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TRAGÉDIA SILENCIOSA E

SILENCIADA

Na maioria das vezes, não se espera um suicídio, uma morte que


sempre é violenta e chocante e que não é vista como uma forma
socialmente aceitável de morrer. A realidade da perda gradualmente
penetrará na vida das pessoas enlutadas, com sentimentos que
podem variar de tristeza e vazio à raiva, confusão e rejeição.

Suportar a dor ocasionada por um suicídio e elaborar o luto pelo


falecimento de um ente querido são tarefas existenciais muito difíceis.
A situação pode ser agravada por ter havido circunstâncias
estressantes antes do suicídio ou de circunstâncias que também
afetavam familiares e outras pessoas próximas ao falecido (Jordan,
2001; Jordan e McMenamy, 2004).

Após o choque inicial, vêm os sentimentos de culpa e de


responsabilidade pela morte. A ideia universal de que pais são
responsáveis pelas ações de seus filhos acrescenta boa dose de culpa
aos dilemas morais e sentimentais dos genitores – e dos cuidadores.
Ao mesmo tempo, o suicídio nos impõe a rejeição e o abandono de
parte do falecido. Isso costuma misturar e confundir a raiva com a
tristeza e, consequentemente, gerar mais culpa.

Choque
De modo geral, reagimos com surpresa e espanto frente a um suicídio.
Em muitos casos, o risco de suicídio sequer fora percebido. Isso pode
levar algumas pessoas à descrença em relação ao suicídio e à procura
de uma explicação para a morte. Sentimentos de vergonha reforçam

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essa atitude e pode-se criar, em torno da morte, uma aura de mistério
e incerteza que atravessa gerações.

Como, na maioria das vezes, o suicídio ocorre em casa, um familiar


terá encontrado a pessoa falecida. O retorno à consciência desse
momento doloroso, com aspectos mais chocantes da cena (flashback),
os pesadelos e o comportamento de evitação poderão ser recorrentes
e durar por longo tempo.

Ocasionalmente, aparecem ideias de horror ao imaginar os momentos


finais do falecido, sua dor para conseguir morrer e seu sofrimento
diante de eventual ― mas já tardio ― arrependimento pelo ato que
acabara de realizar.

É necessário lembrar, também, que, para algumas pessoas, os


sentimentos dolorosos desencadeados pela morte poderão agravar
transtornos mentais preexistentes. Para outras, a dor passará a ser
aplacada pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas.

Culpa
A culpa costuma ser acompanhada de constante ruminação e
autorrecriminação: “Como eu não percebi?”, “Eu deveria ter feito
alguma coisa, eu poderia ter evitado.”, “E se...?”. A culpa costuma ser
mais intensa quando, justificadamente ou não, um familiar sente que,
de alguma forma, entre ele e o falecido havia conflitos não
solucionados.

Culpa e remorso podem seguir, também, quando um familiar se dá


conta de que, inadvertidamente, se sente aliviado pelo fato de a
pessoa ter finalmente se matado, numa sensação de que, agora, todos
poderão descansar. Isso geralmente ocorre quando a pessoa que se
suicidou sofria de um transtorno mental ou de outra doença grave de
longa duração (Jordan, 2001).

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Raiva
A culpa transformada em raiva precisa ser suportada secretamente,
ou, então, expressada abertamente contra o falecido ou contra
outrem. Em um contexto de procura por culpados, pode-se imputar a
culpa ao psiquiatra, ao psicoterapeuta ou à equipe assistencial, os
quais passam a representar o papel do bode expiatório1. Essa
circunstância não costuma acometer o profissional com uma postura
que preza pela boa comunicação, disponibilidade e − notadamente
após um suicídio − humildade.

Desamparo
Os sentimentos de tristeza e de vazio são difíceis de suportar.
Costumam vir acompanhados de uma sensação de abandono e de
desamparo que o falecido impôs aos que aqui ficaram.
Questionamentos como “Será que ele não pensou em mim, nos
nossos filhos?” ou “O senhor não acha que houve muito egoísmo da
parte dele?” são comuns, entre tantos outros que procuram dar
significado a um suicídio.

