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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA – PPGA

Nestor Gomes Mora Cortés

Do Candombe uruguaio: uma travessia para aceitação


Etnopolítica, corporeidades, Emancipação

Tese de doutoramento apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para
aspirante ao Grau de Doutor.

Niterói
01/2016
Candombe uruguaio: uma travessia para aceitação
Etnopolítica, corporeidades, Emancipação

Nestor Gomes Mora Cortés

Niterói
01/2016
Banca Examinadora

________________________________________
Prof. Dr. Julio Cesar de Souza Tavares (orientador)
Universidade Federal Fluminense

________________________________________
Profª Drª Tania Muller
Universidade Federal Fluminense

________________________________________
Prof. Dr. Nilton Santos
Universidade Federal Fluminense

________________________________________
Profª Drª Liv Sovik
Universidade Federal do Rio de Janeiro

________________________________________
Prof. Dr. Renato Nogueira
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Resumo

O trabalho desenvolvido trata de reconhecer a presença afrodescendente no Uruguai e


Argentina através do Candombe. A perspectiva analítica compreende os discursos
promovidos pelos praticantes do ritmo em Buenos Aires e Montevidéu fundamentados
pelo corpo em movimento, sua performance e, sobretudo, sua afirmação política.
Nesse contexto, o Candombe é visto como um microssistema social autônomo capaz
de fomentar uma cultura permanente de aceitação, do combate ao racismo e todas as
outras formas de discriminação, independentemente das políticas afirmativas
engendradas pelo Estado. Com esta lógica de organização sistêmica, os praticantes de
Candombe configuram novas possibilidades de leitura e percepção da presença
humana através da sua corporeidade, comunicação, etnopolítica e cognição.

Palavas-chave: Candombe, Uruguai, afrodescendente, etnopolítica, comunicação,


cognição

Abstract

The work comes to recognize the Afro-descendant presence in Uruguay and Argentina
through the Candombe. The analytical perspective includes the speeches promoted by
the practitioners of rhythm in Buenos Aires and Montevideo based on the body in
motion, its performance and, above all, its political affirmation. In this context,
Candombe is seen as an autonomous social microsystem able to foster a permanent
culture of acceptance, the fight against racism and all other forms of discrimination,
regardless of affirmative policies engendered by the state. With this systemic
organizational logic, the practitioners of Candombe make up new possibilities for
reading and perception of human presence through its corporeality, communication,
ethno politic and cognition.

Keywords: Candombe, Uruguay, Afrodescendant, ethno politic, communication,


cognition
Dedicado à Virgínia Maria Pinheiro Gomes,
mãe querida.
“Candombe é uma forma de vida comunitária”
Chabela Ramirez
Sumário

Apresentação do autor...................9

Gratidão...........................................11

 Introdução: Considerações do trabalho etnográfico e metodológico.......13


a) Do campo etnográfico......................................................15
b) Dos procedimentos metodológicos......................................23
c) Da apresentação do trabalho ..................................................27

 Da Origem do Candombe

1. Prelúdio ao Candombe................................................................................35

2. Da etimologia e significados........................................................................37

3. Do Candombe no Brasil...............................................................................41

4. Do Candombe na Argentina........................................................................47

5. Do Candombe no Uruguai: do Conventillo para as ruas..............................59


5.1 Da Casa de Cultura Afro-uruguaia..................................60
5.2 Do Grupo Asesor.................................................................65
5.3 Breve história do Candombe uruguaio..................................68
5.4 Da origem dos conventillos: por uma ética do Candombe........72
5.5 Do espaço-rua: por uma estética do Candombe...........................91

 Morfologia e Cosmologia: Elementos materiais e imateriais do Candombe


uruguaio

6. Das primeiras impressões de um desfile......................................................97


7. Do Escobero..................................................................................................99
8. Dos emblemas: estandarte, bandeiras e porta troféus...............................100
9. Das dançarinas ............................................................................................102
10. Do Gramillero............................................................................................102
11. Do Sagrado Feminino: Mama Vieja e vedete.............................................103
12. Dos tambores: incorporação da comunicação ética-estética....................113
12.1 Ritmo Cuareim............................................................117
12.2 Ritmo Cordón.................................................................118
12.3 Ritmo Ansina....................................................................119

13. Do corpo-tambor.......................................................................................122
14. Da Chamada e Chamadas-Mãe..................................................................128
15. Do Candombe no carnaval.........................................................................132
16. Do microssistema ético-estético: panorama geral.....................................139

 Travessia: o Candombe uruguaio em Buenos Aires

17. Dos primeiros pulsos: conflitos e permanência..........................................146


18. Dos Quilombos e Lindo Quilombo: emancipação permanente..................154
19. Dia Nacional do afro-argentino e da cultura Afro........................................166
20. Considerações Finais....................................................................................177

Mapas do campo temático de pesquisa............................................................179

Índice das Organizações,


Associações Jurídicas e Culturais Afrodescendentes........................................184

Bibliografia.........................................................................................................185
Apresentação do autor

Nestor Gomes Mora Cortés tem formação acadêmica em História e Antropologia.


Desde a graduação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
iniciou seu campo de pesquisa em Memória e Patrimônio Imaterial. Bolsista de
Iniciação Científica (CNPq) teve a primeira chance de adquirir experiência na condição
de etnógrafo trabalhando com a população indígena Guarani Mbya, residente na
aldeia Paraty-Mirim, município de Paraty - Rio de Janeiro. Lá conviveu em campo,
comendo, bebendo e, sobretudo, aprendendo a crescer como ser em corpo e alma.
Com o canto entoado pelas crianças, o autor experimentava todas as noites em torno
de uma fogueira a relação do homem com o sagrado através do culto ao deus além-
mar, Nhanderu ete.

Terminando a graduação e já decidido cursar a carreira de antropólogo, Nestor


Mora ingressava ao Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade
Federal Fluminense (PPGA-UFF). Mais uma vez bolsista CNPq e com a orientação do
Prof. Dr. Julio Cesar Tavares, o autor começava o mestrado em novo campo de
pesquisa, fato que o permitiu atravessar o continente sul-americano chegando até
Arica, norte do Chile. Naquela pequena cidade em meio ao deserto aprendeu com os
afro-chilenos a presença cultural e intelectual negra. O autor descobria então um novo
mundo, o da Diáspora Africana. E como resultado da convivência, adquiriu sua dupla-
consciência trazida pela memória da própria ancestralidade matrilinear. Voltou mais
experiente, mais consciente e crítico.

Interessado em compreender a dinâmica e produção discursiva das etnopolíticas e


cultura afrodescendente, Nestor Mora decidia então continuar os estudos pelo
doutorado. O autor apresentava um projeto mais ambicioso para uma banca composta
por especialistas em Comunicação, Filosofia, Sociologia e Antropologia. Seu desejo era
de continuar a travessia abarcando geograficamente o Cone Sul e especificamente a
ponte natural do Rio da Prata, entre Montevidéu e Buenos Aires. E para lá partiu em
busca do Candombe, onde os aprendizados e descobertas continuaram a fazer dele um
ser em contínua evolução.

9
Nestor Mora é também Assistente de Pesquisa do Laboratório de Etnografia e
Estudos de Comunicação, Cultura e Cognição (LEECCC), coordenado pelo Prof. Dr. Julio
Cesar Tavares, através do qual tem contribuído para a produção científica no campo da
performance, racismo e etnopolíticas. Com a mesma equipe, atuou como tutor na
Pós-graduação semipresencial em Antropologia e Desenvolvimento Cognitivo. Pouco
tempo depois, integrava com a equipe LEECCC o Projeto TEDx-UFF, evento que reuniu
especialistas em Educação, Etnopolíticas e Cognição. Em seguida, teve a oportunidade
de atuar na Coordenação de Projetos de Educação pela Fundação Roberto Marinho.

Além das experiências de âmbito científico e técnico, Nestor Mora também


ministrou aulas em diferentes níveis de ensino. Na graduação como estágio docente
em disciplinas de Antropologia, Diáspora Africana e relações étnico-raciais. No Ensino
Médio coordenou, em conjunto com uma equipe de professores voluntários um curso
de pré-vestibular comunitário. Finalmente, trabalhou como professor de História no
ensino fundamental do município do Rio de Janeiro. Este pequeno caminho
profissional contribuiu intensamente para tomada de consciência a respeito dos
problemas institucionais da sociedade, incapazes de serem resolvidos somente com
políticas públicas engendradas exclusivamente pelo Estado.

Graduação, mestrado, doutorado. Dez anos ininterruptos de dedicação,


aprendizado e produção. Entre alguma estabilidade financeira, equilíbrios,
desequilíbrios intelectuais e emocionais, Nestor Mora continua o trabalho como todos
devem continuar, sempre acreditando na evolução humana. Espelhado na mãe
pedagoga, seu sonho é fomentar uma instituição educacional libertária contribuindo
para o desenvolvimento moral, ético, cognitivo das próximas gerações que chegam
neste mundo, já conscientes a respeito da aceitação das diferenças e da sua
convivência pelo amor.

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Gratidão

Ao universo. A Pachamama. Aos defensores e amadores das causas simples da


vida e do acontecer. Todas essas potências emanadas em mim e dentro de mim que
me protegeram, me orientaram e produziram energia, de modo que eu pudesse
renascer a cada dia. Gratidão para as plantas molhadas ao amanhecer. Ao lindo pôr-
do-sol e seu último crepúsculo. Aos vagalumes dançantes e aos grilos cantantes da
noite. Gratidão a cada pão, ao sorriso, e às lágrimas. Ao momento de plena solitude
necessária para a redescoberta da minha existência, a conversa com minhas reflexões,
meu centramento e, por fim, ao total esvaziamento. Ao tempo no espaço e ao espaço
no tempo, os dois juntos em movimento. Às alteridades, às fraquezas e virtuosidades
do mundo ocidental.

Gratidão para a curiosidade dos parceiros que conheci na estrada das veias latinas,
aos antigos e novos amigos. Especialmente para Iris Rissou, Daniel Montes, João
Fiovarante, Marcelo Liotti, Dinellis Gonzalez, Diego Garcia, Cuca Ramos, amizades que
encheram meu peito de alegria nos momentos em que precisei. Aos irmãos Quique
Carrizo e Marcela Hernan, que me acolheram como um filho em La Plata durante os
percalços do campo etnográfico. Um grande beijo de gratidão às senhoras Marta
Salgado, Marta Corvacho, Dino Toledo e Cristian Baez, minha família afrochilena. Aos
atores, gestores do mágico universo afrodiaspórico.

No Uruguai, gratidão pela força, beleza e sabedoria das mulheres Isabel “Chabela”
Ramírez e Angela Oliveira. Aos grandes músicos Ferna Nuñez, Matias Silva e Diego
Paredes. Gratidão aos mestres da sabedoria ancestral com quem tive o privilégio de
aprender a tocar os três tambores, Aquiles Pintos, Alfonso Pintos, Polo Pintos, Anibal
Pintos, Juan Manuel Gularte e Willy Mariano Barroso. Ao colega antropólogo Ignacio
Esposito que ofereceu importantes dados e fontes sobre o Candombe. Ao diretor da
Casa de Cultura Afro-uruguaia Edgardo Ortuño. Aos integrantes do grupo Valores de
Ansina e toda equipe do Grupo Asesor del Candombe. Aos integrantes do grupo La
Tribu, e das organizações La Melaza Candombe e Acsun Uruguay Negro. Gratidão pelos
convites às festas, reuniões e seminários, momentos fundamentais para o
desenvolvimento da pesquisa.

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Na Argentina, gratidão aos integrantes da Associação Misibamba, Carlos Lamadrid,
Cesar Lamadrid e Lucia Molina. Gratidão para os professores Augusto Guarnieri e
Norberto Pablo Cirio, por suas classes sobre a presença afroargentina ministrada em La
Plata. À Sociedade Caboverdeana em Buenos Aires e aos integrantes da Diafar,
especialmente a Federico Pita. Pelo grande encontro com Ernesto Costa, na
madrugada fria de Buenos Aires, com quem compreendi o fundamento para a
construção da presença afrodescendente no Cone Sul.

No Brasil, gratidão aos grandes amigos e parceiros de trabalho do Laboratório de


Etnografia e Estudos de Comunicação, Cultura e Cognição (LEECCC), em especial, Vitor
Pimenta, Mariana Emiliano, Laís Salgueiro, Jorge Luís e Kássio Mota. Aos mestres
doutores e colaboradores na produção acadêmica, Renato Nogueira, Angela Maria
Paiva, Liv Sovik, Nilton Santos, Tania Muller, Edilson Almeida, Vera Nojima e Daniel
Bitter, pela atenção, compreensão e orientações. Gratidão especial ao querido mestre,
amigo, Julio Cesar Tavares, com quem tive a honra e o privilégio de contracenar nos
inúmeros projetos acadêmicos e extra acadêmicos ao longo desses sete anos de
parceria, através do qual cresci e amadureci profissionalmente e espiritualmente.
Gratidão por suas orientações e carinho, sempre.

Aos amigos da minha vida, irmãos e irmãs por quem tenho grande apreço e amor,
Vitor Simão, Eduardo Cassilhas, Marylia Cinistierra, Rachel Caé, Izumi Maeda, Bárbara
Loureiro e Isabela Pimentel. Gratidão ao amigo Lincoln Patrocínio, que editou as
imagens, e a todos os amigos que contribuíram de alguma forma para meu
desenvolvimento espiritual.

Quero agradecer a minha família chilena, especialmente aos meus tios Ivonne
Mora e Victor Cortés, sempre solícitos e carinhosos com a minha chegada. Aos primos
e primas. Aos amigos e parceiros de trabalho no hotel. Gratidão à família peruana, tia
Himilce Mora e às primas Carolina, Urpi e Andrea Estrada. Sempre em meu coração. Às
minhas queridas irmãs Penélope e Tamara Mora, por contribuir para minha formação
emotiva. Finalmente, aos meus pais, Virgínia Gomes e Nestor Mora, meus primeiros
orientadores da vida, com quem adquiri minha formação social, intelectual e emotiva.
Eternamente grato ao amor que recebi e recebo.

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Introdução: Considerações do trabalho etnográfico e metodológico

“O conhecimento é uma apreciação de


um observador sobre a conduta do outro, que
pode ser ele mesmo. No momento em que se vê
isto desta forma, por um lado, descobre-se que
o conhecimento é sempre adquirido na
convivência” - Humberto Maturana1.

Ao longo da minha curta experiência como antropólogo, entendi que aprender


com o próximo é aprender sobre si mesmo. Sobre sua própria natureza. Todos e tudo
são potências em constante ensinamento. Não há, portanto, estado inerte de qualquer
materialidade e, principalmente, de qualquer imaterialidade. E como já ressaltou
Victor Turner, o estudante de Antropologia deve impreterivelmente vivenciar a
performance de um campo etnográfico, de modo a compreender a verdadeira “ação
dramática de um grupo”, com todos seus conflitos internos e externos. Este exercício é
realizado tão somente pela convivência com o próximo, o “viver com” no sentido lato
sensu das experiências da vida cotidiana. Para esta finalidade é fundamental a
“imersão do corpo” em seu estado perene e consciente como provedor, mediador e
consumidor das práticas de linguagem não verbais em que a cultura é constituída
(TURNER, 2003, p.11). Reconhecendo tais e inúmeras possibilidades de aprendizado,
vejo que a Antropologia é uma arte infinita, pois trata de olhar para um ser igualmente
infinito. Deveras, é uma ciência extra-acadêmica, embora, de algum modo, ela tenha
se esquecido de “sair do gabinete”.

Todavia, como inúmeros exploradores e questionadores da presença humana, o


escritor que vos enuncia tem saído continuamente do gabinete com a finalidade de
reunir e transmitir informações sobre um tipo de presença humana que sobreviveu a
uma travessia, a um holocausto secular. Nesse sentido, trata-se de compreender parte
do universo afrodiaspórico e, assim, compreender como todas as formas de violência

1
(pgs. 101-102) In.: Maturana, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Org. e trad. Cristina Magro
– Victor Paredes. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 2001.

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contra o negro podem ser combatidas, em uma tentativa de emancipação da mente e
dos corpos.

Por conta desta perspectiva analítica, escolhi o Candombe uruguaio como tema e
“objeto” de análise antropológica para o doutorado. À este, sigo compreendendo
como modelo microssistêmico de organização social, sobretudo ao testemunhar e
vivenciar seus elementos constituídos por sua morfologia e cosmologia afro-uruguaia.

De certo modo, o trabalho propõe uma discussão das relações sociais estruturadas
em mecanismos de poder horizontalizados. Principalmente, reconhecendo a produção
cultural do Candombe uruguaio como mecanismo político afirmativo, através do qual
os preceitos da aceitação entre os indivíduos estão alicerçados na inteligência emotiva
e na sua prática comunicativa não verbal. De um modo geral, esta maneira consciente
de se postar no mundo atua como ferramenta para a superação do racismo instituído
pelo modelo de organização social do Estado-nação. Aceitar essa presença humana é
compreender suas potencialidades e sua contribuição somática na própria organização
em que está determinantemente inserida.

Posto o desafio, tudo que farei a partir da análise proposta é uma mera tentativa
de descrever o impossível. O de apresentar o inexplicável, o de traduzir pensamentos e
sensações derivadas da linguagem emotiva e da cultura afro-uruguaia através da
linguagem escrita. Este, por sua vez, um sistema de comunicação codificado que
precisamos necessariamente usar para acusar, apesar de todos os esforços de
Wittgenstein sobre a impossibilidade do exercício. Nesse sentido, da mesma forma
que o “mapa não é o território”, impreterível afirmar que o texto não é o Candombe,
nem mesmo sua tentativa superficial de reproduzir o seu conceito intrínseco à sua
totalidade. Logo, meu esforço analítico será justamente pontuar o irracional, a lógica
que habita o campo das emoções ainda que minha própria emoção e razão tenham se
perturbado ao longo do projeto científico. Suplantando o fato, desejo que o leitor, na
tentativa de compreender os múltiplos significados de um sistema cíclico de
comunicação, passe também por um crivo experimental: o de imaginar o Candombe
na simbiose dos corpos, nas ruas, no mundo. E por intermédio desse esquema
linguisticamente surreal sugiro utilizar sua inteligência emotiva tal qual o Candombe
propõe em sua presença.

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a) Do campo etnográfico

Foram cinco meses intensos de campo etnográfico realizado a partir do segundo


semestre de 2014. Entre agosto a outubro trabalhei em Montevidéu onde testemunhei
a produção da presença afro-uruguaia através do Candombe, entre ensaios, aulas e
reuniões. Estive hospedado em um albergue de quartos coletivos cuja diária não
passava de 15 dólares. O lugar fica na rua Colonia a 20 minutos do centro da cidade e a
dez minutos da Casa de Cultura Afro-uruguaia, situada no bairro Palermo na esquina
das ruas Isla de Flores com Minas.

A Casa de Cultura Afro-uruguaia foi incluída no planejamento metodológico, pois a


considerei como principal lugar de referência da produção etnopolítica que busco
compreender, já que a partir dali, os diálogos, as alteridades e negociações ocorrem
com frequência, através de oficinas e seminários propostos por professores,
coordenadores e demais lideranças do coletivo afro-uruguaio. Além disso, a visita ao
lugar já havia sido sugerida por outros parceiros, pesquisadores e líderes da rede
afrodiaspórica que conheci ao longo dos anos de pesquisa e campo etnográfico.

Minha primeira visita ocorreu em uma tarde de terça-feira, dia 12 de agosto. Fui
recebido pelo meu primeiro contato, a jovem Angela Oliveira, bailarina profissional,
professora e secretária da Casa. Através dela fui constituindo minha rede de contatos
pelo qual desenvolvi meu campo em Montevidéu. Angela primeiramente me
apresentou o lugar, explicou como é realizada a sua gestão, os profissionais
envolvidos, os horários de funcionamento e, principalmente, os projetos culturais e
pedagógicos realizados pela Casa. Um dos projetos, diria o principal deles, estava para
começar naquela semana. Era a Oficina de Candombe realizada pelo “Grupo Asesor del
Candombe” integrado por antigos músicos que têm o compromisso de ensinar sobre o
ritmo.

Durante toda a minha estadia pude acompanhar todas as classes, duas vezes por
semana, todas as terças e quintas no turno da noite. Realizei o registro das oficinas
através de audiovisual, gravações e fotografias, além é claro, do registro escrito. A
Oficina teve duração de um mês e ao seu término, recomeçou novamente abrindo
outra turma. A proposta era convidar todos os interessados em conhecer intimamente

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o Candombe, músicos profissionais, amadores, participantes de grupos, ou qualquer
interessado em aprender, sem qualquer custo financeiro. Fundamentalmente, aquela
experiência foi o meu primeiro contato que me possibilitou testemunhar a
comunicação da presença afro-uruguaia através do tambor e o modo pelo qual é
construído o Candombe.

Na primeira aula inaugural, pude conhecer os mestres candombeiros responsáveis


por ministrar as primeiras aulas da Oficina, os irmãos Pintos, Aquiles e Alfonso, Juan
Manuel Gularte, além de Willy Mariano. Integrantes do Grupo Asesor, os mestres
candombeiros puderam transmitir todo o conhecimento adquirido sobre o Candombe,
apresentando os tipos tradicionais de toque, sua dinâmica, a apropriação pelo Estado,
pelas dezenas de grupos criados processualmente em Montevidéu e, mais tarde, em
Buenos Aires. Além disso, as aulas trataram de explicar como era o dia a dia da
população afro-uruguaia com o Candombe. Nesse contexto, compreendi como eram
constituídas as relações familiares através dos antigos cortiços, conhecidos por
conventillos e, não menos importante, a relação conflitiva com o Estado, tendo em
vista o fato de que o Candombe durante muito tempo foi proibido.

Além do conteúdo etno-histórico, havia a prática comunicativa ao final de cada


aula quando todos tinham a oportunidade de aprender a tocar os tambores.
Considerando o seu alto custo, a própria Casa oferecia os instrumentos incluindo
demais materiais e toda infraestrutura. O objetivo foi também o de facilitar o acesso à
produção cultural movida pelo Candombe, passado e presente, possibilitando a
participação de todos.
Ainda na primeira aula inaugural da Oficina, tive o grande prazer de conhecer a
cantora e coordenadora da Casa Chabela Ramírez. Seu ativismo pela negritude e
igualdade de gênero contribuiu para a formação das organizações “Acsun Uruguay
Negro” e “Mundo Afro”. Além disso, Chabela passa a fundar em 1995 o “Coral de
Mulheres AfroGama” permitindo maior presença cultural e política das mulheres afro-
uruguaias. Durante as aulas, seu discurso foi bastante elucidativo, abordando variados
temas acerca do Candombe. Por exemplo, a respeito da sua religiosidade derivada dos
seus múltiplos elementos, sobre o percurso etnopolítico movido pelas agrupações no
passado-presente e, sobretudo, a participação da população feminina no Candombe.

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Antes e depois de cada aula pude realizar entrevistas com todos envolvidos no
projeto, o que me rendeu aproximadamente trinta horas de gravação. Por isso, sempre
chegava uma hora antes do início das atividades com a intenção de conhecer a
dinâmica do exercício etnopolítico através de uma instituição criada para tal finalidade.
Foi somente na convivência com o trabalho na Casa Cultural que pude testemunhar o
envolvimento de profissionais envolvidos em múltiplos setores, burocrático, jurídico,
social, capazes de criar parcerias com outras organizações, empresas, fundações,
incluindo o diálogo com o Estado através do Ministério da Cultura e Educação.

Durante a Oficina de Candombe, também pude participar das aulas de percussão


promovidas pelo músico Ferna Nuñez uma vez por semana. Com essa experiência
conheci um pouco da história dos instrumentos utilizados antigamente, além da
técnica de fabricação e toque dos tambores. A turma era pequena, em torno de cinco
alunos, e sempre ocorria no estúdio da Casa utilizado prioritariamente para gravar
canções de Candombe. Inclusive dias antes estive na festa de inauguração do mesmo
estúdio. Uma grande oportunidade para conhecer os demais profissionais que atuam
direta e indiretamente na Casa, como sua equipe de docentes, demais lideranças e
funcionários do MEC. Principalmente, tive a oportunidade de conhecer o presidente da
Casa Cultural Afro-uruguaia, Edgardo Ortuño, bem como os representantes da Agência
Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID), principal
financiadora da Casa.

Para além da convivência institucional na Casa Cultural, meu campo etnográfico


esteve concentrado nos ensaios e desfiles de dois grupos: o famoso “Valores de
Ansina” e o jovem “La Tribu Candombe”. Como dito, meu objetivo foi o de
testemunhar sua dinâmica nos ensaios e desfiles de rua e, sobretudo, averiguar o
discurso constituído para tal fim.

Comecei acompanhando a produção e dinâmica estética do grupo “La Tribu


Candombe”. O grupo foi criado há três anos no bairro Pocitos em Montevidéu,
exclusivamente por jovens engajados. Participei da estreia do seu documentário
produzido pelo grupo e que conta a história da sua formação e as participações em
desfiles durante sua curta trajetória. Realizei o registro etnográfico de alguns dos seus
ensaios e desfiles, como a “Chamada Haedo”, também organizada pelo próprio grupo,

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ocorrida no dia 13 de setembro. No mês seguinte acompanhei a sua participação na
VI Chamada de Candombe, evento promovido pela Organização Lindo Quilombo, em
Buenos Aires.

Ao mesmo tempo, estive convivendo com o grupo “Valores de Ansina”, conhecido


por reproduzir com excelência o tradicional ritmo de Ansina que ao longo do tempo
influenciou no toque de muitos outros grupos. Nascido no bairro Palermo, o grupo tem
a coordenação do músico Diego Paredes, Chabela Ramírez e Lola Acosta. Pude
acompanhar o grupo nos frequentes ensaios culminando com o registro do seu desfile
na seleção de agrupações de Candombe para a Chamada de Carnaval 2015.

Além dos ensaios e desfiles, o campo etnográfico em Montevidéu foi enriquecido


pelo encontro da Rede de Mulheres Afrolatinas, Afrocaribenhas e da Diáspora
(RMAAD), coincidentemente, ocorrido naquele presente mês. O evento foi realizado
na sede da Associação Latinoamericana de Integração (ALADI) e contou com a parceria
da organização “Mizangas”, coletivo de mulheres jovens afrodescendentes de Uruguai,
com o apoio da Casa da Cultura Afro-uruguaia, da Agencia Espanhola de Cooperação
Internacional para o Desenvolvimento (AECID), bem como dos Ministérios da Educação
e Cultura (MEC), e do Desenvolvimento Social (MIDES) do Uruguai.

O encontro também foi um reencontro com as afro-chilenas Marta Salgado e


Marta Corvacho, com quem tive o privilégio de trabalhar durante o desenvolvimento
da minha dissertação sobre a população afro-chilena. Este reencontro foi de grande
valia, pois tivemos a chance de conversar pessoalmente sobre as últimas realizações
da rede de organizações afro-chilena em Arica. Marta também me apresentou à pauta
de discussões da presente reunião, situando os temas que já haviam sido discutidos.
Aquela reunião foi muito importante para me introduzir às demais lideranças da rede
de mulheres afro-latinas. Apresentado por Marta Salgado como o “antropólogo
brasileiro”, pude conhecer pessoalmente a afro-argentina Lucia Molina, integrante da
Associação Misibamba e presidente da Casa Indo-Afro-Americana de Santa Fé.
Tivemos uma breve conversa durante o intervalo entre uma mesa e outra, mas tempo
suficiente para explicar meu trabalho e preparar meu campo para Buenos Aires.

Durante minha estadia em Montevidéu reuni materiais informativos do Ministério


de Educação e Cultura (MEC), Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), da Agencia

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Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID) e da Rede de
Mulheres Afrolatinas, Afrocaribenhas e da Diáspora (RMAAD). Uma cópia do
documentário “Llamada Madre” produzido pelo Grupo Asesor del Candombe,
informativos dos projetos e programação de atividades da Casa de Cultura Afro-
uruguaia. Por último, recebi um livro intitulado “Medio Mundo – Sur, Conventillo y
Después”2 cujos autores, Milita Alfaro e José Cozzo, explicam sobre a história da
população afro-uruguaia distribuída em um dos famosos bairros de Montevidéu, além
da formação dos primeiros grupos de Candombe.

De outubro até o início de dezembro, estive concentrado em acompanhar todos


os eventos movidos pela rede de organizações afro-argentina de Buenos Aires. Havia
planejado minha estadia durante esse período justamente prevendo testemunhar uma
grande quantidade de desfiles, seminários e reuniões, muito por conta ao dia Nacional
do Afro-argentino e da Cultura Afro, celebrada todos os anos no dia 08 de novembro.

Logo no início de outubro tive a chance de participar do curso de Etno-história e


Cultura da população afro-argentina. Ministrado pelo antropólogo Norberto Pablo
Cirio e pelo etnomusicólogo Augusto Guarnieri, o curso ocorreu em uma escola
municipal em La Plata a cada quarta-feira e foi oferecido voluntariamente pelos dois
professores, sem qualquer custo. O objetivo tem sido o de transmitir aspectos
históricos e atuais da influência da cultura e religiosidade afro-argentina no país,
contribuindo por uma educação mais inclusiva.

Uma das grandes bandeiras etnopolíticas da comunidade afro-argentina,


principalmente das lideranças envolvidas diretamente a partir da Associação
Misibamba, é de incluir a história e cultura afro-argentina no currículo pedagógico das
escolas. Enquanto isso, os professores interessados em adotar tal medida nas suas
respectivas turmas devem procurar iniciativas como as dos especialistas Pablo Cirio e
Augusto Guarnieri. O curso, portanto, foi de grande valia, pois oferecia a chance de
obter referência de documentos históricos, conhecer a bibliografia específica sobre o
tema, compreender os conflitos com o Estado e as atuais discussões teóricas de

2
Alfaro, Milita; Cozzo, José. Medio Mundo – Sur, Conventillo y Después. Ed. Medio&Medio. Uruguai,
2008.

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pesquisadores envolvidos. Além da etno-história e cultura, tivemos a chance de
conhecer sobre a produção da religiosidade e do Candombe afro-argentino.

Foram horas de aulas e debates para uma turma de 15 a 20 pessoas, composta


por educadores, músicos e demais pesquisadores. Ao final do curso, Pablo e Augusto
propuseram para que cada um fizesse um projeto pedagógico para suas respectivas
turmas relacionado ao que havíamos aprendido. Essa experiência me rendeu
aproximadamente oito horas de gravação entre aulas e conversas com os professores,
direcionadas para o tema do Candombe.

No dia 31 de outubro participei da “V Jornada de História Regional” ocorrida na


Universidade Nacional de La Matanza, no município homônimo. Fui convidado para o
evento pelo próprio Pablo Cirio que, juntamente com Carlos e Cesar Lamadrid, fizeram
uma apresentação seguida de debate sobre o primeiro censo autogerido da
comunidade afro-argentina, descendentes da população escravizada. O censo havia
ocorrido no ano anterior, no bairro “BID de la Ciudad Evita” e nas zonas adjacentes ao
município de La Matanza. Realizado por iniciativa dos próprios integrantes da
Associação Misibamba, incluindo Pablo Cirio, Carlos e Cesar Lamadrid.

Embora estes encontros não estivessem relacionados ao tema de doutoramento,


mesmo assim, julguei ser importante para melhor compreender o projeto etnopolítico
de afirmação da presença afro-argentina. A começar pela inclusão da sua história nos
livros didáticos escolares, uma das principais exigências da família Lamadrid. No final
das contas, constatei que tudo estivera interligado, pois estamos lidando com
processos de negociações políticas e culturais de modo a superar desigualdades
constituídas ao longo do processo histórico colonial.

Outro evento que julguei importante para o registro foi o lançamento da primeira
edição do Jornal “El Afroargentino”, realizado no dia 18 de novembro na Faculdade de
Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. O Jornal é organizado e produzido
pelos integrantes da organização Diáspora Africana de la Argentina (DIAFAR). O
objetivo é dar mais visibilidade a presença da população afrodescendente na
Argentina. Por este meio comunicativo autônomo, seus consumidores podem
acompanhar as datas comemorativas, reuniões e desfiles, além é claro de aprender
sobre o passado-presente da população afro-argentina por meio de notícias, colunas e

20
entrevistas com as principais lideranças da rede de organizações e associações
representativas. O evento contou com a participação de muitos convidados e
colaboradores, incluindo seu presidente Federico Pita.

Apesar dos seminários, aulas e reuniões, o trabalho de campo em Buenos Aires


esteve direcionado principalmente em acompanhar as manifestações e os desfiles de
Candombe uruguaio realizados nas ruas da cidade. Destaco duas principais
manifestações que julgo ter maior relevância para a analítica do trabalho, por sua
capacidade de congregar múltiplos grupos de Candombe e, fundamentalmente, por
reproduzir o mesmo discurso afirmativo em relação aos outros grupos de Montevidéu.

A primeira delas se refere ao dia Nacional do Afro-argentino e da Cultura Afro,


celebração que ocorreu nos dias 07 e 08 de novembro. O primeiro dia ocorreu no
Senado com uma cerimônia solene em homenagem à Maria Remedios del Valle,
personagem histórica que lutou nas campanhas argentinas pela independência do
país. Lembrada por toda população e por tal motivo instituído no dia 08 de novembro
pela lei 26.852, o dia em que se celebra a presença afro-argentina.

A ocasião contou com representantes do Estado e das múltiplas organizações da


rede afro-argentina. A celebração ao afro-argentino culminou no dia seguinte com
uma grande festa na Rua Bolívar em frente à famosa Casa Rosada, no centro de
Buenos Aires. No evento havia estandes da Agrupação Xangô, Diáspora Africana da
Argentina (DIAFAR), Conselho Nacional de Organizações Afro (CONAFRO) e da
Comunidade Cabo-verdiana. No mesmo dia, tive a chance de entrevistar os principais
lideres de cada organização. Além disso, aproveitei a chance para adquirir materiais de
divulgação do Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo
(INADI), do Senado e do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Além disso, recebi
um importante guia para docentes sobre afrodescendentes e cultura afro-argentina,
iniciativa da Agrupação Xangô em parceria com a Confederação dos Trabalhadores de
Educação da República Argentina (CTERA). Um exemplar da primeira edição do jornal
“El Afroargentino”, encartes de divulgação do trabalho da Agrupação Xangô, DIAFAR e
CONAFRO. Por fim, o último relatório promovido pela Associação Civil África e sua
Diáspora da Argentina, que trata da perspectiva sociocultural e sócio-demográfica da
população afrodescendente e africana.

21
A segunda manifestação ocorreu na semana anterior, no dia primeiro de
novembro. Trata-se da mais importante Chamada de Candombe autogerido em
Buenos Aires – a Chamada de Candombe Lindo Quilombo. Participei da 6ª edição do
evento, conhecido por reunir dezenas de grupos de Candombe tanto de Montevidéu
como de Buenos Aires. Destarte, muito importante para o campo etnográfico. Na
ocasião, realizei registro fotográfico, escrito e entrevista com um dos coordenadores
da organização.
Durante o tempo de campo etnográfico, pude adquirir diferentes fontes de
informações úteis para o trabalho, entre encartes, jornais e cadernos de orientações
fomentados por instituições do Estado, de associações e organizações não
governamentais de promoção à igualdade e combate ao racismo. Quanto ao material
audiovisual do campo etnográfico, realizei registro de aproximadamente 200
fotografias e 15 vídeos, entre aulas, ensaios e desfiles de Candombe. Além de gravar
541 minutos de entrevistas realizadas em Montevidéu e Buenos Aires. As informações
detalhadas estão discriminadas no quadro a seguir:

Arquivos Entrevistados Tempo (min.) Arquivos Entrevistados Tempo (min.)

Carlos
Áudio 01 Ferna Nuñez 18:09 Áudio 11 9:21
Lamadrid
Gustavo
Áudio 02 Chabela Ramirez 17:26 Áudio 12 1:35:06
Guarnieri

Áudio 03 Chabela Ramirez 31:21 Áudio 13 Senado 25:25

Aquiles, Afonso e
Áudio 04 42:11 Áudio 14 Senado 14:07
Anibal Pintos
Carlos
Áudio 05 Juan Gularte 13:50 Áudio 15 1:07
Lamadrid
Juan Gularte e
Áudio 06 22:01 Áudio 16 Senado 21:54
Anibal Pintos
Afonso Pintos e
Áudio 07 45:17 Áudio 17 Senado 7:21
Chabela Ramirez

Áudio 08 Pablo Cirio 1:25:17 Áudio 18 Senado 6:45

Pablo Cirio e
Áudio 09 1:17:49 Áudio 19 Senado 2:26
Gustavo Guarnieri

22
b) Dos Procedimentos metodológicos

Tendo como base analítica preliminar o Candombe uruguaio, delimitei meus


procedimentos metodológicos, pelos quais a pesquisa pôde ser desenvolvida, de
acordo com a realidade encontrada no campo etnográfico. Dito de outro modo,
precisei primeiramente realizar minha experiência em campo, conhecer e
compreender como e em que medida se encontra o discurso afirmativo afro-uruguaio
no contexto do Candombe uruguaio para daí definir de que maneira poderia recortar e
analisar o tema. Portanto, a morfologia e análise do trabalho são de algum modo
resultados das limitações e das circunstâncias do campo.

Deste princípio metodológico, não pude desconsiderar a própria escassez


bibliográfica sobre o Candombe relacionado ao campo analítico da Diáspora Africana e
racismo. O material é mesmo incipiente até o início do presente século, efeito pós-
Durban, quando as lideranças etnopolíticas emergem afirmativamente surgindo
pesquisas, debates, revisão do discurso e das “grandes narrativas” contadas pelos
europeus através da perspectiva europeia. Então, a partir do século XXI, os mesmos
debates iniciam o começo de novas narrativas contadas desde a “periferia” cuja
perspectiva afrodiaspórica contribui ou soma para compreender a heterogeneidade e
interculturalidade estruturante da nação. Todavia, apesar dos importantes estudos
que já foram realizados, fica ainda muito por investigar com respeito principalmente
ao Candombe atual considerando a quantidade de elementos discursivos que podem
ser analisados. Desde uma perspectiva pura e simples da performance, até a
perspectiva filosófica, ontológica, considerando a presença do Candombe como
modelo de leitura do mundo e da sua própria humanidade.

Sem me alongar por esta vereda, quero ressaltar, todavia, que contamos com a
fundamental e significativa contribuição de pesquisadores como Milita Alfaro, José
Cozzo (2008), Norberto Pablo Cirio (2003; 2008; 2010), Alejandro Frigerio (2000; 2003;
2010), Gustavo Guarnieri (2010), os brasileiros José Ferreira (1997; 2002; 2003; 2007;
2008) e Laura Cecília López (2002; 2005). Respeitando suas semelhanças e distintas
análises, estes autores constituem leitura obrigatória para os próximos estudantes
interessados no tema Candombe, presença afro-uruguaia e relações étnico-raciais.

23
Além das limitações bibliográficas como referência para a entrada ao campo,
percebi que, uma vez nele, haveria outras impossibilidades de analisar o Candombe
tão somente sob a perspectiva de um ou dois grupos, conforme planejei no período
“pré-campo-etnográfico”. A razão consiste no fato de que há atualmente 134 grupos
no país, sendo inúmeros deles atuando somente em Montevidéu. Esta dificuldade
torna-se ainda maior devido à relativa facilidade com que “aparecem” e
“desaparecem” os grupos. É, portanto, uma perspectiva de análise muito arriscada
reconhecendo o simples fato de que o Candombe não é reproduzido em sua prática
discursiva por apenas alguns grupos. Do mesmo modo, também poderia optar no
campo etnográfico em compreender o significado do Candombe a partir de uma
organização ou associação. Entretanto, entendi que este olhar poderia reproduzir uma
visão institucional sobre o tema, super dimensionando a própria organização e, com
isso, esquecendo-me de que a narrativa é sobre o Candombe e não o modo pelo qual a
instituição trabalha com o ritmo.

Ainda sim, a descrição etnográfica das instituições, dos desfiles e ensaios, seja nas
ruas ou em ambientes “privados”, tem sido de fundamental importância para a
compreensão mais ampla e profunda sobre o Candombe. Muito por conta disso, o
leitor encontrará durante a narrativa o exercício descritivo de alguns grupos bem como
as organizações que representam e fomentam o Candombe enquanto performance e,
principalmente, como discurso político de afirmação da presença.

Considerando estes dois aspectos da cultura afrodiaspórica, lembrei-me que sua


análise deve ser realizada sob o prisma daquilo que a Antropologia faz de melhor: a
percepção microscópica da presença e do comportamento humano a partir do
discurso enunciado. Nesse contexto, Foucault avalia o discurso como algo “mais que
um conjunto de enunciados”. O discurso é na verdade uma prática, e como no caso de
qualquer outra prática social é possível definir as condições de sua produção. Para o
filósofo, todo discurso tem um contexto de produção e esse contexto é a “prática
discursiva”, ou seja, a compreensão das regras anônimas constituídas no processo
histórico, determinadas no tempo e delimitadas no espaço que em uma época
concreta e em grupos ou comunidades específicas vão definindo as condições que
possibilitam qualquer enunciação (FOUCAULT, 1996, p. 91-92).

24
Neste caso, a prática discursiva da população afro-uruguaia é percebida para além
dos atos de fala, pois seu conjunto de enunciações reside em um tempo-espaço mais
íntimo e complexo traduzido sobremaneira em linguagem não verbal, constituída
permanentemente pelo corpo em movimento. Decorre daí a necessária sensibilidade
de quem lê este corpo. A análise deste discurso trabalha com a premissa de que a
leitura do comportamento, das ações e de toda linguagem não verbal devem habitar o
campo das emoções, da inteligência emotiva do enunciador. Posto que, além dos
gestos, do comportamento, das circunstâncias e de todos os códigos de enunciação
que acompanham o discurso, há o aspecto da memória afrodescendente reverberada
no corpo. Além disso, quando se adentra na leitura do corpo negro em movimento, a
compreensão do discurso considera aspectos éticos e estéticos para o seu
empoderamento, desde o uso dos atributos de seu fenótipo até a simbiose sagrada
entre os personagens do Candombe com o próprio corpo.

Nesse sentido, trata-se de uma interface entre a memória coletiva com os


instrumentos construídos e desenvolvidos pelo afro-uruguaio cuja principal finalidade
é a transmissão do seu tipo de presença no mundo. Em relação a sua memória,
sabemos que possui uma aglomerada e complexa rede de emoções prontas para
serem enunciadas de distintas formas. E, em tais condições, necessariamente
trabalhamos com um corpo somático, resultado do seu passado no presente. Logo, a
partir de tais premissas, emergem algumas questões:

Por exemplo, quais são as regras e os códigos de intercomunicação entre os


indivíduos que compartilham a mesma história, o mesmo trauma? Como são
evidenciados estes códigos para o interlocutor não ciente? Em que medida o discurso
pautado nas práticas sociais, elas, por natureza, comunicativas, consegue emanar as
emoções contidas e, por vezes, ocultadas por causa do trauma? E uma vez emanado o
discurso, como chega a quem o interpreta? De fato o que é dito está sendo entendido
exatamente de acordo com o sentido pelo enunciador da memória?

Na tentativa de responder essas questões, a pesquisa procurou analisar o discurso


a partir dos rituais individuais e coletivos de dentro do Candombe constituídos para a
manutenção e desenvolvimento da sua presença. Por exemplo, a preparação dos
tambores para o ensaio ou desfile, o modo como cada grupo termina suas

25
apresentações na rua ou como um indivíduo percebe o tambor para além do
instrumento. Em seguida, também foi considerada a apropriação do discurso pelos
indivíduos que atuam no Candombe enunciado para a sociedade como tipologia de
afirmação etnopolítica afro-uruguaia.

Para tais finalidades, utilizei a observação participante, incorporando a prática dos


rituais de preparação, desenvolvimento e finalização de um desfile, registro
audiovisual e descritivo de ensaios e desfiles em que pude realizar tal exercício. Além é
claro, das entrevistas, participação de palestras, aulas teóricas e práticas. Em relação
às entrevistas, optei por não produzir nenhum questionário pré-estabelecido. Utilizei
apenas um questionário aberto composto por uma única questão: “O que é o
Candombe para você?”. Para esta escolha metodológica considerei a experiência de
vida da maioria dos entrevistados, em média entre 50 a 75 anos. Nesta oportunidade,
surgiram palavras-chave como “resiliência”, “resistência”, “modo de vida”,
“compartilhamento”, “autonomia”, “ancestralidade” e “presença afro-uruguaia”. E,
porventura, quando questionados sobre o papel do Estado no fomento da cultura e do
reconhecimento da história afro-uruguaia, apareceram outras palavras-chave como
“invisibilização”, “racismo”, “violência”, “desigualdade”, “controle” e “patrimônio”.

