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sempre, a geografia tem sua ideiu.

^ade
a à aventura das explorações. Os “novos
da atualidade não são mais constituídos por
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jnca visitadas ou por trilhas nunca percorridas, H S | •„ GpGANIZADORES
^explorações geográficas consistem em IN Á ELIAS DE CASTRO
iras metáforas das antigas. Os mundos novos são
PAULO CÉSAR D A COSTA GOMES
!> nosso cotidiano, as descobertas são novas
ROBERTO LOBATO CORRÊA
~le olhar, de relacionar, de conceber; as viagens
^jorâneas são constituídas pela interiorização em
^ rcursos temáticos. Neste sentido, a Terra
la não cessa de ser redescoberta. A aventurosa
í e exploratória não acabou, mudaram as
bes, os instrumentos e os sentidos. Afinal, hoje
)fee pelos espaços das grandes redes de infor-
Jle as caravelas que erram nestes mares são as
i-chaves, conceitos, instrumentos de nossas
luscas. Explorações de novos temas, em outros
>e em novas abordagens, são a matéria que
;t;es inéditos relatos de viagem aqui expostos.

N .C h a m 910 E96
Título: Explorações geográficas percurs»
no fim do século .

IS B N 8 5 -2 8 6 -0 6 2 6 -0
1068768
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA «V -» 2
Y&ci
9 9

BIBLIOTECA DE CíENCiAS E TECNOLOGIA

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cr o:\

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

UFC/BU/BCT 10/05/1999

R1068768 E x p lo r a c o e s g e o g r á fi c a s :
C412945
910 E96
BIBLIOTECA DE CiENCIAT

L eia também:
Iná Elias de Castro
Paulo Cesar da Costa Gomes
O M ito da Necessidade
Iná Elias de Castro
Roberto Lobato Corrêa
{organizadores)
G eografia e M odernidade
Paulo Cesar da Costa Gom es

Trajetórias Geográficas
R oberto Lobato C orrêa

Brasil: Uma N ova Potência Regional


na Econom ia-M undo
Bertha K. Becker e Cláudio A. G. E gler
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
PERCURSOS NO FIM DO SÉCULO
Brasil: Questões Atuais da Reorganização
do T e rritó rio
Iná E. Castro, Paulo Cesar C. Gom es e
R oberto L . Corrêa
(orgs.)

UFC/BU/BCT 10/05/1999

R1068768 Exploracoes g e o g rá fic a s :


C412945
910 E96

BERTRAND BRASIL
UNIVERSIDADE FEDERAL D0 CEARÁ
BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA
Copyright © 1997, Iná Elias de Castro, Paulo Cesar da Costa
Gomes, Roberto Lobato Corrêa, M arcelo Lopes de Souza, Paul
Claval, Zeny Rosendahl, Maurício de Alm eida Abreu, Pedro de
Almeida Vasconcelos, Olga Maria Schild Becker

Capa: projeto gráfico de Leonardo Carvalho, usando detalhe da


tela Võg elteich am Rio de S. Francisco, atribuída a Cari Friedrich
Phillip von Martius, nanquim e sépia, 30,5 x 40,5cm (Fundação
Maria Luísa e Oscar Americano, São Paulo, Brasil). Su m ário
Editoração: A rt Line ^ioesyçs
1997 33o
Impresso no Brasil
Printed in Brazil é
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

E96 Explorações geográficas: percursos no fim do Século / Iná Apresentação *


Elias de Castro, Paulo Cesar da Costa Gom es, Roberto Lobato
Corrêa (organizadores). — Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
G eografia fin-de-siècle: O discurso sobre a ordem
I S B N 85-286-0626-0
espacial do m undo e o fim das ilusões 13
1. Geografia. I. Castro, Iná Elias de. II. Gom es,'Paulo Cesar Paulo Cesar da Costa Gom es
da Costa. III. Corrêa, Roberto Lobato.

C D D 910 A expulsão do paraíso. O “paradigm a da com plexi­


97-1616 C D U 910
dade” e o desenvolvim ento sócio-espacial 43
M arcelo Lopes de Souza

Todos os direitos reservados pela: As abordagens da G eografia C u ltu ra l 89


B C D U N IÃ O D E E D IT O R A S S.A. Paul C laval
Av. Rio Branco, 99 - 20? andar - Centro
20040-004 —R io de Janeiro —RJ
TeL: (021) 263-2082 Fax: (021) 263-6112 O Sagrado e o Espaço 119
Zen y Rosendahl
N ão é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por 9

quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.


