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CURSO

Módulo 1

Noções introdutórias sobre


migração, tráfico de pessoas
e crimes correlatos
RESUMO:
Serão apresentados dados e marcos jurídicos,
internacionais e nacionais, sobre migração, tráfico
de pessoas e crimes correlatos.
CURSO

Módulo 1

Noções introdutórias sobre


migração, tráfico de pessoas
e crimes correlatos
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

Presidente CENTRO DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE


Ministra Rosa Weber SERVIDORES DO PODER JUDICIÁRIO (CEAJUD)
Corregedor Nacional de Justiça Chefe do CEAJud
Ministro Luis Felipe Salomão Diogo Albuquerque Ferreira
Conselheiros Servidores
Luiz Philippe Vieira de Mello Filho Alana Oliveira Viana
Mauro Pereira Martins Aline Ribeiro de Mendonça
Richard Pae Kim Anali Cristino Figueiredo
Salise Monteiro Sanchotene Guilherme Coutinho de Oliveira
Marcio Luiz Coelho de Freitas Rodrigo Pereira da Silva
Jane Granzoto Torres da Silva Rossilany Marques Mota
Giovanni Olsson
Sidney Pessoa Madruga
João Paulo Santos Schoucair
Marcos Vinícius Jardim Rodrigues
Marcello Terto e Silva ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES
Mário Henrique Aguiar Goulart Ribeiro Nunes Maia
Chefe de Missão da OIM no Brasil
Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho
Stéphane Rostiaux

Secretário-Geral
Gabriel da Silveira Matos
EXPEDIENTE TÉCNICO
Secretário Especial de Programas,
Pesquisas e Gestão Estratégica Coordenação Executiva
Ricardo Fioreze Marcelo Torelly
Natália Maciel
Diretor-Geral
Johaness Eck Conteúdo original
Tatiana C. Waldman
Revisão de conteúdo
Jennifer Alvarez
Natália Maciel
Tatiana Waldman

Com as seguintes contribuições


Daniel Chiaretti
Jamile Freitas Virginio
SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Secretária de Comunicação Social


Cristine Genú
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES
Chefe da Seção de Comunicação Institucional
SAS Quadra 05, Bloco N, Ed. OAB, 3º Andar — Brasília-DF
Rejane Neves
CEP: 70070-913
Projeto gráfico
Eron Castro
Revisão
Carmem Menezes

2023
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
SAF SUL Quadra 2 Lotes 5/6 - CEP: 70070-600
Endereço eletrônico: www.cnj.jus.br
SUMÁRIO

BOAS-VINDAS AO CURSO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

1 APRESENTAÇÃO DO MÓDULO 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

2 SOBRE AS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11


2.1 Conceitos e conjunturas: uma breve apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
2.2 Marcos da legislação internacional e nacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
2.3 As implicações da adoção de políticas migratórias
austeras nos projetos migratórios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

3 SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32


3.1 Conceito e conjuntura: uma breve apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
3.2 Uma introdução ao tráfico de pessoas no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

4 CRIMES CORRELATOS AO TRÁFICO DE PESSOAS . . . . . . . . . . . . . . . 48


4.1 Contrabando de migrantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
4.2 Trabalho escravo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
4.3 Tráfico de drogas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
4.4 Considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
LISTA DE SIGLAS

Organização Internacional para as Migrações (OIM)

Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe)

Cadastro de Pessoa Física (CPF)

Classificação Brasileira de Ocupações (CBO)

Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae)

Escola de Magistratura (EMAG TRF3)

Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC)

Fórum Nacional de Direitos Humanos (FONADIRH)

Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM)

Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)

Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC)

Ministério do Trabalho e Previdência (MTP)

Organização Internacional do Trabalho (OIT)

Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)

Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT)

Tribunal Regional da 3.ª Região (TRF3)

Universidade Federal de Roraima (UFRR)


Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Boas-vindas ao curso

O Brasil tem feito esforços significativos para lidar com o tráfico de pessoas
e crimes correlatos. Em 2016, foi aprovada a Lei n. 13.344, definindo o termo
tráfico de pessoas de acordo com os padrões internacionais. Em 2017, a atual
Lei de Migração (Lei n. 13.445) é aprovada contemplando, em seu conteúdo,
pela primeira vez na legislação brasileira, o contrabando de migrantes.

Ainda assim, os casos de tráfico de pessoas no país, tanto em âmbito interno


como internacional, envolvendo vítimas brasileiras e não brasileiras, continu-
am subnotificados e, muitas vezes, erroneamente classificados como outros
crimes. Especialmente mulheres, crianças e jovens se encontram em situação
de vulnerabilidade diante das redes criminosas.

Dessa forma, a OIM, Agência da ONU para as Migrações, e o Conselho Nacional


de Justiça (CNJ) reuniram-se para promover a elaboração deste curso inter-
disciplinar sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos. O curso foi
desenvolvido no âmbito do projeto Fortalecendo as Capacidades do Sistema
de Justiça para o Combate ao Tráfico de Pessoas e Crimes Correlatos, com
apoio do Fundo da OIM para o Desenvolvimento.

O curso Brasil sem tráfico humano tem, como objetivo, promover o enten-
dimento sistêmico sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos e a
capacitação dos agentes do Sistema de Justiça e dos atores chave na Política
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil.

O seu conteúdo, dividido em quatro módulos, foi elaborado a partir de dife-


rentes perspectivas e conta com a contribuição de profissionais que atuam
cotidianamente na linha de frente do enfrentamento ao tráfico de pessoas
no país.

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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Este curso será disponibilizado integralmente a distância (EaD) e se baseará


na metodologia autoinstrucional, por meio da qual você estudará de forma
autônoma, organizando seus estudos de acordo com a sua rotina e sem a
presença de um(a) tutor(a).

A sugestão é que os módulos sejam realizados na sequência proposta no


ambiente virtual, uma vez que esta foi construída levando em consideração a
melhor compreensão do seu conteúdo.

Sejam todas e todos muito bem-vindas e bem-vindos ao curso!

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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

1
APRESENTAÇÃO
DO MÓDULO 1
Sejam bem-vindas e bem-vindos ao primeiro módulo do curso Brasil sem
tráfico humano!

Neste módulo, serão apresentados dados e marcos jurídicos, internacionais e


nacionais sobre a migração, o tráfico de pessoas e os crimes correlatos.

Em um primeiro momento, aproximar-nos-emos das migrações internacionais,


conhecendo o seu conceito, compreendendo o cenário contemporâneo da mo-
bilidade humana e tendo contato com noções introdutórias sobre a legislação
nacional e internacional. A partir desse cenário, refletiremos sobre a crescente
implementação de políticas migratórias que adotam critérios austeros para
entrada e permanência nos países e suas implicações nos projetos migratórios,
especialmente das pessoas migrantes em situação de vulnerabilidade.

Em seguida, conheceremos o conceito do tráfico de pessoas, teremos contato


com um panorama da ocorrência do crime no contexto global e começaremos
a nos apropriar dos marcos legais internos e internacionais referentes ao tema.

Por fim, o Dr. Daniel Chiaretti brindar-nos-á com reflexões sobre os crimes
correlatos ao tráfico de pessoas, incluindo considerações sobre a relação que
o tráfico de pessoas possui com outros delitos, como o trabalho escravo, o
contrabando de migrantes e o tráfico de drogas.

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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Este módulo contará, ainda, com as contribuições da Divisão de Fiscalização


para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), que apresentará sua atuação
no combate ao trabalho escravo.

A proposta é introduzir o curso a partir de uma aproximação preliminar com


seus temas centrais. Ao finalizar o módulo, a expectativa é que você esteja
preparada(o) para identificar os principais conceitos que envolvem a migração,
o tráfico de pessoas e crimes correlatos, tenha tido contato com as legislações
relacionadas e tenha conhecimento introdutório das respectivas conjunturas.

Vamos dar início ao Módulo 1!

Ao percorrer este módulo, você observará sugestões de referências comple-


mentares como livros, relatórios, reportagens, podcasts, vídeos, sites etc.

Não deixe de explorar esse material que foi selecionado com o objetivo de
aprofundar as discussões apresentadas no curso!

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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

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SOBRE AS
MIGRAÇÕES
INTERNACIONAIS
2.1 Conceitos e conjunturas: uma breve apresentação

Viemos com uma mala cheia de roupas,


mas trouxemos também uma mochila cheia de sonhos.
Yelitza Josefina Paredes, venezuelana residente no Brasil1

Pessoas de todo o mundo anseiam sair de seus países ou cidades tocadas


pelos mais diversos desejos e necessidades: conhecer e ter contato com uma
nova cultura, reunir-se com familiares, buscar oportunidades de emprego e
estudos, ter acesso a direitos fundamentais como saúde e moradia, fugir de
desastres naturais, buscar proteção diante de guerras e perseguições em razão
de sua opinião política, religião, orientação sexual, dentre tantos outros fins.

Comumente escutamos que no mundo contemporâneo há facilidades para a


circulação de pessoas e, especialmente, de bens.

1 Disponível em: https://www.gov.br/acolhida/depoimentos/. Acesso em: 25 jun. 2022.

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Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Que a tecnologia tornou possível meios de transportes mais velozes e seguros –


bastam poucas horas para percorrer longas distâncias e ultrapassar fronteiras
internacionais.

Que há oportunidades de emprego e estudos em diferentes países que nos


chegam via mídias digitais ou por meio de nossas redes de contato.

Que é factível, em razão do trabalho na modalidade remota, viver e trabalhar


em diferentes localidades. Podemos, dessa forma, residir em um novo país
sem ter de deixar ou mudar de emprego.

Que as redes sociais e os aplicativos de relacionamento encurtam as distâncias,


permitindo-nos conhecer e encontrar parceiras e parceiros das mais distantes
nacionalidades.

PARA REFLETIR:

Quantas e quais pessoas hoje conseguem deixar o seu


país de origem, ultrapassar uma fronteira internacional,
ingressar e permanecer nos estados de destino?

Dados recentes (do ano de 2020) da Agência da ONU para as Migrações sobre a
mobilidade humana indicam que uma em cada 30 pessoas em todo o mundo
reside em um país diferente daquele em que nasceu, o que representa 3,6%
da população mundial ou 281 milhões de migrantes internacionais.2

A migração internacional se caracteriza pelo movimento de pessoas que dei-


xam os seus estados de origem ou de residência habitual e cruzam fronteiras

2 IOM, World Migration Report 2022.

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Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

internacionais para residir, de maneira temporária ou permanente, em outro


país.3 Há, portanto, um anseio de permanecer, ainda que temporariamente,
criando vínculos no estado de destino.

Quando este movimento de pessoas acontece dentro de um mesmo país, sem


ultrapassar fronteiras internacionais, este é chamado de migração interna.

