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o sangue da deusa i

kara dalkey
”não, não, tem asas como um morcego enorme!” o quinto homem sábio tentou
rodear a barriga com os braços e exclamou, ”deve ser um cavalo com uma grande
cilha!” o sexto, que colocara a mão na ampla testa do elefante, disse: ”não, irmãos,
estamos enganados. isto não é um animal, mas uma parede!” ao sétimo homem
cego haviam-lhe dado os testículos para agarrar e disse: ”estais todos enganados.
isto são apenas cabaças num saco de couro.”

algumas versões deste conto terminam com os sete homens cegos a lutar uns com
os outros até à morte por causa das suas discórdias. mas o monge budista escolheu
concluí-lo de uma outra maneira: ele disse que os cegos ficaram tão perplexos com
as suas respostas divergentes que não conseguiam acreditar que fosse o mesmo
animal. por isso cada um dos homens manteve a mão na parte em que primeiro
tocara, deslizando a outra mão ao longo do corpo do elefante até que encontrava a
mão do outro. ao fazerem isto, os homens cegos descobriram que embora cada
parte fosse diferente, juntas formavam uma só coisa. e apesar de mesmo assim não
serem capazes de apreender a forma completa da criatura, os cegos tiveram a
possibilidade de concordar que devia ser realmente uma criatura maravilhosa. eu
não falo apenas para encher o ar com a minha respiração, ou para vos ajudar a
passar o tempo com vacuidades agradáveis. gostaria que se lembrassem desta
história na continuação da vossa jornada. só se vê um lado da montanha de cada
vez. vede tudo o que puderdes, mas sabendo que nunca é tudo. que possais
caminhar na sombra da vontade divina, estranho.
gandharva
músico da corte do sultão ibrahim adilshah ii
capítulo i

carvalho: a mais possante das árvores, a mais real e santa. os antigos


consideravam-na a primeira de todas as árvores. mesmo agora, existem alguns que
vertem o sangue de animais sacrificados nas raízes do carvalho para obter as suas
bênçãos. a madeira de carvalho é considerada a materialização da força e da
resistência, e é muitas vezes queimada em fogueiras sagradas. os seus galhos são
usados para juntar ervas medicinais. um barco construído da árvore conhecida como
carvalho-vermelho, contudo, dá azar e encontrará o infortúnio...

setembro de 1597, ilhas amindivi, mar laccadive

thomas chinnery ergueu o olhar ao som da trovoada distante. não havia nuvens a
escurecer o céu opressivo de safira por sobre os mastros de the bear’s whelp.
soprou na tinta molhada da carta que estivera a escrever e pôs-se de pé. da
amurada do navio, podia ver a linha de palmeiras da costa da pequena ilha onde
haviam ancorado. não viu qualquer homem com pistola. o navio companheiro do
seu, the bear, estava fundeado a ocidente, mas o som viera de leste e norte.

- a escrever outra missiva à tua namorada, tom? - ouviu ele atrás de si e


estremeceu. o escocês, andrew lockheart, era um comerciante de lã, companheiro
do senhor bathwick, considerado um viajante experimentado e com fama de tratante.
também parecia estranhamente determinado a pressionar a sua amizade com
thomas.

- na verdade, não estou, senhor. É um relatório para o meu amo, o boticário geoffrey
coulter de londres. de onde veio aquele rugido?

os lábios de lockheart rodeados de barba negra esticaram-se num sorriso manhoso.

- pois eu penso que era uma dama rica a gritar: ”levai-me e serei vossa.”

- senhor, falais por enigmas.

- achas que sim? olha para o cimo das árvores longínquas, tom, onde ela acena com
o lenço para captar os teus olhos.

thomas fixou o olhar para onde apontava o escocês e viu a ponta de um mastro, que
arvorava um pendão com as cores de portugal, a mover-se para sul na direção da
ponta da ilha.

- minha nossa senhora - murmurou ele -, outra vez, não. um marinheiro na enxárcia
do whelp gritou:

- um galeão! não, dois! a avançarem com força!

os homens já corriam pela costa, abandonando as provisões que eventualmente


tinham recolhido. saltaram para os esquifes que estavam na praia e remaram como
demónios de volta aos seus navios. o capitão benjamin wood apareceu na coberta
da proa, com o cabelo ruivo ondulando ao vento.
- homens às velas! o bom deus manda-nos algo ao nosso engodo. se aproveitarmos
a brisa, apanharemos a caça lusitana. levantar âncora! Às velas!

- os homens ainda mal recuperaram do nosso último encontro - suspirou thomas.

- a cobiça é um remédio muito potente, meu rapaz, e dá vida às pernas de muitos


homens. a propósito disso, talvez tenhas de ir para baixo. as tuas poções e ervas
terão sem dúvida mais utilidade lá.

- não, os nossos homens disponíveis são poucos. pedirei ao contramestre uma


espada e entregarei os meus braços à luta.

lockheart franziu o sobrolho:

- muito bem dito, rapaz. mas não te devias poupar para o trabalho do teu amo?

- se formos derrotados por falta de homens - disse thomas -, terei poucas


oportunidades de faturar para o meu amo.

- É verdade. mas a dama da fortuna sorri. os navios lá de longe não têm grande
capacidade para nos enfrentar. e o capitão wood tem um plano engenhoso.

- como sabeis isso?

- porque fui eu que lho dei. - com uma piscadela de olho, lockheart atravessou o
convés para ajudar nas cordas. thomas foi para a escotilha entre os mastros, onde
um rapaz puxava espadas de um compartimento em baixo. mesmo os marinheiros
que se arrastavam fracos de escorbuto se levantavam para distribuir as armas e as
canecas de cerveja.

o navegador colocou-se na roda do leme e puxou-a para bombordo. a vela mestra


desenrolou-se com um craque pesado e virou para apanhar a brisa de norte.
lentamente, o whelp avançou para mar aberto. o bear, alguns comprimentos atrás,
afastou-se da ilha num ângulo mais para sul.

thomas emborcou a sua caneca cheia de cerveja amarga de uma só vez. É bálsamo
dado antes da ferida. remédio para entorpecer os sentidos para aquilo que se deve
seguir. ele podia ouvir as ordens constantes de tiroteio a serem gritadas abaixo do
convés, e o ribombar e o estrondo das colubrinas a serem preparadas. as pequenas
bombardas e peças de artilharia do convés principal estavam a ser carregadas com
o pouco que restava de munições. thomas trocou a caneca de cerveja por um cutelo
e uma grande pistola escalavrada e foi-se encostar à amurada.

os senhores allen e bromefield, os mercadores encarregados da viagem, passaram


por thomas com os rostos ensombrados pela irritação. ouviu-os discutir com o
capitão wood, que não tinha nada a ver com aquilo.

É verdade, pensou thomas, nunca pensei vir a tornar-me mais pirata que boticário.
se eu tivesse querido que a pilhagem fosse o meu modo de vida, teria sido aprendiz
do almirante raleigh.

quando o whelp surgiu da parte de trás da ilha, thomas teve a sua primeira visão da
presa. seguindo o vento, à procura de um campo mais aberto, apareceu um
pequeno galeão ostentosamente dourado de umas trinta toneladas. no entanto,
assomava-se por detrás dele a maior carraca portuguesa que thomas alguma vez
vira; mais de cem pés de comprimento e mil toneladas, com um mastro principal
mais alto que qualquer árvore natural, e com os lados brilhantes de canhões.

estamos feitos, pensou thomas.

a um grito vindo de baixo, as quatro vigias de canhões do whelp saudaram os


recém-chegados com vozes tonitruantes. através do fumo acre, thomas viu aparecer
um corte numa vela do galeão e fendas na madeira do bojo mesmo por cima da
linha de água. a tripulação do galeão estava espantada com o aparecimento do
whelp, e correram pelas cobertas como formigas assustadas.

- apanhamo-los a dormir a sesta - disse nathan, o aprendiz de carpinteiro do navio.

- É o que parece - disse thomas. - e poderá ser isso que nos salve. - o whelp estava
a passar a leste do galeão e a enorme carraca também virou na mesma direção,
como se quisesse colocar-se entre o galeão e o whelp.

- este é rico - disse nathan, com os olhos ainda no galeão. - um mercador particular,
talvez com rubis e esmeraldas para as suas senhoras em lisboa.

- sim - murmurou thomas -, e uma escolta poderosa para o guardar. - ele via que
metade das dezesseis vigias de canhões da carraca estavam preparadas e
equipadas e, enquanto ele observava, mais vigias se iam abrindo.

a bombarda da popa do whelp disparou um último tiro para o galeão que passava. a
tripulação aprontou as velas para dar outra oportunidade às colubrinas de
dispararem. como uma montanha nascida da água, a carraca aproximou-se,
elevando-se acima deles.

os canhões do whelp dispararam outra vez e, por boa pontaria ou sorte, uma das
balas partiu o mastro da vela do traquete da carraca, fazendo cair pano e corda
sobre a coberta. ouviram-se gritos de júbilo dos marinheiros ingleses.

mas quando a carraca passou à popa, as suas colubrinas responderam. choveu tiro
de canhão e thomas atirou-se para a coberta. o navio oscilou e um fumo acre
rodopiou à sua volta.

- estou ferido! - gemeu nathan.

- maldito sejais, capitão wood - resmungou thomas enquanto rastejava para junto de
nathan. a camisa do rapaz mostrava um rasgão sangrento. - está quieto, nate, senão
vais rasgar a ferida.

- ainda estou bom para lutar. - o rapaz recuou para se sentar. - não vou desistir da
minha parte da pilhagem.

- há coisas mais valiosas do que ouro e rubis - disse thomas, rasgando a camisa do
rapaz para fazer uma ligadura.

ouviu-se outro lançamento, mas não da carraca nem do whelp. thomas espreitou por
cima da amurada e percebeu qual fora o ”plano matreiro” de lockheart. o bear, por
detrás e para sul, estava agora bem posicionado para apresentar o costado à
carraca.

a tripulação do whelp estava a lutar com as cordas das velas a fim de se


restabelecer novamente. a carraca e o galeão ficariam presos entre os dois navios
ingleses mais pequenos e mais rápidos. uma bela armadilha, não há dúvida, pensou
thomas, se nós não formos afundados primeiro.

um tiro da coberta da proa arrancou o gurupés do bear e parte do castelo da proa


superior. dois elegantes pequenos canhões de bronze do castelo da popa vomitaram
fogo... e a carraca portuguesa perdeu o seu mastro de mezena.

- estão a disparar contra a sua própria escolta! - disse nathan, segurando-se de lado.
- endoideceram?

- ou será que percebemos mal a sua relação? - cismou thomas. - não sei. - lockheart
apareceu na direção do cotovelo direito de thomas, observando a cena. - não me
digais, senhor - disse-lhe thomas -, que a loucura do galeão fazia também parte do
vosso plano matreiro.

a boca do escocês torceu-se num sorriso pesaroso:

- o bom deus ajuda aqueles que se ajudam a si mesmos, está escrito.

do outro lado da água, a tripulação do galeão e da carraca gritavam uns para os


outros. a carraca apertou as suas velas e carreou, passando pela proa do
atrapalhado bear.

- vai-se embora! - disse nathan.

- deixando a sua carga, se assim o era, para trás - disse thomas -, mas que cobardia
horrorosa.

- eu apostava - disse lockheart - que a carraca não era protetora mas perseguidora.
vedes as cicatrizes na filigrana do galeão? até parece que a carraca lhe acertou um
tiro ou dois antes de nós.

- quereis dizer, senhor - disse nathan -, que fomos a salvação de alguém?

o elegante canhão de bronze do galeão disparou outra vez, com as balas a


arrancarem uma parte da amurada perto do sítio onde eles se agachavam.

- sim - disse lockheart, ousando erguer mais uma vez a cabeça. - e está tão grato
como um tigre libertado da sua armadilha.

o whelp e o bear dispararam em conjunto contra o galeão, causando uma barafunda


de mastros, cordame e velas. nenhum dos navios ingleses estava em condições de
perseguir a carraca fugitiva, por isso fecharam-se sobre o galeão desafortunado. a
tripulação do whelp atirou cordas de atracagem e içou-se lá para dentro. a tripulação
do galeão, muitos deles árabes de turbante e hindus de pele escura, olhavam
silenciosamente no meio da confusão de panos, madeira e cordas.

- achas que consegues ir para lá lutar, nathan? - disse thomas.

- como os melhores - replicou o rapaz.

- bravo moço! - disse lockheart. - e tu, tom?

os anos passados na loja do mestre coulter a misturar unguentos malcheirosos e


poções não tinham preparado thomas para carnificinas corpo a corpo. mas haviam-
lhe ensinado a levar a cabo tarefas desagradáveis.

- se tiver de ser.

lockheart deu-lhe uma pancada no ombro com uma mão larga.

- então que os fados sejam amáveis contigo.

- rendeis-vos? - gritou o capitão wood para o galeão cativo -, ou fazemos a


abordagem e sereis obrigados a isso pela força?

um grito não terreno elevou-se de muçulmanos e hindus. os marinheiros


portugueses cortaram as cordas de atracagem com as suas facas.

as pranchas de abordagem foram atiradas do whelp para as amuradas do galeão e


os marinheiros ingleses treparam-nas.

thomas murmurou juras entrecortadas com a respiração e avançou, com a pistola na


mão esquerda e o cutelo na direita.

quando se escondeu debaixo de uma vela caída, uma faca curva surgiu em frente
da sua garganta. ele atirou-a com o cutelo e atirou-se para diante, mas o inimigo
desaparecera. thomas deu consigo em pé no meio de um emaranhado que parecia
uma floresta imobilizada pelo nevoeiro. os mastros estavam derrubados como se
fossem árvores caídas e as cordas subiam pelos seus tornozelos como videiras. o
pó da pólvora ardia-lhe nos olhos. as sombras de homens nas velas confundiam-lhe
a visão. os gritos e gemidos rodeavam-no. aqui e ali uma bala de pistola assobiou
passando por ele como uma abelha zangada.

um muçulmano saltou para a frente dele, com a espada pronta e os olhos brilhantes.
thomas recuou, erguendo o cutelo quando o seu opositor desferiu a arma. thomas
repeliu o ataque do mouro, mas tropeçou e caiu para trás sobre uma massa de
cordas e velame. o mouro sorriu e saltou para mais perto a fim de se aproveitar da
queda de thomas. este ergueu a sua pistola.

houve um grito que se sobrepôs aos outros. foi seguido de uma longa declaração
numa língua que thomas não compreendeu. seguiu-se um silêncio profundo. o
muçulmano baixou a espada com o sobrolho carregado e afastou-se.

o capitão wood, algures atrás dele, gritou:

- desistam, homens! eles renderam-se!

thomas suspirou profundamente com alívio e espreitou por um rasgão na vela ao


seu lado.

os marinheiros portugueses e os muçulmanos estavam a depositar as armas no


convés, olhando para o castelo da proa. os hindus pressionavam as testas contra o
convés em oração. thomas enfiou mais o pescoço e viu, no castelo da proa, uma
mulher alta e elegante. vestia um sari de seda carmim com fios dourados que
brilhavam. a sua pele era castanha-clara, mas os olhos eram espantosamente azuis.

eis aqui uma rara maravilha. será que este navio é dela e que ela consegue
comandar estes homens? será que é a filha de um mercador rico? e porque é que a
carraca a perseguia?

a mulher fez uma vênia ao capitão wood e falou com ele, tendo como intérprete um
dos marinheiros hindus. embora o capitão anuísse com a cabeça, de queixo na mão,
parecia ter dificuldade em compreender. alguns minutos depois, o capitão despediu
o intérprete com a mão e ele próprio acompanhou a senhora até ao whelp.

com a sua partida, um feitiço invisível quebrou-se no convés do galeão, e os homens


começaram a mexer-se e a falar outra vez. de ombros caídos, a tripulação do galeão
dividiu-se; alguns para tentar a sorte alcançando a segurança nos dois pequenos
esquifes do galeão (principalmente os portugueses orgulhosos e os muçulmanos),
outros escolheram velejar com o whelp e o bear. entretanto, os marinheiros ingleses
abriram as escotilhas que davam para o porão do galeão e começaram a pilhagem.

thomas saiu do seu ninho de cordame e seguiu para o castelo de popa. também
poderei procurar a minha justa parte. o mestre coulter há-de querer algum lucro
desta infeliz viagem. pelo menos não entraria muito em competição com os outros
marinheiros, pois que buscava não era ouro nem sedas.

À medida que se aproximava do castelo da popa, thomas sentiu uns puxões nas
suas calças. um hindu com o cabelo negro atado ajoelhou-se à sua frente, pedindo
algo desesperadamente na sua língua macia e líquida. alguns homens da tripulação
do whelp surgiram da porta do tombadilho, carregando arcas de madeira e jarros
que cheiravam a resinas aromáticas e a especiarias. o hindu fazia gestos na sua
direção à medida que falava.

- o que queres, homem? - disse thomas. - eu não posso impedi-los.

lockheart apareceu à porta com um braçado de sedas coloridas e panos de chita.


- sabeis, senhor, o que este gentio está a dizer? - perguntou thomas.

sem parar, lockheart respondeu:

- ele diz para tirares o que quiseres da maldita carga lá em baixo. ficam melhor livres
dela.

thomas olhou para as costas largas do escocês. as vezes gostaria que ele não
gozasse tanto. embora seja possível que o hindu não tenha amor nenhum a quem
servia. thomas disse algumas palavras que esperou pudessem acalmar o homem e
entrou pela porta. foi descendo por umas escadas apertadas até à parte de baixo do
convés. virou e entrou num corredor cheio de marinheiros a passar, cada um deles
com os braços e os bolsos carregados. na penumbra, thomas viu uma passagem
livre que levava mais longe à proa e dirigiu-se para lá.

- não precisais de vos dar ao trabalho de ir nessa direção - gritou um marinheiro. - já


rebuscamos. está vazio.

thomas aquiesceu, mas mesmo assim continuou, preferindo o corredor tranquilo à


rapina da multidão na passagem principal. continuou passando pelo leme e
descobriu que o corredor acabava numa janela de vitral à popa. mesmo por debaixo
dele ficariam os alojamentos principais do capitão ou do proprietário do navio. as
instalações da tripulação deviam ser mais à frente e o armazenamento na
plataforma por baixo. thomas encostou-se à janela, observando o caminho por onde
viera.

À medida que os seus olhos se ajustavam à luz, reparou numa porta à sua direita,
com emblemas entalhados de caça e uma orla de rosas de oito pétalas. thomas
carregou no cabo do puxador de marfim e abriu a porta. levava a um quarto que
continha uma mesa comprida e várias cadeiras pesadas de carvalho trabalhado e
couro. em cima da mesa encontravam-se algumas taças, mas o quarto estava
desocupado.

thomas entrou, fechando a porta atrás de si, agradecido por ter alguns momentos de
paz. afundou-se pesadamente numa das cadeiras e fechou os olhos.

ouviu o arrastar de outra cadeira contra o chão e levantou-se outra vez, com os
olhos bem abertos. não havia mais ninguém no quarto. será que este navio está
assombrado pelas sombras daqueles que foram despachados muito recentemente?
voltou a ouvir-se o arrastar, mas agora conseguia localizar o som por detrás de uma
parede à sua esquerda. mas ali devia ser a casa do leme. uma olhadela pelo quarto
disse-lhe que este era mais pequeno do que o comprimento do corredor lá fora.

a parede à sua esquerda tinha um lambril profundamente trabalhado mais uma vez
representando cenas de caça. reparou num pássaro que parecia estar mais saliente
que os ramos e as folhas à sua volta. tirando a pistola da cinta, thomas aproximou-
se silenciosamente da parede. deu uma volta ao pássaro como se fosse um puxador
e a porta abriu-se para dentro. suavemente, entrou.
era uma salinha pequena, onde um homem elegantemente vestido estava sentado a
uma secretária. vestia uma casaca de veludo preto, mangas debruadas a dourado e
um rufo largo de linho fino e duro, debruado a renda. tinha uma barba preta limpa e
pontiaguda e olhos pretos que pareciam cansados, mas sem medo. na sua mão
direita tinha uma pena de escrever e a sua mão esquerda repousava na tampa de
uma caixa de madeira.

- deixai isso como está - disse thomas, acenando com a pistola para a caixa. receou
que o outro também tivesse uma arma. esperou que o homem o compreendesse.

o homem de barbas retirou lentamente a mão e sorriu com os lábios apertados.


disse qualquer coisa em português que podia muito bem ser uma desculpa educada.
thomas desejou que lockheart estivesse por perto; o escocês parecia conhecer
qualquer idioma da terra.

- levantai-vos daí. devagar - fez o gesto com a pistola. o homem barbudo pousou o
aparo e levantou-se. começou a andar à volta da mesa, na direção de thomas, que
levantou a pistola, esperando não ter de matar um homem desarmado.

- ei, bom trabalho, tom! - sully, o contramestre, apareceu na porta que ficava por trás.
- vejo que capturaste o nosso feiticeiro.

- feiticeiro? - a palavra, segundo a experiência de thomas, podia querer dizer muita


coisa desde um homem que convocava demônios até ao astrólogo de sua
majestade, ou mesmo até alguém que tivesse uma afeição demasiado grande por
gatos. mesmo os boticários como o seu mestre, geoffrey coulter, eram por vezes
acusados de feitiçaria por clientes e homens do clero.

- sim, soubemos que ele é procurado pelos inquisidores de goa. era por isso que a
carraca os perseguia.

thomas não via nada na pequena salinha que sugerisse as artes obscuras.

- então este barco é dele?

- sim, por isso o capitão wood quer que ele seja tratado com respeito.

- então e a senhora que parou a luta?

- bem, agora pode haver muitas perguntas à espera de resposta, não é? este tinha
alguma coisa de valor? mapas ou diários de bordo, por acaso?

- nós tínhamos acabado de nos conhecer.

- pois, aposto que ele não te daria isso a ti. tiro-te o sujeito das mãos ou queres a
glória de seres tu próprio a trazê-lo?

- podeis levá-lo. eu vou procurar um pouco mais.

- então, boa caça. vinde, senhor, conhecer a hospitalidade do capitão wood.


o feiticeiro português olhou fixamente para o contramestre e murmurou palavras frias
e precisas.

- as vossas maldições não têm efeito em mim, senhor disse sully. - sou um
marinheiro inglês e já ouvi as piores maldições possíveis. vamos lá.

thomas desviou-se e permitiu que o contramestre escoltasse firmemente o


cavalheiro. assim que eles se foram embora, thomas foi até à secretária e
esquadrinhou-a. ao lado da pena caída havia uma folha de pergaminho. só tinha
algumas palavras escritas, mas thomas não reconheceu a língua. voltou-se para a
caixa de madeira.

era do comprimento da sua mão e da largura da sua palma, feita de madeira escura.
no cimo tinha desenhos geométricos esculpidos. thomas empurrou o gancho de
latão da abertura e abriu a caixa.

no interior, dentro de um revestimento de seda preta e dourada encontrava-se uma


garrafa rolhada de vidro iridiscente. no interior da tampa da caixa havia um papel
dobrado. ao tirá-lo, thomas viu que o interior da tampa tinha duas serpentes
esculpidas em torno de um bastão - um caduceu. thomas abriu o papel dobrado e
viu várias linhas escritas. a parte de cima era em grego e thomas abençoou a sua
educação, pois sabia lê-lo. ”a mordedura de uma serpente para aquele que respira.
uma pele de serpente para aquele que não respira.” uma adivinha ou talvez uma
maldição, pensou thomas. as outras linhas já não conseguia ler, embora tenha
reconhecido a segunda como sendo árabe. dobrou o papel e voltou a pô-lo debaixo
da tampa da caixa. será que isto é uma poção mágica? uma droga? curativa ou
venenosa? thomas fechou a caixa e pô-la dentro da sua casaca. se for um remédio,
aprenderei com ele. outros poderão escolher a sua parte da pilhagem de hoje. esta
será a minha.

capítulo ii

pilriteiro: esta pequena árvore espinhosa tem flores pálidas no auge do verão e
bagas vermelhas no outono. diz-se que a coroa de espinhos de nosso senhor era
feita dos ramos desta árvore, e é por isso creditada como tendo muito poder contra a
bruxaria. ter pilriteiro em casa protege dos fantasmas e do raio do trovão, no entanto
também se diz que o pilriteiro em casa traz azar e morte...

setembro de 1597, colÓnia portuguesa de goa

o padre antónio gonsção, enviado especial do conselho supremo do grande


inquisidor de lisboa, estava de pé junto de uma janela da santa casa. para seu alívio,
a paisagem à sua frente não ondulava como o mar.

por debaixo da janela ficava a praça da catedral, uma praça ampla como a de
qualquer cidade européia. do outro lado da praça erguia-se a catedral de santa
catarina, cuja fachada era embelezada com esculturas de santos e as suas duas
torres quadradas subiam modestamente em direção ao céu. dois golfinhos de pedra,
gêmeos, jorravam água alegremente na fonte da praça. para oeste ficava a
misericórdia, o hospital dirigido pelos jesuítas. o resto da praça era rodeado por
casas avarandadas de dois andares com telhados de telha vermelha. À distância,
belas terras com pomares e jardins alindavam as encostas. na aparência, a vista
podia ser quase a de um porto próspero em portugal. não fossem certas diferenças;
diferenças que perturbavam gonsção.

a praça estava cheia de gente; mestiços fidalgos, que vestiam veludos e rendas,
passeando com um rapaz atrás para transportar a espada, outro para transportar um
guarda-sol, e ainda outro trazendo uma almofada. os senhores nobres faziam vênias
uns aos outros, tirando os chapéus com gestos grandiosos e alargados. isto tinha
tanto de cortesia como de competição, pois era considerado rival o homem cuja
vênia não fosse suficientemente baixa, ou sugerisse troça. as senhoras seguiam em
palanquins dourados transportados por escravos com peles de coloração não
ibérica. muçulmanos, judeus, homens de olhos oblíquos da longínqua china, persas,
hindus, juntamente com todo o tipo de europeus, passavam lá em baixo, subindo e
descendo a rua direita, indo e vindo debaixo da pedra negra do arco de vice-reis que
se virava para o rio mandovi.

o ar transcendia ao cheiro de flores tropicais, aves coloridas guinchavam cantos


desconhecidos. era tudo demasiado luminoso, demasiado variado, demasiado vivo;
os sentidos de gonsção sentiram-se sob ataque.

recordou uma mulher, a filha de um vizinho da rua onde vivera em lisboa. quando
rapaz, admirara o seu cabelo cor de mel-escuro e o seu rosto doce. mas anos mais
tarde ela foi trazida perante ele para julgamento, vestida com um roupão de seda
vermelha e roxa, acusada de prostituição e feitiçaria. goa fazia-lhe lembrar essa
mulher; a beleza pintada com devassidão, a corrupção a minar debaixo de tudo.

os colonos portugueses de goa tinham sido incentivados a casarem com as nativas,


na esperança de produzirem conversões em massa. mas em vez disso, a verdadeira
fé conseguira apenas apropriar-se precariamente das almas de goa, de tal modo
eram enganadores o ambiente e as influências estrangeiras. a heresia e o
paganismo andavam sempre à superfície como sereias das profundidades. só a
santa casa, a sagrada inquisição, permanecia como um baluarte perante as marés
que de outro modo engoliriam os fiéis. e mesmo essa santa instituição, ao que
parecia a gonsção, sofria de algumas fendas. e eu sou enviado para fortalecer os
seus pilares. estive demasiado tempo no mar, murmurou com um sorriso interior. até
os meus pensamentos cheiram a peixe.

ouviu passos que se aproximavam e voltou-se da janela. era domine rui sadrinho, o
inquisidor-mor. era alto e muito magro, talvez com 40 anos. o rosto acima da sua
barba preta bem aparada era salpicado e manchado com cicatrizes de alguma
antiga pestilência. gonsção inclinou a cabeça na sua direção.

- domine.

- bom dia, padre. espero que tenhais recuperado da vossa longa viagem. as vossas
acomodações são satisfatórias?

- são muito confortáveis, obrigado. e estou contente por poder afirmar que o chão
parou de balançar quando caminho. mas dizei-me, domine - gonsção puxou o
colarinho do seu pesado hábito branco de dominicano -, aqui é sempre assim tão
quente?

- na verdade, padre. sempre.

- mesmo quando chove?

- especialmente quando chove. então fica quente e úmido.

- e à noite?

- então é quente e escuro, padre.

- e os mosquitos, domine...

- também estão sempre conosco. o diabo está muito ocupado nesta parte do mundo.
as pestes e as pestilências abundam aqui.

tal como está escrito na vossa cara, pensou gonsção, e depois censurou-se.

- pois assim me disseram. mas porquê assumir que é o trabalho do demônio? uma
praga poderá ser um ato de deus.

o inquisidor-mor olhou espantado, depois desconfiado:

- de certeza que nosso senhor é mais piedoso do que isso. não, não estou a tentar
armar-vos ciladas, pensou gonsção, por enquanto. tentou fazer um sorriso
desarmante.

- apenas uma meditação vulgar, domine. suportarei este clima com paciência, se
tiver de ser.

- penso que descobrireis que a nossa santa casa tem confortos melhorados para
oferecer, padre. este edifício, faço notar, era o palácio do adilshah de goa, antes de
as nossas gentes chegarem. guardamos alguma da sua mobília... estão na ala
residencial. esta câmara era o seu salão do trono.

a mesa do santo ofício na verdade ainda retinha alguma semelhança com a


majestade anterior. o vestíbulo comprido e de teto alto era ladeado por falsos arcos
decorados com arabescos e tapeçarias delicadas em faixas de cor azul e amarelo-
limão. dominando a parede de leste havia um enorme crucifixo de madeira. um
estrado com degraus enchia o centro do vestíbulo. no estrado havia uma mesa
longa rodeada de cadeirões forrados de brocado de seda vermelho. numa das
pontas da mesa via-se um simples banco de dobrar.

- posso pedir que vos acompanhem numa volta pelo edifício, se assim desejardes -
prosseguiu sadrinho.

- obrigado, mas não estou aqui em viagem de prazer, domine, e as tarefas que me
estão destinadas pesam terrivelmente. gostaria de começar os meus inquéritos o
mais depressa possível. o grande inquisidor albrecht tem uma grande preocupação
pelos vossos problemas aqui. a vossa carta tocou-o profundamente.

sadrinho olhou para o chão.

- alegra-nos saber que o grande inquisidor se preocupa com um posto tão distante
da santa casa.

- as ovelhas mais afastadas do rebanho são aquelas pelas quais o pastor tem de ter
mais cuidado, não é assim?

mais uma vez o inquisidor-mor pareceu desconfiado.

- não nos surpreendeu que ele fosse tão generoso ao ponto de nos mandar um
enviado especial para... nos ajudar.

ah. então a vossa carta era apenas uma lista de desculpas e não um pedido de
auxílio? desde que o governador manuel coutinho voltara vergonhosamente para
lisboa, o grande inquisidor andava preocupado com as relações entre a santa casa e
o governo colonial de goa.

sadrinho suspirou:

- no passado, os governadores tiveram a tendência para não nos prestar atenção.

gonsção aquiesceu em simpatia:

- a riqueza e o poder cegam os homens para os pensamentos da fé.

- a feitiçaria e os ritos demoníacos são mais do que cegueiras, padre.

- É verdade. a feitiçaria é uma acusação séria. o fato de primeiro coutinho e agora,


este ano, o vice-rei albuquerque terem sido mandados para a pátria acusados dessa
prática perturbaram muito o grande inquisidor.

- É o ambiente deste lugar, padre. faz nascer heresia que nem moscas em fruta
podre. mas a vossa chegada é na hora certa. descobrimos alguns dos que estão
envolvidos na cabala pagã que corrompeu coutinho.

- ah, excelente. que espécie de homens compõem esta cabala?

- um era um médico muçulmano chamado zalambur. infelizmente foi encontrado


morto, envenenado, antes de o podermos interrogar. suspeitamos que se tenha
suicidado. mas temos a sua amante como nossa convidada aqui. vamos entrevistá-
la outra vez esta noite, se estiverdes interessado em assistir.

ele oferece isto como se fosse um entretenimento.

- isso poderá vir a ser bastante... informativo, domine. houve outras pessoas
envolvidas?

- sim. um alquimista e feiticeiro português chamado bernardo de cartago. tentou fugir


de goa por barco, mas penso que nos vá ser devolvido em breve. e há outra pessoa
que talvez esteja com ele; uma mulher que é a mais misteriosa do círculo, mas
talvez a mais influente. conhecemo-la como aditi, embora já tenha ouvido referenciá-
la como manasadasa, que significa servidora da deusa serpente.

- um título de mau presságio. sadrinho abanou a cabeça:

- para os hindus não. eles consideram a serpente como um símbolo de sabedoria e


imortalidade.

- nosso senhor uma vez também disse ”sejam espertos como serpentes”, mas não
me parece que ele quisesse que as adorássemos ou servíssemos.

- foi? - disse o inquisidor com um olhar fascinado.

- está nas escrituras, domine. evangelho de são mateus. certamente que estais
recordados dos vossos estudos religiosos.

reparo que tendes algum conhecimento das crenças nativas.

meio encolhendo os ombros, o inquisidor disse:

- no nosso trabalho, uma pessoa vai aprendendo coisas. quanto à mulher, é o nome
aditi que nos traz preocupados. É o nome de uma deusa dos céus hindu, mas tem
também a conotação de libertação. há rumores de que esta mulher tem o apoio dos
maratas.

- maratas? quem são esses?

os olhos do inquisidor abriram-se mais:

- ah, mas eu esqueço-me que sois novo nesta região e não conheceis as suas
políticas. os maratas encontram-se entre as famílias hindus mais ricas e mais nobres
daqui. são de uma casta guerreira superior, e a sua cooperação é crucial para o
domínio de portugal sobre goa, no entanto sabe-se que eles têm fortes ligações às
famílias governantes de bijapur.

- estou a ver. então estas corrupções podem significar para eles mais do que a
simples difusão de práticas demoníacas. - gonsção confirmou com a cabeça:

- fizestes um bom progresso nisto, domine. o grande inquisidor irá ficar satisfeito.
dizei-me, como vão as relações com o vosso novo governador, dom francisco da
gama? ele honra o nome do seu ilustre avô?

- não fez nada que o manchasse. e respeita a santa casa.

- fico satisfeito por saber isso.


- por favor, perdoem-me, senhores - chamou um jovem rapaz de pele escura junto à
porta do outro lado do vestíbulo, com uma pronúncia de português com uma tônica
musical. chegaram sua excelência o arcebispo aleixo de meneses e o capitão pedro
ortiz e solicitam a vossa audiência.

sadrinho disse ao rapaz:

- muito bem. iremos recebê-los.

o rapaz fez uma vênia baixa e saiu.

- o tempo foi na verdade o preciso - disse gonsção. - eu esperava encontrar-me


brevemente com o arcebispo de meneses.

- e o capitão ortiz deve ter boas notícias para nós em relação ao assunto que
estivemos a discutir. vinde sentar-vos enquanto esperamos os nossos visitantes. -
sadrinho fez um gesto na direção das cadeiras vermelhas sobre o estrado.

gonsção subiu a plataforma e instalou-se numa das cadeiras. em cima da mesa


havia um sino de prata e dois livros. um era um missal de capa de couro, o outro era
um volume pequeno com capa de pergaminho.

gonsção pegou lentamente no livrinho e examinou-o. leu o título pintado na lombada,


depois voltou-se para o inquisidor sadrinho, permitindo que a sua consternação se
visse.

- este livro, domine. porque é que está aqui?

- qual? ah. os lusíadas. Ó irmão timóteo deve tê-lo deixado aí. É novo e por vezes
distraído.

gonsção abriu a capa e olhou para a primeira página. reparou na data ali escrita em
números romanos.

- domine, esta publicação é a original, de 1572. sadrinho franziu o sobrolho.

- sim? e então?

- conheceis esta obra?

o inquisidor mostrou-se novamente desconfiado:

- É um poema épico de luís vaz de camões. pensei que era muito respeitado em
lisboa.

- e é. entre os eruditos. já o haveis lido?

- não. disseram-me que parte dele foi escrito aqui em goa. o irmão timóteo tem-no
em grande estima porque o seu avô, garcia de orta, o famoso naturalista, conheceu
camões. na verdade, camões viveu em sua casa por uns tempos, e escreveu alguns
versos para a introdução do livro de garcia de orta sobre drogas e simples orientais.

- ah. interessante. É compreensível, então, que o rapaz goste do livro. mas esta é
uma versão não expurgada, domine, e contém muitos... versos pagãos. que idade
tem o irmão timóteo?

- treze anos, padre.

- só treze? uma idade perigosa. vede, este poema é uma história falsa, domine.
descreve as viagens de vasco da gama como se fosse um mito homérico. está
recheado de deuses pagãos e demônios das antigas grécia e roma. atentai aqui. -

gonsção abriu o livro ao acaso. - nesta página, o poeta escreve sobre marte e júpiter
no monte olimpo, apoiando vasco da gama para contrariarem o deus do vinho, baco.
noutra página, temos vasco da gama a falar com prometeu e apoio como se estes
fossem verdadeiras forças a quem se reza. e aqui, o poeta escreve uma longa
passagem relativa a vênus e à sua ilha dos amores.

sadrinho ergueu as sobrancelhas:

- não fazia idéia.

- não tenho a certeza se este irmão timóteo terá já o conhecimento ou a educação


para... compreender esta obra no seu contexto devido. sugiro vivamente, domine,
que este livro seja colocado num cofre até o rapaz ser mais velho.

o inquisidor concordou:

- compreendo. assim será feito.

gonsção fez deslizar o livro pela mesa para que sadrinho lhe chegasse e os seus
dedos compridos acariciaram a capa de pergaminho com um gesto que poderia ser
de pena.

parece que os rumores que chegam aos ouvidos de albrecht são verdadeiros. esta
santa casa tem falta de disciplina. preocupam-se mais com os seus confortos e
possessões do que com o seu trabalho santo.

- o irmão timóteo vai ficar desapontado - disse sadrinho. - o seu avô era muito
querido como curandeiro em goa e temos a sorte de timóteo ter vindo até nós. É um
dos nossos melhores acólitos, e até serve como advogado dos nossos visitantes.
tem um certo jeito com eles que é melhor que qualquer castigo.

- admirável. gostaria de conhecer esta jovem maravilha. se ele é um amante da


poesia, posso recomendar-lhe a obra de diogo bernardes. achei muitas vezes
inspiração na coleção várias rimas para o bom jesus. tenho um exemplar comigo
que lhe posso emprestar.

com um sorriso amargo, sadrinho disse:


- tenho a certeza que ele ficará contente.

- garanto-vos, domine, que os versos não são tão insípidos como o título sugere.

- de acordo, padre... ah, aí vêm os nossos visitantes.

as portas distantes abriram-se. o pajem entrou e anunciou:

- sua excelência o arcebispo aleixo de meneses e o capitão pedro ortiz do santa


rosa.

o arcebispo entrou: um homem grisalho de aparência suave a quem as vestes


vermelhas e a capa pareciam espalhafatosas. por trás dele, com cheiro a alho,
laranjas e peixe, entrou o capitão ortiz, um homem pequeno e rijo. a sua casaca de
cetim verde e calções largos estavam manchados e remendados. o capacete
dourado que trazia na mão fora, porém, muito polido, e a sua vênia profunda era
gentil.

o inquisidor recebeu o arcebispo e o capitão com um aceno de cabeça. gonsção


levantou-se do seu lugar e desceu do estrado. apertando as mãos do arcebispo,
disse:

- É uma honra, excelência. deixai-me felicitar-vos pela vossa nomeação como


primeiro-primaz do oriente. É uma honra bem merecida.

o arcebispo parecia admirado.

- agradeço-vos, padre. também ouvi coisas boas a vosso respeito. a minha


nomeação foi uma bênção inesperada. espero vir a ser merecedor do lugar.

- não tenho qualquer dúvida em relação a isso, excelência. e uma boa tarde também
para vós, capitão ortiz. sou o padre antónio gonsção. o nome do santa rosa é falado
com orgulho por toda a lisboa. apresento-vos as boas-vindas.

o capitão olhava ora para gonsção ora para o inquisidor sadrinho.

- agradeço-vos e desejo que vós, santos padres, tenhais um bom dia - disse ele
numa voz irritante. - que deus vos abençoe este dia e sempre. - as mãos que
apertavam o seu chapéu de veludo estavam pálidas.

os visitantes da santa casa estão muitas vezes pouco à vontade, pensou gonsção,
no entanto eu acho que as suas notícias não são boas.

ele acompanhou o arcebispo e o capitão até à mesa. meneses sentou-se a alguma


distância de sadrinho e o capitão permaneceu de pé. gonsção sentou-se perto do
arcebispo, o que pareceu incomodar o inquisidor-mor.

sadrinho virou o seu mau humor para o capitão.


- esperamos, capitão ortiz, que nos traga provas de tais bênçãos. confio que
bernardo de cartago esteja agora preso no aljouvar.

o arcebispo meneses suspirou e olhou para baixo para a mesa. o capitão ortiz
endireitou os ombros, a revirar o chapéu nas mãos.

- lamento imenso, domines, que ele não esteja. causamos estragos no navio, mas
não fomos capazes de o capturar.

- não o capturaram - disse sadrinho, devagar. - esperávamos melhor de vós, capitão


ortiz.

com os olhos desafiadores, ortiz respondeu:

- eu não estava à espera que o feiticeiro conjurasse navios ingleses vindos sabe-se
lá donde para sua defesa, domine!

- navios ingleses?

- eu acho - disse o arcebispo - que deveríeis ouvir as circunstâncias antes de


julgardes, domine. a presença dos ingleses foi confirmada por outros viajantes que
chegaram a goa.

sadrinho olhou fixamente para o arcebispo e depois voltou a dirigir o olhar para o
capitão.

- muito bem. explicai.

o capitão ortiz começou com uma vênia rápida.

- o santa rosa chegou junto do galeão do feiticeiro perto das bassas de pedro.
dirigia-se para sul. perseguimo-lo, conforme ordenado. quando passávamos a ilhas
amindivi, estávamos quase ao pé dele. foi então que os navios ingleses apareceram,
vindos por trás da ilha de kiltan. os meus homens esforçaram-se por preparar todos
os nossos canhões, mas os ingleses já estavam a postos. navegaram entre nós e o
navio do feiticeiro, disparando os seus canhões. os navios deles eram mais
pequenos e mais rápidos. tinham muito mais hipóteses de disparar sobre nós.

”fizemos o maior número de estragos possível, e abatemos mastros nos navios dos
ingleses e do feiticeiro. mas eu ordenei ao santa rosa que continuasse para sul, em
vez de o deixar como presa dos ingleses. se isso vos servir de consolo, tenho a
certeza que o senhor cartago está ou morto ou é um prisioneiro inglês.

- fugistes - disse sadrinho suavemente. - não vos considerava um cobarde, capitão


ortiz.

as narinas do capitão abriram-se.

- domine, apesar de ter a honra de estar a fazer um serviço à santa casa, o meu
último dever é para com os meus homens e para com sua majestade, o rei filipe.
talvez vos tenhais esquecido que o santa rosa pertence à frota de sua majestade.

- talvez vos tenhais esquecido do vosso dever para com deus.

- disseram-me, domine, que o serviço ao rei é serviço a deus. ou pretendeis que


esta casa seja mais alta que o trono real?

bem argumentado, pensou gonsção, até mesmo sabiamente. este homem não é
cobarde nenhum.

o rosto de sadrinho empalideceu.

- acreditamos que o serviço prestado a um é serviço prestado a ambos. parece que


nos haveis falhado a todos. felizmente, temos uma sala disponível onde podereis
contemplar o vosso erro. - estendeu a mão para o sino de prata.

- esperai, domine - disse gonsção.

- padre? - um músculo da face do inquisidor retorceu-se e os olhos estreitaram.

- bem-aventurados os piedosos, pois receberão piedade.

- isso é alguma frase dos jesuítas?

então esse rumor também é verdadeiro. ele é muito ignorante das escrituras.

- não, domine. essas são também as palavras de nosso senhor. dos livros sagrados.

o arcebispo murmurou.

- mateus, versículo quinto.

- então qual é a vossa idéia, padre?

- capitão ortiz, sois um bom católico?

- com todo o meu coração, padre, que deus me ouça e defenda.

- e aceitais todos os ensinamentos da santa madre igreja?

- todos, padre, do nascimento até à morte. domine, este homem não é herético nem
apóstata. a vossa guerra com ele é uma questão civil. se precisais de procurar
agravo contra ele, tendes de o levar ao governador gama. ele tem a autoridade para
decidir se o capitão ortiz serviu devidamente o rei.

sadrinho rilhou os dentes, mas finalmente disse:

- muito bem. podeis ir, capitão ortiz.

o capitão fez uma vênia baixa a gonsção.


- não há dúvida que deus vos concedeu sabedoria, padre. - e depois voltando-se
para o arcebispo, acrescentou: - se me concederdes a vossa bênção, excelência. -
ajoelhou-se e beijou o anel do arcebispo.

meneses pousou uma mão na cabeça do capitão.

- se vos ajudar, tendes a minha bênção. vai com deus, meu filho.

o capitão ortiz pôs-se novamente de pé, cumprimentando sadrinho com uma volta
no chapéu.

- irei colocar-me imediatamente nas mãos do governador gama.

o inquisidor sadrinho aquiesceu solenemente e o capitão ortiz saiu. assim que as


portas se fecharam, fixou os olhos em gonsção.

- como vos atreveis...

- o grande inquisidor albrecht - disse gonsção - enviou-me para observar esta santa
casa, e corrigir desvios onde eu achasse por bem. sabeis que temos de respeitar
uma linha muito clara entre questões de fé e questões de justiça civil. compreendo
que este feiticeiro seja importante, mas homens com a perícia do capitão ortiz são
precisos contra holandeses e ingleses. portugal não se pode dar ao luxo desta
perda.

- se este trabalho atamancado for característico da perícia do capitão - resmungou


sadrinho -, então choro por portugal.

- ortiz poderá ter feito por vós mais do que imaginais. tendes familiares entre os
mercadores e pescadores aqui, não é verdade?

- claro. e então?

- os navios danificados não podem viajar até muito longe. se o santa rosa deitou
mastros abaixo nos navios ingleses, eles terão de encontrar porto seguro para
reparações. se os familiares nos puderem dizer onde é que os ingleses foram vistos
pela última vez, poderemos calcular onde é que foram acostar. algumas naves
costeiras pequenas, enviadas em segredo, poderão cumprir o que uma poderosa
carraca não conseguiu. sadrinho pestanejou.

- ah, sim, estou a ver. talvez isso se possa fazer. vou inquirir imediatamente. perdoai-
me, excelência. - e levantou-se para sair acenando com a cabeça ao arcebispo.

- domine - gonsção chamou-o.

- sim?

- por favor, preparai os livros deste último ano para que eu os inspecione.
- os livros?

- presumo que a minha carta de apresentação declare claramente que me devem


ser apresentados quaisquer materiais que eu pretenda.

- ah. talvez daqui a uns dias, padre. quando tiverdes recuperado da vossa jornada.

- eu fui escolhido pela minha capacidade de trabalho, domine. verei os livros esta
tarde, se possível.

- ah, vou ver o que se poderá reunir num tempo tão curto.

- obrigado, domine. talvez pudésseis enviar-me o jovem defensor, aquele que gosta
de poemas, para me trazer os livros.

sadrinho suspirou.

- como queirais, padre antónio. depois da missa em santa catarina.

- excelente. e quando estiverdes nos vossos serviços, por favor lembrai-vos de mim
nas vossas orações.

- assim farei, padre. tende a certeza que o farei. depois de a porta se fechar por trás
do inquisidor, o arcebispo meneses virou-se para gonsção.

- sois ousado, padre antónio. essa qualidade é muito necessária aqui, embora o
inquisidor-mor não a aprecie muito.

- não posso dizer que tenha sido inesperado, excelência. poucos dos que alcançam
o poder são poupados à sua influência corruptora. também precisamos de nos
lembrar do inquisidor nas nossas orações.

- com efeito - disse o arcebispo com pouco entusiasmo. acho este aparecimento dos
ingleses - continuou ele, inclinando-se para a frente e tamborilando com os dedos na
mesa muito perturbador.

- se isso vos descansar a mente, excelência, quando eu vinha a sair de lisboa,


soube que sua majestade estava a reunir uma nova armada. foi por isso, em parte,
que eu desejei que o capitão ortiz fosse libertado para o governador. ele vai ser
preciso. acho que não vamos ter de temer a pirataria inglesa por muito mais tempo.

- isso são boas notícias, padre. no entanto, não posso deixar de recordar o destino
da nossa armada anterior.

- por favor, excelência, dai algum crédito aos nossos adelantados quanto à
aprendizagem com os erros anteriores.

- há quem diga que a tempestade que destruiu a armada foi um ato de deus.

- deus nosso senhor a defender hereges ingleses? cuidado, excelência. - gonsção


agitou um dedo de brincadeira. caminhais perigosamente para a heresia.

- perdoai-me - disse meneses com um sorriso. - vou dizer duzentas orações a santa
maria em penitência.

- acrescentai, por favor, mais algumas para mim. - gonsção pôs-se de pé, alisando a
sua veste branca e o escapulário.

o arcebispo também se levantou.

- gostaria de vos fazer uma pergunta, porque é que haveis pedido que o rapaz orta
vos levasse os livros? por causa do seu famoso avô, o herbalista?

- domine sadrinho disse-me que o irmão timóteo é um defensor, apesar da sua


juventude. quem melhor me poderia informar acerca dos convidados que são
trazidos à santa casa e a forma como são tratados?

- estou a ver. muito sensato.

- há algo que poderíeis fazer por mim, excelência. o arcebispo pareceu


desconfortável.

- se eu puder.

- quero saber tudo o que for possível no que diz respeito ao julgamento do
governador coutinho. se pudésseis fazer com que me dessem os registros do
julgamento, isso seria de grande utilidade.

- vou ver o que posso fazer, padre. mas confesso, a minha influência na santa casa
é no mínimo modesta.

- tenho confiança nas vossas capacidades, tal como o cardeal albrecht também.

- honrais-me demasiado. - quando iam a caminhar em direção às portas, meneses


acrescentou: - foi um caso curioso. coutinho era de boa família cristã, sem um sopro
de escândalo de heresia. e no entanto algo o seduziu, o convenceu à apostasia.
alguma coisa que ele aceitou como prova de crenças pagãs.

- muito curioso. e é perturbador saber que a sua fé se mostrou tão facilmente


corruptível. temos de aprofundar este mistério o mais que pudermos. onde a
serpente do mal levanta a cabeça, mais se esconde debaixo da terra.

meneses sorriu:

- vai ser muito refrescante ter-vos aqui, padre gonsção.

capítulo iii

morriÃo: esta planta é também chamada erva-de-maria, ou erva-dos-porcos. tem


flores carmins ou douradas, que se fecham quando se aproximam tempestades.
abrem-se com bom tempo, e são por isso chamadas ”barômetros dos pobres”. diz-
se que pegar no morrião dá terceira visão. o morrião afasta a bruxaria e os feiticeiros
evitam-na pois faz com que revelem os seus segredos.

para o mestre geoffrey coulter, boticário, londres, do seu aprendiz e agente, thomas
chinnery, escrita no mês de setembro, no ano de 1597 de nosso senhor.

senhor, chego à conclusão que tenho de começar novamente esta carta, pois a
última ficou destruída noutra incursão de pirataria ordenada pelo capitão wood. não
sei se esta alguma vez chegará às vossas mãos, mas não posso perder a
esperança.

alcançamos a costa da índia, mas não fiqueis maravilhado com a nossa velocidade.
o curso da nossa viagem não tem sido o que estava inicialmente previsto. sir robert
dudley preparou esta expedição para procurar um caminho mercantil para a china
por ocidente, pelo estreito de magalhães. não sei, mas se tivéssemos agido desta
forma, a fortuna teria sido mais gentil.

em vez disso, a nossa frota encontrou o almirante raleigh nas canárias e os seus
alardes de riquezas a encontrar ao longo da costa africana e no mar arábico, e os
seus avisos sobre os perigos a ocidente, convencendo o capitão wood e grande
parte da tripulação que deveríamos seguir a rota de oriente. ”sempre é melhor o
diabo conhecido”, disseram eles.

os senhores mercadores allen e bromefield estavam furiosos mas pouco podiam


fazer. mas o nosso caminho não foi mais fácil que o dos nossos antecessores. o
benjamin perdeu-se numa tempestade ao largo do cabo da boa esperança. quase
metade da tripulação adoeceu de escorbuto ou de outros males. pela graça de deus,
até agora fui poupado às doenças.

talvez para abrandar a ira dos mercadores, ou para aumentar a sua glória e riqueza,
o capitão wood tem perseguido todos os galeões portugueses que encontramos.
tornamo-nos mais corsários que mercadores. nestas batalhas, temos ganho, mas
não sem esforço. nesta altura em que escrevo, estamos ancorados a norte de
calecut, tentando reparar os estragos feitos na nossa última incursão. o bear precisa
de novos mastros e o carpinteiro diz que as árvores desta região não servem.

embora ainda possamos chegar à china, já temos poucas provisões com que
começar o comércio. tive de usar quarenta e sete pastilhas do vosso composto de
camomila e papoulas para aliviar os doentes e feridos da tripulação. quase metade
das provisões de ervas desapareceram, em especial o alho, a aristolóquia, a
angélica e a valeriana. consegui poupar a mirra e o corno de unicórnio, bem como a
confectio alcarmas, mas poderei vir a precisar deles se não se encontrar outra fonte
de medicamentos.

temo que não seja possível reabastecer estes fornecimentos daqui até cantão.
disseram-me que talvez se encontre estes materiais em pegu, mas seriam de
qualidade incerta.

peço-vos que me perdoais o meu desperdício destes bens que estavam destinados
a serem o nosso meio de troca e riqueza com o oriente. mas eu tornei-me o
curandeiro mais proeminente a bordo, pois o nosso médico do navio sucumbiu a
uma febre somente há dois dias atrás. apesar de não ter saudades das suas
sangrias e sanguessugas, dou comigo a sentir falta da sua companhia neste
trabalho que afeta o coração.

esperávamos que alguns homens pudessem seguir a pé até calecut para pedirem
ajuda, mas não podemos dispensar braços para as reparações. e há o medo de que
se se espalhar o rumor relativamente à nossa localização e estado enfraquecido,
nos possamos encontrar como alvo de banditismo...

thomas levantou a sua pena da carta, com a mão a tremer de cansaço. da sua rede
sobre as escadas que levavam às instalações da tripulação, ele podia ouvir os
gemidos e os movimentos incessantes dos doentes e dos feridos. para lá da
antepara, a água batia no costado do navio e as cordas da âncora rangiam com o
empurrão da maré. o ar estava úmido, asfixiante e espesso com os odores de
podridão, tanto de madeira como de carne.

no tabique mais próximo jazia nathan, o aprendiz de carpinteiro, com o rosto pálido.
a sua ferida do canhão estava a infectar e thomas pouco podia fazer pelo rapaz. o
seu destino está num poder muito maior do que o meu.

um pingo de tinta caiu da ponta da pena em cima do papel quando se ouviram


passos pesados a descer as escadas por detrás dele.