Além das entrevistas, apareceram discursos de palestrantes transmitidos aos


alunos como, por exemplo, “você está vendo o meu cabelo?”. Com isso, deve-se
observar com atenção a enunciação da negritude e o resultado dela com base na sua
experiência de vida. Em outras palavras, a presença afro-uruguaia é estabelecida pela
estética do corpo (e nesse caso pelo tipo do cabelo), como também por sua ética,
constituída pelo tempo de vida, pela experiência, memória e capacidade de
transmissão do conhecimento (nesse caso enunciado pela cor branca do cabelo).

O fato é que todo o conjunto de enunciações demonstra um paradigma de


pensamento, de ação política e de projeção consciente no mundo designado como
“presença” pelos próprios emissores. Para esta realidade afro-uruguaia, a prática
discursiva reitera sua linguagem não verbal, os códigos de conduta e o enfrentamento
societário permanente, produzidos e orquestrados a partir de dentro do nicho ético-
estético chamado Candombe.

26
c) Da apresentação do trabalho

A tese foi dividida em três metacapítulos. Em cada um deles há divisões em


subcapítulos, cada um desenvolvendo um tema em específico, mas sempre focado ao
tema macro. O primeiro metacapítulo trata “Da origem do Candombe”. O objetivo é
de apresentar ao leitor quando o Candombe se originou e como ele se estabeleceu e
tem se desenvolvido em suas distintas temporalidades e espacialidades, como no
Brasil, Argentina e, por último, Uruguai. Neste sentido, é muito importante ressaltar
que não se trata de uma análise comparada do Candombe nos três países. O meta
capítulo em questão visa observar a dinâmica do ritmo do passado ao presente sem
adentrar em sua análise específica. Até porque o foco da tese é sobre o Candombe
uruguaio. Mesmo assim, o leitor irá notar que existem alguns elementos que são
atemporais e traspassam qualquer tipo de fronteira, como o tambor e a figura do Rei
Congo, encontrados nos três países. Todavia, antes deste panorama geral, o leitor
encontrará dois subcapítulos introdutórios.

O primeiro subcapítulo é muito breve, chamado de “prelúdio ao Candombe”, e


visa tão somente introduzir o leitor ao campo das emoções no momento em que
ocorre o encontro do autor com o ritmo, criando alguma expectativa para o que
poderá ser encontrado posteriormente. Esta pequena descrição se refere
especificamente a um dos ensaios do grupo “Valores de Ansina” que será retomado no
capítulo “Dos tambores”, subitem “Ritmo de Ansina”.

O segundo subcapítulo trata “Da etimologia e alguns significados” do Candombe.


Antes de situar o ritmo em seu tempo-espaço, é fundamental pontuar a origem
etimológica do termo, constituído ainda no continente africano e adquirindo inúmeros
significados processualmente a partir da travessia e, em seguida, na Diáspora Africana.
Por conta disso, o leitor dar-se-á conta de que existe uma diversidade de significados,
e alguns deles atribuídos especificamente ao contexto em que o ritmo se encontra,
seja no Brasil, Argentina ou Uruguai.

27
A parir do terceiro subcapítulo, o Candombe é apresentado em seu território
específico. “Do Candombe no Brasil” apresentará ao leitor a etno-história do ritmo e o
modo como ele tem sido praticado atualmente nos seus distintos espaços, seja no
quilombo, em zona rural, ou mesmo na cidade. Esta breve leitura do Candombe no
Brasil é pontuada por alguns dos seus pesquisadores cuja análise relaciona o ritmo
com os rituais sagrados envolvidos no contexto da festa do Congado, em Minas Gerais.
Mariana Simões (2013), Cristiano Trindade (2011) e Edimilson Pereira (2005) são
alguns deles. Neste ponto, o leitor já poderá perceber o modo pelo qual os tambores
são utilizados e considerados como protagonistas da festividade. Além disso, é possível
observar a presença da Nossa Senhora do Rosário e do Rei Congo que, na verdade, são
os personagens pelos quais o Candombe surgiu e para os quais é praticado.

O quarto subcapítulo “Do Candombe na Argentina” apresenta outra vertente do


ritmo, como surgiu e por quem ainda o pratica. Começo demonstrando a tese que
defende a “desaparição” do Candombe no território argentino juntamente com sua
população afrodescendente. Este discurso foi desenvolvido por uma gama de
pesquisadores, cada um com sua metodologia e perspectiva analítica, como Hugo
Ratier (1977), Carlos Vega (2008) e Reid Andrews (1984, 2004).

Em oposição a esta versão dos fatos, apresento a tese da continuidade da


presença afro-argentina junto com seu Candombe, defendida principalmente por
Alejandro Frigerio (2010, 2014) e Norberto Pablo Cirio (2003, 2011). O primeiro
destaca a vigência do ritmo na capital Buenos Aires, enquanto o segundo pesquisador
desenvolve seu trabalho no interior do país. Com base nas suas obras, apresento o
modo pelo qual o Candombe foi praticado. Na capital do país retrato a vigência do
Candombe em um pequeno clube de lazer e o seu consequente desaparecimento.
Alguns conflitos aparecem, incluindo com os afro-uruguaios que, desde aquela época,
já se encontravam em Buenos Aires. O subcapítulo termina com a pesquisa de Pablo
Cirio sobre o Candombe em Corrientes e Santa Fé, cidades que de alguma forma
mantiveram a historicidade afrodescendente muito por conta da prática do
Candombe. Este por sua vez, associado ao culto a São Baltazar. Nesse contexto, não
pude deixar de ampliar a pesquisa de Pablo Cirio contribuindo com maior

28
profundidade analítica, considerando a correlação direta entre São Baltazar com o Rei
Congo.

O quinto subcapítulo introduz o leitor para a origem “Do Candombe no Uruguai”.


Aqui o tema da tese começa a ser desenvolvido mais especificamente. Inicio com a
minha chegada ao campo situando geograficamente o leitor, para em seguida
contextualizar com a etno-história da chegada dos primeiros africanos escravizados
radicados no Uruguai. A partir daí, recomeço a narrativa no tempo presente
apresentando a “Casa de Cultura Afro-uruguaia”. Neste subitem, procurei ser
bastante descritivo ao lugar e seu funcionamento para aproximar o leitor à dinâmica
da Casa, principalmente para os dois de seus principais eventos que foram
determinantes no enriquecimento do campo etnográfico.

Com isso apresento o subitem “Do Grupo Asesor”, relatando o contexto da sua
origem, o propósito da sua formação e quem são seus integrantes. A partir da minha
própria experiência durante as aulas da Oficina do Grupo Asesor, prossigo com a
narrativa com o subcapítulo posterior que vai relatar sobre a “breve história do
Candombe uruguaio”. Todo conteúdo desenvolvido nesta parte foi transmitido por
pelo menos uma das aulas da Oficina. Contudo, sobre o surgimento do Candombe a
partir das confrarias, salas e suas respectivas nações, ainda utilizei a referência
bibliográfica de Carámbula (2005). O mais importante neste trecho é perceber o modo
como o Candombe era praticado e como o ritmo passou a ser incorporado por um
grupo.

No subcapítulo “Da origem dos conventillos” procuro relatar o contexto em que o


Candombe se desenvolve a partir de um lugar específico, muito tempo depois que o
ritmo deixou de ser praticado em suas confrarias. Nesta época, já não havia mais
Nações e o Candombe possuía outra estética, muito em devido às contingências da sua
realidade social e política, posto que o ritmo foi muitas vezes proibido de ser praticado
nas ruas, dependendo de cada governo. Procuro neste subcapítulo demonstrar com
base nos atos de fala de alguns dos afro-uruguaios, a importância do Conventillo como
um lugar estratégico para o desenvolvimento da sua presença. Correlaciono esta
perspectiva com autores como Michel Foucault (1996) e Marc Augé (2000) e José
Ferreira (1997, 2002, 2003, 2007, 2008). Com este último autor, procuro demonstrar

29
as diferenças de territorialidades constituídas por cada conventillo e utilizadas
posteriormente para distinguir os três ritmos de Candombe. Em certo trecho, ainda
utilizo Aníbal Quijano (2000) e Benedict Anderson (2008) para problematizar a questão
do racismo e da apartação social sofrida pela população afro-uruguaio quando na
época o governo a expulsou do Conventillo. A partir daí, procuro demonstrar como a
presença afro-uruguaia foi criando pautas de discussão política a favor da sua etnia.

Neste trecho, trabalho, sobretudo, com o conceito de “resiliência”


compreendendo que este oferece suporte analítico para o modo como a população
afro-uruguaia a partir do Candombe tem afirmado sua presença. No subcapítulo “Do
espaço-rua: por uma estética do Candombe” tento demonstrar como o Candombe
assume sua conduta etnopolítica ao sair do Conventillo e conquistando as ruas.
Começo trabalhando com a concepção de “espaço” e “lugar” para Nilton Santos
(1978, 1979) como ambiente mais propício para a prática e transmissão da ética do
Candombe.

Com isso adentramos ao segundo metacapítulo “Morfologia e Cosmologia;


elementos materiais e imateriais do Candombe”. Esta parte da tese apresenta todos
os elementos que compõem o Candombe uruguaio, desde seus personagens até a
descrição de alguns dos rituais do desfile. O leitor perceberá que a descrição
etnográfica e discussão analítica estão mais centradas no que concerne ao tambor e
menos nos outros elementos do Candombe. Resolvi adotar este método de análise
não por desvalorizar os outros elementos. Mas por entender que o tambor atravessa
territórios, não está delimitado a fronteiras de qualquer tipo. É, nesse sentido, que o
tambor representa um elemento estruturante de todo universo afrodiaspórico, nas
relações interpessoais dos sujeitos que o utiliza, na transmissão da cultura e,
sobretudo, ancestralidade. Por este motivo, o leitor talvez sinta falta de uma descrição
ou análise mais profunda a respeito de outros integrantes do Candombe, como as
dançarinas, o gramillero ou bastoneiro. Mesmo assim, no subcapítulo “Do sagrado
feminino: mama vieja e vedete”, há uma discussão mais pormenorizada em relação
aos outros personagens do Candombe.

Começo a narrativa com o subcapítulo “Das primeiras impressões de um desfile”


onde descrevo o meu encontro com o grupo La Tribu. A partir da descrição do desfile,

30
apresento os personagens do Candombe. Falo sobre o escobero e os emblemas
pontuando a sua origem e função dentro da sua narrativa. Em seguida descrevo sobre
as dançarinas e o gramillero. Para este personagem, retomo a bibliografia de
Carámbula que o situa em um momento histórico quando, ainda no tempo das
Nações, o gramillero representava o doutor ou ministro do séquito do Rei Congo. Após
sua breve observação, sigo a narrativa para discutir “Do sagrado feminino”, onde
relato o modo como a mama vieja e a vedete são percebidas. Antes disso, apresento a
origem das duas, sobretudo, o importante papel que a mama vieja exerce para o
Candombe.

O subcapítulo “Dos tambores” compõe o trecho central do metacapítulo. Nesta


parte da tese há descrição dos três tambores, seus formatos, função e principalmente
os significados atribuídos a eles pelos seus praticantes. A partir daí, apresento os três
tipos de ritmo que em conjunto compõem a presença do Candombe uruguaio. Em
seguida, relato um dos rituais do desfile a partir da descrição etnográfica de um grupo.
O objetivo é demonstrar como os tambores estão associados aos corpos dos seus
praticantes. Para esta analítica utilizo autores como Julio Tavares (1984, 2008, 2009,
2010) e Arthur Koestler (1967), este último contribui para trazer o conceito de
holarquia válido para a compreensão do ritual e da sua dinâmica. Por último, o
subcapítulo “Do corpo-tambor” procuro sedimentar a ideia de simbiose do
candombeiro com o tambor e, nesta parte, já o considero como o principal corpo em
movimento que organiza e sedimenta a presença afro-uruguaia.

No subcapítulo da “Chamada e Chamadas-Mãe” utilizo a discussão de Angel


Rivera (2009) sobre o padrão comunicativo dos tambores, presente em toda Diáspora
Africana, capaz de influenciar a linguagem corporal dos seus praticantes. Além de
contrapor sua prática comunicativa ao sistema métrico ocidental. Antes, ainda observo
a importância da Chamada, no sentido de convocar a população para participação e
convivência de todos os componentes do Candombe.

O “Candombe no carnaval” é tema tratado no subcapítulo posterior. Propõe


discutir as perdas do ritmo enquanto presença etnopolítica em prol de um contexto
festivo pautado na cultura de consumo. Essa questão está presente nos discursos,
sobretudo, retratados pelos mais experientes. “As materialidades e imaterialidades

31
do Candombe” termina com um panorama geral do microssistema ético-estético, na
tentativa de sintetizar toda a discussão promovida ao longo deste metacapítulo. O
terceiro e última parte da tese corresponde ao momento da “Travessia: o Candombe
uruguaio na Argentina”.

O primeiro subcapítulo aborda os velhos e atuais embates entre a população


afrodescendente com o Estado. Além de retratar as negociações de uso territorial
entre o Candombe afro-uruguaio com a população afro-argentina. Para isso trabalho
com Ferreira (2008), Frigerio (2011, 2012) e Lamborghini (2010). A partir de um relato
etnográfico, procuro discutir os efeitos cognitivos do racismo sobre a população
afrodescendente. Para esta finalidade, utilizo a analítica de Rita Segato (2007, 2010),
Julio Tavares (2010), Frantz Fanon (1983, 1990) e outros.

No segundo subcapítulo retrato meu encontro com a organização Lindo Quilombo,


e a partir da sua atuação frente ao Estado, articulo com a discussão sobre quilombo,
considerando como categoria analítica para pensar o modo de vida afrodescendente.
Para isso, apresento primeiramente os múltiplos significados de quilombo incluindo
sua etimologia, depois passo a incorporar como conceito a partir das contribuições de
Alessandra Schimit, Maria Turatti, Maria de Carvalho (2002) e Ilka Boaventura Leite
(2000). O dia “Nacional do Afro-argentino e da cultura Afro” é tema do subcapítulo
seguinte onde há novo relato etnográfico a respeito da festividade, e com isso utilizo o
contexto para ressaltar a diversidade e a relação horizontal dos sujeitos que a
constitui. Pra isso, discuto conceitos como pluriculturalidade, multiculturalismo e
interculturalidade, trazendo no debate autores como Catherine Walsh (2009), Néstor
Canclini (1998, 2009) e Aníbal Quijano (2000).

As considerações finais apontam para um entendimento mais filosófico sobre o


Candombe a partir da sua proposição discursiva capaz de criar relações de aceitação
do próximo considerando as diferenças identitárias. Além da tentativa de promover o
respeito e igualdade como ação prática dos sujeitos que convivem em um mesmo
território. Para esta discussão final, utilizo autores como Humberto Maturana (2001,
2002), Richard Sennet (2004) e Arturo Escobar (2005, 2008).

32
Travessia Cone Sul

Rio de Janeiro  Montevidéu  Buenos Aires  Arica  Rio de Janeiro

33
Da Origem do Candombe

34
1. Prelúdio ao Candombe

Ele entra na roda repicando o corpo com suas pernas arcadas, sorri e acena para
cima descansando a mão na testa. Sentindo a presença dos ancestrais, ele agradece,
regendo e sendo regido pelo som do tambor...

Foi naquele momento, diante daquela roda, que senti mais uma vez em corpo e
alma a pura expressão da presença humana, consciente, natural e sobrenatural. Foi
então que, mais uma vez, senti a encarnação da sabedoria do corpo negro e da
transmissão de sua cosmovisão pelo repicar daquele corpo na roda.

A noite estava fria e já prenunciava um inverno rigoroso naquele mês de agosto.


As ruas iluminadas revelavam apenas o vazio e solidão, enquanto as árvores nuas e
magras resistiam ao vento gélido da cidade de Montevidéu. As pessoas buscavam
acolhimento em suas casas tentando esquecer o cansaço da rotina à frente da
televisão. Mas este jovem relutante encarava a noite buscando aventura com a
mochila nas costas e as velhas botas de tantas poeiras e calos. Apenas um rapaz latino-
americano com pouco dinheiro no bolso cuja dupla nacionalidade brasileira e chilena
adentrava mais uma vez o campo, enquanto a alma passeava em multiversos e
múltiplos universos, lembrando-me de quem fui e, ao mesmo tempo, buscando quem
algum dia serei.

Com o caderno em mãos, coração descompassado e o espanhol engatilhado, fui


caminhando e me desdobrando por entre as esquinas do bairro Palermo. Caminho
histórico, onde a presença negra brotou das entranhas do corpo que há muito tempo
trabalhou compulsoriamente a serviço do colonialismo. E por estas mesmas ruas eu
seguia em frente, buscando a presença hoje afrodescendente, manifestada pelos
mesmos corpos sincopados, herdeiros do passado.

Dobrando a equina da Av. Gonzalo Ramirez com Magallanes avistei o primeiro


tambor. Seu corpo era esbelto querendo conquistar a rua, tocar e sonar o grito da sua
presença. Apressei o meu passo, e em cada passo sagrado, expressava-se meu desejo
de encontrar mais e mais tambores. Eles surgiam de repente, saindo das suas
pequenas casas, brotando, somando, revelando o mundo da Diáspora Africana.

35
Dos antigos porões eles saem e se reúnem aos poucos conformando uma grande
roda, esperando a primeira fagulha de fogueira. Logo, a primeira chama é acesa e por
ela todos os tambores são aquecidos, acolhidos, vencendo o frio, e se preparando para
a grande orquestra.

O público composto por indivíduos curiosos, ora estranhava a reunião, ora agia
com naturalidade, sabendo exatamente que naquele cenário da rua o estado das
coisas seria transformado e transportado para o nível sensorial dos corpos.

Então, uma vez aquecidos e afinados pelo fogo, os tambores desfaziam a roda
procurando lentamente as suas posições. E de repente, no forte pulsar do primeiro
tambor, o multiverso negro era recriado e a memória ancestral reencarnada
transmitindo a continuidade da nossa história.

Naquele cenário, por entre as ruas do bairro Palermo, todos os tambores


começam a desfilar acompanhados pelo público que reage extasiado. Eles conversam
entre si, regidos pela energia da ancestralidade e do movimento. Eles transgridem os
traçados retos das esquinas edificadas pela arquitetura colonial. Dançando em curva,
aqueles tambores instituem novas regras e novas possibilidades para a aceitação
humana, recriam sua própria realidade, transmitindo a consciência da presença
afrodescendente.

O chão treme, a pele arrepia e o coração acompanha...

É o Candombe!

Quanto a mim, recomeço a travessia, pelo mesmo corpo sincopado de pernas


arcadas, como um tambor na grande roda do multiverso da chamada Diáspora
Africana.

36
2. Da etimologia e alguns significados

De um modo geral, o Candombe é sentido como arte performática tendo como


base um ritmo perpetrado por tambores cuja prática comunicativa pode ou não estar
associada a uma condição sagrada.

Através do estudo etimológico do termo Candombe percebemos que sua origem


provém do antigo Reinado Congo cuja raiz etno-linguística é o bantu. Seu território
abrangia os atuais países do Congo, Angola, a região de Benguela e algumas zonas da
África do Sul. Considerando a sua abrangência política e geográfica, é compreensível
que por lá também havia inúmeras etnias e idiomas. Por conta disso, o próprio termo
Candombe passa a ter mais de um significado (CARÁMBULA, 2005, p. 37).

Por exemplo, no idioma Kilongo o sufixo Ndombe pode significar “nativo” ou


“africano”. Por sua vez, Dombe é também uma cidade próxima à região de Benguela
que na época era capital do antigo Reino Congo.

Já no idioma Kikongo, encontramos o termo Kandumba que significa “mulher que


dança”. A palavra kalombe, por sua vez, significa “lugar sacro” ou “altar” e ao mesmo
tempo pode designar uma reunião religiosa e espiritual que se realizava para
kalungangombe – deus que acolhe as almas dos mortos no outro mundo pela tradição
de Angola e Benguela. Nesse sentido, encontramos também o termo Nzambi que era o
deus supremo das nações Bantu venerado através do kalombe (altar) com danças das
Kandumbas (mulheres). As mesmas danças utilizadas para chamar os Ndombe (nativos
africanos) de volta para casa.

Há outras conotações do termo “Candombe” encontradas no Reino Congo que


remetem a cidades ou regiões. Por exemplo, Kandobe é o nome de uma cidade do
Congo, assim como Kandombe concernente a uma aldeia e zona de Angola, cerca da
fronteira com a atual República da Zâmbia que antigamente fazia parte da região de
Benguela.

Por fim, no idioma Kimbundu, existe a palavra Ndumba que significa “conjunto”
ou “multidão”. Em contrapartida, há também o prefixo Ka que indica o plural de
“muito” e Ndombe que está relacionado aos povos de Angola. Portanto, KaNdombe
seria “muitos de Angola”.

37
E de fato, foram muitos de Congo e Angola que superaram a travessia do tráfico
negreiro. Cerca de 12 milhões de africanos expatriados do seu lugar de origem e
escravizados para servirem como mão-de-obra compulsória ao sistema colonial
mercantilista (SEGAL, 1995, p.4). Entre os séculos XVI e XIX chegaram ao novo
continente africanos das etnias ambundos, congos, bacongos, ovambos e benguelas,
todos pertencentes à raiz etno-linguística bantu (THORTON, 1998, p. 310).

No sentido oeste-leste os bantus ocupam territórios de Camarões às Ilhas


Comores do continente africano. No sentido norte-sul, são encontrados desde o Sudão
até a África do Sul. Sua influência cultural é manifestada de diversas formas na
afrodiáspora, a começar pelo idioma que herdamos derivado do quicongo, umbundo,
kimbundo e do mais falado do território bantu, o suaíli. Algumas palavras ou termos
permaneceram em nosso vocabulário, como exemplo, “ginga”, “berimbau”,
“mondongo”, “muamba”, “umbigo”. A dieta alimentar composta por jiló, feijão,
banana, inhame, noz-moscada também foram elementos que chegaram pela travessia.

Mapa da Diáspora Africana (séc. XVI a


XIX). Paul Finkelman e Joseph Miller. Ed.
Macmillan Enciclopédia do Mundo
Escravo. Nova Iorque, 1998. Vol.1, p.xlvii.

A relação com a natureza,


compreender, respeitar e compartilhar o
trabalho com a terra constituem princípios
básicos do modus vivendi bantu. O sagrado
e seus rituais religiosos de matriz africana
como o Candomblé bantu regido pelo
princípio politeísta cujo dogma rege o
princípio de não ter dogmas ou constituições. Um povo que preza pelas tradições orais
estruturada nos mitos e narrativas dos anciãos. Estes que, por sinal, preservam
secularmente o sistema de organização baseado em chefaturas dividido em clãs e
tribos, onde o chefe griô possui o poder de tomada de decisões, detentor do título de
autoridade do conhecimento, da memória e das formas de conduta do seu grupo
social.

38
A breve referência destes elementos materiais e imateriais provindas do universo
bantu procura demonstrar a riqueza e influência da sua cultura no universo
afrodiaspórico, constituído, inclusive, pela música, dança e seus rituais.

O próprio Candombe é resultado dessa forte influência na Diáspora. Estima-se que


o ritmo surge a partir do séc. XVIII concebido primordialmente como um dos
elementos que compõe as festas da coroação do Rei Congo encontrado em países
como Cuba, Brasil, Uruguai e Argentina (CARÁMBULA, 2005, p. 42). Veremos
rapidamente que a prática do Candombe no Brasil continua sendo associada a uma
condição sagrada, pois se manifesta de acordo com o culto à Nossa Senhora do Rosário
e à coroação aos Reis de Congo.

No Uruguai e na Argentina o ritmo foi igualmente associado ao culto sagrado aos


Reis e Rainhas do Congo, bem como às festas de Folia de Reis em homenagem a São
Baltazar (CIRIO, 2003; FRIGERIO, 1993; REID ANDREWS, 1989). Entretanto, sua prática
foi perdendo processualmente essa relação sagrada com a origem africana,
constituindo hoje uma performance rítmica através da qual a sacralidade também se
manifesta, só que de outras formas.

De um modo geral, o Candombe se origina a partir de um movimento próprio e


libertário da presença negra na Diáspora, posto que sua prática não se limita a um
território ou país, tampouco se constitui historicamente de um modo singular e único.
Ao mesmo tempo, e para além da sua origem, veremos que o Candombe possui
significados subjetivos e coletivos que também variam de acordo com as experiências
constituídas em distintos tempos e espaços. Como por exemplo, nos dizeres da
uruguaia, ativista e cantora, Chabela Ramirez:

“O Candombe é grito do escravo e não tem fronteira


geográfica. Com seus tambores cumpre em qualquer parte a
comunicação diferente do idioma.” (Ramirez, set.2014)

A expressão “grito do escravo”, que pode ser interpretado como resultado do


martírio provocado no passado pelo sistema colonial, hoje é utilizado por Chabela
Ramirez como metáfora de enfrentamento, de rebeldia e afirmação.

39
Logo, o Candombe é percebido e empregado como fonte discursiva de afirmação
ao negro contra as heranças do próprio sistema colonial. E nesse sentido, podemos
considerar que o Candombe não deixa esquecer que houve muitos “gritos de
escravos”, possibilitando criar na sua prática um estado de permanência à memória
ancestral. Chabela ainda se refere aos tambores como instrumentos de comunicação
capazes de atravessar qualquer “fronteira geográfica” considerando sua natureza
“monolinguística”. Além disso, o tambor potencializa o grito e, portanto, a afirmação
da presença afrodescendente estabelecendo uma comunicação dinâmica e sistêmica.

Como veremos, a prática comunicativa do Candombe é de um nível que extrapola


a performance e todo o conjunto do ritual que o sustenta em si, pois, a referida prática
é suficiente para gerar possibilidades de interações entre os seus praticantes pautadas
na afirmação, autonomia, cooperação e aceitação. A partir daí, o Candombe também
fomenta a produção de lideranças e do empoderamento da comunidade, bairro e,
acima de tudo, da população afrodescendente, configurando um movimento
etnopolítico de resistência e afirmação.

Com isso, o ritmo atravessa e flutua pelo mundo afrodiaspórico com seu próprio
movimento, manifestando-se de um jeito ou de outro através dos tambores sagrados e
da memória ancestral dos seus praticantes, seja no Brasil, Uruguai ou Argentina. Nesse
contexto, portanto, convido o(a) leitor(a) a desfrutar os entre caminhos das veias
latinas afrodiaspóricas, uma trajetória narrada pelo outro lado da história, uma
permanente e corajosa travessia.

40
3. Do Candombe no Brasil

No Brasil o Candombe é um ritual religioso de origem africana que tem o canto e a


dança em sua estrutura central. Em sua base estão o culto aos ancestrais e a devoção
aos santos católicos, principalmente a Nossa Senhora do Rosário (SIMÕES, 2013, p.71).

O ritual é encontrado no estado de Minas Gerais no quilombo da Fazenda Cipó,


localizado na Comunidade do Açude que, por sua vez, é integrado ao município de
Jaboticatubas. De acordo com Mariana B. Fonseca, essa microrregião começou a ser
frequentada devido a uma rota aberta por bandeirantes em direção à cidade de Ouro
Preto. Em 1716 a região começa a ser povoada através da política de concessão de
sesmarias e, em 1823, o Guarda-Mor José Santos Ferreira toma posse da propriedade
conhecida hoje como Fazenda Cipó. Na época a fazenda funcionava para abastecer de
alimentos outras vilas e, principalmente, para a produção de azeite utilizado na
iluminação pública de outras cidades (FONSECA, 2006, p.2).

Fonte: Google Maps

O quilombo Fazenda Cipó atualmente é povoado por descendentes de ex-escravos


e legatários do seu trabalho. A comunidade está situada em região isolada, distante da
zona urbana, e muito por conta disso, acredita-se que o Candombe foi preservado, de
acordo com seus elementos originários da época em que nasceu.

41
Por lá o ritual religioso surge a partir do mito da aparição da Nossa Senhora do
Rosário. Em sua narrativa, o Candombe aparece como termo que designa os tambores
feitos pelos escravos e utilizados por eles para conduzir a santa de fora do rio para sua
igreja. Com efeito, os tambores passaram adquirir sua condição sagrada por serem os
únicos capazes de manter a santa na igreja, sem que ela desejasse voltar ao rio onde
foi encontrada. Segundo o relato de Dona Mercês, moradora do quilombo:

Ela escolheu os negros: A história de Nossa Senhora do Rosário era os


antigo que contava a gente: ela apareceu na lapa, os branco foram lá
puseram na igreja e ela tornó a voltá pra lapa, enquanto os nego num
foi lá busca ela, ela num parô na Igreja. Enquanto os preto num foi lá
com o Candombe ela num parô de saí. Os branco num fazia caso dos
preto não, os nego é que insistiu e que pediu eles pra poder ir lá buscá
ela com o Candombe, aí foi lá e buscô e e ela ficô quetinha na Igreja.
Por isso que ela é a mãe do Candombe. Foi só o Candombe que
conseguiu fazé ela queré vim.3 (FONSECA, 2006, p.2).

A partir daí o Candombe é praticado enquanto ritual sagrado, em ambiente


privado, no quintal das casas do quilombo sem que esteja proibido ao visitante de
participar junto com as famílias. Através dos seus três tambores chamados de tambu
grande, tambu do meio e tambu pequeno, o ritual é geralmente executado todas as noites
em roda onde os mais velhos entoam cantigas que remetem a presença ancestral, seus
costumes e, sobretudo, ao culto a Nossa Senhora do Rosário.

De acordo com a antropóloga Mariana Simões, é nesse momento em que o


Candombe propicia um estado lúdico de alegria e diversão, quando os participantes
trocam desafios entre si, chamando uns aos outros à participação: “os mais velhos
costumam ‘desafiar’ e incentivar os mais novos a entrarem na roda, aprendendo,
assim, as estruturas do Candombe de modo a garantir sua continuidade como
performance ritual da comunidade” (SIMÕES, 2013, p.156).

Nesse contexto, os candombeiros passam a ser prestigiados no quilombo,


ganhando notoriedade e sendo reconhecidos como os herdeiros da sabedoria
ancestral, transmitida de geração a geração por meio das músicas e cantigas que
constituem narrativas do passado contadas no dia-a-dia (TRINDADE, 2011, p. 34).

3
Fonte secundária. Trecho descritivo. Grifo meu.

42
O Candombe é também encontrado em outras regiões e cidades de Minas Gerais,
como Contagem, Uberlândia e na própria capital do estado. Igualmente associado ao
culto a Nossa Senhora do Rosário, o ritual sagrado, contudo, se manifesta nesses
lugares com algumas diferenças em relação ao quilombo Fazenda Cipó, pois está
inserido no contexto das festividades que representam a coroação dos Reis de Congo,
chamada Congado, Congadas ou Reinado. Portanto, para compreender realmente
como o Candombe se estabelece e se manifesta na zona urbana das referidas cidades
brasileiras, é impreterível explicar de acordo com o contexto das festividades do
Congado ou Reinado, a começar elucidando a diferença entre os dois termos.

A diferenciação vai depender do lugar e da família que promove a homenagem ao


Rei Congo, sendo o Reinado uma performance rítmica, teatralizada, sagrada e mais
complexa, que inclui a presença de mais elementos como as guardas, missa, cortejo e
coroação. O termo Congado, por sua vez, embora utilizado tal qual para denominar a
performance do cortejo, corresponde originalmente às guardas de Congo, que podem
existir independentemente da presença de reis e rainhas. Portanto o uso desse último
termo pode ser limitado para explicar a complexidade da performance do Reinado.

Segundo o Capitão Regente do Reinado da Comunidade de Arturos, em Contagem,


o uso do termo congado no lugar de reinado representa uma desvalorização do
sentido do Reino, pois “antes de mais nada era o reino”, ou seja, a relação direta entre
a manifestação religiosa com o reino africano do Congo e com todos seus elementos
que a partir deles são constituídos (SIMÕES, 2013, p. 89).

No contexto histórico e religioso africano, a noção de rei, reino ou reinado difere


do contexto europeu. De acordo com Batsîkama, o Rei é na verdade um chefe de
ordem religiosa e de tendências políticas administrativas, designado como Mani-
Kôngo. Além disso, este chefe representa os ancestrais e somente é possível ser eleito
pelos mais velhos. Perante o povo, possui responsabilidades tais como resolução de
problemas jurídicos ou de outra natureza dos cidadãos. É detentor de grande
sabedoria e memória, já que possui o conhecimento da ancestralidade e da sua
história transmitida oralmente para os próximos candidatos a chefe (BATSÎKAMA,
2010, p. 105-107).

43
O Candombe, nesse contexto específico, representa a presença da ancestralidade
através da memória do Reinado. A presença dos ancestrais se dá por intermédio do
ritmo dos tambores em referência aos escravos da Diáspora e seu ritual opera através
da celebração a N. S. do Rosário. O ritual ocorre em outubro, na sexta-feira que
antecede o fim de semana do Reinado ou Congado. E, embora não esteja incluído na
programação oficial da festividade, o Candombe conta com a participação do público,
ainda que antigamente fosse restrito aos mais velhos.

Considerada a sua sacralidade, o Candombe é responsável por permitir o início do


Congado a partir do toque dos três tambores sagrados denominados de Santana,
Santaninha e Jeremias. Juntos, os três tambores constituem uma das guardas4 do
Reinado. O sentido dos instrumentos, nesse contexto, é de “chamar” a presença dos
ancestrais escravizados que, de acordo com o mito, tiraram do rio a santa N. S. do
Rosário. Seus tocadores se posicionam em semicírculo e o cantador-dançante da vez se
apresenta aos três tambores “pedindo licença”, dando início ao seu canto e dança.

Os cantos, por sua vez, são chamados de “pontos” que variam nos temas e tipos.
Um deles é conhecido como “bizarrias” que são cantos de brincadeira, ao passo que as
“demandas” são tipos de pontos que desafiam os cantadores entre si dentro da roda
de Candombe (PEREIRA, 2005, p.24).

Mariana Simões observa o fato dos tambores possuírem nomes próprios e que por
isso também assumem personagens próprios no ritual. Essa potência do tambor-
corpo-indivíduo capaz de “falar” é a expressão máxima da cultura negra e da sua
presença no contexto afrodiaspórico. Os tambores, por esta perspectiva, funcionam
“como uma voz da coletividade que se reúne naquele momento festivo para contar,
através de suas tradições, um pouco do modo de vida e de uma história que se renova
a cada festa” (SIMÕES, 2013, p. 173). Logo, a capacidade de narrar sobre o modo de
vida e da história das famílias, que em um dado tempo e espaço se estabeleceram
através da Diáspora Africana, faz com que os tambores deixem de ser meros
instrumentos de uma performance.

4
Guardas são grupos dançantes cujo sentido é de narrar dentro da performance do Reinado o ritual da
Nossa Senhora do Rosário. Conforme a região ou cidade, as guardas se diversificam entre seu elementos
e indumentárias. Basicamente são a guarda do Congo, Moçambique, Catopês, Caboclos, Marujada e o
próprio Candombe (LUCAS, 2006, p.68).

44
Por esta lógica, os tambores são corpos falantes que também relembram outros
corpos constituídos pela presença ancestral. Ainda que haja renovações,
transformações e dinâmicas próprias da presença afrodescendente e do modo como
ela é manifestada, os tambores continuam estruturando a via de comunicação entre o
plano imaterial com o material. E é nesse contexto que o Candombe é denominado de
“pai do Congado” ou “pai do Reinado” pela comunidade dos Arturos e demais
congadeiros, pois seu ritual destaca-se pela “fala” dos tambores aos ancestrais.
Através deles, abre-se o canal de comunicação com o sagrado, na figura dos
antepassados e dos santos católicos.

A representação do infográfico a seguir contribui para compreender visualmente o


panorama geral pelo qual o Candombe afro-brasileiro está inserido no estado de
Minas Gerais, bem como sua manifestação se relaciona com o sagrado e às festas ao
Rei Congo5:

Europa (Cristianismo) África (Bantu)


tambus

Mãe
Reis Congo
N. S. do Rosário

Pai
Reinado ou
Candombe
Congado

Zona Rural Zona Urbana

5
Para uma leitura mais específica a respeito do Congado ou Reinado e do Candombe no Brasil veja:
LUCAS, Glaura; LUZ, José Bonifácio da. (org.). Cantando e Reinando com os Arturos. Organização:
Comunidade Negra dos Arturos. Belo Horizonte: Rona, 2006; PEREIRA, Edimilson de Almeida. Os
tambores estão frios: Herança cultural e sincretismo religioso no ritual do Candombe. Juiz de Fora:
Funalfa Edições; Belo Horizonte: Mazza Edições, 2005; SIMÕES, Mariana Emiliano. Meu Corpo é tambor:
corpo e oralidade no reinado dos Arturos. Tese de Doutorado apresentado para Universidade Federal
Fluminense. Rio de Janeiro, 2013. TRINDADE, Cristiano A. O Candombe do Açude – Entre a tradição e a
exposição. Dissertação de mestrado apresentada a Universidade Federam de Minas Gerais, 2011, MG.

45
A forte influência da cultura bantu no Brasil estabeleceu através do Candombe a
relação com a autoridade e ancestralidade dos Reis de Congo, como ocorreu no
Uruguai e, em menor medida, na Argentina. Entretanto, o Candombe hoje, nessa
região do Rio da Prata, se manifesta de distintas formas, menos ou mais relacionadas a
santos, sem que sua prática perca totalmente a relação com o sagrado e o uso dos
tambores como via comunicativa.

Candombe na Serra do Cipó. Fotografia: Leandro Couri®

Veremos que na Argentina o Candombe apresenta certa continuidade e


desenvolvimento a partir de localidades específicas regido por uma tradição familiar
cuja ancestralidade ainda revive a presença afrodiaspórica. No interior do país, por
exemplo, vamos perceber como o candombe permanece associado a sua condição
religiosa através do culto a São Baltazar. E que, por conta disso, o processo de
hibridização que o ritmo argentino sofreu sob a influência europeia não foi suficiente
para a sua completa extinção como muitos pesquisadores defendiam até a década de
80.

Já no contexto da capital Buenos Aires, perceberemos que o Candombe se


manifesta já desassociado à condição religiosa. Além disso, veremos como o ritmo
sofreu certas restrições gerando conflitos e apartações, fato que motivou sua ausência
por mais de duas décadas. Entretanto, o Candombe ainda é utilizado hoje como
fundamento discursivo para afirmação da população afro-argentina.

46
4. Do Candombe na Argentina

Segundo a informação contida no Guia para Docentes sobre Afrodescendentes e


Cultura Afro6, o Candombe já nasce no Rio da Prata a partir do sincretismo de diversos
outros ritmos que os muitos de Angola trouxeram para a região. E durante muito
tempo esse Candombe era praticado nas duas margens do Rio, tanto na Argentina
como no Uruguai.

Não obstante, no que concerne à banda argentina do Rio da Prata, permanece no


discurso predominante a afirmação de que o Candombe portenho desapareceu
processualmente. Tal falácia tem sido legitimada com base nas principais bibliografias
históricas que narram o “desaparecimento” da população negra no país (ESTRADA,
1863; GÁLVEZ, 1883; SOIZA REILLY, 1905; ÁLVARES, 1908; VEGA, 1932; THOMPSON,
1973; LUNA, 1980; GODEBERG/ MALLO, 2000).

6
Guia para docentes sobre afrodescendente e cultura afro-Afroargentin@s. Org. Agupación Xangô;
Confederação dos Trabalhadores da Educação da República Argentina (CTERA). Argentina, 2014.

47
Dentre alguns fatores, esta visão defende que o desaparecimento foi consolidado
durante o século XIX por causa da epidemia da febre amarela e da Guerra do Paraguai,
quando muitos soldados negros foram mortos na linha de frente das batalhas. Além
disso, já no final do século, o governo promoveu uma grande onda imigratória de
europeus para seu país, fato que contribuiu ainda mais para corroborar a tese do
desaparecimento da população negra devido ao processo de miscigenação étnica.

Com o discurso narrativo etnohistórico ainda vigente cria-se um imaginário de que


não há negros na Argentina. A consequência cognitiva desse ato discursivo é a crença
de que também não há racismo ou qualquer manifestação cultural e política derivada
da presença afro-argentina, incluindo o próprio Candombe. Logo, qualquer prática
comunicativa relacionada à presença negra no país é compreendida atualmente como
aquilo que vem de fora, estrangeiro, proveniente do Brasil, Colômbia, Cuba, Cabo-
Verde e, sobretudo, do Uruguai.

Somado ao discurso etnohistórico vigente houve uma gama de pesquisadores que


percebiam o Candombe e outras manifestações afrodiaspóricas a partir da ideia de
folclore, o que ajudou a instituir o ritmo em seu lugar periférico em relação à produção
cultural europeia. E que a população negra, mesmo sendo considerada “inferior ou
primitiva”, obteve “certa liberdade” para a prática de seus “costumes e tradições”.
Ainda sim, para esses estudiosos, tal premissa não foi o suficiente para conservar e
desenvolver a presença negra no país, como relata um das pesquisas do folclore
argentino de Carlos Vega, publicado em 1932:
“Os mais exagerados defensores dos negros devem reconhecer que,
mesmo na condição de escravos, os africanos foram tratados em
Prata7 com simpatia e até com afeto (...). Assim se explica que
gozaram aqui da liberdade necessária para entregar-se sem travas ao
culto de seus cantos e danças originárias (...). A música, enfim, as
danças e os instrumentos dos escravos, foram cultivados em Prata
por seus portadores com liberdade evidente e intensidade
indubitável. Mas tudo se foi para sempre quando os olhos sem luz do
último negro autêntico enclausuraram a visão envelhecida e remota
dos panoramas africanos. Esse dia deixou de existir na África e em
Prata”. (VEGA, 1932; Cit. CIRIO, 2003, p.133)

7
O termo Prata no contexto designa a região do Rio da Prata que abarca a cidade Autônoma de Buenos
Aires de um lado e a cidade de Montevidéu do outro. Grifo meu.

48
O historiador britânico Reid Andrews em sua obra Os afroargentinos de Buenos
Aires, reitera a tese de que o Candombe desapareceu no país junto com a população
negra (ANDREWS, 1989). Seu método de pesquisa em fontes primárias desconsiderava
o registro da história oral, fato que resultou em uma descontinuidade da análise da
presença afro-argentina e da sua produção cultural. Apesar de reconhecer a vigorante
popularidade do ritmo até a primeira metade do século XIX, o autor não percebeu ou
não estava interessado em perceber os elementos substanciais e específicos que
diferenciavam o Candombe argentino do uruguaio.

Anos antes da publicação de Reid Andrews, Hugo Ratier publicava uma obra
específica considerável que trata da origem do Candombe na Argentina denominada
Candombes portenhos. O autor faz um panorama dos variados tipos de ritmo e
derivações do próprio Candombe ao longo dos séculos XVIII-XIX (RATIER, 1977). Nesse
panorama, Ratier estabelece as regiões das manifestações afrodiaspóricas mais
“puras” descrevendo suas características através da análise de fontes escritas e
iconográficas.

A partir daí, o autor conclui que a cultura bantu (p.38) se destaca dentre as outras
e que o Candombe portenho era praticado de modo distinto ao Candombe encontrado
em Montevidéu, dado importante que nesse sentido diverge das outras pesquisas.
Ainda sim, mesmo que sua pesquisa tenha sido relevante para compreender as
especificidades e diferenças do Candombe argentino, persistiu em sua obra a ideia de
que o ritmo foi abandonado no passado juntamente com a população afro-argentina.

Um dos primeiros pesquisadores que desmitifica a tese do desaparecimento foi o


antropólogo Alejandro Frigerio em seu trabalho O Candombe argentino: crônica de
uma morte anunciada, publicado em 1993. Apesar do título, a pesquisa tem enfoque
no Candombe que perdurou em bairros históricos da cidade de Buenos Aires, como
em San Telmo e Monserrat. Nesse sentido, sua análise é desenvolvida a partir do
Candombe portenho, ainda que haja outras presenças do ritmo localizadas no interior
do país, como veremos adiante.

49
A contribuição de cunho etnográfico de Alejandro Frigerio permitiu ampliar a
perspectiva sobre a presença afrodescendente na Argentina trazendo o Candombe
para o tempo presente. Além disso, a obra cria uma nova possibilidade de análise
factual da Diáspora Africana no país, permitindo a visibilidade da sua população negra
e resgatando a discussão de problemas sociais que supostamente estariam resignadas
no passado, como o racismo. Por último, e não menos importante, o autor colabora
para que os próprios afro-argentinos sejam autores da sua história, refutando
definitivamente a tese da sua invisibilidade e reivindicando a longa jornada pela
afirmação à sua presença social, cultural e política.

