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“Raramente encontramos uma combinação tão rica de

teologia histórica e apaixonada argumentação exegética.


Trata-se de uma defesa calorosa, pastoral e rigorosa das as-
sertivas centrais da Reforma. Inclui ainda uma defesa dessa
herança comum sob as perspectivas distintas anabatista/batis-
ta, reconhecendo importantes diferenças entre os reformadores
magisteriais. Por ambas as razões, o livro Por que a Reforma ain-
da é importante representa relevante contribuição aos debates
continuados na igreja global.”
Michael Horton, professor de Teologia Sistemática e
Apologética da cadeira Gresham Machen, Seminário
Westminster Califórnia

“Os autores Michael Reeves e Tim Chester deram uma


sólida contribuição à comemoração da Reforma com seu rela-
to claro sobre o que os principais reformadores, especialmente
Martinho Lutero e João Calvino, ensinavam sobre Jesus, a graça
de Deus, a Escritura, os sacramentos e outros temas importan-
tes. Com a aproximação do aniversário de quinhentos anos da
fixação das Noventa e Cinco Teses de Lutero, este livro oportu-
no ressalta a importância vital do que ele e outros dos primeiros
protestantes dedicaram a vida a ensinar.”
Mark Noll, professor emérito de História da cadeira Fran-
cis A. McAnaney, Universidade de Notre Dame; Editor de
Protestantism after 500 Years
“Reeves e Chester explicam com clareza e sem rodeios a
importância vital da Reforma, resumindo sua mensagem e de-
monstrando sua relevância permanente. Este livro, Por que a
Reforma ainda é importante, pode ser um tomo de apenas cerca
de duzentas páginas, mas vibra com sua vitalidade. Brilhante
realização de dois modernos doutores da igreja, trata-se de um
grande livro pequeno.”
Sinclair B. Ferguson, professor de Teologia Sistemática,
Seminário Redeemer, Dallas

“Se ainda há alguma dúvida sobre se a Reforma ainda tem


importância ou se a igreja precisa de reforma contínua, Reeves e
Chester a dissipam. De maneira atraente e sábia, este livro ofere-
ce sólidas razões para ser protestante, oferecendo relatos bíblica
e historicamente fiéis de suas principais formulações doutriná-
rias. No momento em que os cristãos protestantes de todo o
mundo celebram os quinhentos anos da Revolução de 1517,
encontram aqui forte encorajamento. Semper reformanda!”
Sean Lucas, professor de História da Igreja, Seminário Te-
ológico Reformado, Jackson, Mississippi; Pastor titular da
Primeira Igreja Presbiteriana de Hattiesburg, Mississippi
Este eBook é
um trecho de:

POR
QUE A
REFORMA
AINDA É
IMPORTANTE?
MICHAEL REEVES
& TIM CHESTER
R332p Reeves, Michael (Michael D.)
Por que a Reforma ainda é importante / Michael Reeves e
Tim Chester ; [tradução: Elizabeth Gomes]. – São José dos
Campos, SP: Fiel, 2017.

248 p.
Tradução de: Why the Reformation still matters.
Inclui referências bibliográficas e índices.
ISBN 9788581324081

1. Reforma protestante. 2. Teologia dogmática – Obras


populares. 3. Igrejas reformadas – Doutrinas. I. Chester,
Tim. I. Título.

CDD: 270.6

Catalogação na publicação: Mariana C. de Melo Pedrosa – CRB07/6477

Por que a reforma ainda é importante? Todos os direitos em língua


portuguesa reservados por Editora Fiel
Traduzido do original em inglês da Missão Evangélica Literária
Why the Reformation Still Matters Proibida a reprodução deste livro por quaisquer
Por Michael Reeves e Tim Chester meios, sem a permissão escrita dos editores, salvo
em breves citações, com indicação da fonte.
© Copyright 2016 Michael Reeves e Tim Chester

Diretor: James Richard Denham III


Publicado por Crossway Editor: Tiago J. Santos Filho
1300 Crescent Street Tradução: Elizabeth Gomes
Wheaton, Illinois 60187 Revisão: Shirley Lima
Diagramação: Rubner Durais
Copyright © Editora Fiel 2016 Capa: Rubner Durais
Primeira Edição em Português: 2017 ISBN: 978-85-8132-408-1

Caixa Postal 1601


CEP: 12230-971
São José dos Campos, SP
PABX: (12) 3919-9999
www.editorafiel.com.br
In memoriam
Edward Coombs
Ele amou e viveu por Jesus Cristo.
O mundo não era digno dele.
Sumário
Abreviaturas
Introdução
Escritura: Como Deus fala conosco?
Abreviaturas

Calvino, Comentário Calvin’s Commentaries (Novo Testamento).


Editado por D. W. Torrance e T. F. Torrance.
12 vols. Edimburgo: Saint Andrew Press,
1959-1972

Calvino, Institutas Institutas da religião cristã. Editado


por John T. McNeill. Traduzido por
Ford Lewis Battles. 2 vols. The Library
of Christian Classics 20-21. Filadélfia:
Westminster; Londres: SM, 1961

Obras de Lutero Luther’s Works: American Edition. Editado


por Jaroslav Pelikan e Helmet T. Lehmann,
55 vols. Filadélfia: Fortress; St. Louis, MO:
Concordia, 1955-1987
Introdução

Há quinhentos anos, um jovem monge alemão saiu de seu


monastério e foi caminhando, pelo vilarejo de Wittenberg, até a
igreja do castelo. A porta da igreja funcionava como uma espécie
de mural público. Ali, o monge afixou um cartaz com 95 declara-
ções – ou teses. Seu nome era Martinho Lutero (1483-546).
As 95 teses representaram um convite para o debate pú-
blico. Era a versão do século XVI de um blog provocador,
convidando para uma discussão na rede. A provocação foi en-
tre o frade dominicano Johann Tetzel (1465-1519) e o amigo
próximo e colega de Lutero, Philip Melanchthon (1497-1560),
que descreveu Tetzel como “um bajulador muito audaz”.1 “Um
chato atrevido”, assim poderíamos dizer nos dias de hoje. À
época, a maioria das pessoas acreditava em purgatório, um lu-
gar de tormento para onde as pessoas iam depois da morte, a
fim de purgar seus pecados antes de sua promoção para o céu.
Tetzel vendia indulgências –promessas que vinham do papa
no sentido de diminuir o tempo de purgatório. “Assim que a
moeda cai no cofre, sobe a alma do purgatório”, esse era o re-
frão da propaganda. As 95 teses de Lutero protestavam contra
1 Philip Melanchthon, The Life and Acts of Martin Luther (1549). Em http://www.ilnet.org/pub/re-
sources/text/wittenberg/melan/lifea-01 .txt. Acesso em: 24 fev. 2016.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

essas indulgências e contra a preocupação exagerada da igreja


em relação à riqueza. Não foi uma série de declarações especial-
mente radicais, certamente não para os padrões de pensamento
que, mais tarde, Lutero viria a demonstrar. Elas não indagavam
acerca da existência do purgatório, nem sobre o valor limitado
das indulgências. Mas atingiram a igreja onde ela se encontrava
mais vulnerável: no bolso.
O arcebispo local fez uma queixa ao papa. Mas tal opo-
sição tornou Lutero ainda mais resoluto. Começou a atacar a
infalibilidade do papa. Lutero queimou a bula papal que o ame-
açava de excomunhão. O imperador Carlos V conclamou uma
conferência na cidade de Worms. Os amigos de Lutero o defen-
deram habilmente, mas o imperador, por fim, chamou Lutero
para participar pessoalmente, com a promessa de proteção. Ali
estava Lutero, com todo o sistema da igreja a postos contra ele.
Lutero, então, disse:

Pela misericórdia de Deus, peço a vossa Majestade Im-


perial e vossos Ilustres Senhores, ou a qualquer um que
tenha representatividade, que testifiquem e refutem meus
erros, contradizendo-os com o Antigo e o Novo Tes-
tamentos. Estou pronto, se for melhor instruído, a me
retratar de qualquer erro, e serei o primeiro a atirar meus
escritos na fogueira.

E o advogado imperial respondeu em tom de reprovação:

Tua resposta não vem ao caso. Não deverá haver questio-


namento das coisas que os Concílios da Igreja já tenham
Introdução

condenado e sobre as quais as decisões já tenham sido


tomadas [...] Dá-nos uma resposta clara a esta questão:
Estás preparado a te retratar ou não?

