCHARD, 1962, p. 23).
do Sudão, apresenta a feitiçaria como centro
Chegando assim na sua terceira fase - principal de trabalho. A feitiçaria é abordada
onde após uma grande influência de método de com dois direcionamentos, em uma ela é uma
campo malinowskiano ganha uma força de “válvula de escape - segurança” que transforma
análise comparativa com cunho estruturalista de todos os conflitos sociais em inofensivos,
Radcliffe-Brown – onde o pesquisador deve mantendo a interação social na maneira mais
comparar as estruturas sociais, de diferentes durkheineana possível. E por outro lado é uma
sociedades, de maneira explícita ou implícita. maneira de entender o mundo do “outro” –
As diferenças de objetivos e modelos usados em desconhecido - de maneira mais coerente
“Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande” possível, de dentro, com influência de
e “Os Nuer” - certamente as obras mais Malinowski. Sendo assim uma abordagem
conhecidas dentre aquelas que compõem a complexa e inteiriça onde busca entender a
produção bibliográfica deste autor - ordem social sem desconsiderar a
representam propósitos e modelos analíticos complexibilidade e racionalidade de uma
distintos, apresentando, cada uma ao seu modo, sociedade que só pode ser entendida de dentro
problemas que se tornaram clássicos para a dos eventos, sem separar um do outro. Alguns
antropologia. Num primeiro momento, sob comentadores vão dizer que sua análise
considerável influência de Malinowski, Evans- estrutural-funcionalista vai reduzir a feitiçaria
Pritchard está preocupado em demonstrar como em as funções sociais e outros (DOUGLAS,
os Azande possuem um sistema de crenças 1980) vão dizer que Evans vai ver a feitiçaria
dotado de uma coerência interna, capaz de como “produtos sociais em toda a parte”
explicar a vida humana e fornecer solução para (ERIKSEN, 2007, p. 89).
os infortúnios do cotidiano. Mais tarde, sua A segunda obra importante de Evans-
etnografia sobre os Nuer já explicita as
Pritchard, “Os Nuer” é resultado do trabalho de
interlocuções que estabeleceu com a obra de
campo desenvolvido com o povo Azande, onde
Meyer Fortes – que não é meu foco nesse
estuda a organização política patrilinear desse
trabalho - e Radcliffe-Brown, caracterizando-se
povo pastoril e “sem estado” - e como se pode
como a descrição de uma estrutura social que
ocorrer uma organização política grande e
contém em sua própria constituição a tensão
complexa sem uma liderança centralizada. O
entre grupos cuja
Revista Digital Simonsen 49

livro é uma experiência de campo em que a Os ritos mágicos não formam um


sistema coerente e não há nexo entre um
ciência de parentesco de Radcliffe-Brown é a
rito e outro. Cada um é uma atividade
chave de entendimento das organizações isolada de modo que eles todos não
podem ser descritos de forma ordenada.
sociais e segmentárias, não é à toa que no
[...] Com efeito, ao considerá-los juntos
último capítulo Evans-Pritchard elabora uma conferi-lhes uma unidade por abstração
que não possuem na realidade. Espero ter
visão de estrutura social na mesma linha de
persuadido o leitor de uma coisa — da
Radcliffe-Brown “um sistema abstrato de consistência intelectual das noções
Azande. Elas só parecem inconsistentes
relações sociais que continua a existir
se dispostas como se fossem objetos
inalterado apesar das mudanças de pessoas” inertes de museu. Quando vemos como
um indivíduo as emprega, podemos dizer
(1990, p.80) - assim sendo parentesco e que são místicas, mas nunca que são
feitiçaria como dois “modos de pensamentos” acionadas de forma ilógica ou acrítica.
(EVANS-PRITCHARD,1992 ,p. 225).
– e em ambos os casos ele estaria interessado
em mostrar como o pensamento tem relação
com o que Bourdieu (2009) chamou de Concluindo as diferenças entre a obra
“lógica prática” “Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande”
demonstra como religião, instituição política e
A obra “A religião dos Nuer” é uma
sistema de crença de uma sociedade, diferente
proposta de etnografia sobre a religião dos
da sua obra “A religião Nuer” onde mostra que
Nuer, discutindo aspectos de religião e
crença e prática religiosa dos Nuer é
sociedade entre os Nuer – onde o autor usa
extremamente fixada na vida material. Em
quatro aspectos etnográficos para relacionar
uma visão não reducionista procura
suas considerações e para entender o diálogo
demonstrar a religião e sistema religioso não
entre razão social e religião: espírito, símbolo,
como autônomos, mas sim complexo e
moral e cosmologia. Dentre essa nova base de
hierarquizado em diversos níveis de estruturas
interpretação de uma etnografia sairá uma de
e construção de sentidos - a religião como um
suas elaborações teóricas “o problema de
reflexo e não um produto. A etnografia de
símbolos” – que mais tarde influenciaria a obra
Evans-Pritchard procura encontrar uma
e discutição de vários autores como Mary
racionalidade na ação dos nativos estudados,
Douglas, como ela mesma diz na entrevista feita
dentro da lógica de seus sistemas únicos de
por Peter Fry (1999) – onde procura perceber a
práticas, costumes e razão, construindo assim
lógica das ações e afirmações nativas, sendo as
a legitimidade da organização social estudada.
ações e afirmações como

“nexos simbólicos” entre a vida real que a


sociedade compartilha.

Conclusão
Revista Digital Simonsen 50

A principal contribuição de Evans- exerceu sobre Evans-Pritchard e sua nova


Pritchard às Ciências Sociais e antropologia – visão sobre “estrutura”, claro de que sem o
e aos teóricos de sua geração – é a proposta método de “campo participativo” de
etnográfica de uma contextualização das Malinowski, não seria possível propor uma
“culturas” ditas como primitivas. interpretação de “símbolos sociais”
Revitalizadas posteriormente com a sua culturalmente contextualizados como faz em
proposta de “problema simbólico”, onde sua última importante obra “A religião Nuer” -
propõe uma leitura de todas as complexas que sem dúvida é sua grande pérola teórica-
sociedades e estruturas com os seus metodológica britânica.
respectivos símbolos e as categorias sociais O que pode e deve ser visto com
que estão representando. atenção aos estudantes de Ciências Sociais e
Thomas Hylland Eriksen (2010) Antropologia de hoje em dia como um
considera em um dos seus títulos sobre exemplo de observação e interpretação de
Radcliffe Brown como o autor do “Baluarte do estruturas em grupos sociais mais diversos e
funcionalismo” – não estou a levantar complexos, interpretando e compreendendo os
questionamento sobre essa afirmação - mas símbolos “interações” e “ações” que
sim sobre o resultado da herança teórica que represente a realidade do grupo

Referências MALINOWSKI. B, Argonautas do pacifico


ocidental. Editora Abril, 2° edição, 2005.
BORDIEU. P. O poder simbólico. Editora MELLATI. J. C. Radcliffe-Brown – coleção
Bertrand, 2009. grandes autores. Editora Ática, 1978.
DOUGLAS. M. Pureza e perigo. Editora RADCLIFFE-BROWN. A. R. Estrutura e
Perspectiva, 2° edição, 2010. função na sociedade primitiva. Editora
DURKHEIM. E. As formas elementares de Vozes, 1973.
vida religiosa. Editora Paulus, 3 edição TEIXEIRA. F. A sociologia da Religião.
2008. Editora Vozes, 3° edição, 2010.
ERIKSEN. T. H. História da antropologia da
religião. Editora Vozes, 2010.
EVANS-PRITCHARD. E. E. Bruxaria,
oráculos e magia entre os Azande. Como Citar: MAIA, Cleiton
Editora Zarah, 2005. Machado. “Lords anthropologists” - debate
EVANS-PRITCHARD. E. E. Os Nuer. sobre a origem da teoria clássica britânica e
Editora Perspectiva, 2° edição, 2009. suas influências teóricas metodológicas na
EVANS-PRITCHARD. E. E. Religião dos obra de Evans – Pritchard. In: Revista
Nuer. Oxford: Oxford University Press Digital Simonsen. Rio de Janeiro, n.1, Dez.
(trad. Espanhol: La religión de losnuer. 2014. Disponível em:
Barcelona: Anagrama, 1992. <www.simonsen.br/revistasimonsen>
FRY. P. Entrevista racionalismo e crença.
Revista Mana, 5(2): 145 – 156, 1999.
Revista Digital Simonsen 51

Trajetória

SINTOMA DE POESIA
Por Andreia Martins Viana
Ideias Chave: Poesia, literatura, Educação

A
Poetas Contemporâneos de vários
inda que a poesia e a literatura estilos, tendências e matizes, cada um com a
sofram preconceitos na sociedade, continuam sua própria identidade e forma de se
permanecendo na vida de alguns e
florescendo na vida de outros. expressar, batalhadores que insistem em criar
Jovens que enxergam o mundo de outra forma e transmitindo essências, difundindo belezas
fazem da poesia, uma necessidade para viver ou através da sua palavra libertária. E quando
talvez, sobreviver em meio a tanta essa afinidade com a palavra e a necessidade
desigualdade, discriminação, injustiça, violência de descobrir mais sobre o fenômeno da
e acima de tudo, o maior problema de todos, a linguagem cresce, não há outra forma, a não
falta de amor. É através da arte da escrita, ao ser ir mais a fundo, cursando letras.
expor seus sentimentos para tudo e todos, que
Assim aconteceu com uma jovem
eles se encontram livres e libertos de algo que
adolescente que insaciavelmente buscou mais
pesa, que grita ou às vezes sussurra por dentro.
além, e a Faculdades Integradas Simonsen
E essa voz misteriosa, magnífica e indescritível
proporcionou essa oportunidade e realizou
é chamada de inspiração. Esse grupo de
esse sonho. Hoje formada, tem um leque de
apaixonados, de todas as idades, desde a
conhecimentos e experiências em suas mãos,
adolescentes a terceira idade, tem se espalhado
sempre apaixonada por leitura, consegue
por todo o Brasil. A quantidade de saraus tem
escrever dentro de vários estilos, não nega sua
aumentado mais e mais, todos numa mesma
paixão por Clarice Lispector, Florbela
sintonia e com o mesmo objetivo, seja
Espanca, Fernando Pessoa, Carlos Drummond
questionar, manifestar, criticar ou até mesmo
de Andrade entre outros consagrados da
expressar um grande amor em versos.
literatura brasileira, que muito a influenciaram
Revista Digital Simonsen 52

e ainda influenciam na escrita. As aulas de serem abordados. Não se inserindo muito na


literatura fizeram essa admiração e tradição modernista.
cumplicidade aumentarem cada vez mais,
Com 3 livros lançados, a ex-aluna da
aprendendo a analisar não só gramaticalmente
Simonsen, possuí uma interessante história de
e interpretando com um olhar diferente e mais
sonho realizado, a poetisa quando se fala em
aguçado como professora, mas também com
arte, se esbalda naturalmente nesse mundo e
outro olhar mais natural e sensível que sempre
trabalha muito incentivando a leitura a jovens da
teve, o de poeta. A poesia não existe sem
zona oeste que sofre com uma extrema carência
sentimento, pois seria somente um texto, a
de cultura, visitando escolas e bibliotecas
poesia vai muito além, a emoção está muitas
contando sua história em palestras e
vezes nas entrelinhas, e para sentir é preciso
promovendo debates, o objetivo dela é jogar
dar uma parte de si e vivê-la.
sementes e tocar pelo menos um jovem em cada
Os poetas são leitores atentos, ou seja, lugar que passa, com a ideia de que todos são
leem criticamente não só o repertório da poesia capazes de sonhar e realizar, basta querer,
brasileira, mas também em tudo que está em acreditar em si e dedicar-se. Seu primeiro livro
sua volta, conseguem fazer coligações diretas chamado "O Reflexo da Solidão" foi lançado e
e indiretas em seu momento histórico, e suas esteve em destaque na Bienal do Livro do Rio
poesias se tornam um meio de manifestação de de Janeiro, no dia 7 de setembro de 2013, que já
discordância ou vice-versa. Com o passar do faz parte do Acervo da ABL (Academia
tempo isso não mudou, na Semana de Arte Brasileira de Letras) e foi patrocinado pelo
Moderna de 22: Arnaldo Niskier, acadêmico da ABL, pelo Prof.
Paulo Pimenta, vice-presidente do CIEE, pelo
"a linhagem modernista se bifurca
em dois eixos principais: uma vertente Chefe de Gabinete do DETRO/RJ, Roberto
mais lírica, subjetiva, articulada em Richter, e pelas Empresas Rodando Legal e
torno de Mário de Andrade, Manuel
Bandeira e Carlos Drummond de Declink - Tecnologia de confiança.
Andrade; e outra mais objetiva,
experimental, formalista representada Participa agora da coletânea “Lâmpada do
por Oswald de Andrade, João Cabral Coração”, que através de um concurso
de Melo Neto e a poesia concreta."
literário com 826 candidatos, ficou entre os 90
selecionados. Está participando também de
Pensar na poesia como processo outra coletânea, com mais cinco poetas da
histórico, ou seja, analisar a poesia de um dado Zona Oeste escolhidos pela Editora Edital,
momento conforme o contexto histórico-social chamada “Ser Poeta”.
ao qual está inserida. E os poetas de hoje em
dia, costumam acompanhar esses momentos a
Revista Digital Simonsen 53

Hoje suas poesias estão sendo Da vontade


trabalhadas, recitadas e dramatizadas em E nós temos a mente
vários espetáculos pelo grupo de Teatro
O veículo mais precioso
Entrando em Cena de Varjota - Ceará, que
recebeu o apoio da escritora recebendo alguns que nos permite voar

exemplares de seu livro "O Reflexo da Voar sem sair do lugar


Solidão". Lançou no dia 23 de setembro de
O sonho é a mais bela fotografia
2014 uma antologia em comemoração dos 15
anos do Brinde à Poesia no Teatro Municipal de um momento muito esperado

de Niterói. E foi convidada para participar do que dorme em sono profundo


Livro Diário do Escritor 2015, convite da
Há muito tempo dentro da gente
Litteris Editora. Já possui mais três livros para
sonhando em ser acordado
serem publicados. No dia 11 de abril de 2014,
recebeu a notícia do seu editor, que seu livro O sonho é a mais impecável
lançado na Bienal "O Reflexo da Solidão", foi expressão do nosso mundo sonhado
selecionado e irá concorrer ao PRÊMIO
Temos o poder para sonhar o que
PORTUGAL TELECOM DE LITERATURA.
quisermos
E é com toda essa história que faz da
De todos os tipos
literatura seu próprio caminho artístico,
levando seu trabalho a escolas e instituições De todos os tamanhos

voltadas para a importância da educação e da Com toda a emoção


cultura.
Sonhar é sair pela janela e ter liberdade
Para saber mais é só curtir no facebook: De não limitar-se a limites
Poetisa Andreia Martins.
Sonhar é ir além do que imaginamos

Sonhar é acreditar que o impossível


Sonhos
visto aos nossos olhos

Possa acontecer
Os Sonhos possuem asas
Sonhar é fazer das lágrimas um
Asas do desejo
sorriso Do passado um presente
Da esperança
Do futuro um tudo
Do amor
Do nada um pouco
Da fé
Revista Digital Simonsen 54

Sonhar é fazer do ódio um amor Bastar acreditar, crer e jamais deixar de


sonhar!
Do amor um alguém

Desse alguém uma


vida Dessa vida você Andreia Martins Viana - Nasceu em
São Gonçalo (RJ), em 23/03/1993. Formada
Basta jamais deixar a esperança escapar
em Letras e Literatura. Escreve desde os 15
Que a fé seja nossa companhia constante anos, lançou seu primeiro livro de poesias
Que o amor englobe nossas vidas chamado O Reflexo da Solidão na Bienal do
Livro do Rio de Janeiro de 2013 que está
E nunca abandonar nossos
concorrendo ao Prêmio Portugal Telecom de
sonhos Mesmo que pareça Literatura. Participou da Antologia Literária
impossível Ou difícil de ser Lâmpada para o Coração, através de um

alcançado Devemos lutar por ele concurso literário, onde ficou entre os 90
selecionados de 826 participantes. Participou
Pois nenhum vencedor ganhou sem lutar
de uma Coletânea Ser Poeta com mais 5
Mas para ser vencedor não é só ganhar poetas da Zona Oeste pela Editora Edital.
Perder também é uma vitória Participou da Coletânea Um Brinde a Poesia
15 anos lançada no Teatro Municipal de
Por ter coragem e lutar
Niterói. Atualmente apresenta um programa
Se não foi pra ser diário na Rádio Sarau On-line e na Rádio

Isso não foi o que verdadeiramente Cagerp. Atriz no Tetaro Mário Lago em Vila
almeja Kennedy e atriz coadjuvante da Rede Globo.
Mais informações no seu blog:
Jamais permita desistir
wwwandreiameuspoemas. blogspot.com.br, e
Seja sempre fiel ás suas vontades na sua Fanpage: Poetisa Andreia Martins.
Jamais perca suas asas

Pois sem elas a vida não tem sentido


Como Citar: MARTINS, Andreia.
Tudo que quiser irá conseguir Sintoma de Poesia. In: Revista Digital
Simonsen. Rio de Janeiro, n.1, Dez. 2014.
Disponível em: <www.simonsen.br/
revistasimonsen>.
Revista Digital Simonsen 55

História

FOTOGRAFIA E HISTÓRIA: UMA RELAÇÃO COMPLEXA


1
Por: Fernando Gralha
Ideias Chave: Fotografia, representação, historiografia

D e uma conjugação entre engenho,


técnica e oportunidade a fotografia
surgiu em meados do século XIX e
indivíduo ou comunidade que tenha acesso a tal
tecnologia. Abriram para o mundo um novo
modo de vida e uma nova ideia de cidade.
modificou o mundo, causou grande impacto Ajudaram, por exemplo, a transformar Paris em
na forma de produção e circulação cultural, capital do século XIX e fizeram com que os
alterando por completo o ambiente visual e os críticos e avaliadores desse período a tomassem
meios de intercâmbio de informação da como referência para a interpretação da
maioria dos habitantes do planeta. Atualmente passagem do século XIX para o século XX.
são raros os que não fazem uso freqüente da
Walter Benjamin, se inspirando nas
fotografia, seja como ilustração, auxílio à
caminhadas de Baudelaire pela Cidade Luz,
2
memória ou representação artística. colocou a fotografia num primeiro plano,
A máquina de fotografar e seu produto, a como um dos mais importantes elementos da
fotografia, compuseram o novo modernidade por esta se consistir,
equipamento/elemento tecnológico que simultaneamente, em conseqüência do
possibilita registrar tanto o cotidiano como os processo de desenvolvimento técnico e
grandes acontecimentos de uma sociedade, testemunha do novo tempo.Iniciada pelos
3
foram e são fundamentais para a construção e daguerreótipos , ampliada pelos carte-de-
organização das memórias de qualquer

1
Fernando Gralha é professor de História das Faculdades integradas Simonsen, Universidade Cândido Mendes, Universidade
Aberta do Brasil e autor da Dissertação de Mestrado Imagens da Modernidade na Obra de Augusto Malta.
2
GASKELL, Ivan. História das imgens. In: BURKE, Peter. A escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo:
UNESP, 1992. p. 241.
3
Imagem produzida pelo processo positivo criado pelo francês Louis-Jacques-Mandé Daguerre (1787-1851). No
daguerreótipo, a imagem era formada sobre uma fina camada de prata polida, aplicada sobre uma placa de cobre e
sensibilizada em vapor de iodo, sendo apresentado em luxuosos estojos decorados - inicialmente em madeira revestida
Revista Digital Simonsen 56

4
visite e definitivamente conquistada pelos professores, profissionais liberais, funcionários

cartões postais, a utilização da fotografia não se públicos, artistas, entre outros que almejavam

restringiu apenas ao prazer da contemplação de ter sua imagem eternizada pela fotografia. Desta

imagens, uma ampla diversificação de serviços forma o perfil da clientela sofreu uma

ofertados, como a fotografia de cidades, transformação que a diferiu da dos tempos do

aspectos da natureza, construções (prédios, daguerreótipo, quando o retratado era, quase

escolas, estradas de ferro, pontes, etc.), sempre, um representante da elite agrária ou da