Fato é que as migrações dentro de um mesmo Estado nacional são muito mais
numerosas que as migrações internacionais. Informações do ano de 2009
indicavam números expressivos que chegavam à marca de 740 milhões de
pessoas migrantes internas.4

SAIBA MAIS:
Surgiu uma dúvida sobre algum termo no campo das migrações?
Consulte o Glossário sobre Migrações (Agência da ONU para
as Migrações, 2019), disponível na biblioteca virtual do curso!

Essa população de pessoas migrantes internacionais encontra-se em diferentes


regiões do planeta, mas é importante observar que existe uma variação ex-
pressiva na sua representatividade diante da população nacional dos estados
de destino.

Nos Emirados Árabes Unidos, por exemplo, 88,1% da população são migrantes
internacionais e, nos Estados Unidos, está porcentagem chega a 15,3%, já no
Brasil a população de migrantes internacionais representa apenas 0,5%.5

3 OIM, 2010, p. 42.


4 IOM, World Migration Report 2022.
5 IOM, World Migration Report 2022.

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Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

SAIBA MAIS:
Quer saber mais sobre a conjuntura migratória contemporânea no
mundo? Consulte a publicação Informe sobre as migrações no
mundo (Agência da ONU para as Migrações, 2022), disponível nas
versões em língua inglesa e espanhola na biblioteca virtual do curso!

Um dado interessante a ser observado é que, de acordo com a Agência da


ONU para as Migrações, o Brasil acolhia, em 2019, 1.027.251 migrantes inter-
nacionais em seu território, o que representava, como foi mencionado, 0,5%
da sua população. Já o número de brasileiros que residiam no exterior era de
1.745.339, o que representava 0,8% da sua população nacional.6

As estimativas feitas pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, a partir


do levantamento das comunidades brasileiras residentes no exterior e tendo
como referência o ano de 2020, indicam um número mais expressivo: 4,2 mi-
lhões de pessoas de origem brasileira seriam migrantes internacionais. Grande
parte delas concentradas nos Estados Unidos, em Portugal, no Paraguai, no
Reino Unido e no Japão.7

6 OIM, Informe migratorio sudamericano: tendencias migratorias en América del Sur, p. 1.


7 Informações disponíveis em: https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/portal-consular/artigos-variados/comunida-
de-brasileira-no-exterior-2013-estatisticas-2020. Acesso em: 25 jun. 2022.

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Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

SAIBA MAIS:
Quer saber mais sobre as comunidades brasileiras residentes no
exterior? Consulte a publicação Comunidade Brasileira no Exterior:
estimavas referentes ao ano de 2020 (Ministério das Relações
Exteriores do Brasil, 2021) disponível na biblioteca virtual do curso!

Fato incontestável é que o número de brasileiros que migram para outros


países é, portanto, superior ao número de migrantes que encontram o Brasil
como país de destino.

Conheça a história do brasileiro Nivaldo Ciriaco.


Ele vivia em Belarus, onde era treinador de futebol,
até a pandemia de covid-19 mudar seus planos de vida.
“A gente tinha muito medo de alguém ficar
doente aqui e acontecer o pior...”

https://www.youtube.com/watch?v=WZArC-smoFE

Outra informação interessante de ser destacada é que 44,4% da população


migrante internacional que reside no Brasil é originária dos países vizinhos
da América do Sul. Nota-se, também, a presença significativa de migrantes do
Sul Global:8 provenientes do Caribe (especialmente do Haiti), da África (com
representatividade de países como Angola, Nigéria e República Democrática
do Congo) e da Ásia (com a presença de pessoas nacionais de países como
China, Bangladesh e Síria).

8 OIM, Informe migratorio sudamericano: tendencias migratorias en América del Sur.

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Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

SAIBA MAIS:
Quer saber mais sobre a conjuntura migratória contemporânea
na América do Sul? Consulte a publicação Informe Migratório
Sul-americano: Tendências Migratórias na América do
Sul (Agência da ONU para as Migrações, 2020), disponível na
versão em língua espanhola na biblioteca virtual do curso!

Você conhece alguma pessoa que migrou?


Conheça a história de pessoas migrantes que
residem no Brasil, a partir de três perguntas:
qual a palavra mais interessante que aprenderam em português?
Qual o lado positivo da migração?
Qual a primeira lembrança no Brasil?

https://www.youtube.com/watch?v=cgz2LoyNY2w&list=PL7MX
W4MyQugcfwG09PVfp7zSt-JByXQUR

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As pessoas em situação de refúgio

You have to understand


that no one puts their children in a boat
unless the water is safer than the land

Você tem de entender


que ninguém coloca seus filhos em um barco
a menos que a água seja mais segura que a terra
home/casa
Warsan Shire9

No mundo contemporâneo, não há como falar de movimentos de pessoas sem


refletir sobre a significativa parcela desta população que se desloca de forma
forçada.
De acordo com a Agência da ONU para Refugiados, ao final de 2021, o número
de pessoas deslocadas de forma forçada em razão de perseguições, conflitos,
violência e violações de direitos humanos chegou a 89,3 milhões, incluindo pes-
soas reconhecidas como refugiadas, solicitantes de refúgio e pessoas deslocadas
internamente.10
E ainda neste primeiro semestre de 2022, o número de pessoas em deslocamen-
to forçado ultrapassou 100 milhões de pessoas: o que significa 1 em cada 78
habitantes do planeta.11
O Brasil, ao final do ano de 2021, contava com pouco mais de 60 mil pessoas re-
conhecidas como refugiadas. Neste mesmo ano, 29.107 mil pessoas provenientes
de 117 países solicitaram refúgio no país, especialmente da Venezuela (78,5%),
Angola (6,7%) e Haiti (2,7%).12
No Brasil, uma pessoa é reconhecida como refugiada nas situações em que foi
forçada a deixar o seu país de origem ou, não tendo nacionalidade, o país de

9 Disponível em: https://traducaoliteraria.wordpress.com/2015/09/02/casa-de-warsan-shire/. Acesso em: 25


jun. 2022.
10 UNHCR, Global Trends Forced Displacement in 2021.
11 ACNUR. 100 milhões de pessoas no mundo estão deslocadas, aponta ACNUR.
12 JUNGER, CAVALCANTI, OLIVEIRA, SILVA, 2022.

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residência habitual, e que não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal
país, em razão de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social, opiniões políticas ou grave e generalizada violação
de direitos humanos (artigo 1.º, Lei n. 9.474/1997).
A partir do momento em que registra sua vontade de solicitar o reconhecimento
da sua condição no país de destino, passa a ser considerada uma pessoa soli-
citante de refúgio por todo o período que se encontra aguardando a decisão
final do seu processo.
No caso das pessoas deslocadas internamente, estas “foram forçadas ou obri-
gadas a fugir ou a abandonar os seus lares ou locais de residência habitual, em
consequência de (ou para evitar os efeitos de) conflitos armados, situações de
violência generalizada, violações de direitos humanos ou desastres naturais ou
causados pelo homem e que não atravessaram nenhuma fronteira estadual inter-
nacionalmente reconhecida (Princípios Orientadores em matéria de Deslocações
Internas, ONU Doc E/CN.4/1998/53/Add.2)”.13

SAIBA MAIS:
Quer saber mais sobre a conjuntura contemporânea de
deslocamentos forçados no mundo? Consulte a publicação
Tendências Globais – Deslocamento Forçado em 2021
(Agência da ONU para Refugiados, 2022) disponível na
versão em língua inglesa na biblioteca virtual do curso!

13 OIM, 2010. p. 54-55.

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Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

SAIBA MAIS:
Quer saber mais sobre a conjuntura contemporânea de
pessoas em situação de refúgio no Brasil? Consulte a
publicação Refúgio em Números (Observatório das Migrações
Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública /
Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigração
Laboral, 2022) disponível na biblioteca virtual do curso!

Acesse também a série de vídeos “Ser Brasil – Migrantes


e Refugiados”. Ela nos apresenta, em nove episódios, as
histórias e os sonhos de pessoas migrantes e refugiadas que
buscam uma nova vida no Brasil. Ao final de cada episódio,
especialistas fornecem orientações sobre direitos e a
legislação brasileira, além de canais de ajuda e denúncias.

https://www.youtube.com/watch?v=EzsNEj_
PZC4&list=PL7MXW4MyQuge_I3ze-
0iVbheSwu6og6W2&index=5

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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

2.2 Marcos da legislação internacional e nacional

Diante da conjuntura nacional e internacional de pessoas em situação de mo-


bilidade, incluindo também as pessoas forçadas a se deslocarem, é importante
reforçar o que afirma a Declaração Universal dos Direitos Humanos: “todo
ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como
pessoa perante a lei” (artigo VI).

Isso significa que não perdemos a titularidade de direitos humanos ao sair dos
nossos países de origem, afinal: o exercício desses direitos está vinculado à
nossa condição humana e, não, a uma localização no planeta Terra.

Ao migrar, migram conosco nossos direitos.

Direitos universais que devem ser garantidos a todas as pessoas pelo fato de
serem pessoas, independentemente de nacionalidade, sexo, raça, religião ou
condição migratória.

Há, no contexto contemporâneo, número significativo de normas internacio-


nais de direitos humanos, mas é importante destacar para este curso um mar-
co jurídico internacional de grande importância para a proteção e garantia de
direitos às pessoas migrantes: a Convenção Internacional sobre a Proteção
dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas
Famílias adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas,
em 18 de dezembro de 1990, por meio da Resolução n. 45/158.

Ainda que seu conteúdo reforce a afirmação de muitos direitos já reconheci-


dos a todos os seres humanos – a partir de uma leitura preocupada com as
peculiaridades vivenciadas por pessoas em situação de mobilidade, inclusive
daquelas em condição migratória indocumentada14 – o fato de a Convenção

14 Cf. Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros
das suas Famílias, artigo 35.

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Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

ter entrado em vigor somente em julho de 2003 traz indicativos da resistência


de muitos países em se comprometer internacionalmente com a garantia de
direitos à população migrante. Afinal, foram mais de dez anos de espera para
a ratificação/adesão de 20 Estados.

Em junho de 2022, a Convenção permanece com uma baixa adesão: conta com
a ratificação de apenas 57 países.15 O Brasil é um dos estados que ainda não a
ratificou, mesmo tendo se comprometido a realizá-la nas duas primeiras edi-
ções do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e ter sua tramitação
em curso no Congresso Nacional há mais de uma década.

