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Niterói
01/2016
Candombe uruguaio: uma travessia para aceitação
Etnopolítica, corporeidades, Emancipação
Niterói
01/2016
Banca Examinadora
________________________________________
Prof. Dr. Julio Cesar de Souza Tavares (orientador)
Universidade Federal Fluminense
________________________________________
Profª Drª Tania Muller
Universidade Federal Fluminense
________________________________________
Prof. Dr. Nilton Santos
Universidade Federal Fluminense
________________________________________
Profª Drª Liv Sovik
Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________________
Prof. Dr. Renato Nogueira
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Resumo
Abstract
The work comes to recognize the Afro-descendant presence in Uruguay and Argentina
through the Candombe. The analytical perspective includes the speeches promoted by
the practitioners of rhythm in Buenos Aires and Montevideo based on the body in
motion, its performance and, above all, its political affirmation. In this context,
Candombe is seen as an autonomous social microsystem able to foster a permanent
culture of acceptance, the fight against racism and all other forms of discrimination,
regardless of affirmative policies engendered by the state. With this systemic
organizational logic, the practitioners of Candombe make up new possibilities for
reading and perception of human presence through its corporeality, communication,
ethno politic and cognition.
Apresentação do autor...................9
Gratidão...........................................11
Da Origem do Candombe
1. Prelúdio ao Candombe................................................................................35
2. Da etimologia e significados........................................................................37
3. Do Candombe no Brasil...............................................................................41
4. Do Candombe na Argentina........................................................................47
13. Do corpo-tambor.......................................................................................122
14. Da Chamada e Chamadas-Mãe..................................................................128
15. Do Candombe no carnaval.........................................................................132
16. Do microssistema ético-estético: panorama geral.....................................139
Bibliografia.........................................................................................................185
Apresentação do autor
9
Nestor Mora é também Assistente de Pesquisa do Laboratório de Etnografia e
Estudos de Comunicação, Cultura e Cognição (LEECCC), coordenado pelo Prof. Dr. Julio
Cesar Tavares, através do qual tem contribuído para a produção científica no campo da
performance, racismo e etnopolíticas. Com a mesma equipe, atuou como tutor na
Pós-graduação semipresencial em Antropologia e Desenvolvimento Cognitivo. Pouco
tempo depois, integrava com a equipe LEECCC o Projeto TEDx-UFF, evento que reuniu
especialistas em Educação, Etnopolíticas e Cognição. Em seguida, teve a oportunidade
de atuar na Coordenação de Projetos de Educação pela Fundação Roberto Marinho.
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Gratidão
Gratidão para a curiosidade dos parceiros que conheci na estrada das veias latinas,
aos antigos e novos amigos. Especialmente para Iris Rissou, Daniel Montes, João
Fiovarante, Marcelo Liotti, Dinellis Gonzalez, Diego Garcia, Cuca Ramos, amizades que
encheram meu peito de alegria nos momentos em que precisei. Aos irmãos Quique
Carrizo e Marcela Hernan, que me acolheram como um filho em La Plata durante os
percalços do campo etnográfico. Um grande beijo de gratidão às senhoras Marta
Salgado, Marta Corvacho, Dino Toledo e Cristian Baez, minha família afrochilena. Aos
atores, gestores do mágico universo afrodiaspórico.
No Uruguai, gratidão pela força, beleza e sabedoria das mulheres Isabel “Chabela”
Ramírez e Angela Oliveira. Aos grandes músicos Ferna Nuñez, Matias Silva e Diego
Paredes. Gratidão aos mestres da sabedoria ancestral com quem tive o privilégio de
aprender a tocar os três tambores, Aquiles Pintos, Alfonso Pintos, Polo Pintos, Anibal
Pintos, Juan Manuel Gularte e Willy Mariano Barroso. Ao colega antropólogo Ignacio
Esposito que ofereceu importantes dados e fontes sobre o Candombe. Ao diretor da
Casa de Cultura Afro-uruguaia Edgardo Ortuño. Aos integrantes do grupo Valores de
Ansina e toda equipe do Grupo Asesor del Candombe. Aos integrantes do grupo La
Tribu, e das organizações La Melaza Candombe e Acsun Uruguay Negro. Gratidão pelos
convites às festas, reuniões e seminários, momentos fundamentais para o
desenvolvimento da pesquisa.
11
Na Argentina, gratidão aos integrantes da Associação Misibamba, Carlos Lamadrid,
Cesar Lamadrid e Lucia Molina. Gratidão para os professores Augusto Guarnieri e
Norberto Pablo Cirio, por suas classes sobre a presença afroargentina ministrada em La
Plata. À Sociedade Caboverdeana em Buenos Aires e aos integrantes da Diafar,
especialmente a Federico Pita. Pelo grande encontro com Ernesto Costa, na
madrugada fria de Buenos Aires, com quem compreendi o fundamento para a
construção da presença afrodescendente no Cone Sul.
Aos amigos da minha vida, irmãos e irmãs por quem tenho grande apreço e amor,
Vitor Simão, Eduardo Cassilhas, Marylia Cinistierra, Rachel Caé, Izumi Maeda, Bárbara
Loureiro e Isabela Pimentel. Gratidão ao amigo Lincoln Patrocínio, que editou as
imagens, e a todos os amigos que contribuíram de alguma forma para meu
desenvolvimento espiritual.
Quero agradecer a minha família chilena, especialmente aos meus tios Ivonne
Mora e Victor Cortés, sempre solícitos e carinhosos com a minha chegada. Aos primos
e primas. Aos amigos e parceiros de trabalho no hotel. Gratidão à família peruana, tia
Himilce Mora e às primas Carolina, Urpi e Andrea Estrada. Sempre em meu coração. Às
minhas queridas irmãs Penélope e Tamara Mora, por contribuir para minha formação
emotiva. Finalmente, aos meus pais, Virgínia Gomes e Nestor Mora, meus primeiros
orientadores da vida, com quem adquiri minha formação social, intelectual e emotiva.
Eternamente grato ao amor que recebi e recebo.
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Introdução: Considerações do trabalho etnográfico e metodológico
1
(pgs. 101-102) In.: Maturana, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Org. e trad. Cristina Magro
– Victor Paredes. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 2001.
13
contra o negro podem ser combatidas, em uma tentativa de emancipação da mente e
dos corpos.
Por conta desta perspectiva analítica, escolhi o Candombe uruguaio como tema e
“objeto” de análise antropológica para o doutorado. À este, sigo compreendendo
como modelo microssistêmico de organização social, sobretudo ao testemunhar e
vivenciar seus elementos constituídos por sua morfologia e cosmologia afro-uruguaia.
De certo modo, o trabalho propõe uma discussão das relações sociais estruturadas
em mecanismos de poder horizontalizados. Principalmente, reconhecendo a produção
cultural do Candombe uruguaio como mecanismo político afirmativo, através do qual
os preceitos da aceitação entre os indivíduos estão alicerçados na inteligência emotiva
e na sua prática comunicativa não verbal. De um modo geral, esta maneira consciente
de se postar no mundo atua como ferramenta para a superação do racismo instituído
pelo modelo de organização social do Estado-nação. Aceitar essa presença humana é
compreender suas potencialidades e sua contribuição somática na própria organização
em que está determinantemente inserida.
Posto o desafio, tudo que farei a partir da análise proposta é uma mera tentativa
de descrever o impossível. O de apresentar o inexplicável, o de traduzir pensamentos e
sensações derivadas da linguagem emotiva e da cultura afro-uruguaia através da
linguagem escrita. Este, por sua vez, um sistema de comunicação codificado que
precisamos necessariamente usar para acusar, apesar de todos os esforços de
Wittgenstein sobre a impossibilidade do exercício. Nesse sentido, da mesma forma
que o “mapa não é o território”, impreterível afirmar que o texto não é o Candombe,
nem mesmo sua tentativa superficial de reproduzir o seu conceito intrínseco à sua
totalidade. Logo, meu esforço analítico será justamente pontuar o irracional, a lógica
que habita o campo das emoções ainda que minha própria emoção e razão tenham se
perturbado ao longo do projeto científico. Suplantando o fato, desejo que o leitor, na
tentativa de compreender os múltiplos significados de um sistema cíclico de
comunicação, passe também por um crivo experimental: o de imaginar o Candombe
na simbiose dos corpos, nas ruas, no mundo. E por intermédio desse esquema
linguisticamente surreal sugiro utilizar sua inteligência emotiva tal qual o Candombe
propõe em sua presença.
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a) Do campo etnográfico
Minha primeira visita ocorreu em uma tarde de terça-feira, dia 12 de agosto. Fui
recebido pelo meu primeiro contato, a jovem Angela Oliveira, bailarina profissional,
professora e secretária da Casa. Através dela fui constituindo minha rede de contatos
pelo qual desenvolvi meu campo em Montevidéu. Angela primeiramente me
apresentou o lugar, explicou como é realizada a sua gestão, os profissionais
envolvidos, os horários de funcionamento e, principalmente, os projetos culturais e
pedagógicos realizados pela Casa. Um dos projetos, diria o principal deles, estava para
começar naquela semana. Era a Oficina de Candombe realizada pelo “Grupo Asesor del
Candombe” integrado por antigos músicos que têm o compromisso de ensinar sobre o
ritmo.
Durante toda a minha estadia pude acompanhar todas as classes, duas vezes por
semana, todas as terças e quintas no turno da noite. Realizei o registro das oficinas
através de audiovisual, gravações e fotografias, além é claro, do registro escrito. A
Oficina teve duração de um mês e ao seu término, recomeçou novamente abrindo
outra turma. A proposta era convidar todos os interessados em conhecer intimamente
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o Candombe, músicos profissionais, amadores, participantes de grupos, ou qualquer
interessado em aprender, sem qualquer custo financeiro. Fundamentalmente, aquela
experiência foi o meu primeiro contato que me possibilitou testemunhar a
comunicação da presença afro-uruguaia através do tambor e o modo pelo qual é
construído o Candombe.
16
Antes e depois de cada aula pude realizar entrevistas com todos envolvidos no
projeto, o que me rendeu aproximadamente trinta horas de gravação. Por isso, sempre
chegava uma hora antes do início das atividades com a intenção de conhecer a
dinâmica do exercício etnopolítico através de uma instituição criada para tal finalidade.
Foi somente na convivência com o trabalho na Casa Cultural que pude testemunhar o
envolvimento de profissionais envolvidos em múltiplos setores, burocrático, jurídico,
social, capazes de criar parcerias com outras organizações, empresas, fundações,
incluindo o diálogo com o Estado através do Ministério da Cultura e Educação.
17
ocorrida no dia 13 de setembro. No mês seguinte acompanhei a sua participação na
VI Chamada de Candombe, evento promovido pela Organização Lindo Quilombo, em
Buenos Aires.
18
Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID) e da Rede de
Mulheres Afrolatinas, Afrocaribenhas e da Diáspora (RMAAD). Uma cópia do
documentário “Llamada Madre” produzido pelo Grupo Asesor del Candombe,
informativos dos projetos e programação de atividades da Casa de Cultura Afro-
uruguaia. Por último, recebi um livro intitulado “Medio Mundo – Sur, Conventillo y
Después”2 cujos autores, Milita Alfaro e José Cozzo, explicam sobre a história da
população afro-uruguaia distribuída em um dos famosos bairros de Montevidéu, além
da formação dos primeiros grupos de Candombe.
2
Alfaro, Milita; Cozzo, José. Medio Mundo – Sur, Conventillo y Después. Ed. Medio&Medio. Uruguai,
2008.
19
pesquisadores envolvidos. Além da etno-história e cultura, tivemos a chance de
conhecer sobre a produção da religiosidade e do Candombe afro-argentino.
Outro evento que julguei importante para o registro foi o lançamento da primeira
edição do Jornal “El Afroargentino”, realizado no dia 18 de novembro na Faculdade de
Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. O Jornal é organizado e produzido
pelos integrantes da organização Diáspora Africana de la Argentina (DIAFAR). O
objetivo é dar mais visibilidade a presença da população afrodescendente na
Argentina. Por este meio comunicativo autônomo, seus consumidores podem
acompanhar as datas comemorativas, reuniões e desfiles, além é claro de aprender
sobre o passado-presente da população afro-argentina por meio de notícias, colunas e
20
entrevistas com as principais lideranças da rede de organizações e associações
representativas. O evento contou com a participação de muitos convidados e
colaboradores, incluindo seu presidente Federico Pita.
21
A segunda manifestação ocorreu na semana anterior, no dia primeiro de
novembro. Trata-se da mais importante Chamada de Candombe autogerido em
Buenos Aires – a Chamada de Candombe Lindo Quilombo. Participei da 6ª edição do
evento, conhecido por reunir dezenas de grupos de Candombe tanto de Montevidéu
como de Buenos Aires. Destarte, muito importante para o campo etnográfico. Na
ocasião, realizei registro fotográfico, escrito e entrevista com um dos coordenadores
da organização.
Durante o tempo de campo etnográfico, pude adquirir diferentes fontes de
informações úteis para o trabalho, entre encartes, jornais e cadernos de orientações
fomentados por instituições do Estado, de associações e organizações não
governamentais de promoção à igualdade e combate ao racismo. Quanto ao material
audiovisual do campo etnográfico, realizei registro de aproximadamente 200
fotografias e 15 vídeos, entre aulas, ensaios e desfiles de Candombe. Além de gravar
541 minutos de entrevistas realizadas em Montevidéu e Buenos Aires. As informações
detalhadas estão discriminadas no quadro a seguir:
Carlos
Áudio 01 Ferna Nuñez 18:09 Áudio 11 9:21
Lamadrid
Gustavo
Áudio 02 Chabela Ramirez 17:26 Áudio 12 1:35:06
Guarnieri
Aquiles, Afonso e
Áudio 04 42:11 Áudio 14 Senado 14:07
Anibal Pintos
Carlos
Áudio 05 Juan Gularte 13:50 Áudio 15 1:07
Lamadrid
Juan Gularte e
Áudio 06 22:01 Áudio 16 Senado 21:54
Anibal Pintos
Afonso Pintos e
Áudio 07 45:17 Áudio 17 Senado 7:21
Chabela Ramirez
Pablo Cirio e
Áudio 09 1:17:49 Áudio 19 Senado 2:26
Gustavo Guarnieri
22
b) Dos Procedimentos metodológicos
Sem me alongar por esta vereda, quero ressaltar, todavia, que contamos com a
fundamental e significativa contribuição de pesquisadores como Milita Alfaro, José
Cozzo (2008), Norberto Pablo Cirio (2003; 2008; 2010), Alejandro Frigerio (2000; 2003;
2010), Gustavo Guarnieri (2010), os brasileiros José Ferreira (1997; 2002; 2003; 2007;
2008) e Laura Cecília López (2002; 2005). Respeitando suas semelhanças e distintas
análises, estes autores constituem leitura obrigatória para os próximos estudantes
interessados no tema Candombe, presença afro-uruguaia e relações étnico-raciais.
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Além das limitações bibliográficas como referência para a entrada ao campo,
percebi que, uma vez nele, haveria outras impossibilidades de analisar o Candombe
tão somente sob a perspectiva de um ou dois grupos, conforme planejei no período
“pré-campo-etnográfico”. A razão consiste no fato de que há atualmente 134 grupos
no país, sendo inúmeros deles atuando somente em Montevidéu. Esta dificuldade
torna-se ainda maior devido à relativa facilidade com que “aparecem” e
“desaparecem” os grupos. É, portanto, uma perspectiva de análise muito arriscada
reconhecendo o simples fato de que o Candombe não é reproduzido em sua prática
discursiva por apenas alguns grupos. Do mesmo modo, também poderia optar no
campo etnográfico em compreender o significado do Candombe a partir de uma
organização ou associação. Entretanto, entendi que este olhar poderia reproduzir uma
visão institucional sobre o tema, super dimensionando a própria organização e, com
isso, esquecendo-me de que a narrativa é sobre o Candombe e não o modo pelo qual a
instituição trabalha com o ritmo.
Ainda sim, a descrição etnográfica das instituições, dos desfiles e ensaios, seja nas
ruas ou em ambientes “privados”, tem sido de fundamental importância para a
compreensão mais ampla e profunda sobre o Candombe. Muito por conta disso, o
leitor encontrará durante a narrativa o exercício descritivo de alguns grupos bem como
as organizações que representam e fomentam o Candombe enquanto performance e,
principalmente, como discurso político de afirmação da presença.
24
Neste caso, a prática discursiva da população afro-uruguaia é percebida para além
dos atos de fala, pois seu conjunto de enunciações reside em um tempo-espaço mais
íntimo e complexo traduzido sobremaneira em linguagem não verbal, constituída
permanentemente pelo corpo em movimento. Decorre daí a necessária sensibilidade
de quem lê este corpo. A análise deste discurso trabalha com a premissa de que a
leitura do comportamento, das ações e de toda linguagem não verbal devem habitar o
campo das emoções, da inteligência emotiva do enunciador. Posto que, além dos
gestos, do comportamento, das circunstâncias e de todos os códigos de enunciação
que acompanham o discurso, há o aspecto da memória afrodescendente reverberada
no corpo. Além disso, quando se adentra na leitura do corpo negro em movimento, a
compreensão do discurso considera aspectos éticos e estéticos para o seu
empoderamento, desde o uso dos atributos de seu fenótipo até a simbiose sagrada
entre os personagens do Candombe com o próprio corpo.
25
apresentações na rua ou como um indivíduo percebe o tambor para além do
instrumento. Em seguida, também foi considerada a apropriação do discurso pelos
indivíduos que atuam no Candombe enunciado para a sociedade como tipologia de
afirmação etnopolítica afro-uruguaia.