? ) Im a gin á rio p o lítico e te rritó rio : natureza, regiona-
Atendemos pelo Reembolso Postal. lism o e representação 155
Iná Elias de Castro

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EX P L ORA ÇÕE S GEOGRÁFI CAS

( ^ } A apropriação do te rritó rio no B rasil colonial 197


M aurício de A lm eida Abreu

(^ 5) Os agentes modeladores das cidades brasileiras no


períod o colon ia l 247 A presentação
P ed ro de A lm eida Vasconcelos

Interações espaciais 279


R oberto Lobato C orrêa

M obilidade espacial da população: conceitos, tip olo-


gia, contextos 319
D esde sem pre, a geografia tem sua identidade asso­
O lga M aria Schild Becker
ciada à aventura das explorações. Descobridores, viajantes,
cosm ógrafos são, por isso, os legítim os antecessores dos
geógrafos acadêmicos surgidos no final do século XIX. A
partir desta época, em que pouco restava para ser “desco­
berto” , a aventura das explorações não cessou, mas mudou
profundam ente seu sentido. Os “novos mundos” da atuali­
dade não são mais constituídos por terras nunca visitadas
ou por trilhas nunca percorridas. H oje, as explorações geo­
gráficas consistem em verdadeiras metáforas das antigas.
Os mundos novos são parte do nosso cotidiano, as desco­
bertas são novas formas de olhar, de relacionar, de conce­
ber; as viagens contemporâneas são constituídas pela inte-
riorização em novos percursos temáticos. Neste sentido, a
Terra incógnita não cessa de ser redescoberta.
Percebem os facilm ente que os viajantes do passado
descobriam reais mundos novos, mas muitas vezes procu­
ravam com preendê-los seguindo o modelo do seu próprio
mundo conhecido. As explorações geográficas atuais são

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7
E X P L O R A Ç Õ E S GEOGRÁFI CAS APRESENTAÇÃO

exatamente o oposto: iluminam formas e processos conhe­ sões, suas incoerências e seus lim ites e adm ite que estaría­
cidos para mostrar novos aspectos, sombreados e esqueci­ mos vivendo o fim do período de vigência dessas idéias. A
dos pela pretensiosa suposição do conhecim ento nascido segunda parte do seu trabalho é o estabelecim ento de no­
da simples co-presença. Os lim ites deste novo mundo são vos fundamentos que poderiam passar a guiar as bases de
infinitos, não cessam de ser engendrados nesta atividade um saber geográfico. Para ele a geografia é a ordem espa­
incessante do conhecim ento. A aventurosa atividade explo­ cial das coisas e seu cam po disciplinar se define pela inves­
ratória não acabou, mudaram as pretensões, os instrumen­ tigação desta ordem . D esta perspectiva resulta um novo
tos e os sentidos. Afinal, hoje navega-se pelos espaços das patam ar nas relações entre as ditas geografias humana e
grandes redes de inform ação, e as caravelas que erram nes­ física e em novos temas de investigação relacionados a este
tes mares são as palavras-chaves, conceitos, instrumentos campo.
de nossas novas buscas. Explorações de novos temas, em M arcelo Lopes de Souza argumenta, p or sua vez, a
outros tempos e em novas abordagens, são a m atéria que favor da utilização do paradigm a da com plexidade para a
compõe estes inéditos relatos de viagem aqui expostos. questão do desenvolvim ento sócio-espacial, cujas teorias
Nesta coletânea são apresentados artigos relativos a existentes podem ser caracterizadas, em m aior ou m enor
novos quadros de referência, envolvendo uma reavaliação grau, com o pertencentes ao paradigm a da sim plificação. O
epistemológica vinculada à concepção da natureza das ci­ autor aponta três temas com o relevantes para a troca inte­
ências sociais e de seus procedim entos de investigação, lectual entre as ciências naturais e sociais: acaso e necessi­
particularmente da geografia, que im plica a dissolução de dade nos processos sociais; a dialética entre ordem e desor­
alguns mitos. dem e suas relações com a sociedade e o espaço; e pers-
A contribuição de Paulo Cesar da Costa Gom es de­ pectivas de apropriação crítica pela pesquisa social da
senvolve-se em dois principais movimentos. N o prim eiro, sinergética.
procura fazer o balanço de algumas idéias recorrentes na O artigo de Paul Claval aborda a renovação da geo­
epistemologia da geografia, as quais teriam funcionado de grafia cultural, uma tradição que tem suas origens no sécu­
fato como verdadeiros obstáculos ao desenvolvim ento da lo X IX e que, a partir de 1970, é revitalizada. Estabele­
reflexão geográfica. C iência de síntese, ciência do em píri­ cendo o estado da arte deste ramo da geografia, o autor
co, morfologias classificatórias, objetividade dos dados, p ercorre autores e escolas até chegar à m oderna geografia
naturalismo ou causalidade histórica são identificados co­ cultural que, ao colocar o hom em no centro de suas análi­
mo verdadeiras ilusões que teriam atuado de form a negati­ ses, precisou desenvolver novas abordagens. Estas incorpo­
va na definição de um cam po disciplinar especulativo, atu- ram as sensações e percepções, a comunicação e á dim en­
ante e respeitável. E le procura apontar as raízes destas ilu­ são sim bólica, em oposição à perspectiva naturalista e re­