Além de acolher esses sentimentos e questionamentos, precisamos


transmitir aos familiares, com sensibilidade e com cuidado, a ideia de
que a intensa dor psíquica de uma crise suicida costuma deixar pouco
espaço para a ponderação. Ver o suicídio como única saída costuma
ser tão frequente quanto fatal. O desapego à vida e aos entes queridos
é condicionado pela lente da dor e da constrição cognitiva. O suicídio

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Essa expressão originou-se de um ritual hebraico realizado no Dia da Expiação, Yom
Kippur, descrito na Bíblia no livro de Levítico. Dois bodes eram levados a uma celebração em
que um deles era sorteado e sacrificado. O outro, o bode expiatório, era tocado na cabeça por
um sacerdote que confessava todos os pecados dos israelitas. Posteriormente, o animal era
deixado ao relento, na natureza selvagem, levando consigo os pecados nele depositados.

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passa a ser visto como a única maneira de aliviar o sofrimento não
apenas de si, mas também das pessoas próximas.

A morte por suicídio precisa ser integrada, significativamente, à ideia


que fazíamos da pessoa e da nossa condição humana. Pode haver a
erupção de uma crise de valores, com questionamento existencial,
descrença e confusão em relação a prévias concepções religiosas. Para
algumas pessoas, questionar-se solitariamente sobre o porquê de um
suicídio passa a ser uma constante angustiante; a resposta definitiva
pode jamais ser encontrada.

Tragédia silenciosa e silenciada


Como as pessoas sentem-se pouco à vontade para conversar
intimamente sobre o ocorrido, simplesmente se calam. Os
sobreviventes também podem distanciar-sedas pessoas e não
perceber se alguém, eventualmente, se oferecer para ajudar. O
estigma social, a vergonha e o embaraço geralmente selam o
isolamento da dor e silenciam o assunto. O suicídio transforma-se
numa dor que não pode ser compartilhada. Em termos pessoais e
sociais, o suicídio é uma tragédia silenciosa e silenciada.

O suicídio pode ser muito assustador e confuso para uma criança. A


atitude natural dos adultos é de protegê-la do trauma. No entanto, o
silêncio poderá reforçar-lhe a conclusão fantasiosa de que foi a
culpada pela morte, ou de que outros adultos queridos irão
abandoná-la. É melhor ser aberto e honesto a respeito do ocorrido, na
extensão que a criança possa compreender o que lhe for transmitido,
bem como se expressar sobre o que ocorreu e o que está sentindo. É
preciso ficar atento às suas emoções e reações e às ideias que ela
tenha sobre a morte e o morrer (Fukumitsu, 2013; Scavacini, 2014;
WHO, 2008).

A reação de luto dos adolescentes pode diferir do que é observado em


adultos. Os adolescentes podem adotar uma postura parecida com a

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do papel de um genitor, ou uma conduta oposta, com reações
agressivas e desproporcionais, difíceis de serem inicialmente
compreendidas. Podem recusar-se, por exemplo, a participar de
celebrações religiosas, de visitas ao cemitério e, mesmo, de conversar
sobre o falecido. É comum, também, a recusa diante da sugestão de
auxílio psicoterapêutico. Na verdade, na maioria das vezes, algumas
dessas condutas, além de uma forma de expressão de revolta e raiva,
são tentativas de chamar atenção para si, para seu sofrimento
(Fukumitsu, 2013; WHO, 2008).

Entre os irmãos, pode haver, adicionalmente, culpa por uma discussão


recente, ou uma dor ainda maior pela perda de um confidente e por
visualizar um futuro que lhe parece, afinal, menos seguro. Os idosos
também sentem intensamente a perda de um neto, ou de um filho
crescido, ainda que morasse longe já há um bom tempo e que se
vissem menos (WHO, 2008).

O papel do profissional de saúde


O profissional de saúde deve preparar-se para oferecer apoio
emocional às pessoas enlutadas, propiciar um ambiente para isso,
identificar as que mais precisam de ajuda e providenciar-lhes o
atendimento apropriado. Assim que souber da ocorrência de um
suicídio, é aconselhável prontamente manter contato com a família
enlutada e, depois, se possível, comparecer ao funeral. O temor de ser
acusado ou hostilizado geralmente nasce de conflitos infundados em
relação à culpa e à responsabilidade pela morte do paciente.