6
expedições científicas e militares, nobreza oficial.
documentação de empresas e governos, etc.
Este alargamento do alcance das técnicas de
emprestaram à imagem fotográfica o caráter
reprodutibilidade impulsionou principalmente o
prático e documental que contribuíram para a
fotomadorismo, cujo emblema inicial foi a
popularização da fotografia.
introdução, em 1888 pela Eastman Kodak da
Antes reservada às elites, a fotografia na câmera portátil, seu slogan publicitário –
passagem do século XIX para o XX, passou “Você aperta o botão, nós fazemos o resto” –
por um processo de ampliação de seu alcance em último caso, sugere que a produção de
com a chegada no mercado de novas e mais imagens prescindia da figura do fotógrafo
simples técnicas fotográficas, baseadas no profissional nos registros mais comuns,
princípio do negativo-positivo, que ao segundo George Eastman “qualquer pessoa
diminuir os custos de produção, tornaram a com mediana inteligência pode aprender a
5 7
fotografia acessível a um público maior. No tirar boas fotos em dez minutos.”
Brasil, o efetivo crescimento da classe média, No alvorecer do século XX a fotografia já
particularmente no Rio de Janeiro, resultou apresentava todos os quesitos imprescindíveis
em uma crescente demanda do mercado para a realização do registro de imagens de
consumidor de imagens. O novo modo de alta qualidade de exposição e reprodução, os
expressão e registro chegou ao alcance de principais progressos foram de ordem
novos usuários, como comerciantes urbanos,
mecânica, na construção de lentes cada vez

de couro e, posteriormente, em baquelite - com passe- de um cartão de visita. (...) eram oferecidas como sinal de
partout de metal dourado em torno da imagem e a outra amizade e afeto a amigos, parentes e amadas e
face interna dotada de elegante forro de veludo. colecionadas em álbuns”. Apud. KOSSOY, 2002, p. 34.
5
Divulgado em 1839, esse processo teve, na Europa, BOSSY, 2002, p.12.
6
utilização praticamente restrita à década de 1840 e Idem.
meados da década de 1850. Aqui no Brasil continuou 7
Após utilizar o rolo de filme com até cem fotos que
sendo empregado até o início da década de 1870, vinha junto com a câmera, o fotógrafo amador enviava
enquanto nos Estados Unidos - onde a daguerreotipia pelo correio a máquina para a fábrica (em Nova York)
conheceu popularidade maior até do que em seu país de onde o filme era revelado e copiado. Em seguida o
origem - continuou sendo muito popular até a década cliente recebia em casa as fotos montadas e a câmera
de 1890. municiada com um novo filme pronto para ser usado.
4
“Tratava-se uma fotografia copiada sobre papel Ibidem, p. 42.
albuminado e colada sobre cartão-suporte no formato
Revista Digital Simonsen 57

mais precisas e nítidas, e câmeras portáteis de condição de representação das inovações e da


diversos tamanhos e formatos. A Eastman curiosidade do homem moderno.
lançou, por exemplo, em 1900, a câmera Fotografia e História
Brownie, ao custo de somente 1 dólar, e que
transformou radicalmente a fotografia em Paralelo a seu caráter de inovação
tecnológica, a fotografia carrega em sua
uma arte popular, passando às outras
história a marca da polêmica em relação aos
empresas a preeminência por uma qualidade
9
8 seus usos e funções. Desde a comoção
técnica profissional.
provocada no meio artístico, que entendia a
Com a popularização da fotografia a
fotografia como um elemento ofuscante de
imprensa a incorporou aos principais
qualquer outro tipo de ilustração, até seu
almanaques, revistas e jornais. Seu emprego,
caráter de prova irrefutável dos fatos, a
a princípio, tinha como função ilustrar fotografia foi, e é, alvo de debates entre
reportagens e artigos ratificando o aqueles que lançam mão deste recurso para
acontecimento narrado, ou mesmo de forma refletir acerca de seus objetos de análise.
casual, sem nenhuma conexão com o texto
No caso específico da sua relação com a
publicado. Portanto, é importante atentar ao
História, pode-se dizer que tal debate deu-se,
novo papel da fotografia no início do século
dentre outros aspectos, sobre o
XX – no Brasil explicitado em publicações
reconhecimento do papel desempenhado pela
como a Revista “Kósmos” e o periódico “O
cultura nos diferentes campos do contexto
Commentário” entre outros –, o de se
social. Foi dessa forma que a fotografia, ao
constituir como um elemento do cotidiano da
lado de outras imagens, se incluiu nos campos
população, consecutivamente conexo não 10
da pesquisa em História.
somente ao desenvolvimento científico e à
verdade da reprodução dos fatos, mas Entre os anos setenta e oitenta do século XX,
igualmente ao registro, à documentação do as fontes imagéticas, até então relegadas a um
momento especial vivido. plano ilustrativo, contribuíram para fertilizar os
debates teórico-metodológicos responsáveis
O novo equipamento e o olhar do fotógrafo
pela proposição de “novos problemas, novos
transformaram o cotidiano em nova expressão
objetos e novas abordagens” aos territórios dos
estética, ao registrar tipos, costumes e hábitos, 11
historiadores. Debates
moda e ao atribuir à imagem fotográfica a

8
SALLES, 2004. título de História: novos objetos, novos problemas,
9
MAUAD, 2004, P.119. novas abordagens. 3v. Rio de Janeiro, Francisco Alves,
10
BORGES, 2003, p. 75-79 1976.
11
Referência à obra coletiva organizada por LE GOFF,
Jacques e NORA, Pierre, traduzida no Brasil com o
Revista Digital Simonsen 58

13
estes, que foram responsáveis pelo forma de arte, é uma construção artificial,
esclarecimento da natureza discursiva e na qual se encontram as normas sociais
híbrida da fotografia, das mudanças da correntes e diferentes estratégias mobilizadas
percepção de suas imagens e especialmente pelos fotógrafos/artistas. Faz surgir uma
dos filtros culturais, ideológicos e políticos cultura visual célere e fragmentada, apesar de
que sempre conduzem os padrões compromissada com a preservação da
historiográficos predominantes, os quais, por memória individual e coletiva.
sua vez, influenciam modos de ver e de olhar
Outro trabalho que merece destaque é a
as imagens.
tese de doutoramento da Professora Ana
14
Ao considerar questões como estas, alguns Maria Mauad. Ao optar por uma abordagem
autores propõem um repensar sobre os modos histórico-semiótica e detendo-se em dois
de trabalhar as relações entre fotografia e diferentes tipos de agentes produtores de
História. Apenas a título de exemplo, citemos registro (as revistas “Careta” e “O Cruzeiro”
algumas obras cuja alta constância nas notas e fotografias de famílias) analisa a
de rodapé de dissertações e teses de diferentes característica tipicamente burguesa dos
historiadores, pesquisadores e outros comportamentos e das representações sociais
estudiosos da fotografia ratificam a aceitação da classe dominante no Rio de Janeiro da
da, como já dissemos, natureza discursiva e primeira metade do século XX. Traz
híbrida da fotografia, o que permite fazer importante contribuição para a discussão com
desta fonte iconográfica um documento seu trabalho, no qual busca “chegar àquilo que
histórico recheado de informações sobre a não foi revelado pelo olhar fotográfico”.
sociedade congelada naquela imagem. Entende que para chegar àquilo que não foi de
imediato revelado, é preciso “perceber as
Annateresa Fabris em “Fotografia: usos e
12 relações entre signo e imagem, aspectos da
funções no século XIX”, ressalta que a
mensagem que a imagem fotográfica elabora
fotografia é orientada pelas convenções de um
e, principalmente, inserir a fotografia no
novo binômio: o da automatização/criação, 15
panorama cultural no qual foi produzida”.
subverte a tradição das pinturas, estas
baseadas no binômio manualidade/criação. A Para tanto a autora transita por diversos autores
16
cargo disso, o retrato fotográfico rompe com a que tratam de lingüística e de semiótica, e

perspectiva renascentista e instaura uma outra partindo da acepção de que “a semiótica é uma

12 16
FABRIS, 1998. A autora discute as posições e contribuições tanto de
13
Idem, p. 8-9 teóricos da lingüística e da semiótica da comunicação
14
MAUAD, 1990. (Saussurre e Roland Barthes) como os da semiótica da
15
Idem, p. 1. significação (Julia Kristeva, Peirce, Umberto Eco e
Rosi-Landi).
Revista Digital Simonsen 59

nova ciência que tem por objetivo qualquer compreensão se dá a partir de regras culturais,
sistema sígnico usado na sociedade humana que fornecem a garantia de que a leitura da
17 imagem não se limite a um sujeito individual,
(...)”, chama a atenção para o fato de que
para o historiador ampliar sua capacidade de mas que acima de tudo seja coletiva.” A

análise e esclarecimento dos acontecimentos compreensão do texto fotográfico se dá nos

passados é necessário levar em conta a planos internos e externos à superfície do

interdisciplinaridade e a aceitação da texto visual, é um ato tanto conceitual quanto

abordagem semiótica. Nessa abordagem pragmático onde se pressupõe a aplicação de

histórico-semiótica a autora propõe “analisar regras culturalmente aceitas e


19
a mensagem fotográfica como um fenômeno convencionalizadas na dinâmica social.
de produção de sentido” para tanto utiliza os
Mauad agrega às categorias fundamentais
conceitos básicos de cultura e ideologia já que
de análise semiótica o destaque aos elementos
“tudo nas sociedades humanas é constituído históricos na acepção de que é no processo de
segundo códigos e convenções simbólicas que sua produção que a fotografia, como produto
denominamos cultura”. É nesta conjuntura cultural, deve ser analisada para que se passe
teórica que a autora compreende a fotografia do aspecto superficial da imagem à apreensão
como “1°, enquanto artefato produzido pelo de seu sentido social. Ao mesmo tempo,
homem e possui uma existência autônoma, consistindo a imagem em um meio de
quer seja como relíquia, lembrança etc.” e comunicação humano, há códigos e
“2°, enquanto mensagem que transmite convenções a partir das quais elas são
significados relativos à própria composição da produzidas e que nos remetem ao contexto
imagem fotográfica”. cultural no qual se situam.

A mesma autora em outro trabalho de A noção de cultura fotográfica ainda é uma


18
1996 comenta a noção de intertextualidade discussão relativamente recente no Brasil,
e da relação entre quem produz e quem lê o tanto entre os historiadores quanto entre os
artefato imagético, da dependência da demais cientistas sociais que trabalham com
aproximação com outros textos do período imagens fotográficas. Uma das primeiras
para uma leitura da imagem. Para Mauad, “à 20
discussões, iniciadas por Maria Inez Turazzi
competência do autor corresponde a do asseguram que a cultura fotográfica é uma das
leitor”, pois “é a competência de quem olha formas de cultura, justificada pelo valor da
que fornece significados à imagem. Essa fotografia como recurso visual de suma

17 18
“Introdução ao estudo estrutural dos sistemas de MAUAD, 1996.
19
signos”. In: Ivanov, V.V. et alii. A Linguagem e os 20
Idem, p. 9.
Signos. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, n° 29, 1972, TURAZZI, 1998.
p. 9. Apud MAUAD, 1990, p. 2.
Revista Digital Simonsen 60

importância para a formação do sentimento de ação inseparável de sua enunciação e de sua


identidade, seja individual ou coletivo. recepção.
Turazzi constata que a cultura fotográfica é
O autor baseia-se em três categorias
uma das formas de cultura arraigada em uma
básicas: o índice como representação por
extensão maior do universo cultural, entende
imediação física com seu referente; o ícone
que esta se constitui em dimensões diversas e
como representação por similaridade; e o
complexas. Começando pelos próprios
símbolo como representação por convenção
produtores de imagens, a autora assegura que
geral. Essa forma de abordagem aproxima as
a cultura traz à baila todo cabedal profissional
imagens técnicas do fotógrafo com as
dos fotógrafos, ou seja, desde seu
características indiciais da singularidade, da
equipamento fotográfico e diferentes
denominação do período e do seu testemunho.
tecnologias (câmeras, lentes, chapas, etc.) até
A singularidade, como prova da unicidade do
suas escolhas estéticas e formais que utilizam
referente em que a imediação referencial é a
em sua produção. Daí podemos ressaltar a
própria projeção metonímica; o testemunho,
necessidade de se realizar uma arqueologia da
porque por sua origem, a fotografia
obra do autor fotográfico dispondo-a em um
necessariamente testemunha, certifica ainda
determinado tempo e espaço.
que às vezes não signifique, e a denominação,

Turazzi salienta ainda que uma cultura característica de indicar a singuralidade


fotográfica se expressa nos usos e funções da exclusiva do referente. Portanto, a primeira
fotografia em uma sociedade e na construção qualidade existencial das imagens fotográficas
das representações imaginárias integradas ao é ser inicialmente na sua origem um índice,
conteúdo das imagens produzidas desta podendo assemelhar-se e tornar-se um ícone,
sociedade. para finalmente adquirir sentido e ser um
22
símbolo.
O teórico francês Philippe Dubois, um dos
principais pesquisadores da atualidade no Já Boris Kossoy, um dos pioneiros no
campo da estética das imagens com trabalhar as relações entre fotografia e
contribuições decisivas na reflexão sobre a 23
História, analisa o valor documental da
fotografia, o cinema, o vídeo e o domínio
fotografia como informação historiográfica,
21
digital, fundamenta sua análise na crença de propõe uma metodologia para a pesquisa e
que, embora ocorra a premissa da existência análise deste suporte. O livro é considerado um
de uma significação per si, a fotografia é clássico utilizado por historiadores, sociólogos e
percebida como uma imagem coligada a uma profissionais de comunicação. Kossoy

21
DUBOIS, 1990. 23
22 KOSSOY, 2001.
Idem.
Revista Digital Simonsen 61

acrescenta à discussão, entre outros seria passível de não ser compreendida por
fundamentos teóricos, uma análise do fotógrafo sua clientela.
24
como um filtro cultural, nela destaca que “o Portanto, a visualidade determinada pela
registro visual documenta (...) a própria atitude fotografia é constituída, ao mesmo tempo, por
do fotógrafo diante da realidade; seu estado de sua geração automática assim como pelas
espírito e sua ideologia acabam transparecendo subordinações sócio-culturais que norteiam o
em suas imagens” e, portanto, a opção por um olhar e as opções do fotógrafo, pelos
determinado aspecto do real, a disposição visual intermediadores culturais responsáveis pela
dos detalhes que compõem a cena, assim como circulação das imagens além do gosto e
o uso que o fotógrafo faz dos vários recursos intentos dos consumidores.
oferecidos pela tecnologia, são elementos que
Dessa forma, podemos dizer que o
influirão decisivamente no resultado final e
fotógrafo, sua câmera, a paisagem e seus
configuram a atuação do fotógrafo enquanto
habitantes e, por fim, nós espectadores,
filtro cultural.
fazemos parte do processo de significação.
Respeitadas suas especificidades, podemos Podemos então, entender seu acervo
dizer que nos trabalhos aqui citados, os fotográfico como um sistema de comunicação
autores proclamam a fotografia não apenas e, portanto, portador de uma mensagem e de
como uma expressão da realidade, mas um emissor com intenção de transmitir algo,
também interpretação deste mesmo real, que portanto os códigos de representação e
deve ser buscada nas efígies através da leitura comportamento de um indivíduo ou grupo a
cuidadosa e subjetiva, neles a fotografia exibe que ele pertence, estão presentes numa
suas múltiplas faces; ostenta seu status de imagem fotográfica.
técnica, arte e documento sócio-cultural.
Partindo do ponto de que a fotografia traz
O que nos importa inteiramente chamar a em si uma série de referências do indivíduo,
atenção é que o ato de reproduzir frações do grupo ou sociedade a que representa, como
real não é um processo passivo, asséptico, pois imagem, ela está carregada de valor cultural.
o fotógrafo, seja ele autônomo ou ligado a ações 25
Segundo Arnal , esse “estar carregado de
públicas, atua sobre o real impregnado e
valor cultural” acontece quando a imagem se
sabedor dos códigos sociais, políticos,
insere no contexto sociocultural de um
ideológicos, comerciais e estéticos. De outra
determinado grupo. Essa inserção ocorre se, e
forma, a “composição” da imagem produzida
quando, os atores sociais mantêm os ritos
comuns que reforçam e estruturam esse grupo.

24 25
Idem, p. 42. ARNAL, 1998.
Revista Digital Simonsen 62

A fotografia ganha então um caráter para reprodução do fato, cópia fiel dessa
27
ambíguo, enquanto é definitivamente um mesma realidade.
documento, consiste ao mesmo tempo em
Desde seu surgimento em 1839 até meados
uma representação.
do século XX, a fotografia se constituiu nas
relações entre documento, prova e memória,
carregando em si o status de “olho da História”,
Fotografia e documento
no Brasil sustentou-se a idéia. A partir da nota
Quando se fala em documento, se fala em 28
dada pelo Jornal do Comércio em 1840 da
evidência, prova, comprovação oficial. 29
chegada do daguerreótipo, – “(...)
Segundo o dicionário Houaiss da língua
26 Em menos de nove minutos o chafariz do Largo
portuguesa documento é “qualquer objeto
do Paço, a praça do peixe, o mosteiro de São
de valor documental (fotografias, peças, Bento, e todos os outros objetos circunstantes se
papéis, filmes, construções etc.) que sirva de
acharam reproduzidos com tal fidelidade,
prova ou testemunho, elucide, instrua, prove
precisão e minuciosidade, que bem se via que a
ou comprove cientificamente algum fato,
cousa tinha sido feita pela própria mão da
acontecimento, dito, etc.”
natureza, e quase sem a intervenção do artista”
O primeiro efeito que a fotografia causou foi –, pela sua associação como identificação
o despertar de grande admiração pelo novo através do uso em documentações pessoais
meio de expressão, em virtude de suas como passaportes, identidades, e outros tipos de
realizações, de sua perfeição e rapidez. Esse carteiras de reconhecimento social, dos retratos
30
deslumbramento com a invenção de Niépce e de família, o registro fotográfico tinha em si a
Daguérre e suas possibilidades de representação certeza da isenção de intervenção à natureza do
geraram a necessidade de definir a essência da fato. Esta suposta vocação que a fotografia tem
fotografia. Esta, primeiramente, se constituiu para reproduzir o real garantiu-lhe desde sua
em oposição à pintura. O esforço neste sentido invenção uma posição de destaque no campo
se deu diante da capacidade da fotografia de das ciências e da comunicação. A informação
reproduzir, como até então, nenhum mestre da visual contida na imagem nunca era contestada,
pintura houvera conseguido, um “espelho do seu nível de autenticidade garantia seu
real”. Foi o recurso mecânico encontrado pela aceitamento prévio como prova de um
ciência

26 29
Aparelho fotográfico inventado por Mandé Daguerre
http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=documen (1787-1851), físico e pintor francês, que fixava as
to&stype=k imagens obtidas na câmara escura numa folha de prata
27
ARNAL, 1998. sobre uma placa de cobre.
28 30
Jornal do Comércio, 17/01/1840. MAUAD, 1996, p. 3.
Revista Digital Simonsen 63

determinado episódio, estado de coisas, respectiva discussão teórica, envolvendo


aparência ou comportamento. A objetividade questões como o realismo fotográfico, a
positivista atribuída à fotografia era parte de ambigüidade relativa a informação e
uma instituição alicerçada no iconográfico, na desinformação que existem na imagem
31
aparência como expressão da verdade. fotográfica, a subjetividade e a objetividade
que ela possui, a questão do olhar, da
Antes de qualquer coisa devemos deixar
interpretação e da busca da natureza do
claro que a teoria do “olhar inocente” já caiu
32
documento fotográfico.
por terra há algum tempo, historiadores e
teóricos da imagem como Boris Kossoy, Ana Seria possível, o registro visual não
Maria Mauad, Ariel Arnal, Alfredo Bosi entre documentar a atitude do fotógrafo frente à
outros, comprovam que entre a ação de realidade? Seu estado de espírito e sua
fotografar e a imagem resultante existe toda ideologia não transparecerem em suas
33
uma gama de subjetividades concernentes imagens? Segundo Kossoy não,
tanto ao fotógrafo quanto a sociedade do
Para uma confiável análise de uma série
contexto deste mesmo fotógrafo, além das
fotográfica e de seus processos de realização,
expectativas e desejos do fotografado.
o caminho é seguir a metodologia de situar as
Além de que, não podemos desconsiderar fotografias no contexto de sua produção, no
que boa parte das obras fotográficas são fruto seu tempo e condições político-sociais, é o
de uma relação comercial entre o fotógrafo e caminho para articular dinamicamente a
cliente. O fotógrafo profissional presta um percepção dos vestígios detectados e a visão
serviço a um cliente, e o sucesso desta relação geral que se tem sobre a realidade social
estava diretamente ligado à satisfação deste estudada.
cliente, de onde podemos concluir que o
Porém, o simples “cercar” as fotografias
fotógrafo ao de todos os recursos para
através das fontes produzidas pelo fotógrafo,
satisfazer as expectativas de seu(s) cliente(s)
não é suficiente para dar conta da sua
o coloca no mínimo em uma posição de co-
expressão do universo d e uma sociedade. A
autoria do registro imagético.
interpretação de uma única fotografia ou de
Assim, podemos dizer que a obra fotógrafo e uma série como texto, exige o conhecimento
sua relação com o registro do “fato” se de diferentes textos que os antecederam ou
encontram no centro do debate que é o conceito que lhes fossem contemporâneos na produção
34
da fotografia como fonte histórica e sua da textualidade de um período.

31 33
KOSSOY, 2001, p. 102. KOSSOY, 2001, p. 42.
32 34
CIAVATTA, 2002. p. 18 MAUAD, 2005, p. 140.
Revista Digital Simonsen 64

Assim sendo, o entrecruzamento e a em que atua, autônomo ou servidor, sua obra é


interseção de fontes como jornais, ofícios, marcada pela competência com que dominou a
crônicas, literatura, etc. se tornaram de tecnologia e a estética fotográfica de seu tempo,
essencial importância na construção de um que por sua vez estão diretamente conectadas ao
conjunto de referências mais extenso, que por manuseio de códigos convencionados social e
sua vez, proporcionaram uma maior historicamente objetivando a fabricação de uma
possibilidade de compreensão do sentido do imagem crível e inteligível. Logo, as imagens
teor das imagens, a fim de que elas adquiram produzidas por qualquer fotógrafo são um
um sentido não em si, mas em seu contexto. documento não apenas pelo que mostram de um
passado congelado nas efígies, mas porque
Desconsiderar outras fontes, sejam elas
permitem também o conhecimento de seu autor,
quais forem, ao ler e entender uma sociedade
o fotógrafo e cidadão, do procedimento e
através das fotografias seria um trabalho
tecnologia empregados por ele e que
infactível e sem sentido. A imagem
36
proporcionaram a imagem e seu conteúdo.
fotográfica, não fala por si, somente pode ser
compreendida quando contextualizada no
próprio universo interpretativo do autor e do O produto final na obra fotográfica, se
receptor, entendemos que somente nesse constitui em decorrência da ação do homem,
universo ela se decompõe em testemunho e que dentre outras escolhas possíveis, optou
mensagem de uma pessoa, sociedade, por um ponto de vista em particular: o
circunstância ou de um acontecimento entusiasmo, o otimismo, a tristeza, a crítica,
sucedido. enfim, qualquer sentimento humano advindos
das idéias de seu tempo. E que utilizou toda a
Embora, muitas vezes, a fotografia almeje
tecnologia a ele oferecida por este tempo. A
à universalidade de uma produção calcada na
narrativa fotográfica nasce a partir de um
razão, percebemos que as imagens oficiais ou
desejo coletivo ou individual permeado por
não, são sempre reguladas sobre códigos
desejos de um lugar e de uma época, que
convencionalizados social e culturalmente,
motivaram a petrificar em imagens
motivados pelos interesses dos grupos que os
tecem, daí é imprescindível o relacionamento determinados aspectos do real.

dos discursos proferidos com a posição de Desde o surgimento da fotografia, existe a


35
quem se utiliza deles. possibilidade de interferir na sua confecção,
da existência de um “discurso humano”,
Faz-se necessário, também, entender o
fotógrafo como autor, em qualquer instância construído através da codificação da imagem -

35 36
CHARTIER, 1990, P. 17. KOSSOY, 2001, p. 75.
Revista Digital Simonsen 65

a pose por exemplo. Dirigindo a cena, do real concretizada pelo fotógrafo mediante
organizando a composição, se aproveitando um conjunto de normas que envolvem,
de um ângulo mais favorável, alterando para inclusive, o domínio de um determinado
38
melhor ou para pior a aparência de seus conhecimento e tecnologia.
retratados, introduzindo ou excluindo
Uma obra fotográfica é um meio de
detalhes, o autor fotográfico sempre, de uma
informação pelo qual visualizamos
forma ou de outra, manipula seus registros
37
microcenários de um tempo e espaço; assim
técnica, ideológica ou esteticamente. Desta
sendo ela não agrupa em si a totalidade do
forma, a singularidade daquilo que se conhecimento, mas evidencia sim uma
apresenta ganha similaridade com uma implícita relação de “cumplicidade” entre o
categoria universalizante: o rico, o pobre, o fotógrafo e imagem. Não pode ser percebida e
patrão, o empregado, ou a festa, o desastre, o analisada como um registro simples e
protesto, a modernidade, o atraso... imaculado de uma imanência do objeto

