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Guilherme de Santa-Rita
c.1910, óleo sobre tela.
AMENDOEIRA EM FLOR
Ano 1 (2021)
Nº 4 Março/ Abril
Direção/Edição
Ariana Sanches
Cristiana Correia
Colaboradores
Ana Filipa Correia
Ana Rafaela Madureira Damas
Eduarda Magalhães
Isabel Lameirão
Joel Oliveira
Rita Guimarães
Romen
Participações de
Walter Rego
«Eu não pertenço a nenhuma das gerações revolucionárias. Eu pertenço a uma geração
constructiva.»
Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Séc. XX (1917)
«As palavras teem moda. Quando acaba a moda para umas começa a moda para outras. As
que se vão embora voltam depois. Voltam sempre, e mudadas de cada vez. De cada vez mais
viajadas.»
«Estou a espera de ser grande para ver se o que penso é verdade ou não. Se não fôr, mato-
me!»
A Invenção do Dia Claro (1921)
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PREÂMBULO
Ao Comité para a Igualdade «dos nossos poetas»
Ariana Sanches
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Amigo Castanheira,
O que era para ser uma carta formalíssima escrita ao comité de que o meu amigo é Vice-
Presidente tornou-se em meio da escrita isto que às suas mãos chegou – palavras torpes, pensadas e
copiadas para o papel em meio de uma tempestade de riso. Tê-la-á em suas mãos ainda húmida das
lágrimas que chorei sobre ela. Castanheira, caro amigo, não sabe, não pode imaginar!…
Esteve na nossa editora, há dias – também o Antunes lhe escreve uma carta, que, ao menos
espero, será um pouco mais séria –, a mamã do Dantas, que vinha pedir-nos que lhe escrevêssemos
uma nota, por pequena que fosse, na nossa «magnífica revista» (palavras suas), e «ilustríssima». Está
bom de ver, Castanheira, que a gente quando roga, não roga senão em meio das mais disparatadas
bajulações. «Como outra não há no país, no que ao fazer jus aos seus heróis diz respeito». Patriotas
nos chamava, quando já não há pátria, e nacionalistas, cheios do espírito dos nossos pais e reis, que é
neste tempo a moda. E de que serve um sangue de rei em terra de deputados e ministros? O sangue
azul destoa hoje neste Mar Vermelho de burgueses e socialistas. Cá nós somos todos
republicaníssimos, respondi-lhe, esclarecendo depois: cá a gente está interessada em parecer bem e
iguais, pelo que temos todos, independentemente do partido, uma cor vermelhíssima de sangue.
Como não troçar, Castanheira? A pobre choramingava, como nestas ocasiões convém, e trajava de
preto, do negro mais lutuoso que o país já viu, como se nela tivesse morrido Portugal inteiro. E era
disso que queria falar, a pobre mamã, ferida no extenso orgulho que vota ao filho:
- O meu Julinho, sr. Fonseca…. O pobre do meu Julinho, insultado por extenso! Que afronta,
que humilhação!...
- Que quer que lhe faça, senhora? respondia-lhe eu, encolhendo os ombros, evidentemente. Um
paninho para as lágrimas, quer? Um copinho de água? Olhe lá se não me desmaia aí, não há quem a
acuda, desgraçadamente. Olhe que cá não houve quem tivesse estudado na Escolinha Médico-
Cirúrgica, entende? Cá só há letrados, e mal letrados, como pode ver. A que veio cá, senhora?
- Por extenso, repetia ela, há esse detalhe tão importante, tão cruel.
- Mas isso foi há tanto tempo, senhora! Porque não esquece? Faça isso; esqueça.
Ó Castanheira, esquecia-me eu de lhe dizer o nome da infeliz mulher, poupando-lhe assim o
trabalho de uma averiguação, tão necessária à prossecução (é assim que se diz? – olhe você que eu de
leis sei menos do que de cozinha, que não é dizer pouco) da queixa. Aí vai, um riquíssimo nome, e
esclarecedor: Maria Augusta Pereira de Eça. De Eça, veja lá. Não é que o nosso Dantas, ó
Castanheira, é na linha materna aparentado dessa linha augusta de escritores a que pertenceu o autor
da Comédia Humana lusitana? Mas o génio herda-se por linha paterna, evidentemente, de modo que
um é Queiroz e o outro Dantas…
A mãe do «nosso Dantas» – que é como a boa mulher lhe chama, falando em seu nome e em
nome do marido – vinha, pois, ao meu gabinete como ia noutros tempos ao gabinete do diretor escolar
queixar-se das malvadezes que os colegas faziam ao seu «filhinho querido». Imagina a figura que eu
fazia há três dias, então, sentado nesta mesma cadeira, oferecendo-lhe um paninho para as lágrimas e
copinho de água açucarada.... O rapazinho de escola travesso era o Almada Negreiros, que a mãe do
Dantas queria que castigássemos.
- E que fez o Almada desta vez?
E ela lá tirou da carteira um dos muitos exemplares do Manifesto que o autor das Rosas de Todo
o Ano adquirira e mo mostrou. Eu, pela muito boa educação que tenho, vi-me obrigado a fingir que
não o lera, que não soubera o que todos sabiam, evidentemente, que me escandalizava, por certo, que
não podia ser, que não podia aceitar-se, e todo um alarido que não tratarei aqui de repetir. A cada
gesto meu de indignação a senhora ajuntava um parzinho de lágrimas mais. Creia-me, Castanheira:
com o que chorou nessa tarde a mamã do Dantas enchia-se todo um Atlântico.
- Não se aflija, senhora. Entramos o século quase à luz dessa ceia magnífica que foi A Ceia dos
Cardeais, e é à luz dela que percorreremos – Portugal, digo – todos os milénios que o Senhor permita
à humanidade viver. Que alexandrinos primorosos! Três monólogos saborosíssimos. E a cenografia –
de encher o olho: tanta prata, tanto cristal, mais o tapete oriental, o Möet et Chandon, claro, mais o
maravilhoso faisão. O Pina, como sempre, excelente. E a temática amorosa, percebe você, que fica
sempre tão bem em língua portuguesa. O Dantas tem crédito! Tem muito crédito a cobrar às nossas
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letras, não há jornal que não o afirme. E o Dantas tem presença cultural, tem encanto institucional,
tem nobreza intelectual…
Não sabia eu que mais barbaridades dizer-lhe.
- Portugal é Dantas, desde 1902. E o estrangeiro sabe-o. Por isso não cessam as traduções, as
imitações. Já se fala em França do dantisme, que viria a ser um novo fôlego parnasiano, uma nova
poética, correta, sólida, mas suave, ainda assim, colorida, alegre, como convém ao espírito
verdadeiramente nacional, tão dado ao riso. De entre os três, é certíssimo que o mais digno cardeal
era o nosso, o português, o …
E tentava a todo o esforço recordar-me o nome, quando a senhora, que conhecia a obra como
neta que lhe era, me ajudou, quase gritando:
- Gonzaga de Castro!
- Gonzaga de Castro, nem mais… Esse é que é um bom cardeal, um português, um nosso, de
nos encher o orgulho. Melhor figura faz ele entre os cardeais que o Amaro entre os padres seus iguais.
No sentimento português é que há verdade. E o país, Sr.ª D.ª Maria Augusta, pagou ao seu Dantas
muito bem o jantarinho e o mais que fez pelo país: deram-lhe assento e presidência na Academia,
encheram-lhe de medalhinhas o pescoço e os bolsos de ouro e prata, deram-lhe lugar no
Conservatório… Quantas ordens não lhe deram? Que comissão lhe recusaram? E o seu lugarzinho na
Revista dos Centenários? Que jornal lhe fechou as portas…? Diga tudo, Sr.ª, só não diga que foi
ingrato o país ao seu Julinho. O Dantas está como ninguém – famosíssimo, ricalhão, louvado, como
no caso convém. Que mais desejaria a Sr.ª D.ª Maria Augusta para o seu Julinho?
- O Manifesto, insistia a senhora.
Tinha eu, que sou muito seu amigo, que escrever uma carta ao Comité para a Igualdade «dos
nossos poetas», como dizia a Sr.ª D.ª Maria Augusta, a exigir que se proibisse o Almada da atividade
literária, por práticas abusivas e desconformes à lei. Fizera jogo sujo, o Almada, jogara barato. Porque
não gastava o Almada tempo em escrever também alexandrinos rigorosos? Porque não gastava
dinheiro preparando a cena? Porque não pagava a atores? E se não escrevia teatro, porque não
respeitava as leis da decência? Não era infame o que escrevia? Tudo aquilo tinha pouco de literário,
era ilegítimo. Cigano, o Dantas? Pois o Almada era Santomense.
