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RICHARD ARMSTRONG

AVENTURAS DE
UM PETROLEIRO

Tradução de
EDGAR MAGALHÃES

ilustrações de
ALBERTO NADD.EO

Editor:
VICTOR CIVITA

1972
CAPÍTULOS I

OS VÁRIOS TIPOS

Foi num dia claro e ensolarado do sinistro inverno de 1940


que o Cape Wrath iniciou sua memorável travessia do oceano Ocidental.
Em matéria de embarcação não apresentava nada de extraordinário.
Era um petroleiro movido por monstruoso motor Diesel de três mil e
seiscentos HP 1 . Sua capacidade de carga era de quinze mil toneladas, sua
velocidade de doze nós 2 e meio e seus similares podiam ser encontrados
em qualquer dia da semana, atracados aos molhes de Abadã, Baytown e
todos os outros grandes terminais petrolíferos do mundo. A guerra o tinha
brindado com o que chamavam então de "armamento defensivo" — um
canhão de doze libras, na popa, e duas metralhadoras leves colocadas sobre
altos suportes, a meio navio; porém, enquanto permanecia na baía de
Halifax à espera do sinal para levantar ferros e juntar-se aos outros barcos
do comboio, aparentava exatamente o que era: um petroleiro comum
encarregado de levar produtos petrolíferos aos diversos pontos dos sete
mares.
O mesmo acontecia com seus tripulantes. No que diz respeito à sua
aparência, era apenas uma chusma de marujos da marinha mercante,
destemidos, simplórios, cada homem conhecendo sua tarefa de olhos
fechados e executando-a como bem entendia, com interferência mínima por
parte de seus superiores. Nada de cuspe e de esfregação; nenhum heroísmo
e, acima de tudo, nada que indicasse que no fim da travessia iriam cobrir o
nome do seu barco de glória por motivo de resistência e de coragem
indómitas.

1 Cavalo- Vapor. (N. do E.) Medida da velocidade de embarcações e que equivale a


2

uma milha náutica (1 852 metros pqr hora). (N. do E.)


7
Eram ao todo trinta e sete, e o Capitão Holroyd — chamado por trás
das costas de "Jack, Óleo-de-pelxe• " — tinha o comando.
Era um osso duro de roer e muito pessoal nas suas atitudes, tornando-
se, ocasionalmente, até mesmo excêntrico. Por exemplo, possuía um
uniforme completo, com botões de latão e quatro galões dourados em cada
punho; porém, tinha-lhe enchido os bolsos de naftalina e conservava-o
guardado no gavetão embaixo do beliche. Sua indumentária costumeira a
bordo era constituída por uma calça de belbutina e uma camisa esporte com
mangas cortadas acima dos cotovelos. Em tempo de chuva, acrescentava-
lhe um chapéu de oleado amarelo, preso com trabalhos de madeira em vez
de botões. Fumava um cachimbo de cerâmica capaz de asfixiar um porco e
dormia com uma camisola de flanela com bordados no peito e em volta dos
punhos.
Tinha três imediatos sob suas ordens, um contramestre e um
carpinteiro, nove maquinistas, o número usual de graxeiros e de auxiliares,
e a tripulação costumeira de todos os navios de sua classe.
A lista das cidades natais do pessoal incluía todos os portos de relativa
importância das Ilhas Britânicas e alguns de outros países. Havia um
O'Reilly e um Owen na casa das máquinas e, ao lado de um Mac Donald e
um Trevelyan, a tripulação gabava-se de possuir um australiano chamado
Dingo Smith, um americano de pernas tortas e cara de cavalo, natural de
Galveston, e um norueguês com o nome de Dutch.
Dutch era de aparência inverossímil. Homem gigantesco, que tinha
navegado pelo cabo Horn num veleiro de velas redondas. Seus dedos eram
como ganchos de botalós e ele erguia uma defensa de cortiça com a mesma
facilidade com que outro qualquer levantava uma bola de tênis. Não sabia
ler nem escrever e, quando em terra, parecia perdido e desnorteado, até
mesmo patético, apesar de sua avantajada estatura, porém, a bordo do
navio, achava-se em seu elemento e possuía conhecimentos e experiência
bastantes para formar uma biblioteca. Era, há muito, o homem mais velho
da tripulação.
O mais moço de todos era o jovem camareiro Scruffy Peacock, de
apenas dezesseis anos; e, logo depois, vinham os aprendizes Gib Sparling e
Bull Barlow. Gib era marinheiro de primeira viagem e, conquanto
começasse a adquirir verniz de marujo e alguma experiência

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de marinheiraria. era ainda um tanto verde. Bull, ao invés, estava no seu
último ano de aprendizado. Com sua maneira calma e reservada, tinha dado
duro, e o Old Man 1, que sabia reconhecer o merecimento quando o
encontrava em seu caminho, tinha-o ajudado bastante. Em conseqüência,
ele sabia de cor os manuais. Construção naval, estabili dade. governo do
navio, cargas e sua conservação, instrumentos, meteorologia, navegação e
marinhagem tinha tudo estudado; e, em teoria pelo menos, estava
preparado para receber o grau de segundo imediato quando chegasse a sua
hora.
Em alto mar Bull fazia a vigia com Slade, o segundo imediato, porém,
quando o navio manobrava para entrar num porto, ou dele sair, sua função
consistia em permanecer no telégrafo ao lado da casa das máquinas e
registrar as ordens do leme, as posições, as distâncias e outras coisas que
tais, no diário de bordo. Tinha descido aquela tarde ao refeitório para tomar
chá e achava-se sentado na vasta e arejada câmara a estibordo da ponte,
com o ouvido fito no apito do imediato que devia chamá-lo quando viesse a
ordem de levantar ferros.
Gib, aprendiz ainda no estágio de polir metais, esfregar o convés,
retocar a pintura e raspar a ferrugem, estava encarregado de trabalhos
diurnos e não tinha naquele momento nenhuma tarefa especial. Estava
sentado numa cadeira giratória praticando uma falcaça à inglesa 2 no
chicote de um arrebém 3 que havia recebido do contra-mestre. A coisa não
ia lá às mil maravilhas. Tinha conseguido cochar 6 os dois primeiros
cordões e, com a língua esticada até a ponta do narizinho arrebitado,
tentava descobrir onde deveria meter o terceiro cordão.
— Pelo amor de Deus, Bull! disse ele desanimado. — Esta coisa está
me esgotando a paciência. Onde meto agora esta ponta?
Bull grunhiu. Era um tipo grandalhão e seu apelido lhe assentava
como uma luva. Seu peito era largo e profundo, seus ombros reforçados
com pesada musculatura, e seu pescoço curto e taurino. Sobre ele a cabeça
parecia pequena. Se bem que tivesse feito dezoito anos poucas semanas
antes, iria talvez crescer muito, ninguém a bordo podia

1 Velho Homem. (N. do E.)


2 Trabalhofeito no chicote (extremidade) dos cabos (cordas) para evitar que se
descochem. (N. do T.)
3 Cabo velho, usado noutro trabalho. (N. do
T.) Torcer um cabo. (N. do T.)
e
9
medir-se com ele em vigor, exceto talvez o Dutch, que nunca,
entretanto, o havia experimentado. Seus cabelos eram de um ruivo
escuro, avermelhado cor de ferrugem e plantados como caracÓis
cerrados na sua testa larga. Tinha olhos calmos e plácidos, a boca
grande com lábios levantados nos cantos, e possante mandíbula. A
única coisa que faltava para ser um verdadeiro touro era saber mugir,
pois Bull não era o gênero de camarada que faz estardalhaço e deita
falação. Era tranqüilo e de fala doce, e tinha o hábito de ouvir as
coisas e mastigáIas longamente antes de responder ou dar palpite; de
fato ele preferia ouvir a falar.
Por cima e por baixo ! — disse ele enigmaticamente.
— Já sei, já sei ! Você já me disse isso dez vezes e é o que estou
tentando fazer; mas parece-me que errei um dos nós ou então o
contramestre me deu uma charada chinesa para resolver, em vez do
chicote de uma espia 7 Bull mostrou-lhe como devia fazer e, depois,
encostou-se no canapé espichando as pernas compridas.
Aqueles dois não se pareciam em nada, fisicamente ou sob
qualquer ponto de vista. Gib era atarracado, tinha cabelos alourados e
cara sardenta. Era de natureza irrequieta, movimentos e reações
rápidos, e falava como um disco de gramofone. Às vezes ele tinha a
impressão de que Bull era o espírito mais lerdo que ele já conhecera.
Não podia compreender por que razão aquele marmanjo nunca se
entusiasmava ou se excitava com nada neste mundo, e vivia dia após
dia aceitando todas as coisas como elas se apresentavam. Quanto a
ele, embora adorasse o mar, achava a rotina de bordo um tanto
monótona e estava à procura de algo para se distrair. Desejava
aventuras, movimento e novidades; ao passo que Bull não se
importava que um dia fosse igual ao outro, nunca estava aborrecido e
parecia preferir que as coisas assim fossem. O resultado disto tudo era
que Gib não tinha grande estima pelo seu companheiro de quarto.
Gostava bastante dele e entendiam-se às mil maravilhas; porém, no
íntimo, chegava à conclusão de que Bull, conquanto não fosse
exatamente retardado, estava longe de ser o gênero de indivíduo que
vai longe ou sobe na vida.
Tendo acertado a mão, finalmente, terminou a falcaça sem dizer

Cabo de amarração. (N. do T.)


IO
nada, o que constituía um verdadeiro triunfo. Reclinou-se para trás e
tornou: Quais são as novidades, Bull? Vamos, não fique de boca
fechada como um molusco. Despeje !
Não há novidade nenhuma.
Ora, vamos! Você permaneceu no convés a tarde toda; oficiais
de marinha e outros manda-chuvas indo e vindo continuamente. Com
essas duas asas de pote que chama de orelhas, deve ter ouvido alguma
coisa.
Nem uma palavra.— Bull abanou a cabeça. — Sei apenas que
vamos zarpar à noitinha.
Mas isso eu já sei. Ouvi dizê-lo na cozinha. Gostaria de saber
para que lado nos atiramos.
Terá de continuar fazendo conjeturas. — Bull deu um pulo do
canapé e pegou o gorro no momento em que o apito estridente do
imediato penetrava pela vigia. — Não se esqueça de que estamos em
guerra.
Obrigado pela lembrança . — bradou Gib com ar sarcástico;
porém Bull já subia a escada da coberta inferior.
Na verdade era impossível a Gib ou a qualquer outro no Cape
Wrath esquecer, nem que fosse por um instante, que estava em
guerra. Além dos canhões, que pareciam deslocados e até certo
ponto irreais a bordo de um navio daquela classe, não havia por ali
sinais dramáticos do estado de guerra; porém, por serem marujos,
viam por toda parte sinais de guerra. Todas as vigias estavam
vedadas com anteparos; as portas de todas as dependências e dos
corredores estavam providas de dispositivos que apagavam
automaticamente as luzes interiores quando se abriam; os barcos
salva-vidas estavam pendurados com os turcos 1 para fora e prontos
para serem arriados e todos os homens tinham coletes de salvação
constantemente ao alcance da mão.
E não era só isso. A disciplina a bordo do petroleiro em alto-
mar continuava como de costume. A velha rotina familiar de
trabalho, refeições e descanso continuava. Havia vigias e "dias de
manobras" e, depois, bate-papos e descanso ao sol ou na penumbra
confortável de alguma cabina. O cozinheiro ainda enfornava pão

1 Peças deferro voltadas à borda do navio para içar ou arriar embarcações"N. do


T.)
um dia sim, um dia não, e o ajudante da cozinha descascava batatas
o dia todo; o ime-

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diato tomava a altura das estrelas pela manhã e Old Man a altura do
sol ao meio-dia. Porém, além disso, havia agora exercícios de
artilharia e vigias contra os submarinos. E havia também outras
novidades, menos evidentes, porém igualmente importantes. Nenhum
lixo era arremessado ao mar; todo mundo se deitava vestido, e se um
camarada usava dentadura, dormia com ela no bolso. Em resumo, todo
mundo estava pronto, a qualquer instante do dia ou da noite, a lançar-
se numa desesperada luta pela sobrevivência.
O cunho estranho de tudo isto era que, apesar de todos esses
preparativos, não havia a bordo sinais exteriores de tensão. Talvez os
vigias fossem mais atentos e suspicazes; talvez os olhos dos homens
que trabalhavam no convés perscrutassem o mar com mais freqüência
e menos displicência que de costume. E nada mais. Não se iludiam a
respeito do que os ameaçava — os submarinos, os corsários da
superficie, os bombardeiros Fokke Wolfe —; sabiam perfeitamente
que o inimigo estava à espreita. Porém, homens que não somente
corriam os riscos normais das viagens marítimas, mas aceitavam, além
disso, singrar as planícies líquidas do mundo fazendo viagem após
viagem em cima de quinze mil toneladas de produtos petrolíferos
altamente explosivos, não se acham facilmente intimidados. E, além
disso, o Cape Wrath era o seu mundo e, sua tarefa, manobrá-lo de
porto a porto, e eles prosseguiam na sua faina como de costume. Por
outro lado possuíam aquele sentimento íntimo a respeito do tempo,
peculiar aos marinheiros; para eles só importava o momento atual; o
dia de ontem era esquecido e o de amanhã fugia-lhes às cogitações.
Saberiam enfrentá-lo com tudo o que lhes reservasse, quando chegada
a hora.
O petroleiro já tinha deixado o golfo do México e, embora ainda
houvesse a possibilidade de um submarino estar rondando as costas da
América, ele tinha ido ao encontro do comboio sem nada topar de
ameaçador.
Por essa razão, embora pretendessem considerar o fato
despreocupadamente, como era de seu feitio, toda a tripulação se
sentia grata. A tranqüilidade da viagem propiciara aos membros da
tripulação que faziam as vigias condições favoráveis para se
adaptarem à vida de bordo, depois da estadia no porto; sentiram
novamente a sensação da noite e voltaram ao hábito de dormir
profundamente quando se apresentava a oportunidade, e de acordarem
instantaneamente, com todas

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as faculdades despertas e funcionando com máxima eficiência. Dera
lhes, também, a oportunidade de verificar os barcos salva-vidas, de
inspecionar os aparelhos e fazer alguns exercícios de tiro e manobras
contra incêndio.
Slade era oficial de artilharia. O segundo imediato era um rapaz
alto e espigado, na casa dos vinte, que trazia sempre a cabeça raspada
ao deixar os portos da sua pátria. Sua teoria era que isto combatia a
calvície. "Como as rosas", explicava ele. "Quanto mais a gente as poda,
melhor elas crescem." Tinha uma teoria contrária a respeito da barba e
nunca tocava o rosto com a navalha durante toda a viagem. Em
conseqüência, os pelos que exibia se achavam exclusivamente ao redor
da boca e das mandíbulas, o que lhe dava um curioso aspecto de coisa
tosca.
Não havia, porém, nada de inacabado ou tosco a respeito da sua
arte de atirar. Como muitos outros oficiais em serviço na marinha
mercante, tinha feito um curso defensivo que abrangia o armamento
sob seu comando e todos os detalhes complicados da navegação em
comboio. Estava a pique de tornar-se perito e incumbia-lhe, agora,
selecionar as turmas de artilheiros entre a tripulação; incutir-lhes a
prática do oficio e treiná-los para atirar caso o navio fosse atacado.
Alguns homens ainda estavam um tanto céticos a respeito da sua
capacidade de consegui-lo.
Se quer saber a minha opinião, isso não passa de asneira !
— disse um dia Dingo Smith enquanto empilhava munição para o
"doze-libras". — Um pouco de açúcar para o passarinho! Olhe só
esse canhãozinho de brinquedo. De que serve isto contra um
submarino com torpedos e canhão de quatro polegadas? Gostaria
de saber ! Eles nos fariam voar pelos ares antes de entrarem no
nosso raio de ação. E, de todo jeito, nós não podemos atirar para a
frente.
Naturalmente, não podemos resmungou Trevelyan, o
Cornualês. — Tem de ser assim porque somos não-combatentes e nosso
armamento é suposto ser apenas defensivo.
Armamento defensivo uma ova! É como se estivéssemos
brincando de escoteiro. Estamos tapeando a nós mesmos, Corny, é
o que estamos fazendo. Fingindo que isto é um vaso de guerra
aposentado em vez de uma velha barcaça petroleira.
Naquela fase da guerra, havia certa razão para o pessimismo de

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Dingo. À medida que o tempo passava, entretanto, as fábricas do
nosso pás e dos Estados Unidos acelerando seu ritmo de produção e
despejando, todos os dias, maior volume de armamentos, os navios
mercantes eram mais bem armados; e com o aperfeiçoamento conúnuo
do sistema de comboios, e a cobertura aérea estendendo-se
diariamente e restringindo a lacuna do Atlântico, os riscos dos navios
cargueiros diminuíam na mesma proporção; porém, naquela época,
tinham de contentar-se com muito pouco e suprir as deficiências de
sua força ofensiva com a perícia náutica, a astúcia e a coragem; acima
de tudo, a coragem.
E os resmungos de Dingo não significavam que lhe faltasse
coragem. Era isto precisamente que ele possuía em abundância.
Acontecia, porém, que não gostava de tapeações.
Todas essas atividades extras agradavam a Gib muito mais do que
polir metais, naturalmente. Estava louco pela oportunidade de ser
artilheiro de um "doze-libras"; porém não havia esperanças. Todos os
postos de combate tinham sido distribuídos no início da viagem. O
Old Man estabelecera então que os dois meninos, como costumava
chamar ao jovem aprendiz e a Scruffy Peacock, deveriam abrigar-se
na sala dos mapas quando soasse o sino de alarma e permanecer ali
escondidos. Gib não se conformava com isso e queixava-se
amargamente.
— Olhe aqui, Mister Slade — disse ele, cercando o segundo
imediato no convés. — Quando deixarei de ser um garoto?
Quando aprender a lavar as orelhas, creio eu.
Ora, bobagem! Não estou brincando. Não é divertido eu ficar
escondido enquanto todos os outros se divertem e fazem jogos.
Não seria, tampouco, brincadeira se você tivesse a cabeça
partida por um estilhaço de metralha ou as tripas costuradas por uma
saraivada de metralhadora, esteja certo — retorquiu Slade. — Você
recebeu ordens. Conforme-se com elas.
Mas quando se trata apenas de exercícios não poderei tomar
parte?
Não, não pode, seu teimozinho sardento de nariz arrebitado.
Um exercício nada significa se não for feito com seriedade. Todos têm
de se comportar como se se tratasse de uma situação real. Incluindo
você.

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Gib tinha reassumido sua tarefa de brunir metais e matutava sobre
a injustiça da sorte. Desde que deixara o golfo nutria um
descontentamento íntimo, e este voltou-lhe à mente naquela tarde ao
largo de Halifax. Olhando mal-humorado para fora do porto, escutava o
marulho do navio, que cortava as águas, e invejava a liberdade de
movimentos conferida a Bull pelo fato de ser mais velho que ele. Não
compreendia, entretanto, a lógica da sua situação. Que importância
tinha o fato de ele ser mais moço? — perguntava a si mesmo com
veemência. Estava embaraçado, e, tivesse ele dezesseis ou sessenta
anos, tinha o direito de fazer parte do navio e correr os mesmos riscos
que o resto da chusma. Como poderiam Slade e o Old Man saber o que
ele valia já que não o haviam experimentado? Ele era esperto, tinha os
pés bem plantados na coberta e a vista aguçada; e estava ali para
aprender. O menos que poderiam fazer seria pô-lo à prova. Etc., etc.
Enquanto isso, na ponte de comando, Bull estava de pé ao lado do
Old Man. A âncora içada e os motores girando moderadamente, o Cape
Wrath arfava, singrando para alto-mar. A grande baía estava cheia de
barcos e todos eles em movimento. Era um espetáculo capaz de mexer
com o coração de qualquer marujo.
Meio leme! — bradou o Old Man. — Assim. Toquem o motor a toda
!
Bull acionou o telégrafo e a campainha tocou para acusar o
recebimento da ordem. Em seguida, enquanto anotava as horas, viu o
imediato subir a escada para ficar de quarto.
Olá, Barlow ! — disse o Old Man enquanto se afastava depois
de entregar o posto ao imediato. — Por que essa cara tão contente?
Bull arreganhou os dentes.
Estou contente, senhor?
— Está. Parece até um cachorrinho abanando duas caudas.
Deve ser porque estamos de partida novamente, senhor. Sinto-
me sempre satisfeito nessas ocasiões. E, além disso, parece que vamos
fazer uma boa travessia.
— Não sou tão otimista quanto você. — O Capitão Holroyd
cerrou um pouco as pálpebras debaixo das sobrancelhas hirsutas e seus
olhos cinzentos relancearam o céu e a superficie das águas. O
barômetro estava alto e o vento soprava de nordeste. A leste o céu
lím15
pido se obscurecia, pois o sol já se havia deitado; porém acima do
continente, a oeste, onde ele mergulhara, o arrebol ainda vislumbrava.
O brilho tinha desaparecido e o crepúsculo, que passara do carmesim
para uma tonalidade rósea, cedia lugar agora a um matiz verde
iridescente. — Claro demais para esta época do ano. Temos um longo
caminho a percorrer e haverá muita camisa ensopada a bordo antes de
aportarmos, não duvide.
O Capitão Holroyd desceu a estreita escada que levava à sua
cabina e Bull esgueirou-se para a sala dos mapas. Preencheu o diário
de bordo e, depois de arrumar cuidadosamente a mesa dos mapas já
arrumada, permaneceu de pé por alguns minutos na porta,
contemplando os navios que começavam agora a formar colunas.
Petroleiros e pequenos cargueiros, navios pesqueiros de longo curso e
transatlânticos ainda apresentavam maravilhoso espetáculo, se bem
que com a terra tornando-se nebulosa, à ré, e a vastidão do oceano
envolvendo-os por todos os lados, o comboio já tivesse perdido algo
da sua majestade. E, subitamente, aos olhos de Bull aqueles navios
pareceram perdidos, terrivelmente solitários e indefesos. Talvez,
pensou com seus botões, era apenas a luz incerta e tremeluzente que os
amesquinhava mas não pôde deixar de se perguntar quantos deles
chegariam ao seu destino.
Preocupado com aquele pensamento, fez o relatório ao imediato,
descendo depois para seu alojamento, onde Gib, matutando sobre a
injustiça da sorte, estava à sua espera.
Você sabe, Bull — disse ele —-, que isso não é justo.
O que não é justo?
— Esta farsa do Old Man — disse Slade apoiando-o. — Você
sabe o que eu quero dizer e está tratando-me como criança. Você tem
somente dois anos mais do que eu. Por que deve você participar de
tudo ao passo que eu sou excluído? Que importam dois anos de
diferença? Quero fazer alguma coisa, e não ser atirado para um canto e
ficar por aí à toa. Essa guerra é tarefa minha tanto quanto de qualquer
outro.
Pode tomar o meu lugar ----- respondeu Bull laconicamente.
Sem nenhuma restrição. Eu preferiria ser um aprendiz vivo do que
um herói morto. Mas não se preocupe. Teremos ainda pela frente
muita luta e maus bocados, e você terá a sua parte também.

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Considerando-se a situação, essa profecia era fácil de fazer e
Bull sabia disso. Mas o que ele ignorava, enquanto o navio sulcava
as águas para enfrentar a vastidão do Atlântico com todas as suas
incógnitas, era quão cedo suas palavras se tornariam realidade, para
todos eles.
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CAPÍTULO 2

DISCIPLINA, VIGILÂNCIA E CORAGEM

primeira noite no mar foi calma e, quando Bull subiu à


ponte antes das doze, no dia seguinte, o tempo continuava bom. O mar
estava calmo e o Cape Wrath gingava preguiçosamente sob o impacto
de vagas que se deslocavam levemente do norte. Ao registrar a posição
sentiu-se um pouco embaraçado por uma tênue neblina que velava o
horizonte; apesar disso, a posição por ele registrada conferia
perfeitamente com a de Slade e, por isso, iniciou o período de quatro
horas de vigia satisfeito com a própria pessoa.
Conquanto a responsabilidade recaísse sobre Slade, Bull gostava
de sentir que era mais do que um simples par de olhos na ponte de
comando e fazia questão de estar a par de tudo o que acontecia. Anotou
a posição do barco na formação, registrou-lhe o rumo e a velocidade,
observou a escolta, permitindo-se, em seguida, descansar um pouco e
relancear os olhos em derredor.
O petroleiro navegava a estibordo do comboio e, a bombordo, Bull
enxergava navios a perder de vista. Formavam sete colunas de cinco
unidades cada; trinta e cinco barcos ao todo, descrevendo um vasto
retângulo. O navio que seguia na frente do Cape Wrath era um cargueiro
de dez mil toneladas; na sua frente ia um velho navio mercante de casco
chapeado cuja tripulação, a julgar pelo costado enferrujado e a chaminé
carcomida pelo sal marinho, se havia esquecido do que era pincel ou
pintura; na sua frente singrava outro petroleiro, e, guiando a coluna, uma
usina flutuante de processar baleias. As demais colunas eram
constituídas de maneira semelhante.
-—- Espetáculo surpreendente, não é mesmo? — disse Slade.
— Sim — tornou Bull. — Mas o que não consigo
compreender é por que esses navios se acham todos misturados.
Sempre pensei que os comboios obedeciam a certa organização.

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E é o que acontece. Não é por mero acaso que nos achamos
na cauda da coluna e que aquela fábrica de sabão flutuante é o guia.
Os rapazes dos escritórios em terra estudaram a colocação de cada
navio no comboio muito antes da nossa partida.
Mas como assim? — perguntou Bull. — Não consigo descobrir
nenhum sistema ou planejamento na formação deste comboio.
-— Vários fatores são levados em consideração. Por exemplo, a
natureza da carga transportada pelos navios, a velocidade máxima de
cada um deles. e sua capacidade de manobrar rapidamente quando
atacados; leva-se em conta, igualmente, o gênero de armamento de
que dispõem, e. acima de tudo, sua vulnerabilidade.
Bull franziu o sobrolho. — Isto eu não entendo.
Ora — explicou o segundo imediato ——, o navio carregado
de lã ou de algodão continuará a flutuar mesmo com o casco
arrombado; ao passo que outro carregado de minério encher-se-ia de
água como uma tina furada e soçobraria em poucos segundos. Por
essa razão colocam os navios com cargas leves do lado de fora para
prote-
ger os outros.
E que me diz dos petroleiros? Não são eles vulneráveis?
Não sei. Talvez sejam considerados como sacrificáveis! —
Slade sorriu. — Na verdade, entretanto, dispomos de mais reserva de
flutuação que qualquer outro tipo de embarcação. Se formos
arrombados a carga flutua enquanto a água penetra, e, embora
aumente um pouco o calado, continuaríamos a navegar enquanto ele
não se desintegrasse. Naturalmente, se fôssemos atingidos em cheio,
poderíamos voar pelos ares com estrépito, porém teríamos iguais
probabilidades de queimar lentamente como uma tocha. Seja lá como
for, do ponto de vista dos outros barcos, é vantajoso colocar-nos do
lado de fora da formação.
— Compreendo o que quer dizer — tornou Bull com ar
pensativo, virando-se em seguida para contemplar novamente a frota
do comboio.
Havia apenas dois navios de escolta, e nenhum deles era
propriamente um vaso de guerra. A tarefa de proteger e guiar o
comboio incumbia principalmente a um cargueiro transatlântico
armado. Tinha sido construído para o transporte de emigrantes e
percorrera durante

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muito anos a rota da Austrália. Seus dias de fastígio pertenciam ao
passado. Possuía, porém, boa velocidade e teria papel mais importante
ainda a desempenhar. Tinha sido despojado de toda a palamenta
supérflua, naturalmente, e somente sua estrutura básica fora
conservada. As cobertas tinham sido reforçadas para sustentar canhões
de seis polegadas que constituíam seu principal armamento, e
modificações lhe tinham sido introduzidas para transformá-lo em navio
de guerra; porém, fundamentalmente, continuava sendo o que fora
desde o início e toda a sua camuflagem não lhe alterava a natureza.
Para auxiliá-lo havia uma traineira armada com cargas de profundidade
e canhões antiaéreos leves.
Levando-se em conta o inimigo que tinham de combater, a
importância de suas armas, a crueldade e reconhecida brutalidade
de suas tripulações bem treinadas, essa escolta para trinta e cinco
navios era, evidentemente, muito inadequada. Ninguém ignorava
esse fato, e, sabendo exatamente o que tinham de enfrentar, não
poupavam esforços para contrabalançar sua debilidade.
Os regulamentos a respeito de black-out 1, a emissão de fumaça, e
a proibição de jogar detritos ao mar eram rigorosamente observados. A
pilotagem dos dois navios era tão perfeita quanto humanamente
possível. A fim de conservar sempre a mesma marcação no comboio, a
velocidade de cada navio era constante e cuidadosamente controlada.
Os canhões estavam sempre de prontidão para entrar instantaneamente
em açào e os vigias nunca relaxavam a atenção por um momen-
to sequer.
Disciplina, vigilância incessante, coragem — e a firme resolução
de não se entregarem — constituíam seus principais recursos.
Assim, navegando constantemente a dez nos, avançava o
comboio na tarde calma. A traineira abria caminho na frente, e o
paquete armado ziguezagueava à ré, fazendo às vezes sinais com a
lâmpada de Aldis, aproximando-se às vezes de uma das colunas

1 Escuridão completa (precaução contra bombardeios). (N. do E.)


para bradar alguma piada no alto-falante, afastando-se, em seguida
arfando, na sua infindável vigia.
Enquanto isso, a direção e a força do vento permaneciam cons-

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tantes, ao passo que, imperceptivelmente, a neblina que perturbava Bull
ao meio-dia tornava-se mais espessa e, quando soaram sete horas,
achava-se o horizonte completamente nublado.
Não estou gostando disto nem um pouco! — disse Slade, e
mandou chamar o Old Man, que surgiu bruscamente na entrada da
sala dos mapas como se saísse de uma caixa de surpresas. Vestia as
roupas de bom tempo, e seu cachimbo, quando Bull se lhe colocou
a sotavento, cheirava como uma manta de cavalo que estivesse
ardendo a fogo brando.
Seus olhos relancearam o cenário, e ele tudo resumiu com uma
única palavra. Cerração ! — disse ele, e manifestou seu aborrecimento
soltando uma cusparada pela vigia.
E era cerração mesmo — não formando uma barreira no caminho,
que podia esperar-se transpor rapidamente para atingir de novo a zona
límpida, mas, sim, uma nuvem circundando-os de todos os lados à
medida que avançavam; os limites da visibilidade restringindo-se
gradativamente até que, uma por uma, as colunas do comboio e os
navios desapareceram por completo. Na hora do ocaso a neblina
envolvia os conveses e a superestrutura com grinaldas viscosas, e a proa
do navio transformava-se num vulto sombrio, vislumbrando
momentaneamente para depois desaparecer durante minutos a fio.
Cada navio rebocava à popa uma bóia de neblina, constituída por
pequeno barril encerrado em rede de fios metálicos. Era arrastada na
ponta de um cabo de aço, pulando e saltitando na superficie das ondas à
medida que o navio avançava. A idéia era simples e efetiva até certo
ponto. Teoricamente, a única coisa que o vigia postado no castelo de
proa tinha de fazer era observar e ouvir a bóia presa à popa do navio da
frente. Enquanto conseguisse ouvir o seu ruído ou avistar a sua esteira,
sabia que seu próprio barco conservava a rota certa e sua marcação
relativa na formação.
Todavia, era terrivelmente fácil perdê-la de vista e, quando isso
acontecia, propiciava a todos um período de terrível tensão nervosa.
Navegava o comboio, então, completamente às cegas, continuando,
entretanto, a sulcar para a frente, conservando os navios suas
marcações por meio do som, e do julgamento e do instinto daqueles
que os governavam. Apesar de toda a perícia que demonstravam, dos
cuidados que dedicavam à pilotagem e do constante controle das
rotações

22
do motor para conservarem sempre a mesma velocidade,
desviava-se um navio ocasionalmente, desgarrando-se da coluna.
Ouvia-se, então, bradarem afobadas ordens para o leme quando
os vigias procuravam a bóia através do véu alvacento da neblina,
e havia momentos de expectativa angustiosa até conseguirem
manobrar para entrar novamente em linha.
Durante setenta e duas horas, que pareciam infindáveis, a
neblina persistia. Quando, finalmente, dissipou-se à tardinha do
quarto dia, o comboio tinha perdido sua forma ordenada. As
colunas estavam rompidas. Na frente do Cape Wrath seguia o
transatlântico, e, atrás dele, o velho cargueiro ainda arfava; havia
agora, porém, navios à ré e ao lado do petroleiro e, enquanto
observava a escolta conduzi-los para suas respectivas posições,
Bull sentia-se maravilhado pelo fato de não ter havido nenhuma
colisão. Com certeza diversas vezes haviam escapado por um triz,
sem que tivessem consciência do que acontecia.
Quando o comboio entrou novamente em formação, a luz do
dia já se tinha apagado e navegavam na escuridão todos os navios
em black-out, excetuando-se a luz azul de um bulbo que traziam à
popa.
Foi uma alteração do vento para sudoeste que dispersou a
neblina, e era evidente, pela queda barométrica, que essa
alteração marcava uma mudança de tempo. Durante a noite o
termômetro continuou a cair. O céu, inicialmente límpido e
cheio de estrelas, tornou-se de repente carregado, enquanto o
vento esfriava consideravelmente, até que, depois de meia-
noite, virou, amainou um bocado, soprando em seguida do
norte com violentas borrascas de neve e granizo. Ao nascer do
dia soprava com violência e o petroleiro avançava balançando
contra o vento, com o convés varrido pelas ondas. A neve
cedera lugar à chuva torrencial. O tempo era frio e cortante,
porém ninguém se queixava da falta de conforto.
Até aqui as coisas não vão tão mal assim! — declarou
Corny ao sentar-se à mesa do desjejum na câmara da popa. —
Passamos umas horas dificeis, sem dúvida, mas tudo terminou
e tenho o palpite de que as coisas correrão bem durante esta
travessia. Quem quer apostar dez contra um que não veremos
nem sinal de Jerry por essas bandas do Atlântico? Não será a
primeira vez que isto acontece, vocês sabem.
Pois sim! — O americano, que tinha o apelido de Tex,

en23
cheu uma xícara de café e apalpou o dinheiro no fundo do bolso da
camisa. — Pode segurar os seus cobres, rapazelho. E não se esqueça
de fazer figa. Finalmente teremos de surrar esses chucrutes, porém,
ainda não possuímos os barcos e os canhões de que precisamos e eles
sabem disso perfeitamente. Querem afugentar-nos do oceano
Ocidental enquanto levam vantagem sobre nós. E temos de agüentar
a parada. Mas não se iludam. Existe de um quarto a meio milhão de
toneladas de carga de alta prioridade neste comboio e eles não vão
desprezar uma moamba tão preciosa. Estejam certos.
Dingo Smith agarrou a cafeteira e balançou para trás rio
momento em que a nave, enfrentando uma vaga, alçou a proa para o
céu para depois mergulhar.
Olhem como esta barcaça velha esperneia! Espero que seu
palpite dê certo, Corny. Não seria nada divertido andarmos em barcos
abertos por um tempo destes.
Nem eu gostaria disso — atalhou o Cornualês. — Mas,
primeiramente, eles terão de encontrar-nos e depois do mau pedaço por
que acabamos de passar o que mais me agrada é este mar agitado. Faz
com que me sinta mais protegido, se é que você compreende o que
quero dizer. Restringe as probabilidades do inimigo disse Tex.
Relanceou os olhos em redor da mesa arreganhando os dentes para os
companheiros, largou o cigarro, e estendeu a mão para pegar o
presunto com ovos. — No que me diz respeito, não gosto de especular.
Ainda estamos navegando e esta bóia está muito apetitosa. Vou
degustá-la enquanto estou vivo.
Encheu o prato e a conversa girou em torno das vantagens e
desvantagens da navegação em comboio. Em matéria de assunto de
discussão, este já tinha cabelos brancos; porém, por mais que fosse
repisado, voltava sempre à baila e provocava furiosos e acalorados
debates que não levavam a nenhuma conclusão.
O principal argumento contra esse sistema era que os comboios
navegavam lentamente. Sua velocidade tinha de reduzir-se à do navio
mais lento da formação, tornando os navios velozes mais vulneráveis
do que o seriam em outras circunstâncias. Afirmavam que o melhor
plano consistiria em armar os navios mais rápidos até os dentes; mon
tar canhões na proa tanto quanto na popa, muni-los de lançadores de
cargas de profundidade e canhões antiaéreos verdadeiramente eficien-

24
tes; fazê-los então navegar dois a dois para enfrentarem os riscos dos
submarinos. Dessa maneira tirariam maior proveito da sua velocidade.
estariam mais livres de manobrar, e em condições de proteger-se
mutuamente.
Os que eram a favor do sistema de comboio contestavam esse
argumento com o simples fato de que a maior parte dos navios
afundados não navegava em comboio, e de que até o fim do ano
anterior somente uma dúzia. de perto de seis mil navios navegando em
comboio, se tinham perdido.
Enquanto isso, no alojamento dos grumetes a meio navio, Gib,
desprezando todas as outras iguarias, cortou um pedaço de pão e
cobriu-o de geléia de laranja.
— É estranho, Bull — disse mastigando com a boca cheia —
depois de todas as histórias que ouvimos a respeito de navios
afundados, a gente teria a impressão de que o Atlântico deveria
estar abarrotado de navios naufragados. Porém aqui vamos nós,
navegando há cinco dias, sem toparmos com absolutamente nada;
nem sequer uma caixa de laranjas arrebentada.
— Tivemos três dias de neblina, seu palerma disse Bull.
E, além disso, o Atlântico é muito grande.
— Talvez.— Gib engoliu e deu uma outra dentada. — Apesar
disso, continuo não compreendendo. Nem parece que existe guerra
por aí.
Porém existe.
Sei disso. Não é preciso dizer-me. Li a respeito nos jornais.
Mas tenho a impressão de que estamos navegando há várias
semanas, e se não toparmos com alguma coisa em breve começarei
a cismar.
— A respeito de quê? — perguntou Bull.
— Ora, não sei dizer.— Gib coçou a cabeça e franziu o
sobrolho. — Mas é fácil duvidarmos de que este pequeno grupo de
navios se possa transformar em fumaça de um momento para outro
e nós continuaremos a navegar para toda a eternidade sem nunca
chegarmos ao destino, por não existir nada, do outro lado, onde
pudéssemos aportar.
— Você está biruta ! rosnou Bull. Apesar disso, ele compreendia os
sentimentos de Gib. Era o nervosismo que se apoderava dele. Tinham
embarcado com ânimo belicoso e prontos para

25
qualquer conjuntura; mas nada acontecera. E a espera, a inação,
afetavam-lhes os nervos.
A pausa de espera, todavia, chegava ao fim.
Durante a manhã o céu nublado abriu-se, e embora trapos de
nuvens tempestuosas continuassem a surgir, o sol saiu durante o tempo
necessário para o Old Man e Slade fazerem as observações do meiodia.
Bull também fez a sua, porém o horizonte continuava nublado e ele
ainda não adquirira experiência para manejar o sextante com segurança
em semelhantes condições. A posição que apurara achava-se quinze
milhas distante daquela obtida mediante bússola e odômetro 10 Foi
rejeitada e, tomando a média de suas observações e de Slade, o Old
Man registrou o resultado no mapa. Consignava-se em 50 048'N. 35
0
47'O.
• É isto, ou pouco mais ou menos ! — disse ele, virando-se no
momento em que o maquinista-chefe surgia na porta da sala dos mapas.
— Olá, Chefe ! Que foi que aconteceu?
• Desculpe, Capitão ! O Chefe esboçou um gesto de
complacência. — Sinto dizer que seremos obrigados a parar o motor.
Prosseguiu nas suas razões. Funcionava mal a válvula injetora de
combustível. Poderiam continuar assim mesmo, porém, se o fizessem,
teriam talvez de arcar com sérias conseqüências, e, na sua opinião, era
melhor parar para cortar o mal pela raiz.
• Quanto tempo levará o conserto? perguntou o Old Man.
Duas horas, no máximo.
Pois muito bem, mãos à obra, Chefe. Sei que você não dorme
no ponto.
O Chefe desceu a escada e um sinal foi expedido para o
Comodoro, fornecendo os detalhes da avaria e pedindo licença para
se afastarem da coluna. A licença foi concedida e, agora, estava o
Cape Wrath com o motor parado, balançando ao sabor das ondas. O
paquete armado acercando-se por trás da formação circundou-lhe a
popa e, ao emparelhar-se com ele, seu alto-falante estalou e
trovejou.
Fique de olhos abertos, meu velho. E torça para que nada
aconteça — bradou o oficial de quarto. — Vê-lo-ei novamente ao
amanhecer.