É importante lembrar que o Brasil retornou em 2023 ao Pacto Global para


Migração Segura, Ordenada e Regular, documento que reconhece a neces-
sidade da cooperação internacional para melhor gerenciar os movimentos
migratórios e fortalecer a proteção e a garantia de direitos à população mi-
grante16 e constata que o risco da ocorrência do tráfico de pessoas é maior
quando a migração é insegura, desordenada e irregular. Neste sentido, o Pacto
estabelece como elementos centrais a prevenção, o combate e a erradicação
do tráfico de pessoas no contexto da migração internacional.17

No campo regional, o cenário torna-se mais receptivo em razão dos Acordos


sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercado Comum
do Sul (MERCOSUL), Bolívia e Chile,18 que têm o propósito de fortalecer o
processo de integração regional e conceder às pessoas cidadãs do MERCOSUL
o direito de residir em Estado Parte ou associado. No momento, encontram-se
em vigência para Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai,
Peru e Uruguai.19

15 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Coleção de tratados. Disponível em: https://treaties.un.org/Pages/
ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-13&chapter=4&clang=_en. Acesso em: 26 jun. 2022.
16 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Mais de 160 países adotam Pacto Global para a Migração.
17 IOM, World Migration Report 2022.
18 Promulgados no Brasil por meio do Decreto n. 6.975/2009.
19 Cf. https://www.mercosur.int/pt-br/cidadaos/residir/. Acesso em: 26 jun. 2022.

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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Em âmbito nacional, o Brasil avançou com a aprovação, em 2017, da Lei de


Migração (Lei n. 13.445/2017) https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2017/Lei/L13445.htm. Ela substituiu a legislação anterior, o Estatuto do
Estrangeiro (Lei n. 6.815/1980) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6815.
htm, que esteve vigente por mais de quatro décadas e que tinha seu conteúdo
pautado pela Segurança Nacional.

Sob a vigência desse Estatuto, a população migrante enfrentou significativas


fronteiras para o acesso a direitos fundamentais, como o direito universal à
educação, já que seu conteúdo se encontrava em desarmonia com os preceitos
constitucionais instituídos a partir de 1988 com a promulgação da Constituição
Federal http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

A atual Lei de Migração foi resultado de anos de mobilização e debates por par-
te de sociedade civil e seu conteúdo reflete muitas das demandas apresentadas
pela população migrante. Há uma mudança de perspectiva: de uma lei baseada
na Segurança Nacional para uma lei cuja essência é a garantia de direitos das
pessoas que aqui chegam e das brasileiras que residem no exterior. Não se
trata mais de um Estatuto do Estrangeiro, mas, sim, de uma Lei de Migração.

SAIBA MAIS:
Quer saber mais sobre o processo de elaboração e tramitação da Lei de
Migração? Consulte a publicação Estrangeiro, nunca mais! Migrante
como sujeito de direito e a importância do advocacy pela nova Lei
de Migração brasileira, de Cyntia Sampaio e Ebenezer Oliveira (Centro
de Estudos Migratórios, Laudes Foundation, Missão Paz, Conectas
Direitos Humanos, 2020) disponível na biblioteca virtual do curso!

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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

A política migratória brasileira passa a ser orientada por princípios e diretrizes


como a não criminalização da migração, a acolhida humanitária, a garantia do
direito à reunião familiar, o repúdio e a prevenção à xenofobia, ao racismo e a
quaisquer formas de discriminação e o acesso igualitário e livre do migrante a
serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência
jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social
(artigo 3.º, Lei de Migração).

SAIBA MAIS:
Conheça o aplicativo Guia de Direitos e Serviços para Migrantes no
Brasil https://brazil.iom.int/pt-br/news/aplicativo-guia-de-direitos-e-
servicos-para-migrantes-no-brasil-reune-informacoes-sobre-politicas-
publicas-direitos-e-servicos-no-pais desenvolvido com foco nas
populações migrantes que vivem ou desejam viver no Brasil, incluindo
migrantes internacionais, migrantes internos, brasileiros retornados,
sendo uma ferramenta de apoio fundamental em seus processos de
preparação para migrar, chegada, deslocamento e integração no país.

A migração e o desenvolvimento humano no local de origem passam a ser


afirmados como direitos inalienáveis de todas as pessoas (artigo 3.º, Lei de
Migração).

São incluídas, de forma inédita, seções específicas para a proteção de pessoas


apátridas e a redução da apatridia, assim como um capítulo exclusivo para
tratar de políticas públicas e da garantia de direitos às pessoas brasileiras
residentes no exterior e um artigo definindo, pela primeira vez na legislação
brasileira, o contrabando de migrantes (este último será objeto de aprofun-
damento ainda neste primeiro módulo).

23
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

A Lei de Migração considera como apátrida toda a pessoa que não seja con-
siderada nacional por nenhum Estado (artigo 1.º, § 1.º, VI).

Conheça a trajetória de Maha, nascida


apátrida e hoje, cidadã brasileira.
“Este é o sonho da minha vida se tornando realidade”

https://www.youtube.com/watch?v=oGIiXZ8nA3o

Por fim, cabe registrar que o Projeto de Lei n. 2.516/2015, que instituiu a Lei
de Migração, teve 20 vetos http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2017/Msg/VEP-163.htm. Entre eles, estava a concessão de autorização
de residência para pessoas que se encontravam no Brasil, independentemente
de sua situação migratória prévia, desde cumprissem determinados requisitos.
Importa destacar que a documentação é demanda importante da população
migrante e se encontra em consonância com um princípio orientador da polí-
tica migratória brasileira: a “promoção de entrada regular e de regularização
documental” (artigo 3.º, V, Lei de Migração).

A regulamentação da Lei de Migração se deu poucos meses depois, por meio


do Decreto n. 9.199, de 20 de junho de 2017 http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_Ato2015-2018/2017/Decreto/D9199.htm, e sofreu questionamentos por
parte da sociedade civil no que diz respeito a seu conteúdo e às limitadas vias
de participação ao longo do processo de elaboração desse documento legal.20

20 Cf. DELFIM, 2017.

24
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

SAIBA MAIS:
Confira o artigo A Lei de Migração e o Decreto de
Regulamentação: entraves e desafios https://migramundo.
com/a-lei-de-migracao-e-o-decreto-de-regulamentacao-
entraves-e-desafios/ (Caio Serra, Migramundo, 2022) que faz
um balanço dos cinco anos de vigência de Lei de Migração!

Sugerimos que você assista o Seminário da Comissão de


Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados,
realizado no dia 2 de junho de 2022, destinado a
debater os cinco anos da Lei de Migrações!

https://www.camara.leg.br/evento-legislativo/65347

25
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Sobre o refúgio

Em termos de marcos da legislação internacional que tratam da questão do refú-


gio, é importante mencionar a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados
(ONU, 1951) e o Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados (ONU, 1967).
O Brasil promulgou a Convenção em 1961, por meio do Decreto n. 50.215 http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/d50215.htmt21 o Protocolo em
1972, por meio do Decreto n. 70.946 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-
to/1970-1979/D70946.htm
No âmbito regional, cabe destacar a Declaração de Cartagena, de 1984, instru-
mento regional da América Latina e Caribe.
No campo nacional, a legislação brasileira que trata do tema do refúgio é a Lei n.
9.474, de 22 de julho de 1997 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm.

Assista ao vídeo do evento de lançamento do Refúgio


em Números e do novo painel interativo de decisões
sobre refúgio no Brasil que inclui uma mesa que
reflete sobre os 25 anos da Lei n. 9.474/1997!
https://www.youtube.com/watch?v=QGKfTBOVTXY

A plataforma on-line HELP https://help.unhcr.org/brazil/#_ga=2.20


8602970.954471142.1572365453-301579521.1348448109 tem como proposta
apoiar pessoas em situação de refúgio, seus familiares e organizações que traba-
lham com essa população, disponibilizando informações em diferentes línguas:
português, inglês, espanhol, francês, árabe, farsi, pashtó, ucraniano e russo. Ela
pode trazer pontos interessantes para você que tem contato com pessoas em
situação de refúgio, por isso, acesse!

21 Que ganhou nova redação por meio do Decreto n. 98.602, de 19 de dezembro de 1989 (http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/D98602.htm), retificado posteriormente pelo Decreto n. 99.757, de 29 de
novembro de 1990 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99757.htm).

26
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

2.3 As implicações da adoção de políticas migratórias


austeras nos projetos migratórios

El derecho de viajar, huir, escapar


No es solo una actitud de quien teme
Es un desafío de quien mas no puede sostener su realidad,
Es la dignidad de quien decide cambiar.

O direito de viajar, fugir, escapar


Não é apenas uma atitude de quem teme
É um desafio de quem não consegue sustentar sua realidade,
É a dignidade de quem decide mudar.
No Me Dejaron/Não me deixaram
Krudas Cubensi

PARA REFLETIR:

Depois de nos aproximar de conceitos, dados e legislações,


é interessante retomar a reflexão que foi o ponto de
partida deste curso: quantas e quais pessoas hoje
conseguem deixar o seu país de origem, ultrapassar uma
fronteira internacional, ingressar e permanecer nos
estados de destino?

Os dados divulgados pelas organizações internacionais e pelo próprio Estado


brasileiro dão conta de nos apresentar um panorama parcial das pessoas em
movimento. Muitas delas se encontram à margem dos registros oficiais: seja
porque chegam como visitantes (com o fim de turismo, trânsito, negócios etc.)
e acabam permanecendo no país sem a autorização de residência, ou ingres-
sam no país sem passar pelos controles migratórios, ou mesmo porque não
conseguem chegar ou ingressar ao país de destino final.

27
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Nesse sentido, são publicadas, cotidianamente, notícias que nos aproximam da


situação de milhares de pessoas que arriscam suas vidas em rotas perigosas
na tentativa de viver em um país diferente daquele que nasceram.

SAIBA MAIS:
Vocês se recordam das recentes notícias de mortes de
brasileiros tentando chegar aos Estados Unidos?
Leia a reportagem Brasileira relata desespero ao ver marido
e filha de 1 ano morrerem afogados ao cruzar rio para os
EUA (BBC News Brasil em São Paulo, Felipe Souza, 29 abril 2022):
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61195181?fbclid=IwAR2C
eyFYwHIUv45yytq1xVkKjgsipylMj-x05EO9XTEfodhxGISfSfs9h3U
Ou das dezenas de pessoas encontradas mortas
em um caminhão nos Estados Unidos?
Leia a reportagem Ao menos 50 pessoas são encontradas
mortas em caminhão abandonado nos EUA (Folha de São
Paulo, 27 de junho de 2022) https://www1.folha.uol.com.
br/mundo/2022/06/mais-de-40-pessoas-sao-encontradas-
mortas-em-caminhao-abandonado-nos-eua.shtml

A Agência da ONU para as Migrações, por meio do Projeto Migrantes De-


saparecidos, documenta a morte e o desaparecimento de pessoas durante
a trajetória migratória. A organização estima que, desde o ano de 1996, ao
menos 75 mil pessoas perderam suas vidas tentando migrar para outro país.22

22 OM, 2019. p. 17.

28
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

SAIBA MAIS:
Quer se informar sobre a morte e o desaparecimento de
pessoas durante a trajetória migratória, particularmente de
crianças? Consulte a publicação Travessias Mortais: crianças
migrantes desaparecidas (OIM, 2019) disponível na versão
em língua espanhola na biblioteca virtual do curso!