Lutero, então, respondeu:

Vossa Majestade Imperial e os Senhores Lordes exigem


uma resposta simples. Aqui está ela, clara e direta. A não
ser que, pelas Escrituras, eu esteja convicto do erro [...] e
que minha consciência esteja cativa pela Palavra de Deus:
não posso e não vou me retratar de nada, pois fazer isso
contra a nossa consciência não é seguro nem é uma opção
para nós. A esse respeito, tomo minha firme posição. Não
posso fazer de outra forma. Ajudai-me, Deus. Amém.2

As ideias de Lutero se espalharam por toda a Europa,


impulsionadas pela imprensa recém-inventada. Em muitos
lugares, essas ideias encontraram ouvintes bem-dispostos. A
evidente corrupção da Igreja Católica despertara em muitos
o anseio por mudanças, e um renovado interesse pelo antigo
conhecimento, associado à Renascença, conduziu a uma redes-
coberta das Escrituras.
Na ocasião, já na cidade suíça de Zurique, Ulrico Zuínglio
(1484-1531) introduzia a reforma com base em sua leitura
da Bíblia, que ele passou a considerar a suprema autoridade
em todas as questões. A princípio, suas reformas foram bem
aceitas pelas autoridades católicas, mas, em 1523, depois de

2 Martinho Lutero, “The Diet of Worms: Luther’s Final Answer”, citado em Henry Bettenson e Chris
Maunder, Documents of the Christian Church, 4th ed. (Oxford: Oxford University Press, 2011), 214.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

duas disputas em público, a cidade apoiou Zuínglio e rompeu


relações com Roma.
Na Inglaterra, William Tyndale (1494-1536) foi influen-
ciado pelas ideias de Lutero. Servindo como capelão em Little
Sodbury Manor, perto de Bath, ele ficou chocado com a igno-
rância do clero local. A um, ele proferiu esta célebre frase: “Se
Deus poupar minha vida, antes que se passem muitos anos, farei
com que o rapaz que puxa o arado conheça mais das Escrituras
do que tu”.3 Tyndale partiu para Londres, esperando receber o
apoio da igreja em seu plano de traduzir a Bíblia para o inglês.
Mas o bispo de Londres não estava interessado nisso, porque
não queria que as ideias luteranas se espalhassem pela Ingla-
terra. Cresceu, então, a oposição a Tyndale e, finalmente, ele
deixou a Inglaterra para levar uma vida de fugitivo na Alemanha
e no que hoje é a Bélgica. Tyndale, por fim, foi traído e morreu
como mártir em 1536, porém não sem antes de haver traduzido
todo o Novo Testamento e boa parte do Antigo Testamento.
Em 1536, João Calvino (1509-1564) passava por Genebra,
a caminho de Estrasburgo. Mas o líder da igreja de Genebra,
Guilherme Farel (1489-1565), persuadiu-o a ali permanecer, e
a cidade deu-lhe emprego como professor das Escrituras. Farel
era um reformador, mas faltava-lhe o talento da organização.
Assim, Calvino assumiu a liderança. Inicialmente, os cidadãos
de Genebra não estavam certos de gostar da visão compreen-
siva de Calvino acerca de uma cidade cristã e, em 1538, ele foi
expulso. Porém, três anos mais tarde, Calvino foi novamente
designado para o cargo e passou o resto da vida fazendo de
3 William Tyndale, The Works of William Tyndale, 2 vols. (Cambridge: Parker Society, 1848; repr., Edim-
burgo: Banner of Truth, 2010), 1:xix.
Introdução

Genebra uma força poderosa de ideias reformadas e enviando


pastores por toda a Europa para plantar igrejas reformadas.
Na Inglaterra, as origens da Reforma eram tanto políticas
como religiosas. Henrique VIII (1491-1547) queria divorciar-se
de sua primeira esposa, Catarina de Aragão (1485-1536), porque
ela falhara em lhe dar o filho e sucessor que tanto almejava. No
entanto, após muita prevaricação, o papa recusou-se a sancionar o
divórcio. Não ajudou muito o fato de o papa estar comprometido
com o imperador Carlos V, que, por acaso, também era sobrinho
de Catarina. Assim, em 1534, Henrique rompeu com Roma e se
fez chefe da Igreja da Inglaterra. Henrique queria manter a teolo-
gia católica longe da autoridade romana.
No entanto, embora as origens da Reforma na Inglaterra pu-
dessem ser políticas, muita gente se mostrava simpática às ideias
de Lutero. O arcebispo de Henrique, Thomas Cranmer (1489-
1556), sentia forte inclinação pela Reforma Protestante. Seu livro
de oração, o Livro de Oração Comum, compôs a teologia refor-
mada para a liturgia semanal das igrejas paroquianas por toda a
Inglaterra. Nos anos subsequentes, a Inglaterra estava na gan-
gorra entre o protestantismo e o catolicismo, até que Elizabeth I
(1533-1603) estabeleceu no país sua versão peculiar inglesa do
protestantismo (versão que decepcionou os puritanos).
Lutero postou suas 95 teses em 31 de outubro de 1517. A
Reforma foi um movimento complexo com muitos tributários.
Certamente, não foi trabalho de um só homem nem mesmo
de um só movimento. No entanto, a data de 31 de outubro de
1517 passou a ter um significado simbólico. Mais que qualquer
outro evento, esse foi o disparo inicial que fez tudo o mais co-
meçar a se mexer.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

Porém, atualmente, quinhentos anos depois, será que a


Reforma ainda é importante?
A reforma é importante porque essa é a nossa história.
Seja você anglicano, batista, dos Irmãos Unidos, congregacio-
nal, independente, luterano, menonita, metodista, pentecostal,
presbiteriano ou reformado, essas são as suas raízes. Sua história
pode ser traçada de volta a esses acontecimentos que tiveram
início quinhentos anos atrás.
Mas será que os reformadores se assemelham àqueles avós
bonzinhos, mas que nos causam algum embaraço? Será que fa-
zem parte de uma história que preferiríamos deixar de lado ou
seguramente ignorar? Ou talvez eles sejam heróis que preferi-
mos admirar a uma distância segura?
As sensibilidades da Reforma certamente parecem es-
tranhas para as pessoas modernas. Será que a Europa foi
lançada em turbulência por debates referentes ao fato de a
justiça ser “imputada” ou “infundida”, a primeira uma decla-
ração de que estamos bem com Deus e a outra simplesmente
um novo poder para obter a aprovação de Deus? As pesso-
as realmente entraram em conflito por ideias como sermos
salvos pela fé somente ou pela combinação de fé e obras?
Houve realmente uma época em que a teologia era assim tão
importante para as pessoas?

Será que a Reforma é uma má notícia?


Recentemente, eu (Tim) assistia a um documentário da te-
levisão em que o apresentador disse: “De muitas formas, a
Reforma, acompanhada da amargura e da divisão que repre-
senta, faz-nos lembrar dos piores aspectos de nossos instintos
Introdução

religiosos”.4 Como eu consigo rebobinar minha televisão, foi


possível certificar-me de que eu tinha ouvido direito. Palavras
assim retratam a atitude de muitas pessoas. A religião é uma
coisa do passado, algo misterioso, as pessoas supõem. E, ao lado
dessa suposição, segue outra: afirmar conhecer a verdade e de-
safiar a percepção de verdade de outras pessoas constituem um
ato ridículo de arrogância. Discutir religião seria falta de amor,
uma negação daquilo que você afirma seguir.
Com certeza, é possível agir de uma maneira que negue o
evangelho que professamos e, algumas vezes, os líderes da
Reforma foram responsáveis por fazer exatamente isso. Mas
o pressuposto por trás dessas atitudes é que não valia a pena
fazer as divisões da Reforma – afinal, a verdade não importa
realmente.
Mas vamos considerar o que estava em jogo. No cerne,
a Reforma era uma disputa sobre como conhecer a Deus e
como estar em paz com ele. Em jogo, estava nosso futuro
eterno – uma escolha entre céu e inferno.
Ainda hoje é assim. O fato de nosso mundo moderno
considerar alheia a Reforma diz tanto sobre nós como fala
sobre os reformadores. Expõe nossa preocupação com este
mundo material e esta vida momentânea. Se existe um mundo
além deste, e vida além desta vida, isso não nos parece muito
importante – longe dos olhos, longe do coração. Trata-se de
uma posição bizarra para se assumir quando há tanto em jogo.
Para os reformadores, não havia necessidade mais premente do
que a segurança diante do juízo divino, e não havia nada mais
4 Ifor ap Glyn, “Pagans and Pilgrims: Britain’s Holiest Places”, episódio 1, BBC4, primeiro broadcast em
7 mar. 2013.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

amável do que proclamar a mensagem da graça que concedeu


vida eterna aos que responderam pela fé.
A Reforma ainda é importante porque a vida eterna ainda
é importante.

A Reforma seria uma notícia ultrapassada?


A Reforma ainda é importante porque os debates entre cató-
licos e protestantes não se extinguiram. Hoje, existem vozes
afirmando que a Reforma acabou. Qualquer diferença subs-
tancial entre católicos e protestantes, dizem, se apagou ou foi
tomada por preocupações mais prementes. Não faz sentido, de
acordo com essa linha de pensamento, viver como se ainda es-
tivéssemos empenhados nas disputas do século XVI.
Em 1994, vários líderes evangélicos e católicos assinaram
um documento intitulado Evangélicos e Católicos Juntos. Em-
bora notassem diferenças que insistiam em permanecer, esse
documento controverso clamava por aceitação mútua e teste-
munho em comum. Entre os signatários, estava o historiador
evangélico Mark Noll. Em 2005, ele publicou um livro (em
coautoria com Carolyn Nystrom) intitulado Is the Reformation
Over?. Ele reconhece que a resposta é complexa. Mas Noll diz
que, na justificação, “muitos católicos e evangélicos agora cre-
em praticamente na mesma coisa”.5 Embora Noll identifique a
natureza da igreja como uma diferença que continua, afirma:

Se for verdade, como repetidamente afirmado por pro-


testantes conscientes de seu ancoradouro em Martinho

5 Mark A. Noll e Carolyn Nystrom, Is the Reformation Over? An Evangelical Assessment of Contemporary
Roman Catholicism (Grand Rapids, MI: Baker, 2005), 231.
Introdução

Lutero ou João Calvino, que iustificatio articulus stantis vel


cadentis ecclesiae (a justificação é o objeto pelo qual a igre-
ja permanece de pé ou cai), então a Reforma acabou.6