- Então responda-lhe, senhora. Escreva um manifesto também, atire que «o Almada é
Santomense. Pim». «Morra o Almada. Pim». Olhe que não faltará quem a acuda no seu grito, não
obstante o peso que têm os decadentistas entre nós, estes dias. Dirão que Portugal é verdadeiramente
aqui a capital, já nem o Porto, nem Guimarães, já nem Coimbra. O Dantas ao menos é algarvio, não
precisou atravessar o mar para se fazer português. Escreva isso, porque não escreve?
Tinha eu, então, que escrever uma carta reclamatória ao Comité para a Igualdade «dos nossos
poetas» em que expusesse, como primorosa argumentação, as razões pelas quais Almada deveria ser
erradicado da cena literária: não deveria escrever mais, e tudo o que tivesse escrito não deveria constar
dos anais da história. Em cem anos, ninguém deveria saber da existência de um Negreiros, de um
José Sobral de Almada Negreiros. José, por ser o nome de um dos pais de Cristo, safaria. Mas Sobral,
Almada, Negreiros, seriam proibidos. E um Sobral que tenha um filho ou uma filha deveria desde
então chamá-lo Pinhal. Almada se tornaria Seixal, Negreiros se tornaria Neves – no futuro, não
poderia por esta determinação existir um Sobral de Almada Negreiros em Portugal – capital e demais
portugais –, só um José Pinhal de Seixal Neves, que é um nome horroroso, como o Manifesto de que
ninguém terá memória.
Tudo isto me exigia a boa senhora. E contava que eu, que sou muito seu amigo, escrevesse com
tamanha indignação, com tamanha razão, que não se pudesse o Comité furtar ao cumprimento da
sentença. Tudo isto, Castanheira!...
- Que importa o Manifesto, Sr.ª D.ª Maria Augusta? Ao Dantas não importa. E quem, de resto,
o leu, se o Dantas comprou todos os exemplares? Fala-se de uma afronta ao Dantas, é certo, mas são
rumores vagos, ondulações de um rio tímido, quase seco. Ninguém lhe dá mais atenção do que a uma
folha que se vê cair num dia triste de outono. O seu Dantas, por seu lado, é folha de árvore perene. O
seu Dantas – o seu Julinho, perdão – caminha pelos salões, pelos Comités, pelas Academias, com o
maior à-vontade, recebendo a honra que se lhe deve. O Dantas escreveu as Rosas de Todo o Ano,
caramba! E mais, senhora: as «Rosas de Toda a Eternidade». O Dantas é perpétuo!
- Mas o Manifesto é uma mancha indelével no seu currículo, insistia a mamã do Dantas. E a
eternidade é tão longa, tem talvez má memória: quem sabe o que se lembra o povo daqui a cem anos?
Quem sabe não fica o Manifesto e se perde o mais que foi o Dantas?
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- E ao Dantas que lhe importa? Se o Dantas não escreveu para o povo, nem para a eternidade,
que se avenha com o que a eternidade e o povo lhe reservarem. Além disso, é lá o povo que faz a
história!? De uma forma ou de outra, o Dantas fica. Como grande poeta ou um cigano, ao menos fica.
- O meu filho não é cigano, repetia D.ª Maria Augusta, indignadíssima.
- Claro que não – o Dantas é tão cigano como quem não o é. Entende? O Dantas é um exemplar
riquíssimo de português, de nos fartar o orgulho. Portugal é Dantas.
- E o que será Portugal em cem anos? O grande Dantas ou o Dantas cigano?
- Outra coisa que não o Dantas, porque não?
Como ela se assustasse, tentei o mais que pude aquietá-la. Ia dizendo, muito seguro de mim:
- O Dantas é perpétuo, não se preocupe. Hão de chamar-lhe «o segundo Camões», não tanto
em ordem de mérito, quanto temporal. Se o Dantas tivesse nascido primeiro que o outro, ter-lhe-iam
chamado «o primeiro Camões». O Dantas escreveu O Reposteiro Verde. O Dantas escreveu A Severa. E
pergunte aí: quem não comungou da ceia magnífica dos cardeais? Pergunte. O Almada é um pateta,
não sabe o que diz, mesmo que o diga por extenso. E hão de lembrar as traduções excelentíssimas do
nosso Dantas – quem se lembrará dos trabalhinhos de escola do Almada? O Dantas é um português
como deve ser, e tem nome próprio, caramba, não anda usando o nome de outros para se afamar. A
eternidade é sábia, guarda os melhores – e quem melhor que o Dantas para guardar?
- Mas leia aqui, sr. Fonseca: não há decoro, não há respeito. É um atentado que não deverá
passar impune. O meu filho encolhe os ombros, é verdade, não se lhe faz mais leve o bolso nem menos
dourada a fama. Mas eu, sua mãe que sou, condoo-me por ele, por mor da eternidade que como
portugueses lhe devemos. Quero preso o Almada. Quero o Almada arrancado das páginas da história!
Olhe lá, Castanheira, o que eu não ria depois que a senhora saiu, cá com o Antunes e o Barbosa.
- E umas incompreenssibilidades grosseiras, tais como «parir abaixo de zero» que fazem mossa,
mas não dizem nada. E insultos do mais grosseiro que há, sem elevação, sem Romantismo, sem
alexandrinos, sem aquele parzinho de rimas bem construídas, sem esse cenário primoroso e real, que
houve que guardar que o público admirado não furtasse, como lembrança de uma ceia que atrás fica
somente à ceia de Nosso Senhor Jesus Cristo. E agora esse Almada, esse Judas, comendo à mesa do
banquete. Pagam os Românticos, sempre. Que culpa há em ser Romântico?
- Escreva-o, senhora. Escreva-o por extenso, também. Não faltará quem a acuda no seu grito,
insistia eu. O Dantas tem nome, tem gente que o defenda. Acredite é que o Comité muito não poderá
fazer. Escreverei, claro; escreverei. Mas asseguro-lhe que nem mesmo o Dantas escrevendo, e sabemos
que bem escreve o Dantas, os poderia convencer. É preciso trabalhar com casos mais importantes,
dizem os entendidos. O Almada é um josé-ninguém, que não importa a ninguém. Há que trabalhar
com casos mais difíceis. O Almada faz mossa, mas é mentiroso. Todos vimos o Dantas passear pelo
Chiado. E que bem que ia, bem vestido, bem penteado, elegante como convém – e o bigode em
excelente estado. O Almada faz mossa, é claro, porém mente. E o Comité não trabalha com
mentirosos, não há nada a fazer. Que pode fazer-se, Sr.ª D.ª Maria Augusta? É comprar os exemplares
todos e olhar para o lado, que desse lado a que se olham chovem bênçãos, com certeza – uma medalha,
uma presidência, quem sabe?
Escrevo-lhe ainda rindo: pobre Dantas, com uma mamã assim… Tivesse-o sabido a tempo, o
Almada ainda teria escrito uma coisa do género «O DANTAS É UM MENINO DA MAMû, que
não dói tanto, sim, mas é, ao menos, verdade. Há que jogar-se com a verdade, sempre. Ou não?
Faça como quiser, Castanheira; atenda a súplica da santíssima mãe do Dantas ou ignore-a. De
igual modo, com o que a preocupa, nem eu nem você temos muito que ver: quem escreve a eternidade?
quem sabe quem dura, entre o Almada e o Dantas? Não aposto numa parte nem noutra.
Lá a despedi, pobre senhora, procurando consolá-la, ainda:
- Olhe que o Dantas cobrou em vida o que lhe poderia ter dado a eternidade: tem nome, tem
estatuto, tem fortuna. O Dantas cobrou tudo em vida. E se não ganhar a eternidade, será porque não
calha. Mas cobrou bem, que mais importa?
- O Almada é um invejoso. Que lhe fez o meu Julinho que o insultasse assim? O Almada é um
invejoso.