Essa realidade nos faz refletir sobre quais pessoas hoje (e sob quais condições)
conseguem deixar o seu país de origem, ultrapassar uma fronteira internacio-
nal, ingressar e permanecer nos estados de destino. A resposta, infelizmente,
é atravessada por critérios sobretudo de nacionalidade, raça e classe social.

Nota-se hoje uma crescente implementação de políticas migratórias cada vez


mais austeras e seletivas, que definem quem são as pessoas bem-vindas e
quem são as pessoas indesejadas.

Políticas migratórias são leis, regras, procedimentos e práticas implemen-


tadas pelos Estados com o objetivo de intervir no volume, na origem e na
composição dos movimentos migratórios.23

Ao primeiro grupo, há a concessão de vistos e autorizações de residência.

Ao segundo, são impostas inúmeras dificuldades para ingresso e/ou perma-


nência nos países de destino, seja por meio de ações de interceptação antes
mesmo da chegada dessas pessoas às fronteiras, muros, controles migrató-
rios severos, centros de detenção, separações de pais, mães, filhas e filhos,
deportações em massa.

23 DE HAAS, 2011.

29
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

O que a realidade tem demonstrado, no entanto, é que tais políticas se mos-


tram incapazes de conter a mobilidade humana. Ainda que tantas vidas se-
jam perdidas ao longo de percursos migratórios e que as rotas e os meios de
transporte estejam cada vez mais perigosos e custosos, as pessoas seguem
se arriscando pela necessidade ou pelo desejo de tentar encontrar uma nova
realidade em um país diferente daquele que nasceram.

Sem qualquer expectativa de conseguirem um visto ou uma autorização de re-


sidência, muitas pessoas acabam tentando ingressar e permanecer nos países
de destino sem autorização, tentando se esquivar das autoridades migratórias.
Outras tantas não veem outra saída senão a busca por redes de intermediários
que prometem facilitar a travessia e/ou permanência no destino desejado.

A austeridade das políticas migratórias somada ao número crescente de pes-


soas migrantes em situação de vulnerabilidade engendram um ambiente fa-
vorável para graves violações de direitos e práticas de crimes como o tráfico
de pessoas e o contrabando de migrantes (estes serão objeto de aprofun-
damento ainda neste primeiro módulo!).

Ambos os crimes são notadamente lucrativos.

O tráfico de pessoas está entre as cinco atividades do crime organizado que


ganham mais dinheiro no mundo (atrás apenas do narcotráfico e da falsifica-
ção) e movimenta mais de 30 bilhões de dólares anualmente.24

No Brasil, o mercado que promove a migração irregular de pessoas para outros


países, especialmente para os Estados Unidos, é o terceiro mais rentável, atrás
somente do tráfico de drogas e de armas. Estimativas da Polícia Federal para
o ano de 2021 indicam que o contrabando de migrantes tenha movimentado
R$ 8 bilhões.25

24 JUSTO, 2016.
25 O bilionário mercado da migração ilegal.

30
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

SAIBA MAIS:
Saiba mais sobre O bilionário mercado da migração ilegal
neste episódio do podcast Café da manhã – Folha de São Paulo:
https://open.spotify.com/episode/4e6cikq2fri6xp8v88IMvB?si=
z5zsE4OxQ_a6Pn9-UZqxOQ&utm_source=whatsapp&nd=1
De acordo com a reportagem, o estado de “Minas Gerais é um polo
desse mercado. Lá, uma estratégia incentivada pelos agenciadores
é a de fazer a travessia para solo americano com crianças,
aumentando as chances de permanência no país. Isso acabou
criando um mercado de aluguel de crianças, que são levados com
documentos falsos por adultos que se passam por pais delas”.

31
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

3
SOBRE O TRÁFICO
DE PESSOAS
3.1 Conceito e conjuntura: uma breve apresentação

Às vezes eu perguntava à minha patroa se podia pegar um ovo, e ela dizia que não.

Nos primeiros seis meses eu trabalhei sem nenhum dia de folga.

Relatos de mulheres filipinas, vítimas de tráfico de pessoas,


que vieram ao Brasil para trabalhar em residências de alta renda em São Paulo26

Mas, afinal, como podemos identificar o tráfico de pessoas?

Vamos começar nosso contato com esse crime a partir do vídeo


Tráfico de Pessoas – Mercado de Gente, da Repórter Brasil (2016):

https://www.youtube.com/watch?v=IaPob6A1MgE

26 LOCATELLI, 2017.

32
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Carlos e Joana foram aliciados por meio de propostas que indicavam boas
condições de trabalho e remuneração. Deslocaram-se para lugares distantes
(ele para outro estado brasileiro, ela para outro país) e somente longe de casa
puderam perceber a fraude. O trabalho e as condições de vida eram muito
diferentes do que havia sido prometido. Ambos foram traficados para serem
explorados.

Esta também é a situação de uma mulher paranaense, vítima de tráfico de


pessoas, que felizmente conseguiu retornar ao Brasil e fugir de um esquema
de prostituição internacional, conforme indica a reportem a seguir do Portal
G1 de 29 de junho de 2022:

“Acreditei que era uma agência de emprego”

https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2022/06/29/trafico-de-
pessoas-aliciadores-usam-redes-sociais-para-falsas-promessas-
traumatizante-diz-vitima-que-conseguiu-fugir-saiba-como-
denunciar.ghtml

A vítima recebeu a oferta de trabalho ao procurar uma agência de empregos.


Lá foi informada que havia vagas de trabalho na Espanha em diferentes cam-
pos, como o cuidado de bebês ou o atendimento em cafeterias. Somente em
território espanhol ela percebeu a fraude, mas conseguiu retornar ao Brasil
por ter sua mala extraviada na viagem.

Este roteiro de promessas de estudo, de trabalho – que podem incluir, por


exemplo, oportunidades em times de futebol, agências de modelo, bares e
restaurantes, construção civil, trabalho doméstico, trabalho de cuidados de
idosos ou crianças, geralmente em locais distantes (por vezes em outros países)

33
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

e com condições que parecem vantajosas e com uma boa remuneração – leva
muitas pessoas à condição de vítimas de tráfico de pessoas.

Comumente as vítimas são conduzidas para cidades distantes do seu local de


origem, ainda que dentro do seu próprio país ou mesmo cruzando fronteiras
internacionais, já que a separação e distância de sua rede de apoio pode faci-
litar o controle por parte dos traficantes.27

Para compreender o que é o tráfico de pessoas, é preciso conhecer um mar-


co legal internacional que foi elaborado justamente pela necessidade de se
estabelecer um instrumento universal que tratasse de diferentes aspectos
relativos ao crime (incluindo medidas destinadas a sua prevenção, a punição
dos traficantes e a proteção das vítimas): o Protocolo Adicional à Convenção
das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à
Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial de
Mulheres e Crianças (ONU, 2000), também conhecido como Protocolo de
Palermo.

SAIBA MAIS:
Para ter acesso ao compilado de legislação internacional, regional das
Américas e nacional sobre tráfico de pessoas e crimes conexos, consulte
a publicação Tráfico de Pessoas e Crimes Conexos: Compilado de
Legislação (OIM, 2021) disponível na biblioteca virtual do curso!

27 ICMPD, 2017, p. 19.

34
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

O Protocolo conta com 178 Estados Partes,28 incluindo o Brasil, onde o do-
cumento internacional foi promulgado por meio do Decreto n. 5.017, de 12
de março de 2004 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/
decreto/d5017.htm e traz a seguinte definição do crime:

Protocolo de Palermo
Artigo 3.º
Definições
Para efeitos do presente Protocolo:
a. A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte,
a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo
à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à
fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabi-
lidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para ob-
ter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra
para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração
da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o
trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à es-
cravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;
b. O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista
qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será
considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios re-
feridos na alínea a);
c. O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhi-
mento de uma criança para fins de exploração serão considerados “tráfico
de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da
alínea a) do presente Artigo;
d. O termo “criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito
anos.

A partir dessa definição apresentada pelo Protocolo de Palermo, é possível obser-


var três elementos que constituem o crime de tráfico de pessoas: os atos (a ação);

28 Cf. Organização das Nações Unidas. Coleção de tratados. Disponível em: https://treaties.un.org/pages/ViewDe-
tails.aspx?src=IND&mtdsg_no=XVIII-12-a&chapter=18&clang=_en. Acesso em: 29 jun. 2022.

35
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

os meios (como é realizada a ação); a finalidade de exploração (o que motiva


a ação) e que podem ser melhor visualizados a partir do seguinte infográfico:29

É possível identificar o crime de tráfico de pessoas por meio da observação da


combinação de pelo menos um de cada elemento constitutivo (ato + meio +
finalidade de exploração = tráfico de pessoas)

1) Atos (ação):
z Recrutamento (por meio de supostas agências de emprego, pessoas
conhecidas, redes sociais etc.)
z Transporte (por terra, ar ou mar, cruzando – ou não – fronteiras inter-
nacionais)
z Transferência
z Alojamento
z Acolhimento

2) Meios (como é realizada a ação):


z Ameaça
z Uso da força
z Outras formas de coação
z Rapto
z Fraude
z Engano
z Abuso de autoridade
z Abuso de situação de vulnerabilidade
z Entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consen-
timento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra

3) Finalidade de exploração (o que motiva a ação) que incluirá, no mínimo:

29 Infográfico com informações adaptadas de: TERESI, 2012. p. 46-47.

36
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

z Exploração da prostituição de outrem


z Outras formas da exploração sexual
z Exploração do trabalho
z Serviços forçados
z Escravidão ou situações análogas à escravidão
z Servidão
z Extração de órgãos

A definição apresentada pelo Protocolo permite considerar outras finalidades


de exploração como a mendicância forçada, o casamento forçado e a prática de
atividades criminosas, por exemplo. E a exploração não precisa se concretizar
para que se configure o tráfico de pessoas, sendo suficiente a confirmação da
intenção de exploração.

4) Tráfico de pessoas: atos + meios + finalidade da exploração

O crime de tráfico de pessoas se configura na ocorrência de pelo menos um


dos atos, um dos meios e a finalidade de exploração.

Estando envolvidas crianças e adolescentes (o que inclui todas as pessoas


com idade inferior a 18 anos), é suficiente a identificação de dois elementos
constitutivos (o ato e a finalidade de exploração) para a configuração do tráfico
de pessoas (artigo 3.º, c). Os meios (ou a forma como são realizados os atos)
não são condicionantes nesses casos, já que não há a capacidade de consen-
tir. A idade é considerada uma causa de vulnerabilidade e, por essa razão, há
a necessidade de garantir uma tutela especial a todas as pessoas com idade
inferior a dezoito anos.30

Nesse sentido, é relevante destacar que, ao incluir como meio o abuso de


situação de vulnerabilidade, o Protocolo explicita que a situação de vulnerabi-

30 Cf. Regras de Brasília sobre acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade. Brasília, 2008,
regra 5.

37
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

lidade em que se encontram muitas pessoas pode criar condições favoráveis


à execução do tráfico de pessoas.