A experiência mostra que a presença do médico é muito valorizada e


ajuda a consolar os membros da família. Se o profissional não puder,
ou se decidir não comparecer ao funeral, ele deve, no mínimo, enviar
condolências. É o que se espera, em geral, de um médico, solidarizar-
se com o sofrimento dos familiares de seus pacientes.

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Logo após a morte, algumas sugestões podem ser passadas aos
familiares quanto a alguns procedimentos que poderão, futuramente,
facilitar o processo de luto (Clark e Goldney, 1995):

• Dizer a verdade sobre a causa da morte evitará problemas


futuros, evitando os disfarces ou as dúvidas fantasiosas sobre o
ocorrido. O detalhamento do método usado para o suicídio não
é necessário e nem sempre é apropriado.
• Se possível, deve ser dada a oportunidade de visualização do
corpo durante o funeral. Se houver mutilação ou desfiguração,
talvez se decida manter o esquife fechado. Nesse caso, é
aconselhável que algum membro da família mantenha a posse
de fotos tiradas do cadáver. Isso, futuramente, poderá desfazer
fantasias de erro na identificação do corpo ou de traumas
sofridos no processo da morte.
• Pode haver futuro arrependimento se a família decidir não
realizar um funeral. Essa decisão impede que pessoas próximas
ao falecido iniciem seu processo de luto durante o funeral. Além
disso, a família enlutada deixa de receber o apoio usual de
parentes e de amigos que, com sua presença, demonstram
consideração e afeto à pessoa do falecido e aos outros membros
da família.

Em um momento oportuno, é aconselhável convidar os familiares


para uma reunião e conversar sobre o ocorrido. A confidencialidade
precisará ser mantida, a despeito das várias perguntas e
questionamentos que deverão aparecer. No entanto, aspectos
positivos do paciente, notadamente sua preocupação com a família e
suas tentativas de superar os problemas, podem ser lembrados em
termos gerais. Isso fortalece a aliança do terapeuta com a família e
traz informações que ajudam a ponderar, no processo de luto, os
vários aspectos relacionados à vida da pessoa falecida.

Embora saibamos existir um risco aumentado de suicídio nas famílias


que enfrentam um suicídio, isso não deveria ser enfatizado. O receio
de haver novo suicídio na família, no curto ou, mesmo, no longo prazo,
é uma preocupação frequente entre os familiares. Ainda que seja

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aconselhável ficar atento a reações de aniversário (épocas de
aniversário de morte de uma pessoa querida, paciente aproximando-
se da idade em que um ente querido morreu por suicídio), deve ser
enfatizado que uma história de suicídio na família não implica a
inevitabilidade de novos suicídios.

Procure diminuir a tendência de achar um culpado, focalizando a


conversa nos sentimentos dos participantes. Acolha, ouça com
atenção e nunca use chavões em suas intervenções (por exemplo,
fases do luto, o sofrimento que faz todos crescerem, o risco de novos
suicídios). Se você surpreender-se falando isso, cuidado, você
confundiu-se e saiu de seu papel.

Um aspecto a ser lembrado é que o profissional de saúde também


está chocado pela perda de um paciente. Pode estar sentindo-se
entre dois extremos: completamente culpado pelo suicídio ou
desejando livrar-se de qualquer responsabilidade. Logicamente,
nenhum desses extremos deveria reger sua postura perante os
familiares. Antes, seus conflitos a respeito do suicídio de um paciente
deveriam ser discutidos com colegas ou com um supervisor.

Posvenção
A fim de evitar a morbidade psicológica em pessoas que enfrentam as
consequências do suicídio de um ente querido, recomenda-se o que
se convencionou chamar de posvenção – várias medidas que
favoreçam a expressão de ideias e sentimentos relacionados ao
trauma, bem como a elaboração do luto. Nesse sentido, a posvenção
também pode ser considerada prevenção de suicídio.