26
c) Da apresentação do trabalho
27
A parir do terceiro subcapítulo, o Candombe é apresentado em seu território
específico. “Do Candombe no Brasil” apresentará ao leitor a etno-história do ritmo e o
modo como ele tem sido praticado atualmente nos seus distintos espaços, seja no
quilombo, em zona rural, ou mesmo na cidade. Esta breve leitura do Candombe no
Brasil é pontuada por alguns dos seus pesquisadores cuja análise relaciona o ritmo
com os rituais sagrados envolvidos no contexto da festa do Congado, em Minas Gerais.
Mariana Simões (2013), Cristiano Trindade (2011) e Edimilson Pereira (2005) são
alguns deles. Neste ponto, o leitor já poderá perceber o modo pelo qual os tambores
são utilizados e considerados como protagonistas da festividade. Além disso, é possível
observar a presença da Nossa Senhora do Rosário e do Rei Congo que, na verdade, são
os personagens pelos quais o Candombe surgiu e para os quais é praticado.
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profundidade analítica, considerando a correlação direta entre São Baltazar com o Rei
Congo.
Com isso apresento o subitem “Do Grupo Asesor”, relatando o contexto da sua
origem, o propósito da sua formação e quem são seus integrantes. A partir da minha
própria experiência durante as aulas da Oficina do Grupo Asesor, prossigo com a
narrativa com o subcapítulo posterior que vai relatar sobre a “breve história do
Candombe uruguaio”. Todo conteúdo desenvolvido nesta parte foi transmitido por
pelo menos uma das aulas da Oficina. Contudo, sobre o surgimento do Candombe a
partir das confrarias, salas e suas respectivas nações, ainda utilizei a referência
bibliográfica de Carámbula (2005). O mais importante neste trecho é perceber o modo
como o Candombe era praticado e como o ritmo passou a ser incorporado por um
grupo.
29
as diferenças de territorialidades constituídas por cada conventillo e utilizadas
posteriormente para distinguir os três ritmos de Candombe. Em certo trecho, ainda
utilizo Aníbal Quijano (2000) e Benedict Anderson (2008) para problematizar a questão
do racismo e da apartação social sofrida pela população afro-uruguaio quando na
época o governo a expulsou do Conventillo. A partir daí, procuro demonstrar como a
presença afro-uruguaia foi criando pautas de discussão política a favor da sua etnia.
30
apresento os personagens do Candombe. Falo sobre o escobero e os emblemas
pontuando a sua origem e função dentro da sua narrativa. Em seguida descrevo sobre
as dançarinas e o gramillero. Para este personagem, retomo a bibliografia de
Carámbula que o situa em um momento histórico quando, ainda no tempo das
Nações, o gramillero representava o doutor ou ministro do séquito do Rei Congo. Após
sua breve observação, sigo a narrativa para discutir “Do sagrado feminino”, onde
relato o modo como a mama vieja e a vedete são percebidas. Antes disso, apresento a
origem das duas, sobretudo, o importante papel que a mama vieja exerce para o
Candombe.
31
do Candombe” termina com um panorama geral do microssistema ético-estético, na
tentativa de sintetizar toda a discussão promovida ao longo deste metacapítulo. O
terceiro e última parte da tese corresponde ao momento da “Travessia: o Candombe
uruguaio na Argentina”.
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Travessia Cone Sul
33
Da Origem do Candombe
34
1. Prelúdio ao Candombe
Ele entra na roda repicando o corpo com suas pernas arcadas, sorri e acena para
cima descansando a mão na testa. Sentindo a presença dos ancestrais, ele agradece,
regendo e sendo regido pelo som do tambor...
Foi naquele momento, diante daquela roda, que senti mais uma vez em corpo e
alma a pura expressão da presença humana, consciente, natural e sobrenatural. Foi
então que, mais uma vez, senti a encarnação da sabedoria do corpo negro e da
transmissão de sua cosmovisão pelo repicar daquele corpo na roda.
35
Dos antigos porões eles saem e se reúnem aos poucos conformando uma grande
roda, esperando a primeira fagulha de fogueira. Logo, a primeira chama é acesa e por
ela todos os tambores são aquecidos, acolhidos, vencendo o frio, e se preparando para
a grande orquestra.
O público composto por indivíduos curiosos, ora estranhava a reunião, ora agia
com naturalidade, sabendo exatamente que naquele cenário da rua o estado das
coisas seria transformado e transportado para o nível sensorial dos corpos.
Então, uma vez aquecidos e afinados pelo fogo, os tambores desfaziam a roda
procurando lentamente as suas posições. E de repente, no forte pulsar do primeiro
tambor, o multiverso negro era recriado e a memória ancestral reencarnada
transmitindo a continuidade da nossa história.
É o Candombe!
36
2. Da etimologia e alguns significados
Por fim, no idioma Kimbundu, existe a palavra Ndumba que significa “conjunto”
ou “multidão”. Em contrapartida, há também o prefixo Ka que indica o plural de
“muito” e Ndombe que está relacionado aos povos de Angola. Portanto, KaNdombe
seria “muitos de Angola”.
37
E de fato, foram muitos de Congo e Angola que superaram a travessia do tráfico
negreiro. Cerca de 12 milhões de africanos expatriados do seu lugar de origem e
escravizados para servirem como mão-de-obra compulsória ao sistema colonial
mercantilista (SEGAL, 1995, p.4). Entre os séculos XVI e XIX chegaram ao novo
continente africanos das etnias ambundos, congos, bacongos, ovambos e benguelas,
todos pertencentes à raiz etno-linguística bantu (THORTON, 1998, p. 310).
38
A breve referência destes elementos materiais e imateriais provindas do universo
bantu procura demonstrar a riqueza e influência da sua cultura no universo
afrodiaspórico, constituído, inclusive, pela música, dança e seus rituais.
39
Logo, o Candombe é percebido e empregado como fonte discursiva de afirmação
ao negro contra as heranças do próprio sistema colonial. E nesse sentido, podemos
considerar que o Candombe não deixa esquecer que houve muitos “gritos de
escravos”, possibilitando criar na sua prática um estado de permanência à memória
ancestral. Chabela ainda se refere aos tambores como instrumentos de comunicação
capazes de atravessar qualquer “fronteira geográfica” considerando sua natureza
“monolinguística”. Além disso, o tambor potencializa o grito e, portanto, a afirmação
da presença afrodescendente estabelecendo uma comunicação dinâmica e sistêmica.
Com isso, o ritmo atravessa e flutua pelo mundo afrodiaspórico com seu próprio
movimento, manifestando-se de um jeito ou de outro através dos tambores sagrados e
da memória ancestral dos seus praticantes, seja no Brasil, Uruguai ou Argentina. Nesse
contexto, portanto, convido o(a) leitor(a) a desfrutar os entre caminhos das veias
latinas afrodiaspóricas, uma trajetória narrada pelo outro lado da história, uma
permanente e corajosa travessia.
40
3. Do Candombe no Brasil
41
Por lá o ritual religioso surge a partir do mito da aparição da Nossa Senhora do
Rosário. Em sua narrativa, o Candombe aparece como termo que designa os tambores
feitos pelos escravos e utilizados por eles para conduzir a santa de fora do rio para sua
igreja. Com efeito, os tambores passaram adquirir sua condição sagrada por serem os
únicos capazes de manter a santa na igreja, sem que ela desejasse voltar ao rio onde
foi encontrada. Segundo o relato de Dona Mercês, moradora do quilombo:
3
Fonte secundária. Trecho descritivo. Grifo meu.
42
O Candombe é também encontrado em outras regiões e cidades de Minas Gerais,
como Contagem, Uberlândia e na própria capital do estado. Igualmente associado ao
culto a Nossa Senhora do Rosário, o ritual sagrado, contudo, se manifesta nesses
lugares com algumas diferenças em relação ao quilombo Fazenda Cipó, pois está
inserido no contexto das festividades que representam a coroação dos Reis de Congo,
chamada Congado, Congadas ou Reinado. Portanto, para compreender realmente
como o Candombe se estabelece e se manifesta na zona urbana das referidas cidades
brasileiras, é impreterível explicar de acordo com o contexto das festividades do
Congado ou Reinado, a começar elucidando a diferença entre os dois termos.
43
O Candombe, nesse contexto específico, representa a presença da ancestralidade
através da memória do Reinado. A presença dos ancestrais se dá por intermédio do
ritmo dos tambores em referência aos escravos da Diáspora e seu ritual opera através
da celebração a N. S. do Rosário. O ritual ocorre em outubro, na sexta-feira que
antecede o fim de semana do Reinado ou Congado. E, embora não esteja incluído na
programação oficial da festividade, o Candombe conta com a participação do público,
ainda que antigamente fosse restrito aos mais velhos.
Os cantos, por sua vez, são chamados de “pontos” que variam nos temas e tipos.
Um deles é conhecido como “bizarrias” que são cantos de brincadeira, ao passo que as
“demandas” são tipos de pontos que desafiam os cantadores entre si dentro da roda
de Candombe (PEREIRA, 2005, p.24).
Mariana Simões observa o fato dos tambores possuírem nomes próprios e que por
isso também assumem personagens próprios no ritual. Essa potência do tambor-
corpo-indivíduo capaz de “falar” é a expressão máxima da cultura negra e da sua
presença no contexto afrodiaspórico. Os tambores, por esta perspectiva, funcionam
“como uma voz da coletividade que se reúne naquele momento festivo para contar,
através de suas tradições, um pouco do modo de vida e de uma história que se renova
a cada festa” (SIMÕES, 2013, p. 173). Logo, a capacidade de narrar sobre o modo de
vida e da história das famílias, que em um dado tempo e espaço se estabeleceram
através da Diáspora Africana, faz com que os tambores deixem de ser meros
instrumentos de uma performance.
4
Guardas são grupos dançantes cujo sentido é de narrar dentro da performance do Reinado o ritual da
Nossa Senhora do Rosário. Conforme a região ou cidade, as guardas se diversificam entre seu elementos
e indumentárias. Basicamente são a guarda do Congo, Moçambique, Catopês, Caboclos, Marujada e o
próprio Candombe (LUCAS, 2006, p.68).
44
Por esta lógica, os tambores são corpos falantes que também relembram outros
corpos constituídos pela presença ancestral. Ainda que haja renovações,
transformações e dinâmicas próprias da presença afrodescendente e do modo como
ela é manifestada, os tambores continuam estruturando a via de comunicação entre o
plano imaterial com o material. E é nesse contexto que o Candombe é denominado de
“pai do Congado” ou “pai do Reinado” pela comunidade dos Arturos e demais
congadeiros, pois seu ritual destaca-se pela “fala” dos tambores aos ancestrais.
Através deles, abre-se o canal de comunicação com o sagrado, na figura dos
antepassados e dos santos católicos.
Mãe
Reis Congo
N. S. do Rosário
Pai
Reinado ou
Candombe
Congado
5
Para uma leitura mais específica a respeito do Congado ou Reinado e do Candombe no Brasil veja:
LUCAS, Glaura; LUZ, José Bonifácio da. (org.). Cantando e Reinando com os Arturos. Organização:
Comunidade Negra dos Arturos. Belo Horizonte: Rona, 2006; PEREIRA, Edimilson de Almeida. Os
tambores estão frios: Herança cultural e sincretismo religioso no ritual do Candombe. Juiz de Fora:
Funalfa Edições; Belo Horizonte: Mazza Edições, 2005; SIMÕES, Mariana Emiliano. Meu Corpo é tambor:
corpo e oralidade no reinado dos Arturos. Tese de Doutorado apresentado para Universidade Federal
Fluminense. Rio de Janeiro, 2013. TRINDADE, Cristiano A. O Candombe do Açude – Entre a tradição e a
exposição. Dissertação de mestrado apresentada a Universidade Federam de Minas Gerais, 2011, MG.
45
A forte influência da cultura bantu no Brasil estabeleceu através do Candombe a
relação com a autoridade e ancestralidade dos Reis de Congo, como ocorreu no
Uruguai e, em menor medida, na Argentina. Entretanto, o Candombe hoje, nessa
região do Rio da Prata, se manifesta de distintas formas, menos ou mais relacionadas a
santos, sem que sua prática perca totalmente a relação com o sagrado e o uso dos
tambores como via comunicativa.
46
4. Do Candombe na Argentina
6
Guia para docentes sobre afrodescendente e cultura afro-Afroargentin@s. Org. Agupación Xangô;
Confederação dos Trabalhadores da Educação da República Argentina (CTERA). Argentina, 2014.
47
Dentre alguns fatores, esta visão defende que o desaparecimento foi consolidado
durante o século XIX por causa da epidemia da febre amarela e da Guerra do Paraguai,
quando muitos soldados negros foram mortos na linha de frente das batalhas. Além
disso, já no final do século, o governo promoveu uma grande onda imigratória de
europeus para seu país, fato que contribuiu ainda mais para corroborar a tese do
desaparecimento da população negra devido ao processo de miscigenação étnica.
7
O termo Prata no contexto designa a região do Rio da Prata que abarca a cidade Autônoma de Buenos
Aires de um lado e a cidade de Montevidéu do outro. Grifo meu.
48
O historiador britânico Reid Andrews em sua obra Os afroargentinos de Buenos
Aires, reitera a tese de que o Candombe desapareceu no país junto com a população
negra (ANDREWS, 1989). Seu método de pesquisa em fontes primárias desconsiderava
o registro da história oral, fato que resultou em uma descontinuidade da análise da
presença afro-argentina e da sua produção cultural. Apesar de reconhecer a vigorante
popularidade do ritmo até a primeira metade do século XIX, o autor não percebeu ou
não estava interessado em perceber os elementos substanciais e específicos que
diferenciavam o Candombe argentino do uruguaio.
Anos antes da publicação de Reid Andrews, Hugo Ratier publicava uma obra
específica considerável que trata da origem do Candombe na Argentina denominada
Candombes portenhos. O autor faz um panorama dos variados tipos de ritmo e
derivações do próprio Candombe ao longo dos séculos XVIII-XIX (RATIER, 1977). Nesse
panorama, Ratier estabelece as regiões das manifestações afrodiaspóricas mais
“puras” descrevendo suas características através da análise de fontes escritas e
iconográficas.
A partir daí, o autor conclui que a cultura bantu (p.38) se destaca dentre as outras
e que o Candombe portenho era praticado de modo distinto ao Candombe encontrado
em Montevidéu, dado importante que nesse sentido diverge das outras pesquisas.
Ainda sim, mesmo que sua pesquisa tenha sido relevante para compreender as
especificidades e diferenças do Candombe argentino, persistiu em sua obra a ideia de
que o ritmo foi abandonado no passado juntamente com a população afro-argentina.
49
A contribuição de cunho etnográfico de Alejandro Frigerio permitiu ampliar a
perspectiva sobre a presença afrodescendente na Argentina trazendo o Candombe
para o tempo presente. Além disso, a obra cria uma nova possibilidade de análise
factual da Diáspora Africana no país, permitindo a visibilidade da sua população negra
e resgatando a discussão de problemas sociais que supostamente estariam resignadas
no passado, como o racismo. Por último, e não menos importante, o autor colabora
para que os próprios afro-argentinos sejam autores da sua história, refutando
definitivamente a tese da sua invisibilidade e reivindicando a longa jornada pela
afirmação à sua presença social, cultural e política.
Nesse contexto, Frigerio identifica através do registro oral uma geração de afro-
argentinos que testemunhara e participara diretamente do Candombe portenho até a
década de 1970 durante o carnaval do famoso baile Shimmy Club na Casa Suiza. Um
deles é do afro-argentino Enrique que hoje possui aproximadamente 50 anos e
recorda das pessoas que frequentavam o baile e de quem era autorizado a dançar o
Candombe portenho:
Estou te falando dos anos 1973 e 74, por aí... Eu me lembro que ia lá
na Suiza... Como te conto, estavam as mesas, se sentavam os grandes
patriarcas e a Negra San Martin era uma matriarca...toda uma
tradição tinha essa negra... Eu me dava conta que era uma negra
muito querida e respeitada na comunidade. Depois estavam os
Nuñez, depois os Lamadrid, todos negros velhos reconhecidos pela
comunidade, que a comunidade conhece a história deles (...). E as
pessoas dançavam. Primeiro dançava o público, e depois saíam a
dançar os velhos negros, Candombe. E aí já não dançava branco, não
deixavam que nenhum branco dance (...); (Apud. FRIGERIO, 1993,
p.2)
Enrique relata que havia algumas famílias que frequentavam o tradicional baile
Shimmy Club, como os Lamadrid cujos descendentes representam uma parcela de
afro-argentinos que continuam praticando o Candombe em suas casas. No mesmo
trecho, Enrique menciona o fato de ter havido brancos e negros no baile, porém,
somente os afro-argentinos eram permitidos tocar e dançar o Candombe. E nos anos
posteriores o baile já não era mais frequente e a Casa Suiza termina sendo fechada.
Com efeito, o ritmo passa a persistir tão somente em reuniões privadas, como festas
de aniversários ou celebrações familiares (FRIGERIO; LAMBORGHINI, 2011, p.7).
50
Em outro trecho descritivo de Enrique registrado por Frigerio é possível observar
os conflitos existentes entre os uruguaios e os argentinos em relação à prática do
Candombe. Ao mesmo tempo o relato ajuda a compreender o modo pelo qual o ritmo
portenho inicia um processo de declínio, já que a sua prática era associada aos bailes
de carnaval Shimmy Club:
Pelo cenário exposto por Enrique é possível cogitar que o Candombe portenho
deixou de ter certa popularidade muito devido à conjunção dos seguintes fatores:
(1) ser na época uma prática exclusiva de afro-argentinos, (2) aumento crescente de
brancos frequentando o Shimmy Club, (3) posterior encerramento do baile, (4) e a
privatização do ritmo por famílias tradicionais.
51
uruguaio já que a presença do ritmo portenho e de seus produtores tem sido
permanentemente privada (FRIGERIO; LAMBORGHINI, 2011, p.7).