Destacando numerosos exemplos de cooperação, Noll diz


que as diferenças entre católicos e evangélicos são “infinitesi-
mais” em comparação às diferenças que ambos compartilham
com o cristianismo liberal e a cultura secular.7
É claro que muita coisa mudou nos últimos quinhentos
anos. Em muitas questões morais, como, por exemplo, a do
aborto, católicos e protestantes encontram-se lutando por uma
causa comum. Muito também tem mudado dentro do catoli-
cismo e do protestantismo. Ambos foram impactados pelo
modernismo e o pós-modernismo. Se essas diferenças estão
se tornando cada vez mais estreitas, frequentemente é porque
muitos católicos não seguem mais o ensino papal oficial, e mui-
tos protestantes estão perdendo o entendimento bíblico obtido
na Reforma. Precisamos de um foco mais forte, e não enfraque-
cido, da teologia reformada.
Católicos e protestantes do século XVI reconheciam ter
muita coisa em comum. E também estavam certos de que as
diferenças entre eles eram fundamentais. Essas diferenças
não podiam ser ignoradas naquela época, e não podem ser
ignoradas agora. As linhas divisórias da Reforma não desapa-
receram. Nossa contenda é que, em algumas questões-chave,
como justificação e Escritura, as questões permanecem e não
são insignificantes.
6 Ibid., 232.
7 Ibid., 230.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

Porém, não é apenas por causa da discussão com o cato-


licismo que a Reforma continua a ter importância. A Reforma
sempre teve a intenção de ser um projeto contínuo. Um de seus
ditames era semper reformanda, expressão geralmente traduzida
por “sempre reformando”; uma tradução melhor, contudo, seria
“sempre sendo reformada” (pela Palavra de Deus). Isso descreve
não um movimento para a frente, para um horizonte não defini-
do, mas um movimento contínuo de volta à Palavra de Deus.
Neste livro, delineamos algumas das principais ênfases da
Reforma, examinando sua relevância contemporânea. Analisa-
mos questões do tipo: Como obter a aprovação de Deus, Como
vencer o pecado em nossa vida, Como Deus nos fala, Como
saber o que é verdade, Por que tomamos pão e vinho, Em qual
igreja devemos congregar, Que diferença Deus faz nas segundas-
-feiras pela manhã ou Que esperança temos em face da morte.
Defendemos que, depois de quinhentos anos, as igrejas
evangélicas seriam bem servidas pela redescoberta da teologia
reformada. O pensamento dos reformadores não representa
apenas um desafio à prática católica; também desafia muitos
aspectos da prática evangélica. Os Reformadores não são avós
que nos causam embaraço; são parceiros vitais desse diálogo e
têm o potencial de renovar e revigorar nossas igrejas.
Escritura
Como Deus fala conosco?

Em junho de 1519, Lutero viajou a Leipzig para debater suas


ideias emergentes com um dos principais teólogos da igreja ca-
tólica, Johann Eck. Tratava-se mais de um debate público do
que de um julgamento. No entanto, Lutero foi acompanhado
por duzentos estudantes armados com machados para a bata-
lha. O que planejavam fazer, se é que pretendiam fazer algo, isso
não está muito claro!
Eck acusou Lutero de advogar o ponto de vista de João Hus.
Hus fora condenado, cem anos antes, no Concílio de Constan-
ça e queimado na fogueira. Lutero continuava protestando que
ele não era como Hus, e Eck continuou a pressioná-lo. Então,
fizeram uma pausa nos debates para almoçar.
Nesse intervalo, Lutero foi até a biblioteca da universidade
para reunir maiores informações a respeito de Hus. Ele examinou
o relato do Concílio e descobriu, surpreso, que Eck estava certo:
Lutero defendia a mesma posição de Hus. Assim, no início da ses-
são da tarde, para o assombro de todos, Lutero declarou: “Entre os
artigos de João Hus, encontro muitos que são claramente cristãos e
evangélicos, os quais a Igreja universal não pode condenar”.18 O du-
18 D. Martin Luthers Werke: Kritische Gesamtausgabe (Weimar: Böhlau, 1833-), 2:279. Citado em Roland
Bainton, Here I stand: Martin Luther (Oxford: Lion, 1978), 115-16.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

que George, que presidia o debate, então, deixou escapar a seguinte


exclamação: “A praga!”. Alguns dos apoiadores de Hus haviam feito
uma grande agitação nas terras de George em retaliação pela exe-
cução de Hus. George não desejava ver esse erro repetir-se.
Foi um momento dramático, e Lutero certamente não era
alheio a um pouco de melodrama. Mas isso exemplificava o
problema que Lutero enfrentava cada vez mais. Eck havia sido
sagaz. Não entrara no debate com Lutero sobre o significado do
Novo Testamento. Talvez ele já suspeitasse que iria perder o de-
bate. Em vez disso, argumentou que Lutero estava se alinhando
a alguém que a igreja havia condenado como herege. Tornou-a
uma questão de autoridade da igreja. Isso, então, expôs o di-
lema de Lutero. Lutero começara desejando reformar a igreja
católica. Mas Eck havia mostrado que Lutero defendia uma po-
sição que a Igreja já condenara. Então, para Lutero, a autoridade
da Igreja e a autoridade das Escrituras estavam em confronto
direto. Ele teria de escolher entre ambas. E escolheu a Escritura.
O debate continuou com Eck afirmando que Hus era he-
rege e Lutero dizendo que nem tudo que Hus dizia deveria ser
condenado como heresia. Por fim, Lutero chegou ao ponto
central: “Deixem-me falar em alemão. Estou sendo mal-enten-
dido pelo povo. Assevero que um Concílio às vezes erra e, vez
ou outra, pode errar, e tal concílio não tem autoridade para es-
tabelecer novos artigos de fé”. Eck, então, respondeu: “Você é
o único que sabe alguma coisa? Com exceção de você, toda a
Igreja estaria errada?”, ao que Lutero replicou:

Respondo que, certa vez, Deus falou por meio da boca


de um asno. Direi diretamente o que penso. Sou teólo-
Escritura
Como Deus fala conosco?

go cristão, e sinto-me obrigado a não somente afirmar,


como também a defender a verdade com meu sangue
e minha morte. Creio livremente e não serei escravo da
autoridade de ninguém, seja um concílio, uma universi-
dade ou um papa.19

Após 18 dias, o duque George resolveu encerrar o debate.


Não estava havendo nenhum progresso, e desejava liberar o sa-
lão para a diversão de um hóspede distinto que logo chegaria.
O debate prosseguiu na forma de panfletos. Até fevereiro de
1520, Lutero havia feito mais pesquisas a respeito de Hus. E
concluiu: “Somos todos Hussitas sem o saber”.20 Com essa de-
claração, a autoridade da tradição eclesiástica foi despedaçada.
A igreja instituconal havia condenado Hus por pontos de vista
que Lutero agora via como os ensinados pela Palavra de Deus.
É este o significado de sola Sriptura: “Somente a Escritu-
ra” – um dos lemas-chave da Reforma. Não significa que outras
coisas não possam informar a nossa teologia. Os reformadores
citavam livremente os teólogos do passado como guias de au-
toridade. Eles refletiam sobre a experiência e utilizavam a razão.
O que sola Sriptura quer dizer é que, quando temos de escolher,
há apenas uma escolha que podemos fazer: somente a Escritura
é nossa autoridade máxima. Em especial, é a suprema autorida-
de, em contraste à autoridade da Igreja, com suas tradições. A
igreja católica reivindicava o direito de interpretar as Escrituras.
Eram sempre as Escrituras, juntamente com a interpretação da
Igreja, que carregavam autoridade final.
19 D. Martin Luthers Werke, 2:404. Citado em Bainton, Here I Stand, 116-19.
20 D. Martin Luthers Werke, Briefwehsel, 254. Citado em Bainton, Here I Stand, 120.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

Essa ainda é a afirmativa da igreja católica. O catecismo


da igreja católica é a declaração contemporânea oficial da cren-
ça católica, publicada, em 1992, com a aprovação do papa João
Paulo II.21 Esse catecismo declara explicitamente que a revela-
ção divina conta com “dois modos de transmissão”: a Escritura
Sagrada e a Santa Tradição (§81).

O resultado foi que a Igreja à qual a transmissão e a in-


terpretação da Revelação foram confiadas não extrai sua
certeza quanto a todas as verdades reveladas somente
das Santas Escrituras. Tanto a Escritura como a Tradição
devem ser aceitas e honradas com iguais sentimentos de
devoção e reverência (§82).

Passa, então, a dizer: “A tarefa de interpretar a Palavra de


Deus de forma autêntica foi confiada unicamente ao magisté-
rio da igreja, ou seja, ao papa e aos bispos em comunhão com
ele” (§100).
Para tais reivindicações foi que os reformadores lançaram
o desafio da sola Scriptura. Com frequência, dizem que a jus-
tificação somente pela fé foi o princípio material da Reforma.
Ou seja, somente a fé estava no cerne do conteúdo da Reforma.
Mas a recuperação da Escritura foi seu princípio formal. Noutras
palavras, somente a Escritura estava no cerne de seu método.
Alister McGrath diz: “Se os reformadores destronizaram o
papa, entronizaram a Escritura”.22

21 Catecismo da Igreja Católica (Londres: Geoffrey Chapman, 1994). Acesso em: 6 out. 2015. Disponível
em: http:// www.vatican.va/arhive/ccc/index.htm.
22 Alister McGrath, Reformation Thought: An Introduction (Oxford: Blackwell, 1988), 95.
Escritura
Como Deus fala conosco?