Aparelho para medir a velocidade do navio. Compõe-se de hélice, linha,


volante e contador. (N. do T.)
• Assim o esperamos! — rosnou o Old Man. Ergueu a mão
à guisa de saudação e a escolta dirigiu-se apressadamente em
direção ao comboio que desaparecia na escuridão.
Em pouco tempo o petroleiro achou-se solitário no meio do
mar; depressa demais, na opinião de sua tripulação, pois por fraca
que fosse a proteção oferecida pela escolta, era melhor do que nada.
Tinham consciência disto naquele momento e, bruscamente,
sentiram falta do apoio moral que lhes fornecia a silenciosa presença
dos outros navios.
• Digam o que quiserem dos comboios — tornou Corny —
mas a verdade é que trazem muitas vantagens. Se um dos navios for
atingido, pelo menos seus tripulantes têm a possibilidade de ser
recolhidos pelos outros navios em vez de serem obrigados a bobear
durante duas semanas num barco salva-vidas aberto, remando em
busca de terra firme.
Inerme na vastidão do mar sem sequer o recurso de manobrar o
leme para desviar-se de um torpedo, achava-se o petroleiro indefeso
contra qualquer ataque; e não seria de admirar se um submarino
seguisse na esteira do comboio à espreita de semelhante
oportunidade. Assim, enquanto os mecânicos trabalhavam com
rapidez e precisão capazes de fazer inveja a uma turma de
mecânicos de automóvel de corrida, os artilheiros mantinham-se de
prontidão ao lado de suas armas de fogo e os vigias perscrutavam
incessantemente a superficie sombria do mar.
Lentamente os minutos se escoavam, e o único ruído que se
destacava do gemido do vento e do bramido das ondas era a
respiraçao ofegante dos homens de atalaia, e o clangor das
ferramentas que vinha da gaiúta 1 da casa das máquinas. Uma hora
passou e o céu encoberto abriu-se novamente. Pela fenda das nuvens,
raios de sol feriram diagonalmente o mar, causando apreensão aos
vigias, e não contribuindo para tranqüilizar o resto da tripulação.

1 Escotilha de arejamento. (N. do T.)


Na extremidade da ponte o Old Man, recostado à balaustrada,
fumava seu retido cachimbo. Discutia com Slade a respeito da
calvície como se a única coisa importante neste mundo fosse a
cabeleira do homem. Porém, na verdade, ele escutava, media,
calculava, conside-

27
rando todas as possibilidades e planejando a maneira de enfrentá-
las. Quando finalmente o telégrafo da casa das máquinas vibrou
para indicar que o conserto estava terminado e o motor em
condições de funcionar novamente, não lhe foi preciso olhar o
relógio.
Eles não estiveram dormindo, não há dúvida. Trinta e três
minutos menos do que previa o Chefe — disse ele
encaminhando-se para a bitácula 1 2
Toque para a frente, Barlow. Carregue o leme para
estibordo para darmos uma guinada. O mais depressa que puder.
Sim, senhor! — respondeu o marujo do leme. — Está
carregado para estibordo. Virado até o fim, senhor !
Achavam-se os motores em pleno funcionamento. O
petroleiro singrava na sua rota e Bull começava a respirar
novamente quando Gib, que estivera ocupado em polir a caixa da
bússola na ponte de comando, precipitou-se escada abaixo,
tartamudeando de excitação.
Avistei algo a bombordo, senhor! — bradou ele. —
Avisteio com clareza. Não resta a menor dúvida, senhor. Não
estou inventando nada. Avistei-o sem sombra de dúvida.
Calma, menino ! — disse o Old Man. — Que foi que você
Viu ?
Não sei o que seja, senhor. De início pensei que meus
olhos me iludiam, porém avistei-o por três vezes consecutivas.
Está bem, mas o que era?
Todos eles se encaminharam para a ala da ponte a
bombordo e perscrutaram a vastidão das águas cavadas que se
estendiam até a fimbria velada do horizonte.
— Foi ali, a grande distância e perto da superficie — Gib
apntou —, como um raio de luz. Mas apagou-se agora. Não vejo
mais nada. Talvez fosse uma ilusão de ótica.
O Old Man assestava agora o binóculo, perscrutando a área
sistematicamente.
Que pensa o senhor? — perguntou Slade.
— Não sei. Talvez apenas imaginação. Mas podia bem ser
um reflexo do sol sobre um periscópio acima da superficie. Não
devemos facilitar, Mister Slade. Toaue o cinal de alarma
O segundo imediato precipitou-se para cumprir a ordem
recebida
t2
Coluna que suporta o mortaro. (N. do TO

28
e o áspero, urgente clangor das campainhas elevou-se subitamente
acima do ronco dos motores e do marulho surdo das ondas que varriam
o convés, Portas se abriram com estrondo, e ouviam-se passos
percutirem sobre as chapas metálicas enquanto os tripulantes acorriam
para os seus postos.
Bull, contemplando o Old Man, viu os binóculos percorrerem o
espaço e, insistentemente, voltarem para o mesmo lugar para depois
estacarem. Durante talvez dez segundos a rude figura permaneceu
estática, virando-se em seguida e colocando a luneta nas mãos de Bull.
Pegue — disse ele. Seus olhos são mais aguçados que os meus.
Há alguma coisa nesta direção; que pensa você que possa ser?
Abrindo as pernas para ganhar equilíbrio com o balanço do navio,
Bull olhou na direção indicada pelo Old Man, percorrendo com os
olhos toda a extensão entre o costado do navio e o horizonte. Já havia
quase atingido os limites da visibilidade quando vislumbrou um objeto
escuro alçando-se na crista das ondas do mar. Em poucos momentos
desaparecera novamente, mergulhando, porém ele rapidamente
focalizou a luneta e ficou à espera que tornasse a surgir. Lá estava ele
de novo, e desta vez parecia caminhar em sua direção. Virouse para o
Old Man.
• É uma pequena embarcação, senhor. Tem uma vela-ao-terço,
agitada pelo vento, e traz dois homens a bordo, talvez mais. Um deles
está de pé na popa e o outro abana fazendo sinal com algum objeto.
• Deve ser uma lata de biscoito na ponta de um croque — disse
o Old Man. — Foi o que o jovem Sparling avistou refletindo a luz do
sol. Tiveram a sorte de o sol sair justamente no momento em que
acenavam. Tome nota da sua posição para o caso em que uma rajada
de vento os envolva de neblina, furtando-os à nossa vista; e você,
Sparling, avise Mister Slade na popa. Todo mundo, exceto os vigias e
os artilheiros, para o convés, a bombordo. Preparem um par de redes de
salvamento, o cabo de cadeira e a retenida. Muito bem, senhor !
Gib desceu à procura das redes, e enquanto escorregava pelo
corrimão ouviu a voz do Old Man vibrar acima do rugido do vento e o
bramido do mar, expedindo ordens para o leme destinadas a conduzir
o navio junto da embarcação que tinham avistado tão
providencialmente.
30
CAPÍTULO 3

O PRIMEIRO ATAQUE

colocar um navio como o Cape Wrath — cento e cinqüenta


metros de comprimento e vinte e um metros de boca — ao lado de
pequena embarcação em alto-mar era operação delicada. Requeria
coragem, calma e julgamento, e consideráveis qualidades de
marinhagem, Por tempo normal, todavia, não representaria nenhum
risco para o petroleiro ou sua tripulação. As condições atmosféricas
estavam longe de serem boas, muito embora não representassem
qualquer perigo para um navio daquele porte. Apesar disso, enquanto
observava a pequena embarcação com a luneta, anotando sua posição,
Bull sentiu dentro de si uma sensação de vácuo produzida pelo
pressentimento do perigo. Todos a bordo, exceto o maquinista da casa
das máquinas, achavam-se no convés, naquele momento, empolgados
pela mesma sensação.
A ameaça não vinha do tempo ou do mar, propriamente, mas do
perigo oculto que poderia estar à sua espreita. Constituía prática
favorita dos comandantes de submarinos, depois de afundarem um
navio solitário, permanecerem nas proximidades dos sobreviventes à
espreita de outro navio que pudesse aproximar-se para recolher os
náufragos. Toda a tripulação, desde o Capitão H01royd até Scruffy
Peacock, sabia disto; mas sabia também o que significava para aqueles
homens acharem-se perdidos em meio do oceano num escaler aberto e
decidiram, sem tergiversação, correr o risco do salvamento.
Bull já estava de volta no seu posto junto ao telégrafo antes de o
navio parar. Apesar de comprido e largo, o petroleiro manobrava com
agilidade. Quando se carregava no leme ele guinava como se tivesse a
proa atracada a um poste de amarração, arremessando por cima da
borda golfadas de água esverdeada que era apanhada pelo vento e
arrojada em borrifos cegantes contra a superestrutura.

31
Aliviando o leme — bradou o Capitão. Um jorro violento de
água pulverizada borrifou o quebra-mar açoitado pelo vento, e
fustigou-lhe o rosto como uma saraivada de chumbo miúdo. Cerrou
um pouco as pálpebras e puxou para a testa o chapéu de oleado, sem
pestanejar.
Aproximem-se agora! Cuidado! Assim, conservem essa
marcha !
Com os mastaréus a girar doidamente contra o céu sombrio,
enquanto jogava sob o impacto do mar e das vagas, o petroleiro
acercou-se dos náufragos.
Havia agora uma fileira de homens alinhados ao longo da
balaustrada do convés principal, desde o castelo de proa até a popa.
Em pé, dentro d'água até os joelhos, com os rostos contraídos e o
olhar concentrado, mantinham de prontidão os aparelhos de salvação.
Os vigias, sopitando a curiosidade e resistindo à tentação de olhar
para o escaler que se aproximava, escrutinavam a superficie do mar; e
os artilheiros conservavam-se alertas ao lado de suas armas, prontos
para entrar em ação.
Bull dirigiu novamente o binóculo para a embarcação e
verificou que de fato nela só havia dois homens. O que acenara estava
estendido na bancada do escaler, ao passo que o outro ainda
permanecia de pé, firmado na popa, manobrando o remo de espadela
para conservar o barco aproado para o mar e o vento. Estava sem
chápeu e o escaler já se aproximara suficientemente para se divisarem
dois galões dourados nas mangas da sua jaqueta encharcada, e uma
barba de diversos dias cobrindo-lhe o queixo. Aquele espetáculo fez
com que Bull sentisse um nó na garganta. O homem parecia tão
patético, tão solitário e abandonado, e ao mesmo tempo tão
indomável.
Ali, naquele barco desarvorado, com sua vela flutuando ao
vento, que mais parecia um trapo, e na figura atarracada em pé na
popa, destacando-se contra o céu nublado, achava-se resumido todo o
drama do marinheiro dos navios mercantes durante a guerra: o perigo
constante em que vivia, os sofrimentos e os rigores que enfrentava, a
deplorável insuficiência dos recursos de que dispunha, o sangue-frio e
a louca temeridade com que lutava contra a adversidade.
Parecem achar-se em má situação, senhor — disse Bull
engolindo em seco.

32
O Old Man rosnou:
Não há dúvida, parece que deram um mergulho. Não estão
em condições de fazer grande coisa. Acho aconselhável passarmos
um homem por cima da balaustrada, de prontidão, para pular no
barco e ajudá-los a atracar quando nos aproximarmos.
Erguendo a cabeça por cima do quebra-mar, bradou instruções
aos homens do castelo de popa. Tex levantou a mão para acusar o
recebimento das ordens, arremessando a retenida alçada ao chicote
do cabo solteiro 13. Colocando o seio do cabo sobre os ombros,
passou para fora da balaustrada e agachou-se na beirada do
chapeamento como um corredor que apóia os pés nos blocos de
partida.
O vão se restringia agora, e, cada vez que a embarcação se
erguia na crista de um vagalhão, surgia mais perto e parecia maior.
Estava seriamente avariada a estibordo e cheia de água pela metade.
Está boiando sobre a reserva de flutuação ! rosnou o Old
Man. Avaliou a distância e a velocidade em razão do arrasto do
vento e das águas com olhos perspicazes de velho marujo, e decidiu
rapidamente que o navio trazia bastante seguimento para aparelhar-
se com o barco. — Parem as máquinas ! — bradou ele, e Bull
empunhou a alavanca do telégrafo.
A campainha ressoou pondo paradeiro à pulsação do poderoso
coração mecânico do Cape Wrath. Silenciosamente, como um
grande fantasma pardacento, ele deslizava, perdendo
gradativamente velocidade. Durante um ou dois segundos a
embarcação sumiu por detrás da amurada 1 4 aos olhos daqueles que
se achavam no convés, tornando a reaparecer ao lado do poço
contíguo ao castelo de proa. A figura solitária, em pé na popa,
curvava-se sobre a espadela para abordar o petroleiro; porém, este
ainda levava certo impulso, e o mar, erguendo-se a bombordo
quando o barco adernava a seu lado, projetou-se entre o navio e o
escaler, ameaçando afastá-lo novamente.
Tex compreendeu o perigo e pulou. Caiu como um gato ao pé
do pequeno mastro, tirou o cabo dos ombros e, enrolando-o duas
vezes na bancada, segurou-o com firmeza. O barco estacou com
tremendo impacto e a sua popa mergulhou profundamente no
instante em que ele voltava; porém Tex o dominava. Ao elevar-se
novamente sobre

13
Cabo livre para ser aplicado em qualquer lugar. (N. do T.)
14
Face lateral curva, à proa do navio. (N. do T.)

33
uma onda, abalroou levemente o costado do navio. Um cabo de
cadeira foi-lhe arremessado e ele ficou solidamente amarrado.
Bull tivera razao de dizer que os náufragos se achavam em
más condições. O que se achava estendido ao pé do mastro estava
no último grau de exaustão e, agora que o principal perigo era
afastado, a provação por que tinham passado era sentida também
pelo outro. A vontade que o sustentava vacilava, a espadela
fugira-lhe das mãos, seus joelhos dobraram e ele estatelou-se no
fundo do barco.
Porém agora Dutch se juntara a Tex no escaler que
jogava furiosamente. Os dois juntos conseguiram passar um
cabo ao redor do primeiro dos dois homens e, com presteza,
se bem que com toda a delicadeza e consideração que lhes
permitia a situação, ele foi alçado para o convés superior do
petroleiro. Arrastando-se para a popa do escaler, Dutch
levantou o homem com os galões dourados enquanto Tex
passava-lhe o cabo em redor do peito, fazendo em seguida
sinal para os tripulantes do convés. O corpo inerte foi alado e
já tinha quase atingido a balaustrada quando aquilo que todos
temiam aconteceu. Acima do bramido surdo do mar e do silvo
do vento na enxárcia 1 5 ouviram um apito agudo do vigia
postado na extremidade da ponte a estibordo.
Como todo mundo a bordo, Bull sabia o que aquilo
significava e sentiu o coração subir-lhe à garganta. Virou-se
para trás e ali a uns três quartos de milha de distância do lado
da popa, avistou o rastro de um torpedo que se encaminhava
na direção do petroleiro.
O Capitão Holroyd avistou-o no mesmo instante. Com o
canto dos olhos viu o segundo náufrago ser erguido por cima da
balaustrada, e Dutch, com Tex atrás de. si, subindo pelo cabo que
amarrava o escaler; e, livre de agir, bradou sem perda de tempo:
— Toquem a toda! ordenou a Bull; dando, sem perder tempo para
respirar, ordens para o leme: Bombordo, todo !
O leme já estava carregado um pouco a bombordo para
levar o navio de encontro ao escaler, e, conquanto muita coisa
parecesse ter acontecido desde que os motores pararam, o
navio conservava seguimento. Não fosse isso, não teria tido
salvação. Muito antes que o possante Diesel conseguisse
movimentar novamente a sua massa, o torpe-

15
Conjunto de cabosfixos que seguram os mastros e mastaréus. (N. do E.)

34
do o teria atingido a meio navio. Mas, como ainda levava
andamento, começou a avançar e a ganhar velocidade com o
primeiro giro da hélice, e Bull avistou de olhos arregalados a
trilha sinistra do torpedo passar ao lado do costado do navio, a
menos de um metro de distância.
Nunca tornaremos a escapar por tão pouco . rosnou o Old
Man. Encaminhou-se para a extremidade da ponte e, erguendo a
cabeça acima do quebra-mar, bradou para a tripulação no convés
superior: — Cortem as do barco ! Todos aos seus respectivos
postos !
Ao contemplar o barco que ficava para trás e os náufragos
sendo carregados para o abrigo da câmara onde o camareiro já
estava à sua espera, o Capitão Holroyd retesou-se como se um
grande peso tivesse sido tirado de suas costas. O torpedo, ao invés
de intimidá-lo, tinha despertado sua combatividade. Não teria
ligado muito em outras condições, porém, ser alvejado no
momento em que salvara dois homens da morte era a coisa mais
torpe que se podia imaginar. Era um assassínio brutal e, agora, ao
concentrar a vista no seu navio, seus olhos, debaixo das
sobrancelhas hirsutas, tinham a dureza da rocha e a frialdade do
gelo.
Os motores do petroleiro já pulsavam a toda tôrça, e com o leme
carregado ele virava em volta descrevendo um círculo fechado.
— Cuidado com ele, menino! — disse o Old Man a Bull.
Acredito que não se arriscarão a desperdiçar mais um torpedo
agora que estamos em movimento e que podem ver como
podemos manobrar: o submarino vai emergir para atacar-nos a
tiros de canhão. E vai atacar-nos do lado da proa de maneira
a que não possamos revidar.
Bull olhava atentamente, e constatou que sua boca estava
ressequida. Sentiu contraírem-se-lhe os músculos do
estômago, e todos os tendões do seu corpo estavam tensos
como cordas de violino. Isso era a guerra, com sua selvagem e
amarga realidade, e ele não a apreciava. Não achava que
tivesse nada de heróico ou de nobre, nada que elevasse o
indivíduo ou o pudesse inspirar; apenas a consciência de que
em algum lugar no fundo daquele mar sombrio a morte e a
destruição estavam de atalaia, e que não podiam nada fazer a
não ser esperar para serem atacados. Passou a língua pelos
lábios ressequidos e retesou-se.
Um momento depois acabava a espreita. Fosse porque o
Old Man se enganasse nas suas previsões ou porque o
comandante do sub35
marino calculasse mal a velocidade ou a guinada do petroleiro,
não vieram a saber; porém o submersívelemergiudo lado da
proa,e Bull foi surpreendido com uma descarga de metralhadora
que partia de estibordo no momento em que Corny abria fogo.
Bull agachou-se, instintivamente, e depois virou-se para
olhar o longo vulto cinzento do submarino emergir das ondas.
Ainda se achava bastante afastado e os projéteis luminosos de
Corny não o atingiam. Homens se precipitaram para fora da torre
metálica do submarino para manobrar o seu canhão. Moviam-se
com extraordinária destreza e precisão e, antes de Corny
conseguir alcançá-lo, a primeira granada explodiu sobre a proa do
petroleiro.
O Cape Wrath continuava a guinar para bombordo,
afastando-se do atacante, e a granada não produziu avarias. O
mesmo aconteceu com a segunda e a terceira que vieram em
seguida. Então Bull viu que as balas começavam a ricochetear
sobre o convés do submarino e, simultaneamente, o canhão de
doze libras da popa abriu fogo. A água espirrou além da torre do
submarino, pois Slade alçara demais o tiro, e aquilo começava a
tomar aspecto de verdadeira batalha.
Porém o Capitão Holroyd não nutria ilusões. Achavam-se
numa sinuca. Sempre, naturalmente, existia a possibilidade de eles
acertarem um tiro que desmantelasse o canhão inimigo ou que
produzisse bastante efeito para obrigá-lo a cessar a luta; porém o
armamento do petroleiro não podia competir com o do submarino,
e este já manobrava para ocupar uma posição em que tanto as
metralhadoras como o canhão de popa não tivessem mais raio de
ação. O Old Man tinha consciência disso, e, por ser antes de tudo
um marinheiro, era com sua experiência de marinheiraria que
contava para equilibrar as forças.
— Estibordo, todo ! ordenou ele ao leme. Mudando
bruscamente de direção, o barco estremeceu de ponta a ponta e,
subitamente, adernou. A água verde espumou contra o costado
do navio a estibordo, fustigou a tampa e a válvula do tanque e
trovejou contra a antepara da popa; em seguida começou a
guinar, vagarosamente de início, porém acelerando o
movimento gradativamente. O bombardeio do canhão de popa
e o pipocar das metralhadoras pararam subitamente, quando o
submarino se achou colocado avante do petroleiro.
Santo Deus ! r— rezingou Slade, que via fugir-lhe o alvo. —
Que diacho está fazendo o Old Man? Olhem só para isto,
rapazes !
36
Porém o Old Man sabia o que fazia, assim como o comandante
do submarino. Viu o petroleiro avançar em sua direção, atirou mais
duas granadas que erraram o alvo e, depois, compreendendo o
perigo, submergiu com estardalhaço deixando os artilheiros dentro
d'água.
Um momento depois o Cape Wrath passava por cima dele. O
submarino já estava fundo demais para ser esporeado, porém,
olhando para o lado da popa, Bull viu que ele emergia de novo para
socorrer os artilheiros que ficaram na água.
— Salvou-se por um triz, Barlow; mas aposto que suas pernas
ainda estarão a tremer durante uma ou duas horas depois disto. — O
Old Man sorriu desconsolado, olhando para o céu. — Sentir-me-ia
mais seguro se já estivesse anoitecendo. Faltam ainda quatro horas
para a noite cair e eles virão em nossa perseguição. Passe a ordem
para Mister Slade. Soltem as bóias de fumaça !
Bull transmitiu a ordem e dentro de poucos segundos uma
cortina de fumaça pardacenta começou a elevar-se na esteira do
petroleiro. Quando julgou que este estivesse completamente
escondido por ela da vista do submarino, o Old Man abruptamente
alterou o rumo de quatro graus; em seguida, ziguezagueando com
presteza para confundir mais ainda o inimigo, afastou-se daquelas
redondezas com os motores desenvolvendo toda a potência que os
maquinistas suarentos podiam fazê-los produzir.
Enquanto isto, debaixo da coberta, o camareiro recorrera a Gib
para ajudá-lo a tratar dos náufragos do escaler. Nenhum deles estava
ferido, e com o calor e a comparativa segurança do petroleiro
rapidamente recuperavam as forças. Em seguida, enquanto tomavam
um prato de sopa quente sob as vistas do camareiro, contaram a sua
história.
Eram o segundo imediato e o contramestre do cargueiro John
Cabot. Seu navio tinha sido torpedeado em uma noite de luar e eles
nunca puseram os olhos no submarino que os atacou. Foi atingido a
meio-navio e, partindo-se pelo meio, afundara como uma pedra em
poucos minutos. O segundo imediato, nadando entre os escombros
depois que o navio afundara, encontrara o escaler danificado e se
refugiara nele. Quando o dia nasceu ele tinha recolhido mais nove
homens. Tudo o que restava da tripulação. Soprando o vento de
oeste, decidiram navegar a favor do vento na esperança de
alcançarem terra

38
caso não fossem encontrados em alto-mar e recolhidos. Porém o
tempo os maltratara, e depois de cinco dias as intempéries e o frio
começaram a cobrar o seu tributo. Um depois do outro os homens
iam morrendo até que no nono dia somente dois deles ainda estavam
vivos. Avistaram o comboio naquela manhã, mas ele se achava muito
distante ao norte e, conquanto desviassem o rumo em sua direção
tentando diminuir a distância, ele passou sem avistar os sinais que
faziam. Esse revés quase os liquidou, e lutavam contra o desespero
quando o Cape Wrath avistou-os no horizonte sombrio e singrou na
sua direção.
Isso constituía ocorrência corriqueira naqueles dias — o mar
calmo e tranqüilo; o navio desarmado e desprotegido sulcando as
ondas; e, então, sem aviso prévio, a violenta explosão e a luta
desesperada para a sobrevivência. Gib tinha ouvido, durante a
viagem, a narração de muitas ocorrências similares e sentira-se
entusiasmado com a coragem e a desenvoltura de seus companheiros;
porém tudo isso se passara longe de seus olhos. Agora ele via de perto
um caso semelhante. Olhava para os dois homens e pela primeira vez
compreendia realmente o que significava ser torpedeado. Isso o
deixava regelado. Não podia deixar de perguntar a si mesmo o que
faria se tal coisa acontecesse ao Cape Wrath, que probabilidades teria
de se salvar, e quanto tempo poderia resistir naquela situação. E
quando, naquele momento, tornou novamente ao convés, percebeu
que examinava a vastidão dos mares com olhos diferentes.
Não tornaram a avistar o submarino, entretanto, e parecia que o
petroleiro, por meio de sua manobra decisiva e audaciosa, tinha
iludido a sua perseguição; porém um navio solitário que já tinha
custado um precioso torpedo não era uma presa desprezível para o
comandante de um submarino, e somente quando a noite, encoberta e
negra como piche, tinha caído, achou o Capitão Holroyd que estava
relativamente seguro. Então, com as turmas de artilheiros em seus
postos e os vigias de atalaia, concentrou-se no problema de alcançar
novamente o comboio.
Isto era muito mais simples do que podia parecer. A despeito de
tudo o que acontecera durante aquela tarde, o Cape Wrath, até o
momento em que soltou a cortina de fumaça, não se tinha afastado
muito do ponto em que saíra do comboio. Depois disso, navegando

39
decididamente, tinha percorrido considerável distância, fazendo
ziguezagues na verdade, porém de maneira geral dirigindo-se sempre
para nordeste. Com o auxílio do diário de bordo e os conhecimentos
instintivos que tinha o Old Man da deriva e do arrasto causados pelos
ventos e pelo mar, era possível calcular sua posição com bastante
precisão. Inclinando-se sobre a mesa dos mapas, pôs-se a calcular e
depois mediu as distâncias com a régua de paralelas.
Você pode duvidar — disse ele —, mas calculo que não
estamos a mais de duas horas e meia atrás deles, depois de tudo isto.
Tivemos sorte que o vento espalhasse a fumaça daquela maneira. Se
estivesse soprando em direção contrária, teríamos que nos dirigir para
oeste em vez de leste e seriam escassas as esperanças de alcançarmos
o comboio. Apesar de tudo, não tenho motivos de queixa.
Bull fez um cálculo rápido. A velocidade do comboio era de dez
nós. Se o Old Man tivesse razão, estaria agora vinte e cinco milhas na
sua frente. O petroleiro fazia agora doze nós e meio — recuperando
assim duas milhas e meia por hora.
Isso significa mais ou menos dez horas, senhor.
Sim -— aprovou o Old Man. Devemos avistar a rabeira do
comboio amanhã cedo, ao nascer do dia, a menos que eu tenha ficado
vesgo com a idade ou tenha desaprendido a calcular. É melhor ir se
deitar e descansar um pouco. Bull sorriu.
E o senhor?
Preciso ver como estão aqueles dois camaradas que
apanhamos no mar. Depois disso, se tudo continuar calmo, vou
deitar-me durante uma ou duas horas. Vá rodando e nada de
impertinências.
Muito bem, senhor! — Bull afastou-se, e enquanto descia a
escada todo o cansaço das últimas horas parecia pesar-lhe
subitamente sobre os ombros. Sentia-se vazio, completamente
esgotado; seus pés pareciam de chumbo e foi preciso toda a força de
vontade que ainda lhe restava para fazer com que eles o
transportassem pelo convés e pela segunda escada até o corredor da
sala de estar. Entretanto, quando se estendeu no beliche, não
conseguiu conciliar o sono. Não era a lembrança do submarino que o
apoquentava, mas a dos náufragos. E supondo que Gib não tivesse
avistado o escaler, o que teria acontecido com eles? Por quanto
tempo ainda conseguiriam viver?

40
Teria outro navio avistado os náufragos em alto-mar ou teriam eles
sido arrastados à deriva, perdendo gradativamente a esperança
juntamente com as forças até que o oceano os subjugasse e que
perdessem a vontade de lutar? E enquanto fazia a si mesmo essas
perguntas para as quais não achava resposta, constatou que o ódio
que tinha da guerra e de tudo o que ela significava crescia no seu
íntimo.
Quando tocou o sino ele ainda estava acordado, e dirigiu-se
cambaleando e com os olhos vermelhos para fazer o quarto da meia-
noite.
41
CAPÍTULO 4

'CONSEGUIMOS ALCANÇÁ-LOS ! "

O tempo não melhorou durante a noite. O vento continuou


a soprar com violência com freqüentes rajadas de chuva e de
gramzo; e constantemente o mar e as ondas se tornavam mais
agitados. Fazia frio também; não o frio seco e cortante que tudo
congela, porém a frialdade desolada e penetrante do Atlântico
Norte, que atravessava• os agasalhos mais espessos, congelando até
a medula dos ossos.
Em qualquer outra circunstância o Capitão Holroyd, que era
marinheiro prudente, teria dirigido a nau contra o vento para
diminuir a resistência do mesmo; todavia, estava ansioso por
alcançar o comboio o mais cedo possível e por isso navegava sem
tomar conhecimento das circunstâncias. O navio recebia o impacto
das ondas contra a amurada a bombordo, e retorcia-se jogando
convulsivamente, mergulhando nas depressões dos vagalhões,
levantando-se depois, coberto de água pulverizada, erguendo-se
novamente e permanecendo durante alguns instantes com a metade
db casco fora d'água sobre a crista de um vagalhão, antes de
mergulhar novamente. Não havia descanso nem conforto a bordo,
porém, nessas circunstâncias, ninguém se queixava. Desde a popa
até a proa, toda a tripulação só tinha um pensamento em mente — o
comboio.
Quando poderiam alcançá-lo? Topariam com ele ao nascer do
dia, ou seriam retardados pelo tempo?
E finalmente, quando o dia nasceu com relutância, tiveram de
enfrentar outra possibilidade. A visibilidade era quase tão ruim como se
houvesse verdadeira neblina. O céu era baixo, encoberto de nuvens
negras, azuladas, que pareciam não querer dissipar-se. Das nuvens caía
um fing chuvisqueiro que era arrastado pelo vento horizontalmente,
formando cortinas rodopiantes e esvoaçantes de neblina que eram
arrenlessadas diagonalmente contra o navio e, em certos
momentos, escondiam completamente o castelo de proa dos olhos dos
que estavam na ponte de comando. O mar tornava-se tempestuoso.
Quando seus extensos vagalhões se empinavam, o vento fustigava-
lhes a crista arremessando-os sob forma de saraivadas de água
pulverizada, que se misturava com as gotas da chuva. Não se avistava
o horizonte, ninguém via onde acabava o mar e onde o céu começava;
e, quando relanceavam os olhos pelo círculo estreito que os encerrava,
tinham a impressão de que não conseguiriam estabelecer contato com
o comboio.
Corny tinha o controle da roda do leme das seis às oito. Foi para a
câmara da popa para o desjejum quando Dutch o substituiu às oito
badaladas do sino. Ao entrai no refeitório, os tripulantes fitaram-no
com olhos ansiosos.
— Já avistaram alguma coisa? — perguntou Tex.
Absolutamente nada. Está opaco como uma sebe, lá fora.
Corny sentou-se e pegou a cafeteira. — Na minha opinião, perdemos o
comboio de vista na escuridão.
Ora, que choramingão ! — rosnou Tex. Não seja infantil. Só
poderíamos tê-lo alcançado às seis horas. Já estava amanhecendo
então e não poderíamos deixar de avistá-lo.
Sim, teríamos avistado o comboio caso a visibilidade fosse
boa. Porém nas presentes condições poderíamos passar a um
quilômetro de distância dele sem de nada suspeitarmos. E o que são
mil metros por um tempo como este, podem dizer-me?
Corny não deixava de ter razão. Navegar às cegas, com tão
pequena margem de erro, já constituiria verdadeira façanha por tempo
bom; mas ter de lutar contra um vendaval e o mar agitado contando
apenas com o instinto para avaliar a deriva do navio, era coisa acima
das forças humanas. Tex, entretanto, não concordava.
— Meia milha é mais do que o Old Man poderia errar — disse
ele.
— Pode ser, mas afinal de contas ele é humano. E vou dizer-lhes
mais alguma coisa. Essa penca de barcaças velhas de que andamos à
procura supõe-se que se desloca a dez nós; porém duvido que consiga
essa velocidade nessas condições atuais. Isso significa que deveríamos
ter topado com ela mais cedo do que prevíamos. Aposto como já
passamos na sua frente.
Não diga isto nem brincando! — Tex ergueu sua face cava43
lar. — Ouça o ruído desta geringonça! Parece que está expirando.
Confie no velho Jack Óleo-de-peixe. Ele sabe o que faz.
Na extremidade da ponte, Jack Óleo-de-peixe estava à espreita e
observava. Seu chapéu estava puxado sobre os olhos e seu oleado
amarelo era a única mancha de cor viva em todo aquele quadro
acinzado. Permanecera ali durante toda a noite, sem dar, no entanto,
sinal de cansaço ou ansiedade. O criado trouxe-lhe um bule cheio de
caffe e um sanduíche de carne enlatada. Tirou da boca o cachimbo o
tempo necessário para engolfar o caffe, colocando-o novamente entre
os dentes robustos, para continuar a sua vigia.
Embora não houvesse nada para observar no céu, Bull subiu para
a ponte como costumava fazer depois do desjejum, para as
observações matinais. Deu corda nos cronômetros sob a vista do
segundo imediato responsável por eles, e, depois, relanceou os olhos
pelo mapa que não lhe fornecia nenhuma indicação.
Que pensa o senhor da situação, Mister Slade? — perguntou
ele.
Para dizer a verdade, não sei. Podia ser pior. O barômetro
começou a subir. Talvez o vento mude antes do meio-dia. Creio que
amainou um bocado entre as sucessivas rajadas.
Está certo, mas o que pensa do comboio? E supondo que o
tenhamos deixado para trás, que faremos?
Deixe isso com o Old Man. Você viu como ele deu o contra
naquele submarino. Ora, isso é típico dele. Tem sempre uns truques
escondidos na manga para resolver as situações imprevistas.
Bull saiu da sala dos mapas e ficou no canto da cabina do leme.
Do outro lado da ponte estava o Capitão Holroyd e, ao contemplar
aquela rude figura no seu oleado amarelo, sentiu por ele, subitamente,
grande admiração. O Cape Wrath era um bom navio, solidamente
construído e estável, e a turma que o tripulava era um bando de
batistas de água salgada tão bons como os melhores; porém, era
aquele homem que dava vida ao navio e à tripulação. Ele era o
coração do petroleiro. Sem ele aquele barco não passaria de um
aglomerado comPlicado de inertes peças de metal, e aqueles
navegantes, de um grupo de indivíduos sem coesão. Era ele que lhes
fazia render tudo o que podiam, ele que fundia toda sua perícia,
inteligência, toda sua experiência, transformando-os numa tripulação
eficiente.
Ali, naquele momento, Bull compreendeu mais claramente do

44
que o compreendera jamais o que significava ser comandante de um
navio. Saber os manuais de cor e ter prática de marinheiraria era
apenas uma parte da navegação; acima disso tudo, um comandante
precisava até certo ponto transformar-se nos nervos e no coração do
navio, na espinha dorsal e na força propulsora de todos os seus
marujos.
O Capitão Holroyd andava de um lado para outro na ponte
inclinada e olhava para a bússola. Muito bem, meu amigo ! disse ele.
— Continua o barômetro a subir?
— Sim, senhor — respondeu Bull. — Mister Slade está
convencido de que os ventos vão mudar de direção lá pelas doze
horas.
— Teremos mais do que isso e muito mais cedo. Olhe ali ! — O
Old Man apontou a barlavento. Aquela nuvem. Está se deslocando. O
tempo vai clarear a qualquer instante agora e o sol vai aparecer. Será
ótimo ver o sol novamente !
Bull olhou e viu todo o setor norte do céu mover-se, massas de
nuvens formarem-se, revolvendo-se, separando-se e rolando sob o
impacto do vento. Dois minutos mais tarde a chuva deixava de cair e,
imperceptivelmente, a visibilidade aumentava e se estendia a seis
milhas de distância. Bull agarrou os binóculos e perquiriu os mares
dentro de um arco de quatro graus a bombordo e a estibordo. Não
avistou absolutamente nada.
Continue a olhar, meu filho. Estamos nos aproximando. O
Old Man dirigiu-se ao marinheiro na roda do leme. Carregue no leme
meio p»nto !
Sim, senhor.
O petroleiro estremeceu em toda a extensão enquanto o seu longo
casco deslocava-se no vento e enfrentava um grande vagalhão. Um
lençol de água pulverizada varreu a ponte; o petroleiro ergueu-se,
equilibrou-se um instante para depois mergulhar novamente no seu
novo rumo.
A visibilidade melhorava agora rapidamente, e de repente,
uma réstia de sol, aguada, perfurou as nuvens revoltas. Projetou-se
na frente do navio, de maneira deslumbrante contra o sombrio
horizonte, e enquanto singravam em sua direção Bull viu-a dilatar-
se como um gigantesco feixe de luz até transformar-se num imenso
cone radiante; e bem no centro desse cone vislumbraram algo.
Ajustou o binóculo com dedos subitamente trêmulos de excitação,
e, à medida que a visão clareava, distinguiu a forma do paquete
armado.

45
Bem na nossa frente, senhor ! -— exclamou Bull,
entregando o binóculo ao Old Man. Conseguimos alcançá-los !
O Capitão Holroyd grunhiu e deu uma olhadela rápida. O velho
navio de emigrantes apresentava o costado ao petroleiro, arfando no
seu rumo e ligeiramente desviado dele. Era evidente que guinava
para bombordo ao fazer sua rota em ziguezague, o que significava
que o comboio seguia na frente, ligeiramente para o norte.
Faça funcionar a lâmpada Aldis bradou o Old Man. Dê-
lhe o nosso número e não pare de fazer sinal. Singraremos em sua
direção até ele nos responder.
Porém o Cape Wrath não tinha o monopólio de olhos
aguçados, e apenas terminava Bull de fazer o primeiro sinal quando
o paquete armado os localizava e mudava de direção. Apesar do
mar agitado, rodopiou sobre a popa e aproximou-se arfando do
costado do petroleiro, bastante perto para atirar-lhe um biscoito no
convés.
Bem-vindo seja, capitão! Fez um bom trabalho com um tempo
como este ! — bradou o alto-falante. — Divertiram-se muito?
Um submarino em que você nos deixou. Ataquei-o, mas
conseguiu fugir.
Tenha mais sorte da próxima vez ! -— bradou o oficial de
quarto a bordo do transatlântico. Em seguida, depois de dizer que
desejavam um relatório completo mais tarde, deu ao Capitão
Holroyd o rumo que o conduziria para o seu lugar no comboio, e
afastou-se.
O claro nas nuvens alargara-se e o horizonte se aclarava
gradativamente. Naquele momento as colunas do comboio
tornavam-se visíveis, e quando o piloto na roda do leme tocou
quatro vezes a campainha indicando que eram dez horas, o
petroleiro colocou-se no seu Jugar à ré do navio cargueiro e
diminuiu a marcha para conservar sua marcação.
Naquela altura Bull tinha abandonado a ponte e se achava na
popa, procedendo à inspeção rotineira do odômetro. Era tarefa para
dois homens, e Gib o ajudava. Recolheu umas duas braças de linha,
deixando-as folgadas, aliviando, assim, a tração a hélice do
aparelho, atando o cabo à balaustrada, para que Bull o desengatasse
do volante; feito isso alou o cabo enquanto Gib o enrolava no abrigo
da alheta 1 6. Quando avistou a hélice e certificou-se de que estava
em ordem, repe-
16
Face lateral curva, à popa do navio. (N. do T.)