Nesse contexto, Frigerio identifica através do registro oral uma geração de afro-
argentinos que testemunhara e participara diretamente do Candombe portenho até a
década de 1970 durante o carnaval do famoso baile Shimmy Club na Casa Suiza. Um
deles é do afro-argentino Enrique que hoje possui aproximadamente 50 anos e
recorda das pessoas que frequentavam o baile e de quem era autorizado a dançar o
Candombe portenho:
Estou te falando dos anos 1973 e 74, por aí... Eu me lembro que ia lá
na Suiza... Como te conto, estavam as mesas, se sentavam os grandes
patriarcas e a Negra San Martin era uma matriarca...toda uma
tradição tinha essa negra... Eu me dava conta que era uma negra
muito querida e respeitada na comunidade. Depois estavam os
Nuñez, depois os Lamadrid, todos negros velhos reconhecidos pela
comunidade, que a comunidade conhece a história deles (...). E as
pessoas dançavam. Primeiro dançava o público, e depois saíam a
dançar os velhos negros, Candombe. E aí já não dançava branco, não
deixavam que nenhum branco dance (...); (Apud. FRIGERIO, 1993,
p.2)

Enrique relata que havia algumas famílias que frequentavam o tradicional baile
Shimmy Club, como os Lamadrid cujos descendentes representam uma parcela de
afro-argentinos que continuam praticando o Candombe em suas casas. No mesmo
trecho, Enrique menciona o fato de ter havido brancos e negros no baile, porém,
somente os afro-argentinos eram permitidos tocar e dançar o Candombe. E nos anos
posteriores o baile já não era mais frequente e a Casa Suiza termina sendo fechada.
Com efeito, o ritmo passa a persistir tão somente em reuniões privadas, como festas
de aniversários ou celebrações familiares (FRIGERIO; LAMBORGHINI, 2011, p.7).

50
Em outro trecho descritivo de Enrique registrado por Frigerio é possível observar
os conflitos existentes entre os uruguaios e os argentinos em relação à prática do
Candombe. Ao mesmo tempo o relato ajuda a compreender o modo pelo qual o ritmo
portenho inicia um processo de declínio, já que a sua prática era associada aos bailes
de carnaval Shimmy Club:

O Candombe argentino era dançado diferente do uruguaio... Eles não


tinham essa coisa que é... como olhando para longe, assim se dança
aqui na Argentina. Eles dançam de outra maneira (...) o estilo do
Candombe argentino, é... pelas figuras que fazem, a mim me dá a
impressão que é uma dança para os mais velhos.
Todavia me lembro quando era fechada a Casa Suiza (...) e saíam os
negros em um desfile por toda a avenida, todos tocando os tambores
e isso... me lembro disso...
Mas já no último tempo o Shimmy Club já não era o de antes... nos
últimos tempos já aos negros muitos não gostavam porque iam
muitos brancos, já iam muitos brancos... E aos negros não...
deixavam ir... (Apud. FRIGERIO, 1993, p.3)

Pelo cenário exposto por Enrique é possível cogitar que o Candombe portenho
deixou de ter certa popularidade muito devido à conjunção dos seguintes fatores:
(1) ser na época uma prática exclusiva de afro-argentinos, (2) aumento crescente de
brancos frequentando o Shimmy Club, (3) posterior encerramento do baile, (4) e a
privatização do ritmo por famílias tradicionais.

Por consequência, o Candombe portenho “desaparece” durante


aproximadamente duas décadas, até que em 1990 sua prática teve um novo começo
através de lideranças da organização África Vive e posteriormente da Associação
Misibamba. Mesmo assim, o propósito movido por essas lideranças para “reavivar” o
Candombe portenho foi e tem sido o de reunir famílias afro-argentinas em “contextos
comunitários”, todavia em ambiente restrito.

De acordo com Frigerio e Lamborghini, este fenômeno da privatização do ritmo


portenho contribuiu em certa medida para a expansão do Candombe uruguaio na
cidade que, já na segunda metade da década de 1990, deixava de ser uma
performance exclusiva de imigrantes uruguaios radicados em Buenos Aires para ser
praticado cada vez mais por jovens portenhos brancos de classe média. Destarte, o
Candombe praticado hoje em Buenos Aires passou a ser conhecido como o Candombe

51
uruguaio já que a presença do ritmo portenho e de seus produtores tem sido
permanentemente privada (FRIGERIO; LAMBORGHINI, 2011, p.7).

Se por um lado a análise de Alejandro Frigerio colabora para compreender as


continuidades e descontinuidades do Candombe portenho, por outro, o estudo do
antropólogo Norberto Pablo Cirio colabora para ampliar a pesquisa sobre o Candombe
argentino, deslocando a perspectiva da sua presença para as zonas rurais na região
noroeste do país.

A partir do seu artigo publicado em 2003, cujo título “A desaparição do Candombe


argentino: os mortos que vocês matam gozam de boa saúde”, o autor demonstra ter
realizado pesquisa em fontes primárias e campo etnográfico nas cidades de Corrientes,
Santa Fé, Saladas, Pago de los Deseos e Anguá. A partir desse mapeamento, Pablo
Cirio reforça ainda mais o discurso afirmativo da presença afro-argentina ao revelar
que existe um Candombe específico praticado através do culto a São Baltazar.

A figura de Baltazar surge junto com Melchior e Gaspar a partir da narrativa bíblica
encontrada excepcionalmente no evangelho de Mateus. Os personagens formulam o
mito dos “três reis magos” que visitam o local onde o menino Jesus supostamente
nasceu. Existem proposições de que eles eram na verdade sacerdotes ou meros
conselheiros representando seus Reinados. Todavia, a tradição cristã sedimenta a ideia
de que os três reis magos representam a Ásia, Europa e África, sendo Baltazar,
portanto, atribuído ao último continente. Por isso em muitas pinturas retratadas desde
a Idade Média o santo aparece como uma pessoa negra. Desde então o personagem é
celebrado pela população afrodiaspórica de formas específicas sem perder, no
entanto, sua qualidade sagrada.

No Chile, por exemplo, o santo é lembrado na festa conhecida como “Pascua de


los Negros” ou “Epifania Del Señor” (CORTÉS, 2009, p.81) ocorrida no dia 06 de janeiro
de cada ano, assim como no Brasil na festa de Folia de Reis. Cabe frisar ainda que a
data específica na verdade tem origem nas festas pagãs que celebravam a chegada do
solstício de verão no Oriente Médio. O costume permaneceu durante muito tempo até
a dissolução do Império Bizantino, quando a Igreja Católica aceita a festa dando seu
cunho religioso. Assim sendo, é nesse contexto que surge o mito dos três reis magos.

52
Na diáspora afro-argentina a figura de Baltazar surge no período colonial a partir
do mesmo fenômeno, ou seja, quando a igreja e o governo resolvem instituir a fé
católica evangelizando os negros escravizados através do culto ao santo. O resultado
foi o surgimento da primeira Confraria8 da região do Rio da Prata, denominada São
Baltazar e Animas. Essa Confraria permaneceu vigente entre 1772 a 1856 na igreja da
Piedade do Monte Calvário.

De acordo com Pablo Cirio, mesmo estando submetida ao julgo da instituição, a


população escravizada tinha certa “liberdade” para a prática de suas danças cuja
música era realizada com “tambores, palmas e gritos” (CIRIO, 2003, p.138-139).
Registros de fontes secundárias indicam que esses tambores eram na época
denominados de “tumba”, “quinto”, “tambor base” ou simplesmente “chamador”
(FERREIRA, 2002, p.43. apud: ANDREWS, 1989). Nessa trama histórica, o Candombe é
descrito pela primeira vez, tendo a religiosidade cristã e o culto a São Baltazar como
propósito.

Entre o século XVIII até o início do século XX este Candombe era dançado, pelo
menos para o dia do santo, nas regiões de Santa Fé, Corrientes e Resistência, na cidade
Chaco. Atualmente o ritmo-ritual continua sendo praticado na cidade de Corrientes,
mais precisamente no bairro Camba Cuá. Este bairro, por sinal, é até hoje considerado
como zona tradicionalmente habitada por afro-argentinos, ainda que há décadas as
antigas gerações tenham se dispersado. E, além de Corrientes, o Candombe hoje é
visto nas cidades de Saladas, Pago de los Deseos e Anguá.

Em todas essas regiões o ritmo é também praticado dentro de ambientes


privados, como capelas e altares construídos por famílias preocupadas em manter a
tradição do Candombe e a homenagem ao santo. A festividade é engrandecida com a
participação de convidados da organização familiar e, assim como em outros países,
realizada todos os anos no dia 06 de janeiro. Para seus praticantes, o Candombe é
considerado como “dança emblemática ao culto” já que os devotos afirmam que São
Baltazar é um “santo candombeiro aficionado ao ritmo, patrono do baile e da
diversão” (CIRIO, 2008, p. 87).

8
Confraria: associação que funciona com base em princípios religiosos, fundada por pessoas piedosas
que se comprometem a realizar conjuntamente práticas solidárias; irmandades que se reúnem para
promover o culto a um santo.

53
Nesse contexto religioso, o Candombe passa a ser executado por um conjunto de
violões, acordeão e um bombo. Sua coreografia é baseada em movimentos circulares
representando números, além de formas geométricas e das iniciais do próprio santo
Baltazar. Seus bailarinos entram e saem de um recinto em dupla ou em fila, podendo
mudar dependendo do ano, pois há total liberdade para criação de novas morfologias.
A performance dura em média 50 minutos e está sempre guiada por um bastonero
responsável por anunciar a troca de coreografias (CIRIO, 2003, p.144).

Com base em fontes históricas associadas ao tempo da Confraria e através de


materiais de campo etnográfico, o antropólogo Pablo Cirio conclui que este Candombe
é praticado mais ou menos de maneira contínua e que ao longo do período o ritmo
tem adquirido diversas características específicas, dinâmica própria de qualquer
manifestação afrodiaspórica. Além disso, o autor pontua que este Candombe hoje já
não é mais praticado unicamente por afro-argentinos, senão por um universo
heterogêneo de brancos, habitantes do campo ou da cidade, além de católicos e
africanistas que têm em comum a devoção a São Baltazar.

De um modo geral, sua pesquisa contribui para ressignificar o Candombe


argentino associado a uma tradição religiosa e cultural mantida por famílias em regiões
específicas do país. Em segundo plano, o estudo reconhece o sincretismo pelo qual o
ritmo-ritual sofreu abdicando de qualquer possibilidade interpretativa de um suposto
Candombe “puro” ou “primitivo”. Por fim, através da investigação sobre o santo
Baltazar, o autor situa a presença afro-argentina dentro de uma matriz afrodiaspórica
composta fortemente pela cultura bantu, presente em outros países do Cone Sul.

No entanto, Pablo Cirio, ao que parece, constata tão somente a manifestação de


Baltazar como uma construção cultural e religiosa do Catolicismo, utilizada no período
colonial para conciliar os possíveis conflitos gerados em relação à presença negra
escravizada. Por este ponto de vista, o autor deixa de esmiuçar o contexto africanista
pelo qual Baltazar foi celebrado e, por consequência, escolhe não comentar sobre a
sua origem africana enquanto permanência cultural e política da afirmação étnica afro-
argentina. Nesse sentido, é muito importante identificar o outro lado da história, ou
seja, o viés africanista que percebe Baltazar como um sacerdote, mensageiro ou, de
acordo com outras fontes de pesquisa, um Rei africano.

54
Essa investigação mais aprofundada sobre a origem de Baltazar, e o modo pelo
qual o santo foi ressignificado na afrodiáspora, tem sido possível realizar através da
historiografia brasileira. Não à toa, visto que no país a produção científica concernente
ao tema é maior em relação a seus países vizinhos. Como exemplo, existe o livro A vida
dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850) publicado pela pesquisadora Mary Karasch.

Nessa obra Karasch apresenta um quadro de


santos cultuados pela população escravizada, dentre
eles “São Benedito que reinava na igreja do Rosário,
e São Baltazar que acreditava ser não só o terceiro
rei mago, como também o rei de Congo e soberano
de Lampadosa” (KARASCH, 2000, p. 360). Neste
quadro de descrição dos santos no período
Adoração dos reis magos de Albrecht
analisado pela autora, vemos novamente o Rei mago
Dürer (1471-1528)
negro sendo descrito como “São Baltazar Rei do
Congo”, um dos três reis magos (KARASCH, 2000, p. 373).

Outra fonte fundamental que certifica a relação de Baltazar ao Rei Congo é o da


Marina de Mello e Souza, em seu livro Reis negros no Brasil escravista: história da festa
de coroação do Rei Congo. Para a historiadora, a festividade que representa a coroação
do Rei Congo, semelhante a que ocorre hoje em Minas Gerais, na verdade tinha como
pano de fundo o “mito de um herói fundador” da população escravizada. Em torno
dessa construção narrativa foram criadas categorias sociais e religiosas que identificam
o grupo escravizado ao seu lugar de origem.

Decorre daí o surgimento, por exemplo, da Nação Congo ou Nação Angola,


agrupamentos que existiram na Argentina e no Uruguai, e que hoje podem figurar
como “guardas” do Reinado, no caso específico de Minas Gerais. Nesse contexto
histórico, talvez o dado mais importante seja em relação à própria festa de coroação
do Rei Congo ou MakiKongo. De acordo com Mello e Souza, a coroação na verdade era
celebrada na festa de Folia de Reis, ou seja, no dia 06 de janeiro, e organizada
justamente pelos agrupamentos denominados Nações. Fato que reitera ainda mais a
conexão entre o Rei Congo com o santo Baltazar (SOUZA, 2002, p.49).

55
No caso do Candombe argentino é possível inferir essa mesma conexão entre os
dois personagens, considerando ainda a forte influência bantu no país. Além disso, é
imprescindível reconhecer que o sentido da sua prática cultural e religiosa permite que
as famílias também possam homenagear seus antepassados. E nesse contexto, só
existe um instrumento capaz de promover essa via comunicativa: o tambor.

Somado à figura de São Baltazar, o Candombe argentino possui o tambor como


veículo central da sua prática. Fato possível de se constatar no referido artigo de Pablo
Cirio, onde há trechos específicos que descrevem essa importância simbólica e sagrada
do tambor pelos seus praticantes. A partir do seu material etnográfico, observa-se que
o tambor é um instrumento estimado pelos devotos como “próprio do santo”, sendo
valorizado enquanto “veículo da sua voz e um objeto sonoro que potencializa a alegria
e simboliza a liberdade” (CIRIO, 2003, p. 149).

Por isso, nas cerimônias religiosas são também executados “pontos” (tipos de
toques) nos tambores para São Baltazar, considerado por seus praticantes um “espírito
falecido”. Além do culto ao santo, uma das famílias possui desde 1977 forte vinculação
com seu patriarca cujo templo é dedicado ao “Povo Negro”, justificando a devoção
com os seus antepassados (CIRIO, 2003, p.143).

Assim sendo o Candombe argentino é também fundamentado a partir da memória


ancestral, na qual o santo Baltazar figura como rei, espírito e patriarca da população
afrodescendente. E esse fundamento é possível através do tambor, que mais uma vez
extrapola sua condição material, pois consegue incorporar o espírito falecido de uma
estrutura familiar ou o Povo Negro de um modo geral.

Nesse caso, o tambor continua sendo um instrumento que potencializa a alegria e


institui a liberdade, fortalece as relações familiares e ao mesmo tempo representa a
rebeldia do Povo Negro. Este instrumento talvez seja o único que permaneceu
blindado às relações sincréticas entre duas cosmovisões e sistemas de organização
distintas constituídas em um mesmo universo afrodiaspórico, conforme percebemos
no infográfico a seguir:

56
Europa (Cristianismo) África (Banto)

Pai

São Baltazar Reis Congo

Confrari Nação
a
Candombe

bombo

Zona Rural e Urbana

Deste modo, a prática comunicativa do Candombe argentino, seja ela na sua


versão portenha ou sagrada, consegue oferecer-nos uma dimensão da presença
afrodiaspórica constituída por poucas famílias e lideranças. E essa presença representa
o outro lado da história, narrada pelos modos de viver e saber provindas de uma
ancestralidade negra e herdadas por aqueles que os praticam9.

No entanto, como vimos, essa manifestação ainda é limitada, organizada por


famílias tradicionalmente afro-argentinas em reuniões privadas ou celebrada em data
específica para São Baltazar. Este estado da arte impossibilita uma expansão do
Candombe argentino para além do seu âmbito privado e, por consequência, contribui
para que o imaginário da invisibilidade negra permaneça no país como discurso
hegemônico. Além disso, o projeto de reavivar o Candombe portenho é também um
processo de longo prazo, tendo em vista que, entre a década de 1970 a 1990, sua
presença foi praticamente nula.

9
Para uma leitura mais específica a respeito do Candombe argentino recomendo:
CIRIO, Norberto Pablo. La desaparición del Candombe Argentino: los muertos que vos matais gozan de
buena salud. Comunicação e Política, v.24, nº3, p.130-154. Montevidéu, 2003; ___. La música
afroargentina a través de la documentáción iconográfica. Universidade Nacional da Colômbia. Bogotá,
2007. FRIGERIO, Alejandro. El Candombe Argentino, Crónica de una muerte anunciada. Revista de
Investigações Folclóricas nº8: 50-60, Buenos Aires, 1993.___.Cultura negra en el Cono Sur:
representaciones en conflicto. Buenos Aires: Edições da Universidade Católica da Argentina, 2000.
LÓPEZ, Laura. Candombe y Negritud en Buenos Aires. Una aproximación a través del Folklore. Tese
(Licenciatura). Departamento de Antropologia, UBA, Buenos Aires, 2002.

57
E neste cenário outra presença afrodiaspórica acaba ganhando mais notoriedade,
principalmente em Buenos Aires. Trata-se do Candombe uruguaio. Em seu primeiro
momento o ritmo chega através das iniciativas de músicos e lideranças uruguaias
radicadas na metrópole do país, como o caso dos irmãos José e Angel Acosta. Em
seguida, O Candombe se populariza com a participação massiva de jovens brancos
pertencentes à classe média. Na verdade, o primeiro processo está diretamente
relacionado com o segundo, como veremos no Capítulo 3. O fato é que neste processo
dezenas de grupos surgem na cidade portenha cujas ruas permanecem cada vez mais
ocupadas por seus tambores.

Mas como o Candombe uruguaio logrou atravessar o Rio da Prata até Buenos
Aires, conquistando espaços e transgredindo fronteiras? Como sua presença adquiriu
potência afirmativa capaz de universalizar as diferenças étnico-raciais criando laços de
cooperação e igualdade entre seus praticantes?

Para compreender seu estado da arte devemos voltar novamente ao passado,


caminhando pelas ruas do tradicional bairro Palermo, onde vi pela primeira vez os
tambores emergindo, e onde aquele senhor com suas pernas arcadas ainda dança no
meio da roda.

Candombe Argentino. Ao centro, o etnomusicólogo Augusto


Perez Guarniei, a antropóloga Sheila Walker, os afro-
argentinos Carlos Lamdrid e Lucia Molina.
Fotografias de Norberto Pablo Cirio.

58
5. Do Candombe no Uruguai: do Conventillo para as ruas – chegada ao campo

Inaugurei meus passos naquelas ruas do bairro Palermo em uma tarde de quinta-
feira do mês de agosto. Havia chegado ao país de ônibus dois dias antes em uma noite
fria e chuvosa, transcorrendo estradas por horas, e quase me acostumando com a
ansiedade dos primeiros encontros. A travessia é sempre longa. E após me instalar
num albergue comecei a mapear a cidade de Montevidéu. Sabia que meu primeiro
destino estava bem perto dali, e que dali seria meu ponto de partida para o início da
jornada. Sabia que nesse destino encontraria informações importantes sobre o
Candombe e suas lideranças, sobre a história e presença afro-uruguaia.

Então, com o endereço em mãos, peguei um ônibus e quinze minutos depois


descia na Avenida 18 de Julio. Ali comecei a caminhar desafiando o frio perene
explorando o bairro Palermo cujas casas eternizavam um tempo antigo com suas
fundações e telhados. Suas ruas estranhavam minha presença, e eram tão vazias a
ponto de quase ouvir o pulsar dos meus passos ecoando em suas esquinas.
Perguntava-me por onde estariam os tambores, quando encontraria o Candombe... E
seguindo em frente, atravessei mais ou menos cinco quadras caminhando pela rua
Minas em direção ao Rio da Prata.

59
Caminhando e cantando passei a lembrar do tempo em que nestas mesmas ruas
milhares de escravos chegaram cuja maioria, como vimos, era composta pela matriz
étnica bantu. Mais precisamente, no dia 19 de novembro de 1728 em torno de trinta
famílias espanholas e portuguesas provenientes das Ilhas Canárias e Galícia chegavam
a Montevidéu junto com dezenas de africanos escravizados. Entre 1750 a 1810 mais
dezenas, centenas, milhares chegaram debilitados, enfermos, ao porto oficial do Vice
Reinado do Rio de Prata. Desde ali eram mantidos em quarentena por vários meses em
ambientes conhecidos como “casa de engorda” ou “casario de negros”. Em seguida,
eles eram distribuídos para Argentina, Paraguai, Bolívia e até para o sul do Brasil,
carregando como único bem material seu próprio corpo. Em 1778, estima-se que 20%
da população eram de africanos bantus somente em Montevidéu. Dados recentes da
demografia da cidade demonstram que a presença negra é composta de 8% a 10%
(BUCHELI; CABELA, 2007). Meu destino era ir de encontro a esta parcela da sociedade,
fato que ocorreria muito em breve.

A tarde era quase noite quando avistei um casebre antigo datado do século XIX, de
grande valor arquitetônico. O lugar estava reformado, revigorado, com suas paredes
de um branco impecável que pareciam protegidas pelo tempo. Ali na esquina da rua
Isla Flores com Minas, n° 1645, encontrei a Casa de Cultura Afro-uruguaia.

5.1 Da Casa de Cultura Afro-uruguaia

Por um momento, parei e olhei em volta, não havia ninguém. Estava sozinho. E
naquele instante pressenti o valor histórico daquelas ruas, sentindo o som dos
tambores ecoarem em meu peito. Sabia que era questão de tempo. Então, voltei em
presença e respirei fundo, pois era o momento da minha chegada. Toquei a campainha
da Casa, aquele minuto de espera parecia uma eternidade. Ninguém atendia ao meu
chamado. O lugar parecia estar vazio tal qual aquela rua. Pensei em partir e voltar
outra hora, outro dia... E quase a tristeza tomava conta de toda ansiedade trazida por
horas e horas de viagem, até chegar neste momento. Mas resolvi tentar de novo e
dessa vez uma conversa surgiu vinda de dentro da Casa. Foi quando a porta grande de
madeira se abriu.

60
Era Angela Oliveira Ramirez, estudante universitária, bailarina e secretária da Casa.
Sua presença em linguagem corporal enunciava leveza e agilidade, como se estivesse
permanentemente dançando em um palco ou em roda de Capoeira. Ela me convida
para entrar acenando com a cabeça acompanhada de um sorriso jovial, e logo me
apresento revelando o motivo da minha visita. Convidativa e atenciosa, Angela me
guiava pelos cômodos daquele centro cultural.

Por dentro o aspecto de novo é ainda mais


evidente com suas paredes brancas contrastadas com
cores vivas e fortes. A partir da entrada, dobro à
esquerda entrando num salão com obras de pinturas
em exposição permanente. Naqueles quadros estão
retratados personagens da ancestralidade negra
Reprodução do autor praticando o ritmo Candombe. Havia meninos e
tambores, senhores de chapéus e mulheres rodopiando com suas saias e balangandãs.
As obras de arte preenchiam o salão de cores, movimento e energia retratando a
memória cultural afro-uruguaia a partir do Candombe.

Antes de sair do salão percebo uma pequena pintura em colagem de uma senhora
cujo semblante compenetrado se debruçava à mesa folheando um livro. Aquele
pequeno retrato quase escondido poderia passar despercebido diante das outras
pinturas grandes e coloridas. Logo perguntei para Angela quem era aquela mulher.

Seu nome é Virginia Brindis de Salas (1908-1958), poetiza e ativista afro-uruguaia,


primeira mulher negra a publicar um livro em toda América Latina. Sua presença ali
representava a produção literária e intelectual afrodescendente cuja trajetória é hoje
exemplo da história e militância afro-uruguaia. Uma grande referência em meio a
outros grandes personagens.

No primeiro andar da Casa, além deste salão de artes, há outra sala ainda maior
logo à direita da entrada. Neste espaço é realizado aulas de dança e música, incluindo
o próprio Candombe. Seu assoalho de madeira rústica, paredes brancas e duas grandes
janelas com detalhes em vermelho possibilitavam admirar o constante vazio das ruas.
Subo as escadas e chego ao segundo andar. À minha direita existe outro salão com
grande espelho colado na parede utilizado por alunos de outras atividades ali

61
realizadas, como aulas de capoeira, expressão corporal, tango e milonga. Adjacente a
esta sala, encontramos um pequeno estúdio utilizado para gravações e oficinas de
percussão. Espaço este que posteriormente seria inaugurado em uma noite célebre.
Uma ocasião em que aproveitei para conhecer muitas das lideranças afro-uruguaias
presentes.

Do lado extremo oposto havia uma pequena biblioteca que em breve estaria
disponível para pesquisadores interessados no tema da história e cultura afro-
uruguaia. A biblioteca está aglutinada noutro grande salão onde, fixados em suas
paredes, havia retratos de homens e mulheres afro-uruguaios sentados à frente de
suas casas, contemplando um horizonte abstrato como se estivessem relembrando o
passado e sua ancestralidade. Aquelas imagens possuíam uma energia serena e
afirmativa, transmitindo a sensação de estarmos em uma espécie de templo da
vanguarda afro-uruguaia, guardado e protegido por seus ancestrais. Aquele salão era
destinado para reuniões, palestras e oficinas de grande procura, ambiente onde mais
tarde registrei momentos cruciais sobre a história e cultura do Candombe.

Terminado o giro pela Casa Cultural, Angela passou a me explicar que a instituição
é juridicamente uma associação civil sem fins lucrativos, financiada por meio de
algumas parcerias, como a prefeitura da cidade de Montevidéu, o governo da Espanha
e do Japão. Depois de três anos de atividades, a Casa foi inaugurada formalmente no
dia 3 de dezembro de 2011, data em que se comemora o Dia Nacional do Candombe,
da Cultura Afro-uruguaia e da Equidade Racial. A partir de então, o lugar passou a ser
um dos principais centros de referência institucionais de produção da cultura afro-
uruguaia. De acordo com o informativo que Angela me presenteou, a Casa de Cultura
Afro-uruguaia oferece, por exemplo, amostras de artes plásticas, fotografias,
espetáculos de música, dança, apresentação de livros, feiras de exposição de
artesanato e obras vinculadas a cultura afro-uruguaia.

Além disso, o estabelecimento realiza atividades em articulação com outras


instituições nacionais e internacionais que promovem “respeito à diversidade,
sensibilidade e valores de integração”. Seguem alguns dos outros objetivos delimitados
pela Casa de Cultura com base em seu informativo:

62
 Fomentar a recuperação e cooperação das organizações afrodescendentes e a
articulação de ações com pessoas, organizações sociais e instituições que
perseguem objetivos de equidade e compartilham sua sensibilidade social.

 Constituir um espaço de encontro, referência e pertencente à comunidade


afro-uruguaia, uma instituição que trabalha com a sociedade em conjunto, para
o desenvolvimento de seus princípios e objetivos.

 Promover o conhecimento, valorização e difusão do aporte dos


afrodescendentes, a criação e recreação de suas diversas manifestações
artísticas, culturais e sociais assim como a recopilação de seu acervo histórico
como sustento fundamental do fortalecimento de sua identidade individual e
coletiva como comunidade.

 Impulsionar a equidade racial e valores democráticos, a superação do racismo e


toda discriminação, a integração e um melhor relacionamento entre as pessoas
baseado no respeito aos direitos humanos, apostando na diversidade e na
solidariedade.

Dali em diante, constatei que a Casa seria muito importante para conhecer parte
das lideranças, artistas e professores engajados na promoção da cultura afro-uruguaia,
principalmente com relação ao Candombe. Além disso, a própria Angela poderia me
introduzir aos possíveis eventos da instituição que ocorreriam nas próximas semanas.
E com todas as minhas suposições naquele instante, logo descobri que não esperaria
muito tempo.

Sabendo dos meus objetivos, Angela me convidava para duas inaugurações que
ocorreram justamente no dia seguinte da minha primeira visita à instituição. A
primeira delas tratava da inauguração do estúdio de música, evento que contou com a
participação do presidente da Casa, Edgardo Ortuño, além de outras lideranças afro-
uruguaias e de representantes da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para
o Desenvolvimento (AECID) da cidade de Montevidéu.

Logo em seguida, aproveitando a presença de autoridades diplomáticas,


funcionários e convidados, a Coordenação da Casa decidira inaugurar a primeira aula
da “Oficina de Candombe” de modo que pudesse melhor repercutir a ideia do projeto

63
cultural. E com isso, Angela me presenteava com a mais rica oportunidade de trabalho
etnográfico. Começar com a benção dos ancestrais. Sendo assim, sem resistir,
comemorei internamente como uma criança marcando o seu primeiro gol.

Voltava à Casa de Cultura no dia seguinte com mais ânimo e expectativa


desejando grandes revelações e encontros. Aquela mesma esquina que encontrei no
primeiro dia vazia de gente já estava repleta de pessoas esperando adentrar no
estabelecimento e ao mesmo tempo fazendo da espera um reencontro de velhas
amizades. Naquele instante constatei a magnitude da solenidade, pois o lugar estava
cheio de familiares, amigos, jornalistas e fotógrafos.

Com certa discrição consegui entrar passando pelo grupo aglomerado na entrada
e prontamente notei que no salão à direita já havia começado o cerimonial de
inauguração do estúdio de música. Sentados à mesa estavam dois representantes da
AECID bem como Edgardo Ortuño, responsável por encerrar a roda de discursos.
Contemplei com entusiasmo seu pronunciamento e dentro do contexto sobre o
Candombe ressaltou a importância da Casa como um dos centros de expansão
permanente da cultura e da política afirmativa afro-uruguaia:

“A Casa é reflexo da nossa militância pela população afro-


uruguaia para uma política mais democrática de respeito e
reconhecimento. Devemos reocupar o território para superar a
história, recriar novos valores, sobretudo sociais. (...) Creio que
vivemos tempos modernos, deve haver espaço para todos, para
o toque, mas, sobretudo para o negro como cidadão uruguaio”.
(Ortuño, ago.2014).

Com o fim do ritual protocolar de agradecimento, todos subiram para o segundo


andar onde uma fita listrada de azul e branco esperava para ser cortada. Fotos,
abraços e tapas nas costas regiam o momento formal rompido apenas pela brincadeira
das crianças no grande salão. Angela surgia em meio à multidão me cumprimentando
e aproveitando para avisar que a aula inaugural da Oficina de Candombe começaria
em breve.

64
5.2 Do grupo Asesor

Aquela Oficina de Candombe prestes a começar seria o início do projeto cultural


idealizado pelo Grupo Asesor cujo objetivo tem sido o de promover o reconhecimento
da tradição do ritmo como patrimônio cultural dos cidadãos uruguaios, garantindo a
sua transmissão para as próximas gerações. Para tal finalidade, o Grupo Asesor deveria
divulgar a história do Candombe, o modo como surgiu, suas transformações e
dinâmica ao longo do tempo, pontuando suas características específicas associadas aos
bairros tradicionais da cidade de Montevidéu onde a população afro-uruguaia cresceu:
Palermo, Cordón e Bairro Sul.

A finalidade é de transmitir o conhecimento por meio de palestras e oficinas


práticas de toque dos tambores, prioritariamente em escolas do interior do país,
atingindo crianças, jovens, docentes e, de um modo geral todo público interessado na
troca de experiências. Foi nesse contexto que em 2010 o Grupo Asesor foi criado,
legitimado através de Resolução Ministerial 1235/10 sob a chancela do Ministério de
Educação e Cultura do Uruguai. A realização das oficinas contou ainda com o
financiamento da UNESCO através do Projeto “Documentação, promoção e difusão
das chamadas tradicionais do Candombe, expressões de identidade dos Bairros Sul,
Cordón e Palermo da cidade de Montevidéu”.

De acordo com estas linhas de ação, a proposta do Grupo tem sido a de fomentar
um inventário do Candombe e das suas características específicas geradas em cada
cidade onde o ritmo é praticado. A partir daí, seria possível elaborar políticas públicas
e ações de conservação de todos os elementos do Candombe, considerado patrimônio
imaterial pelo Governo. Assim sendo, a responsabilidade do Grupo Asesor é de suma
importância já que sua contribuição permite constituir um verdadeiro manifesto da
prática cultural e política do Candombe nacional.

Uma vez definido os objetivos para o Projeto Cultural, a seguinte etapa tratou de
convocar uma seleção de exímios especialistas do Candombe tradicional, compostos
pela terceira e quarta geração de músicos e lideranças afro-uruguaias. Aquiles Pintos,
Cesar Alfonso Pintos, Juan Manuel Gularte, Perico Gularte, Willy Mariano Barroso,
Waldemar “Cachila” Silva, Benjamin Arrascaeta e, finalmente, Isabel “Chabela”
Ramirez constituem a equipe oficial do Grupo Asesor.

65
Além destes, outros membros compõem o Grupo podendo substituir
eventualmente outros escalados para as oficinas. A maioria dos integrantes possui em
média 70 anos, geração que testemunhara diretamente, entre perdas e ganhos, as
cruciais transformações sofridas pelo Candombe no século passado. Portanto, este
seleto Grupo é considerado por todos como o detentor da autoridade em relação ao
tema e responsável por transmitir todo seu conhecimento perante a sociedade.

A próxima etapa do Grupo Asesor tem sido o da própria implementação do


Projeto. A partir daí, seus integrantes passam a percorrer cidades do interior do país
como San José, Rivera, Artigas, Tacuarembó, Salto, Canelones, Cerro de los Largos,
Durazno e Flores.

A Oficina de Candombe promovida na Casa Cultural Afro-uruguaia foi programada


para ser realizada uma vez por semana, a cada quinta-feira e distribuída em quatro
módulos, durando, portanto, um mês de curso. O primeiro deles tratou de
contextualizar o ritmo na sua história, lembrando suas conquistas em espaços de
âmbito social e cultural, além da importância da participação da mulher no Candombe.
Este módulo introdutório ficou encarregado por Chabela Ramirez, cantora, ativista,
feminista e integrante do tradicional Grupo Valores de Ansina do bairro Palermo.

Por sua vez, a história deste bairro e a estrutura do seu toque foram componentes
do segundo módulo, ministrado por Willy Mariano e Aníbal Pintos. No terceiro módulo
os irmãos Aquiles e Alfonso Pintos foram responsáveis por transmitir a história e o
toque do bairro Cordón. E por último, Juan Manuel Gularte encerrava a maratona de
aulas com a história do Bairro Sul e do seu toque conhecido como Cuareim.

Cada módulo foi planejado para ter em média três horas de duração,
contemplando aspectos teóricos e práticos, reservando no final um tempo para o
intercâmbio de experiências com o público. Este arranjo desenvolvido pelo Grupo
Asesor permite que seus alunos compreendam as diferenças dos toques tradicionais
do Candombe correlacionados historicamente com seus bairros. Assim sendo, a turma
composta por em média dez alunos teve a oportunidade de vivenciar os distintos
modos de tocar o Candombe uruguaio.

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Durante a oficina que participei, os componentes do Grupo tiveram o
compromisso de transmitir oralmente o conhecimento e a prática dos ritmos
tradicionais do Candombe, bem como sua permanência a partir da memória e dos
modos de ser afro-uruguaio. Em uma das palestras realizadas na Casa Cultural Afro-
uruguaia, Chabela Ramirez reforça a importância do Projeto em todo país:

“Este intercâmbio é importante para conhecer os grupos locais


ao longo do território nacional. Ter uma dimensão de como se
desenvolve este Candombe, transmitir nossa estrutura de
ritmo e aprender com estes grupos.” (Ramirez, ago.2014)

A história do Candombe e sua “estrutura de ritmo” aludida por Chabela eram


temáticas que mais ansiava em aprender naquela aula inaugural da Oficina. Porém, o
ambiente disperso ainda provocado pela inauguração do estúdio dificultava o início da
primeira palestra, de modo que foi necessária a iniciativa da organização da Casa para
concentrar os participantes no grande salão do segundo andar. E em meio àquele
turbilhão de aplausos e flashes, percebo a presença de um senhor cuja linguagem
corporal emanava autoridade e sabedoria.

Ele aparentava ter aproximadamente 75 anos de idade denunciados pelo seu


cabelo branco e por suas mãos calejadas. Atrás dele surgia outro senhor cujo aspecto
físico era bem semelhante ao primeiro, e por isso acabei presumindo que poderiam ser
irmãos. Por último surgia um senhor aparentemente mais novo que os demais, pois
além de possuir cabelo preto tinha uma disposição corporal mais atlética.

Diante daquele momento observava as pessoas que não paravam de


cumprimentar os três senhores, alguns com certa euforia e outros com a devida
formalidade regida talvez pela conveniência do momento. Minutos depois os três
logravam sentar em volta da mesa preparada para acomodá-los. Eram Aquiles Pintos,
Cesar Alfonso Pintos e Juan Manuel Gularte que, juntamente com Will Mariano
Barroso, Chabela Ramirez, Aníbal e Polo Pintos estiveram comprometidos em ministrar
toda Oficina de Candombe ao longo das próximas semanas na Casa. Respiro fundo
trazendo toda minha consciência presente diante daquele palco. E a impressão que
tive foi de estar assistindo algum ritual de chefes griôs de tribos africanas.

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Definitivamente, aquele grande salão, o mesmo dos grandes retratos, templo da
vanguarda protegido pelos ancestrais, era agora preenchido por uma energia emanada
pelos três griôs. Com isso, sob o efeito da mesma energia, todos ali presentes
decidiram escolher seus lugares, em silêncio e respeito, pois sabiam que era o começo
de outro caminho aberto pelo dom da oralidade, inscrito nas emoções e na memória
daqueles mestres. Então, todos ali presentes sentiram-se preparados para ouvir o
outro lado da história. E meu único objetivo era de imersão completa em plena
consciência na contra narrativa, ouvir o outro lado da história contada pelos afro-
uruguaios sobre a sua presença no mundo, sobre seus tambores de Candombe. E com
todos os meus sentidos investidos em cada instante, voltados e sintonizados a cada
sopro, voz e toque dos palestrantes, comecei a ouvir.

5.3 Breve história do Candombe uruguaio

O Candombe aparece pela primeira por intermédio do escritor Don Isidoro de


María em sua crônica titulada “O recinto e os candombes” (1898-1829). Anos depois
surge um verso de 1834 escrito pelo poeta Acuña Figueroa onde dizia “companheiro
de Candombe”. O termo nesse contexto é genérico e designa todos os bailes da
população afrodescendente, sinônimo de “dança” ou evocação do “ritual da dança”
(CARÁMBULA, 2005, p.13). Após a abolição da escravatura, decretada no dia 12 de
dezembro de 1842 pelo presidente da República Joaquín Suárez, a população afro-
uruguaia passa a se organizar segundo sua procedência étnica e linguística.

A partir deste processo foram constituídas as


primeiras Confrarias ou Irmandades onde em
suas “salas” ocorriam danças e seus rituais
performáticos. Sem esquecer as suas raízes
africanas, os grupos de familiares e amigos que
eventualmente se reuniam a dançar nas salas das
Candombe de Pedro Figari (1861-1938) Confrarias passaram a se denominar como grupos
ou “Nações”. Foi nesse contexto, portanto, que nasceram as Nações Congo, Angola,
Benguela, Moçambique, criadas por afro-uruguaios que celebravam a memória dos
seus ancestrais.

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Em cada sala de cada Confraria, havia uma Nação que fazia sua festa particular
com seus distintos tambores, na época ainda designados como tambos tal qual no
Brasil (p.42) e na Argentina (p.53). Em datas de celebração da cristandade, como
Corpus Christi e Folia de Reis, as salas representavam o domicílio do Rei da Nação. Se a
sala pertencia à “Nação Congo”, as pessoas encontrariam o Rei Congo e todo seu
séquito.

Segundo Carámbula, o Candombe passa a emergir como ritual de uma espécie de


pantomima da coroação dos reis do antigo Império Congo-Angola, ainda que tivesse
elementos próprios da realeza europeia. De igual modo, no religioso se advertem
elementos do animismo da raiz bantu sincretizados com outros cristãos, como seria a
incorporação ao panteão negro de São Benedito e São Baltazar como santos tutelares
de ditos povos (CARÁMBULA, 2005, p.8). Principalmente na festa de Folia de Reis
celebrada no dia 06 de janeiro, quando São Baltazar era homenageado e personificado
pelo Rei da Nação Congo, Angola ou Moçambique. O traje do rei possuía uma coroa
feita de estanho, capa vermelha, sapatos de fivela, no peito algumas medalhas e sua
constelação de condecorações. A rainha também presente nas festividades usava um
vestido com armação, coroa de papel pintado além de anéis e pedrarias douradas
(CARÁMBULA, 2005, p.41).

Ainda em sua narrativa, Carámbula descreve como procediam as festas em


homenagem a São Baltazar. Os afro-uruguaios usavam toda a pompa possível, fato que
demonstra a importância que o santo tinha dentro da cosmogonia africana. As salas
eram bem organizadas, regidas por normativas. Contavam com o Rei, Rainha, príncipe
e outras autoridades. As reuniões eram celebradas periodicamente nas salas e fora
delas, percorrendo como um Cortejo chegando até nos limites da cidade. Todos
acompanhavam os tambores e de mais instrumentos com palmas e cantos, “dançavam
tangos, chinchiria, chindá, tam tam, até o pôr do sol, no meio das oscilações que
acentuavam ainda mais, a agitação própria da festa (CARÁMBULA, 2005, p.8). Os “tios”
usavam paletós, sobretudo, gravatas, chapéus, e as negras usavam seus vestidos, fitas,
cintos, colares e sombrinhas de cores variadas. Cada sala tinha seu trono com dossel e
cortinas, e o altar de São Baltazar e a porta o pires que recebia as oferendas dos
assistentes, baixo a custodia do “capitão, guarda da porta e da coleta”.

69
Nos tronos apareciam sentados com grave atitude os Reis, com suas insígnias nos
ombros, os paletós trançados, calças brancas com uma faixa negra. E ao seu lado as
Rainhas, que agregava a seu status, o prestígio de ser a melhor pasteleira de
Montevidéu, rodeada por princesas e camareiras que atendiam o cerimonial
(CARÁMBULA, 2005, p.11). Terminada a cerimônia, se dirigiam em corporação e por
Nações à residência das autoridades. Logo depois da abolição em 1842, o próprio
Presidente da República era quem os recebia rodeado de seus recepcionistas. As
Nações também tinham o costume de visitar os ministros, o vigário e os chefes
militares. Ratificavam diante das autoridades sua fidelidade e respeito e recebiam, em
troca, doações em dinheiro que resolveriam os gastos dos banquetes que tinham
produzido em cada sede, onde se apresentava a habilidade das “tias” e “morenas”.

Desde 1880 ainda havia várias danças e toques herdados de determinadas nações
africanas. Várias salas de Nações, integradas pelos descendentes daqueles africanos,
conseguiram sobreviver até o início do século XX com práticas rituais tradicionais. Em
cada sala se cultuava as entidades religiosas que haviam conseguido manter vivas
apesar de tanta repressão. Em alguns casos reproduziram imagens e em outras tendo
a São Baltazar como patrono.

Antes disso, ainda em 1867, aparece o primeiro grupo ou comparsa denominada


“A Raça Africana”. Desta agrupação formou-se outras, sendo uma das mais famosas
conhecida como “Negros Lubolos”, fundada em 1874. Posteriormente surge o grupo
“A Comparsa”, também conhecida como “Comparsa Negra” ou “Lubola”, composto
por numerosos afro-uruguaios que ainda permaneciam com suas consagrações
católicas.

A origem do termo lubolo surgiu no contexto da criação do grupo. Não havia


muitos integrantes negros para completar uma comparsa, daí vários brancos
começaram a tingir sua cara de carvão para representar os afrodescendentes e
praticar o Candombe. Com isso nasce a “Nação Lubolo”. O termo ainda designa uma
aldeia e zona do Congo, hoje limitada pela região de Cabinda de onde os congoleses
escravizados vieram e permaneceram no Uruguai. Portanto, em homenagem a esta
etnia começaram a chamar lubolos a todos os brancos com cara pintada de preto.

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A história do Candombe nasce a partir desse contexto em que grupos étnicos,
herdeiros da cultura bantu, constituíram Nações para representar sua própria
ancestralidade, costumes e festejos. Danças ritualizadas que sofreram sincretismo do
Estado e da religião católica como qualquer manifestação da presença afrodiaspórica.
Mesmo assim, permaneceram a partir da sua própria dinâmica, em seu tempo e
espaço. Claro que inevitavelmente o mesmo processo adquiriu semelhanças
concernentes a certos elementos do Candombe argentino e brasileiro. Não à toa
percebemos fatores estruturantes que deram origem ou mantiveram o ritmo, como as
próprias Nações, ainda que cada uma resguardasse suas especificidades.

De acordo com o outro lado da história, antes que a sacralidade e as


materialidades estéticas se transformassem para o modelo atual do Candombe,
ocorreriam novas e distintas dinâmicas que farão do ritmo uma potência discursiva,
culminando em seu reconhecimento etnopolítico e, por fim, em patrimônio imaterial
da Humanidade.

