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JANUS 2014

2.2 • O estado do Estado

Globalização: efeitos imprevisíveis sobre a soberania Elisabete Maria Morais

No actual contexto o processo de globaliza- As pressões de forças em transformação exerci- Desta feita, neste texto referirmo-nos à nação en-
ção, instigado pela urgência do nascimento de das, neste período de transição paradigmática, quanto nação jurídica. Assim, evitamos o princí-
um mercado mundial único, eliminou as distân- sobre as estruturas ultrapassam limites culturais pio da autodeterminação nacional e o conflito, na
cias entre as nações e, mediante a instantaneida- e políticos entre os povos tornando as responsa- medida em que a interpretação de questões étni-
de das acções humanas, internacionaliza a acti- bilidades do welfare state excedentárias. Os fenó- cas é incompatível com a disparidade presente na
vidade económica. O Estado comunga da cena menos da globalização económica, a interdepen- maioria dos Estados. Ademais, a mundialização,
internacional com um conjunto de actores insóli- dência entre os Estados, o surgimento de novos internacionalismo e interdependência gerais es-
tos sob a égide do antigo modelo, com novos ac- actores no plano internacional, a realidade multi- tão a criar novas afinidades, novas espécies de
tores que ao seu lado participam na regulação da polar e a transnacionalização dos processos de solidariedades que relegam para segundo plano
sociedade (Rocha-Cunha, 2005). decisão política, aliados aos problemas globais, a nação, produto cultural e elemento ideológico
A globalização, processo inacabado e impreciso, reflectem o processo de enfraquecimento do poder do Estado, que actua directamente sobre a sobe-
adopta contornos que nos permitem dizer que é soberano dos Estados modernos e a necessidade rania dos Estados. Constitui uma verdadeira com-
o reflexo das ideias capitalistas, fundamentadas de se instituir uma nova ordem mundial. petição para os países em desenvolvimento,
pela ideologia neoliberal, de acumulação e interna- A liberdade selvagem preponderante nas relações desautorizando-os e redefinindo-os, pela sua di-
cionalização do capital financeiro e da rápida evo- internacionais vestefalianas começa a ser ultra- minuta capacidade de tomar decisões autonoma-
lução tecnológica que reorganiza e mistura a vivên- passada pela limitação da soberania interna, pelo mente, uma vez que, no âmbito da sociedade glo-
cia de aspectos culturais, ambientais, comerciais Estado democrático de direito, e externa, pela bal, existem organizações públicas e privadas que
e financeiros, dando uma nova roupagem à activi- ordem internacional vinculadora influenciam o seu contexto doméstico, obstruin-
dade económica mundial, representada pelo cres- do a autodeterminação dos governos nacionais.
cimento da concentração da riqueza produzida Globalização efeitos sobre a soberania
globalmente. A globalização, essa princesa encantada, bela de dia Adaptação ou fenecimento da soberania
O fim da guerra fria e as mudanças políticas ad- e ameaçadora de noite, abre uma nova visão do O paradigma da soberania de Bodin, que trans-
vindas impuseram a derrocada do bloco opositor mundo, sem contudo deixar de ser uma fonte reve- formava o poder estatal em poder supremo, úni-
da economia de mercado e do capitalismo. Tal, ladora das enormes desigualdades sociais, das di- co criador de normas, detentor do monopólio do
aliado ao incremento do desenvolvimento tecno- versidades locais, nacionais e regionais, que ora in- poder de coação física e único actor internacio-
lógico e científico, do mundo da instantaneidade teragem, ora se chocam nos limites da aldeia global. nal, actualmente encontra-se desfigurado pela in-
virtual adoptado pelas operadoras financeiras e fluência da globalização, sobretudo económica,
do comércio internacional, aportou uma nova que criou as condições necessárias para o nasci-
concepção de soberania de acordo com os inte- mento de novos e poderosos actores internacio-
resses liberais do mercado. Ligado à instantanei-
Os poderes estatais nais.
dade das relações estão as dificuldades do Estado encontram-se debilitados, Esta globalização caótica, competitiva e parado-
no controle de massas monetárias, crescimento da face aos potentados económicos xal veio retirar ao Estado o seu poder de entidade
internacionalização das empresas que coadjuvam e ao jugo das leis de mercado, reguladora sem, no entanto, anular a sua existên-
a desregulamentação dos mercados e fomentam tornando a supremacia cia, mas marcando e reprimindo decididamente
espaços alargados de comercialização e concor- a sua soberania.
rência. Torna-se quase inevitável o enfraqueci-
da soberania absoluta A globalização capitalista possui uma lógica pró-
mento dos poderes dos Estados soberanos e a uma miragem. pria – uma lógica unificadora da diversidade.
expansão dos poderes das transnacionais, tenden- É uma lógica do lucro, do mercado, da acumula-
tes à criação de um mercado global desordenado. ção. Egoísta e ambiciosa, luta sem preconceitos
A globalização, entendida como uma nova etapa A doutrina da paz pelo consenso, da livre circu- para atingir o poder. É esta lógica que traz a dife-
do capitalismo, reordena o actual movimento das lação de pessoas, mercadorias e capitais impossi- renciação regional, redistribuição desigual do
relações internacionais, caracterizado por proces- bilita a estruturação de uma política industrial, rendimento e aporta tensões sobre o modo de
sos de integração económica supranacionais financeira, de defesa, baseada na soberania clás- construção da ideia de Estado e sua soberania.
inseridos numa economia internacional interde- sica. Não obstante todos estes problemas, sur- Novos “dados” foram lançados pela globalização.
pendente (Costa, 2008). Todavia, a nova organi- gem ainda outros que escapam ao controle dos Regras imprevisíveis geraram um desfasamento
zação dos métodos de produção impõe profun- Estados, como os ambientais, que apenas podem entre economia e representação política e seus
das transformações socioeconómicas, que se ser resolvidos a nível planetário. poderes de regulação. Mas, a globalização trouxe
materializam na necessidade de flexibilização das Podemos defender que a globalização desgastou ainda o espectro de uma ditadura económica
relações entre capital e trabalho. Os trabalhado- a ideia da nação como fundamento humano e onde os desfavorecidos não têm voz activa e onde
res perderam força nesta nova gestão económica cultural do Estado moderno, porque os povos, o Homem não tem visibilidade.
frente aos novos detentores do poder económico em constante movimentação, deixaram de formar Apesar de alguns teóricos defenderem a ideia de
cujos interesses já não são a produção, mas sim grupos homogéneos que compartilham os mesmos que caminhamos para um Estado Democrático
o rendimento financeiro. ideais, hábitos culturais e religiosos e encontram- Global, parece-nos estar a anos-luz desse aconte-
Hobsbawn (2007:11) afirma que ‘’A globalização se espartilhados pelo mundo numa pluralidade cimento. É necessário, imprescindível mesmo,
acompanhada de mercados livres, actualmente cultural, ideológica, racial e étnica. Mas podemos insistir na criação de plataformas de regulação
tão em voga, trouxe consigo uma dramática também afirmar que a globalização reordena as internacional que laborem no sentido de se cons-
acentuação das desigualdades económicas e so- diferenças e diversidades sem as anular, apontando truir um Estado verdadeiramente democrático e
ciais no interior das nações e entre elas.’’ a afirmação individual (Canclini, 1997). que preencham o vazio entre a globalização eco-

