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República Federativa do Brasil

Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente


Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos

Presidente da República Jair Messias Bolsonaro


Ministra de Estado da Mulher, da Família Damares Regina Alves
e dos Direitos Humanos
Secretária Executiva Tatiana Alvarenga
Secretário Nacional dos Direitos da Maurício José Silva Cunha
Criança e do Adolescente
Diretora de Promoção e Fortalecimento Luciana Dantas da Costa Oliveira
dos Direitos da Criança e do Adolescente
Coordenadora-Geral de Fortalecimento de Alinne Duarte de Andrade Santana
Garantias de Direitos
Diagramação Assessoria de Comunicação

Instituto Brasileiro De Administração Municipal – IBAM


Escola Nacional de Serviços Urbanos – ENSUR

Superintendente Geral Paulo Timm


Diretora da ENSUR/IBAM Tereza Cristina Barwick Baratta
Gerente do Projeto Márcia Costa Alves da Silva
Coordenadora Técnica Jalusa Silva de Arruda
Supervisão Pedagógica Silvia Kelly Leão da Silva Freitas
Conteudistas Pedro Roberto da Silva Pereira
Rosimere de Souza
Valéria Cristina Brahim da Silva
Desenho Instrucional Márcia Costa Alves da Silva
Silvia Kelly Leão da Silva Freitas
Tito Ricardo de Almeida Tortori
Capa e Diagramação Ewerton Antunes
Selma Rodrigues
Normalização Bibliográfica Cinthia Pestana

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CIP. Brasil. Catalogação-na-Publicação
Centro de Documentação – CEDOC

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SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................................................... 5
1. A proteção de crianças e adolescentes vítimas de violência no Sistema de Garantia de
Direitos (SGD) .............................................................................................................................. 7
2. Crianças e adolescentes como sujeitos de direitos: a importância de uma rede
intersetorial e interdisciplinar .................................................................................................... 8
3. Violência contra crianças e adolescentes: abordagem a partir da Lei nº 13.431/2017 ... 9
3.1. Violência física ................................................................................................................. 10
3.2. Violência psicológica ........................................................................................................ 11
3.3. Violência sexual ............................................................................................................... 13
3.4. Violência institucional ....................................................................................................... 14
4. Violência autoprovocada ..................................................................................................... 15
5. Escuta protegida de criança e adolescente vítima ou testemunha de crime ................ 16
5.1. A escuta especializada ou protegida ............................................................................... 17
5.2. O depoimento especial .................................................................................................... 18
5.2.1. O Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF) ............................................. 20
6. Notificação e roteiro de atendimento de crianças e adolescentes vítimas de
violência ..................................................................................................................................... 23
6.1. Noções básicas sobre o funcionamento da memória aplicada ao testemunho infantil ... 25
7. Fluxo Geral de Implementação da Lei nº 13.431/2017 (Lei da Escuta Protegida) ......... 27
8. Medida protetiva de acolhimento (institucional e familiar).............................................. 31
8.1. Efeitos do acolhimento prolongado.................................................................................. 33
8.2. Modelos de acolhimento no Brasil ................................................................................... 33
8.3. Acolhimento familiar ......................................................................................................... 34
8.4. A reintegração familiar ..................................................................................................... 35
9. Adoção .................................................................................................................................. 36
9.1. A adoção e o princípio do interesse superior da criança ................................................. 36
9.2. Questões importantes: como fica o nome? A adoção pode ser revogada? .................... 37
9.3. O Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) .................................................... 40
Referências ................................................................................................................................ 43

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APRESENTAÇÃO
Os anos de 1980 foram marcos pela redemocratização do país e pela mobilização de
setores da sociedade civil e de movimentos sociais para mudanças legislativas que
visaram implementar garantias relacionadas à proteção dos direitos humanos, bem
como o fortalecimento de políticas públicas especializadas. Naquele momento, a
participação popular foi fundamental para que direitos relacionados às mulheres, à
população negra e indígena e ao segmento infantojuvenil fossem debatidos na
Assembleia Nacional Constituinte e, posteriormente, inseridos na Constituição Federal,
promulgada em 5 de outubro de 1988.

No âmbito internacional, o grupo de trabalho criado no Ano Internacional da Criança


(1979) pela Comissão dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU)
trabalhava para elaborar o texto da Convenção sobre os Direitos da Criança. O Estado
brasileiro, ativo no grupo de trabalho, se antecipou à aprovação da Convenção, ocorrida
na Assembleia Geral da ONU realizada em novembro de 1989, e inseriu na Constituição
Federal, precisamente no art. 227, a proteção integral.

Assim, foi possível a base para a criação de lei especial para normatizar e regulamentar
os direitos humanos de crianças e adolescentes que passaram a ser considerados
sujeitos de direitos, reconhecidos como pessoas na condição peculiar de
desenvolvimento e destinatários de prioridade absoluta. Foi na emergência deste novo
paradigma que há 30 anos entrou em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
nº 8.069, de 13 de julho de 1990, ECA).

O ECA é divisor de águas no marco legal de proteção à infância e à adolescência no


Brasil, pois criou as condições de exigibilidade para a efetivação dos direitos de crianças
e adolescentes por meio de um sistema de garantia de direitos. O ECA elencou os
direitos fundamentais infantojuvenis e estabeleceu que a política de atendimento
compreende conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Conforme define a Resolução nº 113/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da


Criança e do Adolescente (CONANDA), o sistema de garantia de direitos se constitui na
articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil,
na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de
promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do
adolescente em todos os níveis e instâncias. O sistema de garantia de direitos é,
portanto, concebido e organizado para atuar em rede, na qual atribuições são definidas
de acordo com o papel institucional de cada órgão e/ou serviço que compõem os
sistemas de educação, saúde, assistência social, justiça e segurança pública.

A área da infância e juventude é marcada pela multidisciplinaridade e pela


intersetorialidade, características que nos permitem compreender e incidir de maneira
abrangente nos diversos fenômenos que envolvem as modalidades de violências
praticadas contra crianças e adolescentes. Em vista disso, a qualificação dos agentes

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que integram o sistema de garantia de direitos e que considere as especificidades das
redes locais são imprescindíveis para a eficácia do atendimento.

A presente capacitação que integra o Programa Criança Protegida foi concebida com
esse propósito. Tem por objetivo fortalecer agentes do sistema de garantia de direitos
para atuarem com agilidade, assertividade e eficácia no atendimento dos casos de
violação dos direitos de crianças e adolescentes. Trata-se de iniciativa da Secretaria
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos (SNDCA/MFMDH), que em parceria com a Organização dos
Estados Ibero-americanos, para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) visa ampliar,
fortalecer e alinhar a atuação do sistema de garantia de direitos.

A capacitação se estrutura em três grandes eixos. O primeiro se debruça sobre os


aspectos da proteção intersetorial e interdisciplinar de crianças e adolescentes vítimas
de violência. Neste primeiro momento vamos abordar conceitualmente os tipos de
violência contra crianças e adolescentes, incluindo as autoprovocadas e aquelas
relacionadas ao mundo virtual, com base na Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017,
conhecida como Lei da Escuta Protegida. Para as respostas no nível da defesa,
responsabilização e promoção dos direitos, será apresentado o Fluxo Geral de
Implementação da Lei nº 13.431/2017, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ). Será ressaltada a importância da notificação obrigatória dos casos de violência
contra crianças e adolescentes. Também estão previstas reflexões sobre os processos
de vulnerabilização e vitimização que podem levar meninos e meninas às instituições
de acolhimento, bem como aspectos da adoção. Atentos aos processos psicológicos e
aos cuidados com a saúde mental, psíquica e emocional de crianças e adolescentes
testemunhas ou vítimas de violência, será apresentada a imprescindibilidade da adoção
de técnicas não revitimizantes para a tomada de depoimentos e para realização de
entrevistas com base no sistema de escuta protegida criado pela Lei nº 13.431/2017.

Aos participantes da capacitação, cabe lembrar que os temas estão apresentados em


eixos temáticos apenas para fins didáticos, pois nenhum conteúdo deve ser concebido
isoladamente uma vez que a proteção integral exige por princípio abordagem totalizante
e articulada entre os atores do sistema de garantia de direitos.

Ao fim da capacitação, a expectativa é que você tenha compreendido o seu papel


enquanto agente do sistema de garantia de direitos (SGD) na proteção integral de
crianças e adolescentes e tenha aprimorado suas habilidades e competências para
fazer valer o direito de crianças e adolescentes. Espera-se também que esteja mais
fortalecido na tarefa de construir estratégias eficazes e permanentes para atuar em rede
e enfrentar os desafios para a proteção da infância e da adolescência.

Bons estudos!

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1. A PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA NO
SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS (SGD)
A proteção intersetorial e interdisciplinar de crianças e de adolescentes está prevista na
própria concepção da Constituição Federal, que estabeleceu a doutrina da proteção
integral, posteriormente regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
nº 8.069, de 13 de julho de 1990, ECA) (BRASIL,1990).

Para garantir e promover a proteção intersetorial e interdisciplinar de crianças e


adolescentes, exige-se atuação por meio de sistema de garantia de direitos (SGD).
Segundo a Resolução nº 113 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CONANDA) (BRASIL, 2006), o SGD deve funcionar na articulação e na
integração de órgãos públicos e da sociedade civil para a promoção, defesa e controle
da efetivação dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Os eixos do SGD
possuem funções e órgãos diferenciados oferecendo o caráter de complementaridade
ao sistema. Abaixo apresentamos os eixos, suas respectivas funções e seus principais
integrantes:
 Promoção: executam políticas de direitos humanos de crianças e adolescentes.
Este eixo é composto pelas escolas; pelos serviços da saúde e suas diversas
unidades de atendimento (hospitais, unidades básicas de saúde etc.);
assistência social e seus diferentes equipamentos e serviços, tais como os
serviços de acolhimento, o Centro da Assistência Social (CRAS) e o Centro
Especializado da Assistência Social (CREAS); programas de atendimento
socioeducativo; sociedade civil; projetos e programas relacionados ao esporte e
ao lazer, dentre outros.
 Defesa: se relaciona com a efetivação das leis e o acesso à justiça para a
garantia dos direitos de crianças e adolescentes. É composto por órgãos de
defesa e responsabilização, como exemplos: Justiça da Infância e Juventude;
Ministério Público; Defensoria Pública; Conselho Tutelar; polícias civil e militar;
e centros de defesa.
 Controle: diz respeito aos espaços de formulação, monitoramento e avaliação
de políticas públicas, tendo caráter normativo, deliberativo ou consultivo. Os
conselhos de direitos de crianças e adolescentes, que se estabelecem nos três
níveis federativos (nacional, estadual e municipal) são representantes deste
eixo. É constituído paritariamente, quer dizer, com representantes
governamentais e da sociedade civil. Fóruns de direitos de crianças e de
adolescentes e outros espaços democráticos da sociedade civil também
pertencem ao eixo controle.

O funcionamento integrado dos atores, programas e serviços do SGD é a base da rede


de proteção de crianças e adolescentes. A ideia de rede é exatamente para ser assim:
entrelaçado de fios que permite acesso de um ponto ao outro. Imagine, por exemplo,
que uma criança vítima de violência sexual precisa ser atendida considerando todos os
aspectos da proteção integral sem sair da rede: da identificação da violência até o
acesso ao sistema de justiça, os atores do SGD seguirão um caminho baseado na
articulação e parceria fundada na promoção dos direitos humanos infantojuvenis.

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2. CRIANÇAS E ADOLESCENTES COMO SUJEITOS DE DIREITOS: A
IMPORTÂNCIA DE UMA REDE INTERSETORIAL E INTERDISCIPLINAR
A proteção integral prevista no art. 227 da Constituição Federal e no ECA concebe
crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, pessoas na condições peculiar de
desenvolvimento e destinatários de prioridade absoluta. Estabelece que o segmento
infantojuvenil deve ser protegido por todos: pela família, pela sociedade e pelo Estado,
colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.

