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CURSO

Módulo 4

Proteção e assistência às
vítimas do tráfico de pessoas
RESUMO:
será abordada a especificidade no atendimento e
encaminhamento para proteção das vítimas, bem
como os impactos das restrições de seus direitos
humanos, contemplando um olhar sensível diante
das interseccionalidades de raça e gênero.
CURSO

Módulo 4

Proteção e assistência às
vítimas do tráfico de pessoas
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

Presidente CENTRO DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE


Ministra Rosa Weber SERVIDORES DO PODER JUDICIÁRIO (CEAJUD)
Corregedor Nacional de Justiça Chefe do CEAJud
Ministro Luis Felipe Salomão Diogo Albuquerque Ferreira
Conselheiros Servidores
Luiz Philippe Vieira de Mello Filho Alana Oliveira Viana
Mauro Pereira Martins Aline Ribeiro de Mendonça
Richard Pae Kim Anali Cristino Figueiredo
Salise Monteiro Sanchotene Guilherme Coutinho de Oliveira
Marcio Luiz Coelho de Freitas Rodrigo Pereira da Silva
Jane Granzoto Torres da Silva Rossilany Marques Mota
Giovanni Olsson
Sidney Pessoa Madruga
João Paulo Santos Schoucair
Marcos Vinícius Jardim Rodrigues
Marcello Terto e Silva ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES
Mário Henrique Aguiar Goulart Ribeiro Nunes Maia
Chefe de Missão da OIM no Brasil
Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho
Stéphane Rostiaux

Secretário-Geral
Gabriel da Silveira Matos
EXPEDIENTE TÉCNICO
Secretário Especial de Programas,
Pesquisas e Gestão Estratégica Coordenação Executiva
Ricardo Fioreze Marcelo Torelly
Natália Maciel
Diretor-Geral
Johaness Eck Conteúdo original
Tatiana C. Waldman
Revisão de conteúdo
Jennifer Alvarez
Natália Maciel
Tatiana Waldman

Com as seguintes contribuições


Dalila Eugênia Maranhão Dias Figueiredo
Débora de Godoy Vasconcellos
SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL Eliza Odila Conceição Silva Donda
Graziella do Ó Rocha
Secretária de Comunicação Social
Heloísa de Freitas Magalhães Rodrigues
Cristine Genú
Jacqueline Feitosa de Oliveira
Chefe da Seção de Comunicação Institucional Michael Mary Nolan
Rejane Neves Vivian Netto Machado Santarém
Projeto gráfico
Eron Castro
Revisão
Carmem Menezes
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES
SAS Quadra 05, Bloco N, Ed. OAB, 3º Andar — Brasília-DF
CEP: 70070-913

2023
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
SAF SUL Quadra 2 Lotes 5/6 - CEP: 70070-600
Endereço eletrônico: www.cnj.jus.br
SUMÁRIO
1 APRESENTAÇÃO DO MÓDULO 4 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

2 A PROTEÇÃO E O ATENDIMENTO À VÍTIMA


DIRETA OU INDIRETA DO TRÁFICO DE PESSOAS:
A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO (DPU) . 9

3 AS INTERSECCIONALIDADES DE RAÇA E GÊNERO


E OS IMPACTOS CAUSADOS PELO TRÁFICO
DE PESSOAS E VIOLAÇÕES CORRELATAS NAS
VÍTIMAS DIRETAS E INDIRETAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
3.1 Perfil e números: mulheres atendidas pelo Instituto
Terra, Trabalho e Cidadania . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
3.2 Interseccionalidades de raça, gênero e nacionalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
3.3 Pontos de atenção para o trabalho dos agentes do
Sistema de Justiça e dos atores chave na Política
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil . . . . . . . . . 33

4 A NECESSIDADE DE ATUAÇÃO NO EIXO DE


PREVENÇÃO AO TRÁFICO DE PESSOAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
4.1 O que significa “prevenção” no escopo da política de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
4.2 Como melhorar a informação e a sensibilização? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
4.3 Como construir uma cultura de denúncia? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
4.4 Como identificar os fatores de risco para o tráfico de pessoas? . . . . . 47

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO ARTIGO


TEMÁTICO ELABORADO POR VIVIAN NETTO
MACHADO SANTARÉM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
LISTA DE SIGLAS
Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad)
Código de Processo Penal (CPP)
Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)
Defensoria Pública da União (DPU)
enfrentamento ao tráfico de pessoas (ETP)
Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Trabalho Escravo (GEFM)
Grupo de Trabalho de Assistência e Proteção à Vítima de Tráfico de Pessoas (GTTP/DPU)
Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)
MIgration EU eXpertise (MIEUX)
Organização dos Estados Americanos (OEA).
Organização Internacional do Trabalho (OIT)
Organização das Nações Unidas (ONU)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHM)
Projeto Mulheres Migrantes (PMM)
Registro Nacional de Migração (RNM)
Termos de Ajustamento de Conduta (TAC)
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

1
APRESENTAÇÃO
DO MÓDULO 4
Sejam bem-vindas e bem-vindos ao quarto módulo do curso Brasil sem tráfico
humano!

Depois das reflexões introdutórias sobre os dados e marcos jurídicos, interna-


cionais e nacionais, sobre a migração, o tráfico de pessoas e os crimes correlatos
apresentados no Módulo 1; do contato com os principais atores envolvidos na
Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil, bem como
o papel que desempenham frente a esse crime no Módulo 2; de conhecer as es-
pecificidades da atuação do Sistema de Justiça em diferentes etapas do processo
judicial envolvendo o tráfico de pessoas partindo da perspectiva da centralidade
da vítima no Módulo 3; adentramos no quarto e último momento do curso.

Como vimos ao longo dos módulos anteriores, tanto a Política Nacional de


Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas como a Lei n. 13.344/2016 têm como
princípios norteadores o “respeito à dignidade da pessoa humana”, a “proteção
e assistência integral às vítimas diretas e indiretas, independentemente de
nacionalidade e de colaboração em processos judiciais” e a “proteção integral
da criança e do adolescente”1. Refletimos também sobre a necessidade de
transcender o foco limitado à repressão ao tráfico de pessoas e expandi-lo para
as ações com especial atenção às medidas de prevenção e atenção às vítimas.

1 Cf. artigo 3.º da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, Decreto n. 5.948/2006, e artigo 2.º da
Lei n. 13.344/2016.

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Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Neste módulo, serão abordadas as especificidades no atendimento e encami-


nhamento para proteção das vítimas, bem como os impactos das restrições
de seus direitos humanos, contemplando um olhar sensível diante das inter-
seccionalidades de raça e gênero.

Iniciaremos com as contribuições da Dra. Vivian Netto Machado Santarém que


aborda a proteção e o atendimento à vítima direta ou indireta do tráfico de
pessoas por meio da atuação da Defensoria Pública da União (DPU).

Em seguida, o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) – por meio de texto


elaborado pela Dra. Michael Mary Nolan, Dra. Débora de Godoy Vasconcellos,
Dra. Eliza Odila Conceição Silva Donda, Dra. Heloísa de Freitas Magalhães Ro-
drigues e Dra. Jacqueline Feitosa de Oliveira – trata das interseccionalidades
de raça e gênero e dos impactos causados pelo tráfico de pessoas e pelas
violações correlatas a vítimas diretas e indiretas.

Por fim, a Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude


(Asbrad) – por meio de um texto elaborado pela Dra. Dalila Eugênia Maranhão
Dias Figueiredo e Dra. Graziella do Ó Rocha – fecha o curso apresentando a
necessidade de atuação no eixo de prevenção ao tráfico de pessoas.

Ao finalizar o módulo, a expectativa é que você se aproxime e conheça espe-


cificidades no atendimento e encaminhamento para proteção das vítimas e
adote um olhar sensível diante das interseccionalidades de raça e gênero.

Vamos dar início ao Módulo 4!

SAIBA MAIS:
Ao percorrer este módulo, você observará sugestões
de referências complementares como relatórios,
reportagens, podcasts, vídeos, sites etc.
Não deixe de explorar esse material que foi selecionado com o
objetivo de aprofundar as discussões apresentadas no curso!

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Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

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A PROTEÇÃO E O
ATENDIMENTO À
VÍTIMA DIRETA
OU INDIRETA DO
TRÁFICO DE PESSOAS:
A ATUAÇÃO DA
DEFENSORIA PÚBLICA
DA UNIÃO (DPU)
Artigo temático elaborado por Vivian Netto Machado Santarém, mestra em
Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/
SP). Defensora Pública Federal. Coordenadora do Grupo de Trabalho de As-
sistência e Proteção à Vítima de Tráfico de Pessoas da Defensoria Pública da
União (DPU). Autora da obra: “Tráfico de crianças para exploração sexual no
Brasil: o enfrentamento à luz dos direitos humanos.”

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Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

O tráfico de pessoas é um fenômeno complexo e dinâmico, que finca seus


alicerces na situação de vulnerabilidade do ser humano. Por isso, estratégias
eficazes de enfrentamento devem ser planejadas e executadas levando-se
em consideração as distorções históricas e estruturais que conduzem à maior
vulnerabilização de pessoas e grupos na sociedade brasileira.

Assim, o enfrentamento estratégico ao tráfico de pessoas deve considerar a


abordagem multidisciplinar do fenômeno e a busca pela efetivação dos direi-
tos humanos.

Nesse sentido, o Protocolo de Palermo aponta grupos específicos considera-


dos potencialmente mais vulneráveis ao crime, como mulheres e crianças. No
entanto, além da forte conotação de gênero2, o tráfico de pessoas deve ser
compreendido por meio da interseccionalidade com outros fatores estruturais
de discriminação, sobretudo aqueles atinentes à raça e à classe social3.

Ressalte-se que, de acordo com a Declaração e Programa de Ação de Viena de


1993, item 24, não existem pessoas vulneráveis em si. As pessoas se tornam
vulneráveis, ou vulnerabilizadas, a partir de determinados contextos, individu-
ais, econômicos, políticos e sociais. A vulnerabilidade deve ser compreendida,
portanto, a partir de seu caráter dinâmico e variável, passível de modificação
e transformação4.