A figura de Baltazar surge junto com Melchior e Gaspar a partir da narrativa bíblica
encontrada excepcionalmente no evangelho de Mateus. Os personagens formulam o
mito dos “três reis magos” que visitam o local onde o menino Jesus supostamente
nasceu. Existem proposições de que eles eram na verdade sacerdotes ou meros
conselheiros representando seus Reinados. Todavia, a tradição cristã sedimenta a ideia
de que os três reis magos representam a Ásia, Europa e África, sendo Baltazar,
portanto, atribuído ao último continente. Por isso em muitas pinturas retratadas desde
a Idade Média o santo aparece como uma pessoa negra. Desde então o personagem é
celebrado pela população afrodiaspórica de formas específicas sem perder, no
entanto, sua qualidade sagrada.
52
Na diáspora afro-argentina a figura de Baltazar surge no período colonial a partir
do mesmo fenômeno, ou seja, quando a igreja e o governo resolvem instituir a fé
católica evangelizando os negros escravizados através do culto ao santo. O resultado
foi o surgimento da primeira Confraria8 da região do Rio da Prata, denominada São
Baltazar e Animas. Essa Confraria permaneceu vigente entre 1772 a 1856 na igreja da
Piedade do Monte Calvário.
Entre o século XVIII até o início do século XX este Candombe era dançado, pelo
menos para o dia do santo, nas regiões de Santa Fé, Corrientes e Resistência, na cidade
Chaco. Atualmente o ritmo-ritual continua sendo praticado na cidade de Corrientes,
mais precisamente no bairro Camba Cuá. Este bairro, por sinal, é até hoje considerado
como zona tradicionalmente habitada por afro-argentinos, ainda que há décadas as
antigas gerações tenham se dispersado. E, além de Corrientes, o Candombe hoje é
visto nas cidades de Saladas, Pago de los Deseos e Anguá.
8
Confraria: associação que funciona com base em princípios religiosos, fundada por pessoas piedosas
que se comprometem a realizar conjuntamente práticas solidárias; irmandades que se reúnem para
promover o culto a um santo.
53
Nesse contexto religioso, o Candombe passa a ser executado por um conjunto de
violões, acordeão e um bombo. Sua coreografia é baseada em movimentos circulares
representando números, além de formas geométricas e das iniciais do próprio santo
Baltazar. Seus bailarinos entram e saem de um recinto em dupla ou em fila, podendo
mudar dependendo do ano, pois há total liberdade para criação de novas morfologias.
A performance dura em média 50 minutos e está sempre guiada por um bastonero
responsável por anunciar a troca de coreografias (CIRIO, 2003, p.144).
54
Essa investigação mais aprofundada sobre a origem de Baltazar, e o modo pelo
qual o santo foi ressignificado na afrodiáspora, tem sido possível realizar através da
historiografia brasileira. Não à toa, visto que no país a produção científica concernente
ao tema é maior em relação a seus países vizinhos. Como exemplo, existe o livro A vida
dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850) publicado pela pesquisadora Mary Karasch.
55
No caso do Candombe argentino é possível inferir essa mesma conexão entre os
dois personagens, considerando ainda a forte influência bantu no país. Além disso, é
imprescindível reconhecer que o sentido da sua prática cultural e religiosa permite que
as famílias também possam homenagear seus antepassados. E nesse contexto, só
existe um instrumento capaz de promover essa via comunicativa: o tambor.
Por isso, nas cerimônias religiosas são também executados “pontos” (tipos de
toques) nos tambores para São Baltazar, considerado por seus praticantes um “espírito
falecido”. Além do culto ao santo, uma das famílias possui desde 1977 forte vinculação
com seu patriarca cujo templo é dedicado ao “Povo Negro”, justificando a devoção
com os seus antepassados (CIRIO, 2003, p.143).
56
Europa (Cristianismo) África (Banto)
Pai
Confrari Nação
a
Candombe
bombo
9
Para uma leitura mais específica a respeito do Candombe argentino recomendo:
CIRIO, Norberto Pablo. La desaparición del Candombe Argentino: los muertos que vos matais gozan de
buena salud. Comunicação e Política, v.24, nº3, p.130-154. Montevidéu, 2003; ___. La música
afroargentina a través de la documentáción iconográfica. Universidade Nacional da Colômbia. Bogotá,
2007. FRIGERIO, Alejandro. El Candombe Argentino, Crónica de una muerte anunciada. Revista de
Investigações Folclóricas nº8: 50-60, Buenos Aires, 1993.___.Cultura negra en el Cono Sur:
representaciones en conflicto. Buenos Aires: Edições da Universidade Católica da Argentina, 2000.
LÓPEZ, Laura. Candombe y Negritud en Buenos Aires. Una aproximación a través del Folklore. Tese
(Licenciatura). Departamento de Antropologia, UBA, Buenos Aires, 2002.
57
E neste cenário outra presença afrodiaspórica acaba ganhando mais notoriedade,
principalmente em Buenos Aires. Trata-se do Candombe uruguaio. Em seu primeiro
momento o ritmo chega através das iniciativas de músicos e lideranças uruguaias
radicadas na metrópole do país, como o caso dos irmãos José e Angel Acosta. Em
seguida, O Candombe se populariza com a participação massiva de jovens brancos
pertencentes à classe média. Na verdade, o primeiro processo está diretamente
relacionado com o segundo, como veremos no Capítulo 3. O fato é que neste processo
dezenas de grupos surgem na cidade portenha cujas ruas permanecem cada vez mais
ocupadas por seus tambores.
Mas como o Candombe uruguaio logrou atravessar o Rio da Prata até Buenos
Aires, conquistando espaços e transgredindo fronteiras? Como sua presença adquiriu
potência afirmativa capaz de universalizar as diferenças étnico-raciais criando laços de
cooperação e igualdade entre seus praticantes?
58
5. Do Candombe no Uruguai: do Conventillo para as ruas – chegada ao campo
Inaugurei meus passos naquelas ruas do bairro Palermo em uma tarde de quinta-
feira do mês de agosto. Havia chegado ao país de ônibus dois dias antes em uma noite
fria e chuvosa, transcorrendo estradas por horas, e quase me acostumando com a
ansiedade dos primeiros encontros. A travessia é sempre longa. E após me instalar
num albergue comecei a mapear a cidade de Montevidéu. Sabia que meu primeiro
destino estava bem perto dali, e que dali seria meu ponto de partida para o início da
jornada. Sabia que nesse destino encontraria informações importantes sobre o
Candombe e suas lideranças, sobre a história e presença afro-uruguaia.
59
Caminhando e cantando passei a lembrar do tempo em que nestas mesmas ruas
milhares de escravos chegaram cuja maioria, como vimos, era composta pela matriz
étnica bantu. Mais precisamente, no dia 19 de novembro de 1728 em torno de trinta
famílias espanholas e portuguesas provenientes das Ilhas Canárias e Galícia chegavam
a Montevidéu junto com dezenas de africanos escravizados. Entre 1750 a 1810 mais
dezenas, centenas, milhares chegaram debilitados, enfermos, ao porto oficial do Vice
Reinado do Rio de Prata. Desde ali eram mantidos em quarentena por vários meses em
ambientes conhecidos como “casa de engorda” ou “casario de negros”. Em seguida,
eles eram distribuídos para Argentina, Paraguai, Bolívia e até para o sul do Brasil,
carregando como único bem material seu próprio corpo. Em 1778, estima-se que 20%
da população eram de africanos bantus somente em Montevidéu. Dados recentes da
demografia da cidade demonstram que a presença negra é composta de 8% a 10%
(BUCHELI; CABELA, 2007). Meu destino era ir de encontro a esta parcela da sociedade,
fato que ocorreria muito em breve.
A tarde era quase noite quando avistei um casebre antigo datado do século XIX, de
grande valor arquitetônico. O lugar estava reformado, revigorado, com suas paredes
de um branco impecável que pareciam protegidas pelo tempo. Ali na esquina da rua
Isla Flores com Minas, n° 1645, encontrei a Casa de Cultura Afro-uruguaia.
Por um momento, parei e olhei em volta, não havia ninguém. Estava sozinho. E
naquele instante pressenti o valor histórico daquelas ruas, sentindo o som dos
tambores ecoarem em meu peito. Sabia que era questão de tempo. Então, voltei em
presença e respirei fundo, pois era o momento da minha chegada. Toquei a campainha
da Casa, aquele minuto de espera parecia uma eternidade. Ninguém atendia ao meu
chamado. O lugar parecia estar vazio tal qual aquela rua. Pensei em partir e voltar
outra hora, outro dia... E quase a tristeza tomava conta de toda ansiedade trazida por
horas e horas de viagem, até chegar neste momento. Mas resolvi tentar de novo e
dessa vez uma conversa surgiu vinda de dentro da Casa. Foi quando a porta grande de
madeira se abriu.
60
Era Angela Oliveira Ramirez, estudante universitária, bailarina e secretária da Casa.
Sua presença em linguagem corporal enunciava leveza e agilidade, como se estivesse
permanentemente dançando em um palco ou em roda de Capoeira. Ela me convida
para entrar acenando com a cabeça acompanhada de um sorriso jovial, e logo me
apresento revelando o motivo da minha visita. Convidativa e atenciosa, Angela me
guiava pelos cômodos daquele centro cultural.
Antes de sair do salão percebo uma pequena pintura em colagem de uma senhora
cujo semblante compenetrado se debruçava à mesa folheando um livro. Aquele
pequeno retrato quase escondido poderia passar despercebido diante das outras
pinturas grandes e coloridas. Logo perguntei para Angela quem era aquela mulher.
No primeiro andar da Casa, além deste salão de artes, há outra sala ainda maior
logo à direita da entrada. Neste espaço é realizado aulas de dança e música, incluindo
o próprio Candombe. Seu assoalho de madeira rústica, paredes brancas e duas grandes
janelas com detalhes em vermelho possibilitavam admirar o constante vazio das ruas.
Subo as escadas e chego ao segundo andar. À minha direita existe outro salão com
grande espelho colado na parede utilizado por alunos de outras atividades ali
61
realizadas, como aulas de capoeira, expressão corporal, tango e milonga. Adjacente a
esta sala, encontramos um pequeno estúdio utilizado para gravações e oficinas de
percussão. Espaço este que posteriormente seria inaugurado em uma noite célebre.
Uma ocasião em que aproveitei para conhecer muitas das lideranças afro-uruguaias
presentes.
Do lado extremo oposto havia uma pequena biblioteca que em breve estaria
disponível para pesquisadores interessados no tema da história e cultura afro-
uruguaia. A biblioteca está aglutinada noutro grande salão onde, fixados em suas
paredes, havia retratos de homens e mulheres afro-uruguaios sentados à frente de
suas casas, contemplando um horizonte abstrato como se estivessem relembrando o
passado e sua ancestralidade. Aquelas imagens possuíam uma energia serena e
afirmativa, transmitindo a sensação de estarmos em uma espécie de templo da
vanguarda afro-uruguaia, guardado e protegido por seus ancestrais. Aquele salão era
destinado para reuniões, palestras e oficinas de grande procura, ambiente onde mais
tarde registrei momentos cruciais sobre a história e cultura do Candombe.
Terminado o giro pela Casa Cultural, Angela passou a me explicar que a instituição
é juridicamente uma associação civil sem fins lucrativos, financiada por meio de
algumas parcerias, como a prefeitura da cidade de Montevidéu, o governo da Espanha
e do Japão. Depois de três anos de atividades, a Casa foi inaugurada formalmente no
dia 3 de dezembro de 2011, data em que se comemora o Dia Nacional do Candombe,
da Cultura Afro-uruguaia e da Equidade Racial. A partir de então, o lugar passou a ser
um dos principais centros de referência institucionais de produção da cultura afro-
uruguaia. De acordo com o informativo que Angela me presenteou, a Casa de Cultura
Afro-uruguaia oferece, por exemplo, amostras de artes plásticas, fotografias,
espetáculos de música, dança, apresentação de livros, feiras de exposição de
artesanato e obras vinculadas a cultura afro-uruguaia.
62
Fomentar a recuperação e cooperação das organizações afrodescendentes e a
articulação de ações com pessoas, organizações sociais e instituições que
perseguem objetivos de equidade e compartilham sua sensibilidade social.
Dali em diante, constatei que a Casa seria muito importante para conhecer parte
das lideranças, artistas e professores engajados na promoção da cultura afro-uruguaia,
principalmente com relação ao Candombe. Além disso, a própria Angela poderia me
introduzir aos possíveis eventos da instituição que ocorreriam nas próximas semanas.
E com todas as minhas suposições naquele instante, logo descobri que não esperaria
muito tempo.
Sabendo dos meus objetivos, Angela me convidava para duas inaugurações que
ocorreram justamente no dia seguinte da minha primeira visita à instituição. A
primeira delas tratava da inauguração do estúdio de música, evento que contou com a
participação do presidente da Casa, Edgardo Ortuño, além de outras lideranças afro-
uruguaias e de representantes da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para
o Desenvolvimento (AECID) da cidade de Montevidéu.
63
cultural. E com isso, Angela me presenteava com a mais rica oportunidade de trabalho
etnográfico. Começar com a benção dos ancestrais. Sendo assim, sem resistir,
comemorei internamente como uma criança marcando o seu primeiro gol.
Com certa discrição consegui entrar passando pelo grupo aglomerado na entrada
e prontamente notei que no salão à direita já havia começado o cerimonial de
inauguração do estúdio de música. Sentados à mesa estavam dois representantes da
AECID bem como Edgardo Ortuño, responsável por encerrar a roda de discursos.
Contemplei com entusiasmo seu pronunciamento e dentro do contexto sobre o
Candombe ressaltou a importância da Casa como um dos centros de expansão
permanente da cultura e da política afirmativa afro-uruguaia:
64
5.2 Do grupo Asesor
De acordo com estas linhas de ação, a proposta do Grupo tem sido a de fomentar
um inventário do Candombe e das suas características específicas geradas em cada
cidade onde o ritmo é praticado. A partir daí, seria possível elaborar políticas públicas
e ações de conservação de todos os elementos do Candombe, considerado patrimônio
imaterial pelo Governo. Assim sendo, a responsabilidade do Grupo Asesor é de suma
importância já que sua contribuição permite constituir um verdadeiro manifesto da
prática cultural e política do Candombe nacional.
Uma vez definido os objetivos para o Projeto Cultural, a seguinte etapa tratou de
convocar uma seleção de exímios especialistas do Candombe tradicional, compostos
pela terceira e quarta geração de músicos e lideranças afro-uruguaias. Aquiles Pintos,
Cesar Alfonso Pintos, Juan Manuel Gularte, Perico Gularte, Willy Mariano Barroso,
Waldemar “Cachila” Silva, Benjamin Arrascaeta e, finalmente, Isabel “Chabela”
Ramirez constituem a equipe oficial do Grupo Asesor.
65
Além destes, outros membros compõem o Grupo podendo substituir
eventualmente outros escalados para as oficinas. A maioria dos integrantes possui em
média 70 anos, geração que testemunhara diretamente, entre perdas e ganhos, as
cruciais transformações sofridas pelo Candombe no século passado. Portanto, este
seleto Grupo é considerado por todos como o detentor da autoridade em relação ao
tema e responsável por transmitir todo seu conhecimento perante a sociedade.
Por sua vez, a história deste bairro e a estrutura do seu toque foram componentes
do segundo módulo, ministrado por Willy Mariano e Aníbal Pintos. No terceiro módulo
os irmãos Aquiles e Alfonso Pintos foram responsáveis por transmitir a história e o
toque do bairro Cordón. E por último, Juan Manuel Gularte encerrava a maratona de
aulas com a história do Bairro Sul e do seu toque conhecido como Cuareim.
Cada módulo foi planejado para ter em média três horas de duração,
contemplando aspectos teóricos e práticos, reservando no final um tempo para o
intercâmbio de experiências com o público. Este arranjo desenvolvido pelo Grupo
Asesor permite que seus alunos compreendam as diferenças dos toques tradicionais
do Candombe correlacionados historicamente com seus bairros. Assim sendo, a turma
composta por em média dez alunos teve a oportunidade de vivenciar os distintos
modos de tocar o Candombe uruguaio.
66
Durante a oficina que participei, os componentes do Grupo tiveram o
compromisso de transmitir oralmente o conhecimento e a prática dos ritmos
tradicionais do Candombe, bem como sua permanência a partir da memória e dos
modos de ser afro-uruguaio. Em uma das palestras realizadas na Casa Cultural Afro-
uruguaia, Chabela Ramirez reforça a importância do Projeto em todo país:
67
Definitivamente, aquele grande salão, o mesmo dos grandes retratos, templo da
vanguarda protegido pelos ancestrais, era agora preenchido por uma energia emanada
pelos três griôs. Com isso, sob o efeito da mesma energia, todos ali presentes
decidiram escolher seus lugares, em silêncio e respeito, pois sabiam que era o começo
de outro caminho aberto pelo dom da oralidade, inscrito nas emoções e na memória
daqueles mestres. Então, todos ali presentes sentiram-se preparados para ouvir o
outro lado da história. E meu único objetivo era de imersão completa em plena
consciência na contra narrativa, ouvir o outro lado da história contada pelos afro-
uruguaios sobre a sua presença no mundo, sobre seus tambores de Candombe. E com
todos os meus sentidos investidos em cada instante, voltados e sintonizados a cada
sopro, voz e toque dos palestrantes, comecei a ouvir.
68
Em cada sala de cada Confraria, havia uma Nação que fazia sua festa particular
com seus distintos tambores, na época ainda designados como tambos tal qual no
Brasil (p.42) e na Argentina (p.53). Em datas de celebração da cristandade, como
Corpus Christi e Folia de Reis, as salas representavam o domicílio do Rei da Nação. Se a
sala pertencia à “Nação Congo”, as pessoas encontrariam o Rei Congo e todo seu
séquito.