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nómica e a democracia nacional. A contradição cias sobrepõe-se à lógica das prioridades, tentando Os poderes estatais encontram-se debilitados, face
entre a globalização económica do capitalismo e assim os governantes valorizar o seu poder interno aos potentados económicos e ao jugo das leis de
a globalização social é facilmente detectável. Des- e o seu estatuto internacional garantindo a sua ma- mercado, tornando a supremacia da soberania
ta contradição nasce o colapso da soberania e por nutenção em posições de poder (Krasner, 2001). absoluta uma miragem.
essa via o colapso da democracia concebida no Nesse contexto de fadiga e saturação do Estado É indiscutível o efeito que a globalização exerce
seio do Estado nacional. Moderno, é necessário um decurso de teorização sobre a soberania dos Estados. Mas quererá isto
A globalização poderá estar a transportar uma destinado a suprir as lacunas da modernidade. dizer que a soberania se encontra moribunda
nova “desordem” internacional com a internacio- Diante dessa realidade histórica, surgem utopias, quando assistimos à sua reinvenção? Se, por um
nalização da economia e a disputa acérrima por inesperadamente fortes, que questionam o real lado, as fronteiras se encontram permeáveis pela
regiões e por mercados, onde os Estados nacio- em termos críticos, mobilizadoras da praxis volta- interdependência, por outro lado, são os Estados
nais se encontram apagados. Estamos a caminhar da para o surgimento de uma sociedade global quem o permite com a sua participação no siste-
a passos largos para um mundo onde a lei é a lei baseada na autodeterminação dos povos, que ma internacional que, de facto, é um acto de so-
de quem tem a força do poder. Não são os Estados vise a justiça social e o bem comum da humanida- berania por excelência. Falar do fim da soberania,
Soberanos quem regulará, mas sim quem tem de, que seja ordenada por um poder central autó- na senda de Habermas, por exemplo, parece-nos
“a” força. Urge que tome um rumo, ou corre o nomo, com força coerciva que limite o poder precipitado. Parece-nos defensável sim, que se
risco de se transformar numa constante corrida soberano dos Estados. Talvez surja uma nova vive uma adaptação do conceito de soberania,
à resposta dos interesses dos cidadãos ou pros- sociedade transnacional, como os defensores do sendo esta o principal atributo na relação entre
segue maravilhada, com a economia inerente ao fim da soberania preconizam, que substitua a ac- os Estados interdependentes. n
“jogo da roleta” e ao paradigma chinês. tual sociedade anárquica de Estados soberanos,
Os efeitos incontornáveis, incontroláveis do pro- em que haja solidariedade entre os povos com
cesso de globalização tornam premente a busca o desaparecimento das fronteiras económicas,
de soluções, aproveitando naturalmente os bené- sociais, raciais, políticas e culturais, que busque
ficos e necessários avanços científico-tecnológicos. minimizar a diferença de poder nas relações in-
No combate a esta hegemonia, é importante ter ternacionais, moderar os conflitos de interesse e
em conta alguns aspectos fundamentais. O primei- garantir a paz. Se será através de um Estado univer-
ro aspecto é tornar funcionais os Estados nacio- sal, um constitucionalismo global, da reformula-
nais, olhando para as interdependências mundiais ção da ONU, de um sistema universal confederado
com base na revalorização do território; outro é o de blocos ou Estados, um pacto planetário, ou
repensar da cidadania clássica, dando-lhe um ca- outro modelo não imaginado, somente o tempo
riz menos nacional e mais cosmopolita; outro longo das relações internacionais o poderá revelar.
ainda é transformar o ser humano num ser har- Entretanto apenas há uma certeza: neste novo
monioso, com um preceito de sustentabilidade. modelo a soberania moderna absoluta sucumbiu
Encontramo-nos numa encruzilhada que exige da (Rocha-Cunha, 2008).