A esta altura da primeira palestra, todos certamente estavam mais ansiosos para
compreender como o Candombe resultou na sua estética atual, com seus tambores e
personagens. Como foi perdendo processualmente sua relação direta com São Baltazar
e certos aspectos da sacralidade afrodiaspórica mantida pelas Nações. Deveras, já não
há mais Nações. Então o mestre Aquiles Pintos pediu que redobrássemos a atenção
para a próxima apresentação, crucial para entender o nascimento, ou renascimento do
Candombe.

As luzes se apagaram e um retroprojetor foi ligado. Parecia que seríamos


remetidos a uma nova temporalidade no tempo em que o Candombe já era conhecido
como candombe. Foi daí que apresentaram o documentário denominado “Llamada
Madre” (Chamada Mãe), referência audiovisual utilizada frequentemente para
apresentar o panorama atual do ritmo uruguaio. O documentário foi uma realização
conjunta entre o Grupo Asesor, o Ministério de Educação e Cultura em parceria com a
Comissão de Patrimônio Imaterial do Uruguai. E diante daquelas primeiras cenas
exibidas em preto e branco, fomos remetidos a um passado no qual uma geração de
afro-uruguaios sobreviveu às intempéries do cotidiano, desafios impostos e
conquistados dia a dia.

71
Foi quando compreendi de que modo o Candombe uruguaio perdurou através do
tempo e dos territórios, apesar das duras situações pelas quais os afro-uruguaios
também foram expostos, como enfermidades, pobreza e, sobretudo, conflitos com o
Estado, pois o ritmo chegou a ser proibido nas ruas dependendo do governo. E com o
fim das Confrarias, havia somente um lugar onde o Candombe tivera liberdade para
continuar seu percurso. Um lugar chamado Conventillo.

5.4 Da origem dos conventillos: por uma ética do Candombe

Na tradução para o português, ”conventillo” significa cortiço ou estalagem cujos


cômodos eram alugados por famílias sem muitos recursos financeiros, compartilhando
em regra as mesmas instalações sanitárias e outros espaços utilizados para lavar roupa
e utensílios domésticos. Em Montevidéu, estes conventillos eram compostos por
antigos casarões construídos no século XIX, também adaptados para moradia coletiva
e barata, situados nos bairros da região central da cidade. Decorre daí a estrutura
básica do Candombe, ou a estrutura do ritmo como aludiu Chabela, pois a sua
presença foi concebida em antigos conventillos como os de Ansina, Cierro Norte,
MedioMundo, Cuareim e Gaboto, localizados, por sua vez, nos bairros Palermo, Cordón
e Bairro Sul.

Conventillo MedioMundo. Ano 1954. (Foto:


Ferruccio Musitelli). Fonte: Centro de Pátio do Conventillo Gaboto. Ao centro, Aquiles Pintos com
Fotografia de Montevidéu. seu tambor. 21 de maio de 1966. (Foto: Enrique Pérez
Fernández). Fonte: Centro de Fotografia de Montevidéu.

72
O Candombe enquanto prática comunicativa, lúdica e performática emerge a
partir desse lugar coletivo onde naturalmente os saberes, experiências e emoções
foram compartilhados processualmente por seus moradores. Nesse sentido, o
Conventillo pode ser um “lugar estratégico” onde inúmeras famílias afro-uruguaias
desenvolveram com o tempo códigos de conduta e convivência exercidos e
compreendidos somente pelos que o frequentaram.

Da mesma forma, o filósofo Michel Foucault analisa o conceito de lugar como um


“modelo de organização” em que dentro de uma cultura determinada se “organiza um
saber, se institucionaliza, libera-se uma linguagem que lhe é próprio e eventualmente
alcança uma forma científica” (FOUCAULT, 1965).

Marc Augé também destaca o fato de que “o lugar de nascimento é constitutivo


de uma linguagem e identidade individual (...)” (AUGÉ, 1994, p. 52). Nesta passagem, o
autor fala do lugar antropológico como identitário, relacional e histórico, por marcar o
local do nascimento, pelas relações de coexistência que ele compreende e, finalmente,
por situar a história daqueles que nele habitam, conjugando identidade e relação.

Talvez essa história e identidade estivessem em algum lugar na memória de


Aquiles Pintos, resgatados no instante em que ele se levanta calmamente da sua
cadeira e olha para cima após a exibição do documentário. Talvez ele estivesse se
lembrando daquele tempo das brincadeiras com tambores improvisados no pátio do
conventillo onde morava, como percebemos anteriormente na fotografia. Então,
percebo o mestre encher seus pulmões de ar e voltar do passado emitindo com sua
voz empostada a seguinte sentença:

“Nossa presença começa no Conventillo, onde aprendemos a


ser nós mesmos, nas casas com nossos pais e avós” (Pintos,
ago.2014)

Um discurso irradiado naquele grande salão e que no primeiro momento


interpretava na sua forma literal, ou seja, Aquiles nascendo e crescendo boa parte da
sua vida em um Conventillo, junto com seus pais e avós. Uma vida de juventude que
foi, assim como muitas outras, feita de tristezas e alegrias. No entanto, minutos depois
da nossa primeira aula, tive a chance de interpelar o mestre griô a respeito daquele

73
enunciado e foi então que compreendi profundamente o seu significado. Aquiles dizia
que naquele tempo os afro-uruguaios eram proibidos de muitas coisas, inclusive de
tocar Candombe. Além disso, a realidade fora dos conventillos era de muita pobreza e
trabalho e que, com certa frequência, eram “discriminados e tratados com violência
pelos brancos e pela polícia”.

Nesse sentido, quando o mestre enuncia sobre a “presença” no Conventillo, ele


nos oferece a chance de compreendermos que aquele lugar estratégico era ocupado e
transformado pelos afro-uruguaios segundo seu princípio ético particular, onde a
liberdade era efetivamente estabelecida. Por isso, aprender a “ser nós mesmos” é ter
consciência de que sua presença é livre das determinações institucionais que os
apartavam socialmente fora do Conventillo. Nesse instante, Juan Manuel Gularte corta
elegantemente a narrativa de Aquiles fortalecendo à sua fala ao compartilhar conosco
as mesmas experiências que sofreu no Conventillo MedioMundo:

“Se dizíamos ao outro que vivíamos em MedioMundo éramos


discriminados. Por outro lado, essa discriminação fortaleceu
nossa relação de dentro do Conventillo, porque todos
passavam por isso”. (Gularte, Ago.2014)

E nesse contexto, portanto, temos possibilidades de identificar dois universos. O


primeiro deles uma invenção, fruto da herança colonial onde o Governo e a população
dissimulavam e toleravam o convívio com a população afro-uruguaia. O segundo
universo composto por um lugar onde havia relações pautadas no afeto, empatia,
cooperação e solidariedade, valores fundamentados através das relações familiares,
das “casas dos nossos pais e avós”. Sem desconsiderar, ainda, o fato de que a
discriminação determinada pela sociedade de lá, por ironia e sapiência, fortalece as
outras relações constituídas no lugar coletivo, ou no microssistema social Conventillo.

Destarte, além da identidade desenvolvida pela história e lugar de nascimento, a


população afro-uruguaia também elabora um modelo de presença com o qual é
desenvolvido seu princípio ético pautado nas relações de afetivas entre os moradores
e eventuais frequentadores do Conventillo.

74
Nesse sentido, o lugar coletivo institui seu lugar estratégico onde as identidades
convivem compartilhando o mesmo universo, a mesma realidade. De certo modo,
essas identidades ainda não eram utilizadas como discurso afirmativo frente ao
Estado, frente ao universo de fora, pois suas diferenças não criavam conflitos no
Conventillo. Tal contenda afirmativa e resistente somente ocorrerá quando o
Candombe sair do seu lugar estratégico conquistando as ruas. Nesse movimento, o
universo de dentro do lugar se expande e se desenvolve a partir de novos territórios
constituídos pelo universo de fora, onde os espaços são delimitados e regidos por
outra ética. Mas antes o ritmo ainda era concebido em seu ninho, em seu ambiente
fechado, horizontal e espontâneo, assim como era nas salas das antigas Nações.

E deveras, o Conventillo proporcionara o desenvolvimento da presença afro-


uruguaia manifestada de diversas formas, seja pelas relações de parentesco e amizade,
seja pelas negociações das diferenças de valores entre seus moradores. O fato é que o
lugar foi capaz de gerar um microssistema societário, onde as relações eram mais
igualitárias, independente das raças e crenças, como demonstra Fernando Lobo Nuñez,
antigo morador do Conventillo MedioMundo:

“Se há algo em que o conventillo era exemplo é que ali não


havia religião, não havia raças, não havia nada, todo mundo
vivia como queria e era respeitado da mesma maneira”.
(cit.ALFARO; COZZO, 2008, p. 43)

Fernando, Aquiles, e outros da sua geração, gozaram desse respeito e liberdade a


ponto de instituir novos modos de fazer e de se expressar dentro do microssistema
Conventillo. Garfinkel observa que o saber do “sentido comum” dos fatos da vida
social para os membros daquela sociedade é um conhecimento institucionalizado em
seu mundo real (cit. LUPICIDIO, p.84: GARFINKEL, 1967:53). E dentre todos os
conhecimentos instituídos, o Candombe passou a ser de certo modo o maior resultado
da relação entre o fazer e se expressar. Jovens e crianças, que também desejavam
tocar e se expressar, utilizavam sua criatividade e sua capacidade de resolver
problemas pelo improviso. Fato que constatamos através das lembranças do mestre
Aquiles durante nossa segunda aula:

75
“Nem todos tinham tambores, então improvisávamos (...). Meu
pai tocava acordeão, crescemos com a música dentro da
família. Usávamos latas de azeite e garrafas de vidro.” (Aquiles,
ago.2014)

O improviso com latas de azeite e garrafas de vidro também contribuíra para que
o lugar coletivo fosse transformado e instituído em cenário performático e lúdico. Sem
esquecer, ao mesmo tempo, que o mesmo improviso é também comportamento
resultado da ação e manutenção da liberdade constituída no microssistema
Conventillo.

Portanto, considerando tais fatores como princípio prático e comunicativo do


lugar estratégico, é possível compreender melhor o modo pelo qual o Candombe se
desenvolve agregando características próprias, pois os moradores de cada conventillo
criavam no improviso seu estilo próprio de ritmo, atribuindo, portanto, diferenças de
tocar o Candombe.

O mais novo dos três griôs Juan Manuel Gularte explica que as diferenças de
estilos de ritmo contribuíram para definir as fronteiras de cada bairro tradicionalmente
habitado pela população afro-uruguaia. Por exemplo, o conventillo MedioMundo
situado no Bairro Sul criou o ritmo conhecido como Cuareim. Em contrapartida, o
conventillo Gaboto criava no bairro Cordón o estilo de ritmo homônimo e, por último,
o bairro Palermo responsável por criar o ritmo Ansina, nascido no mesmo conventillo.
Tais diferenças da estrutura de ritmo serão apresentadas metodicamente no capítulo
posterior. Ainda sim, é importante observar esse processo entre a criação de um estilo
de toque com a demarcação de territorialidades segundo cada bairro e conventillo, a
exemplo da definição de Fernando Lobo Nuñez:

“O limite é Ejido. De Ejido a Ciudadela é Bairro Sul. E somente


aceito discutir o tema com gente que leva aqui a mesma
quantidade de anos que eu, porque os limites dos bairros
colocam as pessoas que vivem neles.” (cit.ALFARO; COZZO,
2008, p. 47)

76
Nesse contexto discursivo, os bairros e seus conventillos são frequentemente
utilizados para identificar a origem do sujeito e da sua família, como o caso dos irmãos
Pintos (Aquliles, Alfonso, Polo) atribuídos ao bairro Cordón. A relação entre o
sobrenome, sua linha de parentesco, com a origem do conventillo e,
consequentemente, com o estilo de toque, é realizada somente pelos que participam
do universo Candombe, pois a mesma geração compartilha do mesmo passado e
realidade. Por isso, a geração dos irmãos Pintos utiliza a memória do lugar enquanto
fator discursivo para afirmar o início da sua presença e da sua autoridade como
mantenedor e transmissor do Candombe tradicional.

Para o antropólogo José Ferreira o termo “bairro” se refere à noção de


comunidade, “rede conectiva” abarcando “vínculos de parentesco”, de afinidade
atenuada, de amizade e vizinhança, entorno de localidades urbanas de maior
densidade populacional afrodescendente, como é o caso dos próprios conventillos
(FERREIRA, 2002, p.45). Nesse contexto específico, além da relação entre os elementos
bairro, comunidade e linhas de parentesco, há também o elemento Candombe
enquanto potência comunicativa da presença afro-uruguaia.

É importante ressaltar, no entanto, que o Conventillo não foi o único lugar


estratégico onde o Candombe nasceu e que este, por sua vez, não representa a única
síntese da cultura afro-uruguaia. Mesmo assim, seus praticantes frequentemente
utilizam ambos os elementos para fundamentar a riqueza do patrimônio cultural afro-
uruguaio. Além disso, o Candombe sozinho parece manter uma relação sistêmica entre
os demais elementos da presença afro-uruguaia, como tenta demonstrar o infográfico
a seguir:

Gularte
Ritmo Cuareim
Conv. MedioMundo
Bairro Sul

Cordón
Candombe Palermo
Conv. Gaboto Conv. Ansina
Ritmo Cordón Ritmo Ansina
Pintos Ramirez

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Todos estes elementos constituem diferenças de territorialidades e identidades
produzidas, por sua vez, no processo histórico afro-uruguaio, mas que, em conjunto e
permanentemente presente, conformam relações horizontais dentro do seu próprio
sistema de organização social. E, mais tarde, essa organização microssistêmica dos
tradicionais bairros e conventillos afro-uruguaios será associada às festas de carnaval,
incluindo seus próprios grupos de Candombe que dele deriva, colaborando ainda mais
para a popularização do ritmo. Ademais, através do seu encadeamento histórico, social
e cultural, o Candombe conjuga a cultura afro-uruguaia em um nível situado para além
da sua tipologia rítmica, conforme reflete Aquiles Pintos:

“Vocês não estão somente aprendendo a tocar, estão


aprendendo a teoria do som dos bairros” (Pintos, set. 2014)

Considerado como a “teoria do som


dos bairros”, o Candombe é ampliado
enquanto discurso, uma vez que sua
presença cria condições para
desenvolver um modelo de afirmação
das territorialidades “periféricas”,
provinda da sua própria ontologia. E
como resultado desse modelo político e
Aquiles Pintos ensinando a teoria do som dos cultural, o ritmo consegue conquistar
bairros. Reprodução do autor
novos territórios, novos bairros e novas
fronteiras transnacionais, como ocorreu em na grande Buenos Aires.

Antes que esse processo ocorra, o Candombe precisou sair da sua zona de
conforto, do seu lugar estratégico. Mas o que levou o ritmo a sair do Conventillo,
considerando seu lugar coletivo e ao mesmo tempo privado, um lugar onde sua
presença poderia continuar a se desenvolver sem as intervenções do universo de fora?
E uma vez fora do seu lugar, como o Candombe foi capaz de conquistar
permanentemente o espaço da rua e certas territorialidades urbanas que antes o
reprimia?

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Nesse momento Chabela Ramirez se reacomoda em sua cadeira ao lado dos três
mestres griôs. Sua linguagem corporal atinge um estado perene de indignação e
inspiração, causando em mim natural admiração. Então ela aponta para fora da Casa
com seu olhar lastimoso e sua voz encorpada, se referindo ao que havia na rua. Logo
ali em frente respirava o tradicional Conventillo Ansina do bairro Palermo. Sua
arquitetura de outrora já não existe, virou pó. Aquele cheiro mesclado de sabão com
óleo de fritura ficou no passado. Seus vários tons de cinza já não confundem o olhar
dos antigos moradores. E mais, o som daqueles tambores já não ecoa...

Assim, sem pedir licença, Chabela declama em cantoria os primeiros versos de


“Candombe Roto”, famoso na voz de Rodolfo Morandi: “escutem bem o que vou dizer.
Tem certas coisas que em minha vida vivi...”. O tom da sua voz chegava aos meus
ouvidos como oferenda, prece e sussurro. Então foi daquele jeito, extasiado, que
segurei a emoção na garganta e entendi:

Na região central da cidade de Montevidéu, muitas construções residenciais


datadas do século XIX estavam condenadas pelo tempo. A deterioração do piso e das
paredes era iminente. E de fato, entre 1970 e 1978, ocorreram quedas parciais ou
totais de algumas residências, deixando um trágico saldo de 19 mortos. De modo a
remediar tal situação, o governo ditatorial aprovara uma resolução autorizando a
municipalidade de Montevidéu a iniciar um processo de desalojamento compulsivo
dos moradores que habitavam as casas condenadas. A mesma resolução incluíra os
velhos conventillos onde a maioria da população afro-uruguaia vivia.

Portanto, era apenas uma questão de tempo para que a vida do lugar coletivo
onde o Candombe foi concebido desfalecesse. Todo seu microssistema composto por
cenário lúdico, improvisado e performático acabaria, dando fim a uma intensa epifania
orquestrada pelos tambores quase que diariamente.

Então, no fatídico dia 03 de dezembro de 1978, o conventillo MedioMundo


situado no Bairro Sul passou a ser relembrado por toda a eternidade como o primeiro
lugar coletivo a ruir. Seus moradores foram obrigados a abandonar seu lugar no
mundo, despojados da sua presença, dignidade e respeito. Foi quando Alfonso Pintos
seguiu na cantoria de Chabela, lembrando-se das mesas, armários, sofás e cadeiras
retiradas às pressas e espalhadas pelo pátio do seu conventillo. Alguns antigos

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inquilinos relutavam em sair, outros simplesmente desacreditavam de que tal fato
estivesse mesmo ocorrendo. Da casa para rua. Dali em diante sucedeu uma série de
demolições e despejos, incluindo os conventillos de Gaboto e Ansina, apontado por
Chabela em suas lembranças.

Muitos afro-uruguaios que testemunharam a desapropriação e derrubada dos


conventillos acreditam até hoje que o governo na verdade estava interessado em
valorizar toda área central da cidade para a construção de sedes diplomáticas e
edifícios comerciais. Embora fosse ainda jovem, Chabela Ramirez relembra que aquela
época foi exemplo de um “ato covarde, uma vontade de controle e um gesto racista”
por parte do Estado. Mimo Rosas também presta seu testemunho na obra escrita por
Milita Alfaro e José Cozzo que relata a demolição do conventillo MedioMundo:

“O primeiro mal foi a separação das famílias e dos amigos. Ao


perder a sua gente, o bairro perdeu sua essência. Lá, com a vida em
comum, tu sentias que aquele era o teu. É muito distinta a vida em
comunidade que com outras pessoas. E além disso, sentes nostalgia
do seu mundo, da sua linguagem, do Carnaval, da nossa essência, do
nosso candombe. Os que terminaram no Cerro norte tinham medo de
sair na rua, e depois estávamos organizados, cada um tinha seu
cacique, que era o que concertava os problemas da vizinhança, e
todos nos entendíamos, tanto negros como brancos”. (ALFARO;
COZZO, 2008, p. 79)

Como resultado do “gesto racista”, das demolições, das espoliações, e da expulsão


do lugar estratégico, a população afro-uruguaia sente que sua presença é abalada no
mundo. A primeira consequência desse processo observado por Mimo Rosas foi “a
separação das famílias e dos amigos”. Como resultado do enfraquecimento ou
dissolução total das relações afetivas e de parentesco desenvolvidas no Conventillo, há
também uma dissolução da própria comunidade afro-uruguaia, de acordo com a
análise anterior do antropólogo José Ferreira.

Decorre daí uma série de perdas, pois vimos que os elementos que compõem a
cultura afro-uruguaia estavam sistemicamente relacionados. Ou seja, se o lugar já não
existe, não existem moradores, famílias, amigos se relacionando e tocando o
Candombe. Se não há prática comunicativa, lúdica e performática, o bairro acaba
perdendo a sua “essência”, pois lá, “com a vida em comum, tu sentias que aquele era o

80
teu”. Considerando os fatos decorridos, o Candombe também estaria com seus dias
contados, pois já não havia mais presença para o ritmo, a não ser nas futuras casas de
cada família afro-uruguaia apartada e realocada em bairros distantes do distrito
central da cidade.

Considerando tal conjuntura, logo depois que os “muitos de Angola” chegaram à


terra explorada, entre ambundos, congos, bacongos, ovambos e benguelas, logo
depois da formação sistêmica de uma primeira Diáspora Africana, aquela geração afro-
uruguaia vivenciava um novo processo dispersivo: uma segunda diáspora. O
Candombe, então, perdia temporariamente o seu centro no mundo, a sua presença.
Mas não foi a primeira vez que o Estado promovera tal investida.

Como vimos, após a abolição da escravatura em 1842, o Candombe poderia ser


censurado nas ruas dependendo do governo. O argumento utilizado era de que o
ritmo deturpava a ordem. Em função disso, o chefe da polícia de Montevidéu chegou a
instituir uma resolução que proibia “os bailes e candombes de morenos dentro do
departamento imediato às casas dos vizinhos” (ALFARO; COZZO, 2008, p.23). Em 1956,
transcorrido quase um século de negociações e censuras, o Estado resolve mais uma
vez marginalizar a presença do Candombe expropriando-o para a periferia,
controlando a quantidade máxima de grupos autorizados a tocar.

Em 1979, um ano depois do infeliz dia 03 de dezembro, Lobo Nuñez conta que o
Estado resolve remanejar os desfiles de Candombe, que já aconteciam nas ruas do
bairro Palermo, para a principal avenida comercial do centro da cidade, conhecida
como Av. 18 de Julio. Dessa vez, o pretexto das autoridades era de que “as vibrações
dos tambores poderiam afetar a integridade dos velhos muros do bairro”. Nuñez se
lembra desse episódio lamentando as incongruências do Estado contra a presença do
Candombe:

Esse foi um bairro castigado pela ditadura. Aqui os militares faziam


o que queriam e não se davam conta do mundo que havia aqui. Você
se dá conta? Desfilar em uma rua com semáforos? O som não
ecoava, se esvaía porque não tinha amplificação (ALFARO; COZZO,
2008, p.76)

81
Nuñez, Aquiles, Alfonso e Polo Pintos, Juan Manuel e Perico Gularte, Willy
Mariano Barroso, Waldemar “Cachila” Silva, Benjamin Arrascaeta, Chabela Ramirez,
todo o Grupo Asesor estivera presente naquela época e testemunhara as muitas
censuras instituídas pelo Estado. Todos sabiam que o mundo de improvisos e relações
afetivas fora transformado, em definitivo, num mundo reprimido e controlado.

Ouvindo os relatos, inevitavelmente comparei às experiências vividas de dentro da


minha família, no contexto da ditadura chilena e brasileira. As indignações e traumas
eram semelhantes, transpassavam fronteiras, e nos transportavam a uma realidade
vivida injustamente. Considerei a sensibilidade daquele momento. Relutei duas, três
vezes antes de perguntar pessoalmente para os mestres griôs o que achavam das
intervenções do governo naquele tempo. Sabia que há certos trechos do passado
difíceis de serem relembrados, não porque já se encontram no limbo da memória
pessoal, mas porque remetem a sensações emotivas e físicas realmente dolorosas para
os que vivenciaram. Mesmo assim, fui saber.

Esperei estrategicamente a aula terminar. Fui me acercando devagar até me


apresentar como brasileiro e músico. Sabia também que as primeiras identidades
apresentadas por mim facilitaria o início da conversação. E de fato. Com sua
espontaneidade, sorriso e ânimo de sempre, Aquiles soltou uma tênue exclamação
que me surpreendeu: “ohhhh!”. E diante dos outros griôs, sorri. Logo tratei de
agradecer pelas aulas além de demonstrar meu grande prazer de conhecer figuras
emblemáticas de tamanha autoridade e responsabilidade. Deveras, eram histórias
vivas. Os três reagiram como os tambores de Candombe, orquestrados em tons de voz
e gestualidades.

Após explicar o motivo verdadeiro pelo qual estava ali presente, os mestres logo
mostraram interesse em narrar sua memória para o Brasil, como se eu fosse o porta
voz que transmitiria sua realidade para fora, para o mundo. Tamanha
responsabilidade, pensei. Os antigos expertos ainda têm essa relação, talvez
inconsciente, com um pesquisador de fora do seu nicho social-cultural. Senti-me
privilegiado, pois era um momento crucial, exclusivo, de modo que deveria pensar e
agir rápido.

82
Logo, lancei a pergunta que havia planejado em fazer antes de tudo acontecer:
qual a importância do Estado para vocês? Vocês acham que o Estado poderia fazer
mais pela cultura afro-uruguaia?

Foi então que Aquiles sentou a frente do tambor e o abraçou como uma mãe
acolhendo seu filho nos braços. E com singelo afeto começou a tocar, a vibrar uma
antiga canção do tempo em que sua juventude peleava com os policiais. A
comunicação naquele instante passou a ser sensitiva, emotiva. Os outros riram
brevemente demonstrando em seu olhar a ternura, felicidade e consciência de um
passado difícil. Um tempo em que o pulso de cada tambor era uma possibilidade de
encontro e conflito.

O conflito, de certo modo, era e ainda é necessário porque, se antes havia uma
violência declarada, hoje há uma “violência silenciosa”, como define Walter Mignolo. E
essa violência atua como uma “colonialidade do sentir”, pois está presente na vida
cotidiana através da retórica, da linguagem corporal, das condutas dissimuladas
provocadas pelas diversas camadas societárias contra o afrodescendente (MIGNOLO,
2010, p.18). O resultado dessa violência silenciosa é o trauma guardado nas entranhas
da memória, manifestada de diversas formas quando de novo os embates “raciais” são
permitidos.

Para Anibal Quijano essa violência instituída é também resultado da história do


“poder colonial” que foi capaz de criar duas condições sociais muito bem definidas.
Primeiramente toda comunidade afrodiaspórica, incluindo a afro-uruguaia, é
despojada de suas próprias e singulares “identidades históricas”. Em seguida, sua
identidade racial é “negativizada”, fato que o despojou do seu lugar e presença na
história da produção cultural do país e de toda humanidade. Esta condição societária é
mais ou menos o que Quijano define como “colonialidade do poder” (QUIJANO, 2005,
p. 227-278). Ou seja, o Estado pontualmente intervém, aparta, e negligencia ao longo
do tempo, criando problemas institucionais que perduram e se reinventam
diariamente, como o próprio racismo.

83
Dentro deste ponto de vista, a colonialidade é ainda um dos elementos
construtivos e específicos do padrão mundial constituído pelo discurso hegemônico
ocidental. Seu fundamento se baseia na imposição de uma classificação racial/étnica
da população mundial como pedra angular do dito padrão de poder que opera em
cada um dos planos, âmbitos e dimensões da existência social cotidiana. Este padrão
foi determinante na instituição de um sistema conflituoso e permanente de
classificação sócio-racial que serviu para a universalização da civilização capitalista –
incluindo a exploração de trabalho – e a formação das sociedades “nacionais”
(Quijano, 2005). Em outras palavras, o padrão de poder baseado na colonialidade
também implica na construção de um padrão cognitivo, ou seja, uma perspectiva de
conhecimento e comportamento dentro da qual a comunidade hegemônica acredita
ser branca, provinda exclusivamente de uma raiz ética e estética europeia.

Nesse mesmo contexto, o padrão cognitivo expressado em discurso hegemônico


de uma suposta branquitude é chancelado pelo “poder colonial” que, segundo
Benedict Anderson, é também uma invenção do próprio Estado. Certa nação ou
“comunidade imaginada” definida por Anderson como uma “comunidade política
imaginada inerentemente limitada e soberana”. Uma invenção discursiva baseada em
ícones emblemáticos como a bandeira, culinária, idioma, hino, mapas, de modo a
legitimar e instituir a fronteira nacional e o sentimento que dela deriva entre seus
cidadãos (ANDERSON, 2008, p.18).

E como vimos, se o passado, a memória e a presença da população afro-uruguaia


são totalmente apartados e negligenciados da grande “comunidade imaginada”, sua
presença, consequentemente, também é esquecida, ocultada, invisibilizada. E com isso
pego emprestado o conceito de invisibilização publicado no jornal “El Afroargentino”
na sua primeira edição de setembro de 2014:

“A invisibilização é um conceito que remete aos mecanismos


que servem para omitir a presença de determinado grupo
social, apaga-lo do relato. O processo de invisibilização de um
grupo social é constituído pela representação de outro grupo
social, buscando impor a superioridade deste ao grupo
invisibilizado.” (El Afroargentino, Ano I. Número I. Novembro,
2014)

84
Como resultado do apagamento do “outro lado da história”, os concidadãos
uruguaios passam a acreditar que sua nação é branca, católica e patriarcal. Então,
submetidos ao discurso hegemônico, os mesmos cidadãos acreditam cegamente que
pertencem ao modelo social instituído e, com efeito, possuem certa dificuldade de
aceitar outros modelos de presença e de organização social, sobretudo, no campo das
alteridades. Nos dizeres de Chabela Ramirez: “foi o veneno que nos deram”. E veremos
no capítulo 3 que esse “veneno”, que essa falácia discursiva é ainda mais atuante na
banda ocidental do Rio da Prata, onde a branquitude herdada pelo “poder colonial” é
tão impetuosa que frequentemente ouvimos a sentença de que no país não há
racismo.

Contudo, enquanto o Estado apaga, omite e golpeia de lá, o universo


afrodiaspórico, com sua presença e cosmologia, reage de cá. Se houve trauma,
espoliação da moral no passado, se houve expropriação da ética construída no
Conventillo, foi preciso reconstruir, revigorar e permanecer. Foi preciso mostrar o que
foi ocultado, foi necessário abrilhantar ainda mais o que tentaram ofuscar. Porque do
conflito cresce a resistência afrodiaspórica, a vontade de estar e de se fazer presente,
reconhecido, respeitado. Fato constatado pelo outro lado da história construída por
heróis e lideranças negras, por organizações políticas e grupos culturais, incluindo o
próprio universo Candombe.

Hoje a República Oriental do Uruguai


possui cerca de 8% da população
constituída por afrodescendentes, segundo
dados do último censo realizado em 2006
através da Pesquisa Domiciliar Ampliada,
promovida pelo Instituto Nacional de
Estatísticas (ENHA-INE)10.

10
Fonte: http://www.casaafrouruguaya.org/index.php/afrouruguayos/estadisticas

85
No período que seguiu após a abolição da escravatura até a década de 1870, a
população negra no Uruguai desenvolvia novas experiências a partir da sua presença
em todos os âmbitos sociais. Escritores, jornalistas e advogados afro-uruguaios,
engajados na preservação dos direitos humanos da sua comunidade, criaram
periódicos que pudessem denunciar crimes de racismo e outras práticas
discriminatórias do cotidiano na época.

Assim, surgiram os jornais La Conservación (1872) e Nuestra Raza (1917). Alguns


exemplos de publicações, conservadas até hoje, e que tratavam de acusar partidos
políticos e representantes da classe elitista conservadora que insistiam em preservar
as relações de vassalagem com ex-escravos. Segundo o discurso desses dois principais
periódicos:

“era direito civil e dever político da comunidade afro-uruguaia


afirmar sua identidade frente o Estado. A atitude omissa, pacífica
de um afro-uruguaio, seria considerada uma agressão aos seus pais
e avós que viveram na condição de escravos”11.

Esse compromisso da comunidade afro-uruguaia, de manter uma reflexão


permanente a respeito da sua identidade e ancestralidade, a partir da diversidade e
dos seus componentes socioculturais, fortaleceu sua estrutura política e o diálogo com
o governo. Além disso, seu discurso fortalece o compromisso de manter permanente a
ação contra o racismo e todas as formas de discriminação que pudessem ameaçar sua
presença no mundo. Considerando tal processo, emergente desde o período pós-
abolição, a comunidade afro-uruguaia passa a investir em políticas públicas que visam
diminuir as desigualdades socioeconômicas instituídas pelo seu processo histórico ou,
como vimos, pelo “poder colonial”. Desde a década de 1930 a atuação e
desenvolvimento cultural e político dos afro-uruguaios contribuíram para dar maior
visibilidade e equidade à população negra.

Os líderes Salvador Betervide, Julio César Grauert, Maruja Pereira, Mario Méndez,
Ignacio Suárez Peña, Ceferino Nieres, Sandalio del Puerto, Carmelo Gentile, Aníbal
Eduarte, Ismael Arribio e Gilberto Cabral, fundaram e militaram pelo Partido
Autóctone Negro (PAN) cuja atuação durou no período entre 1936 a 1944. Na mesma

11
Fonte: http://www.casaafrouruguaya.org/index.php/afrouruguayos/historia. pg34.

86
época foi criada em Montevidéu a Associação Cultural e Social Uruguai Negro (ACSUN),
presente até hoje, cujos objetivos são a manutenção da cultura, da memória, através
de acervos documentais, e a promoção de cursos, eventos, que tratam de preservar a
sua identidade, costumes e tradições.

Muitos investiram sua vida no combate ao racismo, na injustiça e no conflito com


o Estado. Alguns deles deram de fato a sua vida, como o jornalista Julio César Grauert
que foi assassinado pela polícia em um confronto realizado no interior do país, quando
o militante protestava contra a ditadura de Gabriel Terra em 1933.

Durante o período de atuação do PAN, seus militantes trabalharam a partir de


quatro princípios políticos, a saber: (1) denúncia à discriminação ocupacional; (2) união
de interesses comuns com os setores mais despossuídos da sociedade; (3) apoio às
iniciativas que favoreceram o país; (4) obtenção de representação parlamentar da
comunidade negra. Este último princípio merece maior atenção, pois está interligado
diretamente com os fatos que sucederam o infortunado 03 de dezembro. Na verdade,
tudo está interligado.

Guauert certamente se emocionaria ao testemunhar o dia em que o primeiro


parlamentar negro foi eleito pelo povo, exatamente há cinquenta anos após o fim do
PAN. O dia em que a militância afro-uruguaia conquistava pela primeira vez uma
cadeira representativa a favor da sua presença na história nacional. O dia em que
Edgardo Ortuño foi eleito parlamentar pelo partido Frente Ampla, dando início a uma
política enfática contra o racismo no Uruguai.

E conforme o destino pré-escreve, o parlamentar e hoje Presidente da Casa de


Cultura Afro-uruguaia, cria o projeto lei 18.059/2003, aprovado no Congresso em
seguida. A lei declara o dia 03 de dezembro como Dia Nacional do Candombe, da
Cultura Afro-uruguaia e da Equidade Racial. Logo, o que era considerado como um dia
fatídico, como um fato sofrido pela espoliação da presença afro-uruguaia, passou a ser
um dia de celebração da mesma presença. A lei passou a representar o
reconhecimento da nação à comunidade afrodescendente. Transformou-se em
emblema discursivo para reivindicar e legitimar a cultura afro-uruguaia no país e até
mesmo para além dele.

87
Portanto, é uma data de comemoração dos feitos de resistência da comunidade
afro-uruguaia e reafirmação da sua identidade diante às medidas discriminatórias
dispostas pela ditadura militar que impôs a espoliação dos conventillos nos tradicionais
bairros Palermo, Cordón e Barrio Sul. Segundo o próprio Edgardo Ortuño:

Essa data serve para recordar seu significado e evocar todo seu
simbolismo de resistência, reafirmação de identidade e de poder da
cultura para superar as adversidades, preconceitos e derrubar as
fronteiras invisíveis, mas dolorosamente tangíveis do racismo e da
discriminação. O candombe e sua gente, longe de haver se
extinguido, sobreviveu e se expandiu por toda cidade e no país
convocando a multidão com independência de sua condição racial,
entorno desta manifestação da cultura afro-uruguaia que identifica
nossa comunidade a todo Uruguai. (ALFARO; COZZO, 2008, p.15)

“Resistência”, “sobrevivência”, “expansão” e “independência” são palavras-chave


que Ortuño utiliza para traduzir o modo pelo qual a presença afro-uruguaia tem se
desenvolvido e se estabelecido permanentemente diante às adversidades históricas.
Aliás, foram muitos os desafios se consideramos o primeiro e talvez o maior deles, o
momento da travessia sobre o Atlântico. A colonialidade, os conflitos com o Estado, as
imposições culturais, sociais e religiosas. Para todas as violências, somente um ser
resiliente é capaz de permanecer presente e ainda transmitir seu passado através dos
meios pelos quais o mesmo sujeito julga ser necessário.

A “resiliência” é um conceito relativamente novo no campo das ciências humanas,


utilizado para explicar com mais eficiência o modo pelo qual os sujeitos se adaptam,
reagem, se transformam e ao mesmo tempo modificam o ambiente em que vivem. O
conceito, entretanto, é antigo na Física, utilizado desde o século XIX por Thomas Young
para explicar a capacidade de “memória” de um material para recuperar-se de uma
deformação produto de uma pressão externa. Em uma breve consulta ao Novo
Dicionário Aurélio, a definição de “resiliência” ainda aparece como “propriedade pela
qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a
tensão causadora duma deformação elástica”. O conceito foi adotado em seguida pela
Psicologia, principalmente por Michael Rutter, pai da “psicologia infantil”, dedicado em
demonstrar a capacidade que o indivíduo possui para lidar com problemas, superar
desafios ou resistir à pressão em situações adversas (RUTTER,1970).

88
Alguns dos fatores comportamentais são identificados pela Psicologia inerentes ao
indivíduo resiliente, dentre eles a (1) administração de emoções através da qual a
pessoa consegue manter a serenidade diante de uma situação estressante; (2) controle
dos impulsos que se refere à capacidade do sujeito manter o controle pela experiência
de uma forte emoção; (3) otimismo em que a pessoa acredita na esperança e no
controle do destino da vida; por último a (4) análise do ambiente através da qual os
sujeitos identificam precisamente as causas das adversidades e se resguardam em um
lugar mais seguro para sua proteção e adaptação, ao invés de se manter exposto a
uma situação de risco.

A Sociologia e Antropologia têm desenvolvido o conceito investindo sua análise


para além do sujeito sendo estendida para uma perspectiva sobre a comunidade ou
grupo social, embora essa discussão ainda seja incipiente. As principais contribuições
têm sido desenvolvidas por pesquisadores que trabalham sobre o tema das
populações marginalizadas, incluindo a própria população afrodiaspórica. Como
exemplo, o antropólogo Norberto Pablo Cirio que sugere em seu artigo “Para uma
definição da cultura afroargentina” a utilização de “resiliência” para melhor explicar a
permanência e dinâmica da cultura afro-argentina, incluindo o Candombe. Segundo
sua perspectiva, a resiliência permite dar conta da capacidade de sobrepor a períodos
de intensas emoções e, inclusive, sair fortalecidos por elas. Ditas situações
contemplam um leque de desgraças de forte e prolongado estresse: a perda de um ser
querido, o maltrato, o abuso psíquico-físico, o fracasso, as catástrofes naturais, os
genocídios, a migração forçada e a pobreza material extrema (CIRIO, 2011, p.28).
A estes fatores, acrescentamos o racismo, a apartação geográfica, espoliação cultural e
social de toda comunidade afro-uruguaia antes, durante e depois do Conventillo.

E nesse contexto afro-uruguaio, a resiliência pode ser percebida como a


capacidade de converter o emblemático 03 de dezembro em discurso afirmativo. Em
outras palavras, a habilidade que a comunidade afro-uruguaia possui de transformar o
trauma do racismo e da apartação social em empoderamento da presença. Como disse
anteriormente Juan Manuel Gularte que a própria “discriminação fortaleceu nossa
relação” (p.74), ou seja, foi capaz de fortalecer os laços afetivos, a noção de
comunidade e, finalmente, a presença negra perante a sociedade que a reprime.

89
Uma vez compreendida, a resiliência pode inclusive contribuir para explicar a
resistência e o modo de reação de todas as comunidades afrodiaspóricas, ganhando
destarte sua dimensão macrossistêmica. De um modo geral, toda população
afrodiaspórica foi resiliente ao sistema escravocrata e tem sido resiliente ao racismo.
Dito de outro modo, o afrodescendente não apenas resistiu às apartações sociais,
culturais, religiosas, mas reagiu a dada realidade de acordo com sua sabedoria, fator
lúdico, inteligência emotiva, “otimismo” e “análise do ambiente”. Estes fatores
comportamentais compreendidos como inerentes ao afrodescendente que, somados,
contribuíram para estruturar o tipo específico de microssistema social, sua tipologia
ética-estética, seja a Capoeira no Brasil, o Candombe uruguaio ou argentino e,
finalmente, a Tumba no Chile. Todas estas, portanto, são manifestações emergentes
enquanto discurso a uma proposta étnica e política, capaz de demandar
reconhecimento da sua presença na história nacional, no âmbito jurídico-legislativo e,
não menos importante, no âmbito educacional.

A esta altura da narrativa, devo lembrar aos leitores da interrogação


fundamentada no final do último capítulo que versa sobre o modo pelo qual o
Candombe uruguaio assume e enuncia sua potência afirmativa capaz inclusive de
atravessar fronteiras nacionais (p.58). Se por um lado a lei 18.059 reconhece a
historicidade e cultura do Candombe sob a chancela do Estado, por outro lado, o ritmo
irá instituir sua própria presença de modo autônomo como resultado da segunda
diáspora. Em outras palavras, significa que o Candombe amplifica sua autonomia e
maior notoriedade devido ao seu processo de dispersão, resultado da espoliação do
ritmo a partir do Conventillo.

Destarte, o Candombe se estabelece em definitivo como prática comunicativa


aberta e mais acessível saindo do seu lugar estratégico (ainda que compulsoriamente)
para o espaço público: uma travessia do Conventillo para rua, fenômeno lembrado por
Juan Manuel Gularte:

“Na ditadura os militares quiseram extinguir o Candombe e


derrubaram os conventillos, entretanto, foi a época em que
mais se alastrou” (Gularte, set.2014)

90
Em decorrência deste processo, o Candombe passa a ter condições de progredir
sua presença noutros bairros, em novas ruas, conquistando novos territórios
“periféricos” e reocupando os antigos processualmente. Ao invés de se privar em casas
e núcleos familiares, o Candombe uruguaio decide ganhar o mundo através da rua. E
do mesmo modo, o ritmo vai se alastrando por toda cidade, no país e para fora dele,
chamando ou “convocando a multidão com independência de sua condição racial”,
conforme afirmara Edgardo Ortuño anteriormente.

Este princípio do encontro e diálogo, do compartilhamento de saberes e de


emoções com base na independência da condição racial, tem sido um princípio que foi
constituído a partir do Conventillo. Nesse contexto, lembramos novamente este
discurso com base na memória dos que lá viveram, como os irmãos Pintos, Lobo Nuñez
e Chabela Ramirez. Autores e sujeitos que aprenderam a conviver com o respeito, a
cooperação, empatia, não importando raça ou religião (p.75). Códigos de conduta,
portanto, que conformam uma ética do Conventillo e que gera, por sua vez, seu
próprio microssistema social. Processo este em que, de novo, demonstra a capacidade
de resiliência da comunidade afro-uruguaia. E se antes o Conventillo conformava e
gerenciava esta ética, agora o Candombe terá essa incumbência, transportando a
mesma ética para o espaço público.

5.5 Do espaço-rua: por uma estética do Candombe

Por conseguinte, o mesmo respeito, a mesma cooperação, e todos os outros


elementos constituintes da ética chegarão às ruas transmutados em discurso
afirmativo. Nesse sentido, o Candombe assume a estrutura de um microssistema
político que atravessa do seu lugar estratégico para um espaço público cujo cenário é
passível de conflito em relação às instituições e subjetividades incapazes de aceitar
inicialmente a sua presença. Entretanto, o ritmo permanece no espaço de conflitos e
negociações transmitindo o mesmo princípio ético concebido naquele lugar
estratégico.

91
Diante de tal conjuntura, é propício mencionar a análise de Milton Santos, quando
o geógrafo define o “espaço” como a conjunção plena entre passado-presente da
forma comunicativa do ser humano na sua relação permanente com o próximo:

(...) o espaço se define como um conjunto de formas representativas


de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura
representada por relações sociais que se manifestam através de
processos e funções (SANTOS, 1978, p. 122).

No contexto afro-uruguaio, o espaço-rua é resultado de esforços subjetivos e


coletivos que demandam e conformam propostas de se fazer presente no grande
território social ou na comunidade imaginada uruguaia. Embora esteja “submetido à
lei de uma totalidade” (SANTOS, 1978, p. 145), o espaço dispõe e desenvolve certa
autonomia promovendo a horizontalidade dos territórios e das relações humanas .

Sendo assim o espaço-rua permite a


simbiose dos fatores históricos, sociais e
culturais afro-uruguaio, conforme uma
totalidade sistêmica ou uma lógica da
simultaneidade e do encontro. Então, a
partir deste encontro nas ruas desenvolvem-
se novas práticas comunicativas, nova
transmissão do conhecimento em respeito à
Candombe hoje no espaço-rua. Reprodução do cosmogonia afrodiaspórica através dos seus
autor
elementos: performático, lúdico e
pedagógico. Logo, o espaço-rua é tanto formado pelo resultado material acumulado
das ações humanas através do tempo, quanto animado pelas ações atuais que lhe
atribuem um dinamismo e uma funcionalidade (SANTOS, 1978, p.45).