46
tiram toda a manobra em sentido contrário até a linha achar-se
engatada ao volante e o conjunto girando de novo livremente.
Acredito — disse Gib, limpando as mãos no traseiro das
calças —,agora que estabelecemos novamente contato com o
comboio e nele ingressamos, que chegamos ao fim de toda essa farra.
Não estou assim tão certo como você — respondeu Bull.
Aquele submarino que avistamos ontem. . .
Ora, aquele submarino ! disse Gib rindo-se. — Eles já devem
estar satisfeitos com a amostra. Nós os despistamos direitinho !
Não diga? — tornou Bull franzindo a testa. — Estive
pensando no caso. Como explica você que ele surgisse exatamente no
lugar em que paramos?
Creio que não foi isso que aconteceu. Ele perseguia aquela
embarcação.
Talvez você tenha razão, mas a mim me parece que ele
seguia o comboio. Olhe aqui, não há dúvida de que esses nazis 1 7 são
verdadeiros tugues, mas estão longe de serem débeis mentais. Eles
sabem muito bem que, vigiando as proximidades de portos como
Nova York e Halifax, cedo ou tarde encontram um navio que zarpa à
procura de comboio. Pois muito bem, que faria você se fosse o
comandante de um submarino e avistasse um barco nessas condições?
Eu o punha a pique, naturalmente.
Bull abanou a cabeça. — Se você fosse esperto não faria isso.
Você o seguiria até ele conduzi-lo ao comboio; em seguida você
seguiria na esteira do comboio, e, quando soubesse exatamente a sua
composição e o rumo que seguia, transmitiria pelo rádio essas
informações aos seus comparsas e continuaria a segui-lo até que eles
chegassem e vocês pudessem então fazer uma matança em regra.
— Mas um comboio — contestou Gib — é tão mais poderoso do
que um navio isolado !
Assim como uma esquadrilha de submarinos é mais poderosa
do que um submarino isolado tornou Bull com expressão sombria. —
Reflita um pouco. Um deles faz um ataque simulado para atrair a
escolta enquanto os outros se aproximam do outro lado e fazem uma
razia antes de a gente saber o que está acontecendo.
— Compreendo o que quer dizer. — Gib coçou a cabeça, e em

47
seguida sua expressão iluminou-se. Porém, se esse era o plano deles,
fizemo-los fracassar ao iludirmos sua perseguição ontem.
Não esteja tão seguro assim. Eles sabiam tão bem quanto nós
a rota seguida pelo comboio e a velocidade que levava. Se
conseguimos estabelecer contato novamente, também o submarino
poderá ter conseguido.
Caramba, você tem razão ! — disse Gib perdendo subitamente
o entusiasmo. Ele pode ter navegado debaixo da superficie sem ter de
lutar contra o vento e o mar agitado, como nós.
Era evidente que o Comodoro compartia da opinião de Bull,
pois a escolta, cruzando novamente pela ré do petroleiro, deu a
volta depois de se ter distanciado de sua alheta a estibordo, soltando
uma cortina de fumaça à medida que voltava para trás. Em seguida
foi emitida a ordem de alterar-se o rumo, e as longas colunas de
navios, escondidos agora atrás da cortina de fumaça dos olhos que
poderiam achar-se à sua espreita, aproaram para o norte.
O tempo continuou a melhorar durante toda a manhã e, antes
do meio-dia, o vento começou a soprar de noroeste, transformando-
se em brisa fresca. O mar, entretanto, continuava agitado, e o
petroleiro, navegando com bastante calado 1 8, ainda tinha o convés
varrido pelas ondas. Isso, porém, é comum nos petroleiros, e, com o
sol brilhando e o horizonte desanuviado, não tinham motivos para
preocupações.
As observações acabavam de ser feitas e a posição registrada,
quando a escolta cruzou novamente à ré soltando mais uma cortina de
fumaça. Depois chegou a ordem para alterarem novamente o rumo.
Bull estabeleceu-se na ponte para a longa vigia da tarde. Parecia,
naquele momento, que o comboio tinha despistado qualquer submarino
que porventura estivesse em sua perseguição; estava, porém, longe de
sentir-se despreocupado. Navegavam agora por um dia ensolarado,
embora ele tivesse a sensação de estar andando no escuro; sem nada
ver ou ouvir que o ameaçasse, sentia, entretanto, no íntimo, certa
apreensão sem motivo definido. Estava inquieto, e deu graças a Deus
quando Gib aproximou-se, colocando-se ao seu lado para tagarelar.
— Você sabe, Bull — disse ele —, não é nada mau a gente se
achar em alto-mar. Gosto disto. Porém, às vezes, desejaria que
fosse menos monótono. Onde nos achamos atualmente?
Distância vertical da quilha do navio à linha deflutuação. (N. do E.)

48
As observações do meio-dia indicaram 51 0 32' Norte, 31 0 12'
Oeste respondeu Bull com precisão.
Ora essa ! retorquiu Gib com um sorriso. --—- Isso adianta muito
a um noviço como eu. Não poderá você contar-me essa história com
palavras?
Bem, digamos que isso representa oitocentas milhas a
oestesuloeste de Inishdrahull. Oitenta horas. Três dias, pouco mais ou
menos. se tivermos sorte.
Que quer dizer, se tivermos sorte? O tempo melhorou e tudo
parece que vai bem.
Bull resmungou. Era um hábito que talvez tivesse contraído na
companhia do Capitão Holroyd. A última coisa que desejava era arrefecer
o otimismo de Gib e, por isso, ficou calado. Mas sabia que o trecho de
viagem que tinham pela frente era o mais perigoso de toda a travessia.
Mais perto da terra poderiam contar com proteção adicional — a mais
efetiva de todas, talvez por parte dos aviões da base aérea; porém entre eles
e os limites dessa proteção aérea tão desejada estendia-se a zona que os
marinheiros costumavam chamar de o cemitério.
Gib, que não se dava ao trabalho de escutar, continuava tagarelando.
Estava sempre perambulando ao redor da cozinha de bordo na esperança de
filar alguma comezaina, pois o cozinheiro tinha um fraco por ele. Em
conseqüência, estava repleto de boatos que despejava para cima de Bull,
quando conseguia aproximar-se dele. A oportunidade era maravilhosa e,
aproveitando-a, iniciou o relato minucioso de uma discussão que Tex tivera
com Corny, três dias antes. Era a respeito da diferença entre uma vaca, uma
novilha, um novilho e um touro; porém isso não tinha muita importância,
pois Bull tampouco estava escutando o que ele dizia.
Todos os seus músculos estavam tensos e ele fitava um ponto a
estibordo onde alguma coisa, bem na direção da amurada, lá no horizonte,
chamara sua atenção. Pegando o binóculo, assestou-o e focalizou o objeto.
Que é que há? — perguntou Gib, interrompendo o seu monólogo.
— Um submarino ou um outro bote salva-vidas?
Nem uma nem outra coisa. É um vaso de guerra. Está mergulhado
no horizonte mas posso divisar sua superestrutura. Mister Slade! -— Bull
virou-se para o segundo imediato e colocou-hfie o binó49
culo nas mãos. — Qual é a sua opinião? Será aquele vaso dos
nossos?
Slade observou demoradamente e fechou a carranca. — Não.
Grqf Spee ou um barco de sua classe. Um couraçado de bolso com
certeza, e teremos de enfrentá-lo. Toque o alarma enquanto eu
tentarei comunicar-me com aquele velho calhambeque para gado de
duas pernas que chamam de escolta.
Bull virou-se e apertou o botão com o polegar. As campainhas
começaram a soar clangorosamente; e, depois, acima delas, elevou-
se um outro som. Parecia o ruído de dez trens expressos correndo a
toda e saindo juntos de um túnel. Um ruído atroador, alucinante,
transformando-se num silvo capaz de congelar o sangue nas veias.
Agachem-se, seus bobos . — bradou Slade. — Ele abriu fogo
com seus canhões de onze polegadas !
50
CAPÍTULO 5

CENA FANTASMA GÓRICA

e aquela primeira granada destinava-se ao Cape Wrath


ou passara-lhe por cima simplesmente por acaso, não era possível
dizer-se; mas o fato é que escapamos por um triz e ela explodiu pouco
além do seu costado. Ao explodir levantou uma grande coluna de
água. O navio estremeceu como se tivesse ido de encontro a um
recife. O castelo de proa ergueu-se para o céu e ele adernou para
bombordo de maneira que as ondas varreram o convés à ré. Em
seguida, do lugar em que se achava agachado na ponte, Bull viu a
coluna cair, ouviu o retinir da metralha ferir-lhe o costado e o convés
de proa, e sentiu que o navio se aprumava estremecendo de uma ponta
a outra, para em seguida mergulhar para a frente.
A partir daquele momento o tempo estacou e nem Bull nem
ninguém mais a bordo conseguiu jamais explicar de maneira coerente
os acontecimentos.
Uma única coisa era evidente, contudo, desde o início. Estavam
sendo atacados por uma das unidades pesadas da armada nazi; um
navio de guerra bastante rápido para descrever círculos em redor de
qualquer unidade do comboio, mesmo que esta navegasse a todo
vapor, e contra o qual os canhões do navio-escolta não eram mais do
que tiros de estilingue contra um elefante. Era sua intenção,
evidentemente, afundar todo o comboio e pelo visto não desperdiçava
tempo. As granadas de onze polegadas continuavam a chover e, à
medida que o vaso de guerra se aproximava, outros canhões mais leves
começavam a abrir fogo. O ar zunia com os silvos das balas, com o
baque surdo e o estampido das granadas que explodiam. E
milagrosamente, majestosamente, o comboio agüentava firme.
A bordo do petroleiro, toda a tripulação estava a postos pouco
antes de a primeira granada ser atirada, e quando Bull se ergueu após
52
sua explosão avistou o Capitão Holroyd já postado na ala da ponte a
estibordo. Estava sem chapéu, com o cabelos grisalhos agitados pelo
vento, e o cachimbo de cabeça para baixo firmado no canto da boca
voluntariosa. Bull virou-se para relancear os olhos em derredor e
percebeu que Gib estava ao seu lado. Virou-se bruscamente para ele.
Já para a sala dos mapas, você aí! — bradou ele. — E estenda-
se no convés !
Nem pense nisso ! — disse Gib. Seus olhos estavam saltados
para fora das órbitas e Bull viu que seus dentes batiam. — Vou ficar
aqui mesmo.
— Escute aqui, seu traste de olhos esbugalhados! — berrou Buli.
— Já para a sala dos mapas antes que eu te achate a cara até ela
misturar-se com os cabelos atrás da tua cabeça. Vamos andando, dê o
fora, antes que o Old Man o veja aqui.
Gib olhou para Bull estarrecido. Nunca o tinha visto zangado
daquele jeito. Durante alguns instantes hesitou e, em seguida,
agachando-se, esgueirou-se pela ponte mergulhando na porta da sala
dos mapas. Bull postou-se ao lado do Old Man e ficou à espera.
Enquanto isso ele percebeu que o comboio começava a descrever
ziguezagues. Não vira nenhum sinal nem ouvira ordens nesse sentido,
porém adivinhou que Slade, postado na outra extremidade da ponte,
cumpria a sua tarefa e incumbia-se de tudo. Serenamente as longas
colunas de navios tocavam para a frente, guinando em conjunto, ora
para este lado, ora para aquele, conservando-se sempre em perfeita
formação. Era um espetáculo fantástico. As granadas explodiam em
cima e ao lado dos navios, arremessando para o ar colunas de água que
se erguiam como repuxos, obrigando um barco depois do outro a
inclinar-se estremecendo, mas todos iam para a frente e as colunas
continuavam coesas.
Foi então que o navio baleeiro, que encabeçava a coluna do
petroleiro, decidiu subitamente fazer a primeira tentativa fútil de
represália. Estava armado com pequeno canhão avante. Bull ouviu o
seu latido peculiar e olhou esperançoso para o couraçado de bolso que
se achava bem à vista, a estibordo, porém constatou que as granadas
caíam a oitocentos metros do vaso de guerra.
Olhe só para isso ! Você não poderá dizer que nunca
encontrou um otimista na sua vida! — rosnou o Old Man. — Por onde
53
anda o diabo daquela velha balsa cascuda que pretende escoltar-nos?
Achava-se no nosso flanco a bombordo, distanciando-se de
nós quando começou o ataque, senhor — respondeu Bull. Mas ali vai
o baleeiro contornando a cabeça da coluna. Quer me parecer que está
procurando briga.
O baleeiro ! — O Old Man virou-se e arregalou os olhos com
incredulidade. Então seu olhar fuzilou e ele praguejou prendendo a
respiração. — Você tem razão, não há dúvida, o baleeiro vai atacar.
Mas deve estar louco, senhor. Supondo mesmo que consiga
aproximar-se, que pretende fazer com seu canhãozinho de doze libras
no castelo de proa?
Não é essa a sua intenção. Não se esqueça de que está
carregado até a boca com cargas de profundidade. Se conseguir
colocar-se ao lado do couraçado e explodir a sua carga, poderá
inutilizar o Jerry mesmo que não consiga afundá-lo.
Mas isso significaria. . . — exclamou Bull.
Sim, isso mesmo — atalhou o Old Man. — Será o fim para
todos eles. Suas vidas pelas nossas, meu rapaz. Olhe como ele se atira !
Não há dúvida de que aquele pescador que o governa sabe pilotar um
navio !
— Jogando, ofegando, e coberto dos respingos das ondas à
medida que avançava no mar revolto, o barco balançava e arfava em
direção à grande massa cinzenta do atacante. O inimigo com certeza
percebera sua intenção e concentrava todo o fogo sobre o baleeiro.
Uma saraivada de granadas explodia agora em seu derredor. Uma
cortina de fumo e de jorros de água o escondia do comboio; em
seguida, subitamente, bem em seu meio relampejou uma chama
ofuscante, uma montanha de água ergueu-se para o céu, e o baleeiro
desapareceu.
Durante alguns instantes Bull ficou a olhar para o lugar onde o
barco se achava minutos antes. Estava estarrecido ante a coragem
fria e desinteressada que levara os marujos do baleeiro ao seu fim
violento e, ao mesmo tempo, cheio de amargor contra a guerra que
exigira deles aquele sacrificio.
Não havia tempo, todavia, para pranteá-los, ou mesmo para
tentar prestar-lhes o preito de admiração e de gratidão a que faziam
jus. O fogo do couraçado dirigia-se novamente contra o comboio, e
dentro de poucos segundos acertava novamente no alvo.
Era um cargueiro que se achava na terceira coluna que recebeu o

54
tiro; uma granada de onze polegadas a meio-navio, logo acima da
linha de água. Seja porque fora atingido na casa das caldeiras ou
porque se achasse carregado de explosivos, o fato é que toda a parte
mediana do navio se desintegrou e ele dobrou como a lâmina de um
canivete. Durante um instante sua proa ergueu-se verticalmente para o
céu enquanto a popa se dobrava aproximando-se dela, e as duas
extremidades mergulharam, produzindo um remoinho, de maneira
que, quando o navio que lhe navegava na esteira atingiu aquele lugar,
ele já havia desaparecido sem deixar vestígios.
Pobres diabos . — rosnou o Capitão Holroyd. — O único
consolo é que morreram depressa. Não tiveram nem tempo de saber o
que acontecia. Não compreendo bem a intenção daquele Jerry. Estará
ele visando a um navio depois do outro ou simplesmente atirando a
esmo no comboio e contando com a sorte?
A cena era fantástica, tantasmagórica como um pesadelo, e
inspirava todo o terror de um sonho agitado. As nuvens subiam
novamente do horizonte e já tinham encoberto o sol, enquanto o vento
se tornava mais forte trazendo novamente o frio do norte, rasgando e
retalhando o fumo da batalha e arrastando-o consigo. Ao longe, no
flanco da formação, a bombordo, o navio de emigrantes armado tinha
dado meia volta, ao disparo do primeiro tiro, e contornava agora a
cauda do comboio dirigindo-se para o Cape Wrath. Sua lâmpada
Aldis fazia sinais e um conjunto de bandeiras foi subitamente içado
no posto de sinalização.
Slade as conhecia todas de cor.
Lancem as bóias de fumaça! — bradou ele. — Dispersem o
comboio ! Ele vai atacar.
Em torno da popa do petroleiro apareceu o vulto enorme do
velho navio de emigrantes, assemelhando-se a um caixão.
Ziguezagueava como fizera o baleeiro, adernando fortemente
enquanto guinava para um lado ou para outro; porém seus canhões se
conservavam mudos por não se achar o couraçado ainda ao seu
alcance. Em obediência às suas instruções, as colunas do comboio
lançavam ao mar bóias de fumaça. Porém desta vez o vento lhes era
contrário e tornou-se evidente que, a menos que o atacante fosse
detido de qualquer maneira, eles não poderiam prevalecer-se da
cortina de fumaça. Era isso precisamente o que o comandante do
transatlântico desejava —

55
colocar o seu navio, sem proteção de couraça e terrivelmente
vulnerável, entre o comboio e o atacante, para detê-lo numa tentativa
desesperada.
Naquele momento preciso o petroleiro foi atingido a meio-navio.
Isto era a última coisa de que Bull tivera consciência, por período de
tempo que não sabia aquilatar. Parecia que se tinham passado horas.
Todavia ele sabia que se tratava quando muito de apenas alguns
minutos e, talvez, mesmo, nada mais que alguns segundos. Apesar de
sua grande massa, o Cape Wrath parecia que era projetado para fora da
água, adernando em seguida fortemente para bombordo sob o efeito do
impacto. Bull agarrou-se ao estai 1 9, deixou-o escapulir das mãos e caiu
de joelhos. Não ouviu a explosão, porém, com o rabo dos olhos, no
momento em que caía, viu uma coluna de água elevar-se além da
extremidade da ponte de comando. Ela ergueu-se à altura da gávea e
abriu-se em cogumelo. Depois, enquanto ainda adernava, foi atingido
por um segundo tiro à ré, e por um terceiro bem na frente da
superestrutura central. Sentiu o tombadilho erguer-se e dobrar-se sob os
pés e, no momento em que se atirava para a frente, estendendo-se de
bruço, a parte frontal da ponte desmoronou caindo-lhe por cima.
Tinha escorregado na frente da bitácula e isso o deve ter salvado
pois não recebera nenhum ferimento ou mesmo contusão. Apesar de
tudo sentia-se combalido e ligeiramente atordoado, e pareceu-lhe que
permaneceu um tempo enorme naquela posição antes de recuperar a
vontade e a força de se mexer.
Um objeto sólido mantinha-o pregado ao tombadilho e agora
ele percebeu que era a parte fronteira da casa do leme. Recorrendo a
todas as forças que lhe restavam, conseguiu erguê-la sobre os
ombros e dobrar as pernas debaixo do corpo; permaneceu nessa
posição e sentiu que algo mais forte que ele se apoiava sobre o
anteparo. Transpirava como um cavalo e sentia a boca e a garganta
ressequidas. O navio estremecia e oscilava ao ruído da batalha, que
prosseguia furiosamente em seu derredor, enquanto no próprio
navio reinava lúgubre silêncio. Por que razão, perguntava a si
mesmo, não aparecia ninguém para safá-lo dali? Onde estaria o Old
Man? Slade? Onde se achariam os vigias, o timoneiro?

Cada um dos cabos que,fixos na proa, seguram a mastreação. (N. do E.)


56
Sacudindo as gotas de suor que lhe escorriam por sobre as pálpebras,
relanceou novamente os olhos em redor. Bem em frente ao seu nariz a
bitácula se achava inclinada formando ângulo agudo, e percebeu que se
conseguisse arredar os destroços, nem que fosse uma fração de polegada
para a frente, soltando-os em seguida, apoiar-se-iam sobre o suporte da
bitácula que lhes sustentaria o peso, permitindo-lhe safar-se para trás.
Respirando fundo, ergueu novamente o peso e empurrou-o para a
frente como um cavalo que forceja na coalheira. As pontas de seus sapatos
arranhavam as tábuas do tombadilho e foram de encontro à base do
pontalete no abrigo. Isso forneceu-lhe o apoio de que carecia, e, fazendo
mais uma vez força para a frente, deslocou a pilha de destroços para cima
do remanescente da bitácula. Ofegando em conseqüência do esforço
despendido, rastejou com a cara no chão e conseguiu desvencilhar-se.
O espetáculo que se lhe apresentava aos olhos no momento em que se
erguia cambaleante era terrível e indescritível. As máquinas estavam
paradas, e isso explicava o estranho silêncio, enquanto o petroleiro era
embalado preguiçosamente no regaço das vagas. Mas isso era apenas o
começo. Duas das três grandes granadas que o atingiram tinham rasgado
rombos hiantes no seu casco e incendiado a sua carga. O incêndio rugia à
ré e avante; e o mar, ao entrar e sair do casco arrombado, trazia consigo
para fora o óleo inflamado que se espalhava em redor do petroleiro. Este
flutuava literalmente num mar de chamas.
Bull agachava-se quando umg lufada de vento arremessava as chamas
através da ponte. O calor tornava-se insuportável. Crestavalhe os pulmões
enquanto ele lutava com a falta de ar, esforçando-se por não se entregar;
depois, abaixando a cabeça virou-se contra o vento para relancear os olhos
pelo cenário.
A ponte estava completamente derruída — e não era mais do que uma
massa confusa de tábuas quebradas, de espeques retorcidos e de chapas
dobradas; a ala de estibordo erguia-se quase verticalmente; toda a parte da
frente estava abatida como se tivesse sido pisada por pé gigantesco; e as
tábuas do tombadilho dobravam-se em ângulos agudos nos lugares em que
os vaus que as sustentavam se achavam retorcidos ou quebrados. Na cabina
do piloto destroçada a rosa-dos57
ventos e a roda do leme tinham sido arremessadas contra o tabique da
sala dos mapas. No lugar em que se achara sua parte fronteiriça, jazia
agora o mastaréu de proa. Fora este, partindo-se logo acima do cesto
da gávea e projetando-se sobre a ponte quebrada, que prendera Bull no
tombadilho.
Relanceou os olhos além do círculo de óleo chamejante que
circundava o navio. Através da fumaça e das chamas viu que a batalha
tinha deixado o petroleiro para trás. Ao longe, a oeste, o comboio tinha
desaparecido atrás de densa cortina de fumaça contra a qual se
destacava o velho paquete de emigrantes ainda em luta renhida com o
assaltante. Tinha recebido uma tremenda surra. Sua chaminé dianteira
estava caída entre os turcos dos escaleres e seus dois mastros estavam
partidos. Acima da borda do convés principal não apresentava mais do
que um montão confuso de destroços; suas máquinas, porém,
continuavam funcionando e ele manobrava, com seus canhões ainda
atirando.
Depois, pelo vão de duas labaredas, avistou o imediato com a
turma de incêndio manobrando as mangueiras no castelo de popa do
petroleiro, e o atordoamento que se apossara dele desde o estouro da
primeira granada dissipou-se subitamente. Seus reflexos recomeçavam
a funcionar e, recuperando novamente a noção de que o tempo era um
fator vital, pôs-se a inspecionar apressadamente os destroços para ir em
auxílio de seus companheiros.
Dos cinco homens que se achavam na ponte ao seu lado, os dois
vigias tinham desaparecido por completo, e ele supunha que tinham
sido arremessados ao mar pela explosão das granadas; os três outros
ainda ali estavam — o Old Man preso debaixo da extremidade partida
do mastaréu de popa, Slade estendido de costas na extremidade a
bombordo, e o timoneiro estirado como uma bruxa de pano sobre os
destroços da grade da casa do leme. Compreendeu de relance que o
segundo imediato e o marujo estavam ambos mortos. Parecia que o Old
Man tinha sido atingido também, porém, ao virar-se para a sala dos
mapas para saber o que tinha acontecido com Gib e Scruffy Peacock,
ouviu um gemido atrás de si. Bull virou-se rapidamente e num abrir e
fechar de olhos achava-se debaixo da verga partida. Os duros olhos
azuis do Capitão Holroyd fitavam-no na face macilenta e contraída de
dor, quase irreconhecível.

58
Está muito ferido, senhor 9. perguntou Bull.
Não, estou bem. Somente com falta de ar. Essa joça está me
comprimindo a barriga. Se você puder aliviar o peso desse pedaço de
madeira, talvez eu possa safar-me daqui. Vá com cuidado, rapaz.
Não provoque desmoronamentos.
Com o sentimento de urgência que o empolgava agora,
enquanto as chamas se propagavam pela ponte e o calor se
intensificava, Bull obrigou-se a estudar um momento a posição da
verga; depois, escolhendo o lugar, colocou nele o seu ombro, e
levantando a verga o Old Man soltou-se e escapou da sua prisão.
Ajude-me agora a levantar-me — balbuciou ele, pois os
esforços que fizera lhe tinham tirado a última reserva de energia.
Está certo de que não tem nada, senhor? — inquiriu Bull
com ansiedade, ajudando-o a ficar de pé.
Não se afobe, meu rapaz o Old Man apoiou-se à balaustrada
quebrada, ofegando ruidosamente. — Onde está Slade? Bull contou-
lhe tudo.
Compreendo.
Aquele vulto robusto oscilou para a frente e teria caído, não
tivesse Bull estendido a mão para ampará-lo no momento preciso.
Acercou-se em seguida e passou o braço em volta dos seus ombros
largos. — Apóie-se em mim, senhor.
— Está bem; até eu recuperar o fôlego. — O Old Man parecia
achar dificuldade em firmar a vista. Inclinou a cabeça para trás e
olhou para Bull como se a luz se tivesse subitamente apagado. —
Vamos, rapaz ! Quero um relatório. O que aconteceu?
— Três tiros acertaram em cheio, senhor. As máquinas pararam e
o navio pega fogo da popa à proa. Estão colocando as mangueiras à ré,
mas receio que o navio esteja em bem má situação. Não compreendo
que não tenha voado pelos ares.
Isso poderá acontecer de um momento para outro, mas não
percamos a esperança — rosnou o Old Man. — Que fim levou o
comboio?
— Desapareceu, senhor. Atrás de uma cortina de fumaça.
— E o Jerry? E aquele velho barco de gado bípede de costado de
escamas?
— Avistei-os ainda há pouco.
59
E agora? — Amparando ainda ocomandante, Bull espiou por
cima de seus ombros através das nuvens de fumo e das chamas.
Durante alguns instantes elas tudo encobriam, mas ao se apartarem
sob a ação do vento conseguiu vislumbrar novamente a batalha. O
paquete armado ainda flutuava, antepondo sua silhueta desarvorada
ao grande couraçado para proteger o comboio que fugia; porém a
clepsidra 1 esvaziava-se agora rapidamente para ele. Viu seus canhões
fuzilarem mais uma vez, e, em seguida, uma salva dos canhões
pesados do couraçado varrê-lo. Ele adernou sob o impacto, não mais
voltando a prumo, pois no momento em que se inclinava uma
segunda e uma terceira salvas arrombaram-lhe o costado
desprotegido. Continuou adernando até a extremidade dos bordos, e
então, aos olhos estarrecidos de Bull, pareceu derruir-se e dobrar-se
como um pedaço de papelão encharcado. para depois soçobrar.
Ele foi-se, senhor — sussurrou Bull. — E o Jerry. . . rumou
para leste.
Decerto acha que nós também já estamos liquidados. E não
deixa de ter certa razão — rosnou o Old Man. — E o que vamos
fazer com esses meninos?
Caramba ! Tinha me esquecido deles, senhor. Estão ainda na
sala dos mapas. A porta deve ter-se trancado sobre eles, do contrário
já teriam saído.
Tire-os de lá, depois disso tentaremos juntar-nos aos outros
na popa — o Old Man ergueu a cabeça e relanceou os olhos pela
ponte derruída. — Não sobrou nada para nós aqui. Vamos dar o fora
antes de ficarmos cozidos.
Encostando o Capitão Holroyd a um pontalete retorcido do
abrigo, Bull correu para a porta da sala dos mapas. Esta estava como
ele previa, trancada e podia agora ouvir Gib e Scruffy batendo nela
do lado de dentro. Dos destroços que se amontoavam sobre as ruínas
da casa do leme ele retirou uma machadinha.
Afastem-se bradou no momento em que brandia o machado
e a lâmina feria profundamente o painel de madeira de duas
polegadas e meia de espessura. Continuou manobrando o machado
até

1 Relógio de água. (N. do E.)


60
conseguir abrir um buraco na rija teca, suficientemente grande para que
os meninos por ele se esgueirassem.
Saíram afinal, e ficaram em pé no tombadilho, de olhos
esbugalhados e mudos de espanto diante do espetáculo do navio
devastado e em chamas.
— Escutem ! — disse Bull com sofreguidão. — Aqui restam
apenas o Old Man e nós três. O Old Man está ferido. Ele pretende que
está bem, e diz sentir-se apenas cansado; porém sou de outra opinião.
O navio arde tanto avante como à ré; mas custe o que custar
precisamos levá-lo para a popa. Todo o remanescente da tripulação se
acha concentrado nela, e ali está a nossa única salvação. O.K. ! —
respondeu Gib com voz rouca.
E os dois grumetes seguiram Bull até o lugar onde o Old Man
esperava por eles.

62
CAPÍTULO 6
MAR DE FOGO

Old Man parecia sentir-se melhor quando Bull, na


companhia dos dois meninos, voltou para ele. Sua face ainda estava
cinzenta porém não mais contraída de dor. Conservava-se teso agora, e
seu olhar tinha readquirido a energia e o brilho costumeiros. Quando
começaram a afastar-se do local, ele conseguiu dirigir-se sozinho para a
escada que dava acesso à ponte, e Bull teve a esperança de que a
caminhada até a popa seria mais fácil do que pensara de início.
Quando porém dobraram a esquina do salão e puderam relancear
os olhos até o castelo de popa, compreendendo o que os esperava,
sentiu-se novamente sucumbido. Através de grande rombo nas chapas
do convés, bem na frente do mastro principal, saíam chamas elevando-
se até as vergas e o espesso fumo do óleo formava nuvens negras no
céu à sua frente.
Por outro lado, na superestrutura central o ar estava infestado de
vapor de petróleo e do acre cheiro de queimado. Fazia tanto calor que
respirar era um suplício. A pintura dos anteparos estava tostada e
empolada e as extremidades das tábuas do convés começavam a
incendiar-se. Não fosse o vento que inclinava as chamas mandando
através delas lufadas de ar puro e fresco, eles teriam perecido. Por
outro lado sabiam que deviam apressar-se.
Apesar disso o Old Man os deteve apontando para um renque de
baldes de incêndio enfileirado no corredor do salão. Havia quatro deles
contendo pouco mais ou menos sete litros de água.
Despeje um desses baldes na minha cabeça e os outros em
cima de cada um de vocesA — disse ele a Bull. — Não posso
agacharme para fazê-lo com minhas próprias mãos. Vamos, não tenha
medo. Despeje-os em cima de suas cabeças. Teremos mais defesa
contra as chamas se estivermos molhados.

63
O convés principal estava intransitável e a única possibilidade
que se lhes antojava era o passadiço — uma ponte volante construída
de aço e tábuas espessas. Achava-se bastante elevada acima do
convês, sustentada por grossos pontaletes e estendia-se desde o lugar
em que se achavam, através das chamas, até o começo do castelo de
popa.
Desde que deixaram a ponte de comando, o que acontecia na
popa dissimulava-se aos seus olhos atrás das flamas e da fumaça,
embora Bull estivesse convicto, depois de tê-los avistado rapidamente,
de que o imediato e o resto da turma continuavam ainda a funcionar
ali. É verdade que eles não se tinham comunicado com a ponte, mas
isso não queria dizer que não tinham tentado; e muito provavelmente,
do lugar onde se achavam, eles deviam ter a impressão de que todos
os que estavam na superestrutura central ou na proa haviam perecido.
De todo modo, tinham diante de si uma tarefa árdua e ele sabia que
tinham de atravessar as chamas sem auxílio de ninguém.
Havia dois pontos de interrogação na sua mente enquanto
despejava o balde sobre a cabeça. Estaria o passadiço ainda intacto em
toda a sua extensão? E, no caso contrário, poderiam eles transpor
qualquer falha produzida pelo bombardeio ou pelo fogo? Havia um
único meio para obter resposta a essas perguntas. Tocar para diante e
tentar a aventura.
— É melhor eu ir na frente, senhor — disse ele —, o senhor
seguindo no meu encalço, e Peacock Sparling fechando a fila.
— Tem toda razão, meu rapaz — o Old Man aprovou
acenando com a cabeça. — E avançaremos segurando-nos
mutuamente pelas mãos. Abaixem as cabeças, aprontem-se para
pular e acima de tudo não tenham receio das chamas. Não são tão
más como parecem e nós conseguiremos passar através. Todos
prontos? Para a frente, Barlow.
Os primeiros cinqüenta metros estavam desimpedidos.
Enquanto pisava as tábuas do passadiço, evitando tocar-lhe no
corrimão de ferro aquecido quase ao rubro, Bull ouviu a respiração
ofegante do Old Man nas suas costas e perguntou a si mesmo se ele
agüentaria; naquele instante uma brusca mudança do vento
arremessou o fumo denso através de seu caminho e um lençol de
chamas estendeu-se-lhes sob os pés. De cabeça baixa e o braço
molhado na frente dos olhos, Bull tocava para a frente e os outros o
seguiam. Prendiam a respiração a ponto de pensarem que seus
pulmões iam estourar. As pranchas começavam a queimar, e as
línguas de fogo lambiam-lhes os pés; porém o

64
passadiço, se bem que retorcido e amolgado pelas explosões das
granadas, continuava intacto, e, no momento em que pensavam que
seus corpos torturados tinham atingido os limites da resistência, eles
desembocaram no espaço livre das chamas.
Nesse momento, quando Bull enchia os pulmões com aspirações
profundas, o Old Man soltou a sua mão e ele teve apenas tempo de
impedi-lo de cair para a frente. O estado do Capitão Holroyd parecia
melindroso agora e era fácil verificar que a arremetida através do
passadiço lhe tinha esgotado as últimas reservas de energia. Porém a
vontade indômita ainda persistia nele.
Ajude-me a colocar-me a barlavento do castelo — disse ele.
— Sentir-me-ei melhor dentro de um minuto.
No meio dos tripulantes, que de fato pensaram que eles
estivessem mortos, rodeando-os e fazendo mil perguntas, Bull
conduziu e quase carregou o Old Man para a frente do castelo de popa,
colocando-o de encontro à balaustrada. A brisa soprava agora do lado
da alheta e o ar, embora infestado de fumaça, era mais respirável ali.
Era mais fresco em comparação com o que tinham estado a respirar
durante os últimos minutos e, cambaleando sobre as pernas, Bull o
sorvia a plenos pulmões. Enquanto isso, relanceava os olhos em redor.
A popa, a par da ponte de comando, era um monte de destroços
retorcidos e enegrecidos pelo fogo: pedaços de madeira lascada
fumegando, pontaletes dobrados e anteparos derruídos com grandes
rombos na superficie. E, lá embaixo, o convés principal se achava
perfurado em diversos lugares. Ao balançar sobre as ondas, o óleo dos
tanques do navio jorrava através dos buracos formando línguas de
fogo. E bem na frente do mastro principal havia um grande muro de
fumaça e de chamas que ejaculavam e turbilhonavam, tornando
invisível todo o resto do navio.
Com a ajuda de Tex, Dutch e Corny, o imediato ainda lutava
contra o incêndio, porém o esforço era baldado e ninguém duvidava
disso.
Avise o imediato que tenho uma palavra a dizer-lhe
comunicou o Old Man a Bull, tão calmo e tranqüilo como se
estivessem atracados às docas de um porto qualquer, e ele quisesse
comentar as tarefas executadas durante o dia. Quanto a você, Sparling,
chame o chefe dos maquinistas.
Ainda continuava calmo e tranqüilo quando o imediato chegou

65
com as sobrancelhas e o cabelo da testa crestados, e o Chefe,
lambuzado de óleo combusúvel, esgueirou-se através do grupo
formado pela tripulação.
— Primeiro você, Chefe disse ele. Quantos homens
perdeu ?
O segundo maquinista e dois graxeiros, senhor. Não
sei bem dizer o que aconteceu, mas uma granada parece que
estourou no topo da casa das máquinas. Uma massa de
destroços caiu e eles ficaram embaixo. Temos vapor na
caldeira auxiliar, o bastante para conservar funcionando as
bombas indefinidamente, enquanto o navio não voar pelos
ares, naturalmente. Nada posso garantir, mas tenho a
impressão de que os motores principais não foram
danificados. Trata-se apenas dos condutos de combustível.
Devem ter sido estraçalhados. Foi isso que fez o motor parar.
Obrigado, Chefe. — O Old Man virou-se para o
imediato. — O que aconteceu com você, Mister Price?
Além dos homens que estavam com o senhor na ponte,
perdemos o contramestre e o despenseiro chefe.
O imediato passou a descrever os esforços que tinha
despendido para controlar o incêndio. Tinham atacado as chamas
com vapor sob alta pressão das mangueiras armadas, até esgotar-
se o suprimento de vapor. Nessa altura, embora o madeiramento
da popa ainda estivesse fumegante, tinham dominado a situação
naquele ponto; e apoiando-se nessa base para desenvolver o seu
trabalho, tinham atacado o incêndio do convés principal com
jatos de água.
Reservando a instalação de espuma, suponho eu, para
o último recurso? — atalhou o Old Man.
Exatamente, senhor. Mas não poderemos deter as
chamas. Avançam constantemente. A água do mar arrasta a
carga de óleo para fora, esparramando-o por toda parte. E o
senhor sabe. . .
— É verdade. De um momento para outro poderemos
voar pelos ares — o Old Man relanceou os olhos pelo círculo
dos tripulantes expectantes. Aqueles que tinham escapado dos
estilhaços de granada e dos fragmentos que voaram de todos
os lados exibiam no seu aspecto as marcas das chamas, e
estavam alquebrados de cansaço e completamente esgotados.
Coçou o queixo. — Pois bem, meus amigos ! Fizeram o
possível para salvar a embarcação. Ninguém podia ter feito
mais do que vocês fizeram. Porém agora é meu dever pensar
em vocês,