Apesar dos dispositivos legais que garantam os direitos de crianças e adolescentes, por
vezes, este público é alvo de violência e de violação dos direitos, das mais distintas
modalidades. Neste sentido, uma rede de proteção intersetorial e interdisciplinar deve
atuar na proteção e no restabelecimento dos direitos para que meninas e meninos
possam se desenvolver integralmente. A intersetorialidade aborda os problemas sociais
sob a lógica da totalidade do cidadão e se sobrepõe às subdivisões profissionais ou
disciplinares (MENICUCCI, 2002). Isso quer dizer que congrega profissionais e serviços
de diferentes áreas para, em rede interdisciplinar e intersetorial, contribuir para:
 oferecer o atendimento integrado por meio da complementaridade dos serviços
da rede;
 reunir o conhecimento especializado de cada setor e profissional envolvido no
atendimento, de forma a fornecer a atenção integral à criança ou adolescente
que teve seu direito violado;
 interromper o ciclo de violência e evitar a revimitização.

Durante o procedimento de defesa e responsabilização, uma criança


ou adolescente vítima de violência pode chegar a repetir oito vezes o
que sofreu para autoridades, profissionais e agentes diferentes. A Lei
da Escuta Protegida visa impedir esse tipo de situação, evitando a
revitimização.

A Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, também conhecida como Lei da Escuta Protegida
objetiva a organização de um sistema de atendimento à criança e ao adolescente vítima
ou testemunha de violência a partir da premissa de intersetorialidade, sendo uma
especificidade do SGD, estabelecida pelo ECA e pela Resolução nº 113/2006 do
CONANDA. Esta lei trouxe mudanças na escuta do público infantojuvenil em todos os
eixos do SGD, mas com ênfase especial para os atores da rede proteção e para as
autoridades policiais e judiciárias.

A Lei da Escuta Protegida foi regulamentada pelo Decreto nº 9.603, de 10 de dezembro


de 2018. No art. 5º do Decreto nº 9603/2018 temos importantes conceitos que devem
ser observados no atendimento de crianças e adolescentes vítimas, conforme quadro a
seguir.

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Definições importantes para a escuta protegida

Violência praticada por agente público no desempenho


Violência institucional de função pública, em instituição de qualquer natureza,
Art. 5º, inciso I, Decreto nº por meio de atos comissivos ou omissivos que
9.603/2018 prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente
vítima ou testemunha de violência

Discurso ou prática institucional que submeta crianças e


adolescentes a procedimentos desnecessários,
Revitimização
repetitivos, invasivos, que levem as vítimas ou
Art. 5º, inciso II, Decreto nº
testemunhas a reviver a situação de violência ou outras
9.603/2018
situações que gerem sofrimento, estigmatização ou
exposição de sua imagem

Posicionamento ético do profissional, adotado durante o


processo de atendimento da criança, do adolescente e
Acolhimento ou acolhida
de suas famílias, com o objetivo de identificar as
Art. 5º, inciso III, Decreto nº
necessidades apresentadas por eles, de maneira a
9.603/2018
demonstrar cuidado, responsabilização e resolutividade
no atendimento

Mais adiante vamos falar mais sobre a escuta especializada e o depoimento especial,
mas adiantamos que:
 A escuta especializada é a entrevista realizada por agentes de órgãos e serviços
da rede de proteção de crianças e adolescentes com o objetivo de assegurar o
acompanhamento da vítima ou da testemunha de violência, para a superação
das consequências da violação sofrida visando a proteção social e o provimento
de cuidados (art. 7º, Lei nº 13.431/2017; arts. 19 a 21, Decreto nº 9.603/2018).
 O depoimento especial é o procedimento de oitiva da criança ou adolescente
vítima ou testemunha de violência perante a autoridade policial ou judiciária (art.
8º, Lei nº 13.431/2017; arts. 22 a 26, Decreto nº 9.603/2018).

3. VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: ABORDAGEM A PARTIR


DA LEI Nº 13.431/2017
A violência contra a criança e o adolescente pode ser definida como qualquer ato ou
omissão, por parte de adultos (inclusive pais e familiares) e instituições que causem
dano físico, psicológico e/ou sexual à vítima (GUERRA, 1996; DESLANDES, 1994).
Baseia-se na transgressão do poder/dever de proteção do adulto para com as crianças
e adolescentes, nem sempre tratadas como sujeitos de direito.

A Lei nº 13.431/2017 categoriza os tipos de violência, o que facilita aos atores da rede
de proteção, especialmente os conselheiros tutelares, à compreensão das denúncias
que lhes chegam, bem como a intervenção a ser realizada e a sistematização de dados
estatísticos precisos que contribuam para a formulação de políticas públicas. Aos

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profissionais das políticas setoriais (saúde, assistência social, educação), a
classificação oferece elementos para identificar adequadamente a violência sofrida e
contribui no planejamento de atendimentos especializados. Já nas esferas policial e
judicial, a definição prevista na lei apresenta elementos para a tipificação de crimes e
para a responsabilização de autores de violências.

Os tipos de violências, seus conceitos e suas consequências, estão abaixo descritas.


Adverte-se que essa classificação é meramente didática, visto que na prática as
violências podem ocorrer de forma concomitante e complementar.

3.1. Violência física


A violência física é entendida como a ação infligida contra a criança ou o adolescente
que ofenda sua integridade ou saúde corporal ou lhe cause sofrimento físico (art. 4º,
inciso I, Lei nº 13.431/2017). Esta definição amplia a caracterização da violência física,
visto que historicamente ela está ligada a marcas e lesões físicas. Falar de “ofensa” ou
“sofrimento” sugere que atos violentos podem ter efeitos no corpo ainda que
imperceptíveis a olho nu. Também quer dizer que, dependendo da intensidade e da
maneira como a violência for praticada, o ato pode ser considerado tortura
(DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2018)1.

A educação de crianças, culturalmente atrelada à correção ou ao disciplinamento por


castigos físicos e degradantes, já havia sido coibida pela promulgação da Lei nº 13.010,
de 36 de junho de 2014, conhecida como Lei Menino Bernardo. A lei é muito importante,
mas deve vir acompanhada de uma mudança de percepção das pessoas quanto a ideia
de que a correção física é positiva para educação doméstica. As famílias precisam ser
apoiadas para construir formas de educar que contemplam uma educação positiva, livre
de violência e apoiada na comunicação não violenta.

As consequências mais comuns de violência física são: fraturas, hematomas,


queimaduras, traumatismo craniano (inclusive a síndrome do bebê sacudido), lesões
abdominais, oculares e auditivas e, em casos mais extremos, até mesmo a morte. Para
além das consequências físicas existem as marcas psicológicas e subjetivas que
interferem no desenvolvimento infantojuvenil. Alguns dos efeitos psicológicos da
violência física podem se manifestar como: sentimento de desamparo, raiva, culpa,
vergonha, isolamento social, depressão, sintomas psicossomáticos, sofrimento mental
e transtornos psiquiátricos.

Quer saber mais sobre educação positiva? Conheça a Associação


Disciplina Positiva (PDA), que difunde método de educação baseado
na colocação de limites para crianças e adolescentes por meio do
diálogo e da cooperação mútua. Na PDCA busca-se educar as crianças
com firmeza e gentileza, desenvolvendo senso de responsabilidade,
autonomia, cooperação e respeito por si e pelos outros. Ver mais em:
https://pdabrasil.org.br/index.php/a-pda/o-que-e-disciplina-positiva

1Para saber mais sobre o crime de tortura, verifique o que diz a Lei nº 9.455, de 7 de abril
1997.

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3.2. Violência psicológica
A violência psicológica é de difícil identificação, especialmente porque pode se dar de
maneira sutil. Muitas vezes, uma depreciação em tom de brincadeira, ameaças
constantes de agressão física ou abandono, uma comparação aparentemente
inofensiva entre irmãos dentre tantas outras possibilidades, podem causar danos psico-
emocionais e interferir no desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes. A Lei
da Escuta Protegida traz contribuição significativa no detalhamento desse tipo de
violência, distinguindo-a em três dimensões.

A primeira diz respeito à definição de violência psicológica mais ampla e abrange


qualquer conduta de discriminação, depreciação, desrespeito em relação à criança ou
ao adolescente mediante, ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou
intimação sistemática (bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico
ou emocional (art. 4º, inciso II, alínea “a”, Lei nº 13.431/2017). Como se vê, alguns dos
comportamentos que caracterizam a violência psicológica são, por si mesmos,
autodefinidos.

Pela complexidade e alta disseminação, o bullying merece maior reflexão. O termo,


originário da língua inglesa, foi definido no Brasil como o comportamento intencional e
repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado com o objetivo de intimidar ou
agredir, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder
entre as partes envolvidas (ver Lei nº 13.185, 6 de novembro de 2015, que institui o
Programa de Combate à Intimidação Sistemática).

Em geral, crianças ou adolescentes com alguma particularidade que os diferencie dos


demais, seja por sua condição socioeconômica, por seu desempenho intelectual (acima
ou abaixo da média), características físicas (cor da pele, altura, peso), deficiência,
dentre outras, podem vir a ser alvo de bullying.

O cyberbullying se dá mediado pela rede mundial de computadores (internet), usando


sistematicamente as mídias sociais (e-mails, fotos digitais, redes sociais e quaisquer
formas on-line) para depreciar e constranger alguém ou um grupo com o objetivo de
lhes causar constrangimento psicossocial.

O bullying pode causar sérios danos emocionais e psicológicos em crianças e


adolescentes. A vítima pode desenvolver comportamento defensivo e demonstrar
estresse e irritabilidade; e distúrbios alimentares (anorexia e bulimia), especialmente
quando o motivo da intimidação é relacionado ao peso. Também pode provocar fuga de
certos ambientes relacionados ao bulllying, como por exemplo, o ambiente escolar, onde
é muito comum esse tipo de violência, e provocar fobia pela escola, queda no
rendimento escolar e/ou repetência. Outra consequência preocupante é a depressão e
os pensamentos destrutivos, o que pode acarretar violência autoprovocada, podendo,
em casos mais graves, chegar ao suicídio.

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A segunda dimensão da violência psicológica se refere à alienação parental, definida
como a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida
ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os tenha sob sua autoridade,
guarda ou vigilância, que leve ao repúdio do genitor ou que cause prejuízo ao
estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este (art. 4º, inciso II, alínea “b”, Lei
nº 13.431/2017).

A alienação parental é um tipo de violência que fere o direito à convivência familiar,


que é um dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. A Lei da Escuta
Protegida considerou a definição ampliada de alienação parental, incluindo avós ou
qualquer adulto significativo na vida das crianças e adolescentes, tal como previsto na
Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. É muito importante lembrar que os profissionais
de instituições de acolhimento podem também ser enquadrados nesse tipo de violência,
quando se utilizam de sua influência sobre a criança para causar prejuízos na relação
com os pais ou familiares (DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2018). A alienação parental
cometida por representantes do poder público ou de instituições de atendimento merece
uma atenção especial, visto que se baseia, por vezes, em uma cultura de criminalização
das famílias e pode gerar violência institucional.

A violência psicológica como alienação parental envolve relações muito importantes


para a criança e o adolescente, pois diz respeito aos seus pais. Em geral, ocorre após
a separação do casal, mas pode ocorrer também no processo de separação e, neste
caso, a identificação tende a ser mais difícil, recolhida no silêncio das relações
familiares. Qualquer intervenção no sentido de solucionar a questão deve ser
cuidadosamente planejada, especialmente ao envolver a criança na solução do
problema (confira o que diz o art. 100, incisos XI e XII, ECA). Temos que ficar atentos
para que a criança ou o adolescente não seja utilizado como testemunha contra seus
pais, ainda que por meio de depoimento especial.

Vale lembrar que tanto a Lei da Escuta Protegida como a Lei nº 12.318/2010, que trata
especificamente sobre o assunto, apenas exemplificam algumas formas de alienação
parental, mas o tipo de violência psicológica não se resume nessas práticas e as
perícias multidisciplinares (psicológica, social e médica) também podem identificar a
alienação parental.