69
Nos tronos apareciam sentados com grave atitude os Reis, com suas insígnias nos
ombros, os paletós trançados, calças brancas com uma faixa negra. E ao seu lado as
Rainhas, que agregava a seu status, o prestígio de ser a melhor pasteleira de
Montevidéu, rodeada por princesas e camareiras que atendiam o cerimonial
(CARÁMBULA, 2005, p.11). Terminada a cerimônia, se dirigiam em corporação e por
Nações à residência das autoridades. Logo depois da abolição em 1842, o próprio
Presidente da República era quem os recebia rodeado de seus recepcionistas. As
Nações também tinham o costume de visitar os ministros, o vigário e os chefes
militares. Ratificavam diante das autoridades sua fidelidade e respeito e recebiam, em
troca, doações em dinheiro que resolveriam os gastos dos banquetes que tinham
produzido em cada sede, onde se apresentava a habilidade das “tias” e “morenas”.
Desde 1880 ainda havia várias danças e toques herdados de determinadas nações
africanas. Várias salas de Nações, integradas pelos descendentes daqueles africanos,
conseguiram sobreviver até o início do século XX com práticas rituais tradicionais. Em
cada sala se cultuava as entidades religiosas que haviam conseguido manter vivas
apesar de tanta repressão. Em alguns casos reproduziram imagens e em outras tendo
a São Baltazar como patrono.
70
A história do Candombe nasce a partir desse contexto em que grupos étnicos,
herdeiros da cultura bantu, constituíram Nações para representar sua própria
ancestralidade, costumes e festejos. Danças ritualizadas que sofreram sincretismo do
Estado e da religião católica como qualquer manifestação da presença afrodiaspórica.
Mesmo assim, permaneceram a partir da sua própria dinâmica, em seu tempo e
espaço. Claro que inevitavelmente o mesmo processo adquiriu semelhanças
concernentes a certos elementos do Candombe argentino e brasileiro. Não à toa
percebemos fatores estruturantes que deram origem ou mantiveram o ritmo, como as
próprias Nações, ainda que cada uma resguardasse suas especificidades.
A esta altura da primeira palestra, todos certamente estavam mais ansiosos para
compreender como o Candombe resultou na sua estética atual, com seus tambores e
personagens. Como foi perdendo processualmente sua relação direta com São Baltazar
e certos aspectos da sacralidade afrodiaspórica mantida pelas Nações. Deveras, já não
há mais Nações. Então o mestre Aquiles Pintos pediu que redobrássemos a atenção
para a próxima apresentação, crucial para entender o nascimento, ou renascimento do
Candombe.
71
Foi quando compreendi de que modo o Candombe uruguaio perdurou através do
tempo e dos territórios, apesar das duras situações pelas quais os afro-uruguaios
também foram expostos, como enfermidades, pobreza e, sobretudo, conflitos com o
Estado, pois o ritmo chegou a ser proibido nas ruas dependendo do governo. E com o
fim das Confrarias, havia somente um lugar onde o Candombe tivera liberdade para
continuar seu percurso. Um lugar chamado Conventillo.
72
O Candombe enquanto prática comunicativa, lúdica e performática emerge a
partir desse lugar coletivo onde naturalmente os saberes, experiências e emoções
foram compartilhados processualmente por seus moradores. Nesse sentido, o
Conventillo pode ser um “lugar estratégico” onde inúmeras famílias afro-uruguaias
desenvolveram com o tempo códigos de conduta e convivência exercidos e
compreendidos somente pelos que o frequentaram.
73
enunciado e foi então que compreendi profundamente o seu significado. Aquiles dizia
que naquele tempo os afro-uruguaios eram proibidos de muitas coisas, inclusive de
tocar Candombe. Além disso, a realidade fora dos conventillos era de muita pobreza e
trabalho e que, com certa frequência, eram “discriminados e tratados com violência
pelos brancos e pela polícia”.
74
Nesse sentido, o lugar coletivo institui seu lugar estratégico onde as identidades
convivem compartilhando o mesmo universo, a mesma realidade. De certo modo,
essas identidades ainda não eram utilizadas como discurso afirmativo frente ao
Estado, frente ao universo de fora, pois suas diferenças não criavam conflitos no
Conventillo. Tal contenda afirmativa e resistente somente ocorrerá quando o
Candombe sair do seu lugar estratégico conquistando as ruas. Nesse movimento, o
universo de dentro do lugar se expande e se desenvolve a partir de novos territórios
constituídos pelo universo de fora, onde os espaços são delimitados e regidos por
outra ética. Mas antes o ritmo ainda era concebido em seu ninho, em seu ambiente
fechado, horizontal e espontâneo, assim como era nas salas das antigas Nações.
75
“Nem todos tinham tambores, então improvisávamos (...). Meu
pai tocava acordeão, crescemos com a música dentro da
família. Usávamos latas de azeite e garrafas de vidro.” (Aquiles,
ago.2014)
O improviso com latas de azeite e garrafas de vidro também contribuíra para que
o lugar coletivo fosse transformado e instituído em cenário performático e lúdico. Sem
esquecer, ao mesmo tempo, que o mesmo improviso é também comportamento
resultado da ação e manutenção da liberdade constituída no microssistema
Conventillo.
O mais novo dos três griôs Juan Manuel Gularte explica que as diferenças de
estilos de ritmo contribuíram para definir as fronteiras de cada bairro tradicionalmente
habitado pela população afro-uruguaia. Por exemplo, o conventillo MedioMundo
situado no Bairro Sul criou o ritmo conhecido como Cuareim. Em contrapartida, o
conventillo Gaboto criava no bairro Cordón o estilo de ritmo homônimo e, por último,
o bairro Palermo responsável por criar o ritmo Ansina, nascido no mesmo conventillo.
Tais diferenças da estrutura de ritmo serão apresentadas metodicamente no capítulo
posterior. Ainda sim, é importante observar esse processo entre a criação de um estilo
de toque com a demarcação de territorialidades segundo cada bairro e conventillo, a
exemplo da definição de Fernando Lobo Nuñez:
76
Nesse contexto discursivo, os bairros e seus conventillos são frequentemente
utilizados para identificar a origem do sujeito e da sua família, como o caso dos irmãos
Pintos (Aquliles, Alfonso, Polo) atribuídos ao bairro Cordón. A relação entre o
sobrenome, sua linha de parentesco, com a origem do conventillo e,
consequentemente, com o estilo de toque, é realizada somente pelos que participam
do universo Candombe, pois a mesma geração compartilha do mesmo passado e
realidade. Por isso, a geração dos irmãos Pintos utiliza a memória do lugar enquanto
fator discursivo para afirmar o início da sua presença e da sua autoridade como
mantenedor e transmissor do Candombe tradicional.
Gularte
Ritmo Cuareim
Conv. MedioMundo
Bairro Sul
Cordón
Candombe Palermo
Conv. Gaboto Conv. Ansina
Ritmo Cordón Ritmo Ansina
Pintos Ramirez
77
Todos estes elementos constituem diferenças de territorialidades e identidades
produzidas, por sua vez, no processo histórico afro-uruguaio, mas que, em conjunto e
permanentemente presente, conformam relações horizontais dentro do seu próprio
sistema de organização social. E, mais tarde, essa organização microssistêmica dos
tradicionais bairros e conventillos afro-uruguaios será associada às festas de carnaval,
incluindo seus próprios grupos de Candombe que dele deriva, colaborando ainda mais
para a popularização do ritmo. Ademais, através do seu encadeamento histórico, social
e cultural, o Candombe conjuga a cultura afro-uruguaia em um nível situado para além
da sua tipologia rítmica, conforme reflete Aquiles Pintos:
Antes que esse processo ocorra, o Candombe precisou sair da sua zona de
conforto, do seu lugar estratégico. Mas o que levou o ritmo a sair do Conventillo,
considerando seu lugar coletivo e ao mesmo tempo privado, um lugar onde sua
presença poderia continuar a se desenvolver sem as intervenções do universo de fora?
E uma vez fora do seu lugar, como o Candombe foi capaz de conquistar
permanentemente o espaço da rua e certas territorialidades urbanas que antes o
reprimia?
78
Nesse momento Chabela Ramirez se reacomoda em sua cadeira ao lado dos três
mestres griôs. Sua linguagem corporal atinge um estado perene de indignação e
inspiração, causando em mim natural admiração. Então ela aponta para fora da Casa
com seu olhar lastimoso e sua voz encorpada, se referindo ao que havia na rua. Logo
ali em frente respirava o tradicional Conventillo Ansina do bairro Palermo. Sua
arquitetura de outrora já não existe, virou pó. Aquele cheiro mesclado de sabão com
óleo de fritura ficou no passado. Seus vários tons de cinza já não confundem o olhar
dos antigos moradores. E mais, o som daqueles tambores já não ecoa...
Portanto, era apenas uma questão de tempo para que a vida do lugar coletivo
onde o Candombe foi concebido desfalecesse. Todo seu microssistema composto por
cenário lúdico, improvisado e performático acabaria, dando fim a uma intensa epifania
orquestrada pelos tambores quase que diariamente.
79
inquilinos relutavam em sair, outros simplesmente desacreditavam de que tal fato
estivesse mesmo ocorrendo. Da casa para rua. Dali em diante sucedeu uma série de
demolições e despejos, incluindo os conventillos de Gaboto e Ansina, apontado por
Chabela em suas lembranças.
Decorre daí uma série de perdas, pois vimos que os elementos que compõem a
cultura afro-uruguaia estavam sistemicamente relacionados. Ou seja, se o lugar já não
existe, não existem moradores, famílias, amigos se relacionando e tocando o
Candombe. Se não há prática comunicativa, lúdica e performática, o bairro acaba
perdendo a sua “essência”, pois lá, “com a vida em comum, tu sentias que aquele era o
80
teu”. Considerando os fatos decorridos, o Candombe também estaria com seus dias
contados, pois já não havia mais presença para o ritmo, a não ser nas futuras casas de
cada família afro-uruguaia apartada e realocada em bairros distantes do distrito
central da cidade.
Em 1979, um ano depois do infeliz dia 03 de dezembro, Lobo Nuñez conta que o
Estado resolve remanejar os desfiles de Candombe, que já aconteciam nas ruas do
bairro Palermo, para a principal avenida comercial do centro da cidade, conhecida
como Av. 18 de Julio. Dessa vez, o pretexto das autoridades era de que “as vibrações
dos tambores poderiam afetar a integridade dos velhos muros do bairro”. Nuñez se
lembra desse episódio lamentando as incongruências do Estado contra a presença do
Candombe:
81
Nuñez, Aquiles, Alfonso e Polo Pintos, Juan Manuel e Perico Gularte, Willy
Mariano Barroso, Waldemar “Cachila” Silva, Benjamin Arrascaeta, Chabela Ramirez,
todo o Grupo Asesor estivera presente naquela época e testemunhara as muitas
censuras instituídas pelo Estado. Todos sabiam que o mundo de improvisos e relações
afetivas fora transformado, em definitivo, num mundo reprimido e controlado.
Após explicar o motivo verdadeiro pelo qual estava ali presente, os mestres logo
mostraram interesse em narrar sua memória para o Brasil, como se eu fosse o porta
voz que transmitiria sua realidade para fora, para o mundo. Tamanha
responsabilidade, pensei. Os antigos expertos ainda têm essa relação, talvez
inconsciente, com um pesquisador de fora do seu nicho social-cultural. Senti-me
privilegiado, pois era um momento crucial, exclusivo, de modo que deveria pensar e
agir rápido.
82
Logo, lancei a pergunta que havia planejado em fazer antes de tudo acontecer:
qual a importância do Estado para vocês? Vocês acham que o Estado poderia fazer
mais pela cultura afro-uruguaia?
Foi então que Aquiles sentou a frente do tambor e o abraçou como uma mãe
acolhendo seu filho nos braços. E com singelo afeto começou a tocar, a vibrar uma
antiga canção do tempo em que sua juventude peleava com os policiais. A
comunicação naquele instante passou a ser sensitiva, emotiva. Os outros riram
brevemente demonstrando em seu olhar a ternura, felicidade e consciência de um
passado difícil. Um tempo em que o pulso de cada tambor era uma possibilidade de
encontro e conflito.
O conflito, de certo modo, era e ainda é necessário porque, se antes havia uma
violência declarada, hoje há uma “violência silenciosa”, como define Walter Mignolo. E
essa violência atua como uma “colonialidade do sentir”, pois está presente na vida
cotidiana através da retórica, da linguagem corporal, das condutas dissimuladas
provocadas pelas diversas camadas societárias contra o afrodescendente (MIGNOLO,
2010, p.18). O resultado dessa violência silenciosa é o trauma guardado nas entranhas
da memória, manifestada de diversas formas quando de novo os embates “raciais” são
permitidos.
83
Dentro deste ponto de vista, a colonialidade é ainda um dos elementos
construtivos e específicos do padrão mundial constituído pelo discurso hegemônico
ocidental. Seu fundamento se baseia na imposição de uma classificação racial/étnica
da população mundial como pedra angular do dito padrão de poder que opera em
cada um dos planos, âmbitos e dimensões da existência social cotidiana. Este padrão
foi determinante na instituição de um sistema conflituoso e permanente de
classificação sócio-racial que serviu para a universalização da civilização capitalista –
incluindo a exploração de trabalho – e a formação das sociedades “nacionais”
(Quijano, 2005). Em outras palavras, o padrão de poder baseado na colonialidade
também implica na construção de um padrão cognitivo, ou seja, uma perspectiva de
conhecimento e comportamento dentro da qual a comunidade hegemônica acredita
ser branca, provinda exclusivamente de uma raiz ética e estética europeia.
84
Como resultado do apagamento do “outro lado da história”, os concidadãos
uruguaios passam a acreditar que sua nação é branca, católica e patriarcal. Então,
submetidos ao discurso hegemônico, os mesmos cidadãos acreditam cegamente que
pertencem ao modelo social instituído e, com efeito, possuem certa dificuldade de
aceitar outros modelos de presença e de organização social, sobretudo, no campo das
alteridades. Nos dizeres de Chabela Ramirez: “foi o veneno que nos deram”. E veremos
no capítulo 3 que esse “veneno”, que essa falácia discursiva é ainda mais atuante na
banda ocidental do Rio da Prata, onde a branquitude herdada pelo “poder colonial” é
tão impetuosa que frequentemente ouvimos a sentença de que no país não há
racismo.
10
Fonte: http://www.casaafrouruguaya.org/index.php/afrouruguayos/estadisticas
85
No período que seguiu após a abolição da escravatura até a década de 1870, a
população negra no Uruguai desenvolvia novas experiências a partir da sua presença
em todos os âmbitos sociais. Escritores, jornalistas e advogados afro-uruguaios,
engajados na preservação dos direitos humanos da sua comunidade, criaram
periódicos que pudessem denunciar crimes de racismo e outras práticas
discriminatórias do cotidiano na época.
Os líderes Salvador Betervide, Julio César Grauert, Maruja Pereira, Mario Méndez,
Ignacio Suárez Peña, Ceferino Nieres, Sandalio del Puerto, Carmelo Gentile, Aníbal
Eduarte, Ismael Arribio e Gilberto Cabral, fundaram e militaram pelo Partido
Autóctone Negro (PAN) cuja atuação durou no período entre 1936 a 1944. Na mesma
11
Fonte: http://www.casaafrouruguaya.org/index.php/afrouruguayos/historia. pg34.
86
época foi criada em Montevidéu a Associação Cultural e Social Uruguai Negro (ACSUN),
presente até hoje, cujos objetivos são a manutenção da cultura, da memória, através
de acervos documentais, e a promoção de cursos, eventos, que tratam de preservar a
sua identidade, costumes e tradições.
87
Portanto, é uma data de comemoração dos feitos de resistência da comunidade
afro-uruguaia e reafirmação da sua identidade diante às medidas discriminatórias
dispostas pela ditadura militar que impôs a espoliação dos conventillos nos tradicionais
bairros Palermo, Cordón e Barrio Sul. Segundo o próprio Edgardo Ortuño:
Essa data serve para recordar seu significado e evocar todo seu
simbolismo de resistência, reafirmação de identidade e de poder da
cultura para superar as adversidades, preconceitos e derrubar as
fronteiras invisíveis, mas dolorosamente tangíveis do racismo e da
discriminação. O candombe e sua gente, longe de haver se
extinguido, sobreviveu e se expandiu por toda cidade e no país
convocando a multidão com independência de sua condição racial,
entorno desta manifestação da cultura afro-uruguaia que identifica
nossa comunidade a todo Uruguai. (ALFARO; COZZO, 2008, p.15)
88
Alguns dos fatores comportamentais são identificados pela Psicologia inerentes ao
indivíduo resiliente, dentre eles a (1) administração de emoções através da qual a
pessoa consegue manter a serenidade diante de uma situação estressante; (2) controle
dos impulsos que se refere à capacidade do sujeito manter o controle pela experiência
de uma forte emoção; (3) otimismo em que a pessoa acredita na esperança e no
controle do destino da vida; por último a (4) análise do ambiente através da qual os
sujeitos identificam precisamente as causas das adversidades e se resguardam em um
lugar mais seguro para sua proteção e adaptação, ao invés de se manter exposto a
uma situação de risco.
89
Uma vez compreendida, a resiliência pode inclusive contribuir para explicar a
resistência e o modo de reação de todas as comunidades afrodiaspóricas, ganhando
destarte sua dimensão macrossistêmica. De um modo geral, toda população
afrodiaspórica foi resiliente ao sistema escravocrata e tem sido resiliente ao racismo.