O que eu não ri, ó Castanheira, esta quarta-feira. Sem poder dizer-lhe que o nosso novo número
era sobre o Almada, Castanheira, e não sobre o Dantas, por que não se escandalizasse e me morresse
ali no cadeirão…
I. A invenção do dia claro
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Dispersas reflexões
sobre o poder de pensar as palavras
Romen
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Raras são as vezes em que não penso nas minhas palavras, nas que digo ou, com mais
frequência, nas que disse ou hei de dizer. Todos o fazem, julgo eu. Para mim, elas são indispensáveis
à vida. Pensar as minhas palavras, se é que são só minhas, é inevitavelmente pensar nas palavras dos
outros, conhecidos ou não, porque as palavras são uma construção coletiva e, por isso mesmo, não
podem ser marcadas apenas pela individualidade.
Para ser honesto, penso nas palavras – já sabem, minhas ou não – não só porque tenho a
consciência da mortalidade a que estamos sujeitos, mas, sobretudo, porque estou vivo e sei que o que
digo ou o que os outros dizem pode influenciar a minha maneira de sentir, pensar e ver o mundo.
Chamamos a isto decisões coletivas. Por sermos humanos, vivemos reconstruindo pensamentos.
Vivemos mais de palavras do que de ações. Aliás, se as palavras podem ser, antes de mais,
sentimentos, elas são, de um certo modo, a razão das nossas ações, a razão de tudo quanto existe.
Teria dito o mesmo a Bíblia, a base do pensamento e da cultura ocidental. Com as palavras elogiamos,
criticamos, dizemos o quanto amamos ou odiamos algo. Com as palavras expomos todo o nosso ser,
correndo o risco de contagiarmos quem nos ouve.
Deve ser, então, esta a razão de se dizer que com elas – as palavras – temos uma relação
intrínseca. Se não existissem – quem nos dirá o contrário? – não teríamos existido, enquanto Homens,
nem enquanto nada. Não dependem de nós, antes pelo contrário, nós é que dependemos delas. Nós
criamos coisas e, para as nomear, usamos as palavras. No entanto, convém lembrar: foram elas antes
que nos criaram a nós, não nós a elas. «As palavras já foram inventadas», diz Almada Negreiros.
Contudo – que magnífico poder humano! – criamo-las também, caso contrário, esta máquina com a
qual escrevo não se chamaria computador. Crerei, até que alguém me diga o contrário, que das
primeiras palavras criadas não fazia parte a palavra «computador». Nós evoluímos no que elas
evoluem, ou vice-versa! E talvez seja esta a razão de Almada ter assegurado que «nós não somos do
século d’inventar as palavras»; mas sim «nós somos do século d’inventar outra vez as palavras já foram
inventadas» (NEGREIROS, 1921: 18).
Verdade seja dita: pronunciarmos uma certa quantidade de palavras depende, antes demais,
do número de palavras que antes ouvimos e das que somos capazes de, a partir dessas, produzir. Dito
de outra forma: quem mais teve a oportunidade de ouvir pronunciar várias palavras, terá, se for
minimamente criativo, capacidade de dizer mais palavras, boas ou más, quando estiver a falar. Tudo
depende do contexto. Contudo, neste sistema binário, há sempre outro(s) elemento(s), há sempre
outras possibilidades: dizer poucas palavras, mais palavras, ou nada. É uma questão de decidirmos
pensar nelas– ainda que tenhamos ouvido poucas, ou que tenhamos pouco jeito para as utilizar,
podemos transformá-las.
Até aqui, nada de novo. São coisas que, melhor ou pior, já todos sabemos. Admitamos então
o seguinte: muitos de nós vivem apenas das palavras de outros sem, no entanto, poderem transformá-
las em suas próprias palavras. E isso não é ser livre! E quem não é livre, diz ou faz as coisas, não
porque as queira dizer ou fazer, mas porque os outros querem que as diga ou faça. O que resta então
é saber que não há maior liberdade do que o poder de decidir dizer e fazer o que se quer, ainda que,
em algumas circunstâncias, se possa ferir as decisões coletivas. Isto só é possível quando se pensa de um
modo diferente, independentemente do tempo, do espaço e de quem nos ouve.
A decisão é minha. Penso, digo e acredito que os outros também o possam fazer, com boa ou
má qualidade.
P.S.- Lembro-me de que, na minha primeira aula da História do Teatro Português, quase um
mês depois de ter escrito estas palavras, em resposta à pergunta “Quais são as suas expetativas para
esta cadeira?”, respondi: “Gosto de palavras”. Registo, com agrado, o facto de a professora ter escrito,
como que em obediência à minha liberdade, exatamente estas três palavras, na sua ficha de controle,
ao lado do meu nome: “Gosto de palavras”.
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Narcisismo,
individualismo e indiferença: condições humanas em progresso
Eduarda Magalhães
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Criada em 1964 pelo cartunista argentino Quino, e tendo marcado os anos 60 e 70, a
“Mafaldinha” não deixou de ter uma importância significativa na educação dos Millennials (geração
em que me incluo). Mafalda, personagem que teve Umberto Eco como seu fã, é uma criança
impertinente e curiosa relativamente aos mais variados assuntos. Não se limita a adorar os Beatles e a
detestar sopa; também questiona – e faz-nos questionar – a realidade que nos rodeia, o mundo
constantemente adoentado e uma humanidade igualmente doente. Faz-nos rir quando reflete sobre a
possível existência de OVNIS e exclama com indignação: “E, havendo mundos mais evoluídos,
porque é que eu tive de nascer neste?” [QUINO, 2013: 3]. Apesar da aparente simplicidade das suas
palavras, retraímo-nos em desconforto com a verdade nua e crua das suas expressões imaculadas.
Mafalda é uma de muitas criações que apelam ao humanismo, à justiça, ao equilíbrio, ao altruísmo e
ao bom senso, através do humor e da autocrítica. Em cinquenta e sete anos de existência, nunca caiu
no esquecimento, talvez porque a sua crítica social e política, na generalidade, continua bastante atual.
Na tira acima colocada, a questão ingénua, mas oportuna, de Mafalda sobre a percentagem de
“verdadeiros seres humanos” existente no planeta Terra não difere muito das minhas indagações
relativamente aos tempos modernos. Quase cedo à tentação de me dirigir a uma farmácia e pedir um
nervocalm, como Mafalda fazia para apaziguar a mente do pai, após fazer-lhe perguntas difíceis, de
cariz existencialista. Algo de enervante e desconcertante ocorre há algum tempo; uma pandemia
silenciosa que atingiu o seu pico nos últimos anos. Refiro-me ao culto do narcisismo e do
individualismo, que despe o Homem da sua humanidade, cobre-o de um profundo egoísmo e de
vaidade e embala-o de mansinho, sussurrando-lhe ao ouvido a lullaby do “eu”.
O substantivo "narcisismo" tem a sua origem no mito grego de Narciso, um jovem belo e
indiferente ao amor, que, ao ver-se refletido na lagoa de Eco, se apaixona pela sua própria imagem.
Narciso acaba por ser engolido pelas águas da lagoa e morre; mesmo depois de morto, continua a
contemplar-se nas águas do rio Estige. O termo generalizou-se e hoje utilizamo-lo para descrever
qualquer comportamento que valorize mais o “eu” do que o “outro”.
Em psicologia, o Narcisismo é um transtorno de personalidade que provoca nos indivíduos um
sentido exagerado da sua própria importância, uma forte necessidade de atenção e admiração e pouca
empatia por terceiros, distúrbios causadores de relacionamentos conturbados. Atrás desta máscara de
extrema confiança, existe uma autoestima intermitente, vulnerável à menor crítica. Atualmente,
torna-se difícil perceber onde se inicia a simples metáfora e onde termina o transtorno psicológico. O
Narcisismo, que considero um signo do individualismo, parece ser o novo normal. Para este
“problema”, já nos tinha avisado Fradique Mendes, numa carta que escreveu a Bento de S.:
Vir no jornal! eis hoje a impaciente aspiração e a recompensa suprema! […] Nas
nossas democracias a ânsia da maioria dos mortais é alcançar em sete linhas o louvor do
jornal” e acrescenta que para verem a sua imagem impressa, as pessoas praticavam “todas
as ações – mesmo as boas. [QUEIRÓS, II, 1979: 1093]
Estão longe os tempos em que somente a alta sociedade tinha o privilégio de se expor numa
folha de jornal. O vírus sofreu mutações e hoje surge nas redes sociais. Todos nos tornamos pequenos
burgueses que rejubilam ao ver a sua imagem publicada. Muitos praticam o bem, mas alguns somente
quando ligam a câmara do telemóvel e se filmam a praticar o ato bendito. Ora, um mendigo na rua
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com fome? Sim, senhor, deixa-me ir comprar umas sandes e preparar o telemóvel para filmar a minha
boa ação. Um gatinho a afogar-se num rio? Espera aí, bichano! Engole só mais uns centilitros de água
doce enquanto eu desbloqueio o telemóvel e mostro à câmara o grande herói que sou. Black Lives
Matter? Esperem aí! Deixem-me só vestir a melhor roupa preta, colocar alguma maquilhagem, sair à
rua fingir que simpatizo com a causa, enquanto empino ligeiramente a perna e faço uma expressão de
tristeza ou revolta. Ao fim de cinco ou dez fotografias, volto para casa e cancelo figuras públicas que
disseram, há 10, 15, 100 anos!, algo com que discordo. Se estraguei a vida de alguém com os meus
laivos de justiça conveniente, não me importo! Quase sempre ignoro o contexto, porque “eu” quero,
“eu” sonho e a obra tem de nascer!