Além disso, da mesma forma que o espaço-rua é ressignificado pelo Candombe


como o lugar da memória, sua estética instituída também permite a ressignificação do
Conventillo no momento em que o lugar é utilizado como discurso afirmativo pela
memória afro-uruguaia. Diante dos fatos, portanto, o Conventillo nunca será extinto,
pois é revivido em discurso permanentemente como o lugar onde o Candombe e a
presença afro-uruguaia nasceram.

92
Por esta outra razão, a ressignificação do antigo lugar a partir da ocupação
permanente do espaço pode ser considerada um ato afirmativo político. As ruas do
bairro Palermo, Cordón e Bairro Sul transformam-se em cenários dialógicos entre o
microssistema político Candombe com a sociedade uruguaia e emergem como lugares
da memória afrodiaspórica. E essa relação é hoje autônoma, pois não há
intermediação ou agenciamentos privados e estatais que dificultem ou facilitem a
transmissão da ética afro-uruguaia. Deste modo, a ética concebida no Conventillo
permanece presente, transmitida pela estética do Candombe. Uma travessia abstrata,
compreendida tão somente pelo discurso dos que praticam ambos: ética-estética. Em
síntese, enquanto a ética nascia em seu lugar estratégico, a estética se desenvolvia por
meio dela no espaço-rua, conforme a representação no infográfico:

Travessia

Privado Público

LUGAR ESPAÇO

Domínio dos códigos e


Conventillo Rua transmissão da presença;
Institucionalização da Ética
= ÉTICA-ESTÉTICA
Princípio da organização;
= MICROSSISTEMA POLÍTICO
Lugar estratégico;
Construção de códigos
de conduta/ linguagem/
comunicação
= ÉTICA
= MICROSSISTEMA SOCIAL

Na medida em que a ética é elevada do Conventillo para a rua, os entendimentos


entre atores e público podem ser livres para a possível aceitação do ritmo no espaço-
rua onde o diálogo é estabelecido através da solidariedade emotiva, ao invés do
conflito. Nesse contexto, relembramos outro discurso de Ortuño, no ato da
inauguração do estúdio quando o presidente convoca a população afro-uruguaia para
“reocupar os territórios e superar a história do negro como cidadão uruguaio”(p.64).

93
Além disso, devido ao fenômeno da segunda diáspora, o ritmo contribui para
fortalecer a presença afro-uruguaia de modo a transgredir “as fronteiras invisíveis (...)
do racismo e da discriminação” . Deveras, sua prática comunicativa traduz em discurso
a questão do problema racial, demandando novas políticas afirmativas do próprio
Estado. Se antes a sociedade uruguaia imaginava sua comunidade homogênea ou
simplesmente consubstanciada por uma suposta democracia racial, o Candombe veio
à rua para narrar o outro lado da história.

Nesse sentido, o ritmo deixa de ser meramente uma prática comunicativa da


cultura afro-uruguaia, e passa ser uma prática etnopolítica através da qual a produção
do discurso afirmativo é permanente, direcionado primeiramente aos espólios
cometidos pelo Estado na tentativa de “derrubar as fronteiras invisíveis do racismo”.

Sobre etnopolítica, compreendo que seja todas as formas de produção pública da


presença afrodescendente, das suas formas de poder e negociação engendrada pelo
Estado e, sobretudo, pelas organizações e grupos minoritários que mobilizam
demandas sociais a seu favor.

Essa produção da presença permanente é constituída em seus distintos níveis de


mobilização, seja individual ou coletiva, e em distintos espaços públicos. Tal fenômeno
é peculiar do universo afrodiaspórico, de modo que faz sentido afirmar que toda
manifestação cultural é naturalmente política. Dessa relação derivam elementos
discursivos da memória, dos modos de fazer e da cosmovisão afrodiaspórica que
narram o outro lado da história, capazes de apontar problemas sociais como o racismo
e demandando ações estruturantes da sociedade e do Estado. Além disso, para o caso
específico do Candombe, vimos também que o ritmo converge para si e transmite para
o próximo todo modelo ético gerado no Conventillo.

Nesse sentido, reconsiderando a conjuntura da análise, o Candombe desenvolve


sua presença no espaço-rua enquanto microssistema etnopolítico. Conforme observa
Stuart Hall, uma etnopolítica constituída pelo seu universo estético que está
intrinsecamente ligado à “estética da Diáspora” ou uma “estética do híbrido” e da
transgressão de limites institucionalizados pelo Estado (HALL, 1991, p.23).

94
Diante de tal conjuntura descrita, vimos que o Candombe termina conformando
um microssistema herdado pela organização social afro-uruguaia que, por sua vez, foi
concebida em seu lugar estratégico. Percebemos como o Candombe deixa de ser
apenas uma prática comunicativa lúdica e performática, chegando no espaço-rua
como uma prática comunicativa política através do seu modelo ético-estético. A partir
daí, o ritmo logra transmitir com sua própria presença um modelo de relação social
pautado no respeito, empatia, compartilhamento de saberes e ideias. Resulta desse
processo, portanto, a tentativa de estabelecer o fim do racismo e o reconhecimento do
passado-presente afro-uruguaio perante a sociedade e o Estado.

Daqui em diante, devemos compreender minuciosamente os elementos


substanciais do Candombe enquanto microssistema etnopolítico a partir dos quais
torna-se possível a transmissão do seu modelo ético-estético. Dito de outro modo,
veremos como as materialidades simbólicas, representadas por personagens como a
mama vieja, escobero, gramillero e os próprios tambores, figuram hoje como autores
da narrativa Candombe. Materialidades concatenadas entre si que constituem uma
totalidade microssistêmica e que, simultaneamente, produzem uma linguagem-texto a
partir do trânsito e pulso dos corpos e tambores. Materialidades simbólicas que
transmitem imaterialidades, sensações, emoções e, sobretudo, uma disposição social
fundamentada na aceitação do próximo para além das diferenças de cada presença.

Imaginava todas estas possibilidades diante das narrativas do Grupo Asesor.


Chabela cantava “Há Candombe e estamos aqui!”, e novamente ela apontava para
fora. O aqui é o agora. Finalmente teria a oportunidade de testemunhar um grupo de
Candombe manifestando sua presença. Vamos sair, vamos tocar. Vamos brincar,
vamos dançar. Porque se trata de compartilhar. Para o espaço, para a rua. Para todos
verem, presenciarem, e participarem. Porque afinal, dizia Chabela, “não tem haver
com o que passou com a ditadura, Candombe sempre foi um movimento de
resistência”. Então saímos da Casa de Cultura Afro-uruguaia, daquele novo lugar
estratégico. E ganhando as ruas, olhei para o céu cinza e de novo o frio encheu meus
pulmões conformados.

95
Morfologia e Cosmologia:

elementos materiais e imateriais do Candombe

96
6. Das primeiras impressões de um desfile

Era um sábado, dia 13 de setembro. A julgar pelas ruas, no entanto, mais parecia
um domingo com o vazio de som e gente. O céu gris nas tardes de Montevidéu ainda
prenunciava o frio incansável e sua fina chuva perene que mal dava para molhar o
corpo. Caminhava e cantava pelas veredas arborizadas do bairro Pocitos, adjacente ao
bairro Palermo. Meu destino era exatamente a esquina das ruas residenciais Av.
General Rivera com Manuel Haedo.

Naquele espaço entrecruzado ocorreria mais um encontro de Candombe


conhecido como “Chamada de Haedo”. Um desfile que acontece todos os anos nesta
época para celebrar a primavera, aliás, momento este apreciado por todos os países
de inverno rigoroso. Além disso, a população campesina celebra a data em seu
calendário para a primeira etapa do cultivo agrícola, momento de germinar e plantar
as sementes. Momento de germinar as sementes do Candombe.

O grupo anfitrião que sempre organiza o desfile chama-se


La Tribu Candombe. Seu nome não possui nenhuma referência
a qualquer “tribo africana”, como eu constataria mais tarde ao
entrevistar Leticia Sanchez, coordenadora da equipe de
dançarinas. Mesmo assim, as roupas com estampas
representando a pele de um guepardo ajudam naturalmente a
Reprodução do autor reproduzir o imaginário da comunidade africana.

O convite para o desfile surgiu em um dos grupos de rede social na internet.


Depois de vivenciar algumas aulas, oficinas, e ter presenciado alguns ensaios, aquele
seria o primeiro desfile de Candombe que eu testemunhara. É natural encontrar
durante a semana uma comparsa ali outro acolá ensaiando nas ruas do bairro Palermo
ou Bairro Sul quando se está caminhando despretensiosamente à noite. Sobretudo
quando as ruas têm pouco movimento, fica ainda mais fácil se deparar com tambores
de Candombe, basta seguir o som. A diferença é que, desta vez, tratava-se de uma
reunião, um encontro de doze comparsas desfilando e compartilhando o mesmo
espaço, o mesmo público. Desse encontro, onze residem em Montevidéu, incluindo o
anfitrião. A única exceção era o grupo Kalumkembe do município de Las Piedras.

97
Para que um desfile ocorra, não há um número mínimo ou máximo de grupos
participantes. O fato é que geralmente só participam entre dez a vinte comparsas em
um mesmo evento. E mesmo que haja dezenas deles residentes em Montevidéu, a
quantidade de comparsas em um desfile dificilmente passa disso, até porque pode
haver mais de um encontro de Candombe no mesmo sábado ou domingo.

De acordo com o Censo de Candombe promovido pela organização


CandombeTV12, existem 134 grupos somente no Uruguai. No mundo, há mais de 190
tambores de Candombe uruguaio distribuídos nos Estados Unidos, Austrália, Suécia,
Espanha, e, inclusive, no Brasil. A quantificação exata de grupos é tarefa difícil de ser
realizada, visto que o seu tempo de duração é tão relativo quanto à quantidade de
componentes em cada grupo. Por exemplo, há comparsas que em meses se desfazem,
se dividem em outros dois ou voltam a tocar anos depois. No Uruguai, esta aparente
complexidade em manter um grupo ativo deriva da necessidade de zelar pela ética do
Candombe através da “disciplina, determinação e compromisso”, conforme prescreve
com sabedoria Aquiles Pintos. E como boa parte dos grupos é constituída por jovens,
nem sempre esta ética é transmitida e preservada.

No entanto, a comparsa La Tribu parece contrariar tal tendência. Apesar de


possuir apenas três anos de prática e ser composto por aproximadamente 40 jovens,
entre percussionistas e bailarinas, o grupo tem sido responsável pela manutenção do
Candombe uruguaio tradicional, além de organizar seu próprio encontro ou Chamada.
Leticia Sanchez, reforça a ideia de que o seu grupo:

“contribui para a promoção da cultura Candombe, sempre


trabalhando da melhor maneira possível”. (Sanchez, set.2014)

Os jovens de La Tribu sabem que é grande a responsabilidade para a promoção da


cultura Candombe, tarefa que exige o engajamento direto e indireto das pessoas
envolvidas. Para que a “Chamada Haedo” aconteça é impreterível a participação de
voluntários que, naquele caso, eram compostos por familiares e amigos da comparsa
anfitriã.

12
Dados obtidos em http://www.candombe.tv/censo. Último registro atualizado em 20/10/15.

98
Dois destes voluntários já estavam interditando as ruas onde passariam as doze
comparsas. Os carros desavisados até que tentavam passar por ali, mas eram
orientados a fazer um desvio tomando outro caminho. Reparei que não havia
nenhuma autoridade policial ou guarda de trânsito para ajudar ou de algum modo
regular a organização do desfile. E diante daquele cenário concluí que o espaço-rua
Manuel Haedo já estava preparado para o desfile.

O tempo passava e não havia sinal de comparsa ou mesmo algum público


esperando o desfile acontecer. Por um momento pensei que estivesse no local errado,
ou talvez estivesse no tempo errado. Mesmo assim, resolvi esperar sentado no meio
fio procurando a cada minuto algum rastro de Candombe. De repente comecei a sentir
pequenas pulsações vibrando o ar frígido da rua. E logo decidi rapidamente ir de
encontro àquelas vibrações, com certa euforia, como uma criança abrindo seu
primeiro presente de natal. Era o grupo La Tribu ganhando o espaço-rua abrindo o
desfile. Então foi assim, subitamente, o silêncio de um sábado frio se transformara em
som, vozes e vibrações. O calor surgira e tudo que era estático ganhava movimento.

7. Do Escobero

E pela primeira vez, vi o escobero13 que na tradução para


o português seria “vassoureiro”. Um personagem que
originalmente representava o Ministro das antigas Nações e
que depois passou a ser o responsável por iniciar e finalizar as
apresentações de Candombe animando o público com um
simples bastão adornado de fitas coloridas e cintiladas
(CARÁMBULA, 2005, p. 45). Com o tempo o bastão foi
transformado em uma pequena vassoura responsável por afastar os maus espíritos,
varrendo as más energias e trazendo bons augúrios. Por conta disso, o escobero toma
a frente do grupo protegendo e abrindo caminho. Antigamente este cargo de honra
era reservado ao componente mais velho da comparsa, pois representava a sua
autoridade e respeito, aspectos cruciais para elaboração de uma ética do Candombe.

13
Escobero do grupo Los Niche em desfile para a prova de admissão para o Carnaval de 2015.
Montevidéu, 27 de setembro de 2014. Reprodução do autor.

99
No que concerne à estética e sacralidade do Candombe, embora tenham sido
elaboradas através da cultura bantu, é possível que alguns dos seus elementos
materiais e imateriais também tenham se originado de outras culturas presentes na
Diáspora, como a Fon, Ewe e Iorubá. A própria vassoura carregada pelo escobero pode
ser associada ao xarará que, no contexto iorubá, é um instrumento utilizado nos rituais
do orixá Obaluaiê (rei e senhor da terra) e da mesma forma serve para afastar os maus
espíritos para o espaço sagrado, eliminando as energias negativas e proporcionando a
longevidade.

Tais similaridades, ainda que verificadas em distintos contextos, retratam a natural


contingência do universo afrodiaspórico e da sua permanente interculturalidade
promovida por distintas presenças étnicas e religiosas. Em vista disso, fica
praticamente impossível verificar com exatidão a real origem e sentido do
personagem, bem como do seu objeto. Todavia, a despeito da sua procedência, o fato
é que hoje o escobero continua desfilando com sua pequena vassoura, realizando
acrobacias com virtuosismo, e contribuindo para amplificar o universo da “estética da
Diáspora”. E ainda que sua presença não seja obrigatória em um desfile, o personagem
sempre colabora para manter a relação do Candombe com sua sacralidade transmitida
ao público.

8. Dos emblemas: estandarte, bandeiras e porta troféus

Destarte, com o afastamento dos maus espíritos e das boas energias emanadas, o
espaço-rua estava preparado para a passagem dos principais símbolos que identificam
as agrupações. O estandarte é o primeiro deles, a égide que apresenta o nome de cada
grupo. Seu formato retangular ou pentagonal deriva das mesmas bandeiras religiosas
utilizadas pelas antigas Confrarias através das quais o próprio Candombe cresceu. O
mesmo emblema também pode ser encontrado na Argentina através das agremiações
familiares que celebram São Baltazar, assim como no Brasil, a partir das “Nações” do
Congado (p.9). As cores do estandarte e seus outros apetrechos de adorno podem
variar desde que sua presença represente a beleza e identidade do grupo. Naquela
tarde o estandarte de La Tribu reluzia em dourado através do qual se podia ler de
longe o seu desígnio.

100
Além do estandarte, seguem as bandeiras retangulares cujas cores também
podem variar. A bandeira do grupo anfitrião possuía tons gradientes de amarelo,
laranja, vermelho e cortava facilmente o vento. O esforço é grande para os
responsáveis em anima-las, pois a única regra é não deixa-las esmorecer. Sua função,
tal qual o estandarte, é a de apresentar e estabelecer a identidade do grupo. Existe,
todavia, uma diferença entre as duas que não reside na função, mas na sua origem.

Se o estandarte deriva das antigas Confrarias regidas pelo séquito e regras cristãs,
as bandeiras, por sua vez, provêm das antigas “Nações” e, como vimos, contribuíram
para a formação da primeira estética do
Candombe ainda no século XIX. Na
verdade, todos os elementos percebidos
hoje, entre emblemas e personagens,
derivam do sincretismo entre as
confrarias e nações. Nesse sentido,
trata-se das mesmas contingências em

Conjunto de emblemas. Agrupação Lubola. Montevidéu, relação ao escobero. O mais importante


27 de setembro de 2014. Reprodução do autor.
até aqui, é percebemos o modo pelo qual
as substancialidades da estética Candombe se apresentam significando valores
constituídos pela ética do ritmo.

Logo atrás, acompanhando os emblemas do grupo, desfilam os “porta troféus”


representados por uma lua crescente e duas estrelas de cinco pontas, alegorias
religiosas cuja origem remetem à cultura bizantina, além de serem adorados pelos
africanos como símbolos dos deuses que decaem do céu para iluminar o desfile.
Segundo o mestre Juan Manuel Gularte, as estrelas de cinco pontas também
representam os cinco continentes e estão correlacionados à religião cristã, ao passo
que a lua crescente representaria a religião islâmica da Nigéria ao Marrocos, de onde
partiram os africanos na condição de escravos. Nesse caso os dois ícones atuando em
conjunto representam o sincretismo de culturas, territórios e religiosidades produzidos
no próprio universo afrodiaspórico.

101
9. Das dançarinas

Depois de passar o primeiro personagem e os distintos emblemas do grupo, o


público é agraciado por cerca de vinte dançarinas dentre jovens e experientes. Suas
roupas de guepardo com perucas estilo black power enunciavam os elementos da
presença negra constituída no território africano e no afrodiaspórico. As mais jovens
dançavam na frente enquanto as mais experientes desfilavam na retaguarda. De
repente uma delas sinaliza o início de uma pequena coreografia combinada com a
pulsação dos tambores. A coreografia, nesse contexto específico, não é aspecto
fundamental da estética Candombe. Esta qualidade depende da escolha de cada
comparsa. Contudo, há situações que exigem maior rigor, por exemplo, em um desfile
“oficial” como no Carnaval. Nesse caso, as dançarinas de cada grupo escolhem
apresentar coreografias para os jurados, mesmo que sejam apenas no início ou no fim
do desfile.

10. Do Gramillero

Sendo ou não oficial, os personagens que sempre integram as comparsas de


Candombe são o gramillero e a mama vieja. E lá estavam eles naquela tarde. Com seu
chapéu cartola, óculos, terno e bengala, o gramillero poderia representar uma espécie
de paródia ao senhor de escravos. Contudo, o personagem é na verdade o curandeiro,
o senhor detentor da sabedoria africana, símbolo da tradição tribal reproduzida na
Diáspora e percebido por todos com muito respeito. Sua barba branca transmite essa
mística junto com sua pequena bolsa cheia de ervas ou gramíneas, deriva daí seu
título.
Em tempos de colonialismo, o gramillero simboliza ainda o antigo médico ou
curandeiro do General Artigas, conhecido pela alcunha de Ansina, homônimo ao
famoso conventillo situado no bairro Palermo e que hoje designa uma rua no mesmo
bairro. O velho sábio da “Nação” que, de acordo com Carámbula, fazia parte do
séquito do rei nas recepções oficiais, também atuava como Ministro. Nesse contexto,
sua função era de intermediar entre o público e o rei Congo as pequenas oferendas
compostas por doces ou singelas doações monetárias. Logo, o ministro se transformou
no atual velho “doutor” da tribo ou do microssistema Candombe (CARÁMBULA, 2005,
p.42). De novo, não se sabe ao certo como ou quando se deu tal dinâmica, o fato é que

102
o personagem, em suas distintas temporalidades e contextos, não abandonou sua
figura de autoridade e chefe detentor da sabedoria e memória afro-uruguaia.

Por conta destas credenciais, o gramillero é geralmente encarnado por um senhor


mais experiente. Sua performance é reproduzida pelo quadril enrijecido, os joelhos
levemente dobrados e a coluna totalmente inclinada para frente, na certa por carregar
todo o peso da colonialidade. E naquela tarde meio chuvosa, o chefe seguia da mesma
forma, repicando suas pernas, seguindo o regimento dos tambores com a elegância de
um corpo sincopado, sempre preocupado em cortejar a mama vieja cercando seus
movimentos.

11. Do Sagrado feminino: Mama vieja e vedete

E com todo seu encanto, vinha desfilando a matriarca do Candombe com seu
tradicional traje feito de anágua e saia rodada com rendas. E para afastar o calor ela
utiliza o leque com detalhes em madre pérola ou uma pequenina sombrinha. O
conjunto ainda é adornado por colares, pulseiras, e o famoso turbante improvisado
contra piolhos, herdado pela moda colonial ainda nos tempos das caravelas e trazida
pelas infantes, incluindo Carlota Joaquina. E com a mesma nobreza de uma antiga
Rainha de “Nação” a mama vieja do grupo La Tribu dançava, sendo cortejada pelo
gramillero. Ainda que sua performance esteja prioritariamente destinada ao cortejo,
entre um instante e outro, a matriarca deixava seu par a ver navios movendo seu
quadril e ombros de uma lado a outro, paralisando seu tronco no ar. Ainda mantendo
sua nobreza, ela erguia a cabeça e acenava com seu leque para o público que, por sua
vez, respondia à performance tentando balançar igualmente os ombros.

Gramillero e Mama Vieja do grupo


La Revuelta Candombe Cimarrón.
Desfile realizado para a 6° Chamada
de Candombe Lindo Quilombo –
Candombe Independente. Buenos
Aires, 1° de novembro de 2014.
Reprodução do autor

103
Naquele instante do desfile, por obra do “acaso”, encontrei uma amiga com quem
fiz amizade ainda na Casa de Cultura Afro-uruguaia. Estudante, baiana de nascimento e
vivências, seu objetivo ali era cativar alunos para dar aulas de dança, profissão a que se
dedica. E como dançarina, estava entusiasmada com a corporeidade das afro-
uruguaias, tanto que durante o desfile chegou a confessar encantada que estava no
“Pelourinho do Uruguai”. Deveras, contextualizando daquele jeito, Ana nos remetia
daquela rua para um território do qual estávamos habituados a compreender, nossa
pátria imaginada Brasil. Sem querer, minha nova amiga me impelia de um modo
inelutável a comparar as mama viejas com as famosas baianas brasileiras, sejam as
tradicionais do Carnaval carioca ou as vendedoras de acarajé nas ruelas históricas do
Pelourinho baiano.

Realmente, o traje típico das matriarcas do Candombe fazia-nos lembrar das Iyás
da cultura iorubá, ou Doné da cultura Jeje. Termos que no português significam “mãe”
ou “matriarca”, como no caso das iyalorixás que também cumprem sua função
sacerdotal na religião do candomblé iorubá. Todas herdaram estéticas e funções
específicas, porém semelhantes, constituindo, neste caso, a raiz do matriarcado
afrodiaspórico, transfigurado somente pelas contingências dos distintos tempos e
espaços. Deste modo, para além da comparação do traje ou da sua função específica,
o mais inevitável é reconhecer que todas elas significam e resignificam a pessoa que
concebe uma vida: a mãe.

E no contexto do microssistema Candombe, a presença da mama vieja representa


igualmente a matriarca que protege e acolhe todos os seus filhos, todos os tambores.
Representa a dignidade das mulheres negras e sua bondade suprema das mães
abnegadas. Representa a mãe terra evocando no trabalho a conexão consigo mesma.
Sua performance traz de volta em cena as antigas lavandeiras, cozinheiras, costureiras
e doceiras do velho Conventillo. Gerações de mães, avós e bisavós benzendo em cada
gesto as almas inquietantes. Mulheres negras e brancas, não importa o fenótipo
dirimindo qualquer construção arquetípica associada à cor da pele. Todas com suas
matizes e idades distintas incorporam o poder simbólico que a mama vieja evoca.
Poder e autoridade que Chabela Ramirez incorporava em sua primeira palestra

104
dedicada à Oficina de Candombe. Naquele momento específico sua voz ganhava um
tom forte e resoluto ao adentrar no tema do papel feminino no Candombe:

“falar de mama vieja é falar de sabedoria. É daí que nasce a


medicina, com a sabedoria das mulheres. Ela guarda a
autoridade da nação e nós reivindicamos essa personagem”.
(Ramirez, set.2014)

Na ocasião, Chabela concedia o título de “autoridade da nação” à mama vieja ao


se lembrar da mulher negra como escrava doméstica que durante séculos cumpriu
como uma das funções emblemáticas do sistema escravocrata desenvolvido no
universo afrodiaspórico: a ama de leite. E nesse contexto, Chabela alegava que todos
nós nascemos a partir dessa relação, do leite de nossas mama viejas e que, portanto,
somos filhos de uma mesma nação, a nação afrodiaspórica.

Ademais dos múltiplos significados que a mama vieja tem adquirido por quem a
reconhece, sua presença pode representar substancialmente o tipo de matriarcado
desenvolvido no contexto específico afro-uruguaio, e de certo modo em todo
macrossistema afrodiaspórico. Em tese o matriarcado se define como um sistema
social através da qual a mãe ou qualquer outra presença feminina exerce autoridade
absoluta sobre os núcleos de organização social desde as mais simples, como a família,
até as mais complexas a partir de uma comunidade. Esta perspectiva deriva de um
conceito proto-indo-europeu em que o poder feminino fundamenta a organização
sócio-religiosa de todas as sociedades antigas (BACHOFEN, 1861; FRAZER, 1922;
GIMBUTAS, 1974).

No contexto afro-uruguaio, este matriarcado é resultado de uma conjunção de


fatores correlacionados ao papel da mulher dentro e fora da família. Na realidade, uma
construção dinâmica que proporcionou o fortalecimento da figura materna para além
de uma estrutura social núcleo-familiar baseada no matriarcado, na acepção sócio-
cultural do termo, mas também em um empoderamento da presença feminina, ou
conforme Chabela Ramirez analisa, um madresolterismo:

105
“Desdramatizando nossa história, desde nosso lugar de fala,
superando estereótipos e espaços adjudicados, herdamos a
chefatura familiar, o madresolterismo histórico, capital de
nossos ancestrais, e temos crescido com a rebeldia lógica dessa
forma de vida desafiando o lugar que se nos adjudicou
construído pela pobreza.” (Ramirez, set.2014)

Com base na realidade interpretada por Chabela, o empoderamento feminino


afro-uruguaio está correlacionado diretamente à realidade familiar na qual a mãe
constitui papel nuclear na transmissão aos filhos e netos dos códigos de conduta, da
própria ética “construída pela pobreza” antes e depois do Candombe. De outro modo,
a “chefatura familiar” com base no madresolterismo também tem sido constituída
devido à ausência física e emocional da figura paterna ou de qualquer presença
masculina exercida de dentro de uma estrutura familiar. Estrutura esta que, a
propósito, herdamos pela história e “poder colonial” no qual a figura paterna e
materna devem atuar em conjunto cada qual cumprindo estritamente a sua função
social, política e econômica.

A partir do discurso de Chabela, reconhecemos que a própria presença da mama


vieja no Candombe contribui para a reflexão e aceitação do modelo familiar cuja
chefatura é exercida exclusivamente pela mulher, mãe, avó e bisavó, contrariando
aquela estrutura familiar restrita e instituída pela colonialidade do poder. Além disso, a
mesma matriarca, enquanto “autoridade da nação”, colabora para modificar a relação
desigual entre homem e mulher na medida em que seu empoderamento se faz
presente através da sua própria liderança.

Nesse caso, partindo do contexto ético-estético do microssistema Candombe,


compreendemos que a mama vieja detém a mesma autoridade de chefatura familiar
sobre os seus filhos tal qual o gramillero. Destarte, ambos os personagens, na sua
relação performática, procuram atuar em concordância à igualdade de gêneros,
sempre considerando o madresolterismo o fator real e resultante da “rebeldia lógica”
das mulheres afro-uruguaias, capazes de desafiar o lugar social, político, econômico e
religioso imposto sobre elas.

106
Um conceito que, em tese, possui relativa correspondência ao madresolterismo é
o de matrifocalidade desenvolvido por cientistas sociais, incluindo antropólogos, em
observação ao funcionamento das famílias afrodiaspóricas na América Inglesa e Latina
(FRAZIER, 1939; SMITH, 1956; CLARK, 1956; GRACCHUS, 1980; ANDRÉ, 1987).
Desenvolvido principalmente por Raymond Thomas Smith, a matrifocalidade
reconhece na mãe a principal responsável pelo grupo familiar, tendo ela o poder de
decisão sobre os assuntos relacionados aos filhos e netos e nas resoluções domésticas
de um modo geral. A família matrifocal também é constituída pela ausência frequente
do pai, este representando apenas um papel secundário na tomada de decisões do
núcleo familiar. Essa perspectiva não significa que a sociedade deve ser
necessariamente matriarcal, mas ajuda a compreender a dinâmica das relações entre
mãe e filhos observada em famílias afrodescendentes (SMITH, 1956).

Nesse sentido, a mama vieja continua representando a mulher afro-uruguaia que


opera os saberes, distribui as funções, ordena e controla o regimento interno da casa
como o fazia no antigo Conventillo. A matriarca é ainda responsável pela coesão do
núcleo familiar regido por sua inteligência emotiva e, por intermédio dessa relação, ela
também contribui pela transmissão da memória afetiva familiar. De um modo geral, a
matriarca afro-uruguaia tem sido importante na manutenção e transmissão do
patrimônio imaterial familiar e comunitário constituído pela memória e pelos modos
de fazer tradicional. Portanto, a “autoridade da nação” é também a autoridade do
conhecimento comprometida pela manutenção permanente da ética do Candombe.

Não obstante, no que tange a atual estética do ritmo, essa percepção e


compreensão da mama vieja podem ser postas de lado quando considerada a
relevância dada à figura da vedete cuja presença no Candombe é relativamente nova
em relação aos demais personagens. Sua influência se deve a força das culturas
cubana e francesa marcadas a partir da década de 1930. Sobre o tema, mestre Alfonso
Pintos lembra que a primeira vedete introduzida em uma comparsa de Candombe era
uma “dançarina loira”. Contrariando tal fenótipo Rosa Luna e Marta Gularte também
são lembradas como as primeiras e famosas vedetes que desfilavam pelas ruas
agraciando ao público com sua beleza negra.

107
De fato, beleza, graciosidade e sensualidade são
atributos estéticos inerentes às vedetes14 , como pude
constatar na tarde da “Chamada de Haedo”. Seus corpos
envolventes distribuíam beijos ao público, parte dele
constituído por homens. Por vezes, ela convidava alguém
mais animado para acompanha-la na sua performance.
Seus corpos desfilavam logo à frente dos tambores com
seus quadris, sempre em sincronia ao toque orquestrado do Candombe. Diante
daquele cenário foi inevitável a comparação com as rainhas de bateria do Carnaval
carioca e paulista, sobretudo considerando tal contexto festivo no qual sua presença
recebe maior notoriedade.

Da mesma forma que no Brasil, as qualidades estéticas dessa referência feminina


ganham ainda mais destaque na mesma medida em que o carnaval uruguaio torna-se
popular a partir de meados do século XX com a investida do Estado. No entanto,
segundo as matriarcas, ainda que a vedete seja bem aceita pela maioria tendo em vista
a sua capacidade em tornar mais popular o Candombe, a dançarina também ajuda a
consolidar, a partir da sua condição simbólica, um padrão estético da mulher
condizente com a moda e a indústria de consumo.

Nesse sentido, a dançarina pode contribuir indiretamente para desvirtuar a lógica


do empoderamento e emancipação feminina no Candombe, principalmente no que
tange ao discursivo afirmativo das mulheres negras evocado pela presença da mama
vieja. Diferentemente da matriarca, a vedete não coaduna com a ética do
microssistema Candombe, pois sua presença preza tão somente pela estética, pela
beleza e sensualidade dos corpos. Com efeito, o mesmo padrão estético pode
submeter a mama vieja a exercer um papel secundário como referência feminina. A
parir daí, a matriarca do Candombe pode ser percebida como uma figura caricatural,
ainda que consiga comunicar através da sua performance o sentido da sua presença
conformado em autoridade do conhecimento, da memória e da nação afro-uruguaia.

14
Vedete do grupo M.Q.L. em desfile para a prova de admissão do Carnaval de 2015. Montevidéu, 27 de
setembro de 2014. Reprodução do próprio autor.

108
No Candombe há, portanto, dois tipos de presenças femininas que não estão
diretamente imbricadas, mas discernidas de acordo com a função que desempenham
em seu microssistema. Enquanto a mama vieja incorpora a matriarca, a vedete
representa o padrão estético feminino. E apesar dos candombeiros concordarem que é
importante esse tipo de estética, a relação dissidente que a vedete pode provocar com
a matriarca e com outras possibilidades de presença feminina termina sendo motivo
de certo desconforto por muitos praticantes, dentre eles os mais experientes músicos
e dançarinas, conforme observa Chabela Ramirez:

“A mulher não chega nem integra as comparsas somente como


musa inspiradora, para que adorem seus quadris, seus corpos
exuberantes para poder se sentir rainhas somente no mês de
Carnaval. (...) Hoje em dia, as mulheres são mais que musas e
objetos de Candombe, somos sujeitas ativas, criativas, e
resilientes, talvez não obtenhamos a mesma coletiva,
construída com a solidez que a sociedade nos exige, mas é
possível que estejamos criando uma forma de participação mais
integral e competente.” (Ramirez, set.2014)

A cantora e feminista ainda exemplifica em sua fala sobre estas distintas formas
de participação e competência que a mulher afro-uruguaia pode e deve assumir:

“Coreógrafas, bailarinas, maquiadoras, compositoras, cantoras,


mamas viejas, escoberas, vedetes, percussionistas, costureiras,
etc. somos e nos sentimos parte desta corrente emergente e
absolutamente integradora que construíram nossa
ancestralidade entre lágrimas e sorrisos porque em um
Candombe, historicamente temos participado e não
renunciamos a ele, do mesmo modo que não devemos
renunciar nem esquecer nosso passado de lavandeiras,
cozinheiras, amas de leite, ou curandeiras, ainda que hoje em
dia nossa função laboral sejamos doutoras, motoristas,
diretoras e até presidentas.” (Ramirez, set.2014)

109
A despeito de todas as possibilidades valorativas que a mulher afro-uruguaia
possui dentro e fora do Candombe, o fato é que sua presença continua carregando
uma dupla discriminação de raça e gênero sendo, todavia, segregadas aos setores
laborais menos qualificados. De acordo com a análise de Ana Karina Moreira, assessora
governamental do Instituto Nacional de Mulheres, quase uma em cada quatro
mulheres negras ocupadas trabalha no serviço doméstico, ao passo que apenas uma
em cada seis mulheres brancas ocupam o mesmo ofício15.

Tania Ramirez integra a “Associação Mizangas Mulheres Afrodescendentes” que


atua no combate ao racismo e sexismo na sociedade afro-uruguaia. De acordo com seu
depoimento, as mulheres ainda seguem com os “mesmos papeis que na época da
colônia”, sobretudo as jovens negras que assimilam um projeto de vida que repete a
história de gerações anteriores: “com 16 anos, muitas desistem de estudar porque
entendem que de todas as formas terminam limpando o chão”. Esta falta de
perspectiva sócio-econômica reflete a condição real da mulher afro-uruguaia mesmo
diante do quadro de transformações afirmativas que suas lideranças e organizações
têm promovido e conquistado. Como exemplo, a criação do Departamento de
Mulheres Afrodescendentes, além de um projeto-lei em tramitação desde 2013 que
destina 8% das vagas de organismos públicos bem como a criação de bolsas de estudos
para a população feminina afro-uruguaia.

Somado a estes recursos jurídicos, existe uma permanente discussão sobre o


modo de atuação e aceitação da mulher negra na afrodiáspora, promovida pela “Rede
de Mulheres Afrolatinas, Afrocaribenhas e da Diáspora” (RAAD). O encontro permite
gerar e articular propostas para visibilizar a situação da mulher negra em termos de
identidade, discriminação, saúde, educação e trabalho.

Minha estadia naquele mês de setembro coincidiu com a realização da II


Assembleia da RAAD, coordenada pela “Associação Mizangas Mulheres
Afrodescendentes” em conjunto com a Agência Espanhola de Cooperação
Internacional para o Desenvolvimento (AECID). Na ocasião, pude reencontrar a grande
amiga afro-chilena Marta Salgado, presidente da Organização Não Governamental Oro

15
Fonte: “A mama vieja, ícone do carnaval uruguaio e de uma minoria negra postergada”. Por Federica
Narancio e Paula Vilella. Fonte: http://www.lr21.com.uy/cultura/1159295-la-mama-vieja-icono-del-
carnaval-uruguayo-y-de-una-minoria-negra-postergada.

110
Negro. Integrava ainda à comitiva afro-chilena as amigas e líderes Marta Corvacho e
Milene Molina, todas integrantes do “Coletivo de Mulheres Luanda” de Arica no Chile.

Sabendo do meu interesse em participar do evento, Marta Salgado facilitou minha


entrada no último dia de discussões. Uma rica oportunidade para testemunhar o
campo de debates sobre a presença da mulher negra na afrodiáspora, além de
conhecer outras lideranças, incluindo Beatriz Ramirez, irmã de Chabela Ramirez e
estimada autoridade pública, atuante no Ministério de Desenvolvimento Social do
Uruguai. Na ocasião, Beatriz discursava sobre a permanência dos sintomas sociais que
fomentam a desigualdade entre gêneros e “raças”:

“O machismo e o racismo atuam se reinventando diariamente


porque historicamente temos crescido vulneráveis, e numa
porcentagem alta dos casos, porque temos sido educadas para
servir, sorrir e calar. Por isso nossa política afirmativa deve
combater da mesma forma. Pela mesma razão pela qual
seguimos buscando ainda nossas metas pessoais e grupais.”
(Ramirez, set.2014)

Somado ao discurso de Beatriz, outras lideranças feministas contribuíram à


diligência do debate propondo uma política afirmativa permanente e combativa aos
malefícios sintomáticos do Estado. Uma das participantes acrescentou que não se deve
depender exclusivamente de políticas transitórias, pois destas já bastam do governo
que “entra ano e sai ano não resolve muita coisa”. No afã das discussões, Lucia Molina
prossegue com o tema se referindo ao fato de que “não foi convocada qualquer
imprensa para registrar o evento” de modo a criar alguma possibilidade de tornar
“visível uma invisibilidade secular”.

Reconhecendo tal realidade, Molina termina a sua fala concluindo que a “principal
mídia” da mulher negra lamentavelmente “continua sendo o corpo”. Para Chabela
Ramirez, o desafio reside justamente na desconstrução do corpo como objeto,
permitindo que este incorpore seu poder midiático através dos significantes do e pelo
Candombe:

111
“as pessoas dançam e não se dão conta do que significa, não
tem maneira de saber qual e como era a origem. As pessoas
devem aprender a ler o que o Candombe está dizendo”.
(Ramirez, set.2014)

Essa problemática implica na percepção do estar consciente tanto de quem emana


o significado, como de quem recebe, no caso o público e, de uma maneira geral, toda
sociedade. Primeiro, se trata de considerar o Candombe como lógica processual
comunicativa transmissora de valores tradicionais. O objetivo é desenvolver sua
linguagem pedagógica “dizendo” ou ensinando à sociedade que existem outras lógicas
de produção da presença humana pautadas no respeito e igualdade dos sujeitos.

Somado a isso, o Candombe processualmente segue “dizendo” que também é


exemplo de modelo político democrático e que desse microssistema se estabelecem
autonomias de gestão e construção de bem estar social, independente das políticas
afirmativas do Estado. Além disso, o ritmo permite que os corpos ensinem à sociedade
o discurso propagado. Reside aí o desafio percebido por Chabela. Quando o público
assiste e dança, ele manifesta a vontade de “aprender a ler” os elementos da
linguagem-texto do ritmo. Logo, o público estaria compreendendo, aceitando,
respeitando e participando direta ou indiretamente do Candombe. As subjetividades,
além de empoderadas, agem conforme sua comunicação emotiva, afetiva, somando e
imbricando com seus próprios valores à linguagem processual afrodiaspórica.

Esta proposta de ensino e aprendizado realizada pelo Candombe é semelhante ao


que Julio Tavares denomina de “pedagogia cívica”, ou seja, um exercício de promoção
coletiva da transmissão da sabedoria de uma cultura. Para o autor, trata-se da
“transmissão articulada de conhecimentos com a finalidade de promover os direitos e
a consciência dos cidadãos, no exercício da crítica e da atitude com propósito de
revelar e superar estigmas, estereótipos e discriminações de toda ordem” (TAVARES,
2010, p. 18). Para David Scott, o cenário propício para revelar e superar estigmas seria
um “espaço problemático”, ou seja, “um espaço discursivo historicamente constituído”
pela confluência de elementos históricos e discursivos. Em termos epistemológicos, o
conceito pode ser entendido como uma área que nos coloca perante um conjunto de
questões de ordem cognitiva, política e artística, que fornecem uma espécie de

112
‘horizonte’ de futuros possíveis que nos permitem ‘pensar o presente’ e para os quais
as nossas práticas constituem uma espécie de réplica ou resposta (SCOTT, 1999, p.82).
Na prática o “espaço problemático” de Scott seria o espaço-rua onde o Candombe
conjuga sua estética à ética instituindo, por sua vez, novas possibilidades de relações
de ordem cognitiva, política e artística por meio da sua “pedagogia cívica”. Cabe então
a comunidade afro-uruguaia ensinar à sociedade que há perspectivas distintas de
modos de organização das relações sociais, do saber e fazer tradicionais, pautadas por
uma filosofia e práxis libertária.

Nesta altura da narrativa, somente analisando a morfologia do Candombe como


microssistema etnopolítico constituído pelos personagens apresentados, já
percebemos que existe um poder discursivo da cosmovisão afrodiaspórica baseada na
resiliência, memória, modos de saber e fazer. Além do que já vimos, ainda nos resta
compreender a conjugação ética-estética do Candombe regida por sua principal força
motriz, essencial para a manutenção da sua presença e do seu poder comunicativo: os
tambores.

12. Dos tambores: incorporação da comunicação ética-estética no Candombe.

O tambor candombeiro é um instrumento autóctone uruguaio,


constituído em seu começo com recursos da época como as
antigas “latas de azeite e garrafas de vidro” (p.76). Segundo
Ferreira, a construção de tambores respondeu ao uso
estendido de pipas e barris até meados do séc. XX. O trabalho
em portos e depósitos fez disponíveis barricas e técnicas de tonéis permitindo a
construção dos atuais tambores utilizados desde o tempo das Nações às Sociedades de
Negros (FERREIRA, 2002, p.46). Essa construção processual da presença
afrodescendente através da criatividade e do seu poder de resiliência requer um nível
de prática comunicativa desenvolvida pelo corpo. Nesse contexto, veremos como os
tambores do Candombe passam a ser incorporados pelo candombeiro a ponto de
haver uma simbiose entre os dois, facilitando a prática comunicativa do Candombe
afro-uruguaio. Antes disso, é necessário conhecermos metodicamente cada um dos
três instrumentos, suas medidas, funções e representações.

113
O primeiro deles se chama Chico que no português significa
“pequeno” ou “menino”. Este tambor é constituído de madeira e por
uma membrana, chamada de lonja pelos candombeiros, provinda da
pele de animal ou de material sintético. Dentre os três, o Chico
possui o som mais agudo devido à espessura do seu corpo e do
tamanho da sua boca, medida entre seis a nove polegadas. O Chico é muito
importante, pois é responsável pela base rítmica do Candombe. Os outros tambores se
baseiam nele para tocar em sincronia. Logo, o seu ritmo deve ser sempre constante de
modo a produzir a sinergia orquestrada do Candombe. Por isso, seu percussionista
precisa estar sempre atento ao compasso. Ele é, portanto, o tambor responsável por
iniciar a performance.

Aqui é necessária certa sensibilidade do(a) leitor(a) para perceber como se


estabelece ou como é dividido a marcação rítmica do Chico. Em um tempo completo,
ele possui um silêncio e três sons. Sendo que o silêncio preenche justamente o tempo
forte, enquanto que os sons ocupam o tempo fraco. A frase sonora sempre começa
com a mão sucedida por dois golpes no tambor com a baqueta.

Tempo forte Tempo fraco

Som Som Som


Silêncio (.) Mão (x) baqueta (-) baqueta (-)

Para uma análise comparativa de modo a facilitar nossa leitura, imagine alguém
caminhando sem importar com a velocidade. A cada pisada no chão se faz o silêncio. E
no intervalo entre uma pisada e outra o som é constituído. Assim sendo, o compasso
do Chico nunca está no chão, está sempre no ar, solto e livre, propiciando a sensação
do constante descompasso no corpo. É difícil perceber essa estrutura rítmica muito
devido à velocidade em que o “menino” é tocado. No entanto, se atentarmos ao ritmo
dos outros tambores em conjunto, percebemos que existe um breve silêncio ou
ausência de som no tempo forte do Chico. Com essa base rítmica sincopada, o
“menino” influencia diretamente na performance de todas as dançarinas e
personagens do Candombe. Fato que contribui, por sua vez, para um estado
permanente do movimento enquanto linguagem não verbal dos corpos.