Assim sendo, a fotografia apresenta, por retratado. Como produto humano, ela indica

um lado, algumas pistas muito claras, e de também, com sua escrita luminosa, uma

outro carrega alguns vestígios, de acesso mais realidade que não existe fora dela, nem antes
39
difícil, pois são fundamentados em modelos dela, mas precisamente nela.
previamente elaborados da perspectiva, do
Seguindo o viés de análise de Boris
enquadramento, da composição, da pose, etc. 40
Kossoy, afirmamos que a história das
Estas condições são de grande relevância,
efígies executadas vistas tanto pelo fotógrafo
porque mostram não apenas que tal evento
como pelos retratados, nos trazem indícios de
realmente existiu, mas também, através da
um passado. É preciso ter consciência de que,
composição da imagem, uma certa
ao analisarmos estas fotografias, nossa
representação que foi social e/ou
compreensão deste passado será, sem dúvida,
culturalmente conferida ao sujeito.
influenciada por uma ou mais interpretações
A fotografias servem para atestar condições anteriores. Por mais isenta que seja à
representadas por meio de objetos, poses e interpretação do teor fotográfico da obra
olhares, são fruto de um processo que vai além analisada será vista continuamente conforme a
de sua gênese automática, que vai além de a interpretação primeira do fotógrafo, que optou
idéia de analogon da realidade, são decorrentes por aspectos determinados, os quais foram
de uma elaboração do vivido, de uma ação de objetos de manipulação desde o momento da
investimento de sentido, ou seja, uma leitura tomada dos registros e durante todo o

37 39
Idem, p. 108. MACHADO, 1984, p. 40.
38 40
MAUAD, 2005. KOSSOY, 2001.
Revista Digital Simonsen 66

processamento, até a obtenção das imagens


derradeiras. Entre o objeto e sua imagem A imagem fotográfica enquanto
materializada incidiram uma seqüência de monumento.
intervenções ao nível da expressão que
modificaram a informação inicial.
“(...) o monumentum é um sinal do
Retomando então a questão do documento, passado. Atendendo à suas origens
a fotografia serve ao historiador como fonte filológicas, o monumento é tudo aquilo
que pode evocar o passado, perpetuar a
de conhecimento das múltiplas atividades do 41
recordação (...)”
homem e de seu atuar sobre outros homens e
sobre a natureza, porém sempre se prestando
42
Segundo Le Goff, dois tipos de materiais
aos mais diferentes interesses, ideologias e
culturas, agregando ao status de documento a são aplicados à memória coletiva: os

característica de representação. documentos e os monumentos. Seguindo ainda


o mesmo viés de análise, de que “não há
Entendemos, portanto, a obra do fotógrafo história sem documentos” e que “há que tomar
como uma determinada “prova visual” do a palavra ‘documento’ no sentido mais amplo,
contexto um certo tempo e espaço, que sempre documento escrito, ilustrado, transmitido pelo
encontrou-se entre dois modos de existência: som, a imagem, ou de qualquer outra
43
como mensagem direta, objetiva, culturalmente maneira”, entendemos que a fotografia
consagrada pela sua origem de tecnologia abrange tanto o conceito de documento como
aplicada e aparentemente sem necessidade de monumento, principalmente dentro da idéia de
decodificações, e como uma mensagem
“novo documento” que transcendendo para além
polissêmica, dúbia, refratora da realidade. Se dos textos tradicionais, carece ser tratada como
nesta permite uma aproximação estética da um documento/monumento. A fotografia de
virtualidade do ato fotográfico à sua fato, oscila entre documento e monumento,
materialização, do fazer fotográfico ao refletir entre memória e História, ora serve de índice,
sobre o produto codificado, transformador do como marca de uma materialidade passada, na
real, naquela, a estética fotográfica é imposta ao qual objetos, pessoas e lugares nos dizem sobre
real como mimeses, arquétipo visual ou o determinadas feições desse passado –
“espelho do mundo”, o código absoluto. Ou modismos, condições de vida, arquitetura,
seja, prova conformada pelo testemunho e festas, solenidades, etc. Por outro lado, é um
pelo olhar de um cidadão de seu tempo. símbolo, daquilo que no

41
LE GOFF, 1985, p. 535-536. 43
42 Ibdem, p. 531.
Idem.
Revista Digital Simonsen 67

passado, a sociedade determinou como sociedades históricas para estabelecer –


44
imagem a ser perpetuada no futuro. voluntária ou involuntariamente –

Por meio da conservação das imagens determinada imagem de si mesmos, e que a

fotográficas, que por sua vez, apresentam o fotografia age como um ponto de partida da

instante real e vivido, porém congelado como memória, apta a resumir o sentimento de

partícula de uma memória, podemos entender pertencimento a um grupo e/ou a um

a referida oscilação da fotografia entre os determinado passado, que, fundamentalmente,

conceitos de documento e monumento. nos leva a considerar as imagens fotográficas


como fonte historiográfica, como documento
A fotografia, composta por signos sociais,
e monumento.
políticos e estéticos e de sua relação simbólica
com seu exterior, institui, sob o enfoque da Logo, apresentamos a fotografia como uma
produção de significados sócio-culturais, um mensagem que se elabora através do tempo,

“espaço histórico” legitimado. Através de sua tanto como imagem/monumento quanto como
46
condição legitimadora e dialógica, o modo de imagem/documento. É uma forma de
representar da fotografia atualizou-se enquanto demarcação que faz uma ponte entre passado
“gênero de discurso”. Tal significação e presente, de natureza fundamentalmente
encontra-se bem encaixada nestas comunicativa e que reúne uma série de
características e condições na medida em que, componentes dialéticos, compostos de

de acordo com o pensamento de José R. S. resistências e acordos, oposições e


45 homogeneidades, que por sua vez lhe
Gonçalves,
impedem de ser neutra. É carregada de
“os ‘discursos do patrimônio
cultural’, presentes em todas as valores, objetos, mensagens, lugares e
modernas sociedades nacionais, imagens constituindo documento e
florescem nos meios intelectuais e são
produzidos e disseminados por monumento cheios de eloqüência, reflexões,
empreendimentos políticos e técnica e simbolismos impregnados de
ideológicos de construção de
‘identidades’ e ‘memórias’, sejam de passado e presente, de testemunho e
sociedades nacionais, sejam de grupos objetividade, de lembranças e esquecimentos.
étnicos, ou de outras coletividades.”
É nesta escolha de narrativa, inspirada pela A fonte visual tem uma natureza discursiva,
que produz sentido - sentido dialógico -
noção de documento-monumento, onde Lê
Goff sugere que o documento enquanto socialmente construído e mutável e não

monumento é fruto do empenho das imanente à fonte visual. A visualidade é algo


que vai além de observar o visível e dele inferir

44
MAUAD, 2005, p. 141. 46 .
45 Apud CARDOSO & MAUAD, 1997
GONÇALVES, 2002.
Revista Digital Simonsen 68

o não-visível. É “tirar” da fonte visual um ou que, olhar, ver e pensar são ações intrínseca e
vários discursos. Assim sendo, a fotografia se historicamente inseparáveis, Barthes divide a
estabelece como mediadora e reflexo de um linguagem fotográfica em duas categorias:
momento da sociedade. uma denotativa, é o óbvio, é tudo o que se vê
na fotografia, tudo que está evidente; a outra é
conotativa, é o obtuso, é informação implícita
Olhar, ver e pensar.
na fotografia. Através desta análise estabelece
“Sabe-se que a relação do olho com a sua célebre distinção entre o studium e o
o cérebro é íntima, estrutural. Sistema
nervoso central e órgãos visuais punctum da fotografia. Trata-se por um lado
externos estão ligados pelos nervos da condição da imagem fotográfica enquanto
ópticos de tal sorte que a estrutura
celular da retina nada mais é que a algo que se presta ao intelecto como objeto e
expansão da estrutura celular do campo de estudo, como área de uma cultura e
cérebro. O anatomista norte americano
Stephen Poliak chegou a admitir a de um saber perceptível, revelado e
hipótese revolucionária de que o tecido proclamado nos padrões da ciência - o óbvio
cerebral resultou de uma evolução dos
olhos em pequenos organismos da fotografia. Por outro lado, entende a
aquáticos que viveram a mais de um imagem fotográfica enquanto algo que se
bilhão de anos atrás. Quer dizer: não
foi o cérebro que se estendeu até a proporciona ao afeto, como um detalhe, uma
formação do órgão visual, mas, ao experiência pessoal que perpassa
contrário, foi o olho que se complicou
extraordinariamente dando origem ao existencialmente, que fere, anima ou comove,
córtex onde, supõe-se, estaria a sede da como um silêncio que, ao mesmo tempo
47
visualidade.” (Alfredo Bosi)
enleva e perturba - o obtuso da fotografia.
48
Roland Barthes em “A Câmara Clara”
afirma que a foto fala, que induz, vagamente a Barthes se mostra insatisfeito com o
pensar. Cita o exemplo das fotos de Kertész conjunto de conceitos empregados no trato da
para a revista Life em 1937, que foram fotografia e opta por abordá-la no nível pleno
recusadas por “falar demais”. Segundo os da subjetividade, dos sentimentos causados
redatores da revista elas faziam refletir, diante sua experiência individual como

sugeriam um sentido – outro que não a letra. espectador. Em suas palavras:

Ainda segundo Barthes a fotografia é “(...) a resistência apaixonada a


subversiva, não quando aterroriza, perturba, qualquer sistema redutor. Pois toda vez,
tendo recorrido um pouco a algum, sentia
mas quando é pensativa. uma linguagem adquirir consistência, e
assim reprimenda, eu a abandonava
Enquanto o viés da análise de Bosi (1988) tranqüilamente e procurava em outra
sobre uma fenomenologia do olhar está em parte: punha-me a falar de outro modo.
Mais valia, de uma vez por

47 48
BOSI, 1989. BARTHES, 1984, p. 62.
Revista Digital Simonsen 69

51
todas, transformar em razão minha fenomenologia do olhar” e em “Machado de
declaração de singularidade e tentar 52
fazer da ‘antiga soberania do eu’ Assis – O enigma do olhar” , é eficiente para
49
(Nietzsche) um princípio heurístico.” perceber o efeito causado pelas fotografias tanto
É fácil perceber em “A câmara clara” certa para si como para seus “espectadores”.
tensão entre uma demanda referencial e uma Segundo Bosi, o olhar tem sobre a noção de
aspiração formal, em que transparece o ponto de vista a “vantagem de ser móvel”, ora
desapego pelo studium, ou seja, pelo óbvio, em é abrangente, e em outro momento
favor do punctum. A proposta de exame do contundente. O olhar é simultaneamente
“obtuso”, do “detalhe” e especialmente do cognitivo e passional. O olho que explora e
“tempo” é executada com uma observada quer saber objetivamente das coisas pode ser
tendência à dicotomia e oposição de valores também o olho que ri ou chora, ama ou
de análise. Barthes discute a fotografia além detesta, admira ou despreza. Quem diz olhar
da intermediação dos indicadores culturais, diz, implicitamente, tanto inteligência quanto
chamando a atenção para o fato de que não 53
sentimento.
trata de outra imagem que não a fotográfica.
Bosi esclarece que o olho é um limite móvel
O autor trata a fotografia a partir de um e aberto entre o ambiente externo e o sujeito, ao
ponto de vista situado no campo das sensações mesmo tempo em que se movimenta no ato da
que a sua experiência visual provoca, fora da procura, recebe estímulos luminosos que tornam
mediação dos códigos culturais, e ao fazer isso, o ato de enxergar involuntário, e é nestes atos
mais uma vez, com atenção para o fato de que que o sujeito vai “distinguir, conhecer ou
se trata de uma fotografia e não de qualquer reconhecer, recortar do contínuo das imagens,
outro tipo de imagem, proclama um certo tipo medir, definir, caracterizar, interpretar, em
de entusiasmo que se conecta à essência 54
suma, pensar".
particular da imagem fotográfica, ao sentimento
Continuando com o pensamento de Bosi,
pungente do realismo fotográfico que desfaz a
concordamos que os “(...) valores culturais e
fronteira atribuída pelo tempo, para colocar o
estilos de pensar configuram a visão do mundo
espectador face a face com o passado e com o
do romancista (e no nosso caso do retratista), e
que há de terrível em toda fotografia: o retorno
esta pode ora coincidir com a ideologia
50
do morto.
dominante no seu meio, ora afastar-se dela e
Em outro trabalho, a noção de olhar julgá-la. Objeto do olhar e modo de ver são
esclarecida por Alfredo Bosi em seu artigo “A

49 52
BARTHES, 1984, p. 19. ___________, 1999.
50 53
Idem, p. 20. Idem. p. 10
51 54
BOSI, 1998. BOSI,1988, p. 65-87.
Revista Digital Simonsen 70

fenômenos de qualidade diversa; é o segundo sentidos, de outros entrelaçamentos –


55
que dá forma e sentido ao primeiro”. cognitivos e culturais – que compõem esta
estrutura que liga, permitindo-nos ressuscitar,
Para encontrar a estrutura que liga o
refletir, e principalmente, olhar, ver e pensar
cognitivo ao afetivo na obra fotográfica é
preciso buscar na contemplação e análise das um passado em particular a partir de

fotografias a aliança, o entrelaçamento da fragmentos desconectados de um instante de

natureza destes, que por sua vez constituem a vida das pessoas, objetos, natureza e

estrutura subjacente das fotografias. paisagens, do conhecimento obtido com a


participação dos conhecimentos, adquiridos
Por entender que um acervo fotográfico
no tempo que vivemos e apreendemos nossa
retrata, visual e historicamente o discurso não
memória coletiva e individual.
só do fotógrafo, mas de parte considerável da
sociedade a qual pertence, acreditamos Ainda que apregoemos o vasto potencial de

encontrar a densa estrutura, que extrapola e informação contido na imagem, ela não
substitui a realidade tal como se deu no
transcende o limite do plano das próprias
passado. Ela apenas traz informações visuais
fotografias, uma vez que está ligada a outras
de frações do real, selecionado e organizado
estruturas externas a ela, como por exemplo,
56
ao que a produz e o que a observa (ao estética e ideologicamente. Onde se faz

operator e o spectator), ao comprador, aos necessário estudar o conjunto dos três


que não puderam vê-la, aos que não elementos expressos no conceito de
aprenderam a vê-la, à história das visualidade: a visão, aquele que produz as

representações, à história das imagens. fontes visuais; o visual, a fonte como parte do
observável na sociedade observada; e o
A análise dos discursos fundidos na visível, a interação entre observador e
experiência intelectual e visual presentes nas observado, ou seja, sistemas de controle e
fotografias nos possibilita descobrir associações 57
relações que produzem o sentido.
e significados que talvez fossem impossíveis
realizar na época de sua execução. As memórias Entendemos, então, que é papel do

que as imagens nos trazem não são simples historiador interpretar e tentar compreender a

reminiscências, são memórias e lembranças que fotografia como informação incontínua da

ao transcorrer as camadas de um conhecimento existência passada, além de perceber que a

adquirido, no nosso caso o saber histórico, reunião e a apreciação dos documentos não

chegam impregnadas de novos substituem a atividade criadora do historiador,


que é de tentar reconstituir a vida passada

55
____, 1999, p. 12. 57
56 MENESES, 2003, p. 17.
KOSSOY, 2001, p. 114.
Revista Digital Simonsen 71

interpretando o pensamento, os sentimentos e BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. In:


NOVAES, Adauto (org.) O olhar. São
as ações do homem, personagem principal da Paulo, Companhia das Letras, 1998.
58
História que se procura compreender. Toda ___________. Machado de Assis - O enigma
do olhar. São Paulo, Editor Ática, 1999.
História é produzida a partir de um lugar, e a
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58
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<http://www.scielo.br/scielo.php?script
Revista Digital Simonsen 73

História

“NÃO QUERO SERVIR AO MEU SENHOR”: NEGOCIAÇÃO,


CONFLITO E HISTORIOGRAFIA DA ESCRAVIDÃO URBANA NO
RIO DE JANEIRO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX.

1
Por Rodrigo Amaral
Ideias Chave: Escravidão urbana, relação senhor-escravo, mercado de escravos

Introdução
“Vende-se uma bem feita e
“Vende-se uma negra de nação
reforçada crioula, a qual sabe
Benguela, sem moléstia alguma, nem
perfeitamente coser, engomar, cozinhar,
defeitos conhecidos, superior lavadeira,
e lavar, tudo com muita perfeição e
cozinha o ordinário, faz compras para
asseio, veste e prega qualquer Senhora,
casa, também vende quitanda e é muito
é capaz de tomar conta de uma casa,
trabalhadora. Vende-se por não querer
pelo seu bom comportamento e
servir sua senhora, quem a pretender,
desembaraço, advertindo que se vende
dirija-se a rua Glória, n°55, que ali
2 pela mesma escrava assim o pedir,
achará com quem tratar.” quem a quizer dirija-se a rua do
4
Alecrim n.274.”
“Quem quiser comprar uma preta
de nação Moumbe, sabe lavar,
engomar, cozinhar, e coser* bem,
vende-se por que ela não quer servir ao
seu senhor; dirija-se a rua do Lavradio
n.50 que lá achara com quem tratar.”
3
O s três anúncios que iniciam este artigo
foram publicados em periódicos da
cidade do Rio de

1
Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com upgrade na Universidade Técnica de
Lisboa, Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor da tese Sob o paradigma da
diferença: Estratégias de negociação, submissão e rebeldia entre elite e subalternos no Rio de Janeiro e em São Tomé e
Príncipe (c.1750-c.1850)
2
Biblioteca Nacional, Seção de obras raras. O Volantin, N. 34. Rio de Janeiro, Quinta-feira, 10 de Outubro de 1822.
Grifo meu. Escrita atualizada.
3
Biblioteca Nacional, Seção de obras raras. Jornal do Commercio, N.78, Rio de Janeiro, Sábado, 5 de Janeiro de 1828.
Grifo meu. Escrita atualizada.
4
Biblioteca Nacional, Seção de obras raras. Jornal do Commercio, N.108, Rio de Janeiro, Terça-feira, 13 de Janeiro de
1829. Grifo meu. Escrita atualizada.
Revista Digital Simonsen 74

Janeiro em 1822, 1828 e 1829. As duas prontamente efetuada. Dias depois a cativa
5 repetia o pedido, agora para trazer um
africanas e a crioula estavam sendo vendidas
provável parente para seu novo plantel.
mesmo recebendo os adjetivos de perfeitas,
Pedido desta vez negado por seu antigo dono.
superiores, bem reforçadas, trabalhadoras e
Entretanto, menos de uma semana depois, lá
tendo bom comportamento. Mas acreditar na
estava o cativo ao lado da pidona escrava, a
fonte é um risco. Estes senhores poderiam
venda, desta vez, foi motivada por pura
estar camuflando o verdadeiro motivo das
pressão do parente da escrava, pois ele
vendas e os elogios poderiam fazer parte de
recusava-se a trabalhar e ameaçara tirar a
uma bisonha estratégia de valorização da
7
mercadoria anunciada. De certo, quando topei própria vida se não fosse vendido.
com estes anúncios em pesquisa na Biblioteca Tudo isso insinua que os escravos
6
Nacional do Rio de Janeiro percebi que podiam ser ouvidos pelos senhores e que um
havia encontrado uma documentação trabalho mais exaustivo com as fontes pode
interessante para discutir a relação senhor- apresentar uma escravidão diferente da que se
escravo. Conhecendo algumas centenas de apresenta no senso comum. Assim, o objetivo
outros anúncios onde os proprietários não deste artigo é apresentar os avanços na
aludiram o motivo da venda, chamou mais historiografia da escravidão privilegiando a
ainda a minha atenção estes não terem feito o historiografia brasileira e a escravidão urbana,
mesmo, ou seja, aquilo era um recado para os onde pretendemos colocar o leitor em sintonia
interessados. Seria algo como: este escravo é com os recentes avanços e retrocessos da
bom, explico pessoalmente o motivo pelo produção acadêmica brasileira sobre a relação
qual não quer mais me servir. Conjectura e senhor-escravo.
estamos no terreno nebuloso da hipótese mas
além disso, o simples aparecimento desta
justificativa (Não quero servir ao meu Desenvolvimento
senhor!), informa-nos que tais motivos A escravidão ganhou nos últimos anos
poderiam ser aceitos pela sociedade. espaço amplo em teses, artigos e publicações de

Stuart Schwartz é esclarecedor quando livros especializados sobre o tema. Assuntos

cita um caso já relatado por Henry Koster. diversos foram abordados, como a cultura

Uma escrava teria tentado ser comprada por africana, a relação dos escravos com os
um certo senhor, transação que fora senhores, entre outros focos, que passaram a

5 7
Escravo nascido no SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos. Engenhos
Brasil. *costurar e Escravos na Sociedade Colonial. São Paulo:
6 Companhia das Letras, 1988. p.318.
Na época como bolsista Nota 10 da FAPERJ
cursando o Doutorado em História na UFRJ.
Revista Digital Simonsen 75

receber novos enfoques pondo em evidência a entre dono e propriedade. O segundo, escrito a
8
atuação do escravo como agente social. partir de conjunturas especiais, visava
responder críticas e confirmar a visão do
Esta página da historiografia brasileira
primeiro, além de ser um esforço para detonar
foi assinada por uma nova exploração
rispidamente uma nova forma de olhar as
arquivística. Nela, privilegiou-se a pesquisa
de documentos que propiciaram novas estratégias dos escravos em busca de

interpretações, tornando possível até ouvir as autonomia e liberdade.

vozes – mesmo que nas entrelinhas – antes Na década de 1980, comemorou-se os


mudas de escravos, forros, pequenos 100 anos da abolição da escravidão no Brasil
9
senhores e demais agentes sociais fora do – em 1988 – e pesquisadores receberam mais
ambiente dominante da elite: inventários post- motivações para retomar antigas discussões.
mortem, testamentos, processos-crime, ações Então surgiram trabalhos basilares, retirando
cíveis de liberdade etc. do escravo o papel de vítima muda da
escravidão e asseverando pioneiramente que
Avançar em tal direção não foi
este se movia com inteligência, perspicácia ou
empreitada simples, farpas houve – e ainda
existem – entre os próceres de diversos até certa malandragem não só dentro da

caminhos. Aqui destacamos duas vertentes. senzala, mas também na casa grande, nos
10 becos, ruas e praças onde o trabalho e o suor
Uma compartilhada por muitos , outra ainda
negro se ofertaram.
sobrevivente nas perspectivas de Jacob
Gorender. Dentre estes estudos, Campos da