Muitas vezes, vamos adiante ao retrocedermos. Foi o que


aconteceu na Reforma. Os reformadores não estavam tentan-
do forjar algo novo. Os reformadores não saíram dispostos a
transformar o mundo. Eles só queriam voltar para a Bíblia. Mas
a volta à Bíblia mudou o mundo. E era desta forma que Lutero
descrevia a Reforma:

Eu me opus às indulgências e a todos os papistas, mas


jamais pela força. Simplesmente ensinei, preguei e es-
crevi sobre a Palavra de Deus; não fiz nada mais que isso.
Enquanto eu dormia, ou tomava cerveja de Wittenberg
com Philip e Amsdorf [amigos de Lutero], a palavra en-
fraqueceu o papado de um modo que nenhum príncipe
ou imperador jamais infligira tantas perdas sobre ele. Eu
nada fiz. A palavra fez tudo.23

De volta às fontes
No início do período medieval, a maioria dos teólogos e líde-
res da igreja via a Bíblia como única fonte confiável da verdade
cristã. Onde a Escritura se calava, as pessoas podiam tentar de-
senvolver as implicações da Escritura. Mas esses juízos eram
sempre secundários à própria Escritura. Porém, durante os
séculos XIV e XV, um entendimento diferente da tradição se de-
senvolveu, de Tradição com letra T maiúscula. Presumia-se que
a Tradição não escrita ia até os primeiros apóstolos, suplemen-
tando a Bíblia e provendo de verdade autoritária as questões
sobre as quais a Bíblia se silencia. Em 1546, o Concílio Católico
Romano de Trento declarou: “Todas as verdades salvadoras e
23 Lutero’s Works, 51:76-77.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

regras de conduta [...] estão contidas nos livros escritos e nas


tradições não escritas [...] recebidas pelos apóstolos da boca do
próprio Cristo, ou dos próprios apóstolos.24 Nem sempre ficava
claro se essa Tradição estava nos concílios da Igreja ou com o
papa, embora, com o tempo, o papa tenha surgido como prin-
cipal árbitro da verdade.
Quando a igreja medieval falava da Escritura, referia-se
ao textus vulgatus, “o texto comum”. Essa era a tradução para
o latim da Bíblia feita por Jerônimo nos séculos IV e V. Hoje,
nós o chamamos de “Vulgata”, embora esse termo não tivesse
sido empregado até o século XVI. O problema era que havia
muitas versões da Vulgata. Até a invenção da imprensa, os li-
vros eram copiados manualmente e, assim, as discrepâncias
se faziam presentes. Em 1226, foi produzida uma “Versão
de Paris” da Vulgata. Era um emprendimento comercial sem
nenhum apoio eclesiástico e continha erros óbvios. Mas, a
despeito disso, logo tornou-se o texto normativo. Diz McGra-
th: “Os teólogos medievais, tentando basear sua teologia na
Escritura, eram obrigados a igualar a Escritura a uma edição
comercial um tanto ruim de uma tradução do latim já equi-
vocada da Bíblia”.25 Na Inglaterra, John Wycliffe (1330-1384)
produziu uma Bíblia em língua inglesa para que pessoas co-
muns tivessem acesso às Escrituras. Mas mesmo essa foi uma
tradução da Vulgata Latina.
Tudo isso poderia não ter feito muita diferença não fosse
o surgimento do movimento humanista. O humanismo da
Renascença era muito diferente do humanismo moderno. O
24 Seção 4 (ênfase adicionada). Acesso em 25 fev. 2016. Disponível em: http://www.americancatholic-
truthsociety.com/docs/TRENT/trent4.htm.
25 McGrath, Reformation Thought, 98.
Escritura
Como Deus fala conosco?

humanismo moderno é a crença de que os seres humanos po-


dem solucionar os próprios problemas e desenvolver a própria
ética sem o auxílio externo de alguém como Deus. Já o hu-
manismo da Renascença era uma forma de recuperação dos
pensamentos grego e romano. O slogan era ad fontes, “de volta
às fontes”. Esse movimento foi impulsionado por uma paixão
pela leitura das versões mais acuradas dos textos clássicos na
língua original, incluindo a Bíblia.
In 1516, Erasmo, reconhecido como o mais famoso aca-
dêmico humanista de todos, publicou uma versão em grego do
Novo Testamento. Isso se provaria desenvolvimento chave para
o que veio a ser a Reforma. Considere a seguinte passagem:
“Daquele tempo em diante, Jesus começou a pregar: ‘Fazei pe-
nitência, pois o reino dos céus está próximo’”. Provavelmente
você não conhece essa versão de Mateus 4.17 – e por uma boa
razão. Não foi o que Mateus escreveu. Mas foi o que a Vulgata
diz (embora em latim). Erasmo conseguiu mostrar que, em vez
de fazer referência a um sacramento de penitência, Jesus falava
sobre uma transformação radical de rumo. A expressão “Fazei
penitência” deveria ser traduzida por “Arrependei-vos.”
Novamente, a Vulgata descreve Maria como “cheia de gra-
ça”. Isso implica que Maria era como um reservatório de graça
que os cristãos devotos poderiam acessar. Conforme veremos,
para o catolicismo medieval, a graça era como uma lata da be-
bida energética Red Bull, que nos estimula espiritualmente. Ao
estender essa analogia, Maria tornava-se a dispensatária da be-
bida. Mas Erasmo disse que Lucas 1.28 realmente deveria ser
traduzido como “favorecida”. Maria não era dispensatária da
graça, mas uma receptora da graça – assim como nós.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

À medida que o humanismo ia trabalhando, os buracos na


teologia católica medieval foram ficando cada vez mais expos-
tos, e a luz começava a penetrar. João Calvino concluiu:

Que seja este um firme princípio: Nenhuma outra pala-


vra deve ser tida como a Palavra de Deus, e dado lugar
como tal na igreja, do que é contido primeiramente na
Lei e nos profetas, e depois nos escritos dos apóstolos: a
única forma autorizada de ensino na igreja é por meio da
prescrição e do padrão de sua Palavra.26

As palavras de Calvino destacam outra distinção da Re-


forma. Se comparar a Vulgata ou uma Bíblia católica em inglês
moderno (como, por exemplo, a Bíblia de Jerusalém) com a
Nova Versão Internacional ou a Versão Padrão em inglês, você
verá imediatamente que a versão católica tem alguns livros a
mais entre o Antigo e o Novo Testamentos. Esses livros são co-
nhecidos como os Apócrifos.
Uma prática católica que os reformadores não podiam su-
portar era a de rezar pelos mortos. Isso era contrário a todo o
ensinamento sobre a necessidade de fé pessoal. Os católicos rei-
vindicaram o apoio das Escrituras por causa de uma referência em
2 Macabeus 12.40-46. Se você estiver perguntando se Macabeus
é um profeta menor que, de algum modo, você não conseguiu
perceber, não entre em pânico. Ele está nos livros Apócrifos.
Os livros apócrifos eram encontrados em versões gregas e
latinas do Antigo Testamento, mas não nas versões hebraicas,
porque foram acrescentados mais tarde. Os reformadores reco-
26 Calvino, Institutas, 4.8.8.
Escritura
Como Deus fala conosco?

nheciam haver algum valor devocional (como qualquer outro


livro cristão). Mas estavam convencidos de que esses livros não
faziam parte da Palavra de Deus, conforme Deus originalmente
a deu a seu povo.

A autoridade de Cristo em sua Palavra


Os reformadores criam na autoridade da igreja histórica.
Não queriam um individualismo desmedido em que todas
as interpretações da Escritura são igualmente válidas. Em vez
disso, valorizavam a história da interpretação da Escritura.
Calvino, por exemplo, frequentemente cita figuras-chave da
igreja primitiva como guias de autoridade que sustentam sua
posição. Os reformadores aceitavam os antigos concílios e
credos da igreja. Mas a autoridade da igreja, de seus líderes e
seus concílios derivava da Escritura, estando, assim, subordi-
nada à Escritura. Se houvesse alguma dúvida em uma questão,
a Escritura sempre ganharia.
Os reformadores também criam na contínua autoridade da
igreja. Mas, novamente, tal autoridade estava jungida à Palavra
de Deus. Não é o ofício de um pastor que lhe dá sua autoridade.
Sua autoridade advém da Palavra de Deus. Em outras palavras,
na pregação ou no trabalho pastoral, ele tem autoridade para
ensinar a Palavra de Deus.
Tudo isso levou a uma redefinição da igreja verdadeira,
conforme veremos adiante. A igreja católica define a igreja em
termos de continuidade institucional –seu bispo foi designado
por um bispo que, por sua vez, foi designado por outro bispo, e
assim por diante. Tudo se resumia a conseguir traçar uma linha
familiar até Pedro em Roma. Mas os reformadores afirmavam
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

que o que define a igreja verdadeira é a continuidade no evange-


lho. O que ela prega se alinha com a Bíblia? As marcas de uma
igreja verdadeira são a Palavra e os sacramentos. A igreja não
estabelece a autenticidade do evangelho. O evangelho é que
estabelece a autenticidade da igreja. Comentando 1 Timóteo
3.15, Calvino diz:

A diferença entre nós e os papistas é que eles crêem que


a igreja não possa ser a coluna da verdade a não ser que
ela presida sobre a Palavra de Deus. Nós, por outro lado,
asseveramos que é porque ela se sujeita reverentemente
à Palavra of Deus que a verdade é por ela preservada, e
transmitida a outros pelas suas mãos.27

Escrevendo ao senado e ao povo de Praga, Lutero demons-


tra simpatia com seu nervosismo quanto a derrubar os antigos
costumes da igreja. Mas ele diz:

Se vós estais perturbados e ansiosos quanto a se sois ver-


dadeiramente a igreja de Deus, eu vos digo que a igreja
não é conhecida por seus costumes, mas pela Palavra. Em
1 Coríntios 14[:24-25], Paulo diz que, se o descrente en-
tra em uma igreja e ali encontra quem revela os segredos
do seu coração, ele cairá em terra e declarará que real-
mente Deus está presente ali. Disto, é possível ter certeza:
que a Palavra de Deus e o conhecimento de Cristo estão
ricamente presentes entre vós. Onde quer que estejam a
Palavra de Deus e o conhecimento de Cristo, eles não es-
27 Citado em McGrath, Reformation Thought, 105.
Escritura
Como Deus fala conosco?