66
e não mais no navio. Mister Price, abandonaremos o petroleiro
imediatamente, enquanto ainda é tempo.
Tomada essa decisão, tratava-se agora de ri)Aa em execução.
Deixando Dutch e seus dois companheiros continuarem o combate
às chamas na retaguarda, o imediato conduziu o resto da tripulação
aos picadeiros dos escaleres para averiguarem o que se salvara da
ação destruidora do bombardeio e do fogo.
Dos quatro botes salva-vidas de aço que o petroleiro trazia à
popa, os dois a estibordo, situados mais perto do cruzador atacante,
e que, por isso mesmo tinham sofrido todo o peso da agressão,
estavam completamente irreconhecíveis. Espatifados e deformados,
pendiam dos turcos com a luz do dia passando por grandes rombos
e rasgões no casco. Aqueles situados a bombordo estavam, contudo,
em melhores condições. Achavam-se tostados e empolados pelas
chamas do lado de fora, com parte da palamenta fumegando,
conservando, apesar de tudo, a aparência de barcos salva-vidas.
Depois de rápido exame, o imediato concluiu que ainda estavam em
condições de serem aproveitados. Virou-se para examinar os
tiradores da talha, mas nesse ponto todos viram-se a braços com
árduo problema.
Embora os escaleres pendessem para o lado de fora, estavam
atracados aos bordos do navio por meio de fundas, contra um pau
de atracação preso às hastes dos turcos. Isto era destinado a impedir
que oscilassem e se chocassem quando o navio jogava. Essa
amarração suplementar estava feita de tal modo que, por meio de
simples golpe de machadinha ou de faca, podia libertar-se a
embarcação a fim de arriá-la. Todavia o imediato percebeu que, se
esta manobra fosse efetuada imediatamente, os cordões das talhas
crestados pelas chamas arrebentariam no momento em que toda a
carga do escaler pesasse sobre eles.
Demos nova olhadela aos barcos a estibordo, senhor — disse
Bull. — Tive uma idéia.
Mas estão inutilizados contestou o imediato. Até mesmo as
caixas de ar estão danificadas.
----- Sei disso. Porém, durante todo o tempo estiveram
colocados a barlavento, e a brisa afastou deles as chamas. Talvez
seus cabos possam ser aproveitados. Se assim for, não teremos
mais que fazer senão removê-los para colocá-los neste escaler.
Caramba, talvez tenha razão ! Depressa, vamos !
67
Todavia, quando conseguiram esgueirar-se através dos
escombros até os picadeiros do outro bordo, verificaram que
somente dois dos quatro tiradores permaneciam intatos.
Muito bem ! -—- disse o imediato. — Vamos transferi-los para o
outro escaler. Quando esse se achar arriado, os que ainda estiverem

a bordo do petroleiro terão de alçar novamente os tiradores,


instalá10s nos outros turcos e arriar o segundo escaler.
Apitaram para a tripulação e enquanto o imediato ia fazer seu
relatório ao Capitão Holroyd, Bull conduziu seus homens para a
tarefa de soltar os escaleres destroçados e desprender os tiradores em
bom estado da cabeça dos turcos.
Não perderam tempo no trabalho; porém, por mais depressa que
andassem, tinham a sensação íntima de que estavam a demorar
demasiadamente. A turma do convés principal, dirigida agora pelo
terceiro imediato, continuava combatendo as chamas, porém debalde,
e, passo a passo, eram obrigados a recuar; de minuto a minuto o ar
parecia tornar-se mais carregado de vapores de petróleo. Nisto
consistia a suprema ameaça. Bastaria a concentração de vapores
petrolíferos numa bolsa de mistura com ar para que uma fagulha, ao
tocá-la, produzisse uma explosão que acabaria por desintegrar
completamente o que restava do petroleiro.
Enquanto isso o Old Man tinha mandado Gib e Scruffy à
procura, nas cabinas destroçadas, de cobertores, tapetes, cortinas —
qualquer espécie de tecido que tivesse resistido às chamas. Traziam
braçadas deles que amontoavam aos pés do Old Man.
No momento em que Bull se arrastava novamente para
bombordo, seguido dos homens que levavam consigo os tiradores
recuperados, viu que a turma que lutava contra o fogo tinha sido
expulsa do convés principal e continuava a luta na frente do castelo de
popa. Perguntando-se a si mesmo quanto tempo lhes restaria ainda,
apressou o passo; porém, embora o sentimento de urgência o
empolgasse agora, controlava-se para proceder com método e não
arriscar-se inutilmente. Os dois escaleres eram de importância vital
para eles, e tinha consciência de que seria muito fácil cometer um
deslize e perder um deles, ou todos os dois.
Quando finalmente o primeiro escaler pendia livremente dos
novos tiradores, jogando levemente ao ritmo do navio e pronto para

68
ser arriado para o mar, ele desceu a escada e foi prestar contas ao Old
Man.
Incluindo-se os dois homens do John Cabot que tinham sido
recolhidos em alto-mar, restavam trinta homens ao todo. Rapidamente
o Capitão Holroyd dividiu-os em duas turmas iguais. O imediato
deveria descer no primeiro barco. Levaria consigo o terceiro imediato,
dois maquinistas, o cozinheiro, o radiotelegrafista, e a metade da
tripulação do mastro de proa. Cada homem devia equipar-se com um
cobertor encharcado de água. Com essa precaução poderia proteger-se
das chamas que a embarcação teria de enfrentar. Levavam também
alguns cobertores sobressalentes para abafar qualquer incêndio que se
iniciasse a bordo do escaler enquanto atravessavam a zona das
chamas.
— Está bem, Mister Price . — rosnou o Old Man quando os
homens tinham formado os dois grupos. — Toquem para a frente. Não
há tempo a perder.
Mas e o senhor? — o imediato hesitava. — Agüentará o
senhor o tempo necessário para se salvar?
— Tentaremos.
Preferiria que o senhor me deixasse essa incumbência. O
senhor não está em boas condições e . . .
— Sei disso — a voz do Old Man tornou-se mais branda. — Mas
esse barco é meu, e meu o privilégio de abandoná-lo por último.
Toque para a frente, imediato.
Carregando seus cobertores encharcados, os homens fizeram fila
na escada e esgueiraram-se para dentro do escaler. Quando já tinham
desvencilhado os remos e estavam preparados para partir e fugir para
salvar as próprias vidas, o imediato ergueu a mão e Bull deu sinal para
arriarem o barco. O escaler pousou suavemente no mar, num pequeno
espaço livre de chamas, onde as águas remoinhavam incessantemente
ao redor da popa do petroleiro.
Os homens estavam de pé para efetuar a tarefa de soltar os
aparelhos de escape no momento em que o barco não mais pesasse
sobre eles, e o escaler afastou-se através do óleo inflamado e os jorros
de fumaça que ficavam para trás.
Mas não tinham tempo de olhar como ia o navio. Os
companheiros de Bull alavam os tiradores como se suas vidas deles
depen69
dessem, e, de fato, era o que acontecia. Quando os moitões 21
inferiores se achavam próximos dos de cima, os tripulantes, que já
estavam trepados nos turcos desengatavam as talhas 22. Estas eram
levadas para o outro escaler e, rapidamente, sem tropeços, instaladas
novamente.
Enquanto isso, o calor no castelo de popa tornava-se insuportável
e todo o remanescente da tripulação se achava agora junto aos turcos
dos salva-vidas. A turma da casa das máquinas tinha apagado o fogo da
caldeira antes de sair e, embora a bomba continuasse funcionando,
tornava-se cada vez mais vagarosa à medida que baixava a pressão.
Eles aproveitavam os últimos jatos de água das mangueiras para
encharcar os cobertores e as roupas com um derradeiro banho; então o
Old Man deu um sinal e, calmamente, com olhos arregalados para o
mar de fogo que tragara o escaler do imediato, eles transpuseram a
borda falsa.
Deixe-me ajudá-lo, senhor — disse Bull.
O Old Man abanou a cabeça. — Você ouviu o que eu disse ao
imediato? Talvez eu seja um tolo sentimental, mas isso significa
realmente muito para mim. Depois de você, menino !
Entrou no escaler atrás de Bull e caiu sentado pesadamente na
popa, respirando ofegante como se o esforço tivesse superado as
suas forças. — Está bem, rapazes — disse ele. — Vão arriando com
cuidado. Estejam prontos para desengatar o aparelho.
Com os homens manejando os tiradores dentro do barco, este
descia rapidamente, e quando os picadeiros 23 do petroleiro passavam
num relance diante de seus olhos Bull viu que o madeiramento já
pegava fogo. Tinham escapado por um triz.
Porém ainda estavam longe de ter conseguido a salvação. No
momento em que a embarcação tocou a superficie, erguendo-se sobre
uma onda, os gatos 2 4 foram desenganchados, e Dutch empurrou com
vigor com o remo de popa. O escaler afastou-se do costado do navio e
penetrou no muro de chamas.
Enquanto ainda se achavam a bordo do petroleiro, parecia-lhes
que o mar se tinha acalmado consideravelmente, porém a impressão
2 1 Peça metálica por onde desliza um cabo destinado a elevar pesos. (N. do
E.) 22 Aparelho deforça. (N. do T.)
23 Peças sobre que assentam os salva-vidas. (N. do T.)
Ganchos deferro. (N. do T.)

70
era muito diversa de dentro do escaler. O Old Man havia fixado
o leme, mas verificou desde logo que não teriam suficiente
controle sobre a embarcação. Ela arfava e jogava furiosamente, e
só a muito
custo os tripulantes conseguiam manejar os remos.
— O remo de espadela, Barlow ! — bradou o Capitão Holroyd.
— É melhor você mesmo segurá-lo. Conserve o barco contra o vento.
Agora, meninos, ponham todo o muque nesses remos. Remem para
salvar a pele !
Um momento depois as chamas se elevavam em redor do
barco, lambendo as forquetas dos remos e as bordas, espirrando
para dentro com todos os pingos de água que entravam por cima
da borda. Já tinham aprendido agora, entretanto, que o calor, a
fumaça sufocante e os gases deletérios eram seus principais
inimigos, e não as chamas bruxuleantes, e enfrentavam estas
desassombradamente, abafando todo novo ataque incipiente antes
que se alastrasse. Não obstante, avançando contra o vento,
penetravam diretamente nas chamas, e enquanto se protegiam com
os cobertores encharcados de água bendiziam o Old Man pelo seu
espírito de previdência.
— Confiem em Jack Óleo-de-peixe ! — dissera Tex, e o Capitão
Holroyd estava dando provas agora de que merecia a sua
confiança. Teria sido tão fácil dirigirem-se para sotavento, e
também menos atemorizante; porém ele sabia que a área coberta
do óleo inflamado seria mais estreita a barlavento e, por isso,
forçava-os a remar contra o vento.
Vamos, rapazes ! força força mais um pouco
— bradava ele, marcando-lhes o ritmo. Assim mesmo. Levantem
o barco! Vamos voando! Adiante! . . . Não desanimem, já estamos
chegando. Mais um empurrão. . . e mais outro. . .
Esgazeava os olhos e teve um acesso de tosse no momento
em que uma nuvem de fumaça envolveu a embarcação invadindo-
lhe a garganta e os pulmões; porém, isso agora já não tinha
importância, pois no momento seguinte desembocaram no ar puro
onde o escaler do imediato estava à espera deles.
E agora basta! — bradou Bull em resposta a um aceno do
Old Man. — Embarcar remos.
Tinham vencido a parada e os homens duramente provados
puderam finalmente relaxar os músculos e repousar.

72
CAPÍTULO 7

BULL PASSA AO COMANDO

oi assim que o remanescente da tripulação do Cape


Wrath que havia sobrevivido à batalha abandonara o navio às
mas. Fizeram isto com relutância; não porque temessem a passagem
perigosa através do mar de fogo que os circundava, mas, sim, porque
eram marujos e, nessa qualidade, se achavam ligados ao navio por
elos muito mais profundos do que o acordo que tinham assinado,
obrigando-se a servi-lo, no começo da viagem. Haviam-se
transformado em parte do navio — a parte vital. Era sua inteligência,
perícia e sentimento que o transformara de uma massa inanimada de
metais e madeiramentos trabalhados numa coisa viva; era de fato o
seu verdadeiro coração e custava-lhes abandoná-lo enquanto ainda
flutuava. Ao reclinarem-se sobre os remos, aspirando profundamente
golfadas de ar puro e salgado e descansando da fantástica provação a
que se acharam submetidos, não se sentiam nem aliviados nem felizes
por terem escapado com vida. Ao invés, sentiam-se tristes por terem
abandonado o navio.
— Olhem só a pobre velha barcaça; ardendo como uma tocha !
— murmurou Corny. — Tenho a impressão de que está tudo errado,
afinal de contas.
-— Eu também — disse Tex. — Chego até a desejar que ele voe
pelos ares. Saberíamos assim onde ele se acha.
Porém a hora não era de lamentações. Lutavam agora pela
própria sobrevivência e, tendo vencido desesperadamente o primeiro
assalto, tinham de pensar na continuação da luta.
Nas condições em que se achavam, as perspectivas não eram
risonhas.
Andavam à deriva perdidos no Atlântico Norte, e o breve dia de
inverno chegava ao seu fim. A não ser o escaler do imediato, o
petro73
leiro em chamas, uma grade destroçada, e o semi-submerso casco de
um barco salva-vidas, pertencentes talvez ao transatlântico armado
que fora a pique, o mar parecia deserto tão longe quanto alcançava a
vista. O céu achava-se de novo completamente encoberto, e o vento,
continuando a soprar de nordeste, tornava-se áspero. Soprando
contra as ondas, cortava as linhas dos vagalhões transformando-os
em montículos empinados coroados de cristas crespas que se
quebravam com freqüência cobrindo o escaler de jorros de água
pulverizada. O mar engrossava.
No que diz respeito aos escaleres, seus cascos estavam sólidos e
as caixas de ar continuavam intatas; tinham porém, sido lambidas
pelas chamas e parte do madeiramento visível achava-se tostada.
Examinando as bancadas e os paus de voga enegrecidos, Bull
perguntava a si mesmo com certa apreensão até que ponto o
equipamento e as provisões de que dependia sua sobrevivência
teriam sido danificados pelas chamas.
Havia também a preocupação com as condições fisicas dos
tripulantes. Bull, a não ser a perda das pestanas e das sobrancelhas e
algumas arranhaduras dolorosas nas mãos e no rosto, tinha saído
incólume; o mesmo acontecera com Gib e Scruffy Peacock. Porém,
dos restantes doze homens na embarcação do capitão, cinco haviam
sido feridos superficialmente por estilhaços de granada e seis
apresentavam queimaduras nas mãos e nos braços. Nenhum dos
ferimentos apresentava gravidade, embora todos acarretassem
inconvenientes, por causa do que tinham a enfrentar. No que diz
respeito ao Old Man, não agradava a Bull a sua aparência, nem a
maneira pela qual se sentava à proa do barco, encolhido, com os
braços apertados contra o estômago. Porém, continuava afirmando
que se sentia bem, e tinham que contentar-se com suas declarações.
Qualquer que fosse sua verdadeira condição, entretanto,
conservava-se o Capitão Hotroyd no posto de comando.
Agora, rapazes --—-- disse ele depois que se achavam um
pouco repousados e menos ofegantes —- o principal é vocês se
agasalharem convenientemente para passarem a noite. Com o tempo
piorando e a escuridão tudo invadindo, seria mais que desnecessário
alçarmos a vela para tentar navegar. Para fazê-lo teremos de esperar
que volte a luz do dia. Nesse pacote de equipamento que está
debaixo de seus pés
deve haver uma âncora flutuante. Tirem-na para fora e verifiquem se se
acha em boas condições.
Enquanto as mãos pesquisavam os apetrechos, a decisão de
permanecerem quietos durante a noite foi transmitida ao barco do
imediato estabelecendo um plano conjunto para se conservarem em
comunicação por meio de chamados a intervalos regulares. Final mente
o drogue ou âncora flutuante ---- um saco de lona com abertura rígida
preso à extremidade de uma linha foi encontrado. Estava intato, porém,
tendo em vista o mar que engrossava, o Old Man ordenou que se lhe
amarrasse dois remos através da boca. Feito isto, foi alijado por cima
da borda, a linha arriada a pedido pela castanha, 2 5 de ré, e sua
extremidade amarrada a bordo. Imediatamente a popa enfiou com a
vaga e o vento, os remos foram recolhidos, e, naquela situação, pelo
menos teoricamente, o barco poderia permanecer indefinidamente.
Uma vez resolvido o problema do barco, voltaram a atenção para
os feridos. Numa das gavetas debaixo da bancada de popa, encontrou
Bull um estojo de pronto-socorro. Não continha grande coisa, porém o
essencial, e felizmente em grandes quantidades. Depois de examinar os
recursos de que dispunham, o Old Man deu ordens e, um por um, os
homens se apresentaram à ré para exibir as suas feridas, que Bull
tratava de acordo com as instruções do Old
Man.
As queimaduras de primeiro grau, como as que ele apresentava
nas mãos e na face, eram desprezadas. Não apresentavam perigo de
infeccionarem, e a dor que causavam já teria desaparecido dentro de
algumas horas. Tratando-se de queimaduras de segundo grau — ou
sejam aquelas que formavam bolhas — Bull mergulhava uma
agulha no iodo para esterilizá-la, perfurava cada bolha em dois ou
três lugares para esvaziá-la do fluido que continha, aplicando-lhe
em cima uma bandagem. As queimaduras de terceiro grau eram
mais melindrosas: nesses casos a pele tinha sido percialmente
destruída e pedaços de tecido carbonizado aderiam às feridas. Esses
ferimentos tinham que ser desinfetados cuidadosamente e recobertos
de bandagens com ácido pícrico.
Peça metálica para orientação dos cabos que saem da embarcação. (N. do T.)

75
Os ferimentos dilacerados por estilhaços de projéteis, embora de
aparência mais grave, eram de tratamento mais fácil que as
queimadurase Aqui também o que importava era limpar bem as feridas
para diminuir ao mínimo o perigo de infecção. Isso feito as feridas
eram tratadas com iodo, os bordos das feridas juntados quando
necessário por meio de adesivos e o tratamento concluído com algodão
e bandagem.
Tudo isso constituía uma tarefa tediosa e enervante para ser
efetuada dentro do barco que jogava, mas tudo tinha de ser feito com
calma.
— Não se afobe, rapaz ! — dizia o Old Man. — Não sabemos
quanto tempo ficaremos nesta situação e um pouco de cuidado e de
paciência neste momento poderão significar a diferença entre a vida e a
morte dentro de alguns dias. A gangrena é má companheira de bordo
num barco desprotegido como este.
A noite já caía quando o último tripulante foi tratado, e Bull
ergueu os olhos do que restava no estojo de pronto-socorro para o
vulto encolhido do mestre.
— Estão todos tratados, senhor — disse ele —, exceto. . .
Exceto eu, suponho — o Old Man deu uma risadinha.
Vocês são todos assim, Barlow. Quando começam a bancar os
curandeiros, não querem mais parar.
Mas estará o senhor se sentindo bem?
— O melhor possível. Ponha este estojo de lado, rapaz, e vamos
aproveitar o que nos resta ainda de luz do die para examinar a
situação.
No íntimo Bull estava convencido de que o Capitão Holroyd
recebera algum ferimento quando o mastaréu de proa cára sobre a
ponte pregando-o no tombadilho. Não lhe parecia possível que um
homem fosse atingido daquela maneira sem ferir-se e, embora não
pudesse fazer nada a respeito, continuou preocupado enquanto
examinavam o equipamento e as provisões de que dispunham.
No início da travessia, todos os escaleres do Cape Wrath tinham
sido completamente equipados de palamenta e provisões. Isso signifi
cava que além da palamenta comum, como sejam, mastro e vela,
remos, drogue, croques e batedouros, havia também uma bússola,
uma coleção de mapas, certa quantidade de fachos vermelhos de

76
auto-inflamaçào, de sinais de fumaça, e diversos outros pequenos itens
que poderiam ser úteis em alto-mar. Porém as chamas que se
projetaram sobre o escaler tinham danificado parte desses recursos. O
material mais sólido resistira às chamas e a vela ainda estava em boas
condições, embora a lona que a envolvia estivesse quase
completamente destruída.
A satisfação que esse fato lhes comunicava, entretanto,
desapareceu rapidamente ao descobrirem que os mapas e, pior
ainda, a bússola tinham sido danificados a ponto de se tornarem
completamente inúteis. O mesmo acontecera com os fachos e outros
apetrechos de sinalização.
— Temos também o escaler do imediato disse Bull; porém ao se
comunicarem com ele descobriram que a mesma coisa lhes tinha
acontecido.
Isso tudo significava que eles andavam à deriva sem um único
instrumento de navegação a não ser o relógio de pulso de Bull, que
ainda funcionava. E além disso não possuíam os meios de atrair a
atenção de nenhum navio que se apresentasse à sua vista.
Calmamente fixaram o mastro no seu lugar e guardaram todos os
outros apetrechos para disporem de mais espaço; a vela foi estendida
sobre a proa para abrigá-los contra a água que se transformava em
chuvisco ao quebrar-se contra as alhetas, e depois, na noite que caía,
olharam para o Old Man à procura de conforto e direção.
Os mapas não farão tanta falta assim — disse ele. — Porém a
bússola foi o diabo. Só temos as estrelas e o sol para guiar-nos quando
estiverem visíveis, e o vento quando não o estiverem, e, assim,
conseguiremos tocar para a frente. Este relógio será de grande
utilidade. Tome bastante cuidado com ele, menino. O essencial agora é
pouparmos as nossas forças, por isso agasalhem-se o melhor possível
para dormir um pouco. Barlow e eu ficaremos de vigia,
alternadamente.
Nessas condições, os homens se amontoaram para aquecer-se,
deitando-se sobre as tábuas do fundo do barco e dos bancos laterais,
enquanto Bull iniciava a primeira vigia.
Com o céu carregado de espessas nuvens e sem lua, a noite
estaVa escura como breu e só se vislumbrava o reflexo avermelhado
do petroleiro em chamas, já, agora, distante a sotavento; porém o
escaler flutuava calmamente, preso ao drogue e, embora soprasse um
vento

77
forte, não chovia, e a vela esticada os protegia contra os
respingos. Sentado ao lado do Old Man na popa, escutando o
zunido do vento e o murmúrio das vozes dos companheiros,
Bull chegava à conclusão de que a situação poderia ser pior.
Havia quinze pessoas numa embarca ção construída para
comportar o dobro daquele número. Isso signifi cava que
sobrava bastante espaço para eles se mexerem, o que seria de
grande importância se permanecessem muitos dias seguidos
vogando à deriva. Por outro lado o escaler carregava provisões
e água para uma tripulação completa, de maneira que podiam
passar nele muito tempo sem temer a fome ou a sede. Sua
única verdadeira preocupação era o Old Man. Sentia-lhe o
corpanzil apoiar-se pesadamente contra seu flanco e percebeu
que ele tinha adormecido. Talvez, pensou com seus botões,
fosse isso uma boa coisa; talvez fosse disso que ele precisava
— descanso — e, ao amanhecer, quem sabe, estaria melhor;
não sentado como se estivesse fazendo esforço para não cair,
porém com o aspecto vigoroso que lhe era habitual.
Uma após outra as vozes murmurantes foram se calando
à medida que os homens adormeciam. Agora reinava
completo silêncio excetuando-se o vento, o ruído surdo e o
marulho das ondas, e os brados longos do outro escaler
comunicando-se com eles a intervalos regulares;
pachorrentamente, o tempo passava.
À meia-noite o Old Man ergueu-se e, com relutância,
Bull encolheu-se nas tábuas do fundo do barco sob os seus
pés.
Sentia-se derreado, naquela altura, se bem que custasse
muito a conciliar o sono. Suas mãos e sua face esfoladas
doíam e, embora abrigado contra o vento mordaz, tiritava de
frio nas suas vestes molhadas. Estava estendido entre Gib e
Scruffy Peacock, e com o calor dos seus corpos de ambos os
lados sentia-se gradativamente mais confortado, e a
sonolência começava a invadi-lo em ondas vagarosas. Ouviu
o Old Man interpelar o escaler do imediato, e um brado
respondeu-lhe. Este pareceu-lhe mais distante do que
esperava; como se os barcos se estivessem afastando um do
outro. Porém já estava nas fronteiras do sono e não conseguia
abrir os olhos. Aquela idéia fugiulhe do espírito antes que ele
a pudesse agarrar e, um momento mais tarde, estava
roncando a todo pano.
Foi Gib que o acordou, sacudindo-lhe o ombro e
cochichandolhe com premência ao ouvido.

78
Bull ! Bull, acorde !
Sentou-se e sacudiu a cabeça para clarear as idéias. — O
que aconteceu ?
O Old Man tem alguma coisa. Está acordado, mas
parece não saber onde está. E o barco do imediato sumiu.
Bradei diversas vezes sem receber resposta.
— Está bem! — Bull ergueu-se cambaleando e
relanceou os olhos em derredor. O clarão do petroleiro tinha
desaparecido agora e ele supôs que tivesse afundado.
Segurou o braço de Gib. —- Não diga nada por enquanto.
Talvez estejam todos adormecidos. Vamos examinar o Old
Man antes de mais nada.
Havia um pouco mais de luminosidade agora; apenas o
suficiente para distinguirem-se os vultos mais próximos. O
Capitão Holroyd continuava sentado no lugar em que Bull o
deixara, curvado para a frente, dobrado sobre os braços que
lhe comprimiam o estômago. Falava sozinho, proferindo
palavras sem sentido. Bull segurou-lhe a mão procurando
sentir-lhe o pulso. Era fraco e irregular, e sua pele estava
fria e úmida.
Que devemos fazer? — sussurou Gib.
Não sei. — Bull hesitava. Era evidente que naquelas
condições o Capitão Holroyd não podia dar ordens ou tomar
decisões e que qualquer outra pessoa devia ocupar o seu
lugar. O homem cuja graduação vinha logo depois do
capitão era o Chefe, porém era apenas um maquinista e não
um marinheiro, e aquela tarefa incumbia acima de tudo a um
marujo. Esse fato parecia colocar a responsabilidade
indiscutivelmente sobre os ombros largos de Bull, mas ele
não a desejava; não que a temesse, mas porque tinha
consciência da sua juventude e inexperiência, e não sabia
como o resto da tripulação aceitaria a sua autoridade.
Subitamente tomou uma resolução. — Acorde o Chefe !
O Chefe despertou e depois de examinar o Old Man e
ouvir a sua fala incompreensível, abanou a cabeça no escuro.
— Parece que está ruinzinho. Creio que está sofrendo as
conseqüências do choque — disse ele. — Se pudermos
conservá-lo bem agasalhado sua situação poderá melhorar, mas
não tenho muitas esperanças. Felizmente, é rijo como madeira-
de-lei, e creio que recuperará os sentidos. Enquanto isso creio
que a direção incumbe a você, irmão.

79
Bull compreendeu que não havia outra solução. Tirou o jaquetão
e enrolouo em volta do Old Man, envolveu-o delicadamente no mais
seco dos cobertores, acolchoando-o por todos os lados para que não
balançasse com os movimentos da embarcação e, em seguida, assu
miu calmamente o comando.
Sua primeira preocupação foi o outro barco salva-vidas, Levava
a bordo o terceiro imediato assim como Mister Price, e seria tarefa
fácil, quando nascesse o dia, transferir um deles para tomar o lugar
do Old Man; supondo, entretanto, que os dois barcos estivessem em
con tato um com outro ao nascer do dia. Lembrava-se agora de que
tivera a impressão, ao adormecer, que o outro escaler se afastava
deles. Isto emprestava significação ominosa ao fato de o brado de
Gib ter ficado sem resposta; por outro lado não ignorava que o som
pregava peças no mar, à noite e, reprimindo a sua ansiedade, ordenou
a Gib que acordasse toda a tripulação.
Seu primeiro impulso fora esconder aos olhos da tripulação o
verdadeiro estado em que se achava o Old Man. Mas compreendia
agora, não obstante, que não seria correto proceder assim, pois isso
implicava uma falta de confiança nos seus companheiros, que nada
justificava. Falando calmamente com eles, expôs-lhes os fatos e seus
temores de que o Capitão Holroyd estivesse mais gravemente ferido
do que lhes fizera crer.
Não poderemos fazer nada por eleo. — perguntou Corny.
No escuro, não. Poderemos piorar as coisas se tentarmos
mudá-lo de lugar. Porém, à luz do dia, poderemos talvez acomodá-
lo mais confortavelmente. Além disso precisamos entrar em contato
com o outro escaler. Eles não responderam ao nosso último
chamado e, com o Old Man assim alquebrado, precisamos de
qualquer jeito do auxílio deles. Precisamos fazer um outro chamado.
Vamos, todos juntos: Um, dois, três . . .
Olá, barco !
Repetidamente as quatro vozes soaram como uma única voz na
noite, sem que nenhuma resposta chegasse aos seus ouvidos da
escuridão vazia, e, finalmente, Bull disse-lhes para cessarem os
brados.
Isso não quer dizer que eles estejam tão longe que
tenhamos perdido todo contato — tornou ele. — Talvez tenhamos
derivado para sotavento em relação a eles e nossas vozes sejam
arrastadas pelo

80
vento. De qualquer modo, dentro de pouco tempo a luz vai voltar e,
então, poderemos enxergar.
O dia parecia demorar muito a nascer. Não podiam fazer outra
coisa senão esperar, e conquanto o céu começasse a clarear levemente
das bandas do oriente, a noite ainda se arrastava. Mas, até que enfim, os
vultos estendidos nos bancos laterais ou encolhidos e tiritando de frio
sobre as bancadas emergiram gradativamente da escuridão; as faces e
as mãos vislumbravam no escuro, e, em seguida, a silhueta do escaler
destacou-se contra o céu ao erguer-se na crista de um vagalhào, e Bull
acenou para Gib.
Enquanto seus companheiros olhavam em derredor à luz nascente
do dia, Gib esgueirou-se para avante e, apoiando-se ao mastro
vacilante, relanceou os olhos perscrutadoramente pelo mar.
Tão longe quanto alcançava sua vista, estava tudo deserto. De
início não queria acreditar, porém o horizonte estava claro e nítido
como a lâmina de uma faca e dentro de seu círculo, à medida que a luz
se tornava mais forte, não lobrigava nem sinal do outro escaler.
A tripulação olhava para ele sem nada dizer. Ele sabia que
todos estavam à espera de que desse um brado apontando para
determinado ponto, e ele sentiu na garganta um nó do tamanho do
punho. Abanou a cabeça.
De seu lugar na popa, Bull viu os olhares se dirigirem para ele,
como na véspera se tinham dirigido para o Old Man. Todos
conservavam-se imóveis e calados. Ninguém praguejava ou
perguntava o que tinha acontecido. Isto agora era secundário. O outro
escaler havia desaparecido e eles tinham que enfrentar a realidade. Não
obstante, embora ninguém dissesse nada, a mesma interrogação
manifestava-se em todos os olhares.
E agora?
A resposta competia a Bull. Tinha consciência de que lhes devia
uma explicação. Porém naquele momento não sabia o que dizer.
Precisava refletir, ponderar os fatos e elaborar um plano; e não havia
tempo para isso, porque os homens estavam na expectativa; nem
tampouco conseguia pensar, pois seu cérebro se achava entorpecido.
Inclinou-se para a frente e pôs-se a balbuciar de maneira hesitante e
incoerente.
— Eu. Eu acho que. . . Quer me parecer que. . — Estacou e
81
engoliu em seco, porém subitamente suas idéias clarearam e determi
nou o que lhe competia fazer. Com o desaparecimento do outro barco,
precisava de qualquer jeito inspirar-lhes confiança em si mesmos, uns
nos outros, e, acima de tudo, nele, Bull. Era tudo muito simples.
Retesou-se e sua voz ressoou com timbre claro e incisivo. — Muito
bem, companheiros! Estamos sozinhos agora e principiaremos a
navegar para leste. Alcem a vela, e, em seguida, recolham a âncora
flutuante para bordo. Enquanto caminharmos, vamos refletir todos
juntos para ajuizarmos da situação em que nos achamos.
----- Viva, Buli! bradou Dutch e os marujos todos se juntaram a
ele.

82
CAPÍTULO 8
TRÉS POSSIBILIDADES E TRÉS PREOCUPA ÇÕES

aqueles poucos minutos de indecisão desesperada que se


seguiram à constatação de que tinham perdido contato com o barco do
imediato, Bull aprendera uma lição de sentido claro e simples. Consistia
ela em que a ação é o único antídoto infalível contra a ansiedade e o
pavor. Ele não formulou o achado nessas palavras nem em nenhuma
espécie de palavras; apenas seu espírito registrou a maneira pela qual os
homens reagiram à idéia de fazer alguma coisa; a maneira como os
semblantes se iluminaram e os ombros caídos se retesaram; a maneira
como suas vozes mudaram, recuperando o ânimo e a vivacidade; nunca
esqueceria aquela lição.
O escaler trazia uma retranca e uma vela latina, e, achando-se o
mastro já em seu lugar e os estais colocados, a vela estava em
condições de ser içada. Na popa, Tex prendia a escota ao punho da
vela latina e ficou olhando enquanto Corny e Dutch ajustavam o
estropo2 6 à verga engatando-o para a urraca. Observando-os da
popa, Bull estava a ponto de dar ordem para alçarem vela, quando
Gib, que ainda permanecia de pé na bancada perscrutando a
superficie do mar, soltou um grito e apontou para a frente.
Um navio ! — gritou ele. Lá vai um navio !
Imediatamente largaram das velas e todos os tripulantes da
embarcação, exceto Bull e o Capitão Holroyd, ficaram de pé num
pulo, fitando o mar na direção apontada por Gib.
Foi um desses momentos de loucura e de distração que podem
provocar um desastre.O súbito deslocamento de tanto peso dentro do
barco perturbou-lhe a estabilidade:o escaler adernou até a borda
mergulhar na água, e Bull nunca veio a saber exatamente como
conse-
2 6 Corrente para engatar a talha de içar a embarcação. (N. do T.)

83
guira restabelecer o equilíbrio. Lembrava-se de que bradara aos
homens para se sentarem e de que imprimira forte movimento ao
remo de espadela que ele já havia armado. Depois todos caíram por
cima uns dos outros nas bancadas quando ele aproou para o olho das
ondas e adernou para o outro lado.
Calma ! Não conseguiremos aproximar-nos do navio assim !
— disse ele. Tinha avistado, naquele momento, o navio, também ele.
Estava para as bandas do norte e bem nas fimbrias do horizonte, dois
mastros e uma chaminé soltando uma leve pluma de fumaça que se
destacava nitidamente contra o fundo claro do céu. — Dirige-se para
oeste e está muito distante, com os bordos escondidos atrás do
horizonte. Já nos achamos a ré da sua rota e não vale a pena nos
iludirmos; não há a mais leve esperança de que nos possam avistar.
Mas vamos ficar aqui de mãos abanando? — perguntou Gib,
fervendo de excitação. — Talvez seja esta a nossa única oportunidade.
Não podemos passar por ela de braços cruzados !
Escute aqui, Gib ! — disse Bull pacientemente — você tem de
acreditar que quando eu digo alguma coisa sei do que estou falando.
Quando não sei, fico de bico fechado, ou então pergunto a alguém que
sabe melhor do que eu. Se o navio estivesse a sotavento, poderíamos
alçar velas para tentarmos cruzar com ele; mas ele já está longe a
barlavento e nessas condições só podemos recorrer aos
remos. . .
Pois bem, então, o que estamos esperando? — atalhou Gib. —
Vamos empunhar os remos.
Bull abanou a cabeça. — Nem vale a pena tentarmos. Mesmo que
aquele navio não esteja cobrindo mais de oito nós, não poderíamos
fazer nem a metade disso, e ele continuaria a afastar-se de nós
continuamente até desaparecer. Estaríamos esgotando as nossas forças
inutilmente apenas para ficarmos com as línguas de fora.
Bull tem razão, garoto! — disse Corny. — Deu mais uma
olhadela para o navio que sumia no horizonte, e uma cusparada no
marem sua direçào.e. depois, virouse para dentro do escaler e
empunhou o tirador da adriça. r— Estamos prontos para alar a vela
agora, Buli !
— Está bem, Corny ! Puxe o fio da âncora, Tex, e recolha-a para
84
bordo. Bull pegou a escota que lhe era entregue, e deu com ela uma volta
no cunho situado a estibordo. Podem içar a vela mestra !
O pano escarlate subiu aos trancos pelo mastro, panejou
durante alguns instantes, e depois, como Bull entrasse com a escota
da vela, inflou-se arredondando-se; a embarcação despertou,
mergulhou e agitou os bordos como uma montaria que subitamente
sente o freio na boca, e tocou para diante.
Todos, calados, olhavam para o navio, que teria significado a
salvação para eles se estivesse alguns quilómetros mais perto,
desaparecer no horizonte.
Durante todo esse tempo Bull estava matutando sobre a
situação. Ao que lhe parecia o vento não tinha mudado muito,
deduzindo-se daí que se navegassem com o vento a bombordo
estariam rumando para leste. Todavia, sem bússola e com o céu
encoberto, o máximo que podiam fazer era dirigir-se
aproximadamente. Além disso tinha de levar em consideração as
limitadas aptidões da embarcação para velejar. O barco salva-vidas é
planejado antes de tudo para sobreviver. Sua estabilidade, solidez e
qualidades náuticas em geral são de maior importância que sua
adaptação à navegação a vela. Em conseqüência, sabia Bull que não
podia cingir muito a proa ao vento, e navegar a bolina cerrada: e
sabia também que, a menos que navegasse a um largo, o escaler era
suscetível de afastar-se da rota. Essa deriva para o sul era o que
precisava evitar acima de tudo, e, para evitá-la, precisava navegar
cingindo a embarcação ao vento até o ponto em que a bolina da vela
ameaçasse grivar.
Durante todo esse tempo o espírito do Capitão Holroyd estivera
ausente. Quando ia nascer o dia cessou o balbucio incoerente do Old
Man que pareceu entrar em coma; porém era imprescindível colocá-
lo em posição mais confortável de maneira que pudessem socorrê-lo
com mais eficiência. Assim sendo, depois de tomar o pulso da
embarcação e certificar-se de que navegava em boas condições, Bull
chamou Dutch para ré, entregando-lhe o leme. Em seguida,
juntamente com o Chefe, ajudado por Corny e Tex, estenderam
cobertores sobre as tábuas do fundo na popa e, levantando o Old
Man com todo o cuidado e delicadeza possíveis, fizeram-no deitar-
se. Sua respiração tornou-se mais regular, e seu pulso, embora ainda
fraco, tornou-se mais regular.
Cobriram-no cuidadosamente, todos os que vestiam jaquetas

86
tirando-as do corpo como Bull havia feito, e entregando-as sem falar.
Quem me dera que pudéssemos fazer com que se aquecesse !
---- suspirou Bull. Esgueirou-se novamente para sua bancada e,
relanceando os onze marujos e os dois grumetes que olhavam para
ele na expectativa, respirou profundamente e retesou-se. Tinha a
esperança de que o Old Man recuperasse os sentidos quando
tivéssemos que iniciar a navegação. Mas isso não aconteceu e,
talvez, passem-se dois dias antes que ele melhore. Não podemos ficar
de braços cruzados e deixar o barco ir à deriva até que ele assuma
novamente o comando; e creio que deveríamos debater todos os
assuntos agora e decidirmos sobre o que devemos fazer enquanto
esperamos que ele melhore. Para começar, darei a minha opinião
sobre a situação e o que deveremos fazer. Em seguida, se alguém
tiver algo a dizer, sua opinião será acatada com prazer.
De acordo com seus cálculos, eles se achavam quase
exatamente a meio caminho entre a Terra Nova e a costa da Irlanda.
O salvavidas achava-se em boas condições e, excetuando-se a falta
de apetreChos de navegação, equipado de maneira adequada.
Dispunham a bordo de água e alimentos suficientes para agüentarem
durante muito tempo; e, a não ser o Old Man, achavam-se todos em
condições de saúde bastante razoáveis. Via três possibilidades à sua
frente. Primeiramente, poderiam velejar pelas redondezas até que
alguém viesse socorrê-los; em segundo lugar, poderiam navegar
rumo a oeste, e mesmo que não topassem com o cabo Race,
aportarem eventualmente à costa americana; em terceiro lugar,
poderiam continuar a velejar para leste como faziam agora. Estava
convencido, no íntimo, de que esta última medida era a mais
acertada.
— Tenho apenas uma coisa a dizer — tornou Corny. —
Concordo que precisamos tocar para a frente, porém acho preferível
singrarmos para o ocidente. O vento sopra agora do norte e talvez
sopre um pouco de leste. Mas mesmo que isso não aconteça,
poderemos aproveitá-lo para navegar para oeste. Se navegarmos com
ele, o barco poderá fazer seis nós e completar a travessia no rumo
oeste-sudoeste. Provavelmente não conseguiremos atingir a Terra
Nova, porém teremos toda a costa dos Estados Unidos para
aportarmos.
Bull abanou a cabeça. — O que você diz está certo e eu estaria
de completo acordo exceto num ponto. O vento prevalecente no
Atlân87
tico Norte sopra de oeste. Não continuará a soprar eternamente do
norte e, quando mudar, essa será a direção em que há de soprar. Se
estivermos singrando para o ocidente quando isso acontecer,
estaremos perdidos.
Não tinha pensado nisso. — Corny coçou a cabeça. —
Talvez você tenha razão.
Não resta dúvida, ele está certo ! disse Tex. Relanceou os olhos
em derredor para verificar se alguém não estava de acordo, e depois
acrescentou: Desembuche. Bull, diga tudo que tem a dizer.
Pois bem -— continuou Bull com seu ar pachorrento —,
estive matutando a respeito de tudo o que me contaram aqueles
camaradas que recolhemos no mar outro dia. Num barco aberto
como este, parece-me que, havendo bastante água e comida, só
teremos que nos preocupar com três coisas: a condição do tempo; a
falta de exercício que resulta em má circulação e toda espécie de
perturbações; e, pior que tudo, não termos nada que fazer exceto
pensar, e nada em que pensar a não ser os apuros em que nos
encontramos.
Quanto ao tempo, eles teriam que agüentá-lo como se
apresentasse ou aproveitá-lo da melhor maneira possível, porém as
duas outras coisas eles poderiam controlar de diversas maneiras, e
ao lutar contra uma delas estariam lutando contra as duas outras. Já
tinha organizado na sua cabeça certas normas de vida rotineiras.
Água e alimentos seriam distribuídos de manhã cedo e à noitinha.
Depois da distribuição matinal, arranjariam tudo a bordo e
recomeçariam a navegar. Em seguida os feridos seriam medicados,
e todos os homens fariam massagem nos pés e nas pernas uns nos
outros. Fazia parte do equipamento de bordo um galão de óleo
vegetal que serviria muito bem para essa finalidade. Dois períodos
— um de manhã, o outro de tarde— seriam reservados aos
exercícios. Eles teriam de determinar a forma do exercício que
haveriam de praticar e a maneira mais interessante de fazê-lo.
Isso abrange o que vocês poderiam chamar o essencial
continuou Bull. -— Veremos como isso funciona e se for preciso
introduziremos modificações. O que me preocupa é que assim mesmo
ficaremos muito tempo desocupados. Quanto a isto façam forças com o
bestunto, e se tiverem alguma idéia não a fiquem chocando, mas
ponham-na logo para fora.