- então? - disparou lockheart. - outra canção de amor para a tua querida? não
afogues a tua rapariga com mimos, meu rapaz, senão ela ainda encontra um
cachorrinho menos baboso para acariciar.

- tendes um sentido apurado, senhor, de quando me podeis mais facilmente


perturbar na minha correspondência.

contudo, thomas não estava inteiramente descontente por ver a presença forte do
escocês. o bom humor ruidoso de lockheart, embora desconcertante, fazia com que
a esperança parecesse possível.

e embora a sua carta não fosse dirigida diretamente para ela, thomas esperava que
anne coulter, a filha do seu mestre, a quem ele admirava há muito, lesse a carta e
soubesse que ele estava bem.

lockheart assentou o seu corpanzil desajeitadamente nas escadas.

- tenho ouvidos de morcego, tom. ouço o raspar da tua pena ao longe.

- com ouvidos tão finos, como é que não ensurdeceis com a vossa própria voz? a
propósito, peço-vos que faleis mais baixo. perturbai-me se quiserdes, mas permiti
alguma paz a estes pobres desgraçados.

- imploro-te perdão - disse lockheart com um rugido mais baixo. - espero que
também tenhas escrito à tua mãe? as mães não sucumbem aos excessos de
carinho e precisam de ser muito reconfortadas.

- não tenho mãe, senhor. morreu quando eu nasci.

- imploro o vosso perdão. as minhas condolências, então. thomas encolheu os


ombros.

- não a conheci, por isso não havia ninguém a quem chorar. - surgiram-lhe
pensamentos espontâneos de uma infância cheia de tristeza, horas solitárias, uma
sucessão de amas, algumas amáveis, outras indiferentes, outras pior.

- então precisas de escrever ao teu pai, se é ele o teu único parente.

- o meu pai interessa-se pouco pelas minhas coisas.

- com certeza que isso não pode ser! És o seu único filho?

- que eu saiba.

- então ele deve querer-te mais do que aquilo que pensas. por vezes, mesmo os
pais aparentemente mais distantes têm um interesse genuíno pelos seus filhos.

thomas fez uma pausa, recordando a forma como, do convés do bear’s whelp, ele
espiara a cara nada sorridente do seu pai no meio da multidão do cais quando o
navio se afastava.

- pode ser que sim. em tempos o meu pai encorajara-me a fazer uma viagem a
nápoles, mas o mestre coulter disse que uma viagem ao extremo oriente seria mais
proveitosa. agora só desejava ter seguido o conselho do meu pai.

- pois aí tens - disse lockheart.

- tendes razão para isso. mas o mestre coulter foi para mim mais pai que qualquer
outra pessoa no mundo, ele e a sua boa esposa.

- É bom quando os homens tratam amavelmente quem os ajuda. mas pela tua forma
de falar e pelos teus modos diria que nasceste em berço nobre quando nos
encontramos pela primeira vez. o que é que te levou a seres aprendiz?

thomas riu-se.

- berço nobre? vagamente, na melhor das hipóteses. o meu pai tinha ligações muito
bem nascidas no continente, e uma vez gabou-se de que a minha mãe tinha sangue
de reis italianos. mas é um fio muito fino e enrolado aquele que me liga a qualquer
nobreza. uma riqueza de sangue tão pequena traz pouca fortuna e ainda menos
perspectivas. reparai, se as histórias de luxúria contadas acerca dos reis britânicos
do passado tivessem qualquer crédito, à vontade metade das almas de inglaterra
podia sem dúvida reclamar descendência real.

lockheart fez um sorriso forçado.


- não tinha pensado nisso, mas deve haver alguma verdade no que dizes, rapaz.

ouviram-se interrogações entre gemidos vindos dos tabiques escuros à sua volta.

- estejam tranquilos, está tudo bem - disse thomas como resposta. para lockheart,
ele acrescentou: - estamos a perturbar-lhes o descanso, senhor. vamos para cima
para falarmos.

- uma idéia inteligente. subamos antes que o ar irrespirável deste lugar nos
transforme em vermes aos dois.

- dentre os que praticam a arte do meu mestre há os que acreditam que o ar


espesso e pestilento atua como barreira contra a doença. eu só posso pensar que
esses homens nunca andaram no mar.

thomas soprou suavemente na sua carta para secar a tinta, depois dobrou-a e
enfiou-a na sua casaca. pôs-se de pé e seguiu lockheart pelas escadas que
rangeram até à claridade da luz do dia.

thomas foi bafejado por uma brisa fresca, prenhe de água salgada e flores exóticas.
um pôr do sol dourado encheu o horizonte a ocidente, esbatendo-se em azuis
profundos e índigo na direção do oriente. na linha de estibordo via-se uma lagoa
turquesa, rematada por uma praia arenosa e uma floresta de palmeiras.

- eis aqui uma cena mais própria para o bem-estar - disse lockheart. ele usava um
gibão sem mangas, manchado, de couro cinzento cor de ferro, habilmente
concebido de forma a revelar um forro de veludo vermelho, e rendas abertas até ao
peito. visível por trás da renda estava uma medalha de prata num fio da tampa. -
dentro desta caixa está esculpido um caduceu, o símbolo de esculápio, a quem os
gregos adoravam pelo seu poder de cura.

- ah. vejo que conheces os clássicos.

- o meu pai deu-me alguma educação, senhor. tinha esperança que o conteúdo
desta garrafa nesta caixa pudesse ser medicinal de alguma forma.

- ainda não o experimentaste.

- estava na posse de um feiticeiro, lembrai-vos. não sei se é de confiança. neste


papel há algumas inscrições. consigo decifrar o significado da que está mais em
baixo, o grego, mas as outras por cima são escritas que não conheço.

- dá cá - disse lockheart, estendendo a mão.

com relutância, thomas deu-lhe o papel. para seu alívio, os dedos pesados do
escocês abriram-no com cuidado.

- isto é misterioso. a primeira frase está escrita em árabe, no entanto, o seu


significado é bíblico: ”eu sou a ressurreição e a vida.”
- isso dá esperança. a linha seguinte é também em árabe, não é?

- uma boa tentativa, rapaz, mas é persa.

- conheceis essa língua?

- só um momento - lockheart examinou-a de perto, como se fosse um estranho


inseto. - estas palavras são de outro livro sagrado, o alcorão, do islão.

- são? qual é a sua mensagem pagã?

- faz ressurgir os vivos dos mortos e os mortos dos vivos. a terra sem vida é
acordada por ele.

thomas coçou o rosto.

- todas estas mensagens falam da vida ressurgida da morte. talvez seja um remédio
muito poderoso.

- ou o médico que a utiliza tem de orar pela sua eficácia.

- como o homem não sabe como os remédios funcionam, talvez a oração seja a
parte mais eficaz da cura. qual é a mensagem seguinte?

lockheart examinou mais uma vez o papel.

- aposto que isto é sânscrito.

- que língua é essa?

- disseram-me que muitos livros sagrados hindus estão escritos nesta língua.

- se calhar são mais palavras sagradas sobre a vida e a morte. também conseguis
ler essas palavras?

lockheart abriu a boca, fez uma pausa, depois fez um sorriso forçado.

- não. thomas suspirou.

- ainda não estou convencido que posso usar isto em segurança. a frase grega, eu
sei, fala de serpentes e pele.

- talvez não queira dizer que pertença ao conteúdo desta garrafa. podem ser apenas
escritos ao acaso de alguém que pratica estas línguas.

- hmmm. acho que não. o feiticeiro tinha esta caixa ao lado dele quando o encontrei.
e estava com pouca vontade de ser separado dela.

- se o grego fala de serpentes, talvez seja veneno de cobra.


- então pode ser veneno ou remédio. a triaga é um remédio que usávamos na loja
do mestre coulter. contém carne de víboras; é um curativo muito comum. isto pode
ser alguma coisa assim.

- posso ver a garrafa? thomas parou.

- quero-a devolvida.

- retirou a garrafa iridiscente da sua cama de seda e deu-a ao escocês.

- não tenhas receio de mim. isto é uma coisa bem bonita. - lockheart fez deslizar
suavemente a rolha de cortiça. saiu com um pop pequenino. lockheart bateu na
garrafa até sair um pó fininho castanho para a palma da sua mão. lambeu o polegar
e encostou-o ao pó. esfregou a substância misteriosa entre o polegar e o indicador,
cheirando a uma distância segura. olhou durante uns momentos para o mar,
mergulhado no pensamento. franzindo o sobrolho, lockheart pôs a palma da mão
sobre a boca da garrafa e voltou a deitar o que pôde lá para dentro. depois,
cuidadosamente, limpou a mão aos calções para retirar o resto.

- que pensais vós? - disse thomas.

- acho que as nossas interrogações nos estão a levar pelo caminho errado.

- não é remédio nem veneno?

- eu li aquelas frases em livros sagrados, tom. talvez isto não seja remédio para o
corpo, mas para a alma. ou um meio de levar à queda das almas. se o meu
julgamento tiver algum valor, o pó nesta garrafa é sangue seco. e já vi muito sangue
na minha vida. - rolhou a garrafa e voltou a dá-la a thomas como se ela lhe
queimasse as mãos.

thomas pegou nela, sentindo um arrepio.

- sangue de homem ou de animal? o que é que um feiticeiro poderá fazer com isso?

- o que poderá ele não fazer, tom? como diz nas escrituras, ”o sangue é a vida”. o
sangue dos animais nocivos pode realçar a poção das bruxas, enquanto o sangue
de um homem pode ser usado contra ele mesmo. o sangue de um santo, bem... se a
magia do nosso feiticeiro for branca, poderá fazer milagres; se for negra, grande mal
pode ser causado.

- então isto poderá ser uma relíquia? - se fosse papista, thomas saberia que a sua
alma estaria mais a salvo se ele atirasse imediatamente a garrafa para o mar.

lockheart encolheu os ombros.

- de certeza que não tenho o conhecimento para o dizer. thomas baixou o olhar para
a garrafita. qual será o mal que mais perigos causa à alma: uma relíquia papista, um
talismã pagão ou um feitiço satânico?
- seja como for - prosseguiu o escocês - é possível que o nosso feiticeiro a tenha
usado apenas como especiaria no seu cozinhado.

mesmo sem querer, thomas riu-se.

- senhor, nunca sei quando falais a brincar.

- não te queixes. muitas vezes nem eu. aproximaram-se alguns passos e thomas
olhou em volta.

o mestre bromefield caminhava na direção deles atravessando o convés, com a sua


capa de veludo levantada pelo vento. thomas pensou que ele se parecia com um
retrato de taberna do velho rei henrique viii, só que mais magro e mais gasto.
interrogou-se qual seria o sentido de honra exagerado que levaria homens como
bromefield a usar roupas tão pesadas e tufos engomados e duros em volta do
pescoço mesmo neste clima tão quente. talvez como enviado especial de sua
majestade, a rainha isabel, ao grande imperador da china, bromefield nunca
soubesse quando é que iria ser chamado a impressionar alguém. thomas pôs
novamente a garrafa na sua caixa e enfiou-a na casaca à medida que um bromefield
encharcado em suor se aproximava deles.

- senhor - disse bromefield a lockheart -, o nosso capitão apresenta-vos as suas


mais calorosas desculpas e pede o vosso regresso para o último interrogatório dos
nossos cativos. - bromefield trazia uma expressão contrafeita e thomas interrogou-se
se o mercador gostava menos da mensagem ou da tarefa de mensageiro.

- belas palavras, dadas lindamente, senhor - respondeu lockheart -, podeis informar


o bom capitão que regressarei em breve.

- assim farei, senhor. - bromefield virou-se para sair.

- mais uma coisa - disse lockheart. - também levarei o senhor chinnery, pois tem
perguntas suas a fazer. - como bromefield franzisse o sobrolho, acrescentou: - não
esqueçais que foi ele quem descobriu o nosso feiticeiro. acho que ganhou esse
direito.

bromefield suspirou, como se o mundo tivesse passado todas as marcas da razão.

- muito bem, se o capitão wood estiver de acordo. - virou-se, com a capa a rodar e
afastou-se.

thomas ergueu as sobrancelhas para lockheart.

- porquê esta desculpa?

- o nosso capitão, como deves ter notado, tem um temperamento que muda como os
ventos do cabo horn. por razões que desconheço, decidiu descarregar em mim uma
tempestade. bom, pediu perdão de uma forma muito elegante. vem, thomas. vamos
recebê-lo como cavalheiros que somos. - lockheart saltou e pôs-se de pé.
thomas seguiu-o.

- o que é que lhes vai acontecer, ao feiticeiro e à senhora?

- É isso que está a ponderar agora o nosso capitão.

- não sei porque é que tantos da sua tripulação nativa ficaram ao nosso serviço e
não quiseram aceitar a liberdade oferecida.

- os portugueses são patrões duros, meu rapaz. não há dúvida que estão à espera
de melhor sob o nosso cuidado.

thomas e lockheart passaram por vários dos homens da nova tripulação, que
estavam sentados a tirar estopa de cordas velhas para repararem fugas, outros
cosiam velas rasgadas e esfarrapadas. thomas sentia-se inquieto por ter tantos
estrangeiros escuros a bordo, mas, no entanto, muita da tripulação original do whelp
estava tão incapaz que a ajuda era necessária em todos os quadrantes.

lockheart levou thomas até ao tombadilho, que estava agora mobiliado com uma
mesa e algumas cadeiras. o capitão wood sentava-se relaxadamente à cabeceira da
mesa, com o seu rosto corado e curtido com uma expressão carrancuda. À
esquerda do capitão estava sentado o feiticeiro português, alerta e direito, com as
suas mãos algemadas sobre a mesa. os senhores allen e bromefield estavam de pé,
desconfiados, à direita do capitão. a misteriosa dama hindu não se via em lado
nenhum.

o capitão wood fez um aceno breve a lockheart, depois a thomas.

- senhor chinnery. como é que estão os meus homens? a verdade sobrepôs-se à


diplomacia:

- não muito bem, senhor. sofrem de febres, infecções e de falta de remédios. não
serão muitos os que irão recuperar.

- tal como eu temia.

o capitão baixou os olhos para a mesa e thomas ficou surpreendido por sentir
alguma simpatia pelo homem.

- thomas - disse lockheart -, concedei-me a honra de vos apresentar o senhor


bernardo de cartago, de goa. senhor, com licença, apresento o senhor tomás
chinnery, médico e alquimista.

o prisioneiro ergueu as suas sobrancelhas finas e acenou respeitosamente a


thomas. dirigiu então uma pergunta em português a lockheart, que respondeu com
uma breve afirmativa.

- senhor - disse thomas baixinho a lockheart -, na verdade não sou médico nem
alquimista. será sensato chamarem-me assim?
- ele irá considerar-te melhor por isso. e que melhor forma para descrever aquilo que
fazes, ha?

o feiticeiro dirigiu-se então suavemente a thomas, em latim:

- cabe-me, então, apresentar-vos as minhas desculpas. presumo que o meu


salvamento tenha sido pago com alto preço.

- o que é que ele diz? - murmurou o capitão wood a lockheart.

- o cavalheiro expressa o seu pesar pelas nossas perdas, senhor.

o senhor bromefield franziu o sobrolho. thomas interrogou-se até que ponto era o
conhecimento de latim do enviado. o capitão olhou para thomas.

- senhor lockheart, o nosso feiticeiro convidado também se chama a si mesmo um


alquimista, não é verdade?

- sim, e um erudito, senhor.

- perguntai-lhe se ele tem capacidades de cura ou remédios que possam ter


utilidade para o nosso senhor chinnery.

thomas pestanejou com a surpresa. o capitão sabe o meu objetivo antes de eu falar.
e a sua estima pelo homem aumentou novamente.

lockheart recitou uma corrente deselegante de português.

- sir! - bromefield protestou ao capitão. - estais a pensar pôr as nossas almas em


perigo utilizando os métodos maliciosos deste homem? não seria melhor morrermos
sem mácula do que aceitarmos a ajuda do diabo?

inclinando-se pesadamente sobre a tábua, o capitão wood ergueu-se da sua cadeira


e olhou para o senhor bromefield.

- senhor, será que este navio vai chegar à china, credes, navegado apenas pelas
almas de homens santificados? será que sombras abençoadas irão desfraldar as
nossas velas e fantasmas enviados pelo céu trabalharão nas vigias dos canhões?

será que os anjos puxarão as cordas e os querubins baldearão a água? garanto-vos,


poucos dos malditos homens lá de baixo estarão mesmo agora imaculados do
pecado. no entanto, a minha competência dada por deus é cuidar das suas vidas e
trabalho. não pensais que será prestado um melhor serviço a eles, a sua majestade
e a deus ajudá-los a viver? numa vida mais longa, mais orações serão ditas e mais
pecados perdoados. e por mais condenados que possam estar, a nossa jornada não
atingirá um objetivo mais lucrativo com a ajuda de mãos vivas? bromefield, rangendo
os dentes para trás e para a frente, murmurou:

- então, que isso fique na vossa consciência, senhor. que deus vos perdoe. que deus
nos perdoe a todos. - e olhou intencionalmente para lockheart.

o capitão wood resmungou e sentou-se mais uma vez. o feiticeiro falou durante
alguns momentos a lockheart em português.

lockheart aclarou a garganta:

- o senhor cartago diz que tem pouca coisa com ele de remédios vulgares. contudo,
tem alguns conhecimentos das plantas que crescem nesta região. fornecer-nos-á
isso se permitirmos que ele viaje conosco até pegu.

o capitão coçou a sua barba vermelha desalinhada, depois aquiesceu.

- um pedido razoável. vou pensar nele. agora, senhor chinnery, disseram-me que
tendes uma pergunta a fazer ao nosso convidado.

thomas sentiu que a garganta se lhe secava. como é que eu poderei perguntar sem
alarmar o capitão e o senhor bromefield?

- já a haveis feito por mim, senhor. eu também desejava saber se ele tinha remédios
para oferecer. mas vou perguntar-lhe mais uma vez. - virou-se para cartago e falou
em latim:
- tendes a certeza, magister, que não havia nada no vosso navio que possa curar ou
aliviar a dor?

cartago fez uma pausa, olhando para thomas, que reparou num canto da caixa de
madeira a espreitar da sua casaca. o feiticeiro inclinou a cabeça com um brilho
estranho no olhar.

- nada, magister, exceto o que foi oferecido por ouroboros. - pôs as mãos à sua
frente de forma a que os seus dedos encurvados e polegares criassem um círculo.

thomas sentiu que estava a ser testado. a palavra ”ouroboros” era-lhe vagamente
familiar, mas não conseguia lembrar-se donde. em vez de mostrar a sua ignorância,
thomas inclinou a cabeça em aprovação.

- compreendo. obrigado.

- falais grego? - perguntou cartago.

- sim. o meu pai fez com que me ensinassem intensivamente essa língua.

- a senhora aditi irá achar interessante, magister. poderíeis falar com ela. eu próprio
não tenho conhecimentos de grego. talvez, se houver tempo, possais ensinar-me um
pouco.

- talvez - respondeu thomas, escondendo a sua admiração. lockheart virou-se para


ele, com um sorriso espalhado no rosto.

- claro. estava destinado, rapaz! - bateu-lhe no ombro.


- então, então, senhor lockheart - interrompeu o capitão wood. - o que é que o nosso
homem disse?

o escocês respondeu antes de thomas poder dizer alguma coisa:

- ele não tem medicamentos, senhor, mas parece que finalmente encontramos
alguém que pode falar com a nossa passageira.

- temos? - o capitão ergueu as suas sobrancelhas peludas para thomas.

- o rapaz aprendeu grego e parece que é essa a língua própria para encantar o
ouvido da nossa dama.

- raios o partam, lockheart! - explodiu bromefield. - porque é que não nos haveis dito
que ela falava grego? eu próprio fui à escola do merchant taylor e conheço alguma
gramática grega. eu podia ter falado com ela.

- não lanceis assim a vossa saliva, senhor - rosnou o capitão. - se não podemos
arrefecer-vos o sangue, senhor bromefield, atiro-vos à água para que ela o faça.
senhor chinnery, sois fluente em grego?

thomas acenou que sim:

- sou, sim, senhor. domino a gramática de clenardus e li esopo, platão, demóstenes


e homero.

o capitão wood virou-se para bromefield:

- foi a escola do merchant taylor que vos ensinou tudo isso?

bromefield reteve a respiração e espetou o peito.

- como parece que não possuo quaisquer aptidões de utilidade aqui, vou juntar-me
ao meu companheiro que está em terra, que está neste momento ocupado com o
verdadeiro objetivo desta expedição, senhor, que é o delinear do comércio no
oriente.

bromefield virou-se e afastou-se, olhando para lockheart enquanto se afastava.

thomas sentiu-se num nevoeiro de estupefação, não como aquele que sentiu
quando, por acidente, ingeriu uma gota de xarope de papoula na loja do seu mestre.
a presença de lockheart nesta viagem representava claramente mais do que a
venda da boa lã inglesa.

- perdoai-me, capitão, se causei perturbação.

o capitão wood acenou uma mão carnuda em gesto de despedida.

- não dês importância, rapaz. É este ar sufocante. gostaria que falasses com esta
senhora aditi o mais breve possível. soubemos que ela está muito bem relacionada
e pode dar um alto resgate. descobre quanto e de quem e como se poderá
conseguir. vê se esta expedição ainda pode ter algum lucro. segui o vosso caminho.

quando desciam do tombadilho, thomas perguntou a lockheart:

- sois um homem de tantas línguas, senhor, estou surpreendido por o grego não ser
uma delas.

- para dizer a verdade, é, embora talvez não a saiba tão bem como tu.

- então porque não haveis dito isso ao capitão?

- queres conhecer o conteúdo da caixa, não é? eu acho que o nosso feiticeiro te está
a dirigir para a única que te pode dar a resposta. estes filósofos podem ter modos
labirínticos, mas muitas vezes são generosos com um colega em viagem.

- na verdade, gostaria que não me tivésseis apresentado como um colega


alquimista.

- e porque não? já viste o que já conseguiste? qual é o mal?

- receio ser descoberto. agora ele está a testar-me. o nome que ele mencionou,
”ouroboros”, conhecei-lo?

- eu pensava que era o nome de um verme.

- as suas mãos fizeram um círculo. ah! agora lembro-me. o mestre coulter mostrou-
me uma vez num frasco de argila medicinal que ele comprara a um alquimista da
saxônia. não é um verme, mas sim uma serpente a morder na cauda.

- sim, alfa e omega, mundo sem fim. - lockheart ergueu as sobrancelhas. - e mais
uma vez a imagem de cobras. este mistério leva-nos realmente para um caminho
em serpentina.

- É o que parece. esperemos não encontrar dentes que nos mordam no fim.

capítulo iv

sabugueiro esta pequena árvore dá flores docemente aromáticas na primavera e


bagas pretas no verão. a sua lenha cheira mal. os mais velhos contam que judas se
enforcou no sabugueiro e que foi desta madeira que se fez a cruz do nosso querido
senhor. as bagas vermelhas do sabugueiro têm origem nas gotas de sangue de
nosso senhor. o sabugueiro é sempre uma árvore de dor e morte. trazer ramos de
sabugueiro para dentro de casa é tornar-se anfitrião do diabo, e nem os berços nem
os barcos devem ser feitos desta madeira...

o irmão timóteo agarrou com força contra o peito a bíblia gasta, de capa de couro. a
pobre senhora não compreende, pensou ele com pena. aproximou-se da mulher que
estava deitada, com falta de ar, no catre manchado.
- senhora - disse ele, esperando que a sua voz parecesse suave e em tom de
perdão -, senhora, porque deixais que vos atormentem?

a cela estava silenciosa, tirando a respiração incerta da mulher e o gotejar


incessante de água nalgum canto escuro. a mulher vestia apenas uma roupa interior
outrora de seda fina e agora suja e rasgada. fios de metal afiado atavam-na às
tábuas duras e toscas. ela sofrera o potro, o tormento da água deitada de um jarro
para um trapo de linho que é colocado sobre a língua e dentro da garganta. haviam-
lhe dado alguns momentos de descanso, mas ainda ansiava por ar como se
estivesse a afogar-se. virou o seu rosto pálido para o irmão timóteo quando ele
chegou ao seu lado, mas os seus olhos escuros pareciam não o compreender.

- senhora?

- não! - gritou ela. - mais água não, suplico-vos. - tossindo, rolava a cabeça de um
lado para o outro e saltou-lhe da boca um líquido.

- eu não trago o jarro, senhora. não temais. trago esperança. não deixais que o
diabo endureça o vosso coração, mas abri-o a deus e aos domines que vos
interrogam.

- mas eu disse tudo o que posso! - lamentou-se ela. não há mais nada que possa
dizer-lhes. o meu pai... por favor deixai-me falar com meu pai.

- os domines são o vosso pai aqui, senhora. e deus é pai de nós todos. porque não
lhes dizeis a verdade?

um suspiro estremecido:

- eu disse-lhes a verdade.

- isso não pode ser, senhora, pois ainda estais aqui e os domines estão a voltar. eles
conhecem a verdade quando a ouvem. porque não podeis ver a verdade no vosso
coração?

a mulher fechou os olhos.

- não posso, não sei o que é que eles querem que eu diga. timóteo agarrou na mão
fria e tremula, com os olhos a encherem-se de lágrimas. ele desejava não ter esta
tarefa. testemunhar a dor dos convidados da santa casa. no entanto, ele sabia que
lhe tinham dado o trabalho mais importante, guiar as almas até à luz. odiava o diabo
que causava tanto sofrimento, que cegava os pecadores para com os seus pecados.

- por favor, senhora - disse ele. - olhai para o vosso coração e salvai-vos. falai
livremente, e aceitai o perdão de deus.

foi interrompido por passos na pedra do corredor no exterior da cela. a mulher


ergueu a cabeça do catre, de olhos abertos. a sua mão apertava a de timóteo como
um ferro.
- os domines estão a voltar, senhora. e trazem novamente o jarro.

- não... não os deixeis... por favor, não os deixeis...

- só vós os podeis parar, senhora.

as dobradiças da porta da cela chiaram e entraram três homens: os dois


inquisidores-mores em vestes pretas e um estranho de branco. timóteo apertou a
mão da mulher uma última vez e recuou. se os mexericos da cozinha que ele ouviu
eram verdade, o dominicano devia ser o enviado do grande inquisidor. baixando o
olhar, timóteo fez educadamente uma vênia e pôs-se a um lado.

- irmão timóteo - disse domine sadrinho -, a senhora resgate quer fazer a sua
confissão?

- não sei, domine. ela tem de falar por si mesma. - timóteo olhou para o teto e rezou.
senhor, soltai a prisão que o diabo exerce sobre o seu coração. ajudai-a a ver a luz
do vosso amor. não a abandoneis na escuridão.

- porque é que continuam a atormentar-me, domines? irritou-se a mulher. - eu não


sei nada.

o inquisidor sadrinho respondeu suavemente:

- porque, minha filha, os tormentos que se enfrentam no inferno são muito maiores
que qualquer tormento que possais receber na terra. os sentidos da carne são
passageiros. o inferno é dor eterna. aquilo que vos damos é um carinho comparado
com o que se passa no domínio de satanás. fazemo-vos isto para que vos lembreis
desse fato. não quereis falar livremente conosco e assim escapar aos horrores da
condenação?

após alguns momentos de silêncio, o inquisidor pinto disse:

- parece que ela deseja passar mais tempo na cama da memória.

o homem de branco aproximou-se do catre e disse:

- qual é o vosso nome, senhora?

a sua boca moveu-se, mas não saíram quaisquer palavras. timóteo podia sentir o
seu medo.

- senhora - disse o inquisidor sadrinho -, este é o padre antónio gonsção. ele fez
todo este caminho desde lisboa para ver se não ficais perdida nos fogos de hades.
de tal forma é grande a compaixão da santa casa.

- padre - sussurrou ela -, por favor, ajudai-me.

- padre gonsção, esta infeliz é a senhora serafina resgate, viúva de um fidalgo


proeminente. como vos disse, ela era conhecida por acompanhar os feiticeiros
zalambur e cartago. ai de mim, ela parece não se lembrar do tempo passado com
eles ou com alguém do seu círculo.

- padre - peço-lhe que...

- senhora - disse timóteo -, não percais as vossas preciosas forças pedindo aquilo
que só vós podeis dar. estais a passar por uma horrível provação. peço-vos, dizei
apenas palavras que vos levem à libertação. deixai que os domines sejam como
parteiras que ajudem a vossa alma a entrar numa nova vida, e não coveiros que
observam uma alma a enterrar-se sozinha no pecado.

a mulher olhou para ele.

- não há outra esperança para mim?

- nenhuma, senhora. ela suspirou.

- eu fiz uma jura. nunca falar disso.

- haveis jurado a falsos deuses, senhora - disse o inquisidor. - como podeis ser
castigada por aquilo que não existe?

- eu vi... - ela fechou a boca com firmeza, com um novo medo nos olhos.

- o que haveis visto, filha? dizei-nos e libertai-vos.

ela tossiu outra vez, com os olhos muito fechados, mas não falou.

- muito bem. - domine sadrinho fez um gesto com a cabeça ao inquisidor pinto, que
ergueu o jarro sobre o rosto da mulher, deixando que o tecido molhado lhe tocasse
no rosto.

- não! - os seus olhos arregalaram-se e lutou contra os arames que a atavam.

- por favor, senhora, não nos forceis a fazer isto. conforme o pano de linho lhe tocou
na boca, ela gritou:

- sim! perdoai-me. eu vou confessar!

o inquisidor pinto afastou imediatamente o pano e o jarro do seu rosto.

- bernardo, harun, perdoai-me - murmurou ela.

o coração de timóteo saltou de alegria. caiu de joelhos. graças a deus!

- uma decisão sensata, senhora - disse o inquisidor sadrinho. foi até à cabeceira do
catre e suavemente acariciou-lhe o cabelo úmido - o que nos quereis dizer, minha
filha?
- senhor, eu... eu pequei.

- sim. - o inquisidor-mor acariciou-lhe o braço devagarinho com as costas da mão. -


continua. descreve o teu pecado.

- nós... eu fazia parte de... reuniões. cerimônias. em adoração da deusa.

- e além de vós quem estava nessas reuniões?

- o meu amante, harun. uma mulher chamada aditi. outros... não sei. estava escuro.
não conseguíamos ver os rostos uns dos outros.

- muito bem. e o que faziam nesses rituais pagãos?

- sri aditi disse-nos que a deusa vive entre os mortais na índia. que ela tem o poder
de dar a vida e a morte.

- fostes enganada, senhora. só o senhor deus dá a vida e a morte, e depois a vida


eterna.

- É como dizeis, domine. só deus. mas ela mostrou provas.

- provas? quereis dizer que ela usou de ilusões para vos enganar. mostrou-vos
ídolos?

- estátuas. havia estátuas...

- e esta deusa tem cabeça de hipopótamo ou de outra criatura bizarra?

- cobras... - a mulher parecia estar a entrar em delírio. havia cobras.

- qual é o nome desta deusa?

- o seu nome é força.

- quais foram os vossos atos nestes rituais de adoração?

- houve orações... e cânticos, penso.

- essas evasões não irão salvar a vossa alma, minha filha. tendes de ser mais
específica. não penseis que ficaremos chocados. a santa casa está habituada a
todas as formas do trabalho do diabo.

- então para que preciso de vos contar?

- para bem da vossa alma, senhora.

- alguns de nós... bebemos sangue. aditi disse que era o sangue da deusa.

- sim? continuai.
- É... é tudo.

- impossível.

- não.

- nós sabemos tudo sobre as cerimônias pagãs, senhora. não faz bem à vossa alma
esconder seja o que for. claro, o inquisidor pinto pode trazer novamente o potro, no
caso de a vossa boca estar muito seca, ou de a vossa língua precisar de se soltar.

de olhos estonteados, a mulher disse:

- não, o que é que querem que eu diga? que comemos papoulas ou fornicámos com
animais?

- ah - disse o inquisidor pinto. - agora estamos a chegar algures.

o padre visitante tossiu:

- domine, talvez fosse melhor o jovem irmão ir tratar agora dos seus outros deveres.

- como? ah, sim, claro. podes ir, timóteo.

timóteo fez uma vênia e caminhou para a porta, sorrindo e feliz. depois da sua
confissão, ele sabia que dariam um banho à mulher e que seria alimentada e levada
de volta à sua cela. dar-lhe-iam muito tempo para recuperar enquanto aguardaria
julgamento no próximo auto-de-fé. no seu julgamento seria excomungada, mas se
encontrassem em goa um defensor à altura para ela, seria imediatamente recebida
nos braços da santa madre igreja.

do lado de fora da cela, virou-se e viu que o padre dominicano o seguira.

- foi muito impressionante, meu filho - disse o padre. És na verdade um grande


trunfo para esta santa casa.

timóteo sentiu que o seu rosto aquecia.

- fico contente por mais uma alma ter voltado para deus, padre.

- claro. domine sadrinho, disse-te que eu gostaria de falar contigo com calma um
pouco mais tarde?

- não, padre.

- talvez esta noite, quando tiveres acabado os teus deveres noturnos. fazias-me o
favor de te encontrares comigo?

- mmm... mas claro, padre.


- Ótimo. És claramente talentoso e perspicaz. poderás ser de uma grande ajuda
para o meu trabalho. - com um aceno de cabeça, o padre virou-se e voltou a entrar
na cela, fechando a porta atrás de si.

timóteo sentiu que a sua alegria diminuía com a preocupação o que é que o enviado
especial quer de mim? porque é que ele me elogia? eu só conduzo os nossos
hóspedes para a luz. o seu regresso à graça é obra do senhor, não minha. mesmo
nada minha.

capítulo v

oliveira: esta árvore muito venerada cresce no oriente desde tempos antigos. dos
seus frutos retira-se um óleo bom como remédio, alimento ou combustível para
candeeiros. para os gregos a oliveira era símbolo da paz, de viagem segura e vida
muito longa. era consagrada a atena, a sua deusa da sabedoria. em itália,
considera-se que o ramo da oliveira protege do raio do trovão e das bruxas. para os
espanhóis, um arco de oliveira torna a mulher chefe da casa...

sri aditi, nascida com o nome de dará naini num clã de gentes de caravanas no
rajastão, olhava fixamente para o deserto do mar. tanta água, e nenhum socorro
para a sede. que horizonte tão longínquo, mas sem lugar para onde caminhar. morte
no meio da vida. vida no meio da morte. um paradoxo à altura de mahadevi. porque
é que eu deixei que bernardo me convencesse a fugir com ele? eu nem sequer o
amo. em goa havia ruas familiares e casas onde a ajuda se podia encontrar. o que é
que faço agora?

a janela na cabina do navio inglês era demasiado pequena para se saltar por ela.
pouca diferença fazia; aditi não sabia nadar. ser asfixiada pela água, ou
despedaçada pelos monstros que moram lá em baixo? não, se a morte tiver de
chegar, a forma não será essa. a brisa trouxe do mar um cheiro acre a sal. aditi
recuou e fechou a janela.

havia vozes a aproximarem-se da porta.

aditi rapidamente se pôs atrás de uma mesa, que colocou juntamente com uma
cadeira entre ela e a porta. deslizou o candeeiro de petróleo para ficar ao alcance da
mão e pousou a outra mão no cabo de uma faca enfiada na cintura da sua saia
gahgrah. iria tentar ferir ou matar o maior número de ingleses que pudesse, ou a si
mesma, antes de eles terem qualquer hipótese de a envergonhar. até agora tinham
sido educados, mas bernardo dissera-lhe como eram os ingleses. não esperava que
a sua amabilidade durasse muito.

os marinheiros estavam a acender os candeeiros no convés inferior. com aquela luz


fraca, thomas e lockheart encontraram a porta dos aposentos do senhor bertwick,
que morrera de escorbuto há dois meses. thatch, o velho e vigoroso mestre de
armas do whelp, que era considerado pela tripulação com um misto de terror e
respeito, estava de guarda encostado à amurada.

- boa noite, senhor thatch - disse thomas.


- ah, o jovem senhor chinnery! boas-noites também para vós. tendes porventura
mais um pouco daquele sumo de ópio? eu acho que a minha febre terçã está a
piorar.

- infelizmente, não, senhor, não há mais. mas se encontrarmos algum, dar-vos-ei a


saber.

- bom, então, ficarei muito agradecido. o que vos traz por aqui?

- disseram-me que a nossa prisioneira está aqui alojada. por trás dele, lockheart
acrescentou:

- o capitão gostaria que falássemos com ela pois conhecemos uma língua que ela
sabe.

o mestre de armas esfregou o queixo proeminente com o polegar, olhando com


suspeita para o escocês.

- sim, há muitos homens a bordo a quererem falar a língua dela, e os lábios e as


mãos também. mas eu estou encarregado de que nada de mal lhe aconteça.

- tende cuidado com a vossa própria língua, senhor rosnou lockheart. - nós somos
cavalheiros aqui ao serviço do capitão.

- por favor - disse thomas, mais uma vez espantado com a forma como lockheart
parecia provocar inimizades em todo o lado. - tenho ordens para saber como é que
se poderá obter um resgate da senhora. e talvez ela saiba quais os remédios que
podem ser encontrados nestas terras, em especial o xarope de papoula.

- então entrai, meu bom senhor chinnery. mas se alguma coisa correr mal, chamem
por mim. - o mestre de armas puxou o trinco e recuou.

- assim farei, senhor.

a senhora aditi estava de pé por detrás de uma pequena mesa quando thomas e
lockheart entraram. a luz fraca do candeeiro em cima da mesa cintilava nos fios
dourados do seu sari vermelho, brilhando na trança escura do seu cabelo. uma mão
de dedos esguios repousava na mesa, a outra na cintura, perto de uma faca
semiescondida. ela olhava para eles desconfiada, mas não parecia ter medo.
thomas achou-a muito bela, embora de estrutura demasiado musculosa e porte
excessivamente orgulhoso para o seu gosto. o azul dos seus olhos tem mais aço
que o céu limpo.

sentiu que lockheart lhe bateu nas costas.

- não fiques aí especado, rapaz. fala!

com uma pequena vênia, thomas disse em grego.

- os meus cumprimentos, despoina aditi. disseram-me que sabeis a língua dos


sábios e antigos helênicos.

os seus olhos abriram-se e um sorriso suave apareceu nos seus lábios. a sua
postura desconfiada relaxou e deixou descair a mão afastando-a da faca. inclinou a
cabeça.

- certamente falastes com bernardo.

- se quereis dizer despos de cartago, estais correta.

- como é que acontece falardes esta língua? sois um estudioso, como bernardo?

- sim, despoina. embora os nossos reinos de estudo difiram. eu sou thomas


chinnery, boticário, um investigador de ervas e drogas curativas.

- estou a perceber. - inclinou a cabeça com um sorriso curioso. - ”tamas”, não é?

- nai, despoina. há alguma coisa...

- não é nada. os vossos nomes estrangeiros são-me estranhos.

- ah. posso perguntar-vos como é que sabeis grego?

- fui ensinada pelas minhas amas quando era criança.

- tivestes amas... muito instruídas, despoina.

- nai. quem é este? - aditi voltou o seu olhar para o escocês.

- sou andrew lockheart, despoina - disse ele com uma vênia. - um homem errante
longe da sua floresta, trazendo o ramo sagrado da caçadora.

thomas olhou de lado para ele. o que poderá ele estar a tentar fazer? a senhora aditi
fez uma vênia em resposta, mas não mostrou qualquer reação às suas palavras.

- fomos enviados pelo capitão wood - prosseguiu thomas -, para sabermos qual o
resgate que poderemos obter por vós e quem o pagará.

- compreendo. podem negociar com os maratas de goa. eles pagarão de boa


vontade milhares de tangas de prata para a minha libertação segura. também
controlam muito negócio nesta região, e se eu for bem tratada poderei ter alguma
influência sobre eles relativamente aos vossos mercadores.

- então e os portugueses - disse lockheart -, que vos perseguiam e a despos


cartago? o que é que eles poderiam pagar se vos entregássemos a eles?

ela levantou o queixo, com os olhos mais estreitos.

- neles não se pode confiar. iriam enganar-vos e pagar-vos com a morte.


thomas suspeitou que seria a senhora aditi a pagar com a morte, se fosse entregue
aos portugueses, mas não se importou de a ajudar a evitar um tal destino.

- como é que podemos contactar esses maratas?

- qualquer comerciante hindu que encontrardes nesta costa irá aceitar pagamento
para levar uma mensagem dessas. cuidado, porém, com os piratas, pois também
são vulgares nestas águas.

- temos conhecimento disso, despoina, mas agradecemos.

- porque é que desejais voltar para goa - disse lockheart -, quando acabais de fugir
de lá? não pensáveis continuar em direção a pegu com despos de cartago?

a senhora aditi baixou o olhar para a mesa.

- lamento ter fugido com ele. não desejo deixar a índia. É a minha casa. estou
envergonhada com a minha cobardia por tentar fugir ao meu dharma, e à ira da
deusa que me apóia.

- ela virou a cara para a janela.

lockheart acenou gravemente com a cabeça.

- como eu vos compreendo. sois mais corajosa do que eu, despoina.

thomas olhou novamente para ele. estará ele a querer lisonjeá-la?

- tenho mais uma pergunta que gostaria de fazer, despoina.

-qual é?

thomas tirou a caixa furtada da sua casaca.

- encontrei isto no barco de cartago. contém sinais que sugerem que o seu conteúdo
possa ser medicinal por natureza. temos muitos homens doentes e feridos a bordo,
e não temos mais nada para lhes dar a fim de aliviar a dor ou para curar. podeis
dizer-me se o pó que está lá dentro tem qualquer utilidade para nós?

a senhora aditi olhou para a caixa. thomas não tinha a certeza por causa da pouca
luz, mas pareceu-lhe que o seu rosto se tornou um nada mais pálido. fez uma pausa
antes de responder.

- haveis aberto a garrafa?

- nai, despoina. pensamos que esteja cheia com uma espécie de sangue em pó.
despos de cartago sugeriu que pudésseis saber algo sobre isto. se é uma santa
relíquia, ou uma substância utilizada em bruxaria?

ela fez novamente uma pausa.


- bernardo disse-vos mais alguma coisa?

- não, despoina.

agarrou com força nas costas de uma cadeira. com um suspiro, disse por fim:

- não é medicinal. não deveis usá-lo por isso para esses fins, pois poderá fazer mal.
É sangue de macaco. bernardo usava-o nas suas... experiências alquímicas. peço-
vos que lhe devolveis isso, pois poderá não ter qualquer utilidade para vós.

- então porque é que a garrafa vinha acompanhada de um caduceu se não é


medicinal? e porquê o papel com frases sagradas respeitantes à vida e à morte se
não é uma relíquia?

- não sei. talvez a garrafa anteriormente tenha contido remédios. o sangue seria
santo apenas para aqueles que adoram hanuman, o deus macaco. digo mais uma
vez, não tentem usar o pó para cura. só vos trará... má sorte.

- ah - disse lockheart. - um talismã de má sorte, como a pata do mesmo macaco.


não admira que os portugueses andassem atrás de vós.

thomas olhou para a caixa, relutante em deixá-la.

- que experiências é que despos cartago faz com isto?

- quando lha devolverdes, talvez ele vo-lo diga. não tenho nada mais a dizer. por
favor, deixem-me só, estou cansada.

- mas ainda há mais uma coisa - insistiu lockheart. - quem é a deusa de quem
falastes antes, que vos apóia?

os seus olhos tornaram-se novamente desconfiados e a sua mão deslizou em


direção à faca da cintura. lockheart levantou as mãos:

- não receais, despoina. não somos padres para vos converter. só pergunto como
um homem curioso com as coisas do mundo.

os seus lábios ficaram finos numa expressão que tanto podia ser de medo como de
desprezo. caminhou até à janela e abriu-a.

- o seu nome é força - murmurou a senhora aditi, olhando fixamente para o mar.

thomas não pôde dizer se ela estava a responder a lockheart ou a murmurar uma
oração. lockheart abriu a boca como se quisesse fazer ainda uma outra pergunta,
mas com um olhar intencional para o escocês, thomas falou primeiro.

- perdoai-nos por vos termos incomodado tanto tempo, despoina. agora vamos
deixar-vos a sós.
lockheart fechou a boca com um sorriso pesaroso e thomas acompanhou-o na
saída. quando saíram do alcance do ouvido do senhor thatch, thomas disse:

- achais que ela tenha mentido? quero dizer, acerca do pó?

- como uma leoa no deserto, rapaz, ela mente com o seu orgulho.

- porque é que haveis dito essas estranhas palavras sobre um ramo e uma caçadora
na vossa apresentação, e aquelas perguntas sobre quem é que ela adorava?

- esperava vir a saber que espécie de sofista ela seria, mística, erudita ou feiticeira.
agora, penso eu, talvez uma espécie de feiticeira.

- o que importa, desde que sejamos capazes de obter o seu resgate em segurança?

lockheart franziu o sobrolho:

- todo o conhecimento tem a sua utilidade mais tarde ou mais cedo, rapaz. adquiri o
hábito de juntar o máximo que posso. também podias fazer o mesmo.

- começais a ficar parecido com o mestre coulter, senhor.

- estou? - e a sua cara carregada tornou-se um sorriso, subtil. - lisonjeais-me. bem,


vamos dizer ao capitão as suas condições de resgate e depois podes juntar-te ao
resto da tripulação na praia. ainda não acabamos os barris do bom vinho espanhol
que tiramos da posse de cartago.

- agradeço-vos, mas já vi que o folguedo tão animado muitas vezes leva dali a
bocado à pancadaria. ainda tenho de ir ver outra vez os meus doentes lá abaixo,
que não podem tomar parte nessas festanças. podeis dar a mensagem da senhora
aditi ao capitão sem mim?

lockheart parou de andar e pestanejou.

- se tens a certeza que é esse o teu desejo. uma noite sem as profundezas fétidas
iria fazer-te bem, rapaz. não é bom para os doentes terem um médico sem humor.

- então, por favor, deixai-me com o meu humor e o meu trabalho. ide gozar os
despojos enquanto eu trato os que ficaram despojados a obtê-los.

- compreendi o toque - respondeu lockheart com uma vênia e uma careta. - tem
então o cuidado de permanecer lá em baixo durante a noite, pois os esgares dos
bêbados são uma visão terrífica para os homens sóbrios.

- assim farei, senhor.

- não te esqueças, não comas romãs enquanto estiveres lá em baixo, ou não te


veremos durante meio ano.

thomas riu-se:
- darei os vossos cumprimentos ao senhor plutão, se o vir, tal como vós, senhor,
apresentai as minhas cortesias a baco.

- não, a minha musa é a casta diana, e tenho de fazer companhia à lua durante toda
a noite. até amanhã, tom. lockheart subiu as escadas até ao convés superior,
desaparecendo na escuridão.

thomas avançou pelo corredor estreito, entre os mastros, até ao sítio onde uma
outra escada levava às instalações da tripulação. thomas desceu-a lembrando-se da
descida de orfeu até ao inferno. embora eu não procure verdadeiro espírito de amor
aqui, muito eu gostaria de levar uma destas infelizes almas uma vez mais até à luz.

capítulo vi

aveleira: esta pequena árvore tem folhas arredondadas e amentilhos longos. no fim
do verão, produz nozes escapeladas chamadas [em inglês] ”filberts”, em honra de
são filberto, pois é na festa do seu dia que as avelãs amadurecem. a aveleira é, para
os irlandeses, uma árvore de sabedoria e comer as suas nozes faz uma pessoa
sábia. os de gales entretecem ramos de aveleira nos seus chapéus, acreditando que
lhe concederá grandes desejos. os melhores ramos para adivinhação vêm da
aveleira, quando cortados na véspera de são joão. uma varinha cortada da madeira
de aveleira por uma criança inocente de fé verdadeira ajudará na procura de
assassinos e ladrões...

o padre gonsção sentou-se num quarto escuro, bafiento e sem janelas. esfregou os
olhos, que já lhe doíam de tantas horas a ler à luz da vela. o banco alto onde se
sentava já parecia duro que nem uma pedra. apesar de os ter segurado com
cuidado, os três livros enormes que ele estivera a ler continuamente ameaçavam
cair do atril estreito. e os livros pouco continham daquilo que gonsção precisava de
ver.

o inquisidor sadrinho, ao que parece, não deseja o meu sucesso. mesmo assim, os
livros que lhe haviam dado apontavam para a razão. verificara cuidadosamente o
registro do último auto-de-fé, realizado no dia 8 de dezembro de 1596. as listas
daqueles que foram conduzidos para execução civil, dos que foram mantidos na
prisão, e os que foram libertados mostravam que só os hereges mais ricos, que
tinham muita propriedade para ser confiscada, foram queimados. gonsção fazia uma
lista daqueles que foram mandados para a fogueira, com a intenção de pedir os
registros do seu interrogatório. suspeitava que iria ver sempre os mesmos familiares
como testemunhas de acusação.

tal como era de esperar, não lhe tinham dado qualquer registro dos julgamentos do
governador coutinho ou do vice-rei afonso de albuquerque. ambos eram homens
ricos e em posições que podiam desafiar o poder da santa casa. podia acontecer as
acusações contra eles serem falsas. gonsção lembrou-se de um caso em lisboa; um
homem fora preso como herege durante dois anos até o seu acusador confessar ter
prestado falso testemunho - ficara ciumento, pois o prisioneiro cortejara uma mulher
que o acusador desejava. a santa casa é como uma espada bem feita; uma arma
poderosa empunhada tanto para o bem como para o mal.
assustou-se com uma pancada na porta. gonsção fechou o livro e disse:

- benedite. entrai.

o irmão timóteo entrou, trazendo outro livro de capa de couro e no cimo um tabuleiro
de prata. na travessa estava um jarro de água, um copo e uma tigela de arroz com
um molho picante de ragu, encimada por fatias de peixe fumado.

- uma imensidão de bênçãos te cubra, meu filho. deve ter sido a própria nossa
senhora da piedade que te mandou. gonsção indicou que o tabuleiro deveria ser
posto no chão, pois não havia outro lugar onde o colocar.

o irmão timóteo pousou o tabuleiro e o livro com cuidado.

- não, padre. foi o domine pinto quem me mandou.

- então certamente que foi inspirado pelos anjos. - o inquisidor pinto é dominicano,
tal como eu. talvez a lealdade para com um irmão da ordem possa vir a ser de maior
força e valor do que a lealdade dentro da santa casa.

- sim, padre. - o rapaz ficou deferentemente em pé junto à porta. tinha cabelo preto
cortado à tigela e olhos escuros, e a luz da vela dava à sua pele castanha uma
tonalidade acobreada.

não há dúvida que ele tem algum sangue hindu, um mestiço, tal como parecem ser a
maior parte dos goeses. É uma pena, pois vai impedi-lo de ter uma posição mais alta
do que a de padre paroquial.

- fica, timóteo. estou contente por finalmente termos a hipótese de falar. - gonsção
deslizou do seu banco. – podes estar à vontade para te sentares neste banco por
uns instantes. eu já me sentei nele demasiado tempo.

- oh, não, padre! vou sentar-me aqui. - sem hesitação, o rapaz sentou-se de pernas
cruzadas no chão sujo.

- como quiseres. - gonsção deu a volta ao atril, achando que era mais confortável
estar de pé. - há quanto tempo serves na santa casa?

o rapaz contou pelos dedos por momentos.

- há quatro anos, padre.

- e há quanto tempo és avocato dos convidados da casa?

- há um ano e um mês, padre.

- mmmm. o que é que me podes dizer sobre esses convidados, timóteo?

o rapaz pestanejou.
- não sei a que vos referis, padre.

- são gente educada e erudita? ou pobres agricultores e gente do comércio? ou


fidalgos ricos?

- não tenho a certeza, padre. presto pouca atenção a essas coisas. eles são todos
pessoas tristes, assustadas, com as almas doridas. todos a precisarem da nossa
orientação.

- sim, calculo que na altura em que os vês, seja assim que todos pareçam. são bem
tratados?

- aqueles que confessam e aceitam deus são tratados com amabilidades, padre.
mas...

- mas?

suavemente, o rapaz disse:

- por vezes acho que os guardas são demasiado duros com eles.