tão ali em vão, por mais deficientes de costumes externos


que sejam aqueles que têm essa Palavra.28

As salsichas testaram a autoridade da Escritura em Zuri-


que. Era Quaresma de 1522. Tradicionalmente, só verduras e
peixe podiam ser comidos durante a Quaresma. Mas, nesse ano,
12 amigos se reuniram para uma festa de salsichas. O conselho
da cidade agiu como sempre fizera e multou o anfitrião, Fros-
chauer, embora com um custo mínimo. Sete dias mais tarde,
Zuínglio produziu um panfleto (na impressora de Froschauer)
em que argumentou que a Bíblia nada diz sobre comer salsicha
durante a Quaresma.
Claro que a questão não era realmente quanto às salsichas.
A questão dizia respeito à autoridade da Escritura e à validade
da reforma. Um debate conhecido como “a Primeira Disputa
de Zurique” foi conclamado no ano seguinte sobre uma va-
riedade de teses reformadoras. Ulrico Zuínglio ganhou o dia.
Mas, de alguma forma, o debate já fora vencido antes mes-
mo de começar, porque a questão em pauta era se as ideias de
Zuínglio estavam de acordo com a Escritura. Qualquer outra
coisa que fosse decidida, ficou claro que a Escritura seria a au-
toridade que determinaria o que estava certo. Cristo governa
mediante sua Palavra.
No verão de 1522, Zuínglio obteve acesso ao convento
de Oetenbach, fonte de considerável influência sobre a vida
religiosa de Zurique. Parece que algumas das freiras foram
persuadidas e, dois anos depois, o convento foi dissolvido
pelo conselho da cidade. Um dos sermões que Zuínglio fez
28 Luther, Concerning the Ministry (1523), em Luther’s Works, 40:41.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

às freiras foi publicado como “Sobre a clareza e a certeza da


Palavra de Deus”.29
Zuínglio começa esse trabalho com base no fato de que
os seres humanos são feitos à imagem de Deus. Como fomos
criados para ter comunhão com Deus, “é um conforto à alma a
Palavra de seu criador e edificador” (68). Por isso a clareza e a
infalibilidade da Palavra são tópicos tão importantes.
Zuínglio afirma, inicialmente, a certeza ou o poder da Pa-
lavra de Deus:

A Palavra de Deus é tão certa e forte que, se Deus assim


quiser, todas as coisas são feitas no momento em que ele
fala a sua Palavra, pois é tão viva e poderosa que [...] tan-
to as coisas racionais quanto as irracionais são formadas
e expedidas e constrangidas em conformidade com seu
propósito (68).

A prova disso se encontra nos primeiros versículos da Bí-


blia, em que Deus cria todas as coisas do nada por meio de
sua palavra. Zuínglio continua a dar alguns outros exemplos
da poderosa Palavra de Deus apenas em relação aos primei-
ros capítulos de Gênesis. Encontramos o mesmo modelo no
Novo Testamento. Falando do nascimento virginal, Zuínglio
diz: “Todo o curso da natureza tem de ser alterado para que a
Palavra de Deus permaneça e seja cumprida” (70). Ele, então,
dá exemplo após exemplo do poder das palavras de Jesus e
dos apóstolos “para demonstrar que a Palavra de Deus é tão
29 Ulrico Zuínglio, “Of the clarity and certeza of the Word of God”, em Zwingli and Bullinger, ed. G. W.
Bromiley, Library of Christian Classics 24 (Louisville: Westminster John Knox, 1953), 49-95. Citações de
páginas específicas são feitas entre parênteses no texto.
Escritura
Como Deus fala conosco?

viva e eficaz e poderosa que todas as coisas necessariamente


têm de obedecer a ela” (71).

Todo o ensino do Evangelho é uma demonstração certa de


que o que Deus prometeu certamente será feito, pois, agora,
o Evangelho é um fato realizado: Aquele que foi prometido
aos patriarcas, e a toda a sua raça, agora nos foi dado, e nele
temos a segurança de toda nossa esperança (72).

O ponto é que a palavra que lemos ou ouvimos é a mesma


que vemos agir com tanto poder nas histórias da Bíblia e em sua
história central: o evangelho.
Mas a principal preocupação de Zuínglio é a clareza da Pa-
lavra de Deus. Isso porque ele está refutando a afirmativa da
igreja católica de que a Bíblia precisa ser interpretada pela igre-
ja. Pode haver ocasiões em que é difícil entender a Bíblia, mas
ela não foi escrita em alguma espécie de código espiritual. Nem
temos necessidade de pessoas especiais que estejam “por den-
tro”, como os sacerdotes, que a interpretem por nós.
Zuínglio entra diretamente no assunto ao refutar a obje-
ção de que, se Deus quisesse ser claro, não teria ensinado por
meio de parábolas e enigmas. Zwínglio tem em mente passa-
gens como Isaías 6.9-10 e Mateus 13.10-16, que falam do uso
de parábolas por Jesus: “Por isso, eu lhes falo por parábolas;
porque, vendo, não veem; e, ouvindo, não ouvem, nem enten-
dem” (13:13). Zuínglio replica que os provérbios e as parábolas
não são tentativas de esconder a verdade, mas Deus está nos
ensinando “de modo gentil e atraente”. Elas nos provocam a
pesquisar seu significado para que “nós as valorizemos mais
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

altamente do que se elas fossem apresentadas de modo mais


simples”. “A verdade descoberta é recebida com mais firmeza e é
mais valorizada, e a lição divina é mais atuante e ativa no enten-
dimento, e suas raízes penetram mais fundo no coração” (73).
Então, Deus usa parábolas e provérbios para iluminar aqueles
“que têm a mente para aprender com a Palavra de Deus”. Eles
mascaram a verdade somente da pessoa “que se aproxima das
Escrituras com a própria opinião e interpretação, desbancando
as Escrituras em conformidade” (74).
Zuínglio nos convida a pensar em um bom vinho. Para
a pessoa saudável, seu sabor é ótimo e aquece o coração. Mas
alguém que esteja com febre achará ruim o sabor e pergunta-
rá como uma pessoa com saúde suporta tomá-lo. Não é culpa
do vinho, mas da doença. Da mesma forma, a proclamação da
Palavra de Deus é sempre boa. Se as pessoas não conseguem
suportá-la ou entendê-la, a culpa está na doença de suas almas.
A principal preocupação de Zuínglio consiste em cele-
brar a clareza da Palavra. “Quando a Palavra de Deus brilha
sobre o entendimento humano, ilumina-o de modo que en-
tenda e confesse a Palavra, e tenha certeza dela” (75). Ele cita
o Salmo 119.130:

A revelação das tuas palavras esclarece;


e dá entendimento aos simples.

Essa referência “aos simples” é importante para Zuínglio.


Ele é incisivo em refutar qualquer sugestão de que devamos
submeter-nos a concílios de bispos. Deus se revela não aos que
estão famintos de poder ou prestígio, mas aos seus filhos hu-
Escritura
Como Deus fala conosco?

mildes. Será arrogante dizer que podemos interpretar a Bíblia?


De maneira nenhuma, diz Zuínglio, pois não dependemos de
nós mesmos para adquirir entendimento, mas nos submetemos
humildemente à Palavra de Deus.
Zuínglio segue com exemplos extraídos da Bíblia, “para
mostrar conclusivamente que a Palavra de Deus pode ser en-
tendida por um homem sem necessidade de direcionamento
humano”, devido “à luz e ao Espírito de Deus, iluminando e
inspirando as palavras” (78). Noutras palavras, as pessoas não
necessitam de intérpretes humanos para entender a Palavra
de Deus. Na verdade, o primeiro exemplo de Zuínglio, Noé,
obedeceu à Palavra de Deus a despeito de intérpretes humanos
que lhe diziam estar iludido. Zuínglio cita, então, passagens
que falam do ensinamento de Deus diretamente às pessoas,
sem necessidade de mediação humana ( João 6.45; 1 Coríntios
2.12-13; Hebreus 8.10; 10.16; 1 João 2.27).
Mas como saber se nosso entendimento vem de Deus, se
não for confirmado por uma igreja? Zuínglio replica:

Acreditais que os homens possam dar certeza, que não é


certeza alguma, e não acreditais que Deus possa dar tal
certeza a vós. Não sabeis que a mente e o entendimento
de todo homem têm de ser trazidos ao cativeiro da obedi-
ência e do serviço de Deus, e não dos homens? (83)

Noutras palavras, temos de obedecer a Deus, e não às pesso-


as. “Não nos cabe julgar sobre a Escritura e a divina verdade, mas
sim permitir que Deus faça a sua obra nela e por meio dela, pois
é algo que podemos aprender somente da parte de Deus” (92).
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

Outro problema ao dizer que precisamos da direção da


igreja é que a igreja não fala em voz uníssona.

A alma que busca clama: Ai de mim! A quem eu segui-


rei? Todos eles discutem tão persuasivamente que estou
perdido quanto ao que fazer. Finalmente, ela só pode re-
correr a Deus e orar sinceramente a ele, dizendo... “Ah
Deus, eles todos discordam entre si; mas tu és o único
bem não escondido: mostra-me o caminho da salvação”.
O Evangelho nos dá uma mensagem certa, ou respos-
ta, ou segurança. Cristo está diante de vós de braços
abertos, convidando-vos e dizendo (Mateus 11[:28]):
“Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarre-
gados, e eu vos aliviarei”. Ó feliz notícia, que traz consigo
sua própria luz, para que saibamos e creiamos que essa
é a verdade (84).