De igual sorte, pessoas em situação de migração forçada, que buscam me-


lhores condições de vida em outros países em razão de crises econômicas,
desastres ambientes ou graves violações de direitos humanos nos países de
origem, em geral, estão mais vulnerabilizadas à vitimização pelo tráfico de pes-
soas, tendo em vista a sobreposição de fatores de vulnerabilidade – pessoal,

2 Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas: dados 2017 a 2020. Brasília: Secretaria Nacional de Justiça, 2021.
3 SANTARÉM, Vivian Netto Machado. Tráfico de crianças para exploração sexual no Brasil: o enfrentamento à luz
dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. p. 3.
4 Nesse sentido: CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Problematizando o conceito de vulnerabilidade para o tráfico interna-
cional de pessoas. In DOS ANJOS, Fernanda Alves et. al. (org.). Tráfico de pessoas: uma abordagem para os direitos
humanos. Brasília: Ministério da Justiça, 2013. p. 139-141.

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econômica, social e familiar – que muitas vezes permeiam suas trajetórias na


origem, durante o deslocamento e no país de destino.

Além disso, não se pode olvidar que pobreza e desigualdade social, sobretudo
após a crise econômica decorrente da pandemia de covid-19, são fenômenos
que têm o condão de gerar maior vulnerabilização ao tráfico de pessoas.

Desse modo, pode-se afirmar que “a violação de direitos humanos constitui


causa e consequência do tráfico de pessoas”5.

Nessa ordem de ideias, a atuação da Defensoria Pública no enfrentamento ao


tráfico de pessoas decorre de função institucional típica, tendo em vista o seu
papel constitucional de garantia de acesso à justiça e proteção dos direitos
humanos de pessoas e grupos vulnerabilizados, nos termos do artigo 134 da
Constituição da República de 1988:

Constituição Federal
Artigo 134: a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do
regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção
dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos
direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados,
na forma do inciso LXXIV do art. 5.º desta Constituição Federal.

Mirando atuação mais estratégica nessa seara, no âmbito da DPU, foi criado
o Grupo de Trabalho de Assistência e Proteção à Vítima de Tráfico de Pessoas
(GTTP/DPU), composto por cinco integrantes da carreira, com representativi-
dade regional e, atualmente, sob nossa coordenação.

5 PIOVESAN, Flávia e KAMIMURA, Akemi. Tráfico de pessoas sob a perspectiva de direitos humanos: prevenção, com-
bate, proteção às vítimas e cooperação internacional. In Revista Especial – Tráfico de Pessoas. Tribunal Regional
Federal da Terceira Região. São Paulo, 2019. p. 183.

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SAIBA MAIS:
Quer saber mais sobre Grupo de Trabalho de Assistência
e Proteção à Vítima de Tráfico de Pessoas e ter acesso
às notas técnicas, recomendações e publicações?
Acesse:https://promocaodedireitoshumanos.dpu.def.br/gt-
assistencia-e-protecao-a-vitima-de-trafico-de-pessoas/

O GTTP/DPU tem como função implementar ações estratégicas de prevenção


ao tráfico de pessoas da perspectiva vítima, além de promover educação em
direitos humanos e assistência às vítimas diretas e indiretas do crime.

A Lei n. 13.344/2016 estende a proteção às vítimas indiretas do crime, ou seja,


aquelas pessoas que, por manterem relações de parentesco ou afinidade com
a vítima direta, também sofrem com as consequências do tráfico de pessoas,
tais como ameaças e represálias.

Além do aludido grupo de trabalho, a atuação da DPU no enfrentamento ao


tráfico de pessoas se efetiva por meio dos defensores e das defensoras públi-
cas em todo o País, mediante assistência às vítimas em casos concretos, judicial
ou extrajudicialmente, e de forma individual ou coletiva.

O atendimento à vítima pela Defensoria Pública envolve ações que transitam


pelos três eixos de enfrentamento: prevenção, repressão e assistência à vítima.

O tráfico de pessoas é crime considerado “invisível”, tendo em vista a concor-


rência de diversos fatores, tais como a subnotificação, a falta de reconhecimen-
to da condição de vítima pela própria pessoa explorada e o desconhecimento
de seus elementos caracterizadores por agentes públicos e sociedade em geral,
o que dificulta denúncias e responsabilização.

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Dessa forma, a difusão de informação representa importante instrumento de


enfrentamento, na medida em que possibilita o despertar de olhares para as
diversas situações de exploração do ser humano abrangidas pelo tráfico de
pessoas.

Ademais, a educação em direitos humanos tem o condão de promover a cul-


tura de respeito aos direitos em detrimento da cultura da violência, servin-
do como mecanismo efetivo de prevenção e transformação da realidade, na
medida em que atua nas causas estruturais do tráfico de pessoas e promove
cidadania para emancipação.

Dessa perspectiva, a DPU tem promovido ações de capacitação de atores pú-


blicos e privados que lidam com a temática do enfrentamento e/ou com o
atendimento inicial das vítimas, como agentes do sistema único de saúde,
agentes da assistência social, professores, conselheiros tutelares, integran-
tes de organizações não governamentais, de agências internacionais, além de
defensores e defensoras públicas. As capacitações têm como objetivo princi-
pal trazer visibilidade ao fenômeno, promover maior conscientização social e
viabilizar a integração e maior articulação da rede de atendimento à vítima.

No eixo da repressão, a Defensoria Pública pode atuar como assistente


de acusação em ação penal proposta em face dos perpetradores do cri-
me, na função de representante da vítima. Nesse caso, diversas diligências
podem ser requeridas em favor da vítima, o que envolve desde a observância
de seus direitos reconhecidos em lei, como o atendimento humanizado, a
escuta qualificada e a preservação da intimidade, como a adoção de medidas
relacionadas à produção antecipada de provas e à reparação do dano.

Com efeito, a possibilidade de atuação mais concreta da Defensoria Pública


no processo criminal, no interesse da vítima, se consolidou com a alteração
introduzida pela Lei n. 11.719/2008 ao artigo 387, IV, do Código de Processo
Penal (CPP). O aludido dispositivo autoriza ao juiz criminal fixar valor mínimo
para a reparação dos danos à vítima na sentença condenatória.

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Código de Processo Penal


Artigo 387 – O juiz, ao proferir sentença condenatória:
[...] IV – fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração,
considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido

Assim, transitada em julgado a sentença penal condenatória, a vítima


ou os seus herdeiros poderão promover a execução por título judicial
perante o Juízo Cível (artigo 63 CPP). Essa alteração legislativa visa favorecer
a situação da vítima do ilícito penal, na medida em que, com a fixação de valor
mínimo para a indenização, o título executivo judicial é dotado de certeza e
liquidez hábil a autorizar a adoção de medidas interventivas no patrimônio do
executado, sem necessidade de procedimento de liquidação prévio.

No caso da produção probatória, por exemplo, vítimas de outras nacio-


nalidades que pretendem regressar para o país de origem não precisam
aguardar o trâmite, por vezes moroso, de processo judicial, sendo pos-
sível requerer a produção antecipada de provas para a oitiva da vítima/
testemunha.

Outra situação que chama atenção no exercício da atuação jurisdicional da


DPU é a utilização de vítimas de tráfico de pessoas para a prática de crimes,
em especial como “mulas” do tráfico de drogas.

A não punibilidade das vítimas nesses casos acontece em alguns países, como,
por exemplo, na Argentina6. Tal previsão não existe na lei brasileira. No entanto,
é preciso refletir sobre a situação de pessoas que, diante de contextos de hi-
pervulnerabilidade vivenciados, apresentam autonomia e liberdade substancial

6 ARGENTINA. Ley 26.364. PREVENCION Y SANCION DE LA TRATA DE PERSONAS Y ASISTENCIA A SUS VICTIMAS Dispo-
siciones Generales. Derechos de las Víctimas. Disposiciones Penales y Procesales. Disposiciones Finales. Sancionada:
abril 9 de 2008. Promulgada: abril 29 de 2008. “ARTICULO 5.º — No punibilidad. Las víctimas de la trata de personas no son
punibles por la comisión de cualquier delito que sea el resultado directo de haber sido objeto de trata. Tampoco les serán
aplicables las sanciones o impedimentos establecidos en la legislación migratoria cuando las infracciones sean consecuencia
de la actividad desplegada durante la comisión del ilícito que las damnificara”.

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reduzidas, muitas vezes aceitando propostas de organizações criminosas em


troca de condições mínimas de subsistência.

Ainda no campo da repressão, porém na seara administrativa, merece menção,


na qualidade de boa prática institucional, a participação da DPU no Grupo Es-
pecial de Fiscalização Móvel do Trabalho Escravo (GEFM), vinculado à Secretaria
de Inspeção do Trabalho.

O GEFM conta com composição interinstitucional, integrando agentes públi-


cos de diversos órgãos estatais em suas ações de fiscalização e repressão ao
trabalho escravo contemporâneo em todo território nacional.

A atuação da DPU no GEFM engloba a orientação jurídica dos trabalhadores


resgatados, as negociações de rescisões de contrato de trabalho, a celebração
de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) com os empregadores, a inclusão
das vítimas resgatadas em programas de proteção a testemunhas ameaçadas
e a propositura e o acompanhamento de reclamações trabalhistas.

A orientação jurídica envolve principalmente informações sobre os direitos


fundamentais e as questões correlatas ao trabalho escravo, como expedição de
documentação, encaminhamentos de natureza previdenciária e de assistencial
social, direito à moradia, saúde, regularização migratória no caso de pessoas
migrantes e direitos das vítimas de tráfico de pessoas.

O trabalhador resgatado em situação de trabalho escravo tem direito a três


parcelas do seguro-desemprego, conforme artigo 2.º-C da Lei n. 7.998/1990.

No que se refere ao eixo da assistência e proteção às vítimas, é preciso levar


em consideração a integração articulada da rede de proteção para que seja
conferida à vítima oportunidade efetiva de reinserção social, bem como pro-
teção contra o processo de revitimização.