Dito de outro modo, o afrodescendente não apenas resistiu às apartações sociais,
culturais, religiosas, mas reagiu a dada realidade de acordo com sua sabedoria, fator
lúdico, inteligência emotiva, “otimismo” e “análise do ambiente”. Estes fatores
comportamentais compreendidos como inerentes ao afrodescendente que, somados,
contribuíram para estruturar o tipo específico de microssistema social, sua tipologia
ética-estética, seja a Capoeira no Brasil, o Candombe uruguaio ou argentino e,
finalmente, a Tumba no Chile. Todas estas, portanto, são manifestações emergentes
enquanto discurso a uma proposta étnica e política, capaz de demandar
reconhecimento da sua presença na história nacional, no âmbito jurídico-legislativo e,
não menos importante, no âmbito educacional.
90
Em decorrência deste processo, o Candombe passa a ter condições de progredir
sua presença noutros bairros, em novas ruas, conquistando novos territórios
“periféricos” e reocupando os antigos processualmente. Ao invés de se privar em casas
e núcleos familiares, o Candombe uruguaio decide ganhar o mundo através da rua. E
do mesmo modo, o ritmo vai se alastrando por toda cidade, no país e para fora dele,
chamando ou “convocando a multidão com independência de sua condição racial”,
conforme afirmara Edgardo Ortuño anteriormente.
91
Diante de tal conjuntura, é propício mencionar a análise de Milton Santos, quando
o geógrafo define o “espaço” como a conjunção plena entre passado-presente da
forma comunicativa do ser humano na sua relação permanente com o próximo:
92
Por esta outra razão, a ressignificação do antigo lugar a partir da ocupação
permanente do espaço pode ser considerada um ato afirmativo político. As ruas do
bairro Palermo, Cordón e Bairro Sul transformam-se em cenários dialógicos entre o
microssistema político Candombe com a sociedade uruguaia e emergem como lugares
da memória afrodiaspórica. E essa relação é hoje autônoma, pois não há
intermediação ou agenciamentos privados e estatais que dificultem ou facilitem a
transmissão da ética afro-uruguaia. Deste modo, a ética concebida no Conventillo
permanece presente, transmitida pela estética do Candombe. Uma travessia abstrata,
compreendida tão somente pelo discurso dos que praticam ambos: ética-estética. Em
síntese, enquanto a ética nascia em seu lugar estratégico, a estética se desenvolvia por
meio dela no espaço-rua, conforme a representação no infográfico:
Travessia
Privado Público
LUGAR ESPAÇO
93
Além disso, devido ao fenômeno da segunda diáspora, o ritmo contribui para
fortalecer a presença afro-uruguaia de modo a transgredir “as fronteiras invisíveis (...)
do racismo e da discriminação” . Deveras, sua prática comunicativa traduz em discurso
a questão do problema racial, demandando novas políticas afirmativas do próprio
Estado. Se antes a sociedade uruguaia imaginava sua comunidade homogênea ou
simplesmente consubstanciada por uma suposta democracia racial, o Candombe veio
à rua para narrar o outro lado da história.
94
Diante de tal conjuntura descrita, vimos que o Candombe termina conformando
um microssistema herdado pela organização social afro-uruguaia que, por sua vez, foi
concebida em seu lugar estratégico. Percebemos como o Candombe deixa de ser
apenas uma prática comunicativa lúdica e performática, chegando no espaço-rua
como uma prática comunicativa política através do seu modelo ético-estético. A partir
daí, o ritmo logra transmitir com sua própria presença um modelo de relação social
pautado no respeito, empatia, compartilhamento de saberes e ideias. Resulta desse
processo, portanto, a tentativa de estabelecer o fim do racismo e o reconhecimento do
passado-presente afro-uruguaio perante a sociedade e o Estado.
95
Morfologia e Cosmologia:
96
6. Das primeiras impressões de um desfile
Era um sábado, dia 13 de setembro. A julgar pelas ruas, no entanto, mais parecia
um domingo com o vazio de som e gente. O céu gris nas tardes de Montevidéu ainda
prenunciava o frio incansável e sua fina chuva perene que mal dava para molhar o
corpo. Caminhava e cantava pelas veredas arborizadas do bairro Pocitos, adjacente ao
bairro Palermo. Meu destino era exatamente a esquina das ruas residenciais Av.
General Rivera com Manuel Haedo.
97
Para que um desfile ocorra, não há um número mínimo ou máximo de grupos
participantes. O fato é que geralmente só participam entre dez a vinte comparsas em
um mesmo evento. E mesmo que haja dezenas deles residentes em Montevidéu, a
quantidade de comparsas em um desfile dificilmente passa disso, até porque pode
haver mais de um encontro de Candombe no mesmo sábado ou domingo.
12
Dados obtidos em http://www.candombe.tv/censo. Último registro atualizado em 20/10/15.
98
Dois destes voluntários já estavam interditando as ruas onde passariam as doze
comparsas. Os carros desavisados até que tentavam passar por ali, mas eram
orientados a fazer um desvio tomando outro caminho. Reparei que não havia
nenhuma autoridade policial ou guarda de trânsito para ajudar ou de algum modo
regular a organização do desfile. E diante daquele cenário concluí que o espaço-rua
Manuel Haedo já estava preparado para o desfile.
7. Do Escobero
13
Escobero do grupo Los Niche em desfile para a prova de admissão para o Carnaval de 2015.
Montevidéu, 27 de setembro de 2014. Reprodução do autor.
99
No que concerne à estética e sacralidade do Candombe, embora tenham sido
elaboradas através da cultura bantu, é possível que alguns dos seus elementos
materiais e imateriais também tenham se originado de outras culturas presentes na
Diáspora, como a Fon, Ewe e Iorubá. A própria vassoura carregada pelo escobero pode
ser associada ao xarará que, no contexto iorubá, é um instrumento utilizado nos rituais
do orixá Obaluaiê (rei e senhor da terra) e da mesma forma serve para afastar os maus
espíritos para o espaço sagrado, eliminando as energias negativas e proporcionando a
longevidade.
Destarte, com o afastamento dos maus espíritos e das boas energias emanadas, o
espaço-rua estava preparado para a passagem dos principais símbolos que identificam
as agrupações. O estandarte é o primeiro deles, a égide que apresenta o nome de cada
grupo. Seu formato retangular ou pentagonal deriva das mesmas bandeiras religiosas
utilizadas pelas antigas Confrarias através das quais o próprio Candombe cresceu. O
mesmo emblema também pode ser encontrado na Argentina através das agremiações
familiares que celebram São Baltazar, assim como no Brasil, a partir das “Nações” do
Congado (p.9). As cores do estandarte e seus outros apetrechos de adorno podem
variar desde que sua presença represente a beleza e identidade do grupo. Naquela
tarde o estandarte de La Tribu reluzia em dourado através do qual se podia ler de
longe o seu desígnio.
100
Além do estandarte, seguem as bandeiras retangulares cujas cores também
podem variar. A bandeira do grupo anfitrião possuía tons gradientes de amarelo,
laranja, vermelho e cortava facilmente o vento. O esforço é grande para os
responsáveis em anima-las, pois a única regra é não deixa-las esmorecer. Sua função,
tal qual o estandarte, é a de apresentar e estabelecer a identidade do grupo. Existe,
todavia, uma diferença entre as duas que não reside na função, mas na sua origem.
Se o estandarte deriva das antigas Confrarias regidas pelo séquito e regras cristãs,
as bandeiras, por sua vez, provêm das antigas “Nações” e, como vimos, contribuíram
para a formação da primeira estética do
Candombe ainda no século XIX. Na
verdade, todos os elementos percebidos
hoje, entre emblemas e personagens,
derivam do sincretismo entre as
confrarias e nações. Nesse sentido,
trata-se das mesmas contingências em
101
9. Das dançarinas
10. Do Gramillero
102
o personagem, em suas distintas temporalidades e contextos, não abandonou sua
figura de autoridade e chefe detentor da sabedoria e memória afro-uruguaia.
E com todo seu encanto, vinha desfilando a matriarca do Candombe com seu
tradicional traje feito de anágua e saia rodada com rendas. E para afastar o calor ela
utiliza o leque com detalhes em madre pérola ou uma pequenina sombrinha. O
conjunto ainda é adornado por colares, pulseiras, e o famoso turbante improvisado
contra piolhos, herdado pela moda colonial ainda nos tempos das caravelas e trazida
pelas infantes, incluindo Carlota Joaquina. E com a mesma nobreza de uma antiga
Rainha de “Nação” a mama vieja do grupo La Tribu dançava, sendo cortejada pelo
gramillero. Ainda que sua performance esteja prioritariamente destinada ao cortejo,
entre um instante e outro, a matriarca deixava seu par a ver navios movendo seu
quadril e ombros de uma lado a outro, paralisando seu tronco no ar. Ainda mantendo
sua nobreza, ela erguia a cabeça e acenava com seu leque para o público que, por sua
vez, respondia à performance tentando balançar igualmente os ombros.
103
Naquele instante do desfile, por obra do “acaso”, encontrei uma amiga com quem
fiz amizade ainda na Casa de Cultura Afro-uruguaia. Estudante, baiana de nascimento e
vivências, seu objetivo ali era cativar alunos para dar aulas de dança, profissão a que se
dedica. E como dançarina, estava entusiasmada com a corporeidade das afro-
uruguaias, tanto que durante o desfile chegou a confessar encantada que estava no
“Pelourinho do Uruguai”. Deveras, contextualizando daquele jeito, Ana nos remetia
daquela rua para um território do qual estávamos habituados a compreender, nossa
pátria imaginada Brasil. Sem querer, minha nova amiga me impelia de um modo
inelutável a comparar as mama viejas com as famosas baianas brasileiras, sejam as
tradicionais do Carnaval carioca ou as vendedoras de acarajé nas ruelas históricas do
Pelourinho baiano.
Realmente, o traje típico das matriarcas do Candombe fazia-nos lembrar das Iyás
da cultura iorubá, ou Doné da cultura Jeje. Termos que no português significam “mãe”
ou “matriarca”, como no caso das iyalorixás que também cumprem sua função
sacerdotal na religião do candomblé iorubá. Todas herdaram estéticas e funções
específicas, porém semelhantes, constituindo, neste caso, a raiz do matriarcado
afrodiaspórico, transfigurado somente pelas contingências dos distintos tempos e
espaços. Deste modo, para além da comparação do traje ou da sua função específica,
o mais inevitável é reconhecer que todas elas significam e resignificam a pessoa que
concebe uma vida: a mãe.
104
dedicada à Oficina de Candombe. Naquele momento específico sua voz ganhava um
tom forte e resoluto ao adentrar no tema do papel feminino no Candombe:
Ademais dos múltiplos significados que a mama vieja tem adquirido por quem a
reconhece, sua presença pode representar substancialmente o tipo de matriarcado
desenvolvido no contexto específico afro-uruguaio, e de certo modo em todo
macrossistema afrodiaspórico. Em tese o matriarcado se define como um sistema
social através da qual a mãe ou qualquer outra presença feminina exerce autoridade
absoluta sobre os núcleos de organização social desde as mais simples, como a família,
até as mais complexas a partir de uma comunidade. Esta perspectiva deriva de um
conceito proto-indo-europeu em que o poder feminino fundamenta a organização
sócio-religiosa de todas as sociedades antigas (BACHOFEN, 1861; FRAZER, 1922;
GIMBUTAS, 1974).
105
“Desdramatizando nossa história, desde nosso lugar de fala,
superando estereótipos e espaços adjudicados, herdamos a
chefatura familiar, o madresolterismo histórico, capital de
nossos ancestrais, e temos crescido com a rebeldia lógica dessa
forma de vida desafiando o lugar que se nos adjudicou
construído pela pobreza.” (Ramirez, set.2014)
106
Um conceito que, em tese, possui relativa correspondência ao madresolterismo é
o de matrifocalidade desenvolvido por cientistas sociais, incluindo antropólogos, em
observação ao funcionamento das famílias afrodiaspóricas na América Inglesa e Latina
(FRAZIER, 1939; SMITH, 1956; CLARK, 1956; GRACCHUS, 1980; ANDRÉ, 1987).
Desenvolvido principalmente por Raymond Thomas Smith, a matrifocalidade
reconhece na mãe a principal responsável pelo grupo familiar, tendo ela o poder de
decisão sobre os assuntos relacionados aos filhos e netos e nas resoluções domésticas
de um modo geral. A família matrifocal também é constituída pela ausência frequente
do pai, este representando apenas um papel secundário na tomada de decisões do
núcleo familiar. Essa perspectiva não significa que a sociedade deve ser
necessariamente matriarcal, mas ajuda a compreender a dinâmica das relações entre
mãe e filhos observada em famílias afrodescendentes (SMITH, 1956).
107
De fato, beleza, graciosidade e sensualidade são
atributos estéticos inerentes às vedetes14 , como pude
constatar na tarde da “Chamada de Haedo”. Seus corpos
envolventes distribuíam beijos ao público, parte dele
constituído por homens. Por vezes, ela convidava alguém
mais animado para acompanha-la na sua performance.
Seus corpos desfilavam logo à frente dos tambores com
seus quadris, sempre em sincronia ao toque orquestrado do Candombe. Diante
daquele cenário foi inevitável a comparação com as rainhas de bateria do Carnaval
carioca e paulista, sobretudo considerando tal contexto festivo no qual sua presença
recebe maior notoriedade.
14
Vedete do grupo M.Q.L. em desfile para a prova de admissão do Carnaval de 2015. Montevidéu, 27 de
setembro de 2014. Reprodução do próprio autor.
108
No Candombe há, portanto, dois tipos de presenças femininas que não estão
diretamente imbricadas, mas discernidas de acordo com a função que desempenham
em seu microssistema. Enquanto a mama vieja incorpora a matriarca, a vedete
representa o padrão estético feminino. E apesar dos candombeiros concordarem que é
importante esse tipo de estética, a relação dissidente que a vedete pode provocar com
a matriarca e com outras possibilidades de presença feminina termina sendo motivo
de certo desconforto por muitos praticantes, dentre eles os mais experientes músicos
e dançarinas, conforme observa Chabela Ramirez:
A cantora e feminista ainda exemplifica em sua fala sobre estas distintas formas
de participação e competência que a mulher afro-uruguaia pode e deve assumir:
109
A despeito de todas as possibilidades valorativas que a mulher afro-uruguaia
possui dentro e fora do Candombe, o fato é que sua presença continua carregando
uma dupla discriminação de raça e gênero sendo, todavia, segregadas aos setores
laborais menos qualificados. De acordo com a análise de Ana Karina Moreira, assessora
governamental do Instituto Nacional de Mulheres, quase uma em cada quatro
mulheres negras ocupadas trabalha no serviço doméstico, ao passo que apenas uma
em cada seis mulheres brancas ocupam o mesmo ofício15.
15
Fonte: “A mama vieja, ícone do carnaval uruguaio e de uma minoria negra postergada”. Por Federica
Narancio e Paula Vilella. Fonte: http://www.lr21.com.uy/cultura/1159295-la-mama-vieja-icono-del-
carnaval-uruguayo-y-de-una-minoria-negra-postergada.
110
Negro. Integrava ainda à comitiva afro-chilena as amigas e líderes Marta Corvacho e
Milene Molina, todas integrantes do “Coletivo de Mulheres Luanda” de Arica no Chile.
Reconhecendo tal realidade, Molina termina a sua fala concluindo que a “principal
mídia” da mulher negra lamentavelmente “continua sendo o corpo”. Para Chabela
Ramirez, o desafio reside justamente na desconstrução do corpo como objeto,
permitindo que este incorpore seu poder midiático através dos significantes do e pelo
Candombe:
111
“as pessoas dançam e não se dão conta do que significa, não
tem maneira de saber qual e como era a origem. As pessoas
devem aprender a ler o que o Candombe está dizendo”.
(Ramirez, set.2014)
112
‘horizonte’ de futuros possíveis que nos permitem ‘pensar o presente’ e para os quais
as nossas práticas constituem uma espécie de réplica ou resposta (SCOTT, 1999, p.82).
Na prática o “espaço problemático” de Scott seria o espaço-rua onde o Candombe
conjuga sua estética à ética instituindo, por sua vez, novas possibilidades de relações
de ordem cognitiva, política e artística por meio da sua “pedagogia cívica”. Cabe então
a comunidade afro-uruguaia ensinar à sociedade que há perspectivas distintas de
modos de organização das relações sociais, do saber e fazer tradicionais, pautadas por
uma filosofia e práxis libertária.
113
O primeiro deles se chama Chico que no português significa
“pequeno” ou “menino”. Este tambor é constituído de madeira e por
uma membrana, chamada de lonja pelos candombeiros, provinda da
pele de animal ou de material sintético. Dentre os três, o Chico
possui o som mais agudo devido à espessura do seu corpo e do
tamanho da sua boca, medida entre seis a nove polegadas. O Chico é muito
importante, pois é responsável pela base rítmica do Candombe. Os outros tambores se
baseiam nele para tocar em sincronia. Logo, o seu ritmo deve ser sempre constante de
modo a produzir a sinergia orquestrada do Candombe. Por isso, seu percussionista
precisa estar sempre atento ao compasso. Ele é, portanto, o tambor responsável por
iniciar a performance.
Para uma análise comparativa de modo a facilitar nossa leitura, imagine alguém
caminhando sem importar com a velocidade. A cada pisada no chão se faz o silêncio. E
no intervalo entre uma pisada e outra o som é constituído. Assim sendo, o compasso
do Chico nunca está no chão, está sempre no ar, solto e livre, propiciando a sensação
do constante descompasso no corpo. É difícil perceber essa estrutura rítmica muito
devido à velocidade em que o “menino” é tocado. No entanto, se atentarmos ao ritmo
dos outros tambores em conjunto, percebemos que existe um breve silêncio ou
ausência de som no tempo forte do Chico. Com essa base rítmica sincopada, o
“menino” influencia diretamente na performance de todas as dançarinas e
personagens do Candombe. Fato que contribui, por sua vez, para um estado
permanente do movimento enquanto linguagem não verbal dos corpos.