As vítimas de alienação parental sofrem de consequências muito comuns a outros tipos


de violências psicológicas, tais como: depressão, queda no rendimento escolar,
angústia, ansiedade, insegurança, pensamentos suicidas, agressividade, baixa
autoestima. No entanto, na alienação parental há o dano da privação do convívio com
um dos pais, assim como o sofrimento pelo conflito de lealdade. A criança ou o
adolescente pode ser pressionada a se posicionar a favor de um dos genitores sem que
o outro fique em desvantagem, o que causa sentimentos contraditórios. Estar nesse
lugar de objeto de disputa pode levar à culpa, à frustração e à preocupação excessiva
com o bem-estar dos pais e a comprometimentos em nível psicossomáticos.

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A terceira dimensão da violência psicológica se refere à criança ou adolescente como
testemunha (direta ou indireta) de crime violento praticado contra membro de sua família
ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que é cometido,
particularmente quando isto a torna testemunha (art. 4º, inciso II, alínea “c”, Lei nº
13.431/2017).

Infelizmente, não é incomum que crianças ou adolescentes sejam expostas à crimes


violentos contra sua família ou pessoas de sua rede de apoio ou, venham eles
mesmos, a sofrer diretamente a violência. Quando a criança ou adolescente se torna
testemunha judicial do fato, o cuidado deve ser redobrado para que não haja
revitimização, conforme orienta a Lei da Escuta Protegida - mais adiante falaremos a
respeito. Por exemplo, entra nesta dimensão da violência psicológica situações de
violência doméstica, praticada contra a própria criança ou adolescente ou contra um dos
pais (considerando os dados nacionais, quase sempre a mãe).

Estudos sobre as consequências para a criança ou adolescente quando testemunha de


violência contra a sua família ainda são escassos no Brasil. Muitos dos efeitos de outras
formas de violência psicológica podem ser verificadas neste caso: baixa autoestima e
autoconfiança; agressividade; isolamento; baixa no rendimento escolar; distúrbios do
sono e alimentares. Acrescenta-se o sentimento de culpa por não ter conseguido
proteger seus pais; desconfiança para com adultos e ou autoridades quando a violência
aos pais ou a sua rede de apoio vêm de autoridades oficialmente constituídas (policiais,
funcionário de órgãos públicos tais como escolas, hospitais); conflito de lealdade;
sentimento de desamparo quando a violência é entre o casal parental; e possibilidade
de reproduzir comportamentos violentos no futuro.

3.3. Violência sexual


Aqui vamos abordar sucintamente o tema, pois violência sexual será detalhadamente
apresentado em outro material de capacitação. O conceito mais amplo de violência
sexual refere-se a qualquer conduta que constranja a criança e o adolescente a praticar
ou presenciar conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso, inclusive exposição do corpo
em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda abuso sexual, exploração
sexual ou tráfico sexual comercial.

Em termos gerais, abuso sexual é qualquer prática ou ato de natureza sexual que se
utilize da sexualidade de crianças e adolescentes. O abuso sexual pode ser dividido em
intrafamiliar, quando praticado por pessoas do convívio e confiança; e extrafamiliar,
sendo o autor pessoa que não faça parte de seus vínculos afetivos e familiares da vítima.
Também pode ser com contato físico (masturbação, carícias, penetração etc.) ou sem
contato físico (exibicionismo - ato de mostrar os órgãos sexuais e ou se masturbar;
voyeurismo - observar órgãos sexuais; falas erotizadas) (art. 4º, inciso III, alínea “a”, Lei
nº 13.431/2017).

A exploração sexual comercial é o uso da criança e do adolescente em atividade


sexual em troca de remuneração ou qualquer outra forma de compensação, de forma
independente ou sob patrocínio, apoio ou incentivo de terceiros, seja de modo
presencial ou por meios eletrônicos. Nesta modalidade de violência sexual, o corpo de

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meninos e meninas são usados para o prazer sexual e mediados por algum tipo de
lucro, seja ele dinheiro ou qualquer outro elemento de troca (compra de roupas,
passeios, drogas lícitas ou ilícitas etc.). Não podemos esquecer que a criança ou
adolescente em exploração sexual é vítima e comete crime quem contrata ou lucra com
a atividade sexual, em quaisquer circunstâncias (art. 4º, inciso III, alínea “b”, Lei nº
13.431/2017).

O tráfico de pessoas é definido como recrutamento, o transporte, a transferência, o


alojamento ou o acolhimento da criança e do adolescente, dentro do território nacional
ou para o estrangeiro, com o fim de exploração sexual, mediante ameaça, uso de força
ou outra forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, aproveitamento
de situação de vulnerabilidade ou entrega ou aceitação de pagamento, entre os casos
previstos na legislação. Quando ocorre dentro do território nacional é chamado de tráfico
interno. A modalidade é dificultada pelas dimensões territoriais do Brasil e exige ação
articulada entre estados da federação, especialmente com a polícia federal. Já o tráfico
internacional é um crime de repercussão global e é considerado um dos mais lucrativos
no mundo, juntamente com tráfico de armas e tráfico de drogas. Em geral, envolve uma
rede articulada que recruta, transporta, aloja e negocia o sexo com crianças e
adolescentes (art. 4º, inciso III, alínea “c”, Lei nº 13.431/2017).

Crianças e adolescentes que viveram situações de violência sexual tendem a manifestar


alguns sinais que devem ser observados: sintomas físicos nos órgãos genitais, tais
como secreções vaginais ou penianas, lesões e sangramentos nas áreas genitais ou
anais e doenças sexualmente transmissíveis; outros sinais físicos, como doenças
psicossomáticas; mudanças no comportamento da criança ou do adolescente como
regressão à fases anteriores do desenvolvimento infantil (por exemplo, enurese
noturna); acesso e conhecimento de conteúdos sexuais incompatíveis com a sua idade;
evitação ao toque de terceiros; desconfiança nas relações com certa pessoa ou figuras
masculinas ou femininas, a depender do gênero do autor da violência. Sinais de
agressividade, isolamento social, ansiedade, tristeza profunda ou depressão podem ser
alguns dos sintomas psicológicos característicos de vítimas de violência sexual. É
importante destacar que esses sinais nem sempre serão os mesmos e devem ser
avaliados em conjunto.

Para além disso, nos casos de exploração sexual e tráfico para fins sexuais, devem ser
observadas e acompanhadas a relação com pessoas mais velhas, o padrão de consumo
não compatível com as condições econômicas da criança ou do adolescente e eventuais
saídas sem motivo aparente, bem como fugas de casa.

3.4. Violência institucional


Antes sem definição em lei, a violência institucional é aquela praticada por instituição
pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização (art. 4º, inciso IV, Lei nº
13.431/2017). Infelizmente, a história da política de atendimento de crianças e
adolescentes no nosso país é permeada por relatos de violência. Não foram (e não são)
poucos os meninos e meninas que sofrem abusos físicos, psicológicos e sexuais em
instituições que estão destinadas a atendê-los e protegê-los.

14
A violência institucional pode ocorrer dentro de escolas, hospitais, casas de
acolhimento, unidades de internação de medida socioeducativa, delegacias etc. Essa
modalidade de violência é caracterizada pela ação direta (artigos 18-A e 18-B, ECA) ou
pela ausência de intervenção por parte dos atores da rede e do próprio Estado (artigos
70-B e 94-A, ECA).

A revitimização, cuja definição tratamos no quadro Definições


importantes para a Escuta Protegida, é considerada modalidade de
violência institucional. Vale dizer que revitimizar não é apenas repetir
desnecessariamente a violência, mas também promover a escuta ou
depoimento sem cuidado ou habilidade em ambientes inadequados
que provocam uma reedição da situação e podem produzir novos
traumas. Com a implantação da escuta especializada e do depoimento
especial, a Lei da Escuta Protegida visa justamente evitar a
revitimização (Art. 5o, inciso II, Decreto nº 9.603/2018).

4. VIOLÊNCIA AUTOPROVOCADA
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a violência autoprovocada e a autolesão
como o uso intencional de força física real ou a ameaça contra si próprio (OMS, 2015).
O Instrutivo Notificação de Violência Interpessoal e Autoprovocada conceitua esse tipo
de violência como o ato intencional de uma pessoa produzir lesões em si mesma, com
a força física ou poder, e compreende ideação suicida, autoagressões, tentativas de
suicídio e suicídio (BRASIL, 2016).

A violência autoprovocada possui duas classificações: a autolesão não suicida e o


comportamento suicida. As lesões autoprovocadas mais comuns são os cortes
superficiais na pele, mordidas, arranhões, queimaduras e a introdução de objetos
pontiagudos no corpo.

A incidência de violência autoprovocada no público infantojuvenil merece especial


cuidado por se tratar de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e, portanto,
nem sempre capazes de comunicar emocionalmente e socialmente seus sofrimentos.
Quando crianças e adolescentes exercem sobre si mesmos algum tipo de violência
estão comunicando sofrimentos que não conseguem expressar em palavras.

As motivações para a automutilação são complexas e envolvem problemas emocionais,


comportamentais e sociais. A autolesão advém do desejo de alívio, em sua grande
maioria, para emoções de raiva, culpa, vergonha, frustração, desprezo, ansiedade,
tristeza ou para sentimentos difusos de vazio, sensação de morte etc. Se a dor
emocional retornar, a criança ou adolescente pode voltar a se automutilar em um ciclo
cada vez mais profundo entre a dor física e a emocional (ARAGÃO NETO, 2019).

A OMS define como fatores desencadeantes de violência autoprovocada,


especialmente a suicida, sentimentos de desamparo e perdas de controle como
divórcios dos pais ou rejeição por parte de um relacionamento amoroso. A dificuldade

15
no desempenho escolar, a baixa autoestima e conflitos em relação a identidade sexual
são também observados em casos de violência autoprovocada. Há os casos em que as
crianças e adolescentes com ideação suicida já foram abusadas física, sexual e
psicologicamente.

Temos que observar que transtornos psiquiátricos aumentam a possibilidade de um


adolescente cometer suicídio, assim como o abuso do álcool e de outras drogas entre
jovens com mais de 16 anos. Ainda, cerca de 80% dos adolescentes que se suicidaram
manifestavam comportamentos agressivos, estresse pós-traumático e outros de cunho
emocional, o que remete especial atenção em práticas de prevenção ao suicídio nesses
casos assim (OMS, 2006). O isolamento social, as mudanças no comportamento, a
dificuldade no rendimento escolar, a depressão, a baixa autoestima, o uso de roupas
que cobrem o corpo mesmo em dias quentes podem ser sinais de alerta da ocorrência
de autolesão.

Especialmente em se tratando de adolescentes, a necessidade de integração, de trocar


sentimentos, dúvidas, medos e construir referências grupais pode levar à automutilação,
incentivada em um determinado grupo, como uma espécie de ritual de pertencimento
(GIUSTI; GARRETO; SCIVOLETTO, 2008). No Brasil, é exemplar o jogo on-line
conhecido como Baleia Azul, que envolvia a prática de tarefas com desafios arriscados
que iam da automutilação até o desafio final (suicídio).

A suspeita ou confirmação de violência autoprovocada deve ser obrigatoriamente


notificada pelos serviços de saúde públicos e privados às autoridades sanitárias e pelos
estabelecimentos de educação públicos e privados ao conselho tutelar (Art. 6º, § 2º, Lei
13. 819 de 23 de abril de 2019).

Não deixe de assistir a reportagem especial de Ana Graziela Aguiar,


intitulada Cicatrizes da tristeza, veiculada na Empresa Brasil de
Comunicação (EBC). Nela vamos ver como o bullying e outras
sofrimentos podem levar à violência autoprovocada. Assista no link:
https://tvbrasil.ebc.com.br/caminhos-da-
reportagem/2018/05/cicatrizes-da-tristeza

5. ESCUTA PROTEGIDA DE CRIANÇA E ADOLESCENTE VÍTIMA OU


TESTEMUNHA DE CRIME
A oitiva (escuta judicial) de crianças e adolescentes está prevista em lei, tendo eles o
direito a serem ouvidos e opinarem sobre as medidas de promoção de direitos e de
proteção (art. 100, XII, ECA).

Quando crianças e adolescentes são vítimas de violências, sobretudo as de natureza


sexual, ou quando elas testemunham alguma violência, geralmente são convocadas a
fazer parte do processo criminal, sem o devido cuidado à condição de pessoa em
desenvolvimento e sem preparação dos agentes do sistema de justiça e segurança

16
pública sobre condição de possível sofrimento psíquico e emocional (ARRUDA;
BONFIM, no prelo 2020).

