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ANO 1, N° 1,

CONEXÕES INTERNACIONAIS PROBLEMAS GLOBAIS


JUL-DEZ. 2020

Fragilidade Urbana: Experiências de


Práticas Humanitárias na América
Latina
Nayane Alencar¹

RESUMO
Inseridos no debate sobre as novas guerras, pesquisadores introduziram na disciplina
de relações internacionais, no final da década de 1990, a discussão sobre a dimensão
urbana dos conflitos contemporâneos. Essa discussão abriu caminhos para pesquisas
compartilhando a percepção de que o reconhecimento da dimensão urbana dos
conflitos contemporâneos é fundamental para sua compreensão. A cidade é o
espaço onde se materializam os fluxos transnacionais legais e ilegais, formais e
informais, tangíveis e intangíveis, que se configuram os desafios da governança
global. Entre as linhas de pesquisa que surgem nesse contexto, está o debate sobre a
fragilidade das cidades. Logo, procura-se demonstrar por evidências empíricas que as
cidades frágeis são um novo lugar para o humanitarismo, que incorpora-se ao
processo do governo humanitário por meio das ações realizadas pelas organizações
humanitárias contra as cidades frágeis da América Latina.

Palavras-chave: Cidades Frágeis; Estados Frágeis; Ajuda Humanitária.

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INTRODUÇÃO A ordem internacional foi constituída


em cima de uma base do Estado
A introdução da disciplina de
Nacional, parte da sustentação que ele
Relações Internacionais foi realizada
oferece tem a ver com a capacidade de
no final dos anos 1990 por
projetar poder dentro de suas
pesquisadores envolvidos no debate
fronteiras. Na percepção de mundo, a
sobre as novas guerras. Sucedeu-se
primeira função do Estado é garantir a
mais tarde, a discussão e inserção da
ordem internamente para se ter
dimensão urbana dos conflitos
estabilidade, algo que não é possível
contemporâneos. Esse debate
para os Estados que são frágeis.
inovador acerca da fragilidade urbana
(FUKUYAMA, 2005)
é um dos diversos caminhos de busca
que surgem dentro da estrutura do Entretanto, um Estado falido/frágil é
relacionamento entre cidades e aquele que não tem a capacidade de
conflitos na atualidade. exercer suas funções mínimas,
ocasionando assim, uma turbulência
Na discussão das cidades frágeis,
no cenário internacional, pois os
procura-se ordenar relevante e
mesmos geram caos, terrorismo,
analiticamente a compreensão das
migrações e assassinato em massa.
consequências dos atos humanos,
Sendo assim, para impedir a falência
como a violência e a desigualdade.
dos Estados, agir é um imperativo
Esse mesmo ato, pode contribuir na
moral e hegemônico. (ROTBERG, 2002;
fundamentação de tornar os espaços
FUKUYAMA, 2005)
urbanos, em novos centros de
humanitarismo internacional. Nesse O combate à falência se dá, para os
contexto, o presente artigo tem o autores, mediante a promoção dos
objetivo de demonstrar o auxílio da bens públicos. A falência se deve à
apropriação literária e do surgimento incapacidade de promovê-los na forma
de novas perspectivas que de bens públicos internacionais, por
proporcionam a sustentação às exemplo, que exigem coordenação,
práticas inovadoras, especialmente em cooperação e tomada de decisão
áreas urbanas anteriormente específica, para sustentar instituições
inacessíveis à ação humanitária, como na reconstrução de Estado, na
a América Latina, por exemplo. necessidade de caracterização cultural
apropriada, na criação de demandas
internas que sejam legítimas e que
ESTADOS FRÁGEIS E sustentem as instituições, no combate
LEGITIMIDADE ao terrorismo ou aquecimento global.
(MANDELBAUM, 2002)

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A análise da fragilização de um a solução para o crime organizado