- bom, por vezes tem de se contratar homens duros para essa tarefa. os nossos
convidados são como crianças perdidas, e as crianças precisam de uma orientação
firme e de disciplina para encontrarem o caminho reto na vida, não é verdade?

então a sua educação tem sido descuidada. É impressionante que um instrumento


tão afinado possa ter surgido de uma confraria de tão má qualidade.

- e os inquisidores? como é que eles tratam os convidados?

- oh, os domines são muito gentis, padre. domine sadrinho passa muito tempo com
os convidados, em especial com as mulheres. quase todas as senhoras que ele
ministrou acabaram por confessar.

gonsção sentia-se desconfortável com a volta que isto estava a levar.

- haveis já servido alguma das heresias nestorianas?

- hummm... só duas, padre. são muito difíceis.

- sim, é por isso que é preciso lidar com elas com severidade, meu filho. estão tão
perto da verdade e, no entanto, tão erradas.

timóteo acenou em confirmação e olhou para as suas mãos.

- um não se arrependeu. foi condenado à fogueira no auto-de-fé seguinte.

gonsção avançou e colocou a mão no ombro do rapaz.


- não te culpes. tenho a certeza que fizeste tudo o que podias.

- rezo por ele todos os dias, padre.

- isso é bom, meu filho. trouxeram para aqui muitos nestorianos?

- acho que não.

- estou a ver. - e no entanto a destruição dessa heresia foi a razão principal para a
fundação desta santa casa. parece que os inquisidores se afastaram do seu
objetivo. - timóteo, não eras avocato quando o governador coutinho aqui estava, pois
não?

o rapaz abanou a cabeça.

- mas talvez tenhas ouvido alguma coisa sobre o assunto. alguma referência às
acusações, ou à sua confissão?

- não, padre. e se tivesse, dizem-nos para nunca repetir o que um convidado


confessou.

- claro. exceto em algumas circunstâncias. deixa-me que te explique. as forças que


levaram coutinho e albuquerque ao pecado podem ser ainda mais poderosas e
traiçoeiras do que as da heresia nestoriana. eram homens de boa família cristã,
percebes, a quem não faltava honra nem riqueza material. no entanto, algo os levou
a afastarem-se de deus, a seguirem um caminho que certamente sabiam ser
perigoso para as suas vidas e almas. É este o mistério para o qual fui enviado a
resolver, timóteo. essa fonte do mal poderá estar ainda ativa em goa, e poderá
espalhar a sua influência mais longe se não a descobrirmos. foi-me atribuído este
dever pelo grande inquisidor albrecht, e, através dele, por sua santidade o papa. vês
como isto é importante, meu filho?

o rapaz acenou com a cabeça, de olhos muito abertos.

suavemente, gonsção prosseguiu:

- o miasma da corrupção pode ter infectado até a própria santa casa.

- não!

- chiu, também me dói pensar nisso, e espero que se venha a demonstrar não ser
assim. mas temos de ter muito cuidado, meu filho. tenho de te pedir que não
discutas com ninguém estas coisas de que falamos. consegues fazer isto?

após uma pausa, o rapaz fez que sim com a cabeça.

- muito bem. agora, preciso que me ajudes numa coisa na minha tarefa. preciso dos
relatos dos julgamentos de coutinho e albuquerque. o inquisidor pinto poderá saber
onde poderão ser encontrados. pergunta-lhe onde os outros não te possam ouvir, e
se ele puder arranjá-los, traz-mos. fazes-me isto?
o rapaz engoliu com dificuldade:

- sim, padre.

- deus te abençoe. És um soldado do senhor na batalha contra satanás. agora vai, e


vê se podes encontrar domine pinto.

timóteo pôs-se de pé:

- sim, padre. - olhou para a porta, mas hesitou.

- há mais alguma coisa, meu filho?

- posso fazer uma pergunta, padre?

- certamente.

- perdoai-me, mas... domine sadrinho disse que lhe haveis dito para me tirarem os
lusíadas.

- ah, sim, realmente recomendei-lhe isso. ele disse-te porquê?

- não, padre. mas... ele disse umas coisas que eu não devo repetir.

gonsção suspirou:

- meu filho, tens de compreender que o livro de camões faz provavelmente parte do
mesmo perigo de que estivemos a falar. poderá ter uma influência corruptora numa
mente tão nova como a tua.

- mas eu li esses versos toda a minha vida! - os olhos de timóteo estavam tristes e
com um toque de desafio.

- então o mérito é teu, meu filho, por a tua fé permanecer forte e pura. mas estás a
chegar a uma idade perigosa, quando o diabo envia dúvidas para perturbar a tua
mente e tentações para atormentar a tua carne jovem.

- mas o livro é só histórias!

- as histórias têm poder, timóteo, quer para o bem quer para o mal. foi por isso que
nosso senhor usou parábolas para ensinar a sua mensagem aos seus discípulos.
mas tens de desconfiar de outras histórias para além das que encontras no livro
sagrado.

a boca do rapaz apertou-se e as suas mãos fecharam-se. mas finalmente olhou para
os seus pés e sandálias e disse:
- como quiserdes, padre. gonsção sorriu:

- terás o livro de volta um dia. talvez signifique mais para ti nessa altura. disseram-
me que é uma obra difícil, mesmo para aqueles que estudaram os clássicos. todas
aquelas referências a lugares distantes, divindades obscuras e criaturas.

- mas eu conheço todas essas coisas, padre - disse timóteo. - li a ilíada e virgílio e
outros livros. estavam todos na biblioteca do meu avô. e ele contou-me muitas
histórias que ele leu.

- chiu, já chega. É claro que tens mais educação que muitos rapazes ricos de lisboa.
deus concedeu-te uma inteligência rápida, mas a tua aprendizagem agora tem de
ser de espécie diferente. tens o dom de inspirar fé nos outros, levando-os assim
para deus. temos de cuidar para que as antigas histórias pagãs não te distraiam de
uma tarefa tão importante.

timóteo suspirou.

- sim, tendes razão, padre.

gonsção deu-lhe pancadinhas no ombro.

- És esperto, meu filho. até para mim tu és uma inspiração. agora vai. temos muito
que fazer, tu e eu.

sem mais palavras, timóteo fez uma vênia e saiu.

gonsção pegou na tigela de arroz e sentou-se mais uma vez no banco, sentindo-se
vagamente sujo.

capítulo vii

ameeiro esta árvore tem folhas redondas e de matiz avermelhada. os irlandeses


utilizam-no para ler a sorte, e para saber a natureza da doença de um homem, se
cortar um ramo de amieiro, a madeira irá passar de branca a vermelha, como se a
árvore fosse de sangue vivo. talvez seja por esta razão que o amieiro era
considerado pelos antigos como uma árvore de ressurreição.

thomas estava agachado num cemitério, no meio da escuridão e com o cheiro


intenso a podre. escavou a terra úmida à sua frente como um cão rafeiro à procura
do seu jantar queimado. À distância, atrás de si, ouviu lamentos e gemidos suaves.
ainda andam à minha procura. e se calhar encontram-me. ele escavou à pressa,
arrancando raízes enredadas e pedras pontiagudas. os seus dedos embateram
numa coisa dura e ele limpou a terra em volta. da poeira surgiu uma coisa pálida e
redonda - um crânio, ainda com alguns fios de cabelo. o crânio fixou nele o seu olhar
de órbitas vazias e abriu os maxilares de marfim. thomas gritou: ”mãe!” e sentou-se,
acordado, batendo com a cabeça no catre por cima dele.

sentou-se por momentos, com falta de ar e o coração a bater-lhe com força no peito.
os pesadelos. voltaram outra vez. na escuridão dos aposentos da tripulação, o
sonho pairou nos seus pensamentos, não abandonado pelo estado de vigília. meu
deus, porque é que sou tão atormentado? esfregou os olhos e interrogou-se que
horas seriam. thomas lembrava-se de ter deixado a companhia de lockheart e de ter
ido ver os seus doentes, apesar de não haver muita coisa que pudesse fazer por
eles.

exausto, thomas descansara num catre vazio. e adormecera. e sonhara.

os homens doentes, feridos e moribundos gemiam baixinho à sua volta, alguns


murmurando orações ou chamando pelos seres queridos.

que direito tenho eu de estar com pena de mim, quando estes infelizes vivem um
pesadelo do qual não há despertar? thomas pegou num candeeiro que estava
pendurado na cabeceira do catre e levantou-o para verificar os homens.

ali ao seu lado estava stephen, o tanoeiro, cujas costelas tinham sido esmagadas
por uma bala de canhão. thomas colocara-lhe em volta do pescoço uma bola feita de
galha de carvalho vazia cheia com galho esmagado e rábano bastardo para manter
a febre baixa, mas sem resultado. o homem tremia num sonho perturbado.

um braço magro surgiu da escuridão:

- há mais remédio das dores, senhor? pelo amor de deus, peço-vos!

era howard, o cordoeiro, cujas pernas e peito tinham sido queimados e esmagados
pelo canhão que ele próprio disparara. para ele, thomas experimentara a teoria do
óleo das próprias armas defendida pelo grande paracelso; thomas aplicara uma
pasta de valeriana e malva ao canhão em si, tratando o homem apenas com água
limpa e ligaduras. como resultado, as feridas de howard estavam a sarar
toleravelmente bem, mas continuava a sofrer de grandes dores.

- daqui a pouco - era tudo o que thomas conseguia dizer -, já vou ter mais.

a seguir estava corbin, cujos braços e pernas tinham sido partidos por um mastro
que caíra. thomas pusera os ossos no lugar tão bem quanto pôde, e deu ao homem
um amuleto de terra sigilata feito de argila de malta. thomas não invadiu a dignidade
de corbin reconhecendo os seus gemidos de desespero.

no catre mais além jazia pepper, o aprendiz de cozinheiro, inanimado devido ao


refluxo dos intestinos. as pequenas doses de mercúrio misturado com pó de múmia
pareciam não ter sido de grande ajuda e não respondeu à voz de thomas.

apertou o ombro do rapaz e passou rapidamente. meu deus, nunca fui preparado
para um serviço como este. se os janotas que vinham à nossa loja a queixar-se de
dores de cabeça pudessem ver estes homens e soubessem o que é o verdadeiro
sofrimento. os carinhos que ele aprendera para auxiliar senhoras cheias de afetação
não tinham cabimento na câmara infernal que tresandava a suor e a infecção podre.
então porque é que tenho de ser eu a tratar deles se tenho tão pouco jeito para os
ajudar?
thomas continuou a ronda terrível, dando o pouco conforto que podia, pensando nos
medicamentos que poderia combinar das poucas reservas que lhe restavam.

finalmente, chegou ao pé de nathan, o aprendiz de carpinteiro, cujo catre ficava junto


à escada. o rosto do rapaz revelava um sono tranquilo. thomas sentou-se ao seu
lado, congratulando-se por aqui pelo menos haver um que não estava a sofrer. mas
quando observou, apercebeu-se de que o rapaz estava na verdade muito quieto,
mais do que é natural no sono. o medo apoderou-se dele e colocou a mão no
pescoço do rapaz. não tinha pulso.

thomas inclinou a cabeça, com um suspiro profundo. porque logo este, senhor, que
tinha tanta vida à sua frente? thomas percebeu que tinha de se apressar. neste
clima, os cadáveres não tratados rapidamente tornam-se um perigo para os vivos.
no entanto, devia ser dita uma oração. passou-lhe uma frase pelos pensamentos:
todo aquele que acreditar em mim terá vida eterna.

thomas colocou a lanterna nos degraus e tirou a caixa de madeira do bolso. abriu-a
com cuidado e retirou a seda que embrulhava a garrafinha. as suas mãos
começaram a tremer quando levantou a garrafa opalescente que cintilava à luz da
lâmpada. finamente esculpida na superfície do vidro, invisível anteriormente, estava
a imagem de uma ave, com as asas esticadas, erguendo-se de um leito de chamas.

- sangue de macaco, é isso que és? - murmurou thomas, com o coração a bater
forte. - oh precioso macaco, cuja baba vem com palavras de vida para além da vida,
tu dizes a tua mensagem claramente. - lembrou-se do aviso da senhora aditi, da
forma como ela lhe pedira para devolver a garrafa a cartago. será que o alquimista
descobriu a pedra filosofal da lenda? o elixir da vida?

thomas olhou para o rosto jovem de nathan. que mal poderá fazer a alguém já
morto? não ousando reconsiderar, desrolhou a garrafa.

- nate, se esta substância for sagrada, que tu sejas abençoado por ela. se não, que
o mal recaia sobre a minha alma, não sobre a tua. que deus me ajude.

segurou na garrafa sobre o rosto de nathan e borrifou uma pequena quantidade de


pó entre os lábios ligeiramente afastados do rapaz. parou durante uns momentos,
mas não viu qualquer alteração. thomas suspirou e pôs novamente a tampa na
garrafa, e a garrafa de novo na caixa. pegou na mão fria de nathan entre as suas e
fechou os olhos. senhor, se for essa a tua vontade, dá-lhe de volta a vida. se não,
leva depressa a sua alma para o céu.

a seguir sentiu um puxão no punho da camisa. lentamente, thomas abriu os olhos.


nathan virara a cabeça e olhava para ele.

- senhor chinnery? está a magoar a minha mão, senhor. thomas apercebeu-se da


força com que apertara e largou.

- nate... por favor, perdoa-me. como estás?

- cansado, senhor. dormi de mais? tive sonhos estranhos.


- sonhos? - os mortos sonham, então?

- sim. havia um belo edifício junto ao mar, tudo colunas brancas e assim. e uma
senhora bonita. e serpentes.

- serpentes? - meu deus, o que é que eu fiz?

- mas eu não tinha medo, senhor. foi um sonho agradável.

- ah, deixa-me ver a tua ferida, nathan. - thomas levantou a ligadura improvisada que
apertava as costelas de nathan. ainda se viam cicatrizes vermelhas ao longo do
peito e do abdômen, mas já não estavam infectadas. estavam secas e claramente a
caminho de sarar.

- a infecção desapareceu! diz as tuas orações, nathan, pois deus concedeu-te a tua
recuperação. eu... eu tenho de ir falar com uma pessoa.

thomas colocou a caixa na casaca e pôs-se de pé.

- amanhã posso voltar lá para cima, senhor? estou cansado desta tarimba.

- sim. vamos ver. amanhã. - thomas pegou na lanterna e subiu as escadas, sem
fôlego devido ao terror e ao espanto.

emergiu da escotilha e mergulhou numa noite mais escura que as profundidades lá


de baixo. eram poucas as lanternas da amurada que tinham sido acesas e as
estrelas brilhavam intensamente por cima dos mastros partidos. não havia lua.

do outro lado da lagoa, os foliões na praia surgiam como silhuetas contra as


fogueiras, dançando e gesticulando que nem demônios cabriolando no fogo do
inferno. À ré, um marinheiro solitário contemplava o mar, com a ampulheta por virar,
esquecida. À exceção dele, o whelp parecia deserto.

thomas virou-se e caminhou suavemente para o castelo de proa.

aditi caminhava para trás e para a todo o comprimento dos seus aposentos, incapaz
de dormir. os seus pensamentos debatiam-se como nuvens de tormenta. mais uma
vez ouviu vozes à porta.

o homem rude e de barba escura entrou e curvou-se. tinha o rosto corado e a


respiração rápida e breve.

- despoina. espero não ter perturbado o vosso descanso.

- não. onde é que está o vosso amigo de cabelo amarelo?

- está ocupado noutros deveres. perdoai-me, mas tenho de ir direto ao assunto, e


rapidamente. surgiu uma hipótese que tem de ser aproveitada ou esta noite ou
nunca.
- uma hipótese de quê? o vosso capitão não concorda com as nossas ofertas de
resgate?

- concorda, mas receio ter de vos dizer que ele não pode cumprir os seus acordos.
os nossos navios estão demasiado danificados para navegarem, as reparações
poderão levar meses.

aditi engasgou-se a respirar.

- então nessa altura o santa rosa poderá voltar e com ele mais navios.

- com efeito, e com tão poucos homens capazes, não estamos em condições para
outra batalha.

- talvez os goeses não nos encontrem aqui.

- não, despoina. já é demasiado tarde. os comerciantes que nos servem têm espiões
goeses entre eles. a nossa localização, e a presença de cartago conosco, é já
conhecida.

aditi apertou a parte de cima dos seus braços, sentindo frio.

- o que ides fazer?

ele delineou o seu plano. os olhos de aditi abriram-se.

- faríeis isso por nós?

- por mim - disse ele com um sorriso meio trocista.

- contra os vossos...

- ninguém sairá prejudicado, e uma vez partido o feiticeiro, eles estarão em menor
perigo. o capitão wood deu-me autorização para vos levar juntamente com despos
cartago, de forma a, segundo ele acredita, poder discutir posteriormente o resgate.
apressemo-nos, despoina.

a hipótese de abandonar o compartimento pequeno e vazio era bem recebida. o


velho marinheiro magro que estivera a guardar a sua porta caiu para trás quando
entraram no corredor. aditi podia sentir o olhar dele nas suas costas. ela ansiava
deixar o confinamento deste navio, com os seus homens perdidos e feridos. ela
estava muito consciente de como podiam ser frágeis os limites da civilização. um
passo em falso, uma mudança de vento, e ela podia ser devorada como uma pomba
no meio de chacais.

foi levada até uma sala muito parecida com aquela que deixara, mas ainda mais
pequena. bernardo estava sentado a uma mesa, com as mãos agrilhoadas. a
exaustão afundara-se na nobreza do seu rosto. cumprimentou-a com um sorriso de
lamento.
aditi foi ter com ele e colocou-lhe a mão no ombro.

- bernardo. fizeram-te mal? - ela falava em marata.

- não. mas não descansei e não tenho estômago para a comida deles. É bom ver-te,
meu falcão.

aditi interiormente recuou perante esta amabilidade.

- ele contou-te o seu plano?

- contou.

aditi franziu o sobrolho.

- confias nele?

- daquilo que vi quando me interrogaram na coberta, acredito que estes navios não
possam sair daqui muito em breve. pelo menos isso é verdade.

- sabes qual o perigo de voltares para goa. cartago ergueu as mãos até ao peito.

- não sou louco, aditi. estou preparado.

thomas ficou surpreendido por ver o senhor thatch a guardar uma porta diferente da
anterior.

- ah, senhor chinnery. estava a perguntar a mim mesmo quando iria aparecer. o
vosso amigo já está lá dentro e a conferência já começou.

thomas pestanejou, confuso.

- perdão? queres dizer lockheart? eu pensava que ele tinha ido a terra. e não
estavas a guardar a senhora aditi?

- É o que estou a fazer, senhor, e ela está lá dentro, com o feiticeiro. estão juntos
para discutir planos de resgate. não vos disseram?

thomas abanou a cabeça.

- não importa. posso entrar.

- com certeza, e se alguma coisa correr mal, não fiqueis perto de mim.

- não o farei. - thomas escancarou a porta e entrou. cartago e lockheart estavam


sentados à mesa, e a senhora aditi encontrava-se de pé a um lado. todos olharam
para ele como crianças apanhadas num jogo proibido qualquer. quando thomas
encontrou o olhar de aditi, sentiu que ela sabia ao que ele vinha.
- thomas? - disse lockheart. - o que se passa? eu pensava que estavas a tomar
conta do rebanho lá de baixo.

thomas cerrou os punhos e sentiu a garganta seca.

- uma ovelha perdida regressou fora de tempo. - olhou para cartago, mas disse em
grego: - acho que fui enganado.

a senhora aditi respondeu:

- haveis usado o sangue.

- parece que viste um fantasma, rapaz - exclamou lockheart. - peço-te, senta-te e


põe-te confortável.

- as vossas palavras são muito hábeis, senhor - retorquiu thomas, sentando-se. para
cartago, thomas disse em latim: - preciso saber, magister, a fonte deste poder.

- um momento - interrompeu lockheart. - nós chegamos a meio. o que é que


aconteceu para te pôr assim tão nervoso e pálido?

em latim, de forma a que o feiticeiro pudesse compreender também, thomas


explicou:

- lembrai-vos de nathan, o aprendiz de carpinteiro? quando o examinei numa das


minhas últimas rondas, ele jazia quieto, sem qualquer pulsação nas veias ou
respiração da sua boca. pus-lhe um bocadinho deste pó entre os lábios. dali a pouco
tempo, o rapaz acordou, vivo e com a ferida a sarar. não se apercebeu que tinha
estado sem vida.

cartago deixou sair um longo suspiro. lockheart deu ao feiticeiro um olhar


especulativo, depois sorriu tristemente para thomas.

- mas não há qualquer milagre nisto. fui soldado, e vi muitos cadáveres aparentes
serem arrastados do campo, e reviverem a caminho da vala comum. o rapaz não
estava morto, tom, só a dormir.

- eu sei o que vi, senhor! cartago disse:

- mais alguém testemunhou isto?

- não, magister. estava escuro. mais ninguém podia ver.

- então temos apenas a tua palavra sobre esta ressurreição espantosa - comentou
lockheart. - descansaste o suficiente, tom?

- depois de nos termos separado, senhor, examinei os homens sob a minha guarda,
depois deitei-me para descansar. dormi, mas acordei com pesadelos.

- e tens a certeza que este acontecimento não fez parte do vosso sonho?
- eu sei a diferença, senhor!

lockheart aproximou-se e bateu com a mão carnuda no ombro de thomas.

- acho que tu próprio precisas de uma poção mais poderosa do que o sangue em pó
de macaco. espera um pouco que já te trago um pouco do ótimo madeira dos
nossos convidados. tenta não os aborrecer muito com perguntas fantasiosas, sim?

com um piscar de olhos, lockheart levantou-se e saiu do compartimento. thomas


ouviu-o falar durante uns momentos com o senhor thatch antes de os seus passos
se afastarem pelo corredor.

- avisei-vos para não o usardes - disse a senhora aditi num latim desajeitado.

- mas não me haveis dito porquê, domina, e eu estava desesperado à procura de um


remédio. e este provou ser o mais poderoso dos remédios, por isso preciso de
conhecer a sua natureza.

cartago olhou para a porta, de sobrolho carregado.

- perdoai-nos, senhor chinnery, por não termos sido totalmente honestos convosco,
mas fizemos um juramento de não revelar a fonte do pó. É uma questão que só se
põe para... iniciados.

- iniciados? - suspirando, thomas enfiou os dedos no cabelo. - magister, sois cristão?

- fui, outrora. a minha aprendizagem, porém, levou-me a ser apóstata. porque


perguntais?

- para saber se ireis entender o que vou perguntar a seguir. condenei a minha alma,
ou a do rapaz ressuscitado, com o uso deste pó?

a senhora aditi fez uma cara séria e estendeu as suas mãos esguias e de dedos
compridos.

- tivestes sorte, tamas, pois mahadevi mostrou-vos a sua bênção. mas nem sempre
é assim. e ficareis perturbado com aquilo que não compreendeis. se acarinhais a
vossa fé, deveis devolver-nos o pó e esquecer o que vistes.

cartago ergueu a mão num gesto para ela, mas as grilhetas interferiram. falou
suavemente com ela numa língua estranha a thomas. depois, para thomas, disse:

- que tipo de alquimista sois vós?

- não vos informaram corretamente, magister, eu não sou alquimista, mas sim
aprendiz de boticário. uso ervas, especiarias e todo o tipo de coisas para curar
enfermidades. sei que partilhamos algum conhecimento, embora aquilo que
procuramos através desse conhecimento seja diferente. nunca antes usei uma
substância de tanto poder.
cartago ergueu as sobrancelhas.

- então, a minha senhora não é a única em cuja palavra não se pode confiar
inteiramente.

- não escolhi enganar-vos. lockheart desejava que me julgásseis um alquimista,


talvez para ganhar a vossa confiança. perdoai-me. só que, por favor... estou
condenado?

- não sei o que vos dizer. na vossa terra, os que pertencem à minha antiga igreja são
chamados traidores devido à sua fé.

thomas suspirou.

- É verdade que pedem aos meus conterrâneos papistas para escolherem entre a
sua fé e a rainha. É um estado de coisas muito triste. quereis então dizer que isto é
o sangue de um santo? É uma relíquia papista?

o cavalheiro português olhou para ele durante bastante tempo e thomas sentiu como
se estivesse a ser pesado numa balança delicada.

- em que é que acreditais vindo de mim? eu, que para vós sou herege, apóstata, e
investigador de conhecimentos proibidos? podia contar-vos histórias fantásticas de
demônios que caminham na terra sob forma mortal; chamas que aparecem na noite
sem qualquer intervenção terrena; pedras que caem como chuva dos céus. que
entenderíeis disso?

thomas não sabia se rir ou gritar de frustração.

- sois sem dúvida um mago habilidoso, magister. conseguis transmutar toda a forma
de um discurso. mas não posso deixar passar isso. podeis não querer saber do
estado da minha alma, ou da de qualquer outro inglês. mas eu gostaria de saber
apenas isto.

cartago e a senhora aditi olharam um para o outro. ela abanou a cabeça com
gravidade. cartago virou-se novamente para thomas e sorriu com tristeza divertida:

- meu jovem leão, há coisas que por vezes um homem sensato não diz a outro. há
conhecimentos que não podem ser apreendidos pela mente não preparada.

como isto é parecido com o que o meu pai dizia, quando eu lhe rogava que me
contasse qual era o trabalho que o mantinha tão sequestrado da minha vista,
pensou thomas.

- mesmo assim - prosseguiu cartago, como se falasse com uma criança. - se a


minha opinião significa algo para vós, acho que a vossa alma não está mais
condenada ao inferno agora do que estava ontem. mas, também, se houvesse
inferno, eu estaria condenado há muito tempo. - deu um olhar de relance para a
porta: - depois desta noite, talvez já não importe o que eu penso.
os passos de botas aproximaram-se da porta e lockheart entrou, trazendo três
canecas de cerveja.

- bebidas à conta da casa! - declarou ele, quando as colocou na mesa. - os homens


em terra não serão os únicos a poder festejar. já temos razões para celebrar.

com uma vênia, pôs uma em frente de cartago. o feiticeiro inclinou a cabeça, mas
não bebeu o vinho.

lockheart empurrou outra na direção da senhora aditi.

- despoina?

ela apenas relanceou rapidamente, depois afastou-a. pôs a última caneca em frente
de thomas.

- se os outros não são sociáveis, pelo menos tu vais beber comigo, não é, tom?
ouviste alguma história mais colorida?

thomas fechou os olhos e suspirou.

- não me disseram nada de útil.

- pois, o que eles têm é mesmo línguas de serpentes. bom, bebe um pouco deste
vinho, porque eu tive um pensamento muito útil.

- tivestes? - thomas pegou na asa da sua caneca.

- foi, sim - respondeu lockheart, sentando-se. - lembras-te de bandy teci, do


benjamin, que sucumbiu ao escorbuto ainda nem há dois dias?

- sim. foi queimado na praia nessa mesma noite.

- isso mesmo. pois esse é um excelente teste para o teu pó milagroso. tentemos
trazê-lo de novo à vida.

thomas imaginou o cadáver decomposto a erguer-se do seu túmulo de areia.

- estais louco, senhor? isso seria abominável!

- ah! por causa dos teus melindres, irias privar um homem de uma boa ressurreição,
não era? para poupar o teu estômago, irias condená-lo a jazer debaixo de solo
estrangeiro? ou receias que nada se mova senão um caranguejo de areia?

cartago olhou para thomas e pediu uma tradução.

- magister, ele está a sugerir que utilizemos o pó num homem morto há dois dias.

a senhora aditi exclamou algo e cobriu a boca. o feiticeiro olhou fixamente para
lockheart.

- certamente que não tendes essa intenção.

- achais que não teremos sucesso?

- mais e menos do que o desejado. mas de certeza que esta não é a altura para uma
experiência dessas.

- há uma altura para as palavras, senhor cartago - precisou lockheart -, e uma altura
para as obras.

- É agora a altura? - disse cartago com um olhar enviesado para o escocês.

- em breve - respondeu lockheart, com solenidade por detrás dos seus olhos joviais.
em inglês, para thomas, acrescentou: - não há mais nada a aprender sentados a
beber aqui. vamos embora, rapaz.

esta última frase teve um tom de comando que thomas nunca ouvira a lockheart.
levantou-se da mesa. com uma vênia a cartago, disse:

- uma boa noite para vós, magister.

- e para vós, herbalista.

thomas fez um aceno à senhora aditi.

- minha senhora.

ela inclinou a cabeça, com um olhar azul intenso.

- espero que sejais sensato, tamas, ou trareis a destruição à vossa volta.

as palavras dela inquietaram-no.

- É essa a minha intenção, senhora.

capítulo viii

piÓnia: esta vinha é também conhecida como o nabo-do-diabo. tem um caule


espinhoso e um rizoma carnudo. dá flores amarelas e bagas negras. embora seja
um purgante útil, a planta é, contudo, muitas vezes maligna, mas algumas pessoas
malévolas cortavam as raízes e vendiam-nas como a mais poderosa mandrágora,
enganando e envenenando os compradores esperançosos. quando tomado em
grandes quantidades o rizoma é venenoso e as bagas são, de fato, um veneno
bastante poderoso.

enquanto thomas estava ali parado, ponderando sobre os avisos da senhora aditi,
lockheart escancarou a porta e ele foi empurrado para fora, esbarrando
impetuosamente contra o mestre de armas. mestre thatch começou
atabalhoadamente a proferir injúrias e lockheart gritou:

- para dentro, bom thatch! afanai-vos! os vossos prisioneiros estão a tramar uma
fuga! o feiticeiro quase nos enfeitiçou para que fôssemos cúmplices deles. entrai e
observai-os com os vossos olhos de águia, para que os feitiços e cantatas deles não
lhes permitam escapar!

thomas começou a protestar mas as mãos de lockheart cobriram-lhe a boca.

- o pobre tom ainda está sob o efeito do feitiço. tenho de o levar até lá fora para que
respire um pouco de ar fresco. para dentro, homem, antes que os vossos bruxos
voem com o tempo!

desconfiado, thatch espreitou pela entrada. lockheart deu-lhe um pontapé para


dentro do quarto e fechou a porta com uma chave de ferro. ignorando as batidas e
os palavrões provenientes do outro lado da porta, lockheart pôs um braço à volta do
desnorteado thomas e guiou-o pelo corredor abaixo.

- o que é que vos possuiu?

- o espírito de apoio, rapaz, e de pa também, acho eu. não achas divertido?

o homem estará bêbado? mas não cheira a álcool!

- não, e o capitão wood também não vai achar isto nada divertido quando souber.
ainda vai ter um ataque de apoplexia.

- ah, isso seria uma visão impressionante, de fato. lockheart subiu a escada para o
convés principal e thomas seguiu-o.

- não, se a tiverdes enquanto pendurado num mastro. santo deus, como está escuro!
sabeis porque estarão as luzes apagadas?

- está toda a gente na praia, rapaz. quem necessita de ver? thomas apercebeu-se
das formas de homens cobertos de turbantes, misturadas com as sombras dos
mastros e balaustradas.

- os homens de cartago ainda aqui estão.

- ha? ah, são maometanos. não bebem. um hábito triste. vem, aqui está a corda; o
barco voga ali mesmo em baixo.

- estais determinado a tentar esta experiência louca? lockheart agarrou-o pelo


ombro.

- só para te deixar descansado, rapaz. uma vez que te seja provado que o teu
milagre é apenas um fantasma, não temerás mais pela tua alma, mas juntar-te-ás às
festas e acolherás com alegria outros espíritos que não sejam os que já partiram
deste mundo. agora vais?
parece que eu tenho de condescender com este estranho estado de espírito dele.

- muito bem. pelo menos desta vez, senhor, eu rezo para que tenhais razão.

- somente desta vez? rezo para que tenha quase sempre razão.

- ficaríeis feliz se eu me juntasse aos festejos imediatamente e não fizesse primeiro


uma tentativa de trazer de volta uma alma perdida?

- o quê? e negar ao pobre ted uma hipótese de festança?

- eu acho que isso não lhe serviria de muito. qualquer bebida esgotaria uma criatura
que é só ossos.

lockheart riu-se.

- muito bem, isso contentar-me-á. mas no teu caso, eu nunca mais daria ouvidos a
nada sobre esse disparate de ressurreição, ha? deixa essas coisas para os profetas
de outrora, e dedica-te aqueles feitos que são próprios da juventude. vamos, desce.
eu vou atrás de ti.

thomas olhou para o lado. lá muito em baixo, ouviu o bater da água contra a madeira
num ritmo imperfeito e viu um contorno tênue do barco a remos a balançar ao lado
do navio. engolindo a sua inquietação, thomas passou as pernas sobre a
balaustrada, agarrando uma corda grosseira. buscando com o pé, encontrou um
degrau da escada de corda, e então baixou-se até que todo o seu peso estava na
escada.

- mostra algum despacho, rapaz. sê lesto.

- um despacho lesto é o que eu temo - murmurou thomas enquanto procurava cada


degrau numa descida lenta. a meio caminho olhou para cima e viu o vulto negro de
lockheart definido contra o céu estrelado, como se um demônio sombrio do inferno
tivesse usurpado a sua forma e agora obrigasse thomas a descer para a perdição.

um forte estrondo, como um tiro de pistola, ou madeira a bater contra madeira, suou
na popa do navio. thomas ouviu lockheart a praguejar mais acima.

- parece que mestre thatch forçou a fechadura - disse thomas.

- talvez. eu vou ver, rapaz. desce para o barco. volto em seguida.

thomas continuou a descida até que o seu pé encontrou a tábua do assento do


barco a remos. escutou um som vindo de cima e olhou outra vez nessa direção -
algo lhe atingiu o rosto e ele caiu para dentro do barco. uma dor aguda correu-lhe
pelos ombros e braços. cambaleou, enrolado na corda, desorientado. parou e
respirou por um momento, esperando que o balouçar violento do barco se
acalmasse.

foi apenas a escada que caiu sobre mim. deve ter-se desenganchado da
balaustrada. agora lockheart não vai poder juntar-se a mim, nem eu vou poder subir
para ajudá-lo.

thomas desembaraçou os braços da escada e sentou-se, escutando. os gritos e


cantares da tripulação na praia chegavam tenuemente através da lagoa. o som do
bater da água contra o barco e contra o navio parecia alto em comparação. mas,
mesmo assim, thomas tomou consciência de outros ruídos pouco usuais. passos
suaves no convés acima, vozes cujo ritmo não era inglês.

estarão os homens de cartago a tentar apoderar-se do navio? thomas olhou para a


praia e pensou se deveria dar um grito de alarme. não, eles não me iam ouvir. mas o
que é que eu posso fazer? o capitão estará entre os farristas ou a bordo?

vieram mais ruídos do castelo da popa e uma pancada na água do outro lado do
navio. thomas pensou em como poderia voltar a bordo. mas o casco do whelp
avultava-se por cima dele, um rochedo negro impossível de escalar. a balaustrada
estava demasiado alta para atirar a escada de corda. ah. a corda da âncora do outro
lado da proa. talvez eu possa subir por ela.

thomas empilhou a escada de corda na popa do barco a remos e ajoelhou-se na


tábua de madeira. colocando as mãos contra a parte úmida do whelp, empurrou-se
ao longo do casco, agradecendo a deus por as águas estarem calmas.

quando deu a volta à proa, com o gurupés acima dele, uma simples sereia à luz do
dia, parecia agora ser uma criatura dos seus pesadelos, faminta para arrebatá-lo.
por fim, a bombordo, examinou a escuridão para encontrar a corda da âncora
- mas o seu olhar foi atraído para uma outra forma negra ao lado do whelp a alguns
metros de distância. lanternas na estranha embarcação mostravam que esta tinha
uma vela latina do tipo que thomas tinha visto no golfo arábico. de dentro dela,
homens de turbantes subiam cordas para o interior do whelp.

uma daura! não são os homens de cartago, mas sim piratas muçulmanos! thomas
ficou gélido, o coração a bater-lhe fortemente.

ao ver a corda da âncora, thomas alcançou-a e achou que era escorregadia ao


toque. impossível subir. e posso ser visto ao tentar fazê-lo.

algo bateu contra o barco a remos, vultos escuros flutuando na água. thomas olhou
mais de perto e viu que era um corpo.

ao voltar-se a luz incidiu sobre ele - era o mestre thatch. enjoado, thomas ponderou
se deveria puxar o homem para dentro do barco a remos, talvez para tentar
ressuscitá-lo. quando o alcançou, tocando o corpo com a ponta dos dedos, o ar saiu
em bolhas por debaixo das roupas de thatch e sem a sua flutuabilidade, o corpo
afundou-se para fora de alcance.

ouviu vozes na daura e as luzes de lanternas revelaram um homem de barba negra,


gesticulando para os marinheiros de turbante. por trás dele havia um vislumbre de
tecido escarlate com fios dourados.
eles capturaram lockheart! e a senhora aditi!

a raiva divorciou, de algum modo, a sua mente e a razão. thomas libertou a corda da
âncora. baixou-se para se deitar de bruços no esquife, o peito sobre a proa de modo
a que os seus braços compridos alcançassem a água. silencioso como um tubarão,
thomas remou em direção à daura. não apareceu ninguém no convés que desse por
ele.

nos últimos metros thomas deslizou, deixando as mãos e braços absorverem o


impacto, enquanto se aproximava do casco da daura. agarrando-se à madeira,
esperou e escutou.

não percebeu nada da conversa melodiosa, mas parecia que os muçulmanos


estavam reunidos no centro do navio, talvez para admirar os prêmios que tinham
conseguido. quando thomas deixou de ouvir vozes ou sons de passos perto dele,
atreveu-se a erguer a cabeça e os ombros para espreitar pelo convés. o porão de
uma parte baixa do navio, acima do convés, obstruía-lhe a visão do resto do navio
costeiro, mas não havia qualquer homem à vista. incutindo força nos braços já
doridos, thomas içou-se para dentro do convés, dando um pontapé no barco a
remos para longe. depois, rastejou em direção à parede da cabina da proa e
aconchegou-se aí.

risos e exclamações chegavam da segunda coberta, e então ouviu passos suaves a


aproximarem-se. thomas esquadrinhou em volta, procurando uma vela ou uma
corda para se esconder; em vez disso, as suas mãos encontraram a coberta de
escotilha. abriu-a e deslizou lá para dentro, deixando a coberta fechar-se sobre si.

caiu de uma altura de alguns pés e aterrou na escuridão, no que pareciam ser
aduchas de corda e montículos de redes de pesca. os passos acima da sua cabeça
passavam lentos e regulares. graças a deus. não fui descoberto.

o porão cheirava a peixe e a corda úmida. sentiu alfinetadas de dor nos braços e na
barriga - lascas de madeira usada da escotilha. agora, meu grande idiota brilhante -
repreendeu-se a si próprio. - o que é que vais fazer?

sentiu muitos passos a aproximarem-se, descendo as escadas algures acima dele. a


luz bruxuleava, delineando os contornos de uma porta a menos de um metro do seu
rosto. havia vozes muçulmanas muito próximas, rindo.

o navio costeiro tremeu e balançou para um lado. thomas caiu contra um montículo
de redes. a água por detrás do tabique batia mais alto e com um ritmo de ondulação
de maré baixa. maldição, eles zarparam! agora estou verdadeiramente encurralado.

alguém remexeu no trinco da porta à sua frente. tenho de me esconder. mas como,
se eu não consigo ver nada à minha volta? thomas andou como um caranguejo para
longe da porta, até ficar pressionado contra o tabique.

a porta abriu-se para dentro e por sorte ficou atrás dela, escondido. uma luz de
lâmpada entrou, revelando-lhe que estava num porão de armazenamento, que
ocupava a maior parte da proa.
alguns homens encostaram-se à entrada da porta. algo caiu ou foi atirado para o
porão com um sonoro estrondo e a porta foi fechada de novo.

thomas suspirou de alívio na escuridão recuperada. então veio um gemido do centro


do porão.

- senhor? - murmurou thomas. - senhor lockheart, sois vós? estais bem? - esticou o
braço e sentiu o veludo encharcado entre os seus dedos.

- então sois vós. o jovem cristão que teme pela sua alma disse uma voz suave em
latim. - também já vos haveis tornado judas?

- senhor cartago?

- ou sois vós também uma vítima do jogo deles?

thomas engoliu em seco.

- não entendo, mestre. eu subi a bordo na esperança de salvar o meu amigo e a


senhora aditi.

- ah, sim? então sois um tonto, embora um tonto piedoso. o vosso amigo é um
cretino, se bem que um cretino prático. no que diz respeito à senhora... ela serve um
poder de formas que eu desconheço.

- o que estais a dizer, magister? que lockheart está aliado aos piratas?

- ele disse que nos ajudaria a escapar. que os vossos navios não poderiam navegar,
nem os homens poderiam defender-nos. disse que os mercadores costeiros com os
quais tinha estado a negociar, lhe ofereceram passagem para goa. mas tinham de
ser pagos, não? É sabido que eu tenho a minha cabeça a prêmio. ”fazei de conta
que sois prisioneiro”, disse o vosso amigo. ”podeis escapar na hora certa.” mas no
entanto permitiu-lhes que me batessem e me drogassem. e penso que isto não é um
papel para eu desempenhar. a minha cabeça será o preço da passagem.

- porque é que a senhora vos decepcionaria tanto?

- ela serve uma causa mais importante. não posso culpá-la. há muito em jogo, se as
pessoas erradas a capturarem.

thomas escutou mais risadas lá fora; e reconheceu uma gargalhada entusiástica. um


frio percorreu-lhe o corpo. lockheart queria-me fora do navio porque sabia que isto ia
acontecer. sem nenhum homem capaz a bordo, este esquema seria simples. e eu
condenei-me a mim próprio, ao entrar neste ninho de vespas. bem, mais cedo ou
mais tarde eles irão descobrir-me. o mínimo que eu posso fazer é surpreender
lockheart e deixá-lo saber que a sua proeza desonesta não passou despercebida.

thomas abriu a porta com um pontapé e tropeçou, pestanejando numa cabina


apinhada de homens de compleição escura. as costas largas de lockheart estavam à
sua frente.

- que haveis feito, homem? - gritou thomas lockheart voltou-se e o seu rosto ficou
pálido.

- thomas?

- sim, e que nome tendes vós agora? não será judas?

três dos piratas árabes agarraram-no, prendendo-lhe os braços atrás das costas.
thomas lutou apenas por breves instantes, achando que não era adversário para
eles.

a senhora aditi apareceu no fundo da cabina e aproximou-se dele com preocupação


nos olhos.

- ignorastes as minhas palavras, tamas - disse ela em grego. - não haveis sido
sábio. - afagou-lhe o gibão e então retirou-lhe a pequena caixa de madeira com a
garrafa preciosa.

- de qualquer modo a minha viagem chegou ao fim, despoina.

- não necessariamente - disse ela, passando a caixa a lockheart. - mas a vossa


viagem agora será mais comprida. e mais difícil.

lockheart lançou-lhe um olhar penetrante, magoado.

- a sorte maldita não me libertará do destino que me foi designado, parece-me -


murmurou ele. - eu esperava poupar-te, rapaz. poupar-nos a ambos.

- então, matar-me-eis como haveis feito com o mestre thatch?

lockheart abanou a cabeça.

- isso foi obra da senhora. a tua hora de morrer ainda não chegou.

o seu punho carnudo atingiu o rosto de thomas e este sentiu o golpe com força na
têmpora. o quarto rodopiou enquanto ele caía contra os homens que o seguravam.
explosões anormais de luz reluziam à sua frente, depois tudo ficou numa escuridão
absoluta.

capítulo ix

maÇÃ: diz-se que esta fruta tão apreciada é proveniente do oriente. pensa-se ser a
cura para muitos males. nas histórias antigas, procurava-se maçãs divinas como um
meio para obter a imortalidade. eram usadas como sortilégios mágicos, ou testes de
fidelidade. também se diz que as maçãs fazem as pessoas desejar coisas proibidas.
a maçã pode ter sido o fruto do conhecimento no Éden e devido ao pecado original
de eva, pensa-se que a maçã seja a fruta da tentação, da desobediência e da perda
da inocência...
irmão timóteo caminhou apressadamente pelo corredor, apertando o livro de
registros contra o peito. o bater do seu coração soava-lhe mais alto nos ouvidos do
que o bater dos próprios pés. eu pequei. eu pequei perante o padre, o arcebispo e o
papa. está errado, errado, perdoa-me, senhor todo-poderoso, corrigi isto, mas eu
pequei e isso está errado e eu irei certamente morrer queimado no inferno para
sempre.

nessa manhã nas matinas, domine pinto tinha sussurrado ao ouvido de timóteo que
os registros do julgamento do governador coutinho podiam ser encontrados debaixo
de uma pilha de papéis, numa despensa perto das cozinhas. timóteo não teve de
procurar muito para encontrar o volume encadernado a couro entre os papéis de
rascunho, trapos, e madeira preparada para servir de lenha, como se algum poder
superior ou inferior tivesse a intenção de que timóteo o levasse. mas ele tivera de
dizer uma mentira ao cozinheiro, afirmando que domine sadrinho o tinha enviado. o
cozinheiro, é claro, acreditou nele visto que todos na santa casa sabiam que irmão
timóteo era uma boa pessoa, temente a deus e que nunca, nunca mentia.

o corredor de mosaicos que conduzia aos dormitórios estendia-se à sua frente,


impossivelmente longo. o livro, volumoso e pesado, dificultava a sua corrida. timóteo
não reparou na mesa lateral cuja perna sólida se projetou no seu caminho. o pé
ficou-lhe preso na perna da mesa e ele caiu para a frente. os braços abriram-se,
deixando o livro de registros voar como um pássaro enjaulado, quando é posto em
liberdade, com a encadernação a abrir-se como asas.

com um grande estrondo e ruído, timóteo caiu no chão de joelhos e cotovelos. o livro
aterrou pouco depois, deslizando à frente dele pelo corredor, as páginas soltas
espalhando-se como um leque de senhora.

- não, senhor, por favor. por favor, não. não permitais que alguém tenha ouvido -
murmurou timóteo. e gatinhou apressadamente para apanhar os papéis que tinham
caído. as mãos tremiam-lhe tanto que cada página que ele apanhava chocalhava
como uma folha de palmeira ao vento.

as páginas estavam fora de ordem, quando as juntou, e timóteo tentou disciplinar a


mente o suficiente para as pôr de volta na sua sequência correta. não estavam
numeradas e cada página estava completamente escrita de cima a baixo, frente e
verso. timóteo teve de fazer um exame atento do princípio e do fim de cada uma
para saber qual era a que se seguia.

a princípio, tudo o que leu eram simples relatos de perguntas monótonas referentes
a parentes, frequência à igreja, e às tarefas diárias de governar. então, subitamente,
encontrou o registro da confissão de coutinho... e parou. aqui estavam escritos
nomes que timóteo tinha visto nos livros do seu avô e nos lusíadas, pessoas e
criaturas do passado dourado, ocultas detrás das neblinas do monte olimpo. o
governador tinha visto provas, tinha confessado que as histórias pagãs dos tempos
antigos eram verdadeiras. uma história em particular.

fascinado, timóteo procurou pela página seguinte... e viu-a debaixo de uma bota de
couro suave e da bainha de uma batina negra. lentamente olhou para cima, para o
rosto do inquisidor sadrinho. ai, eu não direi mais mentiras, senhor. castigai-me
agora.

com uma expressão impassível no rosto, sadrinho disse:

- esta luz não é suficiente para ler, meu filho. É um mau sítio. - então ajoelhou-se e
com gentileza retirou as páginas das mãos de timóteo. olhou momentaneamente
para o papel, depois juntou os outros no chão, colocando-os de volta dentro da
encadernação de couro. sem dizer outra palavra, sadrinho pôs-se de pé, enfiou o
livro debaixo do braço, deu meia volta e foi-se embora.

- perdoai-me, domine - disse timóteo, ainda ajoelhado no chão.

- não se fala mais nisso - disse o inquisidor brandamente. - dizei, por favor, ao irmão
pedro nas cozinhas, que quero arroz de açafrão para o pequeno-almoço.

timóteo viu-o partir, esperando por uma explosão de temperamento que deveria
certamente estar para chegar. mas não se deu. para ele, esta calma era mais
aterrorizante do que qualquer chicotada de cana de bambu. timóteo olhou para os
arabescos nos azulejos, não se atrevendo a levantar, demasiado abatido para
chorar.

o padre gonsção saiu da catedral de santa catarina de ânimo leve, após o serviço
religioso matinal. a luz do sol estava brilhante, o ar fresco e frágil como vidro. o dia ia
estar quente outra vez, e a noite também. a praça já estava cheia de homens
ricamente vestidos, resguardados por guarda-sóis carregados por escravos, como
se um jardim de cogumelos ambulantes, alegremente colorido, tivesse brotado na
umidade da noite.

À distância, trombetas e charamelas anunciavam impetuosamente um casamento ou


um batizado, ou outro acontecimento familiar. as brisas traziam odores a pimenta,
canela, peixe e carne rançosa.

o arcebispo meneses apareceu por trás de gonsção. o padre reparou que o


arcebispo vestia apenas uma simples batina beneditina, e tinha só um criado, que se
mantinha silenciosamente de pé ao seu lado.

- uma manhã agradável, não é verdade? - disse meneses.

- agradável, excelência? - disse gonsção, agitando a túnica de lã branca. - vamos


ficar outra vez assados como porcos, hoje.

o arcebispo abanou um dedo avuncular.

- ainda não haveis visto goa no auge das monções, meu filho. as tempestades
sopram em grandes ondas vindas do mar. os vendavais arrancam as copas das
palmeiras e as telhas dos telhados. a chuva cai com força, como uma ducha de
pregos. aqui em goa, deus está no seu estado mais dramático.

um palanquim de seda, carregado por oito escravos parou ao lado dos degraus da
catedral. a cortina de tecido foi puxada para o lado e uma mestiça encantadora,
mastigando um bolo de betei, olhou sugestivamente para gonsção. este lançou-lhe
um olhar carrancudo e voltou-lhe as costas. a mulher riu-se e ordenou aos seus
carregadores para prosseguirem caminho.

- talvez em goa - murmurou gonsção -, deus tenha mais necessidade de


dramatismo.

- talvez tenhais razão - disse o arcebispo. - isto não é nenhum refúgio de santos. É
por isso que frequentemente me visto como estou vestido, com um hábito simples,
de modo a não atrair atenção indevida. e não aconselho ninguém a caminhar
sozinho após o anoitecer. de qualquer modo, goa tem a sua beleza e as suas
maravilhas. gostaríeis que vos mostrasse algo da cidade? como já deveis ter ouvido
dizer, o corpo de francisco xavier miraculosamente preservado, pode ser visto na
igreja de são paulo. peregrinos de toda a Ásia, da china e até mesmo das ilhas
nipônicas vêm prestar-lhe homenagem aqui.

- vós honrais-me, excelência - disse gonsção, caminhando em direção à praça. -


mas estou certo de que tendes coisas mais importantes que fazer. tal como eu.

- como quiserdes. - a seguir, em voz baixa, meneses disse:


- no que concerne ao vosso pedido de auxílio, meu filho, acho que não vos poderei
ajudar muito. falei com o governador gama mas ele e os seus ministros não querem
entrar em disputa com a santa casa e não falarão contra ela. tendes de entender,
sadrinho tem familiares em todos os sítios.

- eu entendo, excelência.

- entretanto, ouvi dizer que as embarcações inglesas que tanto atormentaram o


capitão ortiz foram vistas. estão a ancorar a sul, para reparar danos tal como
calculastes.

- então poderemos ter outra peça do puzzle afinal. eu estou à espera de ver os
registros da confissão de coutinho dentro em breve.

o arcebispo arqueou as sobrancelhas.

- debaixo do nariz de sadrinho? o grande inquisidor escolheu bem, de fato. vós sois
deveras um homem cheio de recursos, padre.

- não sou merecedor de tal lisonja, excelência. os meus métodos não foram os mais
nobres. - gonsção reparou num grupo de soldados que riam, reunidos ao redor da
fonte no centro da praça. passavam para trás e para diante um pequeno recipiente
de cerâmica que tinha muitas goteiras, tentando beber dele.

- o que fazem aqueles homens?

- ha? ah, é um jogo, um tipo de iniciação entre os soldados. o recipiente chama-se


gorgoleta e a finalidade é beber vinho dele sem derramar uma gota. uma tarefa
difícil, como podeis observar.
- que estranho. nunca vi tal coisa em lisboa. o arcebispo encolheu os ombros.

- quem pode dizer de onde vêm estes novos hábitos? tendes a certeza de que não
ireis ver nada mais da nossa bela colônia? poderíamos visitar o velho castelo em
bardes, ou passear pelo campo. têm-me dito que as colinas de goa são tão ricas em
minérios que têm atraído alquimistas de todo o mundo, determinados a arrancar
delas ouro e cobre.

- hoje não, excelência. mas agradeço-vos. - esta mistura de raças, nacionalidades,


línguas, hábitos, pensou gonsção, é uma cacofonia para o espírito. goa está para a
civilização, assim como os guinchos e murmúrios de crianças estão para a música.

- caso reconsidereis, senti-vos à vontade para me procurar. É sempre um prazer


falar com alguém, que chegou tão recentemente do nosso país. que deus vos guie
no vosso caminho, meu filho.