De autoria de Gorender, O escravismo


Violência, de Silvia Lara, retratou o escravo

Colonial e A escravidão reabilitada informam como um agente ativo do sistema escravista,


11 sendo a escravidão uma via de mão dupla. De
com alguma precisão a visão deste autor. O
um lado, esperava-se trabalho, obediência e
primeiro livro elabora sistematicamente a forma
fidelidade, do outro, algum tipo de respeito
pela qual Gorender entende a escravidão,
aos costumes autóctones, concessões, maior
demonstrando como agiam escravos e senhores
no dia-a-dia da relação
autonomia e a possibilidade da alforria. O

8 Escravidão: Artífices na cidade do Rio de Janeiro


Ressalte-se, neste sentido, as contribuições teóricas
dos trabalhos de E. P. Thompson e de microstoriadores (1790-1808). Dissertação de mestrado IFCS/UFRJ,
italianos como Carlo Ginzburg e Giovani Levi. 1993., CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São
Algumas delas serão discutidas neste trabalho. Paulo: Companhia das Letras, 1990. e GÓES, José
9 Roberto. Escravos da paciência. Estudo sobre a
O termo “pequenos senhores” vem sendo empregado
por diversos autores para se referir aos proprietários obediência escrava no Rio de Janeiro (1790-1850).
de até 4 ou 5 cativos na cidade ou de até 9 mancípios Tese de Doutorado, UFF, 1998.
na área rural. 11
GORENDER, Jacob. A escravidão Reabilitada. Rio
10
Ver a este respeito a visão de três de seus críticos: de Janeiro: Ática. 1991. GORENDER, Jacob. O
LIMA, Carlos Alberto Medeiros. Trabalho, Negócios e a
Escravismo Colonial. 4 Ed., São Paulo: Ática. 1985.
Revista Digital Simonsen 76

castigo teria de ser justificável, variáveis que O problema desta visão é que
unidas, faria o escravo reconhecer o domínio, caracteriza um senhor com poderes ilimitados,
posto que viveria sob justo e “bom cativeiro”. desconsiderando a ação dos escravos no
Neste sentido, e foi isso que mais incomodou ambiente em que viviam e a possibilidade dos
Gorender, a violência foi tratada através de escravos utilizarem valores senhoriais para
outro prisma. Ainda que importante para o obter ganhos. Como aqueles mancípios que
domínio dos escravos, ela devia fazer parte do lutaram na justiça contra senhores que não
12 respeitassem seus direitos, ou aqueles que
“governo econômico dos senhores” , ou
utilizaram a fidelidade e a obediência como
seja, ela não era negada, mas apenas a
violência não daria conta para explicar a estratégia para que um dia pudessem ser

aceitação por parte dos escravos de recompensados seja com a melhoria nas
permanecer trabalhando e produzindo naquele condições de vida e trabalho, ou até mesmo
violento sistema. Entraria em ação o castigo aquela que talvez fosse a maior concessão, a
13 15
incontestado, disciplinador. conquista da alforria. Desconsidera os

Estaria aí o rompimento da maioria dos avanços do Marxismo que ao invés de

especialistas no assunto com a visão de Jacob vitimizar os subalternos, encontra neles

Gorender, para quem o escravo está imerso lógicas próprias de ação e reação a

em uma relação mediada explicitamente pela exploração. Gramsci e Thompson são, neste

violência. Concessões e promessa da alforria, caso, as grandes ferramentas teóricas de parte

ainda que estruturais ao sistema na sua visão, desta nova historiografia por promoverem a

serviam aos senhores, faziam parte de ideia de que a elite dificlmente impõe seu

estratégias senhoriais no sentido de manter os poder apenas através da execução da violência

escravos em ritmos de trabalho aceito por física ou econômica o tempo todo. Há

feitores e proprietários. Mas era a violência negociações diárias que ocorrem até mesmo

do sistema ou a ameaça dela que mantinha por conta das ações individuais ou coletivas
16
14 de grupos de subalternos.
enfim os cativos trabalhando.

12 15
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e Ver a este respeito. CHALHOUB, 1998. op.cit.
senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Passim. Ver também: GRINBERG, Keila. Liberata, a
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Esta visão é elaborada lei da ambigüidade. As ações de liberdade da Corte de
em todo capítulo I. Controle Social e Reprodução da Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de
Ordem Escravista. Mas pode se ter uma idéia do castigo Janeiro: Relume Dumará.
como parte disciplinadora nas páginas finais. pp.54-56. 16
13 THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. Estudos
Idem. Visão que é elaborada ao longo do capítulo II. sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia das
O Castigo incontestado. Letras, 1996. THOMPSON, E.P. A Formação da Classe
14 Operária Inglesa. (3vols.) São Paulo: Paz e Terra, 1987.
GORENDER, Jacob. O escravismo Colonial. 6ª ed.
São Paulo, Editora Ática, 1992. Ver especialmente a
Primeira parte, capítulo II. pp.46-98.
Revista Digital Simonsen 77

Compartilhamos com a perspectiva de a entrada do Estado, a partir da Intendência de


que os senhores não foram agentes únicos da Polícia da Corte, no controle de cativos com
história, os escravos contribuíram, e estiveram, tamanha mobilidade física nas ruas do Rio de
18
muitas vezes – certamente a maioria delas – Janeiro. Marilene Rosa foi buscar as
longe do tronco, tentando elaborar planos, diferenças com os mancípios do agro. Para
conservadores ou mais radicias, para a obtenção ela, o jornal diário poderia, ainda que entre
de conquistas mínimas que somados ao longo aspas, ser considerado salário, posição
19
da vida, o colocaria numa posição melhor compartilhada por Luis Carlos Soares .
dentro da senzala, ou mesmo fora dela. Um Posicionamento inadequado para a análise de
campo fecundo para pesquisar a mobilidade dos homens cuja relação de trabalho era vivida
escravos é a escravidão urbana. 20
dentro no sistema escravista. Escorregar em
tal direção deve ter tido alguma razão. Pode
ser que estes autores estivessem preocupados
A escravidão urbana
em supervalorizar a autonomia escrava na
A escravidão urbana começou a ser cidade. Vejamos de que forma.
tratada como tema central na historiografia
Neste momento, é necessário deixar a
brasileira na década de 1980, e isto trouxe
urbe e fazer uma visita a plantation, mais
consigo dois sintomas básicos: (1) os trabalhos
precisamente começar por uma expressão
vindouros formularam uma visão atualizada do
cunhada pelo historiador polonês Tadeusz
escravo no sistema escravista comportando as 21
Lepkowski, utilizada por Ciro F. S. Cardoso,
discussões acadêmicas da época; (2) Por outro
a “brecha camponesa”. Este termo lança luz
lado, inovadores que eram ao deslocar suas
sobre uma faceta peculiar da escravidão, os
pesquisas do agro para a urbe, estes trabalhos
instrumentos de dominação que se valiam os
precisaram consumir páginas e páginas
senhores para a manutenção do regime
explicando que escravo era aquele e como seria
escravista e uma margem de autonomia escrava.
reproduzido o sistema escravista na cidade. As
A concessão de um pedaço de terra pelo senhor
respostas vieram, e, O Feitor ausente de Leila
para que seu(s) escravo(s) plantasse(m),
17
Algranti , por exemplo, explicou como se deu
criasse(m) animais em proveito

17
ALGRANTI, Leila Mezan. O Feitor Ausente. 20
FINLEY, Moses. Escravidão Antiga e Ideologia
Petrópolis, Vozes, 1988. Moderna. Rio de Janeiro, Graal. 1995. Ver o capítulo II. O
18 surgimento de uma sociedade escravista. pp.69-95.
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. O Escravo ao 21
ganho, uma nova face da escravidão. Rio de Janeiro, CARDOSO, Ciro Flamarion S. Agricultura,
UFRJ/IFCS, 1986. Dissertação de mestrado. capitalismo e escravidão. Petrópolis, Vozes, 1979. Ver
19 especialmente – “A brecha Camponesa no sistema
SOARES, Luiz Carlos. “Os escravos de ganho no
Rio de Janeiro do século XIX”, in Revista Brasileira de escravista”. pp. 133-154.
História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, 8(16),
mar.88/ago.88.
Revista Digital Simonsen 78

próprio, e até vendessem a produção no Uma vez na cidade, os escravos


mercado, traria consigo a manutenção do cativo estariam nas ruas vendendo mercadorias,
ao solo, como também a diminuição do custo de ofertando bebidas e guloseimas, oferecendo
sua alimentação, diminuiria a possibilidade de sua força física para carregar pessoas, objetos,
insurreição e fugas. Nesse sentido, a “brecha” praticando pequenos ou grandes serviços
agiria como uma via de mão dupla, já que seria especializados, em suma, exercendo funções
lucrativo para o senhor, mas também vantajoso pelas quais receberiam ganhos imediatos em
para o escravo, pois ele teria um tempo dinheiro. Este dinheiro seria juntado durante
estipulado para trabalhar em sua terra, maior todo um dia de trabalho, quando o cativo
liberdade física dentro do tempo que dispunha, regressaria para a casa de seu senhor e pagaria
um espaço “seu” para praticar suas crenças, 23
o jornal diário. O jornal era uma soma pré-
quiçá até maior possibilidade de acesso à fixada em dinheiro que o escravo devia
22
família e a alforria. entregar ao senhor após cada dia de labuta, era
como um acordo de trabalho, documentos da
Feita essa introdução voltemos à cidade
época da escravidão, dão conta que o que
e aos trabalhos de Marilene Rosa e de Luiz
sobrasse desse pagamento era dele, do
Carlos Soares. Tendo como objeto central de
escravo. Foi justamente esta sobra que Rosa e
pesquisa o escravo de ganho na cidade do Rio
Soares nomearam “brecha assalariada”.
de Janeiro, ao formular o conceito de “brecha
assalariada”, Rosa e Soares trilharam um Tal incursão, peculiar aos dois autores,
caminho parecido. Após comentarem sobre a talvez visasse atingir um objetivo mais amplo,
brecha do agro, nomeada “camponesa”, qual seja, suas próprias noções sobre o
chamariam atenção para a remuneração em sistema escravista. Como bem ressaltou Góes,
dinheiro, o pagamento pelos serviços “a descoberta da ‘brecha camponesa’ [nos
prestados e/ou produtos vendidos pelos moldes de como é tratada por Ciro Cardoso]
escravos de ganho aos seus clientes nas ruas vinha comprovar que existia um certo grau de
24
do Rio de Janeiro. autonomia no modo de existir do escravo”
Assim, cunhar um termo afim para os escravos

22
Idem, Ibidem. muitos a compra da alforria, frequentemente paga a
23
A descrição de um escravo de ganho por João José prestação. Trabalhar na rua, sobretudo trabalhar no
Reis demonstra que o pagamento do jornal diário porto, facilitava essa difícil passagem à liberdade. Os
variava também em jornal semanal, acrescento que ganhadores muitas vezes moravam fora da casa do
existiram casos deste pagamento ser também mensal: senhor, provendo sua própria moradia, alimentação e
“Os escravos urbanos dividiam a faina diária entre a casa outros gastos pessoais (...)”. REIS, João José. A morte
e a rua. Os que trabalhavam só na rua, como ganhadores, é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil
em geral contratavam com os senhores uma soma diária do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
ou semanal, embolsando o que sobrava. O pecúlio pp. 29-30. Grifo meu.
acumulado durante anos de trabalho permitia a 24
GÓES, 1998. op.cit. p.108.
Revista Digital Simonsen 79

citadinos – “brecha assalariada” –, demonstraria “ao pé da letra” deste conceito acaba por
que estes autores partiriam de um pressuposto aprisionar a análise. Não seria diferente na
básico: os escravos teriam condições de lide urbana, pois a brecha assalariada acaba
influenciar no cativeiro que viviam, já que demonstrando, assim como a camponesa, não
possuíam autonomia. Seria necessário, apenas, casos da vida social, mas uma brecha de casos
explicar como se dava esta brecha na cidade. A específicos de cativos que lidavam com
explicação veio, quando trataram da relação de dinheiro e que tinham grande liberdade de
trabalho que senhores e escravos estabeleciam movimentação.
na cidade. Segundo Marilene Rosa, o excedente
Por último, ao focar a peculiaridade da
do jornal diário que o escravo deveria entregar
brecha urbana os autores fixaram sua análise
ao senhor, poderia – mesmo entre aspas – ser
num ponto onde não foi possível aprofundar a
25
considerado salário. Já Carlos Soares foi pesquisa em situações relevantes vividas por
além: senhores e escravos naquela relação de
“Se na relação com os seus trabalho e poder, como o resultado da
senhores eles eram escravos, com os liberdade de movimento que os escravos
seus empregadores ou os que
requisitavam os seus serviços eventual urbanos possuíam para trabalhar. Nas ruas, os
ou permanente eles eram autênticos
26 mancípios também utilizaram seu tempo de
assalariados.”
trabalho para fazer amizades, podendo acionar
redes de ajuda mútua, assim estes escravos
Segundo o raciocínio deste autor, no conheceram um convívio fora do ambiente
trabalho escravo existia um duplo aspecto senhorial. Mais recentemente, alguns
(escravo/senhor = relação escravista, e,
trabalhos avançaram nesta direção, como o
vendedor/comprador = assalariado). 28
“Além da senzala” de Ynae Lopes.
Muito bem, apesar destes trabalhos
terem o mérito de uma maior atenção ao
regime de trabalho escravo na cidade, a O Sistema possível: Um debate com Mary
Karasch
utilização do conceito de “brecha assalariada”
Desde que comecei a trabalhar com
carrega sérios problemas.
fontes primárias que retratavam a escravidão
Seguindo a crítica de Robert Slenes ao urbana em 2001, me chamou a atenção o fato
27
conceito de “brecha camponesa” a utilização de escravos comprarem e venderem

25
SILVA, 1986, op. cit. p.134. escrava.Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1999. op.cit.
26
SOARES, mar.88/ago.88., op. cit. p.131. pp.197-199.
27 28
Ver SLENES, Robert. Na Senzala uma flor: SANTOS, Ynaê Lopes dos. Além da Senzala:
esperanças e recordações na formação da família Arranjos escravos de moradia no Rio de Janeiro
(1808-1850). Dissertação de Mestrado: USP, 2006.
Revista Digital Simonsen 80

mercadorias, roupas e comida, ou seja, mais uma oportunidade para escravos ao ganho

consumirem. O texto de Mary Karasch sobre completarem o jornal diário. Barqueiros


a vida dos escravos no Rio de Janeiro da poderiam ajudar no desembarque de pessoas e
primeira metade do oitocentos foi marcante, cargas, carregadores poderiam levar as malas,
incentivador e intrigante. A riqueza de muitas delas lotadas com o pacotille cheio de
detalhes e a quantidade de assuntos abordados novidades francesas e/ou inglesas a serem
num trabalho iniciado na década de 1960 vendidas em armazéns no entorno da rua
compõem um dos muitos méritos da autora, Direita. Quitandeiras e vendedoras de água
não à toa seu livro tornou-se uma fonte poderiam esvaziar seus tabuleiros com
obrigatória para os estudiosos do assunto. sedentos e pasmados viajantes. Este ambiente
possibilitou que os escravos trabalhassem em
Apesar de Karasch reunir em seu livro
diversas atividades, destacando-se nas ruas
incontáveis informações importantes sobre a
aqueles que estiveram ao ganho e à locação.
escravidão urbana na cidade do Rio de Janeiro
e, sobretudo a vida material, religiosa etc. dos Eles carregaram, costuraram, cozinharam,
varreram, limparam, teceram, barbearam,
escravos, a forma como analisou os senhores
venderam, entre muitas outras atividades.
urbanos hoje já está superada. Sua análise
agregou-os em bloco, como se formassem “Na rua do Ouvidor n.19 achar-
uma unidade, podendo-se ver em alguns se-ha tudo o que he de luxo e arte,
linhas de todas as cores , retroz, botões,
trechos até a desviada visão de Debret que franjas de algodão e de seda, luvas e
caracterizou os senhores de escravos urbanos tudo o que he necessário para o arranjo
de senhoras. Para a mesma casa
como uma classe. Outro problema foi Mary deseja-se huma negra de aluguel, que
30
C. Karasch ter enxergado o sistema escravista seja fiel e intelligente.”
na cidade a partir do trabalho do escravo de
“O armazem Francês, ao pé do
ganho como um sistema ideal, com
Banco, tem recebido de Pariz hum grande
29
“benefícios incalculáveis” para os senhores. sortimento de cortes de vestidos, peças de
cassas transparentes bordadas muito
O Rio de Janeiro foi uma das cidades ricas, tiras bordadas, çapatos de setim,
chalés de lã á imitação de camelo,
mais freqüentadas do Brasil por viajantes
estrangeiros no século XIX. Como pode ser
visto em diversas passagens da Gazeta do Rio
de Janeiro, em cada navio, sumaca ou
bergantim que atracava no porto poderia estar

29 30
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Gazeta do Rio de Janeiro, n° 9, Sabbado 30 de
Janeiro (1808-1850). São Paulo, Companhia das Janeiro de 1819. Grifo meu. C.f: Biblioteca Nacional
Letras, 2000.p.260. do Rio de Janeiro, seção de obras raras.
Revista Digital Simonsen 81

e vendas de todas as qualidades, que se Sem contar que o estabelecimento


31
venderão muito baratas.” destes na cidade significava mais uma pessoa
a consumir no mercado de alimentos, roupas e
“Bernardo Conolly n.1 rua Detraz
quinquilharias local, boa parte dominados por
do Hospício participa que tem recebido
pelo navio Hero, de Londres, hum grande forros e escravos ao ganho. Todavia,
sortimento de Sellins para Senhores e
reconhecer as oportunidades abertas aos
Senhoras, freios, mantas, malas e
chicotes de todas as qualidades, graxa de senhores, e os espaços de autonomia
Day e Martin, çapatos, bandejas,
32 concedidos aos escravos, não justificam
imagens, &c. &c.(...)”.
acreditar que aquele era um sistema ideal,
34
como queria crer Mary C. Karasch , muitas
Depois da abertura dos portos em 1808,
vezes acreditando em palavras de viajantes.
houve maior circulação de mercadorias e
estrangeiros. O estabelecimento de oficias Vamos rever então as palavras de
mecânicos europeus na Corte, forasteiros em Debret e de Karasch. O primeiro afirmou que:

busca de enriquecimento, mas que também não “(...) encontramos na classe média
dispensavam o trabalho de pelo menos um e mais numerosa o pequeno capitalista,
proprietário de um ou dois escravos
escravo, aumentou ainda mais as negros, cuja renda diária basta
35
possibilidades de ganhos dos escravos. Como à sua existência. (...)”
o caso de João Felippe Nolin, mestre de oficina
de Marcineiro “de nação Francesa”, que dizia Primeiro discordamos de que eram
ter: “pequenos capitalistas”, logo também não
aceitamos a ideia de tratá-los como uma classe.
“vários móveis dignos de toda a
aceitação, e obras de toda a qualidade, Por outro lado, o artista francês teria acertado
pertencentes a sua oficina, e que todos em dizer que se tratavam dos mais numerosos
aqueles principiantes, que se quiserem
36
aplicar ao dito oficio, ou quaisquer agentes sociais da Corte. Mas não sejamos tão
senhores, que na mesma quizerem
adimitir seus escravos, o procurem na radicais na crítica a Jean Baptiste, ele se
Rua de S. José n.19, que ajustando-se, esforçava para entender aquela sociedade, e o
promete usar toda a fidelidade própria
33 fazia com olhar do europeu, a partir do modelo
de homem de bem.” .
francês que possuía. Contextualizando suas
palavras podemos trabalhar com informações

31 33
GRJ, n° 28, Quarta feira, 7 de Abril de 1819. C.f: GRJ, n°3, sábado, 9 de Janeiro de 1819. C.f:
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, seção de obras Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, seção de obras
raras. raras. Grifo meu.
32 34
GRJ, n° 30, Quarta feira, 14 de Abril de 1819. C.f: Discutido abaixo.
35
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, seção de obras DEBRET, 1989. op. cit.p.66.
36
raras. Ver: AMARAL
Revista Digital Simonsen 82

riquíssimas para reconstituir parte deste forma distinta da de Debret. Não eram
passado. Debret retrata que quatro horas da pequenos capitalistas por investirem em um ou
tarde alguns “homens de pequenas rendas” dois escravos conseguindo facilmente prover
chegavam ao Largo do Palácio (atual Praça 40
sua existência. Isso fica claro quando o
XV) “a fim de sentarem nos parapeitos do próprio francês aponta que entre os
37 “numerosos e parcimoniosos consumidores”
cais” .Em suas palavras:
existiam os mais necessitados, avaros senhores
“É, por conseguinte, lá pelas
quatro horas da tarde que se podem ver que se utilizavam de uma “tática recriminável”
esses homens de pequenas rendas
chegar de todas as ruas adjacentes ao para beber – sem pagar – uns goles de água nas
41
Largo do Palácio (...). Em menos de moringas dos escravos de ganho. A avareza
meia hora todos os lugares estão
talvez não fosse uma escolha, mas uma
tomados e, após as cortesias em uso
entre gente que não tem o que fazer, necessidade e o contato próximo entre tais
cada um chama um vendedor de doces,
senhores e escravos pode engendrar origens
menos para comprar uma guloseima do
que para engolir de um trago a metade em comum, ou mesmo parcerias pretéritas e
da água contida na pequena moringa
amizades por dividirem o mesmo espaço e
que o negro carrega à mão (...).
solidariedades por anos, detalhes que
Entre os numerosos e
parcimoniosos consumidores, é fácil escaparam aos olhos do francês pela sua
distinguirem-se os mais necessitados,
distância do que estava observando.
cuja economia exagerada atinge as
raias da avareza. A fim de satisfazer as Contudo, discordo principalmente da
exigências da sede, o bebedor malicioso
chama de preferência um vendedor de leitura de Mary Karasch:
aspecto tímido e, certo de confundi-lo,
deprecia-lhe a mercadoria num tom “Do seu ponto de vista, os senhores
extremamente duro e se aproveita da de escravos haviam desenvolvido um
atrapalhação do negro para apossar-se sistema ideal no Rio, no qual, em troca de
da moringa e beber a água de graça; de um mínimo de roupas, alimento e abrigo,
carranca fechada, devolve-lhe em seus cativos lhes proporcionavam
seguida a moringa, censurando-lhe a benefícios incalculáveis: riqueza em
mesquinhez e a sujeira. Vítima dessa termos do que geravam em rendimentos e
dupla injustiça, o infeliz escravo, bens; uma família extensa, em termos das
ameaçado e injuriado, foge. Muito feliz mulheres e filhos que se incorporavam a
ainda de escapar, a pretexto de encher ela; segurança, em termos de
38
o recipiente na fonte vizinha.” instabilidade monetária e garantias
rápidas em emergências econômicas; um
pequeno exército para protegê-los nas
rixas e conflitos do período; e, por fim,
Muito provavelmente eram pequenos uma rica herança para deixar aos filhos.
39
senhores . E assim podemos observá-los de No Rio