Nesse sentido, o artigo 6.º da Lei n. 13.344/2016 propõe abordagem multi-


disciplinar do fenômeno vitimológico e, com ênfase na proteção dos direitos

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humanos violados, busca retirar a vítima da situação de vulnerabilidade que


deu origem ao seu empoderamento pelos perpetradores e garantir condições
necessárias para a retomada de seus projetos de vida.

De início, deve-se observar alguns princípios orientadores para atendimento


inicial e humanizado da vítima de tráfico de pessoas7, entre os quais desta-
cam-se:

z Interpretação: inicialmente, tratando-se de vítima não nacional, deve lhe


ser garantida a comunicação em idioma que compreenda, ou um intérprete.
Com efeito, a compreensão da linguagem é de suma importância para ga-
rantir à vítima autonomia, segurança e compreensão adequada sobre seus
direitos. No entanto, adverte-se que não devem ser usados como intérpretes
pessoas que se encontrem com a pessoa traficada ou no mesmo ambiente,
ainda que afirme ser amigo, familiar, etc.

z Privacidade no atendimento: o atendimento deve ser individualizado e


ocorrer em local reservado, longe de outras pessoas do ambiente de explo-
ração e conduzida por um mínimo de profissionais possível.

z Avaliação das necessidades urgentes: alimentação, água, cuidados mé-


dicos de emergência, etc. Muitas vítimas foram submetidas a dolorosos e
longos processos de exploração e, por vezes, quando resgatadas, deman-
dam o atendimento imediato de necessidades básicas para que, somente
após, possam ser ouvidas e compreendidas.

z Tratamento individualizado: devem ser respeitadas as circunstâncias e as


necessidades particulares de cada pessoa. Tratando-se de vítima do gênero
feminino, a entrevista inicial deve ser conduzida, preferencialmente, por
profissional do mesmo gênero.

7 DEFENSORIA PÚBLILCA DA UNIÃO. Guia Prático de Assistência às Vítimas de Tráfico de Pessoas. Disponível em:
https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/GLO-ACT/DPU_ANTI-TIP_GUIDE.pdf

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z Consentimento informado: a vítima deve ser consultada antes de ser provi-


denciada qualquer medida de auxílio e dar o seu consentimento informado
para ações e procedimentos que lhe são propostos.

z Acesso à informação: a vítima deve receber informação clara sobre os seus


direitos e as medidas relativas à assistência, bem como sobre os procedi-
mentos administrativos e judiciais pertinentes.

z Confidencialidade de dados: a vítima deve ter os seus dados resguardados,


devendo ser respeitado o seu consentimento informado para utilização.
Ainda que haja o consentimento, é necessário avaliar se o conteúdo da
informação afeta a segurança da pessoa traficada ou de algum membro
de sua família.

z Participação e autonomia: à vítima deve ser garantida a participação de


forma ativa nas decisões que lhe digam respeito, devendo ser incentivada
a expressar seus questionamentos.

z Prevenção à revitimização: deve-se evitar perguntas repetitivas que já


tenham sido feitas ou que serão realizadas por outras instituições. As infor-
mações solicitadas devem ser aquelas realmente relevantes para o atendi-
mento inicial, evitando-se sobrecarregar a vítima com questionamentos ex-
cessivos. É importante ressaltar que, em alguns casos, o trauma vivenciado
em decorrência da exploração pode impedir o relato dos fatos em sequência
lógica, bem como afetar a memória da vítima, produzindo, inclusive, confu-
são. Esses fatores devem considerados no momento do atendimento e de
maneira alguma devem servir para desqualificar o testemunho.

SAIBA MAIS:
Quer saber mais sobre o tema? Consulte a publicação Guia Prático
de Assistência às Vítimas de Tráfico de Pessoas (Defensoria
Pública da União, 2019) disponível na biblioteca virtual do curso!

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Vale ressaltar que, no caso de vítima criança ou adolescente, a Lei n. 13.431/2017,


que institui o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima
ou testemunha de violência, determina que deve ser observado o método de
escuta qualificada, quando a oitiva acontecer perante os órgãos de atenção
social, e depoimento especial, quando a vítima for ouvida pela autoridade
policial ou judiciária.

A referida norma enumera diretrizes que devem ser observadas durante a oiti-
va, entre as quais a escolha de local apropriado e acolhedor para a entrevista;
o respeito à privacidade; a narrativa livre com o mínimo de intervenções; a
comunicação em linguagem de melhor compreensão para a criança ou o ado-
lescente e o respeito à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

SAIBA MAIS:
Quer saber mais sobre as especificidades da escuta de crianças e
adolescentes migrantes e o método de escuta qualificada? Consulte
as publicações Manual de escuta de crianças e adolescentes
migrantes (Defensoria Pública da União, MIgration EU eXpertise
-MIEUX, 2020) e o Protocolo de Escuta Qualificada para Grupos
Vulneráveis ao Tráfico de Pessoas (Organização Internacional para
as Migrações, 2022), disponíveis na biblioteca virtual do curso!

Na seara dos direitos, a atuação da DPU no eixo de assistência e proteção à


vítima se efetiva por meio da garantia de acesso à justiça e da reparação
de danos.

Nesse ínterim, importante compreender que o acesso à justiça inclui o direito


a receber orientação jurídica e informações sobre as violações sofridas e os
mecanismos de reparação; a representação perante as autoridades adminis-
trativas e a assistência judiciária propriamente dita, que inclui o ajuizamento

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Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

de ação perante o Poder Judiciário para a tutela dos direitos violados. Envolve,
assim, a atuação extrajudicial e judicial da DPU.

A reparação de danos pode se dar na esfera trabalhista, no caso de exploração


laboral, na esfera cível, ou na esfera criminal, no caso de valor mínimo fixado
pela sentença penal condenatória, como explicado acima. Deve englobar a
compensação pelos danos materiais e morais sofridos, buscando-se a recu-
peração da vítima dos prejuízos físicos e psicológicos vivenciados.

Vale mencionar que as medidas de reparação vão além da compensação


pecuniária e devem ter como objetivo garantir à vítima condições ma-
teriais mínimas para a retomada de seus projetos e para evitar a reviti-
mização.

Dessa forma, deve-se incluir, sempre que possível, a restauração da liberdade,


do emprego, o retorno seguro e voluntário ao local de origem (caso essa seja
a vontade da vítima) e outras medidas de reintegração social.

No que se refere à restauração da liberdade, deve-se garantir à vítima de tráfico


de pessoas a não detenção ou prisão pela prática de atos ilícitos cometidos no
contexto do tráfico, incluindo a falta de documentação válida para ingresso
no País, o ingresso com documento falso, ou a ocorrência de outra situação
migratória irregular.

Vale dizer que, conforme determina o artigo 49, §4.º, da Lei 13.445/2017, ain-
da que presentes quaisquer dos motivos de impedimento de entrada no País
previstos pelo artigo 45 da aludida norma, não se procederá à repatriação:
I - de pessoa refugiada ou apátrida;
II - de menores de 18 anos desacompanhados ou separados (exceto quan-
do a repatriação for comprovadamente favorável);
III - de quem necessite de acolhimento humanitário; e
IV - nem de quem possa estar submetido a risco de vida, ou à integridade
pessoal ou à liberdade no país de origem.

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Em todos esses casos, bem como na hipótese em que a repatriação não se dê


de forma imediata, a DPU deve ser notificada para a tutela dos direitos huma-
nos das pessoas envolvidas (artigo 49, §2º, da Lei n. 13.445/2017).

Outras medidas de reparação podem compreender o abrigamento pro-


visório, acolhimento institucional, se necessário; a expedição de docu-
mentação; a assistência médica, psicológica e social; as oportunidades
de emprego e educação; a proteção própria e de familiares contra os
perpetradores; e a autorização de residência no caso de vítimas migran-
tes ou refugiadas.

Nessa última hipótese, é importante destacar que a DPU detém legitimidade


para apresentar requerimento de regularização migratória perante a autori-
dade competente (artigo 158, §2.º, Decreto n. 9.199/2017).

Com efeito, a autorização de residência por prazo indeterminado às vítimas de


tráfico de pessoas é direito que atualmente encontra fundamentação no artigo
30, II, “g”, da Lei n. 13.445/2017, a “Nova Lei de Migração”, e seu regulamento,
o Decreto n. 9.199/2017, artigo 142, II, “f” e artigo 158, I.

Em que pese a norma em referência não estender expressamente esse direito


às vítimas indiretas do crime, é certo que interpretação sistemática do artigo
2.º, VI, da Lei n. 13.344/2017, em consonância com o Protocolo de Palermo e
a perspectiva humanitária de acolhimento que permeia a política migratória
nacional, deve incluir o direito à residência permanente também para as víti-
mas indiretas, em razão do princípio da atenção integral.

No mais, vale salientar que o direito à autorização de residência não depende


ou se subordina à efetiva colaboração da vítima para a elucidação do crime,
seja durante a investigação policial, ou durante o processo judicial, conforme
expressamente estatui o artigo 2.º, VI, da Lei n. 13.344/2016.

Por fim, é sempre importante ter em mente que a reparação dos danos tem
como objetivo contribuir para a recuperação física e psicológica da vítima,

20
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

para a sua reintegração na sociedade e para efetivamente prover as condições


mínimas necessárias à eliminação do contexto de vulnerabilidade que deu
origem à experiência inicial.

Como visto, o enfrentamento ao tráfico de pessoas não se subsume ao eixo de


repressão, envolvendo a necessidade de intervenção contextualizada e mul-
tidimensional, com o objetivo de dar visibilidade a situações de desproteção
nas políticas públicas e maior concretude aos direitos humanos das vítimas.

Entretanto, é preciso pontuar que o atual período lança novos e importantes


desafios de enfrentamento à Defensoria Pública e ao sistema de justiça. O
mundo enfrenta o agravamento das condições de vulnerabilidade de milhões
de pessoas em razão da pandemia da covid-19, o que inclui aumento da pobre-
za, da desigualdade de gênero, da violência contra as mulheres e crianças, res-
trições à migração, xenofobia, desemprego, instabilidade econômica e política.

Na prática, o agravamento desses fatores pode contribuir para a expansão


do tráfico de pessoas, na medida em que torna mais difícil a efetivação dos
direitos econômicos, sociais, cultuais e ambientais.