Assim vivem; cegos, com um caráter inventado, idealizado para conquistar o mundo. Muitos
conseguem-no. Conquistam um mundo pequenino, tão pequenino, quanto o seu bom senso. Já
nababos, no seu reino, riem e esfregam a sua sorte, como quem esfrega incansavelmente uma sertã
cheia de gordura, na cara dos perdedores. Mas, quando a noite cai e as estrelas se levantam, tropeçam
nos seus lençóis, acariciam a sua almofada e dormem sob o vazio. Um vazio que não corresponde só
ao seu caráter, mas também à sua situação: estão sós. A solidão é uma boa conselheira, mas não é
uma parceira que se queira para toda a vida. Para além da pura exposição, do culto à imagem e da
colheita forçada de boas ou más ações, encontramos outro lado do narcisismo: o individualismo
carpideiro e maldizente. Já dizia Almada Negreiros, na peça S.O.S, nos anos 30 do passado século:
Não estamos longe da sociedade que Eça descrevia, com certa desilusão. Como é que
evoluímos tanto, tecnológica e socialmente, e, mesmo assim, continuamos tão pequeninos na nossa
bolha? No mundo contemporâneo, certos indivíduos continuam a mostrar-se imersos na própria
subjetividade, em posição fetal, a chuchar o dedo num universo particular, paralelo, ridículo e
somente seu. Não abrem espaço para se colocarem nos passos do outro, não abdicam de um
pedacinho de si para que alguém tenha umas sobras da sua felicidade, não conseguem ignorar a
“pujança” de quem ousou ter uma opinião contrária! Insultam, couceiam, zurram e perseguem a
abelhinha que os picou. Se são desprezados e desarmados fazem birras, como as crianças que ouviram
o “Não!”, pela primeira vez, da sua mãe. Tudo isto está à vista de todos, bate-nos no nariz com uma
força thoriana (existe? ou acabei de inventar o adjetivo?), sempre que ligamos o ecrã mágico. Sim,
meus amigos. As conversas que antigamente se limitavam ao café e que, algumas vezes, geravam
belas batalhas gregas – se essas lutas do passado fossem imbuídas de um Tawny – hoje multiplicaram-
se numa Rede!
Uma vez ouvi alguém dizer: “Sempre existiram idiotas, a internet só deu uma oportunidade
para que a idiotice e a estupidez fossem expressas em maior escala e chegassem a um maior número
de pessoas”. Infelizmente, aqueles que ainda possuem alguma réstia de sensatez estão quase obrigados
a suportá-lo. Claro que podemos, simplesmente, ignorar e assobiar para o lado, apreciar uma boa
paisagem, ler um livro extraordinário, ouvir um “jazz-zinho” da Billie Holiday ou do Louis
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Armstrong, sabendo que existem milhares de sujeitos, muitos deles no nosso país, a carpirem que a
sua desgraça é maior do que o sofrimento de pessoa X e que, por isso, merecem mais atenção do que
a pessoa X. Gritam pelo teclado fora – sujeitos a descolarem uma tecla – “Eh lá! Pela Pátria, homens
de Deus! Primeiro os nossos!”, mas depois sacodem com o guarda-chuva um mendigo português que
lhes pede uma sopa, na rua, enquanto dizem, entre dentes, “Tens bom cabedal para ir trabalhar! Tu
queres é facilitismos!”. Derramam pilhérias e sarcasmos – achando-se bons comediantes – sobre
meninas violadas por moços que apenas se interessaram pelo recorte da minissaia (também existem
homens com bom olho para a moda!). Invocam não sei quantos direitos constitucionais, gracejam
com superioridade “Vocês é que caminham com o resto do rebanho” e constroem teorias da
conspiração para não usarem uma simples e patética máscara em tempos de pandemia. Qual Bill Gates
qual quê, Tó Zé?! Tu queres é ser do contra e fantasiar uma resistência, seu chalupa! Nunca vi tanta gente com
vontade de apanhar um vírus, porque, para eles, o problema é individual. Não é individual, Gertrudes!
Não estás a decidir se vais ter filhos ou não, estás a colocar em risco a saúde de outras pessoas! Ter a noção de
que também há quem se ataque constantemente, ad hominem, desde a pata torta do seu gato até ao
bigode mal aprumado dos seus ancestrais, simplesmente pelas diferentes cores políticas – todos nós
sabemos que a Esquerda alimenta os esgazeados de charro na mão e a direita acaricia as cabecinhas
dos betinhos que conduzem os Mercedes dos papás! – deixa-me vencida. Sinto-me desgastada, com
apenas 26 anos… perdi até a coragem de referir as guerrilhas futebolísticas e afins...
A solidariedade está em vias de extinção. Ainda borbulha por aí, é certo. Existem boas almas
que, em momentos cruciais, se apressam a esticar a mão e a puxar desgraçados que bracejam no fundo
de um poço, mas são cada vez menos. Estamos num constante “progresso da decadência”, como o
jovem Eça dizia. Perdemos o mundo da colaboração, como Almada acrescentaria. Tudo mudou, mas
as mudanças contribuíram sempre para a contínua e desagradável indiferença, para o individualismo
mesquinho e para o narcisismo desordeiro. Vivemos sós e iremos morrer sós, se assim continuarmos
(parece, realmente, uma frase retirada da escola existencialista; não tenciono, no entanto, plagiar aqui
os pensamentos de Jean Paul-Sartre...).
Meus caros, a vida é madrasta para com todos nós. Todos sofremos, uns mais do que outros.
Rebaixar a infelicidade alheia não é solução. Não seríamos mais felizes se costurássemos mantinhas
de empatia e se simplesmente disséssemos: “Eu não passei pelo que passaste. Não compreendo a tua
dor, pois é diferente da minha, mas, como conheço os infortúnios ligados à existência humana, o
mínimo que poderei dizer é que sou solidário(a). Juntos encontraremos um alívio físico e/ou mental”?
Insultar e agredir quem pensa de forma diferente não é o mais sensato. Se o que dizem não pisa a
liberdade alheia, não façamos inimigos. Ódio gera ódio. Violência gera violência. Não fiquemos pelos
juízos vagos, nem pelas simplicidades mentais. O que consideramos verdade ou mentira, torna-se a
nossa realidade, mas a realidade é diferente para cada um de nós; é subjetiva e dualista e, por vezes,
uma ilusão. Deixemos de lado o ego, conversemos e discutamos assuntos com bom senso. Da direita
à esquerda, do doutor ao operário, quem resolve pela palavra vigora no futuro. Mas isto são tudo
utopias de alguém que ainda é jovem, que mal viveu um quarto de século; ânsias de uma mulher que
ainda tem alguma esperança na espécie humana.
Estamos em plena pandemia, barricados em casa, como belos mandarins em gaiolas
aprumadas, com mais tempo para observar quem nos rodeia. Por isso é que cada um de nós deve
respirar fundo e colocar a mão na consciência, perceber de que modo contribuímos para o mundo
estar cada vez mais narcisista e individualista. Devemos relembrar a massa de que somos feitos e
perceber se somos verdadeiros seres humanos, de carne e osso, para que a pobre Mafalda tenha
finalmente acesso a uma percentagem exata.
Poderia continuar com mais exemplos e mais argumentações embebidas em sarcasmo e
ironia, mas já se faz tarde… e eu estou cansada, só e triste. Publicarei um autorretrato no Instagram, o
que talvez faça disparar os meus níveis de dopamina….
Nota ao leitor: Os nomes próprios referidos, Tó Zé e Gertrudes, foram escolhidos de forma espontânea e
aleatória. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.