114
Outro elemento determinante para o regimento da orquestra entre os tambores
é o som da clave reproduzida com a baqueta no corpo do tambor. Este recurso é muito
utilizado para reencontrar o compasso quando acontece de um instrumento perder a
conversação entre os tambores. No caso do Chico, é também fundamental a execução
da clave já que a partir dela se inicia o toque em conjunto com todos os tambores.
É como se o maestro de uma orquestra clássica avisasse com sua baqueta para os
músicos do início da performance. O Chico, portanto, avisa e chama os outros
tambores para participarem e começarem a performance orquestrada. Veremos
adiante que este ato de “chamar” é importante para uma compreensão analítica como
conceito, pois permeia toda a relação ética-estética do Candombe no espaço-rua.

Depois do “menino”, vem o Repique como tambor responsável


pela comunicação articulada entre os outros. Sua afinação é um pouco
mais grave em relação ao Chico e seu tamanho é de porte médio. A
linguagem comunicativa do Repique é constituída através dos seus
fraseados sincopados. Por conta dele a linguagem do Candombe é
improvisada, através da sua capacidade de chamar e responder em torno da estrutura
rítmica do Chico e do Piano. O Piano por vezes também pode improvisar, entretanto, o
Repique é o mais livre para tal feito e, por conta disso, requer mais atenção, habilidade
e inspiração do músico. Sendo assim, a sua improvisação gera uma permanente
conversa dentro dos tambores orquestrados.

O Repique pode chamar outro Repique ou um Piano para a “conversa”, mas nunca
o Chico, pois este, como vimos, corresponde o compasso básico do Candombe e para o
“menino” não há liberdade de improvisação. Em síntese, o Repique corresponderia a
um ser que lança uma pergunta a outro que responde. A comunicação é ilimitada e a
improvisação ganha materialidade na construção do livre diálogo entre os tambores.
Destarte, é como se houvesse a produção de um microcosmo na relação entre seres
viventes, através do qual a linguagem é estabelecida com chamadas e respostas. Esse
padrão comunicativo entre “chamada” e “resposta” é na verdade uma estrutura
rítmica africana mantida em sua Diáspora. O Candombe, nesse contexto, representa
mais um exemplo deste padrão comunicativo dominado pelos músicos de modo que a
sincronia do ritmo através dos tambores seja sempre estabelecida.

115
O Piano, por sua vez, representa o primeiro tambor do
Candombe e possui o som mais grave por ser o maior. Através da
sua base rítmica foram desenvolvidos os três tipos de toques
tradicionais do Candombe: Cuareim, Ansina e Cordón. Como vimos
no capítulo anterior, cada toque deriva dos bairros e dos seus
respectivos conventillos onde habitava a maioria da população afro-uruguaia. Com
isso, o Piano tocado pelos moradores do Bairro Sul criaram o ritmo Cuareim, os do
bairro Palermo inventaram o ritmo Ansina e, por último, os residentes do bairro
Cordón formaram o ritmo homônimo.

O mais importante até aqui é compreender que a função do Piano define as


identidades e territorialidades que irão mais tarde influenciar o ritmo de outras
comparsas. Ao mesmo tempo, apesar de haver tais diferenças de ritmos, há no
Candombe uma produção monocultora quanto ao seu discurso ético-estético. Tendo
em vista o fato de que as antigas gerações de afro-uruguaios compartilham o mesmo
passado de apartações do seu lugar de convivência, racismo e outras formas de
violência promovidas pelo Estado, ainda sim, suas diferenças rítmicas produzidas não
comprometem a sua produção discursiva. Dito de outro modo, independentemente da
comparsa ou do seu ritmo, o Candombe é reproduzido na sua singularidade por
afirmar a presença afro-uruguaia. Através da sua estética produz-se a mesma ética
constituída em código de valores internos gerando hoje a mesma base etnopolítica.
Com esta premissa, podemos compreender as especificidades de cada ritmo e de seus
respectivos autores, bem como o contexto histórico-geográfico em que foi criado.

Piano

Cordón Ansina

Cuareim

Candombe

116
12.1 Ritmo Cuareim

O ritmo Cuareim foi criado pelos afrodescendentes que viviam no Bairro Sul
situado hoje na região do antigo centro da cidade de Montevidéu, entre as ruas
Cuidadela, Canelones, Ejido, Rambla Gran Bretaña e Rambla Republica Argentina. Essa
região especificamente concentrou boa parte da população afro-uruguaia muito
devido ao fato de estar próximo ao centro e também por ter sido nessa região a
principal entrada de negros africanos escravizados.

O antigo Bairro Sul abrigou as primeiras Confrarias e Irmandades pós-abolição


onde surgiram as antigas Nações responsáveis por popularizar o Candombe. Como
vimos, nesta época o ritmo ainda era inerente ao sagrado, seja pelo culto a São
Baltazar associado ao cortejo do Rei Congo. Passado o tempo, essas Nações foram se
agrupando dando nascimento a comparsas, como a “Sociedade de negros e lubolos”,
“Os Pobres Negros Cubanos”, “Os escravos de Nyanza” e “Os Guerreiros das Selvas
Africanas”. Em seguida, foram surgindo outras comparsas como a “Fantasia Negra”,
“Morenada” e “Añoranzas negras”.

Na época o objetivo primordial era a diversão. Os habitantes do antigo Bairro Sul


tocavam o tambor, dançavam, desfrutavam e as pessoas acompanhavam seu processo
conquistando cada vez mais as ruas. Entretanto, a região também testemunhou alguns
dos conflitos com o Estado, a começar pelo famoso conventillo MedioMundo, o
primeiro a ser demolido. Nesse sentido, a pretensão de se fazer etnopolítica no
espaço-rua com o modelo ético-estético do Candombe foi ganhando contorno e
volume conforme foram se acirrando os conflitos, seja pela via policial, seja pelos
sujeitos que discriminavam o ritmo, por “incomodar”, por “desordenar” uma ordem e,
fundamentalmente, por ser uma “coisa de negros”. A partir daí novas lideranças e
comparsas emergiram consolidando o estado da arte atual do Candombe.

Antes disso, no ano de 1943, os irmãos Silva, Wellington, Raul e Juan Ángel
chegaram ao Bairro Sul e começaram a criar um Candombe baseado nas velhas nações
e raízes afro-uruguaias surgidas no principio do século XX. Em pouco tempo foi criada a
comparsa chamada “Lonjas de Cuareim” através do qual o ritmo do Bairro Sul é
executado. E a partir de 1956 a comparsa começou a desfilar nas ruas criando as suas
chamadas reproduzidas até hoje pelas gerações de descendentes.

117
12.2 Ritmo Córdon

Na década de 1940 existia em Montevidéu o conventillo Gaboto, onde abrigava


uma enorme quantidade de famílias. Ali vivia a família Pintos Alvin. O pai de Aquiles
Pintos tocava uma guitarra e o bandoneón (tipo de acordeão) interpretando tangos e
milongas nas reuniões e festas do conventillo. Naquele tempo os conventillos tinham o
costume de receber a visita de outros tambores para celebrar reuniões e festas de um
modo geral. Eventualmente, os tambores de Cuareim e Ansina de Juan Ángel Silva,
Julio Giménez, os irmãos Puchol, a família Oviedo visitavam o conventillo Gaboto. As
crianças, vislumbradas com os toques dos tambores, começaram a reproduzi-los “a
capela”, ou seja, faziam reverberar da própria voz e do corpo o pulsar do instrumento.
Dessa forma, os irmãos Pintos acabaram aprendendo o toque de cada tambor,
ouvindo e repetindo com sua voz já que ainda não possuíam tambores, apenas a
vontade de tocar.

Surge então a ideia de realizar um pequeno desfile ou uma “chamadinha” com


tambores improvisados feitos de latas grandes de óleo, além de dispor de um pequeno
tambor emprestado do vizinho. Tinham apenas onze anos quando os irmãos Pintos e
seus amigos resolveram arrecadar dinheiro para comprar tambores apropriados e
dessa forma desfilar pelos bairros. Começaram a tocar tendo como referência o toque
de Ansina e com o tempo os jovens do conventillo Gaboto criaram o seu próprio.

A partir daí os jovens adquiriram o costume de sair às ruas todos os sábados.


Inclusive, em uma de suas saídas, decidiram ir ao Bairro Palermo visitar os tambores de
Ansina. Desta vez foram eles os visitantes. Antes de partir decidiram ascender uma
pequena fogueira nas ruas Isla de Flores e Gaboto. Aquela fogueira servia para afinar
os tambores cujas lonjas na época eram pregadas, pois não possuíam tensores. Logo,
os seis rapazes dividiram os tambores entre Repiques e Pianos. Estavam receosos e
temiam a reprovação dos tambores de Ansina. Mas sabiam que pelo desafio do
contato se conquista a aceitação. Então, os seis rapazes chegavam ao bairro Palermo.
Aquiles tocava o Repique e Alfonso o Piano. Para surpresa dos rapazes, receberam
aplausos e tiveram grande aprovação. Assim nasceu o toque tradicional Gaboto,
ganhando a benção dos tambores de Ansina.

118
12.3 Ritmo Ansina

O ritmo Ansina foi criado no Bairro Palermo, limitado pelas ruas Canelones, Ejido,
Emilio Frugoni e pela Rampa Sul. Tal qual o Bairro Sul, Palermo também abrigou
muitos afrodescendentes desde o começo do século XX. Famílias tradicionais do
bairro, como a Giménez, Suárez, Nazareno, Pujol, Quiroz, Rada e Ramirez,
desenvolveram o Candombe através do mesmo processo, expulsos do antigo
conventillo Ansina e criando a partir daí o ritmo homônimo.

Seu toque é caracterizado por sua fortaleza, velocidade e pela conversa


coordenada entre seus Pianos e Repiques. Aprender e reproduzir o seu ritmo tem sido
um ato comunicativo cotidiano, muito comum aos ouvidos do público, preservado de
forma natural desde as antigas gerações até a infância. Muito por conta destas
características, o ritmo Ansina tem influenciado diversas comparsas, incluindo a jovem
La Tribu, na Chamada de Haedo. Além disso, o fato da Casa de Cultura afro-uruguaia,
bem como a Associação Cultural e Social Uruguai Negro (ACSUN) se encontrarem no
mesmo quarteirão, cria-se certa convergência da presença afro-uruguaia no bairro,
tornando o ritmo Ansina ainda mais popular. A comparsa Valores de Ansina é
conhecida por sua reputação em preservar e reproduzir o toque com maestria.

Lembro-me da ocasião em que participei de um dos seus ensaios. Era um domingo


à tarde, por volta das 15h. O objetivo daquele ensaio específico era para um desfile
onde haveria escolha das comparsas que desfilariam no próximo carnaval. E de novo
me encontrava nas ruelas do bairro Palermo. Conforme caminhava, surgiam tambores
pintados de branco e vermelho saindo de suas casas, dos antigos porões, se revelando,
ganhando presença. Como se tivessem saindo do antigo conventillo Ansina para
ganhar as ruas permanentemente. O local combinado para o início foi na esquina da
Av. Gonzalo Ramirez com Magallanes. E assim que cheguei, já havia uma legião de
tambores Chicos, Repiques e Pianos. Todos reunidos em roda. No centro, uma
pequena fogueira surgia para aquecê-los, deixando-os afinados e prontos para o
toque. Aquele ritual da roda constitui o início da performance de todas as comparsas
antes dos seus respectivos desfiles e ensaios. Em torno dela se reúnem os tambores e
seus percussionistas. Através dela conversam, compartilham e se aquecem contra o
frio, afinando os dois corpos, o corpo tambor e o corpo humano.

119
Logo percebi que a partir da roda se inicia a simbiose do tambor com seu músico.
Essa relação do cuidado, do acolhimento e do afeto entre os dois elementos também
são percebidos e valorizados pelo público que aos poucos foi se reunindo, esperando o
primeiro pulsar sincopado dos corpos. Em sua contribuição sobre a análise da
morfologia da “roda” Julio Tavares afirma que “é uma unidade do intertexto que o
complexo cultural, constituído como resistência, estabeleceu” além de ser um “lugar-
texto que contém sub-textos que são os jogos compostos por frases individuais”
(TAVARES, 1984, p. 92). Então, se o Candombe é a narrativa textual constituída por
uma interface de elementos vivos, a roda seria a micro unidade textual ou o “lugar-
texto” onde as “frases individuais” se estabelecem em comum acordo, de um modo
cooperativo. Destarte, a partir do “lugar texto” os tambores começam a superar o frio,
a invisibilidade.

6° Chamada de Candombe Lindo Quilombo – Candombe


Independente. Buenos Aires, 1° de novembro de 2014. Chamada Haedo. Montevidéu, 13 de setembro de
Reprodução do autor. 2014. Reprodução do autor

Decorre dessa morfologia as ações compartilhadas da memória, do afeto e do


misticismo produzido por sua capacidade cognitiva em observar e transformar o seu
universo. Não à toa, os grupos de Candombe se denominam comparsas. Significa que
cada comparsa tem a natural capacidade de “compartir”, “compartilhar” o momento
de aceitação mútua. Nesse sentido, a roda ou “lugar-texto” conforma um “hólon”
universal de compartilhamento e testemunha da presença humana. O termo “hólon”,
na verdade é um conceito criado pelo jornalista-escritor húngaro Arthur Koestler e
deriva da junção entre a palavra holos, que no grego significa “totalidade”, com o
sufixo on que significa “parte” ou “partícula”.

120
Sua proposta de análise visa reconhecer as inter-relações existentes nos sistemas
complexos como a “mente humana” e as “construções humanas” (KOESTLER, 1969).
Dito de outra forma, o autor tenta explicar como a relação entre a autoafirmação do
indivíduo e a sua integração com os demais se complementam. Nesse sentido, admiti-
se que o indivíduo possui vontade, individualidade, mas ao mesmo tempo é capaz de
interagir, integrar e cooperar em prol de uma “totalidade”. A partir destes
pressupostos analíticos, Koestler desenvolve o conceito de “holarquia” como um
sistema de “hólons” que cooperam para atingir determinado objetivo. Com isso a
holarquia define as regras básicas de cooperação entre hólons reconhecendo sua
capacidade autônoma. De certo modo, a holarquia elucida o sistema de organização
dos seres vivos em ação com a natureza, como o voar de um bando ou a produção de
mel das abelhas. Neste sistema “holárquico” cada ser cumpre com suas funções
específicas de modo cooperativo para que o objetivo comum seja atingido,
exatamente como é realizado no Candombe.

A partir desta perspectiva analítica, percebemos que a conformação da holarquia


começa na própria roda de aquecimento dos corpos. E quando são muitos os corpos
de uma comparsa, como o caso de Valores de Ansina, há também inúmeras rodas
onde em cada uma delas constitui sua própria holarquia. Nesse caso, os corpos-
tambores entre Repiques, Pianos e Chicos podem trocar de uma roda para outra
compartilhando o calor da fogueira, ao passo que os corpos humanos compartilham as
brincadeiras, o chá-mate, o afeto e a memória. Sendo assim, a holarquia é capaz de
provocar neste pequeno “lugar-texto”, ou microcosmo, relações humanas
consensuais, condições de unidade cívica a partir do respeito e reconhecimento das
diferenças. Portanto, uma verdadeira filosofia do fazer reproduzida aqui pela ética do
Candombe.

corpos
holon

holon holarquia holon corpos fogueira corpos

holon corpos

121
E quando a roda se desfaz, a mesma ética permanece. Como disse, a roda é
apenas uma condição necessária para a simbiose do corpo tambor com o corpo
humano, sendo ela o início da performance que, por sua vez, culmina no desfile. Sendo
assim, uma vez em sintonia e sincronia, os corpos humano-tambor estão prontos para
desfilar no espaço-rua mantendo a sua polifonia orquestrada com base na holarquia
constituída na roda.

13. Do corpo-tambor

Na realidade, esta simbiose dos tambores com os corpos dentro do microssistema


Candombe não é um fato simplesmente realizado pela roda ou pelo toque durante a
performance. Deveras, esta relação entre os dois corpos começa a partir do modo
como os três tambores são percebidos e tratados.

Não é por acaso que no Candombe uruguaio o tambor Chico significa “menino”,
visto que ele representa o filho da família, aquele que merece ser ouvido, cuidado e
sentido. O Repique, por sua vez, é percebido como pai, aquele que orienta e conversa
literalmente com os seus pares. E finalmente o Piano, considerado como a mãe de
todos, aquele que cuida, protege e representa a sabedoria da mãe-terra. Essa
percepção declarada demonstra como o Candombe é em si um sistema de organização
social, estruturante para os indivíduos que o pratica e o incorpora na vida cotidiana.
Nesse sentido, são corpos-tambores.

Dessa forma, faz mais sentido perceber a facilidade com que os tambores são
incorporados. É como se cada candombeiro estivesse depositando seu filho, seu pai ou
sua mãe na roda para aquecê-los em torno da fogueira. Enquanto isso o corpo humano
se posiciona atrás, cuidando e acolhendo, ainda que tal propósito seja um artifício
inconsciente. Essa relação entre os dois corpos é sempre patente antes do desfile.

Por isso, muitas famílias afro-uruguaias reconhecem a importância de possuir um


tambor em sua casa. Uma vez tocado e incorporado, ele se estabelece no centro das
relações e tem o poder de orientar e desenvolver a comunicação emotiva entre os
familiares e demais participantes no âmbito privado ou público. Assim sendo,
compartilhar saberes e emoções em torno do tambor define a sua estrutura social
permanente, uma vez instituída pela primeira roda afrodiaspórica criada. Reiterando
essa ideia, Juan Manuel Gularte afirma que:

122
“Os tambores são elementos centrais da cultura Candombe.
Chegou com o meu pai e em bairros específicos. É por isso um
membro da família e tratamos como uma herança que
podemos usar como peregrinação da nossa cultura”. (Gularte,
ago.2014)

Se observarmos a partir da perspectiva de fora do microssistema Candombe,


percebemos que os tambores são apenas instrumentos, existem per si, não sofrem
nenhuma dinâmica, transformação externa ou interna. São objetos estáticos,
desprovidos de vida. Não mudam de forma, volume ou dimensão. Do contrário, os
tambores são incorporados (1) através do modo como são reconhecidos, (2) através da
roda e, finalmente, (3) através do toque. Dessa prática comunicativa, os três tambores
passam a produzir sinergia com sua relação sagrada criando condições efetivas e
afetivas para a narrativa da ética-estética do Candombe.

Essa mesma narrativa enquanto linguagem-texto produz um arquétipo de


significados não verbais cujo corpo-tambor é a principal referência e prática
comunicativa do seu microssistema com o mundo exterior. Para Julio Tavares, a
narrativa centrada no corpo “constitui-se na expressão condensada dos movimentos
que sistematizam a ação gestual dos hábitos corporais, os quais podem ser entendidos
como um sentido de resistência e como um ato de rebeldia” (TAVARES, p.81, 1984).

Da mesma forma, estes “hábitos corporais” também seriam uma ação pragmática,
a ação do devir do sujeito nas circunstâncias com as quais lhe oferece oportunidade de
representar seus indícios de poder e enunciar sua identidade. Até mesmo a criança
afro-uruguaia, habituada a incorporar cotidianamente o tambor como instrumento de
expressão da linguagem não verbal, estende esta simbiose para as relações sociais
expressadas no corpo. O tambor, por sua vez, oferece a potência de comunicação
transmitida pelos sujeitos que o incorpora. A partir daí, todas as linguagens não
verbais das práticas comunicativas afro-uruguaias, incluindo o Candombe, são
transformadas em hábitos expressadas no diálogo gestual com outros indivíduos.

123
Deste modo, o corpo afro-uruguaio é a primeira mediação desse hábito
incorporado, capaz de atuar como ferramenta resiliente ao meio social conflituoso em
um estado permanentemente afirmativo. Esta ação do corpo está todo o tempo se
imbricando nas suas multi atitudes com o campo institucional. Tal feito é graças a sua
evidência histórica, ao trauma da travessia e do holocausto, que hoje é contra narrada
no espaço-rua concatenada ao poder constituído como linguagem. Algo compreendido
por Foucault como “prática discursiva do poder” (FOUCAULT, 1998, p. 29).

Destarte, cria-se um estado de “drama social” permanente através do qual os


indivíduos cooperam para a prática comunicativa investida como discurso de
afirmação política da presença afro-uruguaia. De acordo com Tavares, a partir da
condição lúdica com o discurso não verbal, o corpo (tambor) contribui para forjar “as
armas dos negros da Diáspora”: religiosidade, culinária, arte e luta, além do
“madresolterismo” e da própria resiliência enquanto estado de presença. Para o autor,
todos estes elementos ajudaram a constituir um “complexo de sistema de cultura de
resistência, capaz de se potencializar em uma sabedoria de técnicas ainda não
suficientemente sistematizadas” (TAVARES, p. 80, 1984).

Para Michel Foucault, esse discurso estará presente em inúmeras técnicas de


produção da vida social, assim como nas “técnicas do corpo”. Trata-se do modo pelo
qual o poder se constitui, se enreda, transformando-se em rede, dentro de um campo
de cooperação dos sujeitos. De certo modo, essa percepção do filósofo concernente ao
poder é decodificada a partir do desejo, das pulsões e de uma história genealógica das
instituições que formulam essas pulsões (FOUCAULT, 1972). Por esta perspectiva, o
corpo passa a ser um regulador e disciplinador das ações do poder, sendo o lugar
prioritário desse poder por onde se enuncia e se dissemina em rede, através de laços
permanentemente cooperativos. Assim, os encontros são produtos da linguagem
corporificada capazes de produzir poder nos jogos da teatralidade cotidiana.

Diante desse contexto analítico, o corpo-tambor é também um “sistema orgânico”


capaz de produzir signos e cultura numa relação mediada com a realidade empírica,
conforme defende Lucia Santaella (2003, p.181). Para a autora, o corpo representa a
mediação tecnológica com o mundo exterior. Por intermédio deste contato, o corpo-
tambor afro-uruguaio é também um artifício tecnológico e media seu próprio princípio

124
ético-estético com a sociedade. Essa mediação, como vimos, está repleta de
significados constituídos pela performance dos personagens do Candombe, sendo o
corpo-tambor o principal deles, pois ele constitui a força motriz que promove o
movimento e linguagem não verbal dos outros corpos. E nesse sentido, Csordas
reconhece que essa presença em movimento é a “base existencial da cultura”
(CSORDAS, 2008, p.102).

Além disso, o corpo-tambor em movimento potencializa ainda mais a “pedagogia


cívica” do Candombe no espaço-rua criando condições de expandir, mediar e
transmitir a presença afro-uruguaia. Ainda para Tavares, esta presença é percebida
como uma condição de se “estar-no-mundo”, um estado consciente, com a
consciência da prática corporal (em movimento) situada no instante cotidiano e na
interconexão com a dimensão cósmica que esta consciência institui.

A partir daí, o autor contribui para transpor essa condição da presença em uma
dimensão em que o “corpo é integrado no Cosmo” (TAVARES, 1984, p. 104). E com
isso, nos permite compreender o estado de presença afrodiaspórica e, no contexto
específico desta narrativa, da presença afro-uruguaia pelo Candombe. Significa que
seu microssistema ético-estético contribui para religar (religião) permanentemente a
presença, sua prática corporal em movimento, ao plano sagrado. Por isso, é tão
corrente o discurso trazido pela memória dos que praticam o Candombe sobre a
ancestralidade, o povo que nos concebeu na Diáspora Africana. São eles que autorizam
e intermediam o “saber corporal” em movimento através da simbiose com os três
tambores.

Vimos que os tambores antigamente eram escassos, e quando havia ao menos um


era passado de pai para filho, de geração a geração. Tal investida é mais um motivo
para que os tambores possuam essa qualidade sagrada, pois eles materializam a
presença da ancestralidade tratada como mais um membro da família. À esta
perspectiva, o tambor é considerado um ícone do microssistema afrodiaspórico.

Nesse sentido, o tambor é a extensão da linguagem e do corpo e, portanto, ganha


vida. O ato de tocar é conjugar a comunicação da presença trazendo para o espaço-rua
a memória ancestral. Por isso, os três tambores são tratados com muito respeito e até
mesmo com muito afeto. É natural encontrarmos uma família na rua antes ou depois

125
do desfile carregando seu tambor nas costas ou junto ao ventre, estabelecendo essa
relação de acolhida e de proteção. É como se o tambor manifestasse a essencialidade
da vida encarnada no objeto e estendida para o corpo humano. E essa sinergia
também ocorre do corpo humano para o corpo tambor. Isto é, a mutualidade
comunicativa entre o tambor e o humano nos faz compreender que um não existe sem
o outro. Dessa simbiose nasce, portanto, a condição da presença.

“Tocávamos os tambores para nossos ancestrais. Eles são


instrumentos de comunicação para quem está acima e fortalece
as relações. Portanto, é necessário por sentimento no tambor,
pois ele convoca”. (Aquiles Pintos, set.2014)

“A maior riqueza eram seus filhos e hoje são nossos


ancestrais”. (Ramirez, out.2014)

“Seu poder não vem de dentro. Não sei bem como é isso, mas
ao tocar sinto que tocam comigo meus pais, meus avós e os
pais dos meus avós... todos estão aí nos apoiando, nos
ajudando, prontos para nos ensinar e nos dar força e valor (...).
O poder do tambor nos transcende, nos abre as portas do
inconsciente, nos permite comunicarmos com o além”. (Juan
Angel Silva in: ALFARO; COZZO, 2008, p.57)

Sendo assim, a razão pela qual tocam, invocando as antigas gerações e


incorporando o tambor, compõe na relação ética-estética do Candombe uma condição
sagrada tal qual vimos no contexto do Candombe brasileiro e argentino. Naquele
momento da narrativa, vimos que São Baltazar ou Rei Congo, bem como outras
manifestações da presença ancestral afrodiaspórica são instituídas pela simbiose
corpo-tambor a partir dos seus rituais performáticos.

Não podemos esquecer que a invocação dessa ancestralidade pelo corpo-tambor


contribui para a transmissão dos valores tradicionais, dos modos de saber, fazer e
sentir constituídos pelo microssistema e por sua própria natureza autônoma e
libertária. Resulta dessa produção da presença um estado permanentemente
conflituoso e afirmativo. Eis o sentido do discurso comunicativo etnopolítico. Com
tudo isso, compreendemos melhor o significado da morfologia e cosmologia que

126
compõem o título do presente capítulo. Enquanto a morfologia é constituída pela
roda, pelos personagens e, sobretudo, pelo corpo-tambor em movimento (desfile), a
cosmologia atua como linguagem-texto “não verbal” capaz de manter a resiliência,
memória e ancestralidade da população afro-uruguaia. Todos estes elementos
articulados entre morfologia e cosmologia corroboram para a manutenção do seu
discurso etnopolítico.

Todavia, a produção da presença em movimento também é manifestada nos


bastidores do espaço-rua, em outros níveis de relações encontrados nos micro rituais
exercidos por quem pratica o Candombe e, por isso, percebidos tão somente na
interação e participação junto com os que convivem no interior do seu microssistema.

Certa noite, estávamos preparando os três tambores para mais uma aula da
Oficina de Candombe ministrada pelo Grupo Asesor. Angela Ramirez me ajudava a
ordena-los um ao lado do outro. Para finalizar, tratei de repousar as baquetas em cima
de cada corpo-tambor. E com um tom imperativo, Angela imediatamente pediu para
que eu retirasse as baquetas. Perguntei se havia algo de errado. Então ela me explicou
que não se deve colocar as baquetas em cima dos tambores porque representa a
“ausência do músico”, como se a sua alma já não estivesse mais presente.

Percebe-se o estado simbólico da relação sagrada entre o objeto e o indivíduo. Por


detrás da materialidade representada pelo tambor existe o universo imaterial,
constituído no Candombe pela memória psicoemotiva do passado afrodescendente.
Dessa forma também é fundamentada a narrativa e discurso ético-estético do
Candombe. E processualmente, a ancestralidade é compreendida por encarnarem nos
tambores as antigas presenças que criaram um paradigma de vida, que pensavam e
sentiam de um modo resiliente, autônomo, e faziam da sua organização social
microssistêmica uma possibilidade autogestora.

E a partir desse ato de consciência é gerado um novo estado de presença subjetiva


e coletiva no Candombe, tal qual autogestora e politicamente afirmativa. Com isso, o
tambor invoca e convoca à sociedade uma possibilidade de entendimento das relações
sociais através do lúdico com o sagrado. Essa relação entre invocar pelo tambor e
convocar a sociedade é o que se entende por Chamada.

127
14. Da Chamada e Chamadas-Mãe

As primeiras Chamadas estavam estritamente relacionadas à celebração aos reis


Congos no tempo em que as Nações existiam. Para a maioria, o Candombe hoje está
dissociado com a religiosidade, ainda que haja o reconhecimento de que no passado
existia o sincretismo da prática com o culto aos reis. Entretanto, para Chabela Ramirez,
nunca houve uma dissociação completa entre o Candombe com o sagrado muito
devido às razões discutidas anteriormente. Além disso, Chabela argumenta que pode
haver uma correlação direta do Candombe com o Candomblé, muito devido às
similaridades do toque dos tambores com os cantos entre uma prática e outra.

Como vimos, o Candombe é resultado de um estado de resiliência e emancipação


da população afro-uruguaia na sua diáspora. E deste modo, sua produção cultural,
religiosa e, por último, política foram sendo desenvolvidas mutuamente, sendo ou não
imbricadas, mas confundidas ao serem exercidas nos agenciamentos entre o sistema
afrodiaspórico com a “colonialidade do poder”.

Não à toa o Candombe é exercido através das suas Chamadas. O ato de chamar é
um ato imperativo, o desejo de que dois ou mais seres (corpos e tambores) se
encontrem e iniciem um processo comunicativo dialógico e mútuo entre o ensino e
aprendizagem das diferenças. Somado ao ato imperativo de chamar alguém, o
Candombe propiciou o modelo etnopolítico da Chamada dentro do seu microssistema,
convocando a sociedade para a compreensão do seu próprio modelo de organização.
Com isso, o corpo-tambor evoca os elementos da ética-estética através de um
chamamento, uma interpretação convidando o público a participar da narrativa.

Os gestos, a sua espacialidade e direção, estabelecem uma conexão com os outros


corpos “não verbais” encontrados no público que, por sua vez, estão ambientados
num contexto rítmico, de cadência, através da repetição. É muito comum nos desfiles,
e até mesmo nos ensaios, perceber a reação da plateia acompanhando o pulsar dos
tambores batendo palmas ou a ponta dos pés no chão. Há aqueles, inclusive, que se
aventuram a dançar como as dançarinas, movendo os quadris na ponta dos pés. Para
George Mead, essa conversa de estímulo e resposta é sempre cooperativa. Trata-se de
“uma força enunciativa articulada às condições do ambiente e da consciência dos
interlocutores entre o estímulo e o estímulo da reação”, produzindo um efeito em

128
rede de enunciados e significados em ambiente global (MEAD, 1967, p.107). Com essa
linguagem não verbal em diálogo mútuo e cooperativo entre tambores e corpos
(hólons), cria-se uma interação pautada em consenso, reconhecimento e aceitação das
múltiplas presenças com a finalidade de se divertir, compartilhar e conviver.

Angel Quintero Rivera compreende que este tipo de comunicação interativa e


cooperativa é fundamentado entre chamadas e respostas, e como vimos, é uma
característica performática que herdamos da África e desenvolvemos em nossa
Diáspora. Segundo o autor as músicas afro-americanas caracterizam-se, de um modo
geral, pelo uso de dois tambores, um que leva o ritmo básico e o outro que
“repiqueteia” de forma improvisada. Sobre este toque básico, enormes variações
rítmicas podem ocorrer o que estimula uma criatividade coreográfica. No caso do
Candombe, como vimos, não são dois, mas três tambores, o que possibilita maior
liberdade de criação e improvisação, exercícios estes realizados pelo Repique e Piano.

Rivera ainda faz uma correlação com o ritmo ocidental, enquanto este obedece a
uma métrica, geralmente lenta e romântica, as músicas afro-americanas possuem
marcações sincopadas proporcionando uma qualidade erótica para o ritmo. À este
aspecto, o Chico cumpre bem a métrica sincopada, transmitindo para os copos em
movimento a sensação de permanente sincronia com a dissonância, o desacordo de
uma narrativa.

O autor também explica a diferença dos dois modelos segundo suas métricas
comparadas às noções de temporalidade. Melhor dizendo, a diferença do andamento
entre a música ocidental e a afro-americana representa distintas percepções do
tempo. Por exemplo, o compasso padronizado e previsível da música ocidental
reproduz a sensação do tempo linear, a ideia de progresso, da modernidade. Ao passo
que na música afro-americana representa uma marcação sincopada do tempo, ou seja,
uma descontinuidade e imprevisibilidade temporal. Para essa particularidade rítmica
da música afro-americana, o autor chega a afirmar que “representa melhor a realidade
histórica cotidianamente vivida das sociedades do novo mundo: a simultaneidade dos
tempos históricos diversos (…) através do qual o mito, a história e cotidianidade se
entrecruzam em elaborações polirrítmicas sobre a possibilidade da utopia” (RIVERA,
2009, p. 74-76). Muito devido ao movimento dos corpos, há no Candombe uruguaio

129
uma continuidade ou linearidade entre começo, meio e fim de um desfile. Embora a
imprevisibilidade temporal esteja presente e muito evidente na performance das
dançarinas, quando seus corpos repicam nos ombros e quadris, sempre na ponta dos
pés.
Rivera ainda identifica que na música ocidental há uma centralidade visto que a
sua composição é exclusivamente individual, há certas hierarquias de tons e
instrumentos que prevalecem na orquestra e, finalmente, existe o predomínio do
canto. Em contraposição a esse modelo erudito, as músicas e danças afro-americanas
produzem uma descentralização na participação dos indivíduos para a produção e
expressão musical. A criatividade e o improviso norteiam a sua dinâmica e, sobretudo,
há o predomínio da dança enquanto expressão coletiva, já que dentro da roda há
casais ou mais pessoas dançando. Sobre esse contraste o autor afirma que “a
formação cultural descentrada que vai dar conta da nossa hibridez e heterogeneidade
choca com a tradição histórica de suas metrópoles coloniais e seus princípios de
conhecimento” (RIVERA, 2009, p.52).

Nesse sentido, a proposta do Candombe é também a desconstrução da “tradição


histórica” através da sua narrativa não verbal dos corpos em movimento, a começar
chamando a sociedade, convocando para participar, interagir e compreender sua
presença. De certo modo, essa proposta narrativa é realizada por toda Diáspora
Africana como afirma Chabela Ramirez:

“Todas as músicas saem da América escravizada negra e


indígena e o resto da sociedade apropria. Todos cumprem a
mesma missão de comunicar” (Ramirez, set. 2014)

Diante de uma Chamada para o desfile de Candombe, o corpo-tambor atua como


mediador entre os personagens e o público. Destarte, a narrativa estética do ritmo
promove a exteriorização da ética. Para uma breve análise comparativa, este ato de
“chamar” também se manifesta de um modo semelhante no Candombe brasileiro
quando os participantes trocam desafios entre si, chamando uns aos outros para
participar na roda. E de um modo bem peculiar, vimos que no Candombe argentino
um dos desígnios para o seu tambor era o de “chamador” (p.53).

130
As Chamadas do Candombe uruguaio, por sua vez, incorporam a imaterialidade (o
sagrado, a memória, a ancestralidade) através da materialidade (corpo-tambor). Esse
modelo comunicativo é também fundamentado pelas três estruturas rítmicas básicas
que já conhecemos e que hoje são conhecidas como Chamadas-Mãe.

Como vimos, o Piano representa figurativamente a Mãe entre a estrutura familiar


dos tambores. Ele por sua vez é responsável por diferenciar os ritmos tradicionais do
Candombe desenvolvidos nos bairros Palermo, Cordón e Bairro Sul. Por conta dessa
associação entre os toques tradicionais a partir do Piano, as Chamadas passaram a ter
essa designação de Chamadas-Mãe. Lembramos também que o Candombe nasceu
dentro dos núcleos familiares e dos antigos conventillos. Este microssistema era
administrado pela matriarca, donas de casa, lavadeiras, doceiras, realidade
representada pela mama vieja. Percebam, portanto, como o sagrado feminino
permeia todo o universo do Candombe. Ela está representada pelo tambor Piano, pela
mama vieja e pelas Chamadas. E por conta disso, sua presença inevitavelmente figura
toda a narrativa deste trabalho.

Sendo assim, com esta pauta discursiva, as Chamadas-Mãe se apresentam e


evocam a sociedade para conversar, para tocar e dançar, mas, sobretudo, para ensinar
como conviver com as diferenças em uma instância lúdica e performática. Lembramos
ainda que elas também representam os três toques tradicionais constituídos por seus
respectivos bairros transmitidos de geração a geração e compartilhados para outras
comparsas criadas na medida em que o Candombe vai se popularizando. O fato de
haver três toques gera às vezes certa discussão como em uma das aulas da Oficina de
Candombe ministrada neste dia por Chabela Ramirez e Juan Manuel Gularte:

J.M.G.: “Candombe é um só, se distingue por três maneiras de


tocar, mas é apenas um. O que precisamos decidir qual seguir”.

C.R.: “Não precisamos decidir qual seguir, mas decidir a razão


pela qual tocamos. Os professores ensinam como se toca, mas
devem ensinar por quê se toca”.

131
15. Do Candombe no carnaval

A preocupação em se transmitir a razão ou motivo pelo qual se toca o Candombe


provém de uma antiga apropriação do ritmo através do carnaval uruguaio. O fato é
que este tipo de festividade tem mercantilizado progressivamente o Candombe
fazendo da sua natural presença ética-estética um simples “evento” de consumo.

Antes de desenvolver a análise da relação entre o Carnaval e Candombe, devemos


reconhecer que a festividade é importada desde a Europa clássica, considerando
mesmo a sua origem. Em seguida, considerar o fato de que o carnaval no continente
americano adquiriu com o tempo um arquétipo mercantilizado em que aglomerou
processualmente inúmeros elementos originários de uma cultura afrodiaspórica em
prol de um estereótipo estético pronto para o consumo.

Especificamente no Uruguai, a “festa da carne” começou a partir de duas


vertentes religiosas bem definidas. A primeira derivada das salas e Nações realizadas
para seus respectivos reis e rainhas, a exemplo, Congo, Angola e Moçambique. Como
vimos, estas Nações começaram a partir das Confrarias desde o século XVII com a festa
de Folia de Reis, celebrada no dia 06 de janeiro. A segunda vertente por onde o
carnaval passou a ser incorporado pelos praticantes foi nas procissões católicas de
Corpus Christi desde o século XIX. José Ferreira atenta para o fato de que, na realidade,
o carnaval uruguaio foi oficialmente instituído pelo governo em 1956, ano em que as
comparsas de diferentes bairros foram unificadas e incorporadas ao calendário estatal
em um grande e único desfile (FERREIRA, 2002, p.44).

Com efeito, o Candombe tem renunciado certos valores, princípios e inclusive


elementos estéticos para poder sobreviver a seus aspectos rituais. Por exemplo, no
governo ditatorial, se elimina a “habanera” conhecido ritmo cubano que
eventualmente era tocado junto com o Candombe. Além de outros personagens que
há décadas ficaram esquecidos por conta deste episódio de censura e proibição pela
ditadura. É o caso do próprio escobero cuja presença hoje em dia não é regra,
entretanto muitas comparsas têm “resgatado” sua performance em memória às
antigas morfologias estéticas anterior a época da censura. Reconhecendo tantas
perdas Chabela Ramirez argumenta que:

132
Não devemos seguir perdendo tangos, hinos, habaneras,
milongas, personagens originários de nossa arte, por respeito
ao trabalho, à entrega e capacidade de nossos antepassados.
(Ramirez, set.2014)

Para dar mais um exemplo sobre este processo de perdas e apropriações da


cultura em prol de uma estética de consumo, Chabela questiona qual o estado da arte
hoje para o tango. Embora o ritmo seja conhecido mundialmente, poucos sabem que o
tango também tem origem da cultura afro-uruguaia, mas infelizmente se encontra
completamente desassociada à esta presença por conta de sua mercantilização:

Há mais de um século o tango foi destruído. Vocês se dão conta


que hoje no tango não há nenhum tambor? (Ramirez, set. 2014)

Outra questão que incomoda de um modo geral os praticantes mais experientes é


o aspecto competitivo que o carnaval impõe entre as comparsas. Vimos que a natureza
do Candombe é a cooperação, solidariedade, o compartilhamento de emoções e
experiências. Não à toa, a designação de “comparsa” condiz com sua cultura prática.
Entretanto para o Carnaval, as comparsas devem competir entre si destituindo
completamente a natureza de organização e relação social que o Candombe promove.
Para esta festividade, as comparsas começam a ensaiar meses antes, pois não são
todas elas que desfilam nos dois dias de carnaval. Antes, há um júri técnico que
classifica as comparsas que irão participar dos desfiles. Para o ano de 2015, foram 39
delas classificadas e tal foi o objetivo do ensaio da tradicional comparsa Valores de
Ansina no momento em que reencontrei os tambores no bairro Palermo. No carnaval
daquele ano, a “Valores” conquistou o posto de 12º lugar, conforme ilustra a imagem
a seguir:

133
Desfile Oficial de Chamadas
2015: pontuações totais.
Classificação de cada
comparsa. Valores de Ansina
obteve o 12º lugar com
373p. Fonte:
www.candombe.tv

O fato é que o Candombe é utilizado pelo Estado através do carnaval e posto na


vitrine como principal produto cultural do país, pronto para o consumo pelos turistas.
Por isso a necessidade de pontuar permanentemente que o Candombe nasceu antes
do carnaval e independe dele para continuar existindo, mantendo sua presença.
Entretanto, para tal feito é também necessário a vontade de todos os participantes
para que sua ética não se perca para a estética do consumo, como fica claro na
afirmação de José Perico Gularte:

“Candombe como cultura é uma coisa, outra coisa é o


candombe do carnaval. Temos que trabalhar para que o
Candombe não desapareça como cultura” (Gularte, out.2014)

Mais do que nunca, compreendemos o que Chabela Ramirez quis dizer quando
advoga a ideia de que as pessoas “devem aprender a ler o que o Candombe está
dizendo”. Sua linguagem-texto não verbal é posta a teste no Carnaval, quando o único
objetivo é o consumo da sua estética. Logo, “aprender” e “saber ler” o Candombe
passam a ser um desafio para o público, para a sociedade, mas, sobretudo, para seus
integrantes, por não deixar que seu discurso etnopolítico torne mais uma vez invisível
pela apropriação da sua estética. Como resultado, desapareciam automaticamente o
papel das lideranças, a ancestralidade, memória e historicidade envolvida como
fundamento da presença afro-uruguaia.

134
Alejandro Frigerio e Eva Lamborghini concordam que este contexto condiz com
uma forma de exercício político que nos serve exatamente para explicar o mesmo
fenômeno. Trata-se da política do “multiculturalismo light” através do qual a cultura é
exaltada e exibida (ao mesmo tempo em que é mercantilizada), de forma tal que os
aspectos potencialmente mais problemáticos de sua etnicidade ou de sua situação
social passem despercebidos. E nesse caso, a exibição de seus direitos culturais não
garante, assim, a efetiva reivindicação de seus direitos de cidadão (FRIGERIO;
LAMBORGHINI, 2002, p.162).

Neste contexto analítico, Néstor Canclini observa que o “multiculturalismo” nada


mais é do que uma justaposição de etnias ou de grupos em uma região. O Estado
admite a diversidade de culturas assumindo suas diferenças, aplicando políticas
relativas de respeito que frequentemente reforçam a segregação (CANCLINI, 2009,
p.17). Significa que o Estado-nação reconhece a diversidade do seu país, mas pouco
reconhece e soluciona as desigualdades constituídas por essas diferenças. O discurso
em torno do multiculturalismo funciona, portanto, como uma política de
apaziguamento de conflitos.

De modo semelhante, a crítica de Catherine Walsh para o “multiculturalismo” é a


de que se refere a uma simples multiplicidade de culturas existentes dentro de um
determinado espaço sem que necessariamente tenham relação entre elas. Esta
concepção se constrói dentro da sociedade nacional que, por sua vez, fomenta direitos
e deveres específicos para dar conta da relativa diferença e exclusão. Ou seja, um
multiculturalismo que fundamenta a busca de algo próprio a partir do lema de justiça e
igualdade (WALSH, 2009, p. 41).

Com isso, essa relação vertical entre o Estado e as minorias cria uma ilusão de que
a igualdade tem sido estabelecida e, finalmente, a de que o racismo e todas as outras
manifestações de violência estariam sendo extirpadas. Esta política ainda revela a
“síndrome colonialista” que consiste em crer que existe uma supracultura superior a
todas as demais, capaz de oferecer uma hospitalidade benigna e condescendente.
Logo, enquanto se emprega o termo para referir a situações e contextos específicos, o
multiculturalismo está fundamentado em problemas supostamente “universais” cuja
resposta ou solução deve ser igualmente universal (WALSH, 2009, p.43).