Estado original a partir da noção de transnacional esteja na ideia de
globalização surge como um processo flexibilizar a noção de soberania,
de aumento da porosidade das fortalecendo as organizações
fronteiras nacionais, tais como: no multilaterais, inclusive aquelas
campo político, econômico e cultural vinculadas à inteligência ou mesmo à
de imposição e projeção de valores, repressão, para que possam ajudar o
que neste sentido entra em choque Estado.
com a autonomia dos Estados Logo, a incapacidade dos Estados
independentes. (HOBSBAWM, 2007) frágeis, de garantir a ordem interna e a
O processo de globalização quebra estabilidade, abrem portas para
hierarquias tradicionalistas. Neste impactos midiáticos que chamem a
cenário, é permitido uma atenção do governo, como o
representação em um nível mais terrorismo, por exemplo. Neste
transnacional do que nacional, contexto, a noção de soberania, o
ajudando o surgimento de novos monopólio da violência e a
temas e atores na agenda organização da ordem internacional se
internacional, como por exemplo: meio conectam às análises de fragilização
ambiente e direitos humanos, que do Estado, que por intermédio da
ganham muito espaço com a globalização, aumentam a porosidade
representação da sociedade civil. das fronteiras nacionais e a quebra
O surgimento de novas ameaças é hierarquias tradicionalistas, trazendo
uma consequência negativa da quebra consequências negativas como crime
de hierarquias, além disso as redes organizado transnacional, que
deste cenário são interligadas e se desafiam aqueles que tendem a
traduzem: no terrorismo global, nas impedir suas ações, o governo. Assim
redes e crimes organizados para reduzir as causas que levam ao
transnacionais. O crime se contrapõe colapso Estatal, no contexto da
às forças estabelecidas pelo governo, fragilidade urbana o auxílio
às de mercado, ao desejo de consumo. humanitário pode ser um grande
aliado.
Na medida em que o crime se tornou
uma empresa transnacional, o A conexão entre Relações
combate ao crime também precisa se Internacionais e Estados Frágeis está
transformar em uma empreitada nos estudos sobre fragilidade urbana
transnacional. Neste sentido, segundo no que tange a literatura das fraquezas
Naím, é necessário repensar o de uma nação, tais como a frágil
fenômeno para combatê-lo, pois talvez condição das estruturas de autoridade,
suas causas e consequências
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complexas, que são questões repleto de vulnerabilidades, que são


significativas na área da segurança. acentuadas no momento em que a
Este debate, surge como uma cidade se torna repositório de um
perspectiva analítica destinada a número significativo de pessoas, o que
compreender os problemas do resulta em um processo de
desenvolvimento urbano, urbanização sem crescimento
principalmente no âmbito da (NORTON, 2003).
desigualdade e insegurança. (MUGGAH As cidades repositórias, enfim, se
e SAVAGE 2012). tornam espaços marcados pela
A mudança da percepção de fragilidade manifestada na
fragilidade da esfera nacional para a insegurança e nos altos índices de
urbana significa que as práticas violência na forma de atores não
humanitárias podem ser estatais, como: guerrilhas; gangues;
reconfiguradas para atuar em grupos terroristas; facções criminosas;
contextos distantes dos conflitos e organizações transnacionais. Nesse
convencionais, que são os estágios sentido, a fraqueza de atores estatais
tradicionais do humanitarismo (CICV ou a força de atores não estatais,
2013). Na opinião das agências de servem como indicadores de que o
ajuda estatais e não estatais dos países Estado falhou em garantir os aspectos
mais desenvolvidos, essas conclusões institucionais de um "estado
implicam a revisão das doutrinas de weberiano" (NAY, 2012).
segurança e da ajuda humanitária A fragilidade das cidades é,
(SASSEN, 2010; GRAHAM, 2009). simultaneamente, causa e
Assim, as ações realizadas por consequência da fragilidade do Estado.
organizações humanitárias em relação Ambas se co-constituem. Sendo assim
às cidades frágeis da América Latina possuem dificuldades, tais como:
são integradas ao progresso de um exercer controle sobre território; tomar
governo humanitário, entretanto cabe decisões coletivas; prover serviços
ressaltar que quando as agências públicos, oferecer oportunidade de
humanitárias atuam em cidades crescimento econômico, atenuando
frágeis em contextos de paz formal, assim, a desigualdade.
não localizadas em zonas de guerra. O julgamento da fragilidade poderia
A fragilidade urbana pode ser servir como um discurso legitimador
explicada a partir dos fluxos para intervenções humanitárias
populacionais, pois quando grandes internacionais operando através de um
comunidades se deslocam para as sistema de governança composto das
cidades, deparam-se com um espaço potências ocidentais. Esses
mecanismos de governança não con-

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sistem apenas em operações militares, nas cidades como Medellín, Rio de