88
E quem vai fazer as vigias? perguntou o Chefe. Você precisará
dortnir tanto quanto qualquer um de nós.
Bull Já tinha pensado nisso. Quanto mais horas dedicassem ao
sono. menos tempo teciatn de tuatat conn outras ocupações. Havia
bastante espaço para se deitarem, no barco, e, se pudessem secar al
guns dos cobertores, as noites não seriam tão ruins assitu. Poderiam
estabelecer duas tut•tuas de vigias que ficariam de serviço durante
quatro horas. alternadatnente, o dia todo. Até o Old Man achar se
em condições de assumir o comando, ele e Duteh o assumiriam, um
depois do outro, sucessivamente.
Isto ficou decidido e eles se dispuseram a enfrentar o longo dia que
tinhatn pela frente. Achavamse todos animados, nenhum deles
duvidando por um momento sequer que de uma ou outra maneira sai
riam daquela enrascada, e sua única preocupação consistia no Old Man.
Ele agora repousava sossegado e Bull sentia-se mais esperançoso a seu
respeito.
Porém a fatalidade ainda lhes reservava alguns golpes baixos, e
o céu. em vez de se abrir para deixar brilhar os raios do sol, tornou-
se mais escuro e carregado durante o período da manhã. O vento,
ainda soprando do norte. aumentava gradualmente, e a força das
ondas aumentava com ele. Navegar contra o vento era a última das
coisas que Bull pretendia fazer. Não era o caminho que percorriam
para leste que tinha tamanha importância. O importante era
caminhar, deslocarse, fazer algo positivo em vez de ficar
simplesmente andando à deriva, ao léu do vento e das ondas.
Continuaram a navegar até o meioalia, e depois colheram as rizes da
vela mestra. Isto abrandou a situação um bocado, porém o barco
estava dificil de marear, e no meio da tarde principiava a desgarrar.
Não podemos fazer mais nada — disse ele a Duteh que
estava no leme. Se continuarmos a insistir, o barco vai desgarrar
completamente. Vamos arriar as velas, e aproar à vaga com a âncora
flutuante.
Quando tudo estava pronto, deu o sinal. Dutch aproou contra o
vento. carregando no remo de esparrela para tirar o vento das velas;
soltaram os tiradores e enquanto Tex e Corny lançavam ao mar a
âncora flutuante os outros amainavam a vela que panejava,
enrolando-a e pondo-a de lado.

89
O escaler estava seguro agora, porém, apesar do efeito
estabilizador do drogue que flutuava a vante, seus
movimentos eram violentos e caprichosos. Tinham de
adaptar-se ao fundo do barco para não serem atirados de um
lado para outro; e quando chegou a distribuição de água e
comida, à noitinha, tanto Gib como Scruffy estavam
enjoados demais para aceitar a sua porção.
Quando a noite chegou, a escuridão fechou-se sobre
eles como a tampa de uma caixa. O ar estava cheio de
borrifos de água e o vento uivante frio como gelo. Com a
vela e os cobertores ainda úmidos, todavia, conseguiram
abrigar-se melhor do que se poderia esperar. Aconchegados
debaixo de sua proteção, o calor de seus corpos começou a
acumular-se e, em breve, sentiam-se bastante agasalhados
para suportar a situação.
A Bull coube o primeiro quarto de vigia. Nada
acontecia, e, por isso mesmo, o tempo custava a passar.
Ancorado às ondas como estava, o barco se achava
abandonado ao seu próprio destino, e Bull não tinha nada a
fazer senão ficar sentado olhando para a escuridão; nada que
pudesse distrair o seu pensamento da situação em que se
achavam, e impedi-lo de matutar a respeito das desastrosas
possibilidades que tinham pela frente. E se o tempo
permanecesse nnatl durante semanas a fio até que as reservas
de água e de alimentos. assim como as suas forças, se
exaurissem? E se ele estivesse errado desde o início quanto
ao rumo da navegação, onde iriam parar? E se se tivesse
enganado a tal ponto que não fossem aportar a lugar algum
e, pelo contrário, continuassem descrevendo círculos em
alto-mar como acontece com pessoas perdidas no deserto ! E
se viessem a perder o mastro; ou as velas; ou ambos !
— Caramba, pelo amor de Deus ! -— pensou com os
seus botões pare com isso, Bull, ou vai ficar biruta. Pense
em coisas indiferentes.
Pôs-se a relembrar alguns dos problemas de navegação
que havia estudado, porém isto o levou a preocupar-se com
a rota que seguiriam quando o tempo melhorasse,
Abandonou aquela cogitação repentinamente, e, orientando-
se pela direção do vento, tentou avistar na escuridão que o
circundava a posição das grandes con«telações e das
estreIas mais brilhantes. Com isso conseguiria orientarse
satis-

90
fatoriamente. Sentir-se-ia satisfeito, não obstante, quando
chegasse meia-noite, para ceder o seu lugar a Dutch.
A última coisa que fizera, a noitinha, fora examinar o
Old Man. Pelo que conseguiu apurar, não tinha havido
mudança na sua condi ção. Mas ao apalpar-lhe o rosto e
as mãos no escuro, estas lhe pareceram um pouco mais
quentes. O pulso estava mais forte que em qualquer
momento depois do colapso.
Bastante animado com essa constatação, estendeu-se
Bull sobre as tábuas do fundo, ao seu lado, e cerrou as
pálpebras.
O seu cansaço era antes moral do que fisico. Aquele
dia tinha sido muito agitado — tanta coisa em que pensar,
para providenciar, tantas decisões a tomar, e, por cima de
tudo, a incumbência de estabelecer sua própria
autoridade; superar seus próprios temores, dissipar as
próprias dúvidas e retesar o tono da vontade. Excetuando
sua cruciante ansiedade a respeito do Capitão Holroyd,
sentia-se calmo no íntimo; mas estava esgotado e ferrou
no sono quase no momento em que se deitava.
Duas horas depois abriu os olhos. A noite ainda estava
escura como breu, e ficou por alguns instantes a perguntar-
se o que o havia despertado; em seguida ouviu o Old Man
chamá-lo baixinho, com voz roufenha, e compreendeu.
Barlow! onde está Barlow? Alguém diga-lhe que
preciso falar com ele !
Bull inclinou-se sobre ele e apalpou-lhe a mão. Aqui
estou eu, senhor. Como vai? Sente-se um pouco melhor?
Não estou sentindo grande coisa. Que horas são,
menino?
Pouco depois das quatro, senhor — respondeu Bull,
olhando para o relógio. Sentira o coração bater ao som da
voz do Old Man. Ela lhe parecia fria, ríspida, e saudável
como sempre, e, ao ouvi-la, pensava que não precisaria
mais preocupar-se com a condição do tempo, com a reserva
de água ou de alimentos, nem com qualquer outra coisa. O
Old Man estava bem novamente, e ele lhes diria o que
deviam fazer; tomaria conta de todos. Sentindo-se aliviado
do peso da responsabilidade, inclinou-se para a frente no
escuro, com animação. — Quer um gole de água? Não,
estou bem. Não se afaste. — O Old Man agarrou-lhe a mão.
Onde está Slade?
91
Mister Slade morreu, senhor.
Ora, é mesmo. Estou ficando esquecido. Não devo
esquecerme das coisas, menino. Devo agarrar-me ao que nos resta.
Quanto tempo permaneci sem sentidos?
Mais ou menos umas vinte e quatro horas, senhor.
Tanto tempo assim! E como vai o barco do imediato? Está
tudo em ordem?
Bull hesitou alguns instantes, dizendo-lhe em seguida como
tinham perdido contato com ele na noite anterior, achando-se sozinhos
quando nasceu o dia. O Old Man recebeu com calma a má notícia.
Bull sentiu-lhe a mão apertar a sua, e durante longo período nenhum
som saiu da sua boca exceto o da respiração ofegante. Depois, deu um
longo e trêmulo suspiro e começou a falar novamente.
Escute aqui, Barlow ! Isto altera tudo — disse ele. — Eu não
queria dizer-lhe, mas você precisa saber. Eu estou mais pra lá do que
pra cá, menino. . .
Ora, não diga isto! — atalhou Bull. — O senhor já esteve pior
do que agora; já se está restabelecendo. Em pouco tempo estará bom
novamente.
Não dê palpites! E nunca tente iludir-se ou iludir os outros em
se tratando de coisas importantes. Olhe para elas de frente e vejaas
como elas são. Aquele velho mastaréu me arrebentou as entranhas.
Não lhe disse nada, pois não o julguei necessário, tendo o imediato a
meu lado para tomar conta da lata. Mas agora que ele se foi, a coisa é
diferente, e preciso ser franco com você.A vida está a fugir de mim.
Sinto-a esvair-se e tenho certeza de que não verei a luz de amanhã.
Mas o senhor. . . O senhor não pode ter certeza. O senhor. . .
— A voz de Bull tartamudeou.
— Está bem, meu filho! — sussurrou o Old Man. — Não me faça
condescendência. Na minha idade não é a morte que importa, mas a
vida que levamos. Percorri um longo e árduo caminho, e é melhor
assim. Só que não me apraz deixar minha tarefa inacabada. Aí estão
todos esses homens a serem repatriados e preciso deixar tudo em
ordem antes de partir para o outro mundo.
Escute aqui, senhor. . . — Bull hesitava. Essa era uma
perspectiva que ele nunca havia contemplado. Tinha pensado que o
Old

Man poderia ficar aleijado; que seriam obrigados a tratar dele, cui-

92
dando-o como um doente; que poderiam vir outros dias como o que
acabava de passar, em que ele não estivesse em condições de dar
ordens. ficando eles obrigados a se dirigirem pelo próprio bestunto
durante algum tempo. Mas a perspectiva de vir ele a morrer, de eles
ficarem privados de seus conhecimentos e experiência. da sua
sabedoria e de sua vontade unificadora, era inimaginável. Quase que
perdeu o fôlego. — Eu. . acordarei o Chefe para que o senhor fale
com ele.
-— Não! O Old Man o deteve. — Nem o Chefe nem qualquer
outra pessoa. Isto fica entre nós.
Que quer dizer com isso, senhor?
Isso mesmo. Estou passando o fardo para os seus ombros.
Estes homens: você precisa levá-los para suas casas, menino.
93
CAPITULO 9

UM CORPO NO MAR

Sentado ali no escuro com as ondas bravias a fustigarem a


embarcação, e a ventania rugindo ameaçadoramente em cima da sua
cabeça. Bull tentava alçar-se à altura da responsabilidade que o Old
Man lhe colocava sobre os ombros. Não via com clareza nem uma
nem outra coisa, porém não era necessário. Sabia que o peso era
excessivo para ele; que era jovem demais; que não tinha a experiência
necessária; e tinha vontade de exclamar: mas por que justamente ele?
Por que não o Chefe ou o Dutch? Por que não Tex ou Corny? Mas
antes que pudesse proferir uma palavra o Old Man tornava a falar.
Os outros — disse ele, como que interpretando o pensamento
de Buli — são mais velhos que você, bem sei, e talvez mais
experientes das coisas do mar. Mas será necessário algo mais para
levá-los de volta aos seus lares, e você será capaz disso. Ouça, agora,
atentamente, menino. Lembra-se bem da nossa última posição ao
meio-dia?
Sim, senhor, estou lembrado.
Ora, muito bem. Digamos que você tenha de percorrer
oitocentas milhas. Poderá cobri-las em catorze dias, ou talvez sejam
socorridos no caminho; mas prepare-se para o pior, e economize bem
a comida e a água, sobretudo a água. Conte com trinta, talvez
quarenta dias no mar. — O Old Man apoiou-se ao cotovelo. Estava
ofegante, agora, e recomeçou a falar com voz mais rouca e frases
entrecortadas. — Sobrevivência. Isto acima de tudo. E ânimo; não os
deixe pensar muito; faça com que suas mentes e suas mãos fiquem
ocupadas constantemente e conserve-os unidos. Compreendeu?
— Sim, estou compreendendo. Agora fique quieto, senhor.
Poupe as suas forças.
Isto já não vale a pena nesta altura, e preciso ter certeza
respondeu ele no escuro; inclinou-se para trás e permaneceu calado
94
durante bastante tempo, pegando em seguida a mão de Bull.
Barlow ! aproxime-se, rapaz. Tinha mais alguma coisa a dizer-lhe.
Está me escutando?
Estou, senhor. Mas não se preocupe agora. Lembrar-se-á
daqui a pouco. Deite-se e descanse.
Não, já sei o que queria dizer ! Sua voz era tão fraca agora
que Bull teve de inclinar-se sobre ele para ouvi-la. Intuição, é isso
mesmo. Recorra à intuição. menino. Tire dela tudo o que puder.
Se bem que continuasse murmurando e resmungando de vez
em quando, foram essas suas últimas palavras inteligíveis.
Bull ficou a seu lado, segurando-lhe a mão. Fora a noite
mais comprida e escura que conhecera, e, quando chegava ao
fim, tinha a impressão de ter perdido todo o poder e toda a
vontade de se locomover.
Quando despertou o dia, tornando visível o barco com sua
tripulação jogando de um lado para outro pelas ondas, o Chefe
ergueu-se e colocou a mão sobre o ombro de Bull.
Como vai ele esta manhã, meu filho? — perguntou.
Bull ergueu os olhos e mordeu o lábio. — Já se foi. Pouco
mais ou menos há meia hora.
A notícia passou de boca em boca. Todos receberam-na em
silêncio, e a tristeza caiu sobre eles como pesada mortalha,
enquanto o dia nascia em derredor. O ânimo e a esperança
pareciam tê-los abandonado, deixando-os inermes e indiferentes.
Passavam por um mau momento, e, apesar do esmagador
sentimento da perda que sofriam, Bull tinha consciência da
realidade. Lutando contra sua própria dor, aceitou a tarefa que o
Old Man lhe legara.
A primeira coisa a fazer era a cerimônia fúnebre, e, embora
sentisse certa relutância em admitir o pensamento, Bull estava
convencido de que quanto mais depressa desempenhassem aquele
rito mais depressa lhes sairia do espírito o golpe que acabavam de
sofrer, permitindo-lhes recomeçar a luta pela sobrevivência.
Nunca tinha presenciado uma cerimônia fúnebre em alto-mar e
não sabia bem como devia proceder; mas foi ajudado pelo Chefe
e por Dutch, e os três juntos fizeram tudo o que convinha com
toda a decência e a reverência que a situação exigia.
Quando tudo estava pronto, Bull ficou de pé no barco que
jogava e deu o sinal.
Entregamos este corpo às águas do mar — disse ele

simples95
mente, e ao vê-lo mergulhar na água sua voz ficou embargada.
Passando a mão nos olhos lacrimejantes retesou-se e prosseguiu:
"Padre nosso que estais no Céu .
Um depois do outro todos se juntaram a ele, e, terminada a prece,
permaneceram por algum tempo silenciosos, todos concentrados em
seus próprios pensamentos. Era como se se achassem envolvidos por
um pensamento comum que ninguém ousava perturbar.
Finalmente Bull retesou-se.
Escutem, camaradas — disse ele reunindo os companheiros
em redor de si -—, sei perfeitamente o que lhes vai pelo coração pois é
aquilo que eu também sinto; porém isso de nada adianta. O Old Man:
ele não tinha vontade de morrer mais do que qualquer outra pessoa,
mas sabia que não podia escapar, e não se sentiu amargurado ou triste
por isso. Ficaria furioso se soubesse que nós nos achamos abatidos.
Vocês compreendem, ele se preocupava apenas com as nossas
pessoas; queria que chegássemos de volta aos nossos lares.
Prosseguiu narrando-lhes o que o Capitão Holroyd lhe dissera na
escuridão da noite; não suas próprias palavras porém seu sentido geral.
Apenas o esqueleto. Em seguida sentou-se à espera dos comentários.
Porém, em vez de começarem todos a falar ao mesmo tempo
como ele esperava, sentaram-se calados olhando para ele na
expectativa.
— Pois bem, vamos — disse ele-—, ninguém tem nada a dizer?
Não há nada a dizer-se — rosnou Corny. — O Old Man soube
morrer melhor do que nós saberíamos fazê-lo em iguais circunstâncias,
e nada mais. Você assume o comando.
Leve murmúrio de aprovação veio de todos os outros.
Mas esperem um minuto — disse Bull. — A bordo do Cape
Wrath ele era o mestre. Tinha o direito de delegar autoridade aos
imediatos, a mim mesmo, ou a qualquer de nós; mas somente porque se
achava presente assim como aqueles a quem conferia autoridade
podiam prestar-lhe contas, Compreendem o que quero dizer, não é
assim? Porém agora ele não está mais presente e vocês todos exceto
Gib e Scruffy são mais velhos do que eu . . .

96
Sim, isso é verdade ! atalhou Tex. Você só esteve no mar
durante quatro anos, não é exato?
Sim --— assentiu Bull. Isso mesmo. E é justamente o que quero
que vocês compreendam.
O.K. ! Tex inclinou-se para a frente, colocando a mão sobre o
ombro de Bull agora é minha vez de dizer alguma coisa. Ninguém pode
pretender ensinar algo a um camarada que passou quatro anos ao lado de
Jack Óleo-de-peixe. É nesse camarada que eu aposto o meu dinheiro;
estarei com ele desde Hakodate até Halifax. E este gajo é você, Bull. A
você eu daria até minha camisa.
E qual é sua opinião, Chefe? —— perguntou Bull.
Eu só entendo de máquinas, irmão. ------ O Chefe abanou a
cabeça sorrindo. Tex tem razão. Mesmo que o Old Man não se
tivesse pronunciado, você teria sido aclamado.
Nada mais havia a dizer-se depois disso e Bull aceitou todo o
peso da responsabilidade que ele aceitara tão timidamente e, ao que
pensara, temporariamente, ainda na véspera; era sua, agora,
definitivamente.
Distribuiu uma pequena ração de água. Depois abriu uma lata
de carne em conserva e, cortando-a em catorze porções iguais,
colocou um pedacinho sobre um biscoito para cada um dos
companheiros. Enquanto comiam, ele passou em revista as
provisões. Carne enlatada e biscoitos constituiriam a base da sua
dieta, porém havia também bom suprimento de leite condensado,
tabletes de leite com extrato de malte, e latas contendo rações de
carne com legumes.
Vou entregar a Tex a responsabilidade da bóia — disse ele.
— E a partir de agora o Chefe distribuirá a água.
Uma coisa pela outra o tempo havia piorado mais um pouco
durante a noite, e não tinham a esperança de poder navegar naquelas
condições. O mar estava bravo de meter medo. Ao alçar-se sobre os
vagalhões escuros cobertos de espuma para serem arrastados
momentaneamente em sua crista, avistavam as filas de ondas
encapeladas que avançavam contra eles do horizonte, impelidas pelo
vento. Em segui da o barco afocinhgva e mergulhava. e a onda
seguinte pairava lá no alto acima deles, restringindo o seu mundo à
enorme cova entre duas ondas sucessivas. O barco agüentava bem o
mar, entretanto, e poderia

98
continuar assim até que as coisas melhorassem. A arfada incessante
era cansativa, deixava doridos todos os ossos do corpo, porém não
apresentava perigo. O que Bull receava era o efeito moral deprimente
de mais um dia de deriva que não os levava a parte alguma.
Todos eles refletiam os efeitos de suas provações. Estavam sujos
e relaxados; suas faces, barbudas e cheias de sal nos vincos: as
pálpebras avermelhadas, e os lábios rachados; e suas vestes tostadas
pelo fogo e manchadas pela água do mar. Porém as queimaduras e as
feri das estavam todas limpas e em boas condições quando as
examinou para renovar as bandagens. O que mais o preocupava eram
os pés da tripulação.
Temia os efeitos da constante imersão na água do mar combinada
com o frio, e a má circulação do sangue resultante das restrições
impostas aos seus movimentos. Depois de explicar isto tudo,
desenterrou a lata de óleo vegetal.
Agora, para fazermos as coisas direitinho — disse ——, é
melhor formarmos pares. O Chefe e eu; Scruffy e Gib, e assim por
diante. Passaremos a lata de azeite de mão em mão e cada homem fará
por sua vez massagem nos pés do parceiro. Temos tempo de sobra na
nossa frente e não é preciso ninguém afobar-se. A única coisa que lhes
peço é economizarem óleo. Precisamos fazer com que ele dure.
Estavam os homens, de início, um tanto céticos a respeito da
idéia; mas quando tiraram as botinas e sentiram o cheiro dos próprios
pés, começaram a pensar que talvez a medida fosse acertada. O
aspecto de seus pés, já inchados e lívidos, acabou de convencê-los, e
puseram mãos à obra com entusiasmo.
Por mais grave e sombria que seja a situação, o camarada que
permanece de cara desanimada quando alguém lhe faz massagem nos
pés deve ser muito rabujento. Havia alguns tipos excêntricos entre a
tripulação mas nenhum desse gênero, e dentro de pouco tempo
estavam fazendo uma verdadeira algazarra.
Era animador ouvir seus risos, e quando se findou a tarefa, Bull
encaminhou-os para a sessão de ginástica da tarde.
Equilibrando-se contra as arfadas da embarcação eram obrigados
a fazer exercícios com os braços e o tronco, se bem que suas pernas,
depois de eles permanecerem sentados durante horas a fio, se tor99
nassem encarangadas. Como fazer para esticá-las e impedi Ias dc

tornarem rígidas era um problema que exigia reflexão para ser resol
vido, e finalmente foi Gib que encontrou a solução.
Tive uma ideia" t. — disse ele. — Já viram vocês essas
bicicletas que existem em salas de ginástica? Como vocês sabem. elas
são instaladas sobre roletes, e a gente pedala como louco para não ir a
lugar nenhum.
É verdade, seu tratantinho. sei disso — disse Tex. Mas
acontece que nós não estamos numa sala de ginástica. Estamos no
meio do oceano Atlântico. e não possuímos nenhuma bicicleta sobre
roletes; não possuímos nem sequer os roletes.
Certo, certo; mas temos pernas, não é exato?
Se não as tivéssemos elas não estariam ficando encarangadas e
não precisaríamos quebrar a cabeça para achar meios de remediar a
situação. Acho bom você fechar o bico, irmãozinho, pois do contrário
daqui a pouco você nos estará aconselhando a dar umas voltas em
redor do quarteirão para movimentar as pernas.
— Cale você o seu bico e escute, seu cow-boy 2 7, desmontado
com cara de cavalo — vociferou Gib. — Olhem, ali está o mastro.
Um depois do outro teremos de correr para pegá-lo e voltar para o
nosso lugar; e, tal qual o ciclista do ginásio, não iremos a lugar
nenhum. Compreenderam o que quero dizer?
A principal dificuldade da idéia era o perigo de ser arremessado
por cima da borda da embarcação quando esta arfava. Isto, decidiu
Gib, podia ser evitado pelos homens que se sentavam em círculo ao
redor do mastro, à espera da sua vez. Poderiam nessas condições
segurar aquele que perdesse o equilíbrio ou se soltasse do mastro.
Quando quis dar uma demonstração, entretanto, achou a coisa mais
dificil do que pensara, e, em cinco segundos, foi arremessado no colo
de Corny.
Ergueu-se com uma nova idéia.
— Faremos uma competição — disse ele. — Aquele que
conseguir dar o maior número de passos antes de virar de pernas
para o ar, será o vencedor. O prêmio será um tablete de leite
maltado. Aprovado ! — disse Tex. — Comecemos !

27
Vaqueiro. (N. do E.)

100
Começaram a brincadeira c assim passaram a tarde, fazendo sem
pensar o excrcícl() de quc careciam.
Enquanto isto. Corny estava ocupado em manejar o canivete
sobre uma das bancadas laterais.
F-stou fazendo um tabuleiro de damas explicou ele quando
alguém lhe perguntou «e estava biruta. Faremos um torneio; uma
espécie de eliminatória. Somos catorze. Teremos assim sete partidas
no primeiro turno; quem conseguir ganhar cinco jogos, passará para
a segunda rodada.
Mas não temos peças para jogar atalhou Scruffy.
E por que não usarmos tabletes de leite maltado? Não há
objeção, a não ser que sejam todas brancas.
Mas Corny já tinha resolvido também esse problema. Buli tem
um lápis, poderemos com ele marcar a metade das peças—disse ele.
O tabuleiro e as peças improvisadas estavam prontos num
instante, e ficaram jogando a tarde toda, até a luz do dia se apagar
quase por completo, quando chegou a hora da segunda distribuição
de alimento e de água. Já estava escuro quando acabaram de comer,
se bem que ainda fosse cedo para dormir, com a longa noite que
tinham pela frente.
— Já sei — disse Gib. — Vamos fazer um jogo de palavras.
Tomando, por exemplo, o nome do navio, Cape Wrath, a ver quantas
palavras poderemos fazer com as letras que o compõem.
Isto os conservou ocupados durante pouco mais ou menos uma
hora. Depois se deitaram e ficaram contando histórias até que, um
depois do outro, ferraram no sono.
A Bull incumbia o quarto da meia-noite, e quando Dutch o
chamou para desempenhar as suas funções ele encontrou o tempo nas
mesmas condições; o vento continuava soprando fortemente do norte,
ainda não se avistavam nem a lua nem as estrelas, nenhum sinal de
mudança no céu coberto de nuvens espessas, e sempre as mesmas
ondas encapeladas no mar agitado. Ocupou seu posto na ppa e olhou
para a escuridão.
Apesar do triste e terrível começo daquela aventura — pensou
e
le tinham passado razoavelmente bem o segundo dia na embarca•
ção. Todo mundo tinha cooperado de boa vontade e desprezado a

101
falta de conforto, mas ele sabia que isto lhes custara certo esforço.
Tinha disso certeza porque, mesmo enquanto faziam piadas ou
brincavam, ele percebera a expressão quieta e interrogativa em seus
rostos e a indecisão no fundo de seus olhos. E, conquanto o nome do
Capitão Holroyd não fosse mencionado, a presença do Old Man fazia-
se sentir nos seus espíritos tanto quanto no dele. Notara os olhares
compridos dirigidos para o lugar vazio na bancada da popa, e os
instantes em que um depois do outro olhavam para o mar, para se
virarem em seguida, mordendo os lábios, ou limpando uma lágrima
furtiva com o dorso da mão.
Durante dois dias e pico tinham andado à deriva; porém o tempo
andava tresloucado e perdia toda significação; não tinha começo nem
fim, e o Cape Wrath, com tudo o que acontecera a bordo, parecia
pertencer a um outro mundo, a uma outra existência. Por quanto tempo
ainda poderiam sobreviver? perguntava a si mesmo. Quanto tempo
passar-se-ia antes de perderem todo interesse por aquelas brincadeiras
infantis e de esgotarem o repertório de casos para contar? Que fariam
então para impedir a imaginação de inquietar-se? Como fariam para
impedir a esperança de naufragar? Oitocentas milhas a percorrerem.
Quem lhes dera que o tempo melhorasse para poderem alar a vela ! Se
somente o céu se abrisse para mostrar-lhes as estrelas, e comunicarlhes
a sensação de que existia outra coisa além deste torvelinho de águas
encapeladas e nuvens negras no meio do qual eram atirados de um lado
para outro. E, acima de tudo, se somente lhes surgissem à vista as luzes
do mastro de um navio antes de terminada a noite !
Nenhuma dessas coisas aconteceu, todavia, e quando foi revezado
às quatro horas da manhã, Bull se estendeu para descansar e renovar as
forças da sua E.
A luz do novo dia que nascia dissipando lentamente a escuridão,
três horas mais tarde, revelava o seu semblante. Estava calmo e
confiante.
Começando com a distribuição de comida e de água, a rotina
estabelecida na véspera foi seguida passo a passo. Dera bom resultado
no primeiro dia, porém, ao repeti-la pela segunda vez, Bull tornou-se
consciente da sua falta de recursos e da imobilidade que lhes era
imposta pela pequenez do escaler; e a pergunta que fazia a si mesmo
no escuro teve a sua resposta. Cedo demais perderiam todo interesse,

102
cedo demais as simples ocupações que tinham inventado
transformarse-iam em gestos reflexos cessando de distrair-lhes o
espírito. Era preciso variar a rotina. Mas de que maneira?
Ao meio-dia achava-se sentado na popa, ainda às voltas com
aquele problema, quando Tex, que estava em pé ao seu lado olhando
para ré, pousou a mão sobre seu ombro.
Eu não quero começar um drama, Bull disse ele com toda
calma. — Já tivemos um desapontamento e nessas condições outro a
mais não seria bom para o moral de nossos companheiros: mas
avistamos alguma coisa a ré. Ainda não tenho bem certeza: parece
uni fio de fumaça. Vou sentar-me, e, depois, você vai virar-se para
trás muito casualmente para dizer o que acha. Se eu estiver sonhando
ou se você julgar que não há nada feito. esquecerennos o incidente.
O.K., T ex. A voz de Bull tinha o calor da gratidão e da
admiração pela calma e a perspicácia do antigo cow-boy. Esperou
um momento, virando-se em seguida como Re estiveqqe a eqtudar o
céu, relanceando os olhos pelo horizonte. De início nada podia ver,
exceto a crista espumosa das ondas bem em sua frente, mas quando o
próximo vagalhão arremessou o barco para o céu, avistou claramente
o horizonte e nele uma mancha de fumaça. Seu coração bateu
violentamente; era um navio, sem dúvida alguma; não havia
possibilidade de engano. Teve vontade de gritar, de rir, de
arremessar objetos para o ar; porém em vez disso, controlou-se, para
pensar com calma, e foi somente depois de ter ponderado as
probabilidades e as possibilidades que se permitiu dizer alguma
coisa.
Escutem aqui, rapazes ! — disse ele. — Tenho algo a
dizerlhes, e depois de terem ouvido quero que vocês todos fiquem
bem quietinhos sem dizer nada. Entenderam? — Todos se viraram
para ele na expectativa. -—- Não aconteceu nada de ruim, Bull, não
é? ------ perguntou o Chefe.
Não, longe disso. — Bul abanou a cabeça. ----- Tex acaba de
avistar a fumaça de um vapor no horizonte do lado da popa. Agora
não se esqueçam do que eu disse. Conservem-se calmos. Ele está
bem a sotavento e ainda atrás do horizonte, mas seja lá como for, o
certo é que não se dirige para o sul. Isto quer dizer que se alçarmos
vela com esta ventania pela popa temos boas probabilidades de nos
aproximarmos o suficiente para que eles nos enxerguem. Mãos à
obra. Gib,

103
você fica de prontidão para recolher a âncora flutuante quando eu
mandar. Dutch o ajudará a para bordo. Tex e Corny, prendam a verga
da vela mestra à adriça e fiquem prontos para içá Ia. Os outros,
coloquem em seus lugares as forquetas, duas em cada txrdo•, e depois
fiquem em seus lugares empunhando os remos.
Mas, e o mar bravio, Bull! — exclamou o Chefe. Como
conseguirá vocé virar em roda o barco?
Não será fácil, mas o conseguiremos. Esperaremos o
momento em que esteja na crista de um vagalhão, e o faremos então
virar em roda antes de ele chegar ao fundo da concha.

104
CAPÍTULO 10

DE NOVO A O PONTO DE PARTIDA

Reinava intensa excitação no escaler enquanto se faziam os


preparativos para virá-lo em roda e fazê-lo navegar. Todo mundo, desde
Dutch até Scruffy, tinha aceitado com resignação a sombria perspectiva
de lutar para alcançar terra, o que poderia durar semanas e levá-los ao
extremo das forças humanas antes de consegui-lo. Haviam-se enrijecido
nessa perspectiva e achavam-se dispostos a enfrentar todos os
contratempos e sofrimentos sem recuar; porém, desde que deixaram o
petroleiro em chamas, a esperança de serem recolhidos em alto-mar e
serem salvos das piores provações não lhes saía do subconsciente. E
agora, com aquela mancha de fumo no horizonte, essa esperança se
transformava em promessa. Não era pois de admirar que balbuciassem e
gritassem dando palmadinhas nas costas uns dos outros; não era de
admirar que suas mãos tremessem enquanto eles se aprontavam para
navegar em sua direção.
Porém Bull mantinha-se reservado. Tinha certeza de que eram
boas as possibilidades de interceptarem o vapor, já que navegariam
ao seu encontro; porém antes disso teriam de virar o escaler em roda
e nisto consistia todo o risco. Não se iludia a esse respeito. Se o
pudesse virar davante completamente enquanto se achasse na crista
de uma onda, tudo correria bem; se, porém, falhasse a manobra e o
barco afundasse na cava do vagalhão deslizando atravessado ao mar,
ou embarcaria água ou emborcaria. Apesar de tudo a manobra tinha
de ser tentada, e enquanto esperava o momento azado sentiu nas
entranhas aquela calma estranha e a tensão dos nervos que parecia
fazer com que as coisas se desenvolvessem em câmara lenta.
Quando tudo estava pronto deixou passar três vagalhões,
estudando-lhes o movimento, tomando o pulso da embarcação e
observando como se comportava; e, finalmente, quando chegou a

105
quarta vaga e o escaler saiu da cava apoiado em sua crista. ele se
retesou.
Atenção ! disse ele. Para cima foi o escaler. projetado contra o
céu sombrio. Sua proa cortou a crista espumosa. e uma cortina de água
borrifada cobriu o barco. Durante um instante o escaler equilibrou-se
no topo da onda com a proa fora da água, depois focinhou, e enquanto
sua popa subiu para o mergulho. Bull ergueuse. — A âncora
flutuante ! bradou ele, e Gib a embarcou.
Livres da tração do drogue, o barco começou a inclinar
imediatamente para bombordo. Era precisamente o que Bull esperava.
— Rema estibordo ! Cia 1 bombordo ! bradou ele. O escaler obedecia.
Porém, quando já estava atravessado sobre a vaga e começava a
deslizar para o vão, a cava da onda parecia precipitar-se ao seu
encontro, enquanto a crista de uma nova onda já se aproximava acima
de suas cabeças. A longa haste de freixo do remo de esparrela vergava
e chicoteava como uma cana de bambu quando sobre ela ele apoiava
todo o seu peso.
Rema ! Toda a força dos remos ! — gritava ele ofegante.
Porém os homens que empunhavam os remos sabiam o risco
que corriam. Punham nos remos toda a força de seus músculos, e a
proa virava lentamente abicando para a cava da onda enquanto o
escaler girava sob o impacto da força de seus músculos retesados.
— Todos juntos, agora! Rema! Força de remos . ordenou Bull
dando em seguida ordem para alçarem a vela mestra. A popa se
achava agora no vão da onda, porém os remos sustentavam o barco,
e no momento em que a vaga o arremessava para cima, ele entrou a
escota do pano e deu uma volta. A vela grivou uma vez, depois
estufou, e o escaler foi para a frente sob o impacto do vento.
Ele tinha virado em roda e singrava. Porém o perigo não estava
superado. Cada vez que focinhava, ameaçava atravessar a vaga e,
apesar de todo o seu vigor, manobrar o barco exigia de Bull um
esforço acima da sua capacidade. Compreendeu num momento que,

1 Ciar. Remar para trás. (N. do E.)


embora conseguisse executá-la, aquela tarefa exigia, por medida de
segurança, um homem mais forte do que ele. Tinha toda a calma e a
coragem necessárias, porém faltava-lhe experiência; e entregou o
comando ao único homem, dentre todos, que a possuía. Este era o
Dutch.