- que deus vos proporcione um bom dia, excelência.

o arcebispo e o criado afastaram-se, em breve desaparecendo por entre os trajes de


cores vivas, pára-sóis e palanquins, que enchiam a praça da catedral.

gonsção suspirou e voltou em direção à santa casa, esperando que o irmão timóteo
lhe trouxesse algo menos tentador para os olhos e menos inquietante para o
espírito.

capítulo x

datuda: esta planta cresce no oriente e também é conhecida como a maçã-de-


espinhos ou a maçã-do-diabo. as suas folhas, com um cheiro repugnante, têm a
forma de um ovo e, no verão, as suas flores são azul-claras. o sumo desta planta
causará letargia e visões. deve ser usada com grande cuidado, porque, quando
utilizada em excesso, é venenosa. na índia, é usada por ladrões nas suas vítimas,
por mulheres nos maridos que pretendem enganar, e por príncipes uns nos outros,
porque faz as pessoas agirem como loucas...

thomas foi embalado como se estivesse num berço, um berço que cheirava a peixe,
a madeira velha e a mar. um anjo no fundo da sua mente, disse-lhe que estava
ferido e tinha sido drogado e que deveria estar com medo. mas os pensamentos
dele não eram suficientemente coerentes para querer saber onde é que estava, nem
que droga poderia ser.

ele já assim estivera antes. há muito tempo, na sua infância, thomas lembrou-se
como que em sonhos de uma mesa coberta com uma toalha branca. num estado
entorpecido e apático semelhante a este tinha sido carregado nos braços do seu pai
e colocado sobre a mesa. havia um gosto a vinho doce e o cheiro a grãos de cevada
queimados. havia uma mulher bonita em pé, perto dele, vestida apenas com uma
túnica drapejada. atrás dela estavam dois cães de caça altos e elegantes.

o anjo na mente de thomas estava transtornado.


- isto não foi justo - disse ele. - não te deviam ter feito isto.

thomas virou a cabeça para o outro lado e fechou os olhos. escutou um estrondo à
distância, como se fosse um trovão. passados alguns instantes, o estrondo
transformou-se em batidas de cascos de cavalos. três, ele sabia. eram sempre três.

de repente, ele estava a correr pela floresta, a luz do sol penetrando pelas árvores,
apunhalando-lhe os olhos. os seus cascos, pequenos e fendidos, mal tocavam a
terra entre cada salto. atreveu-se a olhar para trás para os seus atormentadores que
o perseguiam; três mulheres a cavalo; as capas moviam-se por detrás delas como
asas. não conseguia ver-lhes os rostos. elas gritavam-lhe com guinchos estridentes
de falcões:

- assassino! assassino!

olhou outra vez para a frente e correu em direção aos ramos baixos de um freixo. os
chifres ficaram-lhe presos nos ramos e ele não conseguia libertar-se. as caçadoras
que gritavam atrás dele aproximavam-se cada vez mais. escutou um assobio e algo
o atingiu nas omoplatas.

respirou ofegante e abriu os olhos. outro pesadelo! desorientado, thomas voltou a


cabeça. as paredes de paliçadas de bambu, que tremiam à sua volta, não estavam
onde ele esperava vê-las. onde quer que estivesse, não era o navio costeiro
muçulmano.

as canas de bambu entrelaçavam-se com frondes de palmeiras, formando um


telhado não muito acima da sua cabeça. ele estava deitado em tábuas de madeira
clara. o chão rangia, movia-se aos solavancos e oscilava, arrojando-o contra a
madeira. eu estou num tipo qualquer de carro em movimento.

cuidadosamente ergueu a cabeça e os ombros e tentou mudar para uma posição


sentada. por alguns instantes não conseguiu sentir os braços e as mãos, depois
susteve a respiração. um formigueiro intenso disse-lhe que as suas mãos tinham
sido amarradas atrás das costas e somente agora a circulação voltava a
reconquistar o território que o seu peso lhe negara.

- então, jovem leão, estais acordado. - o feiticeiro cartago estava deitado ao seu
lado, com os braços também amarrados. o seu rosto pálido tinha várias nódoas
negras e grandes.

santo deus. será que eu também estou assim tão mal? o que é que eles nos
fizeram?

- pelos sons que fazíeis - continuou cartago -, eu apostaria que estáveis a ter sonhos
desagradáveis.

- eu sou frequentemente assediado por pesadelos - disse thomas, surpreendido com


a irritação da sua garganta, como se ela não tivesse sido usada durante muito
tempo. - desde a infância que assim é.
- tenho a certeza de que a datura também não ajudou muito.

- datura? - thomas sentiu uma comichão crescente nas nádegas e coxas. para sua
vergonha apercebeu-se de que se tinha sujado, mas não recentemente. não se
lembrava de nada, após ter sido golpeado por lockheart. - durante quanto tempo
estivemos a dormir?

- eu não tenho estado mais consciente da passagem do tempo do que vós. dias,
penso.

- dias! temos sorte de ter sobrevivido.

- talvez. acho que eles nos deram de comer de vez em quando, embora não me
lembre de nada.

- nem eu. o que é datura?

- sempre ávido por conhecimento, não é, apothekos? É uma droga comum em goa,
utilizada para dores mortais ou para fazer uma pessoa esquecida para o mundo à
sua volta. talvez devêsseis procurá-la e adicioná-la às vossas provisões.

thomas voltou a cabeça e espreitou através da parede de bambu à sua volta. não
conseguiu ver nada mais do que luz brilhante e sombra esmeralda.

- gostava de saber onde estou.

- o plano deles era trazer-nos para goa, boticário. devemos estar perto, pelo mau
cheiro. perto de goa, o rio mandovi é muito amplo e tem um cheiro particular.

thomas respirou fundo. era difícil distinguir os odores para além do seu próprio suor
e fezes, mas discerniu o cheiro a pó, a estrume de animais, a fruta a apodrecer e a
mar. os homens que caminhavam à frente e atrás do carro falavam num idioma que
ele não conseguia identificar, apesar de uma parte poder ser árabe.

- quem são estes homens que nos têm cativos?

- piratas e ladrões de omã. nós não vamos ficar sob os gentis cuidados deles por
muito mais tempo. apenas até que paguem o nosso resgate.

- lockheart ainda estará entre eles? será realmente tão baixo, a ponto de me vender
aos portugueses?

- quem pode julgar o coração de um homem? tenho a certeza de que o meu era o
único resgate que ele e aditi queriam. vós fostes uma adição inesperada.

- mas porque é que - thomas calou-se de repente, temendo que o que estava a
ponto de dizer fosse descortês, como se cartago merecesse ser prisioneiro e ele
não.
- porque é que ele não vos libertou? eu não tenho resposta.

- sabeis quem é que nos vai resgatar?

- vós provavelmente interessais apenas ao governador, o mais certo será ele enviar-
vos para trabalhar numa das galeras do rei filipe. talvez na mesma sobre a qual
disparastes para me salvar. isso seria justiça, não? no que me diz respeito, eu serei
enviado para um sítio vigiado por demônios disfarçados de santos.

- a senhora aditi não irá ajudar-vos? cartago tossiu.

- ela deu-me um meio para escapar. boticário chinnery, eu não tenho qualquer direito
de vos pedir um favor, mas no entanto há algo que gostaria de vos pedir.

- a minha ajuda é fraca, magister.

- talvez seja maior do que pensais. as minhas mãos estão atadas e inúteis e eu
gostaria de vos pedir as vossas emprestadas.

- as minhas também estão atadas, magister.

- mas elas podem chegar onde as minhas não podem. tenho um saquinho do
amuleto ao pescoço cheio com o mesmo pó que utilizastes para reavivar o vosso
colega do navio.

thomas sentiu-se gelar.

- a sério?

- fui ferido e isso aliviar-me-ia as dores. em goa, os ferimentos que me esperam


serão muito piores. por favor, administre-me o pó, e eu poderei descansar.

- magister, eu preferia não voltar a utilizar essa substância.

- qualquer que seja o dano que imagineis que isso vos fará à alma, já vos fez. e
usaste-lo numa pessoa que já estava morta, enquanto eu ainda estou vivo.

uma grande parte da minha vida tem sido devotada ao alívio do sofrimento. que
direito tenho eu de recusar ajuda a este homem? que seja deus a julgar.

- muito bem, magister. com uma condição... que me digais a fonte deste pó.

o feiticeiro arqueou as sobrancelhas.

- ah, vós sois persistente, jovem leão. lembrai-vos, eu fiz um juramento de que não
diria o nome da fonte e nenhuma ameaça que me possais fazer me fará quebrar
esse juramento. contudo, dar-vos-ei pistas para a encontrardes, se isso vos
contentar. se tiverdes coragem e a sorte estiver do vosso lado, podereis procurar vós
mesmo a verdade.
- muito bem. isso é aceitável. - e se a fonte não for perigosa para a alma, afinal
talvez se possa obter algum lucro nesta viagem desastrosa. assumindo que eu
sobreviva.

- procurai o debrum do meu gibão, ali no fundo da bainha da esquerda. haveis de


encontrar um sítio mais sólido do que o resto. há um pedaço de papel enrolado lá
dentro. despachai-vos, enquanto ainda temos tempo.

thomas virou-se e olhando por cima do ombro, correu com as mãos atadas a borda
do gibão de veludo negro do feiticeiro. encontrou o sítio descrito e retirou através de
um corte no debrum, um pequeno rolo de papel de pergaminho.

- É um mapa - disse cartago. - não olheis para ele agora. o ponto na margem
superior mais à esquerda é goa. o ponto à direita e acima é bijapur. o ponto mais à
direita e mais abaixo é a cidade escondida onde está a fonte. os hindus chamam ao
pó rasa mahadevi. isto é tudo o que vos posso dizer.

- goa. bijapur. rasa mahadevi. obrigado, magister - disse thomas. inclinando-se para
a frente, enfiou o rolo na parte de cima da bota. então caminhou para trás de joelhos
até as suas mãos estarem perto do pescoço do feiticeiro. desajeitadamente apalpou
à volta do colarinho, feliz por cartago não estar a usar um tufo. finalmente encontrou
a tira de couro do saquinho do amuleto e puxou-o com força para fora. com cuidado,
desatou os cordões.

thomas parou para descansar as mãos doridas e olhou por cima do ombro de
cartago.

- estais pronto?

- que deus vos abençoe e guarde, meu amigo - disse o feiticeiro. - estou pronto. -
inclinou a cabeça para a frente e abriu a boca, como um devoto esperando receber a
eucaristia.

thomas arrastou-se um pouco mais para trás, até que a sua mão pôde tocar no rosto
com barba de cartago. os seus dedos encontraram a boca aberta do feiticeiro e
thomas inclinou o saquinho do amuleto para dentro dela, sentindo o pó escorregar
pelos seus dedos. eu sou a ressurreição e a vida...

a boca de cartago fechou-se e thomas largou o saquinho. depois moveu-se de modo


a estar de frente para o feiticeiro e observar o efeito que o pó ia ter.

cartago tinha fechado os olhos e deixado a cabeça cair para trás. num instante, o
seu rosto relaxou-se e um ligeiro sorriso nasceu-lhe nos lábios. a respiração
abrandou e tornou-se uniforme. toda a tensão pareceu esvair-se dos membros do
corpo do homem.

um medicamento potente, de fato. tenho de lembrar-me da quantidade que o saco


continha, de modo a poder vir a obter o mesmo efeito com uma dose semelhante. se
o seu uso não for pecado, que riqueza este pó poderá trazer à loja do mestre
coulter! talvez mais do que poderíamos ter ganho na china.
de repente, o carro parou bruscamente e alguns homens caminharam até ele,
gritando uns para os outros. a parte de trás escancarou-se e a luz do sol entrou. dois
homens de pele mestiça deitaram as mãos a thomas, agarrando-o pelos braços. e
ele permitiu-lhes que o retirassem do carro sem resistência. tentou pôr-se de pé,
mas quando os seus pés tocaram a estrada, as pernas não o sustentaram.

os seus captores ergueram-no e deixaram-no encostar-se contra o carro. quando


estes enfiaram de novo os braços dentro do carro para retirarem cartago, ouviram-se
gritos e mais gritos de uma mulher, provenientes dos carros que estavam mais
acima, na rua. alguns homens saltaram detrás dos bois e correram com espadas e
navalhas em punho. outros, montados em mulas galopavam, levantando nuvens de
poeira. os captores de thomas também sacaram as armas e gritando um aviso
incompreensível para thomas, deixaram-no para se juntarem aos seus
companheiros no cimo da rua.

não havia ninguém a vigiar no carro atrás do deles. thomas demorou apenas um
instante para compreender a sua sorte.

- magister, temos uma possibilidade de escapar! - murmurou ele alto para dentro do
carro. - senhor! - mas o feiticeiro mantinha-se imóvel. thomas deu um encontrão no
carro com a anca mas cartago não despertou.

sabendo que tinha apenas alguns momentos, thomas deixou com pesar cartago
entregue ao seu destino e cambaleou pela rua em direção à macega da floresta de
palmeiras. caiu embatendo contra troncos de árvores e tropeçou em raízes com o
equilíbrio perturbado pelas mãos atadas. aqui e ali, o chão era lamacento e
pantanoso e sugava-lhe as botas. frondes de palmito golpeavam-lhe as roupas e a
pele. no entanto, ergueu-se uma vez e outra e prosseguiu vigorosamente.

por fim, tropeçou e achou-se sem o fôlego necessário para se erguer. deitou-se
numa ravina lamacenta, coberta por plantas de folhas largas de um verde-escuro.
deitou-se de costas e respirou ofegantemente o ar pesado e úmido. ouviu gritos de
pássaros desconhecidos, mas não ouviu gritos de homens. parece que consegui
escapar-me. mas o que é que eu devo fazer agora?

thomas sentou-se e gemeu, todo o corpo lhe doía. puxou as cordas e as mãos
quase lhe escorregaram delas. a lama! thomas deitou-se e esfregou os punhos um
pouco mais na lama e sentou-se novamente. desta vez, com esforço e um pouco de
dor, conseguiu libertar as mãos. com um grande suspiro de alívio, balançou os
braços para trás e para a frente. estavam leves com a liberdade.

olhou para as mãos manchadas de terra. thomas pensou por um momento, depois
retirou o gibão e a camisa. cobriu-se de lama em todas as partes que pôde alcançar
e rolou pela ravina para cobrir o resto. fez também correr lama pelo seu cabelo
louro. e finalmente, enrolou a camisa e amarrou-a numa espécie de turbante para a
cabeça.

não havia nada que pudesse fazer quanto aos seus olhos azuis, mas se a senhora
aditi pudesse ser tomada como exemplo, pensou que poderia não ser tão fora de
comum. as suas roupas não eram diferentes das usadas pelos marinheiros
muçulmanos. mas as botas... ah, as botas.

eram de couro castanho-avermelhado, um presente do mestre coulter. não tão altas


como as mais em moda em londres, mas ainda assim as melhores que thomas
alguma vez calçou. porém, distinguiam-no como europeu. com um suspiro pesado,
thomas descalçou-as, notando o papel de pergaminho enrolado que caiu.

o mapa de cartago. mais vale guardá-lo. se deus quiser, ele poderá vir a ter
serventia. thomas enfiou-o na bainha do cordão das calças.

um tilintar leve e metálico chegou-lhe aos ouvidos e ele ficou gelado. estão à minha
procura? mas o barulho não era de homens à caça dele pela selva. tinha um som
efeminado. thomas espreitou por entre as folhas na orla da ravina, e vislumbrou algo
escarlate e dourado a caminhar energicamente a alguns metros de distância do sítio
onde ele estava.

a senhora aditi? teria ela abandonado a caravana? não parece estar à procura de
alguma coisa, mas sim a dirigir-se para um destino conhecido.

outra vez consciente de uma oportunidade momentânea a ser aproveitada, thomas


largou as botas e seguiu-a.

capítulo xi

amendoeira: esta pequena árvore produz nozes comestíveis e floresce cedo todos
os anos. ao longo dos tempos tem sido uma árvore de esperança, porque lembra as
pessoas da chegada da primavera. para os gregos, era um emblema de lealdade e
consistência. É portanto consagrada à virgem e na bíblia aparece como um sinal da
aprovação e perdão de deus. na toscana, os ramos de amendoeira são usados nas
artes divinatórias. a pasta feita com o fruto desta árvore pode manter uma pessoa
viva onde não se puder encontrar comida ou água...

o padre gonsção caminhava pelos jardins interiores da ala residencial. isto fazia-o
lembrar dos pátios das belas vilas e mosteiros de portugal. mas aqui havia figueiras-
de-bengala entre os ciprestes, arbustos de cardamomo entre os cravos, coqueiros
entre as laranjeiras, flores de lótus no meio de lilases. gonsção encontrou um
rebento de rosmaninho e esmagou-o entre os dedos, inalando a sua fragrância.
tinha muitas saudades de lisboa.

havia um banco de pedra debaixo de uma enorme e medonha figueira-de-bengala e


gonsção sentou-se nele, apreciando a sombra, ainda que não apreciasse quem a
dava. ouviu um agitar de folhas de bambus ali perto. alguém estava a espreitar.

- timóteo? - gonsção acenou para o rapaz.

- padre - timóteo aproximou-se timidamente do banco.

- não vos vejo já faz alguns dias, meu filho. toda a gente a quem eu perguntei
ignorava onde estáveis.
- eu tenho estado na capela, padre. a rezar e a fazer jejum.

- mas porquê?

- fiz mal a uma pessoa, padre. mas estou confuso e não sei a quem fiz mal.

- sentai-vos, timóteo. contai-me. talvez eu vos possa ajudar.

o rapaz sentou-se e começou a falar suave e rapidamente.

- no dia a seguir à nossa conversa, padre, domine pinto disse-me onde eu podia
encontrar os registros do julgamento do governador coutinho. estavam nas cozinhas.
iam ser queimados.

ansioso e com esperança, gonsção disse:

- conseguistes resgatá-los?

- sim, padre. mas quando estava a tentar trazê-los para vós, tropecei no corredor.
tão estúpido, tropecei e o livro caiu no chão. eu estava a apanhá-lo e... domine
sadrinho viu-me.

a esperança de gonsção morreu instantaneamente.

- que infortúnio! o que é que o domine vos disse? foi ele que vos puniu com as
orações e o jejum?

- não. essa é a parte mais estranha, padre. ele não disse nada. apanhou o livro e foi-
se embora. eu tive tanto medo que me escondi e rezei para que o meu pecado fosse
perdoado. mas ainda não sei qual é o meu pecado. falhei em ajudar-vos e ao
arcebispo e ao papa, mas sinto que prejudiquei o domine sadrinho.

gonsção suspirou e deu uma palmada no ombro do rapaz.

- eu acredito que vós não tendes qualquer culpa, timóteo. fizestes o que achastes
ser o melhor. não vos deveis punir.

- foi por minha culpa que vós não conseguistes o livro, padre. se eu não tivesse
parado para ler as páginas, tê-las-ia recolhido antes que o domine me visse.

- vós... lestes os registros?


timóteo confirmou com a cabeça.

- eu não o pude evitar. perdoai-me, padre.

- louvado seja deus. - gonsção sussurrou e agarrou ambos os ombros do rapaz. -


escutai, meu filho. isto é muito importante. vós estais perdoado, acreditai em mim.
mas lembrais-vos de algo do que vistes?
o rapaz confirmou outra vez com a cabeça.

- eu não o consigo esquecer, padre.

- por favor. dizei-me. vistes uma lista de familiares?

- não, padre.

- vistes a confissão do governador?

- sim. ele disse que tinha sido enganado por feiticeiros, que lhe mostraram provas de
que os pagãos da grécia estavam certos.

- grécia?

- sim, padre, os olímpicos. foi o que ele disse. gonsção perguntou-se a si mesmo se
os interesses da infância do rapaz lhe estariam a corromper a mente.

- que provas eram essas?

- um pó, padre. sangue em pó, que ele disse trazer os mortos de volta à vida! ele
disse que era o sangue de uma deusa, mas eu vi o nome e ele estava errado.

- claro que ele estava errado.

- ela não é uma deusa, padre, ela é um monstro! - de repente timóteo olhou por cima
dos ombros de gonsção. o domine. perdoai-me. tenho de ir - o rapaz pôs-se de pé
num pulo e entrou precipitadamente na plantação de bambu uma vez mais.

com um suspiro de frustração, gonsção voltou-se. de fato, o domine sadrinho estava


a aproximar-se pelo caminho principal. o inquisidor pareceu não vê-lo. quando
sadrinho ia a passar diante dele, gonsção chamou-o.

- bom dia, domine. deus esteja convosco.

o inquisidor olhou para cima sobressaltado, e então sorriu.

- e com o vosso espírito, padre. bom dia. foi-me dito que vos poderia encontrar nos
nossos jardins. vós até haveis escolhido um sítio auspicioso para vos sentardes.

- escolhi? - gonsção voltou-se e olhou para a feia árvore atrás de si.

- É um gênero de figueira. foi-me dito que foi debaixo de uma destas árvores que o
filósofo siddharta ganhou a sabedoria.

gonsção franziu o sobrolho.

- É por acaso um filósofo hindu? o que tendes vós a ver com esse conhecimento?

- estais próximo, padre. ele foi o fundador do budismo. nesta terra, uma pessoa
aprende todo o tipo de coisas. de um estrangeiro como vós, não se espera que o
saiba. mas já chega de divagações esotéricas. eu tenho algo que podem ser boas
notícias.

- a sério?

- sim. o feiticeiro bernardo de cartago foi capturado e está agora em goa. há rumores
de que a misteriosa aditi possa estar com ele.

- notícias excelentes, de fato, domine. como é que isto foi conseguido?

- um grupo de piratas muçulmanos achou a recompensa que nós oferecemos


atrativa e soube onde encontrar os navios ingleses. foi a vontade de deus que um
dos ingleses fosse mercenário ao ponto de nos entregar o feiticeiro e a bruxa em
pessoa.

- É verdade que nosso senhor nos ajuda por meios imprevistos. espero que seja
possível questioná-los em breve, então?

- espero que sim. eu enviei um frade com alguns soldados para interceptar a
caravana. eles devem estar de volta dentro de pouco tempo.

- muito bem. haverá um julgamento esta tarde. - gonsção parou, quando um jovem
dominicano corado, com as vestes brancas sujas de pó, correu apressadamente em
direção a eles.

- e a delegação está de volta - disse sadrinho. - salve, irmão marco. acabo de contar
ao padre antónio as nossas boas notícias. temos os prisioneiros a salvo, espero eu?

o jovem estava agitado e não os olhava nos olhos.

- padre, domine, houve um... infortúnio.

o rosto de sadrinho perdeu toda a expressão.

- um infortúnio?

- eu, quero dizer, o homem que era suposto nós... trazermos...

- respirai calmamente, irmão - disse gonsção. - dizei-nos o mais simplesmente


possível o que aconteceu.

- e eu não quero ouvir dizer - disse sadrinho - que este feiticeiro conjurou uma frota
inglesa, fazendo-a sair do nada para o fazer desaparecer.

- não, domine. eu fui com os soldados até à estrada de panaji, como me havíeis
instruído. lá encontramos a caravana de muçulmanos. mas quando fomos reivindicar
o feiticeiro, foi-nos dito que ele estava morto e que o outro inglês e a bruxa tinham
desaparecido.
- morto - disse sadrinho. - haveis confirmado?

- sim, domine. examinamos o corpo. era o homem que nos havíeis descrito.

sadrinho deu um murro na palma da mão e proferiu algumas blasfêmias indiscretas.

- parece - disse gonsção com um suspiro - que o nosso feiticeiro fez-se desaparecer
de um modo definitivo.

- acho - disse sadrinho lentamente - que não devíamos escarnecer de uma alma
agora perdida no inferno.

acho que não é por isso que vós estais tão furioso, pensou gonsção.

- perdoai-me, domine. um comentário impensado. dizei-me, irmão, foi possível


discernir como é que o feiticeiro morreu?

- não, padre. não encontramos nenhuma ferida mortal nele, embora apresentasse
muitos hematomas. tinha algum sangue à volta da boca. estava borrado, mas os
muçulmanos disseram que tinha sido drogado com datura e que isso era uma
consequência natural.

- É possível que ele tenha morrido de doença? - perguntou gonsção.

- suponho que sim - disse o jovem dominicano -, embora nós não víssemos nenhum
sinal óbvio de quaisquer doenças de pele ou cólera nele.

- uma doença muito conveniente - rosnou sadrinho. - ele escolhe o momento para
morrer, antes de nós o reivindicarmos.

- não podemos saber o momento exato em que ele morreu - disse gonsção.

- mas o domine pode estar certo - disse o irmão marco. os muçulmanos disseram
que o ouviram falar com o outro homem no carro, quase até eles o terem aberto.

- outro homem? - perguntou sadrinho.

- sim. estava um inglês no carro, com cartago.

- o mesmo inglês que arranjou a entrega dele?

- eu acho que não, domine.

- e este inglês também está morto?

- não, domine, ele escapou. aparentemente houve uma altercação. os mercadores


que nos iam trazer os prisioneiros pensaram que estavam a ser atacados por um
grupo rival de assaltantes marítimos, nos limites da cidade. houve muita confusão. o
inglês e a bruxa escolheram esse momento para fugir.
sadrinho rosnou:

- É o que eu mereço por confiar em hereges. esta idéia foi vossa, se bem me
lembro, padre.

- peço desculpas - disse gonsção - pelas falhas que o meu plano possa ter tido, mas
ainda nem tudo está perdido. sabemos a descrição física do inglês?

- os muçulmanos disseram que ele era jovem, alto e de cabelo louro.

- se não for um perito nos modos locais e em línguas, não lhe será fácil encontrar
refúgio em goa. se ainda estiver na área, podemos descobri-lo.

o jovem dominicano confirmou com a cabeça.

- eu sei de alguns lugares onde ele possa procurar santuário. os soldados já estão a
fazer buscas pela cidade.

- muito bem - disse sadrinho. - ide e dai-lhes assistência. e não volteis até terdes
notícias melhores.

- sim, domine - o jovem dominicano curvou-se e correu de novo para fora do jardim.

- padre, perdoai-me pela minha lenta perspicácia, mas porque é que nos deveríamos
preocupar em procurar um homem que esteve prisioneiro com cartago? estrangeiros
em goa são um assunto civil e normalmente isso não nos concerne. em que é que
ele lhe pode ser útil?

- pensai, domine... um inglês é feito prisioneiro para ser resgatado por um outro
compatriota seu. que possível resgate poderia ser ganho, a menos que o jovem
soubesse de algo? talvez este jovem louro esteja também na conspiração de
cartago, talvez seja um neófito recente. talvez o feiticeiro lhe tenha confessado algo,
quando à beira da morte. É uma esperança remota, eu admito, mas é a nossa
melhor hipótese de recuperar algo deste infortúnio.

sadrinho lançou-lhe um olhar de estima.

- podeis ter razão, padre. vejo que o grande inquisidor albrecht tinha as suas razões
para vos enviar até nós. vós sois como um bom cão de caça: uma vez com os
dentes no assunto, é difícil que o abandoneis. eu manter-vos-ei informado, se ouvir
alguma coisa. - com uma leve vênia voltou-se para partir.

- uma outra coisa, domine. no que diz respeito ao irmão timóteo...

sadrinho ficou imóvel.

- sim?

- vós estáveis certo ao confiar-lhe a tarefa de advogado. eu acho que ele é um rapaz
com qualidades excelentes. podeis ter a certeza de que falarei bem dele e da
educação que lhe haveis dado, ao grande inquisidor no meu regresso a lisboa.

- eu sinto-me... gratificado, padre.

- no entanto, vi-o por uns instantes esta manhã e ele pareceu-me muito agitado com
qualquer coisa. não me disse o que era. eu fiz o possível para tranquilizar o rapaz,
porque estou certo de que fosse o que fosse que o estava a afligir, não foi culpa
dele.

sadrinho olhou para trás por cima do ombro com uma expressão ilegível.

- claro que não. ele prima pela obediência e faz sempre o que lhe mandam. seja
quem for que o mande. como é que eu poderia culpá-lo de alguma coisa? bom dia,
padre.

capítulo xii

beladona: esta planta dá flores em forma de sinos, de cor castanho-avermelhada ou


púrpura no verão, e bagas negras posteriormente. também é chamada sombra-da-
noite ou cerejas-do-diabo. o seu fruto e raiz clara têm muitos usos medicinais para
aliviar o reumático, cólicas e febres. no entanto, em grandes quantidades, é um
veneno mortal. os antigos diziam que as bagas eram usadas pela deusa do destino
para retirar vidas aos mortais. na língua italiana, o seu nome significa ”bela mulher”.
não se sabe se foi chamada assim pelo seu uso entre as mulheres jovens para
tornar belos os seus olhos, ou por ter sido usada para envenená-las...

afigura escarlate e dourada flutuava, bruxuleava, desaparecia e reaparecia no meio


da folhagem, diante de thomas. É como se ela fosse um fogo-fátuo em forma de
mulher nos pantanais hindus. ele tinha esperanças de que o seu pensamento fosse
apenas uma comparação infundada. havia os que diziam que os fogos-fátuos eram
almas perdidas, conduzindo os homens à perdição. mas a senhora aditi parecia
saber onde estavam os caminhos secos, e os pés agora descalços de thomas
sentiram-se gratos.

dali a tempos, chegaram a uma antiga ruína de uma muralha da cidade, coberta de
vinhas e talvez com quatro metros e meio de altura. havia uma brecha através da
qual a senhora aditi passou com facilidade. thomas seguiu-a com pouca dificuldade.
É um milagre ela não me ter visto ou ouvido. não há dúvida que eu me tenho movido
ruidosamente pelo matagal como um javali selvagem, para conseguir acompanhá-la.

do outro lado da muralha havia um bazar ao ar livre. a distração constante


ameaçava thomas, enquanto ele passava por grandes taças de bronze cheias de
canela, pimenta, gengibre, cardamomo; especiarias que fariam a fortuna de um
homem na europa. passou por cobertores cheios de frutas que ele nunca tinha visto
antes, e o estômago lembrou-lhe que fazia já algum tempo que não comia.
conduzido pela senhora aditi passou diante de um comerciante de cavalos elegantes
de pescoço esguio, de um mercador vendendo incenso, pastilhas aromáticas e
madeira, de uma mulher expondo flores de cor carmim, fúscia e brancas, de uma
estante com jóias de ouro, prata e cobre. todos os sentidos estavam ameaçados de
serem dominados, seduzidos; no entanto thomas tinha de manter a atenção
centrada na forma em movimento da senhora aditi.

a multidão no bazar parecia cooperar com o seu empenho. ninguém olhava muito
para ele, todavia saíam instintivamente do caminho, nunca o empurrando ou
atrapalhando. o meu disfarce deve-me servir bem - quase nem olham para mim
duas vezes.

no fim do bazar, a senhora aditi aproximou-se de uma casa baixa com telhado de
colmo e sem janelas. dois homens vigorosos vestidos com dhotis estavam sentados
num banco, ao lado da entrada tapada por uma cortina.

então, o que vais fazer agora, idiota? thomas não tinha qualquer razão para esperar
que a mulher que traiu cartago lhe prestasse assistência ativa. no entanto, este
dissera-lhe que ela o tinha feito ao serviço de uma causa mais importante. uma
causa que não tem nada a ver comigo. isso eu sei. olhou para o bazar, escutando as
ininteligíveis línguas estrangeiras. as cores dos dosséis oscilavam e ele sentiu uma
onda de fome e de fadiga. se eu procurar abrigo por conta própria, posso vir a cair
na rua, e ser presa de algum estranho. É melhor tentar esta estranha que pelo
menos conheço de algum lado.

thomas foi até à entrada. os dois homens que tinham cumprimentado aditi estavam
outra vez a conversar no banco e não repararam nele. thomas limpou a garganta,
mas isso não pareceu distraí-los da sua conversa. ele dirigiu-se-lhes e curvou-se
como a senhora tinha feito, com as palmas das mãos unidas diante do rosto, como
se estivesse a rezar.

- rasa mahadevi - disse ele, porque estas eram as únicas palavras em hindu que
sabia. - aditi - apontou para a entrada da casa. - rasa mahadevi.

os guardas franziram a sobrancelha e olharam para ele de lado, como se não o


desejassem ver. um dos homens pôs-se de pé, puxou a cortina para o lado e
chamou para dentro da casa:

- sri aditi! - então falou umas palavras que thomas não entendeu.

a cortina abriu-se bruscamente e a senhora aditi reapareceu à entrada.

- vós - disse ela em grego. - o falso alquimista. porque continuais a seguir-me?

- perdoai-me, despoina, mas eu sou um estranho aqui. eu não tenho para onde ir.
necessito da vossa ajuda.

- da minha ajuda! não é suficiente o fato de eu vos ter mostrado o caminho até à
cidade? porque é que devo ajudarmos mais?

thomas não tinha pensado como é que iria conseguir a ajuda dela, esperando que a
piedade feminina fosse o suficiente. mas agora uma artimanha saltou-lhe à mente,
como um fino fio de salvação.

- porque nós buscamos o mesmo caminho, despoina.


- ah, vós não sabeis nada sobre o meu caminho.

- eu compartilhei o carro dos raptores com despos cartago. estivemos acordados


mais tempo do que era pretendido e falamos bastante. aprendi muito com ele.

o olhar de aditi queimava como fogo azul.

- bernardo jamais romperia uma jura.

- ele não rompeu nenhum juramento, despoina. mas achou que eu tinha mérito para
começar uma viagem de filósofo. se eu me pusesse à prova, encontraria a fonte da
rasa mahadevi. o que ele me disse foi uma inspiração para procurar o caminho da
verdade. nesse caminho apenas vós me podeis guiar.

- sim, sim. - ela atirou a cabeça para trás, no entanto, lançou-lhe um olhar que ele
reconheceu dos visitantes à loja de coulter; alguém que quer comprar, mas que
necessita de ser convencido.

- com o que eu aprendi, poderia voltar para inglaterra e espalhar a palavra da vossa
deusa, cujo nome é força, na minha própria terra. por favor, despoina. deixai-me
entrar e descansar e continuar a nossa conversa.

- vós não podeis entrar. - ela falou asperamente para os homens que estavam à
porta e encaminhou-se para dentro de casa, fechando a cortina atrás dela.

bem, pelo menos tentei. os homens que estavam à porta retiraram as facas curvas
dos dhotis e gesticularam insolentemente para ele, desdenhando-o. com um suspiro
afastou-se, perguntando a si mesmo o que iria fazer agora. os gritos deles retiraram-
no do seu desalento iminente e os seus gestos indicavam que ele devia entrar pelo
portão, no muro baixo ao lado da casa.

um dos homens abriu o portão a thomas e fechou-o após a sua passagem. thomas
encontrou-se no que poderia ter sido um jardim mal cuidado, exceto pelo cheiro, que
o informava que era mais um quintal lamacento.

uma porta de madeira na parte lateral da casa abriu-se e uma rapariga pequena
num sari castanho emergiu, carregando um tabuleiro de madeira. no tabuleiro estava
uma simples caneca de madeira contendo um líquido branco e uma taça de arroz
misturado com pedaços de fruta amarela. ela colocou tudo no chão a alguns
centímetros de thomas e voltou para casa, sem olhar para ele.

a fome tomou conta dos seus sentidos de prioridade e thomas sentou-se no chão,
enfiando o arroz e a fruta para dentro da boca o mais depressa que podia. depois
bebeu da caneca e descobriu tratar-se de leite de coco fermentado. no seu estado
sedento e faminto, sabia-lhe maravilhosamente.

- puro néctar - murmurou ele.

- chama-se feni - disse aditi da entrada.


- minha senhora - balbuciou thomas. - obrigado. pensei que vós me havíeis
mandado embora - e ergueu a caneca antes de beber outra vez.

- tê-lo-ia feito, se fosse mais sensata. sois um mau presságio, tamas. porque não
seguistes o vosso amigo? sois dharma dele, não meu.

- quereis dizer lockheart? eu não o vi. apenas vos vi a vós, e por isso segui-vos.

ela abanou a cabeça e deu um estalido com a língua.

- estais imundo.

- ah. a lama. eu queria disfarçar-me. parece que resultou pois ninguém reparou
muito em mim.

- isso é porque pareceis um mala, alguém das castas mais baixas, que serve apenas
para carregar lixo e coisas mortas. ninguém vos tocaria. mas há algo que vos
denuncia.

- os meus olhos?

- um verdadeiro mala tem mais dignidade.

- sois cruel. onde está a ternura de coração que é a glória do vosso sexo?

ela sorriu sombriamente.

- sabeis pouco sobre mulheres.

uma nuvem passou sobre o coração de thomas. a única mulher que ele tivera a
oportunidade de observar fora anna coulter e ela não tinha nada a ver com esta
bruxa hindu. anna era doce, recatada, obediente e amável; não tinha a arrogância
desta criatura. e, verdade seja dita, também não tinha nem a graça de movimentos
nem a beleza de rosto de aditi.

- também não sabeis como amarrar um turbante - continuou ela. - o turbante de um


homem mostra a sua família e a sua casta. vede - aproximou-se de thomas e
inclinou-se sobre ele. sem lhe tocar, retirou-lhe habilmente a camisa da cabeça.

assim tão próxima, thomas podia sentir o cheiro do seu suor misturado com um odor
de patchouli. podia ver também a sua silhueta através do sari transparente e o
volume dos seios. o sangue martelava-lhe nos ouvidos. com a cabeça às voltas por
causa do feni, mal podia evitar esticar os braços e agarrá-la.

ela arranjou a camisa, enrolando-lha de novo em torno da cabeça e afastou-se.

- pronto. agora sois apenas meio imbecil.

- obrigado - disse thomas com um suspiro pesado. senhor, porque é que nós, pobres
mortais, somos tão tentados? tentou pensar em anna, mas era-lhe difícil lembrar-se
do rosto dela.

- então, o que é que bernardo vos revelou? - perguntou a senhora aditi.

- o suficiente. ele disse-me como a vossa deusa era sábia e poderosa. - deus me
perdoe, mas eu tenho de convencê-la. - disse-me que o nome do pó era rasa
mahadevi. disse-me que a fonte estava num sítio a sudeste de bijapur.

ela parou, mordendo o lábio.

- isso é uma peregrinação longa e perigosa.

- eu já percorri um longo caminho, despoina.

- sim, mas à procura de riqueza. a recompensa que recebereis no fim deste caminho
poderá ser menos agradável. como é que estava bernardo quando o vistes pela
última vez? conseguiu escapar?

- não. estava a descansar tranquilamente quando a oportunidade apareceu e não o


consegui acordar. eu tinha-lhe administrado rasa mahadevi de um saquinho que ele
tinha ao pescoço. aliviou-lhe as dores maravilhosamente. É de fato um medicamento
poderosíssimo, despoina. pergunto-me a mim mesmo porque é que vós me haveis
advertido para não usá-lo.

o olhar dela era ilegível.

- eu não tenho dúvidas sobre o meu julgamento. mas pelo menos bernardo
descansa tranquilamente.

- suponho que, se a caravana se desintegrou e lockheart fugiu, ele não necessita de


ter medo de encontrar os seus resgatadores agora.

- não. ele não tem porque ter medo.

- sabeis onde poderei encontrar lockheart? onde é que ele pode ter ido?

- não. mas eu não confiaria nele, se estivesse no vosso lugar. É um homem


estranho; os demônios apoquentam-no de muitas formas. ele teme o seu dharma e
tenta fugir dele.

os sentimentos de thomas em relação ao escocês também o apoquentavam de


muitas formas. ele tentou poupar-me enviando-me para terra, no entanto, era capaz
de pedir um resgate por mim aos portugueses. podia ter-me matado, porém não o
fez. ajudou-me durante a viagem, sem nenhum motivo, claro.

- sim, ele é um homem estranho, despoina. thomas terminou o arroz. suavemente


aditi disse:

- o caminho que procurais é traiçoeiro e mortal. em goa, nós somos tenazmente


perseguidos pelos padres da santa casa de goa. não seria nenhuma gentileza
deixar-vos ficar comigo, porque apenas vos estaria expondo ao perigo. e vós seríeis
um perigo para mim. deveis fazer a vossa jornada sozinho. mas vou fazer isto por
vós: há um homem em goa, um monge, que ajuda as pessoas da vossa terra. ele é
conhecido por padre stevens. depois de teres descansado algum tempo, guiar-vos-ei
até ele. isso é tudo o que eu posso fazer.

thomas curvou-se à maneira hindu:

- isso será de fato uma grande ajuda, despoina. obrigado. aditi voltou-se e chamou à
entrada da porta. a rapariga

vestida com o sari castanho reapareceu, carregando um calicô enrolado. abriu-o no


chão e voltou para dentro.

- aqui está a vossa cama - disse aditi. - contudo, irão pensar que eu sou
extravagante, porque eles terão de destruir o tecido após terdes dormido nele.
normalmente, os mala dormem na sujidade. - depois curvou-se para thomas e voltou
a entrar na casa, fechando a porta atrás de si.

a gemer, thomas rastejou em direção ao tecido e deitou-se sobre ele. era agradável
estar apenas numa superfície que não se movesse, com os braços livres. então
fechou os olhos.

e abriu-os, pareceu-lhe a ele, apenas alguns momentos depois. a rapariga vestida


com o sari castanho estava a cutucá-lo com um pau. quando olhou para ela, esta
deixou cair o pau e correu para dentro. a copa da palmeira acima dele estava
iluminada pela luz do sol do fim da tarde.

devem ter passado horas. dormi durante tanto tempo?

a senhora aditi saiu, ociosamente, escovando o seu longo e escuro cabelo. vestia
agora um sari azul e tinha várias pulseiras de ouro no pulso. num antebraço usava
uma pulseira de prata com a forma de uma serpente mordendo a cauda.

- como estais, boticário?

thomas pôs-se de pé, ainda dorido mas descansado.

- melhor, despoina.

- muito bem. vamos então depressa. fui informada de onde se pode encontrar o
padre stevens a esta hora do dia.

arranjei para que uns homens me levem até lá num dholi. deixarei cair algo quando
passarmos pelo monge, para que o saibais.

- muito bem. mais uma vez vos agradeço.

- que a vossa viagem seja um sucesso, tamas. espero que a deusa vos receba bem.
e partiu, fechando a porta atrás de si. thomas ouviu ruídos do lado de fora do portão
e abriu-o. um dos homens acenou com uma faca comprida para thomas.

- choli, choli, choli! - gritou.

ao atravessar o portão, viu a senhora aditi a sentar-se numa liteira grande com
cortinas. dois homens agarraram as varas, um à frente, outro atrás. começaram a
correr e thomas sentiu-se pressionado a acompanhá-los.

mais uma vez, as ruas de goa ofereciam uma distração constante: uma mistura de
ocidente e oriente, habitadas por todos os tipos de homens da europa, África, arábia
e Ásia. as casas eram agora de dois andares e com telhados de telhas coloridas.
homens ricos e rechonchudos sentados nas varandas, abanando-se. escravos e
servos passavam por ele apressados, carregando cântaros de água, ou cestos, ou
conduzindo burros carregados. mulheres com vestidos europeus de damasco ou
veludo fino caminhavam livremente, acompanhadas por damas de companhia.
mulheres muçulmanas passavam como fantasmas, de vestidos compridos e
coloridos que não mostravam nada senão as mãos e os pés. raparigas hindus com o
ventre à mostra e saias transparentes e grandes brincos de ouro enfiados nos
narizes, passavam por ele rindo e cantando. tudo era uma concatenação de cores,
costumes, odores e som. mas parecia que a mistura produzia uma intensidade
maior, tal como alho e gengibre esmagados juntos criavam um medicamento mais
poderoso que cada um em separado.

thomas mal conseguia manter a atenção na liteira que saltava à frente dele,
esperando pelo sinal da senhora aditi.

por fim, o esbelto braço dela apareceu fora da liteira e um objeto escuro caiu-lhe da
mão. ofegando, thomas parou onde estava, observando a liteira desaparecer no
meio da multidão.

sentiu uma pontada de tristeza pelo fato de que poderia não voltar a ver a senhora
aditi nunca mais, nem saber ao certo quem ela era.

thomas descobriu estar numa rua tranquila, com um pequeno parque à sua
esquerda. debaixo de uma figueira enorme, estava sentado um jesuíta de cabelo
cinzento, conversando com um hindu ricamente vestido. que estranha a maneira
como acontecimentos do mundo se resolvem... que agora a minha vida deva
depender de um monge papista. eu espero que o pastor hoopes na inglaterra me
perdoe.

quando thomas se aproximou, o hindu reparou nele sutilmente e desviou o olhar.

thomas parou a alguns metros e chamou num murmúrio alto:

- padre stevens?

o monge olhou para ele com alguma surpresa e desculpou-se com o hindu. pôs-se
de pé e caminhou em direção a thomas.
- padre stevens, eu sou inglês e um estranho aqui. foi-me dito que vós me podíeis
ajudar.

o monge mandou-o calar suavemente e disse:

- ajoelhai-vos, como se eu vos estivesse a dar a bênção, meu filho.

thomas ajoelhou-se e o monge pôs-lhe a mão no ombro.

- padre, eu estou vestido como uma pessoa de casta baixa. talvez não me devêsseis
tocar.

o padre stevens sorriu.

- eu estou vestido como um jesuíta, meu filho, e nós tocamos em qualquer um. dizei-
me, chegastes recentemente desses dois navios que estavam encalhados a sul?

surpreendido, thomas disse:

- sim, padre, assim é.

- e viestes para goa como prisioneiro dos piratas árabes?

- na verdade, padre, vós sois abençoado com o pré-conhecimento.

o velho monge suspirou e abanou a cabeça.

- os soldados locais apareceram e falaram comigo. temo que eles me tenham sob
vigilância agora. eles estão à vossa procura, meu filho, como suspeito de assassínio.

- assassínio? mas eu não matei ninguém.

- não havia nenhum fidalgo goês no carro convosco, quando vos trouxeram até à
cidade?

- sim, havia, mas... - thomas ficou gelado. cartago não se tinha mexido, quando
thomas o chamou. mas o pó devia tê-lo curado! ele substituiu o veneno e não mo
disse? ”uma dentada de serpente para aquele que respira”, dizia a nota na garrafa.
”uma pele de serpente para aquele que não respira.” ressurreição para uma pessoa
que está morta, mas veneno para a que está viva. e tanto aditi como cartago
sabiam-no!

- ai, padre, temo ter sido enganado. sou um boticário de profissão e estava a dar o
que pensava ser um medicamento a um homem e não veneno.

o padre stevens bateu-lhe nos ombros.

- estou comovido com a vossa dor, meu filho, leva-me a acreditar na vossa confissão
de inocência. eu compreendo que alguns medicamentos se tornem veneno para
uma pessoa demasiado fraca para os suportar e no oriente produzem-se
medicamentos de fato poderosos. podeis muito bem não ter culpa.

- conseguis ajudar-me, padre?

- se não vos ofender vestir o hábito, vou ver se vos posso esconder entre os meus
irmãos, por algum tempo. nós somos uma ordem nômade e não levantará suspeitas
o fato de vós subirdes a bordo de um navio com esta roupa. vinde, temos de sair das
ruas depressa antes que vos vejam.

o velho monge começou a descer a rua de pedra e thomas caminhou rapidamente


ao lado dele, tentando parecer humilde.

- posso perguntar-vos de que parte da inglaterra sois, padre?

- wiltshire, meu filho. bushton. estudei em winchester e oxford, embora não fosse por
muito tempo.

- como viestes para este sítio tão remoto?

- através de roma e lisboa. É uma longa história. no colégio de saint andrew, li sobre
o trabalho de são francisco xavier e isso inspirou-me a tornar-me missionário no
oriente. então aqui estou eu. espero que tenhais razões mais mundanas para estar
aqui.

- nunca foi minha intenção estar aqui. a minha expedição era destinada à china.

- mm, não tenho dúvida que há um motivo na vossa vinda a goa. o senhor trabalha
de formas misteriosas... calai-vos, chegamos a uma área mais populosa.

a rua levava a um canto de uma praça grande, com uma fonte no meio. o padre
stevens começara a virar em direção a uma viela secundária, quando cinco homens,
vestidos com camisas largas, calças escuras e espadas na anca, saíram debaixo de
uma colunata e se aproximaram deles.

com uma inimizade casual, bloquearam o caminho de thomas e do padre stevens.

- dominus vobiscum, senhores - disse o velho monge. thomas escondeu-se atrás do


monge, sem saber como se comportar.

- padre estêvão - disse um dos homens armados, com uma inclinação de cabeça. -
boa noite. quem é o seu amigo?

o padre stevens tagarelou durante algum tempo em português. thomas teve a


impressão de estar a ser descrito como um novo convertido para a igreja. contudo,
os homens armados não pareciam convencidos. um deles caminhou em direção a
thomas e arrancou-lhe o turbante da cabeça.

- louro - disse o homem com um sorriso sarcástico. depois agarrou thomas pelo
braço e puxou-o para cima. - levante-se já!
- e alto - disse um dos outros, reparando na altura de thomas. seguiu-se uma
discussão entre o velho monge e os soldados. mas após um minuto de gritaria,
estava claro que o padre stevens não estava a ter muito sucesso. o velho monge
benzeu-se.

- perdoai-me, meu filho, mas não consigo detê-los. farei o possível para vos
proporcionar defesa e segurança. não desistais. meu deus.

- não, perdoai-me a mim, padre - disse thomas, enquanto travessamente empurrava


o velho monge para cima dos soldados. então thomas voltou-se e correu o mais
rápido que pôde, pelo caminho por onde tinha vindo. os seus pés martelavam nos
tijolos duros da rua mas ele ignorou a dor, procurando um beco, uma entrada, algum
sítio onde se pudesse esconder. os homens com as espadas gritavam e seguiam-no
de perto. thomas escondeu-se debaixo de um camelo que transportava tapetes
enrolados. derrubou um rapaz de tanga que carregava uma sombrinha, bateu num
burro assustado para que este lhe saísse do caminho e se pusesse no caminho dos
seus perseguidores. as pessoas na rua gritavam à medida que ele passava, mas
não sabia se o estavam a encorajar ou a informar os soldados sobre a sua
passagem. as suas pernas estavam a arder, a começar a ceder, cansadas devido à
caminhada pelos pântanos e à corrida atrás de aditi. um beco escuro apareceu-lhe à
esquerda e ele enfiou-se apressadamente nele.

gatos, galinhas e crianças dispersaram-se. as mulheres cobriram os rostos e


repreenderam-no. era como se os seus pesadelos de ser uma vítima perseguida, se
tivessem tornado realidade. cheirou-lhe a cardamomo e a lentilhas cozinhadas. abriu
caminho através da umidade e de uma extensão de tecido que estava a secar. o seu
rosto e o peito embateram contra uma parede de estuque e ele caiu para trás na
sujidade.

ofegante, exausto, atordoado, thomas apenas conseguiu sentar-se à espera,


enquanto o sangue lhe escorria do nariz. as vozes aproximavam-se, rodeavam-no.
mais uma vez foi puxado para cima e lhe torceram os braços dolorosamente atrás
das costas. demasiado fraco para lutar, deixou que lhe atassem os pulsos e os
homens armados guiaram-no para qualquer que fosse o fim que o esperava.

capítulo xiii

bambu: esta erva alta cresce no oriente. tem uma haste oca, que é utilizada com
finalidades múltiplas, e folhas em forma de lâminas de punhal. o pé pode ser
comido, mas primeiro tem de ser cozinhado, senão é venenoso. na índia, o bambu é
um símbolo de amizade e de fogos de origem divina. diz-se que nasceu das cinzas
de uma rapariga que foi enganada para se casar com alguém de uma casta mais
baixa. acredita-se no oriente que se o bambu florir, significa que se aproximam
fomes e outras calamidades...

sri aditi estava sentada com os braços apertados à volta das pernas, enquanto o seu
dholi balançava e andava aos solavancos. os seus homens sabiam onde a levar:
mas ela não sabia se ia ser bem recebida. não se atreveu a olhar para ver se o
estrangeiro ainda a seguia.
finalmente o andar dos que a carregavam tornou-se mais lento e os sons serenaram
à sua volta. o dholi foi posto no chão e a cortina de tecido levantada. com tanta
graça quanto lhe foi possível, aditi endireitou-se e pôs-se de pé.

estavam nos jardins laterais de uma grande casa senhorial de pedra, que tinha sido
erguida antes da chegada dos portugueses, ou mesmo antes dos mogóis shahs
terem chegado a goa. os jardins eram sombreados por árvores asoka, brilhantes
com as suas flores escarlates. pavões iridescentes espicaçavam por entre
samambaias e arbustos de champak luxuriantes.

sri aditi retirou duas pulseiras de ouro dos pulsos e entregou uma a cada um dos
homens que a carregavam.

- obrigada. agora vão, mas apenas por ruas secundárias. não voltem aqui, a não ser
que vos chamem.

os homens curvaram-se e partiram em silêncio.

um servo, vestido com uma túnica jama comprida de cor creme e turbante, apareceu
à porta e os olhos arregalaram-se-lhe com alarme.

- sri aditi. ouvimos dizer que havíeis partido. aditi curvou-se.

- assim foi, dwarpal. mas o bafo da índia empurrou-me de indra. tenho uma vez mais
de suplicar a ajuda dos vossos amos.

o criado olhou na direção do portão.

- ninguém vos viu entrar aqui?

- eu acho que ninguém sabe quem eu sou. ele pareceu hesitar.

- É melhor entrar e esperar aqui dentro. mas eu não sei o que o meu amo e a sua
senhora vão dizer.

- entendo. estou tão aflita como eles vão ficar, certamente. apenas espero que eles
tenham ainda alguma generosidade para dispensar à minha pessoa.

- lakshmi tem feito grandes maravilhas. entrai, depressa. aditi seguiu dwarpal pelos
corredores laterais ricamente mobiliados, sentindo-se mais como uma ladra que
tinha sido descoberta, do que como uma convidada.

dwarpal parou e indicou uma entrada que levava a um jardim central.

- este é o sítio onde podeis esperar confortavelmente. mandarei trazer-vos chá de


cravinho, se assim o desejardes.