37 40
DEBRET, 1989. op. cit.p.66. Idem. p.66.
38 41
Idem, ibidem. Idem. pp.66-67.
39
Ver nota 8.
Revista Digital Simonsen 83

daquela época, um senhor com escravos dos dois lados, não era igual, jamais o foi
tinha tudo, e quem não os tivesse, era
dada a hierarquia entre dono e proriedade,
considerado pobre. O preço do
privilégio de possuir escravos, está mas a relação senhor-escravo deve ser
claro, era pago pelos próprios escravos,
com trabalho debilitador e morte analisada no cotidiano e não da forma que fez
42
prematura.” . Karasch, que caiu na armadilha do
estruturalismo ao deixar nas entrelinhas que a
condição senhorial e a condição escrava
A brasilianista estaria correta até onde
podiam determinar a forma como ocorriam os
chama atenção para um ambiente favorável aos
benefícios do sistema escravista na cidade.
senhores para que eles investissem em escravos
ao ganho, mas por outro, exagerou na dose. Este senhor poderia ser sustentado por um
Suas palavras deixam no ar um controle total ou dois escravos, e estes escravos poderiam ter
dos senhores sobre o desenvolvimento do sim alguns benefícios, como um pecúlio
sistema de ganho na escravidão urbana. próprio, ou até morar longe de seu senhor, ou
ainda ter boas chances de alcançar a alforria,
Aquele sistema estava longe de ser o
ideal, era o sistema possível. mas estes seriam apenas os exemplos bem
sucedidos da amostra. E os outros?
Para o escravo poderia significar maior
poder de barganha e maior liberdade de
movimentação, mas também maior cobrança Conclusão
senhorial, e trabalho a exaustão já que muitas
Para Robert Slenes, uma visão mais
vezes o jornal diário era a única fonte de renda
antenada com a historiografia atual sobre
daquele fogo. Para o senhor poderia significar
escravidão estaria preocupada em desvendar as
perder parte de seu poder coercitivo, pois
relações entre senhores e escravos e “refletir
castigar abruptamente um escravo, quando este sobre o impacto de embates e negociações
era praticamente tudo o que ele possuía talvez cotidianas na reprodução do sistema
não fosse uma boa idéia. E se o seu único bem 44
escravista.” Neste sentido, deve-se atentar
rentável fugisse? Assim, “o preço do privilégio
para o fato de que ao formar, isoladamente, a
de possuir escravos” era dividido entre os dois
maior parte dos senhores de escravos na cidade
agentes sociais: senhores e escravos. Este preço
do Rio de Janeiro, os pequenos proprietários
não era – e nunca foi no sistema escravista –
que possuíam seu escravo como único bem
pago apenas pelos cativos, como afirmou
rentável viviam uma realidade de dependência
43
Karasch. O poder de barganha estava

42
KARASCH, 2000. op. cit. p.260. Grifo meu. 44
43 SLENES, 1999. op.cit. p.45.
Idem, Ibidem.
Revista Digital Simonsen 84

45 Quando foram investir, de um leque de opções


maior que a de médios e grandes. Ao
existentes, só uma lhes era acessível, comprar
analisar os senhores de escravos, este dado
deve ser relacionado a outras variáveis que escravo(s). Sopesando este aspecto, chamamos

interferiam naquela relação de poder, pois atenção para o cativeiro possível. O que futuras

cada caso devia ter suas particularidades nos análises poderão aprofundar.
“embates e negociações cotidianas na
reprodução do sistema escravista.”

Assim, vários fatores reunidos foram


ingredientes essenciais para que se alargasse o
espaço do cativeiro urbano. Aliada a oferta do Como Citar: AMARAL, Rodrigo. “Não
quero servir ao meu senhor”: Negociação,
tráfico Atlântico de escravos, o crescimento de
conflito e historiografia da escravidão urbana
bens e serviços na cidade do Rio de Janeiro no Rio de Janeiro na primeira metade do
século XIX. In: Revista Digital Simonsen. Rio
demandados pelo incremento populacional de Janeiro, n.1, Dez. 2014. Disponível em:
ocorrido entre fins do século XVIII e a primeira <www.simonsen.br/revistasimonsen>
metade do século XIX trouxeram, como nunca
antes, escravos a quem possuísse cabedais para
comprar. A cidade em expansão necessitava de
braços para carregar, limpar, construir, produzir
etc. Estas atividades se transformavam em
ganhos imediatos em dinheiro para os senhores,
mas também para os escravos. Considerando
apenas estes aspectos, alguns trabalhos
afirmaram ser os escravos de ganho o
46
investimento ideal para os senhores urbanos ,

e deram a entender que existia um controle total


dos proprietários no desenvolvimento daquela
relação de trabalho e poder. Discordamos.
Apontamos que este investimento era a escolha
possível para a maioria, não a ideal. Pequenos
senhores não eram investidores abastados e
poderosos.

45
AMARAL, Rodrigo. Nos limites da escravidão urbis do Rio de Janeiro – c.1800 – c.1860. Dissertação
urbana: a vida dos pequenos senhores de escravos na de Mestrado, UFRJ, 2006.
46
KARASCH, 2000. op. cit.
Revista Digital Simonsen 85

História

VISÕES DA RELIGIOSIDADE CATÓLICA NO BRASIL COLONIAL

1
Por Sergio Chahon
Ideias Chave: Religiosidade, Brasil Colonial, catolicismo.

colocar em evidência toda a intrincada estrutura


que, a partir da Santa Sé, fazia chegar à América

F enômeno dos mais complexos, a

presença do catolicismo nos marcos


cronológicos e geográficos do Brasil-Colônia
tem constituído, desde longo tempo, desafio
permanente aos historiadores dedicados à
portuguesa todo um repertório de normas de
cunho administrativo e doutrinário, destinadas a
reger a vida religiosa dos fiéis espalhados pelo
Novo Mundo português. Trata-se, igualmente,
de acompanhar a atividade de toda uma
análise de seus múltiplos aspectos. Na base
desse desafio, encontram-se, para começar, variedade de personagens dedicados, ao menos
os inúmeros cuidados a serem tomados por
ocasião da definição do termo em teoria, a zelar pelo sucesso da obra
“catolicismo”, ou mesmo “catolicismo cristianizadora: desde os membros do chamado
colonial”, enquanto conceito histórico. “clero secular”, formado especialmente pelos
bispos e párocos encarregados de distribuir os
De fato, uma das possíveis definições do
sacramentos, dirigir o culto público e orientar
fenômeno citado conduz a uma abordagem mais
espiritualmente suas ovelhas, até os integrantes
ou menos detalhada do processo de
das ordens religiosas, os quais, a exemplo dos
implantação, em solo colonial, das instituições e
jesuítas e franciscanos, destacavam-se pelo
agentes que integravam, então, a hierarquia da
empenho em difundir a fé católica entre os
Igreja católica. Trata-se, nesse caso, de

1
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, professor das Faculdades Integradas Simonsen e autor do
livro “Os convidados para a Ceia do Senhor: as missas e a vivência leiga do catolicismo na cidade do Rio de Janeiro e
arredores (1750-1820)” (São Paulo, Edusp, 2008). E-mail: sergiochahon@uol.com.br
Revista Digital Simonsen 86

chamados “gentios”, isto é, os habitantes da adaptação às circunstâncias aqui encontradas,


colônia ainda não convertidos à crença oficial parecem desafiar os objetivos de ordenamento e
dos colonizadores – sem se esquecer dos de padronização propostos pelo papado romano
representantes locais do tribunal da para todo o orbe católico. Plástico e mutável,
Inquisição, especializados na repressão aos esse catolicismo vivido pelo conjunto dos fiéis
2
acusados de todas as formas de heresia . tende a acompanhar de perto o desenho
hierárquico da sociedade colonial, fruto de um
Entretanto, embora responsável por
processo de formação histórica transcorrido ao
fornecer a moldura institucional e as condições
longo de seus primeiros séculos de existência.
gerais de existência do catolicismo em terras
Adquire, assim, ao longo do tempo, um “sabor”
coloniais, a Igreja católica, considerada em
local que o diferencia de seus pares em outras
sentido estrito, representa apenas uma das
partes do mundo, graças ao tempero fornecido
dimensões assumidas pela presença histórica
pela convivência de
deste último. Para além do corpo relativamente
fixo de dogmas, doutrinas e celebrações “irmãos em Cristo” divididos entre si de

coletivas atualizadas, com maior ou menor acordo com critérios econômicos, políticos,

eficácia, pelo conjunto dos clérigos (bispos, jurídicos, étnicos e culturais. Incorporando,

padres, frades, entre outros), o cotidiano em seu devir diário, as modalidades de

religioso da população colonial revela aos distinção social mais valorizadas à época, não

observadores toda uma imensa variedade de as respeita plenamente, contudo, dando ensejo

práticas e representações subordinadas, não a um sem número de sincretismos a

raro, de modo bastante imperfeito às diretrizes aproximar, nos sentimentos e atitudes em face

originadas da Sé romana. do sagrado, ricos e pobres, poderosos e


desvalidos, homens livres e escravos, além de
Assim, quanto mais o olhar do historiador
indivíduos identificados pelos mais variados
se distancia da instituição eclesiástica e de seus
tons de pele e formas de herança cultural.
mais destacados representantes em solo
brasileiro, na direção de uma vivência religiosa Como, então, definir satisfatoriamente

encenada, no dia a dia, por toda a multidão de esse catolicismo colonial que, de tão plural e

fiéis espalhados pelo território ultramarino, compósito, ameaça escapar a qualquer tentativa

mais esse olhar se depara com um outro de conceituação mais rigorosa? A fim de

catolicismo, cuja riqueza e variedade de começar a tentar responder a essa pergunta,


discutirei a seguir algumas visões de conjunto
manifestações, em permanente

2 Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de


Para uma síntese geral sobre a Igreja católica no Brasil
durante o período colonial, cf. Guilherme Pereira das Janeiro: Objetiva, 2000. p. 292-296.
Neves. “Igreja”. In: Ronaldo Vainfas (dir.).
Revista Digital Simonsen 87

sobre o mencionado fenômeno, extraídas de fundamental entre grupos subalternos e


minha reflexão pessoal sobre certo número dominantes. Nessa concepção de um
dentre as principais contribuições catolicismo contaminado, de modo
historiográficas especializadas produzidas até inescapável, pela lógica da hierarquia e do
o presente. Cada uma dessas visões, longe de conflito, pode-se perceber, ainda, uma ênfase
se fechar em si mesma, complementa e na articulação entre o lugar ocupado na
dialoga com as demais, fazendo-se presente, pirâmide social e a existência, em cada caso,
com frequência, no interior de uma mesma de determinadas características étnicas e
obra individual. Como traço comum a todas culturais (religiosas, inclusive). Haveria,
elas, pode-se identificar certa inclinação a assim, um catolicismo típico do “povo”
estabelecer recortes teóricos mais ou menos brasileiro, associado às massas oprimidas
dualistas, a partir da diferenciação básica, já espalhadas pelas camadas inferiores da
indicada acima, entre a Igreja-instituição e o sociedade. Fortemente marcado pela herança
conjunto formado pela totalidade dos fiéis. cultural indígena e africana, tal catolicismo se
Tende-se, assim, em todos os casos, a define por seus atributos de originalidade,
conceber a religiosidade católica como uma autenticidade e resistência, por oposição a um
realidade permanentemente tensionada pela catolicismo das elites brancas ou definidas
coexistência, no mesmo contexto, de enquanto tais, de origem predominantemente
condicionamentos poderosos – distintos e, em européia, mais identificado com a Igreja
3
certa medida, até mesmo opostos entre si. romana enquanto instituição .

Uma primeira interpretação abrangente Outro olhar de longo alcance sobre o


sobre o catolicismo colonial distingue-se pelo catolicismo colonial, sem deixar de levar em
cuidado em salientar as diferenças de conta as múltiplas influências exercidas pela
perspectiva oriundas da formação dos principais formação da sociedade brasileira, concentra
estratos sociais encontrados na América mais a atenção em um processo de
portuguesa. Concede-se, aqui, particular transformação relacionado, antes de tudo, à
importância à posição ocupada por cada fiel própria história da Igreja católica ao longo da
católico no interior do sistema colonial, cenário Idade Moderna. Trata-se, agora, de levar em
de exploração econômica e de opressão social, consideração o relativo fracasso do projeto de
cultural e política, no interior do qual prevalece, implantação, no Novo Mundo português, da
antes de tudo, a oposição chamada “Contra-Reforma” ou “Reforma

3
Cf., para toda essa visão, Eduardo Hoornaert. “A Primeira Época. Petrópolis: Vozes; São Paulo:
Cristandade durante a Primeira Época Colonial”. In: Paulinas, 1992 (História geral da Igreja na América
Eduardo Hoornaert et al. História da Igreja no Brasil, Latina, tomo II/1). p. 245-250 e 368-370.
Revista Digital Simonsen 88

católica”, em seu propósito de forjar uma nova programa tridentino na América lusa revela-se,
religiosidade entre os fiéis, caracterizada por a meu ver, mais promissora do ponto de vista da
um conhecimento mais profundo da doutrina, análise histórica. Em primeiro lugar, ao evitar,
por um maior alinhamento em relação à em boa hora, certa tendência a estabelecer um
autoridade clerical e por uma espiritualidade juízo de valor que enxerga no catolicismo dos
mais reflexiva e interiorizada. Representadas, “pobres” e “oprimidos” em geral uma versão
no plano institucional, pelas diretrizes mais autêntica e verdadeira da mensagem
formuladas durante o Concílio de Trento (1545- evangélica original, desvirtuada, supostamente,
63), as propostas da Reforma católica ou pelos interesses envolvidos no esforço de
tridentina teriam se realizado, portanto, de conquista e colonização. Em segundo lugar, ao
forma precária e incompleta durante a época ajudar a destacar o quanto, mais do que
colonial, dando origem a uma cisão entre um refletirem em suas crenças e comportamentos
catolicismo renovado ou romanizado, pouco enquanto fiéis a posição que cada qual ocupava
enraizado em solo brasileiro, e um catolicismo na hierarquia social, os habitantes do Brasil-
essencialmente pré-tridentino ou tradicional, Colônia, imersos, quase todos, em uma mesma
largamente hegemônico entre a população local. cultura religiosa de fundo tradicional,
A distinguir esse último, a predominância de aproximavam-se uns dos outros ao
representações e práticas mais ou menos compartilharem o mesmo universo básico de
assinaladas pela permanência de uma herança valores e tradições devotas – que incluíam, por
cultural originária do passado medieval exemplo, a relação familiar com os santos, a
português, em que elementos como o prática das promessas e o recurso a simpatias e
pensamento mágico, o pieguismo barroco e a 5
sortilégios de toda ordem .
exterioridade das manifestações de devoção
Definindo-se, antes de tudo, como
contrastam com o recolhimento e a elevação
tradicional ou pré-tridentino, o catolicismo
religiosa almejados por certos integrantes da
efetivamente vivido no Novo Mundo português
4
cúpula eclesiástica .
autoriza a situar no mesmo campo analítico
Quando comparada à concepção geral personagens localizados nos mais diversos
anterior, a interpretação do catolicismo escalões da sociedade colonial. Estes últimos,
colonial que coloca em evidência a por sua vez, costumam ser identificados, em
implementação sumamente limitada do comum, enquanto leigos, isto

4
Cf., apenas como exemplo, Riolando Azzi. O Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil
catolicismo popular no Brasil: aspectos históricos. Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.
Petrópolis: Vozes, 1978. p. .9-11. 151-273.
5
Como ilustração a essa última afirmação, cf. Laura de
Mello e Souza. O Diabo e a Terra de Santa Cruz:
Revista Digital Simonsen 89

é, católicos não integrantes do núcleo mais sacerdotes que comungavam do mesmo


restrito e especializado formado pelos clérigos universo de valores e atitudes religiosas
de diferentes hierarquias e ordens. Ganha corpo, habitado pelos simples leigos, vivendo,
assim, mais uma maneira de conceituar, em portanto, bem distantes do modelo tridentino
suas linhas gerais, a religião praticada pelos de retidão moral e embasamento doutrinário
católicos do Brasil-Colônia, inspirada em uma preconizado para os membros do clero e
reflexão sobre as atividades e os espaços limitando-se, quando muito, a administrar os
protagonizados, respectivamente, pelos sacramentos e presidir rotineiramente as
6
membros do corpo clerical e pelos indivíduos e cerimônias do culto público .
grupos recortados da maioria leiga. Revela-se,
Se, por um lado, a mentalidade e os
assim, tanto no âmbito das crenças quanto ao
costumes de boa parte do clero católico
nível das práticas cotidianas, a existência de
contribuíam decisivamente para tornar ainda
uma separação mais ou menos nítida entre uma
mais rarefeita a presença da Reforma
vivência religiosa mais ligada ao pólo
tridentina na América portuguesa, por outro
sacramental e litúrgico, dominado pelos clérigos
lado o número e a distribuição geográfica dos
e pelos espaços públicos de culto, e outra mais
sacerdotes responsáveis pela administração
próxima do pólo devocional, em que
eclesiástica serviam para tornar maior o hiato
predominaria a relação íntima e direta entre os
entre os dois catolicismos referidos acima, o
fiéis e os membros da corte celeste,
clerical e o laico. Assim, Guilherme Pereira
transcorrida, sobretudo, no interior dos lares e
das Neves chama a atenção para a enorme
nos espaços privados em geral.
extensão territorial comumente atingida pelas
À primeira vista, a separação destacada dioceses e paróquias na época colonial, assim
acima entre um catolicismo laico e devocional como para as distâncias consideráveis que
e outro clerical, sacramental e litúrgico parece costumavam separar, sobretudo nas áreas
acomodar-se perfeitamente, na realidade do rurais, as habitações dos fiéis das igrejas-
Brasil-Colônia, aos limites que então sedes das paróquias – chamadas de igrejas
distinguiam o catolicismo tradicional do matrizes. Em consequência dessa situação,
tridentino ou romanizado. Entretanto, é muitas eram as dificuldades encontradas para
preciso ressaltar que, na prática, a despeito o comparecimento regular às missas e demais
dos esforços isolados de alguns bispos e celebrações litúrgicas e, de um modo mais
outros agentes eclesiásticos, muitos eram os geral, para o exercício satisfatório das

6 Secular no Brasil, 1808-1828. Rio de Janeiro:


Para uma visão geral sobre o clero católico no Brasil
colonial, cf. Guilherme Pereira das Neves. E Receberá Arquivo Nacional, 1997. p. 135-345.
Mercê: a Mesa da Consciência e Ordens e o Clero
Revista Digital Simonsen 90

7
atividades pastorais por parte dos párocos . religiosidade privada tende a se expandir,
Pereira das Neves salienta, a propósito, que, aqui, de forma abundante e diversificada, sob
em pleno ano de 1820, mal excediam 600 as o influxo permanente das heranças culturais
paróquias brasileiras, “o que significava, na indígenas e africanas e desviando-se, não raro,
prática, que um pároco devia atender, em dos preceitos ortodoxos difundidos pela
média, a mais de seis mil almas espalhadas hierarquia eclesiástica. A explicação desse
8
por extensões enormes ou inacessíveis” . predomínio da devoção privada entre nossos
antepassados, segundo Mott, residiria, acima
O diagnóstico de Pereira das Neves sobre
de tudo, na “inexistência, rarefação ou
a diminuta eficácia, em solo colonial, da
grandes dificuldades da cristalização de uma
estrutura administrativa básica formada pela
religiosidade pública e eclesial, haja vista as
rede de paróquias e igrejas matrizes, limitando o
grandes distâncias do território, os perigos do
alcance do trabalho pastoral dos párocos em
transporte interno, a insignificância da vida
contato com suas ovelhas, conduz à percepção
urbana e o número reduzido de ministros,
de um catolicismo não apenas majoritariamente
9
laico, mas também distinguido por uma
templos e da própria comunidade cristã” .

considerável autonomia desfrutada, no dia a dia, Tradicional e pouco afetado pelo


pelas concepções e práticas que compunham a reformismo tridentino; guiado mais pela
vivência religiosa dos simples fiéis. Um devoção familiar aos santos do que pela
catolicismo, de acordo com a expressão tantas participação nos sacramentos e na liturgia;
vezes citada, de “muita reza e pouca missa, protagonizado pela maioria laica e marcado
muito santo e pouco padre”. Desenvolvido em pelo predomínio dos ambientes privados sobre
bases relativamente independentes, esse os espaços públicos de culto: eis como a
catolicismo de perfil devocional e laico teria, religiosidade católica praticada na América
ainda, nos limites da vida privada o seu cenário portuguesa parece emergir à luz da
por excelência. Limites, aliás, historiografia especializada, de acordo com o
extraordinariamente expandidos no Brasil- balanço realizado até aqui. Embora difícil de
Colônia, graças à debilidade dos centros contestar em suas linhas gerais, essa visão de
populacionais e dos espaços públicos capazes conjunto sobre o catolicismo colonial pode ser
de reunir quantidades expressivas de fiéis. ainda refinada, de maneira a procurar levar em
Assim, como salienta Luiz Mott, a