106
E agora toda a atenção se concentrava na sua meta. Cada vet
que o escaler se erguia sobre as ondas, eles avistavam a mancha de
fu maça na sua frente A excitação e a tensão a bordo chegaram ao
auge, E se Bull estivesse errado e o navio se estivesse afastando
deles'? E se o vendaval partisse o mastro e carregasse a vela antes de
elcȈ se terem aproximado o bastante para serem percebidos! E se,
afinal de contas. o navio não passas«e de um outro Jerry .
Não diga bobagens ! exclamou Corny. Se se tratasse de um
Jerry nós não o teríamos avistado.
E por que não? inquiriu Gib. A fumaça dos alemães é tão
visível quanto a nossa.
Eu sei disso; mas ele não estaria chamando a atenção sobre a
sua posição fazendo aquela fumaceira toda por aí afora como faz
aquele navio.
Talvez seja um cargueiro carcamano ou escandinavo
sugeriu T ex.
Espero que não. Imaginem a gente ter de se sentar na mesa
na frente de um prato de macarrão ou diante de um peixe salgado,
de pois de todas as agruras por que passamos ! — Gib sorriu e
estalou os lábios. — O que eu quero é ovos com presunto, e uma
chaleira de chá bem quente. Que pensa você, Scruffy?
— Contanto que eu não tenha de descascar batatas a bordo,
não me importa sua nacionalidade.
Scruffy é maníaco. Vive sonhando com batatas, e não é de
admirar . — tornou Tex. — Quanto a mim, queria beber café; um galão
de caffe em cima do fogo enquanto eu o saboreio lentamente. Em
seguida um catre para me deitar. Roupas de cama limpas e cobertores,
se possível, porém não vou brigar com eles se não os tiverem. Contanto
que sejam quentes e secos, e que eu possa me estender à vontade e
dormir sem sentir as cotoveladas de Corny nas minhas costelas ou sua
patas por cima de mim. Se eu caísse numa boa cama dormiria até não
mais poder, e quem quisesse me tirar dela teria de servir-se de roldanas
e guincho para consegui-lo. De que gostaria você, Dutch?
Sopa de ervilha, feita com pedaços de carne de porco salgada e
bastante espessa para poder patinar sobre ela.
— Talvez você consiga isto e ainda por cima uns bolinhos de

108
farinha de trigo para por na sopa -— tornou o Chefe. Mas no que diz
respeito a ovos com presunto. Gib já os comeu. Se quisesse minha
opinião, eu diria, a julgar pela fumaceira que faz aquele navio, que seu
capitão é um miserável unha-de-fome pobre demais para limpar as
fornalhas.
E vocês bem sabem o que isso significa; ovos com presunto
uma vez por ano, na manhã de Natal, se tiverem muita sorte.
Enquanto isto Bull observava a direção do rastro de fumaça no
horizonte, esperando que ela mudasse para ele rumar para sua frente.
Caso ela se deslocasse para bombordo isto significaria que o navio
singrava para leste; se para estibordo, que ele singrava para oeste.
Porém a fumaça não se deslocava, nem diminuía, como teria
acontecido se o navio se afastasse deles. Ao invés, permanecia sempre
no mesmo ponto.
Há algo estranho a esse respeito tornou Dutch. — A posição
do navio não se altera.
Quem sabe ele caminha em nossa direção.
Não, isso não acontece. — Bull abanou a cabeça. — A
distância diminui mas não bastante depressa para que essa seja a
resposta. Para dizer a verdade, qualquer que seja esse navio, ele está
mas é parado. Isso mesmo. Não tem seguimento. Escute aqui, Dutch,
conserve o barco na mesma direção. Vou colocar-me na popa para
poder observar o navio do outro lado da vela. Você, venha comigo,
Gib. Os outros fiquem sentados quietinhos à espera.
Com Gib no seu encalço, ele esgueirou-se para a frente e
agachou-se para passar por baixo da esteira da vela.
Segure-me pelos tornozelos para que uma arfada do barco
não me jogue ao mar — disse ele, e depois, colocando-se de pé sobre
a bancada da proa, agarrou-se ao mastro envergado e ao estai do
traquete, olhando para o mar diante dele.
Que acha você desse navio, Bull? perguntou Gib com
impaciência.
— Ainda não sei dizer. Não há dúvida de que há algo esquisito
a seu respeito. Ele não se desloca, mas eu não posso ver nada exceto
fumaça. Ele está soltando fumaça demais, na minha opinião; não
estou gostando disto.
109

Atrás da vela alguém, borbulhando de felicidade e de alívio


com a idéia de ser recolhido a bordo de um navio dentro de poucos
instantes, punha-se a cantar, e os outros faziam coro com ele:

"Vogando para casa através do oceano,


Vogando para casa através dos mares . .
As vozes se elevavam. Durante um momento o tenor de Corny,
o baixo grave e profundo de Tex, e a voz esganiçada e trêmula de
Scruffy destacavam-se das demais; em seguida o barco que arfava se
ergueu sobre um vagalhão, e ao cortar a sua crista encurvada que
rugia, a ventania colheu as suas vozes despedaçando-as em trapos de
sons insignificantes.
Do alto daquela onda, Bull teve a primeira visão clara do navio
de que se aproximavam; então, no momento em que o escaler
afundava na cava da onda e a vaga que vinha na frente interpôs-se à
sua vista, ele pulou da bancada e sentou-se no banco lateral como se a
vida faltasse repentinamente às suas pernas. Toda a luz e a
sofreguidão tinham abandonado o seu semblante, deixando nele uma
expressão dura e carregada.
O que aconteceu? — perguntou Gib.
Dir-lhe-ei dentro de um minuto. Vamos primeiro ter com os
outros na popa.
Esgueiraram-se para ré, e os homens, caindo em silêncio,
olhavam para ele na expectativa.
Escutem, companheiros — disse ele. — Aquele navio é um
petroleiro, e está pegando fogo. Ardendo como um archote. E o mar
está inflamado em seu derredor, exatamente como o Cape Wrath
quando nós o abandonamos.
Não diga — exclamou Gib. — Não diga que é a mesma
brincadeira novamente ! Ainda estou todo chamuscado da tocada, e a
gente ser assado uma vez é quanto basta para uma única travessia.
Estarrecidos pelo choque e a desilusão, os outros permaneciam
mudos. Suas e«peranças tinham pairado tão alto. estavam tão certos
de terem chegado ao fim de suas provações; e agora elas se estendiam
à sua frente novamente por tempo indefinido — as câimbras e o frio, a
arfada incessante que os deixava doridos, a fome e a sede solapando-
lhes lentamente as forças e desgastando-lhes a vontade de viver.
110
Não queriam contemplar aquele espetáculo novamente e naquele
momento pareciam não ter ânimo nem para lutar, nem para se queixar
ou fazer qualquer outra coisa que não fosse ficar sentados onde
estavam.
Preciso berrar . — disse Tex com amargor, erguendo-se afinal.
— Gostaria de saber que nova ursada a sorte nos reserva depois disso !
Não há dúvida de que alguém lançou contra nós a maldição de Mafoma
29

Bull ergueu a cabeça. Acabe com isto, Tex ! Isso de nada nos adiantará.
Mas, que faremos agora? — perguntou o Chefe.
Só temos uma coisa a fazer. — Bull relanceou os olhos
para a frente da vela enfunada, onde a fumaça e as chamas que
cercavam o petroleiro apareciam agora claramente, quando o barco
era erguido por uma onda. Continuaremos a navegar em sua
direção. Não
podemos fazer de outro modo. Se já tiver sido abandonado pode ser que
haja homens nadando na sua vizinhança à espera de serem recolhidos, e
mesmo que assim não seja talvez possamos prestar algum serviço.
Ficaram todos de pé, e dentro de pouco tempo já estavam
bastante próximos para vislumbrar o próprio navio quando o vento
produzia rasgões na cortina de fumaça, afastando-a do petroleiro.
Deve ser mais um que o couraçado Jerry emplastrou disse
Corny. — Olhem só sua chaminé! Parece até um ralador de coco.
Gostaria de saber que navio é esse. Talvez algum calhambeque ao
lado do qual nós atracamos em Baytown.
Talvez. Mas a sua pintura já está toda tostada, e não se consegue
ver-lhe a forma ou o tamanho através da fumaça.
Bull fitava o barco atentamente agora. Aquele espetáculo o
entristecia. Trazia-lhe à memória amargas recordações. Porém por
detrás da tristeza ele sentia uma estranha e trêmula excitação que não
conseguia definir. A fumaça revoluteou novamente, descortinando
uma ponte combalida e o mastro de proa partido logo acima da verga.
Então teve a certeza, e seu coração pôs-se a bater. Por incrível e
fantástico que parecesse, era o Cape Wrath.
Olhou de relance para os companheiros. Ainda contemplavam
Maomé. do E.)

II I
desanimados aquele espetáculo e nenhum deles o reconhecera.
Perguntando a si mesmo o que aquilo poderia significar para eles, se é
que tinha alguma significação, e com uma porção de perguntas
fervilhando-ihe no espírito, Bull se retesou. -— Esse navio disse
calmamente— é o nosso; o Cape Wrath.
Não é possível ! o Chefe virou-se e olhou para Bull como se
pensasse que ele tivesse ficado biruta. ---— Ele já deve ter afundado
há muito tempo !
Sei que parece extraordinário, mas eu o reconheceria até na
escuridão da noite. É ele, estou lhe dizendo. Observem Dem. O
mastro de proa; a ponte !
Bull tem razao — disse Tex. É ele, e nenhum outro. Mas
como pode ser isso
Empolgada por nova onda de excitação e de especulação, a
tripulação do escaler esqueceu o desânimo, e as perguntas
começaram a entrecruzar-se.
Convencidos de que o petroleiro estava condenado, de que a
qualquer instante voaria pelos ares ou partir-se-ia ao meio afundando
com eles, eles o tinham abandonado e perderam-no de vista atrás do
horizonte enquanto vogavam à deriva. Isto acontecera três cansativos
dias e outras tantas infindáveis noites escuras atrás; e tudo o que
tinham sofrido nesse lapso de tempo — todos os seus planos
desesperados e sua luta encarniçada — tinha sido inútil porque ali
estava o petroleiro, e, eles, tornando ao ponto de partida.
Era uma coisa alucinante e terrível. Por que tinham eles sido
arrastados de volta para aquele ponto precisamente dentre milhares
de milhas quadradas do Atlântico? Por que continuava ele a flutuar
destroçado e arrombado como se achava? E como se explica que não
tenha voado pelos ares, achando-se, como se achava, cercado de
chamas?
Não há nada tão extraordinário assim — disse Bull
rispidamente. — Ele derivou a sotavento mais depressa do que nós,
foi por isso que o perdemos de vista logo de início. Em seguida
velejamos rumo a nordeste durante algumas horas. Porém não
caminhamos muito, e o caminho que percorremos tornamos a perdê-
lo vogando com a âncora flutuante. Nas condições do tempo que
enfrentamos, devemos ter sido arrastados para sotavento no mínimo
à velocidade

1 12
de dois nós. Na minha opinião, nunca nos afastamos muito dele. Em
seguida uma ligeira melhoria na visibilidade, e talvez um súbito
remoinho do vento fazendo subir a fumaça. permitiu a Tex avistá-lo.
Mas aqueles grandes rombos no costado ! — tornou o
Chefe. Reflita no grande comprimento do navio e no mar
agitado e digame como ele resistiu aos constantes esforços a que
se achou submetido. Como explica você que não se tenha
dobrado ao meio?
Isso explica-se facilmente. Depende da sua própria
estrutura. Trata-se de um petroleiro; com ossatura longitudinal.
Toda a sua resistência corre de ré avante. Você poderia tirar-lhe
todas as chapas do casco e enquanto ele tivesse reservas de
flutuabilidade continuaria a flutuar sem partir-se. Quanto aos
gases, provavelmente eles se escaparam de uma maneira ou de
outra.
Talvez você tenha razão — atalhou Corny. Porém não
vejo a importância que essas coisas podem ter para nós.
Pensávamos navegar ao encontro de um navio que nos iria
recolher, e, em vez disso, viemos de encontro a um casco
chamejante donde nos safamos com risco de vida. A verdade é
que ele não nos serve de nada, e acho melhor lançarmos
novamente a âncora flutuante e esperarmos que o tempo
melhore.
Esperem ! ------ disse Bull. — Vamos olhar o petroleiro de
mais perto. Dê uma volta ao seu redor, Dutch, o mais perto que
puder, e coloque-se a sotavento do petroleiro.
Mas para que isso, irmão? -—- inquiriu o Chefe. — Seu
aspecto não será nada diferente do que era quando o
abandonamos, pelo contrário. É melhor irmos embora e
esquecermos que pusemos os olhos nele.
Porém Bull lembrara-se do Capitão Holroyd. Com o último
sopro de vida, o Old Man dissera-lhe para recorrer à intuição; e
uma intuição o perseguia agora de maneira irresistível. —
Acredite-me, Chefe — disse ele com ar muito sério. — Sei o que
estou fazendo. Não se afastem de seus lugares, nenhum de vocês.
Toque para a frente, Dutch. ——0 petroleiro apresentava na
verdade um terrível espetáculo à medida que se aproximavam.
Embora estivesse ardendo há tanto tempo, as chamas ainda se
projetavam para fora de seu bojo até a altura da chaminé e a
superficie do mar ao seu redor estava toda inflamada.
Contornando-lhe a proa, avistavam os grandes rombos abertos

1 13
no costado, e o mar, entrando por eles, expelia para fora o óleo que
formava jorros de chamas. Toda a sua beleza e simetria tinham
desaparecido, e, acima do convés, não era mais do que um amontoado
de ferragens retorcidas. Levava caimento avante, igualmente, e quando
arfava e afundava as ondas lavavam lugubremente o castelo de proa.
As chapas devem estar aquecidas quase ao rubro ! --—-
disse Corny. Depois, ofegou e tossiu quando o vento trouxe uma
baforada de fumaça ardente para o seu lado. — O que estamos
esperando?
Molhem as suas roupas ! Joguem água por cima de tudo ! E,
para ser franco disse Bull -—, acho que devemos voltar para bordo do
petroleiro.
Seus companheiros olharam para ele com olhos incrédulos.
Dê-me meio minuto para pensar disse Tex sarcasticamente — e
eu lhe contarei uma piada muito mais engraçada do que esta !
Não, Tex. Estou falando sério. — Bull empinou o queixo para
a frente. — Mas certamente não se trata de um piquenique e não
conseguiremos fazê-lo a menos que todos estejam convencidos de que é
necessário. Examinemos a situação com calma, para depois decidir.
Quanto a mim já refleti no assunto, e poderei expor-lhes as minhas
idéias.
Prosseguiu explicando o que lhe ia pelo bestunto.
Primeiramente havia o navio. O fato importante era que ele ainda
flutuava depois de arder e balançar sobre as ondas durante três dias
de temporal. Se tivesse de afundar, já teria soçobrado hí muito
tempo; e o mesmo poder-se-ia dizer das probabilidades de ele
explodir. O fato de não ter acontecido nem uma nem outra coisa
mostrava claramente que, por mais danificada que estivesse sua
estrutura superior, seu casco continuava sólido e o óleo extravasava.
Isto significava que havia grandes probabilidades de o petroleiro
continuar a flutuar indefinidamente.
Ora — prosseguiu ele -—, considerando a situação
exclusivamente do ponto de vista da nossa sobrevivência, precisamos
indagar de que maneira encontraremos maiores probabilidades de
salvação, a bordo do petroleiro, por pior que seja a sua condição, ou a
bordo deste escaler.
— Mas como conseguiríamos voltar para bordo? E supondo
114
mesmo que o conseguíssemos, o que faremos então? — inquiriu Gib
Resolveremos um problema depois do outro. — Bull relanceou
os olhos pelo círculo de semblantes ansiosos. — O que escolheremos, o
petroleiro ou o escaler?
Olhem aqui, companheiros — disse Tex ——,creio que Bull
não deixa de ter razão. Passamos três dias e três noites neste
calhambeque, e o resultado já se mostra na nossa aparência. Se
tivermos muita sorte poderemos ser recolhidos em alto-mar, mas não
podemos contar com isto. O que temos pela frente indubitavelmente
é um dia depois do outro, e cada um deles um pouco mais dificil de
agüentar do que o anterior; abandono às intempéries; o frio e a
umidade, o desânimo; a bóia e a água escasseando e também as
nossas forças, até que não poderemos mais levantar uma palha e
começaremos a morrer um depois do outro. Se houver um jeito de
voltarmos para bordo da velha barcaça, acho que devemos tentá-lo.
Mas, e as chamas? perguntou Corny. Teremos de abandonar
o escaler, não se esqueça disto, e isso significa que não teremos mais
nenhum meio de salvação.
Pensei nisto, também respondeu Bull. — Tudo o que podia
arder a bordo do petroleiro já deve ter-se transformado em fumaça há
muito tempo. O que alimenta o incêndio atualmente é apenas a carga
de petróleo. Talvez eu esteja errado, mas tenho a impressão de que se
conseguirmos combater as chamas e confiná-las nos tanques
arrombados, elas acabarão por extinguir-se. Que dizem vocês?
Enfrentaremos esse risco? Lembrem-se, se conseguirmos combater o
fogo, não teremos de preocupar-nos a respeito da bóia e da água.
Isso é verdade ——- concordou o Chefe relanceando os olhos
pelo petroleiro. E, além disso, devido ao seu maior tamanho será
muito mais visível do que o escaler, e teremos muito maiores
probabilidades de ser avistados ou de avistar alguma coisa.
Bull inclinou-se para a frente. Sabia, agora, que já tinha meio
caminho andado, porém ainda não estava satisfeito. Não bastava eles
escolherem entre dois males: precisavam estar decididos e
convencidos de que tentando voltar para bordo faziam a única coisa
acertada.
O Chefe tem razão, naturalmente -— disse ele mas há

1 15
algo mais. Este é o nosso navio, e vocês sabem o que eu quero dizer.
Pertencemos a ele. Se tivéssemos sabido que ele não ia explodir nunca
o teríamos abandonado, não é assim?
Ouviu-se um leve mürmúrio de aprovação e, depois, Tex,
retesando-se tomou a palavra em nome de toda a tripulação. — O.K.,
Bull. Estamos prontos para o que der e vier.
— Muito bem! — Bull deu um profundo suspiro de alívio e
virou-se para Dutch -—, vamos dar mais uma volta ao redor do
petroleiro par escolher o melhor lugar de abordagem.
Conservando-se fora da área de óleo inflamado sobre a água,
Dutch dirigiu a embarcação novamente para barlavento.
116
CAPÍTULO 11

MÃOS À OBRA

ma coisa era tomarem a decisão de voltar para bordo, e


outra muito diferente realizarem a proeza.
O escaler tinha sido fácil de marear enquanto se achava a
sotavento do petroleiro, e Bull, absorvido pelos novos problemas e
possibilidades, tinha esquecido por completo as condições do tempo.
Ao ultrapassar a popa do Cape Wrath, sofreu novamente o impacto
da ventania. As ondas vieram ao seu encontro como um paredão, e o
escaler ergueu-se contra elas até achar-se quase em posição vertical;
em seguida mergulhou na crista do vagalhão no momento em que era
erguido para o ar, e a violenta arfada, quando se endireitou para
depois focinhar, por pouco não alijou ao mar toda a tripulação. Dutch
se achava no seu verdadeiro elemento. Tinha demasiada prática de
marinhagem para deixar-se intimidar, e conservou o controle do leme
com maravilhosa perícia. Era homem para continuar a lutar, porém
Bull compreendera seu erro. A vantagem que poderiam auferir
abordando pelo lado de estibordo não compensava o risco que
corriam, e revogou a ordem que expedira.
Traga-o de novo para sotavento . — bradou ele. E arriscado
demais.
Dutch E-lo virar em roda e quando o barco se achou
novamente ao abrigo do casco em chamas, a vela foi arriada e os
remos armados para manobrarem.
Puxa vida, passamos por uns maus bocados disse Bull entre
os dentes cerrados. Tinha-me esquecido completamente do tempo
que reina a barlavento.
Bem, isto decide a questão no que nos diz respeito, não é
assim? tornou Corny. — Se quisermos voltar para bordo tem de ser
deste lado, o que significa entrarmos novamente no forno.
117
Bull acenou com a cabeça afirmativamente, e, enquanto o escaler
se deslocava lentamente ao longo do costado do navio, ele o estudava
atentamente. Ã primeira vista parecia-lhe que seria impossível abordá-lo
através das chamas circundantes; porém, no mesmo instante, verificou
que o petróleo que alimentava as chamas provinha todo ele de dois
tanques perfurados, um avante e outro à ré da ponte derruída, e embora
ele se espalhasse enquanto ardia, havia estreitas faixas e canais de água
pura de permeio. Quanto mais se deslocavam para ré, mais largos e
freqüentes se tornavam esses canais até que, ao atingir a alheta de
bombordo, topou com o mais largo deles. Corria diagonalmente entre o
costado de sotavento e as águas limpas, e apresentava uma passagem
livre para a popa de onde ainda pendiam os cabos chamuscados das
talhas presas aos turcos.
Eis a nossa oportunidade — disse Bull, apontando. —
Esperemos que esses aparelhos pendurados ao costado ainda estejam
em condições de nos agüentar. Você sabe agora o que devemos fazer.
Para a frente !
Os cobertores foram molhados, e tudo a bordo convenientemente
encharcado. Em seguida viraram o barco em roda e tocaram para
diante.
Muito embora a façanha não fosse comparável à que tiveram de
enfrentar ao deixar o navio, ainda assim era bastante árdua e submeteu-
os a dura provação. Percorriam o canal livre entre chamas, porém o
calor os cegava. Parecia que estavam sendo torrados e sufocados pelas
baforadas de fumaça com cheiro acre de petróleo. Ofegando e lutando
desesperadamente para respirar, impeliram o escaler através do que
parecia ser o próprio inferno, e, enquanto dirigia o barco e animava os
remadores, Bull se maravilhava com a sua coragem. Era verdade que
lutavam pelas próprias vidas; porém, decidirem-se a morrer ser-lhes-ia
mais fácil do que enfrentar aquele tormento. Se pulassem no mar para
se afogarem, ninguém os poderia censurar.
Nessa altura tendo ainda de percorrer a metade da distância, o
canal começou a estreitar-se enquanto a popa do petroleiro se
deslocava lentamente para bombordo sob a pressão do vento. Um
momento depois, línguas de fogo se estendiam através do seu
caminho.
Coragem, companheiros, remem ! — gritava Tex ofegante.
----- Dêem tudo o que puderem. Para a frente. Velha barcaça, venha
ao nosso encontro !
1 18
O barco focinhou e embarcou uma tina de água com óleo infla
mado por cima da proa. Gib abafou o fogo com um cobertor no
momento em que escorria para ré e os outros continuaram remando.
Finalmente conseguiram. O escaler chocou-se de leve contra o
costado empolado do petroleiro, e Gib, empunhando o tirador que
pendia da popa, segurava-o fortemente. Estavam acostados, mas
tinham ainda de subir a bordo, e para não serem torrados pelo calor ou
sufocados pela fumaça precisavam agir com presteza.
Como Bull receava, os tiradores que pendiam dos turcos estavam
queimados demais para prestarem serviço; porém, no costado, ao seu
lado, balançava um estai da chaminé, arrancado durante o bombardeio.
Depois de lhe darem uns puxões para se certificarem de que sua
extremidade a bordo estava bem segura, Gib subiu por ele como um
acendedor de lâmpadas por uma escada, e os outros o seguiram de
perto.
Firmando o escaler com o croque enquanto esperava sua vez de
subir, Bull matutava sobre a possibilidade de salvar a embarcação. Fora
fácil falar em abandoná-la. Todavia, quando chegou a hora de fazê-lo e
de cortar deliberadamente todas as possibilidades de fuga do petroleiro
em chamas. ele hesitou. Ao ver. porém. o mar incendiado cercá-lo por
todos os lados, compreendeu que não tinha alternativa. Agarrou-se ao
estai na primeira ocasião em que o escaler atingia o topo de um
vagalhão, alçou-se até a balaustrada da popa, e olhou para trás para ver
o escaler ser arrastado por uma onda e engolfar-se nas chamas.
O primeiro pensamento que ocorreu a todos eles foi de se
refugiarem do lado do navio, situado a barlavento. Ali chegados
encostaram-se às anteparas empoladas e encheram os pulmões de ar
fresco e puro.
— Caramba ! — exclamou Corny ofegante. — Não desejo passar
por igual provação novamente, nunca mais !
Não terá de fazê-lo — disse Bull com segurança. — Foi
bastante duro, não há dúvida, mas valeu a pena, qualquer que seja a
sorte que nos espere.
Relanceou os olhos em derredor.
Mestuo que ainda não se ache danificado, um navio desertado e
abandonado ao sabor das ondas durante certo período de tempo adquire
aspecto lúgubre. Fazia três dias agora que o Cape Wrath

1 19
tinha derivado sem alma a bordo, e, além disso, não havia uma pole
gada quadrada de sua estrutura visível que não apresentasse marcas do
bombardeio ou do fogo. Expondo o costado ao impacto das ondas. ele
balançava de bombordo a estibordo e arfava fortemente, porém, de
maneira sinistra e a esmo; não mais lutando contra o mar, mas sim
entregue à violência das vagas, completamente à sua mercê. O gélido e
cortante vento que o fustigava assobiava de maneira tétrica através dos
rombos hiantes de suas anteparas e uivava ao longo de seus corredores
sem portas. Parecia mal-assombrado e abandonado; um casco morto
que outrora fora um navio. Bull sentiu um arrepio ao lembrarse disso e
afastou do espírito esse pensamento. Ele ainda não está morto, pensou
consigo mesmo; não, enquanto ainda estiver flutuando, e nós a bordo.
Retesou-se, em seguida, e virou-se para os companheiros.
— É melhor pormos mãos à obra — disse ele. — Temos muito
que fazer antes do cair da noite.
Quais são os seus planos, Bull? — inquiriu o Chefe.
Antes de mais nada, vamos abrigar-nos desta ventania em
algum lugar, para depois refletirmos.
Deslocaram-se para a popa, onde encontraram um abrigo livre
de fumaça, e puseram-se de cócoras a sotavento de um tabique
destroçado.
A primeira coisa — prosseguiu ele quando se achavam todos
agachados ao seu redor é verificarmos os recursos de que dispomos.
A seu ver havia três pontos que precisavam ser esclarecidos com
urgência. Primeiro, dispunham eles realmente dos alimentos, da água
e do abrigo, indispensáveis? Em segundo lugar, poderiam eles
reavivar a pressão da caldeira para dispor da água necessária ao
combate das chamas? Terceiro, poderiam eles dominar o incêndio?
Determinou que Dutch, ajudado por Gib e Scruffy, ocupar-se-iam da
primeira incumbência. Ele próprio, com Tex e Corny, investigariam
o problema do incêndio e fariam um plano para resolvê-lo. E o
Chefe, com o restante da tripulação, investigaria as possibilidades da
casa das máquinas.
Concordaram a respeito desse plano, e os três grupos puseram
mãos à obra.
120
O vento, soprando ligeiramente ante a ré do través arrastava a
fumaça do poço de popa, e Bull, junto com Tex e Corny, não
acharam dificuldade em descer para o convés principal. Deste ponto
de observação podiam examinar as chamas mais perto. À primeira
vista, entretanto, a situação parecia bastante desanimadora. A meio-
navio, onde se haviam produzido os maiores estragos, vislumbrava-
se o mesmo paredão de fumaça revolta de mistura com línguas de
fogo, que haviam presenciado três dias antes. Na aparência, as flamas
conservavam o mesmo ardor, a mesma altura e impenetrabilidade
que naquela ocasião. E todo o convés, desde o ponto em que se
achavam até sua extremidade, estava coberto de chamas. Bull,
porém, observou que elas escorriam.
Estão vendo o que acontece? — disse ele. São aqueles
rombos de granada nas chapas do convés. Quando o navio arfa o
petróleo dos tanques jorra por eles e pega fogo enquanto escorre para
os embornais 1. É como eu lhes disse. Se pudermos pôr um paradeiro
a essa situação, teremos meio caminho andado.
Não percebo bem o que quer dizer — tornou Corny abanando
a cabeça.
É muito simples — insistiu Bull. Não haverá mais nada para
alimentar as chamas, então, a não ser o petróleo remanescente nos
tanques arrombados, e este deve ser pouco, nesta altura, com o mar a
expulsá-lo constantemente pelas avarias do costado.
Compreendi sua explicação — tornou Tex. — E embora
ainda esteja queimando com tanta fúria como antes, isto nada
significa. A água que penetra pelos flancos do navio vai para o fundo
dos tanques por ser mais pesada que o óleo e impele este para cima.
Nem que haja apenas um palmo de petróleo boiando na superficie,
isso seria o suficiente para provocar um fogaréu, como se o tanque
estivesse cheio.
Exatamente ! acenou Bull afirmativamente. Nessas condições
a primeira coisa a fazer é começarmos pelo poço de popa, e vedarmos
1 Abertura das calhas que abrem para o costado para escoamento das águas do
pavimento. (N. do T.)
todos os buracos, lavando todo o óleo inflamado para que se escoe
pelos embornais.

122
Corny ainda hesitava. — Está tudo muito bem —— disse ele. —
Poderemos reconquistar o convés até chegarmos ao primeiro foco de
incêndio. Porém a mesma coisa acontece do outro lado assim como
ao longo do convés da proa.
— Está certo. Porém aquele grande rombo: não pudemos ainda
verificar até onde ele se estende, mas talvez tenhamos a possibilidade
de chegar até sua extremidade. Vamos procurar tábuas para tapá-lo.
O trabalho que pretendiam realizar requeria pranchas espessas de
longarinas, e até caixilhos de portas poderiam servir em última
instância, mas tudo se havia transformado em fumaça; todavia,
debaixo da coberta, à ré, havia uma oficina que escapara às chamas. O
espesso tabique de madeira que a separava do depósito conúguo
fornecer-lhes-ia toda a madeira de que precisavam; e, além disso, as
ferramentas para trabalharem — serras, machadinhas, martelos, e pés-
de-cabra — também se encontravam ali.
Até agora vai tudo bem! — disse Bull. — Vejamos o que
dizem os outros.
Reunidos os três grupos novamente no abrigo da popa, Bull
pediu-lhes que relatassem o que haviam constatado.
Gib foi o primeiro a falar. Não tinham topado com nenhum
contratempo. Os tanques de água potável estavam ainda pela metade e
incólumes. No que dizia respeito à água, tinham quantidade suficiente
para doze meses, se necessário.
Você a provou? — perguntou Bull.
Sim. Está em boas condições. Limpa e saborosa.
Ótimo. Tinha certo receio de que estivesse contaminada pela
fumaça do petróleo. E agora, a bóia?
Bem, a despensa estava fechada. naturalmente, mas achamos
um pé-de-cabra e Dutch arrombou a porta. O frigorífico está com
cheiro horrível e creio que tudo o que contém se deteriorou. Mas toda
a lataria parece achar-se em perfeitas condições como no dia do
embarque. Os secos também. E há montões de biscoitos e frutas
frescas.
Ora, viva ! E agora, a respeito das acomodações?
Menos bem! Gib fez uma careta. —— As cabinas e as
cámaras: percorremos tudo. Delas não resta grande coisa. Os
interiores estão arrasados, e as anteparas que ainda subsistem estão
crivadas de
123
buracos. Não poderiam manter afastados nem sequer marujos
bêbedos: que dizer do vento e da chuva! A única sala que ainda
conserva um aspecto regular é a sala dos fumantes situada à ré.
Isto abrangia toda a incumbência de Gib e era agora a vez do
Chefe. Seu relato também foi animador. Tinham aberto caminho.
através dos escombros, até a casa da caldeira e das bombas. Tinham
examinado tudo e já estavam produzindo vapor. Estariam em
condições de bombear água para o convés quando fosse necessário.
Ao que me parece — concluiu ele —, o navio está
completamente livre de petróleo na popa. Esta está tão cheia de
buracos, suponho eu, que o óleo não tem onde acumular-se. Que
conclusões tirou do incêndio?
Bull contou-lhes o que tinham visto no convés principal e seus
planos para combater as chamas e confiná-las nos tanques
arrombados até que se esgotassem inteiramente.
E depois? perguntou o Chefe.
Que quer você dizer com isso? — Bull arregalou os olhos.
— Não perca seu tempo, Bull! — o Chefe sorriu abanando a
cabeça. — Você não sabe dissimular. Sua cara é como um livro
aberto, impresso em letras de forma, e com desenhos coloridos; fácil
de decifrar. Você ainda guarda algumas dúvidas, não é assim?
Bull hesitou um momento. Relanceou os olhos pelos rostos que
o cercavam e coçou o queixo, decidindo-se então subitamente. —
Pois muito bem ! — disse ele. Ia ficar de bico fechado até ter certeza
de que as coisas estavam resolvidas, mas talvez seja melhor
desembuchar. Escutem, camaradas, desde que reconheci que este
casco em chamas era o Cape Wrath tive um palpite, e vocês sabem
que as últimas palavras que o Old Man me disse antes de morrer
foram, "siga os seus palpites, rapaz; aproveite-se deles o mais que
puder".
Estacou para olhar na direção do vento através da balaustrada
contorcida da popa, pensando no Capitão Holroyd, sentindo
novamente o terrível vácuo que sua morte deixara, e lembrando-se da
pesada responsabilidade que lhe colocara sobre os ombros. Estes
homens: vocé tem a obrigação de restituí-los aos seus lares. E agora
ele tinha o encargo não somente dos homens, mas também do navio;
o navio ao qual pertenciam mas que, acima de tudo, era dele . . . do
Old Man.
— Está bem, prossiga, Bull ! ----- disse Gib com impaciência.
— Desembuche.

124
Na minha opinião prosseguiu Bull com toda a calma —
não devemos simplesmente ficar de braços cruzados até que algum
navio nos recolha, mas, pelo contrário, repatriarmos o Cape Wrath
e terminarmos a viagem para a qual assinamos contrato.
Todos olharam para ele de olhos arregalados como se não
acreditassem no que ouviam.
— Com mil demônios ! —explodiu Tex finalmente. Você deve
estar louco. Eram necessários trinta e sete tripulantes para marear este
navio, quando ainda era de fato um navio, e agora que ele não passa de
um fantasma flutuante nós somos apenas catorze ao todo. A
engrenagem de direção foi espatifada, a bússola, os instrumentos de
navegação, os mapas, tudo sumiu, e ele está tão combalido que teremos
muita sorte se não dobrar-se pelo meio antes de sermos recolhidos. E
como se isso tudo não fosse bastante, seus motores estão em
pandarecos. Ora, não, Bull; vamos deixar de fantasias e nos
contentarmos em sobreviver no meio desta fogueira.
Olhe aqui, Tex — Bull inclinou-se para a frente ——, estarão
mesmo os motores em pandarecos? Esta é a questão. Nunca foram
examinados. Porém lembro-me de que, quando o Old Man decidiu
abandonar este petroleiro, o Chefe disse-lhe não acreditar que os
motores tivessem sido atingidos.
Isso é verdade — atalhou o Chefe -—, não posso ter certeza,
naturalmente, e há uma quantidade enorme de escombros a retirar do
caminho antes de eu poder examiná-los; porém, pela maneira como os
motores pararam, tive a impressão de que os condutos de combustível
tinham sido seccionados.
Se assim for, e nada além disso, quer você dizer que poderia
pô-los em movimento novamente?
Não posso afirmar o Chefe hesitava. Se pudermos tirar os
escombros; se pudermos encontrar a avaria dos condutos; se pudermos
ter acesso a eles e praticarmos algum conserto; e se o veio da hélice não
estiver torto e se a manga no pique de ré não estiver danificada .
Tex assobiou entre os dentes cerrados. —--- Acho que isto
constitui uma grande quantidade de ses, puxa vida.
A culpa não é minha. --— O Chefe fitou as mãos e franziu o
sobrolho. Pensava intensamente, calculando os recursos disponíveis,
tentando prever as dificuldades inesperadas. Era uma tarefa para ser
125
efetuada no estaleiro, necessitando de maçaricos de acetilene.
guin chos, encanadores, mecânicos especializados, e
engenheiros; e tudo que possuíam eram doze homens e dois
meninos, e alguns destes te riam de ser destacados para
combater as chamas. Somente ele tivera treino especializado no
manejo de ferramentas. Era uma tarefa espinhosa, sem dúvida.
Mas apesar disso a idéia de Bull começava a para fusar-lhe os
miolos. Subitamente deu uma palmada no joelho. — De quantos
homens poderei dispor? — inquiriu.
— Precisarei de Tex e Corny ao meu lado no convés
principal Bull contava nos dedos. — Isto deixa para você o
Dutch, que além do mais tem a força de um guincho, e os sete
outros além de você mesmo.
— E Scruffy e eu? — perguntou Gib.
Chegarei a vocês num instante — Bull dirigiu-se ao
Chefe. — Isto bastará para você?
— Teremos trabalho aos montes — o Chefe ergueu-se e
reuniu o pequeno grupo ao redor de si. — Vamos concentrar
nossos esforços para chegar a um dos dínamos, em primeiro
lugar, e pô-lo em funcionamento para termos luz com que
trabalhar durante a noite. Mas não contem com milagres.
Bull sorriu ao vê-los se afastarem, virando-se em seguida
para Gib e Scruffy. — Vocês dois são nomeados cozinheiro e
camareiro. Escolham as funções vocês mesmos, mas sem
demora. Acendam o fogão da cozinha. Não queremos nada
complicado para comer. Apenas carne enlatada, care e biscoitos.
Bastante café, contanto que esteja bem quente e forte. Depois
arrumem a sala de fumantes e tapem os buracos. Dormiremos
todos ali, como e quando pudermos.
O.K., Bull. Vamos rodando — os olhos de Gib
brilhavam de satisfação e ele tartamudeava de entusiasmo. -—-
Caramba, se conseguirmos, que espetáculo !
Se eles o conseguissem! Bull empinou o queixo para a
frente. Sabia perfeitamente que havia muitas possibilidades fora
do seu controle que poderiam derrotá-los e mesmo destruí-los!
Mas não queria saber de possibilidades negativas; pelo menos
enquanto o navio não se desintegrasse, e continuasse a flutuar.
Leve-os para seus lares, rapaz, dissera o Old Man. E era o que
ele ia fazer, com navio e tudo.