A Defensoria Pública, na condição de instituição republicana comprometida


com os direitos humanos e com a preservação do regime democrático, tem
importante papel estratégico no enfrentamento ao tráfico de pessoas, em
especial por meio da garantia de efetivo acesso à justiça e da promoção da
igualdade material às vítimas.

SAIBA MAIS:
Confira o Manual de atendimento jurídico a migrantes e
refugiados: atendimento a vítimas de tráfico de pessoas
(Organização Internacional para as Migrações, Defensoria Pública
da União, 2022) disponível na biblioteca virtual do curso!

21
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Sugestão de filmes
Pureza – 2019 – direção Renato Barbieri
Capharnaum – 2018 – direção Nadine Lebaki
Human Flow – 2017 – direção Ai Weiwei
Biutiful – 2011 – direção Alejandro Gonzálex Iñárritu
Shun Li e o poeta – 2011 – direção Andrea Segre

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

3
AS
INTERSECCIONALIDADES
DE RAÇA E GÊNERO E OS
IMPACTOS CAUSADOS
PELO TRÁFICO DE
PESSOAS E VIOLAÇÕES
CORRELATAS NAS
VÍTIMAS DIRETAS
E INDIRETAS
Artigo temático elaborado por Michael Mary Nolan – Presidente do Instituto
Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC); Débora de Godoy Vasconcellos – Pesqui-
sadora vinculada ao Projeto Mulheres Migrantes (ITTC); Eliza Odila Conceição
Silva Donda – Pesquisadora vinculada ao Projeto Mulheres Migrantes (ITTC);
Heloísa de Freitas Magalhães Rodrigues – Pesquisadora vinculada ao Proje-
to Mulheres Migrantes (ITTC); Jacqueline Feitosa de Oliveira – Pesquisadora

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

vinculada ao Projeto Mulheres Migrantes (ITTC). Elaboração dos gráficos –


Equipe do Banco de Dados (ITTC). Revisão – Coordenação, Equipe do Justiça
sem Muros e Banco de Dados (ITTC).

O Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) atua, desde 1997, com o objetivo
de erradicar a desigualdade de gênero, garantir direitos e combater o encarce-
ramento. É estruturado em quatro eixos de ação: 1. Gênero e Drogas; 2. Justiça
Sem Muros; 3. Banco de Dados; e 4. Projeto Mulheres Migrantes (PMM) que
atua e acumula longa experiência no atendimento direto e acompanhamento
de mulheres migrantes em conflito com a lei em São Paulo.

A principal atuação do PMM é prestar orientação jurídica, sobretudo nas te-


máticas de regularização migratória, assistência social, moradia e saúde, além
de atuar na produção de conhecimento, incidência política, formação de redes
de migração e reflexões para medidas de desencarceramento.

No período de janeiro a novembro de 2021, foram realizados 2.790 atendi-


mentos com 284 mulheres migrantes em conflito com a lei, sendo a maioria
dessas pessoas condenadas por tráfico internacional de drogas. Contudo, no
decorrer da trajetória do PMM, 797 migrantes egressas foram acompanhadas
em cerca de 7.437 atendimentos multidisciplinares, havendo, também, o apoio
e cooperação junto às instituições que atuam na área de justiça criminal, com-
plementando sua atuação.

SAIBA MAIS:
Quer saber mais sobre o Projeto Mulheres Migrantes?
Acesse: https://ittc.org.br/mulheres-migrantes/

24
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Neste cenário, por meio da experiência do ITTC, os nossos atendimentos nos


propõem a reflexão sobre dois pontos fundamentais: a conexão entre o trá-
fico de drogas e o tráfico humano.

O tráfico humano abrange a multiplicidade de questões, realidades e desi-


gualdades sociais. E, na maioria dos casos, as vítimas imersas em situação de
vulnerabilidade social tornam-se alvos fáceis para cadeias criminosas.

Neste sentido, os atendimentos do PMM identificam possíveis vítimas, mas de


forma não inicial, ou seja, é realizado o atendimento de mulheres migrantes
quando estas já estão enfrentando acusação de tráfico de drogas.

Por suas próprias narrativas, cartas, análise do processo, conversas com a


família, é possível verificar que não se trata de pessoas criminosas, como co-
mumente se compreende, mas de mulheres, em sua maioria, em situação
vulnerável financeira e socialmente, compelidas e captadas pelo tráfico. Elas,
muitas vezes, não sabiam de tal condição ou só aceitaram para sair de outras
situações de privação de autonomia, seja por estarem sendo exploradas fisi-
camente e/ou psicologicamente.

Assim, o ITTC é uma das instituições que promove a escuta ativa das vítimas,
a orientação processual, faz a mediação entre a mulher migrante em conflito
com a lei e sua defesa, e verifica a dificuldade que elas ainda enfrentam com
a regularização migratória.

Com a instituição da Nova Lei de Migração, deu-se a possibilidade de regu-


larização migratória da pessoa migrante em conflito com a lei, em fase de
cumprimento de pena ou liberdade provisória, com possibilidade de obter a
carteira de trabalho. É importante notar, porém, que tal modalidade finda-se
com a extinção da punibilidade ou com o cumprimento integral da condenação.

A Lei de Migração, em seu artigo 30, II, alínea h, possibilita a obtenção da au-
torização de residência para fins de cumprimento de pena ou liberdade pro-

25
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

visória no Brasil, com emissão do Registro Nacional de Migração (RNM), além


possibilidade de trabalho garantida em seu parágrafo segundo.

Apesar da possibilidade ventilada, a lei e sua regulamentação apresentam al-


guns entraves burocráticos, pois são exigidos documentos consulares de difícil
acesso para algumas nacionalidades, seja pela representação consular não
dispor de tal serviço, seja pelo custo. Há também mulheres em conflito com
a lei que, por mais que estejam identificadas no processo criminal e vivam no
Brasil há algum tempo, não conseguem obter parte da sua identificação civil,
como exigido, atrasando em anos a obtenção da regularização.

Com isso, verificamos o aumento da vulnerabilidade, expondo-as, também,


ao trabalho informal, ao medo e à insegurança, podendo, ainda, quando che-
garem ao tempo de irem solicitar o RNM, serem multadas por estarem irre-
gulares8.

Caso fossem identificados os requisitos para identificação da vítima de tráfico


de pessoas, esta mulher migrante poderia obter sua regularização prontamen-
te nos termos do artigo 30, II, alínea g, da Lei n. 13.445/17.

Logo, buscamos, por meio da incidência política, demonstrar que a prote-


ção dos direitos humanos da possível vítima de tráfico de pessoas deve ser
priorizada, além da busca pela análise judicial na audiência de custódia, dos
requisitos básicos para configuração do tráfico de pessoas, conforme previsto
na Resolução n. 405/2021 do CNJ.

A ideia para o futuro é buscar a implementação dos planos de ação já estabe-


lecidos pela Polícia Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, bem como
inserir na agenda pública a proteção da mulher privada de liberdade, podendo
revisitar os processos para verificar o preenchimento dos requisitos objetivos
para configuração de vítima do tráfico de pessoas, possibilitando, desde sua

8 Artigo 109, da Lei de Migração, artigo 300 e seguintes, do Decreto 9.199/17.

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

proteção, sua reintegração social humanizada, além, claro, da possibilidade


de se manter no país, regularmente.

Com isso, almeja-se que, desde o momento da entrada em território nacional,


em conjunto com o poder policial, haja atuação humanizada com participação
de organizações da sociedade civil e do poder público para atender as pes-
soas face a possível acusação de tráfico de drogas, assegurar a proteção dos
direitos humanos e o combate ao tráfico humano. Além disso, que, próximo
aos pontos de entrada, possam ter abrigos especializados no acolhimento de
migrantes e familiares, com atendimento multidisciplinar.

3.1 Perfil e números: mulheres atendidas pelo


Instituto Terra, Trabalho e Cidadania

De 2008 a 2019, o ITTC atendeu 1.208 mulheres acusadas de tráfico de drogas,


tráfico internacional de drogas e associação para o tráfico dentro das unidades
prisionais, o que é equivalente a 83% das mulheres migrantes com informa-
ções disponíveis.

Atualmente, muitas mulheres atendidas pelo ITTC trazem narrativas com os


mesmos parâmetros de vítimas do tráfico de pessoas: uma pessoa próxima
as convida para um trabalho vantajoso, com informações pouco claras, mas
que indicam que seria uma viagem para levar algo, sabendo ou não ser droga.

Esses aliciadores, tendo certa noção de que muitas mulheres são as bases
familiares em seus países, responsáveis pelo sustento e cuidados dos filhos e
parentes, fazem essas propostas que são economicamente convidativas, mas,
na maioria das vezes, sob meio de coação, engano, ameaça ou abuso.

27
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Na fronteira do país são presas na entrada e/ou na saída em diferentes si-


tuações após serem denunciadas. E, nesses casos, principalmente quando
o delito ocorre no aeroporto, o crime é mais penoso, pois se trata de tráfico
internacional de drogas.

Na jurisdição brasileira, muitas das mulheres que atendemos são considera-


das “mulas” do tráfico, ou seja, pessoa que cometeu crime de transporte de

28
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

drogas, mas que não compõe a organização criminosa, e tem, portanto, sua
pena atenuada em 1/6.

Observamos que muitas mulheres detidas no aeroporto são condenadas a


partir de depoimentos com base na memória, contados apenas pelos poli-
ciais, os quais podem possuir pouco treinamento em identificar elementos
de tráfico de pessoas. Outro traço a se notar é a pouca quantidade de drogas
transportada por algumas delas.

O Brasil oferece defesa gratuita por meio das Defensorias Públicas. Contudo,
verifica-se que a estrutura institucional pública sofre limitação em seus recur-
sos materiais e humanos9 e, para o cenário carcerário das “mulas” do tráfico,
suas defesas focam no aspecto criminal.

Nosso trabalho, embora não advogue por elas, e tendo uma equipe multidis-
ciplinar, inclui, além do contato direto, dentro e fora do presídio, o acompa-
nhamento e a mediação junto às defesas para que possam ter seus direitos
garantidos.