7
Cf. Guilherme Pereira das Neves. E Receberá Mercê... (org.). História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano
p. 173-174. e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo:
8
Guilherme Pereira das Neves. “Igreja”... p. 294. Companhia das Letras, 1997 (História da Vida
9 Privada no Brasil, 1). p. 155-220. p. 220.
Luiz Mott. “Cotidiano e Vivência Religiosa: entre a
Capela e o Calundu”. In: Laura de Mello e Souza
Revista Digital Simonsen 91

consideração todo o dinamismo e a riqueza supor a separação rígida entre administradores e


subjacentes às suas múltiplas expressões. receptores de sacramentos, ou entre promotores
e assistentes dos ritos litúrgicos. Com efeito, ao
Para começar, é indispensável definir
assumirem, em numerosas ocasiões, o comando
com o máximo de cuidado o critério que inspira
de sua própria vida religiosa, inclusive
a diferenciação fundamental entre as dimensões
contratando sacerdotes para celebrar missas ou
clerical e leiga da vivência religiosa católica,
realizarem batizados e casamentos, os membros
tantas vezes reiterada até aqui – da qual deriva,
do laicato responsáveis por moldar o
ademais, a distinção não menos essencial entre
catolicismo à sua imagem se distanciam da
os polos sacramental/litúrgico e devocional
passividade que lhes parece atribuir Pierre
dessa mesma vivência. Assim, um catolicismo
Bourdieu em seu conceito de campo religioso,
definido como “clerical” ou “eclesial” deve não
conceito que tem a lhe dar forma, entre outras
apenas contar com a presença habitual de um ou
distinções fundamentais, exatamente a que
mais sacerdotes; é necessário, ainda, que suas
separa os leigos do “corpo de especialistas
manifestações transcorram sob a direção de tais
religiosos” — grosso modo, o corpo clerical —,
especialistas, de acordo com objetivos e com
envolvido na
um universo de valores orientados por diretrizes
doutrinárias emanadas das autoridades “monopolização da produção religiosa” e

eclesiásticas e voltadas para a comunidade dos vinculado aos primeiros por relações de
transação, como as normalmente
fiéis. Já no catolicismo “leigo”, o controle das
estabelecidas entre produtores e
práticas em curso permanece nas mãos de
10
representantes do laicato, os quais, embora sem consumidores .

desviar-se, necessariamente, da ortodoxia da fé, Por seu turno, as afirmações sobre a


dedicam-se a propósitos de alcance mais preeminência, na América lusa, de um
particular – menos sintonizados, portanto, com catolicismo de feitio privado e familiar,
os princípios gerais que norteiam a ação contraposto a um catolicismo público e
pastoral da Igreja. comunitário, podem ser objeto de um maior
aprofundamento. Para tanto, é necessário
relativizar o critério de diferenciação baseado,
A concepção exposta acima sobre o
meramente, no local onde se desenrolam as
catolicismo definido como “leigo” tem o
manifestações piedosas – seja o ambiente
mérito de descortinar a existência de uma
doméstico, no primeiro caso, sejam, no
religiosidade bem mais complexa do que faz

10
Pierre Bourdieu. “Gênese e Estrutura do Campo
Religioso”. In: A Economia das Trocas Simbólicas. São
Paulo: Perspectiva, 1987. p. 27-78. p. 38-43 e 50.
Revista Digital Simonsen 92

segundo caso, os espaços correspondentes, de compromisso mútuo baseados em laços


12
antes de tudo, aos limites interiores das familiares ou de amizade .
igrejas e capelas. Assim, ao lado dos cenários
Pode-se, então, vislumbrar a presença,
escolhidos para o exercício da fé católica,
no âmbito do catolicismo colonial, de pelo
deve-se levar em conta o tipo de sociabilidade
menos três formas principais de sociabilidade
religiosa preponderante em cada exemplo
religiosa. A primeira, essencialmente privada,
particular – noção que enriquece a reflexão
organiza-se em torno das relações de poder
sobre a geografia do sagrado ao colocar em
características de boa parte dos arranjos
evidência as relações sociais e de poder que
familiares existentes na América portuguesa,
dão forma ao cotidiano de clérigos e fiéis.
cuja hierarquia interna contém a marca da
A reforçar essa última noção, certas submissão da mulher e dos filhos e, sobretudo
ponderações desenvolvidas por Bronislaw entre as elites do meio rural, da sujeição de
Geremek acerca das múltiplas maneiras de uma ampla gama de agregados e dependentes
interpretar o conceito de espaço sagrado: este à autoridade tradicional do pater familias. É a
não se definiria, no plano propriamente sociabilidade que se origina do “catolicismo
teológico, por um lugar delimitado na patriarcal”, no interior do qual o mando
concretude do terreno, mas encontraria sua privado do senhor se destaca em relação à
realização na reunião periódica da coletividade autoridade espiritual do sacerdote encarregado
dos fiéis (ekklesía). Esse espaço referido, antes de conduzir as celebrações familiares – assim
de tudo, à dimensão das relações humanas, só como a casa-grande se destaca, na paisagem
por efeito da sensibilidade religiosa, e por da grande propriedade, em relação à capela e
imperativos jurídicos e litúrgicos, acabaria por demais construções situadas em suas
11 13
se limitar aos contornos do edifício religioso . redondezas .
De forma similar, “público” e “privado”
Um segunda forma de sociabilidade
recebem, em Richard Sennett, conceituações religiosa apresenta, ao contrário da anterior,
nas quais se prioriza o peso determinante das um caráter predominantemente horizontal: sua
relações interpessoais, contando feição mais típica reside na reunião de grupos
essencialmente, para a distinção entre ambos, de fiéis para a prática de rituais dedicados a
a vigência ou não de vínculos de associação e expressar a devoção comum aos santos e

11 13
Bronislaw Geremek. “Igreja”. In: Enciclopédia Cf. Gilberto Freyre. Casa grande & senzala:
Einaudi, volume 12 (Mythos/logos; formação da família brasileira sob o regime da
Sagrado/profano). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa economia patriarcal. Rio de Janeiro/Brasília:
da Moeda, 1987. p. 161-214. p. 190. Livraria José Olympio Editora, 1981. p. 194-195.
12
Richard Sennett. O Declínio do Homem Público: as
Tiranias da Intimidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998. p. 16.
Revista Digital Simonsen 93

demais integrantes da corte celeste. Novenas, cerimônias conduzidas no interior das igrejas
terços, bênçãos, romarias, promessas, catedrais ou matrizes aos domingos e demais
procissões e festas em homenagem ao padroeiro dias santos previstos no calendário, a começar
são exemplos por excelência dessa pela missa, a mais importante celebração
sociabilidade notavelmente colorida e litúrgica e sacramental do credo católico, à
sincrética, nem sempre ajustada plenamente aos qual se pode acrescentar ainda a adoração da
ditames ortodoxos e capaz de transitar com hóstia e o Te Deum Laudamus. A distinguir
desenvoltura tanto dentro dos templos quanto essa última forma de sociabilidade, o lugar
fora deles, no recesso dos lares ou ao ar livre, destacado reservado ao clérigo celebrante,
em torno de cruzeiros, oratórios, ermidas e colocado adiante dos fiéis reunidos e
outros pontos de referência utilizados para a encarnando, em sua pessoa, o papel de
reunião dos fiéis – em boa parte dos casos, sem intermediário obrigatório entre os leigos e o
nenhum sacerdote à vista. Se a primeira forma sagrado reivindicado pela Igreja de Roma.
de sociabilidade religiosa mencionada nessas
Uma vez sugeridos os critérios a serem
linhas merece o nome de “patriarcal”, esta
adotados para a classificação das diversas
última pode ser definida como “comunitária”, a
manifestações da religiosidade católica no
fim de fazer jus à ligação menos hierárquica e
Brasil colonial, com base em considerações
mais associativa e igualitária entre os que dela
sobre a direção das atividades e sobre as
tomavam parte – ao menos, o quanto tal gênero
formas de sociabilidade religiosa ensejadas
de ligação se mostrava possível nos quadros da
por cada uma, é hora de tentar oferecer alguns
sociedade brasileira do passado.
exemplos práticos a respeito da aplicação de
A ideia de hierarquia reaparece quando tais critérios ao cotidiano dos católicos de
se contempla a terceira das principais formas séculos passados. Principiando pelo
de sociabilidade por meio das quais se catolicismo de tipo clerical, regido por
organizava a vivência da religiosidade representantes do sacerdócio, matriz de uma
católica, de acordo com o esquema aqui sociabilidade definida como pública e eclesial,
proposto. Trata-se, aqui, de uma sociabilidade realizada, de preferência, no espaço interno
“eclesial”, desenvolvida sob o comando e a dos templos e singularizada pela passividade e
autoridade de um sacerdote, que atua como subordinação dos leigos colocados sob a
representante da instituição eclesiástica em direção de um ou mais clérigos vinculados
sua respectiva jurisdição – seja a diocese, no diretamente à hierarquia da Igreja.
caso dos bispos, seja a paróquia, no caso dos Aparentemente, há poucas dúvidas sobre o
vigários. Exemplos óbvios desse tipo de lugar ocupado por esse gênero de catolicismo
sociabilidade decididamente pública são as no conjunto maior do qual faz parte: é o
Revista Digital Simonsen 94

catolicismo das grandes missas solenes e significados correspondentes a toda a


demais rituais do culto público, celebrados intrincada sequência de gestos e palavras que
nos templos mais destacados das principais compunham, então como hoje, os ritos da
cidades e vilas nos dias mais importantes do liturgia católica. Dificuldades agravadas,
calendário religioso. Sacramental e litúrgico aliás, pela costumeira ausência, entre os
por excelência, além de público e próprio dos membros do laicato, de uma formação
centros urbanos, esse catolicismo parece teológica rigorosa e pela pouquíssima
contrastar em tudo com a religiosidade de familiaridade com as sagradas escrituras, sem
cunho devocional e íntimo conduzida pelos mencionar a ignorância freqüente do latim no
membros do laicato em toda a extensão do qual se expressavam os sacerdotes – língua
território da Colônia, em ambientes muitas dominada apenas, naquela época, por um
vezes domésticos e privados e sem a presença pequeno círculo de letrados, isolados em meio
de sacerdotes. a uma população desprovida, via de regra, dos
14
mais simples rudimentos do saber formal .
Entretanto, uma observação mais atenta
do exercício diário da fé católica na América Não causa surpresa, portanto, a visão
portuguesa permite constatar que, a despeito das freqüente de fiéis concentrados, em meio às
características bem definidas atribuídas ao grandes celebrações litúrgicas, na recitação
catolicismo dirigido pela hierarquia eclesiástica, silenciosa do rosário ou do terço – expressão
o encontro periódico entre clérigos e leigos no solitária de uma espiritualidade
interior dos templos acabava por produzir caracteristicamente leiga que, em circunstâncias
combinações imprevistas entre as dimensões mais favoráveis, alcançava a sua plena
15
sacramental/litúrgica e devocional da vivência dimensão comunitária . Pode-se também
religiosa do tempo. A explicar essa infiltração imaginar o quão facilmente, durante as
da devoção leiga nos espaços reservados, por cerimônias do culto público, a atenção dos
excelência, ao culto público, além do próprio homens e mulheres espalhados pelo interior dos
vigor desta devoção, as imensas dificuldades templos costumava se desviar das palavras e dos
sentidas pela grande maioria dos fiéis em se gestos encenados pelo sacerdote diante do altar
tratando de compreender a lógica interna e os principal, encaminhando-se na direção das
principais imagens de santos aninhadas nos vários

14 15
Cf. Luiz Carlos Villalta. “O que se Fala e o que se Lê: Cf. Sergio Chahon. Os convidados para a Ceia do
Língua, Instrução e Leitura”. In: Laura de Mello e Senhor: as missas e a vivência leiga do catolicismo
Souza (org.). História da Vida Privada no Brasil: na cidade do Rio de Janeiro e arredores (1750-
Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. 1820). São Paulo: Editora da Universidade de São
São Paulo: Companhia das Letras, 1997 (História da Paulo, 2008. p. 264-265.
Vida Privada no Brasil, 1). p. 331-385. p. 356-357.
Revista Digital Simonsen 95

altares dispostos ao longo das paredes laterais Passando-se agora do catolicismo clerical
das principais igrejas do Brasil-Colônia – para o catolicismo regido pelos leigos, é
imagens semelhantes a tantas outras que, importante sublinhar a considerável diversidade
instaladas em um sem número de pequenas apresentada por esse último no Brasil colonial, a
ermidas e oratórios espalhados pelo território refletir a variedade de indivíduos e grupos
colonial, serviam como referências sociais que então davam forma à população
indispensáveis para a maioria dos rituais da laica. Quando se leva em consideração, para
piedade laica. começar, os hábitos e tradições que integravam
a maior parte da vivência religiosa dessa
A registrar, ainda, o significativo espaço
população, ganha corpo uma espiritualidade
ocupado, no cotidiano dos católicos da
fortemente marcada pelos sentimentos de
América lusa, pelo hábito de venerar o Corpo
de Cristo durante as missas, a tal ponto que as devoção endereçados às imagens sacras como as

orações e ritos da liturgia eucarística de Nossa Senhora, da Santa Cruz e de toda a

acabavam muitas vezes por reduzir-se, na extensa galeria de santos reunidos na corte

visão da maioria dos assistentes, a simples celeste. Quase onipresentes na paisagem da

preparação ou moldura para o sacramento Colônia, tais imagens podiam ser encontradas

presente no altar, pedra preciosa que, na no recesso dos lares e no interior das capelas e

imagem de Jose A. Jungmann, exigia para seu igrejas, como também nos descampados e beiras
engaste a concorrência em conjunto de todas de estrada. Serviam, assim, de pólos
16 aglutinadores de uma religiosidade feita de
as partes do santo sacrifício . Vale a pena
palavras e gestos menos complicados do que os
destacar, a propósito, certa observação
que compunham o tecido da liturgia,
extraída da obra de Hubert Jedin, segundo a
executados, em geral, pelos simples fiéis sem o
qual a piedade da massa leiga, baseada muito
concurso de um sacerdote celebrante.
mais na contemplação amorosa do que no
Encontrada em uma ampla gama de espaços
entendimento racional, tendia a concentrar-se,
durante a missa, em uma forma de adoração públicos e privados, essa religiosidade de teor

fundamentada na visão da hóstia consagrada, mais singelo e espontâneo é, sem dúvida, a que

considerada como manifestação da presença melhor traduz o modelo comunitário de

do Cristo descido dos Céus sobre a mesa sociabilidade religiosa, avesso a hierarquias e a
17 maiores intimidades com os representantes da
eucarística .
instituição eclesiástica.

16 17
Jose A. Jungmann. El Sacrificio de la Misa. Tratado Hubert Jedin (dir.). Manual de Historia de la Iglesia.
Histórico-litúrgico. Madrid: Editorial Herder, La Barcelona: Editorial Herder, 1966-87 (1ª ed.), 1980-
Editorial Catolica S. A., 1951. p. 204. ? (2ª ed.). 10v. V. 4, p. 867. Cf. também Sergio
Chahon. Op. cit. p. 335-355.
Revista Digital Simonsen 96

Entretanto, longe de se caracterizar catolicismo alcançava, no Brasil do passado, um


unicamente como devocional ou mesmo grau especialmente elevado no cenário
“popular”, o catolicismo conduzido pelos correspondente às habitações das elites
leigos na América portuguesa assumia coloniais. É certo que em tais habitações, assim
também outras formas, ainda mais ao se levar como em boa parte dos lares mais humildes, não
em conta a atuação dos fiéis que contavam, na costumavam faltar espaços destinados à prática
época, com maiores recursos para expressar dos principais exercícios da devoção leiga,

suas próprias crenças e sentimentos como as orações do Padre-Nosso e da Ave-

religiosos. Fiéis que, sem deixarem de ser Maria, a recitação do rosário e o

leigos, pareciam não se contentar com os acompanhamento das ladainhas. A análise

prêmios de uma espiritualidade baseada quase pioneira de Gilberto Freyre, e também Luiz

exclusivamente na simples devoção, feita de Mott, em texto mais recente, destacam, nesse

muita reza e de muitos santos, mas de pouca sentido, a importância do chamado “quarto dos

missa e de pouco padre – para lembrar outra santos”, cômodo especialmente reservado para a
prática dos mencionados exercícios e, em
vez a expressão famosa. Ao invés disso,
particular, para a custódia e veneração das
tratavam de planejar e realizar suas próprias
imagens sagradas de predileção dos donos da
celebrações litúrgicas, contratando, em caráter
19
mais ou menos permanente, os serviços de um casa . De um modo geral, eram mesmo as

sacerdote e assumindo o controle, sempre que imagens como essas últimas que serviam de
possível, de um altar ou mesmo de um templo baliza à religiosidade familiar, acomodadas em
em caráter privativo. Chegavam, dessa nichos próprios à maneira de oratórios e
maneira, a se desvincular da condição de abençoando a mesa das refeições ou a cama,
simples massa consumidora de sacramentos, além de duplicadas, não raro, em quadros
relacionando-se com os clérigos vinculados à murais emoldurados pendurados em lugares de
hierarquia da Igreja em termos de destaque. Tradicional expressão de devoção do
20
concorrência – noção extraída da obra de povo católico, a exemplo da simples cruz , os
Bourdieu, a qual ilustra bem o dinamismo e o oratórios com imagens de santos, confinados no
equilíbrio tenso subjacentes ao cotidiano da fé interior das residências urbanas, eram muitas
18
católica em terras coloniais . vezes alojados junto às varandas das casas-
grandes de fazendas e engenhos, dando ensejo,
A confluência entre as dimensões
assim, a formas de sociabilidade
devocional e sacramental/litúrgica do

18 19
Para essa última noção, cf. Pierre Bourdieu. Op. cit. p. Gilberto Freyre. Op. cit. p. 431; Luiz Mott. Op. cit.
50. p. 166.
20
Cf. Riolando Azzi. Op. cit. p. 25.
Revista Digital Simonsen 97

religiosa capazes de se espraiar para além do próximas às casas-grandes, espécies de


núcleo familiar mais restrito, abrangendo extensões do espaço doméstico e familiar,
também os escravos e agregados que vinham emerge em sua plenitude a característica mistura
21
se reunir diante deles para a reza cotidiana . de devoção e liturgia que singularizava, no
passado, o exercício cotidiano da fé católica por
Sempre sob a direção leiga, as rezas
parte de muitas das famílias mais distintas da
recitadas no recesso do lar impregnavam o
América portuguesa, no interior do qual se
cotidiano doméstico da sociabilidade religiosa
interpenetravam as três formas principais de
de tipo comunitário habitualmente ocasionada
sociabilidade religiosa citadas nessas linhas: a
pelas reuniões de devotos nos espaços públicos
comunitária, a patriarcal e a eclesial – haja vista
da Colônia. Em se tratando das casas-grandes, a
a presença, durante as cerimônias mais
presença do pater familias dava ainda lugar à
importantes, de um clérigo celebrante
sociabilidade de cunho patriarcal, a reforçar, por
meio dos exercícios piedosos, o vinculo posicionado diante do altar, à frente da

simbólico entre tal personagem e o conjunto assistência.

formado por seus familiares e dependentes. Outro exemplo eloquente da convergência


Entretanto, no caso das famílias mais abastadas, entre as dimensões sacramental/litúrgica e
podiam-se também encontrar oratórios dotados devocional do catolicismo praticado em terras
de autorização especial para funcionarem como coloniais é o das irmandades e ordens terceiras.
altares, equipados com pedra d’ara, cálice, Tratam-se, nesse caso, de associações religiosas
castiçais e demais objetos necessários à de perfil leigo originárias da Europa medieval e
celebração litúrgica por parte de sacerdotes largamente disseminadas no Brasil do passado,
22
contratados . Instalados dentro de casa, em dedicadas a promover de várias maneiras o culto
recintos separados e especialmente preparados a seus respectivos patronos celestes – quase
para abrigarem os rituais do culto público, como sempre santos ou invocações de Nossa Senhora
missas e batizados, esses altares domésticos de –, além de se ocuparem eventualmente da
uso privado tornavam possível ampliar o escopo caridade pública e de proverem a mútua
da religiosidade laica, acrescentando a ela assistência entre os seus integrantes nos âmbitos
diversas práticas observadas de modo mais econômico e religioso. Dentre essas
freqüente apenas no solo sagrado dos templos. associações, as formadas por irmãos terceiros
Quando se leva em conta, igualmente, as distinguiam-se pelos vínculos
capelas contíguas ou

21 22
Cf. Maria Beatriz Nizza da Silva. Vida Privada e Cf. Sergio Chahon. Op. cit. p. 40-88.
Quotidiano no Brasil. Na Época de D. Maria I e de
D. João VI. Lisboa: Estampa, 1993. p. 215-216.
Revista Digital Simonsen 98

de subordinação institucional e espiritual que categorias profissionais diferentes e grupos


mantinham, em cada caso, com uma distinguidos pela posição social, origem étnica
determinada ordem religiosa, a exemplo das e condição jurídica, contribuíam
de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora decisivamente para ampliar a complexidade e
do Carmo, das mais importantes na a riqueza da vivência religiosa católica no
23
conjuntura em apreço . Novo Mundo português – uma vivência
impossível de ser contida em definições
Originadas, não raro, das orações
binárias ou esquemáticas, e que continua a
coletivas recitadas diante das imagens de santos
desafiar os historiadores e demais estudiosos
e conservando, em sua essência, os laços de
interessados em decifrar os seus muitos
camaradagem derivados da devoção
mistérios.
compartilhada a um mesmo benfeitor celestial,
as irmandades e ordens terceiras do Brasil
colonial perpetuavam, em seu funcionamento
Referências:
diário, o modelo de sociabilidade religiosa
comunitária característico da piedade laica mais AZZI, Riolando. O catolicismo popular no
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espontânea e simples. Contudo, especialmente Vozes, 1978.
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englobando, em associações específicas, Moeda, 1987. p. 161-214.
HOORNAERT, Eduardo. “A Cristandade
durante a Primeira Época Colonial”. In:

23
Sobre as irmandades em geral, cf. Sergio Chahon. do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro:
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Revista Digital Simonsen 99

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Revista Digital Simonsen 100

Letras

MACHADO ESCREVE COM A PENA DO CORVO:


INTERTEXTUALIDADE DE EDGAR ALLAN POE NO CONTO
MACHADIANO “O ENFERMEIRO”

1
Por Adriel de Carvalho Ramos
Ideias Chave: Machado de Assis, Edgar Alan Poe, Intertextualidade

decorrer desse texto.