126
CAPtrULO 12

A CONQUISTA DE CAPE WRATH

ma vez que não se tratava de descascar batatas,


Scruffy se tornara esperto como um azougue. Assumiu o posto
de cozinheiro, fazendo observar, quando Gib protestou, que
isto era direito e conveniente porque só ele tinha tarimba.
Você não passa de um novato nesta brincadeira —
disse ele. — Por isso não fique aí em pé discutindo. Mexa as
pernas. Enquanto acendo o fogão da cozinha desça até a
despensa e traga os ingredientes. Precisaremos de uma lata de
caffe, uma caixa de leite condensado, uma caixa de carne
enlatada, meio saco de açúcar e uma lata de biscoitos.
— Ora, faça isto, faça aquilo? —- Gib fitava-o com olhos
arregalados. Você engana-se com o meu nome, belezinha; eu
me chamo Sparling, e não Hércules.
Está certo, está certo ! Mas use o bestunto. Não é preciso
trazer isso tudo de uma só vez.
Sem saber sobre que pé dançar, por uma vez na vida, Gib
abalou. Encontrou, porém, certo consolo no fato de ter o
controle da despensa. Isso era coisa com que havia sonhado
muitas vezes.
Caramba ! pensou com seus botões , se somente o
despenseiro pudesse ver-me agora ! Ficaria rubro de raiva.
Desenterrou as provisões que Scruffy pedira e carregou as
caixas uma por uma até a cozinha, deixando o açúcar por
último. Em seguida encheu os bolsos de biscoitos e o peito da
camisa com laranjas, e voltou para a cozinha.
Nessa altura Scruffy já tinha acendido o fogo e posto uma
grande panela cheia de água a ferver.
Agora disse ele ----- precisamos de vasilhas para beber;
xícaras, canecas, tigelas, jarros; catorze ao todo; veja o que pode
encon

127
trar na copa da câmara, enquanto vou tratar de pôr um pouco de
ordem nisto aqui.
Era porém uma tarefa desanimadora a que Scruffy se
impusera. As paredes da cozinha, como todas as anteparas do
navio, estavam perfuradas por estilhaços de granada, retorcidas
e enegrecidas pelo fogo; os ladrilhos do piso estavam quebrados
formando montões; uma das portas de aço tinha sido arrancada
e as outras, deformadas, batiam lugubremente a cada arfada do
navio; todos os apetrechos tinham sido arrancados de seus
lugares, e os cacos dos potes juntamente com panelas e
utensílios culinários estavam no chão misturados com eles.
Este lugar me deixa nervoso exclamou ele quando Gib voltou.
— Nunca conseguiremos dar um jeito nesta balbúrdia.
Naturalmente. Aí tem você! — Gib despejou uma
quantidade de louças em cima de um armarinho. — Seis
xícaras sem cabo, quatro jarros, três canecas desbeiçadas e uma
vasilha de pudim. Esta é a minha. Nela cabe mais que nas
outras. Acabe com essa cara de dor de barriga, pelo amor de
Deus. De todo jeito estamos melhor aqui do que no escaler.
Isso é que eu não sei! suspirou Scruffy. — Acha você
que eles têm probabilidades de apagar o fogo e levar este
calhambeque para casa?
Você ouviu o que disse Bull, não é?
Sim, eu sei; porém. . .
Olhe aqui, irmão ! — atalhou Gib. — Não se esqueça.
Quando Bull Barlow abre a boca para dizer alguma coisa, ele
sabe o que está dizendo; quando não sabe, ele fecha o bico,
compreendeu? Antigamente eu o achava um pouco tapado,
porém, acredite-me, mudei de opinião desde que nos lançamos
nesta aventura. Ele apagará o fogo, e se o Chefe conseguir pôr
os motores em movimento, novamente, ele levará este navio
para casa.
Mas como, sem bússola e sem engrenagem do leme?
Não quero saber; sou apenas um principiante, como
você já disse — Gib sorriu e apontou para a panela no fogo. —
A água já está começando a ferver. Você se promoveu a
cozinheiro, por isso é melhor fazer o caffe enquanto eu chamo
a tripulação.
Aquela perspectiva de um caffe bem quente, doce e. leitoso, era
a

128
coisa mais maravilhosa que lhes tinha acontecido em toda a
vida. Beberam-no em pé na cozinha, devorando os sanduíches
de carne enlatada que Scruffy preparava para eles enquanto
engolfavam o caffe. O seu calor aquecia-lhes o estômago,
afugentando a frialdade que lhes penetrava até os ossos e
comunicando-lhes nova vida e esperança.
E era justamente disso que eles precisavam, pois
começavam a aquilatar a imensidade e a dificuldade da tarefa
que tinham pela frente.
A turma de bombeiros de Bull havia desmontado o tabique
da oficina e, quando Gib foi chamá-los estavam serrando as
pranchas em tamanhos adequados para formar tampões.
Voltaram ao seu trabalho logo que terminaram de comer e,
deixando Corny manobrando a serra, Tex e Bull carregaram os
pedaços de madeira que já estavam prontos para o poço da popa.
Depois muniram-se de uma machadinha e de um malho de
carpinteiro, colocaram a mangueira no lugar trazendo água para o
convés, e aprontaram-se para iniciar o trabalho.
Tudo, incluindo muito provavelmente suas próprias vidas,
dependia agora do êxito desse plano para tampar os tanques
menos danificados. Tudo parecia muito certo em teoria, porém, ao
se aproximarem do primeiro furo de granada na frente da antepara
da popa, Bull ficou subitamente hesitante. Contrapondo-se à
ferocidade e à extensão do incêndio, parecia-lhe uma loucura
pensar dominá-lo com os magros recursos de que dispunham.
Dissimulou as suas dúvidas, no entretanto, e reprimindo o seu
desânimo examinou o rombo.
Tinha pouco mais ou menos seis polegadas de diâmetro,
porém suas bordas eram denteadas, e quando introduziu no
buraco o tampão de madeira ainda subsistiram muitos vãos
entre ele e as bordas da chapa, através dos quais o petróleo
continuava a jorrar a cada arfada do navio.
Não está lá muito bom disse ele laconicamente. —
Quer me parecer que não conseguiremos vedar completamente
este buraco a menos se amoldarmos o tampão exatamente à
forma do buraco. Mesmo que tivéssemos as ferramentas
necessárias para fazê-lo, não teríamos o tempo. Isso não deu
certo. Teremos de achar outra solução.
E se calafetássemos as beiradas sugeriu Tex. Vi dois sacos
de desperdício na oficina. Isso poderia servir.
129
Mas naturalmente! — Bull estalou os dedos —Não tinha pensado
nisto.
Os sacos de estopa foram trazidos para o convés, e enquanto Tex
dirigia o jato da mangueira para a área ao redor do buraco, Bull
enfiava a estopa em redor do tampão para vedar os vãos. Terminado o
trabalho recuou e observou ansiosamente o que acontecia quando o
navio balançava para bombordo e para estibordo. O que ele receava
agora era que o óleo arremessado contra a parte superior do tanque
viesse a expelir o tampão; porém este resistiu, e ele teve a impressão
de que tinham marcado um tento.
Sem cantar vitória, o que lhe parecia um pouco prematuro,
dirigiram-se para o próximo rombo de granada.
Enquanto isto a noite chegava e, embora o convés se achasse
iluminado pela luz pálida das chamas, a necessidade de luz na casa
das máquinas tornava-se imperativa. O Chefe, deixando aos seus
companheiros a incumbência de pôr ordem no amontoado de canos
partidos, corrimões contorcidos, vidros quebrados e madeira lascada
que juncavam grande parte da casa das máquinas, concentrou-se na
tarefa de atingir os motores. Pelo menos um dos geradores estava
incólume; porém, antes de pô-lo em movimento os circuitos tinham
de ser examinados e os cabos consertados ou substituídos.
Foi outro maravilhoso momento para todos eles quando
finalmente o gerador começou a funcionar, e seu calmo e constante
zumbido dissipou o silêncio sepulcral que reinava no navio; e, quando
o Chefe manobrou a chave da luz, parecia que o petroleiro começava
subitamente a viver e a respirar de novo. Receberam a luz como uma
promessa, uma espécie de penhor, sentindo que depois de conquistar a
escuridão poderiam também conquistar a vitória final.
O vento vinha agora de noroeste e amainara sensivelmente,
porém, a agitação do mar ainda permanecia violenta. O petroleiro em
chamas, sem motores de propulsão e com caimento para avante,
continuava a arfar com a proa pouco acima das ondas. Seus
movimentos eram lentos e ritmados, se bem que pronunciados; uma
constante arfagem dificultava o trabalho da tripulação. Continuava a
embarcar água no castelo de proa, e em todo o seu derredor o mar
vomitava nuvens de fumo e chamas do petróleo chamejante que
jorrava dos tanques arrombados.
Foi uma noite de tormentos para todos eles.

130
Gib e Scruffy fizeram o possível para pôr ordem na sala de
fumantes a fim de torná-la habitável. As mobílias e adornos
chamuscados foram arremessados ao mar, a entrada sem porta
vedada contra o vento, e um cobertor pendurado para tapar a outra.
Arranjaram uma mesa improvisada, depois de vasculharem as
dependências destroçadas da popa, e conseguiram fabricar certo
número de catres improvisados.
Isto é o máximo que podemos fazer, creio eu disse Scruffy,
contemplando o resultado do trabalho que tinham efetuado.
— Sim, e não está tão ruim, pra que se diga. A única coisa que
está faltando é um lacaio fardado na porta e uma tabuleta de neónio
por cima. Palace Hotel ! — Gib experimentou um dos catres. — Não
é propriamente um leito de rosas. Fede como um cão felpudo
secando os pelos ao pé do fogo, mas é mais macio do que as
pranchas do fundo daquele escaler. Vamos fazer mais caffe, e depois
poderemos anunciar a Bull que o albergue noturno está pronto.
O esforço mental e o cansaço fisico dos últimos dias começavam a
fazer-se sentir nos membros dos dois meninos. Dormiam praticamente
em pé, e quando Bull se dirigiu à ré para tomar care, ordenoulhes que se
recolhessem e se deitassem.
Que esperança! — protestou Gib. — Scruffy e eu estamos
apenas começando a organizar as coisas e continuaremos a trabalhar
com o resto da turma; só iremos deitar-nos quando vocês forem.
Escutem aqui, seus trastezinhos com caras de pastelão! —
vociferou Bull. — Não quero carregar vocês nos meus braços. Já
temos bastante o que fazer sem isso. Vão já deitar-se vocês dois; e,
se eu pilhar vocês no convés novamente antes do amanhecer, vão
ver o que é bom. Já para dentro !
Não podiam discutir com aquele estranho e carrancudo Bull
Barlow, e escafederam-se sem dizer palavra; porém ninguém mais
pensava em se recolher. Teriam bastante tempo para pensar numa
soneca quando o fogo estivesse apagado e as máquinas em
movimento, se é que isto iria acontecer; e se não acontecesse já não
estariam mais pensando em dormir ou em qualquer outra coisa.
Com os olhos vermelhos e cambaleando de cansaço,
continuaram a trabalhar a noite toda. O vento cortava através de
suas vestes molhadas, regelando-os até a medula dos ossos;
estavam meio

132
sufocados com a fumaça dos gases do petróleo. e
continuamente ameaçados pelas chamas que
revoluteavam na tempestade e avançavam para eles.
Conquistavam pouco a pouco o convés principal, porém
seus progressos eram terrivelmente lentos, e na sua frente
a parede turbilhonante de fumaça e de chamas do tanque
arrombado atrás da ponte ainda se projetava para o céu. A
cada passo que avançavam no convés este se tornava
mais quente sob os seus pés.
Depois de dormir como uma pedra durante oito
horas, Gib acordou ao amanhecer. Tirou Scruffy da cama,
e, deixando-o para fazer caf'e, dirigiu-se para a frente do
castelo de popa para verificar os progressos que se tinham
efetuado.
Qual é o aspecto das coisas agora? — perguntou Scruffy
quando ele voltou para a cozinha.
Parece o fundo sujo de um braseiro; porém o
tempo continua a melhorar. Há uma abertura nas nuvens a
barlavento. Vamos andar com essa bóia, pelo amor de
Deus.
Bull já tinha observado sinais de uma melhoria do
tempo no claro do céu e o fato de que o navio jogava
menos. Sentiu-se animado, por mais cansado que
estivesse, e depois de comer reuniu os homens em seu
redor para que lhe relatassem os trabalhos efetuados.
Reconquistamos todo o convés principal atrás do
mastro grande nesta altura — disse ele —-, e embora
progredindo lentamente avançamos com segurança. É isso
que importa. Os tampões que colocamos permanecem em
seus lugares, e onde estancamos a saída de óleo acabaram-
se as chamas. À medida que o mar se acalma, e que o
navio joga com menos violência, nosso trabalho tornar-se-
á mais fácil e mais rápido.
— E o incêndio principal — perguntou o Chefe. — Como
resolveremos esse problema?
Parece mais intenso do que nunca, mas, quanto mais
depressa o óleo queimar, mais depressa acabará a reserva do
tanque. Como vão as coisas lá embaixo?
— Assim, assim! — O Chefe estendeu as mãos.
Quem me dera dispor das ferramentas e do equipamento
necessário, e de uns dois montadores! Ainda não posso
prometer coisa alguma, porém tenho esperanças.
— O.K.! Já não é tão mau — Bull ergueu-se, e apoiando-
se à

133
antepara destroçada esfregou os olhos com o dorso da
mão. Ouvia sua própria voz. mas parecia-lhe que vinha
de fora e de lugar distante. — São horas de recomeçar a
trabalhar novamente.
Escute, Bull! —- O Chefe apoiou a mão ansiosa
sobre seu ombro. Você já trabalhou bastante. Vá
descansar durante umas duas horas.
Não, sinto-me bem ! Bull abanou a cabeça.
Sentia-se inerte de cansaço, e a tentação de encostar-se e
cerrar as pálpebras, de descansar apenas por alguns
minutos, era quase avassaladora; mas ele sabia que se o
fizesse perderia o controle sobre a sua vontade. Custasse
o que custasse ele tinha agora de conservar-se de pé até
completar o seu trabalho. Ergueu-se e retesou-se.
Descansarei quando o fogo estiver apagado e as
máquinas em movimento.
Isso é muito bonito, mas suponha que não
consigamos dominar o incêndio?
Bull encarou-o. — Temos de consegui-lo, nem que isso
leve uma semana.
Afastou-se levando Tex e Corny para a luta.
O casco do navio, como o de todos os petroleiros,
era dividido em diversos segmentos por meio de
anteparas transversais e, trabalhando em toda a largura
do navio, conquistavam esses compartimentos tornando-
os estanques e seguros um depois do outro.
Durante todo esse tempo, Bull sentia-se espicaçado
pela ansiedade a respeito do tombadilho de proa. Que
constatariam eles quando tivessem dominado o fogo até
a altura da ponte e pudessem então relancear os olhos
para avante? Quanto trabalho lhes restava ainda por
fazer? Quais os novos perigos e dificuldades que teriam
de enfrentar? No meio da manhã já se tinham
aproximado suficientemente das labaredas atrás da ponte
para poderem vislumbrar os bordos denteados do rombo
no convés de onde elas jorravam. Estendia-se desde
bombordo quase até meia-nau; e desde sua extremidade
interior até estibordo o convés continuava a ser lavado
pelo petróleo inflamado.
Bull examinou a situação atentamente durante
alguns instantes, virando-se em seguida para Tex. — Vou
dar uma olhadela para averiguar qual é a situação avante
da ponte disse ele.
Puxa vida! — Tex olhou para ele estarrecido. — Está
fican-

134
do louco? Ficará cozido como uma salsicha sobre a chapa
do fogão.
Nada disso. Conseguirei passar. Dirija o esguicho
para os meus calcanhares à medida que eu avançar.
Antes que Tex pudesse esboçar um gesto para detê-lo,
Bull já tinha partido. Saiu correndo com um dos braços em
cima do rosto para proteger os olhos e prendendo a
respiração para não aspirar a atmosfera esbraseada e a
fumaça sufocante. Durante uns dez metros correu
cegamente através da fumaça densa e das línguas de fogo,
e depois, subitamente, achou-se na quina da superestrutura
central, ultrapassando-a.
Tex, cujo coração lhe subira à garganta ao vê-lo
desaparecer, continuou a dirigir o jato de água em sua
direção esperando que ele reaparecesse. Passaram-se no
máximo uns dois minutos, talvez menos que isso, mas
pareceu-lhe ter esperado uma eternidade, e estava a ponto
de correr para ré para organizar uma turma de socorro,
quando o vulto reforçado de Bull vislumbrou novamente
de dentro da fumaça. Um instante depois ele irrompia fora
das chamas agarrando Tex pelo braço.
— Tudo vai bem, Tex — disse ele ofegante. Vencemos;
conquistamos o navio !
O que quer dizer?
O grande incêndio avante: está extinto; o combusúvel
esgotou-se de acordo com o meu palpite. Ainda há alguns
buracos no convés da proa que precisam ser vedados para
maior segurança, mas já não existem chamas por lá
suficientes para acender uma vela.
Está certo disso? — perguntou Tex. — Será que você
não está fora de si, vendo as coisas trocadas?
— Nem pense nisso ! É verdade o que lhe estou
dizendo. . . B ull curvou-se para a frente tossindo para
expelir a fumaça dos pulmões. Quando ergueu-se
novamente agarrou o braço de Tex. olhe para estas
chamas: elas também estão se apagando !
Tex virou-se e viu que a grande muralha de fumaça e
de chamas, que durante dias a fio se interpusera entre o
castelo de proa e a ponte, diminuía gradativamente,
perdendo altura e volume. Depois começou a cair sobre si
mesma enquanto o óleo cessava de jorrar dos tanques
avariados. Dentro de poucos minutos tinha diminuído
tanto que a
135
superestrutura central se desvendava com clareza, e ao redor do
rombo do convés os bordos denteados da chapa rasgada apareciam
ainda rubros.
— Caramba ! — sussurrou Tex. — Vejam só!
Depressa, dê-me o esguicho! — disse Bull. — Corra para a
popa e diga aos outros.
Vou correndo. Hurra !
E berrando como um louco, Tex correu para a popa.
136
CAPÍTULO 13

CÉU VERMELHO PELA MANHÃ

Enquanto os últimos resíduos de petróleo dos tanques


eram impelidos para fora pela água do mar que penetrava pelas avarias
do costado, o círculo de fogo que circundava o Cape Wrath se
extinguia, e ao meio-dia a última chama que bruxuleava a bordo se
apagava. Em vez de uma bomba com estopim aceso, tinham agora
debaixo dos pés o que outrora fora um petroleiro. Ainda aquecido ao
rubro em certos lugares e encerrando perto de dez mil toneladas de sua
carga inflamável, continuava sendo uma terrível ameaça; porém
flutuava, e eles podiam locomover-se a bordo sem serem chamuscados
pelas chamas, e meio sufocados pela fumaça e vapores deletérios.
Depois de realizarem tão grande façanha, era terrível a
tentação de ficarem de braços cruzados, mas havia, ainda, muita
coisa a realizar, para que o fizessem.
Precisamos de qualquer jeito continuar a luta até sabermos
exatamente o que poderemos conseguir — declarou Bull enquanto
engolfava mais um bule de café fumegante. Estava cansado demais
para comer. A fadiga pulsava e retinia nas suas artérias, enquanto a
força de vontade impelia para a frente implacavelmente seu corpo
dolorido. — Daremos primeiramente uma olhadela às instalações
do castelo central e da ponte de comando.
— Mas tudo ali deve estar em escombros — disse Corny.
Creio que sim. Apesar disso, precisaremos certificar-nos de
tudo, e, ademais, precisaremos cuidar dos restos mortais do
segundo imediato e do piloto. Quem era mesmo? Já me esqueci.
— Dingo Smith — Tex ergueu-se e esticou os braços. Para
adiante então, e acabemos com isto.
O passadiço não era atualmente mais do que um amontoado de
corrimões retorcidos e espeques dobrados e, para atingirem o castelo
137

central, tiveram de caminhar pelo convés principal. Lá chegando


constataram que Corny tinha razão. Nada restava dos corredores,
cabinas, salão e copa do camareiro, a não ser anteparas enegrecidas pelo
fogo. O mesmo acontecia com o apartamento do capitão na coberta
inferior. Olhando para a sala de estar do Old Man, e lembran do-se do
que ela fora — bem arrumada, de limpeza imaculada, e aspecto
agradável -—, rememorando também os dias felizes que vivera a bordo,
Bull sentiu-se empolgado por um sentimento de profunda tristeza.
Depois lembrou-se de Slade e de Dingo Smith, sentindo súbita
repugnância em subir ao tombadilho superior. Procurava um meio de
desobrigar-se dessa tarefa quando Tex lhe tocou o ombro de leve.
— Você já fez bastante — disse ele com aquele fino tato que o
caracterizava. — Deixe essa tarefa a Corny e a mim. Fique por aqui
e nós o avisaremos com um grito quando tivermos terminado.
Sentou-se na entrada sem porta da cabina do Old Man e ficou à
espera. Os passos ressoaram na escada e no piso do tombadilho
superior. Ouviu durante algum tempo suas vozes sussurrarem e,
depois, calarem-se para ceder lugar a um silêncio que parecia
eternizar-se; e novamente Tex voltou para seu lado.
— Está tudo em ordem agora, Bull — disse ele. —
Envolvemos os corpos em cobertores e os colocamos no convés
principal.
Obrigado, Tex. Faremos os funerais ao cair do sol. — Buli
deu um suspiro longo e trêmulo, ficando de pé. — Agora vamos
trabalhar.
Contra toda razão e possibilidade, ele ainda se agarrava a uma
leve esperança de que, devido à elevação da ponte de comando,
alguma coisa ainda poderia ser recuperada ali: uma agulha
magnética, um sextante, um mapa aproveitável, ou uma tabela de
navegação. Porém não havia nada. A sala dos mapas, tendo a
estrutura de madeira, havia sido completamente consumida com
tudo o que continha. Havia desaparecido a agulha-padrão, e o que
restava da agulha-de-governo jazia de mistura com os escombros da
roda do leme e de seu pedestal.
— Não há dúvida de que tudo por aqui foi arrasado ! — disse
Corny. — Que faremos agora?
— Teremos de pilotá-lo da própria popa — disse Bull.
— Mas a roda do leme à ré foi varrida pelo bombardeio.
Está certo. Mas poderemos improvisar alguma coisa. Antes
de tudo precisamos investigar as condições do leme.

138
E se estiver emperrado?
Teremos de pô-lo a funcionar.
Corny coçou a cabeça. — É muito fácil falar, mas suponha que a
madre 3 1 esteja empenada?
Escute aqui, Corny. — Bull não se fazia ilusões a respeito
das dificuldades. Não queria tapear-se a si próprio. Mas acontecia
que, tendo conseguido chegar àquele ponto, não iria desistir agora
do Cape Wrath, nem que levasse doze meses para conduzi-lo ao
destino. Esfregou os olhos com o dorso da mão. — Eu o preveni de
que não se tratava de um piquenique, não é mesmo? Mas disse-lhe
também que eu tinha um palpite. Ainda tenho esse palpite, e estou
confiando nele. Caso a madre esteja empenada, fabricaremos um
leme de emergência, nem que tenhamos de recortá-lo de uma
antepara com a ajuda de martelo e talhadeira.
Conduziu-os novamente à ré, para a popa.
Desde o amanhecer o rasgão no manto de nuvens se abrira
constantemente e agora, embora grandes massas de extratos e
cúmu10s cobrissem o horizonte, o zênite estava claro, e um pálido
sol hibernal acariciava de viés o petroleiro desarvorado. Havia tanto
tempo que não via um raio de sol que aquela sombra projetada sobre
o convés pareceu estranha a Bull.
— Tomara que isso dure— rosnou Tex olhando de soslaio para
o céu.
A agitação das ondas decrescera consideravelmente naquela
altura, porém o barco ainda jogava fortemente, alternando
movimentos brandos com ocasionais arfadas de proa que lhe
levantavam a popa bastante alto fora d'água para que se pudesse
avistar o leme. Pendurado de maneira precária do lado de fora da
balaustrada, Bull examinou-o durante algum tempo, pulando em
seguida de novo para bordo.
Não há sinais visíveis de avaria no leme — disse ele -—,
mas, certamente, está emperrado em algum lugar. Deve ser cruzeta.
Vamos examiná-la e não se esqueçam de fazer figa.
A madre penetrava no claro do cadaste32 através de um bucim
estanque e a cruzeta era uma enorme e pesada estrutura na cachola da
madre. Como o nome indica, tinha a forma de um quarto de círculo.

31 Eixo de suporte do leme. (N. do T.)


32 Peça da popa em que assentam as dobradiças do leme. (N. do E.)

140
colocada em ângulo reto em relação à madre, paralelamente à
coberta, sua extremidade curva era denteada, e esses dentes se
adaptavam a uma engrenagem do servomotor do leme.
Normalmente esse motor era controlado pela
situada na ponte através de um sistema de comando à
distância, por meio de um telemotor que abria uma válvula
fazendo com que o eixo da engrenagem giraqse numa direção
ou noutra conforme a roda da ponte girava para bordo ou
estibordo. Essa rotação era comunicada à engrenagem que
deslocava a cruzeta e, com esta, o leme. Finalmente, molas
presas à cruzeta absorviam os choques imprimidos ao leme
pelas ondas do mar.
Bull sabia que o sistema do telemotor estava avariado
sem esperanças de poder ser recuperado. Isto significava que o
servomotor, quando mesmo intacto, não poderia ser
aproveitado porque eles não possuíam os meios para controlá-
lo. Uma outra fonte de energia deveria ser encontrada e
aplicada à cruzeta; porém antes disso a cruzeta precisava ser
desligada do servomotor. Tudo, agora, dependia disto, e,
quando eles penetraram no pique da ré 33 e puderam verificar o
que acontecera ali, o coração de Bull pareceu afundar-se-lhe
até as botas.
A coberta tinha-se dobrado debaixo do servomotor, e
este, parcialmente deslocado do seu assento, formava um
ângulo com a cruzeta.
— Puxa vida ! — disse Tex. — Não é de admirar que o
leme esteja emperrado. Se há tarefas próprias para um
estaleiro, esta é uma delas. Parece que estamos fritos.
Mas Bull não o escutava. Estava estendido de bruços,
apalpando a parte inferior da cruzeta. Vagarosamente examinou-a
de todos os lados e depois ergueu-se.
— Está livre por baixo — disse ele, coçando a cabeça e
franzindo o sobrolho com a carranca fechada.
— Não vejo de que isto adianta — rosnou Corny. — É
melhor subirmos para o convés e cuidarmos de melhorar as
probabilidades de sermos percebidos por um navio que nos possa
recolher. Estávamos birutas quando pensávamos que este
calhambeque nos pudesse levar para casa.
— Não, espere um pouco ! — Bull retesou-se sentando-se
sobre
33 Compartimento estanque à ré do navio. (N. do T.)

141
a cruzeta emperrada. Isso tem uma grande importância. Significa
apenas que bastará deslocarmos o servomotor para que a cruzeta
fique livre.
Apenas isso ! — o rosto de Tex ficou mais comprido do que
nunca enquanto os cantos de seus lábios desciam e ele erguia as
sobrancelhas. — Como arranjaremos as ferramentas necessárias e
um guincho?
Ainda existem muitas ferramentas na casa das máquinas e lá
poderemos arranjar também uma talha com as respectivas correntes.
Precisaremos de uma chave de boca que sirva nas porcas das cavilhas e
um malho para desprendê-las.
Ainda não estou convencido. — Tex abanou a cabeça.
Supondo que consigamos desatarraxar as porcas, supondo que
encontraremos uma talha bastante forte para levantar o servomotor,
ainda resta saber onde você vai prender a talha . . .
Não estava pensando em suspender o motor. Isto de nada nos
adiantaria — explicou Bull. Apontou para um pontalete. —
Colocaremos um estropo ao seu redor e engataremos a talha para ele.
Depois, quando tivermos tirado as porcas, teremos apenas de puxar até
que o motor se incline afastando-se da cruzeta. Teremos que peá-lo a
algum lugar em seguida, mas isso não apresenta dificuldade.
Tex olhou para Bull com brilho nos olhos, e depois se afastou
repentinamente para examinar o motor. Isto feito ergueu-se e abanou
a cabeça novamente.
Não é possível, Bull — disse com cara desanimada.
— Mas por quê?
As cavilhas que prendem o motor são compridas demais.
Poderemos desatarraxar as porcas mas as cavilhas ainda ficarão no
lugar, e quando começarmos a puxar elas vão emperrar nos buracos.
Isto para começar. E depois tem também o flanje 3 4 inferior do
pinhão. Prender-se-á à parte inferior da cruzeta, impedindo o motor
de sair do lugar.
Suponho que você tenha razão disse Bull. — Vamos dar mais
uma olhadela. Todos os três colocaram-se agora ao pé do
4 Disco, em forma de aro, adaptado ou fundido na extremidade de um tubo e com
que sefaz ligação a outro tubo idêntico. (N. do E.)

142
motor. Eram marinheiros, e não mecânicos. e naquele momento esta
vam confusos; em seguida Corny deu uma palmada na coxa.
Já sei ! disse ele. É muito simples. Tiramos as porcas e depois
cortamos as cavilhas rentes com a chapa do assento. Serras de arco !
Isto resolve tudo.
Pois sim! — disse Tex. — Temos de resolver ainda o problema
da roda do pinhão. Que diz você, Bull? Teve alguma idéia?
Não sei ainda — Bull falou lentamente, porém seu espírito
trabalhava depressa e metodicamente. Está chaveada ao eixo, não é
assim?
— Certo, isso mesmo.
Pois bem, se retirarmos a chaveta ele poderá deslocar-se
livremente para cima e para baixo, não é assim?
Você se esquece dos flanjes.
Não, é justamente nisto que estou pensando. É o flanje debaixo
que constitui nossa dor de cabeça, e podemos alcançá-lo; mas
poderíamos tirar o de cima com a talhadeira e uma vez retirada a
chaveta tudo sairia, ou pelo menos poderíamos martelá-lo para baixo
para soltar a cruzeta enquanto afastamos o motor. Compreendeu o que
quero dizer?
Poderíamos experimentá-lo — disse Tex com ar de dúvida. —
Mas precisaríamos de qualquer maneira de luz para vermos o que
fazemos.
— O Chefe se incumbirá disso. Vou falar com ele a esse respeito
enquanto vocês dois vão buscar as ferramentas.
O Chefe, quando Bull lhe explicou o problema e como pretendiam
resolvê-lo, encarou com pessimismo as possibilidades de êxito,
dizendo-lhes, entretanto, para levarem as ferramentas de que
precisavam. No que diz respeito às luzes, foi positivo. Era preciso
substituir inteiramente a instalação e ele não dispunha nem dos homens
nem do material necessários para essa tarefa.
— Mas não poderia você improvisar qualquer coisa para nós?
— perguntou Bull.
— Por que não umas duas lâmpadas de querosene?
— Muito perigoso -— Bull abanou a cabeça. — Não há
ventilação no pique da ré e pode haver ali resquícios de vapores
inflamáveis. Seria uma loucura levar para lá uma chama; seria
provocar uma

143
explosão. Se somente tivéssemos um farolete manual e algumas
pilhas !
Se somente não tivéssemos encontrado aquele Jerry, ou se a
guerra não tivesse sido deflagrada, diga logo ! tornou o Chefe com ar
arrevesado. Existe uma lâmpada manual no almoxarifado. Podia ser
ligada ao quadro de distribuição, porém o cabo condutor não seria
bastante comprido.
Bem, isso já não é mau. Haveria inconveniência em
aproveitarmos os fios dos circuitos danificados para prolongarmos o
cabo?
— Unindo as extremidades, é o que quer dizer? — O Chefe
franziu a testa. — Teria de tomar cuidado com as junturas; isolá-las
para que não produzam curtos-circuitos. Isso lhes tomará bastante
tempo.
Bull sorriu. --— Agora que já apagamos o fogo, tempo é coisa
que temos em abundância ! Avisar-lhe-ei quando tiver completado o
serviço para que você faça a ligação para mim.
O Chefe assentiu com a cabeça, e voltou para a sua tarefa de
consertar os condutos de combustível, enquanto Bull foi à procura de
Tex e Corny no almoxarifado, e examinou as ferramentas que eles
haviam separado.
Havia uma pesada chave de boca com cabo comprido, um malho,
duas serras de arco com diversas lâminas, meia dúzia de talhadeiras de
diversas dimensões, um martelo, e o toca-chavetas, que nada mais era
do que uma talhadeira sem a ponta cortante. Quando esse material foi
transportado para o pique da ré, voltaram para pegar as talhas e um par
de pés-de-cabra, e, deixando os outros dois desatarraxando as porcas
das cavilhas na semi-obscuridade, Bull pôs mãos à obra com um par de
alicates e um enorme rolo de fita isolante.
Sua tarefa era tediosa — desprender longas extensões de fios de
suas alças nas anteparas, eliminando as partes suspeitas, cortando os
envoltórios e a capa isolante para desnudar as extremidades, fazendo a
conexão destas últimas e envolvendo-as com fita isolante. E o fato de
esse trabalho não constituir o verdadeiro problema, porém apenas um
degrau para atingi-lo, tornava-o ainda mais impaciente de terminá-lo.
Enquanto trabalhava ouvia Tex e Corny baterem vigorosamente com o
malho no cabo da chave de boca, e desejava ajudá-los. Haviam eles
encarado o problema corretamente? Poderiam eles talhar
e afastar a máquina do leme para libertar a cruzeta? E, quando o
tivessem conseguido, estaria o leme livre ou haveria outra coisa que
lhe impedisse os movimentos e que eles ainda ignoravam?
Obrigando-se a trabalhar cuidadosa e metodicamente, apressava-
se o mais que podia. Pendurara a lâmpada na máquina do leme e
caminhava para trás ao longo do fio até o quadro de distribuição da
casa das máquinas, acrescentando segmentos de fio ao seu
comprimento enquanto percorria os corredores e descia escadas.
O entusiasmo com o êxito obtido contra o fogo o animara durante
algum tempo, mas, à medida que a tarde avançava, o cansaço tornava a
empolgá-lo. Isto o fazia mais impaciente, pois duvidava que pudesse
agüentar mais uma noite sem dormir, estando entretanto convencido de
que precisava elucidar o problema do leme antes de ceder ao cansaço.
O sol já se punha quando terminou sua tarefa, e o Chefe fez a
ligação que lhes dava a luz de que necessitavam. Reuniu então a
tripulação e, com toda a decência que permitiam as circunstâncias,
fizeram os funerais dos restos mortais de Slade e Dingo Smith.
Tinham passado por muita coisa desde o encontro com o
couraçado e o brutal bombardeio; e, além dos sofrimentos fisicos e das
privações que tiveram de enfrentar, da tensão mental, da ansiedade e
dos riscos por que passaram, tinham se esforçado até os últimos limites
da resistência humana, sem descanso, dias a fio. Todos eles estavam
perto do completo esgotamento agora, e aquele momento não era
somente triste porém também excruciante. De pé no tombadilho
destroçado pelas granadas, Bull olhava aquele quadro desolado de um
navio completamente destruído pelo fogo para a vastidão deserta do
mar que os circundava e mordia os lábios. Estariam eles iludindo-se a
si próprios? — perguntava a si mesmo. Tinham ainda tanto que fazer, e
tão poucos recursos ao seu dispor; tanto caminho a percorrer, e nada
para guiá-los. Não seriam Slade e Dingo e o Old Man mais felizes do
que eles por terem todos os seus problemas resolvidos e suas dúvidas
solucionadas?
Durante alguns instantes sentiu-se derrotado, acachapado sob o
peso da responsabilidade que carregava nos ombros; foi então que
Tex, como se adivinhasse seus pensamentos, apoiou-lhe a mão nas
costas. Bull virou-se e olhou para ele. O rosto longo e magro estava
145
desfigurado, porém os olhos eram serenos, e no fundo deles brilhava
uma chama indestrutível e indomável. Relanceou os olhos por Corny,
pelo Chefe e por Dutch e por todos os outros em seguida; e na face de
todos via a mesma coisa. Era a fé que tinham em si próprios e nos seus
companheiros, e, muito embora não pudesse dar-lhe um nome,
reconhecia que era algo que lhes era inspirado pela luta e os sofrimentos
que tinham enfrentado juntos. Essa constatação incutiu-lhe ânimo, e,
enquanto o sol de inverno se deitava atrás das nuvens do horizonte,
conduziu-os novamente para a popa.
Comeram todos de pé e depois voltaram ao trabalho: o Chefe
com sua turma na casa das máquinas, e Bull com a sua na casa do
leme.
Às oito horas tinham retirado as porcas dos fustes da chapa de
assentamento e puseram-se a serrar os mesmos. À meia-noite o
último fuste estava serrado e voltaram-se para o flanje da roda da
engrenagem. Era trabalho para um único homem e demorado.
Arrevesando-se em curtos períodos, dedicaram-se à tarefa através da
noite, entalhando pacientemente o aço duro com o esmeril.
Concluíram finalmente a tarefa, e o restante foi comparativamente
fácil. A chaveta saiu suavemente sem estorvo, e uma dúzia de golpes
enérgicos com a marreta levou a roda da engrenagem para a base de seu
eixo. Achando-se livre, pôs-se a cruzeta a oscilar com o movimento das
ondas contra o leme e eles compreenderam que tinham concluído mais
outra façanha.
Depois de prenderem temporariamente a cruzeta com talhas
engatadas a fustes de olhal situados dos dois lados de sua borda,
engataram as talhas de corrente e alaram a máquina do leme,
avariada, afastando-a da cruzeta. Arrastaram-na em seguida sobre o
piso com auxílio de pés-de-cabra peando-a fortemente a dois
pontaletes.
E pronto ! — exclamou Tex depois de introduzir a última de
uma série de cunhas destinadas a apertar as amarras e pear fortemente o
pesado motor à estrutura do navio. — E agora, que vamos fazer, Buli?
Bull relanceou os olhos em derredor. Havia ainda o problema de
dispor de uma fonte de energia que substituísse a máquina do leme
atrelando-a à cruzeta. Porém o principal obstáculo estava agora
superado, e tudo isto podia esperar, Esfregou os olhos com o dorso da
mão e sorriu para Tex e Corny — café e berço ! disse laconicamente.

146
Entorpecidos pela fadiga, cambalearam ao longo do corredor e
subiram para a popa. Ao saírem ao ar livre, viram que o dia nascia,
e que o céu ao nascente estava tingido de carmesim.
Céu vermelho de manhã. . . — lembrou Corny. — Isto não me
cheira bem; mas não estou ligando.
Nem eu tampouco ! — disse Tex, mas subitamente seu
corpo magro e ossudo retesou-se, e ele ergueu a cabeça enquanto
um ruído forte subia da casa das máquinas. Agarrou o braço de Bull
—Está ouvindo? Ar comprimido. Sabe o que isto significa?
As máquinas propulsoras, o Chefe vai pô-las em movimento !
— Bull respirou profundamente. Enquanto isso sentiu a popa
estremecer, ao tempo que embaixo do cadaste a hélice esperneava.
Ele conseguiu ! Pelo olho cego de Nelson 3 5, ele pôs os motores
em movimento, novamente, e agora compete a nós levar esta carcaça
para casa.

35
Horácio Nelson (1758-1805), almirante inglês. Em Calvi, 1794, perdeu o olho
direito. (N. do E.)

147
CAPÍTULO 14

SINGRANDO AS ONDAS DO MAR

quele primeiro coice das máquinas do Cape Wrath,


vibrando através do convés até a medula dos seus ossos,
constituía a mais admirável sensação que Bull experimentara em
sua vida. Até aquele momento ele estivera seguindo uma
inspiração cegamente, arrastando a si e os outros ao arrepio de
toda razão e lógica, contra probabilidades verdadeiramente
esmagadoras, tendo para sustentá-los apenas a fé. Tinha-se
obrigado, e a eles, a lutarem até o limite das suas forças por uma
idéia que, aparentemente, era mais desarrazoada que a mais louca
fantasia. Superar as chamas constituíra tremendo êxito.
Aumentara enormemente suas possibilidades de salvação; tinham
ficado, apesar disso, sobre uma carcaça queimada que derivava
ao sabor das ondas, a libertação do leme não alterando a situação.
Continuavam desamparados. Porém, com aquela primeira
pulsação do grande coração do petroleiro, este recuperava a vida
novamente; e, aa senti-la, viam justificada sua fé, recompensados
todos os seus sofrimentos e aliviados o cansaço e as câimbras que
atenazavam os seus membros. Era como uma injeção tônica. Bull
permaneceu de olhos vermelhos, desfigurado, porém a energia e
o entusiasmo fluíam novamente nas suas artérias.
Este é o remédio de que eu precisava — disse ele,
pondo-se a escutar o ronco do motor. Ouvia-o funcionar a meia
força. O ritmo era possante e regular. Prolongou-se por alguns
instantes, e depois suavemente foi retardando até parar. Virou-se
para Tex. — O care fica em pauta mas risque o berço. Reúna a
tripulação. O Chefe estará no convés dentro de alguns instantes,
suponho, e é hora de discutirmos novamente a nossa situação.
A conferência que se realizou foi calma, porém tensa, com
exaltações contidas. Começou com o relatório do Chefe. Ele foi muito

148
lacónico, com tendência a diminuir os seus próprios méritos,
porém nenhum deles tinha dúvidas a esse respeito e reconheciam
a importância de tudo que lhe deviam. A essência de suas
declarações consistia em que as máquinas estavam novamente
funcionando bem, e em condições de movimentar o navio
quando todos estivessem prontos para reiniciar a viagem. Porém,
antes de uma inspeção detalhada, não poderia dar garantias a
respeito do assento do motor. Poderiam muito bem existir
avarias estruturais debaixo das máquinas, e ele propôs conservá-
las funcionando a meia força quando principiassem a navegar.
E agora — concluiu -—, é a sua vez, Bull. Posso
fornecer-lhe energia. Agora resta saber: poderá você dar conta
do resto: navegar em rumo certo e encontrar o caminho de casa
para nós?
Consideremos primeiramente a pilotagem disse Bull
inclinando-se para a frente. —O leme temos movimentos livres.
Isto já é alguma coisa. Agora. no tombadilho temos o cabrestante
3 6
que é usado para a atracação. Estive a examiná-lo e tenho a
impressão de que está em ordem.
— Muito bem — disse Corny ——, isto é ótimo; mas ele
funciona com motor elétrico e todos os fios foram arrebentados
ou queimados pelas chamas.
Sei disso. Mas podemos fazer com ele o mesmo que
fizemos com a lâmpada portátil; desligar a instalação atual, e
ligar um novo fio diretamente ao quadro distribuidor na sala das
máquinas. Que diz a isso, Chefe?
— Estou de acordo. Compreendo o que quer dizer. Terá
assim o seu motor elétrico funcionando, porém está fora do
lugar. Como fará você para atrelar o cabrestante à cruzeta do
leme?
— Por meio de talhas e patescas — Bull sorriu. — Vai ser
um pouco complicado, e teremos de fazer alguns experimentos
antes que o negócio funcione; porém tenho certeza de que será
possível. Olhe só! — Pegou um pedaço de pau carbonizado e
pôs-se a desenhar um diagrama sobre o convés. — Aqui está a
casa do leme e aqui a cachoIa da madre e a cruzeta. Duas portas
dão acesso ao pique da ré, uma em frente da outra de cada lado e
da cruzeta. A cruzeta já se acha

36 Aparelho de eixo vertical acionado por motor para manobra de cabos e


espias.
(N. do T.)