É importante destacar que, de acordo com a definição do Protocolo de Paler-


mo (artigo 3.º, b), mesmo que exista o consentimento da vítima, nas situações
em que forem identificados os três elementos constitutivos (o ato, o meio e a
finalidade de exploração) estará configurado o tráfico de pessoas.

Não há, aqui, um desrespeito à capacidade e à autonomia da pessoa decidir


sobre a sua vida, mas sim uma proteção da deturpação da sua vontade livre
pelo já mencionado elemento constitutivo meio (ameaça, uso da força etc.).31
Nos exemplos que iniciaram este item, por exemplo, o trabalho e as condições
de vida eram muito diferentes das prometidas.

Sobre as formas de exploração mencionadas no Protocolo:

Assista o vídeo Finalidades do Tráfico de Pessoas com Anália Ribeiro (ABR Con-
sultoria)
z O tráfico de pessoas para fins de exploração da prostituição de outrem
ou outras formas da exploração sexual pode ser identificado a partir da
mercantilização e do abuso do corpo da vítima. No caso de vítimas maio-
res de dezoito anos, a exploração na prática da prostituição se configura
com a identificação de características de trabalho forçado como a servi-
dão por dívida, a restrição da liberdade e a retenção de documentos.32
z O tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho ou serviços
forçados, a escravidão ou situações análogas à escravidão e a servidão
podem ser identificados, tanto na zona rural como urbana, pelo trabalho
em jornadas exaustivas, a ausência de contrato de trabalho, a falta de

31 ICMPD, 2017, p. 16.


32 TERESI, 2012, p. 58.

38
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

acesso direto ao salário, não ter liberdade de ir e vir etc.33 O tema do tra-
balho será abordado de forma mais aprofundada ainda neste módulo!
z O tráfico de pessoas para fins de remoção de órgãos pode ser identi-
ficado a partir de situações em que se pretende remover os órgãos da
vítima para o transplante em outra pessoa.34

Assista o vídeo Casos Emblemáticos: Remoção Ilegal de Órgãos – Operação


Bisturi com Anália Ribeiro (ABR Consultoria)

O mais recente Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas do Escritório das


Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) indica que quase 50 mil víti-
mas foram identificadas em 148 países no ano de 2018. Este, no entanto, é
um panorama parcial da realidade, já que a ocorrência do tráfico de pessoas
é marcada pela subnotificação de casos em todo o mundo.35

As mulheres são as principais vítimas do tráfico de pessoas. Em 2018, para cada


10 vítimas identificadas globalmente, cerca de cinco eram mulheres adultas e
duas eram meninas. Aproximadamente um terço do total de vítimas detectadas
eram crianças (meninas 19% e meninos 15%) e 20% eram homens adultos.36

33 TERESI, 2012, p. 51; 59.


34 TERESI, 2012. p. 59.
35 UNODC, Global Report on Trafficking in Persons 2020, p. 25.
36 UNODC, Global Report on Trafficking in Persons 2020, p. 9.

39
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

SAIBA MAIS:
Confira o artigo Tráfico de pessoas envolve exploração de mulheres
na América Latina: entender o tráfico de mulheres como violência de
gênero é fundamental para a construção de políticas públicas https://
www1.folha.uol.com.br/colunas/latinoamerica21/2022/04/trafico-de-
pessoas-envolve-exploracao-de-mulheres-na-america-latina.shtml?utm_
source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa
(Folha de São Paulo, Verônica Maria Teresi, 22 abr. 2022).

Sobre a finalidade de exploração, metade das vítimas identificadas foi traficada


para a exploração sexual, 38% para trabalhos forçados (em diferentes setores
como a agricultura, a construção, a pesca, a indústria, a mineração, o comércio
ambulante e a servidão doméstica), 6% envolvidas em atividades criminosas
forçadas e mais de 1% para mendicância. Houve, ainda, em números menos ex-
pressivos o tráfico para casamento forçado e remoção de órgãos, por exemplo.37

X38

37 UNODC, Global Report on Trafficking in Persons 2020, p. 11.


38 Gráfico com tradução livre. In: UNODC, Global Report on Trafficking in Persons 2020, p. 11.

40
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

A maioria das mulheres e meninas sofreu exploração sexual, enquanto homens


e meninos foram mais envolvidos no trabalho forçado.39 Conheça as principais
formas de exploração e o perfil das vítimas identificadas por sub-regiões em
2018:40

X41

Cabe destacar, ainda, que a maioria das vítimas de tráfico de pessoas não cru-
za fronteiras internacionais: 65% delas foram identificadas nos seus próprios
países de origem, sendo vítimas do tráfico interno de pessoas. E os dados do
tráfico internacional de pessoas indicam que 20% delas foi traficada para países
da mesma sub-região (12%) ou região (8%).42

39 UNODC, Global Report on Trafficking in Persons 2020, p. 9.


40 UNODC, Global Report on Trafficking in Persons 2020, p. 17.
41 Gráfico com tradução livre. In: UNODC, Global Report on Trafficking in Persons 2020, p. 17.
42 UNODC, Global Report on Trafficking in Persons 2020, p. 55.

41
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Conheça a porcentagem de vítimas identificadas por zona de origem e detecção:

X43

SAIBA MAIS:
Quer se informar sobre a ocorrência do tráfico de pessoas
no mundo? Consulte a publicação Relatório Global sobre
Tráfico de Pessoas (UNODC, 2020) disponível na versão
em língua inglesa na biblioteca virtual do curso!

43 Gráfico com tradução livre. In: UNODC, Global Report on Trafficking in Persons 2020, p. 55.

42
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

3.2 Uma introdução ao tráfico de pessoas no Brasil

Depois de conhecer o conceito e a conjuntura da ocorrência do tráfico de


pessoas no mundo, chegou a hora de acessar a legislação brasileira que trata
do tema: a Lei n. 13.344/2016 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2016/lei/l13344.htm , que define o termo tráfico de pessoas de acordo
com os padrões internacionais e que, de forma inédita no Brasil, agrega em
um mesmo documento legal o conteúdo sobre o tráfico de pessoas em âm-
bito interno e internacional, envolvendo vítimas brasileiras e não brasileiras,
incluindo medidas de prevenção e repressão ao crime, assim como de atenção
às vítimas.

É um marco sobre o tema no país, que, ao longo das últimas décadas, foi am-
pliando o reconhecimento das formas de exploração que poderiam configurar
o crime e de quem poderia ser considerada vítima do crime (por muitos anos
o crime foi previsto no Brasil como tráfico de mulheres e não como tráfico de
pessoas).

Em 1940, o Código Penal previa somente o crime de tráfico de mulheres para


fins de prostituição (no artigo 231).

Em 2005, tal previsão é ampliada para o tráfico internacional e interno de


pessoas para fins de prostituição (respectivamente nos artigos 231 e 231-A
do Código Penal44).

Em 2009, a previsão é novamente ampliada para o tráfico internacional e inter-


no de pessoas para fins de exploração sexual e prostituição (respectivamente
nos artigos 231 e 231-A do Código Penal45).

44 Com redação da Lei n. 11.106/2005.


45 Com redação da Lei n. 12.015/2009.

43
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Em 2016, por meio da já mencionada Lei n. 13.344/2016, chegamos à previsão


atual e mais ampla de tráfico internacional e interno de pessoas para fins de
remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo, submissão de trabalho em
trabalho em condições análogas à de escravo e a qualquer tipo de servidão,
adoção ilegal ou exploração sexual (artigo 149-A do Código Penal).

Código Penal
Tráfico de Pessoas (incluído pela Lei n.º 13.344, de 2016)
Artigo 149-A:
Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou aco-
lher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso,
com a finalidade de:
I – remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II – submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III – submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV – adoção ilegal; ou
V – exploração sexual.
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1.º A pena é aumentada de um terço até a metade se:
I – o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções
ou a pretexto de exercê-las;
II – o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com
deficiência;
III – o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coa-
bitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou
de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou
função; ou
IV – a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.
§ 2.º A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não
integrar organização criminosa.

44
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Voltando aos atos, aos meios e às finalidades de exploração que analisamos


no item anterior a partir do Protocolo de Palermo, vamos agora analisar à
luz da Lei n. 13.344/2016.

Sobre o rol de atos, na legislação brasileira este é mais extenso e inclui: agen-
ciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa.
É preciso observar, no entanto, que, para a configuração do crime, é suficiente
a prática de um desses atos.

Já sobre os meios, nossa legislação apresenta um rol mais tímido, incluin-


do: grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso. Nota-se a ausência da
menção “à situação de vulnerabilidade” indicada no Protocolo de Palermo.
O legislador brasileiro se limitou a indicar o “abuso”, o que deixa aberta a
possibilidade de interpretar o vocábulo incluindo o abuso de situações de vul-
nerabilidade. O tema da situação de vulnerabilidade será abordado de forma
mais aprofundada ao longo do curso!

A grande diferença parece estar, entretanto, nas finalidades de exploração.


O Protocolo de Palermo traz um rol aberto e, portanto, mais amplo e que
permite incluir situações de exploração não explicitadas pelo texto legal. Isso
porque sua redação indica que a exploração incluirá, no mínimo, a exploração
da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho
ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servi-
dão ou a remoção de órgãos.

O Código Penal brasileiro, por sua vez, apresenta uma limitação a configuração
do delito de tráfico, já que estabelece uma lista exaustiva de finalidades que
podem ser consideradas como formas de exploração:
z Remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo

A Lei n. 9.434/1997 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm dispõe


sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de trans-
plante e tratamento, e estabelece que a disposição de tecidos, órgãos e partes do

45
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

corpo humano, em vida ou após a morte, para a finalidade de transplante e tra-


tamento, é permitida quando realizada de forma gratuita (artigo 1.º). Observa-se,
portanto, a intenção de impedir a comercialização e o lucro por meio de órgãos,
tecidos ou partes do corpo. Nesse sentido, a Constituição Federal veda todo tipo
de comercialização no que diz respeito a remoção de órgãos, tecidos e substâncias
humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, assim como a coleta,
processamento e transfusão de sangue e seus derivados (artigo 199, § 4.º).
z Submissão a trabalho em condições análogas à de escravo e a qual-
quer tipo de servidão

De acordo com a OIM, o conceito de servidão compreende “um estado


de dependência ou submissão da vontade em que a pessoa que explora
induz ou obriga a vítima a realizar atos, trabalhos ou serviços, por meio
do engano, das ameaças e outras formas de violência”.46

O tema do trabalho em condições análogas à de escravo será abordado


de forma mais aprofundada ainda neste módulo!
z Adoção ilegal

A adoção ilegal compreende situações em que crianças e adolescentes


são “com ou sem o consentimento ou a autorização dos pais [...] ven-
didos/entregues para outras pessoas, muito comumente casais, que
tenham o desejo de adotar um filho. Tudo é feito sem a observância das
formalidades legais de um processo de adoção”.47
z Exploração sexual

É importante destacar que a legislação brasileira desvinculou a explora-


ção sexual da prostituição, compreendendo a diferença entre o ato de

46 OIM, 2011.
47 UNODC; ICMPD, 2013. p. 9.

46
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

explorar sexualmente uma pessoa e a prostituição exercida de forma


consentida e livre.48

O conceito de tráfico de pessoas no Brasil é, portanto, mais limitado que o


apresentado pelo Protocolo de Palermo. É importante observar, entretanto,
que a inclusão da finalidade “qualquer tipo de servidão” torna possível uma
interpretação mais aberta das finalidades de exploração previstas na legislação
brasileira, permitindo incluir, por exemplo, a mendicância forçada e a prática
de delitos.49

SAIBA MAIS:
O tráfico de pessoas no Brasil e a Lei n. 13.344/2016 serão aprofundados
ao longo do curso, por isso recomendamos que vocês confiram o conteúdo
integral da mencionada lei http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2016/lei/l13344.htm antes de seguir para os próximos módulos!