9 ICMPD et al. Guia de Assistência e referenciamento de vítimas do tráfico de pessoas, jun 2020. P. 77.

29
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

No âmbito das vítimas de tráfico humano, como representa a maioria das


mulheres na condição de “mula”, existe uma lacuna entre a demanda e a pos-
sibilidade de identificação das vítimas, bem como no acompanhamento e na
reintegração social.

3.2 Interseccionalidades de raça, gênero e nacionalidade

A partir dos números a seguir apresentados, é notável a presença de mulheres


sobretudo racializadas e do Sul Global. Isso nos mostra como, ao se tratar do
tráfico de pessoas, é necessário que as realidades que englobam as questões
de raça, gênero e nacionalidade sejam consideradas. X

Por meio do gráfico acima, observa-se que pelo menos 34% das mulheres víti-
mas de tráfico de pessoas são oriundas de países africanos, pelo menos 21%
de países da América do Sul e pelo menos 10% do Sul da Ásia.

30
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Nesse sentido, ao nos depararmos com os relatos das mulheres atendidas


pelo ITTC, compreendemos que existem diversas necessidades econômicas e
sociais perpassadas pela interseccionalidade de gênero, raça e nacionalidade,
na medida em que não existem alternativas para elas quando se deparam com
alguma oportunidade de trabalho, mesmo que duvidosa.

São inúmeras as causas anteriores, as quais muitas vezes abarcam mulheres


que foram vítimas de violência doméstica, pobreza, fome e ainda com a expe-
riência da maternidade solo. No caso do transporte de drogas, vemos pelos
dados que 62% das mulheres atendidas, e que foram possíveis vítimas do
tráfico de pessoas, não sabiam da motivação desde o início. Além do engano,
ainda existe o medo da chantagem e de irem atrás da família caso não aceitem
a realização do trabalho.

Para além disso, na medida em que essas mulheres são detidas e condenadas
no Brasil ou em outros países para os quais foram deslocadas, a realidade do
sistema carcerário é extremamente violenta, principalmente para mulheres
migrantes, racializadas e que não possuem rede de apoio por não estarem em
seu país de origem. A situação da mulher privada de liberdade é diferente em
muitos aspectos em relação a do homem.

31
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

São muitas as violações ocorridas no ambiente carcerário e, nesse sentido, as


mulheres – cis e trans –, homens trans e pessoas não binaries são acometidas
por opressões perpassadas pela violência de gênero. Elas são as primeiras a
terem seus direitos negados e a não terem consideradas suas necessidades,
como, por exemplo, o acesso a absorventes e itens básicos de higiene.

Para mais, parcela significativa das mulheres presas é formada por mães, por-
tanto os efeitos do encarceramento tomam forma complexa ao atingirem a
mulher acusada e condenada por algum crime e seus filhos e familiares que
dependem do seu trabalho e cuidado para sobreviver. Neste caso, pensando
na situação das mulheres presas que são migrantes, além de todo esse con-
texto, elas enfrentam também barreiras sociais, linguísticas, culturais e uma
falta ainda maior de rede de apoio.

Grande parte das mulheres que atendemos são presas no Brasil por tráfico
internacional de drogas e relatam justamente que, por não terem condições
financeiras de sustentar seus filhos e filhas, sendo muitas vezes mães solo,
se encontram em posição na qual recebem oferta de trabalho e, às vezes não
sabendo do que se trata, acabam por aceitar a atividade por estas razões:

Muitas vezes é a própria presença de filhos e filhas, em condições econômicas


de profundas restrições, sem apoio do genitor, perante uma série de precarie-
dades e dificuldades materiais e subjetivas para a reprodução de suas vidas,
bem como a ausência de políticas que lhes permitam acessar redes de apoio,
que constituem os fatores que levam as mulheres a cometerem violações à lei
para garantir sua sobrevivência e o sustento de sua prole (ITTC, 2019, p. 123).

Ao serem condenadas como traficantes, o histórico do motivo pelo qual reali-


zaram o crime é relevado, e as mulheres podem ser submetidas à análise de
cunho moral de que deveriam estar cuidando dos filhos, ao invés de praticarem
o tráfico, o que é usado como agravante moral em suas penas.

Além disso, “determinados grupos raciais são mais vulneráveis à punição es-
tatal, em especial no que tange à ação policial”10. Por isso, é necessário consi-

10 ALVES, Dina. Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção
da punição em uma prisão paulistana. 2015. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. apud ITTC, 2022

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

derar que as decisões judiciais que decretam a prisão de mulheres também


são impactadas pela questão da raça.

Dessa forma, o tráfico de pessoas aliado ao tráfico de drogas incide com as


mulheres racializadas e do Sul Global, sobretudo aquelas que já se encontram
em situação de vulnerabilidade devido a todos os fatores mencionados.

SAIBA MAIS:
Quer saber mais sobre o tema? Acesse a publicação Raça/cor/
etnicidade e território: analisando as penas de mulheres
migrantes em conflito com a lei (ITTC, 2021):
https://ittc.org.br/raca-cor-etnicidade-e-territorio-analisando-
as-penas-de-mulheres-migrantes-em-conflito-com-a-lei/
Confira também o Manual de atendimento jurídico a
migrantes e refugiados: cuidados básicos no atendimento
de pessoas em situação de vulnerabilidade (Agência
da ONU para as Migrações, Defensoria Pública da União,
2022) disponível na biblioteca virtual do curso!

3.3 Pontos de atenção para o trabalho dos


agentes do Sistema de Justiça e dos atores
chave na Política Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas no Brasil

Correlação entre o tráfico de drogas e tráfico de pessoas

No contexto do tráfico de drogas, o limiar para diferenciar partícipes da organi-


zação criminosa e criminosos é baseado na condição de vulnerabilidade social e
econômica, na proporção da participação e nas provas apresentadas em juízo.

33
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

No caso das mulheres migrantes, quando autuadas em flagrante por crime de


tráfico internacional de drogas, elas devem provar a condição financeira e social
alegadas no momento do recrutamento, bem como os meios, seja por coação,
ameaça, fraude, engano, abuso de autoridade ou da sua vulnerabilidade.

Entretanto, mesmo podendo configurar a servidão, como a finalidade é o trans-


porte de substâncias não permitidas no país, esta se sobressai, tornando-as
criminosas, não integrantes da organização. Ou seja, “mulas”. Elas acabam
condenadas, em sua maioria, a penas privativas de liberdade e ao pagamento
de dias-multa, o que pode corresponder a mais de 10 mil reais.

Mesmo que elas, em sua maioria, preencham os requisitos para a caracteri-


zação de vítimas de tráfico de pessoas (pela finalidade de servidão), conforme
artigo 149-A, III, do Código Penal Brasileiro, prevalece a opção pela condenação
pelo crime de tráfico de drogas, com a diminuição da pena por não ser consi-
derada partícipe da organização criminosa (artigo 33, § 4.º, Lei n. 11.343/2006).

Importante verificar como a não-observação da relação


entre tráfico de drogas e tráfico humano, em alguns casos,
afeta tanto as vítimas diretas - mulher migrante - quanto
indiretas do tráfico de pessoas - sua família e rede de
apoio. As vítimas diretas e indiretas têm sua situação de
vulnerabilidade agravada, tanto pela privação de liberdade
e direitos, quanto pelo fato de que esta mulher detida
é, geralmente, o pilar de sustentação familiar, tanto no
aspecto econômico, quanto social.

O Sistema de Justiça e marcos legais

A posição do Judiciário e sua relação com os demais poderes e atores são ex-
tremamente potentes para a efetiva defesa dos direitos humanos e o combate
ao tráfico humano.

34
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Em caso julgado no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, a narrativa da ré em


interrogatório, destacada por sua defesa, indicava contexto de vulnerabilidade
e de tráfico humano, por se tratar de mulher negra, jovem, sem nenhuma es-
colaridade, que vendia frutas e se prostituía para sobreviver, ganhando menos
de cinco dólares por mês, cuja oferta de trabalho foi enganosa. A partir desses
elementos colhidos no interrogatório da ré, a defesa discorreu sobre o padrão
de aliciamento para a realização de trabalhos forçados, no caso, com engano
e fraude contra pessoas vivendo em situação de vulnerabilidade.

É possível observar como as dificuldades financeiras são aptas a ensejar a


cooptação por organizações criminosas que se valem desse padrão para o
aliciamento e para a realização de trabalhos forçados/ilícitos, figurando a ré
como vítima do tráfico de pessoas. Contudo, geralmente a ré é vista como
traficante ao invés de traficada.

Neste sentido, a Recomendação 203 da Organização Internacional do Trabalho


(OIT), em seu item 7, sugere que:

Os membros devem, de acordo com os princípios básicos de seus ordenamen-


tos jurídicos, tomar as medidas necessárias para garantir que as autoridades
competentes tenham o direito de não processar ou impor penalidades às
vítimas de trabalho forçado ou obrigatório por seu envolvimento em ativida-
des ilegais a que foram obrigadas cometer como consequência direta de ser
submetido a trabalho forçado ou obrigatório11.

Ao considerar o depoimento de vítimas de tráfico que tenham sido sexual-


mente abusadas ou exploradas, o Manual contra o tráfico de pessoas para
profissionais do sistema de justiça penal do escritório da ONU sobre drogas12
alerta que o comportamento da vítima pode incluir hostilidade, falta de coo-
peração ou perda de memória e lapsos que geram alteração de depoimentos
e incapacidade de recordar de detalhes.

11 ILO. R203 - Forced Labour (Supplementary Measures) Recommendation, 2014 (No. 203). Tradução nossa: “Members
should, in accordance with the basic principles of their legal systems, take the necessary measures to ensure that
competent authorities are entitled not to prosecute or impose penalties on victims of forced or compulsory labour
for their involvement in unlawful activities which they have been compelled to commit as a direct consequence of
being subjected to forced or compulsory labour”.
12 UNODC. Manual contra o tráfico de pessoas para profissionais do sistema de justiça penal, 2010.