149
engatada às talhas que a seguram, e precisamos apenas enontrar
passagem para os tiradores, através das portas, até o cabrestante.
E depois perguntou o Chefe.
Ora, isto feito, o resto é sopa. Com o leme a meio, rondamos
os cabos de laborar para os espertar, e depois gornimos o de
bombordo em redor da saia do cabrestante para a direita,
amarrando-lhe o chicote. Em seguida faremos o mesmo com o cabo
de estibordo, só que neste caso o gorniremos para a esquerda.
Assim estaremos prontos para funcionar. Digamos que se
movimente o cabrestante no sentido das agulhas de um relógio; pois
bem, ele vai puxar a talha de bombordo, e ao mesmo tempo aliviar a
de estibordo. Resultado, a cruzeta deslocar-se-á para bombordo e o
leme para estibordo. Se quisermos carregar o leme para o outro
lado. faremos girar o cabrestante em sentido contrário.
— E está tudo resolvido . — disse Gib com olhos arregalados
de admiração. — Puxa vida ! que crânio ! Bull, você é maravilhoso.
Ora, deixe disso, pelo amor de Deus ! protestou Bull.
Isso não tem nada de extraordinário. Estive a matutar essas coisas
desde que abordamos. Além disso, é apenas uma idéia ainda. Será
melhor esperarmos para ver os resultados antes de soltarmos
foguetes.
Dê-me um outro bule de caf'e enquanto eu continuo a trabalhar.
Gib encheu-lhe o bule e depois de tomar uns goles prosseguiu:
Isto, eu suponho, fará com que tenhamos um verdadeiro navio
debaixo dos nossos pés. Um navio que poderemos tocar para diante e
governar. O problema agora consiste em levá-lo para casa.
— Sinto-me embaraçado em dizê-lo — atalhou Tex, abanando a
cabeça — mas para ser honesto não vejo como o conseguiremos. Nem
agulha magnética, nem instrumentos de navegação, nem mapas. Não
conhecemos nem sequer o ponto de partida depois de andarmos por aí
à deriva durante uma semana.
Porém Bull tinha estado a matutar todas essas coisas também,
olhando para a frente, calculando. planejando, e agora, com segurança,
apresentava suas idéias. Admitia que seu plano de açào não se baseava
em dados inteiramente positivos. Apoiava-se sobretudo em palpites,
instinto, e contava com a sorte; descontando todavia a deriva, sua
posição devia situar-se a mais ou menos setecentas e cinqüenta milhas
a oeste da costa da Irlanda. Singrariam rumo ao nascente tanto quan-

150
to possível. Se conseguissem conservar o rumo nessa direção,
deveriam aportar finalmente na baía de Galway; caso se desviassem
desse rumo, seja para o norte ou para o sul, ainda teriam todo o resto
da costa ocidental da Irlanda para aportarem; e, caso se desviassem
dela, havia ainda, além, a Inglaterra e as ilhas da Escócia.
Acontecesse o que acontecesse não deixariam de topar terra.
Precisavam apenas singrar para leste.
Está tudo muito bem — disse Corny —-, mas como
saberemos onde fica a direção leste? Oh, sei muito bem que podemos
determiná-la neste momento, com o sol despontando no horizonte;
porém ele não permanece ali. E como faremos quando o céu estiver
enublado?
— Teremos ainda para orientar-nos o vento e as estrelas.
Muito bem — atalhou Gib — e também o nariz do Dutch. Ele
vale bem uma bússola. Conseguiremos navegar, não há dúvida.
Quanto tempo levaremos, Bull?
Pouco menos de cem horas se tudo correr bem. — Bull ficou
de pé e distendeu os membros. — Vamos construir nossa máquina do
leme, e dentro de quatro dias estaremos avistando terra.
Quatro dias! O tempo, que parecia ter parado desde o instante em
que a primeira granada arrombara o costado do petroleiro,
subitamente recuperava significação para eles novamente. Toda a
tripulação voltou ao trabalho sem precisar de instigação.
Trabalhando, agora como se cada instante fora precioso,
puxavam e alavam e suavam para realizar o plano de Bull, e em duas
horas o cabrestante se achava ligado ao leme por intermédio da
cruzeta. Lançaram mão de quase todos os moitões que encontraram, e
o resultado tinha mais aparência de uma louca teia de aranha do que
de qualquer outra coisa; quando o Chefe, porém, ligou a força ao
cabrestante, este pôs-se a funcionar.
Fizeram-no girar lentamente, de um lado para outro, enquanto
observavam o funcionamento dos tiradores e procediam a alguns
reajustamentos finais.
A geringonça funciona ! — disse Bull finalmente. — E
agora, Chefe, estamos prontos para tocar para a frente.
O Chefe acenou com a cabeça e desceu para a casa das
máquinas. Uns dois minutos depois os motores entraram em
movimento.

152
Sentindo o coice da hélice debaixo dos pés, Bull tomou nota da hora no
seu relógio, da posição do sol e da direção do vento, que soprava de
oeste; depois acenou para Dutch que se incumbia do primeiro período
de pilotagem.
O.K., Dutch '. — tornou ele. Estibordo. Faça-o dar a volta
vagarosamente.
As patescas agiavam-se e dançavam enquanto os tiradores das
talhas presas à cruzeta se esticavam e o leme virava; em seguida,
acelerando a máquina propulsora, o navio começou a virar em
volta.
Lentamente o petroleiro obedecia, pesado como um cachaço na
chafurdeira, porém avançando e procurando o rumo finalmente.
Quando guinava um pouco para a esquerda do sol, Bull carregava
no leme. Ele queria contemplá-lo singrando as ondas do mar,
porém a fadiga o empolgava rapidamente, e ele sentia que chegara
ao limite da sua resistência. Os problemas do momento achavam-se
resolvidos e agora, mais do que nunca, chegara a vez de ele
descansar. Agüentou mais cinco minutos, dirigindo-se em seguida
para o corpulento norueguês.
Estou completamente no prego, Dutch, e preciso dormir um
pouco. Este é o seu rumo, tanto quanto podemos aquilatar. Mande
alguém acordar-me às oito horas disse ele, e, cambaleando,
dobrando os joelhos, afastou-se para a sala dos fumantes, onde se
atirou num dos catres improvisados por Gib.
Já estava dormindo mesmo antes de cair na cama, e, embora
Dutch transmitisse a ordem recebida de acordá-lo à hora certa, toda
a tripulação concordou em desobedecê-la e deixá-lo dormir. Todos
tinham desempenhado seus papéis na tarefa realizada, trabalhando
como loucos, cada um deles contribuindo não somente com sua
força mas também com suas aptidões peculiares e sua experiência;
porém Bull contribuíra com algo mais. Conduzira-os desde o início,
conservara-os unidos e esperançosos; incutira-lhes fé e confiança em
si próprios e nos seus companheiros; e, hora após hora, através de
todas as peripécias e dificuldades, ele os protegera e guardara. Se
alguém conquistara o direito a um justo descanso, diziam consigo
mesmos, esse alguém era Bull. Era de admirar que tivesse agüentado
aquele terrível esforço e, convencidos sinceramente de que lhe
deviam a sobrevivência, deixaram-no dormir.

153
Finalmente foi o frio que o acordou. Durante alguns instantes sua
mente recusava-se a trabalhar e ele permaneceu inerte, trennendo de
frio. não tendo consciência de nada a não ser das câimbras nas pernas e
nos braços, e da sensação dorida da face e dos olhos. Depois, como um
eco no fundo da sua cabeça, ouviu as palavras do Old Man. Estou
depositando a responsabilidade sobre os seus ombros. Estes homens:
você terá de levá-los para suas casas, rapaz. E, ao sentir o navio mover-
se: e o ritmo compassado das máquinas, lembrou-se de tudo.
Caramba ! Creio que dormi o dia todo — sussurrou, e,
esquecendo-se das câimbras e das dores que enrijeciam-lhe os
membros, ficou de pé num pulo e saiu apressado para o convés.
O sol já se tinha deitado e a luz do dia se apagava rapidamente.
Soprava um vento fresco pela alheta de bombordo, e o petroleiro
desarvorado, com caimento para a proa e jogando fortemente,
chafurdava pelo mar cavado. Seu aspecto era desolador; tétrico e
solitário.
Tex controlava o leme. Dividira a tarefa o dia todo com Dutch e
Corny. Não tinham avistado nada.
Que rumo seguimos? — perguntou Bull.
Tomamos a posição do sol ao meio-dia com auxílio de seu
relógio — explicou Tex. — Isso nos deu rumo sul e vento noroeste.
Calculamos que mantendo o rumo quatro pontos para bombordo
conservaríamos a direção leste aproximadamente, e foi o que fizemos.
Ótimo ! — Bull farejou o vento e relanceou os olhos pelo céu.
Havia espessas camadas de nuvens no horizonte, porém o zênite
continuava claro. — Se o tempo continuar como está, poderemos
avistar a estrela polar logo que escurecer e, por ela, aferir a nossa
posição.
Gib chamou a tripulação para a refeição da tarde naquele
momento, e quando se acharam todos reunidos Bull reassumiu o
comando. Depois de descansarem um pouco, os homens se achavam
agora em melhores condições fisicas, pois, como sói acontecer com os
marinheiros, eram todos extremamente robustos e resistentes; todavia,
durante uma semana a fio, tinham lutado desesperadamente pela
sobrevivência contra fatores hostis, e o cansaço se estampava em suas
faces tensas e exaustas. Com o navio caminhando agora
paulatinamente não tinham mais o que fazer senão cismar, e naquelas
circunstâncias isso não era aconselhável. Era preciso evitar que
viessem a alimentar pensamentos de dúvida e de temor.

154
Tinham realizado uma façanha quase milagrosa ao recuperar o
navio das chamas; tinham, contudo, um longo caminho a percorrer,
muitos riscos a enfrentar, e o êxito final ainda era incerto. Por outro
lado o entusiasmo que se manifestara pela manhã já se havia
arrefecido, e com ele a excitação do triunfo que tinham conquistado.
Comeram em silêncio, porém Bull adivinhava-lhes os pensamentos, e,
por ter adquirido sabedoria prematura durante aqueles últimos dias,
sentiu que o único meio de combater o medo era exteriorizá-lo e
encará-lo de frente.
Pois bem, amigos — disse ele, apertando a cafeteira entre as
mãos para aquecê-las —-, não nos houvemos tão mal assim até agora,
mas ainda não saímos da floresta, nem de longe, e não seria
desaconselhável fazermos uma pausa para considerarmos as
dificuldades que continuamos a enfrentar.
Passou a enumerar os perigos que tinham pela frente, sem
diminuir-lhes o vulto, mas pelo contrário descrevendo-os com
franqueza. Dividiam-se, grosso modo, em três grupos.
Antes de tudo havia a considerar-se as condições da nau. Eram
bem precárias. As avarias produzidas nas obras mortas acima da linha
de água não tinham tanta importância, porém não sabiam ainda o que
acontecera embaixo da coberta; e, ao navegar, o navio se achava sujeito
a grandes esforços sob o impacto das vagas. Conhecendolhe a estrutura
reforçada, esperava que agüentasse até eles aportarem; porém, se o mar
se tornasse tempestuoso, havia sempre a possibilidade de o navio não
resistir, desintegrando-se. Havia também o problema da sua carga: dez
mil toneladas de produtos petrolíferos altamente voláteis. Se bem que
tivessem tapado todos os furos de granada para impedir o petróleo de
escorrer pelo convés, ele devia ainda estar esvaindo-se por rebites
arrancados e junturas de chapas, e gases inflamáveis podiam estar se
acumulando em todos os vácuos do porão. Ora muito bem ! Eram
marinheiros de um petroleiro e conheciam os seus riscos. Os riscos
presentes eram dez vezes superiores aos normais, teriam pois que ser
dez vezes mais cautelosos a respeito de chamas e de fagulhas.
Em segundo lugar, deviam considerar as condições do tempo.
Este tinha amainado consideravelmente desde que voltaram para
bordo, porém estavam na estação hibernal e não podiam esperar que
continuasse assim. O vento já soprava com mais força de noroeste.
155
Enquanto não passasse de um vento forte, tudo iria bem. Porém acima
disto, com os motores funcionando a meia força e caimento para a proa,
poderia o navio tornar-se rapidamente incontrolável. Teriam de estar de
olho aberto para virar em volta rapidamente e deixá-lo correr com o
tempo.
Em terceiro lugar havia os riscos de guerra. As possibilidades de
encontrarem o submarino ou de serem avistados por um avião inimigo
aumentavam a cada milha que se aproximavam da costa irlandesa. Por
outro lado, naturalmente, poderiam também ser avistados por um avião
amigo, que acusaria a sua presença pedindo socorros, ou poderiam
avistar um navio, o que daria na mesma.
Não vamos contar com isso ! disse Corny. — Já faz uma
semana que andamos gingando por aí sem avistar absolutamente
nada. Começo até a pensar que tudo o que flutuava já foi a pique
exceto este calhambeque.
Tanto melhor! Onde não há navios não há chucrutes! —
disse Tex com um sorriso forçado. -— Bull tem carradas de razão,
apesar de tudo. O melhor é conhecermos exatamente a nossa
situação. A ignorância é que leva à perdição. E agora estamos
sabendo. Se não encontrarmos inimigos e o tempo se conservar
firme, continuaremos a navegar calmamente enquanto este
calhambeque não dobrar pelo meio ou não estourar debaixo dos
nossos pés. Quer fazer uma aposta, Corny?
Nada disso. Fico fazendo figa.
— Em seguida disse Bull precisamos de constante vigilância.
Depois de confabular com o Chefe ele dividiu a tripulação. Gib e
Scruffy continuariam cuidando da cozinha e do abrigo que haviam
improvisado na sala de fumantes. Metade da tripulação remanescente
foi distribuída pela casa das máquinas e metade pelo convés.
Estabeleceu depois os postos de vigia. Como no escaler, Bull entregou
um deles a Dutch, enquanto, juntamente com Tex e Corny, ele assumia
o outro.
Ao passo que tomavam essas resoluções a noite caía e a próxima
medida foi conferirem o rumo por meio da estrela polar, e, o que tinha
igual importância, determinarem pelo estudo do deslocamento em
relação às estrelas a maneira por que navegavam.

156
Localizou facilmente a estrela polar. Isso não foi dificil, apesar de
a Ursa Maior se achar parcialmente velada pelas nuvens. Porém,
quando se referiu à proa do navio, verificou que este rumava mais para
sudeste que para leste. Tex, que naquele momento dirigia o leme, o
confirmava.
Caramba ! — bradou ele. — Estamos rumando para a baía de
Biscaia. Que foi que aconteceu?
O vento mudou — respondeu Bull, laconicamente.
Mas ainda está quatro pontos abaixo da rota.
É exato. Mas isso significa apenas que nos desviamos junto
com o vento. — Bull espremia o bestunto furiosamente. Constatava
agora que o vento seria um fator muito inseguro para orientá-los. Uma
acentuada mudança de direção ocorrendo subitamente seria fácil de
verificar-se, quando mesmo o sol estivesse encoberto, porém com o
navio navegando às cegas, como acontecia, não havia jeito de
averiguar uma mudança gradual. — Carregue no leme quatro pontos
para bombordo.
Tex movimentou o cabrestante e lentamente a proa começou a
arribar.
Aquela estrela ali — apontou Bull. — Conserve-a sempre na
amura de estibordo. E tome nota de uma outra no caso•em que essa
fique encoberta.
O.K. — o texano aprumou o navio na nova rota. — Do que
serve isto tudo, Bull? Afinal de contas estamos navegando um pouco a
esmo, não é mesmo?
— Sim. Isto significa que só podemos ter certeza do rumo que
seguimos durante a noite quando avistamos as estrelas. O resto do
tempo nada mais podemos fazer senão conservar a direção geral para
leste. Como obedece o barco atualmente?
— Está constantemente arribando para bombordo.
Tive essa impressão. São os dois rombos do costado.
Enquanto tem o ponto de referência da estrela, é melhor você
determinar, com toda a precisão possível, quanto deve carregar no
leme para estibordo a fim de contrabalançar a arribação.
— É uma boa idéia. Isso poderá ajudar, porém ----- disse Tex
hesitante.
Porém o quê? --—- perguntou Bull.

157
Nada. Não tem importância.
Vamos. desembuche o que tem a dizer.
Puxa vida. Bull, não vá pensar que eu estou nervoso;
mas esta última parada. . . pensa você, sinceramente, que
poderíamos ganhá-la, falando sério?
Escute aqui, Tex! Bull empinou a mandíbula poderosa
para a frente e seus olhos se tornaram duros como aço, no
escuro. — Vamos levar para casa o resto do Cape Wrath nem
que tenhamos de nadar com ele nas costas.
A partir daquele momento nem Bull nem Tex jamais
duvidaram do êxito final.
158
CAPÍTULO 15

FIEL AO OLD MAN

Bull nunca duvidara do êxito final, o que não o


impedia, entretanto, de preocupar-se. Sabia perfeitamente que o
controle que ti nham sobre o navio e, portanto, sobre suas
próprias vidas era, na verdade, terrivelmente precário; que para
eles a diferença entre o sucesso e o fracasso, a sobrevivência e a
morte era como o fio de uma navalha, sobre o qual teriam de
navegar até aportarem em lugar seguro; e, durante toda aquela
noite, depois de conseguirem pôr em movimento o petroleiro, ele
percorria a popa de um lado para outro sem descanso, enquanto
todas as coisas que lhes poderiam acontecer dançavam a
sarabanda na sua cabeça. A alvorada veio encontrá-lo com os
nervos tensos como cordas de violino e ele concluiu que já era
tempo de deitar-se para descansar.
O mal é — murmurou ele — que estou sobrecarregado de
preocupações. Como poderia eu aliviar esta carga?
Considerando o assunto deste ponto de vista, compreendeu
que algumas das possibilidades que o atormentavam se achavam
inteiramente fora de seu controle. Coisas como a desintegração
do navio ou a explosão da carga, submarinos, e bombardeiros
Focke Wulf 3 7 . Se essas coisas deviam acontecer, aconteceriam
mesmo, e nada poderia ele fazer para evitá-las; preocupar-se
com elas constituía cansaço moral inútil. O que importava era
tocar para diante e encontrar terra; e, também, cuidar da
tripulação.
Nessa altura começou a compreender o que lhe devorava o
espírito. Os homens. O Capitão Holroyd o responsabilizara por
eles. Com navio ou sem navio, tinha de cuidar deles e repatriá-
los. Este era o xis da questão; era por isso que as outras
possibilidades o espicaçavam

Caça alemão do início da Segunda Guerra Mundial. (N. do E.)

159
sem cessar. Ele os tinha trazido para bordo do Cape Wrath e não
dispunham de meios para salvar-se se viesse a afundar. Competia-lhe
resolver esse problema, e, depois de consegui-lo, poderia dedicar toda a
sua atenção ao problema de levar o navio ao seu destino, esquecendo-se
de tudo o mais até que acontecesse alguma coisa, se acontecesse.
Por isso ocuparam-se o dia todo na construção de uma jangada.
Pouca madeira a bordo tinha sido recuperada das chamas, e nenhuma
cordoalha; porém os remanescentes daquele tabique da oficina
forneciam elementos para a estrutura da jangada e havia grande
quantidade de tambores vazios de querosene para garantir-lhe a
flutuabilidade. Usaram arame para prender as partes umas às outras.
Construíram-na à ré, de maneira que pudesse ser lançada ao mar em
poucos segundos. Em seguida pearam-lhe alguns recipientes com água
e o equipamento indispensável, concluindo assim a tarefa.
Entrementes, embora o céu estivesse novamente nublado e o sol
invisível, o vento não aumentava sensivelmente e as ondas do mar
permaneceram cavadas. Apresentando caimento da proa, a arfagem do
petroleiro avariado era lenta e o castelo de proa raramente livre das
ondas; porém não embarcava muita água e, tanto quanto Bull podia
julgar, agüentava galhardamente o impacto do mar.
Quando escureceu, entretanto, e o céu clareou desvendando as
estrelas, verificaram que o barco se desviara bastante da rota traçada,
desta vez para o norte.
Corny estava no leme. Rumou a proa novamente para leste, e
cuspiu ao vento para acalmar a íntima irritação.
Isto é uma verdadeira pândega, não há dúvida — disse ele.
Não acha você que seria melhor desligarmos o motor e deixar o
calhambeque correr com o tempo já que não podemos saber onde
vamos? Assim, ao menos, iríamos numa única direção em vez de
andarmos cambaleando por aí a fora como um bando de matutos no
pileque.
Sim, para levarmos duas ou, talvez, três vezes mais tempo a
atingirmos terra. — Bull abanou a cabeça. — Não, não podemos fazer
isso, Corny. Estamos por um fio e não sabemos de quanto tempo
poderemos dispor. O mar pode engrossar e nesse caso tudo poderá
acontecer. Precisamos tocar para adiante enquanto pudermos.
Felizmente o Chefe tinha dado boa conta do recado na casa das

160
máquinas, e os motores funcionavam satisfatoriamente. Sua pulsação
surda impelia os para a frente c comunicava lhes ânimo e segurança;
isto. e a contemplação das estrelas sobre suas cabeças. Aqueles
pequenos pontos lunlinosos na escuridão aveludada da abóbada
noturna eram a única coisa segura quando tudo o mais apresentava
feição incerta e cheia de ameaças. Começaram a familiarizar-se com
as estrelas, com os desenhos que formavam no céu e a posição
recíproca das constelações em relação umas com as outras, tão
perfeitamente como com as palmas de suas mãos; e temiam a volta da
alvorada, que apagava as estrelas, fazendo-os enfrentar a vastidão do
mar, através da qual tinham de se arrastar quase que às cegas, em
plena luz do dia.
No terceiro dia o céu se achava novamente encoberto de nuvens
espessas. Não avistavam nenhum navio. No meio da manhã, porém,
Gib, cujo ouvido era particularmente aguçado, subitamente agarrou
Bull pelo braço.
Ouça esse zumbido ! disse ele. — É um avião.
Bull pôs-se a escutar e, depois de alguns segundos, percebeu o
ronco. Parecia vir do lado de estibordo e aumentar gradativamente.
Afinal toda a tripulação a bordo já podia ouvi-lo e todos olhavam para
o céu. Esse era o primeiro sinal de vida que topavam desde que se
desgarraram do comboio, e conseqüentemente a excitação empolgou-
os a todos.
Está se aproximando! — tartamudeou Gib. — Mas deve voar
acima das nuvens. Não posso enxergá-lo. Se somente ele pudesse
descer um pouco ! Não poderemos fazer nada, Bull; algum sinal?
O zunzum tinha se espalhado por todo o navio agora, e a turma
da casa das máquinas, com exceção do Chefe, subia as escadas aos
trambolhões. Enquanto isto os vigias embaixo, arrancados ao sono
por Scruffy, amontoavam-se em redor do cabrestante da popa, de
onde Dutch governava o navio. Nutriam todos o mesmo pensamento.
Haviam perdido a noção do tempo, e tinham a impressão de estar
perdidos, vagueando há anos pelo oceano deserto; e aquele som
excitante que crescia, zumbindo por cima de suas cabeças, constituía
um contato com a humanidade. Era um indício de que sua luta
poderia terminar em breve, e de que a meta se aproximava.
Como atrair a atenção do avião? Era a única coisa em que
pensavam. Não havia a bordo fachos de luz vermelha auto-incandes-

162
centes nem foguetes ou aparelhos de sinalização de espécie alguma;
nem mesmo uma sereia que pudesse funcionar; mas eles tinham
adquirido re absoluta na capacidade de Bull solucionar todos os
problemas, e olhavam para ele certos de que poderia improvisar algum
meio de chamar a atenção do avião.
Bull, entretanto, pensava em outra coisa e virou-se para Corny.
Depressa! disse ele. Desça para as máquinas e diga ao Chefe para
desligá-las. A esteira do barco é vista lá de cima como uma linha
luminosa, e o avião poderá avistá-la.
Mas é isso precisamente o que queremos, não é mesmo? —
protestou Gib. — Quanto antes melhor !
Se tivéssemos certeza de que se trata de um dos nossos, estaria
com você: porém não temos essa certeza. Ele vem do sul e há pelo
menos cinqüenta por cento de probabilidades que seja um Jerry. Seria
loucura arriscar-nos agora. Ande depressa. Corny !
O.K., já vou indo !
As máquinas pararam e todos ficaram calados ouvindo o avião
roncar nas alturas.
Bull tinha provavelmente razão, mas poderia também estar
errado, e de todos os momentos de padecimentos por que passaram
aquele foi o mais amargo e dificil de suportar.
Quando o ruído do avião finalmente desapareceu nas bandas do
norte, os motores foram ligados novamente e o petroleiro continuou a
deslizar rumo a leste. Com mais sofreguidão do que nunca, e até
mesmo com impaciência, agora, estavam à espera da noite e da
segurança que trazia consigo, mas, quando ela chegou desta vez o
pálio de nuvens não se rasgou e não houve estrelas para guiá-los.
Navegavam completamente às cegas e esse desapontamento
sobrepondo-se ao do avião, impelia-os quase ao desespero.
Com fisionomias carregadas, todavia, mantinham-se firmes no
seu propósito.
Convencido que o navio se desviava novamente da sua rota, e
sem meios para aquilatar de que maneira e em que proporção, Bull
preocupava-se quase a noite inteira; então, momentos antes da
alvorada, meteu na cabeça de que estavam rumando para nordeste.
Não tinha provas disso e nenhuma razão para acreditá-lo, porém a
idéia insinuou-se-lhe no espírito e, ao mesmo tempo, tinha a intuição
de que

163
era melhor não corrigir o desvio da rota. Apesar e todos os
argumentos de que lançava mão para combatê-lo, o palpite persistia e,
finalmente, deixou de lutar contra ele e decidiu abandonar o barco ao
rumo que seguia.
A partir daquele momento, por estranho que pareça, cessou de
preocupar-se com esse problema. E isto veio a calhar, pois que o
quarto dia de viagem foi o pior que tiveram de enfrentar até então.
Não trouxe novidades nem a repetição de nenhum dos obstáculos que
já tinham superado; mas não havia sol e, à medida que as horas vazias
se sucediam umas às outras, um chuvisqueiro frio gotejava do céu
cinzento coberto de baixas e espessas nuvens. Ao meio-dia já estavam
todos encharcados até a pele e regelados até a medula dos ossos.
Ninguém tinha vontade de comer, apesar de tudo o que Gib e Scruffy
fizeram para tentá-los, o que aliás não era muito; permaneceram
sentados na sala de fumantes, queimada e sem conforto, silenciosos,
com olhares vagos, bebendo café com caras desanimadas para se
aquecerem um pouco.
Estavam sujos, maltrapilhos e malcheirosos; queimaduras e
feridas, apesar de todos os esforços para conservá-las limpas por
meio de constantes abluções de água salgada, inflamavam-se ou
abriam-se formando chagas, visíveis debaixo das barbas crescidas; e,
contemplando-os, Bull perguntava a si mesmo com ansiedade por
quanto tempo ainda agüentariam eles aquela situação. Estavam
corroídos pela incerteza, pelo sofrimento, e a exposição às
intempéries, e constante expectativa de um desastre que os
encontraria inermes e desamparados. Quando começariam eles,
matutava Bull, a fraquejar e perder o animo?
De acordo com os seus cálculos tinham mais vinte e quatro
horas de padecimentos; e, enquanto espremia os miolos para
a maneira de conservar-lhes as mãos e os espíritos
ocupados, para que não começassem a preocupar-se, tentava
convencer-se de que estavam no bom caminho; não admitia
qualquer alternativa.
A chuva amainou lá pela meia-noite, e mais ou menos às duas
horas da manhã a mudança do vento abriu as nuvens e o céu ficou
limpo. Bull, que dormia enquanto isto acontecia, foi acordado, e ao
subir para o castelo de popa avistou novamente as familiares
estrelas tão desejadas.

164
Rumavam para nordeste e ele conservou o navio nessa rota.
De pé na escuridão, escutando a pulsação surda das máquinas
destacando-se do zumbido do gerador e do irregular marulho das
ondas quebrando-se contra as amuradas, começou a perceber o acerto
de se dirigirem mais para o norte. Singrando para leste, se tivessem
certeza de atingir o alvo poderiam avistar terra mais cedo: porém,
qualquer desvio apreciável da rota para o sul os teria levado às águas
infestadas de submarinos e constantemente sob os olhos dos aviões
inimigos; além disso, era-lhes mais fácil aportar na Escócia do que na
Irlanda.
Quanto tempo falta ainda para avistarmos terra, Bull, na
sua opinião? — perguntou Tex quando assumiu seu posto junto ao
leme, às quatro horas da manhã.
Isso depende. A qualquer momento depois do nascer do sol,
mas não podemos ter certeza nem devemos ficar de papo para o ar
antes de termos atingido a meta. Espero somente que o tempo
permaneça claro como está, por mais umas doze horas.
Havia planejado redobrar os postos de vigia ao amanhecer, mas
não teve necessidade de expedir ordens nesse sentido, ou de acordar a
tripulação, de manhã cedo. Já estavam todos de pé antes de as estrelas
desaparecerem do céu. Gib galgou o que restava do mastro grande
enquanto os outros se postavam na ponte destroçada; e, ali, esperavam
as novidades que lhes traria a luz do dia. Estavam ansiosos agora,
fervilhando de excitação, e prontos para dar larga ao entusiasmo.
Aquela quinta alvorada chegava com excruciante vagar, e não
desvendava aos seus olhos senão a solitária vastidão do mar, deserta e
aparentemente infinda, como sempre, apesar da linha nítida que a
separava do céu.
Contavam tanto com aquele momento, esperando-o com
sofreguidão através de todos os seus padecimentos, que o choque de
uma desilusão seria mais dificil de suportar. Durante alguns instantes
sentiram-se entorpecidos, e em seguida as perguntas e as dúvidas
puseram-se a fervilhar-lhes no espírito.
Estariam eles iludidos durante todo aquele tempo? Seria razoável
esperar que qualquer pessoa pudesse pilotar um navio e levá-lo ao
destino sem mapas, bússola ou sextante? Afinal de contas era possível
165
que tivessem estado a dar voltas no mar e eles não tinham nenhum
ponto de referência para determinar a posição que ocupavam.
Aproavam para a costa irlandesa, mas era também possível que
singrassem em direçào aos estreitos da Dinamarca.
Apesar de tudo continuaram à espreita e, à medida que a manhã
se escoava. começavam a perder a esperança. Ao meio-dia se
encaminharam para a popa para comer, todos, exceto Gib. Este
permaneceu trepado na gávea.
Que faremos agora, Bull? inquiriu Corny.
— Continuaremos a tocar para a frente, apenas isso.
Está certo, mas suponha. . .
— Não há nada que supor — atalhou Tex. — Que pensa você que
isto é? Uma balsa ou um paquete de cruzeiro com horário
preestabelecido? Caramba, irmão ! tenha dó desta velha barcaça. Uma
centena de horas, e oito nós, foi o que calculamos, mas isso é apenas
um palpite. Se estivermos andando a sete nós e meio levaremos oito
horas a mais para chegar. E que é, afinal de contas, meio nó, sem
odômetro e o navio chafurdando como um cachaço com tontura,
responda-me?
Tex tem razão — atalhou Bull com toda calma. —
Compreendo o que vocês sentem e não os censuro. Passamos todos
por um mau bocado. Mas agüentamos firme e continuamos por cima.
E continuaremos do mesmo jeito, nem que tenhamos de esperar mais
uma semana para avistar terra.
Mas isso não acontecerá — disse Dutch. Estou certo de que não
estamos longe agora. Estou farejando terra.
— Talvez sejam os passos de Scruffy — disse Tex. Porém. . .
Quaisquer que fossem os conselhos de sabedoria que tivesse na
ponta da língua não os proferiu, pois naquele momento ouviu-se um
brado que vinha de vante, e, lembrando-se de Gib no mastro de proa,
todos, exceto o timoneiro, precipitaram-se para a escada.
Todos pensavam que ele estivesse a braços com alguma
dificuldade, porém, ao atingirem o tombadilho, lá estava ele na
gávea, agarrado ao balaústre retorcido com uma das mãos e com a
outra apontando para o horizonte enquanto se esganiçava.
— Terra! Terra, felizardos! Terra a bombordo. Alguns momentos
mais tarde eles também avistaram-na: uma sombra nevoenta e azulada
erguendo-se contra o céu.

166
Quando teve certeza de que todos a avistavam, Gib desceu do
lugar em que estava encarapitado. Correram para a popa a dar as
boas novas ao Chefe e à turma da casa das máquinas.
A pouco e pouco a terra se apresentava maior e mais nítida aos
seus olhos, e em seguida uma outra forma começou a destacar-se para
as bandas de estibordo; estavam ainda, contudo, distantes demais para
oferecerem aos olhos dos tripulantes qualquer detalhe que as pudesse
identificar.
Isto não é nenhum trecho da costa da Irlanda que eu já
tenha visto — disse Corny.
Você está bancando o sabido! — a face comprida de Tex
abriu-se num largo sorriso que ia de uma orelha à outra. — Parece que
são duas ilhas e que navegamos entre as duas. É a Escócia! Não pode
deixar de ser.
Se não forem os Açores ou as Canárias, essa é que é a verdade
!
Quem quer fazer uma aposta? — perguntou Tex.
— Não aposto nada! — Corny agarrou Bull pelo braço. Olhe,
há um vaso de guerra ali ! Um dos nossos. Com certeza. Dirigese na
nossa direção. Caramba ! Olhe o osso que traz nos dentes !
Bull olhou para a frente e avistou a forma cinzenta e esguia de
um contratorpedeiro rumando a toda e erguendo grandes ondas
brancas dos dois lados do costado. Um cordão de bandeiras alçou-se
ao seu mastro de sinalização, no momento em que Bull o observava.
Gib esfregou o nariz. — Não fala inglês; não tem bandeira! —
disse ele brincando. Nada podiam fazer a não ser ficar olhando, e o
destróier, não obtendo resposta aos sinais que fazia, passou ao lado
do costado do petroleiro, circundando, depois, a sua popa.
Qual é o nome do navio? perguntou uma voz no alto-falante.
Cape Wrath — respondeu Bull, acrescentando o número do
comboio de que se tinham desgarrado.
Puxa vida ! Quem pisou vocês? Precisam ter peito para navegar
num calhambeque desse !
Bull deu uma risada — é disso que nós gostamos. Onde
estamos nós?

168
Entre Colonsay e Islay 38. Estou fazendo sinais para obter
informações a seu respeito. Enquanto isso vou escoltá-lo para um
ancoradouro. Precisam de alguns homens a bordo para ajudá-los?
Que acham vocês, companheiros? Bull relanceou os olhos
pela sua tripulação de espantalhos. Tex cerrou os lábios e,
lentamente, abanou a cabeça de um lado para outro. Todos os outros
fizeram o mesmo. Bull virou-se de frente para o contratorpedeiro e
colocou as mãos em concha na boca. ---— Não, obrigado.
Navegaremos sozinhos até tocarmos terra.
Duas horas mais tarde o Cape Wrath entrava com toda
segurança na barra e unha chegado ao seu destino. Empolado,
enegrecido pelas chamas e destroçado de maneira incrível, porém,
com dez mil toneladas de sua preciosa carga ainda intactas, o
petroleiro arriou âncoras à espera da ordem para descarregar.
Somente então, depois de concluída sua perigosa travessia,
acedeu a tripulação ao convite para transferir-se para o
contratorpedeiro. E ali aqueles doze homens e dois meninos que,
sem nada, a não ser as próprias mãos, o dom de improvisação
peculiar aos marinheiros, a indomável coragem, tinham lutado
contra o fogo e a fúria das ondas para salvar seu navio e chegar ao
seu destino, receberam os cuidados de que tanto precisavam, e cada
um deles conseguiu aquilo que mais desejava no momento. Gib
Sparling ganhou seu presunto com ovos e Scruffy teve o prazer de
ficar olhando enquanto um outro descascava as batatas; Dutch
recebeu um prato de sopa bastante espessa e quente, e Tex seu caffe
fervendo e um leito com roupas de cama limpas; e o mesmo
aconteceu com os outros.
Porém Bull Barlow nada queria. Ficou olhando para eles
enquanto comiam e, ouvindo suas risadas despreocupadas, sentia-se
satisfeito. Tinha sido fiel ao Old Man e levara para casá os seus
companheiros.
38 Ilhas da costa da Escócia, próximas ao canal do Norte. (N. do E.)

169
FICHA DO AUTOR
NOME: RICHARD ARMSTRONG (vivo).
Autor inglês.

OBRAS
PRINCIPAIS: "The
Albatross" "Out ofthe
Shallows"

COMENTÁRIO: "Aventuras de um
Petroleiro ", que se passam no período da
guerra, mostram como os mais diversos tipos
de navios viajavam emforma de comboios para
se protegerem dos ataques dos inimigos. A
incrível peripécia que aconteceu aos tripulantes
do Petroleiro, torna uma das aventuras mas
extraordinárias no género. A responsabilidade
e o trabalho dojovem capitão para levar seus
companheiros ao porto, assim como o
cargueiro mutilado, motivam toda uma atitude
corajosa e viril.
ÍNDICE
OS VÁRIOS TIPOS 7
DISÇIPLINA, VIGILÂNCIA E CORAGEM 19
O PRIMEIRO A TAQUE 30
"CONSEGUIMOS ALCANÇÁ -L OS!

CENA FANTASMAGÓRICA 52
MAR DE FOGO 63
BULL PASSA AO COMA.VDO 73
TRÉS POSSIBILIDADES E TRÉS PREOCUPA 83
U
UM CORPO NO AR 94
DE NOVO AO PONTO DE PARTIDA 104
MÃOS À OBRA 117
A CONQUISTA DE CAPE WRATH 127
CÉU VERMELHO PELA MA,VHÃ
137
SINGRANDO AS ONDAS DO MAR 148
FIEL AO OLD MAN 159
(Os títulos dos capítulos]bram incluidos pelo Editor.)
Este livro foi composto e impresso
nas oficinas próprias da
ABRIL S. A. CULTURAL E
INDUSTRIAL, caixa postal 2372, São
Paulo, Brasil.

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