48 ICMPD, 2020. p. 55.


49 ICMPD, 2020. p. 54-55.

47
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

4
CRIMES CORRELATOS
AO TRÁFICO
DE PESSOAS
Artigo temático elaborado por Daniel Chiaretti – Juiz Federal Substituto (TRF
da 3.ª Região), Mestre e Doutorando em Filosofia pela USP e tutor pela Escola
Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam)

Apesar de contar com uma definição que se propõe ser precisa, o tráfico de
pessoas é um fenômeno que possui uma natureza complexa com repercussões
que nem sempre são facilmente captadas pela legislação. Esta complexidade é
reforçada pela relação que o tráfico de pessoas possui com outros delitos, como
o trabalho escravo, o contrabando de migrantes e o tráfico de drogas.50

Podemos pensar aqui em diversas situações práticas nas quais esta intersec-
cionalidade se apresenta:
z Um migrante que, desejando procurar melhores condições de vida em ou-
tro local, recorre a uma pessoa que lhe promete um trabalho rentável que,
ao final, mostra-se uma situação de trabalho escravo contemporâneo.

50 Para uma compilação de pesquisas que refletem essa relação, cf. MPF, 2016. p. 18-19.

48
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

z Uma migrante em situação vulnerável que aceita fazer o transporte de


drogas para outro país, em uma “contratação” que pode incluir ameaças
a familiares ou retenção de documentos.
z Ou mesmo uma família que contrata um coiote para conseguir entrar
irregularmente em outro país e que, uma vez neste local, tem seus do-
cumentos retidos e passa a viver uma situação de coação.

Em todos esses casos temos situações fáticas, longe de serem incomuns, que
complicam a identificação do tráfico de pessoas a partir da concorrência de
outros crimes correlatos.

A compreensão adequada desta complexa situação tem duas consequências


importantes:
z Em primeiro lugar, identificar todos os crimes cometidos e seus autores,
garantindo uma punição eficaz, a qual é exigida pelos mandados de
criminalização presentes nas convenções internacionais sobre o tema.
z Em segundo lugar, garantir que as vítimas tenham o suporte devido,
não deslocando indevidamente para pessoas em situação vulnerabili-
dade o peso da persecução penal.

4.1 Contrabando de migrantes

A aproximação mais óbvia entre o tráfico de pessoas e as migrações ocorre


pela figura do contrabando de migrantes. Apesar da relação, contudo, são
figuras que não devem ser confundidas.

O contrabando de migrantes está definido no artigo 3.º do Protocolo Adicio-


nal à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Trans-
nacional, relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre,
Marítima e Aérea, o qual dispõe que:

49
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

“A expressão ‘tráfico de migrantes’ significa a promoção, com o objetivo de


obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício
material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa
pessoa não seja nacional ou residente permanente.”

Nesse sentido, o contrabando de migrantes envolve a promoção da entrada


irregular de um migrante no território de um país mediante algum benefício. A
definição, portanto, não implica a criminalização do migrante e o próprio
protocolo afasta essa responsabilização.51

A promoção do contrabando de migrante está tipificada no artigo 232-A do


Código Penal:

Artigo 232-A. Promover, por qualquer meio, com o fim de obter vantagem eco-
nômica, a entrada ilegal de estrangeiro em território nacional ou de brasileiro
em país estrangeiro:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
§ 1.º Na mesma pena incorre quem promover, por qualquer meio, com o fim
de obter vantagem econômica, a saída de estrangeiro do território nacional
para ingressar ilegalmente em país estrangeiro.
§ 2.º A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço) se:
I – o crime é cometido com violência; o
II – a vítima é submetida a condição desumana ou degradante.
§ 3.º A pena prevista para o crime será aplicada sem prejuízo das correspon-
dentes às infrações conexas.

Este dispositivo está de acordo com o mandado de criminalização contido no


Protocolo, o qual dispõe sobre a criminalização do contrabando de migrantes
e outras condutas relacionadas ao tema.52

51 Cf. artigo 5. Responsabilidade penal dos migrantes. Os migrantes não estarão sujeitos a processos criminais nos
termos do presente Protocolo, pelo fato de terem sido objeto dos atos enunciados no seu artigo 6.
52 Cf. artigo 6 do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional,
relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea.

50
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

É interessante notar ainda que o Brasil criminaliza apenas o agente que


promove o contrabando de migrantes. Trata-se de uma opção salutar e
que está de acordo com o artigo 5 do Protocolo e os princípios que regem a
Lei de Migração, em especial a não criminalização da migração (art. 3.º, III, da
Lei n. 13.445/2017).

Por isso, podemos dizer que, mesmo aquele migrante que se vale de alguma
forma de serviço que promova o contrabando de migrante (como um “coio-
te”), não será um “migrante ilegal”, já que não cometeu qualquer crime.53 O
foco está, portanto, na promoção do combate às redes de contrabando de
migrantes.

E será que apenas os “coiotes” praticam este crime?

Na verdade, qualquer agente que tenha concorrido para o crime pode ser
punido, inclusive funcionários públicos. Podemos citar como exemplo uma
sentença condenatória na qual policiais federais e agentes de turismo facilita-
vam a entrada de migrantes em território nacional, mediante o recebimento
de vantagem econômica indevida e a inserção de dados falsos no Sistema
de Tráfego Internacional da Polícia Federal. A Organização criminosa cobrava
valores indevidos de estrangeiros que desejavam ingressar no país, com o
intermédio de representantes de agências de turismo e “despachantes”, para
que servidores públicos lançassem no sistema da Polícia Federal a inclusão
ou alteração de nomes e dados, sem a adoção dos trâmites burocráticos ne-
cessários.

De forma didática, a UNODC traz as seguintes distinções entre o tráfico de


pessoas e o contrabando de migrantes:54

53 A OIM, sobre o tema, afirma que há “tendência em usar o termo ‘migração ilegal’ nos casos de contrabando de
migrantes e tráfico de pessoas”. No entanto, no caso brasileiro nos parece que segue sendo mais correto o termo
“migrante irregular”.
54 UNODC, Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes. Disponível em: https://www.unodc.org/lpo-brazil/
pt/trafico-de-pessoas/index.html.

51
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Consentimento
O contrabando de migrantes, mesmo em condições perigosas e degradantes,
envolve o conhecimento e o consentimento da pessoa contrabandeada sobre
o ato criminoso. No tráfico de pessoas, o consentimento da vítima de tráfico é
irrelevante para que a ação seja caracterizada como tráfico ou exploração de
seres humanos, uma vez que ele é, geralmente, obtido sob malogro.
Exploração
O contrabando termina com a chegada do migrante em seu destino, enquanto
o tráfico de pessoas envolve, após a chegada, a exploração da vítima pelos
traficantes, para obtenção de algum benefício ou lucro, por meio da explora-
ção. De um ponto de vista prático, as vítimas do tráfico humano tendem a ser
afetadas mais severamente e necessitam de uma proteção maior.
Caráter Transnacional
Contrabando de migrantes é sempre transnacional, enquanto o tráfico de
pessoas pode ocorrer tanto internacionalmente quanto dentro do próprio país.

4.2 Trabalho escravo

Entre as formas de exploração presentes no Protocolo de Palermo para fins de


caracterização do tráfico de pessoas, o trabalho escravo merece uma atenção
especial.

A tipificação da redução à condição análoga à de escravo, presente no artigo


149 do Código Penal, também dá cumprimento a mandados de criminalização
internacionais, em especial da Convenção 29 e a Conferência 105, ambas da OIT.

O compromisso foi reforçado em outros documentos, merecendo destaque


o Protocolo de Palermo (Decreto n. 5.017/04) e os compromissos adotados
pelo Brasil em solução amistosa de litígio perante a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos (Caso José Pereira Vs. Brasil).

Uma mudança legislativa importante ocorreu por meio da Lei n. 10.803/2003,


a qual ampliou o alcance do delito para abarcar aquelas situações em que há

52
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

a submissão a jornadas exaustivas ou condições degradantes de trabalho,


trazendo a violação da dignidade da pessoa humana para o centro do tipo
penal. A restrição da locomoção também conta um campo alargado, incluin-
do a existência de dívidas com o empregador ou preposto como causas que
caracterizam o tipo. Seu teor é o seguinte:

Artigo 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-


-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção
em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente
à violência.

Trata-se assim de um tipo misto alternativo que se configura caso qualquer


das condutas descritas seja realizada: a) submissão a trabalhos forçados; b)
submissão a jornada exaustiva; c) sujeição a condições degradantes de traba-
lho; e d) restrição da liberdade de locomoção, em razão de dívida contraída
com o empregador.

Esta redação procurou, levando em conta inclusive a realidade brasileira, al-


guns indicadores de escravidão contemporânea, incorporar situações nas quais
não há propriamente uma restrição de liberdade. Isso permitiu que temas que
poderiam ser banalizados, como as jornadas exaustivas e degradantes, fossem
compreendidos como uma forma inadmissível de exploração do trabalho.55

Desse modo, este tipo penal deve ser interpretado de acordo com os marcos
internacionais para ampliar, ao máximo, o conceito de escravidão contempo-
rânea e, consequentemente, tonar mais efetivos os mecanismos de repressão.

Enquanto o marco teórico da escravidão antiga era a


propriedade, na escravidão contemporânea a ênfase
está no controle exercido sobre a vítima.

55 SEVERO, 2021.

53
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

E enfatizamos que o consentimento da vítima é irrelevante para fins de


configuração da prática delitiva (artigo 3, “b”, do Protocolo de Palermo).