Vale ainda destacar sobre o mesmo ponto

E sse texto visa perceber as nuanças da

intertextualidade como uma das ferramentas


que esse processo, segundo a autora Carvalhal,
não pode ser simplesmente entendido como
mera comparação, mas sim como “um ato
lógico-formal do pensar diferencial
de trabalho da Literatura Comparada. Para isso,
primeiramente, deve-se esclarecer o conceito do (processualmente indutivo) paralelo a uma
que seria Literatura Comparada, que para a 3
2 atitude totalizadora (dedutiva)”, ou seja, o
autora Carvalhal é, a princípio, “uma forma de
investigação literária que confronta duas ou trabalho feito a partir das metodologias
mais literaturas”. Esse conceito nos situa do comparativas não é um fim, mas sim um meio
eixo central do trabalho que é discutir sobre a
forte influência de Poe na literatura pelo qual conseguimos elaborar as ideias a
Machadiana. É válida essa comparação visto partir de uma análise profunda e uma visão
que os dois participam da mesma corrente
diferenciada de certas obras. Com isso, significa
literária, o Romantismo, embora cada um em
seu tempo e com suas devidas características dizer que todos os dados apresentados são
que serão descritas no sistematicamente analisados a partir da

1
Graduado em Letras/Inglês pelas Faculdades Integradas Simonsen.
2
CARVALHAL, 2006, p.5
3
GOTLIB, 2010, p.6
Revista Digital Simonsen 101

observação de características comuns e realmente aconteceu, mas não só por questão


divergentes, tanto quanto uma profunda analítica, mas também por citação do próprio
reflexão sobre os dados não escritos nos textos, Machado de Assis em algumas de suas obras,
ou seja, como interpretação do que está como por exemplo: “Uma excursão
subentendido. 5
milagrosa” , em que Machado escreve: “e
Outro tema a ser abordado antes de todas as histórias maravilhosas de Edgar

debater sobre o cerne da questão é a relação Allan Poe (...)”, como também em “O anel de
6
que Machado de Assis teve com Poe. Segundo Polícrates” onde diz: “Jurou-me que ia
4 escrever, a propósito disto, um conto
Alvarez, é possível identificar momentos em
fantástico, à maneira de Edgar Poe, uma
que Machado de Assis tem contato com o
página fulgurante, pontuada de mistérios” ou
escritor norte-americano, quando cita um
a tradução da poesia de Poe, “O corvo”.
trecho do livro Machado de Assis: um escritor
dos trópicos (1998) da autora Flores da Cunha, A necessidade de se estudar, não só as
dizendo que: características textuais, mas também todo o
contexto que envolve as obras é descrito por
Esse contato de Machado de Assis
com Edgar A. Poe pode ter ocorrido Carvalhal dizendo que essa etapa
através da fonte primeira da leitura do
texto original ou, como se imagina, pelo “(...) permite que se observem os
conhecimento precoce das traduções de processos de assimilação criativa dos
Charles Baudelaire, o introdutor de Poe elementos, favorecendo não só o
no circuito da literatura conhecida do conhecimento da peculiaridade de cada
seu tempo [...]. O certo, e o mais texto, mas também o entendimento dos
importante, é que as datas de processos de produção literária. (…)
publicação das mencionadas obras compara com a finalidade de interpretar
machadianas — respectivamente, 1866, questões mais gerais das quais as obras
1882, 1883, 1885, 1896—, sendo que ou procedimentos literários são
três delas ocorrendo significativamente manifestações concretas. Daí a
no período dito de apogeu da sua necessidade de articular a investigação
contística, atestam uma convivência comparativista com o social, o político, o
regular e consentida de, no mínimo, cultural, em suma, com a História num
trinta anos com o espírito e a feição da 7
sentido abrangente.”
obra do escritor norte-americano.

Esses levantamentos e comparações são


Alvarez segue destacando outros contos
o embasamento para os próximos estudos que
em que Machado de Assis cita Poe, reinterando
serão feitos nesse texto. Afirmar a ligação entre
e confirmando a tese de que a intertextualidade
os autores não só pelas características

4 6
ALVAREZ, 2012. Idem, 1970.
5 7
ASSIS, 1956. CARVALHAL, 2010, p.86
Revista Digital Simonsen 102

encontradas na construção literária, mas condição única de que não há de


divulgar nada antes da minha morte.
também com um fundo social, nos capacita Não esperará muito, pode ser que oito
entender como e por qual motivo se deu o dias, se não for menos; estou
desenganado.
processo intertextual. Porém é necessário
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe
entender que essa convergência que existe
a minha vida inteira, em que há outras
entre os textos de Poe com o conto de coisas interessantes, mas para isso era
preciso tempo, ânimo e papel, e eu só
Machado de Assis não se dá por mera citação,
tenho papel; o ânimo é frouxo, e o
mas também no campo discursivo e tempo assemelha-se à lamparina de
madrugada. Não tarda o sol do outro
ideológico como veremos a seguir.
dia, um sol dos diabos, impenetrável
como a vida. Adeus, meu caro senhor,
É importante, também, entender que não leia isto e queira-me bem; perdoe-me o
se deve ver o trabalho de intertextualidade, ou que lhe parecer mau, e não maltrate
muito a arruda, se lhe não cheira a
seja, da Literatura Comparada, como sendo um
rosas. Pediu-me um documento
meio de destacar os pontos em comum, o que humano, ei-lo aqui. Não me peça
também o império do Grão-Mogol, nem
resulta numa tendência de dependência cultural.
a fotografia dos Macabeus; peça,
É equiparado também as diferenças ou porém, os meus sapatos de defunto e
9
“contrastes, pois é a diferença que permite não os dou a ninguém mais.”
nossa inserção no universal. Por isso comparar é
8 Percebe-se nesse trecho que a o
contrastar.”
“desabafo” pela escrita só se deu pela chegada
da morte. Como Machado de Assis nesse
“O enfermeiro” sobre a perspectiva de Poe
conto, Poe trabalha incessantemente com o
A história é a respeito de um rapaz, tópico da morte, sendo ela um dos motivos
Procópio, que a princípio é teólogo, mas acaba mais fortes para seus personagens abrirem-se e
por tornar-se enfermeiro para tomar conta de reconhecerem-se através de seus erros.
um coronel idoso, Felisberto. A trama gira em VanSpanckeren fala exatamente sobre isso em
torno da forte personalidade do coronel e da seu livro, onde diz que
“bondade” do novo enfermeiro.
“Poe entre a vida e a morte e os
As primeiras linhas já denotam uma forte cenários góticos berrantes não são
meramente decorativos. Refletem o
influência dos contos de Poe. Procópio diz: interior excessivamente civilizado mas
inerte da psique perturbada de suas
“Parece-lhe então que o que se personagens. São expressões simbólicas
deu comigo em 1860, pode entrar numa do subconsciente e, portanto, cerne de
página de livro? Vá que seja, com a

8 9
Idem, p.77 PROCÓPIO,1884, p.76
Revista Digital Simonsen 103

10 enquadramos os contos como fantásticos, ou


sua arte.”
estranho como veremos mais a frente.
13
O mesmo ocorre no conto “O gato Todorov diz que é necessário
11
preto”, em que o personagem diz: “Mas “(...) julgar o conto fantástico
nem tanto pelas intenções do autor e os
amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, mecanismos da intriga, a não ser em
hoje, de aliviar meu espírito”. Nota-se a função da intensidade emocional que
provoca. (...) Um conto é fantástico,
tensão ao escrever o fato, porém é muito pior
simplesmente se o leitor experimenta em
morrer sem expor o que lhes vai à alma. forma profunda um sentimento de temor
e terror, a presença de mundos e de
No trecho citado anteriormente, a potências insólitas.”
melancolia e o desprezo pela vida se faz
presente, criando um ambiente enfadonho. O Vários trechos poderiam se encaixar para
uso de vocábulos e expressões pesadas e exemplificar, mas o que se destaca é o
monótonas como: “frouxo”, “lamparina da
seguinte: “Quando percebi que o doente
madrugada”, “um sol dos diabos”,
expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas
“impenetrável”, “sapatos de defuntos”,
ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para
ratificam que Machado de Assis intencionava
chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o
passar ao leitor como a vida do personagem 14
aneurisma, e o coronel morreu.”. Percebe-se
se encontrava no fim. Têm-se referências
aqui o drama e o terror vivido pelo
sobre esse ambiente nos contos de Poe, onde
12
personagem. A descrição sentimental como
Todorov comenta a respeito citando
alvo principal é uma forma de fazer o leitor
Lovecraft: “Como a maior parte dos autores expandir a leitura de forma que reconheça o
do fantástico, afirma, Poe se sente mais processo de sofrimento e se envolva a tal ponto
cômodo no incidente e nos efeitos narrativos
em que a dor do personagem se torna a dor de
mais amplos que no desenho dos
quem lê.
personagens”.
A descrição que Procópio faz de
A importância do ambiente é Felisberto nos aproxima também dos estudos
fundamental, visto que é a partir dele que comparativos. Veja que para isso diz que o
conseguimos tomar as sensações e adentrar a coronel o observava com dois olhos de gato e
realidade da psique dos personagens. A essa
logo depois um riso maligno “aluminou-lhe as
preocupação na exposição da psique humana

10 13
VANSPANCKEREN,1994, p.41 Idem, p.20.
11 14
POE, 1975, p.72 Ibdem, p.80.
12
TODOROV, 1970, p. 85
Revista Digital Simonsen 104

feições.” O uso das descrições felinas é o processo se dá muito além de meras


proposital, e se segue quando o próprio coronel comparações estruturais, mas sim como
pergunta para Procópio se ele era “gatuno”, ou Machado de Assis se influencia das ideias e
seja, se gostava da noite, intensificando as conceitos de Poe para construir o seu conto.
descrições felinas como adjetivos pejorativos. Ambos buscam “fisgar” o leitor criando o
efeito. Gotlib cita Julio Córtaz que resume o
Sobre essas alegações recaímos sobre o
conceito de conto em Poe: “Um conto é uma
conto “O gato preto”, onde um gato preto
verdadeira máquina literária de criar
desempenha papel de antagonista. Durante todo 18
interesse.”, que se aplica muito bem no conto
o conto o protagonista sofre das mais variadas
“O enfermeiro”, pois a cada linha descoberta e
formas devido ao gato, despertando inclusive
lida é impossível para ou esquecer o conto.
uma neurose. Logo, Machado de Assis se
apropria desse ideal e caracteriza seus Vale-se também o tempo passado em
personagens com o fundo dramático de Poe. ambos os contos. Procópio diz que a “lua-de-
mel” dura sete dias e é no oitavo dia que todo
O conto em questão também faz alusão
tormento começa, e no conto de Poe, “O
a outro conto famoso de Poe chamado de “O 19
15 coração revelador”, foi na oitava noite que
coração revelador”. A história também gira
o personagem comete o assassinato.
em torno de um rapaz que cuida de um idoso
que por fim acaba por matá-lo. Em ambos os Outro ponto importante é a respeito do
contos percebemos o caráter da estrutura da tamanho do conto. Tanto Poe quanto Machado
narrativa se voltar para os conflitos humanos. se prendem a esse determinante. Muitos autores
Gotlib comenta que “Machado tem o dom de falam sobre a importância de escrever um conto
fisgar o leitor pela intriga bem arquitetada, curto como Todorov onde diz que “o fantástico
16 não dura mais que o tempo de uma vacilação:
intrigando-o com questões não resolvidas”
20
e Todorov ao citar Dostoievsky ressalta esse vacilação comum ao leitor e ao personagem”

processo em Poe, onde diz que “Poe escolhe e Gotlib ao citar o próprio Poe esclarece essa
quase sempre a realidade mais excepcional, situação dizendo que
põe seu personagem na situação mais
“no conto breve, o autor é capaz
excepcional, no plano exterior ou de realizar a plenitude de sua intenção,
17 seja ela qual for. Durante a hora de
psicológico...”. leitura atenta, a alma do leitor está sob
o controle do escritor. Não há nenhuma
Esses escritores nos fazem pensar como
influência externa ou extrínseca que

15 18
POE, 1975. GOTLIB, 2010, p.37.
16 19
GOTLIB, 2010, p.80. POE, 1975.
17 20
Todorov,1970, p.27. TODOROV,1970, p.24.
Revista Digital Simonsen 105

21
resulte de cansaço ou interrupção.” como foi dito anteriormente, a arte de
E é em cima dessa questão da brevidade comparar, não é só de ressaltar pontos em
associada à descrição minuciosa do ambiente comum, mas também de verificar a
e da psique que Poe causa o efeito seguido por individualidade de cada escritor. Vamos então
Machado de Assis. Gotlib diz a respeito do a elas.
conto Machadiano: “E este é também o
A primeira diferença é na criação da
segredo do conto, que promove o sequestro
problemática. Nos contos de Poe eles
do leitor, prendendo-o num efeito que lhe
subitamente são atacados por uma neurose ou
permite a visão em conjunto da obra, desde
uma doença sem explicação. No conto do
que todos os elementos do conto são
“Coração revelador”, Poe diz que uma doença
incorporados, tendo em vista a construção
aguça os seus sentidos, a audição, e sem saber
22
desse efeito (Poe) (...).”.
como e nem o porquê ele começa a arquitetar
Uma última característica muito a morte do idoso. Veja nesse trecho a
importante é o do narrador se apresentar em exploração da loucura: “Não havia objeto.
primeira pessoa. Tanto no conto Machadiano Não havia paixão. Eu gostava do velho. Ele
quanto nos contos de Poe, eles se apresentam nunca me fez mal. Nunca me ofendeu. Eu não
como personagens e narradores, característica desejava o seu ouro.”. Note que nem mesmo
essa do conto fantástico. Todorov faz menção o personagem consegue justificar
à enunciação dizendo que “Nas histórias racionalmente sua ira contra o outro. O
fantásticas, a narradora fala geralmente em próprio Poe comenta sobre a loucura: “A
primeira pessoa: é um fato empírico ciência não nos ensinou ainda se a loucura é
facilmente verificável. (...) O acento recai 24
ou não o alto da inteligência”.
então sobre o fato de que se trata do discurso
Ainda no livro de Todorov,
de um personagem, mais que do discurso do
Introdução à literatura fantástica,
autor: a palavra é objeto de desconfiança
23
entendemos essa diferença entre os contos de
(...)”.
Poe e Machado, pois os contos de Poe se
Todas essas questões mostram que tanto encaixam na classificação de estranho, mas o
nos aspectos gerais, quanto em pequenos que não os exclui da condição de fantásticos.
detalhes os contos se encontram, e é disso que Todorov diz que
este trabalho se vale, das fortes características
“Nas obras pertencentes a esse
que ambos revelam em sua escrita. Porém, gênero, relatam-se acontecimentos que

21 23
GOTLIB, 2010, p. 34. TODOROV, 1970, p.44 e 46.
22 24
Idem, p.81. Idem, p. 23.
Revista Digital Simonsen 106

podem explicar-se perfeitamente pelas Amontillado”, Montresor jura vingança contra


leis da razão, mas que são, de uma ou um velho amigo, Fortunato, porém em
outra maneira, incríveis, extraordinários,
chocantes, singulares, inquietantes, momento algum revela os verdadeiros motivos
insólitos e que, por esta razão, provocam que levaram-no a odiá-lo.
no personagem e o leitor uma reação
semelhante a que os textos fantásticos No conto de Machado percebemos que o
25
nos voltou familiar.”
personagem vem se desgastando lentamente
com o seu antagonista, enquanto o próprio
E é através do viés da loucura que Poe antagonista vem se desgastando com sua
cria seu efeito. É assim que ele prende seu idade, com o tempo. Procópio narra que
leitor, intrigando-nos com o posicionamento
“O coronel estava pior, fez
do personagem, que embora nos pareça
testamento, descompondo o tabelião,
racional, é acometido de um mal sem muita quase tanto como a mim. O trato era
mais duro, os breves lapsos de sossego
explicação. Mais tarde o personagem explica
e brandura faziam-se raros. Já por esse
que o que talvez tenha lhe causado o ódio fora tempo tinha eu perdido a escassa dose
de piedade que me fazia esquecer os
“seu olho! Sim, foi isso! Um de seus olhos
excessos do doente; trazia dentro de
parecia-se com o de um abutre”. Uma 26
mim um fermento de ódio e aversão.”
argumentação racional, porém longe de ser
justificativa para seus atos. Poe decide relatar Machado de Assis busca, através do
sobre a loucura, mas não como um mal de personagem, montar e relatar os fatos para
poucos, mas como uma característica da mostrar-nos como a psique do Procópio vai se
psique humana, algo que pode ocorrer a modificando e até mesmo justificar seus atos.
todos, já que não tem explicação para Procópio (p. 79 e 80) diz:
acontecer, apenas pequenas argumentações.
“Ele, que parecia delirar, continuou
Pode-se, também, verificar o mesmo em nos mesmos gritos, e acabou por lançar
mão da moringa e arremessá-la contra
“O gato preto”, em que ele toma pavor dos mim. Não tive tempo de desviar-me; a
animais de estimação sem nenhuma moringa bateu-me na face esquerda, e tal
foi a dor que não vi mais nada; atirei-me
explicação plausível e acaba por chegar as ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço,
27
vias de fato. Também em “Berenice”, onde lutamos, e esganei-o.”
Egeu, personagem principal, cria uma O leitor se envolve tanto com o
obsessão por dentes e chega a arrancá-los de sofrimento do personagem principal que a
sua prima depois de morta. Em “O barril de primeira instância não sente pena do coronel

25
TODOROV, 1970, p.26. 27
26 Idem, p. 79,80.
PROCÓPIO, p.79.
Revista Digital Simonsen 107

que morre nas mãos do outro. Com essa comenta a respeito dos contos de Poe que “A
esquematização que Machado fisga o leitor. 32
novela ou conto termina num clímax”, ou
Ele leva-o a se questionar dos seus valores. seja, nos contos de Poe nunca sabemos o que

Como parte do seu projeto, todos acontece depois do momento de maior tensão.
Ele sempre deixa para o leitor o papel de criar
enxergam Procópio como um homem nobre,
o final para as suas histórias.
pois aguentara durante longo tempo o coronel.
Ele diz que “Toda a gente me elogiava a Poderia ter sido esgotada cada linha do
28
dedicação e a paciência”, o que mostra mais conto “O enfermeiro” para mostrar os
uma vez a contestação de valores. Será que ao processos de intertextualidade, mas para as
julgar alguém como bom ou mau, estaríamos metas traçadas não há necessidade, pois o
nós tomando o problema pelo cabo? Seríamos eixo principal era mostrar as diversas formas
nós sabedores do que realmente aconteceu? que as literaturas se encontraram, porém de
Gotlib cita Alfredo Bossi dizendo que “A forma concisa.
perspectiva de Machado é da contradição que
Confirma-se, assim, a fundamental
se despista, o terrorista que se finge de
importância da apresentação de Machado de
29
diplomata”. Assis para os contos do Poe.
No final do conto Procópio descobre que
Em uma leitura atenta, poderá perceber
o coronel lhe deixou toda a herança e por fim
que em diversas obras Machado de Assis
acha que Felisberto não fora tão mal assim, diz
explora os processos de intertextualidade,
que “Pode ser que eu, involuntariamente,
muitas vezes chamando outros autores, citando
30
exagerasse a descrição que então lhes fiz”.
diversos trechos de outros livros em seus textos
Encerrando o conto com uma citação da a fim de mostrar seu alto grau de leitura. Isso
bíblia: “Bem-aventurados os que possuem, faz com que o leitor assíduo de seus textos
31
porque eles serão consolados.”, nos amplie seu acervo tanto quanto o mesmo o fez.
deixando a reflexão sobre as possíveis
Poe, além de ser um escritor influente e
mudanças que as pessoas podem atribuir
reconhecido mundialmente, mostra-se a partir
pelos valores que deixam aqui, no caso de
desse trabalho, como grande colaborador para
Felisberto, valores materiais.
a literatura brasileira, assim como foi para
Cabe aqui, então, para distinguirmos o outras literaturas e também para muitas outras
último ponto dos contos, o desfecho. Gotlib

28 31
PROCÓPIO, p.83. Idem, p. 84.
29 32
GOTLIB, 2010, p.79. GOTLIB, 2010, p.40.
30
PROCÓPIO, p.80.
Revista Digital Simonsen 108

obras e manifestações artísticas.

Referências

CARVALHAL, Tania Franco. Literatura


Comparada. São Paulo: Ática, 2006.
GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do Conto.
São Paulo: Ática, 2010.
TODOROV, Tzevan. Introdução à literatura
fantástica. Perspectiva, 1970.
ALVAREZ, Roxana Guadalupe Herrera.
Reminiscências de Poe em contos
Machadianos. São Paulo. 04/2012.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Machado
de Assis: contos A. Rio de Janeiro: Lia.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Contos
recolhidos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1956.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Quincas
Borba/Papéis avulsos. Rio de Janeiro: W.
M. Jackson , 1970.
POE, Edgar Allan. Historias extraordinárias.
São Paulo: Edibolso, 1975.
VANSPANCKEREN, Kathryn. Perfil de
literatura americana. Agência de
Divulgação dos Estados Unidos da
América, 1994.

Como Citar: RAMOS, Adriel de Carvalho.