A escuta especializada e o depoimento especial instituídos pela Lei nº 13.341/2017


(regulamentada pelo Decreto nº 9.603/2018), também conhecida como Lei da Escuta
Protegida, pretendem evitar a revitimização de crianças e adolescentes e minimizar os
prejuízos da falta de técnica diferenciada de escuta de crianças e adolescentes.

5.1. A escuta especializada ou protegida


Entende-se por escuta especializada “o procedimento de entrevista sobre situação de
violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o
relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade” (art. 7º, Lei nº
13.341/2017).

Na rede de proteção cabe as áreas de educação, saúde, assistência social, segurança


pública e direitos humanos realizar a escuta especializada, com o objetivo de apoiar a
criança e o adolescente vítima ou testemunha na superação dos efeitos da violência
(art. 19, Decreto nº 9.603/2018).
Esta escuta deve ser realizada tão logo se tenha notícia da violência, de forma a se
efetivar imediatamente os procedimentos protetivos que se fizerem necessários e o
encaminhamento do caso para as esferas de responsabilização de supostos autores da
violência em caso de indícios de crime.

A celeridade para o procedimento é importante para minimizar a ocorrência de


“esquecimentos”, comuns em situações traumáticas por efeitos de mecanismos de
defesa do psiquismo ou em crianças pequenas cujas memórias são menos estáveis. A
temática da memória de crianças será melhor descrita em item específico.

A escuta protegida deve ser feita por profissionais da rede de proteção que tenham
qualificação técnica específica, em local acolhedor, com infraestrutura e com garantia
de privacidade para se evitar a revitimização.

A qualificação do profissional que fará a escuta da criança ou adolescente é importante


para que sejam evitadas perguntas que extrapolam o objetivo de proteção da vítima ou
testemunha. É importante que os profissionais recebam informações sobre a forma de
conduzir a entrevista sem que façam perguntas sugestivas que possam levar à
respostas que não se relacionam com o fato em questão2.

A escuta protegida (BRASIL, 2017b):


 humaniza de maneira a alinhar postura ética (sigilo, ausência de julgamentos)
ao conhecimento técnico e cuidados individualizados com postura acolhedora;
 usa linguagem adequada à faixa etária e ao desenvolvimento biopsicossocial da
criança ou do adolescente;

2O Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense, que será abordado adiante, aprofunda o assunto
(CNJ, 2020).

17
 observa as necessidades especiais da criança ou do adolescente, por exemplo,
em relação a:
 deficiência: é preciso disponibilizar recursos de comunicação adequados;
 raça/etnia: crianças e adolescentes oriundos de povos e comunidades
tradicionais devem ter sua identidade sociocultural respeitada. Não deixe de
conferir o que diz a Resolução nº 181, de 10 de novembro de 2016, do
CONANDA;
 idioma e nacionalidade diversas: deve ser garantido à criança ou adolescente
o direito de se comunicar no idioma que lhe convier; dentre outras
especificidades;
 permite o livre relato com a menor intervenção possível, fazendo-a apenas
quando for necessário para esclarecer algum ponto;
 propicia ambiente apropriado de forma a se preservar o sigilo e facilitar a
expressão de crianças e adolescentes, respeitando o tempo e a forma de se
colocar.

Apesar da escuta especializada não ter como objetivo servir o processo judicial, poderá
ser usada pelos órgãos de responsabilização no procedimento criminal (art. 5º, XIV, Lei
nº 13.341/2017) ou quando os órgãos do sistema de justiça e segurança pública não
tiverem profissionais qualificados para efetuar o depoimento especial, modalidade que
falaremos adiante.

Escuta especializada é diferente de revelação espontânea da


violência.
Escuta especializada é um procedimento técnico por parte da rede de
proteção e que objetiva colher dados sobre a violência vivida ou
testemunhada pela criança ou adolescente.
Revelação espontânea pode ocorrer em qualquer local e direcionada
a qualquer pessoa em que a criança ou o adolescente tenha confiança:
escola, amigos, família, durante um atendimento em unidade de saúde
ou serviços da política de assistência social. O ouvinte não
especializado deve acolher a fala da criança sem intervir, para evitar a
revitimização, e encaminhar para a escuta especializada da rede de
proteção (art. 4º, § 2º Lei nº 13.341/2017).

5.2. O depoimento especial


O depoimento especial “é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou
testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária” (art. 8º, Lei nº
13.341/2017). Tal qual a escuta especializada, o depoimento especial deve ter um corpo
técnico especializado para coletar as informações necessárias a fim de compor as
provas testemunhais.

O depoimento especial se dará uma única vez e poderá constituir produção antecipada
de prova judicial (art. 11, Lei nº 13.341/2017). Isso quer dizer que o depoimento especial,
que é prova para o processo criminal, será realizado antes de iniciada a ação penal

18
contra o autor da violência. Assim, a criança ou adolescente vítima ou testemunha dá
seu depoimento sem ter que esperar todos os trâmites judiciais que, muitas vezes,
acontecem meses depois de ocorrida a violência.

Além disso, se o objetivo do depoimento é também fazer prova contra o autor da


violência, permitir que a vítima fale no começo evita revitimização, pois não precisará
falar várias vezes nem ter que relembrar o caso meses depois. O depoimento especial
como produção antecipada de prova será obrigatório quando a vítima ou testemunha
tiver menos de sete anos de idade; e em casos de violência sexual, independente da
idade (art.11, § 1o, Lei nº 13.341/2017).

Ainda que adotados todos os cuidados e procedimentos exigidos para o depoimento


especial, devemos questionar a necessidade de ouvir crianças e adolescentes que
sofreram ou presenciaram violências. Seja pela pouca idade ou por outra situação de
vulnerabilidade, deve-se evitar submeter crianças e adolescentes vítimas ou
testemunhas a prestarem depoimento (mesmo o especial), quando as provas para o
processo criminal puderem ser coletadas de qualquer outra forma (BRASIL, 2019). Se
não houver outra opção, o depoimento deverá ser dado uma única vez. Somente em
casos excepcionais será autorizada nova oitiva e, para que aconteça, a criança ou
adolescente deverá concordar expressamente: caso se negue, sua vontade será
respeitada (art. 22, § 2º e 3º, Decreto nº 9.603/2018).

Para a realização do depoimento especial, o ambiente onde será realizada a oitiva deve
ser preparado. A sala deve ser equipada, acolhedora, reservada, silenciosa e sem
muitos estímulos visuais para não distrair a atenção da criança e do adolescente (arts.
23 e 24, Decreto nº 9.603/2018). A implantação de salas adequadas para realização de
depoimentos especiais se tornou obrigatória em todas as comarcas brasileiras (art. 7º,
Resolução nº 299, de 5 de novembro de 2019, CNJ).

No depoimento especial, a criança ou adolescente não tem contato direto com juiz,
promotor de justiça, defensor do autor da violência ou escrivão. Contudo, será ouvida e
vista em tempo real, por meio de equipamentos tecnológicos próprios. A criança ou
adolescente será informado de todas as etapas do processo, inclusive sobre o fato de
estar sendo visto e ouvido por outras pessoas (arts. 25 e 26, Decreto nº 9.603/2018). O
depoimento deverá ser gravado em equipamento com boa qualidade de imagem e som
e seguir as orientações do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF).

Os profissionais que farão a oitiva deverão seguir um protocolo para evitar a indução de
respostas e a violência institucional com perguntas que atentem contra a dignidade da
criança e do adolescente. O profissional deverá conduzir livremente a entrevista sem
interrupções e ao final os componentes da sala de observação poderão enviar, por meio
de ponto eletrônico ou telefone, perguntas que serão adaptadas pelo profissional que
está procedendo à oitiva para a linguagem da criança ou do adolescente.

19
5.2.1. O Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF)3
O PBEF se estrutura em duas fases: a introdutória (construção de vínculo) e a
substantiva ou central. Apesar de estar diretamente relacionada com o depoimento
especial, os atores da rede de proteção também podem se basear na metodologia do
PBEF para as entrevistas realizadas na escuta especializada.

Segundo o PBEF, as etapas da oitiva no âmbito do depoimento especial são:

1. Estágio 1: Construção de vínculo

a. Introdução
É o momento das apresentações. O profissional apresenta o seu papel e
informa sobre o processo da entrevista: a gravação e a observação por
parte de outros profissionais que os acompanharão em outra sala ou na
sala de audiência podendo fazer perguntas ao final daquela entrevista.
Ao final dessa etapa preliminar deve-se permitir que a criança ou
adolescente expresse suas dúvidas e sentimentos.

b. Construção de empatia
Neste momento, o objetivo é estabelecer uma relação mais próxima com
o entrevistado, é uma fase que também pode ser considerada “quebra-
gelo”. O entrevistador evoca assuntos neutros ou positivos e de interesse
da criança (escola, algum jogo específico, amigos). Busca-se que a
criança fale de si mesma de forma descontraída. O profissional faz
perguntas como: “Conte-me um pouco de você. O que você gosta de
fazer?”. Em crianças muito pequenas, especialmente, as na primeira
infância, pode oferecer materiais pedagógicos (lápis de cor, papel, massa
de modelar) e propor alguma atividade enquanto conversam sobre o
ambiente, o momento presente. O entrevistador deve ser cordial e
natural. Uma boa oitiva depende muito desse momento inicial.

c. Regras básicas
É necessário deixar claro o objetivo da conversa, diferenciando-a das
conversas entre os adultos e as crianças e os adolescentes. Neste
momento, deve ser a criança e o adolescente a conduzir a narrativa. O
profissional está ali como facilitador do processo. É importante dizer que
o entrevistador está muito interessado no que a criança ou adolescente
tem a lhe dizer, mesmo que seja algo que ele considere um detalhe,
deixando evidente que tudo que ele disser será importante. É o momento
de pactuar o compromisso de dizer o que aconteceu. O entrevistador
avisa que fará algumas perguntas, mas que ele pode não lembrar ou não
saber, e que isso não será um problema. Precisa explicar para criança

3
Este tópico foi baseado no Protocolo brasileiro de entrevista forense com crianças e
adolescentes vítimas ou testemunhas de violência (CHILDHOOD BRASIL-INSTITUTO WCF
BRASIL; CNJ; UNICEF, 2020). Optamos por não indicar a referência em cada trecho para dar
maior fluidez ao texto.

20
ou adolescente que ele não deve dizer algo que não tenha certeza
apenas para dar alguma resposta. Dizer que pode falar se a pergunta
não foi clara ou não parecer fazer sentido para ele. Pactuar que o
entrevistador poderá ser corrigido pela criança ou adolescente caso
comente equivocadamente algum relato que lhe fora feito.

d. Prática narrativa
Nessa etapa da entrevista a criança ou o adolescente é incentivada a
narrar livremente um fato como forma de prepará-la para o estágio central
da entrevista sobre a violência propriamente dita. Pode-se pedir para que
ele conte sobre o seu dia; sobre sua rotina na escola, sobre uma
atividade de esporte que ele goste.

e. Diálogos sobre a família


Aqui o entrevistador tem como objetivo observar a capacidade descritiva
da criança e do adolescente sobre as pessoas de seu cotidiano,
especialmente seus cuidadores principais, e sobre acontecimentos de
sua vida. O entrevistador deve estar atento a sinais de desconforto em
relação a uma pessoa específica ou a um determinado evento relatado.
Ao final desta fase deve-se avaliar se a criança ou o adolescente está
pronto para a etapa mais substantiva e importante do depoimento
especial.

2. Estágio 2: Substantiva ou Central

a. Transição
É a etapa de preparação para que a criança ou o adolescente possa
iniciar o relato da situação que motivou a oitiva. O entrevistador deve
incentivar o relato por meio de perguntas abertas que permitam a livre
narrativa da criança e do adolescente. É comum iniciar esta fase com
perguntas como: “o que te trouxe aqui?”, “sobre o que você veio
conversar comigo?” e “o que te falaram sobre você vir aqui?”.