Referências:
Quino (2013). A política segundo Mafalda. Lisboa: Edições ASA;
Negreiros, Almada (1997). Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar;
Queirós, Eça (1979). Obras de Eça de Queirós. I, II, III Volumes. Porto: Lello & Irmãos.
O século
Joel Oliveira
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14 | P á g i n a
Ela continuava a olhar em frente, não deu indicação de sequer ter ouvido o que tinha acabado
de ser dito. Um silêncio inesperado que o deixou fixado no pouco que via dos olhos dela. Finalmente,
ela levanta a cabeça, olha-o gravemente:
“Isso é errado. Muito errado. A literatura é literatura, é arte. A definição extingue-se aí. Ela
não te deve nada a ti, àquele homem ali ou até mesmo à verdade. Ela pode discursar acerca do que
quiseres, pode criticar a sociedade que lhe pedem para escrutinar, pode mesmo ser-te toda ouvidos
para lhe contares as tuas desinteressantes mágoas, dessas estamos todos repletos: mas não tem de ser
nada disso. A literatura é. A sua essência não se encontra nos temas, na sua atuação no mundo, ou
na sua evasiva fantasia, encontra-se na verdade entre cada palavra, nas linhas que as formam, nos
sons que delas emanam. A literatura vem de dentro para fora.”
Pois bem, amigo leitor, nem mesmo eu sou capaz de decidir com quem mais concordo.
Ambos os argumentos são válidos. Tão válidos que estão os dois próximos de me convencer, mas
falta aquela pequena distância entre a dúvida e a zelosa crença. Cá para mim, e julgo que o leitor já o
deve ter pensado, falta aquele rigor académico para que estas teorias sejam realmente decisivas. Como
podemos nós confiar num discurso não pautado por notas de rodapé e bibliografias extensas?
Contudo, e não tenho reservas em admitir-lhe isto, são me inúteis esses sofismas. Que me
interessa o rigor quando concluem irrefutavelmente e cientificamente que a literatura é definição
fugidia, é oculta pela sua própria complexidade?
Enfim, é uma questão sem resposta. O leitor, sábio como o sei que é, pode ainda julgar quem
lançou a afirmação mais categórica. Só é justo! Afinal de contas, eu mesmo acabei de o fazer.
Continuarei então a contar-lhe o que estes dois iam fazendo na sua demanda ao livro.
Iam os dois juntamente com a multidão solitária que os rodeava. Por entre artistas de rua e
vozes mescladas num grande e monótono ruído de fundo, o som dos passos na calçada era esquecido.
O mundo era apenas um barulho ensurdecedor que tomava conta de todos os sentidos; era um tanto
que expulsava tudo o que não lhe dizia respeito. Os cheiros, as imagens, os toques e os sabores
prostravam-se diante daquele som reinante, e era permitido aos homens apenas permanecer para o
ouvirem. Eram testemunhas da sua hegemonia.
Então ele, exausto das complexidades com que a literatura tem o hábito de se fazer
acompanhar e, num ato de revolta contra aquele ruído chato e maçador, fala:
“Honestamente, eu gosto de ser parte de uma multidão. É agradável renunciar a minha
individualidade de vez em quando; ser mais um. Ser eu próprio, tu certamente que compreendes,
torna-se cansativo de vez em quando e sabe bem pôr-me de parte para ser um todo. Não sentes o
mesmo?”
Era visível a surpresa na cara dela devido ao carácter inesperado do que ele tinha acabado de
proferir. Olhou-o uns segundos, para perceber se foi uma afirmação séria ou mais uma das suas
brincadeiras sem humor, e disse então:
“Eu não sinto o mesmo. Há dias que era mais fácil não ser eu, admito tal. Contudo, é
preferível estar comigo a fugir de mim; não sei se é mesmo possível deixar-se a si próprio
completamente, mais rapidamente é um fingimento da separação. Uma multidão não é tanto um meio
para me desconstruir em nada, é, na verdade, um reforço à minha individualidade. Demonstra a largo
fosso que se estende entre todos vocês e eu.”
“Isso é bem mais difícil do que o que eu faço. Prefiro sentir-me mais um ao oposto, que é não
ser nenhum deles.”
“Talvez seja mais custoso, sim. E também, e acho que é isso que me faz preferir isto, torna
impossível negar-me, posso estar separada dos que me rodeiam, mas tenho o conhecimento claro de
que estou e sou.”
Como a multidão adquiriu um carácter etéreo neste século XXI em que participamos!
Tornou-se tal paradoxo: tanto fornece o sentimento de pertença que nos é tão caro, como desvenda o
muro que nos separa de todos os outros. Situação ainda mais visível quando olhamos a cidade
moderna. Entre paredes elevadas de prédios aglomerados que sujam o azul do firmamento com a sua
imagem ridiculamente reta, entre estradas rompidas por uma ininterrupta corrente de automóveis que
perturbam o ar com a sua insolência, entre toda aquela forma hiperbólica de viver, há a solidão da
multidão. No quadro pintado da cidade, vemos homens, mulheres todos unidos na sua irremediável
separação; há lá uma multidão de pessoas, multidão de pessoas que não são essa multidão que veem.
A cidade é o significante oblíquo da solidão.
16 | P á g i n a
Chegados por fim à livraria, enquanto ela se dirigira ao balcão, ele olhava todos aqueles
nomes impressos em todas a cores imagináveis. Cada uma daquelas pessoas havia desperdiçado parte
da sua vida a redigir um monte de textos que agora se encontravam ali em exposição. Ele tateava o
frontispício dos vários livros, parecia procurar compreender qual seria o melhor. Os seus gestos iam
ficando cada vez mais impulsivos e incompletos: como era de esperar, não o conseguia perceber.
Afinal de contas, de que serve ler o melhor? Isso nem existe; ideia clássica que já morreu há muito.
Ela aproxima-se e dá-lhe um pequeno empurrão:
“Era bom que estivesse aí o teu nome? Primeiro tens que começar a escrever.”
“Começar é o mais difícil. Certamente que após começar, chegar aqui é nem metade do
esforço. De qualquer das formas, não quero o meu nome aqui. O nome pode ficar comigo, o que eu
escrever, se escrever, é que pode correr por todas as páginas que por aí andam”.
“Acerca disso, posso finalmente concordar contigo. O texto vive, o autor, mesmo que vivo,
morre”.
Já no exterior da livraria, com a lua a estudá-los no topo da abóbada celeste,
intermitentemente bloqueada pelos objetos opacos que constroem a cidade, chega a hora da
despedida. Ele começa:
“Eu vou para ali. Tu caminhas para o lado oposto, não é?”
“Sim. Parece que ficamos por aqui.”
“A conversa foi boa. Discutimos arte, literatura, e o que viesse à cabeça.”
“Que havíamos mais de fazer? Somos jovens!”
Dez direitos
do leitor moderno
Cristiana Correia
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17 | P á g i n a
SENTI(N)DO
Rita Sofia Guimarães
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Já alguma vez se sentiram insuficientes? Como se, por mais que tentassem, nada conseguiam
fazer para mudar isso? Se sim, convido-vos a prosseguir a leitura; se não, peço que parem de ler e que
mudem de página.
Mais do que palavras soltas, os meus rascunhos, muitas vezes, funcionam como um diário,
no qual escrevo terrivelmente mal, sem atenção à sintaxe nem à semântica. Quando lá escrevo, sinto
o meu coração a bater rápido, como se do meu peito ele quisesse sair, e as minhas mãos a tremer,
porque não conseguem acompanhar a velocidade do meu pensamento. Lá procuro a libertação destas
lágrimas frias que escorrem pela minha cara. Lá procuro o meu sentido, sentindo o vazio da minha
existência. Lá escondo a minha insuficiência. Agora, talvez fosse um bom momento para enumerar
todos os motivos que me fazem sentir assim, mas escolho não o fazer, prefiro que essa parte de mim
permaneça invisível; que permaneça minha.
Palavra após palavra, rua após rua, interrogo-me se este é o meu sentido, se estou a caminhar
na direção certa. E, neste momento, ao mesmo tempo que a minha cabeça fica em água, a minha
ansiedade começa a fervilhar. E, numa desesperada e fútil tentativa de me acalmar, olho para o que
me rodeia e procuro o ar, mas este permanece escasso e tudo o que encontro são os constantes
encontrões que me apertam o coração e, lentamente, me deitam ao chão.