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Observações sobre o Protocolo de Palermo - tráfico e expulsão

Observa-se que a legislação nacional apresenta definição que pode ser interpre-
tada de maneira restritiva no que diz respeito às vítimas do tráfico, excluindo
aquelas que realizaram alguma atividade ilícita no país e que consentiram com o
que fora proposto, fatores considerados irrelevantes pelo Protocolo de Palermo.

Esse contexto acaba por criminalizar a situação de pessoas traficadas, especial-


mente aquelas que realizaram o transporte de drogas e que, ao invés de recebe-
rem a proteção e possibilidade de reintegração (diminuindo a vulnerabilidade),
têm sua condição agravada (aumentando a ruptura entre ela e a sociedade):

Considerando a situação de vulnerabilidade de mulheres “mulas” do tráfico


internacional de drogas, depreende-se que muitas delas são vítimas de tráfi-
co de pessoas e não têm sua condição reconhecida diante do trabalho ilícito
exercido, sendo criminalizadas conforme a legislação brasileira13.

Ao ser condenada, com sentença transitada em julgado, ela passa a ter sua
regularização migratória garantida, que terá a validade na quantidade de pena
que ela tem que cumprir no Brasil. Outras modalidades de cooperação inter-
nacional, na seara criminal, firmadas por acordos bilaterais ou multilaterais,
são: transferência de pessoas para cumprimento de pena e expulsão.

Para o primeiro caso (transferência de pessoas para cumprimento de pena),


a mulher termina de cumprir pena em seu país de origem.

Para o segundo (expulsão), o Ministério da Justiça autoriza que ela tenha sua
pena finalizada e seja deportada para seu país de origem. A expulsão aconte-
ceria, em tese, de qualquer forma: ou ela é antecipada, ou ela é cumprida no
final da sentença. Caso a mulher ou sua representação consular não possa
arcar com os custos da viagem, o governo assim o fará, mas poderá levar um
tempo considerável.

13 INSTITUTO Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). ITTC explica: você sabe o que é tráfico de pessoas? 2020.

36
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Este tempo agrava a situação de vulnerabilidade pela


ausência de documentação e nos casos que a espera dure
longos períodos – como é comum para algumas mulheres
– a mulher já construiu sua vida e rede de apoio aqui, com
estudos, trabalho, amigos, rotina, perdendo ou não contato
com familiares ou até com o país de origem. Para estes
casos, a mulher só poderia pedir a revogação da portaria
de expulsão, caso ela se case ou tenha um filho brasileiro,
já que as outras hipóteses são vinculadas à idade. O que
percebemos é que as mulheres que não querem se casar,
nem ter filhos, mas têm empreendimentos vantajosos, ou
estudos, não têm tantas chances.

É fato que, diante a limitação da mobilidade do corpo da mulher, dando op-


ções que alteram suas vidas de forma drástica, buscamos mudar esse cenário
com advocacy e advocacia estratégica com as Defensorias e demais redes de
proteção da migração no Brasil, além da articulação das próprias mulheres
que se organizam para lutar pelos seus direitos.

Fato, também, que se elas demoram para conseguir regularizar sua situação
migratória, ficam dependentes de ajuda do terceiro setor, pois os serviços
públicos assistenciais exigem a regularidade. Verificamos casos de mulheres
que reincidem na vida delituosa por falta de opção.

Atualmente, pessoas condenadas por tráfico de drogas, crime considerado


hediondo, não podem ser consideradas beneficiárias de qualquer proteção
internacional, seja refúgio, seja vítima de tráfico de pessoas ou de trabalho
análogo à escravidão.

37
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

No Brasil, agora, o ITTC busca demonstrar, por meio de pesquisas e incidência


política e institucional, a inovação jurídica de que essas mulheres migrantes
em conflito com a lei, no caso do tráfico de drogas, estão mais para vítimas de
tráfico de pessoas e merecem o respeito e proteção da legislação, seja para
concessão de documentos para regularização migratória específicos, seja para
serem incluídas nos programas disponíveis. Além de poder trazer seus fami-
liares, normalmente filhos, filhas e pais e mães, para o Brasil em segurança.

38
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

4
A NECESSIDADE DE
ATUAÇÃO NO EIXO
DE PREVENÇÃO AO
TRÁFICO DE PESSOAS
Artigo temático elaborado por Dalila Eugênia Maranhão Dias Figueiredo, ativista dos direitos
humanos, advogada e assistente social, especialista no atendimento a vítimas de violência sexual
pela Escola de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo e em mediação de conflitos
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, presidente e diretora executiva da Associa-
ção Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad) e Graziella do Ó Rocha,
comunicóloga e doutora em Política Social pela Universidade Federal Fluminense, especialista
nos temas de tráfico de pessoas, trabalho análogo ao escravo e contrabando de migrantes, foi
consultora das agências da ONU e, desde 2015, coordena os projetos para o enfrentamento do
tráfico de pessoas e promoção dos direitos de migrantes e refugiados na Asbrad.

Scientia potentia est


Aforismo latino: conhecimento é poder.

Há duas décadas, a Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e


da Juventude (Asbrad) é agente impulsionadora das transformações sociais no
Brasil. Nossa jornada teve início, em 1997, na cidade de Guarulhos/SP, numa
época em que especialmente mulheres, crianças e a população LGBTQIA+
pouco podiam contar com as instituições para assegurar seus direitos indivi-
duais e coletivos.

39
Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Enquanto parcelas da sociedade defendiam que: “em briga de marido e mulher


ninguém mete a colher”, a Asbrad foi pioneira no desenvolvimento de ações
de advocacy para a defesa de mulheres vítimas de violência doméstica, lutando
pela criação de leis e políticas públicas específicas, como a lei Maria da Penha
(Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006) e os serviços de proteção à mulher hoje
existentes em todo o Brasil.

No Brasil, ajudamos a descortinar o fenômeno do tráfico de pessoas e, ainda


hoje, somos referência em atuação nesta matéria. Nossa luta começou, em
1999, no Aeroporto Internacional de Guarulhos, onde permanecemos por 11
anos prestando atendimento humanizado e respondendo às diversas vulne-
rabilidades relacionadas aos processos migratórios14.

A transversalidade do tema do tráfico de pessoas nos desafiou a ampliar a


nossa abordagem para todo o Brasil e o exterior. Entre nossas atuações mais
significativas, destacamos a implementação dos Projetos Fronteiras I e II, rea-
lizados em parceria com o Governo Federal. Entre os anos de 2011 e 2018,
percorremos do norte ao sul das fronteiras brasileiras e, literalmente, estive-
mos no Oiapoque e no Chuí, além de mais 20 cidades fronteiriças, realizando
treinamentos para o combate ao tráfico de pessoas e diagnósticos regionais.
Essa experiência deu-nos a visão privilegiada sobre as distintas realidades do
Brasil profundo.

O nosso trabalho de base é realizado em Guarulhos-SP. Nesta cidade, há 25


anos apoiamos mulheres vítimas de violência doméstica, jovens em conflito
com a lei, sobreviventes do tráfico de pessoas e migrantes e refugiados em
situação de risco. Desde 2019, gerenciamos a Casa Abrigo para mulheres (bra-
sileiras e migrantes) vítimas de tentativa de feminicídio.

14 Em 2008, o Ministério da Justiça reconheceu a nossa experiência como uma prática exemplar e produziu a siste-
matização da metodologia de atendimento humanizado que motivou a celebração de convênios para construção de
Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHM) em 17 Estados do Brasil e no Distrito Federal.
Equipamentos estes, ainda hoje, presentes em diversos aeroportos e portos do país. Na cidade de Guarulhos-SP, o
PAAHM está incorporado como equipamento da assistência social de média complexidade do município.

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Bem como colaboramos com a revisão de instrumentos internacionais de pro-


teção aos direitos humanos junto à Organização das Nações Unidas (ONU) e
à Organização dos Estados Americanos (OEA).

SAIBA MAIS:
Confira o Manual de atendimento jurídico a migrantes e
refugiados: atendimento a mulheres e meninas em situação
de violência (Agência da ONU para as Migrações, Defensoria
Pública da União, 2022) disponível na biblioteca virtual do curso!

Assista os seguintes vídeos com Graziela Rocha - Coordenadora


de Projetos para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e
Promoção dos Direitos de Migrantes e Refugiados da Asbrad:
Atendimento Humanizado às Vítimas de Tráfico de Pessoas
Princípios da Escuta Qualificada
Aspectos Psicológicos das Vítimas
Cuidado para a não Estigmatização

Neste tópico, tecemos reflexões sobre a importância da prevenção no tráfico


de pessoas. Preparamos o módulo com comentários livres, exclusivamente
baseados nos nossos atendimentos diretos, cursos, pesquisas e treinamentos
realizados no Brasil e mundo afora.

Esperamos que a nossa experiência produza entendimentos positivos aos


membros do sistema de justiça e da rede nacional de enfrentamento ao trá-
fico de pessoas.

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

4.1 O que significa “prevenção” no escopo da política


de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas?

No Brasil, a política nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas (ETP) está


alicerçada em três pilares: prevenção, repressão e assistência às vítimas diretas
e indiretas (preâmbulo da Lei n. 13.344, de 6 de outubro de 2016).

O eixo “prevenção,” muitas vezes, é confundido como sinônimo de campanhas


informativas. De fato, as campanhas fazem parte da prevenção ao crime. Con-
tudo, a prevenção, como pilar da política nacional de ETP, possui caráter mais
abrangente.

Neste contexto, a “prevenção” significa o investimento em ações para reduzir


os fatores de risco frente à prática criminosa. Ela exerce duplo papel:
1. evitar que o crime ocorra; e
2. minimizar os seus danos quando foi impossível evitá-lo.

Necessariamente, a prevenção deve ser realizada por meio de atuação


cooperada entre órgãos públicos, governos, organizações da sociedade
civil, cidadãos e empresas.

A ação de prevenção, eficiente e eficaz, deve ser direcionada para a criação de


uma cultura de conscientização sobre o tema e para a busca para a eliminação
de suas causas estruturantes. Isso requer a implementação de políticas (pú-
blicas e privadas) que busquem a criação de mecanismos de reconhecimento
dos casos, o fortalecimento dos canais de denúncia, das políticas de assistência
no pós-resgate e da cooperação jurídica para garantia da reparação de danos.