Reconhece-se, ainda, a existência de uma profunda relação entre o tráfico de


pessoas e o trabalho escravo, o que indica a necessidade de implementação
conjunta de medidas voltadas à prevenção e repressão destas práticas. A
título de exemplo, podemos mencionar que o Protocolo à Convenção sobre o
Trabalho Forçado (OIT, 2014) prevê medidas específicas para o enfrentamento
dos dois crimes.

Este é um tema que se coloca em diversas modalidades de exploração do


trabalho escravo que teve o tráfico de pessoas como antecedente, como na-
quelas situações em que a vítima se vê obrigada a trabalhar para pagar as
dívidas com o intermediário responsável por seu recrutamento, algo comum
em casos de trabalho escravo na zona rural ou para fins de exploração sexual.
Esta situação pode ser agravada em casos nos quais as vítimas são migrantes
sem documentação, o que amplia os riscos de multas ou deportações, o que
reforça as determinações internacionais no sentido da importância da pro-
teção das vítimas.

4.3 Tráfico de drogas

Existe uma complexa relação entre o tráfico de drogas e o tráfico de pessoas,


especialmente se situarmos as duas práticas no contexto de organizações
criminosas internacionais.56

São delitos que podem ser cometidos em cenários semelhantes, inclusive utili-
zando-se das mesmas rotas ou relacionando-se com delitos como lavagem de

56 SHELLEY, 2012, p. 241-253.

54
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

dinheiro. Há, no entanto, diferenças importantes, de modo que não podemos


abordar esta relação de forma simplista ou reducionista.

Interessa-nos aqui uma análise desta relação de um ponto de vista humano.


Sabemos que as vítimas das organizações voltadas ao tráfico de pessoas fre-
quentemente fazem parte de grupos em situação de vulnerabilidade. Esta é
uma condição em comum com a de pessoas que são recrutadas para a prática
do crime de tráfico de drogas, as chamadas “mulas” do tráfico, termo pejo-
rativo que, por si só, já indica a subalternidade dessa categoria.

Em geral, essas pessoas ocupam as posições mais vulneráveis e frágeis da ca-


deia criminosa, recrutadas apenas para fazer o transporte da droga, inclusive
com a transposição de fronteiras. Como regra geral, dentro de uma organiza-
ção marcada pela hierarquia, as “mulas” não possuem liberdade para definir o
meio de transporte, a rota ou como a droga será eventualmente escondida.57

É de se destacar ainda que uma proporção muito expressiva dessas “mu-


las” são mulheres, as quais, em razão de desigualdades estruturais, tendem
a aceitar salários mais baixos que homens e, assim, são mais propensas a
ocupar posições subalternas na cadeia criminosa.58

Essa característica de vulnerabilidade por parte das “mulas” torna-as potenciais


vítimas de tráfico de pessoas. O tráfico de pessoas com a finalidade de explo-
ração para o cometimento de crimes tem crescido, havendo indicativos de
que cerca de 5% do total das vítimas de tráfico de pessoas detectadas em 208
foram exploradas para fins de prática delitiva.59

Mais uma vez um recorte de gênero é possível, permitindo uma aproximação


entre as mulheres condenadas por tráfico de drogas e vítimas de tráfico de
pessoas. Segundo levantamento feito pelo Instituto Terra Trabalho e Cidadania

57 FLEETWOOD, 2011, p. 384.


58 UNODC, Women and Drugs: Drug use, drug supply and their consequences. RIVITTI, 2014.
59 UNODC, Global report on trafficking in persons.

55
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

(ITTC) a partir de entrevistas com mulheres estrangeiras condenadas por tráfico


de drogas, diversas narrativas envolveram elementos que caracterizam tráfico
de pessoas a partir do Protocolo de Palermo, como cárcere privado, alguma
forma de engano, ameaça, assédio sexual etc. Há desde casos de mulheres
obrigadas a transportar drogas para garantir a própria segurança até aquelas
que se colocam nesta posição como forma de prover a subsistência dos filhos.
É possível, ainda, que este delito se desenvolva no mesmo contexto do tráfico
de pessoas para fins de exploração sexual.60

Daí porque é muito importante, já na fase investigativa, coletar elementos


que permitam definir se o autor do delito agiu de forma suficientemente vo-
luntária. Caso contrário, ao invés de autor do delito de tráfico de drogas, esta
pessoa pode ser encarada como uma vítima de tráfico de pessoas, com todo o
suporte previsto na legislação nacional e internacional. Aqui é especialmente
importante a atenção ao Protocolo da Convenção sobre o Trabalho Forçado,
de 2014, que foca na não criminalização da vítima.

A depender do caso concreto e da avaliação do grau de voluntariedade, é


possível condenação da “mula”, mas com o reconhecimento da causa de dimi-
nuição da pena do artigo 33, § 4.º, da Lei n. 11.343/2006 (“tráfico privilegiado”).
Tratando-se de réu estrangeiro, é necessária uma cautela ainda maior do juiz
sentenciante para evitar um impacto desproporcional da pena.

Diante desta situação, destacamos o Enunciado 3 do I FONADIRH (Fórum Na-


cional de Direitos Humanos) organizado pela Associação dos Juízes Federais
do Brasil (AJUFE), o qual dispõe o seguinte:

Recomenda-se que: 1) sentença condenatória contra réu ou ré estrangeira


disponha sobre: a) o acesso à autorização desta de residência61, sendo esta

60 ITTC. Tráfico de Pessoas: por que as mulheres migrantes atendidas pelo ITTC estão sujeitas a isso? Disponível
em: https://ittc.org.br/trafico-pessoas-mulheres-migrantes-ittc/. Acesso em: 4 jul. 2022.
61 Previsão em Portaria Ministerial do Ministério da Justiça e Segurança Pública, n. 87/2020. Disponível em: https://
portaldeimigracao.mj.gov.br/images/portarias/PORTARIA_N%C2%BA_87_DE_23_DE_MARC%CC%A7O_DE_2020.pdf.

56
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

recomendação aplicável também para liberdade provisória ou medidas caute-


lares alternativas; b) autorização da expulsão ou deportação assim que houver
o deferimento por parte do juízo das execuções de progressão ao regime
aberto ou livramento condicional; d) determinação de inscrição no Cadastro de
Pessoa Física (CPF); 2) em caso de aplicação de pena restritiva de direitos a réu
ou ré estrangeira sem vínculos com o território nacional, recomendam-se que
sejam imputadas duas prestações pecuniárias para viabilizar o célere retorno
ao país de origem; 3) seja extraída cópia integral do passaporte antes de sua
devolução à representação consular.

Essas medidas, no entanto, só fazem sentido em situações nas quais a pessoa


praticou, de forma voluntária, o delito de tráfico de drogas. Nas situações nas
quais seja uma vítima, reforçamos a necessidade de não a tratar como
uma criminosa.

4.4 Considerações finais

O delito de tráfico de pessoas está inserido em uma realidade muito complexa,


na qual emergem outros delitos conexos. Isso exige tanto uma atenção maior
do ponto de vista investigativo e repressivo, quanto uma capacidade aguçada
para distinguir autores de vítimas.

Especificamente neste segundo ponto, é importante registrar que a lógica da


legislação internacional sobre tráfico de pessoas adota dispositivos focados
principalmente na repressão dos delitos, o que pode transformá-la em uma
ferramenta que mitigue os direitos das vítimas.

Nesse contexto, é importante que a legislação seja interpretada de forma co-


erente com instrumentos internacionais de direitos humanos, observando-se
com atenção as cláusulas de salvaguarda. Além disso, o direito interno possui

Acesso em: 14 jul. 2022.

57
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

um rol muito expressivo de dispositivos que, de certa forma, mitigam as defi-


ciências da legislação internacional do ponto de vista da garantia de direitos.

Com este instrumental, é possível abandonar um foco exclusivo em medidas


repressivas e buscar a articulação de ações amplas e estratégicas que envolvam
pobreza, educação, corrupção, discriminação etc., permitindo uma ênfase
cada vez maior nas causas dos delitos e no apoio às vítimas.

Sugerimos que você assista o webinário Vulnerabilidade e


Pandemia: migrações, tráfico de pessoas e trabalho escravo
organizado pela OIM Brasil, em parceria com Ministério da
Justiça e Segurança Pública, o Conselho Nacional do Ministério
Público e a Unicamp – Universidade Estadual de Campinas.

Parte 1
https://www.youtube.com/watch?v=o-dORMt-9pE

Parte 2
https://www.youtube.com/watch?v=rqEY6R3wwPs

58
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

A Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho


Escravo (Detrae) e sua atuação no combate ao trabalho
escravo

Texto elaborado por Jamile Freitas Virginio, auditora-fiscal do trabalho, formada


em Direito pela Universidade Federal do Ceará.
Tem-se observado notável avanço na conjugação das políticas de erradicação
do trabalho escravo moderno e do tráfico de pessoas. A partir da ratificação do
Protocolo de Palermo, por meio do Decreto n. 5.017/2004, falar em combate
ao trabalho análogo ao de escravo passa, necessariamente, por falar também
no enfrentamento ao tráfico de pessoas.
Sabemos que o tráfico de pessoas, muitas vezes, tem por finalidade a exploração
laboral em condições análogas à escravidão, assim considerada, inclusive, quando
envolve a prestação de mão de obra de natureza sexual.62
Este pensamento ganhou força com a Lei n. 13.344/2016, conhecida como Lei de
Combate ao Tráfico de Pessoas que, alterando o Código Penal Brasileiro, passou
a prever o crime de tráfico de pessoas com a finalidade específica de submissão
ao trabalho análogo ao de escravo (artigo 149-A).
O combate à escravidão contemporânea no Brasil começou em meados da déca-
da de 1990, quando o governo brasileiro reconheceu sua existência em território
nacional e passou a organizar sua repressão.
Em relação à Inspeção do Trabalho, isso se concretizou com a criação, em 1995,
do Grupo Especial de Fiscalização Móvel – GEFM (grupo formado por Audito-

62 A Auditoria-Fiscal do Trabalho reconhece o caráter mercantil e laboral envolvidos na exploração sexual


comercial de pessoas. Os profissionais do sexo são vistos como prestadores de serviços, com a utilização do
seu corpo em benefício de terceiros – no caso, os clientes, que agem como tomadores de serviços – com pro-
veito econômico – pagamento pelos serviços sexuais – lucrado pelo explorador, que age como fornecedor de
mão-de-obra. Em adição, elementos como “remuneração” e “mão de obra” são inafastáveis do conceito macro
de relação de trabalho, do qual faz parte a exploração sexual para fins comerciais, merecendo proteção e reco-
nhecimento jurídico como qualquer outra. O objeto do contrato de trabalho, entendido como um conjunto de
fazeres por parte do trabalhador, não se confunde com a atividade-fim do empregador. O labor em atividade
sexual constitui modalidade de trabalho lícita e reconhecida a teor da Classificação Brasileira de Ocupações
(CBO), com código específico para o enquadramento (5198-05), ressaltando-se a liberdade do acesso à profissão
a partir dos dezoito anos de idade. Por fim, para efeitos de caracterização de trabalho em condições análogas
à de escravo, a legislação pátria não faz qualquer diferenciação quanto à modalidade de trabalho ou serviço
ou mesmo à qualidade da vítima.