- isso seria muito gentil da vossa parte. refletis a graça dos vossos amos, como
sempre, dwarpal.
aditi curvou-se e saiu para o jardim com colunatas. este era em grande parte
preenchido por uma piscina retangular, na qual flutuavam flores de lótus pálidas. um
único repuxo de água surgia de uma fonte no centro da piscina. jasmins e narcisos
cresciam ao seu lado, perfumando o ar. o crepúsculo caía e uma noite de estrelas
podia ser vista no céu de cor índigo.

aditi ouviu uma série de notas experimentais de uma raga que lhe era familiar e
olhou para um canto distante do jardim. um músico cego estava sentado num
degrau a tocar vina; tinha uma cabaça no ombro e outra ao seu lado.

- gandharva! - aditi caminhou na sua direção e sentou-se ao seu lado. - nunca


esperei ver-vos aqui.

o homem cego inclinou a cabeça.

- será que... aditi? ouvi dizer que tínheis escapado e zarpado pelo grande mar fora.

- eu tinha, gandharva. ou pelo menos, tentei. o navio de bernardo foi apanhado por
estrangeiros, de quem nem mesmo os portugueses gostam.

- de fato, um infortúnio. o vosso amigo bernardo está...

- ele provou a dádiva dela e faleceu. É melhor assim, visto o que lhe poderia ter
acontecido na ordem de gor, ou o que ele poderia ter divulgado.

- ah.

- tudo deu errado, gandharva. tudo. nós falhamos. agora eu sou uma fugitiva, num
lugar que outrora foi a minha casa.

- aditi, aditi, deveis estar extenuada. nunca vos ouvi falar com tal desespero.

- eu nunca me senti tão desesperada.

- o desespero é uma ilusão, minha senhora. uma cegueira não menos incapacitante
do que a minha. mahadevi tem grande confiança nas vossas faculdades mentais e
na vossa força, assim como eu tenho. tudo sofrerá uma volta diferente.

aditi suspirou e descansou o queixo nos joelhos.

- a esperança infundada pode ser também uma ilusão, gandharva.

uma criada, vestida com uma túnica kurti verde, caminhou na direção de aditi e
colocou um tabuleiro de prata aos seus pés. no tabuleiro havia uma chávena de
porcelana de chá de cravinho, e ao lado uma pequena fatia de bolo de betei.
normalmente aditi não mascava betei, mas esta noite o seu espírito necessitava
desesperadamente de ser reconfortado.

com uma vênia, a criada desapareceu.


- mm. - gandharva cheirou o ar. - cada vez que eu venho de visita, as servas do
senhor estão mais belas.

- como sabeis? ela trouxe-nos pan-supari. gostaríeis de provar?

- não, obrigado. com um sentido perdido, eu preciso de confiar em todos os demais.


com eles posso ouvir a graça dos passos de uma rapariga ou sentir o cheiro do seu
perfume bem escolhido. a beleza pode ser vista na escuridão, tal como a luz.

- ah, sim? - aditi deu uma dentada no bolo de betei, pensativamente mastigando a
confecção de noz de palma, pasta de lima, parras, ópio e especiarias. - a escuridão
e a luz. foi-me enviado um presságio de escuridão hoje. o que pensais vós que irá
acontecer, quando mahadevi souber do meu fracasso?

o músico cego encolheu os ombros.

- vós sabeis que ela tem uma perspectiva diferente das coisas. para ela, as nossas
dores são brisas adversas, perturbando-lhe os pensamentos apenas como o vento
perturba a relva.

- e se ela ficar mais perturbada do que isso?

- isso vai depender do seu humor, suponho. o que é o pior que vos pode acontecer?
tornar-vos num lindo adorno do seu jardim.

- não estais a conseguir tranquilizar-me, gandharva.

- eu apenas digo isto porque acho que é pouco provável. dizei-me que coisas
terríveis aconteceram.

- zalambur está morto. serafina está agora na ordem de gor, suportando os


tormentos deles. bernardo está morto. para salvar a minha própria vida, regressei a
goa na companhia de piratas. tive de dar a um dos estrangeiros o frasco da sua
dádiva. bernardo confiou num jovem, dando-lhe a conhecer algo sobre ela, embora
eu não saiba o quê. este jovem estrangeiro seguiu-me até goa, quando escapei aos
piratas. eu também o ajudei, encaminhando-o para um dos seus compatriotas. não
sei bem porquê.

- certamente que está de acordo com o âharma de cada um ajudar estranhos que
estão em necessidade, não é?

- assim o dizem. este jovem era estranho. sabeis que ele rolou pela lama, pensando
que isso o disfarçaria?

- os animais rolam na sujidade para cobrir o seu odor, segundo dizem. talvez o
jovem estrangeiro pense como um animal. na realidade qualquer ocidental faria bem
em cobrir o seu mau odor, não?

- eles não parecem tomar muito banho, é verdade. mas a lama não o cobriu o
suficiente. era óbvio que o seu cabelo e a pele eram de uma cor peculiar. bernardo
chamava-lhe jovem leão, porque o cabelo do estrangeiro era amarelo-dourado como
a pele de um leão. este jovem é verdadeiramente escuridão e luz, gandharva; ele
chama-se tamas.

- tendes pensado muito neste homem? ficastes atraída por ele?

aditi deu outra dentada no bolo de betei e mastigou por alguns instantes antes de
responder.

- não sei. gandharva, vós que haveis viajado mais do que eu e visto mais do mundo,
embora não vejais, já alguma vez sentistes, ao conhecer alguém, que há um elo que
vos une a essa pessoa? que de algum modo ela é importante. já?

- eu não, mas ouço dizer que isso acontece a outros. há quem diga que isso significa
que conhecemos esta pessoa numa vida anterior.

- eu não acredito noutras vidas. mas bernardo deve ter pensado que havia alguma
razão para confiar ou encorajar este tamas. talvez por ele ser um boticário; eles
partilham alguns conhecimentos com os alquimistas.

o músico cego concordou com a cabeça.

- homens de mentes semelhantes podem estar inclinados a partilhar segredos. vós e


mahadevi partilhais segredos e em certos aspectos sois muito parecida com ela.

- ninguém pode ser parecido com mahadevi.

- isso não é verdade. eu ouvi ela própria dizer que tinha duas irmãs, antigamente.

- ah, que época de milagres deve ter sido essa.

- assim o diz a história, minha senhora. mas eu acho que algumas maravilhas se
tornam mais maravilhosas com o passar dos tempos e das histórias, como ervas
daninhas exuberantes.

- de vez em quando, gandharva, acho que duvidais da divindade de mahadevi.

ele ergueu as mãos.

- não duvideis de mim, minha senhora. desde que mahadevi me trouxe de volta para
o reino dos vivos, eu sou-lhe completamente devoto. mas sou um contador de
histórias e conheço algumas histórias.

- É por isso que estais em goa? contando histórias aos maratas?

ele encolheu novamente os ombros.

- eu vou e venho. parto amanhã para bijapur.


- eu deveria ir convosco.

- porquê?

- porque é que devia ficar? eles andam a perseguir-me aqui e não vou ser melhor
tratada do que a pobre serafina, se me apanharem. - aditi esfregou a testa com os
punhos. - porque é que mahadevi espera tanto de nós? seria muito mais fácil se ela
aparecesse e se mostrasse, se provasse o seu poder.

- não restaria muito de goa, se ela o fizesse. além do mais, estragar-nos-ia o jogo a
nós, pobres mortais.

- vós pensais nisto tudo como sendo um jogo?

- ela seguramente pensa assim.

- quando as pessoas morrem para espalhar a sua palavra?

- no meu entender, os jogos mais excitantes são aqueles em que se arrisca o


máximo. há lá aposta mais valiosa do que a vida? está certo que os deuses sejam
grandes e poderosos, mas se eles fizessem tudo, o que restaria para nós, mortais,
fazermos?

aditi abanou a cabeça.

- ficar de lado e rir, gratos por não termos de ser nós a trabalhar e a sofrer? mas
ainda não me haveis dado uma razão para que eu fique em goa.

- porque não ganharíeis nada com a vossa partida. se partirdes agora, estareis a
fugir ao vosso dharma, censurando publicamente a injustiça de tudo isto e, pior de
tudo, não trazendo nada de interesse para mahadevi. sabeis como ela despreza os
que se lamentam. se esperardes, a roda pode girar mais a vosso favor. podereis
descobrir algo de interesse e dessa forma ficar apta para a distrair da desaprovação.
se voltardes para a mahadevi de mãos vazias...

tendes razão. isso iria enfurecê-la ainda mais. eu encontrei um homem fugindo do
seu dharma... um personagem digno de piedade. não devia querer ser como ele. e
quase fui.

- estais a ver? esperai a vossa oportunidade, minha senhora. este é o conselho que
vos dou. e volto a dizê-lo, vós sois inteligente e astuta. sabereis aproveitar o
momento quando este aparecer. agni não se renova a partir do próprio fogo que o
consome? certamente algo que valha a pena será ganho deste infortúnio. vereis.

capítulo xiv

assa-fÉtida: esta resina é de cor avermelhada e vem de funchos que crescem na


pérsia. É notável sobretudo pelo seu cheiro horroroso e sabor amargo. alguns
chamam-lhe o estrume do diabo. no entanto, tem sido usada no oriente como
especiaria e ali é chamada a comida dos deuses. a assa-fétida em pó cura crises e
achaques do estômago. utilizada num amuleto ao pescoço, diz-se que protege das
doenças e da bruxaria...

thomas não prestou muita atenção para onde estava a ser conduzido, até se
aproximarem de um grande muro de pedra no extremo da cidade. um portão de ferro
bloqueava lá dentro uma entrada. havia três soldados de guarda ao portão.
enquanto os seus captores gracejavam com os guardas, thomas reparou num cheiro
pestilento a sair da entrada estreita em forma de caverna. estará algum oráculo por
lavar esperando lá dentro, para me falar por enigmas do meu futuro?

finalmente um soldado abriu o portão e thomas foi empurrado para dentro. caminhou
aos tropeções, descendo por um túnel escuro e inclinado, tentando suster a
respiração à medida que o odor se tornava mais forte. os seus captores tinham
lenços amarrados sobre os narizes mas não ofereceram nenhum a thomas.

dobrou uma esquina e caiu contra um outro portão com barras de aço. o quarto que
ficava atrás dele era escuro, cheio de sombras com forma de homens. o fedor era
sufocante: uma mistura fétida de excrementos, urina, suor, todos os eflúvios da
humanidade, plantas a apodrecer e carne em decomposição. thomas tossiu, lutando
contra a náusea.

as barras abriram-se à frente dele e thomas caiu sobre uma saliência. aterrou de
lado num chão de pedra que era viscoso e malcheiroso. pôs-se de joelhos e os
vômitos vieram-lhe à boca impiedosamente. tudo o que saiu foi apenas um líquido
azedo. contudo o seu estômago deslocava-se tão violentamente, que receou chegar
a vomitar os próprios órgãos para fora do corpo. que maneira mais ignóbil de morrer
esta seria.

pensou em todos os medicamentos para aliviar as dores de estômago, que havia


nas prateleiras do mestre coulter: menta e narcisos, chá de flores de pilriteiro,
xarope de rebentos de pessegueiro. tudo distante e inútil. mas o pensamento
parecia aliviar os espasmos e thomas tomou consciência das pessoas à sua volta,
dedos mexendo-lhe no cabelo, nos calções, nos pés. ouviu umas risadas suaves e
homens a falar em idiomas diferentes. alguém atrás dele disse:

- bem-vindo, estranho. - bem-vindo a aljouvar.

não preciso de esperar pela morte para entrar no inferno, pensou thomas. já lá
estou.

alguém gritou para que os outros se afastassem e agarrou thomas pelos ombros,
ajudando-o a pôr-se de pé. num fraco latim, o samaritano disse:

- respirai rapidamente, amigo. como um cão no verão. isso ajuda. vinde.

thomas ofegava, enquanto era conduzido para uma parede e se encostava a ela.
uma luz fraca emanava das fendas invisíveis na rocha acima das cabeças, e ele
começou a ver um pouco daquilo que o rodeava. thomas voltou-se para agradecer
ao seu benfeitor e sobressaltou-se. a seu lado estava um rosto tão negro como as
máscaras de ébano de África, um rosto hindu com um nariz largo e olhos castanhos.
- muito bem - disse o hindu. - sentis-vos melhor agora?

- sim - thomas conseguiu dizer. - obrigado, estranho. trabalhando nas cordas que
prendiam thomas, o hindu disse:

- as vossas mãos já estão livres.

- deus seja louvado - suspirou thomas em inglês, massageando os pulsos. À medida


que os olhos se ajustavam à escuridão, viu que estava numa gruta profunda, cujo
chão de pedra tinha sido desgastado até se tornar liso, pelo constante pisar dos pés.
os ratos guinchavam e trepavam por todo o lado. no centro havia uma cisterna
redonda que se erguia do chão, onde os homens se iam aliviar. havia algumas
dúzias de homens esfarrapados e de barba no compartimento: uns caminhavam
para trás e para diante como animais numa jaula, outros estavam sentados
balançando-se silenciosamente. alguns jaziam deitados no chão e chamavam por
santa maria, ou por alá, ou por qualquer divindade pagã multissilábica. alguns
estavam imóveis, dormindo, doentes ou mortos. o resto, quer fossem muçulmanos
de turbante, goeses bem vestidos, africanos praticamente nus, hindus de casaca, ou
de raça e nação indeterminadas, estavam sentados calmamente conversando,
rezando, ou jogando com as pedras. não eram poucos os que observavam thomas
com curiosidade ociosa.

- por jesus - disse alguém que estava sentado perto dele, num latim com um forte
acento. - acho que encontrastes um britânico, sabda.

thomas olhou para baixo e viu um homem vestido com um gibão de seda sujo e
puído e calções apertados abaixo dos joelhos. a sua barba por aparar e os cabelos
louros tinham sido penteados. os olhos do homem eram azuis.

- também sois da inglaterra, senhor?

após um momento de pausa, o homem estendeu-lhe uma mão grande.

- pieter van der groot, de roterdão.

thomas apertou-lhe a mão cuidadosamente, com o pulso ainda a doer.

- sabdajnana é o meu nome - disse o hindu com uma vênia. - e podemos saber o
vosso, meu bom senhor?

- chinnery. thomas. de londinium.

- chinritamas.

- não. apenas thomas.

- tamas? mmmm... - o hindu murmurou algo.

o holandês riu-se.
- sabda diz que certamente o vosso nome vos conduziu a este lugar. tamas, na
língua dele quer dizer ”escuridão”.

- ah, sim? então eu estou verdadeiramente no meu elemento, porque as minhas


perspectivas nunca me pareceram tão negras. este homem sabda é vosso servo?

franzindo o sobrolho, van der groot disse:

- É meu amigo. É um médico ilustre e um brâmane, da casta mais nobre desta terra.
os muçulmanos chamam-lhe um hakim.

- entendo. perdoai-me, não era minha intenção insultá-lo - thomas fez uma vênia à
maneira hindu para sabdajnana. - e vós haveis-me mostrado uma bondade
inesperada neste sítio... onde quer que estejamos.

o brahmin retribuiu-lhe a vênia, com um sorriso.

- isto é o aljouvar - disse van der groot -, a fortaleza do governador, onde qualquer
goês ou estrangeiro com sangue nas veias e má sorte na vida passa o tempo. mas
deixai-me dizer-vos, tenho visto mais caridade e nobreza de espírito neste inferno,
do que no mundo lá fora. trazidos a tão baixo, nós tornamo-nos irmãos na
adversidade.

um homem magro, mas resistente com uma barba negra escassa e de bigode,
aproximou-se com passos regulares e deixou-se cair com extrema agilidade no
chão, ao lado de van der groot.

- À exceção daqui do joaquim - continuou o holandês em voz ainda mais alta -, que
não é irmão de ninguém. não é verdade, joaquim?

- vós desonrais-me - disse o pequeno homem em latim, com pronúncia portuguesa. -


nem sequer fazeis uma vênia para me cumprimentar, como um verdadeiro
cavalheiro deve fazer. não me tenteis a desafiar-vos pela vossa grosseria. isso não
seria cortês diante do vosso novo amigo, pedro.

- não é justo da vossa parte, joaquim. sabeis que as minhas pernas ainda não
sararam e eu não posso de modo algum fazer uma vênia tão bem feita como vós.

- ah, esqueci-me. temos de perdoar os inválidos. então, quem é este anjo de cabelo
dourado que nos visita no inferno?

- concedei-me a honra de vos apresentar thomas chinnery de londres. É um inglês,


joaquim.

o pequeno homem ficou comicamente boquiaberto.

- inglês! madre de deus, salvai-me deste herege comedor de crianças, pedro!

- que dizeis? - disse thomas friamente.


- esta personagem irritante - disse van der groot -, é joaquim alvalanca, o filho de um
cão mais divertido com quem tive o prazer de partilhar uma prisão.

- ah, já é a segunda vez que me insultais, pedro. na verdade, estais a tornar-vos


demasiado familiar.

- perdoai-me, joaquim, sou apenas um mercador rude e não sei nada sobre a
delicadeza de um orgulho de cavalheiro.

- a qualidade de um cavalheiro - fungou joaquim - é demonstrada pela delicadeza do


seu orgulho.

- nesse caso - disse thomas -, sinto-me honrado por conhecer alguém que é sem
sombra de dúvida um cavalheiro.
- e tentou uma grande vênia, tal como as que havia visto nas ruas de goa. mas
quando baixou momentaneamente a cabeça, esta começou a andar à roda com
tonturas e ele caiu para a frente.

o brâmane sabdajnana agarrou-lhe um dos braços. joaquim ergueu-se com um salto


e apanhou o outro braço. juntos, colocaram thomas no chão.

- sentai-vos, senhor, por favor - disse joaquim. - fazeis-me demasiada honra. não
receeis conspurcar-vos. pelo vosso cheiro, isso já foi feito.

- temo estar necessitado de comida - disse thomas. sabdajnana colocou uma palma
fria na testa de thomas e pescoço.

- sinais de febre. deveis tomar cuidado, bom senhor.

- ai, senhor, ainda falta algum tempo para que nos dêem de comer - disse joaquim. -
espero que não morrais de fome até lá. ainda que sejais um diabo e herege
fornicador.

- obrigado - disse thomas secamente. - ainda que sejais um adulador de ídolos


papista.

- ah! ele atinge-me no coração, pedro! devo desafiá-lo?

- paciência, joaquim. ele já sofre o suficiente, por estar aqui na vossa companhia.
não sois tão cavalheiro que o vosso coração não possa suportar um pequeno golpe.
além do mais, ele poderia ganhar o duelo, e sabeis que eu enlouqueceria sem vós
aqui a chatear-me.

uma luz apareceu, balançando perto do portão de ferro. homens levantaram-se do


chão da gruta, aproximaram-se saindo das paredes, braços esticados, implorando
em muitas línguas. um soldado de fora do portão segurou uma lanterna, iluminando
dois monges com hábitos castanhos e os rostos escondidos nos capuzes. thomas
sentiu um vislumbre de esperança.
- paulistas - disse joaquim, observando-os com curiosidade.

- jesuítas - disse van der groot a thomas. - eles às vezes vêm da parte da família de
alguém, ou para fazer caridade. ajudam os desafortunados e não têm grande amor à
santa casa.

o soldado apontou na direção deles e os monges olharam para thomas, gesticulando


um para o outro.

- ah, talvez tragam comida, senhor.

mas passado um minuto os monges partiram silenciosamente. o homem da lanterna


seguiu-os deixando a gruta numa escuridão ainda mais profunda do que antes. os
prisioneiros voltaram, resignados, aos seus lugares anteriores e aos passatempos.

- eu tinha esperança - suspirou thomas - que fosse o padre stevens. falei com ele
antes da minha prisão. ele ofereceu-se para ajudar-me.

- já ouvi falar dele - disse van der groot. - até cheguei a esperar a sua ajuda. mas
ouvi dizer que o padre stevens tinha enfurecido o governador há alguns anos ao
ajudar três compatriotas a fugirem de goa. as autoridades não confiam nele e acho
que há pouca coisa que ele possa fazer.

- sim. ele ia levar-me aos seus colegas jesuítas, quando fomos detidos pelos
soldados. eles não acreditaram nas desculpas dele em relação a mim e por isso fui
arrastado para aqui. senhor alvalanca, vós falastes de uma santa casa. isso é...

- a inquisição, senhor - disse joaquim. - e rezai para que a casa sagrada não se
interesse por vós, inglês herege.

thomas tinha ouvido muitas histórias à boca pequena a respeito dos tormentos da
inquisição, apresentada como a mais condenatória evidência contra papistas. as
histórias eram frequentemente tão lúridas, que ele tinha perguntado a si próprio
quantas delas seriam verídicas.

- então que crime terrível traz o nosso senhor chinnery ao aljouvar?

- esqueceis-vos, joaquim - disse van der groot -, de que nesta cidade basta ser
estrangeiro para ser um crime. houve um rumor que chegou até mesmo aqui, de que
não há muito tempo, uma armada poderosa de barcos de guerra ingleses perseguiu
o maior dos galeões de goa e quase o capturavam. vós não viestes nessa?

- não - disse thomas quase sorrindo. - a minha frota era apenas de dois navios e,
apesar de termos atacado um galeão, não o capturamos. ficamos seriamente
danificados e tivemos de ancorar perto de calecut para reparação, mas enquanto lá
estávamos, fomos atacados por piratas árabes. eu estava a tentar salvar um amigo
que pensava que eles tivessem capturado, e no meu afã encontrei-me cativo e
drogado. quando acordei, estava num carro a caminho de goa.

- estranho - disse van der groot, coçando a barba. - não pensava que os piratas de
omã navegassem por essa parte do oceano Índico.

- mas certamente - disse joaquim -, apesar de ser inglês já ser de fato um crime,
deve haver algo mais. senão os paulistas teriam autorização para afixar uma fiança
por vós. não há nenhuma outra acusação, senhor?

thomas suspirou.

- pensa-se que matei um cavalheiro de goa. van der groot susteve a respiração.

- então que deus vos ajude, meu amigo.

- mas claro! - disse joaquim. - um duelo, não? este bonito rapaz arranjou uma
senhora com um marido ciumento.

- não, nada tão aventureiro - disse thomas. - sou um boticário de profissão. e estava
a administrar um remédio a um homem. mas ao que parece, em vez de ser uma
substância curativa, resultou ser venenoso.

- que medicamento era esse que lhe haveis dado? - perguntou sabdajnana.

thomas ficou surpreendido por um momento; depois lembrou-se de que o brâmane


era médico e tinha interesse nessas coisas.

- era um pó castanho. sei que a vossa gente lhe chama rasa mahadevi.

- rasa mahadevi! - sabdajnana ficou boquiaberto.

- conhecei-lo?

- apenas de rumores, tamas. o seu nome significa ”sangue da deusa”, e pensa-se


que seja um medicamento muito sagrado e poderoso.

- e assim o é, porque uma vez utilizei-o para trazer de volta à vida um homem, mas
para o goês foi a sua condenação.

- haveis utilizado esta espantosa substância?

- apenas duas vezes.

- que maravilha! onde a conseguistes? tendes um pouco convosco?

- não. o que tinha foi-me retirado no navio dos piratas. obtive-a do próprio homem
que morreu ao tomá-la... um alquimista português. de que deusa se supõe que seja
proveniente? conheceis a sua fonte?

sabdajnana arqueou as sobrancelhas.

- mahadevi, claro, que é a ”grande deusa”. mas ninguém sabe de onde provém o pó.
alguns dizem que se encontra nas profundezas do deserto de decão, ou nas selvas
de bengala. outros dizem tratar-se do sangue de um naga.

- naga? o que é isso?

- os naga são uma raça lendária de gente, metade homem, metade serpente. não
sei se verdadeiramente existem.

talvez daí provenha a menção das serpentes na garrafa. que maravilha, se isto for
verdade.

- então - disse joaquim -, sois um feiticeiro, bem como um herege.

thomas olhou furioso para o pequeno homem. o uso correto de medicamentos,


drogas e ervas não tem nada a ver com a feitiçaria. já lhe bastava suportar as
insinuações do colégio real de físicos, quanto mais de um ibérico ignorante, de
língua afiada. thomas sentiu o seu rosto corar e sentiu-se demasiado quente e
demasiado frio ao mesmo tempo. escondeu o rosto nas mãos.

sabdajnana agarrou-lhe o ombro.

- como vos sentis?

- não muito bem.

o brâmane e joaquim ajudaram thomas a voltar-se e a encostar-se à parede.

- não vos quis insultar, senhor. perdoai-me - balbuciou joaquim. - bom, vou-vos
contar a minha história. isso vai-vos trazer um sorriso ao rosto, está bem? sou um
hóspede do aljouvar porque sou um ladrão. um ladrão incompetente, nada menos. o
que é que eu roubei? um pão, senhor.

- Éreis assim tão pobre? - disse thomas. - pareceis demasiado bem-educado. ou


sois estudante?

joaquim riu-se.

- em goa, senhor, os únicos assuntos que estudei foi como beber, como lutar, como
foder, e as cem maneiras de matar um homem. em lisboa, era um verdadeiro
estudante, num seminário, razão pela qual o meu latim é tão excepcional. mas a
minha família caiu em desgraça; eu já não tinha nenhuma fortuna em lisboa. por isso
naveguei para a índia dourada, onde dizem que os rubis e esmeraldas nascem nas
árvores e as raparigas de pele escura concedem todos os desejos.

”em goa, tornei-me um soldado, como qualquer homem sem mulher ou título.
lutamos para defender a nossa preciosa colônia. fui posto em tendas com outros dez
e foi-nos dito que se servíssemos bem e encontrássemos esposas, nos tornaríamos
fidalgos, não trabalharíamos mais, mas seríamos proprietários de boas fazendas e
caminharíamos pelas avenidas com escravos carregando pára-sóis sobre as nossas
cabeças.”
joaquim inclinou-se mais e baixou a voz.

- mas, senhor, eles não nos disseram que apenas ganharíamos dois réis por dia.
que uma boa camisa tinha de ser partilhada por dez homens. que tudo o que nos é
dado para comer é arroz e peixe salgado e apenas água para beber. o governador
preferia gastar o dinheiro com a mulher e amigas do que com os seus soldados.

- cuidado, joaquim - disse van der groot.

- eu já não quero mais saber, pedro. por isso, senhor, nós roubamos. alguns têm
mulheres que lhes dão de comer em troca de amor. eu não tenho nenhuma amiga
solteira, por isso roubei pão. mas fui apanhado e o nosso sargento precisa de um
exemplo, por isso aqui estou eu. uma história excitante, não acham?

- há quanto tempo estais aqui? - perguntou thomas.

- dois, talvez três meses.

- há tanto tempo? e nenhum magistrado falou convosco?

- não, e se tiver sorte, eles vão-se esquecer de que eu estou aqui.

thomas suspirou. era ao mesmo tempo consolador e entristecedor escutar os


lamentos dos outros.

- e vós, senhor? - perguntou thomas a van der groot. posso ouvir a vossa história?

o holandês coçou a barba.

- a minha parece irrelevante. mas na opinião do governador, também sou um ladrão.


os navios dos meus compatriotas não são mais bem-vindos do que os vossos
nestas águas. nós, holandeses, somos conhecidos pela nossa habilidade para o
comércio e portugal guarda a sua conquista ciosamente. fui apanhado a tentar
estabelecer contatos mercantis com alguns comerciantes maratas. as autoridades
não ficaram contentes.

- e também não haveis falado com ninguém?

- tal como aconteceu com joaquim, espero que ainda falte muito para que isso
aconteça. temo que não seja bom para mim, quando o julgamento for finalmente
feito. - o holandês mudou de posição e thomas notou uma rigidez invulgar nas suas
pernas.

- o que vos aconteceu?

- tentei fugir e fui espancado por guardas. não é nada.

- percebo. - thomas podia ver que se tratava de algo mais do que nada, mas decidiu
não pressionar o holandês sobre esse assunto. - podeis dizer-me o que me poderá
acontecer? tendes algum conselho a dar-me?
- se eles estiverem convencidos de que sois um assassino, ou quiserem culpar-vos
de alguma maneira, tendes poucas esperanças, a não ser fugir. o guarda pode por
vezes ser indulgente ou ser subornado. podeis esconder-vos por algum tempo entre
os maometanos, ou entre os judeus em goa; há alguns que não simpatizam com os
portugueses, que não vos trairiam. a vossa melhor hipótese é fugir por terra. ides
para leste, para o território de bijapur. o sultão de lá, ibrahim adilshah, não gosta dos
portugueses mas recebe bem todos os outros estrangeiros.

bijapur. já ouvi falar desse lugar - ah! É o segundo ponto no mapa de cartago; o
caminho para a fonte do rasa mahadevi.

- e vós, magister - perguntou thomas a sabdajnana. o que traz um homem culto


como vós a este lugar?

o brâmane abanou tristemente a cabeça.

- homens de sabedoria, se não forem cristãos, são suspeitos em goa, nos dias de
hoje.

- homens de sabedoria, se forem ricos, quereis dizer - disse van der groot. - eles
provavelmente tinham inveja da vossa riqueza, sabda. vede se tendes ainda alguma
coisa, quando voltardes a casa.

o brâmane suspirou e olhou noutra direção.

- agradeço... - thomas tossiu e o mundo girou à sua volta. ficou mais quente, como
se chamas internas ameaçassem consumi-lo. queria derreter-se, ou expandir-se
como pão num forno. sentia os braços e as pernas pesados como pedras.

- a febre - ele ouviu sabdajnana dizer sobre ele. - está a tornar-se pior.

claro que era a febre, ele tinha-a tratado tantas vezes.

então, um pouco de poejo e de alfazema resolviam o assunto, não é verdade,


senhora smythe? e lá estava a senhora coulter olhando para ele e abanando as
bochechas roliças, dizendo:

- deus não devia dar um pai assim a uma criança. - mas de quem estava ela a falar?
do seu pai, é claro; pouco antes ela insistira para que mestre coulter o enviasse
nesta viagem para longe, muito longe das mulheres a cavalo que o assombravam e
o perseguiam nesta floresta ardente, escura como o breu. conseguia ouvir os
guinchos e gritos horrorosos e corria através do fogo, mas não conseguia trazer ar
aos pulmões e os ramos não paravam de lhe bater nas faces, enquanto corria uma
pancada poderosa e thomas viu o rosto de um demônio a pairar sobre ele. não; era
sabdajnana, muito preocupado.

- thomas?

- senhor! - disse-lhe joaquim ao ouvido. - senhor, tendes de acordar. eles vêm à


vossa procura.

com o corpo todo a doer-lhe thomas deixou-os puxarem-no para cima.

havia um monge ao portão, com um lenço a tapar-lhe a boca. uma chave rangeu na
fechadura de ferro.

- padre stevens? - sussurrou thomas. olhou em volta esperando outro coro de


lamentos e súplicas dos prisioneiros; porém, em vez disso, houve um silêncio:
nenhum homem chamou ou simplesmente deu conta do monge ao portão. poder-se-
ia até dizer que os prisioneiros se arrastaram ainda mais para dentro das sombras,
desviando os rostos. o monge entrou na gruta sozinho, trazendo uma lanterna. as
suas vestes não eram castanhas, mas brancas, com uma capa negra dos
dominicanos. o monge foi direito a thomas.

- infelizmente, senhor - sussurrou joaquim. - receio que tenhais de ir para a santa


casa, afinal de contas.

o dominicano parou à frente deles e apontou para thomas, dizendo para joaquim:

- ele é inglês?

joaquim acenou afirmativamente, olhando para o chão.

- coragem thomas - disse van der groot.

o monge fez um gesto para os guardas do portão. enquanto os homens desciam


para dentro da gruta, transportando correntes, joaquim sussurrou de novo ao ouvido
de thomas:

- lembrai-vos de nós, senhor. pois uma vez que chegueis a conhecer a hospitalidade
da santa casa, lembrar-vos-eis do aljouvar como um paraíso.

o padre gonsção demorou-se perdido nas sombras profundas da catedral de santa


catarina. a multidão tinha dispersado há muito, mas ele estava relutante em
abandonar os reconfortantes arcos ibéricos, o altar e os bancos. as janelas altas
tinham vidraças de madrepérola, que deixavam entrar uma luz difusa e leitosa, como
se se estivesse debaixo de água. que apropriado, este santuário. pois receio não ter
perícia para nadar entre as águas turbulentas e sombrias da vida de goa. deus me
guarde; que eu não me afogue nela.

as enormes portas de madeira atrás dele abriram-se e uma figura solitária, um


monge, entrou. este fez uma genuflexão na nave central e aproximou-se
dissimuladamente do banco onde gonsção estava ajoelhado. só quando o monge
estava ao lado dele, é que gonsção reconheceu o irmão marco.

- deus vos dê uma boa noite, padre.

gonsção suspirou e benzeu-se como que a terminar as suas orações.


- e a vós também, irmão marco.

- ele deu-nos, padre, a todos nós. finalmente trago boas notícias.

- fico satisfeito por ouvir isso. mas dai-me essas novas lá fora. estas paredes ecoam
tanto que as andorinhas nas vigas podem ouvir os murmúrios.

- certamente, padre.

gonsção permitiu que o irmão marco o conduzisse para fora, até aos degraus da
catedral. o sol estava a desaparecer por detrás das casas altas, estendendo longas
sombras sobre a praça central, ainda cheia de gente.

- estas pessoas nunca vão para casa, irmão marco? o jovem monge riu:

- gostam mais de ir às casas uns dos outros, padre. goa é uma cidade festiva!

gonsção estalou a língua:

- surpreende-me que aqui se faça algum trabalho de consequência séria.

- um pouco precioso é feito - disse o irmão marco. - mas vamos às minhas novas. o
inglês que pensávamos ter perdido, foi encontrado. foi levado para o aljouvar, mas
um dos nossos irmãos salvou-o e trouxe-o para a santa casa.

- bem, isso é algum progresso. teria sido melhor encontrar cartago vivo, mas temos
de nos contentar com a segunda escolha. presumo então que haverá uma audiência
esta noite?

- não tão depressa, padre. o inglês estava doente e com febre e o domine sadrinho
quis que ele tivesse algum tempo para se recuperar, antes de ser entrevistado.

- entendo. - depois de tanto atraso e de informações erradas, gonsção encontrou-se


a si próprio a conjecturar se esta seria uma nova armadilha. - sabeis, irmão marco,
ocorre-me que dada a importância deste inglês para a vossa investigação,
deveríamos dar-lhe o melhor dos advogados. penso que o irmão timóteo serviria
bem para ele, não?

o irmão marco sorriu:

- na verdade as bocas dos sábios bebem da mesma fonte, padre. o inquisidor


sadrinho já atribuiu ao irmão timóteo esse dever.

- ah, sim? isso são novas encorajadoras, na realidade. algo no outro lado da praça
captou a atenção do irmão marco por um momento.

- eu... tenho de regressar para proceder a algumas preparações para o vosso novo
hóspede. por favor perdoai-me, padre. - voltou-se e partiu rapidamente numa
direção oposta ao que quer que fosse que ele tivesse visto.
gonsção franziu o sobrolho, surpreendido. mas tanta coisa aqui é estranha, que nem
vale a pena perguntar.

com um suspiro, continuou a descer os degraus da catedral, caminhando


vagarosamente atrás do irmão marco.

pelo canto do olho, viu duas figuras vestidas com hábitos castanhos deslocarem-se
da fonte da praça na sua direção. enviou aos céus uma pequena prece, pois
gonsção achava a paixão jesuíta pela pobreza, caridade e evangelização algo
maçador. a sua oração foi, evidentemente, demasiado tardia, pois os paulistas
caminharam diretamente para ele. gonsção acenou-lhes, escolhendo aproveitar o
melhor da situação.

- deus vos dê uma boa noite, irmãos.

- e ao vosso espírito, padre, queira deus dar a paz. - o jesuíta que falou era um
homem de cabelo branco, com cerca de 60 anos e o seu português era
estranhamente acentuado. o irmão a seu lado era atarracado e tinha cabelo negro,
encaracolado. pela forma como o homem se encolhia e se contorcia no seu hábito
de lã, gonsção concluiu que ele era noviço na roupa.

- não vos vi perto da santa casa antes - disse o velho monge astutamente. -
chegastes recentemente a goa, padre?

- estou aqui há duas semanas, irmão.

- então posso dar-vos as boas-vindas à paróquia mais alegre da terra de deus. sou o
padre tomás estêvão.

- ah. creio que ouvi falar de vós. sois inglês, não é verdade? - e sou capaz de
adivinhar a razão pela qual vos aproximastes de mim.

- essa é a minha terra natal, mas estou exilado até que sua santidade retire a sua
bula ou que sua majestade soberana isabel volte para a madre igreja. não penso,
porém, que alguma destas coisas venha a acontecer. este é o irmão andrew, da
escócia, um país mais temperado na fé, que não no clima.

gonsção acenou educadamente para o monge hirsuto e recebeu em troca um


sorriso frio. há algo astucioso por trás dos seus olhos. nem tudo é o que parece.

- disseram-me, padre estêvão, que sois estudante das línguas pagãs locais.

- sim - disse orgulhosamente o padre stevens. - coligi uma gramática canarese e


atualmente estou a trabalhar num longo poema devocional, no estilo e na língua dos
maratas. chamo-lhe a minha purana cristã.

gonsção tentou impedir que o seu assombro se tornasse evidente.

- se bem posso perguntar, padre, o que foi que vos possuiu para tentar tal coisa?
- oh, é um grande desafio, eu sei. mas achei que valia a pena tentar, a fim de revelar
a fé cristã de uma maneira familiar aos hindus. e também para demonstrar aos fiéis
a beleza da língua e das formas poéticas usadas pelo povo nativo. mas não vou ser
cansativo como tantos escritores conseguem ser, com as histórias do meu trabalho
em progresso. soube que um dos meus compatriotas é agora hóspede da santa
casa. um jovem louro, com o mesmo nome que eu, thomas. creio que ele está
inocente das acusações que lhe são feitas e desejo testemunhar a seu favor e
oferecer-lhe consolo.

tal como eu pensei. gonsção exibiu o sorriso mais gracioso que conseguiu.

- naturalmente, padre, vós estais preocupado com o vosso infeliz compatriota. mas
lamento ter de vos informar que eu aqui sou apenas um observador. não tenho
autoridade direta neste caso. não sei a que acusações vos estais a referir. mas sei
que a santa casa não fez qualquer erro ao fazê-lo nosso hóspede; o inquisidor
sadrinho está muito interessado no seu testemunho. ele será bem tratado, asseguro-
vos. agora já vos disse mais do que a minha posição permite. se quiserdes,
mandarei uma mensagem para o inquisidor-mor, dizendo que desejais uma
audiência com ele. por certo compreendereis, ele pode não responder com
brevidade. o inquisidor sadrinho é um homem muito ocupado.

o velho jesuíta sorriu também.

- já tratei antes com o inquisidor sadrinho, padre. sei até que ponto ele pode ficar
ocupado, quando pensa que isso é necessário.

- fico contente por serdes paciente e compreensivo, padre estêvão. agora, com a
vossa permissão, tenho assuntos a tratar.

- um momento, padre - disse o irmão andrew. o seu português escabroso parecia


mais de um soldado, do que de um escolástico. - há uma coisa que o padre estêvão
não mencionou. creio que o jovem inglês não é querido tanto por ele próprio, como
por aquilo que ele pode ter aprendido com o homem que acompanhou a goa. um
certo senhor bernardo de cartago.

- falei tudo o que podia sobre isto - disse gonsção. não...

- mas o erro, já se vê - continuou o irmão andrew -, é que este cartago seja


considerado morto.

- ...vos fará qualquer bem... o que é que dissestes, irmão?

- que este mesmo senhor cartago, que tem fama de ser feiticeiro, não está morto.

gonsção sentiu que lhe faltavam as palavras. É como se eles ouvissem os meus
pensamentos, do outro lado da praça. isto será verdade, ou um outro ardil? não
devo mostrar que isto é importante para mim. contudo, de certa forma não
conseguiu impedir a sua boca de ficar aberta e os olhos de olharem fixamente para
o monge escocês.
- isto não é um caso de interesse para a santa casa? disse o irmão andrew,
pestanejando, todo inocência.

- como... como chegastes a este conhecimento?

- se nos dispensardes um pouco do vosso tempo, padre disse o padre estêvão - nós
explicaremos com todo o gosto.

não sei o suficiente para julgar isto. não sei onde jaz o corpo de cartago, ou até
mesmo se ele existe. não posso confiar totalmente nestes homens, contudo também
não confio no sadrinho. se isto é algo que ele não sabe, ou que me está a esconder,
é do maior interesse da minha missão que eu fique a saber mais.

- muito bem. estou pronto para ouvir.

capítulo xv

papoula: esta planta tem folhas de um verde-prateado. dá flores brancas, vermelhas,


ou de cor púrpura em pleno verão e vagens redondas com sementes, nos finais da
estação. o xarope de papoula é um remédio excelente, pois dissipa toda a
preocupação, todo o reconhecimento da dor, ou do perigo, ou das circunstâncias
difíceis e proporciona um sono tranquilo. contudo, deve tomar-se um cuidado
especial no seu uso, porque quando a tintura é muito forte causa uma sonolência
demasiado profunda e tem de se usar alho ou outra substância ativa, para reavivar o
que dorme. para os antigos, a papoula era consagrada a ceres e a diana e era
considerada uma planta de morte. há quem diga que as flores vermelhas nasceram
pela primeira vez do sangue de um dragão morto por santa margarida. outros dizem
que surgiu do sangue de cristo, que gotejava da cruz. por toda a parte é sabido que
a papoula se dá bem nos campos de batalha...

thomas acordou com uma brisa seca e fresca a acariciar-lhe o rosto, o gênero de
zéfiro matinal que antecede uma tarde abrasadora. ele podia ouvir o pairar e o
guinchar dos pássaros tropicais, para além da parede ao seu lado. da distância,
vinham gritos de mercadores da rua e o clamor dos sinos de igreja. havia um tênue
perfume de caiação por entre os odores do mar e dos pomares de fruta. por um
momento acreditou que estava de novo em londres, numa manhã de verão. mas os
outros sentidos e memórias disseram-lhe que isso não podia ser verdade.

por cima dele havia um teto branco, em abóbada. a parede à sua direita era caiada
de branco também, com uma pequena janela com grades colocadas bem alto.
thomas observou os grãos de poeira a flutuarem baixo, sobre os raios de luz.

esforçou-se por ficar numa posição sentada, mas teve de voltar a reclinar-se devido
às vertigens. todo o corpo lhe doía e ele gemeu. lembro-me agora - estive doente
com febre. onde é que eu estarei?

examinou-se a si próprio. estava vestido com roupas limpas que não eram suas,
calças de algodão e uma camisa de algodão larga, mas sem sapatos. tinham-lhe
dado banho. thomas levantou a mão para coçar a cabeça e descobriu que lhe
tinham cortado o cabelo muito curto.
verdadeiramente não sou o homem que era na minha última recordação.

com cuidado e lentidão, thomas conseguiu finalmente sentar-se. tinha estado


deitado numa colcha tecida em xadrez vermelho e branco. por baixo dela havia uma
esteira de palha sobre um catre. não é uma cama de luxo, mas é de longe muito
melhor do que muitas que eu vi ultimamente.

estava numa cela com cerca de três metros quadrados.

contra uma parede adjacente havia uma mesa simples de madeira, sobre a qual
tinham sido postos dois jarros de barro. ao lado da mesa havia uma vassoura e uma
bacia sanitária. do outro lado da sala à sua frente, havia uma porta que tinha na
parte superior uma janela de grades.

poderá isto ser a terrível santa casa? estou numa cela, certamente, mas está
mobiliada mais parecendo uma estalagem frugal e bem cuidada.

um rosto redondo e moreno apareceu à janela da porta. soltou um grunhido de


surpresa e voltou-se para falar com alguém que thomas não conseguia ver. então
houve o barulho de uma chave a rodar na fechadura de ferro e a porta abriu-se
silenciosamente.

o dono de um rosto largo e marcado com cicatrizes era um homem atarracado que
usava um bastão no cinto. entrou com passo forte e sorridente.

- bom dia - murmurou thomas com um aceno.

o homem não disse nada, mas manteve-se afastado da porta. um rapaz de doze ou
treze anos, com um hábito castanho entrou então. o cabelo cortado em forma de
tigela era negro, os olhos eram grandes e castanhos e a pele era cor de canela.
trazia uma malga de madeira que colocou no catre ao lado de thomas - a malga
continha arroz, um filete de peixe e uma salsicha.

com o estômago roncando de fome, thomas pegou na malga avidamente.

- abençoado sejais e obrigado, irmãozinho - disse entre garfadas de arroz.

- deus lhe dê um bom dia, senhor - disse o rapaz, de rosto solene mas esperançoso.

thomas engoliu e disse:

- utorisne língua latina?

- sim - disse o rapaz nessa língua. - É uma sorte vós também a usardes. sou o irmão
timóteo.

o homem alto, claramente um guarda de alguma espécie, aclarou a garganta e


lançou ao rapaz um olhar de aviso, sorrindo sempre.
- chamo-me thomas chinnery. podeis fazer-me o favor de me dizer onde é que eu
estou?

o rapaz pestanejou.

- estais na casa sagrada, senhor. ah, mas não podíeis ter sabido. tendes estado
doente.

o guarda fez estalar a língua. o rapaz suspirou e ele cerrou os lábios com ar
aborrecido. thomas perguntou a si próprio o que poderia estar a acontecer. talvez o
rapaz tenha quebrado alguma regra monástica. então, é isto, realmente. temível
inquisição. É bastante satisfatória na aparência, até agora. será satisfatória nas
negociações também? o que teria levado cartago a preferir a morte à prisão aqui, ou
levado joaquim a dizer que o aljouvar é o paraíso em comparação com isto?

thomas comeu mais umas garfadas de peixe, salsicha e arroz, enquanto os seus
visitantes esperavam com paciência. finalmente perguntou:

- quando é que poderei falar com alguém que tenha autoridade?

- em breve - disse o irmão timóteo. - fui nomeado vosso advogado.

thomas quase se engasgou com o arroz.

- vós? - uma criança é que vai ser o meu advogado espiritual? que tipo de tribunal é
este?

- sentis-vos bem, senhor? - perguntou o rapaz com preocupação genuína.

- perdoai-me. eu estou bem. apenas me engasguei com o arroz.

- e a febre, foi-se embora?

- parece que sim. deram-me alguns medicamentos? o rapaz inclinou a cabeça.

- porque perguntais?

- hum, curiosidade. É isso apenas. - thomas tinha aprendido que em certos lugares
era perigoso dar a conhecer a sua profissão.

- tratei-vos eu próprio - disse o rapaz com orgulho. aprendi a fazer alguns remédios
com ervas com o meu avô garcia de orta.

- de orta? - disse thomas - de verdade? li o seu livro. colóquios dos simples e drogas
da Ásia...

os olhos do irmão timóteo abriram-se de espanto.

- ouvistes falar de meu avô? e lestes o seu livro? vindo de tão longe?
- sim, de fato. esse livro foi parte da razão pela qual o meu mestre me mandou para
o oriente.

o guarda tossiu em voz alta e olhou para o rapaz com ar carrancudo. o irmão timóteo
baixou o olhar e afastou-se. que estranho. o rapaz não tem ordem de me falar
livremente.

- como sois o meu advogado - disse thomas, observando o guarda - podeis dizer-me
o que me farão?

olhando para o chão fixamente, o jovem frade disse:

- deveis colocar os vossos pensamentos nos pecados que vos conduziram até este
lugar, senhor. os meus mestres, os inquisidores, mostrar-vos-ão toda a clemência,
se vós abrirdes o coração para eles e para deus.

estas palavras, que deviam de ter sido reconfortantes, causaram um arrepio no


corpo de thomas.

- obrigado, fá-lo-ei - esperou ter dado a resposta desejada.


- estou ansioso por ter essa oportunidade.

- quando estiverdes bem, senhor.

- sinto-me suficientemente bem - thomas ergueu-se e sentiu os joelhos a tremer. o


rapaz correu para o seu lado e segurou-lhe o braço, levando-o cuidadosamente até
ao chão.

- deveis descansar, senhor. deixai o vosso corpo e a vossa alma ganhar forças.

o guarda fez rolar os olhos e resmungou em português. uma outra voz ouviu-se do
lado de fora da porta.

- irmão timóteo!

o irmão timóteo soltou o braço de thomas.

- desculpai-me, senhor. - o rapaz caminhou apreensivamente até à porta e saiu. o


guarda abanou a cabeça para si próprio, como se a sua suspeita tivesse sido
confirmada.

thomas esperou, mortificado pela sua fraqueza. perguntou-se se seria a


reminiscência da febre ou a falta de alimentação. caldo de carne seria um bom
remédio, ou um saquinho de cominhos e tomilho. talvez uma infusão de folhas de
sabugueiro. não há tais remédios aqui. quiçá eu pudesse persuadir o rapaz a trazer-
me alhos. gostaria de saber com quem ele está a falar. não me parece feliz.

o irmão timóteo reapareceu, franzindo o sobrolho. chegou-se junto de thomas e


disse:
- senhor, ides ver os meus mestres agora.

- bom - disse thomas. lentamente levantou-se, ordenando aos joelhos que se


aguentassem firmes. para sua surpresa, obedeceram-lhe.

o guarda veio ter com eles, puxando por um bocado de tecido negro que trazia no
cinto.

- isto é para os vossos olhos - disse o irmão timóteo. só deveis ver o que é
permitido. e temos de atar as vossas mãos. e não deveis falar a menos que vos seja
pedido. os hóspedes da santa casa devem ser silenciosos. É a regra.

thomas sentia um medo crescente, enquanto lhe atavam os pulsos e lhe punham a
venda. não ver. não falar. esta prisão satisfatória pode-se ainda tornar uma coisa de
pesadelo.

depois de uma caminhada breve e desajeitada ao longo de corredores silenciosos


exceto pelo eco dos seus passos, o pano negro foi-lhe tirado de novo dos olhos. a
sala à sua frente era um contraste gritante com a sua clara e arejada cela.

o salão de audiências era uma sala comprida, com uma mesa pesada e longa, à
volta da qual estavam sentados homens de rostos compridos e vestes negras. o
enorme crucifixo que preenchia a parede mais distante, evocava pensamentos mais
de castigo do que de salvação.

na extremidade da imponente mesa, estava sentado um monge secretário curvado


sobre um enorme livro-mestre, a pena na sua mão semelhante a um punhal pronto
para ser atirado. À sua direita estava sentado um homem, cujo rosto com barba
estava marcado pelas bexigas e sulcado como as vielas calcetadas de londres. À
esquerda do escriba estava sentado um homem mais pequeno, que parecia
entediado, mas que observava thomas com olhos velados.

o irmão timóteo dirigiu-se ao homem alto, de cicatrizes no rosto e fez uma vênia em
deferência:

- ele sabe latim, domine.

- bom. então não precisaremos de intérprete. sentai-vos. o guarda empurrou thomas


até uma cadeira de madeira,

na cabeceira da mesa mais próxima. apesar das mãos atadas, thomas conseguiu
sentar-se sem cair. bem. pelo menos permitem-me este pequeno conforto.

o inquisidor alto acenou para o livro de orações encadernado em cabedal, que se


encontrava na mesa à frente de thomas.

- colocai a vossa mão direita sobre o missal.

- perdão, domine - disse thomas -, mas tenho as mãos atadas.


o inquisidor bateu na mesa bruscamente.

- não deveis falar até que vos peçam. - acenou para o guarda e thomas sentiu que
as cordas lhe estavam a ser tiradas. esfregou os punhos, depois colocou a mão
direita sobre o livro.

- deveis jurar que tudo o que disserdes perante nós, será a verdade e que
observareis a regra do silêncio e que não repetireis nada daquilo que ocorrer aqui.

- juro dizer somente a verdade.

o irmão timóteo deu um passo em direção a thomas.

- deveis jurar também a regra do silêncio, senhor, ou sereis levado de volta à vossa
cela.

até que ponto este juramento me comprometerá? interrogou-se thomas. poderia eu


revestir-me de coragem para não falar deste lugar, caso alguma vez daqui venha a
sair? será a minha alma mais condenada ainda, se eu não o fizer? quanto mais
tempo me deixarão esmorecer na minha cela, se eu não o fizer?

- assim juro - disse ele, por fim.

- o vosso nome?

- thomas chinnery. poderei perguntar os nomes daqueles a quem me estou


dirigindo?

os inquisidores franziram o sobrolho.

- não deveis fazer perguntas! - sussurrou o irmão timóteo, quase implorando. -


somente os domines sadrinho e pinto as podem fazer.

o inquisidor alto olhou para o rapaz furiosamente.

- isso é tudo o que o vosso hóspede necessita de saber disse sombriamente.

pelo menos o rapaz ousa dar-me resposta, embora me sirva de pouco, pensou
thomas.

- qual é a vossa cidade de origem?

- londres, inglaterra.

os inquisidores trocaram olhares de compreensão.

- a vossa ocupação?

- sou aprendiz de um boticário.


- um boticário: isso é alguém que lida com ervas, drogas, venenos e substâncias
alquímicas, não é?

thomas começou a sentir que as armadilhas lhe estavam a ser preparadas.

- com exceção das substâncias alquímicas, está correto. o inquisidor ignorou a


qualificação de thomas.

- qual era o vosso negócio em goa?

thomas conseguiu não dizer eu não tenho negócios em goa.

- eu fui capturado por corsários muçulmanos e trazido para aqui. com que intenção,
não sei.

- É um caminho longo para os piratas trazerem um inglês. sabeis porque sois


hóspede da santa casa?

- não, domine.

- não tendes idéia nenhuma, mesmo?

thomas fez uma pausa, tomado pela surpresa. será que ele acredita seriamente que
eu devia saber?