Sabem, caros leitores, antes eu não era assim, não era esta pessoa insuficiente. Não era
perfeita, mas era suficiente. Infelizmente, sem eu reparar, a soma dos encontrões, subtraiu a minha
suficiência e resultou na insuficiência. Mas, sabem qual é a pior parte? É que eu permiti, deixei-me
caminhar naquelas ruas brilhantes que me agarraram o olhar e, passo após passo, perdi uma parte de
mim e, só no fim da rua é que vi que nada sobrou. Tudo me tinha sido tirado e, agora, nem força eu
tinha para voltar atrás, porque as luzes já se tinham apagado e aquela rua, que outrora foi brilhante,
tinha se tornado num beco inconstante.
No meio do caos das multidões estáticas, encontro a minha paz. Imagino que, tal como eu,
aqueles rostos cansados e fatigados com expressões fingidas procuram exaustivamente, naqueles
caminhos, os seus sentidos e propósitos. Observo-os e, nas minhas folhas soltas, escrevo,
freneticamente, linhas que se transformam em parágrafos e, posteriormente, em excertos de uma
realidade que eu nunca conhecerei completamente e de uma sociedade que permanecerá fora do meu
alcance durante a minha busca pela verdade. Quando, por um segundo, esqueço-me da ausência de
luz, da minha presença no beco e da minha insuficiência, subitamente, ouço gritos angustiados que
se espalham e substituem o ar.
- "As paredes! As paredes" - gritavam.
As paredes estavam a encolher. Corri. Cai. Levantei-me. Corri. Os gritos escalavam à medida
que o cimento ruía. Sem fôlego, sem força, sem energia, parei, aceitando o meu destino. Sentei-me no
chão, peguei na minha velha caneta e, na perversa escuridão, enquanto ouvia o desespero crescente.
Continuei a escrever. Naquele momento, relembrei quem costumava ser e, ali, a tinta da minha caneta
deixou de ser preta, tornou-se ainda mais clara do que a luz e as minhas palavras soltas mostraram-
me o sentido.
Sabem o que mudou, caros leitores? Para encontrar o meu sentido de volta, eu permiti-me
sentir o sentido e, apercebi-me de que, afinal, não era do vazio que eu tinha medo, mas da tristeza.
Assim, os meus tristes rascunhos tornaram-se a minha luz e, iluminando o meu caminho, as paredes
pararam de encolher e aquele beco inconstante transformou-se numa rua insignificante.
18 | P á g i n a
As I Lay Dying:
Retrato de uma família à beira da rutura
Ana Rafaela Damas
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20 | P á g i n a
e identitária que vive. O seu riso confirma que tem plena consciência do absurdo que o rodeia, afinal:
“This world is not his world; this life his life” [FAULKNER, 2004: 248].
Anse é o pai, marido de Addie, uma personagem extremamente passiva: as coisas acontecem,
simplesmente, sem que faça nada por isso. Nem sequer se apercebe do ódio que Addie lhe tem ou do
seu plano de vingança, que consistia em acabar com a inércia que o caracterizava, obrigando-o a levar
o caixão até Jefferson com os filhos. Sendo uma figura definida pela sua mesquinhez e egoísmo, faz
uso da morte e funeral da esposa para ir àquela cidade cortar o cabelo, arranjar uma nova dentadura,
e, no final, consegue ainda uma nova Mrs. Bundren, vingando-se de Addie sem se aperceber.
A obra é dominada pela presença dos quatro elementos fundamentais – água, terra, ar e fogo –
e mostra as dificuldades pelas quais os Bundrens passam para concretizar o desejo da matriarca da
família. A natureza é a principal antagonista, pois é ela que está na base de todas as adversidades que
surgem naquela espécie de peregrinação.
A presença do grotesco é evidente através de situações como os abutres que pairam em círculos,
o cheiro que domina todo o ambiente, proveniente da crescente decomposição do corpo, Cash, um
dos filhos favoritos, levado em cima do caixão da mãe por ter partido a perna, quase como se a
cavalgasse, e Vardaman, o filho mais novo, que, com uma visão inocente e apenas entendendo o
fenómeno da morte no mundo animal, faz buracos no caixão para que Addie possa respirar, acabando
por perfurar o seu rosto.
Esta é, de facto, uma obra marcante do Modernismo americano. Partindo de uma família
específica oriunda do Sul, caracterizada pelas tensões familiares e pela disfuncionalidade, o romance
de Faulkner constitui um retrato da condição humana sob determinadas condições, tendo, assim, um
caráter universal.
Desabafos
de um Holden Caulfield
Ana Rafaela Damas
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Sinto-me esgotado. Esteja onde estiver, só vejo falsidade, hipocrisia, conformismo. São todos
iguais, deixam-se corromper e partem, sem retorno, crentes na complexidade de uma identidade que
já lhes foi retirada.
Já nada há a fazer em relação a eles, mas a ela…. A ela ainda a posso – e tenho de – proteger;
apanhá-la antes que desça ao inferno do qual não há saída possível. Sonho com isso demasiadas vezes,
e, no meio daquele campo de centeio em que brinca tão livremente, parece que a perco de vista e sinto-
me cair. No fim, o destino troca-me as voltas e é ela que me salva.
Andei tanto tempo consumido pela angústia de não ser capaz, mascarado por uma rebeldia que
poucos toleraram e que ninguém parecia entender. Foi sempre assim; eu, o meu boné vermelho e o
meu medo incessante de não saber o que fazer... As minhas fantasias sobre a morte pareciam não
terminar, mesmo que reconhecesse em mim o medo de não sobreviver por desafiar o que nunca esteve
certo aos meus olhos. O dilema permanecia, junto da minha obsessão, da minha confusão: manter-
me fiel àquilo em que acreditava e revoltar-me pela inocência? Ou admiti-la causa perdida? Pelo
caminho, sinto que me perdi a mim mesmo.
Batalho interiormente para deixar de ser apenas fragmentos. Estremeço, choro, sofro. Estarei
a caminho do fim que tanto temo?
Enquanto deambulo, penso em ti, desespero por ti. Pedi-te tantas vezes que não me deixasses
desaparecer, Allie. Tantas! Tantas que lhes perdi a conta, mas sei que sempre menos do que as que te
pedi que voltasses.
- INTERMEZZO -
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UNREAL
REFLECTIONS
Isabel Lameirão
II. POESIA
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VERTIGENS (I)
Walter Rego
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(um murmúrio
sem som
que não se cala
que ouço na pele
e me reconforta
com a altura
l
t
u
r
a quentura
das suas palavras)
vertendo o seu calor
a sua vida
(que aquece a minha)
zi
gue
za
gue
an
do
até mim
24 | P á g i n a
P á g i n a | 25
E eu
perdido
(sem procurar saída)
(sem poder procurá-la)
(sem querer procurá-la)
(sem querer)
me estendo
na relva
aturdido
zi
gue
za
gue
an
do
an
do
an
do
an
do
dentro da Cidade
e de mim.
VERTIGENS (II)
Walter Rego
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Ver-te – e calor
Ver-te – e calar-me
(Vertical ar me
lança em densa dança
e afunda em funda
q
u
e
d
a
26 | P á g i n a
P á g i n a | 27
O RIO FLUI EM TI
Eduarda Magalhães
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Quando no Adeus
Ariana Sanches
_____________________________________________________________________________
Ariana Sanches
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«Eu sou um poeta portuguez que ama a sua patria.»
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P á g i n a | 31
com o poder e a imensidão do universo: «A guerra é a grande experiencia» (1917: 144); «Todo aquele
que conhece o momento sublime do perigo tem a concepção exacta de ser completo e colabora na
emancipação universal porque intensifica todas as suas mais robustas qualidades na inminencia da
explosão. E na nossa sensibilidade actual tudo o que não fôr explosão não existe» (ibid.: 144). São
evidentemente parte desta estética as referências de Marinetti à «gangrène», e à necessidade de limpeza
da humanidade, ideias, visível está, de índole eugenista.