114
Outro elemento determinante para o regimento da orquestra entre os tambores
é o som da clave reproduzida com a baqueta no corpo do tambor. Este recurso é muito
utilizado para reencontrar o compasso quando acontece de um instrumento perder a
conversação entre os tambores. No caso do Chico, é também fundamental a execução
da clave já que a partir dela se inicia o toque em conjunto com todos os tambores.
É como se o maestro de uma orquestra clássica avisasse com sua baqueta para os
músicos do início da performance. O Chico, portanto, avisa e chama os outros
tambores para participarem e começarem a performance orquestrada. Veremos
adiante que este ato de “chamar” é importante para uma compreensão analítica como
conceito, pois permeia toda a relação ética-estética do Candombe no espaço-rua.
O Repique pode chamar outro Repique ou um Piano para a “conversa”, mas nunca
o Chico, pois este, como vimos, corresponde o compasso básico do Candombe e para o
“menino” não há liberdade de improvisação. Em síntese, o Repique corresponderia a
um ser que lança uma pergunta a outro que responde. A comunicação é ilimitada e a
improvisação ganha materialidade na construção do livre diálogo entre os tambores.
Destarte, é como se houvesse a produção de um microcosmo na relação entre seres
viventes, através do qual a linguagem é estabelecida com chamadas e respostas. Esse
padrão comunicativo entre “chamada” e “resposta” é na verdade uma estrutura
rítmica africana mantida em sua Diáspora. O Candombe, nesse contexto, representa
mais um exemplo deste padrão comunicativo dominado pelos músicos de modo que a
sincronia do ritmo através dos tambores seja sempre estabelecida.
115
O Piano, por sua vez, representa o primeiro tambor do
Candombe e possui o som mais grave por ser o maior. Através da
sua base rítmica foram desenvolvidos os três tipos de toques
tradicionais do Candombe: Cuareim, Ansina e Cordón. Como vimos
no capítulo anterior, cada toque deriva dos bairros e dos seus
respectivos conventillos onde habitava a maioria da população afro-uruguaia. Com
isso, o Piano tocado pelos moradores do Bairro Sul criaram o ritmo Cuareim, os do
bairro Palermo inventaram o ritmo Ansina e, por último, os residentes do bairro
Cordón formaram o ritmo homônimo.
Piano
Cordón Ansina
Cuareim
Candombe
116
12.1 Ritmo Cuareim
O ritmo Cuareim foi criado pelos afrodescendentes que viviam no Bairro Sul
situado hoje na região do antigo centro da cidade de Montevidéu, entre as ruas
Cuidadela, Canelones, Ejido, Rambla Gran Bretaña e Rambla Republica Argentina. Essa
região especificamente concentrou boa parte da população afro-uruguaia muito
devido ao fato de estar próximo ao centro e também por ter sido nessa região a
principal entrada de negros africanos escravizados.
Antes disso, no ano de 1943, os irmãos Silva, Wellington, Raul e Juan Ángel
chegaram ao Bairro Sul e começaram a criar um Candombe baseado nas velhas nações
e raízes afro-uruguaias surgidas no principio do século XX. Em pouco tempo foi criada a
comparsa chamada “Lonjas de Cuareim” através do qual o ritmo do Bairro Sul é
executado. E a partir de 1956 a comparsa começou a desfilar nas ruas criando as suas
chamadas reproduzidas até hoje pelas gerações de descendentes.
117
12.2 Ritmo Córdon
118
12.3 Ritmo Ansina
O ritmo Ansina foi criado no Bairro Palermo, limitado pelas ruas Canelones, Ejido,
Emilio Frugoni e pela Rampa Sul. Tal qual o Bairro Sul, Palermo também abrigou
muitos afrodescendentes desde o começo do século XX. Famílias tradicionais do
bairro, como a Giménez, Suárez, Nazareno, Pujol, Quiroz, Rada e Ramirez,
desenvolveram o Candombe através do mesmo processo, expulsos do antigo
conventillo Ansina e criando a partir daí o ritmo homônimo.
119
Logo percebi que a partir da roda se inicia a simbiose do tambor com seu músico.
Essa relação do cuidado, do acolhimento e do afeto entre os dois elementos também
são percebidos e valorizados pelo público que aos poucos foi se reunindo, esperando o
primeiro pulsar sincopado dos corpos. Em sua contribuição sobre a análise da
morfologia da “roda” Julio Tavares afirma que “é uma unidade do intertexto que o
complexo cultural, constituído como resistência, estabeleceu” além de ser um “lugar-
texto que contém sub-textos que são os jogos compostos por frases individuais”
(TAVARES, 1984, p. 92). Então, se o Candombe é a narrativa textual constituída por
uma interface de elementos vivos, a roda seria a micro unidade textual ou o “lugar-
texto” onde as “frases individuais” se estabelecem em comum acordo, de um modo
cooperativo. Destarte, a partir do “lugar texto” os tambores começam a superar o frio,
a invisibilidade.
120
Sua proposta de análise visa reconhecer as inter-relações existentes nos sistemas
complexos como a “mente humana” e as “construções humanas” (KOESTLER, 1969).
Dito de outra forma, o autor tenta explicar como a relação entre a autoafirmação do
indivíduo e a sua integração com os demais se complementam. Nesse sentido, admiti-
se que o indivíduo possui vontade, individualidade, mas ao mesmo tempo é capaz de
interagir, integrar e cooperar em prol de uma “totalidade”. A partir destes
pressupostos analíticos, Koestler desenvolve o conceito de “holarquia” como um
sistema de “hólons” que cooperam para atingir determinado objetivo. Com isso a
holarquia define as regras básicas de cooperação entre hólons reconhecendo sua
capacidade autônoma. De certo modo, a holarquia elucida o sistema de organização
dos seres vivos em ação com a natureza, como o voar de um bando ou a produção de
mel das abelhas. Neste sistema “holárquico” cada ser cumpre com suas funções
específicas de modo cooperativo para que o objetivo comum seja atingido,
exatamente como é realizado no Candombe.
corpos
holon
holon corpos
121
E quando a roda se desfaz, a mesma ética permanece. Como disse, a roda é
apenas uma condição necessária para a simbiose do corpo tambor com o corpo
humano, sendo ela o início da performance que, por sua vez, culmina no desfile. Sendo
assim, uma vez em sintonia e sincronia, os corpos humano-tambor estão prontos para
desfilar no espaço-rua mantendo a sua polifonia orquestrada com base na holarquia
constituída na roda.
13. Do corpo-tambor
Não é por acaso que no Candombe uruguaio o tambor Chico significa “menino”,
visto que ele representa o filho da família, aquele que merece ser ouvido, cuidado e
sentido. O Repique, por sua vez, é percebido como pai, aquele que orienta e conversa
literalmente com os seus pares. E finalmente o Piano, considerado como a mãe de
todos, aquele que cuida, protege e representa a sabedoria da mãe-terra. Essa
percepção declarada demonstra como o Candombe é em si um sistema de organização
social, estruturante para os indivíduos que o pratica e o incorpora na vida cotidiana.
Nesse sentido, são corpos-tambores.
Dessa forma, faz mais sentido perceber a facilidade com que os tambores são
incorporados. É como se cada candombeiro estivesse depositando seu filho, seu pai ou
sua mãe na roda para aquecê-los em torno da fogueira. Enquanto isso o corpo humano
se posiciona atrás, cuidando e acolhendo, ainda que tal propósito seja um artifício
inconsciente. Essa relação entre os dois corpos é sempre patente antes do desfile.
122
“Os tambores são elementos centrais da cultura Candombe.
Chegou com o meu pai e em bairros específicos. É por isso um
membro da família e tratamos como uma herança que
podemos usar como peregrinação da nossa cultura”. (Gularte,
ago.2014)
Da mesma forma, estes “hábitos corporais” também seriam uma ação pragmática,
a ação do devir do sujeito nas circunstâncias com as quais lhe oferece oportunidade de
representar seus indícios de poder e enunciar sua identidade. Até mesmo a criança
afro-uruguaia, habituada a incorporar cotidianamente o tambor como instrumento de
expressão da linguagem não verbal, estende esta simbiose para as relações sociais
expressadas no corpo. O tambor, por sua vez, oferece a potência de comunicação
transmitida pelos sujeitos que o incorpora. A partir daí, todas as linguagens não
verbais das práticas comunicativas afro-uruguaias, incluindo o Candombe, são
transformadas em hábitos expressadas no diálogo gestual com outros indivíduos.
123
Deste modo, o corpo afro-uruguaio é a primeira mediação desse hábito
incorporado, capaz de atuar como ferramenta resiliente ao meio social conflituoso em
um estado permanentemente afirmativo. Esta ação do corpo está todo o tempo se
imbricando nas suas multi atitudes com o campo institucional. Tal feito é graças a sua
evidência histórica, ao trauma da travessia e do holocausto, que hoje é contra narrada
no espaço-rua concatenada ao poder constituído como linguagem. Algo compreendido
por Foucault como “prática discursiva do poder” (FOUCAULT, 1998, p. 29).
124
ético-estético com a sociedade. Essa mediação, como vimos, está repleta de
significados constituídos pela performance dos personagens do Candombe, sendo o
corpo-tambor o principal deles, pois ele constitui a força motriz que promove o
movimento e linguagem não verbal dos outros corpos. E nesse sentido, Csordas
reconhece que essa presença em movimento é a “base existencial da cultura”
(CSORDAS, 2008, p.102).
A partir daí, o autor contribui para transpor essa condição da presença em uma
dimensão em que o “corpo é integrado no Cosmo” (TAVARES, 1984, p. 104). E com
isso, nos permite compreender o estado de presença afrodiaspórica e, no contexto
específico desta narrativa, da presença afro-uruguaia pelo Candombe. Significa que
seu microssistema ético-estético contribui para religar (religião) permanentemente a
presença, sua prática corporal em movimento, ao plano sagrado. Por isso, é tão
corrente o discurso trazido pela memória dos que praticam o Candombe sobre a
ancestralidade, o povo que nos concebeu na Diáspora Africana. São eles que autorizam
e intermediam o “saber corporal” em movimento através da simbiose com os três
tambores.
125
do desfile carregando seu tambor nas costas ou junto ao ventre, estabelecendo essa
relação de acolhida e de proteção. É como se o tambor manifestasse a essencialidade
da vida encarnada no objeto e estendida para o corpo humano. E essa sinergia
também ocorre do corpo humano para o corpo tambor. Isto é, a mutualidade
comunicativa entre o tambor e o humano nos faz compreender que um não existe sem
o outro. Dessa simbiose nasce, portanto, a condição da presença.
“Seu poder não vem de dentro. Não sei bem como é isso, mas
ao tocar sinto que tocam comigo meus pais, meus avós e os
pais dos meus avós... todos estão aí nos apoiando, nos
ajudando, prontos para nos ensinar e nos dar força e valor (...).
O poder do tambor nos transcende, nos abre as portas do
inconsciente, nos permite comunicarmos com o além”. (Juan
Angel Silva in: ALFARO; COZZO, 2008, p.57)
126
compõem o título do presente capítulo. Enquanto a morfologia é constituída pela
roda, pelos personagens e, sobretudo, pelo corpo-tambor em movimento (desfile), a
cosmologia atua como linguagem-texto “não verbal” capaz de manter a resiliência,
memória e ancestralidade da população afro-uruguaia. Todos estes elementos
articulados entre morfologia e cosmologia corroboram para a manutenção do seu
discurso etnopolítico.
Certa noite, estávamos preparando os três tambores para mais uma aula da
Oficina de Candombe ministrada pelo Grupo Asesor. Angela Ramirez me ajudava a
ordena-los um ao lado do outro. Para finalizar, tratei de repousar as baquetas em cima
de cada corpo-tambor. E com um tom imperativo, Angela imediatamente pediu para
que eu retirasse as baquetas. Perguntei se havia algo de errado. Então ela me explicou
que não se deve colocar as baquetas em cima dos tambores porque representa a
“ausência do músico”, como se a sua alma já não estivesse mais presente.
127
14. Da Chamada e Chamadas-Mãe
Não à toa o Candombe é exercido através das suas Chamadas. O ato de chamar é
um ato imperativo, o desejo de que dois ou mais seres (corpos e tambores) se
encontrem e iniciem um processo comunicativo dialógico e mútuo entre o ensino e
aprendizagem das diferenças. Somado ao ato imperativo de chamar alguém, o
Candombe propiciou o modelo etnopolítico da Chamada dentro do seu microssistema,
convocando a sociedade para a compreensão do seu próprio modelo de organização.
Com isso, o corpo-tambor evoca os elementos da ética-estética através de um
chamamento, uma interpretação convidando o público a participar da narrativa.
128
rede de enunciados e significados em ambiente global (MEAD, 1967, p.107). Com essa
linguagem não verbal em diálogo mútuo e cooperativo entre tambores e corpos
(hólons), cria-se uma interação pautada em consenso, reconhecimento e aceitação das
múltiplas presenças com a finalidade de se divertir, compartilhar e conviver.
Rivera ainda faz uma correlação com o ritmo ocidental, enquanto este obedece a
uma métrica, geralmente lenta e romântica, as músicas afro-americanas possuem
marcações sincopadas proporcionando uma qualidade erótica para o ritmo. À este
aspecto, o Chico cumpre bem a métrica sincopada, transmitindo para os copos em
movimento a sensação de permanente sincronia com a dissonância, o desacordo de
uma narrativa.
O autor também explica a diferença dos dois modelos segundo suas métricas
comparadas às noções de temporalidade. Melhor dizendo, a diferença do andamento
entre a música ocidental e a afro-americana representa distintas percepções do
tempo. Por exemplo, o compasso padronizado e previsível da música ocidental
reproduz a sensação do tempo linear, a ideia de progresso, da modernidade. Ao passo
que na música afro-americana representa uma marcação sincopada do tempo, ou seja,
uma descontinuidade e imprevisibilidade temporal. Para essa particularidade rítmica
da música afro-americana, o autor chega a afirmar que “representa melhor a realidade
histórica cotidianamente vivida das sociedades do novo mundo: a simultaneidade dos
tempos históricos diversos (…) através do qual o mito, a história e cotidianidade se
entrecruzam em elaborações polirrítmicas sobre a possibilidade da utopia” (RIVERA,
2009, p. 74-76). Muito devido ao movimento dos corpos, há no Candombe uruguaio
129
uma continuidade ou linearidade entre começo, meio e fim de um desfile. Embora a
imprevisibilidade temporal esteja presente e muito evidente na performance das
dançarinas, quando seus corpos repicam nos ombros e quadris, sempre na ponta dos
pés.
Rivera ainda identifica que na música ocidental há uma centralidade visto que a
sua composição é exclusivamente individual, há certas hierarquias de tons e
instrumentos que prevalecem na orquestra e, finalmente, existe o predomínio do
canto. Em contraposição a esse modelo erudito, as músicas e danças afro-americanas
produzem uma descentralização na participação dos indivíduos para a produção e
expressão musical. A criatividade e o improviso norteiam a sua dinâmica e, sobretudo,
há o predomínio da dança enquanto expressão coletiva, já que dentro da roda há
casais ou mais pessoas dançando. Sobre esse contraste o autor afirma que “a
formação cultural descentrada que vai dar conta da nossa hibridez e heterogeneidade
choca com a tradição histórica de suas metrópoles coloniais e seus princípios de
conhecimento” (RIVERA, 2009, p.52).
130
As Chamadas do Candombe uruguaio, por sua vez, incorporam a imaterialidade (o
sagrado, a memória, a ancestralidade) através da materialidade (corpo-tambor). Esse
modelo comunicativo é também fundamentado pelas três estruturas rítmicas básicas
que já conhecemos e que hoje são conhecidas como Chamadas-Mãe.
131
15. Do Candombe no carnaval
132
Não devemos seguir perdendo tangos, hinos, habaneras,
milongas, personagens originários de nossa arte, por respeito
ao trabalho, à entrega e capacidade de nossos antepassados.
(Ramirez, set.2014)
133
Desfile Oficial de Chamadas
2015: pontuações totais.
Classificação de cada
comparsa. Valores de Ansina
obteve o 12º lugar com
373p. Fonte:
www.candombe.tv
Mais do que nunca, compreendemos o que Chabela Ramirez quis dizer quando
advoga a ideia de que as pessoas “devem aprender a ler o que o Candombe está
dizendo”. Sua linguagem-texto não verbal é posta a teste no Carnaval, quando o único
objetivo é o consumo da sua estética. Logo, “aprender” e “saber ler” o Candombe
passam a ser um desafio para o público, para a sociedade, mas, sobretudo, para seus
integrantes, por não deixar que seu discurso etnopolítico torne mais uma vez invisível
pela apropriação da sua estética. Como resultado, desapareciam automaticamente o
papel das lideranças, a ancestralidade, memória e historicidade envolvida como
fundamento da presença afro-uruguaia.
134
Alejandro Frigerio e Eva Lamborghini concordam que este contexto condiz com
uma forma de exercício político que nos serve exatamente para explicar o mesmo
fenômeno. Trata-se da política do “multiculturalismo light” através do qual a cultura é
exaltada e exibida (ao mesmo tempo em que é mercantilizada), de forma tal que os
aspectos potencialmente mais problemáticos de sua etnicidade ou de sua situação
social passem despercebidos. E nesse caso, a exibição de seus direitos culturais não
garante, assim, a efetiva reivindicação de seus direitos de cidadão (FRIGERIO;
LAMBORGHINI, 2002, p.162).
Com isso, essa relação vertical entre o Estado e as minorias cria uma ilusão de que
a igualdade tem sido estabelecida e, finalmente, a de que o racismo e todas as outras
manifestações de violência estariam sendo extirpadas. Esta política ainda revela a
“síndrome colonialista” que consiste em crer que existe uma supracultura superior a
todas as demais, capaz de oferecer uma hospitalidade benigna e condescendente.