- penso, domine, que vos compete a vós dizer-me.

o irmão timóteo parecia escandalizado. o inquisidor mais alto suspirou, batendo com
o dedo indicador sobre a mesa.

thomas ergueu as sobrancelhas inocentemente e esperou. perdido por um, perdido


por mil, como se diz.

- senhor, deveis dizer-lhes porque é que estais aqui disse o irmão timóteo.

que tipo de advogado sois vós? pensou thomas. finalmente disse:

- presumo que estou aqui porque sou estrangeiro. o inquisidor-mor olhou


brandamente para thomas.

- de que interesse poderia ser a nacionalidade para a igreja católica?

que jogo de loucos é este?

- por causa da minha nacionalidade, poder-se-ia pensar que eu estou em goa


ilegalmente.

- isso é um assunto secular e não preocupação nossa. que transgressões de espírito


vos trouxeram à nossa atenção?
cerrando os dentes, thomas disse:

- devido à minha terra natal, poder-se-ia pensar que sou um herege.

- fazei notar que ele admite o pecado de heresia.

- que eu posso ser considerado um herege?

- sois um cristão de oito dias, senhor?

- que dizeis?

o inquisidor suspirou:

- quando vos tornastes cristão?

- desde o nascimento, domine.

- fostes batizado na madre igreja?

- fui batizado em... na igreja de inglaterra.

- e essa igreja dos ingleses segue todos os preceitos da santa madre igreja de
roma?

thomas ficou em silêncio, desejando ter a língua vivaz de lockheart.

- nós soubemos - disse o inquisidor -, por outras pessoas do vosso país, que ela não
o faz. - o espectro de um sorriso apareceu brincando nos lábios do inquisidor. - e
que as pessoas de fé verdadeira na madre igreja são perseguidas no vosso país.

- isso é um assunto político.

- nós não pensamos que seja. vós estáveis na companhia de um homem, que
sabemos ser um feiticeiro notório. esta santa casa tem vindo a procurá-lo há algum
tempo.

ah. agora chegamos lá. cuidadosamente, thomas disse:

- fui trazido para goa na mesma carroça que um homem, que alguns diziam ser
feiticeiro. escapei da carroça, mas ele não. mais tarde ouvi dizer que ele estava
morto.

os inquisidores esperavam, sem dizer nada.

- sou acusado do seu assassínio?

- assassínio - disse o inquisidor-mor -, embora seja um pecado cruel, é todavia um


assunto para as autoridades seculares e não é preocupação nossa. repito, o que vos
trouxe aqui?
thomas olhava fixamente, mal compreendendo o que ouvia.

- acre... acreditais que eu possa ter praticado feitiçaria com o homem?

- fizeste-lo? - perguntou o inquisidor, velando os olhos.

- não! que maneira de julgar é esta? diabos me levem se eu brincarei às adivinhas


convosco!

os olhos do homem de hábito negro abriram-se e thomas percebeu que devia de ter
apertado mais as rédeas da sua língua. baixou os olhos para a mesa, com o rosto a
arder. o irmão timóteo tocou-lhe no ombro sutilmente.

- por favor, acalmai-vos, senhor - implorou ele. - acreditai que deus vos vê e
comportai-vos com decoro, pois esta é a sua casa sagrada.

uma vez mais o inquisidor-mor olhou furiosamente para o rapaz. o irmão timóteo
olhou para o chão, murmurando apologeticamente em português.

- dir-se-ia que estais a ser mais uma distração do que um bom advogado, timóteo.
estais despedido desta audiência.

em silêncio, o rapaz voltou-se e saiu da sala. embora o jovem irmão tivesse sido de
pouca ajuda, thomas teve uma sensação de perda, quando ele partiu.

com uma calma gélida, o inquisidor olhou de novo para thomas.

- não é o nosso propósito aqui, senhor, brincar às ”adivinhas”. e nós realmente


receamos que estejais condenado. encontramos isto nas vossas roupas. - e ergueu
nas mãos um pequeno rolo de pergaminho que cartago tinha dado a thomas.

eu ainda nem olhei para o que estava escrito ali, pensou thomas, começando a
entrar em pânico! cartago disse que era um mapa.

- ainda negais que praticastes feitiçaria? thomas fechou os olhos.

- não sei o que está escrito no pergaminho. cartago entregou-me para o manter a
salvo. não sou feiticeiro.

- tomai nota de que o senhor chinnery até agora não está arrependido.

- como podeis... não tendes provas, nem testemunhas! como ousais acusar-me de
alguma coisa?

- podemos produzir testemunhas, senhor, que vos ouviram murmurar sortilégios com
o feiticeiro. eles acreditam que vós usastes feitiçaria para criar o caos nas suas
fileiras, a fim de poderdes escapar.

o inquisidor encolheu os ombros.


- mas isso tem pouca importância. É o encargo sagrado da santa casa deixar cada
hóspede descobrir por si próprio o pecado na sua alma. apenas quando ele próprio
reconhece o pecado, o pode então confessar livremente, purgar a sua alma do mal e
ser perdoado por deus. seria de fato, errado da nossa parte, fazer acusações e
dizer-vos o vosso erro, pois isso negar-vos-ia o autoconhecimento. podeis
simplesmente papaguear o que nós dizemos e assim evitar humilhar-vos perante o
céu.

meu deus. não só o seu rosto lembra as vielas de londres, como a sua mente é
igualmente labiríntica. estarei eu na presença de loucos?

- talvez a falta esteja em nós - continuou o inquisidor. a nossa generosidade pode


ter-vos poupado o duro exame da alma que leva à revelação. talvez os vossos erros
se tornem mais claros para vós, através da privação. talvez seja até preciso um
tratamento mais rigoroso ainda, para trazer a verdade aos vossos olhos. para fazer o
abençoado trabalho de salvar a vossa alma, estamos preparados para fazer o que
quer que seja necessário. e nós somos, senhor, muito pacientes.

capítulo xvi

aÇucena: esta planta tem uma haste longa, raiz bolbosa e flores em forma de
campainhas, ou de uma trompa, e consagrada a santa catarina e dizem que nasceu
pela primeira vez a partir das lágrimas que ela derramou, quando foi expulsa do
paraíso. o suco da açucena cura as mordidelas venenosas e a raiz acalma as
queimaduras. para alguns, a açucena é a flor dos degenerados e dos cobardes.
outros dizem que representa a alma e é a flor da morte e que crescerá sobre a
campa de um homem que tenha sido executado. na igreja, a açucena há muito que
é símbolo da pureza e da ressurreição...

o padre gonsção estava de pé no que restava da sombra matinal, no portão das


traseiras da santa casa. encostou-se para trás, contra a parede de estuque e ficou à
espera. tinha passado a noite averiguando se a santa casa tinha, de fato, o corpo do
feiticeiro cartago num caixão, numa cela úmida e fria. ninguém tinha vindo reclamá-
lo. talvez porque compreensivelmente, quem quer que o fizesse, ficaria
imediatamente sobre suspeita de conluio com a cabala de feiticeiro.

gonsção tinha falado com o monge que examinara o corpo. o monge tinha sido
bastante convicto: cartago estava morto, fora de qualquer dúvida.

terão estes jesuítas descido tão baixo ao ponto de recorrerem a ardis e mentiras
para ajudarem os seus conterrâneos? ter-se-ão esquecido que o dever para com
deus vem antes do dever para com a nação?

lá em baixo, no fundo da rua e entre os empurrões do povo, vinham a chegar, com


passo vigoroso, o velho padre estêvão e o corpulento irmão andrew.

bem. têm muito que provar estes paulistas. e se não conseguirem aprenderão que
nós na santa casa não aceitamos de ânimo leve tal loucura.
o portão ao seu lado abriu-se e o irmão timóteo saiu a correr, todo ele pernas e
braços num rodopio.

- ah, estais aí, padre! - correu até ele e agarrou a manga de gonsção. - o inglês! o
domine sadrinho começou o seu julgamento, quando ele nem sequer está ainda
suficientemente bem. tendes de vir!

- santa maria! - suspirou gonsção. depois repreendeu-se pelo desabafo. É claro que
sadrinho não me informou. olhou para trás em direção aos jesuítas que se estavam
a aproximar. seriam eles parte do plano dele para me distrair, ou serão um problema
à parte?

- padre, por favor!

- sim, timóteo. obrigado. irei imediatamente. mas tenho de vos pedir uma coisa.
aqueles dois paulistas vêm falar comigo. o que têm para dizer é muito importante,
por isso quero que os convideis para o tribunal. não tenhais medo do domine. ele vai
querer ouvir o que eles dizem. eu assumirei a responsabilidade toda.

perplexo, mas obediente o rapaz disse:

- como desejardes, padre - e correu para a rua para interceptar os jesuítas.

gonsção entrou para dentro do portão e dirigiu-se a largos passos, tão depressa
quanto pôde, para a sala de audiências. se os paulistas forem manobra de sadrinho,
eu posso, pelo menos, embaraçá-lo. se não são, podem tornar-se um incomodo e
podem fazer-me ganhar tempo para descobrir mais coisas. se puderem fazer o que
dizem... bem, não é todos os dias que se assiste a um milagre.

os guardas à porta da sala de audiências ficaram assustados, mas não barraram a


entrada de gonsção. este abriu de rompante as portas da sala, gratificado por ver a
surpresa no rosto de sadrinho.

a audiência já estava evidentemente a decorrer havia algum tempo, mas havia


pouca gente a assistir. estavam presentes os inquisidores sadrinho e pinto, assim
como o secretário, que olhava para trás e para a frente entre os inquisidores e
gonsção, com perplexidade. mas as sete testemunhas requeridas não se viam em
parte alguma, nem tão-pouco o arcebispo. ainda mais curioso. na cabeceira da
mesa mais próxima, de costas para gonsção, estava o jovem e loiro inglês, atendido
pelo seu guarda de cela, fortemente musculado. o inglês parecia pálido e cansado.

- perdoai-me a minha chegada tardia, domine - disse gonsção, com uma vênia
apressada. - mas acabei de saber agora que este julgamento se estava a realizar.

sadrinho fez um sorriso enjoado.

- perdoai-nos, padre, mas não nos foi possível localizar-vos, a fim de vos informar.

- com certeza. eu estive fora, recolhendo informações pertinentes para este caso. de
fato, por espantosa coincidência, fui contactado por dois homens que podem trazer
evidência valiosa. estarão aqui em breve.

gonsção deu a volta à mesa e ficou de pé atrás da secretária.

- se me permitirem rever o que já foi dito? - gonsção folheou as páginas já passadas


do livro-mestre e esquadrinhou as notas. o sorriso de sadrinho fundiu-se num franzir
de testa.

- pedistes a outros para virem a este tribunal, sem a minha permissão? isso é
impossível, padre.

- compreendo. em circunstâncias normais eu nunca pensaria em fazer tal coisa. mas


o que estes homens me disseram é tão... extraordinário, domine, que depois de os
terdes ouvido, tenho a certeza de que haveis de concordar com o meu julgamento.
ah, aqui estão eles.

os jesuítas estavam à porta, espreitando para dentro ansiosamente.

o inquisidor sadrinho olhou-os fixamente por um momento e depois levantou-se da


cadeira.

- padre estêvão. de certa forma não estou surpreendido. padre gonsção, lamento
informar-vos de que cometestes um erro. o padre estêvão pede clemência para
qualquer dos seus antigos compatriotas. tenho a certeza que não tem nada para
oferecer relativamente a este caso particular.

gonsção não conseguia ler nada no rosto sem expressão do inquisidor.

- se pelo menos os ouvirdes, domine, podereis ficar a pensar de um modo diferente.


- gonsção fez sinal aos dois monges para entrarem.

o velho jesuíta imediatamente foi colocar-se ao lado do jovem inglês e murmurou-lhe


algo na sua língua gutural e sibilante. o jovem ficou surpreendido e aparentemente
satisfeito por vê-lo.

o monge escocês aproximou-se com mais precaução. não sem razão, poder-se-ia
dizer, pois quando o jovem inglês viu o corpulento monge, levantou-se e rosnou uma
palavra que até gonsção compreendeu.

parece que a palavra ”filho bastardo” é semelhante em todas as línguas. então eles
conhecem-se. isto está a tornar-se ainda mais interessante.

- os vossos visitantes estão a perturbar o nosso hóspede - disse sadrinho. - com


todo o respeito, padre gonsção, devo insistir em que estes dois homens se vão
embora, antes de continuarmos este julgamento.

- peço apenas um momento da vossa paciência, domine. pois eu acredito


firmemente que o cardeal albrecht há-de achar o testemunho deles de interesse e
portanto vós deveis tomar conhecimento dele.
o nome do grande inquisidor pareceu dar uma pausa a sadrinho.

- muito bem. um momento então. falai.

- este é o irmão andrew da escócia. por favor, dizei a este tribunal, irmão, o que me
dissestes.

o monge robusto sorriu para o inquisidor.

- alegrai-vos, pois trago-vos alegres notícias, domine. o homem que vós tendes
procurado, na verdade, bernardo de cartago, não está morto.

gonsção tossiu. este homem ousa gracejar com as escrituras? sadrinho, é claro que
não vai reconhecer isto.

- não está morto? - disse sadrinho, erguendo uma sobrancelha. a boca torceu-se
num sorriso divertido e ele olhou para o inquisidor pinto. o homem mais pequeno
abanou a cabeça.

- que estranho - sadrinho continuou. - não é então seu o corpo que jaz num caixão
nas nossas celas?

- pode ser o seu corpus, de fato - disse o irmão andrew -, mas num estado de
profundo torpor, não de morto. como expliquei ao bom padre, os pagãos faquires e
os ioguis desta terra são capazes de fingir a morte durante longos períodos de
tempo. sugiro-vos que cartago aprendeu este truque a fim de escapar ao vosso
escrutínio. em atenção ao pobre inocente senhor chinnery, ofereço-me para acordar
o feiticeiro para vós.

- acordá-lo? - disse sadrinho. - por que meios?

- oração e uma relíquia.

- que relíquia pode ser essa?

- uma mistura em pó de ervas secas e do sangue seco de santa margarita. da minha


terra. eu trago isto sempre comigo.

- sangue em pó? - sadrinho ficou muito sossegado. como um gato que sentiu
movimento na relva.

- sim, domine.

poderia este ser o mesmo pó sobre o qual timóteo disse já ter lido no livro mestre?,
pensou gonsção. o pó que levou homens de bem a duvidar da sua fé? não admira
que sadrinho esteja fascinado.

- devíeis ensinar mais precaução à vossa língua, irmão andrew - disse gonsção -, ou
as pessoas poderão assumir que vós próprio sois um feiticeiro.
- eu? que deus me leve neste momento, se assim é. aprendi o que sei sobre
feitiçaria em maleus maleficarum, um texto para vencer as bruxas, sem as emular.
concedeis-me, domine, a hipótese de provar o que digo? - o irmão andrew cruzou as
mãos na barriga e esperou.

dir-se-ia que a surpresa que trouxe a sadrinho é melhor do que eu tinha planeado.

- É claro - continuou o irmão andrew -, isto é, com a condição, de que se eu for bem-
sucedido em acordar o feiticeiro, vós liberteis o jovem inglês para ficar ao nosso
cuidado.

foi a vez de gonsção ficar surpreendido.

- eu nunca fiz tal acordo convosco. a inquisição não negocia com almas como um
cambista no mercado!

- isso nem sempre foi verdade - disse o padre estêvão. na minha experiência, o valor
de uma alma nem sempre está para além de qualquer preço. até o velho abraão
negociou com deus pelas almas do seu povo.

- domine, peço desculpa.

mas sadrinho ergueu a mão:

- não, não é necessário pedir desculpa, padre. tivestes razão ao trazer aqui estes
homens. penso que há muito a aprender com este irmão andrew.

- e, é claro, se eu falhar - disse o monge escocês -, ter-me-eis à vossa mercê para


fazerdes comigo o que quiserdes.

- falais como se a santa casa procurasse ativamente almas para julgar.

- o entusiasmo da inquisição nos seus deveres é lendário - disse o irmão andrew.

- apenas porque o nosso propósito é mal compreendido disse sadrinho. - mas


aceitaremos a vossa proposta, irmão, com a condição de que, se falhardes, o padre
estêvão também sofra todas as consequências que vos ocorrerem a vós.

o padre estêvão lançou um olhar preocupado ao monge escocês. com um suspiro,


benzeu-se e disse:

- assim concordo. que deus me ajude. sadrinho concordou.

- excelente. este julgamento fica suspenso, enquanto testamos a pretensão do irmão


andrew. - então apanhou de cima da mesa a campainha de prata e fê-la tocar duas
vezes. os dois guardas da porta entraram, com as mãos nos bastões. - ide à casa
mortuária e trazei o corpo do senhor bernardo de cartago.

- trazê-lo para aqui, domine?


- foi o que eu disse, não foi?

os guardas curvaram-se e partiram imediatamente.

durante o desconfortável quarto de hora que se seguiu, o padre estêvão rezou com
o jovem inglês, que parecia não compreender o que se estava a passar. o inquisidor
pinto mexia-se na cadeira e beliscava a manga da batina. o inquisidor observava o
irmão andrew com ar de predador. que loucura é que eu pus em movimento?,
pensava gonsção.

os guardas voltaram, trazendo aos ombros um caixão de madeira simples. os rostos


enrugavam-se-lhes com nojo enquanto colocavam o caixão sobre a longa mesa,
empurrando o missal e a campainha de prata para fora do caminho. gravadas na
tampa do caixão, estavam as letras m.n., representando morto negatio, o que
indicava que os restos que continha, eram de alguém que tinha morrido sem se
arrepender.

o cheiro que vinha do caixão era bastante eloquente quanto ao seu conteúdo

- dir-se-ia - disse gonsção, enquanto dava a volta à mesa para se colocar ao lado
dos jesuítas - que tendes muito que provar.

sadrinho observava com uma curiosidade calma. o inquisidor pinto levantou-se e


afastou-se da mesa, benzendo-se. o jovem inglês também se afastou até que
chocou com o seu guarda de cela, que firmemente o segurou pelos ombros. o
secretário pôs-se pálido e escreveu umas poucas notas hesitantes no livro mestre.
os guardas que tinham trazido o caixão pareciam preferir encontrar-se em qualquer
outro lugar.

- abram-no - disse sadrinho.

estes estremeceram, mas os outros guardas tiraram os bastões dos cintos. bateram
então na campa do caixão, até que esta caiu e tilintou sobre a mesa. um ar fétido
espalhou-se para fora do caixão e os guardas cambalearam para trás, com as mãos
sobre os rostos, tossindo.

gonsção tapou o nariz com a manga do hábito e espreitou para dentro do caixão. o
cadáver barbudo estava nu com exceção de um tecido de algodão manchado,
colocado sobre as coxas. a pele estava cinzenta e o abdômen ligeiramente
distendido devido ao inchaço. as iniciais m.m. tinham também sido gravadas na pele
do peito do feiticeiro, provavelmente pelo monge que fez o exame final. a carne de
um pulso tinha sido comida por algum rato oportunista.

- morte fingida dissestes vós, irmão?

- sim - disse o irmão andrew. - notável, não é? gonsção afastou-se e apontou para o
cadáver.

- nesse caso, de qualquer modo, acordai-o ou mostrai-nos a magnitude da vossa


loucura.
o irmão andrew retirou da manga um pedaço de pergaminho enrolado e abriu-o
cuidadosamente.

- se começardes com as orações, padre estêvão - disse ele, curvando-se sobre um


lado do caixão. o velho monge rolou os olhos para o céu e benzeu-se. suavemente
começou a entoar a ave-maria.

de uma bolsa pendurada na cintura, o irmão andrew retirou um pequeno frasco


opalescente e puxou pela rolha de cortiça.

- não! - gritou o jovem inglês. atirou-se contra o monge escocês, mas foi detido pelo
guarda da sua cela.

o irmão andrew murmurou-lhe algo. sadrinho ergueu as sobrancelhas e aproximou-


se do jovem.

- reconheceis o frasco, não é? - disse em latim. o louro inglês olhou para o chão e
não falou. - por favor continuai, irmão andrew - disse sadrinho.

o padre stevens estava agora no pai nosso, enquanto o monge escocês destapava o
frasco e deitava um fino pó acastanhado sobre a boca de cartago. o pó borbulhou e
liquefez-se, tornando-se de um carmesim profundo enquanto penetrava entre os
lábios cinzentos.

já ouvi dizer que o sangue dos santos mártires por vezes se torna líquido em dias de
festas ou ocasiões de grande importância, pensou gonsção. será isto um tal
milagre? ou é o sangue de uma besta mítica, como diz timóteo e nós estamos a
cometer um crime hediondo.

o irmão andrew voltou a tapar o frasco e colocou-o de novo na bolsa do cinto. um


longo minuto decorreu, enquanto todos olhavam para o homem do caixão.

- então? - disse sadrinho.

- talvez, por ele ter estado tanto tempo em torpor, agora o pó seja lento a fazer
efeito.

gonsção suspirou aborrecido e afastou-se.

então ouviu um baque atrás de si. o que se passa agora? apesar de tudo voltou-se
para ver. o caixão saltava violentamente na mesa, sem que ninguém lhe tocasse.
deus de misericórdia, será que... o caixão abanou uma vez mais. o irmão andrew
disse:

- estais vendo? finalmente ele acorda do seu sono de paz.

- que deus nos ajude - murmurou o padre stevens horrorizado e benzeu-se de novo.

o jovem inglês escondeu a face nas mãos. o pálido secretário parecia pronto a
enfiar-se debaixo da mesa. os guardas que tinham trazido o caixão, deram um
passo para trás, com os bastões prontos a agir. com o coração a bater, gonsção
avançou até ao caixão e olhou para dentro.

o corpo cinzento estremeceu. os olhos abriram-se.

- ergue-te, tu, lázaro malcheiroso! - declarou o irmão andrew. - em nome do todo-


poderoso, levanta-te e enfrenta o mundo com o resto de nós, almas sofredoras.

os braços tremiam-lhe como um homem com paralisia, mas o feiticeiro ergueu-se e


segurou ambos os lados do caixão. o pulso mordido vertia sangue negro, mas a pele
estava a crescer sobre a ferida. gonsção de novo cobriu o rosto com a manga.

sangue em pó que traz os mortos à vida, tal como timóteo tinha dito. o sangue de
um monstro. o que é que nós fizemos? arrancamos nós uma alma atormentada das
profundezas do inferno?

lentamente, o homem que estivera morto ergueu-se para uma posição sentada. a
cabeça balançava sobre o pescoço e os músculos sofreram espasmos
incontroláveis. o seu olhar terrível abrangeu a sala e todos os que lá se
encontravam, os olhos vermelhos ensanguentados brilhando com horror e
acusação. então fixou o olhar sobre sadrinho e abriu a boca, revelando uma massa
negra de carne podre. a queixada moveu-se para falar, mas, em vez disso, emitiu
um rugido alto e estrangulado.

- então - murmurou o inquisidor -, é verdade. - e sorriu. isto foi de mais para o


secretário, que fugiu da sala lamuriando orações.

cartago rodou a cabeça para enfrentar o irmão andrew e rosnou algo obscuro e
incompreensível. se ele proferir pragas, eu fico cheio de medo, pensou gonsção.

o irmão andrew empalideceu, mas disse:

- são estes os agradecimentos que eu mereço, senhor, por vos despertar de um


torpor malévolo?

cartago não falou, mas o seu olhar maligno foi eloquente.

- sabeis onde estais, senhor cartago? - perguntou gonsção tão energicamente


quanto pôde. - esta é a santa casa. a blasfêmia e a feitiçaria não serão aqui
toleradas. seja qual for o pesadelo de onde viestes, nesta santa casa tereis de vos
comportar de maneira correta.

cartago voltou a olhar para gonsção. acenou uma vez, sagazmente, e gonsção
sentiu-se gelar até ao coração. com a mão a tremer, retirou o rosário do cinto e
ergueu o crucifixo à sua frente.

o feiticeiro ressuscitado fez um sorriso demoníaco e emitiu uma gargalhada


semelhante a um grunhido.
- eu não seria tão temerário, senhor cartago - disse sadrinho. - pois o vosso
companheiro de viagem - e indicou o jovem inglês - entregou-nos isto. - e mostrou o
pequeno rolo de pergaminho. cartago voltou a cabeça para olhar furiosamente para
o jovem inglês.

em latim, o jovem disse:

- não, magister, eu não lho dei. eles procuraram nas minhas roupas e acharam-no.
eu não lhes disse nada. - talvez compreendendo a indiscrição das suas palavras, o
senhor chinnery fechou a boca e os olhos e desviou o rosto.

o irmão andrew engoliu o fôlego e fez estalar a língua. sadrinho ignorou o desabafo
do inglês e estendeu a mão para o irmão andrew.

- dai-me o frasco. - o irmão andrew hesitou e os guardas aproximaram-se dele. com


um suspiro, tirou o frasco da bolsa uma vez mais e deu-o ao inquisidor.

- já não resta muito. - do caixão veio um outro rugido e cartago balançou um braço
cinzento e delgado em direção ao inquisidor. sadrinho saiu habilmente do alcance do
feiticeiro. mas cartago tinha-se inclinado de mais e ele e o caixão tombaram da
mesa para o chão.

- pobre homem - disse sadrinho. - ele não deve estar ainda... completamente
acordado. um de vós, leve-o para uma cela onde possa descansar antes de o
interrogarmos.

os rostos dos guardas ficaram pálidos.

- por favor, não, domine.

- se precisais de descansar também, há muitas celas vazias e disponíveis.

gonsção sabia que devia interferir - não era conveniente ameaçar os servos da
santa casa de tal maneira. mas também estava ansioso por ver ser removido da sua
vista o terrível feiticeiro ressuscitado.

através de gestos, os guardas determinaram qual deles assumiria o horrendo dever.


o infeliz escolhido ergueu o caixão de novo para cima da mesa e levantou nos
braços o feiticeiro, fazendo um esgar de asco. cartago agitou os braços e as pernas
e tentou bater no guarda com os punhos. mas os músculos ainda pareciam não lhe
obedecer à vontade e a força estava claramente a faltar-lhe. os seus músculos eram
fracos e a maioria falhava o alvo.

- tratai-o com gentileza - disse sadrinho. - a sua alma é preciosa para nós, tendo
sido recuperada a tanto custo. não queremos que ele durma de novo profundamente
tão cedo.

- sim, domine - rosnou o infeliz guarda, partindo rapidamente com o seu fardo
horripilante.
toda a gente no salão suspirou de alívio assim que o feiticeiro foi levado. gonsção
baixou o crucifixo. meu deus, perdoai-nos.

- o ar já cheira melhor - murmurou sadrinho.

o jovem inglês tossiu e começou a ficar com vontade de vomitar.

- levai o senhor chinnery de volta à sua cela, por favor disse sadrinho para o guarda
da cela, que pareceu muito feliz por lhe obedecer.

- esperai - disse o irmão andrew. - vós concordastes que ele nos seria entregue, se
eu acordasse o vosso feiticeiro.

gonsção ficou maravilhado com a máscara de compaixão que surgiu no rosto do


inquisidor.

- mas claramente - disse sadrinho - deveis ver que o jovem está demasiado doente
para viajar. ele tem de recuperar primeiro. e as formalidades próprias devem ser
escritas e assinadas. - sadrinho acenou para o guarda da cela, que levou o inglês
para fora da sala.

- esperava que fôsseis um homem de palavra, domine disse o padre stevens.

- já a quebrei? - disse sadrinho. - tenho toda a esperança de que o senhor chinnery


deixe em breve a santa casa. asseguro-vos que sereis informado quando ele o fizer.
agora devo pedir-vos para abandonar este local, padre estêvão. já quebramos várias
determinações ao permitir a vossa visita, mas dadas as circunstâncias
extraordinárias, eu não vou cobrar isso de vós.

- muito bem - resmungou o padre stevens. - ficaremos à espera. vamos, irmão -


disse ele para o monge escocês.

- não - disse gonsção. - tenho de pedir ao irmão andrew que fique conosco um
pouco mais. afinal de contas, pode ser que tenhamos acabado de assistir a um
milagre e nós devemos tomar tanto conhecimento quanto possível sobre o caso. o
grande inquisidor albrecht, em lisboa, gostaria sem dúvida de saber disto. por outro
lado, se foi feitiçaria o irmão andrew devia estar preocupado com o estado da sua
alma. para seu próprio bem, ele deve ficar e discutir esta espantosa ocorrência
conosco, posteriormente.

sadrinho acenou para gonsção, com um toque de admiração no olhar.

- exatamente os meus pensamentos, padre. há muito neste mistério a ser explorado.


por favor, ficai, irmão andrew. estou ansioso para ouvir tudo sobre esta espantosa
relíquia que nos trouxestes.

- mas digo-vos, não houve milagre nenhum, nem feitiçaria a atuar aqui - protestou o
irmão andrew -, somente um truque hindu que eu fui capaz de frustrar com orações
e uma pitada de pó.
- oh, eu gosto de ouvir falar dos truques hindus - disse sadrinho.

- talvez possais ensinar-nos o que fazer, para não voltarmos a ser enganados. bom
dia, padre estêvão.

o velho jesuíta suspirou e deu ao inquisidor um aceno seco. para o monge escocês
disse:

- que o bom deus vos conserve e vos proteja... - e partiu com fadiga no andar.

mal o padre stevens saiu a porta, gonsção voltou-se para o monge escocês.

- por favor, sentai-vos conosco, irmão andrew. dizei-nos exatamente onde


arranjastes esta relíquia. o sangue de santa margarita, dizeis vós? ela deve ter sido
uma mártir de obra rara.

o irmão andrew nem falou. sadrinho abanou a cabeça.

- padre, vós estais demasiado impaciente. esquecestes como os homens são


levados a falar a verdade.

- seguramente que não me ides pôr sobre interrogatório? disse o irmão andrew.

- o estado da vossa alma é preocupação da vossa ordem, irmão. nós temos o dever
de a informar de qualquer transgressão que observemos. compete ao vosso superior
dar-vos a penitência que for requerida. mas tenho a certeza que isso não será
necessário e que as vossas respostas a umas quantas questões nos devem
satisfazer. notei, por exemplo que o senhor cartago parecia reconhecer-vos.
conhecei-lo?

- eu... era passageiro no navio inglês que o capturou.

- os hereges ingleses permitem a um jesuíta viajar com eles?

- nem todos os ingleses são preconceituosos e o meu dinheiro para a passagem foi
considerado tão bom como o de qualquer outro homem.

- compreendo - disse gonsção. - e o senhor chinnery parecia reconhecer-vos


também. ele também estava no barco?

- estava, padre. o jovem inglês é um ervanário e um curandeiro. naturalmente que o


nosso trabalho por vezes se sobrepunha.

- ah! mas o cumprimento que ele vos fez agora mesmo, não foi o que eu chamaria
amigável.

- não. nós... tivemos uma discussão antes de nos separarmos.

- hum. há sobreposição entre o trabalho dos ervanários e o dos bruxos. alguma vez
vistes tal feitiçaria executada pelo senhor chinnery?
- não, nunca.

- notei que o senhor cartago reconheceu o frasco do pó miraculoso. ele deve tê-lo
visto antes, não?

- de fato eu tinha-lo mostrado.

- e ao senhor chinnery também?

- sim, é claro.

- com certeza. e dir-se-ia que o senhor chinnery sabia a importância do seu


conteúdo, dada a sua reação quando vós o exibistes aqui. alguma vez lhe
emprestastes o pó para... acordar faquires?

- ele usou-o uma vez, para fazer um camareiro sair do torpor.

- devo compreender - disse gonsção - que um herege inglês confiou numa relíquia
papista? ouvi dizer que alguns preferiram morrer a fazer tal coisa.

o monge escocês encolheu os ombros.

- ele conhecia a sua eficácia e curar, para ele, era de uma importância primordial.

- mais importante que a sua alma?

- certamente - disse andrew com um sorriso ansioso -, as orações ditas com a


aplicação do pó, protegiam-lhe a alma do mal.

- sabeis uma coisa - disse gonsção -, há certas pessoas que se auto-intitulam de


feiticeiros brancos e que afirmam que a oração é a parte mais importante da sua
feitiçaria. eu acho isto mais hediondo do que a arte negra, pois estas pessoas
seriam capazes de utilizar os anjos como escravos para ficarem às suas ordens. eu
não acredito, irmão, que a oração seja suficiente para salvar a alma de um homem,
se ele a acompanhar com ações infames. autorizastes o senhor cartago a usar o
pó?

- não!

- mas ele sabia o que aquilo era.

- nós tínhamos ouvido dizer que ele era um alquimista e o senhor chinnery estava
com falta de remédios. então discutimos com ele o que possuíamos e se ele tinha
conhecimentos ou provisões para nos ajudar.

- confiastes no conhecimento de um feiticeiro?

- não tínhamos provas de que ele fosse um feiticeiro, nem ele nunca afirmou sê-lo. e
até os homens maus podem dar informações úteis.
gonsção suspirou e deu alguns passos em direção à cruz gigantesca pendurada na
parede.

- na verdade gostaríamos de acreditar em vós, irmão. mas ouvimos dizer que


alguém a bordo do vosso barco traiu cartago e o senhor chinnery e os entregou aos
piratas que os trouxeram aqui para goa. tanto quanto sei, esse judas podia ter sido
vós. e nesse caso nada do que vós dizeis pode ser acreditado.

- se eu tivesse desejado livrar-me dele - rosnou o irmão andrew -, porque teria eu


vindo aqui em sua ajuda?

- isso é uma pergunta interessante. não, não. - gonsção ergueu a mão. - não faleis
mais agora. cometem-se erros, quando o homem fala com pressa. mas, vede. há
demasiadas peças a faltar neste puzzle e isso preocupa-me.

- sim - disse sadrinho -, talvez devêsseis ficar conosco, até que o jovem inglês se
encontre bem. estando aqui, podeis dar-lhe conselhos. talvez vos seja possível
inculcar nele a idéia do perigo em que a sua alma se pode encontrar. É claro que
ser-vos-á permitido partir, logo que tenhamos uma explicação mais completa e
sensata. de particular interesse para mim, é a origem desta maravilhosa relíquia.
nenhuma santa margarita de que eu tenha ouvido falar, é descrita como tendo
derramado sangue que cura. deve ser a vossa memória que temporariamente vos
falhou. dar-vos-emos tempo para pensar e rezar, irmão, até poderdes dar uma
resposta mais razoável.

- não me farão mal?

- certamente que um irmão em cristo não nos dará causa para lhe fazermos mal. -
sadrinho acenou para o guarda que tinha ficado.

- por aqui, por favor, irmão - disse o guarda. - temos um quarto agradável disponível
para vós, na nossa ala residencial.

os punhos abriram-se e cerraram-se mas o monge escocês finalmente cedeu.

- até mais tarde, então, domine, padre. - e permitiu que o levassem da sala.

- e que deus vos acompanhe também, irmão - disse gonsção, embora o irmão
andrew já não o pudesse ouvir.

sadrinho baixou os olhos para o frasco opalescente na sua mão e tocou-lhe quase
amorosamente.

- devo agradecer-vos, padre. fizestes mais pela nossa investigação do que alguma
vez esperei.

- far-me-eis então o favor de me confiar o que sabeis, para que eu possa


compreender melhor o que vos trouxe? disse gonsção.
- na verdade, vós ganhastes esse direito. sabeis, quando chegastes ao princípio, eu
estava inseguro em relação a vós, padre. não tinha a certeza de estarmos... a
perseguir os mesmos objetivos. agora, dir-se-ia que quaisquer que fossem as
nossas intenções originais, as nossas flechas voam para o mesmo alvo. vinde ao
meu escritório depois das vésperas, amanhã. todo o conhecimento que eu tenho
será vosso também.

- porque esperar tanto? não podeis dizer-me agora?

- há algumas idéias que eu devo pôr em ordem, de forma a que vos possa
apresentá-las como um todo coerente. mas ides ouvir tudo. prometo-vos. - sorrindo
como uma criança com um brinquedo há muito desejado, sadrinho levou o frasco ao
peito e saiu da sala.

- o que fizestes? - veio um sussurro alto por detrás de gonsção. este voltou-se. o
inquisidor pinto, que tinha estado num canto afastado da sala, tão silencioso que
gonsção se tinha esquecido da sua presença, aproximou-se, com as bainhas do seu
hábito negro a varrer o chão. veio direto a gonsção, com uma expressão fechada no
seu rosto pequeno e bonito.

- isso é que espero vir eu próprio a saber, domine.

- não vedes? pensava que tínheis vindo a goa para levar de volta esta santa casa
aos seus verdadeiros deveres e preocupações. este... pulvis mimbile tem sido uma
obsessão para sadrinho, desde que soube da sua existência. não tem pensado
praticamente em mais nada e agora vós trazeis-lhe para dentro das nossas próprias
paredes, a mesma coisa que eu tanto tenho rezado para ele abandonar. não haverá
fim para isto, agora. estamos arruinados. que deus tenha piedade de nós.

- perdoai-me - começou gonsção a dizer, mas percebeu que estava a falar para as
costas do inquisidor pinto que se afastara entretanto.

gonsção sentiu os ombros a vergarem-se e não sabia se era do peso da


responsabilidade ou do cansaço. sendo o último a abandonar a grande sala de
audiências, gonsção fechou as portas atrás de si e permaneceu algum tempo no
vestíbulo.

deu por si a olhar para a parede, na qual estava pendurado o emblema da ordem
dominicana. representava são domingos segurando um ramo de oliveira numa mão
e uma espada na outra. por baixo do santo estava um cão, com uma marca de
queimadura na boca e um globo sobre o qual estava uma cruz. numa bandeira sobre
a cabeça do santo, estavam escritas as palavras ”justitia et misericórdia”.

tinha sido são domingos quem, quando soldado, dissera:


- matem-nos todos. deus saberá quem são os seus. - meu deus, pensou gonsção,
quem dera que vós pudésseis atribuir-nos esse mesmo poder, saber quem são os
nossos e os que não são, enquanto ainda estão vivos.

capítulo xvii
azevinho: este arbusto está sempre verde e dá folhas com espinhos. no princípio do
verão dá flores brancas que, no outono, se transformam em bagas vermelhas. deve
tomar-se cuidado no seu uso porque as bagas são venenosas para as crianças. diz-
se que a cruz de cristo foi talhada de madeira de azevinho e como penitência o
azevinho nunca mais ficou um arbusto alto. também se pensa que a coroa de
espinhos foi feita de azevinho e que as bagas, que antigamente eram amarelas, se
tornaram vermelhas com o sangue de nosso senhor. os galeses acreditam que levar
azevinho para casa na véspera de natal, convida a discussões. levá-lo para casa de
um amigo é levar a morte. da mesma forma, é perigoso apanhar azevinho que esteja
a florir e pisar as suas bagas traz má sorte...

thomas estava sentado balouçando-se no catre da sua cela, com o queixo nos
joelhos e os pensamentos tão caóticos como uma nuvem de mosquitos. por que
razão é que eu falei, quando cartago olhou para mim? certamente que me condenei.
por que razão apareceu lockheart disfarçado de monge, para desafiar a santa casa e
trazer o alquimista de regresso à vida? teria ele acreditado, de fato, que isso me
libertaria? estou rodeado por loucos, juiz e salvador igualmente. que deus permita
que eu retenha alguma aparência do meu próprio senso comum. vou necessitar de
todo o que tenho, para resistir e escapar deste lugar.

as portas da cela bateram e o seu já familiar guarda entrou. atrás dele surgiu
timóteo, transportando um grande rolo de pergaminho atado com uma fita vermelha.

- boa noite, irmãozinho - disse thomas. - agradeço-vos pela ajuda que tentastes dar
no meu julgamento. foi uma pena terdes de sair tão cedo. perdestes um espetáculo
verdadeiramente extraordinário.

o irmão timóteo não o olhou nos olhos e o seu rosto era muito grave.

- assim me disseram, senhor - e pôs o pergaminho enrolado no leito ao lado de


thomas.

- o que é isto que me trazeis?

- trago o único conselho permissível a alguém que esteja no vosso lugar, senhor.
deveis perscrutar a vossa alma, examinar os vossos pecados e pedir perdão a deus.
este documento é uma declaração de confissão, senhor. domine sadrinho diz que se
vós assinardes isto, abrirá caminho para a vossa libertação. ele crê que fostes
desviado do bom caminho por outros e sabe que podeis ser perdoado.

thomas recuou afastando-se do pergaminho, como se ele fosse fogo.

- pensava que estavam a ser feitas diligências para me libertarem e me deixarem ao


cuidado do padre stevens.

timóteo suspirou.

- sereis libertado, senhor. mas é o dever da santa casa cuidar da vossa alma. se nós
vos deixássemos ir embora sem vos dar a hipótese da confissão, seria como se vos
estivéssemos a mandar para o inferno.
ah. eu ainda sou um herege e não me é permitido partir assim.

- que pecados é que este documento... me permite confessar?

o rapaz lançou um olhar fugidio ao guarda que estava a examinar as unhas


indolentemente.

- heresia, senhor. e feitiçaria. não sei que mais.

e eu tinha pensado que a minha alma estava em perigo agora. confessar heresia
seria renunciar à fé em que tinha nascido e sido batizado. renunciar a isso! no livro
dos mártires de fox, thomas tinha lido sobre muita gente que morreu em tormento
durante o reinado sangrento de mary stuart, porque preferiram a morte a tornarem-
se apóstatas.

terei eu tanta coragem quanto eles? quando estou tão perto de escapar desta
loucura?

- certamente - disse ele para timóteo - que não sabeis o que pedis.

com os olhos tristes, o rapaz disse:

- não sou eu quem pede, mas se fosse o meu dever, eu pediria. não quero que a
vossa alma seja reclamada pelo danado.

o rapaz acredita piamente no que a inquisição ensina.

- isto é difícil de explicar, irmãozinho, mas de acordo com a minha fé, ao darem-me
isto para assinar é precisamente o que pode acontecer.

timóteo abanou a cabeça.

- isso não pode ser verdade. a vossa igreja herege mentiu-vos.

ou a tua a ti. controlando a fúria, thomas disse:

- penso que não.

- deus vê a verdade - disse timóteo -, e domine sadrinho e todos os inquisidores são


inspirados por deus.

se é assim, que o céu nos ajude, pensou thomas. não tinha mais argumentos para
oferecer, perante a fé inabalável do rapaz.

- o que fará o domine inquisidor se eu assinar? o rapaz apertou os lábios.

- não sei exatamente, senhor. os que se confessam e são absolvidos, normalmente


permanecem como convidados da santa casa até ao próximo auto-de-fé. nessa
altura a sentença é dada e são libertados para o mundo, para esperar a justiça do
governador.

- compreendo. quando é o próximo auto-de-fé?

- não posso dizer, senhor.

- quando foi o último?

- antes do natal, no ano passado.

- e o outro antes desse?

- não me lembro, senhor.

- então eu poderia ficar aqui durante anos. que piedoso. o irmão timóteo parecia
prestes a chorar.

- por favor, senhor. outros encontraram paz aqui e alegria no perdão de deus. o que
são anos neste mundo cheio de pecado, comparados com a eternidade no céu?

este rapaz vai dar um padre excelente um dia. infelizmente.

- antes de eu assinar, podeis dizer-me o que pode ter acontecido ao outro jesuíta
que estava no meu julgamento, o irmão andrew?

o guarda da porta virou-se e aclarou a garganta sonoramente.

- não vos deveis preocupar com os outros, senhor. pelo menos, enquanto a vossa
própria alma estiver em tal perigo.

- compreendo. e se eu não assinar a confissão? o irmão timóteo olhou para o chão.

- então que deus tenha misericórdia da vossa alma.

- quereis dizer que serei morto?

o rapaz levantou de novo os olhos, chocado.

- a santa casa não mata!

- não há tortura? nenhum dos vossos hóspedes morreu às mãos dos inquisidores?

timóteo desviou de novo a vista.

- os domines fazem tudo o que podem para compelirem os hóspedes da santa casa
a verem a verdade.

- e se os hóspedes não conseguirem aguentar essa compulsão?

timóteo apanhou o rolo de pergaminho e arremessou-o ao peito de thomas.


- por favor, pelo amor de deus, assine, senhor! thomas sentiu o coração a apertar-
se-lhe. podia assinar

apenas para aliviar a terna dor que viu na face do rapaz. seja lá qual for o demónio
que te inspira, irmãozinho, tem um poder mais aterrador que o próprio satanás.

- eu... vou pensar nisso. por favor, preciso de tempo. timóteo suspirou e fez girar o
documento enrolado nas suas mãos de um modo desajeitado, antes de o voltar a
colocar sobre o catre.

- como quiserdes, senhor. deixá-lo-ei convosco, para o caso de deus vos abençoar
com uma mudança de coração. voltou-se e caminhou até ao guarda da porta. este
grunhiu uma pergunta e timóteo abanou a cabeça. o guarda olhou para thomas e
também abanou a cabeça, fazendo estalar a língua, como se thomas fosse uma
criança.

o guarda e timóteo partiram e o fechar da porta soou de um modo invulgarmente


alto, no silêncio que se seguiu.

thomas olhou para o pergaminho e perguntou a si próprio, se ousaria desatar a fita e


lê-lo. ou se devia simplesmente rasgá-lo. notou algo escuro e pontiagudo a sair de
entre o pergaminho e a coberta de cama. com um cuidado supersticioso, a fim de
não tocar no documento, thomas deu um puxão neste novo objeto. era uma folha
verde-amarelada, longa e estreita, como a da planta de pimenta. cheirou-a.

É a isto que chamam betei? tinha ouvido dizer que era usado pelos muçulmanos
para prevenir o escorbuto. também diziam que era ligeiramente narcótico e que
aliviava a dor. por que razão o irmãozinho me deu isto? será um aviso daquilo que
está para vir?

de novo as vozes e os passos se aproximaram da cela. thomas enfiou a folha dentro


da boca, saboreando uma aguda explosão de azedume.

as portas da cela abriram-se uma vez mais e o inquisidor sadrinho entrou.

- que deus vos dê uma boa noite, senhor - disse com um agradável sorriso.

- espero que sim - disse thomas. - viestes para me libertar? o sorriso do inquisidor
descaiu apenas ligeiramente.

- ainda não, senhor. fui informado que não estáveis ainda pronto. tínhamos a
esperança de que abriríeis a alma para o perdão de deus. bem, estas coisas podem
levar tempo. pensei que talvez um passeio servisse para vos aclarar o espírito.
achamos que o exercício é muitas vezes útil para os nossos hóspedes. dar-me-eis o
prazer da vossa companhia?

thomas deteve-se, espantado.

- É-me dada a escolha? sadrinho encolheu os ombros.


- podeis ficar aqui em contemplação solitária, se preferirdes. isto é mais uma
loucura? estará ele a planear persuadir-me a assinar a ”confissão”? a oferta do betei
sugere uma possibilidade mais terrível. mas se eu recusar, ele volta novamente mais
tarde.

- muito bem. irei.

- bom - sadrinho fez sinal ao guarda. thomas levantou-se e o guarda veio até ele e
desatou-lhe os pulsos. por um momento, thomas teve a esperança de que
finalmente teria as mãos livres. mas o guarda fê-lo girar sobre si e voltou a atar-lhe
os pulsos atrás das costas.

- uma mera precaução - disse sadrinho. - e tereis de ser outra vez vendado.

- É necessário? já me tendes atado. para que precisais de me vendar também?

- esqueceis, senhor, que o nosso objetivo é purificar a vossa alma. há muita coisa
que podíeis ver que vos distrairia desse fim. não tenho desejo nenhum de ver o
nosso trabalho desfeito tão depressa. por isso, a venda.

assim que ele disse esta palavra o trapo negro foi colocado nos olhos de thomas e
atado atrás da sua cabeça. o guarda deu-lhe um toque nas costas e thomas andou
para a frente, para fora da cela.

- posso perguntar - disse ele - se o irmão andrew ainda aqui está e se é prisioneiro
como eu?

thomas sentiu uma leve pancada mordente no ombro.

- shhh - sussurrou o guarda. o inquisidor disse:

- não deveis falar fora do vosso quarto, a menos que eu o peça. não devemos
distrair os outros da contemplação dos seus pecados.

mais loucura, pensou thomas.

era necessário alguma concentração para caminhar atado e cego, mesmo guiado
pela mão pesada do guarda. todavia, pelo eco dos passos, thomas calculou que
seguiam ao longo de um corredor que tinha um espaço aberto à direita, talvez um
pátio. estavam acima do nível do chão, porque havia sons que ecoavam vindos de
baixo.

À esquerda um homem gritou, implorando em português:

- jesu pau! jesu pau! - o guarda afastou-se de thomas e este ouviu o raspar de metal
sobre metal, enquanto uma porta de cela se abria. depois veio o som de uma série
de pancadas revoltantes, acompanhadas por gritos de ”silêncio!” seguidos por
gemidos de dor.
thomas só podia manter-se de pé e esperar, impotente, durante o espancamento.
mordeu com força a folha de betei guardada na bochecha e chupou com força o
sumo adstringente, esperando que o seu efeito lhe distraísse a mente.

- esta é a ala dos homens - disse o inquisidor calmamente, como se nada de


extraordinário se estivesse a passar. - a ala das mulheres é lá em baixo.

e que indignidades é que sofrem as vossas hóspedes femininas?, pensou thomas,


embora não dissesse nada. logo depois a porta da cela fechou-se com uma pancada
e thomas sentiu um outro empurrão nas costas. estarei agora manchado com o
sangue daquele pobre homem?

enquanto caminhavam, thomas não foi capaz de dar conta das voltas que davam de
um corredor para o outro e em breve se sentiu perdido. de vez em quando, o
inquisidor dava alguma informação irrelevante, tal como: ”aqui é onde recebemos os
pedidos das famílias dos nossos hóspedes” ou ”aqui era outrora o palácio do sultão
de goa; aqui era a zenana onde ele mantinha o seu harém”.

passaram por uma sala que cheirava a pão acabado de cozer, cebolas e especiarias
e thomas ouviu o tilintar de tachos e chaleiras. alguns passos mais além, sadrinho
disse:

- há escadas que descem aqui. continuai, mas tomai cuidado com os pés.

thomas tateou o chão com o pé direito e desceu desajeitadamente. tateou depois


com o pé esquerdo, para tomar a medida do próximo passo antes de tentar dá-lo. as
escadas tinham uma depressão no centro, dando a perceber que muitos pés tinham
passado por ali. os degraus pareciam ser de altura aproximadamente igual, por isso
thomas continuou a descer com mais confiança.

quando atingiu o final dos degraus, o inquisidor disse:

- parai - e passou por ele impetuosamente. - agora honrar-vos-emos, senhor, com


uma visão que poucos dos nossos hóspedes tiveram a oportunidade de ver.

ouviu o barulho de chaves a rodar numa fechadura à sua frente e uma porta abriu-
se. uma rajada de ar fresco e úmido trouxe consigo odores reminescentes do
aljouvar. por um momento, thomas desejou estar de volta à fétida gruta da fortaleza
do governador, na companhia de homens que se podiam compreender. joaquim
tinha o direito disso. teria ele sido alguma vez hóspede aqui, gostaria eu de saber?

- tende cuidado - disse o inquisidor. - aqui há mais escadas. estes degraus eram
mais estreitos e irregulares e thomas foi forçado a aperceber-se do caminho com
precaução, encostando um ombro contra uma parede de pedra fria e úmida. vozes
fracas e sons que mal se podiam captar com o ouvido, fizeram-lhe arrepiar a pele e
pôr os cabelos em pé. eram os gemidos de homens e mulheres que tinham perdido
por completo o juízo e a esperança, gemendo o seu desespero para paredes duras
sem ouvidos.

os gemidos tornaram-se mais aparentes e os odores mais pesados, enquanto


thomas descia e ele começou a perguntar a si próprio se a santa casa teria uma
entrada própria e privada para o inferno.

mas não há beatrice ou eurídice à minha espera para me tirar daqui. apenas o
inquisidor. não proclama ele ser um homem de deus? eu diria que este reino ínfero é
a sua verdadeira morada.

os passos pararam num chão de pedra irregular. thomas foi voltado para a direita e
guiado até uma sala que cheirava a lavagem recente com água de cal. uma porta
fechou-se atrás dele e a venda foi-lhe tirada dos olhos.

o inquisidor sadrinho estava à sua frente, composto e simpático como qualquer


hospedeiro generoso.

- esta é a nossa sala de interrogatórios. os nossos hóspedes, nós damo-nos conta,


ficam muitas vezes curiosos acerca daqueles instrumentos que empregamos para
trazer de volta a deus uma alma perdida. pensei que vós, como estrangeiro,
pudésseis também estar interessado em vê-los.

ah, aqui está o seu engodo. thomas tinha ouvido falar do ritual de mostrar os
instrumentos. para alguns prisioneiros, isso somente tinha bastado para os fazer
apóstatas e provocar confissões de heresia. o efeito narcótico da folha de betei deu
a thomas alguma sensação de distância e calma. eu devia de ter a coragem de
suportar esta dramatização.

a sala branca era iluminada apenas por finas velas, em candelabros colocados perto
dos cantos. sombras sem forma vacilavam por detrás das mesas e das máquinas
irreconhecíveis de metal e madeira.