O louvor da guerra é parte de um quadro mais amplo de inversão axiológica, de sentido,
podemo-lo dizer, fascista, de que parte a construção da nacionalidade, feita, como concluirá Almada
Negreiros, quer das qualidades quer dos defeitos dos seus homens. Estamos, portanto, ante uma
estética da imperfeição e da imoralidade (melhor, de uma nova moralidade, inversa à dita tradicional):
«Car l'art ne peut être que violence, cruauté et injustice»; «Il n’y a plus de beauté que dans la lutte»
(1909: s/p). A esta luz se entende, então, que Almada condene a sua pátria, e noutra parte a elogie,
pela ausência dos seus ódios (notemos que o Futurismo procurou em tudo a pulsação: a intensidade,
o caráter temperamental, de que comungaram os nacionalismos que conduziram à Primeira Grande
Guerra): «porque o sentimento-synthese do povo portuguez é a saudade e a saudade é uma nostalgia
mórbida dos temperamentos exgotados e doentes»; «porque Portugal não tem odios, e uma raça sem
odios é uma raça desvirilisada porque sendo o odio o mais humano dos sentimentos é ao mesmo
tempo uma consequencia do domínio da vontade, portanto uma virtude consciente» (1917: 145).
Tanto o feio quanto o imperfeito fazem parte, de acordo com o dualismo proposto por Platão
n’A República, do mundo sensível. O Futurismo comunga, está visto, da nova axiologia que subjaz ao
Romantismo – a grande estética da modernidade –, aprendida de John Locke. Isto na medida em que
valoriza o sujeito, como centro da experiência, e a experiência como centro do conhecimento; é,
consequentemente, uma estética da temporalidade ou, se quisermos, da atualidade, atenta à face do
seu Tempo, ainda que afirme que «Le Temps et L’espace sont morts hier» (1909: s/p). A sua fidelidade
à atualidade de que fez parte [«É preciso ter a consciência exacta da Actualidade» (1917: 146)] permite-
nos interrogar em que consiste a dimensão de futuro a que o nome dado por Marinetti ao movimento
faz alusão. De facto, é sobretudo por ser tão fiel ao seu tempo que o Futurismo nos parece hoje datado;
por lhe faltar, entenda-se, uma certa universalidade, desligada do tempo e da História. Sob o risco de
cair naquilo a que H. Bloom chama de «Escola do Ressentimento» (1994:s/p), diremos que o
Futurismo não tem hoje futuro, especialmente pela sua vinculação a ideias de índole fascista,
nacionalista – de difícil conciliação com o nosso “mundo sem-fronteiras”, dito democrático –
eugenista. Mais ainda, notando que o valor artístico é tanto no «Manifeste» quanto no «Ultimatum»
secundário – não inexistente, note-se – podemos até mesmo questionar até que ponto eles são parte
do fenómeno literário e não apenas propaganda política (condenável, ou censurável, à luz do nosso
quadro democrático), questão a que a impossibilidade (aparente?) de responder à pergunta O que é a
literatura nos impede também de dar resposta.
Voltemos à análise da ideologia futurista, constatando como ela é particularmente injusta no
tratamento que dá aos mais velhos, agrupados, com os doentes e as mulheres, no universo dos fracos.
A construção da nacionalidade, da pátria – enquanto terra de homens –, parte dos homens sãos, fortes,
ousados; do passado, contra o qual os jovens futuristas endereçam grande parte da sua revolta, fazem
parte estes fracos, tidos já por mortos. A guerra é tida por uma espécie de seleção natural, responsável
por distinguir dos fracos os fortes, pela morte: «Contra o que toda a gente pensa a guerra é a melhor
das selecções porque os mortos são suprimidos pio destino, aqueles a quem a sorte não elegeu,
emquanto que os que voltam têm a grandeza dos vencedores e a contemplação da sorte que é a maior
das forças e o mais belo dos optimismos» (1917: 144). Uma tal conceção não pode deixar de ser ligada
às teorias eugenistas, que viriam a ter um impacto ainda mais significativo anos mais tarde (no regime
Social-Nacionalista alemão, nomeadamente), que pretenderam, numa linguagem errada ou
imperfeitamente vinculada a Nietzsche, a construção do super-homem, ou daquilo a que Almada
apelida de «Homem-Definitivo» (ibid.: 147), procurando a hierarquização das raças, a exterminação
das raças inferiores e dos homens débeis. Daí, sem dúvida, é que resulta a vinculação do movimento
futurista à juventude – «Les plus âgés d'entre nous ont trente ans : nous avons donc au moins dix ans
pour accomplir notre tâche» –, o que explicará, por sua vez, o estilo maniqueísta, agressivo e exaltado,
que desacorda com o derrotismo que marcou a literatura finissecular (debateremos adiante a
importância – negativa – desta literatura do desânimo e da descrença na construção do «Ultimatum»),
atacando-a ferozmente. Como sucedeu com a generalidade das primeiras décadas de cada século, o
clima era de entusiasmada espera (somos da opinião, já se terá notado, de que o tempo e a época
32 | P á g i n a
marcam o texto e ajudam à sua compreensão). Não é – como nada num texto o pode ser – isenta de
significação a referência do autor do «Ultimatum» à sua idade e estado de saúde: «Eu tenho 22 anos
fortes de saude e de inteligencia.» (1917: 143).
A paridade entre os dois textos é também, e naturalmente, de índole lexical. É particularmente
notório no Ultimatum de Negreiros a recuperação da ideia da guerra como «higienização».
Tentemos agora uma análise mais detalhada daquilo no Ultimatum Futurista que diz respeito à
identidade nacional, centrando-nos em primeiro lugar nas críticas do autor e, seguidamente, nas suas
“propostas”. Devemos, antes de mais, notar que a crítica de Almada é uma crítica que procura ser
geral, atacando o passado, cuja destruição é necessária à construção do futuro, nas suas diferentes
esferas. O vocábulo construção, aparentemente dissonante neste quadro bélico, visa na verdade
engrandecer a revolta, dotando-o da finalidade de que as grandes causas sempre carecem, de modo
que o ato de destruir não termina em si mesmo (não tendo um sentido anárquico, ou vão), visando,
sim, o futuro (aqui, talvez, se faça mais claro o sentido de «futurismo»): «Eu pertenço a uma geração
constructiva» (ibid.: 143).
«É a guerra que proclama a patria como a maior ambição do homem». De facto, o louvor da
guerra é já parte da construção da identidade nacional, no masculino, como já vimos, dado que ela
não se faz de homem contra homem, mas de uma nação contra a outra (se é que são pertinentes o
termos «nação» e «nacionalidade»).
No caso português, a rejeição do passado passa pela rejeição do saudosismo e do sebastianismo
(também ele saudosista, em parte) – de que até a Mensagem de Pessoa comungou – e de todos os
traumas do passado:
Bibliografia (sumária):
MARRINETTI, Filippo Tommaso (1909). Manifesto Futurista
NEGREIROS, José Sobral de Almada (1917) Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do séc. XX
Não sou brasileira. Sou fruto do estupro; sou o que restou de uma massa de escravas índias,
portuguesas, italianas, japonesas, ucranianas, hispânicas, chinesas, alemãs, suíças e espanholas que,
na busca vã de uma existência menos árdua e dolorosa, assentaram-se nesse território que hoje
conhecemos como Brasil.
Não sou brasileira. Nas minhas veias corre o sangue dos colonizadores que escravizaram
meus antepassados e oprimiram meus anciãos. Neta de portugueses, sim. Mas também de camponeses
italianos, de tupinambás, africanos e ribeirinhos nordestinos. Minha identidade não é homogênea, é
heterogênea como o tecido social de minha pátria. Verdadeiro carnaval genético, formada de pálidas
feições europeias, escondendo embaixo da minha pele minha genealogia mista.
Não sou brasileira. Gosto de nossa literatura. Delicio-me com Alencar, concordo com
Machado, choro com Augusto dos Anjos, enfureço-me com Graciliano e apaixono-me com Vinícius.
Fora Cecília e Clarisse, não leio mulheres. Elas, coitadas, não têm espaço em livros didáticos.
Não sou brasileira. Falo um português correto. Conheço a transitividade dos verbos, sei
utilizar as vozes e classificar orações. Conjugo perfeitamente a segunda pessoa e sei aplicar com
mestria a diferença entre os pronomes pessoais retos e oblíquos. Faço o uso de vocábulos rebuscados:
párvulo, laticolo, cândido, por obséquio. Não sou capaz, contudo, de diferenciar o tupi do jê, o aruak
do guarani kaiowá. Ignara, desprezo as línguas africanas enquanto compro fubá na quitanda. Esqueço
também dos 11,8 milhões de analfabetos pelas calçadas.