Logo, enquanto se emprega o termo para referir a situações e contextos específicos, o
multiculturalismo está fundamentado em problemas supostamente “universais” cuja
resposta ou solução deve ser igualmente universal (WALSH, 2009, p.43).
135
No que tange especificamente ao caso afro-uruguaio, ao apropriar a cultura
Candombe através do Carnaval, o Estado fomenta o discurso constituído com base no
referido “multiculturalismo”, na intenção de promover, valorizar e proteger o valor
cultural chegando à qualidade de patrimônio imaterial. No entanto, este tipo de
política naturalmente acaba apropriando o mesmo modelo cultural como objeto de
consumo. Com efeito, o discurso afirmativo afro-uruguaio através do Candombe torna-
se invisível, além de perdas significativas no que tange inclusive a estética, devido às
resignificações próprias do fenômeno, como evidencia Chabela:
136
Portanto, o carnaval uruguaio cria um contexto de festa nacional através da qual a
qualidade lúdica é a principal finalidade cujo público interage e aceita. Mais uma vez,
resulta daí o apagamento das intencionalidades subjetivas e coletivas derivadas da
noção de ancestralidade e memória do microssistema Candombe. Por consequência,
também é gerado o apagamento do discurso etnopolítico e das subjetividades que
através dele fundamenta a sua presença.
137
alternativos nos que se transformam e contestam os significados dominantes culturais
e políticos. O público pode se ver como arena discursiva paralela onde os grupos
subalternos reinventam seus próprios discursos, identidades e interesses. Estes
campos são potencialmente contenciosos em duas formas: criam e sustentam
discursos, identidades e desafios alternativos em conflito com significados e práticas
dominantes, e mantêm uma disputa interna com seus interesses de modo que os
capacitem para responder de maneira adequada a seu próprio princípio etnopolítico
(ESCOBAR, 2008, p.302).
138
15. Panorama geral do microssistema ético-estético
Ele entra na roda repicando o corpo com suas pernas arcadas, sorri e acena para
cima descansando a mão na testa. Sentindo a presença dos ancestrais, ele agradece,
regendo e sendo regido pelo som do tambor... O Chico, o Repique e o Piano estão
prontos. Ao sinal do mestre, todos se reúnem e os tambores se unem ao ventre dos
seus candombeiros. Enquanto Valores de Ansina desfilava, o sol ressurgia ao cair da
tarde trazendo novamente a primavera. As bandeiras cortando o vento, o escobero
afastando os maus espíritos, o gramillero junto com a mama vieja incorporando e
transmitindo a ancestralidade. As dançarinas, os tambores e todo o público
interagindo em um estado lúdico e democrático.
Em certo momento, dobramos a esquina das ruas Minas com Isla de Flores,
passando exatamente entre a Casa de Cultura Afro-uruguaia e o atual condomínio
Ansina, onde habitava o antigo conventillo. Ali os tambores tocaram ainda mais forte
em sinergia e harmonia, como se estivessem reverberando o ritmo para seus
ancestrais. De repente me deparei com Leticia Sanchez e seu marido, ambos da
comparsa La Tribu, acompanhando o Valores. É muito comum encontrarmos na plateia
integrantes de outras comparsas acompanhando o desfile de outros, e como Valores é
bem influente, isso é muito comum. A vontade de compartilhar os mesmos valores
constituídos por via da tradição e da memória ancestral permeia tanto os músicos
quanto o próprio público, constituído por maioria de jovens.
A tarde quase caía quando dobramos à direita subindo pela rua Dr. Lorenzo
Carnelli até chegar à sede da Associação Cultural e Social Uruguai Negro (ACSUN) onde
o desfile continuou naturalmente, mas dessa vez compondo uma roda de tambores.
Foi quando o último Piano decide encerrar o ensaio de Valores reverberando na
“lonja” o seu tom grave somente abafado por gritos e aplausos. Com a chegada da
noite, novas rodas de fogueira eram acesas para manter os corpos aquecidos. Parece
que este ritual inicia e finaliza um ensaio. A noite se encerra com outras presenças
surgindo, inclusive uma roda de Capoeira cujo mestre era brasileiro. Diante daquele
espaço-rua convergiam múltiplas performances, tradições e corporeidades produzindo
uma única holarquia. Enquanto isso, o Candombe esperaria pelo próximo desfile, pelos
próximos tambores.
139
Destarte, aprendemos como o microssistema foi concebido, a partir das entranhas
de lugares sagrados, seja em confrarias, seja no lugar estratégico onde emergia
naturalmente os códigos e relações de conduta que processualmente se constituíram
na ética afro-uruguaia. Com a queda do Conventillo, vimos a população afro-uruguaia
ser espoliada, apartada mais uma vez da sociedade e da história. Com isso, veio à tona
o uso da resiliência, da resistência e da afirmação com base na sua proposta
etnopolítica.
140
Temos como um dos exemplos a experiência vivenciada pelos irmãos Pintos que
criaram o tambor através do corpo na tentativa de reproduzir o ritmo incorporando o
som na sua voz. Além do fato, de que os tambores Piano e Repique conversam entre si
em liberdade, improvisando e articulando novas linguagens em harmonia.
141
A seguir o infográfico resume a dinâmica morfológica e cosmológica do Candombe
uruguaio, desde a sua origem até hoje:
Privado Público
Confraria ou
Irmandade Rua
sagrado Estado
Ditadura
Salas
Nações Candombe
Nações e
Sociedade Lubolos
Rei
Congo
Ministro Rei Rainha Conventillo estética
Espaço-rua
Ancestralidade
Piano
Comparsa Candombe
Repique
Piano Chico Microssistema etnopolítico
Ética- estética
Corpo-tambor
Carnaval
estética
142
A esta altura da narrativa, devo lembrar algumas questões sobre o modo como o
Candombe uruguaio permitiu transgredir fronteiras geográficas e políticas das quais
esteve submetida ao longo dos séculos. Interessa-nos agora compreender como o
ritmo logrou atravessar o Rio da Prata conquistando novos espaços estreitando as
fronteiras e criando uma ponte (etnopolítica) entre Montevidéu e Buenos Aires. Mas
antes de explicar sobre a iniciativa das lideranças e músicos que carregaram
literalmente os tambores nas costas e no ventre para expandir e progredir o ritmo,
desejo observar a natural capacidade que o tambor possui para tal finalidade.
143
intervenção sustentada e crítica (...). Pela primeira vez na história, suas lutas têm sido
conectadas com aquelas das outras comunidades de descendentes africanos nas
Américas de modo significativo” e isto é um desenvolvimento otimista não somente
para a resistência ao racismo, senão para fazer outros mundos possíveis visíveis e mais
viáveis (ESCOBAR, 2008, p.298 apud. Jordania, 2006, p.9). Da mesma forma, para
Walter Mignolo, uma das consequências desse alinhamento político diplomático
transnacional é a aproximação das fronteiras, um processo de “transterritorialização”
das afirmações políticas através da via diplomática sul-sul, criando “novas redes
independentes do Estado” (MIGNOLO, 2010, p.57). Em consonância à dinâmica política
dos territórios locais afro-latino-americanos há uma convergência entre fronteiras
muito devido à produção comunicativa dos tambores.
144
Travessia: o Candombe uruguaio na Argentina
145
17. Primeiros pulsos: conflitos e permanência
Pouco tempo depois, seu irmão Angel Costa funda a ONG denominada SOS
Racismo. Angel também foi um dos pioneiros do ensino do Candombe uruguaio na
cidade Buenos Aires. E já nesta época, vimos que o Candombe argentino estava
recluso em suas casas, sendo praticado por poucas famílias afro-argentinas (p.). Neste
contexto, sobretudo, após a morte de José Delfin, o Candombe uruguaio ganhava mais
notoriedade principalmente por jovens brancos de classe média. Vimos também que o
ritmo em Buenos Aires não era novidade, posto que pelo menos desde a década de 70
afro-uruguaios cruzavam o Rio da Prata para desfilar com seu Candombe. Fato que,
por vezes, gerava conflitos com os afro-argentinos, sobretudo, na casa Suiza em seu
baile Shimmy Club (p.46). Portanto, considerando estas variáveis, a travessia do
Candombe uruguaio parece ter sido um fenômeno de migração pendular, sendo mais
patente a partir dos conflitos, nos embates e negociações de suas fronteiras
identitárias e territorialidades com os afro-argentinos.
Para este fenômeno, Alejandro Frigerio e Eva Lamborghini observam que, de certo
modo, os embates entre o os militantes afro-argentinos com o Candombe afro-
uruguaio deveu-se ao fato de que seus mestres ensinavam o ritmo como uma
manifestação “rio-platense” estabelecendo uma continuidade entre as “chamadas”
contemporâneas de tambores, realizadas por imigrantes afro-uruguaios com o
passado negro do bairro histórico San Telmo onde boa parte dessas chamadas é
realizada (FRIGERIO; LAMBORGHINI, 2010, p.164).
146
Em outras palavras, o Candombe afro-uruguaio se apropriava da territorialidade
afro-argentina constituída no bairro histórico San Telmo, fazendo dela cenário para sua
prática cultural. Com isso, sua presença poderia contribuir de algum modo para
“apagar” ou pelo menos “por de lado” a presença afro-argentina junto com seu
passado. Com efeito, é possível haver a construção de novas narrativas a partir de uma
historicidade e territorialidade externa que ocupa o espaço-rua antes ocupado pelos
afro-argentinos. O Candombe uruguaio, por sua vez, passa a ser a principal referência
cultural afrodescendente de Buenos Aires, lembrando, mais uma vez, que neste
momento o Candombe argentino estava concentrado em ambiente privado.
O fato de o Candombe uruguaio ter sido praticado por jovens brancos de classe
média é também motivo que inicialmente gerou “certa discussão” entre os mestres
afro-uruguaios, pois havia a preocupação de que sua prática, assim como no Carnaval,
pudesse perder o sentido do seu discurso etnopolítico em memória da ancestralidade
e presença afro-uruguaia (FRIGERIO; LAMBORGHINI, Op. cit.). Entretanto, parece que o
discurso de afirmação etnopolítica não se limitava às essencialidades estéticas,
especialmente, no que diz respeito à cor da pele. Porque um jovem branco pratica o
Candombe não significa perda, ao contrário, diz respeito à transmissão de valores,
práticas e modo de vida desde uma concepção da ancestralidade negra para a
sociedade, independentemente do fenótipo.
147
Ernesto Costa é exemplo de afro-uruguaio radicado há mais de cinco anos em
Buenos Aires. Ele foi um dos meus primeiros contatos estabelecidos assim que
atravessei o Rio da Prata. Quem me havia indicado foi Angela Ramirez, sua prima,
professora e secretária da Casa de Cultura afro-uruguaia. Logo saberia que, assim
como Angela em Montevidéu, seu primo seria importante para me introduzir ao
cenário de discussões etnopolíticas produzidas até o momento em território portenho.
Conseguimos nos reunir para uma conversa depois da terceira tentativa, pois ambos
estavam repletos de compromissos. Marcamos às 21h no Obelisco da cidade situado
no cruzamento da Av. Corrientes com 9 de Julio.
Chegando ao local indicado por Ernesto, percebi que era uma tradicional pizzaria
da cidade, adjacente a grandes teatros, casas de show e cinemas. O lugar, próprio para
a convivência familiar, também estava repleto de jovens e trabalhadores pós-
expediente. Contudo, aquele cenário foi imediatamente desestabilizado pela
linguagem corporal de Ernesto, distinta àquele ambiente. Enquanto procurávamos
lugar para sentar percebi que todos o olhavam, alguns com parcimônia, tolerância,
outros com descaso e estranheza. Estas flechas de julgamento e preconceito, no
entanto, não alterou em nenhum momento a altivez da sua performance. Ernesto
parecia estar consciente em relação aos preconceitos e talvez por isso mesmo não se
abalava. Pelo contrário, fazia questão de enunciar sua postura, seu estar-no-mundo a
partir da sua linguagem não verbal do corpo em movimento.
148
Com a mesma autoridade que entrou no salão, Ernesto gesticula ao garçom para
que façamos o pedido. Este, por sua vez, parecia levemente nervoso, como se fosse a
sua primeira experiência em servir um negro, bailarino, homossexual. Enquanto
pedimos lembrava-me do argumento de Erving Goffman: “há a preocupação do
estigmatizado por controlar seus veículos de indícios, seu comportamento gestual e
linguístico, para que as informações emitidas por ele próprio a seu respeito sejam
deferidas pelo outro com o objetivo de reconhecer a sua identidade virtual”
(GOFFMAN, 1982, p. 49).
Contudo, enquanto comíamos percebia que Ernesto superava com essa natureza
da estigmatização instituída pelo “não branco” em relação ao negro. Sua postura de
observar, gesticular, chama atenção e rompe o silêncio, tornando-se visível por sua
beleza e afirmação. Resultado da consciência de quem é e como deve ser. Ao invés de
atenuar sua diferença para diminuir sua rejeição que naturalmente seria exercida pelo
olhar do “não branco” (aqui é meu lugar), em uma tentativa de se aproximar a sua
estética, o afro-uruguaio afirmava com sua presença sem ser autoritário.
149
Como o racismo pode ser algo interessante? Questionava em meus pensamentos.
Todas as discussões científicas e, claro, de senso comum, diziam o contrário. A partir
da interpretação de Rita Segato, por exemplo, a raça é considerada um signo, um traço
de uma história no sujeito que o marca uma posição e sinala nele a herança da
disposição. A escravização dos africano/as e seus descendentes foram uma instituição
particular de extração de riqueza do trabalho. Com o tempo estes corpos se
transformaram processualmente em um “código de leitura desses que deixaram neles
seus rastros”. Em outras palavras, raça não é necessariamente signo do povo
constituído, do grupo étnico, senão um traço, uma marca. Para a autora “o não branco
não é necessariamente o outro índio ou africano, senão outro que tem a marca do
índio ou do africano, a marca da subordinação histórica” (SEGATO, 2008, p.81).
150
Uma das emblemáticas contribuições no que diz respeito à construção do racismo
a partir da ordem cognitiva se deu por Frantz Fanon. Para o filósofo e psiquiatra, o
mundo colonial se constituiu entre branco e negro, onde o negro não é um homem,
senão um “homem negro cujo único destino possível é um destino branco”. A maneira
que tem o negro de alterar seu fenótipo é mediante a “aquisição da linguagem da
metrópole, amenizando seu sentimento de inferioridade”. Com isso, o colonialismo se
institui como lugar de enunciação impelindo ao “povo dominado a repetir
constantemente a pergunta ‘Quem eu sou na realidade?’” (FANON, 1983, p.85-86).
Na realidade, Ernesto sabia quem era quando justificou sua teoria a respeito do
racismo:
Claro que esta consciência depende da “unicidade identitária” dos sujeitos, como
argumenta Goffman. Este posicionamento surpreendente de Ernesto contribui para
que haja uma perspectiva “afropositiva” em relação ao racismo, fundamentada, por
sua vez, em uma inversão de lógica discursiva. De certo modo, essa mudança de
perspectiva contribui para desenvolver outros parâmetros de ordem discursiva
inspirada nos diferentes âmbitos de produção da presença negra em sua Diáspora:
cultural, linguística, religiosa, política etc. Com esta lógica, a construção da presença
afrodescendente é exercida através de um pensamento dissidente à supremacia racial
branca na tentativa de desconstruí-la ao máximo. Então, sem deixar que eu
questionasse qualquer versículo do seu pronunciamento, Ernesto ainda chancela:
151
Tal construção da presença demonstra ser estratégica para lidar com o modus
vivendi argentino cuja mentalidade ainda está atrelada à marca da subordinação
histórica, da identidade racial “negativizada” constituída pelo colonialismo. Na
Argentina, esta configuração societária é tão absoluta a ponto de sua narrativa
dominante não glorificar sequer a mestiçagem, mas a branquitude. Como observam
Frigerio e Lamborguini, somado à narrativa dominante da nação existe um sistema de
classificação racial que operou, pelo menos em grande parte do século XX, na direção
da desaparição contínua dos negros na sociedade argentina e no predomínio cada vez
maior da brancura portenha (FRIGERIO; LAMBORGHINI, 2003, p. 158).
Com esta lógica de classificação racial, os afro-argentinos sempre serão cada vez
menos no território e história nacional, principalmente porque tal condição é
“negativizada”. Os autores ainda reconhecem que esta construção discursiva não se
encontra exclusivamente na narrativa dominante da história argentina, mas também
nas interações sociais da vida cotidiana (FRIGERIO; LAMBORGHINI, Op. Cit).
Deveras, foi justamente na minha interação cotidiana com uma mulher que
confirmou tal paradigma. Depois de saber que eu era brasileiro, a senhorita “não
negra” aparentando ter aproximadamente 35 anos questionou em que eu trabalhava.
Ao explicar meu trabalho e propósito no país minha interlocutora contestou com certa
gozação: “mas aqui na Argentina não há negros”.
152
Para José Ferreira, trata-se de um lugar em que antes africanos escravizados e
hoje afrodescendentes, com seus movimentos e formas de organizações sociais,
possam buscar novos imaginários, construir corporeidades e formas de socialização,
desenvolvendo em muitos casos pensamentos dissidentes e epistemologias
alternativas às dominantes (FERREIRA, 2008, pg. 4). E nesse contexto, o autor defende
uma abordagem das “artes performáticas”, especialmente os estudos da música que
consideram o campo das subjetividades “racializadas”.