Caso a abordagem de perguntas abertas não esteja surtindo efeito, o


entrevistador pode iniciar uma conversa sobre a família, alguma atividade
ou evento que esteja relacionado com a denúncia realizada, na tentativa
de evocar a memória e ou encorajar a criança ou o adolescente a falar
sobre a suposta violência.

A técnica do “afunilamento” é ainda outra possibilidade de facilitar a


narrativa da criança ou adolescente. O entrevistador passa gradualmente
de perguntas mais abertas, para abordagens mais focadas e/ou questões
mais diretivas. Podem ser usadas perguntas como: “sua família/mãe/
outra pessoa está preocupada com você?”, “você está preocupado com
alguma coisa?”, “você está com medo de alguém?”, “você está com
vergonha de falar sobre algo?”.

21
Caso as técnicas acima não resultem em uma resposta da criança e do
adolescente, pode-se lembrar os objetivos da entrevista e o papel do
entrevistador e oferecer o apoio emocional, como: “meu trabalho é ajudar
crianças. Posso fazer algo para te ajudar a conversar hoje?” Se ainda
assim a criança ou adolescente permanecer calado, passa-se à etapa
das intervenções oriundas da sala de audiência.

b. Descrição narrativa
A criança ou adolescente relata o evento da suposta violência sem
interrupções. Neste momento o entrevistador apenas usará expressões
que demonstrem que está atento à narrativa (por exemplo, “sim”, “uhum”,
“certo”; ou “entendi) e anotar palavras-chaves sobre fatos que precisam
de maior esclarecimento.

c. Seguimento e detalhamento
É o momento em que o entrevistador fará perguntas abertas que
esclareçam ou complementem as informações dadas pela criança ou
adolescente na fase anterior.

d. Interação com a sala de audiência ou sala de observação


Quando esgotar a conversa entre o entrevistador e a criança ou
adolescente, o profissional avisará que conforme falado anteriormente no
início da entrevista, pode ser que algumas daquelas pessoas que estão
na outra sala os acompanhando queiram fazer alguma pergunta. O meio
de comunicação entre a sala de audiência e o entrevistador deverá ser
previamente combinado (telefone, ponto eletrônico, tablet). As perguntas
deverão, se necessário, ser reformuladas para a adequação da
linguagem ideal à criança e ao adolescente e abertas para possibilitar a
livre narrativa e evitar a sugestionabilidade.

e. Fechamento
Nesta etapa final verifica-se se há algo a mais que a criança ou
adolescente deseja dizer. Explica-se brevemente os próximos passos do
processo. Deve-se agradecer a criança ou adolescente por terem se
conhecido e por sua participação na entrevista. É recomendado
disponibilizar uma forma de contato posterior. É importante que seja
certificado que a criança ou adolescente se encontra emocionalmente
bem; caso contrário, deve-se dedicar um tempo para a acolhida e apoio
emocional.

O PBEF recomenda ao final, quando esgotadas, sem sucesso, todas as tentativas para
que a criança ou o adolescente faça a revelação do ocorrido, que o entrevistador indique
o estudo psicossocial sobre as condições de risco e proteção, oficializando ao Conselho
Tutelar e à autoridade judiciária competente (juiz da infância e juventude, nas comarcas
em que existir).

22
(H)Ouve?
Não deixe de assistir o documentário de Silvia Ignez, que aborda o
depoimento especial e a Lei nº 13.431/2017.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mDMxTzwGDbg

6. NOTIFICAÇÃO E ROTEIRO DE ATENDIMENTO DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA
Tanto a escuta especializada como o depoimento especial acontecerão nas situações
em que a violência sofrida ou testemunhada por crianças e adolescentes já foram
identificadas. Mas o que profissionais da rede de proteção devem fazer quando
suspeitarem ou receberem denúncia de violência praticada contra meninos e meninas?
Como inicia o atendimento de crianças e adolescentes quando forem identificados sinais
de violência? E no caso de revelação espontânea?

O primeiro órgão a ser comunicado é o Conselho Tutelar. Não podemos esquecer que
a simples ameaça de violação de direitos justifica a aplicação de medida de proteção
pelo Conselho Tutelar (art. 98 e art. 101, I a VII, ECA). Inclusive, o ECA estabelece
penalidades para médicos (entende-se também ser dever dos demais profissionais de
saúde), professores, responsáveis por unidades de saúde e instituições educacionais
que deixarem de comunicar às autoridades competentes situações onde existam
suspeita ou confirmação de violência contra criança ou adolescente (art. 245, ECA).

É comum que professores, profissionais da saúde e mesmo familiares não denunciem


situações de violência por avaliarem que “não tem certeza” do que aconteceu. Contudo,
para efetiva proteção integral, a ameaça ou suspeita de violação de direitos de crianças
e adolescentes são suficientes para que haja providências no sentido de protegê-los e
resguardá-los o mais brevemente possível.

Paralelo à comunicação ao Conselho Tutelar, o ECA também estabelece a obrigação


de notificar suspeita ou confirmação de casos de violência contra a criança ou o
adolescente, especialmente por profissionais e serviços de saúde, da assistência social
e da educação.

A notificação obrigatória visa à adoção rápida de medidas que cessem a violência e


garantam a proteção da criança ou do adolescente. Outra importante função da
notificação é formar uma base de dados estatisticamente confiáveis para a formulação
de políticas públicas. Os gestores precisam ter identificados os principais tipos de
violências que ocorrem; as áreas de maior incidência; o perfil das vítimas, bem como
dos supostos autores da violência; horários e dias de maior frequência de ocorrências,
dentre outros dados que auxiliem no planejamento do enfrentamento das violências
contra o público infantojuvenil e das estratégias de intervenção para preveni-las e
proteger meninos e meninas.

23
Na área da saúde temos o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN),
que é onde agravos de notificação compulsória são registrados. Violência contra
crianças e adolescentes é caso de notificação compulsória e o formulário utilizado é a
Ficha de Notificação de Violência Interpessoal ou Autoprovacada, que deverá ser
registrada no Sistema de Vigilância de Violências ou Acidentes (VIVA/SINAN).

Na área da educação, as escolas são obrigadas a comunicar ao Conselho Tutelar casos


de maus-tratos, infrequência escolar injustificada ou evasão e repetências contínuas
(art. 56, ECA). Nesse caso, a educação conta com a Ficha de Comunicação de Aluno
Infrequente (FICAI)4, que também serve para identificar outras violações de direito que
podem ter a ver com a infrequência da criança ou do adolescente.

Com o objetivo de evitar a revitimização, a rede de proteção deve adotar ficha de


encaminhamento para o compartilhamento de informações (art. 9º, § 2º, Decreto nº
9.603/2018). A ficha permite que as informações coletadas em uma primeira entrevista
por qualquer dos atores do rede sejam sistematizadas e compartilhadas, evitando que
a criança ou adolescente tenha que repetir o relato. Sugere-se que a ficha contenha as
seguintes informações5:
a) Cabeçalho: data; horário do atendimento e órgão que realizou o atendimento.
b) Identificação da criança ou adolescente: nome completo; data de nascimento;
sexo; endereço; responsável legal e pessoa de referência. Deve-se garantir que
a criança ou adolescente informe quem será a pessoa de referência.
c) Motivo da entrevista: indicar se foi demanda espontânea ou encaminhamento de
outro órgão ou serviço. Caso tenha sido por encaminhamento, anotar se já houve
providências anteriores e registrá-las na ficha.
d) Relato da ocorrência: deve-se escrever o livre relato da vítima, observando as
palavras utilizadas por ela para que se evite interpretações errôneas.
e) Relato do responsável ou acompanhante: a descrição do relato do adulto que
acompanha a vítima deve ser de igual modo objetiva, utilizando-se as palavras
proferidas por ele.
f) Encaminhamentos: registra-se os próximos passos do atendimento e os órgãos
para onde o caso será encaminhado.

4 Para conhecer o FICAI, acesse:


http://www2.seduc.mt.gov.br/documents/8125245/13033650/FICHA+FICAI+WORD/2964dd74-
5a44-5515-cc0f-f02d1dd23942
5 Consulte o Modelo de registro de informações para compartilhamento na rede do SGD no

documento Parâmetros de escuta de crianças e adolescentes em situação de violência (BRASIL,


2017b). Disponível em: http://primeirainfancia.org.br/wp-content/uploads/2017/08/Parametros-
de-Escuta.pdf

24
Síntese dos principais encaminhamentos no caso de violência contra crianças e
adolescentes

Aplicar as medidas de
Atender e aconselhar
É a porta de entrada da proteção à criança e
pais ou responsáveis
criança e do adolescente com
Conselho Tutelar por crianças e
adolescente vítima no direitos ameaçados ou
adolescentes (ver art.
SGD violados (art. 98 e art.
129, ECA).
101, I a VII, ECA)

Encaminhar os casos
Identificar sinais de Preencher a notificação
suspeitos ou
violência e/ou acolher compulsória de alunos
Educação confirmados de
as revelações infrequentes, por meio
violência ao Conselho
espontâneas da FICAI
Tutelar

Acolher e atender os
casos de violência que Preencher a notificação
Encaminhar os casos
chegam ao Sistema compulsória, através
suspeitos ou
Único de Saúde (SUS), da Ficha de Notificação
Saúde bem como dar
confirmados de
de Violência
violência ao Conselho
seguimento aos Interpessoal ou
Tutelar
acompanhamentos Autoprovocada
necessários

Realizar o atendimento especializado de crianças e adolescentes com


direitos violados e suas famílias. O CREAS deve atender por meio do
Assistência social Serviço de Proteção e Atendimento Especializado à Famílias e Indivíduos
(PAEFI)

6.1. Noções básicas sobre o funcionamento da memória aplicada ao


testemunho infantil
O testemunho é o relato de um fato que sofre a influência de elementos percebidos e
memorizados por quem descreve o ocorrido; assim, o relato não é necessariamente a
descrição fiel de como tudo aconteceu. Isso porque, a experiência vivida é interpretada
e sentida de formas diferentes a partir do significado que cada pessoa dá ao que lhe
acontece ou ao que observa. As pessoas internalizam os estímulos e os organizam de
forma a dar algum sentindo para a experiência que fica “registrada” na memória.

A memória é a capacidade de fixar, conservar e trazer a lembrança de um fato e, por


isso, é elemento fundamental para o relato da testemunha. No entanto, a memória
trazida à tona sofre influências internas (capacidade de atenção; motivação;
imaginação; estresse; traumas etc.) e externas (sugestões, pressões para omitir ou
adicionar elementos etc.) (STEIN; PERGHER; FEIX, 2009).

Assim, a recuperação da memória pode sofrer interferência por distorções entre o que
realmente aconteceu e o que pessoa considera ter acontecido, baseado no processo
automático da memória que preenche as lacunas com o que se pressupõe ter ocorrido
a partir de experiências anteriores. Por exemplo, se determinada pessoa ouve sempre
relatos de assassinatos em ruas escuras, quando perguntada como era o local onde
ocorreu a violência, no depoimento ela pode vir a se referir a uma rua sem iluminação
ainda que não tenha relação com a realidade (STEIN; PERGHER; FEIX, 2009).

25
Em se tratando do depoimento de crianças vítimas ou testemunhas de violência, as
questões relacionadas à memória são ainda mais desafiadoras, considerando as
especificidades da pessoa que está em desenvolvimento em todos os aspectos: físico,
psicomotor, emocional e cognitivo. O profissional responsável por realizar o depoimento
especial deve estar atento para questões importantes sobre o funcionamento da
memória infantil, assim como deve ter boa capacidade técnica de entrevista.

Pesquisas apontam que crianças tendem a se recordar mais de situações que lhes
causaram algum tipo de estresse do que os eventos neutros. No entanto, detalhes
relacionados a eventos traumáticos podem sofrer mais distorções e lapsos em razão
das influências externas e do estágio de desenvolvimento neurocognitivo (STEIN;
PERGHER; FEIX, 2009).

Especialmente no testemunho de crianças, deve-se estar atentos para alguns


importantes aspectos, a saber:

 Sugestionabilidade: é a tendência de as pessoas têm de acrescentar às


suas lembranças pessoais elementos de fontes externas (SCHACTER,
2003). Quer dizer, é agregar à sua memória um detalhe que lhe foi contato
por outra pessoa.