Não sou brasileira. Não sigo os dogmas católicos ou protestantes, embora estude em
instituições que atuam sob a graça do senhor. Jamais assisti a uma missa de domingo, não rezo o terço
tampouco enalteço santos. Como carne vermelha na páscoa, comemoro o dia das crianças sem
lembrar de Nossa Senhora Aparecida, troco presentes no Natal, visto branco no Réveillon e pulo as
Sete Ondas de Iemanjá. Desconheço a umbanda, o candomblé, o judaísmo e o islamismo. Doo roupas
a centros espiritas, mas não tomo, no entanto, passe.
Não sou brasileira. Jamais provei do acarajé baiano ou escutei o canto do uirapuru ao cair da
tarde. Filhote da selva cinza, sou cria urbana. Ouço a orquestra de buzinas e freios automotores, corro
atrás do tempo, observo o mar apenas de relance, ao longe, na tumultuada rotina urbana. Impressiono-
me com o ar límpido, com as estrelas abundantes e o silêncio da mata. Bicho da cidade, ingiro sódio,
gorduras saturadas e milho transgênico, chamo por táxis, desculpo-me pelo atraso devido ao trânsito
e, por fim, grito com entusiasmo, torcendo pela seleção nos mundiais, sem conhecer nada que
transpasse o quintal do Sudeste.
Não sou brasileira. Chamo a Ditadura Militar pelo seu nome, sem fazer uso de eufemismos.
Não enalteço a Getúlio, a Prestes, a Juscelino e a Jango. Descrente e cética, reservo meu nostálgico
escapismo político apenas para o Segundo Reinado, embora, menina tola, saiba eu que nesses 500
anos de um país em construção, nós, brasileiros, jamais presenciámos um governo tão íntegro e apto
quanto aquele presente nas minhas idealizações de Dom Pedro II. Voto com lágrimas nos olhos,
exercendo o meu dever de cidadão, tendo ciência de como meu ato é vão em uma democracia tão
falhada quanto a nossa. Vivo entre o pão e o circo, conheço meus privilégios e a história de onde
nasci. Decoro datas tolas e leio livros velhos. Creio no envolvimento inglês na Guerra do Paraguai.
Não sou brasileira porque não o posso. Pois ser Brasil é ser genocídio. Ser Brasil é ser
escravista. Ser Brasil é ser Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste. É lutar pela demarcação de
sua terra e falsificar documentos de posse latifundiária. É nascer na favela e morrer no Leblon. É ser
analfabeto e ter pós no exterior. É deixar de comer para emagrecer e morrer de fome no sertão
nordestino. É ser misógino, cristão, conservador, feminista, negro, pardo, nipônico, agrário, moderno,
rico, indígena, desigual, miserável. Brasil é Ordem e Progresso. Ambíguo, antitético e paradoxal.
Não sou brasileira, porque o brasileiro não existe.
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Exéquias
2º Lugar
Pedro Lopes Adão
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Diário
3º Lugar
Daniela Nogueira
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6.11.2020, sexta
13:05
Querido Michael:
às vezes dou por mim a pensar em como o que escrevo parece tão deslavado em comparação com a
profundidade e complexidade de tudo o que existe em mim. não sei se é incapacidade, estilo ou falta
de tempo.
22:55
desde que estivemos juntos, a vontade de escrever (sobre ele e sobre tudo na vida) multiplicou-se. sinto
vontade de me entregar às palavras e à criação.
quero ligar-lhe mas não sei bem o que lhe quero dizer. pergunto-me se me dá tão pouca atenção para
me provar que consegue ser independente – como eu era e lhe pedia tanto para ser – ou porque tem o
raio de uma namorada? sim, ele namora: eu sei! ou porque tem uma vida para além de mim? também
sei disso.
não tenho receio de iniciar interações e de ir buscar a atenção dele. mas o quê que isso lhe vai mostrar?
que continuo a não saber o que quero porque se passaram anos e agora, só porque sim, “estou aqui”?
que estou loucamente apaixonada? não lho quero revelar sem ter a oportunidade de o entender.
será errado procurar a atenção dele, estando ciente de que namora? ou será que lhe vou mostrar assim,
de forma subtil, que o quero junto de mim, que é importante tê-lo na minha vida? sempre senti que
ele queria ou precisava dessa certeza para se entregar sem reservas.
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também me pergunto o que acharia ele de tudo o que já escrevi a seu respeito? será que pareço...
ridícula? e se tiver interpretado mal os sinais e as palavras dele e eu já não for mais, eu ou que sentiu
por mim, do que uma memória de um passado distante? pergunto-me, mas no fundo sei que acharia
cada palavra deliciosa, que as beberia uma a uma, tal a sede de respostas, de alguma coisa que me
explique.
há coisas que estão para lá da minha capacidade de análise e este fio que nos une é uma delas.
em 2018, no verão, houve um eclipse lunar. o tempo estava ameno e lembro-me de decidir que o
queria ver como se fosse um espetáculo. deitei-me numa espreguiçadeira e fiquei ali, a observar o
fenómeno, encantada. enviei-lhe mensagem a perguntar se também estava a olhar o céu naquele
momento. ele disse que sim e ficámos a conversar enquanto admirávamos a mesma realidade,
carregada de misticismo e do inexplicável. lembro-me de me sentir tão conectada com ele, como se
fôssemos um triângulo em que ambos somos vértices e depois há um terceiro ponto que é esse eclipse,
a lua/o sol, algo imaterial que nos mantém unidos. não me lembro porquê que mesmo sentido isso
na altura, não fiz por estar com ele.
eu sei que ele sempre trouxe uma intensidade maior ao que nos liga, e que se não fosse o esforço
constante dele, o tempo que passamos afastados teria sido muito maior – o que na altura me aborrecia,
mas que hoje admiro; sou eternamente grata por essa persistência –, porém o que sinto agora parece-
me ter a força de água a ser libertada de uma barragem prestes a transbordar. sabes que sou feita de
nadas muito vazios ou de tudos muito cheios. o que podia ter construído aos poucos, ao longo dos
anos, vem-me agora como uma enxurrada de sentimentos e emoções. imagina sentir cinco anos em
três semanas. o quê que era a minha barragem? eu não sei ao certo, ainda...
era esta ideia de que ninguém seria alguma vez capaz de me compreender e se é para estar com alguém
que me obriga a desconstruir-me – processo que me cansa e satura – para tornar a relação mais fácil e
ligeira, mais vale não estar com ninguém. e por isso, fui-me tornando incapaz de amar profundamente.
fui-me ficando pela rama das pessoas, que geralmente é tudo o que há nelas – e quando me aborrecia,
ia embora. nunca me ocorreu que alguém me pudesse querer pela impossibilidade de me compreender.
há beleza em ser assim; uma fonte inesgotável, contraditória, sim, mas rica também, de ideias e
pensamentos: Eu sou a lua e sou o sol. como nunca tal coisa me passou pela cabeça, ficaram todas as
pessoas do mundo negadas por defeito.
para quê o esforço? pela companhia para o cinema? para ter de ir até lá a falar do quão bom é poder
tomar a porcaria do pequeno almoço no trabalho (chato e aborrecido, de escritório) e depois, ao vir,
levar com um “sim, o filme era engraçado e está muito bem feito” e um “agora vamos beijar-nos
loucamente durante dez minutos porque isso é o que os namorados fazem e nós somos namorados e
ainda não o fizemos hoje”, quando ainda estou nas nuances da história, nos detalhes da interpretação,
no significado do final, no que aprendi e absorvi, no que mudou aquele filme em mim e me dar nojo
estar a beijar aquela pessoa e estar a beijá-la enquanto procuro desenfreadamente uma desculpa para
poder ir embora – o sono, o maldito sono! – e dar uma desculpa e ir embora e chegar ao meu quarto
e finalmente sentir paz e conversar comigo própria sobre o filme, que na falta de melhor companhia é
o que há? é que não é a falta de debate sobre aquela experiência em particular, não é como se eu só
me conseguisse entregar em corpo depois de uma entrega em mente – embora esse seja o meu cenário
ideal –, é a certeza da impossibilidade absoluta dessa entrega em mente seja quando for.
é como se todas as pessoas fossem uma poça de água estagnada e eu um peixe a morrer por lhe faltar
o oxigénio. o ????? é um oceano e eu não lhe conheço ainda o fundo. às vezes tenho medo, não minto.
não consigo perceber onde estou a pôr os pés ou ver o que está à minha frente, a uns metros. quando
olho para ele não consigo ver o raio-x claro e completo da sua essência, como consigo sempre com o
resto das pessoas.
o medo que me provoca, é o que me faz gostar dele.
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