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Ao menos cinco objetivos estão tangenciados em ações de


prevenção ao tráfico de pessoas, vejamos:
1. melhorar a informação e a sensibilização sobre o problema;
2. reconhecer fatores de risco ao tráfico de pessoas;
3. diminuir a tolerância da sociedade frente às práticas de
exploração;
4. construir uma cultura de denúncia; e
5. impedir a revitimização no pós-resgate e nos procedimentos
investigatórios e judiciais.

4.2 Como melhorar a informação e a sensibilização?

Informação é poder!

Para muitos, essa frase pode parecer clichê e com pouca relevância. Porém,
quando nos deparamos com vítimas do tráfico de pessoas temos a clara di-
mensão do quanto a falta de informação é determinante para a manutenção
dos mecanismos de controle que garantem o “sucesso” na exploração dos
indivíduos.

Por exemplo, em situações de tráfico é comum que migrantes, em situação


de irregularidade documental, tenham medo de fugir. Os perpetradores os
induzem a acreditar que serão presos, caso denunciem às autoridades.

A falta de informação costuma afetar trabalhadores inseridos em ciclos geracio-


nais de pobreza. Esse grupo tende a não conhecer os seus direitos trabalhistas,
a naturalizar situações de exploração e a não se identificar enquanto vítimas
do trabalho análogo à de escravo.

A nossa experiência com atendimentos de pós-regaste evidencia que trans-


mitir conhecimento é parte fundamental da garantia de direitos. Sejam bra-
sileiros(as) ou migrantes, pessoas que passaram por situações de violações

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

precisam de orientações sobre as leis e a documentação, o acesso aos serviços


públicos, ao Sistema Único de Saúde (SUS), aos programas educacionais e de
geração de trabalho e renda, entre outras informações.

Contudo, a informação sozinha não é capaz de modificar questões sociais com


raízes profundas, como aquelas que alicerçam o tráfico de pessoas no Brasil.
Para além da informação, é preciso criar estruturas para a sensibilização de
grande parcela da sociedade, dos operadores das leis e gestores de políticas.

A diferença entre sensibilização e informação é sutil. Nesse contexto, infor-


mação significa ter acesso ao conjunto de conhecimento sobre o tema do
tráfico de pessoas. Já a “sensibilização” é o estágio posterior e complementar.
Significa que a informação foi absorvida e transformada no desejo de produzir
mudanças sobre aquele fato.

A prevenção e a sensibilização podem acontecer em três momentos:


1. antes do acontecimento do tráfico de pessoas (o ideal);
2. durante processos de identificação e resgate das vítimas (bus-
cando evitar o agravamento do fato, minimizar seus efeitos
e salvaguardar direitos); e
3. quando já ocorreu o crime e, neste caso, sua função é evitar
a revitimização e facilitar o acesso aos direitos.

Exemplos de como aprimorar a informação e sensibilização:


1. ações de advocacy para elaboração de leis e políticas centra-
das no enfrentamento ao tráfico de pessoas;
2. cursos, palestras e treinamentos;
3. campanhas de conscientização sobre determinados aspectos
do problema; e
4. campanhas de incentivo à denúncia.

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Exemplo de Campanha:

Projeto Liberdade no Ar - Campanhas nos Aeroportos e Rodoviárias

Liberdade no Ar é o projeto estratégico do Ministério Público do Trabalho


(MPT), apoiado pela Asbrad, as agências da ONU: OIM, OIT e UNODC e demais
parceiros. Em 2020, o projeto lançou a campanha: “Expectativa X Realidade”,
veiculada em 17 aeroportos por todo o Brasil, configurando-se como a maior
campanha sobre a temática no país.

As animações abordam histórias reais de tráfico de pessoas e produzem alertas


sobre falsas promessas e incentiva a denúncia. Os temas abordados são: atle-
tas, trabalho doméstico, exploração sexual, estelionato amoroso, construção
civil e desmatamento. Em 2021, o projeto venceu o Prêmio CNMP (Conselho
Nacional do Ministério Público) na categoria diálogos com a sociedade.

Campanha contra o tráfico de pessoas no Aeroporto Santos


Dumont, no Rio de Janeiro, 2021.
Imagem: acervo Asbrad

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

SAIBA MAIS:
Quer saber mais sobre a campanha? Acesse:
www.asbrad.org.br/liberdadenoar

Assista alguns vídeos que são parte da campanha

Menino de Ouro
https://drive.google.com/file/d/1Qneb7pNdKu4Q-_XrwQYxeBxxxCUzYOKN/view

O bilhete
https://drive.google.com/file/d/1D03Da1CBe0Gfg26CX-oghYuzIFAo3xmk/view

Acolhida
https://drive.google.com/file/d/1hA8qOuYJOJf0ssMP5rnb1buywhSHof4W/view

Viagem
https://drive.google.com/file/d/19AWSDU5Eoc8Ect_Lrem3Ksg6Ms9Wtcqc/view

4.3 Como construir uma cultura de denúncia?

Aspecto fundamental da prevenção ao tráfico de pessoas está na construção


de uma cultura de denúncia. Cursos, treinamentos e campanhas sobre ETP
devem treinar o olhar da sociedade para reconhecer situações de tráfico de
pessoas, especialmente naquelas situações cotidianas e naturalizadas. Por
exemplo, a exploração no trabalho doméstico, na mendicância e em atividades
ligadas ao agronegócio.

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Além de salvar vidas, as denúncias são importantes para o desbaratamento


de redes criminosas. É importante que as ações de prevenção, especialmente
as campanhas de conscientização tenham como “call to action” (chamado para
ação) o encorajamento à denúncia, nos canais adequados e de forma segura
para o denunciante.

O ideal é reforçar os canais oficiais do Disque 100 e Ligue 180, Sistema Ipê e
do aplicativo MPT Pardal, que fazem parte de políticas públicas desenvolvidas
e consolidadas no âmbito do Governo Federal e que garantem o anonimato.

SAIBA MAIS:
Para saber mais sobre o aplicativo MPT Pardal, acesse:
https://www.prt2.mpt.mp.br/622-aplicativo-mpt-
pardal-foi-utilizado-para-encaminhar-mais-de-11-mil-
denuncias-de-irregularidades-trabalhistas-em-2018

4.4 Como identificar os fatores de risco


para o tráfico de pessoas?

O tráfico de pessoas é fenômeno social complexo. Erra quem associa esse cri-
me somente às decisões pontuais de perpetradores perversos. Essencialmente,
questões sociais estruturais garantem a perseverança da prática criminosa.

As ações de prevenção devem considerar os enfoques nos direitos humanos,


na interculturalidade, nas especificidades regionais e nas particularidades e
histórias de vida de cada indivíduo vitimado por esse crime.

Fatores como: fome, pobreza, desigualdades sociais, violência, corrupção, mi-


soginia, racismo, xenofobia, LGBTQIA+ fobia e as heranças comportamentais

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

de sociedades patriarcais e escravocratas são alguns dos fatores de riscos


coletivos para o tráfico de pessoas15.

Já os riscos individuais estão associados às questões particulares que facilitam


o aliciamento e as práticas de exploração. São os mais comuns: desemprego;
falta de perspectivas; ambiente familiar violento; falta de vínculos afetivos;
baixa autoestima; transtornos sociais e psicológicos ou o simples desejo de
construir uma vida melhor e buscar oportunidades em outras localidades.

Há, ainda, fatores criados por traficantes para o abuso em relação à posição de
vulnerabilidade das vítimas (por exemplo, o uso de rituais religiosos ou cultivo
de ligação romântica ou emocional)16 que facilitam a relação de mercantilização
do ser humano.

SAIBA MAIS:
Leia a reportagem Cerca de 37% das vítimas de tráfico de
pessoas confiavam no aliciador <https://www.cnnbrasil.com.
br/nacional/cerca-de-37-das-vitimas-de-trafico-de-pessoas-
confiavam-no-aliciador/> de Mylena Guedes (CNN)!

É importante perceber que os aspectos supramencionados estão sempre cor-


relacionados (sujeito e sociedade). Logo, em práticas de tráfico de pessoas
existem danos individuais e coletivos. Essas duas perspectivas devem ser con-
sideradas em ações de prevenção.

15 UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Documento Temático: O Abuso de uma Posição de Vulnerabi-
lidade e outros ‘Meios’ no âmbito da Definição de Tráfico de Pessoas. 2012. Disponível em https://www.unodc.org/
documents/human-trafficking/2015/APOV_Issue_Paper_PT.pdf Acesso em: 17 jul. 2022. p. 79.
16 UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Documento Temático: O Abuso de uma Posição de Vulnerabi-
lidade e outros ‘Meios’ no âmbito da Definição de Tráfico de Pessoas. 2012. Disponível em https://www.unodc.org/
documents/human-trafficking/2015/APOV_Issue_Paper_PT.pdf Acesso em: 17 jul. 2022.p. 79.

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Podemos considerar como ações indiretas de prevenção ao tráfico de pes-


soas todas as políticas, os projetos ou programas (públicos e privados) que
objetivem provocar transformações sociais de base e promover os direitos
humanos. Afinal, onde as políticas sociais não chegam há risco de aliciamento
para o tráfico de pessoas.

São exemplos de ações de prevenção indireta: programas de transferência


de renda, educacionais e de inserção laboral, ações que buscam a equidade
de gênero, o combate ao racismo, a proteção e inserção social de migrantes
e refugiados.