135
No que tange especificamente ao caso afro-uruguaio, ao apropriar a cultura
Candombe através do Carnaval, o Estado fomenta o discurso constituído com base no
referido “multiculturalismo”, na intenção de promover, valorizar e proteger o valor
cultural chegando à qualidade de patrimônio imaterial. No entanto, este tipo de
política naturalmente acaba apropriando o mesmo modelo cultural como objeto de
consumo. Com efeito, o discurso afirmativo afro-uruguaio através do Candombe torna-
se invisível, além de perdas significativas no que tange inclusive a estética, devido às
resignificações próprias do fenômeno, como evidencia Chabela:

Seus personagens ancestrais são resignificados e


incompreendidos, seus cantos em bozal calados, suas danças
ridicularizadas, sua mercantilização inclui outro tipo de canção
que não signifique o louvor à Mãe Pátria (...). A comparsa
merece outro lugar, Candombe e evolução devemos ter todo o
ano, (...) digamos ao Estado adeus para comparsa no
carnaval, não competimos, mas compartilhamos nossa
cultura. (Ramirez, out.2014)

Ainda no contexto do Carnaval, atento para as apropriações discursivas quando o


Estado chancela a festividade permitindo que o Candombe participe de seu próprio
desfile, dando apoio organizativo, de infraestrutura e, principalmente, o aporte
financeiro, lembrando que as comparsas vencedoras de cada carnaval ganham
dinheiro, fato que intensifica ainda mais a mercantilização e a competição entre as
mesmas. Além do mais, chamo atenção para outro detalhe de apropriação discursiva
do Estado quando o carnaval uruguaio passa a ser denominado “Desfile Oficial das
Chamadas”. Se algo é legítimo significa que não é mais proibido e, portanto, pode ser
incluído, reconhecido como prática cultural. Tal construção discursiva, de instituir uma
cultura, é a prova de que a apropriação chega a um nível em que sua manifestação
somente ocorre quando há chancela do Estado. Além do que, se há uma oficialidade
natural, considerando sua relação antagônica, há comparsas que permanecem de fora,
na “periferia” do carnaval uruguaio, sendo excluídas de uma festividade cujo princípio
é a competição.

136
Portanto, o carnaval uruguaio cria um contexto de festa nacional através da qual a
qualidade lúdica é a principal finalidade cujo público interage e aceita. Mais uma vez,
resulta daí o apagamento das intencionalidades subjetivas e coletivas derivadas da
noção de ancestralidade e memória do microssistema Candombe. Por consequência,
também é gerado o apagamento do discurso etnopolítico e das subjetividades que
através dele fundamenta a sua presença.

Na tentativa de melhor compreender a estrutura vertical do empreendimento


político promovido pelo Estado, façamos a inversão analítica do discurso entre a sua
colonialidade e o sistema afrodiaspórico. Pois esse exercício visa justamente propor
uma mudança de perspectiva, isto é, uma inversão cognitiva. Significa estarmos aptos
a compreender que não é o Candombe que precisa do Estado. Mas o Estado que
precisa do Candombe, da sua legitimação, do seu reconhecimento. Essa inversão de
perspectiva é estensível para todas as outras políticas afirmativas apropriadas pelo
Estado, tais como, a inclusão da categoria afrodescendente nos últimos censos
demográficos, a incorporação da história e cultura da África e sua Diáspora no
currículo pedagógico, cotas para ingresso à Universidade, salvaguarda das
manifestações culturais afrodescendentes.

Segundo Homi Bhabha, a proposta de se pensar inversamente já é em si uma


intervenção à própria noção de modernidade enquanto “progresso, homogeneidade,
organicismo cultural, à nação profunda e ao passado longo – que racionalizam as
tendências autoritárias, 'normalizadoras' dentro das culturas no nome do interesse
nacional ou de prerrogativas étnicas” (BHABHA, 1990, p.4). Todas essas campanhas,
sem exceção, resultam de exigências etnopolíticas provenientes do microssistema
afrodiaspórico, chanceladas pelo Estado como modelo de política pública afirmativa.
Através desse artifício diplomático, o Estado consegue cumprir com as metas de
inclusão determinadas pela agenda global.

Entretanto, a relação da sociedade com o Candombe já é pré-estabelecida


naturalmente porque um está imbricado ao outro. E essa condição estruturante foi
criada processualmente com a população afro-uruguaia através das mediações de cada
hólon, entre as famílias, lideranças, amigos e vizinhos. Para fazer uma analogia ao que
Arturo Escobar chama de “campos do movimento” que configuram públicos

137
alternativos nos que se transformam e contestam os significados dominantes culturais
e políticos. O público pode se ver como arena discursiva paralela onde os grupos
subalternos reinventam seus próprios discursos, identidades e interesses. Estes
campos são potencialmente contenciosos em duas formas: criam e sustentam
discursos, identidades e desafios alternativos em conflito com significados e práticas
dominantes, e mantêm uma disputa interna com seus interesses de modo que os
capacitem para responder de maneira adequada a seu próprio princípio etnopolítico
(ESCOBAR, 2008, p.302).

Nesse sentido, o Candombe é autônomo e sempre foi. Basta lembrarmos que é


um modelo de organização proveniente de um Conventillo. Apesar da tentativa de
invisibilização do ritmo, da sua etnopolítica que reafirma seu passado e ancestralidade,
o Candombe resiste à mercantilização via carnaval porque é da sua natureza resistir.
Sua presença continua sendo narrada pela linguagem não verbal a partir dos corpos
em simbiose e em constante movimento. Sua ética é mantida pela conversa dos
tambores, pelos espaços da rua conquistados sem pedir licença e aval do Estado.

Queremos que não se esqueçam do nosso ritmo. Hoje


estávamos aqui, mas amanhã não estaremos mais. (Gularte,
set.2014)

Havia um Candombe, hoje temos isso e vamos defender até a


morte. (Ramirez, ago.2014)

A população afro-uruguaia desconstrói a condição subalterna, pela qual esteve


determinada socialmente, a partir de uma mobilização própria, autônoma e articulada
com outras organizações e até empresários, de modo que as chamadas prevaleçam
para além do carnaval. Não se esquecer do ritmo é também não se esquecer da sua
capacidade de agregar diferenças de gênero, raça, religião. Ao mesmo tempo, lembrar
a origem, ancestralidade, sua constituição histórica e, sobretudo, seu conjunto de
enunciados como ação discursiva de afirmação da presença afro-uruguaia. Decorre daí
a importância de manter a transmissão do ritmo a partir da pedagogia via estrutura
familiar e via organização jurídica como tem feito o Grupo Asesor.

138
15. Panorama geral do microssistema ético-estético

Ele entra na roda repicando o corpo com suas pernas arcadas, sorri e acena para
cima descansando a mão na testa. Sentindo a presença dos ancestrais, ele agradece,
regendo e sendo regido pelo som do tambor... O Chico, o Repique e o Piano estão
prontos. Ao sinal do mestre, todos se reúnem e os tambores se unem ao ventre dos
seus candombeiros. Enquanto Valores de Ansina desfilava, o sol ressurgia ao cair da
tarde trazendo novamente a primavera. As bandeiras cortando o vento, o escobero
afastando os maus espíritos, o gramillero junto com a mama vieja incorporando e
transmitindo a ancestralidade. As dançarinas, os tambores e todo o público
interagindo em um estado lúdico e democrático.

Em certo momento, dobramos a esquina das ruas Minas com Isla de Flores,
passando exatamente entre a Casa de Cultura Afro-uruguaia e o atual condomínio
Ansina, onde habitava o antigo conventillo. Ali os tambores tocaram ainda mais forte
em sinergia e harmonia, como se estivessem reverberando o ritmo para seus
ancestrais. De repente me deparei com Leticia Sanchez e seu marido, ambos da
comparsa La Tribu, acompanhando o Valores. É muito comum encontrarmos na plateia
integrantes de outras comparsas acompanhando o desfile de outros, e como Valores é
bem influente, isso é muito comum. A vontade de compartilhar os mesmos valores
constituídos por via da tradição e da memória ancestral permeia tanto os músicos
quanto o próprio público, constituído por maioria de jovens.

A tarde quase caía quando dobramos à direita subindo pela rua Dr. Lorenzo
Carnelli até chegar à sede da Associação Cultural e Social Uruguai Negro (ACSUN) onde
o desfile continuou naturalmente, mas dessa vez compondo uma roda de tambores.
Foi quando o último Piano decide encerrar o ensaio de Valores reverberando na
“lonja” o seu tom grave somente abafado por gritos e aplausos. Com a chegada da
noite, novas rodas de fogueira eram acesas para manter os corpos aquecidos. Parece
que este ritual inicia e finaliza um ensaio. A noite se encerra com outras presenças
surgindo, inclusive uma roda de Capoeira cujo mestre era brasileiro. Diante daquele
espaço-rua convergiam múltiplas performances, tradições e corporeidades produzindo
uma única holarquia. Enquanto isso, o Candombe esperaria pelo próximo desfile, pelos
próximos tambores.

139
Destarte, aprendemos como o microssistema foi concebido, a partir das entranhas
de lugares sagrados, seja em confrarias, seja no lugar estratégico onde emergia
naturalmente os códigos e relações de conduta que processualmente se constituíram
na ética afro-uruguaia. Com a queda do Conventillo, vimos a população afro-uruguaia
ser espoliada, apartada mais uma vez da sociedade e da história. Com isso, veio à tona
o uso da resiliência, da resistência e da afirmação com base na sua proposta
etnopolítica.

Vimos que na arena social, encarada como o espaço-rua, o diálogo e as “situações


de conflito” são passíveis de acontecer. Entretanto, o Candombe apresentava seu
próprio arranjo social que, de certo modo, não é visto como “alternativo”, já que
condiz com seu próprio paradigma de organização, pois visa a sua autonomia política e
afetiva. Sua narrativa, constituída por corpos em movimento, são mais que
“metáforas” e “símbolos”, pois compõe um arquétipo discursivo que define o “outro
lado da história”. Esta história valoriza os braços, cabeças e almas negras pensantes
que resistiram a um sistema colonial para conceber o seu povo e seu próprio modelo
de organização. Como vimos, este modelo se destrincha em minúsculas
territorialidades, consideradas aqui como localidades centrais do fazer etnopolítico
afrodiaspórico. Dito de outro modo, consideramos que as ruas, os antigos conventillos
passam a ser o lugar da memória e, portanto, artifício discursivo para afirmação afro-
uruguaia.

Compreendemos também que o Candombe conjuga o drama social com a festa, o


ritual, o lúdico, a partir do seu modelo de comunicação não verbal. Ao se realizar
transgride a rotina cotidiana imposta pelo Estado ao corpo produtivo sequestrado do
corpo comunitário que, então, na sinergia do desfile e na sua “cosmocentricidade” se
configura (TAVARES, 1984, p.79).

Aprendemos ainda que o corpo-tambor é força motriz da arte de comunicar a


ética através da sua estética do Candombe uruguaio. E este fenômeno ocorre por sua
capacidade de interagir e cooperar a partir de um conjunto de enunciados, sendo a
síncope dos tambores e o repicar dos corpos os mais influentes. Fora do seu nicho sua
alma ancestral se estende para o corpo humano utilizado como “prática discursiva do
poder”.

140
Temos como um dos exemplos a experiência vivenciada pelos irmãos Pintos que
criaram o tambor através do corpo na tentativa de reproduzir o ritmo incorporando o
som na sua voz. Além do fato, de que os tambores Piano e Repique conversam entre si
em liberdade, improvisando e articulando novas linguagens em harmonia.

Vimos também que a própria morfologia da comparsa é resultado de um processo


sincrético, tendo em vista que, originalmente, as manifestações afrodiaspóricas
nascem em roda. A morfologia uniformizada, com personagens desfilando segundo
uma ordem cívica pedagógica é também herança dos antigos Cortejos em homenagem
a São Baltazar e ao Rei Congo. Além disso, o Candombe herda alguns personagens do
tempo das Nações, como o gramillero (rei; ministro; curandeiro), mama vieja (rainha),
bastoneiro (ministro; infante, benzedeiro). E que, em seu microssistema, existe uma
relação profunda de respeito e memória com a figura da mãe, fato que pudemos
constatar através dos elementos discursivos materiais e imateriais.

“a força da natureza e a naturalidade de certas coisas para


poder nos comunicar e a forma mais completa é com três
tambores”. (Aquiles Pintos, set.2014)

A simbiose do corpo-tambor. À esquerda Alfonso com o tambor Piano, ao centro


Aquiles com o Chico e à direita Polo, com o Repique. Casa de Cultura Afro-
uruguaia, setembro de 2014. Reprodução do autor

141
A seguir o infográfico resume a dinâmica morfológica e cosmológica do Candombe
uruguaio, desde a sua origem até hoje:

Privado Público
Confraria ou
Irmandade Rua

sagrado Estado
Ditadura
Salas

Nações Candombe
Nações e
Sociedade Lubolos
Rei
Congo
Ministro Rei Rainha Conventillo estética

Bastonero Gramillero Mama Vieja Lugar


estratégico

Espaço-rua
Ancestralidade

 Piano
Comparsa Candombe
 Repique
Piano  Chico Microssistema etnopolítico

Ética- estética
Corpo-tambor
Carnaval

estética

142
A esta altura da narrativa, devo lembrar algumas questões sobre o modo como o
Candombe uruguaio permitiu transgredir fronteiras geográficas e políticas das quais
esteve submetida ao longo dos séculos. Interessa-nos agora compreender como o
ritmo logrou atravessar o Rio da Prata conquistando novos espaços estreitando as
fronteiras e criando uma ponte (etnopolítica) entre Montevidéu e Buenos Aires. Mas
antes de explicar sobre a iniciativa das lideranças e músicos que carregaram
literalmente os tambores nas costas e no ventre para expandir e progredir o ritmo,
desejo observar a natural capacidade que o tambor possui para tal finalidade.

Para isso, quero trazer novamente as contribuições de Angel Rivera. Segundo o


autor, os “tambores encarnam” a própria tradição enquanto objeto capaz de
representar a cultura de um grupo e, mesmo que inicialmente tenham sido criados
para o uso local, podem “conquistar novas fronteiras, nacionais ou globais, sem
necessariamente perder sua historicidade, memória e autenticidade regional”. Os
tambores representam também a capacidade artística daqueles que os fabricam
permitindo conformar novas dinâmicas de sociabilidade entre os indivíduos do mesmo
grupo. Através desse exercício “as relações interpessoais são fortalecidas fazendo com
que os indivíduos que participam sejam agentes de mudança da sua própria estrutura
social” (RIVERA, 2009, p.73).

O Candombe uruguaio, junto com seus três tambores, possui a capacidade de


estabelecer um ambiente lúdico, alegre, constituindo diálogos horizontais entre
músicos e a plateia sem perder sua “autenticidade regional”. Além, é claro, de
comunicar o “grito do escravo” que a esta altura é comum e transgressora de qualquer
fronteira. Como dizia Chabela Ramirez, com os três tambores, o Candombe
naturalmente “cumpre em qualquer parte a comunicação, diferente do idioma”.

Há também um efeito político e pedagógico neste fenômeno de transgressão das


fronteiras via comunicação não verbal. O acadêmico ativista afro-americano Joseph
Jordania tem sugerido que os esforços dos afro-latino-americanos são hoje os mais
visionários em termos dos processos de transformação ligados à dispersão mundial de
descendentes africanos. Para Jordania, as lutas e pensamentos afro-latino-americanos
ocupam hoje o lugar que o pan-africanismo e as lutas contra o Apartheid ocuparam
nos anos sessenta e setenta. Essas lutas “produzem as condições para uma

143
intervenção sustentada e crítica (...). Pela primeira vez na história, suas lutas têm sido
conectadas com aquelas das outras comunidades de descendentes africanos nas
Américas de modo significativo” e isto é um desenvolvimento otimista não somente
para a resistência ao racismo, senão para fazer outros mundos possíveis visíveis e mais
viáveis (ESCOBAR, 2008, p.298 apud. Jordania, 2006, p.9). Da mesma forma, para
Walter Mignolo, uma das consequências desse alinhamento político diplomático
transnacional é a aproximação das fronteiras, um processo de “transterritorialização”
das afirmações políticas através da via diplomática sul-sul, criando “novas redes
independentes do Estado” (MIGNOLO, 2010, p.57). Em consonância à dinâmica política
dos territórios locais afro-latino-americanos há uma convergência entre fronteiras
muito devido à produção comunicativa dos tambores.

Transportar todo seu microssistema composto pelos elementos materiais e


imateriais é um artifício da sua própria natureza. Esta, por sinal, intrínseca à
comunicação não verbal, ao movimento da sua narrativa ou linguagem-texto através
do corpo-tambor. Qualidade que facilita a leitura e aceitação da sociedade que recebe
sua ética-estética, como veremos adiante quando o tambor atravessa chegando à
cidade Autônoma de Buenos Aires.

144
Travessia: o Candombe uruguaio na Argentina

145
17. Primeiros pulsos: conflitos e permanência

José Delfin Acosta Martinez, negro e nascido em Montevidéu, ao longo de sua


trajetória foi militante pelos direitos dos afrodescendentes, mestre de Capoeira, do
Candombe e Tango. Pesquisador da cultura afrodiaspórica no Uruguai e Argentina.
Possuía apenas 32 anos quando, no dia 05 de abril de 1996, confrontou a polícia
portenha ao defender dois jovens brasileiros que estavam sendo arbitrariamente
cooptados pela instituição. Por este motivo, José Delfin foi levado à 5ª Delegacia
situada na rua Lavalle, 1948. Nesse local, o afro-uruguaio foi interrogado e torturado
pela polícia culminando com seu falecimento. O caso, apesar de ter chegado à Corte
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA),
todavia segue sem resolução.

Pouco tempo depois, seu irmão Angel Costa funda a ONG denominada SOS
Racismo. Angel também foi um dos pioneiros do ensino do Candombe uruguaio na
cidade Buenos Aires. E já nesta época, vimos que o Candombe argentino estava
recluso em suas casas, sendo praticado por poucas famílias afro-argentinas (p.). Neste
contexto, sobretudo, após a morte de José Delfin, o Candombe uruguaio ganhava mais
notoriedade principalmente por jovens brancos de classe média. Vimos também que o
ritmo em Buenos Aires não era novidade, posto que pelo menos desde a década de 70
afro-uruguaios cruzavam o Rio da Prata para desfilar com seu Candombe. Fato que,
por vezes, gerava conflitos com os afro-argentinos, sobretudo, na casa Suiza em seu
baile Shimmy Club (p.46). Portanto, considerando estas variáveis, a travessia do
Candombe uruguaio parece ter sido um fenômeno de migração pendular, sendo mais
patente a partir dos conflitos, nos embates e negociações de suas fronteiras
identitárias e territorialidades com os afro-argentinos.

Para este fenômeno, Alejandro Frigerio e Eva Lamborghini observam que, de certo
modo, os embates entre o os militantes afro-argentinos com o Candombe afro-
uruguaio deveu-se ao fato de que seus mestres ensinavam o ritmo como uma
manifestação “rio-platense” estabelecendo uma continuidade entre as “chamadas”
contemporâneas de tambores, realizadas por imigrantes afro-uruguaios com o
passado negro do bairro histórico San Telmo onde boa parte dessas chamadas é
realizada (FRIGERIO; LAMBORGHINI, 2010, p.164).

146
Em outras palavras, o Candombe afro-uruguaio se apropriava da territorialidade
afro-argentina constituída no bairro histórico San Telmo, fazendo dela cenário para sua
prática cultural. Com isso, sua presença poderia contribuir de algum modo para
“apagar” ou pelo menos “por de lado” a presença afro-argentina junto com seu
passado. Com efeito, é possível haver a construção de novas narrativas a partir de uma
historicidade e territorialidade externa que ocupa o espaço-rua antes ocupado pelos
afro-argentinos. O Candombe uruguaio, por sua vez, passa a ser a principal referência
cultural afrodescendente de Buenos Aires, lembrando, mais uma vez, que neste
momento o Candombe argentino estava concentrado em ambiente privado.

O fato de o Candombe uruguaio ter sido praticado por jovens brancos de classe
média é também motivo que inicialmente gerou “certa discussão” entre os mestres
afro-uruguaios, pois havia a preocupação de que sua prática, assim como no Carnaval,
pudesse perder o sentido do seu discurso etnopolítico em memória da ancestralidade
e presença afro-uruguaia (FRIGERIO; LAMBORGHINI, Op. cit.). Entretanto, parece que o
discurso de afirmação etnopolítica não se limitava às essencialidades estéticas,
especialmente, no que diz respeito à cor da pele. Porque um jovem branco pratica o
Candombe não significa perda, ao contrário, diz respeito à transmissão de valores,
práticas e modo de vida desde uma concepção da ancestralidade negra para a
sociedade, independentemente do fenótipo.

José Ferreira concorda com a mesma análise ao afirmar que “independentemente


da categorização racializada (branco ou negro) do sujeito no cotidiano, o sentido de
que na performance seja (um negro velho quem toca através dele) significa em si uma
racialização do ator no ritual musical (a entidade que toca é um ancestral categorizado
como negro)”. Segundo o autor, a africanidade do candombe se definiria assim não
somente enquanto a suas formas performáticas, senão, sobretudo, como um produto
do processo de agência local, onde sua integração social é interpretada a partir da
subjetividade racializada, peculiar a sua própria história e visão de mundo (FERREIRA,
2008, p.20). Tais discussões antecedidas pelos afro-uruguaios radicados em Buenos
Aires parecem pertinentes quando se trata do contexto onde vivem. Durante minha
estadia, percebi que os embates étnico-raciais em Buenos Aires não estão explícitos,
mesmo assim, possíveis de perceber a partir dos sujeitos que vivenciam.

147
Ernesto Costa é exemplo de afro-uruguaio radicado há mais de cinco anos em
Buenos Aires. Ele foi um dos meus primeiros contatos estabelecidos assim que
atravessei o Rio da Prata. Quem me havia indicado foi Angela Ramirez, sua prima,
professora e secretária da Casa de Cultura afro-uruguaia. Logo saberia que, assim
como Angela em Montevidéu, seu primo seria importante para me introduzir ao
cenário de discussões etnopolíticas produzidas até o momento em território portenho.
Conseguimos nos reunir para uma conversa depois da terceira tentativa, pois ambos
estavam repletos de compromissos. Marcamos às 21h no Obelisco da cidade situado
no cruzamento da Av. Corrientes com 9 de Julio.

Ernesto se apresentava como afro-uruguaio de 1.85m, bailarino e homossexual.


Considerando a hora, resolvemos que o melhor a se fazer era encontrar um lugar para
comer. Antes de chegar ao local, observava o modo como Ernesto caminhava. Havia
em sua linguagem corporal certa leveza como se estivesse dançando em um estado
permanente tal qual sua prima, Angela. Decidi revelar minha observação a ele
comparando a sua prima. Ernesto sorriu e perguntou seu eu sabia dançar. Respondi
que não, apenas tocava tambor. Logo, ele rebateu sorrindo ainda mais: “então você
sabe dançar, saber dançar é se expressar com seu corpo e o tambor é parte do seu
corpo”. Aquele ato de fala firmava como a presença afro-uruguaia se constitui através
da simbiose dos corpos.

Chegando ao local indicado por Ernesto, percebi que era uma tradicional pizzaria
da cidade, adjacente a grandes teatros, casas de show e cinemas. O lugar, próprio para
a convivência familiar, também estava repleto de jovens e trabalhadores pós-
expediente. Contudo, aquele cenário foi imediatamente desestabilizado pela
linguagem corporal de Ernesto, distinta àquele ambiente. Enquanto procurávamos
lugar para sentar percebi que todos o olhavam, alguns com parcimônia, tolerância,
outros com descaso e estranheza. Estas flechas de julgamento e preconceito, no
entanto, não alterou em nenhum momento a altivez da sua performance. Ernesto
parecia estar consciente em relação aos preconceitos e talvez por isso mesmo não se
abalava. Pelo contrário, fazia questão de enunciar sua postura, seu estar-no-mundo a
partir da sua linguagem não verbal do corpo em movimento.

148
Com a mesma autoridade que entrou no salão, Ernesto gesticula ao garçom para
que façamos o pedido. Este, por sua vez, parecia levemente nervoso, como se fosse a
sua primeira experiência em servir um negro, bailarino, homossexual. Enquanto
pedimos lembrava-me do argumento de Erving Goffman: “há a preocupação do
estigmatizado por controlar seus veículos de indícios, seu comportamento gestual e
linguístico, para que as informações emitidas por ele próprio a seu respeito sejam
deferidas pelo outro com o objetivo de reconhecer a sua identidade virtual”
(GOFFMAN, 1982, p. 49).

Contudo, enquanto comíamos percebia que Ernesto superava com essa natureza
da estigmatização instituída pelo “não branco” em relação ao negro. Sua postura de
observar, gesticular, chama atenção e rompe o silêncio, tornando-se visível por sua
beleza e afirmação. Resultado da consciência de quem é e como deve ser. Ao invés de
atenuar sua diferença para diminuir sua rejeição que naturalmente seria exercida pelo
olhar do “não branco” (aqui é meu lugar), em uma tentativa de se aproximar a sua
estética, o afro-uruguaio afirmava com sua presença sem ser autoritário.

Tal qual o racismo, o embate de Ernesto é silencioso e sutil, ao mesmo tempo


impactante por desconstruir a ordem do discurso. Goffman também aponta que há
uma identidade pessoal que diferencia o indivíduo dos demais e que no processo
interacional há entrelaçamento das identidades sem a perda da sua unicidade. Essa
unicidade identitária é constituída pela biografia que, por sua vez, ainda trabalha em
constante entrelaçamento com vários selfs do cotidiano, destrinchados nas diferentes
arenas. Há a preocupação constante dessa unicidade inconsciente por demonstrar o
que não é, e por não demonstrar o que é, e nesse jogo interativo entre os vários selfs,
há estratégias de controle do seu poder enunciativo enquanto corpo, e do seu
conteúdo emitido enquanto signo. Essa atitude talvez não seja percebida pelo outro,
mas será interpretada pelo próprio, e com esse feedback interativo entre o self
pragmático e o outro, há o reconhecimento da atitude e se está surtindo ou não efeito
desejado. Certamente Ernesto diria que sim. E quando peço a sua opinião sobre o
racismo, o bailarino é ainda mais afirmativo: “racismo é a coisa mais interessante que
já inventaram”. Aquela resposta me surpreendeu. Enquanto o silêncio e os segundos
preenchiam a distância entre nós dois, Ernesto me encarava provocativamente.

149
Como o racismo pode ser algo interessante? Questionava em meus pensamentos.
Todas as discussões científicas e, claro, de senso comum, diziam o contrário. A partir
da interpretação de Rita Segato, por exemplo, a raça é considerada um signo, um traço
de uma história no sujeito que o marca uma posição e sinala nele a herança da
disposição. A escravização dos africano/as e seus descendentes foram uma instituição
particular de extração de riqueza do trabalho. Com o tempo estes corpos se
transformaram processualmente em um “código de leitura desses que deixaram neles
seus rastros”. Em outras palavras, raça não é necessariamente signo do povo
constituído, do grupo étnico, senão um traço, uma marca. Para a autora “o não branco
não é necessariamente o outro índio ou africano, senão outro que tem a marca do
índio ou do africano, a marca da subordinação histórica” (SEGATO, 2008, p.81).

Com a marca e a subordinação histórica constituída e legitimada pelo Estado, o


racismo aparece como violência expressada de distintas formas e níveis. Julio Tavares
considera o racismo um sistema social um modo de organização da vida, da política, do
espaço territorial e da cultura. Uma forma de vida pautada em práticas
discriminatórias e apartadas, geradora de chances e oportunidades para os que dele se
beneficiam. Dirigido, em especial, para a parcela majoritária da população de negros e
pardos, o racismo encontra-se diretamente vinculado aos efeitos da escravidão
(TAVARES, 200, p. 9). O racismo, em particular, é o tipo de violência criada pelo Estado
a partir do mecanismo de produção escravagista e foi a partir do séc. XV, que o termo
“raça” passa a delimitar as diferenças entre indivíduos através da cor de pele. E
durante esse momento surgiram as primeiras teorias sobre “inferioridade do negro”
(COQUERY-VIDROVITCH, 2004).

Com a categorização da raça e sua hierarquização com base na inferioridade do


negro é fomentado o discurso da supremacia racial branca. Trata-se, nesse sentido, da
concepção de uma humanidade dividida em raças ordenadas desigualmente, sendo a
branca associada ao belo, bom, ideal, desejável. Em contrapartida, o mesmo discurso
associa o negro com feio, imoral, indesejado. Portanto, o antagonismo racial
estabelecido termina por favorecer socialmente o “não negro” dando a sua condição
natural um status quo, o posicionando em segurança e confiabilidade na estrutura
social hierárquica.

150
Uma das emblemáticas contribuições no que diz respeito à construção do racismo
a partir da ordem cognitiva se deu por Frantz Fanon. Para o filósofo e psiquiatra, o
mundo colonial se constituiu entre branco e negro, onde o negro não é um homem,
senão um “homem negro cujo único destino possível é um destino branco”. A maneira
que tem o negro de alterar seu fenótipo é mediante a “aquisição da linguagem da
metrópole, amenizando seu sentimento de inferioridade”. Com isso, o colonialismo se
institui como lugar de enunciação impelindo ao “povo dominado a repetir
constantemente a pergunta ‘Quem eu sou na realidade?’” (FANON, 1983, p.85-86).

Na realidade, Ernesto sabia quem era quando justificou sua teoria a respeito do
racismo:

“Sem o racismo não precisaríamos nos afirmar, talvez


pudéssemos nos lembrar dos nossos ancestrais apenas como
membros familiares que contribuíram para nossa educação,
nossa formação social. Entretanto, essa formação social me deu
a oportunidade de compreender que é também excludente, e se
não fizer por mim, ninguém mais fará” (Costa, out. 2014)

Claro que esta consciência depende da “unicidade identitária” dos sujeitos, como
argumenta Goffman. Este posicionamento surpreendente de Ernesto contribui para
que haja uma perspectiva “afropositiva” em relação ao racismo, fundamentada, por
sua vez, em uma inversão de lógica discursiva. De certo modo, essa mudança de
perspectiva contribui para desenvolver outros parâmetros de ordem discursiva
inspirada nos diferentes âmbitos de produção da presença negra em sua Diáspora:
cultural, linguística, religiosa, política etc. Com esta lógica, a construção da presença
afrodescendente é exercida através de um pensamento dissidente à supremacia racial
branca na tentativa de desconstruí-la ao máximo. Então, sem deixar que eu
questionasse qualquer versículo do seu pronunciamento, Ernesto ainda chancela:

“América na verdade nasceu do ventre negro, nós concebemos


a sociedade atual, por isso tenho orgulho da minha
ancestralidade. Já somos vencedores, pois descendemos de
gente que sobreviveu a escravidão” (idem).

151
Tal construção da presença demonstra ser estratégica para lidar com o modus
vivendi argentino cuja mentalidade ainda está atrelada à marca da subordinação
histórica, da identidade racial “negativizada” constituída pelo colonialismo. Na
Argentina, esta configuração societária é tão absoluta a ponto de sua narrativa
dominante não glorificar sequer a mestiçagem, mas a branquitude. Como observam
Frigerio e Lamborguini, somado à narrativa dominante da nação existe um sistema de
classificação racial que operou, pelo menos em grande parte do século XX, na direção
da desaparição contínua dos negros na sociedade argentina e no predomínio cada vez
maior da brancura portenha (FRIGERIO; LAMBORGHINI, 2003, p. 158).

Com esta lógica de classificação racial, os afro-argentinos sempre serão cada vez
menos no território e história nacional, principalmente porque tal condição é
“negativizada”. Os autores ainda reconhecem que esta construção discursiva não se
encontra exclusivamente na narrativa dominante da história argentina, mas também
nas interações sociais da vida cotidiana (FRIGERIO; LAMBORGHINI, Op. Cit).

Deveras, foi justamente na minha interação cotidiana com uma mulher que
confirmou tal paradigma. Depois de saber que eu era brasileiro, a senhorita “não
negra” aparentando ter aproximadamente 35 anos questionou em que eu trabalhava.
Ao explicar meu trabalho e propósito no país minha interlocutora contestou com certa
gozação: “mas aqui na Argentina não há negros”.

Existem diferentes dimensões para o racismo. Uma delas se refere aos


mecanismos mentais que implicam os prejuízos e estereótipos próprios da
discriminação. Enquanto aos sentimentos, podemos considerar a rejeição, medo,
ameaça, incluindo o ódio, agressão e até a morte, como ocorreu com José Delfin
Acosta. Outra dimensão é a das atitudes racistas, entre as quais assinalamos como
características a intolerância e a estigmatização. E com base no enunciado pela moça
do restaurante, há um tipo de racismo igualmente nocivo e excludente, e se refere
àquele que oculta, apaga, torna invisível a presença do afro-argentino em seu próprio
território. Destarte, é impreterível o posicionamento constante via ação prática
ocupando o lugar tradicionalmente estabelecido pelo “não negro”.

152
Para José Ferreira, trata-se de um lugar em que antes africanos escravizados e
hoje afrodescendentes, com seus movimentos e formas de organizações sociais,
possam buscar novos imaginários, construir corporeidades e formas de socialização,
desenvolvendo em muitos casos pensamentos dissidentes e epistemologias
alternativas às dominantes (FERREIRA, 2008, pg. 4). E nesse contexto, o autor defende
uma abordagem das “artes performáticas”, especialmente os estudos da música que
consideram o campo das subjetividades “racializadas”.

Primeiro, o fazer música/ dança como prática constitutiva de identidades étnicas,


de tecido social e de sentido ou espírito de grupo; sobretudo, a possibilidade de
intervir, ou ao menos neutralizar, localmente, o signo negativo da categorização social
racializada negra na sociedade nacional. Segundo, como lugar de sentidos e de
memórias secretamente codificadas na corporeidade que adverte Stuart Hall. Terceiro,
como expressão do indizível no palco escravista e pós-escravista, práticas
“metaculturais” de mensagens em “voz-dupla” ou de “dissimulação” como assinalam
distintas perspectivas Henry L. Gates Jr (1988), Clóvis Moura (2004), Muniz Sodré
(1983) entre outros, uma forma de constituição performática e não-verbal de utopias
como sugere Paul Gilroy (2001) (FERREIRA, Op. cit.).

Desse modo, haveria a possibilidade de confrontar ambas as presenças (“negra” e


“branca”) para que, no convívio, haja entendimentos e compreensão das diferenças de
experiências e, por isso, de identidades. Esse confronto é também possível a partir da
apresentação ética-estética do Candombe na territorialidade subentendida como
“lugar de branco”. Ou seja, aquilo que Ernesto fez na situação específica da pizzaria e
aquilo que as Chamadas de Candombe têm feito em Buenos Aires. E nesse sentido,
trata-se de uma conduta reacionária permanente de afirmação da sua presença. Em
certo momento, tive a chance de testemunhar tais possibilidades de confronto à
“supremacia branca” e de negociações à territorialidade afro-argentina a partir de uma
Chamada no bairro tradicional de Monserrat.

153
18. Dos quilombos e Lindo Quilombo: emancipação permanente

Buenos Aires, 01 de novembro de 2014. Conheci Lindo Quilombo por obra do


“acaso”. Era uma tarde de sábado e chovia. O albergue onde me hospedei está
localizado na rua Piedras, no bairro Monserrat, cerca de 15 a 20 minutos do centro
comercial de Buenos Aires. A região é um ponto estratégico para os turistas já que boa
parte dos pontos de visitação pode ser feita caminhando. Para mim, não haveria lugar
melhor, pois estava situado em uma região tradicionalmente habitada por famílias
afro-argentinas. Por este motivo, Monserrat é conhecido como “bairro tambor”.

Naquele dia, estava um pouco cansado. Havia acabado de voltar do centro


comercial a procura de algo para comer. Era cerca de 15h e tudo o que desejava era
um abrigo para chuva e um leito para descansar. Quase chegando ao albergue ouço
tambores soando. E já naquele tempo de minha trajetória, saberia distinguir entre
tambores de Candombe com qualquer outro tipo de tambor. Não resisti. Esqueci o
cansaço, desânimo, preguiça, e fui de encontro. Passei pelo albergue e segui até a rua
México. Naquela esquina, me deparei com um universo de cores, toques, corpos e
gente, muita gente. Jamais imaginaria que uma Chamada passaria praticamente na
porta da minha hospedagem. Regressei alguns passos para pegar minha máquina
fotográfica e o caderno de anotações. Minutos depois estava de volta à rua México
com mais dois amigos, uma francesa e um mexicano, com quem fiz amizade.
Estávamos entusiasmados.

Subimos a México até a rua Tacuarí atravessando os corpos em movimento.


Naquele cruzamento, as comparsas se preparavam para iniciar o desfile. Algumas já
haviam desfilado, outras esperavam a sua vez. Neste trecho se concentravam mais
pessoas que, assim como nós, observavam a multidão composta por dançarinas
fantasiadas e, principalmente, por rodas reunindo os tambores, aquecendo seus
corpos. Para minha surpresa, encontrei Leticia Sanchez junto com outros componentes
de “La Tribu”. Nesta ocasião, Leticia não estava acompanhando o desfile de alguma
comparsa, como fez naquele ensaio do “Valores de Ansina”. Desta vez, ela estava
ensinando às demais dançarinas de outras comparsas criadas em Buenos Aires. Leticia
nasceu em família de candombeiros. Possui experiência e, não à toa, ocupa o cargo de
vedete da sua comparsa. Sua presença, neste contexto, era a de autoridade como

154
mestre a fim de compartilhar o que sabia para outras dançarinas. Lembrei-me de
Angela Ramirez que fazia o mesmo na condição de bailarina e professora. Certa vez
questionei em qual comparsa ela dançava. “Nenhuma”, respondeu. Interessava a ela
transmitir o que já sabia, como fazia Leticia. Em um canto discreto da rua Tacuarí, a
vedete da comparsa La Tribu dançava na ponta dos pés. Atrás dela cerca de cinco
outras dançarinas reproduzindo o passo. Naquele momento não quis atrapalhar sua
tarefa e me limitei a cumprimenta-la com um breve sorriso.

Continuei minha observação acompanhando o fluxo dos corpos em movimento.


Enquanto algumas rodas se desfaziam, outras eram abertas para a simbiose do corpo-
tambor. Chamou-me atenção o grupo “La itu xango” ao introduzir no seu desfile
aproximadamente 15 metais como saxofones, trompetes e trombones. Parece que era
de fato uma inovação a julgar pela reação do público. Enquanto eu fotografava, uma
senhora surgiu ao meu lado animada dizendo “agora sim o Candombe está completo,
tinha que ter isso!”. Tratei de saber a razão do seu julgamento e ela, por sua vez,
contestou alegando que “é mais bonito”. Deveras, os metais proporcionam uma
dimensão mais espetacular ao desfile da comparsa. Entretanto, sua função era a de
apenas complementar com alguns arranjos em sincronia com os Pianos e Chicos.

Em outra comparsa, havia um grupo


de jovens dançarinas tomando a frente
das demais bailarinas. Este destaque
constituía uma performance que
remetia às danças de Candomblé. Uma
delas produzia movimentos aleatórios,
jogando o corpo para frente e os braços
Reprodução do autor
para o alto, como se estivesse
incorporando alguma entidade. Logo atrás o grupo maior de bailarinas, todas
sorridentes e maquiadas cujas indumentárias acentuavam as coxas, o ventre e os
ombros. Outra comparsa que se destacava era a “Curimbo” que também tratou de
inovar apresentando a mama vieja e o gramillero em cima de pernas de pau. As
crianças, sobretudo, ficavam encantadas, pois os personagens davam a impressão de
que eram palhaços em um picadeiro.

155
Pela sua capacidade de agregar muitos grupos de diferentes regiões, aquela
Chamada apresentou grande diversidade estética que variou pelos ritmos,
instrumentos e fantasias. Havia grupos com mulheres, homens e travestis bailarinas,
todos com grande diferença de idade, jovens de 12 anos e idosas com
aproximadamente 70 anos. Quanto às vedetes, todas eram carismáticas,
comunicativas e convidativas, de modo a contagiar o público. A quantidade de
tambores também era diversa entre dez a vinte, dependendo da comparsa.

Importante ressaltar que as inovações realizadas a partir de elementos estéticos


apresentadas por algumas comparsas não compromete a ética do Candombe e seu
próprio ato discursivo. Veremos adiante que a proposta da Chamada é reforçar a
cooperação dos praticantes visando à autonomia do Candombe. Diferentemente de
um desfile de Carnaval, onde há competição entre os grupos, naquela Chamada, como
em qualquer outra, o princípio é o de compartilhar o momento, se divertir e fazer com
que todos possam participar. Decorre daí a importância de que o evento aconteça no
espaço-rua. Realmente era o cenário mais democrático possível. Atrás de uma das
últimas comparsas a desfilar, tribos urbanas entre “skatistas” e “punkrock” se
misturavam com mães e seus filhos de colo. Em outra comparsa um lixeiro se esquecia
do trabalho incorporando o ritmo e sendo admirado por quem o percebia. De repente
me deparei com uma presença que muito me alegrou. Era Aquiles Pintos que nesta
ocasião usava uma bengala. Assim que me avistou, abriu seu sorriso característico e
logo perguntou o que eu estava fazendo ali. “Estou compartilhando o Candombe!”,
respondi. “Eu o mesmo!”, respondeu o sábio griô. Abraçamo-nos e continuamos, ele
com a bengala e eu com meu pequeno caderno.

Voltei para o ponto inicial da Chamada onde havia uma faixa no cruzamento da
rua México com Tacuarí. Nela podia-se ler “VI Chamada Lindo Quilombo – Candombe
Independente”. Chamou-me atenção o nome, fato que me impeliu em saber quem e
como foi organizado. Interceptei um dos rapazes que integrava a equipe de logística.
Enquanto eu tentava conversar, ele me respondia com parcial atenção, pois estava
ocupado em avisar às comparsas o tempo certo do seu desfile. Embora não fosse um
dos coordenadores, ele me deu um encarte onde constava o site e o e-mail da
organização.

156
No dia seguinte, tratei de pesquisar sobre a organização e, claro, buscar um dos
coordenadores para entrevistar pessoalmente. Descobri que a VI Chamada contou
com 39 comparsas entre uruguaias e argentinas. No site oficial16 consta a informação
de que “Lindo Quilombo - Candombe Independente” é uma organização cujos
participantes conformam uma “coletividade de produção cultural e que tem por
finalidade organizar sua Chamada de Candombe anualmente, de forma autogestora e
independente. Nascida em 2009, a organização propõe ser uma plataforma de
construção coletiva e horizontal que busca gerar espaços de participação, intercâmbio
e difusão do Candombe afro-uruguaio”. Portanto, trata-se de uma Chamada capaz de
congregar inúmeras comparsas uruguaias e argentinas para o compartilhamento de
experiências e conhecimento, como faziam Leticia e Aquiles Pintos.

A organização trabalha durante todo o ano através do voluntariado e visa garantir


todos os anos uma infraestrutura para a Chamada, oferecendo recursos básicos como
água, frutas, banheiros químicos, ônibus para traslados e folhetins para difusão. “Lindo
Quilombo” também trabalha em parceria com outras organizações, tais como
cooperativas e coletivos com os quais estabelece relações de intercâmbio e ajuda
mútua. Por sua vez, a organização realiza festas, apresentações, rifas e bônus para
garantir monetariamente aqueles recursos que não surgem do intercâmbio. A
proposta da organização é de sempre oferecer um espaço aberto e transversal
apresentando um calendário de reuniões de trabalho mensais e encontros abertos de
recreação e vinculação. Para seus gestores é importante que a organização “não tenha
nenhum tipo de autoridade e que as decisões possam ser tomadas por consenso”.

16
Site Oficial Lindo Quilombo: http://lindo-quilombo.blogspot.com.br/

157
Dois dias depois da Chamada, consegui ligeira entrevista com um dos
coordenadores17 do Lindo Quilombo, e uma das primeiras perguntas foi sobre o
significado do termo “quilombo” para organização:

Lindo Quilombo nasce em princípio como alternativa a


Chamada ‘oficial’ e esse nascimento gerou ‘quilombo’ na sua
acepção mais corrente (confusão, desordem), mas também foi
eleita a palavra por sua referência a esses territórios de
liberdade que os escravos cimarrones e os fugitivos de toda lei
souberam construir. Então Lindo Quilombo se nutre disso tudo
(Nov.2014)

Pela etimologia, quilombo deriva do idioma kimbumdu do tronco étnico-linguístico


bantu. No Brasil colonial, o termo originalmente designava apenas um lugar de pouso
utilizado por populações nômades. Depois passou a denominar as paragens e
acampamentos construídos por comerciantes. Porém, já em 1740, o Conselho
Ultramarino reportara ao rei de Portugal a seguinte definição de quilombo: toda
habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que
não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões neles (SCHMITT, 2002, p.2).
Para Ney Lopes o quilombo é um “conceito próprio dos africanos bantus que vem
sendo modificado através dos séculos, (...) quer dizer acampamento guerreiro na
floresta, sendo entendido ainda em Angola como divisão administrativa” (LOPES, 1987,
pgs. 27-28).