59
Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

res-Fiscais do Trabalho, cujas operações contam com atuação interinstitucional,


principalmente de membros do Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pú-
blica da União e das Polícias Federal e Rodoviária Federal63). De lá para cá, foram
mais de 58 mil trabalhadores resgatados64 dessa condição.
Neste ponto, é importante ressaltar que, por “resgate”, não se entende mera-
mente a retirada física do trabalhador de seu local de exploração, mas, sim, um
conjunto de procedimentos administrativos que reconhecem o trabalhador res-
gatado como uma pessoa detentora de direitos. Trata-se da aplicação, na prática,
do princípio da centralidade vítima.
De competência exclusiva da Auditoria-Fiscal do Trabalho, conforme convencio-
nou chamar o artigo 2.º-C, caput, da Lei n. 7.998/1990, o “resgate” de trabalhado-
res da condição análoga à de escravo compreende uma gama de procedimentos,
ressaltando-se dentre eles a rescisão dos contratos de trabalho, a reparação
dos danos trabalhistas por meio do pagamentos das verbas rescisórias, a
emissão das guias de seguro desemprego para trabalhador resgatado, o
retorno ao local de origem caso tenham sido também vítimas de tráfico de
pessoas e o encaminhamento dos resgatados para acolhimento pelos apa-
relhos de assistência social competentes, a fim de que a situação de vulnera-
bilidade desses trabalhadores seja reduzida, com objetivo de quebrar possíveis
ciclos de exploração de trabalho a níveis desumanos.
A lavratura de documentos fiscais também encontra previsão, subsidiando a es-
tratégia da publicação do Cadastro de Empregadores que tenham submetido
trabalhadores a condições análogas à escravidão, popularmente conhecido
como Lista Suja do Trabalho Escravo https://www.gov.br/trabalho-e-previden-

63 Em alguns casos, há a participação de representante do Ministério Público Federal. Adicionalmente, o for-


mato fluido da composição das equipes repressivas permite adaptações conforme as necessidades do caso
concreto. A depender da operação realizada, principalmente em áreas geográficas isoladas, o GEFM conta hoje
com a participação de outros órgãos federais, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiver-
sidade (ICMBio) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), bem
como de órgãos estaduais, como os Batalhões de Policiamento Ambiental. Como outro exemplo, desde 2018,
professores de espanhol e tradutores juramentados da Universidade Federal de Roraima (UFRR) participam
das operações do GEFM no estado de Roraima, tendo em vista o aumento do número de venezuelanos vítimas
da escravidão contemporânea no país.
64 Dados disponíveis em Radar SIT – Trabalho Escravo: https://sit.trabalho.gov.br/radar/. Acesso em: 28
jun. 2022.

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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

cia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/secretaria-de-trabalho/inspecao/areas-
-de-atuacao/cadastro_de_empregadores.pdf .
Todos os citados procedimentos, centrais à reparação integral e reinserção social
da vítima, bem como à repressão e ao combate à perpetuação das práticas ilícitas,
se veem seriamente prejudicados quando da não participação ativa e conjunta
da Auditoria-Fiscal do Trabalho em ações de combate ao tráfico de pessoas com
fins de exploração laboral, inclusive de natureza sexual, perpetradas por outros
órgãos governamentais.
Ademais, os anos de experiência acumulada permitiram o desenvolvimento de no-
vas estratégias e o aprendizado contínuo. Alguns dos mais novos instrumentos são:

Sistema Ipê https://ipe.sit.trabalho.gov.br/


Criado e gerido pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), órgão da es-
trutura do atual Ministério do Trabalho e Previdência (MTP) ao qual estão tec-
nicamente vinculados os Auditores-Fiscais do Trabalho, com o apoio técnico da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Sistema Ipê representa um marco
no enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo no país.
Trata-se de uma plataforma on-line para coleta, concentração e tratamento das
denúncias de trabalho em condições análogas às de escravo no território brasi-
leiro, possibilitando-lhes um controle mais ágil e eficiente, com vistas à melhor
organização da força de trabalho e acompanhamento da resposta estatal em
seu processamento.
A Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) recebe
diretamente as denúncias, faz a triagem e qualifica as informações previamente.
Havendo indícios da ocorrência de trabalho análogo ao de escravo, faz-se uma
avaliação da urgência do caso e determina-se quais reclamações devem ser prio-
rizadas. A prioridade é dada àqueles casos em que os trabalhadores estejam
expostos a riscos graves, em que haja relato de grande violência e/ou quando a
atividade econômica seja de curta duração.
Além do português, com vistas a atender vítimas migrantes, a ferramenta pode
ainda ser acessada em inglês, espanhol e francês.

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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Radar SIT – Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas https://sit.trabalho.gov.br/


radar
O Radar SIT é o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho
no Brasil.
Se, por um lado, o Sistema Ipê possa ser considerado o ponto de partida de um
ciclo estatal de enfrentamento; de outro, o Radar SIT – Trabalho Escravo, ao lado
da “Lista Suja”, deveria ser entendido como o ponto de chegada desse fluxo:
1. Após a apresentação da denúncia no Sistema Ipê, ela passa a ser analisada
e classificada para atendimento;
2. Inicia-se, então, o planejamento do operativo de combate;
3. Seguido de sua realização;

4. Quando os trabalhadores são encontrados em condições semelhantes a escra-


vos, são resgatados, com o objetivo principal de garantir sua segurança e direitos
trabalhistas, e encaminhados à assistência pós-resgate;
5. Finalmente, são elaborados documentos fiscais e conclui-se a ação fiscalizatória.
Serão exatamente as informações advindas a partir da conclusão das ações
fiscais que alimentarão a base de dados do Radar SIT.
No módulo Trabalho Escravo, dados como o número de ações fiscais realizadas, tra-
balhadores alcançados, resgatados e/ou registrados, classificados por municípios e
atividades econômicas de ocorrência, bem como guias de seguro-desemprego emi-
tidas e valores pagos a título de verbas rescisórias trabalhistas são apresentados,
dinamicamente, ano a ano, desde 1995.
Anualmente, o Radar SIT do Tráfico de Pessoas informa ainda estados e municípios
de origem e destino dos trabalhadores cujos resgates estejam vinculados ao tráfico
de pessoas, desde a vigência da Lei n. 13.344/2016. Os dados são compilados pela
DETRAE, a partir da análise qualitativa dos relatórios de fiscalização elaborados pelos
Auditores-Fiscais do Trabalho.

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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Assista aos vídeos Dificuldades Práticas Caracterização do Trabalho Es-


cravo e Considerações sobre o Tráfico de Pessoas, com Tatiana Leal Bivar
Simonetti (Procuradora do Trabalho e Coordenadora do Grupo de Enfrenta-
mento ao Tráfico de Pessoas do MPT)

Sugerimos que você confira a série de vídeos sobre os 25


anos Grupo Especial de Fiscalização Móvel (Detrae)

https://www.youtube.com/
playlist?list=PLXknSy3x3itlUhJX2hEMs92WJtIubUiXU

https://www.youtube.com/watch?v=v4eJXLZCCKY

SAIBA MAIS:
Confira o Manual de atendimento jurídico a migrantes e refugiados:
atendimento a vítimas de trabalho análogo ao escravo (Agência da
ONU para as Migrações, 2022) disponível na biblioteca virtual do curso!

Chegamos ao final do Módulo 1!

Ao longo do módulo apresentamos dados e marcos jurídicos, internacionais e


nacionais, sobre a migração, o tráfico de pessoas e crimes correlatos.

O passo seguinte é a realização da atividade avaliativa para apropriação do


conteúdo e reflexão sobre os temas que abordamos no Módulo 1.

Nos vemos em breve no Módulo 2. Até lá!

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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

Referências bibliográficas

AGÊNCIA DA ONU PARA REFUGIADOS (ACNUR). 100 milhões de pessoas no mundo estão deslo-
cadas, aponta ACNUR. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/186676-100-milhoes-de-pes-
soas-no-mundo-estao-deslocadas-aponta-acnur. Acesso em: 25 jun. 2022.

DE HAAS, Hein. The determinants of international migration: conceptualising policy, origin and
destination effects. International Migration Institute (IMI) Working Papers, n. 32, University of
Oxford. 2011.

DELFIM, Rodrigo Borges. Lei de Migração entra em vigor, mas regulamentação ameaça avanços.
Migramundo, 21 nov. 2017. Disponível em: https://migramundo.com/lei-de-migracao-entra-
-em-vigor-mas-regulamentacao-ameaca-avancos/. Acesso em: 18 jul. 2022.

INTERNATIONAL CENTRE FOR MIGRATION POLICY DEVELOPMENT (ICMPD). Migration Training


Manual. Module 4: Trafficking in Human Beings (Thb). Áustria, 2017.

INTERNATIONAL CENTRE FOR MIGRATION POLICY DEVELOPMENT (ICMPD). Guia de Enfrentamento


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INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION (IOM). World Migration Report 2022. Disponível
em: https://worldmigrationreport.iom.int/wmr-2022-interactive/.

JUNGER, Gustavo; CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Tadeu de; SILVA, Bianca G. Refúgio em Nú-
meros. 7. ed. Brasília: OBMigra, 2022. Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais;
Ministério da Justiça e Segurança Pública. Brasília: OBMigra, 2022.

JUSTO, Marcelo. As cinco atividades do crime organizado que ganham mais dinheiro no mundo.
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LOCATELLI, Piero. Domésticas das Filipinas são escravizadas em São Paulo, Repórter Brasil, 31
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NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Mais de 160 países adotam Pacto Global para a Migração. 10 dez.
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ra-a-migracao/. Acesso em: 15 out. 2015.

O BILIONÁRIO mercado da migração ilegal. In: Podcast Café da manhã, Folha de SP, dezembro
de 2021.

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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

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del Sur, n. 3, año 2020 (marzo 2020).

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES (OIM). Direito internacional da migração:


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TERESI, Verônica Maria; HEALY, Claire. Guia de referência para a rede de enfrentamento ao
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BARALDI, Camila; VENTURA, Deisy. “Políticas Migratórias e Tráfico de Pessoas: quando a árvore es-
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Módulo 1
Noções introdutórias sobre migração, tráfico de pessoas e crimes correlatos

SEVERO, Fabiana Galera. Trabalho escravo no Brasil: mecanismos de repressão e prevenção.


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SHELLEY, Louise. The Relationship of Drug and Human Trafficking: A Global Perspective. European
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Disponível em: <https://www.unodc.org/e4j/pt/crime-prevention-criminal-justice/module-9/
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