153
18. Dos quilombos e Lindo Quilombo: emancipação permanente
154
mestre a fim de compartilhar o que sabia para outras dançarinas. Lembrei-me de
Angela Ramirez que fazia o mesmo na condição de bailarina e professora. Certa vez
questionei em qual comparsa ela dançava. “Nenhuma”, respondeu. Interessava a ela
transmitir o que já sabia, como fazia Leticia. Em um canto discreto da rua Tacuarí, a
vedete da comparsa La Tribu dançava na ponta dos pés. Atrás dela cerca de cinco
outras dançarinas reproduzindo o passo. Naquele momento não quis atrapalhar sua
tarefa e me limitei a cumprimenta-la com um breve sorriso.
155
Pela sua capacidade de agregar muitos grupos de diferentes regiões, aquela
Chamada apresentou grande diversidade estética que variou pelos ritmos,
instrumentos e fantasias. Havia grupos com mulheres, homens e travestis bailarinas,
todos com grande diferença de idade, jovens de 12 anos e idosas com
aproximadamente 70 anos. Quanto às vedetes, todas eram carismáticas,
comunicativas e convidativas, de modo a contagiar o público. A quantidade de
tambores também era diversa entre dez a vinte, dependendo da comparsa.
Voltei para o ponto inicial da Chamada onde havia uma faixa no cruzamento da
rua México com Tacuarí. Nela podia-se ler “VI Chamada Lindo Quilombo – Candombe
Independente”. Chamou-me atenção o nome, fato que me impeliu em saber quem e
como foi organizado. Interceptei um dos rapazes que integrava a equipe de logística.
Enquanto eu tentava conversar, ele me respondia com parcial atenção, pois estava
ocupado em avisar às comparsas o tempo certo do seu desfile. Embora não fosse um
dos coordenadores, ele me deu um encarte onde constava o site e o e-mail da
organização.
156
No dia seguinte, tratei de pesquisar sobre a organização e, claro, buscar um dos
coordenadores para entrevistar pessoalmente. Descobri que a VI Chamada contou
com 39 comparsas entre uruguaias e argentinas. No site oficial16 consta a informação
de que “Lindo Quilombo - Candombe Independente” é uma organização cujos
participantes conformam uma “coletividade de produção cultural e que tem por
finalidade organizar sua Chamada de Candombe anualmente, de forma autogestora e
independente. Nascida em 2009, a organização propõe ser uma plataforma de
construção coletiva e horizontal que busca gerar espaços de participação, intercâmbio
e difusão do Candombe afro-uruguaio”. Portanto, trata-se de uma Chamada capaz de
congregar inúmeras comparsas uruguaias e argentinas para o compartilhamento de
experiências e conhecimento, como faziam Leticia e Aquiles Pintos.
16
Site Oficial Lindo Quilombo: http://lindo-quilombo.blogspot.com.br/
157
Dois dias depois da Chamada, consegui ligeira entrevista com um dos
coordenadores17 do Lindo Quilombo, e uma das primeiras perguntas foi sobre o
significado do termo “quilombo” para organização:
17
A entrevista foi realizada dois dias depois do evento e respeitando a vontade do entrevistado, não
obtive autorização para revelar seu nome por este intermédio.
18
FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª edição. Rio de Janeiro. Nova Fronteira.
1986. p. 1 435.
19
Boletim Informativo Nuer, n.1. Associação Brasileira de Antropologia (ABA) – Rio de Janeiro, 1994.
158
Na tradição popular brasileira há muitas variações no significado da palavra
quilombo, ora associado a um lugar (“quilombo era um estabelecimento singular”), ora
a um povo que vive neste lugar (“as várias etnias que o compõem”), ou a
manifestações populares, (“festas de rua”), ou ao local de uma prática condenada pela
sociedade (“lugar público onde se instala uma casa de prostitutas”), ou a um conflito
(uma “grande confusão”), ou a uma relação social (“uma união”), ou ainda a um
sistema econômico (“localização fronteiriça, com relevo e condições climáticas comuns
na maioria dos casos”) (LOPES, 1987, p 15).
159
Para o jornal “El Afroargentino” 20 , “quilombo” se refere às “populações de
africanos e/ou afrodescendentes que havendo conquistado a fuga do lugar onde
haviam sido escravizados, fundaram, organizaram e governaram suas próprias
sociedades livres”. No Guia para docentes 21 fomentado pela Agrupação Xangô,
encontramos outra definição de “quilombo”:
Em sua obra “Diásporas Africanas na América do Sul” Julio Tavares reitera que a
formação de “quilombos” é, tipicamente, uma realização de “contra poder e
resistência dos africanos e seus descendentes como alternativa à vida nas grandes
fazendas de monocultura e nas senzalas”. Estes sistemas de organização social
aturaram em rede, em “simultaneidade com as confrarias, irmandades e cabildos e
associações no auge da luta contra a escravidão” (TAVARES, 2008, p.60). Deveras é um
exemplo de microssistema de organização social que resistiu a um sistema colonial. E
por ser contrário a este sistema, persistiu como lugar estratégico na tentativa de
produzir um modus vivendi menos desigual.
20
EL AFROARGENTINO – La voz de nuestra comunidad. Ano I. Número I. Novembro, 2014. Periódico
Afroargentino publicado por Diaspora Africana da Argentina (DIAFAR).
21
Guia para Docentes sobre Afrodescendentes e Cultura Afro. Org. Agrupação Xangô; Confederação dos
Trabalhadores de Educação da República Argentina (CTERA). Argentina, 2014.
160
reapropriação do mito do bom senhor, tal como se detecta hoje em algumas situações
de aforamento.
Para Ilka Boaventura Leite, o quilombo inaugura uma espécie de nova pauta na
política que visa a resolução dos conflitos e a manutenção dos vínculos de
solidariedade e valores compartilhados entre várias gerações de afrodescendentes.
Isto significa também repensar o próprio grupo e a sua dinâmica – seus conflitos
internos – como uma parte viva e pulsante da experiência de ser e estar no mundo.
Para autora, o quilombo viabiliza, primeiramente, através da responsabilidade do
grupo, em definir pleitos com legitimidade e poder de aglutinação, de exercer pressão
e produzir visibilidade na arena política onde os outros grupos já se encontram. Em
segundo, através do questionamento, mesmo que indireto, da função paternalista do
Estado. E, em terceiro lugar, propondo a revisão das prioridades sociais, através da
implementação de políticas sociais mais importantes e representativos dos interesses
destas comunidades (LEITE, 2000, p.344-345).
161
Abdias do Nascimento é um dos principais militantes que utilizou da construção
discursiva com base no conjunto de enunciados que o quilombo emana,
principalmente, o de território negro de resistência. Com base no seu conceito de
“quilombismo”, o autor advoga pelo movimento de afirmação etnopolítica dos negros
brasileiros, objetivando a implantação de um “Estado Nacional Quilombista” inspirado
no modelo dos antigos quilombos (NASCIMENTO, 1980). Essa proposta versa por uma
ação prática na qual o Estado deve investir, por exemplo, no “igual tratamento de
respeito e garantias de culto” para todas as religiões; ensino da história da África, das
culturas, civilizações e artes africanas. No que tange ao contexto de fomento a
políticas afirmativas ao afrodescendente, o manifesto quilombismo é pioneiro por um
Estado mais democrático e pluricultural, pois “busca no presente e no futuro e atua
por um mundo melhor para os africanos nas Américas”.
162
reconhecido por toda Diáspora Africana, se chamava Zumbi, líder de um dos maiores e
mais prósperos quilombos, o Quilombo dos Palmares.
163
Ademais, o termo quilombo e o nome Zumbi são transportados do passado ao
presente como unidade de informação que se multiplica através das gerações e dos
livros de história. Uma das provas disso foi encontrada por Julio Tavares em uma de
suas visitas ao palenque San Basilio na Colômbia:
164
Ora, se o Estado não oferece condições básicas para uma Chamada de Candombe,
logo questionei como então a organização aufere recursos para lograr que todas as
comparsas participantes tenham transporte, segurança e alimentação:
165
19. Dia Nacional do afro-argentino e da cultura afro
Com o dia de nascimento indeterminado, Maria Remedios del Valle foi filha e neta
de yorubas com europeus, cresceu no antigo bairro “Mondongo”, atualmente
Monserrat ou, como vimos, “bairro tambor”. Depois da morte da sua mãe, fugiu da
casa onde nasceu e logo se deu conta de que seu pai era quem a escravizara. Formou
parte da primeira geração de afro-argentinos a se alistar no exército pela
independência contra as tropas espanholas. Foi na batalha de Tucuman que Maria
Remedios se apresentou perante o General Manuel Belgrano solicitando autorização
para atender os feridos do campo de batalha. Cumpriu com maestria sua função
ganhando com isso a alcunha de “mãe da pátria”. O reconhecimento institucional veio
em seguida, quando Maria Remedios foi condecorada com o título de Capitã.
166
Por tal motivo, as lideranças e rede de organizações afro-argentinas instituíram a
data de seu nascimento como referência à memória de toda população que contribuiu
para o desenho das fronteiras de seu país, defende-las dos seus inimigos e, acima de
tudo, aprendeu a incorporar sua nação, mesmo que para isso tenha se esquecido
processualmente do “outro lado da história”. Fato rememorado no dia seguinte.
167
Finda cerimônia preliminar, retornei ao meu albergue, caminhando à noite por
entre as grandes avenidas de Buenos Aires. Refletia sobre toda esta construção
discursiva para reconhecer uma população que no passado foi massacrada por séculos.
Tentava imaginar como foi os últimos dias de Maria Remedios del Valle, a mulher que
deu a vida por uma ideologia, uma fé, e que mesmo assim desencarnou espoliada de
sua própria dignidade. Talvez seja mais um “multiculturalismo light”. Na realidade,
interessava-me muito mais saber onde reside e qual o sentido do verdadeiro
reconhecimento para a presença negra em sua diáspora. Mas para isso, tive que
esperar o dia seguinte.
168
Cheguei ao local da festividade por volta do meio-dia e rapidamente encontrei
uma roda de capoeira do grupo Cordão de Ouro. Na entrada havia uma barraca de
Cabo-verde com informações turísticas e das suas atividades políticas. Apresentei-me
como brasileiro e antropólogo. Infelizmente, havia dificuldade de manter a conversa,
pois havia muitas pessoas intervindo, uma delas estudante de medicina da
Universidade de Buenos Aires (UBA), natural de Mali. A jovem apresentou certa
inquietude, tal como eu, questionando onde estariam os negros na cidade, pois já fazia
alguns meses ali e encontrava dificuldade para participar de alguma oficina ou
seminário. Com toda razão, tendo em vista o fato de que o trabalho dos afro-
argentinos é relativamente recente em torno de seis a dez anos (a Diáspora Africana
da Argentina, por exemplo, existe a tão somente quatro anos e só agora realizarão seu
primeiro seminário intensivo). Além disso, a rede de organizações conta com poucos
funcionários e muito pouca finança.
169
Acompanhamos e alentamos o desenvolvimento de políticas
públicas que tenham como objetivo principal o acesso a direitos
por parte de grupos tradicionalmente vulneráveis, como uma
forma de reparação histórica com aqueles que, durante muitos
anos, possuem transgredida sua cidadania.
O INADI tem por objeto impulsionar ações que promovam a
visibilidade, o reconhecimento e a autoafirmação das distintas
culturas, apontando a desarticular a mirada etnocêntrica,
contra qualquer manifestação racista.
O Estado reconhece o seu papel de reitor e reafirmar seu
compromisso de combater estas práticas em todos seus níveis
e manifestações com o objetivo de garantir a igualdade e o
respeito dos direitos humanos.
170
Miriam Gomes se refere ao projeto piloto realizado em 2005 com financiamento
do Banco Mundial e apoio do INADI. A proposta de projeto, contudo, não ganhou
força, pois era necessária a aprovação da maioria na Câmara do Senado. Devido a certa
omissão política nacionalista e sem a devida representatividade do INADI, algumas
famílias afro-argentinas, incluindo a Lamadrid, decidiu criar em 2007 a Associação
Misibamba.
Cesar Lamadrid complementa a fala do seu pai alegando que Misibamba está
distribuída pelas províncias de Merlo, La Matanza, Cordoba e que, apesar de ser
mantida pelos sócios, recebem pouco incentivo de outras instâncias incluindo o
próprio Estado. Decorre daí a dificuldade de manter a própria Associação.
171
Devido à incipiência de ação efetiva de políticas afirmativas, o governo é alvo de
críticas, em específico, direcionadas para organismos como INADI, promovidas por
lideranças afro-argentinas e pesquisadores que trabalham com o tema. Segundo
Frigerio e Lamborghini, “organismos oficiais como o INADI focalizam em uma política
excessivamente culturalista, de visibilização, e deixam de lado a luta efetiva contra o
racismo”. Neste sentido, parece que nos dispomos de uma política pautada no
“multiculturalismo light” através da qual a visibilização efetiva da presença negra e dos
seus problemas sociais são postas de lado em prol da sua reivindicação cultural. Sobre
isso, os autores ainda apontam que a luta contra o racismo “necessite de agências
estatais dispostas e conhecedoras da real situação para a implementação de políticas
eficazes” (FRIGERIO; LAMBORGHINI, 2011, p.117).
172
Nesse sentido, a celebração deixa de ser simplesmente uma espécie de
oportunidade de vivenciar a cultura da diversidade étnica ou do multiculturalismo
constituído no território nacional. Embora o Estado estivesse presente a partir das suas
instituições, como a INADI e o Ministério da Justiça e Direitos Humanos, havia para
além da iniciativa governamental. Barracas de Cabo-verde, Mali, Brasil, Argentina, e
todas as outras organizações não governamentais se propuseram a intercambiar
conhecimento, suas respectivas identidades históricas e culturais, com a finalidade de
melhor compreender suas diferenças e, deste modo, aceitá-las a partir do mesmo
território nacional.
Chamo atenção para o fato de o desfile do Candombe uruguaio ter sido realizado
para homenagear a população afro-argentina. Nesse sentido, percebemos que apesar
das diferenças históricas e supostas divergências diplomáticas constituídas pelo
diálogo internacional, a proposta do evento é da confluência mútua de relações
horizontais sem a intermediação verticalizada do Estado. Em reconhecimento a este
fenômeno Catherine Walsh propõe o conceito de “pluriculturalidade” que, ao
contrário do multiculturalismo, sugere uma pluralidade histórica e atual, na qual várias
173
culturas convivem em “um mesmo espaço territorial e, juntas, supostamente,
constroem a totalidade nacional” (WALSH, 2009, p. 44). Para a autora, a
pluriculturalidade responde à necessidade de um conceito que represente a
particularidade da região, onde povos indígenas e negros têm convivido por séculos
(ainda que conflituosamente) com branco-mestiços, e onde a mestiçagem tem sido
parte da realidade, conjuntamente com a resistência e insurgência sociocultural e,
recentemente, a revitalização das diferenças.
174
os discursos criados em torno da afirmação étnico-racial capazes de produzir uma
trama de categorias sobrepostas e utilizadas de acordo com sua fronteira.
175
176
20. Considerações finais
177
A partir do seu poder de linguagem não verbal dos corpos em movimento, o
Candombe cria possibilidades de empoderamento humano que faz repensar a
existência e função do Estado, bem como seu valor simbólico constituído pelo seu
secular projeto de nacionalidade, derivado do discurso secular da colonialidade. Nesse
sentido, é impreterível ir além da análise do Candombe como objeto de manifestação
da performance afrodiaspórica. Considerando inicialmente seu poder comunicativo
fundamentado em seu conjunto de enunciados.
Ele entra na roda repicando o corpo com suas pernas arcadas, sorri e acena para
cima descansando a mão na testa. Sentindo a presença dos ancestrais, ele agradece,
regendo e sendo regido pelo som do tambor...
Dez anos se passaram como o frio vento das ruas de Montevidéu quando comecei
a travessia no Rio de Janeiro ainda numa roda de pajelança. Anos depois atravessava o
continente sul-americano chegando em Arica, no Chile. Por lá conheci outra roda,
orquestrada por tambores afro-chilenos ocupando as ruas, revivendo o passado no
presente, valorizando a ancestralidade negra e incorporando a identidade
afrodescendente. Naquele espaço aberto e dinâmico da roda mergulhei em um novo
mundo cuja cosmologia é regida pela comunicação extra-sensorial dos corpos. Um
mundo onde a memória é invocada pela consciência ancestral, onde a aceitação
mútua das diferenças é regra natural das relações. Um mundo gerado pelo espaço-
tempo da roda, de invenções e transformações sociais pela sabedoria e amor. O
mundo da Diáspora Africana.
178
CAMPO TEMÁTICO DE PESQUISA
Cognição
Corporeidade
Etnopolíticas
Diáspora Africana
179
MAPA CONCEITUAL
DA DIÁSPORA AFRICANA
Colonialismo
Macrossistema
Afrodescendente
Colonialidade
Multiculturalismo
Diáspora
Africana
Desigualdade Interculturalidade
Hierarquia
Holarquia Diferenças
Racismo
Resiliência Igualdade
Estética Ética
180
MAPA CONCEITUAL
DAS ETNOPOLÍTICAS
Cultura
Política
Colonialidade
Identidades
Etnopolíticas
Racismo
Afrodescendente
Microssistema Afirmação
Afro-localidades
Holarquia
Consenso
Cooperação
Presença
Autonomia
Ética
181
MAPA CONCEITUAL
DA CORPOREIDADE
Ancestralidade
Memória
Candombe
Corpo Negritude
Corporeidade
Performance
Corporeificação
Resiliência
Tambor
Presença Cosmocentricidade
Pedagogia Microssistema
Cívica
Estética
182
MAPA CONCEITUAL
DA COGNIÇÃO
Racismo
Abolição
Cognição
Holarquia
Emancipação
Autopoiesis
Presença
Amor
Quilombo
Permacultura
Quilombola
Ética-Estética
Travessia
183
Panorama das Organizações, Associações Jurídicas e Culturais Afrodescendentes :
URUGUAI
ARGENTINA
Associação Misibamba
Agrupação Xangô
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