É comum que as pessoas respondam o que imaginam que o entrevistador quer ouvir,
como uma tendência a oferecer respostas “certas” ao que lhe é perguntado. Crianças
são ainda mais sugestionáveis, tanto por ainda estarem em desenvolvimento psíquico
e cognitivo como em razão da relação de poder frente ao adulto que a entrevista. Para
evitar respostas sugestionadas, o entrevistador deve intervir o mínimo possível no relato
da criança e, quando o fizer, jamais usar perguntas diretivas. Por exemplo, se o
entrevistador perguntar: “diga-me onde o seu pai tocou em você?”, pode ser que a
criança diga uma parte de seu corpo mesmo que o pai não a tenha tocado.
Questionamentos assim podem levar a criança a relatar fato que não ocorreram e a criar
falsas memórias.

Outra situação a ser evitada é repetir a mesma pergunta várias vezes. Perguntas
repetidas podem levar a criança a duvidar do que falou e mudar o depoimento, pois
pensará que a sua resposta anterior pode ter sido errada e, no desejo de agradar,
buscará uma outra possível que esteja “certa”. Essa situação se agrava quando o
entrevistador pergunta se ela “tem certeza” do que aconteceu, como se tivesse
duvidando de sua palavra.

 Falsas memórias: são lembranças de fatos que não ocorreram.

A sugestionabilidade e o preenchimento de lapsos de memória com fatos que nunca


ocorreram estão na base da formação de falsas memórias. Uma vez formadas, essas
memórias, ainda que falsas, permanecem como verdade, por vezes por toda a vida de
uma pessoa. Há relatos de pessoas que foram levadas a crer que sofreram abuso
sexual e mesmo depois de adultas “lembram-se” do episódio e chegam a citar detalhes
do que não aconteceu.

26
A falsa memória é um desafio para qualquer investigação. Ao contrário do que
costumamos dizer, nosso cérebro não registra fatos como uma câmera fotográfica e
todos nós, inclusive crianças, podem criar memórias de fatos que não aconteceram
(STEIN; PERGHER; FEIX, 2009). Como não se trata de invenção intencional, pode ser
influenciada pelo tempo. Uma das maneiras de evitar relatos de falsas memórias é ouvir
a vítima o mais próximo possível do fato que motiva seu depoimento.

7. FLUXO GERAL DE IMPLEMENTAÇÃO DA LEI Nº 13.431/2017 (LEI DA


ESCUTA PROTEGIDA)
O estabelecimento da escuta protegida cobra atuação integrada e coordenada dos
atores do SGD e demandou da rede de proteção a elaboração e pactuação de fluxo de
atendimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência (art. 9º, II,
Decreto nº 9.603/2018; vide também art. 2º, Resolução nº 299/2019, CNJ).

Em 13 de junho de 2019 foi assinado o Pacto nacional pela implementação da Lei nº


13.431/2017, firmado entre atores públicos envolvidos na proteção da criança vítima de
violência, desde os órgãos e entidades que constituem a rede de proteção da criança
até órgãos como Polícia Civil, Defensoria Pública, Ministério Público, Poder Judiciário,
diversos conselhos nacionais e ministérios, dentre os quais o Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).

Por fim, o Fluxo Geral de Implementação da Lei nº 13.431/2017 foi instituído em


setembro de 2020 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O fluxo é uma forma de
operacionalização do sistema de garantia de direitos, priorizando a comunicação entre
os atores da rede de proteção para não revitimizar a criança ou o adolescente vítima ou
testemunhas por meio de coleta de informações com uma postura adequada, ética e
protetiva.

Compreendendo o FLUXO:
 O fluxo é dividido por oito campos ou áreas, de acordo com diversos momentos
e ou atores envolvidos, a saber: a criança e o adolescente vítima ou testemunha;
espaço de comunicação da suspeita de violência; rede de garantia de direitos
(saúde, assistência social e educação); Conselho Tutelar; Delegacia de Polícia
Civil; Ministério Público; Poder Judiciário local civil e/ou criminal e Defensoria
Pública.
 Dentro de cada campo os retângulos azuis representam as atividades de
responsabilidade de cada ator conectadas por setas que demonstram o fluxo de
atendimento e encaminhamento. As ações progridem da esquerda para a direita
e de cima para baixo.
 Os losangos amarelos indicam um conjunto de ações que podem ser efetuadas
concomitantemente.
 O círculo vermelho indica o fim da intervenção daquele órgão específico ou
interrupção até que haja a necessidade de novas ações.

27
Campo 1 - A criança e o adolescente vítima ou testemunha: diz respeito a ciência
pelo SGD da situação de violência.

Campo 2 - Espaço de comunicação da suspeita de violência: indica a primeira


providência, que é a comunicação ao Conselho Tutelar.

Campo 3 - Rede de garantia de direitos (saúde, assistência social e educação):


refere-se às ações imediatas de proteção. Neste campo acontece a escuta
especializada.

28
Campo 4 - Conselho Tutelar (CT): trata das ações cabíveis ao CT, tais como a possibilidade de aplicar medidas de proteção de sua
competência (art. 101, I a VII e art. 129, I a VII, ECA).

Campo 5 - Delegacia de Polícia Civil: diz respeito ao início procedimento de responsabilização do autor da violência; à investigação do caso
e à coleta de provas.

29
Campo 6 - Ministério Público: engloba as ações de proteção à vítima e de persecução criminal do autor da violência. Oferecimento da
denúncia.

Campo 7 - Poder Judiciário local cível e/ou criminal: trata das ações cíveis que podem ocorrer no caso, como por exemplo a alteração da
guarda, aplicação de medida de acolhimento institucional, dentre outras. Na esfera criminal, realização do depoimento especial.

30
Campo 8 - Defensoria Pública: refere-se à assistência jurídica à vítima e sua família.

8. MEDIDA PROTETIVA DE ACOLHIMENTO (INSTITUCIONAL E FAMILIAR)


O acolhimento de crianças e adolescentes é uma medida protetiva, aplicada em caráter
excepcional e provisório pela autoridade judiciária, por motivo de abandono ou por
impossibilidade temporária dos pais ou outros familiares em cumprirem a função de
proteção e de cuidados para com seus filhos (art. 19 e seguintes, ECA). Poderá ser
institucional ou familiar e, como os nomes sugerem, a medida protetiva de acolhimento
pode ser aplicada numa instituição ou com uma família a qual a criança ou do
adolescente não tenha vínculos. A medida protetiva de acolhimento retira a criança ou
o adolescente do seu núcleo familiar e somente pode ser aplicada pelo juiz (art. 101, VII
a IX, ECA). Inicialmente suspende o poder familiar que pode, a depender do
desdobramento do caso, ser totalmente destituído dos pais biológicos.

Poder familiar é a autoridade que os pais exercem em igualdade sobre


crianças e adolescentes, envolvendo os deveres guarda, educação,
cuidado e sustento. Não podemos esquecer que a falta ou carência de
recursos materiais e financeiros não é motivação suficiente para
suspensão ou perda do poder familiar. Sobre assunto, não deixe de
conferir os artigos 21 ao 23, ECA.

Negligência, situação de rua, abandono pelos pais ou responsáveis e abusos físicos e


psicológicos são as principais violações de direito que levam crianças e adolescentes
terem a medida de acolhimento aplicada. É fundamental que cada caso seja tratado de
forma individual, por meio de um estudo diagnóstico que deverá avaliar os reais riscos
em que a criança ou adolescente se encontra e as condições atuais da família em prover
cuidados e proteção (BRASIL, 2009).

31
Quando a violação de direitos não decorre de situações que dependem da família (por
exemplo, a falta de alimentação por desemprego) ou ainda quando não houver risco
que justifique os efeitos negativos do afastamento familiar, a criança deverá permanecer
em sua residência. Em casos assim, a família deverá ser acompanhada por Centro de
Referência de Assistência Social (CRAS) e/ou CREAS.

Depois de aplicada, a medida de acolhimento será avaliada a cada três meses pelo juiz
da vara da infância e juventude com base nos relatórios elaborados por equipe
multidisciplinar (art. 19, § 1º, ECA). Da análise do relatório, o juiz poderá decidir pela
reintegração familiar, colocação em família substituta ou permanência por mais um
período no acolhimento. O tempo de permanência no acolhimento não pode ultrapassar
de 18 meses, salvo por comprovada necessidade e o interesse superior da criança (art.
19, § 2º, ECA).

Nos casos em que a família nuclear não estiver conseguindo exercer seu papel protetivo
para com seus filhos, deve-se averiguar a possibilidade da criança ou adolescente estar,
por um tempo, sob os cuidados da família extensa ou ampliada (art. 25, parágrafo único,
ECA).

Quando não for possível que a criança ou adolescente fique sob a responsabilidade de
pessoas de sua família ou de sua rede afetiva, o ECA determina que a medida de
acolhimento familiar deve ter preferência ao acolhimento institucional (art. 34, § 1º,
ECA). A criança ou adolescente que é incluído em serviços de família acolhedora, tem
o seu direito à convivência familiar e comunitário respeitados, ainda que em uma família
que não seja a sua. A equipe do serviço de família acolhedora deve acompanhar a
criança ou o adolescente e apoiar a família que acolhe e a família de origem para que a
mesma possa reverter a situação que causou o afastamento do filho para que a
reintegração seja possível.

Nos casos em que também não for possível a inclusão da criança ou adolescente em
famílias acolhedoras, o acolhimento institucional é a medida protetiva a ser aplicada,
mas o objetivo sempre será a reintegração familiar.

Quando os esforços para a reversão do quadro de violação de direitos da família para


com seu filho não surtirem efeitos ou quando há situações de orfandade ou ausência de
referência de família biológica, o caminho será a adoção.

Nem tudo é negligência!


A negligência diz respeito às falhas dos pais em proporcionar - onde os
pais estão na posição de fazer isto – o desenvolvimento da criança em
uma ou mais das seguintes áreas: saúde, educação, desenvolvimento
emocional, nutrição, abrigo e condições de vida seguras. A negligência
distingue-se, portanto, das circunstâncias de pobreza, visto que a
primeira pode ocorrer apenas em casos onde recursos razoáveis
estejam disponíveis para a família ou o responsável (KRUG, 2002, p.
82).

32
8.1. Efeitos do acolhimento prolongado
A criança ou o adolescente que vive períodos longos de acolhimento, especialmente
quando a manutenção do vínculo familiar não for incentivado, tende a romper com a sua
família de origem. Este fato pode interferir na construção de novas relações sociais e na
construção de vínculos afetivos na vida adulta.

A institucionalização prolongada, sobretudo de crianças pequenas, pode acarretar


efeitos negativos para o seu desenvolvimento. A falta de relacionamentos humanos
individualizados e contínuos tende a levar a déficits cognitivos, motores e afetivos.
Estudos demonstraram que bebês institucionalizados podem apresentar apatia;
inapetência (falta de apetite); dificuldade de se desenvolver fisicamente, ainda que bem
nutrido; e distúrbios do sono (BOWLBY, 1981). Um ano de institucionalização equivale
a quatro meses de atrasos no desenvolvimento de bebês (UNICEF, 2014). Para
minimizar esses efeitos negativos, crianças de zero a três anos acolhidas devem ter
educadores de referência estáveis e qualificados para atender as suas necessidades
específicas, inclusive as de afeto (art. 92 § 7º, ECA).

O afastamento da criança ou adolescente de sua família pode causar sentimentos de


abandono e culpa; autoestima e a autoconfiança ficam prejudicadas. Tendencialmente,
jovens egressos do acolhimento institucional demonstram dificuldades para se auto-
gerenciarem. Atividades que parecem simples a qualquer outro jovem na mesma faixa
etária (fazer compras, andar sozinho pela cidade etc.) são mais complexas para o
egresso. Em geral, nas instituições de acolhimento, meninos e meninas recebem itens
necessários para sua sobrevivência (material de higiene, alimentação, vestuário etc.) e
circulam pela cidade acompanhados por educadores.

Quando o acolhimento for inevitável, deve ser realizado em espaços com poucas
crianças e adolescentes e com educadores e cuidadores qualificados para atendimento
individualizado. É fundamental que o acolhimento tenha foco pedagógico e desenvolva
habilidades para a vida que, em algum momento, deixará de ser vivida na instituição.