A seguir, desenvolvemos dicas úteis para ajudar a tomar decisões para o desen-
volvimento de abordagens para a prevenção ao tráfico de pessoas no Brasil.17

Onde priorizar o desenvolvimento de ações de prevenção ao tráfico


de pessoas?
z Regiões com alto índice de pobreza e desemprego
z Áreas com incidência do delito de drogas ilícitas e armas
z Regiões geográficas de difícil acesso
z Regiões de fronteira

Quais setores devem ser priorizados?


z Agronegócio
z Setor têxtil
z Construção Civil
z Trabalho doméstico

17 Esses tópicos foram destacados a partir de pesquisa realizada pela Asbrad em 2021. As listas não possuem a
pretensão de esgotar os debates sobre o tema. Ver: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DEFESA DA MULHER DA INFÂNCIA E
DA JUVENTUDE- ASBRAD. Mapeamento do Tráfico de Pessoas no Brasil. Características regionais do trabalho escravo.
Guarulhos, 2021. Disponível em: https://www.asbrad.org.br/wp-content/uploads/2021/07/Trafico-de-Pessoas_VOL-
01-FINAL.pdf Acesso em: 17 jul. 2022.

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Quais grupos populacionais devem ser priorizados?


z Mulheres (cis e trans)
z Crianças e adolescentes (especialmente em regiões de alta crimi-
nalidade e em risco para o trabalho infantil)
z População LBGTQIA+
z Migrantes e refugiados
z Trabalhadores e trabalhadoras rurais
z Trabalhadores e trabalhadoras de casas particulares
z Trabalhadores do setor têxtil

SAIBA MAIS:
Confira o Guia de Assistência e Referenciamento de
Vítimas de Tráfico de Pessoas (International Centre
for Migration Policy Development Brasil, 2020) e o Guia
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: Aplicação ao
Direito (International Centre for Migration Policy Development
Brasil, 2020) disponíveis na biblioteca virtual do curso!

Chegamos ao final do Módulo 4 e do nosso curso!

Neste módulo abordamos as especificidades no atendimento e encaminha-


mento para proteção das vítimas, bem como os impactos das restrições de
seus direitos humanos, contemplando um olhar sensível diante das intersec-
cionalidades de raça e gênero.

O passo seguinte é a realização da atividade avaliativa para apropriação do


conteúdo e reflexão sobre os temas que abordamos no Módulo 4.

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Ao longo do curso trouxemos os conceitos básicos sobre tráfico de pessoas,


abordando a legislação internacional e a nacional; apresentamos alguns dos
principais atores da rede de enfrentamento de tráfico de pessoas, bem como
reflexões sobre a centralidade da vítima na persecução penal e os aspectos
de proteção e assistência às vítimas.

A distribuição do conteúdo e dos módulos foi pensada para ampliar o conhe-


cimento na temática do tráfico de pessoas, bem como promover reflexões
importantes sobre esse crime ainda desconhecido para muitas pessoas.

Esperamos que o conteúdo apresentado nos quatro módulos possa fortalecer


sua capacidade de atuar em futuros casos de tráfico de pessoas, apurando o
olhar para identificar, prevenir e assistir às vítimas.

Incentivamos você a conhecer os demais atores e a participar da rede de


enfrentamento da sua localidade!

Agradecemos por ter chegado até aqui e esperamos que tenha gostado do
curso!

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

Referências bibliográficas do artigo temático


elaborado por Vivian Netto Machado Santarém
CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Problematizando o conceito de vulnerabilidade para o tráfico interna-
cional de pessoas. In DOS ANJOS, Fernanda Alves et. al. (org.). Tráfico de pessoas: uma abordagem
para os direitos humanos. Brasília: Ministério da Justiça, 2013.

DEFENSORIA PÚBLILCA DA UNIÃO. Guia Prático de Assistência às Vítimas de Tráfico de Pessoas.


Disponível em: https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/GLO-ACT/DPU_ANTI-
-TIP_GUIDE.pdf.

MIgration EU eXpertise (MIEUX). Manual de escuta de crianças e adolescentes migrantes. 2020.


Disponível em: https://www.dpu.def.br/images/stories/pdf_noticias/2020/MANUAL_MIEUX_Bra-
zil_II_V06_booklet__1_.pdf.

PIOVESAN, Flávia; KAMIMURA, Akemi. Tráfico de pessoas sob a perspectiva de direitos humanos:
prevenção, combate, proteção às vítimas e cooperação internacional. In Revista Especial – Tráfico
de Pessoas. Tribunal Regional Federal da Terceira Região. São Paulo, 2019.

Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas: dados 2017 a 2020. Brasília: Secretaria Nacional
de Justiça, 2021.

SANTARÉM, Vivian Netto Machado. Tráfico de crianças para exploração sexual no Brasil: o en-
frentamento à luz dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. p. 3.

Referências bibliográficas do artigo temático elaborado por Michael Mary Nolan, Débora de
Godoy Vasconcellos, Eliza Odila Conceição Silva Donda, Heloísa de Freitas Magalhães Rodri-
gues e Jacqueline Feitosa de Oliveira

ANJOS, Neli Oliveira dos. Tráfico de pessoas e trabalho escravo. Notícia. Brasil de Direitos, 2019.
Disponível em: <https://brasildedireitos.org.br/atualidades/trfico-de-pessoas>. Acesso em: 13
jul 2022.

BRASIL. Decreto n. 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção


das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, 2004. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm>. Acesso em: 14 jul 2022.

BRASIL. Decreto n. 9.199 de 20 de novembro de 2017. Regulamenta a Lei nº 13.445, de 24 de


maio de 2017, que institui a Lei de Migração. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9199.htm>. Acesso em: 18 jul 2022.

BRASIL. Lei n. 13.344, de 6 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico
interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas; altera a Lei nº 6.815,

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

de 19 de agosto de 1980, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo


Penal), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos
do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), 2016. Disponível em: <https://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13344.htm>. Acesso em: 14 jul 2022.

BRASIL. Lei n. 13.445 de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm>. Acesso em: 18 jul. 2022.

BRASIL. Resolução n. 405, de 06 de julho de 2021. Estabelece procedimentos para o tratamento


das pessoas migrantes custodiadas, acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, inclusive
em prisão domiciliar e em outras formas de cumprimento de pena em meio aberto, em cumpri-
mento de alternativas penais ou monitoração eletrônica e confere diretrizes para assegurar os
direitos dessa população no âmbito do Poder Judiciário. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/
atos/detalhar/4030>. Acesso em: 13 jul 2022.

ICMPD et al. Guia de Assistência e referenciamento de vítimas do tráfico de pessoas, jun 2020.
Disponível em: <https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publi-
cacoes/guia_assistencia_icmpd_versao_digital_simples_final.pdf>.

BRASIL. Tráfico de Pessoas: uma abordagem para os direitos humanos. Secretaria Nacional de
Justiça, Departamento de Justiça; organização de Fernanda Alves dos Anjos ... [et al.]. – 1.ed. Brasília:
Ministério da Justiça, 2013.

ILO. R203 – Forced Labour (Supplementary Measures) Recommendation, 2014 (No. 203). Dispo-
nível em: <https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_INS-
TRUMENT_ID:3174688>. Acesso em: 14 jul. 2022.

INSTITUTO Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). MaternidadeSemPrisão: diagnóstico da aplicação


do Marco Legal da Primeira Infância para o desencarceramento de mulheres [recurso eletrônico] /
Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. – São Paulo: ITTC, 2019. Disponível em: <https://www.ittc.org.
br/wp-content/uploads/2019/10/maternidadesemprisao-diagnostico-aplicacao-marco-legal.
pdf> . Acesso em: 13 jul. 2022.

INSTITUTO Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Os desafios da aplicação da prisão domiciliar


para o pleno exercício da maternidade e a proteção à infância / Instituto Terra, Trabalho e
Cidadania. – São Paulo: ITTC, 2022.

INSTITUTO Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). ITTC explica: você sabe o que é tráfico de pessoas?
2020. Disponível em: <http://ittc.org.br/ittc-explica-trafico-de-pessoas/>. Acesso em: 14 jul. 2022.

INSTITUTO Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Raça/cor/etnicidade e território: analisando as pe-


nas de mulheres migrantes em conflito com a lei, 2021. Disponível em: <https://ittc.org.br/raca-cor-
-etnicidade-e-territorio-analisando-as-penas-de-mulheres-migrantes-em-conflito-com-a-lei/ >.

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Módulo 4
Proteção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas

INSTITUTO Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Tráfico de pessoas: por que as mulheres migrantes
atendidas pelo ITTC estão sujeitas a isso? 2020. Disponível em: http://ittc.org.br/trafico-pessoas-
-mulheres-migrantes-ittc/. Acesso em: 14 jul 2022.

PISCITELLI, Adriana. Trabalho Sexual. In: CAVALCANTI, Leonardo ... [et al], (org.). Dicionário crítico
de migrações internacionais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2017.

UNODC. Manual contra o tráfico de pessoas para profissionais do sistema de justiça penal,
2010. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/2009_UNODC_
TIP_Manual_PT_-_wide_use.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2022.

UNODC. Pobreza e Desemprego: principais fatores que influenciam o tráfico de pessoas no


Brasil, 2021. Disponível em: <https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2021/09/pobre-
za-e-desemprego-principais-fatores-que-influenciam-o-trafico-de-pessoas-no-brasil.html>.
Acesso em: 13 jul. 2022.

UNODC. Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes. Disponível em: <https://www.unodc.


org/lpo-brazil/pt/trafico-de-pessoas/index.html>. Acesso em: 13 jul. 2022.

Referências bibliográficas do artigo temático elaborado por Dalila Eugênia Maranhão Dias
Figueiredo e Graziella do Ó Rocha

Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude- Asbrad. Mapeamento do


Tráfico de Pessoas no Brasil. Características regionais do trabalho escravo. Guarulhos, 2021. Dis-
ponível em: https://www.asbrad.org.br/wp-content/uploads/2021/07/Trafico-de-Pessoas_VOL-
01-FINAL.pdf Acesso em: 17 jul. 2022.

BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção


das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. 2004. Diário Oficial da União, Brasília,
15 mar. 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/
d5015.htm Acesso em: 17 jul. 2022.

BRASIL, Presidência da República. Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção
e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas e dá
outros procedimentos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/
lei/l13344.htm. Acesso em: 17 jul. 2022.

UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Documento Temático: O Abuso de uma Posição
de Vulnerabilidade e outros ‘Meios’ no âmbito da Definição de Tráfico de Pessoas. 2012. Disponível
em https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/2015/APOV_Issue_Paper_PT.pdf
Acesso em: 17 jul. 2022.

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