Mas o que dizer quando os cristãos discordam entre si?


Certamente alguém terá de decidir entre interpretações que
competem entre si? A principal queixa de Zuínglio é que, no-
vamente, isso tenta “sujeitar a doutrina de Deus ao juízo dos
homens”. Mas ele também defende que, quando se chega à
mensagem central do evangelho, a Palavra de Deus é clara. As
palavras de Deus “sempre têm um sentido verdadeiro e natu-
ral; que Deus a conceda, não importa quanto tenhamos de
arrancá-las para cá ou para acolá” (86). Os problemas surgem
porque “os de mau caráter... escolhem versículos dela sem
atenção ao contexto, e os distorcem de acordo com seus pró-
prios desejos” (87).
Escritura
Como Deus fala conosco?

Ai de mim! aqui chegamos ao cancro no coração de todos


os sistemas humanos. É este aqui: queremos encontrar
suporte na Escritura para nosso próprio ponto de vista,
e assim tomamos essa visão à Escritura, e se porventura
encontrarmos um texto que, por mais artificial que seja,
conseguimos relacionar a ele, nós o fazemos e dessa for-
ma, arrancamos a Escritura a fim de fazer com que ela
diga aquilo que nós queremos que ela diga (88).

Zuínglio diz que tirar os versículos do contexto “é como


quebrar uma flor, separando-a de suas raízes, e tentar plantá-la
no jardim”. Não dá certo. Em vez disso, “você tem de plantá-la
com raízes e com o solo na qual estava inserida” (87). Em outras
palavras, as discordâncias têm de ser resolvidas voltando para a
Bíblia e lendo-a no sentido natural, dentro de seu contexto.
Mas não seria melhor depender de muitos intérpretes, em
vez de apenas um? Sem dúvida, Zuínglio aceitaria a sabedoria
disso como uma prática. Ele não é contrário se consultarem co-
mentários. Mas se recusa a fazer disso uma regra, argumentando:

Se fosse esse o caso, o próprio Cristo estaria em erro, por-


que, proíba Deus, a maioria dos sacerdotes do seu tempo
tinha uma visão bastante diferente e ele teve de se firmar
sozinho. Os apóstolos também estariam errados, pois
sofriam a oposição de cidades e nações inteiras [...] A ver-
dade não está necessariamente com a maioria (87).

Zuínglio não despreza o papel dos pregadores e mestres. Na


verdade, afirma: “Se ele ensina a você de acordo com a Palavra
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

de Deus, não é ele quem ensina, mas Deus quem ensina a ele”. E
também adverte: “Se ele ensinar de acordo com os próprios pen-
samentos e a própria mente, seu ensino será falso” (90).
O que acontece se eu não me sinto iluminado ao ler a Bí-
blia? Primeiro, Zuínglio nos conclama a nos humilhar para que
não sejamos como aqueles que, “embora, ouçam, não escutam”.
Então, ele nos convida a orar, pedindo o esclarecimento do Es-
pírito de Deus enquanto lemos a Palavra de Deus. Como, então,
devemos nos aproximar das Escrituras?

Antes de dizer algo ou ouvir o ensino de um homem, consul-


tarei primeiramente a mente do Espírito de Deus: “Escutarei
o que Deus, o SENHOR, disser, pois falará de paz ao seu
povo e aos seus santos; e que jamais caiam em insensatez”
[Salmo 85.8] Em seguida, devemos pedir reverentemente a
Deus por sua graça, para que ele dê sua mente e seu Espírito,
e não assumamos nossa opinião própria, mas sim a de Deus.
Tenhamos firme confiança de que ele nos dará entendimen-
to reto, pois toda sabedoria vem de Deus, o Senhor. Então,
passamos à palavra escrita do Evangelho (88-89).

A conclusão de Zuínglio a esse respeito é:

A Palavra de Deus é certa e nunca falha. Ela é clara, e ja-


mais nos deixa em trevas. Ela ensina por si a verdade. Ela
vem e irradia a alma do homem com plena salvação e gra-
ça. Dá à alma o consolo seguro em Deus. Ela nos humilha,
para que percamos e, na verdade, sejamos condenados, a
fim de agarrar a Deus (93).
Escritura
Como Deus fala conosco?

A presença de Cristo em sua Palavra


O que é a Palavra de Deus? Há mais de uma resposta. A primeira
resposta é que Jesus é o Verbo de Deus (com V maiúsculo). Se-
gundo, a Bíblia é a palavra de Deus. A Bíblia é a palavra de Deus
por três razões. Primeiro, a Bíblia provém de Deus Pai. É uma
revelação de Deus Pai. Segundo, a Bíblia é a respeito de Deus
Filho. É o documento da Palavra de Deus na pessoa de Jesus,
prometido no Antigo Testamento e confirmado no Novo Tes-
tamento. Terceiro, a Bíblia é por Deus, o Espírito. É o registro
inspirado pelo Espírito da Palavra de Deus na pessoa de Jesus. O
Espírito garante que é um relato acurado e confiável da palavra
de Deus. Assim, vem de Deus, é a respeito de Deus e é por Deus.
Para os reformadores, a Bíblia e Cristo andam juntos. So-
mos salvos somente por Cristo. Mas nós encontramos Cristo
na Bíblia. Na verdade, os dois estão ligados. Cristo é o Verbo
encarnado, e a Bíblia é a palavra escrita. A Bíblia é a palavra de
Deus porque, pelo Espírito, ela testifica o Verbo encarnado.
Desse modo, Cristo é central para a Bíblia. Cristo também é
central para a interpretação da Bíblia. Todas as interpretatções
verdadeiras da Bíblia nos conduzem a Jesus.
Os teólogos da Reforma, porém, foram mais longe. A Se-
gunda Confissão Helvética, Capítulo 1, tem um subtópico: “A
Pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus”. A confissão
foi escrita por Heinrich Bullinger para a igreja reformada suíça
e tem sido uma das principais declarações de fé entre as igrejas
reformadas. Eis o que ela declara sob esse título:

Portanto, quando esta Palavra de Deus é agora pregada


numa igreja por pregadores chamados legalmente, cre-
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

mos que a própria Palavra de Deus é proclamada e recebida


pelos fiéis; e que nenhuma outra Palavra de Deus deve ser
inventada nem esperada do céu: agora a própria Palavra
que é pregada deve ser considerada, e não o ministro que
a pregou; pois, mesmo que ele seja mau e pecador, ainda
assim a Palavra de Deus permanece verdadeira e boa (ên-
fase acrescida).

A ideia de que a pregação é Palavra de Deus baseava-se no


entendimento dos reformadores acerca do que é uma missão.
Eles viam a missão como parte integral do plano de Deus de
salvação. Lutero diz: “Mesmo que Cristo fosse dado por nós e
crucificado mil vezes, seria tudo em vão se a Palavra de Deus
estivesse ausente e não fosse distribuída e dada a mim com a
seguinte ordem: Isso é para ti, toma o que é teu”.30 A salvação é
realizada mediante a cruz e a ressurreição. Mas ela é distribuída
pela Palavra e pelo Espírito. Sem essa distribuição, ninguém se-
ria salvo. Calvino também diz que Deus “ordenou a sua palavra
como instrumento pelo qual Jesus Cristo, em toda a sua graça, é
dispensado a nós”.31 Como tal, a pregação é um ato de redenção.
Calvino diz que Deus poderia “trovejar dos céus”. Mas, se
assim fizesse, “estaríamos totalmente perdidos”. Na verdade,
houve um tempo em que Deus trovejou do céu. No Sinai, os
israelitas ouviram sua voz. O que aconteceu? Eles tremeram
de medo e imploraram a Moisés que falasse da parte de Deus

30 Lutero, “Against the Heavenly Prophets in the Manner of Images and Sacraments” (1525), em Luther’s
Works, 40:213.
31 João Calvino, “Short Treatise on the Supper of Our Lord”, em Selected Works of Calvin: Tracts and Let-
ters, ed. e tradução de Henry Beveridge, v. 2 (Edimburgo: Calvin Translation Society, 1849; repr., Grand
Rapids, MI: Baker, 1983), 166.
Escritura
Como Deus fala conosco?