- estas - disse sadrinho com um gesto grandioso do braço -, ajudam


verdadeiramente a trazer a atenção da mente mundana. aqui, por exemplo, é a
mesa sobre a qual nós administramos o potro - e orgulhosamente ergueu um pote
contendo uma tira de linho, explicando o seu uso. - aqui está o trono da virgem
bendita. - apontou para uma cadeira com uma capota de chumbo, cujo interior
estava cercado de barras de ferro embotadas, que se lançariam sobre as partes
moles do corpo de quem quer que lá se sentasse. contra outra parede estava o
infame ecúleo, sobre o qual os membros de uma pessoa podiam ser esticados para
além do que era possível suportar. num canto estavam as ”botas espanholas”, nas
quais as pernas de um homem podiam ser esmagadas; num outro estava uma pilha
de instrumentos de tortura para os dedos e potes para pôr o azeite a ferver.

sadrinho expunha sobre cada um deles como um padre a enumerar todos os


tesouros sagrados da catedral. entretanto, o guarda estava a labutar com as cordas
que atavam os punhos de thomas. agora, aposto que me vão atar de novo as mãos
à frente e não é com boas intenções. se as minhas mãos estivessem livres, eu podia
saltar para a frente e estrangular o inquisidor. ousaria eu fazê-lo? seria morto por
isso, sem dúvida, e além do mais condenado eternamente, mas a idéia tem o seu
atrativo. thomas quase sorriu.

- e este - sadrinho exclamou enquanto algo novo era preso com ganchos à volta dos
pulsos de thomas - é o polé, chamado por alguns o strappado!

thomas foi levantado no ar, uma agonia de dor rasgando-o dos pulsos até aos
ombros. o ar saiu-lhe rapidamente dos pulmões e tornou-se-lhe tremendamente
difícil inspirar de novo. abriu a boca, mas não pôde encontrar ar para gritar. a língua
pendia-lhe inutilmente e o rolo da folha mastigada de betei caiu no chão.

sadrinho levantou-se e apanhou-o; agitou-o à frente do nariz, depois olhou para


cima, para thomas.

- onde arranjastes isto?

thomas estava incapaz de responder.

bateu com as pernas e encolheu os ombros, o que lhe deu a sensação de que estes
se iriam soltar dos encaixes e atravessar-lhe a pele. o movimento só aumentou a
dor.

- não tem importância - disse o inquisidor. - o efeito do betei dissipar-se-á em breve


e o strappado fará sentir o seu efeito completo. deixar-vos-ei até lá. sugiro que,
entretanto, mediteis nos vossos pecados e peçais orientação.

- pelo amor de deus, domine! - disse thomas ofegante. como... como podeis...

- como dissestes, senhor. por amor de deus. - sadrinho voltou-se e apagou todas as
velas exceto uma. com um aceno para o guarda, partiram ambos.

thomas lutou contra o pânico que ameaçava inundar-lhe a mente.

houve homens que sobreviveram a isto. houve homens que sobreviveram a coisas
piores. tenho de ficar calmo. com um esforço da vontade conseguiu acalmar os
movimentos.

meu deus, a dor. quando o efeito do betei desaparecer, como é que eu vou suportá-
la? tinha visto muitos clientes virem à loja do mestre coulter, cada um com uma
experiência diferente de dor. alguns suportavam o que devia ter sido uma agonia
constante, com um sorriso triste. outros gritavam ao mais leve toque de uma lança
sangrenta. para alguns, os medicamentos para alívio das dores eram uma bênção
instantânea. para outros, nada resultava. que tipo de homem sou eu?

lembrava-se de sofrer o castigo da vara de bétula, quando criança, às mãos do seu


pai e das surras recebidas, quando andava na escola. mas tal dor era breve e tinha
havido muito tempo para sarar depois. thomas não podia esperar que este tormento
fosse o pior que iria sentir às mãos da inquisição. a menos que eu assine a danada
confissão!

a corda rangeu por cima dele como a de uma âncora de um barco. meu deus, até
estar de volta à prisão fedorenta do whelp. meu deus, se a minha alma significa algo
para ti, deixa esta corda partir-se e liberta-me. mas a corda permaneceu segura,
enquanto ele balançava ligeiramente para trás e para a frente, um pêndulo perdendo
o impulso com o tempo.

tentou distrair-se com pensamentos de momentos mais agradáveis. trouxe à mente


visões de anne coulter, o seu rosto doce e redondo e as mãos gentis, os olhos de
avelã e o sorriso tímido. mas estas feições foram rapidamente substituídas pelas da
senhora aditi e por uma memória da sua forma e perfume, enquanto ela se curvava
sobre ele para lhe ajeitar o turbante. É como se eu estivesse enfeitiçado. oh, anne,
perdoa-me.

tentou esvaziar a mente completamente como diziam que os orientais faziam, para
deixar a dor tornar-se meramente uma outra característica da sala, distante dele.
focou a atenção nos sons: o pingar da água, os gritos débeis dos que estavam em
tormento, o arranhar do que podia ser uma ratazana junto à porta.

- thomas? - alguém sussurrou. involuntariamente voltou a cabeça em direção ao


som,

enviando uma nova dor para os seus ombros.

- ah... quem?

- shhh... não estrebuches, rapaz. isso será pior. acalma-te.

- andrew! - thomas respirou, tentando manter-se calmo. - pelo amor de deus,


homem, cortai-me as cordas!

- não posso fazer isso. não escapamos daqui. eles deixam-me ver-te, pensando que
poderei oficiar a tua alma e encorajar-te a confessar.

- se tendes um bocado que seja de caridade cristã, então aliviai um pouco o peso
nos meus braços.

- ah, muito bem. - lockheart saiu das sombras e pôs os braços à volta das pernas de
thomas, elevando-o algumas polegadas. - mas vai doer mais quando eu te deixar
cair de novo.

- os meus agradecimentos - suspirou thomas, engolindo o ar, enquanto se deixava


cair contra o ombro do escocês.

- não me deram muito tempo para falar contigo, rapaz. mas coragem. há esperança.

- há? - a doçura do ar nos pulmões distraiu thomas e os pensamentos não lhe


vinham com clareza. - tomastes o hábito e os votos tão a sério que as vossas preces
me vão salvar?

- este traje é apenas um disfarce que me foi emprestado pelo padre stevens, para
me dar entrada neste terreno círculo do hades. de algum modo, é apropriado para
mim, mas isto é uma história para outra altura. temos de conceber um plano para a
tua fuga. tinha pensado que um cartago ressuscitado seria tudo o que a santa casa
procurava, mas apenas fiquei perto do seu verdadeiro desejo.
- o que pode ser então?

- o pó sangrento, rapaz! não é o feiticeiro que eles querem, mas o seu conhecimento
da fonte do sangue.

que bizarro, que os meus interesses e os dos inquisidores possam ser tão
coincidentes.

- mas eles têm cartago agora. ele pode dizer-lhes.

- pensas que estarias nesta posição, rapaz, se ele o pudesse fazer? eu ouvi dizer
que o pó é lento a curá-lo. a língua dele ainda está cheia de podridão e ele não
consegue falar. não tem sensação nos membros... podem espetá-lo e torcê-lo e
nada o aflige. ouvi dizer que pôs o melhor torturador deles com falta de apetite.

- uma vingança mesquinha, essa.

- mesquinha, de fato, e a razão pela qual o inquisidor agora se dirige para nós.
entretanto ele tem um cheiro da verdade, pois que facilmente farejou as minhas
mentiras. mas voltando ao assunto... cartago fez-se teu amigo, não fez?

- não como tal.

- bem, então, considerou-te um companheiro de viagem, talvez. ele disse-te alguma


coisa sobre o local onde o pó pode ser encontrado? se sabes algo, aí está o
caminho para a tua libertação.

o mapa! sadrinho tem-no agora. mas cartago teve de me dizer o que os símbolos
significavam. então. tenho uma carta para jogar. mas poderei confiar em lockheart?
ele é bem capaz de me tirar a informação e de me deixar aqui a apodrecer. com um
fio tão fino para pendurar as minhas esperanças, tenho de ser astuto.

- ele disse-te, rapaz, onde está a fonte do pó? - lockheart abanou as pernas de
thomas para dar ênfase. - disse-te?

- ah! ficai quieto, peço-vos. ele... ele pode tê-lo feito. tenho de pensar nisso. a dor...
torna difícil recordar.

lockheart suspirou.

- pensa bem, então. deram-te uma confissão para assinar?

- sim, deram-me.

- pois assina-a. estes homens não libertam ninguém, até terem obtido uma
confissão. isso mantém o registro deles imaculado.

- o registro deles? - disse thomas. - e as máculas da minha alma? devo dizer que
costumo foder cabras no cemitério, ou beber o sangue de bebês batizados? quereis
que eu me condene a mim próprio?

- como o nosso bom capitão wood poderia ter dito, melhor pecar e viver e ter mais
tempo para penitência, do que morrer para nada. tem coragem, rapaz. eu próprio já
enfrentei muitos perigos ao longo dos anos, porém a morte não me terá até que eu
escolha a hora.

- não? dizei-me, andrew. É por isso que vós traístes o capitão e todos nós?

lockheart fez uma pausa.

- talvez. talvez fosse a morte o que eu receava. mas não quero mal a homem
nenhum. nem sequer a ti. foi por isso que mandei todos a terra naquela noite, tal
como tentei mandar-te a ti. foi um duro golpe para o meu coração, ver-te naquele
barco. mas tentei compensar os prejuízos. arranjei uma disputa com um bando rival
dos bandidos, quando nos aproximamos de goa, numa altura em que eu sabia que
eles te deixariam sair do carro. tu escapaste como eu esperava, tal como eu próprio
e a senhora. tinha pensado que seria o fim de tudo aquilo. depois encontrei-me com
o padre stevens para pedir a sua ajuda e ele disse que tu tinhas sido preso.

”conversamos longamente. ele suplicou-me que o ajudasse a libertar-te. a minha


vergonha dominou-me e tomei isso como mais um sinal de que os nossos destinos
estão verdadeiramente entrelaçados.

- um presságio - disse thomas suavemente.

- se tu assim o entendes. por isso aqui estou eu, cativo do meu dever e por
conseguinte da santa casa. apenas tu podes libertar-nos.

- não podíeis ter partido sozinho com facilidade? por causa das vossas cenas
teatrais, eu sou agora considerado feiticeiro e condenado ao tormento, a menos que
me condene a mim próprio. foi verdadeiramente a piedade o que vos trouxe aqui? ou
estais tão enfeitiçado pelo maravilhoso pó, quanto o inquisidor? ressuscitastes
cartago para o vosso próprio benefício e agora voltais as vossas esperanças para
mim? talvez queirais que eu revele o que sei para o vosso próprio ganho e uma vez
na posse da informação, deixar-me-eis aqui para morrer. lockheart soltou as pernas
de thomas, deixando-o cair. uma dor dilacerante queimou os braços de thomas, os
ombros estalaram e os pulmões perderam o ar.

- como te atreves, rapaz! - lockheart gritou, na voz mais áspera que thomas já tinha
ouvido. as suas sombras eram monstruosas contra a parede pálida. - não fazes um
raio de uma idéia do que é que eu quero! foste tu quem veio atrás de mim naquele
barco, arrastando toda a tapeçaria dos fados contigo, como se estivesses atado aos
seus fios urdidos e hécate fosse o teu mestre de fantoches! quanto a tirar-te os
segredos e a deixar-te aqui, digo-te: nem eu, nem o que me mandou na nossa
amaldiçoada viagem, acreditamos que este deva ser o tempo e o lugar para tu
morreres.

lockheart voltou-se e caminhou para a porta da câmara.


- enviaram-vos - arfou thomas através da sua agonia. quem... vos enviou? andrew?

mas a porta fechou-se batendo, deixando apenas um eco como resposta.

capítulo xviii

bÉtula: esta árvore tem folhas brancas, casca papirácea e folhas em forma de seta.
no verão dá amentos verdes. o seu nome talvez venha do latim ”bater”, já que as
varas da bétula foram usadas muitas vezes para castigar. diz-se que nosso senhor
jesus cristo foi açoitado com varas de bétula. um molho de varas de bétula era o
símbolo do poderio romano e do direito que eles tinham de castigar com a
flagelação. os ramos de bétula também eram usados para expulsar os espíritos
malignos da terra de alguém, ou para tirar os demônios do corpo dos lunáticos.

também se diz que as bruxas fazem os paus das suas vassouras de bétula; contudo
há quem diga que estes podem varrer para longe as bruxas...

a cabra a seu lado balia de aborrecimento, enquanto aditi a conduzia em direção ao


templo.

- paz, minha tola - disse ela. - vais ver o paraíso em breve e talvez uma vida melhor.
- uma vez mahadevi tinha-lhe dito que a cabra era o seu animal favorito para receber
em sacrifício. puxando pela besta malcheirosa, aditi não conseguia imaginar porquê.
mas ela estava agradecida por a família dos maratas que a sustentava
generosamente, lhe ter dado uma, em troca de preces à deusa.

o templo a mahadevi era pequeno e ficava nos subúrbios de goa, junto ao rio
mandovi. até então, tinha sido ignorado pelos jesuítas zelosos ou pelos mogóis. a
cúpula era simples e pintada de branco, não era doirada. as esculturas de mulheres
nos pilares e na arquitrave eram modestas.

encontrava-se lá pouca gente para puja, naquela tarde. contudo, aditi conservava o
orhni puxado para baixo, sobre o rosto. entregou a corda de prender a cabra a um
brâmane no portão lateral do templo. sendo membro da casta konti, aditi podia ter
executado ela própria o sacrifício, mas uma tal exibição de riqueza e devoção podia
trazer-lhe atenção indevida. também lhe repugnava fazer mal aos animais. suspirou,
enquanto a cabra era levada, balindo, para trás do portão.

os meus pêsames, minha tola. tem de ser. ahinsa era todo bem e bondade mas
mahadevi tinha fome e precisava de ser alimentada, para poder dar à luz o seu dom
da vida.

aditi também tinha dado ao sacerdote uma tira de folhas de palmeira, na qual
inscrevera uma mensagem para mahadevi. com a ajuda de um mensageiro do
templo, ela tinha mais hipóteses de a sua mensagem ser recebida, do que muitos
suplicantes. também tinha dado ao sacerdote algumas moedas para uma profecia.
normalmente, adivinhar o futuro estava abaixo da dignidade de um brâmane, mas
havia um no templo que tinha uma família numerosa para sustentar e que seria
capaz de o fazer. estava também abaixo da dignidade de aditi alguma vez procurar o
augúrio. mas como tinha estado trancada durante dias na casa dos seus benfeitores,
sentia-se como que perdida num deserto traiçoeiro sem as estrelas da noite para a
guiarem.

antes de entrar no templo, aditi desceu os degraus até ao rio mandovi e entrou na
água até aos joelhos. ficou agradecida por o rio correr quente e com lentidão nesta
época do ano. lavou as mãos, os braços e a cara segundo o ritual, tomando cuidado
para que as suas feições não ficassem expostas a ninguém. tirou do fundo do pano
que trazia na anca uma flor de lótus e colocou-a sobre a água, deixando-a flutuar
para longe, levada pela corrente. curvou-se para o deus do rio e voltou a subir os
degraus.

aditi secou os pés e entrou no arco do templo, receando o que poderia ver. o ídolo
de mahadevi era, de fato, duas estátuas que se encontravam com as costas
encostadas uma à outra. uma das figuras de quatro braços era uma bela mulher que
sorria docemente, segurando nas quatro mãos espigas de arroz, uma panela, uma
flor e um jarro de água. a outra, porém, era um feroz demônio feminino que
segurava nas mãos uma espada, um tambor, um jarro de vinho e uma cabeça
cortada.

ambas representavam mahadevi, nos seus aspectos de doadora da vida e


negociante da morte.

os sacerdotes voltavam as estátuas conforme calculavam qual era o aspecto da


deusa que estava ascendente. aditi ficou aliviada ao ver que o lado benéfico do ídolo
estava voltado para ela quando entrou. o ídolo tinha uma vistosa grinalda de botões
vermelhos de asoka, embora tivessem já começado a murchar.

aditi ajoelhou-se aos pés do ídolo e retirou da funda que tinha na anca uma pequena
taça de arroz coberta, um pequeno frasco de óleo perfumado e alguns fios de
açafrão enrolados numa folha de palmeira. deixou tudo aos pés de mahadevi e
deitou-se, prostrada, sobre a pedra fria do chão do templo.

as suas preces foram simples. traz riqueza àqueles que me têm ajudado. perdoa-me
as minhas falhas. guia-me naquilo que devo fazer agora. ajuda-me a voltar para ti
em segurança.

aditi não era da família brâmane e portanto não se preocupava com os pontos mais
delicados da teologia. não questionava a divindade de mahadevi, ou até que ponto o
sacrifício da cabra a apaziguaria, ou se a deusa podia ver e ouvir através da sua
imagem no templo. o que importava era dharma, fazer o que era certo. todo o resto
viria por acréscimo. além disso, mahadevi era bastante real para aditi, real de uma
maneira que poucos adoradores já alguma vez teriam experimentado.

a família de aditi tinha sido gente das caravanas. a sua terra era o rajastão, mas
viajavam largamente por toda a índia. quando aditi tinha cinco anos, sabia montar
um camelo. aos seis, falava quatro línguas fluentemente: o seu sindhi nativo,
kashmir, persa e urdu. quando tinha sete, a família empreendeu uma longa viagem
para sul, com uma grande carga de mercadorias com destino a calecut. para evitar a
perseguição por parte dos portugueses, não seguiram a rota da costa e em vez
disso arriscaram-se a viajar através do árido e vastamente inexplorado planalto de
decão.

duas noites após terem saído de bijapur, foram atacados por salteadores. os
camelos foram roubados ou dispersados. a família de aditi foi assassinada,
enquanto ela se escondia numa cavidade entre as rochas. tinha ficado demasiado
chocada e aterrorizada para chorar e foi abandonada sem ser vista pelos ladrões.

na manhã seguinte, viu um dos camelos que se dirigia para ocidente, afastando-se
dela. o pai tinha-lhe ensinado que quando se está perdido no deserto, se deve
seguir um camelo - ele encontrará água. então, sem se voltar para olhar para os
corpos dos seus pais e dos seus irmãos, caminhou insensivelmente atrás do
camelo. caminhou todo o dia, chupando pedras para evitar a sede, mastigando
folhas para acalmar os ruídos do estômago. e o camelo levou-a a um largo rio
castanho, com uma pequena aldeia junto a ele.

os aldeões ficaram pasmados por encontrarem a criança vinda do deserto sozinha,


admirados com os seus olhos azuis que não eram invulgares no rajastão, mas
desconhecidos no decão.

chamaram-lhe aditi por causa da deusa do céu e levaram-na imediatamente à sua


montanha sagrada, bhagavati.

havia uma cidade numa cova no cimo da montanha, cortada na rocha viva e
escondida à vista. um palácio templo dominava a cidade e lá dentro vivia mahadevi.
aditi foi apresentada à deusa, como um dom caído do céu. e a deusa aceitou-a
quase como se ela fosse uma filha.

mas aditi nunca viu a pessoa física de mahadevi, apenas sombras por trás de
biombos, pois todos sabiam que olhar para a face da deusa era a morte. em vez
disso, aditi foi criada por duas velhas mulheres, uma pequena e doce, mas de fraca
personalidade e outra alta e severa, mas sábia. elas tinham sido sempre velhas,
disseram-lhe e aditi acreditou.

e aditi aprendeu uma outra língua, ellenica, que mahadevi e as velhas falavam. e
ensinaram-lhe a ler e a escrever e aprendeu história, geografia e matemática.
quando teve idade, mahadevi mandou-a de volta para o mundo exterior, para ser os
seus olhos e a sua mensageira.

aditi devia a sua vida a mahadevi, tal como gandharva e por isso servia-a com uma
devoção quase absoluta.

aditi ouviu o som de arranhar à sua frente e levantou os olhos do chão. o ídolo
estava a voltar-se. parou a meio caminho, de forma que era visível um lado de cada
aspecto. a grinalda de flores tinha sido retirada e substituída por uma grinalda de
crânios de rato.

o sacerdote que fazia profecias espreitou por detrás dos ídolos. cruzou o olhar com
aditi e abanou a cabeça tristemente antes de desaparecer.

ai. o humor dela está a mudar para pior. isto não vai correr bem para o meu lado.
sentou-se e curvou-se uma vez mais para o ídolo.

tende piedade de mim, grande mãe. eu fiz o que pude.

o irmão timóteo desceu as escadas em direção aos calabouços, deixando os pés


bater pesadamente nas pedras. não tinha coragem para as tarefas que o
esperavam. porque é que eu dei ao inglês a folha de betei? o domine teve razão
para me ralhar; vai levar mais tempo ao inglês para olhar para dentro de si e sentir o
desejo de se confessar. É justo que o domine me castigue. mas porque tinha de ser
isto? santa maria, não podias tê-lo feito mais indulgente? não, perdoai-me. estou a
ser posto à prova. deixai-me provar que sou digno.

puxou com força a tranca de ferro da porta ao fundo das escadas. quando ela se
abriu, os gemidos das almas perdidas assaltaram-lhe os ouvidos. senhor, eles
imploram o vosso perdão. estais a ouvi-los?

timóteo tirou duas chaves compridas de um chaveiro na parede e caminhou


pesadamente pela passagem central. murmurou uma bênção em cada cela por onde
passava, o coração dilacerado por cada pecador atormentado que o avistava e lhe
pedia para ser libertado.

À porta da sétima cela à sua esquerda, timóteo parou.

- aprende o que resulta da aliança com a feitiçaria - tinha-lhe dito domine sadrinho.
timóteo engoliu com dificuldade e pôs a chave na fechadura. deu-lhe a volta e a
porta girou e abriu-se silenciosamente.

um cheiro nauseabundo invadiu-o e ele tossiu e torceu o nariz. não era um odor dos
vivos. apertando o livro de orações fortemente contra o peito, timóteo entrou.

- dews lhe dê um bom dia, senhor cortado.

a coisa na cadeira rolou a cabeça para cima para olhar para ele. timóteo benzeu-se,
tentando lembrar-se de que aquilo que estava sentado à sua frente, fora um dia um
homem e uma criatura de deus.

os braços, as pernas e os dedos do feiticeiro estavam curvados em muitos sítios, de


uma forma que não era natural, e parecia que as cordas que o atavam à cadeira
serviam mais para ajudar o homem a manter-se direito, do que para o prender.

- ele ainda não deu, até agora - disse-lhe cartago, numa voz tão densa que lhe levou
um momento a perceber. - quem és tu?

- sou o irmão timóteo, senhor. fui designado vosso advogado. - timóteo desejou não
ter soado tão pequeno e tímido.

o feiticeiro riu. um som horrível de um latido líquido.

- o que fizeste, criança, para eles te mandarem entenderes-te com os mortos? -


cartago esticou a cabeça para a frente nesta última palavra e timóteo saltou para
trás, assustado.

a raiva começou a sobrepor-se ao medo.

- vós não estais morto, senhor. deveis estar agradecido por a santa casa vos ter
dado uma outra oportunidade de reconhecerdes os vossos pecados e de os
confessardes perante deus. nesta altura deveis saber o perigo que a vossa alma
enfrenta. deveis receber com alegria a nossa ajuda.

- ajuda? a santa casa só procura ajudar-se a si própria. apoderar-se de tudo o que


possa roubar ou destruir.

- isso é mentira! - timóteo instantaneamente lamentou o impulso e tentou acalmar-


se. um advogado deve ser gentil a todo o custo, para mostrar ao hóspede o
benefício da piedade. o que diria o domine sadrinho? - vós fostes mal informado,
senhor. - olhou para o chão e viu que a taça de arroz do feiticeiro estava ainda cheia.
as moscas e os besouros rastejavam sobre ela, comendo o que o hóspede deixara. -
não haveis comido.

- não tenho vontade de comer.

- se não comerdes, morrereis à fome.

- sim.

- mas a vossa alma voltará para o inferno, se morrerdes sem vos confessardes
primeiro.

os lábios do feiticeiro abriram-se num sorriso torcido.

- É aí que pensais que eu tenho estado? - inclinou-se para a frente, tanto quanto as
cordas lhe permitiam. - sei um segredo - disse numa voz sepulcral. - quereis ouvi-lo?

timóteo fez uma pausa.

- talvez.

- eu sei o que há para além da morte.

- É claro. sabeis que deveis recear pela vossa alma. cartago abanou a cabeça de
um lado para o outro sorridente.

- não é o que vocês pensam. tudo o que disseram é falso. os pensamentos de


timóteo rodopiaram num turbilhão.

ele mente para me confundir e assustar. mas o que é que ele viu? saber o que
acontece depois da morte - mas ele não vai ser verdadeiro comigo. o diabo tem a
sua língua e eu não devo prestar atenção. por um momento, timóteo perguntou a si
próprio se estava perante a alma de cartago ou se o corpo tinha sido possuído por
um demônio.
- eu não vou ouvir as vossas mentiras, senhor. se tendes alma, trabalhemos para a
salvar, ainda que o seu destino não vos preocupe agora. ainda há pó de sobra. o
domine trar-vos-á de volta, se morrerdes sem confissão.

- oh que habilidoso torturador - suspirou cartago. - mas não faz mal. o rasa
mahadevi esgotar-se-á e depois? por muito que tenteis, a morte é um poder que a
santa casa não consegue dobrar à sua vontade.

- gostaria que pudésseis ver-nos com outros olhos, senhor. vede-nos pela
assistência piedosa que oferecemos. o domine disse que eu devia dizer-vos que
ainda agora ele procura: a fonte do vosso pó feiticeiro.

cartago riu de novo, sombriamente.

- ah, para o vosso domine sadrinho a conhecer teria de ser o fim do mundo.

- a conhecer? ainda acreditais que o vosso pó vem de uma deusa pagã?

- a crença não é necessária, rapaz. estou certo disso. não era a primeira vez, desde
que o padre gonsção tinha vindo para a santa casa, que timóteo se sentia como
duas pessoas numa só mente. parte dele desejava ardentemente perguntar ao
feiticeiro tudo sobre a criatura a que chamava deusa. saber se ela era real, se era tal
como as lendas diziam. mas o seu dever era tentar salvar a alma de cartago, não
encorajar a sua fé mal colocada. foi assim que o velho governador foi arrastado para
o pecado? santa maria me ajude.

- mas esta criatura que vós adorais, não é uma deusa. É um monstro, não?

a expressão no rosto descaído de cartago era difícil de descrever no escuro.

- um monstro? alguns homens podem vê-la assim. mas os que a vêem, não vivem
muito tempo.

- então esta criatura não é tão misericordiosa como o nosso deus.

a cabeça do feiticeiro começou a pender.

- eu não vou discutir filosofia convosco, rapaz - disse ele suavemente. - sois
demasiado jovem e não sabeis nada da vida.

- sei o que é a verdade, senhor. e é nisso que vós deveis fixar os vossos
pensamentos.

- o nome dela é força - murmurou cartago. fechou os olhos e o corpo baixou


repentinamente sobre a cadeira.

- senhor?

o feiticeiro não emitiu qualquer som. timóteo não ousou tocar-lhe para ver se ainda
estava vivo, saiu da sala, fechando rapidamente a porta atrás de si. encostou-se à
parede do corredor, tremendo. o que dirá o domine? falhei? fui demasiado
orgulhoso, pensando que podia ganhar contra um demônio? e se o que o feiticeiro
disse fosse verdade? não, não posso pensar nisso.

recordou a si próprio que havia ainda mais uma tarefa à sua frente. uma que
poderia, em alguns aspectos, ser ainda pior do que aquela que ele tinha acabado de
viver. com um suspiro profundo, timóteo trancou a sala de cartago e de novo
caminhou pesadamente pelo corredor das almas perdidas.

capítulo xix

trevo: esta pequena planta dos prados é citada em muitas histórias. diz-se que as
folhas do trevo se erguem e tremem quando se aproxima uma tempestade -
significado do trevo muda com o número das suas folhas. uma haste de trevo com
duas folhas, significa que se verá a pessoa amada em breve. um trevo de três folhas
é sinal da santíssima trindade e protege-nos do mal - embora os antigos pensassem
que era um sinal das três deusas do destino. um trevo com quatro folhas, o sinal da
cruz, é raro e traz grandes poderes para ver através da ilusão, para curar os doentes
e para escapar a circunstâncias difíceis. um trevo de cinco folhas traz azar e doença,
mas se for oferecido, a boa sorte regressa...

À porta da primeira sala de interrogatórios, timóteo preparou-se para o seu próximo


dever. murmurou uma prece e pôs a chave de ferro na fechadura. a porta também
se abriu silenciosamente. as dobradiças nos calabouços da santa casa eram
mantidas bem oleadas, para que não se tornassem distração para os que
contemplavam as suas almas. timóteo fechou a porta atrás de si e olhou para cima.

- bom dia, senhor.

o inglês não estava bem. tinha sofrido o strappado durante muitas horas; o rosto
estava branco, os membros rígidos e trêmulos. tinha os olhos fechados.

- senhor?

- ahh! - o inglês acordou estremecendo e gritou com uma nova dor.

- desculpai-me, senhor - disse timóteo. - eu vim para vos dar conforto. - tirou então
da parede um bastão comprido e afiado. da sacola de cabedal retirou uma esponja
embebida em vinho e espetou-a na ponta do bastão. e ergueu-o até à boca do
inglês.

- bebei senhor, por favor.

a semelhança deste ato com um outro não se perdeu em timóteo. assim foi nosso
senhor ajudado quando estava pregado na cruz. assim foram redimidos os pecados
da humanidade. será que este homem vai compreender e submeter-se ao perdão de
deus?

com alguma dificuldade, o inglês conseguiu engolir. um minuto depois timóteo tirou a
esponja.

- mais, por favor, irmãozinho - arfou o inglês.

- não tenho permissão para ficar mais tempo, senhor. com tristeza timóteo pôs o
bastão de novo na parede e a esponja na sacola.

- esperai. ficai. por acaso interpretais sonhos, irmãozinho? - veio-lhe à memória uma
outra história da bíblia. talvez isto seja um sinal de esperança.

- não sei. o que sonhastes, senhor?

o inglês murmurou rapidamente, tentando usar pouca respiração.

- É frequentemente o mesmo sonho, apenas diverge nas suas formas. acabo de o


ter de novo. há três mulheres, às vezes a cavalo, outras vezes não. perseguem-me
e eu sou uma presa. chamam-me assassino e outras coisas horríveis. acordo
sempre, quando estão prestes a apanhar-me. desta vez, contudo, eu já estava
apanhado e amarrado. estava pendurado sobre um caldeirão, enquanto elas
dançavam, zombando de mim. eu lutava, mas não conseguia escapar. então vós
acordastes-me.

timóteo pensou um momento.

- talvez essas mulheres sejam demônios, senhor. perseguem a vossa alma,


esperando que vos desvieis daquilo que é justo. agora que caístes, apanharam-vos
e a vossa alma descerá para o fogo.

- mas eu tenho estes sonhos desde criança. os demónios perseguem-me há tanto


tempo?

- estamos sempre em perigo de sucumbir às forças do inferno, senhor. mas há


esperança neste sonho.

- esperança?

- vós não estais no fogo ainda. podeis salvar-vos. tenho de ir agora. desejais que eu
diga alguma coisa ao domine?

o inglês engoliu em seco.

- sim - murmurou. timóteo aproximou-se.

- estou a ouvir, senhor.

- eu... assinarei a confissão.

o coração de timóteo saltou de alegria.

- fá-lo-eis? e procurareis o perdão de deus?


- sim - arfou sonoramente.

- então hoje fomos ambos abençoados, senhor!

- dizei ao domine... por favor, dizei que eu estou pronto para dizer o que ele mais
deseja ouvir.

- com todo o prazer, senhor! deus vos abençoe e vos conserve. vou dizer ao domine
imediatamente! - timóteo abriu a porta de rompante e saiu apressadamente, não se
preocupando em fechá-la atrás de si. saltando pelas escadas acima, correu como se
os pés tivessem as asas dos anjos.

os guardas vieram rapidamente para cortar as cordas que sustentavam thomas. a


doce golfada de ar nos seus pulmões tornou a dor do movimento quase suportável.
estava fraco e não conseguia manter-se de pé sozinho. os braços caíram-lhe ao
lado do corpo, inúteis, os ombros deslocados. foi novamente vendado e um guarda
conduziu-o a uma sala, onde dois monges o lavaram e lhe esfregaram as costas e o
peito com óleos quentes e perfumados. thomas quase chorou, tão requintada era
esta sensação depois do seu tormento.

foi reconduzido à sua cela, onde o aguardava uma refeição: a mesa estava pronta
com frango assado, arroz, laranjas e vinho. o irmão timóteo estava lá também,
sorrindo como se fosse natal. o rapaz alegremente ajudou thomas a comer,
segurando nacos de galinha para ele morder, partindo as laranjas, levando-lhe o
copo de vinho aos lábios e limpando algumas gotas que se entornassem ou as
migalhas.

- bendito seja este dia! - disse timóteo. - sabia que seríeis um dos salvos, senhor.
glória a deus nas alturas!

os pensamentos de thomas, contudo, não eram tão alegres. que deus me perdoe.
não tenho a força para sofrer pela minha fé. se ainda não pequei, fá-lo-ei
certamente, quando chegar ao final da noite. várias mentiras terão de ser ditas esta
noite, se eu quiser ter a hipótese de escapar. portanto tende piedade, senhor, e
digamos que não é pela minha vida miserável, mas pelo trabalho por fazer, que eu
devo aos outros.

thomas abanou a cabeça ao novo copo de vinho oferecido.

- já bebi o suficiente, irmãozinho, obrigado. - tenho de manter os meus pensamentos


livres da névoa da bebida.

o irmão timóteo limpou uma área sobre a mesa e colocou lá uma pena de escrever
enfeitada com plumas, num tinteiro em forma de elefante prateado. depois, como um
mercador apresentando para venda o seu tapete mais valioso, o rapaz desenrolou e
apresentou a confissão.

- assinai, senhor, e ficai livre.


thomas olhou para o pergaminho, não lendo deliberadamente as palavras que lá
estavam. tentou erguer a mão direita, mas o braço estava demasiado fraco e voltou-
lhe a cair ao lado do corpo. sentiu um toque de orgulho pelo seu membro rebelde.

- perdoai-me. o meu braço...

- eu ajudo-vos, senhor - o rapaz limpou a ponta da pena na borda do tinteiro e


colocou gentilmente a caneta na mão direita de thomas. ficando de pé junto dele, o
irmão timóteo ergueu o braço de thomas sobre o documento e posicionou-lhe a mão
no final deste.

com um profundo suspiro, thomas rabiscou as iniciais t. c.

- muito bem, senhor! - o rapaz agarrou o documento e gentilmente soprou sobre a


tinta para a fazer secar. thomas deixou o braço cair de novo no regaço, salpicando
as calças com gotas de tinta.

o irmão timóteo pareceu não reparar; retirou a caneta da mão de thomas e colocou a
pena novamente no tinteiro.

de súbito, o inquisidor sadrinho apareceu na porta aberta da cela silencioso e


austero nas suas vestes negras.

- domine! - disse o irmão timóteo. - ele assinou!

o inquisidor abriu os braços para o céu e pronunciou o deo gratias. para timóteo
disse:

- fizeste muito bem, meu filho, redimiste-te a ti próprio. sabes aonde levar isso.

- sim, senhor. - o rapaz enrolou gentilmente o pergaminho e saiu apressadamente


porta fora.

o inquisidor acenou para o guarda da cela que se curvou e também partiu, fechando
a porta atrás de si.

thomas ficou sozinho com domine sadrinho. ocorreu-lhe que agora, teria sido uma
outra excelente oportunidade de fazer violência contra a pessoa do inquisidor. mas,
é claro, fraco e desarmado como estava, thomas sabia que só faria pouco dano ao
inquisidor e talvez grande dano a si próprio. tentou sorrir, mas percebeu que não
conseguia forçar-se a fazê-lo.

- ouvi dizer que há algo que desejais dizer-me - disse o inquisidor.

thomas respirou profundamente.

- desejais conhecer a fonte do pó, que traz os mortos de regresso à vida.

o inquisidor olhou para trás sobre o ombro, depois avançou em direção a thomas, de
olhos semicerrados.
- de que substância falais?

senhor, não permitais que ele fique louco, não agora.

- o pó que se chama rasa mahadevi ou o sangue da deusa... o pó que o monge


chamado irmão andrew usou para trazer cartago de volta à vida.

- humm - disse sadrinho, fingindo desinteresse, mas os olhos atraiçoavam-no.

- que deusa é essa de que falais?

thomas pensou afincadamente. nunca lhe tinham dito outro nome para além de
mahadevi, exceto...

- o nome dela é força.

um olhar agudo da parte do inquisidor revelou a thomas que tinha dito algo
importante. só desejava que tivesse sido a coisa certa.

- mas de certeza - disse sadrinho - que já não albergais mais crenças pagãs?
assinastes a vossa confissão, afinal de contas.

- não, domine. É por isso que desejo falar convosco.

- e porque é que a santa casa estaria interessada nesta matéria?

- posso apresentar-vos muitas razões. se os inimigos da madre igreja tiverem o seu


controlo, pensai quanto mal eles poderão fazer.

- mmmm. e vós dizeis que podeis dizer-nos onde os inimigos da madre igreja
poderão encontrar este pó?

vamos a isto agora.

- posso fazer melhor. mostrar-vo-lo-ei. o inquisidor franziu o sobrolho.

- o que quereis dizer? no mapa que encontramos na vossa roupa?

- não. eu guiar-vos-ei ou a alguém da santa casa, até ao lugar onde pode ser
encontrado.

sadrinho riu-se.

- espero que não tencioneis fazer-me passar por idiota, senhor.

meu deus, tornai-me convincente.

- há razões que eu simplesmente não vos posso dizer, domine. o local está bem
escondido e protegido. posso dizer-vos somente isto: a fonte fica a leste e a sul de
bijapur.

o olhar do inquisidor intensificou-se.

- já sabemos isso. que mais podeis oferecer?

ah. ele decidiu comprar a minha mercadoria. thomas abanou a cabeça.

- eu não estive nesse lugar, domine. só tenho o conhecimento que cartago me deu.
ele disse que haveria sinais e enigmas para serem resolvidos ao longo do caminho.
não disse quais serão ou onde estarão. mas isso eu tenho a sabedoria para
reconhecer e resolvê-los, quando forem encontrados.

sadrinho deteve-se e não falou durante alguns momentos.

- ocorre-me que podeis ser simplesmente muito esperto e esperar por uma hipótese
de escapar. contudo, se o que dizeis é verdade, então a vossa orientação seria uma
dádiva de deus, na verdade. tenho de consultar outras pessoas sobre isto. por
agora, descansai, senhor chinnery. vós passastes por uma provação terrível, embora
não possais negar o seu efeito salutar para a vossa alma. por agora temos a vossa
confissão e muita coisa se torna possível. deus vos conceda uma boa noite, senhor.
- sadrinho bateu na porta e saiu quando ela se abriu.

aquela última foi uma promessa ou uma ameaça? mas a ambição brilhava
claramente em cada poro marcado da sua face. mas deus, deixai que ela o domine,
para que eu possa sair desta casa de loucura.

capítulo xx

coral: esta substância tem a forma de uma planta e a dureza de uma pedra. diz-se
que cresce no mar e pode ser encontrada em muitas cores. para usos medicinais, o
coral deve ser moído apenas numa bacia de mármore; de outra forma pode causar
dano. em pó ou em tintura, curará muitos achaques do corpo. usado num amuleto,
guarda-nos de todos os tipos de loucura e de fascinações. ligado a um pau de fileira
guardar-nos-á de todas as tempestades da natureza. o coral do mais puro vermelho
manterá afastados os demónios e as fúrias, mas o coral castanho atraí-los-á. o coral
amarelo é, no oriente, uma gema de vida eterna...

o padre gonsção estava do lado de fora das portas maciças de carvalho do escritório
de domine sadrinho. os painéis superiores das portas tinham sido esculpidos em
relevo profundo: santta catarina pregada ao poste na porta da esquerda, são
domingos e a sua espada, na da direita. os painéis inferiores ambos representavam
almas ardendo nas chamas do inferno, com os braços erguidos, implorando.
gonsção tocou na cabeça de santa catarina e pediu-lhe a bênção. depois bateu à
porta e um pajem nativo convidou-o a entrar com uma vênia.

domine sadrinho estava sentado atrás de uma enorme secretária de ébano, com os
dedos em forma de campânula, descansando contra os lábios. estava afastado da
porta, voltado para a janela, cujas persianas estavam abertas. um perfume de
jasmim flutuava dentro da sala, vindo de um dos jardins do pátio. a luz do
crepúsculo, de um cobre-dourado, emprestava um brilho quase beatífico à face do
inquisidor.

gonsção atravessou uma extensão de um espesso tapete persa e sentou-se numa


cadeira de pau-rosa, acolchoada em veludo vermelho. preferindo não ser o primeiro
a falar, esperou ser notado.

após um momento, sadrinho inclinou a cabeça e olhou para o padre.

- fizestes voto de silêncio, antónio? isso seria incomodo.

- não, domine. não falei, porque não desejava perturbar os vossos pensamentos.

- É muita bondade vossa, antónio. marquei este encontro mesmo com a intenção de
partilhar os meus pensamentos convosco. devo mandar vir refrescos? vejo que já
vos pusestes à vontade.

- obrigado, não, domine. - na rígida cadeira de espaldar, enfrentando o reservado


sadrinho, gonsção não achava possível sentir-se confortável.

sadrinho acenou para o pajem nativo, que se curvou e partiu.

- bem, estou ansioso por ouvir o que tendes para me dizer - disse gonsção. - o
nosso visitante, irmão andrew, foi mais prestativo com uma história razoável?

- ele mostrou-se útil, à sua maneira. sabeis que mais, lamento não ter confiado em
vós, desde o momento em que chegastes. com o vosso perdão, posso atribuí-lo à
necessidade de a santa casa ser cautelosa com estranhos, devido ao nosso
trabalho.

- É claro - disse gonsção, lutando contra a impaciência.

- se eu tivesse exercido mais urgência em achar os registros do julgamento do


governador coutinho, vós teríeis percebido mais cedo a importância do que os
jesuítas nos trouxeram ontem.

- na verdade, isso teria sido útil. - gonsção não achou que o inquisidor notasse a
ironia.

- mas não importa. tudo resultou bem, afinal de contas. vede, foi o próprio pó que o
irmão andrew usou, que foi a chave para a cabala que nós temos estado a
investigar. creio que foi através do uso deste pó, que cartago e os seus
colaboradores, dalambur, senhora resgate e a misteriosa aditi corromperam o antigo
governador e o vice-rei. disseram-lhes que o pó era o sangue da deusa pagã,
sangue que traz os mortos para a vida. e como vistes, a substância de fato tem esse
poder. não admira que eles se tivessem convencido, não é?

- eu posso ver como isso pode ser persuasivo - disse gonsção, não tendo ouvido
nada que não tivesse já deduzido. presumo que conseguistes questionar cartago e
que confirmastes isso com ele.
sadrinho suspirou.

- meu deus, o feiticeiro estava tão abatido que não sentiu nenhum dos nossos ternos
serviços e por isso não nos disse nada. ele não comeu, nem bebeu e morreu de
novo. com o pouco de pó do irmão andrew que sobrou, eu trouxe-o de novo à vida.

- vós... usastes o pó, vós próprio?

gonsção começou a compreender o alarme de domine pinto.

- nós não temos idéia de onde vem. não vos preocupais com o estado da vossa
própria alma?

- disparate, antónio. deus não teria colocado esta substância nas minhas mãos, se
eu não tivesse sido escolhido para a usar. e foi para a sua obra, afinal de contas. ah,
ver a respiração voltar àquele cadáver frio, antónio! uma experiência que eu nunca
esquecerei. mas não serviu de nada. cartago rapidamente sucumbiu mais uma vez.
como não temos mais pó, cartago está perdido para nós.

- uma pena, é claro. mas a sua alma está perdida para deus, não para nós.

sadrinho abriu as mãos para fora, como para sugerir que era a mesma coisa ao fim
e ao cabo.

- estou preocupado, domine, com o fato de que vós possais estar deslizando para o
mesmo fosso que enganou coutinho e os outros.

sadrinho sorriu.

- antónio, não podeis estar a falar a sério. receais que eu possa acreditar que era o
sangue seco de uma deusa pagã? dai-me mais crédito, por favor. na minha opinião,
coutinho e albuquerque foram enganados.

- e que pensais vós ser a verdade do assunto?

- claramente há um poder estranho que está a importar esta substância, a fim de


corromper o governo de goa. há muitos que estão descontentes com a presença de
portugal neste continente. o sultanato de bijapur ainda está encolerizado com a
perda de goa.

gonsção acenou afirmativamente.

- isso é razoável. e perturbador. sabeis que poder estranho poderá estar a fazer
isto?

- ainda não.

- e onde poderá este poder estranho ter encontrado uma substância tão poderosa?
sadrinho inclinou-se para a frente, sobre a mesa.

- a índia é um continente vasto, antónio. não tendes idéia das maravilhas que se
podem encontrar aqui. mas eu vivo aqui há muitos anos; ouvi muitas histórias e vi
muitas coisas espantosas. há animais no interior, que não podem ser encontrados
em mais nenhum lugar. as especiarias e os minerais abundam com propriedades
desconhecidas. não poderá ser que o sangue seja de um animal raro? as cobras
têm sido mencionadas frequentemente pelos conspiradores, devo salientar. os
hindus falam de uma criatura rara, parte homem, parte serpente, que vive na selva.

- mas isso pode ser mero folclore, domine. o nosso próprio povo tem histórias de el
cuélebre, uma serpente com asas que guarda as montanhas e possui
encantamentos poderosos.

os olhos de sadrinho faiscaram.

- sim, interessante, não é? então, uma vez mais, o poder podia não ser o sangue de
forma nenhuma, mas a seiva seca de uma árvore rara, ou uma forma de minério de
ferro cuja aparência e odor imitam o sangue.

- sim, suponho que tal seja possível - disse gonsção -, mas o poder da ressurreição
deve pertencer a deus somente. portanto nós devemos considerar ainda esta
substância, qualquer que seja a sua fonte, como o mal. o seu uso deve ser proibido
pela santa casa.

sadrinho fez estalar a língua.

- vós espantais-me, antónio, com uma forma de pensar tão provinciana. uma espada
é um objeto do mal? talvez quando um ladrão ou um assassino a maneja, mas não
em si mesma. seguramente o vosso são domingos não traria consigo um objeto de
mal inerente. as espadas manejadas por aqueles que expulsaram os mouros
heréticos das nossas terras, eram objetos do mal? pensais que a batalha que nós,
da santa casa, empreendemos contra a heresia devia ser uma mourisca, para ser
dançada com cavalos de papel e espadas de madeira? aqui, antónio, entregue nas
nossas mãos, está a arma autêntica para o nosso santo arsenal.

gonsção apertou fortemente os braços da cadeira.

- que necessidade tem a santa casa de uma tal... arma? sadrinho bateu levemente
na mesa com a palma da mão.

- não posso acreditar que sejais tão cego, antónio. pelo próprio uso que nós já
fizemos deste pó! com a sua ajuda, nós podemos, com certeza, obedecer a uma das
nossas principais constrições, acima de tudo, a santa casa não mata.

- santo deus... vós podeis estar a pensar que devemos usar este pó como parte da
inquisição?

- e porque não? - sadrinho levantou-se e começou a andar em frente à janela. -


tantos morrem antes do nosso trabalho estar feito. mesmo quando o espírito está
pronto e à beira da confissão, a carne mostra-se fraca. o silêncio da morte
demasiadas vezes os condena ao castigo eterno.

- e vós acreditais que esta substância nos dará todo o tempo que precisamos, para
salvar almas? não estaremos nós em vez disso a perder as nossas próprias em
troca daquelas que salvamos? poderá a santa casa vir a tornar-se um outro círculo
do inferno para aqueles que regressam para nós? ou por causa do duro auto-exame
que nós exigimos dos nossos hóspedes, poderá a perdição parecer mais suportável
e por isso preferível para eles? depois de uma alma perdida ter encontrado os
demónios do submundo, será ela ainda capaz de redenção através de uma segunda
ou terceira vida?

- há os que acreditam, padre, que os perdidos se podem redimir mesmo fora do


inferno. pensai nisso! - disse sadrinho, com os olhos a brilhar. - tanto para aprender.
nós podemos até descobrir a própria arquitetura da vida após a morte.

então, tu vês-te a ti próprio beijando o anel do papa clemente, não vês sadrinho? e a
ser elogiado por toda a cristandade pelas tuas notáveis ”descobertas”. a imortalidade
para o teu nome. e, talvez, a imortalidade para a tua própria carne? devias antes
considerar a morte na fogueira e o cheiro do enxofre.

- se deus tivesse a intenção de dar ao homem esta sabedoria, não a teria o seu filho
revelado na sua ressurreição?

- a bíblia mostra-nos que há um tempo e um lugar para todas as coisas, antónio.


talvez seja agora o tempo e seja este o lugar para a revelação ser feita à
humanidade.

gonsção encostou-se para trás na cadeira, perguntando-se o que poderia fazer para
deflacionar o orgulho louco de sadrinho.

- bem, pode haver algo naquilo que vós dizeis. mas a questão é discutível. o senhor
cartago está morto de novo e vós não tendes outros informantes que possam dizer-
vos onde é que a substância pode ser encontrada.

um sorriso vitorioso trepou pelos lábios de sadrinho.

- ah, mas nós temos sim, antónio. porque pensais que o irmão andrew se atreveu a
enfrentar o vosso desagrado, trazendo o pó para dentro da santa casa?

- tenho-me interrogado sobre isso.

- por causa do jovem inglês. o irmão andrew sabia que o senhor chinnery tinha
informações que não se podiam perder. foi por isso que se arriscou a tirar o inglês
do nosso domínio.

- ah, sim. - gonsção lembrou-se das palavras do inglês para cartago: ”eu não lhes
disse nada...”

- graças ao encorajamento do irmão andrew, o jovem inglês fez uma confissão


completa.

gonsção sentiu o seu espírito afundar-se ainda mais.

- ele tinha alguma coisa de interesse para confessar?

- oh, sim. não era tão inocente quanto parecia. aparentemente cartago tinha
começado a iniciá-lo nos segredos da cabala.

- ah, sim? e o senhor chinnery acedeu a dizer-nos a parte do pó?

- ele diz que fará melhor. guiar-nos-á até ele. gonsção soprou o ar para fora dos
lábios.

- e vós acreditais nele?

o sorriso de sadrinho não vacilou.

- tenho razão para isso. o jovem não admitiu que é negociante de drogas e
venenos? sem dúvida ele procura o pó para o seu próprio uso. o rolo de pergaminho
que encontramos nas suas roupas parece ser um mapa grosseiro, com símbolos
alquimistas e a palavra em sânscrito ”krsna”. disseram-me que há um rio com esse
nome, no interior. zalambur, o sócio de cartago, era conhecido por fazer viagens até
à corte mogol do imperador akbar, tal como a senhora aditi. oh, sim. eu acredito que
o jovem inglês sabe.

- ainda que ele saiba, o que o impedirá de fugir ou de levar os outros a cair numa
armadilha? estes cultistas parecem dispostos a morrer pela sua fé errônea.

- o senhor chinnery sofreu o strappado, por isso a fuga está para além das suas
forças durante algum tempo. quanto a uma armadilha - sadrinho encolheu os
ombros -, será uma tarefa dos que o acompanharem, desencorajar tal traição.

- certamente vós não estais a planear seguir este homem vós mesmo? isso seria
impróprio para alguém da vossa posição. não deveis abandonar os vossos deveres,
para ir em perseguição de mistérios pagãos.

sadrinho inclinou-se para a frente novamente.

- É claro. eu sabia que tínheis a sabedoria para compreender a situação claramente.


eu não posso abandonar o meu trabalho. É por isso que tendes de ser vós a ir,
antónio.

- eu? - gonsção sentiu a porta de uma armadilha a fechar-se atrás de si. - isso é
impossível.

- mas porquê? vós fostes enviado pelo cardeal albrecht desde a longínqua lisboa,
para descobrir a verdade por trás da queda de coutinho e de albuquerque. não
podeis simplesmente ignorar esta última e a mais importante parte do puzzle.
- posso, se considerar isso impraticável e perigoso. as minhas instruções não me
dão permissão para deambular longe de goa...

- mas também não o proíbem, antónio. eu voltei a ler a missiva de sua eminência e
ele pede-me meramente para vos dar toda a assistência para chegardes à raiz do
problema. bem.

agora nós sabemos a forma dessa raiz e temos simplesmente de ir cavá-la para a
expor. os vossos superiores em lisboa não podiam ter previsto todas as
possibilidades. e eu não penso que sua eminência possa apreciar a vossa
interpretação limitada dos seus desejos.

tu, meu cão matreiro, pensou gonsção. pensas que encontraste um meio de te livrar
da minha presença intromissiva. se eu morrer na tentativa, fico fora do teu caminho
para sempre. se eu for bem-sucedido e voltar, trar-te-ei as sementes da tua futura
grandeza. o cardeal albrecht compreenderia se eu recusasse? ou ao tomar
conhecimento dos poderes desta substância, ficaria tão enfatuado com as suas
possibilidades como tu?

- contudo - prosseguiu sadrinho - se sentirdes que não sois suficientemente forte


para a tarefa, eu já fiz planos para mandar outrem.

- outrem?

- sim, estava à espera que fósseis uma influência madura e orientadora para ele.
vou mandar o irmão timóteo.

gonsção olhou fixamente para o inquisidor.

- não podeis estar a falar a sério. ele é apenas um rapaz.

- os rapazes tornam-se homens em determinadas alturas das suas vidas, antónio. e


timóteo está a atingir a idade em que deve ter alguma experiência do mundo e ver
as pessoas que um dia ele servirá. receio que o tenhamos mantido demasiado
enclausurado aqui na santa casa. está envolvido com livros e memórias infantis.
além disso, quem sabe mais acerca desta cabala que estamos a investigar do que
eu e vós? timóteo leu os registros, afinal de contas.

ah. isto é, afinal, o castigo por esta transgressão?