No Novo dicionário da língua portuguesa consta que “quilombo” é uma “povoação


fortificada de negros fugidos do cativeiro, dotada de divisões e organização interna”18.
A Associação Brasileira de Antropologia reitera que quilombo é “toda comunidade
negra rural que agrupe descendentes de escravos, vivendo de cultura de subsistência e
onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado”19.

17
A entrevista foi realizada dois dias depois do evento e respeitando a vontade do entrevistado, não
obtive autorização para revelar seu nome por este intermédio.
18
FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª edição. Rio de Janeiro. Nova Fronteira.
1986. p. 1 435.
19
Boletim Informativo Nuer, n.1. Associação Brasileira de Antropologia (ABA) – Rio de Janeiro, 1994.

158
Na tradição popular brasileira há muitas variações no significado da palavra
quilombo, ora associado a um lugar (“quilombo era um estabelecimento singular”), ora
a um povo que vive neste lugar (“as várias etnias que o compõem”), ou a
manifestações populares, (“festas de rua”), ou ao local de uma prática condenada pela
sociedade (“lugar público onde se instala uma casa de prostitutas”), ou a um conflito
(uma “grande confusão”), ou a uma relação social (“uma união”), ou ainda a um
sistema econômico (“localização fronteiriça, com relevo e condições climáticas comuns
na maioria dos casos”) (LOPES, 1987, p 15).

O leque de significados do termo identificado por uma gama de estudiosos


favorece ainda mais o seu uso para explicar as múltiplas experiências pelas quais o
quilombo se constituiu, permitindo compreender a sua formação e dinâmica através
dos escravizados, africanos e indígenas. Na condição de sistema de organização
autônomo, o quilombo foi recorrente ao longo de todo território afrodiaspórico.
Historicamente, o quilombo data dos séculos XVI-XVII e foi neste último século que os
mesmos se intensificaram por toda América, no momento em que houve o
recrudescimento ao tráfico negreiro aumentando, por consequência, a quantidade de
africanos escravizados radicados. No Haiti e República Dominicana é conhecido como
maieles. Em Cuba, mambises. Já na Venezuela são os cumbes ou patucos. Na Jamaica
existem as freevillages, no Suriname as bush societies, na Nicaragua, Barbados, e em
todo Caribe são os maroons.

No Uruguai e na Argentina o termo é utilizado pelo vocabulário coloquial para


designar uma “bagunça”, “caos”. No dicionário da língua espanhola constam ainda
outros significados como “prostíbulo”, “barulho”, “desordem”, “lugar apertado e de
difícil acesso”. Contudo, em respeito e reconhecimento à etnopolítica de afirmação
afrodescendente o termo “quilombo” tem ganhado, nos dois países, novos significados
compatíveis com seu papel e legado histórico. Em um dos seus informativos, o
Ministério da Justiça e Direitos Humanos da Argentina reconhece que “quilombo” era
um “espaço de revolução e liberdade que formavam os africanos que logravam
escapar de seus escravistas, organizando-se política e socialmente em comunidade,
promovendo sua cultura e a emancipação de outros”.

159
Para o jornal “El Afroargentino” 20 , “quilombo” se refere às “populações de
africanos e/ou afrodescendentes que havendo conquistado a fuga do lugar onde
haviam sido escravizados, fundaram, organizaram e governaram suas próprias
sociedades livres”. No Guia para docentes 21 fomentado pela Agrupação Xangô,
encontramos outra definição de “quilombo”:

Usamos quando há algum problema, desordem. Mas o


verdadeiro significado está associado à luta por liberdade no
contexto da América colonial. O quilombo era um lugar de
sublevação de pessoas escravizadas e de marginalizados da
sociedade colonial. Nestas comunidades organizadas
politicamente também integradas por índios e criollos rebeldes
ao sistema colonial, elaboravam-se distintas estratégias pela
luta contra o opressor. (Guia para docentes, 2014, p.20)

Em sua obra “Diásporas Africanas na América do Sul” Julio Tavares reitera que a
formação de “quilombos” é, tipicamente, uma realização de “contra poder e
resistência dos africanos e seus descendentes como alternativa à vida nas grandes
fazendas de monocultura e nas senzalas”. Estes sistemas de organização social
aturaram em rede, em “simultaneidade com as confrarias, irmandades e cabildos e
associações no auge da luta contra a escravidão” (TAVARES, 2008, p.60). Deveras é um
exemplo de microssistema de organização social que resistiu a um sistema colonial. E
por ser contrário a este sistema, persistiu como lugar estratégico na tentativa de
produzir um modus vivendi menos desigual.

Entretanto, se atermos a definição do termo ao seu papel histórico, corremos o


risco de reduzir a acepção de quilombo como um simples “acampamento de fugidos
escravizados”. Com efeito, reduzimos sua compreensão como um (1) lugar de fuga, (2)
isolado e escondido geograficamente, (3) com um relativo poder de autonomia. E,
mesmo assim, para que haja certa autonomia, deduz-se que o quilombo existe
independentemente da relação com o proprietário da terra ou mesmo com o senhor
de escravos, visto que sua mediação possa ser estrategicamente mantida numa

20
EL AFROARGENTINO – La voz de nuestra comunidad. Ano I. Número I. Novembro, 2014. Periódico
Afroargentino publicado por Diaspora Africana da Argentina (DIAFAR).
21
Guia para Docentes sobre Afrodescendentes e Cultura Afro. Org. Agrupação Xangô; Confederação dos
Trabalhadores de Educação da República Argentina (CTERA). Argentina, 2014.

160
reapropriação do mito do bom senhor, tal como se detecta hoje em algumas situações
de aforamento.

Alessandra Schimitt, Maria Turatti e Maria de Carvalho chamam atenção de


atribuir ao quilombo uma instituição reclusa a “um tempo histórico passado”,
cristalizando sua existência no período em que vigorou a escravidão no Brasil, além de
caracterizar-nos exclusivamente como “expressão da negação do sistema escravista,
aparecendo como espaços de resistência e de isolamento da população negra”
(SCHMITT, 2002, p.2). No tempo histórico passado talvez fosse necessário se isolar
para resistir, mas o fato é que o ato de resistência não só é a negação do sistema
escravista como também a primeira etapa para uma reconstrução da condição de ser-
estar-no-mundo que ficou para trás, anterior à travessia. E nesse sentido pode ser
utilizado o termo “resgate” para explicar o processo de reconstrução da identidade
social, do seu poder de tomada de decisão e, por fim, da prática de seus costumes,
tradições culturais e religiosas.

O quilombo, portanto, é desenvolvido a partir das práticas de resistência dos


sujeitos subalternizados que prezam pela manutenção e reprodução da sua presença
como ser livre no mundo. Desta forma, trazendo a discussão para o tempo presente,
reconhecemos que quilombo significa um direito e um modo de presença a ser
reconhecido e não somente um passado a ser rememorado.

Para Ilka Boaventura Leite, o quilombo inaugura uma espécie de nova pauta na
política que visa a resolução dos conflitos e a manutenção dos vínculos de
solidariedade e valores compartilhados entre várias gerações de afrodescendentes.
Isto significa também repensar o próprio grupo e a sua dinâmica – seus conflitos
internos – como uma parte viva e pulsante da experiência de ser e estar no mundo.
Para autora, o quilombo viabiliza, primeiramente, através da responsabilidade do
grupo, em definir pleitos com legitimidade e poder de aglutinação, de exercer pressão
e produzir visibilidade na arena política onde os outros grupos já se encontram. Em
segundo, através do questionamento, mesmo que indireto, da função paternalista do
Estado. E, em terceiro lugar, propondo a revisão das prioridades sociais, através da
implementação de políticas sociais mais importantes e representativos dos interesses
destas comunidades (LEITE, 2000, p.344-345).

161
Abdias do Nascimento é um dos principais militantes que utilizou da construção
discursiva com base no conjunto de enunciados que o quilombo emana,
principalmente, o de território negro de resistência. Com base no seu conceito de
“quilombismo”, o autor advoga pelo movimento de afirmação etnopolítica dos negros
brasileiros, objetivando a implantação de um “Estado Nacional Quilombista” inspirado
no modelo dos antigos quilombos (NASCIMENTO, 1980). Essa proposta versa por uma
ação prática na qual o Estado deve investir, por exemplo, no “igual tratamento de
respeito e garantias de culto” para todas as religiões; ensino da história da África, das
culturas, civilizações e artes africanas. No que tange ao contexto de fomento a
políticas afirmativas ao afrodescendente, o manifesto quilombismo é pioneiro por um
Estado mais democrático e pluricultural, pois “busca no presente e no futuro e atua
por um mundo melhor para os africanos nas Américas”.

A proposta, portanto, é de pensar o quilombo não só como um sistema de


organização social emergente em um contexto histórico através dos quais os
escravizados, negros e indígenas, viviam em liberdade. Mas pensar o quilombo como
modo de vida em que o sujeito que está à margem é capaz de exercer sua cidadania
agente transformador do seu mundo, da sua realidade. Uma luta política em
permanente expansão e reafirmação da presença. Se pensarmos no quilombo como
lugar estratégico cujos moradores foram e são minorias subalternizadas, onde há
códigos de conduta e relações éticas internas e convergentes, a instituição quilombo é
vista em comunidades e, nesse sentido, por que não no antigo Conventillo? Se
pensarmos o quilombo como espaço de transmissão dos saberes culturais, o quilombo
é também o próprio Candombe, afinal, como reconhece Chabela Ramirez: “Candombe
é uma forma de vida comunitária”.

E dessa vida comunitária emergem subjetividades, identidades e lideranças que


irão desenvolver e articular o quilombo Candombe no espaço-rua e para além das suas
fronteiras nacionais, como fizeram os primeiros uruguaios que atravessaram o Rio da
Prata para exercer a presença do ritmo em Buenos Aires. Estas mesmas lideranças são
também inspiradas nas outras constituídas pelo processo histórico colonial nos antigos
quilombos. Líderes que se transformaram em ícones da heroica resistência
desencadeada contra os ataques dos colonizadores. O mais famoso deles e hoje

162
reconhecido por toda Diáspora Africana, se chamava Zumbi, líder de um dos maiores e
mais prósperos quilombos, o Quilombo dos Palmares.

Ainda no site oficial da organização “Lindo Quilombo”, a primeira mensagem que


aparece trata da origem do termo quilombo, onde é apresentado o princípio da sua
gestão, baseado nos antigos quilombos cuja principal referência é o Quilombo dos
Palmares. Não à toa, “Lindo Quilombo” prepara sua Chamada para ocorrer sempre no
mês de novembro, celebrando o dia da consciência negra, em homenagem ao líder
Zumbi dos Palmares:

No dia 20 de novembro lembramos Zumbi, líder do Quilombo


dos Palmares, e a luta pela liberdade que aí se gestou. O mais
importante espaço de resistência de africanos, povos originários
e brancos marginalizados, que na história da humanidade
conhecemos. (...) O Candombe entendido como expressão de
resistência e do sentimento popular, propõe e constrói novos
espaços para exercer nossas liberdades: a de ser com os
outros, a de fazer com os outros, pondo em jogo e
estimulando a criatividade, o pensamento construtivo e os
ideais comunitários.

No Guia para Docentes sobre Afrodescendentes e Cultura Afro também consta a


seguinte informação sobre Zumbi e o Quilombo dos Palmares:

Um dos que mais resistiu à luta contra fazendeiros opressores


foi o Quilombo dos Palmares, que se manteve em retaguarda
130 anos (1580-1710) ao norte do território que hoje
conhecemos como Brasil. Seu líder, condutor e ideólogo foi
Zumbi dos Palmares. Assim é como encontramos dentro da
nossa linguagem o verdadeiro significado de nossa
identidade, ao reconhecimento de nossos primeiros passos de
conformação como Nação. (Guia para Docentes, 2014, p.20)

Quilombo e Zumbi são dois recursos discursivos que transbordam qualquer


fronteira geopolítica de modo a definir a identidade e conformar a grande Nação
afrodiaspórica. Nesse sentido, são denominações que fazem parte do léxico discursivo
etnopolítico afro-latino-americano e que remetem a uma proposta de valorização da
ancestralidade africana, da negritude e, claro, do modo de vida que ambos instituíram,
o quilombo enquanto território e Zumbi na condição de seu líder.

163
Ademais, o termo quilombo e o nome Zumbi são transportados do passado ao
presente como unidade de informação que se multiplica através das gerações e dos
livros de história. Uma das provas disso foi encontrada por Julio Tavares em uma de
suas visitas ao palenque San Basilio na Colômbia:

Lá encontrei pela primeira vez em toda minha vida alguém que


tem Zumbi como nome de batismo. Era o filho de Dorina
Hernandez e Dionisio Biohó, herdeiros de Benkos Biohó,
palenqueros de dedicação integral ao desenvolvimento cultural
e político daquela perola da diáspora (TAVARES, 2008, p.60).

O Zumbi está presente no nome e na instituição. E pelo o que ele representa é


utilizado como exemplo e prática discursiva pelo empoderamento de “Lindo
Quilombo” para atuar como organização independente em relação ao Estado. Durante
a entrevista que realizei, ficou patente a relação conflituosa com o governo devido o
seu interesse de se apropriar do Candombe sem, no entanto, oferecer investimento
suficiente para ocorrer a Chamada. Com isso as lideranças de cada comparsa
resolveram realizar uma Chamada “extra oficial” em relação a “oficial” organizada pelo
governo. Mesmo processo, portanto, que ocorrera em Montevidéu a partir do
Carnaval:

A chamada oficial se chamou assim porque se organizava no


marco do Centro Cultural Fortunato Lacámera e do Governo da
Cidade. Ano pós ano, o Governo da Cidade ficava com o
crédito da gestão, mas não colocava os recursos que a
Chamada necessita. Isso, paulatinamente, fez com que o
próprio Estado perdesse sua legitimidade. Hoje em dia, existe
a chamada que organizamos a partir de Lindo Quilombo e em
dezembro a chamada tradicional que se faz desde 10, 12 anos
atrás. Este ano, pela primeira vez, ocorrerá no marco do
Ministério de Cultura da Nação, que oferecerá micro ônibus,
obstrução das ruas, água, banheiros, ou seja, as coisas
essenciais para uma atividade através da qual participam
milhares de pessoas.

164
Ora, se o Estado não oferece condições básicas para uma Chamada de Candombe,
logo questionei como então a organização aufere recursos para lograr que todas as
comparsas participantes tenham transporte, segurança e alimentação:

Para conseguir esses recursos, nos vinculamos com


organizações culturais de base, gestores culturais, sindicatos,
clubes, diversas coletividades, e mediante o intercâmbio
garantimos as coisas que não podemos afrontar
monetariamente. Também organizamos festas, grupos e
atividades para conseguir algum dinheiro”. (Nov.2014)

O que podemos apreender com o exemplo de “Lindo Quilombo” é que a


organização não apenas se remete ao quilombo utilizando o termo como ato
discursivo. A organização dentro dos preceitos discutidos é o próprio quilombo. Em
outras palavras, a organização conjuga em seu trabalho (1) o ato de resistência, (2) a
autonomia em relação ao Estado, (3) e a produção e transmissão da prática cultural
Candombe pautada, por sua vez, em seu discurso etnopolítico de afirmação à presença
afro-uruguaia. Apesar do antigo quilombo, de um modo geral, ter surgido isolado à
cidade, ou em sua “periferia”, ele atuava em simultaneidade com outras organizações,
estabelecendo sua própria rede autogestora. De certo modo, esta dinamicidade é
também observada pela organização em questão, pois “Lindo Quilombo” se constitui
na cidade articulando uma rede de organizações para dar continuidade ao Candombe
uruguaio em Buenos Aires.

A Chamada de “Lindo Quilombo” Parece obter a capacidade de reunir distintas


comparsas constituídas em distintos territórios, mas que, no entanto, compartilham
do mesmo passado, pois derivam da ancestralidade afrodiaspórica como bem
observou Ernesto em seu depoimento (p.). E nesse sentido, a Chamada oportuniza
uma metalinguagem de compartilhamentos de técnicas, hábitos, corporeidades,
experiências e vivências que enriquece ainda mais o Candombe uruguaio na capital
Buenos Aires. Nesse contexto, pude testemunhar a influência do seu ritmo no
encerramento da festividade preparada para celebrar o dia Nacional do afro-argentino
e da cultura afro.

165
19. Dia Nacional do afro-argentino e da cultura afro

A data o8 de novembro foi eleita para celebrar o “Dia Nacional do afro-argentino e


da cultura Afro” através da Lei nº 26.852/13, fomentada pela Assembleia Permanente
de Organizações Afro da Argentina (APOAA), e aprovada no Senado no dia 24 de abril
de 2013. Este dia foi escolhido em memória ao falecimento de Maria Remedios del
Valle, personagem emblemática da história afro-argentina, considerada como a “mãe
da pátria”. O “outro lado da história” narra sua vida e papel de militante contra o
período colonialista.

Com o dia de nascimento indeterminado, Maria Remedios del Valle foi filha e neta
de yorubas com europeus, cresceu no antigo bairro “Mondongo”, atualmente
Monserrat ou, como vimos, “bairro tambor”. Depois da morte da sua mãe, fugiu da
casa onde nasceu e logo se deu conta de que seu pai era quem a escravizara. Formou
parte da primeira geração de afro-argentinos a se alistar no exército pela
independência contra as tropas espanholas. Foi na batalha de Tucuman que Maria
Remedios se apresentou perante o General Manuel Belgrano solicitando autorização
para atender os feridos do campo de batalha. Cumpriu com maestria sua função
ganhando com isso a alcunha de “mãe da pátria”. O reconhecimento institucional veio
em seguida, quando Maria Remedios foi condecorada com o título de Capitã.

Continuou ao lado do exército até a batalha de Ayohuma em 1813 onde acabou


sendo ferida por bala e tomada como prisioneira. Dali, Remedios foi castigada com
nove dias de açoite público por ter ajudado a escapar vários compatriotas. As marcas
físicas e emocionais ficariam incrustadas em seu corpo e alma para o resto da vida.
Acabou escapando e voltando à investida do General Belgrano, mas, desta vez, passou
a operar como correio em territórios usurpados do inimigo. Depois da morte do
General, em 20 de julho de 1820, Remedios voltava a Buenos Aires. Cansada e sem
família, se instalou em um pequeno rancho na periferia da cidade. Com o passar dos
anos, apesar da sua condecoração e do reconhecimento do seu papel nos campos de
batalha, Maria Remedios del Valle terminou seus últimos dias de vida esquecida, sem
meios dignos para viver, mendigando ou vendendo mercadorias na cidade. A “mãe
pátria” passou a ser invisibilizada pela historiografia hegemônica e, com efeito,
esquecida na memória de toda população argentina.

166
Por tal motivo, as lideranças e rede de organizações afro-argentinas instituíram a
data de seu nascimento como referência à memória de toda população que contribuiu
para o desenho das fronteiras de seu país, defende-las dos seus inimigos e, acima de
tudo, aprendeu a incorporar sua nação, mesmo que para isso tenha se esquecido
processualmente do “outro lado da história”. Fato rememorado no dia seguinte.

Estava curioso para os encontros e reencontros durante a festividade. Um dia


antes houve uma prévia à celebração oficial realizada no Congresso Nacional. Para
muitos ali presentes, a ocasião tinha um valor simbólico, por ocorrer dentro do
Senado, fato que foi evidenciado no discurso de abertura por Miriam Gomes,
integrante da União Cabo-verdiana. E tamanha foi a intensidade do momento que a
oradora se emocionou, sem conseguir terminar sua fala, porém não desceu do palco
sem antes ganhar uma enxurrada de aplausos entusiasmados.

Aquele evento foi realizado em um


auditório com capacidade para 120 pessoas
e pelo menos a metade estava ocupada.
Estiveram presentes organizações não
governamentais como a União Cabo-
verdiana, África Vive, Agrupação Xangô e
Diáspora Africana da Argentina (DIAGAR).
Convite do Senado. Representantes do Senado também
apresentaram seus discursos diplomáticos em reconhecimento e celebração ao dia
emblemático à “mãe da pátria”. Havia uma amostra fotográfica de afro-argentinos
retratando o cotidiano da população em suas ruas nos bairros tradicionais Monserrat,
San Miguel e San Telmo. O evento ainda contou com breves performances de dança,
música e teatro. Confesso que, naquele instante, tive a esperança de testemunhar
alguma exibição de Candombe argentino, mas acabei me resignando com uma linda
performance do grupo de candomblecistas de Buenos Aires. O ápice do momento foi a
exibição de um vídeo que mostrava o Ministro das forças armadas homenageando um
afro-argentino e ex-combatente da Guerra das Malvinas. Antes, promoveu um discurso
envolvente e emocionante, lembrando a história dos negros que lutaram e morreram
defendendo seu país durante a Guerra do Paraguai e, mais tarde, nas Malvinas.

167
Finda cerimônia preliminar, retornei ao meu albergue, caminhando à noite por
entre as grandes avenidas de Buenos Aires. Refletia sobre toda esta construção
discursiva para reconhecer uma população que no passado foi massacrada por séculos.
Tentava imaginar como foi os últimos dias de Maria Remedios del Valle, a mulher que
deu a vida por uma ideologia, uma fé, e que mesmo assim desencarnou espoliada de
sua própria dignidade. Talvez seja mais um “multiculturalismo light”. Na realidade,
interessava-me muito mais saber onde reside e qual o sentido do verdadeiro
reconhecimento para a presença negra em sua diáspora. Mas para isso, tive que
esperar o dia seguinte.

Sábado, 08 de novembro de 2014. Centenas de anos depois da morte de Maria


Remedios del Valle, aquela frase dirigida a mim no restaurante ainda ecoava em minha
mente e coração: “não há negros na Argentina”. Com um gesto simples indicaria a
todos que alimentam tal falácia a presença afro-argentina e seu espaço-rua
conquistado. A energia desta enunciação, no entanto, não me deixava esmorecer, pois
aquele dia primaveril era lindo, com sol e céu claro. A grande Av. de Mayo havia sido
fechada para o trânsito e lazer livre dos pedestres. As atividades específicas em
celebração ao dia Nacional do Afro-argentino ocorreram na rua Bolívar, em frente à
famosa Casa Rosada. Espaço, portanto, emblemático, por ter sido Bolívar a contribuir
pela libertação e independência dos Estados latino-americanos, além de ser em frente
ao palácio presidencial da República, lugar onde muitos governistas ditatoriais
censuraram e apartaram a presença afro-argentina durante anos.

O evento contou com o apoio do Ministério da Cultura e, claro, das organizações


“Amigos das Ilhas de Cabo-verde”, “Jovens Argentinos Cabo-verdianos”, “Afros LGBT”,
“A Turma da Baiana”, “África Vive”, “Associação Civil Onira”, “Agrupação Xangô”,
“União Cabo-verdiana”, “Associação Multicultural Multiétnica”, “Casa de Cultura Indo-
afroamericana” (cuja diretora é Lucia Molina), “Agrupação Afrocultural La Cabunda”,
“Associação de Residentes Senegaleses”, “Teatro em Sepia”, “Todos com Mandela”,
“Movimento San Felix”, a famosa “Shimmy Club” e, finalmente, “Comedia Negra”. A
jornada de atividades incluiu barracas gastronômicas e artesanais, além de mesas de
debate, conferências, oficinas, projeções audiovisuais e, por fim, culminando com um
lindo desfile de Candombe... uruguaio.

168
Cheguei ao local da festividade por volta do meio-dia e rapidamente encontrei
uma roda de capoeira do grupo Cordão de Ouro. Na entrada havia uma barraca de
Cabo-verde com informações turísticas e das suas atividades políticas. Apresentei-me
como brasileiro e antropólogo. Infelizmente, havia dificuldade de manter a conversa,
pois havia muitas pessoas intervindo, uma delas estudante de medicina da
Universidade de Buenos Aires (UBA), natural de Mali. A jovem apresentou certa
inquietude, tal como eu, questionando onde estariam os negros na cidade, pois já fazia
alguns meses ali e encontrava dificuldade para participar de alguma oficina ou
seminário. Com toda razão, tendo em vista o fato de que o trabalho dos afro-
argentinos é relativamente recente em torno de seis a dez anos (a Diáspora Africana
da Argentina, por exemplo, existe a tão somente quatro anos e só agora realizarão seu
primeiro seminário intensivo). Além disso, a rede de organizações conta com poucos
funcionários e muito pouca finança.

Na barraca adjacente, do Conselho Nacional de Organizações Afro da Argentina


(CONAFRO), conversei com uma adolescente bibliotecária que me falou sobre o
trabalho de recuperação da memória dos afro-argentinos, dos direitos e deveres que
foram perdidos, ocultados com o tempo. Questionei minha curiosidade de conhecer o
Candombe argentino e não me surpreendi quando ela reagiu com sorriso
reconhecendo o fato de que é realmente difícil, pois sua produção da presença está
resumida (representada) entre algumas poucas famílias. Dentre elas a Lamadrid que,
por sinal, não estava presente no evento.

Outra barraca chamou-me atenção por sua pilha de encartes, informativos e


cadernos sendo distribuídos aos interessados. Era o stand do Instituto Nacional contra
a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (INADI). Este organismo foi criado pelo
Estado argentino em 1995, está submetida ao Ministério da Justiça, Segurança e
Direitos Humanos, e é responsável por lutar contra todas as formas de discriminação.
A instituição promove através de suas delegações em todas as províncias a execução
do Plano Nacional contra a Discriminação, segundo as necessidades particulares de
cada região. Em um dos informativos que ganhei dizia o seguinte:

169
Acompanhamos e alentamos o desenvolvimento de políticas
públicas que tenham como objetivo principal o acesso a direitos
por parte de grupos tradicionalmente vulneráveis, como uma
forma de reparação histórica com aqueles que, durante muitos
anos, possuem transgredida sua cidadania.
O INADI tem por objeto impulsionar ações que promovam a
visibilidade, o reconhecimento e a autoafirmação das distintas
culturas, apontando a desarticular a mirada etnocêntrica,
contra qualquer manifestação racista.
O Estado reconhece o seu papel de reitor e reafirmar seu
compromisso de combater estas práticas em todos seus níveis
e manifestações com o objetivo de garantir a igualdade e o
respeito dos direitos humanos.

No verso da cartilha ainda encontrei um depoimento da presidenta Cristina


Kirchner registrada no dia 25 de maio de 2012, e que dizia o seguinte:

Contemos a verdadeira história de uma só vez por todas na


República Argentina. O sargento Cabral, cujo nome leva a
Escola de Suboficiais do Exército Argentino, era filho de uma
escrava negra, coisas zelosamente ocultadas pela historiografia
oficial.

A despeito de todos os esforços do Estado por reconhecer a contribuição histórica


e cultural da população afro-argentina, todavia existem muitas fissuras de gestão e
implementação efetiva de políticas públicas afirmativas como projeto contra o
racismo. O censo demográfico realizado em 2010, por exemplo, que deveria revelar
quantos e em quais condições se encontram os afro-argentinos foi, de certo modo,
“insuficiente”, como aponta Miriam Gomes. Segundo a presidente da Associação
Mútua União Cabo-verdiana de Dock Sud:

A primeira prova piloto de captação da população


afrodescendente foi em 2005 com o INADI. Realizamos em
Buenos Aires e na província de Santa Fé e vimos que 4% e 5%
das pessoas questionadas se reconheceram descendentes de
africanos. Nós projetamos o resultado sobre a população total.
Daí surgem aproximadamente dois milhões de pessoas que
reconhecem ter um antepassado africano negro. Os resultados
de 2010 foram decepcionantes. (Gomes, nov. 2014)

170
Miriam Gomes se refere ao projeto piloto realizado em 2005 com financiamento
do Banco Mundial e apoio do INADI. A proposta de projeto, contudo, não ganhou
força, pois era necessária a aprovação da maioria na Câmara do Senado. Devido a certa
omissão política nacionalista e sem a devida representatividade do INADI, algumas
famílias afro-argentinas, incluindo a Lamadrid, decidiu criar em 2007 a Associação
Misibamba.

Foi neste contexto sobre o censo demográfico que tive a oportunidade de


conhecer Carlos Lamadrid, atual presidente de Misibamba, e seu filho Cesar Lamadrid.
Os dois, junto com o antropólogo Norberto Pablo Cirio, participaram de uma mesa
sobre etnohistória afro-argentina pela “V Jornada de História Regional” da Universidad
de La Matanza, na província de San Justo. Nesta ocasião, Carlos Lamadrid enfatizou a
necessidade de uma política que deve estar “descentralizada” para criar múltiplos
empoderamentos, lideranças, e novas organizações com a finalidade de facilitar o
processo de “visibilização” seja por “novos estudos científicos”, seja pela presença na
rua através das performances. O desejo da organização é de oferecer oficinas, cursos,
produzir mais investigações e manter uma comparsa de Candombe, no entanto, é
“muito trabalho para algumas poucas pessoas verdadeiramente engajadas”.

Cesar Lamadrid complementa a fala do seu pai alegando que Misibamba está
distribuída pelas províncias de Merlo, La Matanza, Cordoba e que, apesar de ser
mantida pelos sócios, recebem pouco incentivo de outras instâncias incluindo o
próprio Estado. Decorre daí a dificuldade de manter a própria Associação.

Para além do censo, Carlos ainda ressaltou a necessidade de outras políticas


públicas efetivas como a introdução no currículo pedagógico das escolas o ensino da
história dos afro-argentinos. Sobretudo, o presidente de Misibamba enfatizou que o
Estado deve reconhecer que sua história foi construída pelas três vertentes étnicas-
raciais – povos originários, brancos e afrodescendentes (africanos escravizados):

Somos a terceira raiz e, portanto, é necessário realizar o censo,


(...) falência do Estado que não tem sabido escutar. A questão
não é saber quantos são, mas fazer com que o Estado aplique
políticas afirmativas para população afro. (Lamadrid, nov.2014)

171
Devido à incipiência de ação efetiva de políticas afirmativas, o governo é alvo de
críticas, em específico, direcionadas para organismos como INADI, promovidas por
lideranças afro-argentinas e pesquisadores que trabalham com o tema. Segundo
Frigerio e Lamborghini, “organismos oficiais como o INADI focalizam em uma política
excessivamente culturalista, de visibilização, e deixam de lado a luta efetiva contra o
racismo”. Neste sentido, parece que nos dispomos de uma política pautada no
“multiculturalismo light” através da qual a visibilização efetiva da presença negra e dos
seus problemas sociais são postas de lado em prol da sua reivindicação cultural. Sobre
isso, os autores ainda apontam que a luta contra o racismo “necessite de agências
estatais dispostas e conhecedoras da real situação para a implementação de políticas
eficazes” (FRIGERIO; LAMBORGHINI, 2011, p.117).

Na tentativa de amenizar o distanciamento cognitivo entre a sociedade junto à


comunidade afro-argentina, outras iniciativas políticas, sobretudo, de âmbito
educacional, têm sido fomentadas por sua rede de organizações. É o caso da
instituição sem fins lucrativos que leva em seu nome o “juiz entre os orixás”: a
Agrupação Xangô. Sua pareceria com a Confederação dos trabalhadores da educação
resultou na criação do “Guia para docentes sobre afrodescendentes e cultura Afro”.
O material é um aporte didático voltado prioritariamente para professores
interessados em transmitir o conhecimento histórico, cultural e sociopolítico
constituído pelos afrodescendentes nativos e radicados na Argentina. Na apresentação
do Guia consta a seguinte informação:

Este guia busca saldar uma dívida histórica a respeito do aporte


Afro à história e à cultura do nosso país. Neste trabalho
recompilamos propostas didáticas realizadas pelos jovens
estudantes do professorado da Escola Normal Nacional
“Mariano Acosta” da Cidade de Buenos Aires, durante 2012.
(Nov. 2014)

Apesar do forte viés cultural presente na celebração ao dia Nacional do Afro-


argentino e da cultura Afro, havia também a preocupação em estabelecer diálogos e
promover as propostas e conquistas políticas de cada organização, incluindo a
Agrupação Xangô, onde consegui uma cópia do Guia.

172
Nesse sentido, a celebração deixa de ser simplesmente uma espécie de
oportunidade de vivenciar a cultura da diversidade étnica ou do multiculturalismo
constituído no território nacional. Embora o Estado estivesse presente a partir das suas
instituições, como a INADI e o Ministério da Justiça e Direitos Humanos, havia para
além da iniciativa governamental. Barracas de Cabo-verde, Mali, Brasil, Argentina, e
todas as outras organizações não governamentais se propuseram a intercambiar
conhecimento, suas respectivas identidades históricas e culturais, com a finalidade de
melhor compreender suas diferenças e, deste modo, aceitá-las a partir do mesmo
território nacional.

Mas essa relação de compartilhamento não se esgotava entre as próprias


organizações. Eram, principalmente, promovidas pelos jovens curiosos em conhecer as
distintas presenças étnicas, como a estudante de medicina malinesa. Na mesma
ocasião, conheci Juliana Dias, brasileira e estudante de jornalismo da Universidade
Nacional de La Plata. Era trazia consigo um grupo de estudantes norte-americanos que,
assim como ela, havia chegado a Buenos Aires há poucas semanas para intercâmbio
estudantil. Um deles usava uma camisa da seleção argentina de futebol. Estavam
entusiasmados por testemunhar e conviver com outras possibilidades de presença
afrodescendente no Cone Sul, sobretudo, por vivenciar a música e dança do
Candombe. Aliás, foi dessa forma que a festividade terminou. Com desfile de três
comparsas de Candombe uruguaio, todas apresentando seus corpos em movimento,
tambores, dançarinas e personagens tradicionais. Jornalistas, estudantes, familiares,
todas as possibilidades de presença humana se encontravam e convergiam para o
mesmo espaço-rua com a finalidade de compartilhar a mesma linguagem corporal,
emoções, saberes, lógicas, práticas e, por fim, um modo de vida.

Chamo atenção para o fato de o desfile do Candombe uruguaio ter sido realizado
para homenagear a população afro-argentina. Nesse sentido, percebemos que apesar
das diferenças históricas e supostas divergências diplomáticas constituídas pelo
diálogo internacional, a proposta do evento é da confluência mútua de relações
horizontais sem a intermediação verticalizada do Estado. Em reconhecimento a este
fenômeno Catherine Walsh propõe o conceito de “pluriculturalidade” que, ao
contrário do multiculturalismo, sugere uma pluralidade histórica e atual, na qual várias

173
culturas convivem em “um mesmo espaço territorial e, juntas, supostamente,
constroem a totalidade nacional” (WALSH, 2009, p. 44). Para a autora, a
pluriculturalidade responde à necessidade de um conceito que represente a
particularidade da região, onde povos indígenas e negros têm convivido por séculos
(ainda que conflituosamente) com branco-mestiços, e onde a mestiçagem tem sido
parte da realidade, conjuntamente com a resistência e insurgência sociocultural e,
recentemente, a revitalização das diferenças.

Diante deste contexto analítico, significa dizer que para a construção de um


Estado pluricultural é fundamental reconhecer que sua história é narrada pelas três
vertentes étnica-raciais – povos originários, brancos e afrodescendentes – como
defende Carlos Lamadrid. Contudo, tal proposta de reconhecimento continua sendo
submetida a uma perspectiva multicultural adotada pelo Estado. Para Walsh, o
multiculturalismo apenas alude para a existência de distintos grupos culturais que, na
prática social e política, permanecem separados, divididos e até opostos. Nesse
sentido, se limita a descrever uma realidade sem promover mudanças ou intervenções
nela, tampouco questiona “a maneira em que a colonialidade segue operando dentro
de si racializando e subalternizando corpos e mentes” (WALSH, 2009, p.45). Como
resposta a esta perspectiva, a autora propõe a “pluriculturalidade” como proposta
discursiva em reconhecimento a uma natural “convivência de culturas no mesmo
espaço territorial”, ainda que sem a profunda relação equitativa entre elas.

Para Néstor Canclini o conceito de interculturalidade resolve o problema ao


atentar para a confrontação, ao entrelaçamento, ou seja, àquilo que ocorre quando os
grupos afro-locais confluem a partir dos conflitos, negociações e empréstimos
recíprocos (CANCLINI, 2009, p. 38). Trata-se, portanto, de perceber o movimento
natural que sucede a partir da presença e interação étnico-racial de duas ou mais
comunidades. A partir de ações coordenadas que identificam diferenças, contrastes e
comparações, a cultura deixa de ser unicamente algo que caracteriza a comunidade
afro-argentina em distinção a afro-uruguaia. Segundo o autor, essa reconceituação
muda o método de análise. Em vez de comparar culturas que operam como sistemas
preexistentes e compactos, passamos a prestar atenção às “misturas” e nos “mal
entendidos” que enredam os grupos afro-locais (CANCLINI, op.cit). Com isso, perceber

174
os discursos criados em torno da afirmação étnico-racial capazes de produzir uma
trama de categorias sobrepostas e utilizadas de acordo com sua fronteira.

A proposta argumentativa da interculturalidade na verdade se constituiu


enquanto conceito em uma etapa posterior tendo em vista a sua emergência a partir
das discussões e demandas etnopolíticas geradas pelo movimento indígena no
Equador, adotada em seguida, enquanto discurso afirmativo pela rede de organizações
afrodescendentes do Chile, Argentina e Uruguai. Catherine Walsh observa que, por ser
um princípio ideológico e político, a interculturalidade “despeja horizontes e abre
caminhos que enfrentam o colonialismo ainda presente, e convida a criar posturas e
condições, relações e estruturas novas e distintas” (WALSH, 2009, p.14).

Arturo Escobar concorda com esta perspectiva quando compreende que a


interculturalidade é uma atitude de reconhecimento às “singularidades comunicativas
dos sujeitos, o seu território, sua corporeidade e suas demandas por mais espaço e por
mais sociabilidades igualitárias” (ESCOBAR, 2008, p. 207). Reconhecer as
singularidades de modo consciente significa adotar um projeto de diálogo e aceitação
que supera o argumento da tolerância com o próximo, considerando que este ato está
longe de uma aceitação efetiva.

E é neste sentido Catherine Walsh acredita que a proposta da interculturalidade


aponta para algo muito mais profundo que pretende confrontar com os racismos e as
desigualdades nos intercâmbios culturais, entre culturas mesmas e como parte das
estruturas e instituições da sociedade. Por isso, e sem negar que existam relações
interculturais no âmbito pessoal, podemos dizer que no da sociedade, incluindo todas
as suas instituições, a interculturalidade ainda não existe. Trata-se de um processo
para alcançar por meio de novas políticas, práticas, valores e ações sociais concretas e
conscientes que podem construir no meio de processos formativos coletivos, nos que
se relacionam membros de culturas diversas assim como suas maneiras de ser e estar
no mundo (WALSH, 2009, p.45). De acordo com estes preceitos, após testemunhar e
vivenciar inúmeras Chamadas, culminando com a celebração ao Dia Nacional Afro-
argentino, não estou certo ainda se de fato a interculturalidade como ação prática
todavia não exista.

175
176
20. Considerações finais

Vimos que a partir da narrativa ética-estética do Candombe desenvolvem-se novas


possibilidades de compreensão, aceitação e comunicação solidária das relações sociais.
Seus elementos constituintes configurados entre o material e imaterial propiciam um
sistema de entendimento humano pautado na aceitação do próximo. Portanto, fica
estabelecido que há resignificações sobre o Candombe de acordo com dinâmica no
tempo e espaço, assim como as suas interpretações subjetivas que derivam desse
microssistema e constitui o macrossistema afrodiaspórico.

Para Humberto Maturana, a convivência social se funda e se constitui na


aceitação, no respeito e na confiança mútuos, criando assim um mundo comum. E
nessa aceitação, nesse respeito e nessa confiança mútuos é que se constitui a
liberdade social. Isto é assim porque a constituição biológica humana é a de um ser
que vive no cooperar e no compartir, de modo que a perda da convivência social traz
consigo a enfermidade e o sofrimento (MATURANA,2002, p. 97). A liberdade social do
indivíduo está atrelada à autonomia das instituições que ele mesmo criou e gerencia.
Nesse sentido, a autonomia é uma receita poderosa para a igualdade. Segundo
Richard Sennet em vez de uma igualdade de compreensão, uma igualdade
transparente, autonomia significa aceitar no outro o que não entendemos, uma
igualdade opaca. Assim, trata-se a realidade da autonomia do outro como igual à sua
própria. (SENNET, 2004, p145).

Significa que todas as formas de relações sociais produzidas pelo e dentro do


sistema Candombe são naturalmente pautadas por “ações coordenadas” através das
quais a igualdade e o respeito são regras societárias. Destarte, o Candombe é exemplo
de modelo político sistêmico capaz de revelar a natureza criativa do ser humano.
Trata-se de uma ontológica de poder cognitivo, de agir em potência com o outro
através da criatividade, do empoderamento coletivo, das lideranças através da sua
presença e cultura permanente. Como demais manifestações da comunicação da
presença humana no contexto afrodiaspórico, vimos que o Candombe também revela
um universo de linguagem-texto constituinte de uma cosmovisão distinta e sempre
existente.

177
A partir do seu poder de linguagem não verbal dos corpos em movimento, o
Candombe cria possibilidades de empoderamento humano que faz repensar a
existência e função do Estado, bem como seu valor simbólico constituído pelo seu
secular projeto de nacionalidade, derivado do discurso secular da colonialidade. Nesse
sentido, é impreterível ir além da análise do Candombe como objeto de manifestação
da performance afrodiaspórica. Considerando inicialmente seu poder comunicativo
fundamentado em seu conjunto de enunciados.

Ele entra na roda repicando o corpo com suas pernas arcadas, sorri e acena para
cima descansando a mão na testa. Sentindo a presença dos ancestrais, ele agradece,
regendo e sendo regido pelo som do tambor...

Termino esta narrativa onde comecei minha jornada acadêmica.

Dez anos se passaram como o frio vento das ruas de Montevidéu quando comecei
a travessia no Rio de Janeiro ainda numa roda de pajelança. Anos depois atravessava o
continente sul-americano chegando em Arica, no Chile. Por lá conheci outra roda,
orquestrada por tambores afro-chilenos ocupando as ruas, revivendo o passado no
presente, valorizando a ancestralidade negra e incorporando a identidade
afrodescendente. Naquele espaço aberto e dinâmico da roda mergulhei em um novo
mundo cuja cosmologia é regida pela comunicação extra-sensorial dos corpos. Um
mundo onde a memória é invocada pela consciência ancestral, onde a aceitação
mútua das diferenças é regra natural das relações. Um mundo gerado pelo espaço-
tempo da roda, de invenções e transformações sociais pela sabedoria e amor. O
mundo da Diáspora Africana.

178
CAMPO TEMÁTICO DE PESQUISA

Cognição

Corporeidade

Etnopolíticas

Diáspora Africana

179
MAPA CONCEITUAL
DA DIÁSPORA AFRICANA

Colonialismo
Macrossistema
Afrodescendente

Colonialidade
Multiculturalismo
Diáspora
Africana
Desigualdade Interculturalidade

Hierarquia
Holarquia Diferenças

Racismo

Resiliência Igualdade

Estética Ética

180
MAPA CONCEITUAL
DAS ETNOPOLÍTICAS

Cultura
Política

Colonialidade
Identidades
Etnopolíticas
Racismo

Afrodescendente

Microssistema Afirmação

Afro-localidades
Holarquia
Consenso

Cooperação
Presença

Autonomia

Ética

181
MAPA CONCEITUAL
DA CORPOREIDADE

Ancestralidade

Memória

Candombe

Corpo Negritude
Corporeidade

Performance

Corporeificação

Resiliência
Tambor

Presença Cosmocentricidade

Pedagogia Microssistema
Cívica

Estética

182
MAPA CONCEITUAL
DA COGNIÇÃO

Racismo

Abolição

Cognição
Holarquia
Emancipação

Autopoiesis
Presença

Amor
Quilombo
Permacultura

Quilombola

Ética-Estética

Travessia

183
Panorama das Organizações, Associações Jurídicas e Culturais Afrodescendentes :

URUGUAI

Associação Cultural e Social Uruguai Negro – ACSUN

Casa de Cultura Afro-uruguaia

ARGENTINA

Diáspora Africana da Argentina – DIAFAR

Associação Misibamba

África e sua Diáspora

Agrupação Xangô

Organismos governamentais e internacionais:

AECID – Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento

CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina

INE – Inquérito Domiciliar Ampliado (Instituto Nacional de Estatística)

INADI – Instituto Nacional contra a Discriminação, Xenofobia e Racismo

INDEC – Instituto Nacional de Estatísticas e Censo

PAN – Partido Autóctone Negro

PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

RESS – Reunião Especializada de Estatística do Mercosul

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

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