8.2. Modelos de acolhimento no Brasil


A Tipificação dos Serviços Socioassistenciais (BRASIL, 2009a) distingue o acolhimento
em abrigos institucionais, casa-lar, serviços de acolhimento em família acolhedora e
república de jovens.

33
Família República para jovens
Abrigo Casa-Lar
acolhedora egressos

Serviço que
Capacidade máxima
Oferecido em organiza o
para 20 crianças e Unidades residenciais
unidades acolhimento de
adolescentes por para jovens, entre 18 e
residenciais, com crianças ou
unidade. É o lar 21 anos, egressos dos
capacidade máxima adolescentes, em
provisório de serviços de acolhimento.
para 10 crianças e residências de
crianças e Cada unidade, residência
adolescentes, nas famílias
adolescentes, por inclusiva, comporta até
quais pelo menos acolhedoras
isso deve ser o mais seis pessoas. Não há a
uma pessoa ou cadastradas. Cada
próximo possível de figura de um
casal trabalha como equipe de
uma casa e estar educador/cuidador
educador/cuidador referência atende,
inserido em uma residente.
residente. no máximo 15
comunidade.
casos.

Atualmente no Brasil existem 2.801 unidades de acolhimento específicas para o público


infantojuvenil, sendo 2.000 em modalidade de abrigo institucional; 759 casas-lares e 42
classificados como “outros”. Nessas instituições estão acolhidas 29.998 crianças e
adolescentes e são apenas 127 jovens egressos dos acolhimentos vivendo em
repúblicas (BRASIL, 2020a). No Brasil apenas o estado de Minas Gerais e 380
municípios executam o Serviço de Família Acolhedora, onde estão acolhidas 1.531
crianças e adolescentes (BRASIL, 2020a).

8.3. Acolhimento familiar


Conforme descrito no quadro acima o acolhimento familiar é um serviço que oferece
temporariamente cuidados e proteção a crianças e adolescentes que, por algum motivo,
precisem ser afastados de seus familiares. São acolhidos na residência de uma família,
o que proporciona um ambiente familiar, facilitando o cuidado individualizado e a
convivência comunitária. A criança ou o adolescente passa a fazer parte do círculo de
amigos e instituições com os quais a família acolhedora se relaciona (igrejas, clubes
etc.). Cada família acolhedora, em geral, recebe uma criança por vez. A única exceção
é quando se trata de grupo de irmãos (GRAHAM; BRAHIM, 2013). A guarda da criança
é dada, em caráter temporário, a família acolhedora vinculada ao Serviço de Famílias
Acolhedoras (BRASIL, 2009b).

A família que deseja ser acolhedora precisa se cadastrar no Serviço, passar por uma
seleção e ser capacitada para acolher uma criança ou um adolescente. A equipe do
Serviço de Família Acolhedora acompanha todo o processo de acolhimento, de modo a
apoiar a família e a proteger a criança. A família de origem também é acompanhada,
visto que um dos objetivos é preservação dos vínculos familiares e a reintegração
familiar, salvo determinação judicial em contrário (BRASIL, 2009b).

34
Diferenças Acolhimento institucional Família acolhedora
Realizado no espaço familiar.
Realizado geralmente em
Uma família acolhe em sua
Quanto ao local de estruturas físicas institucionais
casa uma criança e/ou
execução ou semelhantes a uma
adolescente de uma outra
residência (casa-lar).
família.
Quanto à guarda Pessoa Jurídica Pessoa Física
Os profissionais do programa
Diferentes profissionais da
mediam um contexto para que
Quanto à instituição assumem os
as famílias acolhedora, de
responsabilidade cuidados com a criança/
origem e extensa assumam os
adolescente.
cuidados com a criança.
Quanto ao espaço
Em coletividade. Individualizado.
físico
Quanto à convivência Geralmente periférica ou Intrínseca, já que a criança vive
familiar pontual. com uma família.
Quanto à convivência Geralmente estimulada pelos Mantida pela rotina natural da
comunitária profissionais do abrigo. família que acolhe.
Os vínculos com os Os vínculos com a família
educadores, em geral, são acolhedora são, em grande
Quanto à manutenção
interrompidos após a saída da parte, mantidos ao longo da
dos vínculos
criança e do adolescente da vida da criança e do
instituição. adolescente.
Fonte: Adriana Graham e Valéria Brahim (2013, p. 49)

8.4. A reintegração familiar


Há pelo menos duas razões fundamentais para o investimento das equipes técnicas na
reintegração familiar: o primeiro é de ordem legal, pois toda criança tem direito à
convivência familiar e comunitária; o segundo, é a necessidade de referências positivas
que todo o ser humano possui, em especial crianças e adolescentes, para o seu
desenvolvimento saudável (GRAHAM; BRAHIM, 2013).

Um questionamento importante que os profissionais se fazem é “até quando devemos


investir na reintegração familiar?”. Especialmente em relação a crianças pequenas há
receio de que o investimento na reintegração familiar demore, que a criança cresça e
que seja mais difícil a possibilidade de adoção.

Quando este for o dilema, existe outra pergunta que precisa ser feita: “os serviços da
rede de atendimento fizeram todo o possível para que a família avançasse no seu papel
de proteger e cuidar de seus filhos?”. Para respondê-la, os profissionais envolvidos
devem analisar cuidadosamente o contexto e realizar minucioso estudo de caso não
apenas entre a equipe responsável pelo acolhimento, mas com outros profissionais de
órgãos e serviços envolvidos no acompanhamento da família.

35
O sucesso na reintegração familiar da criança ou adolescente está, em muito,
relacionado com o grau de investimento que a rede terá no acompanhamento da família
de origem. O acompanhamento qualificado e sistemático contribui para que a família se
potencialize, consiga conquistar habilidades para reverter o quadro que gerou o
afastamento do filho e se reorganize para o recebê-lo de volta. Antes de tudo, é
necessário acreditar no potencial cuidador e protetivo das famílias e na capacidade de
transformação das relações familiares.

Durante o processo de acompanhamento espera-se que as famílias incorporem novas


formas de se relacionar e recuperem a autonomia para realizar as ações de cuidado
relacionadas à saúde e à educação de seu filho. Neste ponto é imprescindível que a
equipe responsável pelo acompanhamento do caso esteja articulada para oferecer os
serviços existentes no território onde a família vive, bem como inseri-la nas políticas e
nos programas aos quais cumprir os requisitos para tal.

Após a reintegração familiar da criança ou adolescente, a família deverá continuar a ser


acompanhada pelo CRAS para ser incluída, caso ainda não tenha sido, no Serviço de
Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF). O PAIF será fundamental para apoiar
a família em um momento de readaptação e evitar reincidências na violação de direitos
da criança ou do adolescente.

9. ADOÇÃO
A adoção é uma forma de constituição de família que tem como elemento fundador o
afeto e os laços de afinidade. A adoção supre, de maneira irrevogável e de forma plena
e completa, o vínculo de parentesco biológico (MACIEL, 2019a). Os pais adotantes
passam a exercer integralmente o poder familiar e os filhos havidos por adoção passam
a ter os mesmos direitos do que os filhos naturais (biológicos). A lei proíbe
expressamente quaisquer formas de denominação discriminatória referentes à filiação
como, por exemplo, fazer constar em determinado registro (escolar, dos serviços de
saúde ou assistenciais etc.) que determinada criança ou adolescente é “filho adotado”
(art. 227, § 6º, Constituição Federal; art. 20, ECA; e art. 1.596, Código Civil).

A adoção integra o direito fundamental à convivência familiar e comunitária, pois todas


as crianças e todos os adolescentes têm direito de ser criados e educados no seio de
uma família: preferencialmente a natural e, excepcionalmente e se necessário, com uma
família substituta (art. 19, ECA). Tanto a Constituição Federal como o ECA abraçaram
a ideia de modelos familiares pluralistas, mantendo a ideia de família como célula-mãe
da sociedade, mas que pode se originar de várias formas tendo como elemento central
o afeto (MACIEL, 2019a).

9.1. A adoção e o princípio do interesse superior da criança


Nós já falamos algumas vezes sobre o princípio do melhor interesse, também chamado
de interesse superior da criança. Trata-se de princípio que está na Convenção sobre os
Direitos da Criança que sustenta a prioridade absoluta. O princípio do interesse superior

36
quer dizer que todas as medidas legislativas, judiciais e administrativas devem respeitar,
em primeiro lugar, o que é melhor para crianças e adolescentes.

Encontrar concretamente soluções que atendam ao melhor interesse da criança e do


adolescente pode não ser tarefa simples. Lembremos que no Código de Menores (Lei
nº 6.697, de 10 de outubro de 1979), foram muitas as crianças e os adolescentes que
tiverem seus direitos violados em nome de “fazer o bem”, em nome do “fazer o melhor”.

Para promover o melhor interesse de crianças e adolescentes temos que nos voltar para
a própria lei: se seguirmos na trilha das diretrizes do ECA e observarmos todos os
princípios nele instituídos, vamos descobrir que não é tão difícil assim. Especificamente
do ponto de vista da intervenção estatal, é importante que nos voltemos para soluções
que façam diferença positiva na vida de crianças e adolescentes, garantindo-lhes viver
com dignidade (DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2020).

O princípio do interesse superior é muito importante para pensarmos a adoção. Se,


infelizmente, a família natural deixa de ser o lugar mais seguro e protetor para
determinada criança ou adolescente, é de seu melhor interesse que lhe seja
proporcionada uma família substituta, para que possa ser criada com amor, afeto e
cuidado.

A adoção conjunta é permitida somente se os adotantes forem casados


ou vivam em união estável (art. 42, § 2º, ECA). Excepcionalmente
permite-se a adoção de casais separados judicialmente, divorciados ou
ex-companheiros, mas o estágio de convivência com a criança ou o
adolescente precisa ter sido iniciado durante o relacionamento. Nesse
casos também é necessário comprovar o vínculo de afinidade e afeto
com ambos os adotantes (art. 42, § 4º, ECA).

9.2. Questões importantes: como fica o nome? A adoção pode ser


revogada?
Como já mencionado, a adoção é um ato de amor que gera, por meio de decisão judicial,
linha de parentesco e filiação civil e a “posição de filho adotivo é definitiva e irrevogável,
para todos os efeitos legais” (MACIEL, 2019b, p. 262). A característica da
irrevogabilidade da adoção tem a ver com o princípio da igualdade entre os filhos: se
pais biológicos não podem revogar sua condição parental, pais adotivos também não
(art. 39, § 1º, ECA).

Outra característica importante é a excepcionalidade: somente nas situações em que


não for possível a manutenção da criança ou do adolescentes em sua família natural ou
em sua família ampliada ou extensa que a adoção é cogitada.

A adoção rompe com todos os vínculos familiares anteriores, com exceção do


impedimento para o matrimônio (art. 41, ECA). Quer dizer, mesmo após a adoção, a
criança ou adolescente não poderá se casar com parentes biológicos (veja o que diz o
art. 1.521, Código Civil).

37
O vínculo da adoção prevê a mudança no registro civil de quem foi adotado (nova
certidão de nascimento), fazendo constar os nomes dos adotantes como pai e mãe e,
assim, acrescido o sobrenome dos adotantes em seu registro (art. 47, § 1º, ECA). A lei
autoriza inclusive a mudança do prenome (primeiro nome), após ouvir o adotado (art.
47, §§ 5º e 6º, ECA), mas a iniciativa precisa ser analisada com muita cautela. O nome
é o primeiro sinal de identidade e é um elo pelo qual mantemos vínculo com nossa
história e com o que somos. Se a mudança do prenome for desejado pelo adotado e se
preservada sua dignidade, identidade e integridade emocional e psicológica, poderá ser
autorizado pelo juiz. Mas, se a mudança for trazer constrangimento ou sofrimento ao
adotado, com vistas ao princípio do melhor interesse, o nome será mantido.