(Êxodo 19-20). Assim, Calvino fala da “transbordante bon-


dade paternal” de Deus em escolher “ensinar-nos de maneira
íntima por meio daqueles que são como nós”.32

A voz de Cristo
Quando a Palavra de Deus é pregada, o que nós ouvimos é
a voz de Deus. Lutero diz:

Quisera Deus que pudéssemos gradualmente treinar


nossos corações a crer que as palavras do pregador são a
Palavra de Deus [...] Não é um anjo nem cem mil anjos,
mas a própria Divina Majestade que ali está pregando.
Com certeza, não escuto isso com meus ouvidos nem o
vejo com meus olhos; o que eu ouço é a voz do pregador
[...] e contemplo diante de mim apenas um homem. Mas
eu vejo o retrato corretamente quando creio que a voz e
as palavras do pastor não são suas próprias palavras e dou-
trina, mas as de nosso Senhor e Deus. Não é um príncipe,
um rei ou um arcanjo que ouço; é Aquele que declara ser
capaz de distribuir a água da vida eterna.33

Calvino diz: “Cristo atua por meio do ministro de tal


modo que deseja que a boca do ministro seja reconhecida como
sua boca, e seus lábios, como os lábios de Cristo; ou seja, quan-
do eles falam por sua boca e declaram fielmente sua palavra”.34
Em seguida, cita Lucas 10.16: “Quem vos der ouvidos ouve a
32 John Calvin’s Sermons on 2 Samuel: Chapters 1-13, tradução de Douglas Kelly (Edimburgo: Banner of
Truth, 1992), 302.
33 Luther, “Sermons on the Gospel of St. John”, in Luther’s Works, 22:526-27.
34 Calvino, Comentário em Isaías 11.4
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

mim; e quem vos rejeitar a mim me rejeita; quem, porém, me


rejeitar rejeita aquele que me enviou”. Quando Jesus descreve
a si mesmo como bom pastor, diz que “vai adiante delas, e elas
o seguem, porque lhe reconhecem a voz” ( João 10.4). Calvino
comenta: “Embora aqui ele esteja falando de ministros, não de-
seja tanto a esses quanto Deus falando por meio deles, para que
seja ouvido”.35

A presença de Cristo
Os reformadores foram ainda mais longe. Imagine uma
menina pequena que acorda no meio da noite. Ela chora cha-
mando por seu pai. Está escuro. Ela está confusa. Está com
medo. Então, ela escuta a voz de seu pai: “Está tudo bem, que-
rida. Tudo bem. Você pode voltar para a cama e dormir”. A voz
do pai reafirma sua presença.
Do mesmo modo, os Reformadores diziam que a voz de
Deus na Palavra de Deus é sinal de sua presença. Não somente
ouvimos a voz de Deus em sua Palavra; nós experimentamos
a sua presença. Considere estas citações de Calvino (ênfases
acrescidas):

Se nosso Senhor é tão bom para nós a ponto de sua dou-


trina ainda nos ser pregada, temos por isso um sinal certo
e infalível de que ele está perto de nós, que ele busca a nossa
salvação, que ele nos chama para si como se falasse de boca
aberta e que nós o vemos pessoalmente diante de nós [...] [ Je-
sus Cristo] estende seus braços para nos receber sempre que
o evangelho nos é pregado [...] Asseguremo-nos de que
35 Calvino, Comentário em João 10.4.
Escritura
Como Deus fala conosco?

Deus oferece a si mesmo na pessoa de seu Filho Unigênito,


quando ele nos envia pastores e mestres.36

Faz-nos bem sofrer para sermos ensinados em seu nome e


[entender] que, embora a palavra que é pregada procede
da boca de homens, assim mesmo ela vem pela autorida-
de de Deus, e nossa salvação tem de ser fundamentada
nisso, como se o céu estivesse aberto cem mil vezes para nos
mostrar a glória de Deus.37

Nós temos a Palavra de Deus? Pelo menos a temos quan-


do é pregada com pureza? Então, Jesus Cristo está no meio
de nós, mostrando-se como se estivesse pendurado na cruz,
testemunhando o que ele fez por nós quando sofreu a
morte para nos reconciliar com Deus, seu Pai.38

Quando Calvino diz aqui “como se estivesse” não está


sugerindo que Deus não esteja realmente presente. Está, sim,
reconhecendo que Deus não está fisicamente audível ou visí-
vel. É “como se fosse... que o vemos pessoalmente diante de nós,
mesmo que não o vejamos pessoalmente. Em vez de estar fisi-
camente presente, Deus está espiritualmente presente por meio
da Palavra. Calvino descreve a comunicação de Cristo por sua
Palavra como “mística”, “incompreensível” e “espiritual”.39
36 João Calvino, sermão sobre Efésios 4.1-12, em Sermons on the Epistle to the Ephesians (Edimburgo:
Banner of Truth, 1973), 368.
37 João Calvino, sermão em Gl 1.1-5, em Sermons on Galatians by John Calvin (Audubon, NJ: Old
Paths, 1995), 601-2.
38 João Calvino, sermão em Gl 3:1-3, em Sermons on Galatians by John Calvin, 321.
39 João Calvino, “Summary of Doctrine concerning the Ministry of the Word and the Sacraments”,
em Calvin: Theological Treatises, ed. J. K. S. Reid, Library of Christian Classics 22 (Filadélfia, West-
minster, 1954), 171-77.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

O ministro externo administra a palavra vocal [...]. Mas


o ministro interno, que é o Espírito Santo, opera livre e
internamente, enquanto, por sua virtude secreta, ele efe-
tua nos corações de quem quer que ele queira sua união
com Cristo mediante uma só fé. Essa união é algo interno,
celestial e indestrutível.40

Há um paralelo entre a pregação e os sacramentos. Nos


sacramentos, experimentamos a presença de Cristo ao comer-
mos e bebermos. Pela pregação, experimentamos a presença de
Cristo ao falarmos e escutarmos. Assim, a pregação não é sim-
plesmente uma palavra a respeito de Cristo. É o ato de “ofertar
a apresentação de Cristo”.41

As Escrituras, o Espírito e a Fé
Como os sacramentos, a Palavra de Deus não opera ex opere ope-
rato. Essa frase latina resume a posição católica sobre a efetividade
dos sacramentos. Significa “pela obra operada”. Eles criam que os
sacramentos operavam por si mesmos, independentemente da fé
dos participantes. Os reformadores, conforme veremos, creem
que os sacramentos são uma promessa ou um pleito para encora-
jar nossa fé. Da mesma forma, Calvino diz das Escrituras:

Temos por certo que essa eficácia não está contida nas
próprias palavras, mas procede do instinto secreto do Es-
pírito [...] Afirmamos a eficácia de seu Espírito, já que é
sua palavra, sem a qual ela seria infrutífera.42
40 Ibid., 173 (art. 5).
41 Luther’s Works, 39:183.
42 Calvino, Comentário, de Ezequiel 2:2. Ver também Comentário, de Atos 14:27.
Escritura
Como Deus fala conosco?

Em outras palavras, as Escrituras têm valor para nós –


quando respondemos com fé, elas medeiam a presença e o
consolo de Cristo. Assim, Deus envia o Espírito para des-
pertar e fortalecer a fé quando as Escrituras são pregadas.
Quando as pessoas não respondem com fé, a Palavra, ainda
assim, é efetiva, mas seu efeito consiste em endurecer as pes-
soas para o juízo.
Calvino inicia as Institutas afirmando que os dois princi-
pais objetivos do conhecimento são Deus e a humanidade. Sem
o conhecimento de si mesmo, não há conhecimento de Deus.
Seu ponto é que o verdadeiro conhecimento de Deus é relacio-
nal. Conhecemos Deus quando nos conhecemos em relação a
Deus. Quanto mais vemos as perfeições de Deus, mais reco-
nhecemos nossas fraquezas. De algum modo, Calvino antecipa
a preocupação moderna quanto ao relacionamento entre a ex-
periência subjetiva e a realidade objetiva. As duas estão ligadas
porque Deus nos criou e depois nos re-criou, a fim de fazer com
que o conheçamos.
Porém, Calvino também leva a sério nossa condição de
caídos. Isso afeta não somente nossa capacidade de obedecer a
Deus. Afeta nossa capacidade de conhecer a Deus. A revelação
natural não conduz à teologia natural, porque rejeitamos a ver-
dade sobre Deus (Romanos 1.18-25). Nosso conhecimento de
Deus é distorcido e corrompido pelo pecado. O resultado é que
necessitamos da Escritura. Mas a Escritura não basta, porque,
em nosso pecado, rejeitamos a verdade. Assim, também precisa-
mos da obra regeneradora do Espírito Santo. Isso significa que
não podemos defender a Escritura usando apenas argumentos
racionais, porque o descrente, habilmente, evita sua força. As
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

pessoas precisam também do testemunho interno do Espírito.


Usamos nossas faculdades naturais para entender a Escritura,
pois seu significado é claro e não codificado. Mas o Espírito au-
tentica isso para nós como Palavra de Deus. O resultado é uma
hermenêutica centrada na graça, trinitariana. É centrada na
graça, porque não podemos operá-la por nós mesmos. Neces-
sitamos da ajuda de Deus. É trinitariana, porque o Pai testifica
ao Filho mediante o Espírito. Como a Trindade, os três não po-
dem ser separados. “Por uma espécie de elo mútuo”, Palavra e
Espírito são “reunidos”:

Pois, por meio de um elo mútuo, o Senhor uniu a certeza


de sua Palavra e de seu Espírito para que a religião perfeita
da Palavra habite em nossa mente quando brilha o Espí-
rito, que nos faz contemplar a face de Deus [...] [Deus]
enviou o mesmo Espírito por cujo poder ele entregara a
Palavra para completar sua obra, por meio da eficaz con-
firmação da Palavra.43

Isso quer dizer que precisamos tanto do dom externo da


Palavra como do dom interno da fé por meio do Espírito. Cal-
vino diz que a relação entre pregação e fé é como uma mãe e
seu bebê: “A pregação é a mãe que concebe e dá à luz; a fé é a
filha que deve estar atenta à sua origem”.44 “Tire a pregação do
Evangelho”, diz ele, “e nenhuma fé permanecerá”.45

43 Calvino, Institutas, 1.9.3.


44 Calvino, Comentário, em 2 Co 13.5.
45 Calvino, Comentário, em Atos 16.31-32. Veja também seu Comentário em 1 Co.
3.6.
Escritura
Como Deus fala conosco?