cidadania não a negação da globalização, mas sim
a reinvenção dos objectivos dessa globalização. Considerações finais
Torna-se obrigatório desconstruir o pensamento A globalização ancorada à concepção do Estado
único, reinventar a mecânica do poder que ora moderno, com práticas ancestrais, em todos os
homogeneíza ora fragmenta a sociedade planetá- domínios, requer uma extraordinária adaptação
ria, mudar a concepção económica de competi- ao actual momento que obriga a que os Estados
ção sem medida dos mercados, optar pelos valo- abram as portas às poderosas organizações e em-
res de reciprocidade, integridade e respeito entre presas transnacionais, permitindo a ingerência na
indivíduos livres, resgatar a dignidade humana. sua vida política e legislativa. Embora discutível é,
O colapso da soberania face às incongruências no entanto, inegável que a globalização é limita-
imprevisíveis da globalização em que o poder de dora dos Estados e da Soberania Suprema veste-
facto foi transferido para mãos indefinidas, acon- faliana, permitindo que os processos decisórios Referências
teceu por vontade ambiciosa daqueles que deve- sejam influenciados por diversos elementos que
BULL, Hedley. A sociedade anárquica – Um estudo da ordem
riam ser os seus guardiães. A lógica das consequên- não apenas os próprios interesses. na política mundial. Imprensa Oficial do Estado Editora,
Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais. São Paulo, 2002.
CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e Cidadãos. Conflitos
Multiculturais da Globalização. UFRJ. RJ., 1996.
Poder político e globalização COSTA, Edmilson. A globalização e o capitalismo
contemporâneo. 1ª Edição. Editora Expressão Popular,
O Homem evolui arquitectando impérios e desmembramentos, articulando Nações que se desmoronam, São Paulo, 2008.
segmentam e reactualizam diferentes, mas sem perder a sua identidade. HABERMAS, Jürgen. O Estado-nação europeu frente
aos desafios da globalização: o passado e o futuro da
Sendo o Homem um Ser Social, um “animal político” no dizer de Aristóteles, necessita dos outros
soberania e da cidadania. Tradução de António Sérgio Rocha.
homens para se concretizar, para evoluir. Esta necessidade natural de socialização aprofundou o contacto Novos Estudos CEBRAP. 43, 1995.
entre Homens, entre Povos, fomentando a tão falada globalização. O que somos, o que fazemos e a forma HOBSBAWN, Eric. Globalização, Democracia e Terrorismo.
como o fazemos é o produto de civilizações que se gladiam entre si para sobreviverem e sobrepor. Cia das Letras. SP., 2007.
Não é de admirar que o tradicional conceito de soberania, organizado no séc. XVI por Jean Bodin, KRASNER, Stephen D. Soberania, hiprocresía organizada,
e acarinhado pelo Tratado de vestefália se encontre ultrapassado e com pouca adequação nos nossos Paidos, 2001.
ROCHA-CUNHA, Silvério da — Trabalhos de Sísifo do Direito
dias, levando a que muitos dos autores actuais pensem sobre a sua reformulação para que possa ser
e da Politica no actual labirinto da Sociedade Mundial,
aplicado à modernidade. in idem (ed), Politica, Cidadania & Cultura numa Era Global,
Nesta Era Global, com a crise moral das instituições políticas das Nações, e a transferência do poder Évora, 2005.
para mãos indefinidas, torna-se imperioso que se estabeleçam critérios precisos para um eficaz desempe- ROCHA-CUNHA, Silvério da — O improvável que aconteceu
nho do poder político, retirando a soberania das nações do alvo das ingerências dos Estados potências e outros estudos em torno de dilemas do direito e da política
mundiais. Torna-se necessário precisar as novas fontes de poder geradas pela globalização, sua natureza, numa era global. Ribeirão : Húmus, 2008.
STUART, Hall. 2001. A Identidade Cultural
lógica, legitimidade.
na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP e A Editora.

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