É medida
Obrigatoriamente excepcional Cria novo vínculo
exige a perda do familiar
poder familiar dos
pais biológicos

Após sentença, é
irrevogável, mas pode haver ADOÇÃO Promove a
destituição do poder familiar
mudança de nome
do mesmo modo se fosse
família natural

Garante todos os Se for nacional,


direitos de filiação, permite a guarda
inclusive de herança Proíbe que durante o processo
e previdenciários quaisquer registros de adoção
constem a
informação de que
o filho é “adotado”

Não é difícil imaginar que a criança ou o adolescente em família substituta ou em


acolhimento (familiar ou institucional) vivencie sentimentos como incerteza, ansiedade,
angústia e insegurança. Não são poucos os casos de abandono, maus tratos e de
experiência de violência dos mais diversos tipos. Estar disponível para uma família
substituta pressupõe que determinada criança ou adolescente passou por violações de
direito que não podem ser desconsiderados no âmbito de sua saúde psíquica,
emocional e mental. É, portanto, não apenas responsabilidade jurídica, mas também
ética e moral, que as pessoas que desejam adotar estejam preparadas para lidar com
o contexto do adotado. Qualquer criança ou adolescente, quando adotado trará consigo
suas histórias, seus tramas, sua personalidade e sua subjetividade.

Neste sentido, tanto a criança ou o adolescente como os pretendentes à adoção


precisam estar preparados para a nova vida juntos. Para tanto, o processo de adoção
prevê que os futuros pais participem de curso preparatório à adoção. O objetivo é
possibilitar que os pretendentes adquiram habilidades sociais, psicológicas e jurídicas
para o exercício da maternidade e paternidade responsáveis. No curso, os futuros pais

38
são chamados a refletir sobre possíveis idealizações quanto à maternidade e
paternidade e sensibilizados e estimulados a se candidatarem a adotar crianças ou
adolescentes a partir de determinados padrões (CAMPOS, s/d). É fundamental que
fique claro que a integridade da criança ou do adolescente é o que mais importa.

Por outro lado, a criança ou o adolescente também precisa ser preparado para a
convivência numa nova família por meio de atendimento psicossocial, com o objetivo de
dar-lhe segurança e suporte emocional. Mesmo que se conte com o estágio de
convivência, é importante a preparação prévia para o contato entre adotantes e adotado.

Vale lembrar que o estágio de convivência é obrigatório, sendo dispensando nos casos
em que o adotante tenha menos de um ano ou, se maior, já esteja sob a guarda dos
pretendentes a adotar (art. 46 e parágrafos, ECA). Se a adoção for por estrangeiro, o
estágio de convivência também é obrigatório, mas deve ser cumprido no Brasil (art. 46,
§§ 3º e 5º, ECA).

O ECA trata da obrigatoriedade de preparar a família e o adotante.


Vamos conferir?
Art. 197-C. Intervirá no feito, obrigatoriamente, equipe interprofissional
a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, que deverá elaborar
estudo psicossocial, que conterá subsídios que permitam aferir a
capacidade e o preparo dos postulantes para o exercício de uma
paternidade ou maternidade responsável, à luz dos requisitos e
princípios desta Lei.
§ 1º. É obrigatória a participação dos postulantes em programa
oferecido pela Justiça da Infância e da Juventude,
preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução
da política municipal de garantia do direito à convivência familiar e dos
grupos de apoio à adoção devidamente habilitados perante a Justiça
da Infância e da Juventude, que inclua preparação psicológica,
orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças ou de
adolescentes com deficiência, com doenças crônicas ou com
necessidades específicas de saúde, e de grupos de irmãos.
§ 2º. Sempre que possível e recomendável, a etapa obrigatória da
preparação referida no § 1º deste artigo incluirá o contato com
crianças e adolescentes em regime de acolhimento familiar ou
institucional, a ser realizado sob orientação, supervisão e avaliação da
equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude e dos grupos de
apoio à adoção, com apoio dos técnicos responsáveis pelo programa
de acolhimento familiar e institucional e pela execução da política
municipal de garantia do direito à convivência familiar.
§ 3º. É recomendável que as crianças e os adolescentes acolhidos
institucionalmente ou por família acolhedora sejam preparados
por equipe interprofissional antes da inclusão em família adotiva.

39
Uma preparação bem conduzida tende a evitar uma grave consequência da convivência
entre adotantes e adotado: a “devolução”. Por si só, a expressão nos causa
estranhamento e, porque não, certa repulsa. Seja pela má preparação dos adotantes ou
pelas dificuldades que podem brotar na convivência entre pais e filhos - algo que,
convenhamos, pode acontecer em qualquer família - infelizmente são situações
encontradas pelo país.

Muito grave, a “devolução” pode acontecer durante o estágio de convivência ou mesmo


após a sentença de adoção. Em casos assim, os adotantes estão sujeitos a serem
responsabilizados por abandono e cabe ação de destituição do poder familiar, além de
ação de indenização por danos morais.

As maiores consequências, sem dúvida, estão nas marcas que a rejeição deixa na
criança ou no adolescente. O adotado tende a reviver o abandono e a desenvolver
dificuldades em criar novas relações afetivas. A angústia de, mais uma vez, deixar de
ter uma família pode acarretar danos à saúde e integridade psíquica e moral, e até
mesmo física. Além do que, com a interrupção do novo vínculo, a criança ou o
adolescente pode ter perdido a chance de ter se encontrado com outra família (MACIEL,
2019b).

A “devolução” de crianças e adolescentes enseja ação de indenização


por danos morais. Confira a ação promovida pelo Ministério Público do
Paraná no link: http://crianca.mppr.mp.br/2019/07/152/ADOCAO-
Decisao-judicial-condena-devolucao-de-criancas-adotadas.html

9.3. O Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA)


O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) implantou o Sistema Nacional de Adoção e
Acolhimento (SNA) por meio da Resolução nº 289, de 14 de agosto de 2019. O sistema
resulta da junção do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e do Cadastro Nacional de
Crianças e Adolescentes Acolhidos (CNCA) que, com o SNA, deixaram de ser
alimentados.

O objetivo do SNA é consolidar os dados fornecidos pelos tribunais de justiça para


formar base única de informações sobre o perfil das crianças e dos adolescentes em
acolhimento (familiar e institucional) e disponíveis para adoção, bem como o perfil dos
pretendentes e o perfil desejado pelos mesmos à adoção (BRASIL, 2020b). O SNA
pretende dar celeridade aos processos de colocação de crianças e adolescentes em
famílias substitutas em todo o Brasil (BRASIL, 2020b).

Alguns dados publicados no Diagnóstico sobre o Sistema Nacional de Adoção e


Acolhimento (BRASIL, 2020b) são especialmente relevantes: um deles diz respeito ao
número de crianças e adolescentes disponíveis para adoção em relação ao número de
pretendentes à adoção.

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Relação entre o número de crianças e adolescentes cadastrados para adoção
e pretendentes cadastrados para adotar em maio/2020, por região

Região Crianças e adolescentes Pretendentes à adoção

Centro-Oeste 478 10% 2.262 7%


Nordeste 777 15% 4.510 14%
Norte 157 3% 979 3%
Sudeste 2.222 44% 16.004 50%
Sul 1.392 28% 8.553 26%
Total 5.026 100% 32.308 100%
Fonte: Baseado na Figura 16: Número de crianças/adolescentes e de pretendentes disponíveis
para adoção por região (BRASIL, 2020, p. 25).

De imediato, salta aos olhos a diferença entre o número de crianças e adolescentes


disponíveis para adoção e o número de interessados a adotar. Trata-se de um número
6 vezes maior! Não parece óbvio que, se existe muito mais pretendentes à adoção, o
número de crianças e adolescentes disponíveis deveria ser baixíssimo, talvez até
mesmo bem próximo de zero? Por que essa conta “não fecha”?

Neste ponto entramos em questões difíceis para o tema adoção, mas que precisam ser
enfrentadas. Um deles diz respeito à idade de crianças e adolescente, pois a maioria
dos pretendentes querem adotar crianças pequenas, preferencialmente até 3 anos de
idade. Para ilustrar, 78% das adoções realizadas entre 2015 e 2020 foram de crianças
com até 7 anos completos e apenas 6% de adolescentes (maiores de 12 anos
completos). A medida que a criança ou o adolescente vai ficando mais velho, suas
chances de serem adotadas diminui sensivelmente (BRASIL, 2020b).

Outro ponto está relacionado às preferências raciais dos pretendentes. Cerca de 47%
não desejam adotar criança ou adolescente de determinada cor/raça e pretos e
indígenas são os que menos interessam aos adotantes. Em contrapartida, em média
90% dos pretendentes não descarta adotar brancos. Ainda, a maioria absoluta dos
pretendentes não quer adotar criança ou adolescente com problemas de saúde ou
deficiências, mas 21% dos meninos e das meninas disponíveis para adoção são
portadores de alguma doença tratável ou deficientes (físico ou intelectual) (BRASIL,
2020b).

Também não podemos esquecer da morosidade do processo de adoção, e este é um


dos problemas que o SNA visa amenizar. A Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017
alterou o ECA e promoveu modificações no processo de adoção a fim de garantir mais
celeridade ao trâmite da ação. A partir da referida lei, o prazo máximo para conclusão
da habilitação dos pretendentes à adoção é de 120 dias, prorrogáveis por igual período,
mas mediante decisão fundamentada do juiz (art. 197-F, ECA). A intenção é que, daqui
a pouco tempo, possamos ver os resultados dessas mudanças.

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Mesmo assim, precisamos investir em maior conscientização para que futuros
pretendentes se abram para adotar crianças mais velhas e adolescentes, especialmente
negros (pardos e pretos). Além de ter valor jurídico, o cuidado é a base para o pleno
desenvolvimento de crianças e adolescentes, bem como o direito à convivência familiar
e comunitária são fundamentais para a proteção integral. Cabe aos atores do SGD
informar a sociedade sobre a adoção e os perfis tanto dos adotantes como dos
pretendentes à adoção, fazendo uso de ações de mobilização tais como palestras,
debates, mesas redondas, audiências públicas etc., para contribuir na construção de
uma visão não apenas sobre adoção, mas também sobre amor, afeto e dignidade. Se
laços de amor não dependem de consanguinidade - e esta é a máxima da adoção -
também não podem depender de raça, sexo ou idade.

Quer saber mais sobre adoção internacional? Verifique que o Brasil


promulgou a Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à
Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, conhecida como
Convenção de Haia, através do Decreto nº 3.087, de 21 de junho de
1999. A convenção tem por objetivo proteger crianças e suas famílias
contra os riscos de adoção ilegal a nível internacional. Não esqueça
que para a norma internacional, criança é toda pessoa menor de 18
anos.

Para não esquecer!


Direito à convivência familiar e comunitária

FAMÍLIA
NATURAL
Art. 25, ECA

Preferencialmente é a
família natural que deve
cuidar de crianças e
Se não for possível que a FAMÍLIA adolescentes. Não sendo
criança ou o adolescente EXTENSA OU possível, na ordem de
fique com sua família AMPLIADA preferência, é a família
extensa ou ampliada, o Art. 25, parágrafo extensa ou ampliada.
caminho é a família único, ECA
substituta.

FAMÍLIA
Preferencialmente SUBSTITUTA
NACIONAL Art. 28, ECA Destituído o poder familiar,
não sendo possível a
Se não for possível, abre-se criança ou adolescente
possibilidade para permanecer em família
INTERNACIONAL substituta, a adoção passa a
ser a alternativa.
ADOÇÃO
Art. 39, ECA
42
REFERÊNCIAS

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com ideação suicida. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura),
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concluída na Haia, em 29 de maio de 1993.
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4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança
e do adolescente vítima ou testemunha de violência.
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Adolescente.
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BRASIL. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de
direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.
BRASIL. Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores.
BRASIL. Lei nº 13.185, de 6 de novembro de 2015. Institui o Programa de Combate à
Intimidação Sistemática (Bullying).
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altera o art. 236 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990.
BRASIL. Lei nº 13.010, de 26 de junho de 2014. Estabelece o direito da criança e do
adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de
tratamento cruel ou degradante.
BRASIL. Lei nº 13.819, de 26 de abril de 2019. Institui a Política Nacional de Prevenção
da Automutilação e do Suicídio, a ser implementada pela União em cooperação
com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
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