mas também unem organizações Janeiro e Tegucigalpa (MUGGAH 2015).
internacionais, agências bilaterais O CICV lançou um projeto piloto no
ocidentais e organizações nacionais Rio de Janeiro. O objetivo é proteger
(NAY, 2012). pessoas mais vulneráveis e afetadas
Os Estados da América Latina têm pela violência em sete favelas, com um
particularidades em forma de foco particular na juventude e na
disfunção no tocante às população carcerária - componentes
responsabilidades de forças que deram essenciais da dinâmica da violência
origem aos países ocidentais. As armada. O CICV atua nos setores mais
questões relacionadas com o pobres dessas favelas, que não são
colonialismo, como as instituições facilmente acessados pelos serviços
financeiras internacionais, e as estatais e onde os habitantes estão em
agências de desenvolvimento podem situações precárias e às vezes ilegais
contribuir na formação e manutenção (HARROFF-TAVEL, 2012).
da fragilidade (NAY, 2012). A base para intervenções
A segurança humana deve significar humanitárias “é o respeito pela vida e
a liberdade de indivíduos e pela dignidade'', o que significa que
comunidades, entretanto elas são qualquer território pode ser elegível
ameaçadas por conflitos e violência à para ação internacional. No Rio de
sua integridade ou sobrevivência. Ou Janeiro, não há guerra, legalmente
seja, indivíduos e comunidades são, falando. No entanto, existem
idealmente, cidadãos porque são elementos sérios que causam
titulares de direitos na medida em que situações humanitárias e elementos de
são incorporados em estados-nação e conflito. Entre eles, está a existência de
em uma comunidade internacional grupos dedicados às organizações de
que respeite os princípios da violência, como os comandos e as
democracia. (KOONINGS, KRUIJT, milícias. A metodologia para chegar às
2007). comunidades é a mesma usada em
conflitos armados: através da
As causas e consequências da notificação e do estabelecimento de
fragilidade urbana estão recebendo um diálogo com as autoridades locais,
atenção de algumas agências neste caso, os próprios comandos
humanitárias. Por mais de meia (SUZIN, 2009).
década, o Comitê Internacional da
Cruz Vermelha (CICV) testou novos Em casos como o do Rio de Janeiro,
programas para abordar as chamadas há o objetivo de criar laboratórios para
"outras situações de violência" nas

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o desenvolvimento de boas práticas. estabilidade e reconstrução correm o


Nesse contexto, os doadores risco de conferir a legitimidade no
internacionais são muito importantes - estabelecimento de práticas que
agências de cooperação estatal ou constroem uma ordem que seja do
fundações filantrópicas -, pois interesse das grandes potências e
demonstram um crescente interesse instituições internacionais.
em intervir em cidades frágeis. Um Ao identificar uma cidade como
exemplo é o Departamento para o frágil, a comunidade internacional por
Desenvolvimento Internacional do sua vez auxilia na fragilização urbana,
Reino Unido (DFID), principal órgão de como é o caso da Cruz Vermelha no
ajuda humanitária do governo Rio de Janeiro. Assim, os contextos
britânico (MSF, 2012). relacionados à legalidade e construção
Esse financiamento em prol do ou manutenção da legitimidade,
desenvolvimento aumenta a surgem das novas práticas de ajuda
conscientização entre analistas e humanitária.
pesquisadores na tangente da
violência, pois ela se torna uma Notas
percepção de ameaça para os grandes 1. Discente em Relações Internacionais
doadores. Entretanto, a produção de na Universidade Católica de Brasília.
Email: nayyac3@gmail.com
conhecimento no contexto da
fragilidade urbana alimenta o que
Fassin (2012) define como a 'nova Referências
configuração semântica' que apoia a
razão humanitária. FUKUYAMA, Francis. Construção de
Estados: governo e organização no
CONCLUSÃO século XXI. Rio de Janeiro: Rocco,
O conceito de "cidades frágeis" foi 2005, p. 123-153.
proposto com um viés duplo. Por um
lado, se o conhecimento construído HOBSBAWN, Eric. Globalização,
em torno dessa categoria inovadora democracia e terrorismo. São Paulo:
revela a dinâmica da violência e da Companhia das Letras, 2007, p. 121-137.
desigualdade nos ambientes urbanos
circundantes, por outro, também pode MANDELBAUM, Michael. The
ser usado como parte da estrutura do Inadequacy of American Power.
discurso que apoia novas intervenções. Foreign Affairs, vol. 81, n° 5, p. 61-73,
A emancipação da mente para September/October, 2002.
articular o conceito de estabilidade e

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MIKLOS, Manoela; PAOLIELLO, Tomaz.


Cidades Frágeis: uma Perspectiva
Crítica sobre o Repertório de Novas
Intervenções Humanitárias Urbanas.
São Paulo, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. (2017), vol.39,
n.3, p. 545-568. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/cint/v39n3/0
102-8529-cint-2017390300545.pdf

MIKLOS, Manoela Salem. A dimensão


urbana dos conflitos
contemporâneos e as cidades frágeis:
novas perspectivas e práticas. 2015. 176
p. Tese (doutorado) - Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho, Faculdade de Filosofia e
Ciências, 2015. Disponível em:
http://hdl.handle.net/11449/132138

NAÍM, Moisés. The five Wars of


Globalization. Foreign Policy, Jan./Feb.
2003, p. 29-37.

ROTBERG, Robert I. Failed States in a


World of Terror. Foreign Affairs, vol. 81,
n° 4, p.127-140, July/August 2002.

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