Machado escreve com a pena do corvo:
Intertextualidade de Edgar Allan Poe no
conto machadiano “o enfermeiro”. In:
Revista Digital Simonsen. Rio de Janeiro, n.1,
Dez. 2014. Disponível em:
<www.simonsen.br/revistasimonsen>
Revista Digital Simonsen 109

Memória

REALENGO: UM BAIRRO, UMA ESTAÇÃO E MUITAS


BICICLETAS

1
Por Allan Oliveira
Ideias Chave: Realengo, memória, história oral

conhecimentos dos quais dispomos são fruto


da memória e pesquisa de alguns poucos bons

A Memória talvez seja a ferramenta

mais importante para a formação da identidade


homens e mulheres, interessados
conservar uma coesão social e valorizar sua a
importância dentro do cenário estadual e
federal. Empenhados no dever de garantir a
em

do homem e de uma sociedade. Cabe a ela visibilidade merecida ao bairro por onde
guardar e arquivar os momentos mais passaram imperadores, de onde voou o
importantes de nossas vidas, os lugares por
onde passamos e as pessoas que nos fizeram primeiro balão-dirigível brasileiro, onde
experimentar os mais diversos sentimentos ao estudaram presidentes e que abrigou em 1878
longo de nossa jornada. Ela também é
uma das primeiras estações em direção à Zona
responsável pela nossa compreensão do mundo
que nos cerca, da importância das relações com Oeste da linha férrea D. Pedro II.
os outros, e de nos ligar, direta ou
indiretamente, aos fenômenos sociais que É correto considerar que a qualidade do
experimentamos a cada dia. Mantendo-se transporte na região sempre foi um caso
sempre viva nos corações dos indivíduos e dos
grupos sociais, e comumente é responsável por complexo, embora tenha sido como acabamos
influenciar as ações dos mais jovens. Enfim, de citar umas das primeiras regiões a possuir
para associarmos as ínfimas relações entre as
uma estação férrea, ela não evoluiu de acordo
coisas e entre as pessoas.
com as necessidades e com o crescimento de
Realengo é, ainda hoje, um bairro que Realengo e de seus sub-bairros. A locomoção
esconde muitas histórias, grande parte dos dentro do bairro deu-se em parte por meios dos

1
Allan Oliveira é graduado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e pesquisador do Centro de Memória de
Realengo e Padre Miguel (CMRP).
Revista Digital Simonsen 110

“cabritinhos”, e em 1976 pela linha de ônibus hoje tantos moradores realenguenses e de


391. Porém nenhum desses foi mais popular do tantos outros bairros e cidades em nosso Rio
que a bicicleta. Segundo o depoimento de José de Janeiro para onde o projeto foi expandido.
Carlos Dias da Silva, foi ela a responsável em
Crer no poder da tradição é muito mais
transportar os trabalhadores e moradores até a plausível do que em “mera coincidência”.
estação de trem sem que precisassem pagar uma
Tradição e memória são ingredientes
segunda condução. Onde ainda, segundo ele, as
indispensáveis para influenciar, direta ou
magrelas ficavam em “casas guardadoras de
indiretamente, qualquer iniciativa. Com a
bicicletas que existiam perto da estação”. O
interpretação das fontes disponíveis o
tempo passou, as casas sumiram e ficaram as
historiador analisa a íntima relação entre os
oficinas, e os moradores por um longo tempo
acontecimentos do passado para compreender
improvisaram acorrentando suas bicicletas às melhor o presente.
grades laterais da estação, expostas ao tempo e
confiando a segurança de seus veículos aos
Referências:
pequenos cadeados. SUPERVIA.COM.BR. Supervia Inaugura
bicicletário na Zona Oeste do Rio.
Essa era a realidade do bairro até Disponível em:
http://www.supervia.com.br/noticia.php?n=
recentemente, quando a atual concessionária supervia-inaugura-bicicletarios-na-zona-
oeste-do-rio-de-janeiro&cod=371.
das linhas de trem inaugurou o primeiro Acessado em: 29 Out 2014.
bicicletário, um espaço onde as bicicletas dos PRÓ-REALENGO.COM.BR. Supervia
Inaugura bicicletário em Realengo.
usuários do serviço férreo ficam protegidas Disponível em: http://www.pro-
sob um teto e seguras em um ambiente realengo.com.br/index.php?option=com_co
ntent&view=article&id=449:supervia-
agradável e confiável (como em uma casa), inaugura-bicicletario-em-
realengo&catid=37:informacao&Itemid=64
modelo que se expandiu para outras estações . Acessado em 29 Out de 2014.
ao longo do Estado. CENTRO DE MEMÓRIA DE REALENGO E
PADRE MIGUEL. Disponível em:
https://www.facebook.com/centromrp?fref=
Mesmo que não se possa afirmar ts. Acessado em 29 Out de 2014.
absolutamente a intervenção da tradição dos SILVA, José Carlos Dias da. Jardim novo
Realengo. Entrevista concedida em
moradores na formulação e execução do 27/04/2008.
projeto do biciletário. É gratificante pensar
que o primeiro bicicletário inaugurado foi Como Citar: OLIVEIRA, Allan. Realengo:
Um bairro, Uma Estação e muitas bicicletas.
exatamente no mesmo local onde um dia In: Revista Digital Simonsen. Rio de Janeiro,
n.1, Dez. 2014. Disponível em:
existiu o costume de guardá-las em casas, <www.simonsen.br/revistasimonsen>
como confirma o saudoso entrevistado José
Carlos, e que essa tradição volta a beneficiar
Revista Digital Simonsen 111

Entrevista

Leonardo Cioti: A SIMONSEN E O PROFISSIONAL DE T.I.

Por Rodrigo Amaral e Fernando Gralha

A Revista Digital Simonsen entrevistou


para esta primeira edição,
Professor Leonardo Cioti.
o
de Sistemas, Redes de Computadores, entre
outros. Mas, a partir daí, eu comecei a lecionar
no Ensino Superior e é onde eu estou até agora.

A entrevista teve duração de quase uma hora e


Eu venho de uma família bastante
foi realizada no dia 7 de novembro de 2014 na
humilde, minha mãe foi manicure, sempre tive
sala do Programa de Iniciação Científica da
poucos recursos e tive que buscar tudo o que
faculdade pelos Editores da revista, Prof. Dr.
era do meu interesse, então tudo para mim foi
Rodrigo Amaral e Prof. Ms. Fernando Gralha.
conquistado com dificuldade e tinha sempre
Utilizaremos as siglas RDS e LC, que ficar inovando e inventando, ou seja, para
para REVISTA DIGITAL SIMONSEN e usar uma expressão cara em minha área,
LEONARDO CIOTI. empreendendo.

Em janeiro de 1994 eu entrei para as


Forças Armadas, passei na prova do CPOR e
RDS: Professor, bom dia! Primeiro
gostaríamos que o senhor se apresentasse. assumi a patente de oficial do Exército
Brasileiro, entrei em Janeiro de 1994 e sai em
LC: Bom dia! Eu sou o professor
Fevereiro de 2003. Foram praticamente dez
Leonardo Cioti, leciono na Simonsen desde
anos como oficial, e ali amadureci muito, o que
2005 e no Ensino Superior desde 2002. Sou
ajudou a aflorar ainda mais minha visão
formado em Tecnologia da
empreendedora, trabalhar duro, cumprir prazos
Informação(T.I.) pela própria Simonsen. Fiz
e encarar o mercado de trabalho com seriedade,
alguns cursos de pós graduação na área de
além de ser rigoroso comigo mesmo,
Tecnologia e isso abriu bastante o meu leque,
compromisso que eu já tinha, mas que
como na área de tecnologia e Desenvolvimento
Revista Digital Simonsen 112

certamente o “mundo militar” me ajudou a RDS: O senhor acredita que o


desenvolver. Aprendi muito no tempo em que Diploma nessas áreas de tecnologia e gestão
estive no Exército Brasileiro. valem tanto quanto a ideia e a inovação?

LC: Sim, claro! Com certeza, a


graduação contribui muito no aprimoramento
e na formatação do profissional. Eu mesmo
RDS: Professor, o senhor acredita
estudei aqui na Simonsen entre 1995 e 1999 e
que na sua área é realmente importante ter
aprendi muito. Tenho muito orgulho em ter
compromisso com horários e prazos ou a
me formado aqui e mais ainda por poder
ideia e a inovação valem mais?
passar minha experiência de vida, meus
LC: Ambas precisam andar juntas, conhecimentos consolidados e os que vou
pois de nada adianta uma boa idéia/inovação adquirindo através da formação continuada
sem compromisso. A ideia só passa a valer para esses alunos que estão na mesma
alguma coisa se colocada em prática. Para instituição que me formei. A faculdade
colocar em prática e com eficiência é preciso contribui muito no amadurecimento e na
muito compromisso. Principalmente força de formação do profissional. Sem falar que
vontade e organização. sempre me coloco como exemplo de vida para
eles e destaco a importância de possuir um
diploma.
RDS: O senhor leciona em quais
cursos da Simonsen?

LC: Sou professor dos cursos de: RDS: Vivemos no mundo da


Licenciatura em Informática e Tecnologia em inovação tecnológica. Como o senhor
Análise e Desenvolvimento de Sistemas enxerga essa incrível velocidade de
(TADS). Como leciono disciplinas que são informações e como ela afeta o mercado de

comuns a outros cursos, acabo lecionando trabalho na sua área?

para alguns alunos dos cursos de: LC: A tecnologia é algo incrível,
Administração, Ciências Contábeis, está aí para ser criada e desenvolvida. Tem
Tecnologia em Processos Gerenciais (Gestão gente que entende tecnologia como um
Empresarial) da Simonsen e Licenciaturas. melhoramento de processos, ok, tem essa
vertente. Agora estamos utilizando uma
tecnologia de gravação, ela não é só uma
ferramenta de apoio, eu não a caracterizo
assim, ela é uma necessidade... Hoje a gente
Revista Digital Simonsen 113

não vive sem tecnologia, então abre-se um


campo para vender essa necessidade pois
RDS: O senhor enxerga algum
necessidades melhoram a vida das pessoas. diferencial na Simonsen para a formação
Atrelado a isso, inúmeras possibilidades de destes profissionais?
trabalho aparecem. Várias novas profissões
LC: Sim, com certeza! O que
surgem na área tecnológica em virtude do
diferencia nosso curso em relação a qualquer
avanço tecnológico. Acredito que a cada dia a
outro é nosso corpo docente e a capacidade de
necessidade de novos profissionais de TI só
aprendizado e de interesse do nosso corpo
vai aumentar.
discente. O corpo docente é muito bem
preparado, e passa os conhecimentos mais
RDS: Além de lecionar, que outras atualizados do mercado aos alunos. Nossa
atividades profissionais o senhor exerce? estrutura curricular ajuda muito, ela tem total
condição de desenvolver este profissional.
LC: Hoje a gente está em constante
Isso já vem ocorrendo, nossos alunos estão
atualização, e na minha área específica que é
entrando no mercado de trabalho e são
a tecnologia da informação (T.I.) tudo muda
absorvidos rapidamente em virtude do
mais rápido que em outras áreas; sem
conhecimento e gabarito publicamente
desmerecê-las, a minha área muda a cada
reconhecidos.
piscar de olhos. Se você achar que está
atualizado, em seguida lançam algo novo e
você não estará. Partindo desses fatos então RDS: E isso tem acontecido
eu comecei a identificar várias oportunidades. internamente? Coordenação e Direção
Em 2008, abri minha primeira empresa na junto com os professores?
área de T.I. Desde 2008 exerço algumas
LC: Tem sim, temos feito várias
atividades profissionais na minha empresa
reuniões para mudanças da matriz curricular.
prestando serviços de infra-estrutura de redes
Nossa matriz tem acompanhado as
de computadores, desenvolvimento de
necessidades técnicas da área, do MEC e do
sistemas e desenvolvimento de aplicativos
mercado de TI. Me formei em 1999 e há
para dispositivos móveis. Tudo isso ajuda a
quase 15 anos tudo o que eu aprendi em 1999
aumentar minha experiência e me manter
evoluiu, nada mais é utilizado agora, tudo isso
atualizado, o que contribui de forma direta na
levando em consideração a parte tecnológica.
forma como eu leciono. Existe uma relação
Mais que isso, quase tudo o que eu aprendi
direta da parte prática com a conceitual. Posso
nos meus cursos de pós-graduação também há
afirmar que tenho tido bons resultados.
10 anos não é mais utilizado. Então essas
Revista Digital Simonsen 114

mudanças ocorrem muito rápido, é o aprender início. Tudo é claro e organizado, por isso os
a aprender que o Dr. Célio (Diretor Geral da resultados obtidos são tão bons. Isso vem
Faculdade Simonsen) fala, e isso é aplicado apresentando resultados tão concretos que na
de uma forma muito eficaz no nosso curso, empresa que dirijo tem pelo menos 50% de
que faz com que os nossos alunos apresentem alunos da Simonsen.
esse diferencial. Se o aluno não assumir um
compromisso diante do ensino-aprendizagem,
RDS: Existem dados concretos? O
ele terá dificuldades imensas nessa área, mas
que senhor poderia apresentar?
aqui tem ainda outro diferencial, os
professores dos períodos iniciais têm uma LC: Tem. Então, sou professor de
habilidade pedagógica incrível em dialogar projeto final desde quando eu entrei aqui [na
com esses alunos e fazê-los compreender Faculdade Simonsen] em 2005.
como eles devem agir para ter sucesso nesse Desenvolvemos como projeto final: softwares,
projeto. Facilitando assim todo o processo de soluções tecnológicas etc., ou seja, ideias. A
ensino-aprendizagem do nosso discente ao qualidade dos projetos vem crescendo a cada
longo de toda jornada no curso. semestre. Percebo uma mudança de uns anos
para cá. Na década de 1990 os projetos eram
fictícios, nunca ou quase nunca virariam
RDS: Quer dizer, estamos falando produto de mercado, hoje os alunos mais
daquilo que nossa Coordenadora de dedicados chegam ao último período com
Pedagogia Zélia Lubão sempre enfatiza em potencial para desenvolver projetos com
reuniões de Colegiado e NDE (Núcleo grande possibilidade de virar produto final.
Docente Estruturante), a formação
continuada... O senhor quer dizer que a
formação continuada não serve apenas aos RDS: Poderia citar algum em
professores, mas também aos alunos. Certo? execução?

LC: Isso, o tempo todo. Temos que LC: Sim... tem um que vai ser
estar sempre com a cabeça aberta para apresentado no final do ano, estive reunido
aprender novos conhecimentos e novas ainda agora com os alunos. Projeto muito
perspectivas. Então, o professor passa esse interessante: é para a construção de provas de
conteúdo tecnológico, mas também passa essa simulados com análises de resultados. O
experiência de vida, o aluno tem que estar sistema reúne questões de diversas disciplinas
sempre em constante aprendizado. Mas na e cria simulados em determinados períodos do
Simonsen a diretriz é muito clara desde o ano já pré-estabelecido. Esses simulados
Revista Digital Simonsen 115

servem para medir o grau de conhecimento do dispositivos móveis (desenvolvimento de


aluno de forma geral e específico por aplicativos para celular).
disciplina. Emite ainda relatórios gerenciais
Então, nossos alunos já começaram a
que aferem o grau de aprendizado da turma e desenvolver estes aplicativos. Ressalto mais
do aluno de maneira que a coordenação e ou o uma vez aqui o estímulo que damos aos
professor possam identificar falhas no nossos alunos com a técnica do aprender a
aprendizado. Este produto é atrativo para as
aprender. O mercado necessita muito de
escolas, pois a Coordenação pode desenvolver
profissionais dinâmicos e com grande
estratégias de simulados para atingir e aferir
capacidade de autoaprendizagem. O mercado
determinados objetivos. Ideia de nossos
de TI está em constante mudança. Posso até
alunos! relatar o fato de a minha empresa parar em
2012 de desenvolver “projetos comuns”, que é
o que chamamos de software de caixinha,
RDS: Professor, uma revolução
tipo: gerenciamento jurídico, escolar, controle
que vimos nos últimos anos, foi o
de estoque, coisas que já tem de montão no
desenvolvimento de aplicativos para
mercado. Resolvi começar a trabalhar no
celular. Temos algum trabalho aqui neste
sentido? desenvolvimento de ideias inovadoras, foi
uma mudança radical na empresa. Assim, tive
LC: Temos sim. No semestre que ter profissionais altamente “voláteis”.
retrasado um aluno desenvolveu um jogo para
Profissionais estes que tivessem condições de
o Iphone, um jogo de inteligência que
absorver mudanças de tecnologia. Somente
trabalha com mundos, mas de raciocínio
profissionais com capacidade este perfil
lógico que é bem bacana.
conseguem se adaptar a essas mudanças
No semestre passado tivemos um radicais que ocorrem em muitas empresas de
grupo que iniciou um aplicativo para outro TI.
dispositivo móvel, o Android. O aplicativo era
voltado para a área de locação.
RDS: Qual o nome da empresa?
São projetos inovadores, com as
ferramentas mais novas de mercado. Mas não LC: INFOCLAD SOLUÇÕES. Na

são as únicas para quem está na área. Para verdade deixei de ser uma “fábrica de

vocês terem uma ideia, existem três tipos de software” para virar uma “fábrica de idéias”,

programação: a programação local, a nosso slogan passou a ser: INFOCLAD -

programação WEB e a programação para FÁBRICA DE IDÉIAS. Você tem uma ideia
legal, uma ideia inovadora, a gente pode
Revista Digital Simonsen 116

trabalhar essa ideia de uma forma a tornar essa RDS: E os resultados após essa
ideia viável ou real dentro do possível. mudança nos rumos da empresa depois de
2012?

RDS: Essa empresa tem quantos LC: Estão sendo ótimos! No final de

funcionários? 2012, eu e a minha esposa – Aline Ferreira


que também é professora e ex-aluna de TI da
LC: Hoje nós temos 15 que trabalham
Simonsen – começamos a desenvolver uma
de forma direta. Todos da área de TI. Metade
idéia que tivemos por conta da total falta de
desses profissionais são alunos da tempo que temos em virtude da vida agitada.
Simonsen, algo que eu valorizo muito!
Essa idéia foi pensada para minimizar a falta
de tempo e por conseqüência nos proporcionar

RDS: Já se formaram? uma economia financeira no final do mês.

LC: Não. Um se forma agora no 2° Essa idéia virou uma ferramenta. Hoje

semestre de 2014. Normalmente eu pego os se chama FACILISTA. O que era uma

alunos do segundo período que se destacam e necessidade familiar se tornou uma coisa muito

dou oportunidade de estágio remunerado na maior. Tendo uma aceitação bastante


minha empresa. Alguns estagiários acabam interessante por várias pessoas que tem esse
deixando de ser estagiários e tendo sua mesmo perfil de vida e que quer otimizar seu
carteira assinada à medida que eles vão se tempo atrelando uma economia considerável na
destacando e se aprimorando tecnicamente. hora de realizar suas compras nos
supermercados. A nossa ferramenta chamada
FACILISTA já está atendendo a pesquisa de
RDS: E... Resultados? preços de diversos produtos e das principais

LC: Os resultados são excelentes redes de supermercados em toda a região


tanto para eles quanto para a empresa. Trata- sudeste do nosso país. Hoje temos uma média
se de uma troca, tanto eles aprendem quanto a de 400 mil acessos ao nosso site. Monitoramos
gente aprende com eles. E eu acompanho toda mais de 250 redes de supermercados. A nossa
a evolução da parte deles. É incrível! Aquele meta é chegar a todos os Estados brasileiros.
primeiro passo. Ver a evolução técnica. Queremos facilitar a vida das pessoas na hora de
Tenho muito orgulho, o que me realiza como ir ao supermercado.
professor e empresário do ramo.
Para minha esposa – Aline Ferreira –,
o sucesso se dá pelo hábito da pechincha e o
impacto da cesta básica na renda das famílias.
Revista Digital Simonsen 117

Ela sempre pontua que “a nossa missão é LC: Acredito que a ferramenta
reduzir o custo dos gastos com alimentação Facilista vem sendo recebida de forma
básica que, segundo o Dieese, representam aceitável. Basta analisarmos os números de
35,71% do rendimento mensal dos acesso. A Facilista vem crescendo em
trabalhadores. E para isso, adicionamos um números de acesso a cada dia. E, além disso,
hábito nacional, o da pesquisa de preços, vem sendo destaque, sendo citada em várias
facilitada por meio da WEB e dispositivos mídias de forma espontânea e algumas ainda
mobile”. dão o foco de utilidade pública. Aline Ferreira
e eu, idealizadores do projeto, estamos muito
Em resumo a plataforma de
contentes com os resultados. Para se ter uma
comparação de preços de produtos de
ideia, em um período de 6 meses já fomos
supermercados (FACILISTA –
citados em mais de 35 mídias. Destaco: Jornal
www.facilista.com.br) permite que os
usuários verifiquem, em tempo real, as ofertas “o Globo – Boa Chance”, CBN (duas vezes),

de seu interesse. Além disso, é possível criar, Diário do comércio, Jornal Estado de Minas,

editar e compartilhar a lista daquele churrasco site InfoMoney, site Yahoo notícias, Catraca
livre, site ABRAS, Jornal O São Gonçalo, site
com seus amigos, como também levá-la para
as compras em seu smartphone. Mundo do Marketing, Jornal “o Dia –
economia”, Jornal Brasil Econômico, Jornal “
O Estadão”, entre outros.
RDS: E está disponível em quais
plataformas?
RDS: Parabéns Professor! E para
LC: O aplicativo FACILISTA está
fechar, gostaríamos que o senhor desse um
disponível na WEB. No endereço eletrônico
conselho para nossos alunos que estão
www.facilista.com.br . Na versão mobile o
começando e atuando nessa área.
usuário pode ir a loja de aplicativos do
GOOGLE (Google Play Store) e baixar a LC: Nunca parem de estudar, estudem,

versão para smartphone Android. Em breve estudem, e quando acharem que estudaram

estaremos lançando no Windows phone e em muito, continue estudando. A área de T.I é uma

seguida no Iphone. área muito carente e eu vejo que a necessidade


de mão de obra é muito grande, e a de
profissional qualificado então maior ainda.
RDS: Professor, o senhor tem idéia Vocês podem terminar a faculdade empregados
de como a Facilista vem sendo recebida e ganhando bem, basta se dedicar. São inúmeras
pelos usuários de internet? as possibilidades. Então a dica é,
Revista Digital Simonsen 118

repetindo, estudem! Outra dica é saber o que idéia é fazer com que o aluno consiga voar
quer, conversem com os seus professores, antes que ele chegue ao final, no abismo.
pesquisem o mercado de trabalho, participem A área de TI requer estudo constante
de feiras de TI. Só assim poderão entender para que o aluno consiga manter uma
mais sobre o que esperar do futuro. Acredito atualização do seu conhecimento. É a junção
que só assim já vão começar a trilhar os seus de dois conceitos existentes para a formação de
objetivos. Não esperem acabar a faculdade um terceiro...o sucesso!
para pensar no que vocês devem fazer. Criem
vínculos com seus professores e com seus
colegas de classe. Preparem-se para que Como Citar: CIOTI, Leonardo. A Simonsen
consigam terminar a faculdade empregados e o Profissional de T.I. Entrevista. In: Revista
Digital Simonsen. Rio de Janeiro, n.1, Dez.
dentro da área que realmente se identifiquem. 2014. Disponível em:
<www.simonsen.br/revistasimonsen>
Eu dou uma ilustração muito bacana,
que é o seguinte: você tem três anos para se
formar, você entra e no final tem um abismo,
à medida que você vai andando, você vai
ganhando equipamentos para montar alguma
coisa para que você não caia no abismo. A

Professor Leonardo Cioti


Revista Digital Simonsen 119

Equipe Conselho Consultivo


Editor: Prof. Dr. Rodrigo Amaral • Prof. Ms. André Luiz Villagelim Bizerra
Vice-Editor: Prof. Ms. Fernando Gralha (FIS)
Estagiária: Grad. Camila da Cruz Teixeira • Prof . Ms. Antonio José Pereira Morais (FIS)
• Prof ª.: Ms. Carla Regina Tadeu Apóstolo
(FIS)
Corpo Editorial • Prof . Ms. Elias Nunes Frazão (FIS)
• Prof . Ms. Luiz Claúdio G. Ribeiro (FIS)
· Prof Dr. Otavio Miguez da Rocha-Leão (FIS • Prof ª.: Drª. Patrícia Woolley Cardoso L.
/ UERJ) Alves (FIS)
· Prof. Dr. Mauro Amoroso (UERJ) • Prof ª. Drª. Suelen Sales da Silva (FIS)
· Prof. Dr. Ricardo Santa Rita de Oliveira (FIS) • Prof ª. Ms. Zélia Dias Lubão (FIS)
· Prof. Dra. Rosane Cristina de Oliveira (FIS)
· Prof. Dr. Sérgio Chahon (FIS)
Siglas:
FIS: Faculdades Integradas Simonsen
UERJ: Universidade do Estado do Rio de
Janeiro
UCAM: Universidade Cândido Mendes

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