Pregação e pregadores
Assim, Deus está presente quando se lê a Bíblia. E também está
presente quando a Palavra de Deus é pregada no ajuntamento
da igreja. Lutero diz que a Palavra meramente lida “não é tão
frutífera e poderosa quanto o é por meio de um pregador públi-
co a quem Deus tenha ordenado a dizer e pregá-la”.46 Calvino,
por sua vez, assinala:

Os que negligenciam esse meio e ainda esperam tornar-


-se perfeitos em Cristo estão loucos. Tais são os fanáticos,
que inventam para si revelações secretas do Espírito, e os
orgulhosos, que pensam que para eles basta a leitura par-
ticular das Escrituras, e que não necessitam do ministério
comum da igreja.47

Sabemos disso por experiência própria. Deus fala conosco


quando lemos por nós mesmos a Bíblia. No entanto, com mais
frequência e poder ele nos fala pela pregação de sua Palavra
quando uma igreja se reúne sob a mesma Palavra.
A pregação da Palavra transmite a voz e a presença de
Cristo. Essa é claramente uma visão muito elevada da prega-
ção. Mas Lutero cuida para não torná-la uma visão elevada dos
pregadores:

Quando ouves um sermão de São Paulo ou por mim, ou-


ves o próprio Deus Pai. Contudo, tu não te tornas meu
46 Lutero, sermão de 21 de julho, 1532, em Jaroslav Pelikan, “Luther the Expositor”, in Luther’s Works,
volume complementar (St. Louis: Concórdia, 1959), 64n66, citado em J. Mark Beach, “The Real Presence
of Christ in the Preaching of the Gospel: Luther and Calvin on the Nature of Preaching”, Mid-America
Journal of Theology 10 (1999): 81.
47 Calvino, Comentário, em Efésios 4.12.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

aluno, mas aluno do Pai, porque não sou eu quem falo; é o


Pai. Nem sou eu o teu mestre de escola; mas ambos, você
e eu, temos um Mestre e Professor, o Pai, que nos instrui.
Ambos, pastor e ouvinte, somos apenas alunos; há so-
mente esta diferença, que Deus está falando a ti através de
mim. Esse é o glorioso poder da divina Palavra, mediante
a qual o próprio Deus trata conosco, e na qual ouvimos o
próprio Deus.48

Lutero amava lembrar as pessoas sobre o jumento de Ba-


laão. Nessa história, Deus abre a boca do jumento para que fale
a Balaão (Números 22). O argumento de Lutero é que, se Deus
pode falar a Balaão por meio de um asno, então Deus pode falar
a você por meio de um pregador humano.49
Obviamente, essa visão elevada da pregação colocava
grande responsabilidade sobre os pregadores. Lutero diz:

Portanto, quem não conhece ou prega o evangelho não


somente não é sacerdote ou bispo, como também é uma
espécie de peste para a igreja, que, sob o falso título de
sacerdote ou bispo, ou vestido em roupas de ovelha, na
verdade comete violência contra o evangelho e faz papel
de lobo [Mt 7.15] na igreja.50

A pregação é um ato humano. E, como tal, falível. A prega-


ção não é a palavra de Deus da forma como a Bíblia é a palavra

48 “Sermões sobre o Evangelho de S. João”, em Luther’s Works, 23:97-98.


49 Ibid.
50 Martinho Lutero, The Babylonian Captivity of the Church, in Luther’s Works, 36:116.
Escritura
Como Deus fala conosco?

de Deus. A pregação é uma administração da Palavra de Deus. É


uma extensão ou aplicação da revelação de Deus em Jesus tes-
tificada pela Escritura, e não uma fonte secundária ou rival da
revelação. Assim, toda pregação deve ser pesada de acordo com
o padrão da infalível palavra de Deus na Bíblia.
No entanto, Deus escolheu usar a pregação humana para
transmitir a sua presença.

Venham à pregação da Palavra de Deus


para ouvir a voz de Cristo
Considere como essa visão transformará sua atitude quan-
to à pregação em sua igreja sempre que vocês se reunirem. Na
maior parte do tempo, a pregação parece muito comum. Como
dizia Lutero, tudo que ouvimos é a voz do pregador e tudo que
vemos é um homem. Mas o próprio Deus está nos falando. Ele
nos fala para nos entregar a palavra da vida eterna.
Todos os lados da igreja precisam redescobrir Cristo pre-
sente mediante sua Palavra. Muitos cristãos pensam na pregação
como um processo primariamente educativo. Ajuntamo-nos
para aprender o que a Bíblia ensina. Claro, isso é verdade. A
boa pregação tem de envolver o ensino da Bíblia. Nossa autori-
dade vem da Palavra de Deus e, assim, essa Palavra precisa ser
compreendida.
Porém, para os reformadores, a pregação era mais do que
simplesmente transferência de informação. A realidade é que,
na maior parte do tempo, uma grande parcela da congregação
conhece as verdades contidas no sermão. Se você enxerga a
pregação apenas como simples processo educativo, tenderá a
buscar novidades, e esse é um caminho perigoso a trilhar. Em
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

vez disso, aproximamo-nos da pregação da Palavra como quem


precisa ouvir a voz de Cristo e vir à sua presença. Precisamos
ouvir dele palavras de segurança ou de desafio. Às vezes, apren-
demos coisas novas. Mas essa não é a medida da boa pregação.
Uma esposa não quer novas informações no aniversário de seu
casamento. Ela deseja que seu marido a reassegure de seu amor
contínuo. E é isso que Cristo faz por intermédio de sua noiva
toda semana, mediante a pregação da Palavra.

Venham à pregação da Palavra de Deus


com os pés sangrentos
Consideremos estas palavras de Calvino:

Não existe nada que deve despertar-nos mais a abraçar


o ensinamento do Evangelho do que aprender o culto
preeminente de Deus, o sacrifício do aroma suave, ouvi-
-lo falando pela boca de homens e submetermo-nos à
sua Palavra conforme nos é trazida pelos homens, como se
ele mesmo tivesse descido do céu ou revelado, por intermé-
dio de um anjo, seu propósito. Além disso, confirma-se a
confiança e remove-se a dúvida quando ouvimos que
o testemunho de nossa salvação não é menor ao ser de-
clarado por homens enviados por Deus do que se sua voz
ressoasse do céu. Por outro lado, ao nos advertir do des-
prezo ao Evangelho, ele acrescenta uma forte ameaça
de que os que se recusam a ouvir os ministros, por mais
humildes que sejam, não insultam os homens, mas a ele
mesmo e a Deus Pai.51
51 Calvino, Comentário, de Lucas 10.16 (ênfase acrescentada).
Escritura
Como Deus fala conosco?

Aqui está a ironia. Hoje, muitas pessoas se desesperam para


ouvir a voz de Deus. Ficam obcecadas com profecias, sonhos e
palavras de conhecimento. Os pontos de vista quanto ao papel
contínuo da profecia variam. Alguns acreditam que foi supera-
do pelo cânone da Escritura. Outros creem que foi concedida
pelo Espírito a aplicação da Escritura a situações específicas –
algo que, algumas vezes, ocorre em situações pastorais e, com
frequência, na pregação.
Porém, muitas pessoas não se contentam com a aplicação
da Escritura dada pelo Espírito. Querem algo mais. Desejam
comunicar-se diretamente com Deus. Estão desesperadas
para ouvir a voz de Deus. Contudo, semana após semana,
Deus está falando a eles pela pregação de uma igreja. O que
necessitamos fazer, conforme Lutero dizia, é “gradativamente
treinar nossos corações a crer que as palavras do pregador são
a Palavra de Deus”.52 Lutero continua: “As pessoas geralmente
pensam: ‘Se eu tivesse a oportunidade de ouvir Deus falando
pessoalmente, eu correria até meus pés ficarem sangrentos’.
[...] Mas tu tens agora a Palavra de Deus na igreja [...] e essa é
a Palavra de Deus, o que é tão certo quanto se o próprio Deus
estivesse falando contigo”.53
O verdadeiro problema, imagino, é que, com frequência,
as pessoas não gostam do que ouvem pela Palavra de Deus,
lida e pregada. Querem uma palavra que lhes permita lograr o
chamado de tomar sua cruz a cada dia. Querem uma palavra
que justifique seu desejo de autorrealização ou seu senso de
autoimportância.
52 Lutero, “Sermões no Evangelho de S. João”, em Luther’s Works, 22:526-27.
53 Ibid.
POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

Por que a Escritura ainda é importante


O desafio do governo de Cristo em sua Palavra tanto é diferente
quanto é similar aos desafios enfrentados no tempo da Refor-
ma. Durante a Reforma, a principal alternativa à revelação era a
tradição. Hoje em dia talvez soframos com a deficiência de tra-
dição, e não como o exagero dela! O que substituiu a tradição
como rival da revelação foi a experiência.
Vimos uma perda significativa de autoridade no mundo
moderno. Hoje em dia, a preferência e a experiência são tudo.
Questões éticas são decididas com base nas histórias pessoais
que mais despertam simpatia. Os dilemas individuais são de-
terminados com base nos sentimentos da pessoa. Qualquer
senso de que certo e errado possam estar arraigados na meta-
física (o modo como as coisas são) ou na revelação divina foi
substituído pela subjetividade.
Na igreja, não estamos imunes a essa tendência cultural.
Muitos cristãos acreditam que a Bíblia é verdadeira. Mas os Re-
formadores não acreditavam simplesmente que a Bíblia fosse
verdade. Nós precisamos ouvir novamente o desafio da Reforma
de a Escritura somente. Somente a Escritura é autoridade suprema.
A Bíblia não é apenas a verdade; ela é mais verdadeira do que qual-
quer outra coisa. Assim, a Bíblia sempre vence a experiência. Isso
não quer dizer que devamos ignorar a experiência. A experiência
muitas vezes nos leva a perguntas que trazemos para a Escritura.
Mas Cristo ainda reina mediante sua Palavra, lida e pregada. Por-
tanto, temos de nos esforçar para garantir que nossa vida pessoal e
nossa vida em comunidade sejam regidas não pela tradição ou pela
experiência, mas por Cristo mediante sua Palavra.
O Ministério Fiel visa apoiar a igreja de Deus, fornecendo con-
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