Os grupos de autoajuda, formados por sobreviventes (tradução de


survivors, do inglês) enlutados após ocorrência de um suicídio, têm
sido reconhecidos como um meio valioso de posvenção, capaz de
ajudar emocionalmente familiares e amigos do falecido. Geralmente,
esses grupos são mantidos, em parte, por financiamento de governos

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e de instituições não governamentais, por doações ou pelos próprios
integrantes. Estes últimos são sua principal força-motriz (WHO, 2008).
Uma dissertação de mestrado revisou o assunto e fez sugestões para o
contexto brasileiro (Scavacini, 2011).

Impacto nos profissionais


Mesmo com toda habilidade clínica e dedicação devotada à profissão,
podemos perder um paciente por suicídio. Isso envolve abalos no
narcisismo e nos resquícios de onipotência que, por ventura, ainda
persistam. A perda de um paciente por suicídio costuma
comprometer temporariamente a autoestima pessoal e a sensação de
capacidade profissional. Ademais, há, no profissional de saúde, o
receio de ser acusado, e mesmo de ser processado, como responsável
pelo suicídio (Dulit e Michaels, 1992).

Embora dolorosas, e desde que não persistam por muito tempo, as


reações aqui mencionadas não devem ser consideradas patológicas.
Um complicador para a sua superação é que os efeitos ocasionados
por um suicídio, bem como algum grau de incapacitação que isso
possa causar, são frequentemente negados pelos profissionais.
Reconhecê-los seria, afinal, aumentar o sofrimento já causado pela
perda do paciente (Litman, 1965).

O processo de luto que se segue a um suicídio costuma ser


particularmente mais difícil e mais doloroso tanto para familiares e
amigos quanto para profissionais de saúde, pois combina sentimentos
de tristeza e de raiva ― esta última em reação à violência imposta pelo
suicídio. Afinal, uma das leituras que podemos fazer a respeito de um
suicídio é a do repúdio do falecido às pessoas que estavam mais
próximas dele e tentando ajudar. É o sentimento de raiva pela rejeição
sofrida e a dor pela perda de um ente querido que os enlutados pelo
suicídio têm dificuldade de suportar (Maltsberger, 1992).

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A recuperação psicológica do profissional que perdeu um paciente
por suicídio envolve a gradual elaboração de sentimentos
ambivalentes, de lembranças de diálogos e de ocorrências ao longo
do tratamento. De alguma forma, o vínculo outrora mantido com o
paciente precisa ser desfeito ou, mesmo, transformado, ao longo de
um processo de luto. Isso requer tempo, e o processo pode ser
incrementado por psicoterapia, discussões clínicas, conversas com
colegas e supervisão.

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REFERÊNCIAS

Clark SE, Goldney RD. Grief reactions and recovery in a support group
for people bereaved by suicide. Crisis. 1995;16(1):27–33.

Dulit RA, Michaels, R. Psychodynamics and suicide. In: Jacobs D.


Suicide and clinical practice. Washington: American Psychiatric Press;
1992. p. 43–53.

Fukumitsu KO. Suicídio e luto: histórias de filhos sobreviventes. São


Paulo: Digital Publish & Print; 2013.

Jordan JR. Is Suicide Bereavement different? A reassessment of the


literature. Suic Life Threat Behavior. 2001; 31:91–103.

Jordan JR, McMenamy J. Interventions for suicide survivors: a review of


the literature. Suic Life Threat Behav. 2004; 34:337–49.

Litman RE. When patients commit suicide. Am J Psychoter


1965;19:570–6.

Maltsberger JT. The implications of patient suicide for the surviving


psychoterapist. In: Jacobs DG. Suicide and clinical practice.
Washington: American Psychiatric Press; 1992, pp.169–82.

Scavacini K. Suicide survivors services and postvention activities in


Brazil [dissertation]. Stockholm: Karolinska Institutet; 2011.

Scavacini K. E agora? Um livro para crianças lidando com o luto por


suicídio. São Paulo: All Print; 2014.

World Health Organization. Preventing suicide: how to start a survivors


group. Geneve: WHO; 2008.

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