- o que é que vai impedir o inglês de levar o rapaz para um caminho errado, ou de
lhe fazer mal?

- não sou louco, antónio. pedi ao governador para nos arranjar um destacamento de
soldados, para a escolta. timóteo estará protegido.

e até que ponto pode um inocente rapazola lidar bem com soldados endurecidos e
turbulentos? quem o protegerá deles?

- entendo.
- também mandei anunciar pelos mercados da cidade que a nossa expedição deseja
juntar-se com uma caravana de mercadores, para nos guiar até bijapur. nós
oferecemos proteção, em troca de uma introdução na corte do sultão ibrahim
adilghah.

- então, timóteo vai viajar no meio de mercadores pagãos e apresentar


cumprimentos numa corte muçulmana mogol?

- antónio, vós tendes tão pouca fé no rapaz? não tenho dúvida de que ele os fará
cristãos a todos, em pouco tempo.

- e se eles desaprovarem o seu proselitismo? e se tentarem timóteo para o pecado


ou apostasia? ele não terá ninguém a quem recorrer para pedir conselhos?

- acontece que pedi ao bom irmão andrew para ir e ele está bastante interessado em
fazê-lo. parece tão ansioso por encontrar o pó como nós estamos, embora as suas
razões sejam obscuras. contudo, fala persa fluentemente assim como português; por
isso achei que a sua assistência seria bastante valiosa.

gonsção mal conseguiu reprimir o riso cheio de perplexidade e disse:

- estais louco. domine, vistes que este pretenso irmão é conhecido do inglês. tanto
quanto sabemos conspiravam juntos, a fim de criar uma avenida para a fuga de goa.
como podeis confiar nestes homens? devo protestar, domine. vós podeis estar a
colocar timóteo em grave perigo.

sadrinho abriu as mãos como as asas de uma borboleta.

- É por isso que eu tinha esperança de que vós o quisésseis acompanhar.

gonsção semicerrou os olhos:

- certamente que há outros que vós podeis enviar. o inquisidor ergueu os olhos para
o céu.

- antónio, vós permitistes que os vossos sentimentos nublassem o vosso julgamento.


a quantas pessoas podemos nós confiar este conhecimento? não é verdade que na
santa casa, quantos menos souberem melhor? desejais espalhar este segredo por
toda a cidade? e se a pessoa errada soubesse disto? o adilshah ou o imperador
mogol akbar? ou os holandeses? ou os jesuítas, deus nos acuda. pensai no que
poderá acontecer, se fizerem erguer de novo o corpo incorruptível de francisco
xavier.

gonsção reprimiu um estremecimento.

- se a vossa conjectura estiver correta, um desses pode já saber disso. e o domine


pinto? não podeis enviá-lo?

sadrinho suspirou.
- ele deseja não ter nada a ver com este caso. recusa-se a ver a sua importância.
além disso, tem as mãos cheias de heresia em diu e pernem. seria tão
inconveniente para ele deixar o seu trabalho, como para mim deixar goa. não,
tendes de ser vós, ou então timóteo chefia a expedição, como único representante
da santa casa.

timóteo é um rapaz bom e obediente. se a sua investigação for bem-sucedida, ele


não terá a força de vontade para fazer aquilo que eu vejo agora que deve ser feito.

- começo a compreender-vos, domine. isto é uma preocupação maior do que um


posto avançado da santa casa, um grupo de apóstatas e pagãos. se os muçulmanos
viessem a saber deste pó, poderiam produzir exércitos infernais de mortos
ressuscitados, contra a nossa colônia ou contra todo o mundo cristão. e quem sabe
que males fariam os feiticeiros pagãos. É um problema demasiado grave para um
simples rapaz resolver.

sadrinho inclinou-se para a frente e acenou afirmativamente.

- sabia que viríeis a compreender, antónio.

- sim, vós convencestes-me. irei. não para vos trazer mais pó, contudo, mas para
destruir a sua fonte.

sadrinho apertou as mãos e ergueu-as para o céu.

- glória a deus. eu sabia que ele vos inspiraria para ver a luz.

- sim - murmurou gonsção. - acredito que ele o fez. o inquisidor levantou-se e foi até
às portas do escritório, abrindo a da direita. o irmão timóteo entrou.

que bem arranjada que está esta dança. sadrinho sabia que eu iria concordar por
fim.

- deus seja convosco, domine - disse timóteo. - e convosco, padre. pus a confissão
do senhor chinnery no seu devido lugar e disse ao irmão marco para escrever a
carta ao governador como vós pedistes.

- muito bem, timóteo. agora, antónio, devo ir diligenciar para que sejam adquiridas
provisões para vós. este projeto deve entrar em ação tão depressa quanto possível.
por favor ficai, timóteo. ficai à vontade para conversar na minha ausência. há muitas
coisas que vós e o padre deveis discutir. sadrinho saiu, fechando a porta atrás de si.
timóteo piscou os olhos sentindo-se desconfortável.

- quereis falar comigo, padre?

gonsção sentiu ele próprio algum desconforto.

- ouvi dizer que o inglês confessou.


o sorriso do rapaz era brilhante como o sol.

- não é maravilhoso, padre? que extraordinário é o trabalho do senhor.

- É verdade. ele trabalha de modos desconhecidos. o domine sadrinho disse-vos


quais as intenções que tem a vosso respeito?

timóteo inclinou a cabeça.

- outra tarefa, padre? vou ser advogado de um novo hóspede?

gonsção suspirou. o domine até deixa para mim o anúncio das novidades.

- não, timóteo. nós vamos fazer uma grande viagem, vós

e eu.

os olhos do rapaz esbugalharam-se.

- uma viagem, padre? através do mar? para lisboa ou roma?

rindo tristemente, gonsção disse.

- ai, não, meu filho. nem por mar nem para nenhum lugar tão importante. nós vamos
para a selva da índia. a viagem será perigosa e o que vamos procurar pode ser
ainda um perigo maior.

- perigo, padre?

- o inglês que vós ajudastes disse que nos levaria à fonte do pó, que traz os mortos
à vida. domine sadrinho acredita que ele pode ser de valor inestimável para a santa
casa. eu não tenho tanta certeza. e o inglês pode tentar levar-nos por um caminho
errado.

- não, não, padre! o senhor chinnery é um bom homem. eu sei isso. se ele diz que
nos levará lá, eu acredito nele.

- espero que a vossa fé esteja bem localizada, timóteo. mas de qualquer forma,
enfrentaremos muitos perigos. para lá de goa, há poucos que honrem a santa casa,
ou mesmo que conheçam o nosso deus.

- eu compreendo, padre.

- quereis ir em tal viagem, meu filho? o domine sadrinho está decidido a enviar-vos,
mas eu proteger-vos-ei, se escolherdes não ir.

o rapaz olhou para as sandálias por um longo momento. olhou de novo para cima e
disse:

- se é ao serviço de deus e da santa casa, então eu devo ir. seremos como os


cavaleiros das cruzadas, ou aqueles que procuravam o santo graal, não é?

gonsção sorriu e colocou a mão sobre o ombro de timóteo.

- como os cavaleiros em cruzada, meu filho. admiro a vossa coragem e bom


coração. talvez sobrevivamos juntos a esta viagem.

capítulo xxi

acÓnito: esta planta tem apenas uma haste que cresce de uma raiz tuberosa. as
folhas são escuras por cima e claras por baixo e tem no cume um cacho de flores
purpúreas, que têm a forma de um capuz de monge. também lhe chamam a flor-do-
capacete ou napelo. deve-se tomar muito cuidado com o uso desta erva, pois dela
se faz a decocção de um veneno mortal que aflige as pessoas com paralisia,
enquanto mata. o único antídoto é feito de lesmas que se tenham alimentado de
triaga. diz a lenda que o acónito cresceu, pela primeira vez, da baba que gotejava do
bucho de cérbero, o cão das três cabeças que guardava os portões de hades, foi
usado pela deusa-bruxa hécatc para envenenar o pai. dizem que as bruxas
mastigam as folhas de acônito para se entorpecerem e terem visões de viagens a
terras distantes...

thomas estava sentado num banco de pedra frio, num pátio da santa casa.
encostou-se, contra a parede atrás de si, de olhos fechados. a brisa matinal
deslizava sobre ele, pássaros exóticos pairavam e cantavam nos ramos das árvores,
por cima da sua cabeça. thomas tentou não pensar na dor.

os braços pendiam-lhe inúteis, as mãos repousavam no regaço. se as cordas


pudessem sentir como os seus membros, seria assim que sentiriam? cingidas,
torcidas e queimadas nas extremidades? as mãos tinham sido envolvidas em
ligaduras ensopadas num bálsamo com um cheiro estranho.

eu devia perguntar ao irmão timóteo o que foi usado, pois parece ter virtude. as
queimaduras da corda atormentam-me, mas não tanto como poderiam.

os sons da preparação para a viagem continuavam à sua volta: as mulas a serem


seladas, as carroças a serem carregadas, os homens a gritar ordens. thomas uma
vez mais deu graças a deus pela proximidade da sua fuga da santa casa. e depois
perguntou-se com tristeza, se deus estaria a ouvir. se a sua confissão forçada e o
batismo tivessem sido a iniciação na fé verdadeira, então deus poderia estar agora a
ouvi-lo pela primeira vez. porém, se thomas tivesse renunciado àquilo que era a fé
verdadeira, então os ouvidos do céu podiam agora estar fechados para ele, para
sempre.

uma sombra caiu sobre ele e thomas abriu os olhos. um monge, com o rosto
obscurecido pelo capuz castanho de jesuíta, estava ao lado dele, de pé.

- bom dia, irmão - disse thomas, não se preocupando por ter misturado a língua
inglesa e a portuguesa na saudação.

o monge acenou com a cabeça.


- bem, encontramo-nos de novo e em melhores circunstâncias, rapaz. parece que a
minha fé foi bem colocada em ti.

thomas franziu a testa.

- não se pode dizer propriamente que eu esteja bem, andrew.

- mas estás vivo e algum dia estarás livre, o que é mais do que puderam dizer
muitos dos que entraram nestas paredes.

- antes que algo mais escape dos vossos lábios, andrew, lembrai-vos que tenho uma
questão que quer resposta.

lockheart fez uma pausa.

- e tê-la-ás, quando chegar o momento certo. mas não aqui. aquele frade
dominicano que ali vem, está desconfiado do teu intento. temos de esperar um
pouco.

ao som dos passos que se aproximavam, thomas voltou a cabeça. era o


dominicano, padre gonsção, com a capa preta rodopiando-lhe em torno da batina
branca.

- boa manhã, irmão, senhor chinnery. - o frade negro cumprimentou-os a ambos com
a cabeça e abençoou thomas em latim, fazendo-lhe o sinal da cruz. o padre gonsção
parecia ter mais de 30 anos, com o rosto marcado pela experiência, não pelo tempo.
os olhos cor de avelã indicavam alguma inteligência e integridade, mas thomas
perguntou-se a si próprio que crueldades eles teriam contemplado no trabalho do
padre. pela maneira como gonsção olhou carrancudamente para os preparativos,
thomas concluiu que o bom padre não estava de modo nenhum satisfeito por fazer
parte da expedição.

- como vos sentis hoje, meu filho? - disse o padre gonsção em latim, com sotaque
português. estendeu a mão, como que para apertar o ombro de thomas, depois
deteve-se.

- estou melhor, padre - disse thomas.

- vou rezar ao bom deus para sarar os vossos braços, como sarou a vossa alma.

- os meus agradecimentos. o vosso irmão timóteo tem habilidade nas artes de curar.
ouvi dizer que ele viria convosco, contudo não o tenho visto. - de fato, o rapaz não
tinha falado de outra coisa, enquanto punha ligaduras nas mãos de thomas na noite
anterior, tagarelando sobre os cavaleiros das cruzadas, o rei artur e o graal, jasão e
o velo de ouro, odisséia, herodes e perseu. como se esta louca viagem fosse
alguma expedição saída da lenda. que pena que eu tenho de desapontá-lo. porque
se eu levar a minha avante, esta expedição terminará em bijapur.

- ele vai - disse o padre gonsção, franzindo a testa em desaprovação. - mas esta
manhã foi dizer adeus à família. juntar-se-á a nós mais tarde, fora da cidade, onde
nos vamos juntar à caravana que nos acompanhará.

lockheart começou a falar para o padre em português. thomas não conseguia


perceber muito do que era dito, mas concluiu que o escocês estava a oferecer uma
gratidão untuosa e devota e a assegurar o bom comportamento no futuro.

o padre gonsção aceitou isto com um aceno de cabeça superficial e desculpou-se


rapidamente, dirigindo-se para onde estavam as mulas carregadas e as carroças
saindo do caos para formarem uma linha grosseira.

- aquele não é louco nenhum - disse lockheart. - não confia em nós. devemos tomar
muito cuidado, para que ele não adivinhe o nosso propósito. - olhou para trás, para
thomas. - seja lá ele qual for.

- o nosso propósito? a minha intenção era fugir para casa à primeira oportunidade.

lockheart acocorou-se sobre um joelho ao lado de thomas.

- É isso? - disse ele suavemente. - na verdade não tencionas procurar a fonte do


precioso pó?

thomas suspirou.

- quando soube dele pela primeira vez, andrew, tinha pensado procurá-lo, para tirar
alguma glória do desastre. agora - olhou para os braços -, penso que está para além
de mim.

- o corpo e o espírito podem curar-se, rapaz. as hipóteses podem ser melhores do


que pensas. o feiticeiro disse-te onde estava a fonte?

thomas olhou para lockheart por um momento.

- sim, mas não em pormenor. É claro que há um mapa. lockheart ergueu as


sobrancelhas.

- um mapa! ainda o tens?

thomas sorriu perante a ganância do escocês.

- o domine tirou-me, ainda antes de eu o ter lido. sem dúvida que o nosso bom padre
o tem agora.

- realmente? então... que necessidade tem ele de vós?

- o mapa tem pouca utilidade, para quem não souber decifrá-lo, nem o que
significam os símbolos que estão escritos nele. cartago teve de me dizer o que ele
mostra. eu inventei armadilhas e enigmas para serem resolvidos no percurso e que
embora eu não pudesse predizer quais seriam, tenho o conhecimento para os
ultrapassar.
- rapaz esperto. então apenas tu podes interpretar o mapa? thomas fez uma nova
pausa.

- talvez. embora eu tenha esquecido muito do que cartago me disse. lembro-me de


que bijapur era um lugar de nota. e a partir daí, muita coisa é possível.

lockheart semicerrou os olhos por um momento, depois sorriu abertamente.

- bem, então, não planearemos para além disso. - bateu nos joelhos de thomas,
amigavelmente. - bijapur é o nosso objetivo por agora. depois disso veremos onde o
destino nos conduz. vem, parece que já têm o teu corcel pronto.

thomas ergueu-se, com a ajuda de lockheart e deixou-se conduzir até uma mula alta
e castanha, cujas rédeas estavam seguras por um jovem dominicano. com muita
dificuldade e dor, thomas conseguiu içar-se desajeitadamente sobre a sela e rolar
para uma posição sentada. tentou deitar a mão às rédeas, mas o monge abanou a
cabeça negativamente.

- por cristo - rosnou thomas para lockheart. - os meus braços inutilizados não são o
suficiente para provar que eu sou de confiança? tenho de ser conduzido por esta
criatura?

- não é da natureza da santa casa demonstrar demasiada confiança. temos de


provar primeiro a nossa mansidão. tens de ser paciente. ah, lá vêm os homens do
governador.

os portões do pátio abriram-se para entrarem doze soldados goeses. os elmos de


bronze em forma de barco e as condecorações polidas brilhavam, tal como as
espadas que traziam nas ancas.

- somente uma dúzia - murmurou lockheart. - o governador não estava com uma
disposição muito generosa. mais boas notícias para nós, eh? - deu uma palmadinha
na perna de thomas e afastou-se descendo em direção às carroças pesadamente
carregadas.

a mula de thomas resfolegou e movimentou-se impacientemente debaixo dele.


thomas observou os soldados, enquanto passavam por ele a cavalo nos seus
corcéis sem valor. thomas não era grande avaliador de cavalos, mas estes não
pareciam ser da melhor raça, nem tinham recebido o melhor tratamento. os próprios
soldados eram, notou ele, todos tão magros e duros como o homem no aljouvar,
joaquim. com efeito, um dos soldados parecia-se fortemente com ele. de fato, este
reparou em thomas e chamou-o:

- ei, inglês!

- joaquim, juro pela minha alma! - exclamou thomas. que milagre é este?

ignorando os olhares dos outros soldados, joaquim aproximou o cavalo até junto de
thomas.
- de que milagre falais, senhor? que eu esteja aqui, ou que vós estejais a sair deste
lugar com vida?

- o primeiro, meu amigo. dar-vos-ia um abraço, mas os meus braços... não são o
que eram.

joaquim acenou intencionalmente.

- ainda bem, meu amigo, pois não seria bom que os meus colegas me vissem
abraçar um terrível estrangeiro herético como vós.

- herético, já não, joaquim. fiz a minha confissão na santa casa.

- ah, graças à virgem maria. não admira que vos tenham deixado vivo. então agora
sois simplesmente um inglês imundo e quase digno de ser meu amigo - disse
joaquim com um sorriso.

- espero poder provar o meu valor a seu tempo - disse thomas. - mas não me
respondestes.

- mas isto não é nenhum milagre, senhor. quando a santa casa pede soldados para
uma longa viagem fora de goa, o nosso sargento manda os seus melhores homens?
não, ele manda às prisões procurar homens indesejáveis que estejam
desesperados. então vieram ter comigo no aljouvar e disseram: ”joaquim, preferes ir
numa missão para a santa casa, ou ser enforcado como ladrão? foi uma escolha
difícil, senhor. mas como sou um homem corajoso, escolhi a viagem difícil em vez de
uma morte fácil.

thomas riu.

- fico grato pela vossa coragem, joaquim. - notou que o padre gonsção estava a
olhar para eles do outro lado do pátio. ai, este encontro certamente não encorajará a
sua confiança.

joaquim olhou de relance para gonsção.

- o padre não parece satisfeito, thomas. falaremos mais tarde, está bem? - joaquim
piscou o olho e partiu a cavalo até onde os outros soldados se encontravam à
espera. estes lançaram a joaquim olhares curiosos, mas não pareceram zangados.

com o ânimo mais leve, thomas suspirou e relaxou na sela. a esperança ainda é
possível, se a providência me traz de novo a companhia de tais homens.

a medida que a órbita do sol se elevava por cima da parede do pátio, eram feitos
esforços finais para a partida; os abegãos puxavam pelas cangas dos bois e os
carroceiros verificavam as rodas e os eixos. o padre gonsção finalmente montou a
cavalo, um corpulento picarço. lockheart ia atravessado numa mula preta e cavalgou
com o padre para a frente da caravana.
a quem serve agora o bom irmão andrew?, perguntou-se thomas. a ele próprio, a
deus ou à santa casa?

os soldados tomaram posições: quatro à frente com o padre gonsção e lockheart,


quatro atrás, depois dos carregadores e das carroças e quatro no centro, onde
thomas seguia.

de algum modo, joaquim tinha-se colocado entre estes e descaradamente cavalgava


ao lado de thomas, tendo tirado as rédeas da mula das mãos do dominicano.

- como ficaste encarregado de tomar conta de mim, joaquim?

- nós, soldados, sabemos o efeito que o aljouvar pode ter num homem, senhor.
disse-lhes que conhecia todos os vossos truques, que mós tínheis contado nas
masmorras e, por isso, eu era o mais indicado para vos conduzir.

thomas riu.

- quem me dera ter sido abençoado com a vossa língua ligeira, senhor.

- tentais chamar-me mentiroso, senhor?

- nunca eu seria capaz de insultar assim um gentil homem tão terno. mas admiro a
vossa habilidade, para explicar como as coisas devem ser. dizei-me, tendes novas
dos outros? sabdajnana está livre?

joaquim rosnou.

- foi libertado pouco tempo após a vossa partida, senhor. a família resgatou-o por
uma alta soma.

- fico contente. e van der groot? ainda está na prisão? joaquim fez uma pausa e
depois disse suavemente:

- escapou do aljouvar.

- excelentes notícias - disse thomas também baixando a voz. - foi para casa, então?

- poder-se-á dizer que sim, senhor. há uma hipótese de poderdes vê-lo, uma vez que
estamos a sair da cidade.

- de verdade? então talvez eu possa informá-lo de que estamos bem.

joaquim olhou-o de modo peculiar, mas não disse nada.

numa varanda por cima deles, surgiu o inquisidor sadrinho, com a batina negra
flutuando na brisa da manhã. ergueu os braços e abençoou a expedição, terminando
com exortações à glória e votos de felicidades. thomas perguntou a si próprio,
quanto teria sido dito aos outros da expedição, aos soldados, aos carroceiros e aos
servos, sobre o seu propósito e o que eles acreditavam que iriam encontrar como
resultado desta viagem. que estranho que o meu estratagema tenha levado a esta
volta no meu destino. quantas vidas eu destruí, meramente com o fim de ficar livre?
oxalá não lhes aconteça nenhum mal, quando eu os abandonar.

finalmente o padre gonsção gritou:

- adiante!

o grito foi levado pela linha fora, como uma onda no mar. os chicotes estalaram, os
homens puxaram pelos bois e cavalos, as rodas das carroças chiaram e lentamente
a procissão pôs-se em movimento.

joaquim estalou a língua para a mula de thomas. esta espetou as orelhas para a
frente e iniciou uma caminhada vigorosa para acompanhar o cavalo mais alto, ao
seu lado. thomas agarrou a saliência fronteira da sela com ambas as mãos para
ganhar balanço, estremecendo com a dor.

só depois de terem passado os portões nos muros da santa casa, é que thomas
sentiu os músculos a relaxar e a respiração a tornar-se mais livre. não se tinha
permitido acreditar na fuga até ao momento.

- graças a deus, nesta manhã tão gloriosa - murmurou. a procissão passou através
das ruas tranquilas, diferentes

das avenidas apinhadas, cheias de homens e animais que thomas tinha visto no seu
primeiro dia em goa. de fato muitas portas e persianas estavam fechadas.

- joaquim, é feriado ou dia de festa? É por isso que a cidade parece vazia?

o soldado resfolegou.

- olha outra vez, tomás. - os goeses não são loucos. foram avisados para não
interferirem com o progresso da santa casa tão amada.

thomas observou as casas por onde passaram, cuidadosamente, e notou que havia
rostos cautelosos a espreitar por trás das cortinas e das persianas. as crianças
pequenas estavam a ser arrastadas para dentro das portas, pelas mães. as crianças
mais velhas, escondidas nas sombras, faziam figas ao padre gonsção.

- sabem que estamos a sair da cidade - disse joaquim -, ou não seriam tão atrevidos.

uma grande árvore familiar surgiu à vista, com homens sentados à sombra dela.
estes ergueram os olhos silenciosamente, enquanto a procissão passava e thomas
reconheceu um rosto de barba branca. não ousou chamar o padre stevens, nem
pôde erguer uma mão em saudação. thomas apenas acenou gravemente para o
velho monge. o padre stevens fez um aceno grave em resposta e pareceu
pronunciar as palavras ”vai com deus”.

as casas ao longo da rua mudaram gradualmente de ricas casas citadinas


portuguesas, para casas vedadas com muros de prósperos mercadores hindus e
muçulmanos, e depois para simples cabanas cobertas de colmo dos hindus, que
cheiravam fortemente a excrementos de animais.

thomas calculou pelo sol, que se estavam a dirigir para norte e para leste. passaram
por uma abertura numa muralha de pedra a desmoronar-se e emergiram numa
estrada larga que ia de leste para oeste. a norte havia um rio castanho, tão largo que
a outra margem era uma baça linha escura no horizonte.

pequenos templos ponteavam a margem mais próxima e para além deles, os


barqueiros com paus, faziam deslizar sobre a água plácida, estreitas embarcações
cheias de peixe e de flores e de frutos coloridos.

- ah! - disse joaquim. - lá está o pedro. estais a vê-lo?

- não. onde está? - thomas olhou para cima e para baixo, vendo apenas esbeltas
mulheres hindus carregando cestos.

- lá atrás, na muralha.

thomas olhou para trás, para a muralha em ruínas e o que viu gelou-lhe o coração.
três cadáveres estavam pendurados em grampos, voltados para o rio. um, era pouco
mais que um esqueleto embrulhado em pele. outro, vestia trapos por cima da pele
seca e castanha. o terceiro era louro e vestia o gibão e os calções de van der groot.
os pássaros estavam a debicar no que sobrava dos olhos.

- meu deus - murmurou thomas, desviando o olhar. dois soldados benzeram-se. os


outros riram e fizeram gracejos. - porque não me haveis dito que ele estava morto?

- eu disse-vos que ele tinha fugido de aljouvar, thomas. não há fuga mais certa do
que a morte.

capítulo xxii

oliveira: esta árvore tão venerada está sempre verde, com tronco amarelo e com um
fruto que contém azeite e que tem a cor verde ou preta. diz-se que vivem até
avançada idade. a infusão das folhas acalma o espírito. a decocção das cascas
reduz a febre. o azeite do fruto cura queimaduras e quando engolido ajuda a
digestão. para os antigos, era consagrada a athena e os romanos faziam coroas das
folhas de oliveira para significar conquistas e reinado pacífico. no oriente, a oliveira é
o símbolo da paz, da realização, do incremento e das viagens em segurança...

o padre gonsção ouviu agitação atrás de si e voltou-se na sela. alguns soldados


pareciam estar a gozar uns com os outros acerca dos criminosos pendurados na
muralha da cidade. com um suspiro, gonsção voltou-se novamente para a frente.
timóteo a conduzir tais homens. como é que o sadrinho pôde ter tal pensamento?

quem lhe dera ter o entusiasmo de timóteo em relação à viagem. ou mesmo o do


irmão andrew, que pairava ao seu lado sobre os estranhos templos e as curiosas
plantas e animais. quanto mais se afastavam das paisagens familiares, mais pesado
ficava o coração de gonsção. como é que eu me deixei convencer a isto? depois
lembrou-se da ganância no rosto de sadrinho, o horror do feiticeiro trazido à vida
novamente. que idiotice a minha. o meu desconforto não é nada comparado com a
importância de destruir o mal que nós procuramos.

tendo descido alguns quilômetros pela estrada, chegaram a uma área aberta da
planície coberta da poeira vermelha, circundada por altos coqueiros e bananeiras.
alguns camelos ajoelhados à sombra mastigavam erva preguiçosamente e
observavam a aproximação da caravana com grandes olhos negros. os seus guias
de turbante, com rostos escuros e marcados pelo tempo, sentavam-se ao lado
deles, mascando betei ou conversando calmamente. os homens da caravana não se
levantaram, quando gonsção cavalgou até à clareira, nem chamaram ou lhe
prestaram sequer muita atenção.

o irmão andrew olhou em volta.

- parece que a nossa caravana está aqui. esperamos apenas pelo irmão timóteo?

- não - disse gonsção desmontando. - o chefe da caravana deverá juntar-se a nós.

- ele não é nenhum destes?

- ela - disse gonsção desmontando. - É uma viúva do clã dos maratas. herdou o
negócio do marido. mas não vejo que já tenha chegado um palanquim de mulher.

- o quê? - disse o irmão andrew, deixando-se cair da mula. - ela não teve as boas
maneiras de se lançar sobre a pira do marido?

gonsção franziu o sobrolho.

- tendes um estranho sentido de humor, irmão. essa prática bárbara, ouvi dizer, foi
proibida em goa.

- então ela fez a sábia escolha do lar e da lareira. perdoai-me, padre. hoje estou com
um humor esquisito.

- devemos considerar esta viúva com respeito - disse gonsção, conduzindo o cavalo
até um tronco de palmeira onde o atou -, porque é a riqueza da família dela que em
parte suporta esta expedição, e é o seu nobre parentesco que nos levará a
conseguir uma audiência com o sultão em bijapur.

- prometo governar a minha língua com cuidado na sua presença.

- vós não estareis na sua presença, irmão - disse gonsção, enquanto observava o
resto da expedição a deslocar-se até à clareira. - disseram-me que as senhoras
brâmanes se mantêm afastadas dos estranhos, quase tão estritamente quanto as
muçulmanas. provavelmente nem sequer nos falará, senão através das suas servas.
espero que vós e o resto do nosso grupo adiram a esse costume.

- podeis contar comigo, padre.


- espero que sim. ah. fareis melhor em ir ver o vosso jovem senhor chinnery. parece
que está a ter dificuldade para descer da mula.

thomas estava deitado sobre o estômago, atravessado na sela, com o rosto a arder
com o esforço e a vergonha. não ousava mexer-se, temendo uma queda de cabeça.
os braços agitavam-se ao lado do corpo, inúteis como as asas de um pássaro
acabado de nascer.

- oh, tu aí, rapaz! espera um momento, estou aqui. thomas sentiu lockheart agarrar-
lhe as costas da camisa

e a cintura das calças. com um puxão poderoso, thomas foi puxado para fora da sela
e para os braços fortes de lockheart.

- porque não chamaste por alguém, rapaz? onde está o teu cavaleiro goês?

- penso que foi urinar - arquejou thomas, tentando manter-se de pé. - isto é uma
idiotice, assim eu não sirvo para nada.

lockheart olhou por cima do ombro.

- vem, e eu farei o serviço antes de o bom padre poder piscar um olho.

- o serviço? - thomas foi empurrado por lockheart à volta da mula e para uma grande
pedra, fora da vista do padre gonsção. - de que serviço falais?

- É melhor ajoelhares-te, rapaz. serei rápido, prometo. lockheart enrolou uma perna
à volta dos tornozelos de thomas, fazendo-os desaparecer debaixo dele. enquanto
thomas caía para a frente, lockheart segurou-o com uma mão por baixo do peito. o
antebraço foi apanhado pela grande mão direita de lockheart. com um torcegão
poderoso, lockheart empurrou o ombro de volta ao seu encaixe, com um rangido de
causar náuseas.

thomas gritou. a dor foi tão intensa quanto o strappado.

- coragem, rapaz. mais uma vez.

- não...

mas lockheart habilidosamente agarrou o braço esquerdo de thomas. de novo veio o


torcegão e o ranger do osso. thomas mal podia respirar, enquanto as lágrimas se lhe
derramavam dos olhos. encostou-se contra as rochas, os olhos fechados, com os
ombros e os braços latejando de dor.

ouviu passos a correr e quando voltou a abrir os olhos, ele e lockheart estavam
rodeados por soldados com as espadas em punho.

o padre gonsção forçou caminho por entre os soldados e olhou para ele e para
lockheart.
- o que estais a fazer?

- pedistes-me para o ajudar a descer da mula, padre. a única ajuda para ele,
contudo, era pôr-lhe os ombros no lugar. de outro modo precisaria de ajuda para
subir e descer durante toda a viagem.

thomas sentiu o sofrimento nos ombros a diminuir para uma dor que rugia. sem
pensar, ergueu as mãos para lhes tocar e ficou maravilhado por poder mexer de
novo os braços. o padre semicerrou os olhos com desconfiança e ajoelhou-se junto
de thomas

- porque é que ele gritou?

- tive de o magoar a fim de o ajudar, padre. como é necessário ao recolocar um


membro que se partiu, ou ao cortar um que está podre. ou ao garantir uma
confissão, talvez? como podeis ver, ele recuperou. um pouco de sofrimento, por
vezes, pode ser tão bom para o corpo como para a alma.

thomas disse:

- está tudo bem, padre. ele apenas... me surpreendeu. já ouvi falar do método,
embora seja a primeira vez que o veja pôr em prática. ajudará à minha recuperação.

- ai, eu ajudei-te no teu negócio também, ao ensinar-te uma outra arte de curar.

- uma que eu possivelmente não virei a empregar - disse thomas, fazendo uma
careta e esfregando os braços.

- muito bem - disse o padre gonsção. - tomai cuidado, meu filho. nós contamos
convosco.

olhando furiosamente para lockheart, gonsção ergueu-se e afastou-se.

os soldados também se dispersaram, alguns olhando para thomas com divertimento,


outros aborrecidos por terem sido incomodados por nada.

joaquim demorou-se mais um momento, olhando para lockheart especulativamente.

- vós, irmão, fostes soldado, não é verdade?

- entre outras coisas - disse lockheart.

joaquim sorriu para thomas e afastou-se para se ir juntar aos seus companheiros.

thomas encostou as costas contra a rocha. lockheart sentou-se pesadamente ao seu


lado.

- suponho que devia agradecer-vos, andrew - disse thomas.

- os agradecimentos não fazem falta, rapaz. embora pense que o padre tenha
querido manter-te fraco. não irá agradecer-me, tenho a certeza.

- então fostes soldado. e mercador de lã. e agora médico. assim como um falso
monge.

- e muitas outras coisas, além disso, embora este hábito seja mais apto do que
muitas outras coisas que usei.

- e que trajo usa o homem que vos mandou atrás de mim? lockheart suspirou e
encostou a cabeça para trás, contra a pedra.

- roupas muito familiares para ti, rapaz. foi o teu próprio pai que me enviou para zelar
por ti.

thomas olhou fixamente, sem falar.

- agora provastes que sois um mentiroso, andrew. como disse, o meu pai não se
preocupa nem um pouco comigo.

- e como disse, muitas vezes o cuidado de um pai não é visível. quando ele soube
que tu estavas para ir numa viagem tão longa, contratou-me para te seguir e
proteger.

- por que razão não falastes disso antes? o meu pai não podia ter-vos apresentado a
mim antes da viagem?

- vamos, então, o que terias dito a tal encontro? certamente desejarias provar a tua
masculinidade nessa viagem.

como terias aceite uma ama como presente do teu pai? não te terias enraivecido
com fúria? não terias desdenhado a minha companhia como se fosse um leproso?

- verdade. tendes toda a razão. enfurece-me agora que o meu pai tivesse tão pouca
fé em mim.

- isto não é falta de fé, mas excesso de cuidado. És importante para nós, tom. mais
do que pensas.

- que tipo de ama é que era capaz de entregar o seu protegido nos braços do pirata
e no peito da inquisição?

lockheart olhou para o chão.

- uma ama louca e cobarde, confesso, embora até esse abandono possa parecer um
ato de bondade, se se soubesse toda a verdade. a nossa viagem parecia no fim, o
meu dever um falhanço. num momento de fraqueza, decidi escapar ao meu destino
e abandonar-te ao teu, o que de algum modo consegui. mas os poderes divinos não
se deixaram frustrar e tu seguiste um castigo apropriado. mas deves concordar que
te compensei desde então. sem mim, nunca terias deixado a santa casa.
- sem vós, eu nunca teria ido para lá.

- todas as coisas têm um propósito, tom, embora possam estar para além do nosso
alcance. talvez estejas destinado a encontrar o fabuloso elixir da vida e morte. talvez
nasça da própria pedra filosofal da lenda. não é verdade que todos os heróis da
lenda sofrem provas de força e coragem, antes de lhes ser permitido avançar em
direção ao seu objetivo almejado?

- começastes a falar como o irmão timóteo. não tenteis distrair-me com histórias,
andrew. tendes provas que foi o meu pai quem vos contratou?

- somente esta - lockheart tirou para fora da gola do seu hábito castanho, um
medalhão de prata numa corrente. thomas segurou-o gentilmente e examinou-o. de
um lado estava estampado um veado de patas erguidas, sobre uma lua em quarto
crescente. na outra havia uma figura feminina com trajo grego, de pé entre dois cães
esguios.

- de fato, o meu pai tinha um medalhão como este. as imagens trouxeram ao de


cima fragmentos de memórias de infância ou de sonhos, vacilando vagamente como
algas, logo abaixo da superfície do oceano. um gosto de vinho doce e mel, vozes
cantando demasiado baixo para serem inteligíveis, uma lua em quarto crescente
brilhando por cima das árvores, cães ladrando à caça.

- um sinal da sua boa-fé em mim.

- ou vós roubastes. o mestre coulter sabe de vós e da missão de que estais


incumbido?

- não, poder-se-ia dizer que ele e o teu pai... não estão de acordo. por isso não lhe
foi dito nada.

- hum. nunca ouvi o meu mestre falar mal dele. a sua boa esposa, senhora coulter,
em tempos esteve em desacordo.

- pode ser que fosse a sua intromissão que o vosso pai receava, então.

- não sei porque é que se havia de intrometer, já que foi ela que me pôs na nossa
mal afortunada viagem. ela disse que curaria os meus pesadelos e assim foi, até
que chegamos à índia.

lockheart olhou-o curiosamente, mas não disse nada. thomas entregou-lhe de novo
o medalhão.

- ainda não estou convencido se sois um amigo ou o filho da puta mais aldrabão que
alguma vez saiu da escócia.

lockheart levantou as mãos dos joelhos, encolhendo os ombros.

- então devemos deixar o tempo e os acontecimentos darem-nos a resposta.


nisto, chegou um sopro distante de trompas, vindo do fim da estrada. os camelos na
clareira levantaram os seus focinhos e cheiraram o ar. os condutores levantaram-se,
sacudindo as vestes compridas. os soldados pararam de jogar e levantaram-se.

- dir-se-ia que o chefe da caravana se aproxima - disse lockheart.

thomas perscrutou a estrada e viu dois hindus de pele escura com as compridas
trombetas que tinham soado ainda há pouco, mais dois camelos pesadamente
carregados com barris e caixas. atrás deles havia um grande palanquim carregado
por oito homens, coberto com uma tenda de pano púrpura, com laços e borlas de
ouro. por trás dele caminhavam quatro servas com saris escarlates e argolas de
ouro nos narizes, falando com gestos animados e dedos pintados de vermelho.

- uma pessoa rica - disse thomas.

- com efeito, e ela paga a nossa viagem; por isso o padre deseja que nos
mantenhamos afastados, para não ofendermos as suas nobres sensibilidades.

thomas concordou com um gesto de cabeça; depois viu um momentâneo lampejo de


luz do sol sobre a prata e um movimento - um braço esguio saindo para fora do
palanquim, lançando algo fora. o gesto era familiar. o coração quase lhe parou no
peito. podia ser?

aditi limpou a mão na saia, depois de deitar fora o bolo de betei meio comido. tenho
de parar de mastigar isto. É um hábito sujo. os meus dentes já estão a ficar
manchados.

mas o seu espírito precisava de ser acalmado desde o puja no templo de mahadevi.
o seu desassossego tornou-se pior, quando o servo que tinha mandado ao padre
stevens voltou com a notícia de que o jovem tamas tinha sido preso na ordem de
gor. não sabendo o que cartago lhe tinha dito, aditi ficara quase frenética com a
preocupação e a impotência.

nessa altura tinham chegado as notícias de que os monges da ordem de gor


procuravam uma caravana que estivesse de partida para bijapur e apoio para uma
expedição de pouca importância ao decão. no seu coração aditi sabia a razão.
convenceu os patronos a mandá-la como chefe da caravana. foi, compreendeu
então, a missão para a qual tinha ficado em goa, como se gandharva tivesse de
certa forma sabido. era dharma; o que quer que fosse, os monges da inquisição não
podiam encontrar mahadevi.

o balanço do palanquim parou e aditi espreitou para fora pela cortina lateral. os
condutores de camelo na sombra das palmeiras estavam a levantar as bestas que
gemiam. estes homens sabiam do seu ofício e ela não estava preocupada com eles.

chamou uma das servas silenciosamente.

- qual é o vosso desejo, sri aditi?

- não podes pronunciar esse nome. agora sou senhora agnihotra. olha em volta e
diz-me quantos soldados vês.

- perdoai-me... sri agnihotra - a rapariga olhou em volta, afastou-se por um momento


e depois regressou. - não muitos. só vejo doze.

- mais do que eu gostaria, mas vou conseguir. quantos monges?

a rapariga afastou-se apressadamente, de novo. no regresso disse:

- um com hábito preto e branco e um castanho.

- só dois. É boa sorte. e viste um jovem pálido com cabelo loiro?

- sim, sri agnihotra. está além, junto às rochas.

- ah. - aditi espreitou para onde a rapariga apontou. viu-o e sentiu um estranho
aperto dentro de si. ele está mais magro e pálido. mas o que é que eu esperava? a
ordem de gor nunca é bondosa e eles certamente fizeram tudo o que puderam para
perscutar os seus segredos. tenho de descobrir o que ele lhes disse e ver se não
descobrem mais nada.

além de tamas, ela reconheceu o desleal lockheart, com o disfarce de monge. assim
fica ainda mais interessante. será que ele também busca o rasa mahadevi?

a serva regressou.

- sri, o padre da ordem de gor, padre antónio gonsção, envia os seus cumprimentos
e pede para demorarmos um pouco mais a nossa partida. diz que esperam mais
uma pessoa do seu grupo. outro monge.

- outro monge - suspirou aditi. - mais uma vez ao contrário do que eu teria desejado.
- olhou de relance uma vez mais para tamas. - enquanto estamos atrasados, pede
ao louro que se aproxime do palanquim. se te interrogarem, diz que nunca vi
ninguém com a sua aparência e que estou curiosa.

a serva curvou-se.

- como desejardes, sri agnihotra. - aditi fechou a cortina e recostou-se nas


almofadas. não conseguia encontrar uma posição confortável e as mãos pareciam
determinadas a tremer. por esta vez sentiu-se satisfeita por ser uma mulher nobre e
resguardada. o que poderia estar a empatar aquela rapariga? finalmente ouviu a voz
da serva do lado de fora do palanquim.

- trouxe-o.

aditi não ousou abrir a cortina para olhar.

- não há mais ninguém por aqui perto?

- não, embora o padre nos observe à distância. ele não queria permitir isto.
tamas murmurou algo numa língua que poderia ter sido uma tentativa de falar
português.

- volta-o de modo a que o padre não possa ver o seu rosto. ouviu a rapariga a rir e a
falar com ele de forma aduladora.

- já está, sri agnihotra. suavemente, aditi disse em grego:

- tamas, sou eu, alguém que vós encontrastes antes.

- n ai - respondeu ele numa voz rouca, muito perto da cortina. - pensei que poderíeis
ser vós. - aditi estendeu a mão e depois baixou-a.

- estais bem?

- estou vivo e o meu corpo está a curar-se.

- ah. não devemos falar muito tempo, mas queria que soubésseis. vim para vos
ajudar. qualquer que seja o vosso objetivo. de novo somos viajantes na mesma
senda, tamas.

houve silêncio por alguns momentos.

- a minha esperança é escapar, despoina. quando chegarmos a bijapur. qualquer


ajuda que possais dar, será muito bem recebida.

aditi sentiu que ganhava ânimo.

- farei tudo o que puder. mas os monges continuarão sem vós?

uma outra pausa.

- sem mim não têm aonde ir. temos de parar de falar. o padre aproxima-se.

- muito bem - aditi começou a rir alto e a falar em latim deturpado. - que coisa
estranha que vós sois, cabelo-amarelo! vós divertis-me. vós fazeis feliz uma velha
mulher chateada como eu.

- domina - disse uma nova voz que ela presumiu ser do padre. - perdoai-me por-
esta intrusão imprópria da vossa privacidade. perdoai o nosso atraso, mas ouvi dizer
que o último membro do nosso grupo estará aqui em breve. tenho de levar este
homem e ajudá-lo a preparar-se para a viagem.

- está tudo perdoado, padre. onde encontrastes esta criatura?

- É britânico, domina. por favor perdoai-nos. temos de nos preparar.

- ide, ide. gostarei de rir muito dele no futuro.


aditi ouviu os dois homens afastarem-se, murmurando um para o outro. encostou-se
de novo nas almofadas e suspirou. ”sem mim, não têm aonde ir”, disse ele. isto não
é bom. ele é o único guia deles. o padre vai vigiá-lo de perto. e isso significa que ele
tem algo para lhes dizer. ele não fez voto nenhum de silêncio. enquanto estiver vivo,
há a hipótese de que a ordem de gor o use. ai, mahadevi, porque me dás esta
missão?

aditi tocou levemente no cabo de marfim da faca no cós da sua ghagra. perguntou-
se a si própria qual seria a sensação de a usar, de sentir o sangue quente dele jorrar
sobre ela, saindo da ferida no pescoço, no momento exato em que o seu órgão
masculino jorrasse um outro calor entre as suas coxas. o pensamento excitou-a e
perturbou-a. a vida e a morte simultaneamente. na verdade eu sou bem a filha da
minha mãe adotiva.

conduzido para longe pelo braço do padre gonsção, thomas sentia uma estranha
alegria. logo após saber que aditi estava perto justificou-se a si próprio, pensando na
oferta de ajuda dela. uma tal aliada inesperadamente, era um dom da providência. e
com tal perigo para ela própria: não me enganei ao confiar na sua compaixão.

- o que é que ela vos disse? - perguntou o padre gonsção.

- hum, palermices em grande parte, padre. ela... ela pensou que eu tinha uma
aparência muito estranha e queria saber o que eu era.

- altamente impróprio - resmungou gonsção, levando thomas para a mula.

- talvez longe dos constrangimentos da família, ela se sinta mais em liberdade.

- não deveis incomodá-la.

- não, padre, mas se ela desejar falar comigo outra vez, devo insultá-la recusando?

o padre fez uma pausa, claramente infeliz com ambas as escolhas.

- veremos. para cima.

thomas permitiu a gonsção ajudá-lo a montar a mula, embora, depois do tratamento


de lockheart, os seus braços se tivessem tornado mais capazes. com um aceno, o
padre dirigiu-se ao seu cavalo.

thomas sentou-se, com o calor do sol nas costas, observando a caravana a


reagrupar-se em torno dele: camelos recalcitrantes levados para a estrada, homens
direcionando-se uns aos outros e aos animais com gritos e gestos. há muito tempo
que não se sentia tão bem. a vida não era sem esperança. o uso dos braços fora-lhe
devolvido, ainda que estivessem fracos e magoados. tinha encontrado de novo
amigos inesperados. até lockheart, se a sua história for verdadeira, não passa de um
ladrão relutante e não de um patife completo.

se, por acaso, a providência tinha posto no seu caminho a fonte do pó miraculoso,
bem e bom. mas à frente fica bijapur, uma cidade da qual ele não sabia nada, exceto
que a sua vida mudaria aí. e os sinais eram de que a mudança seria para melhor.

o irmão timóteo bateu no flanco do burro com uma chibata de bambu, desejando
apanhar a procissão da senhora marathi. ele não queria manter o padre gonsção e a
expedição toda à sua espera. na verdade, não teria ficado tão atrasado se não
tivesse de ir ao bazar do leilão.

a mãe regularmente enviava-lhe um dinheirinho que ele nunca gastava, uma vez
que a santa casa atendia a todas as suas necessidades. compreendia agora que o
seu pecúlio tinha tido uma outra finalidade, que antes lhe era desconhecida.

porque hoje, depois de despedidas cheias de lágrimas à sua mãe e irmã, ele tinha
sido capaz de ir ao mercado, de manhã, onde entre os mercadores de especiarias e
negociantes de cavalos, havia o que agora estava pendurado no saco de juta ao seu
lado.

era um espelho com a parte de trás em prata, numa moldura grande de latão. o
ferreiro era cristão, por isso havia cruzes gravadas em cada um dos cantos da
moldura e rosas e lírios nos lados.

timóteo não sabia como iria explicar a sua extravagante compra ao padre gonsção.
não queria que o padre pensasse que era por vaidade; timóteo não se preocupava
nem gostava particularmente da sua aparência. talvez não dissesse nada, até ser
necessário.

o espelho era só para proteção, afinal de contas. timóteo tinha lido os registros do
julgamento. timóteo tinha sido bem ensinado pelo avô. e um espelho era o que fazia
falta quando se enfrentava uma gárgula, não era? timóteo tocou o burro para um
trote relutante, desejoso que a viagem da sua vida começasse.

fim.

nota do autor

nos finais do século xvi e nos princípios do xvii, a colônia portuguesa da cidade de
goa era tão esplendorosa como muitas das suas contemporâneas européias, de tal
forma que se tornou conhecida como ”goa dourada”.

um viajante foi tão longe que lhe chamou a roma do oriente. foi a primeira colônia
européia no subcontinente da índia, conquistada ao sultão de bijapur pelos
portugueses em
1510. as ricas possibilidades de comércio na índia, rapidamente tornaram a colônia
num canteiro de intrigas mercantis entre os portugueses, os mulçulmanos, os
holandeses, os dinamarqueses e por fim os ingleses e os franceses.

também foi um campo de batalha de credos, desde que um posto avançado da


temível inquisição se estabeleceu ali em 1560. o seu propósito original era hostilizar
os cristãos nestorianos que tinham vivido durante séculos na costa ocidental da
índia, e os cristãos-novos, judeus que se tinham convertido ostensivamente, mas
que contudo, conservavam os seus costumes anteriores.
porém, a inquisição goesa rapidamente ganhou a reputação de ser a mais corrupta
do mundo, focando-se naqueles que tinham dinheiro e propriedades para poderem
ser confiscadas.

também foi o braço da inquisição que mais tempo sobreviveu, operando até meados
do século xvii. as descrições detalhadas da santa casa são baseadas nas memórias
de um francês que foi prisioneiro no início do século xvi.

graças às fontes disponíveis na ames library of south Ásia, uma subdivisão da edwin
o. wilson library da universidade de minnesota, pude saber os nomes dos chefes da
inquisição em goa em 1597 (embora a sua aparência e personalidades, tal como as
descrevo, sejam pura ficção), bem como o governador (que era de fato, o neto do
famoso explorador vasco da gama). foi também lá que soube da vergonhosa
destituição do governador coutinho e do vice-rei albuquerque, acusados de heresia e
feitiçaria e tive aquela sensação de ”ah!” de quando um pormenor histórico se
encaixa perfeitamente na história de alguém.

a expedição dos barcos the bear, the bear’s whelp e the benjamin foi uma viagem
real, chefiada pelo capitão benjamin wood, enviada da inglaterra em 1597 com uma
carta da rainha isabel dirigida à corte de catai (china). a viagem malfadada nunca
atingiu o seu destino, desaparecendo algures a seguir ao seu encontro com raleigh e
a sua frota nas canárias. contudo, na coleção de documentos históricos, purchas, his
pilgrimes, há uma carta datada de 1601, de um capitão português, descrevendo um
encontro com um pequeno grupo de ingleses, os últimos sobreviventes do naufrágio
de uma expedição na costa indiana. a maior parte da tripulação tinha-se perdido
devido a doença, depois de saquearem barcos portugueses. esta pode muito bem
ter sido a viagem malfadada dos barcos benjamim e whelp.

(o único sobrevivente a chegar finalmente a goa, onde foi posto na prisão, chamava-
se thomas.)

garcia de orta, o botânico português, é também uma figura histórica, que viveu os
últimos trinta anos da sua vida na índia, viajando através do decão. era bem visto
em goa, onde muitas vezes usou as suas ervas como remédios para curar os
pobres, sem receber nada em troca e trabalhou frequentemente na santa casa da
misericórdia jesuíta, que era descrita pelos viajantes, como um dos melhores
hospitais do mundo.

foi por puro acaso que garcia de orta veio a tornar-se amigo de luís vaz de camões.
o poeta tinha sido expulso de lisboa devido a uma paixão sem esperança por uma
aia da rainha. falido e cego de um olho, devido a uma luta, camões foi acolhido por
garcia de orta, em jeito de gato abandonado e na sua casa camões escreveu os
lusíadas, agora o poema épico nacional de portugal e uma bela peça de fantasia
histórica por direito nato. o padre jesuíta thomas stevens foi um dos primeiros
ingleses a chegar a goa e as suas cartas para a pátria foram julgadas capazes de
estimular o interesse da inglaterra no comércio com a índia. aprendeu várias línguas
locais; foi o primeiro europeu a escrever uma gramática da uma língua indiana e
também escreveu a christian purana. era conhecido por dar assistência aos ingleses
em goa, embora nem sempre fosse bem sucedido ao protegê-los da ira das
autoridades.

são francisco xavier, conhecido como o apóstolo das índias, foi um monge jesuíta,
cujo tremendo impacto na cristandade do oriente é narrado detalhadamente por
outros. morreu a caminho da china, e o seu corpo, espantosamente preservado em
cal viva, foi finalmente enviado de volta a goa, onde jaz exposto à vista, há muitos
anos. contudo, isto levou a que pedaços do seu corpo fossem furtados para relíquias
e os jesuítas finalmente selaram-no num caixão de vidro, nos finais do século xvii.
em meados do século xix, os jesuítas iniciaram um ciclo de exposições do corpo de
são francisco xavier, de dez em dez anos.

todas as outras personagens são de ficção, embora eu tenha tentado descrevê-las e


ao seu mundo tão exatamente quanto a minha pesquisa me permitiu.

pouco resta hoje da ”goa dourada”. declinou rapidamente no final do século xvii, com
a crescente influência de outras colônias européias na índia. hoje em dia, a velha
goa é uma coleção de ruínas (com umas quantas igrejas ainda bem conservadas,
graças aos fiéis), tendo o resto sido reclamado pela selva.

num romance deste alcance (incluindo os volumes que se seguem), a quantidade de


investigação requerida e os anos que demorou trazê-lo à fruição, o número de
reconhecimentos devidos é demasiado grande para enumerar. contudo, a merecer
um reconhecimento especial, está denny lien, bibliotecário na edwin o. wilson library,
na universidade de minnesota, pelos serviços prestados, para além da obrigação do
cargo da bibliotecário. a sua ajuda em investigar através da montanha de informação
disponível, ajudou este livro a tomar forma há já muitos anos.

o agradecimento também é devido ao meu antigo grupo de escritores, os


rabiscadores - emma, will, pam e steve -, por me ajudarem na primeira fase deste
trabalho, a forjá-lo até se tornar algo semelhante a um romance.

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