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E X P L OR A Ç ÕE S GEOGRÁFI CAS AP RESE NTAÇÃO

gional do com eço do século, que se reduzia à análise dos contribuem para, a partir das heranças do passado, eluci­
mecanismos que perm itiam às sociedades funcionarem, dar o presente.
triunfando sobre os obstáculos da dispersão e da disPânria A apropriação territorial no Brasil colonial é abordada
O tem a da geografia cultural tem ainda pouca tradi­ p or Abreu, que busca na Idade Média portuguesa as ori­
ção na geografia brasileira, o que aumenta a im portância gens do processo. O sistema de distribuição de sesmarias e
da contribuição de Zeny Rosendahl, que penetra na di­ de terras urbanas, e a alienação da propriedade territorial,
mensão d o espaço im posta pelo sagrado. O devoto identifi­ são tratados p elo referido autor. Vasconcelos, por sua vez,
ca e vivência os espaços sagrado e profano, vinculando-os apresenta os agentes m odeladores da cidade colonial brasi­
em três níveis: direto, indireto e rem oto. O simbolism o das leira e discute as suas ações. O papel da Igreja, dos proprie­
formas espaciais ligadas ao sagrado, a vivência do espaço tários rurais e dos traficantes de escravos, entre outros, é
sagrado nos santuários do catolicism o popular brasileiro e a ressaltado, indicando o caráter historicamente variável dos
gestão religiosa do espaço são abordados pela autora. tipos e ações dos agentes modeladores do espaço urbano.
Num a perspectiva inovadora da geografia política, Iná Outras temáticas geográficas tradicionais são retoma­
Elias de Castro analisa o entrelaçam ento do im aginário po­ das a partir de uma reavaliação teórica, como são os estu­
lítico com o território e a natureza, entrelaçam ento este dos referentes às interações espaciais e às migrações.
que contribui para tom ar inteligível a representação terri­ R oberto Lobato C orrêa retom a a temática das intera­
torial da política, o papel da natureza e do território no dis­ ções espaciais, considerando-as no âmbito do capitalismo,
curso p olítico e no regionalism o. A autora tom a com o pon­ particularm ente com o expressão do complexo ciclo de re­
to de partida a passagem do im aginário ao im aginário p olí­ produção do capital. As interações espaciais, por outro la­
tico e de ambos ao im aginário geográfico. Em sua análise, do, apresentam padrões que refletem e condicionam a or­
a com preensão do p oder sim bólico do território abre novos ganização espacial. Estão elas estruturadas em redes geo­
caminhos para a geografia política brasileira, na qual de­ gráficas, solar,- dendrítica, christalleriana, axial, circular e
vem ser incorporados os conteúdos dos muitos discursos d e m últiplos circuitos, cada uma apresentando importância
regionalistas no país, os modos com o a natureza é apropria­ e significados próprios, que revelam a complexidade da or­
da nestes discursos e os problemas concretos da represen­ ganização espacial.
tação parlam entar de base territorial. As m igrações são tratadas por Olga Maria Schild
Pequena tem sido também no Brasil a dedicação às B ecker a partir de alguns questionamentos, como o que diz
pesquisas na geografia histórica. Maurício de Alm eida Abreu respeito ao significado da m obilidade populacional, consi­
e Pedro de Alm eida Vasconcelos contribuem para sanar es­ derando diferentes concepções teóricas para compreender
ta lacuna com trabalhos sobre o período colonial. Am bos o papel das m igrações na construção dos espaços que o

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EX P L ORA ÇÕE S CEOGRÁFI CAS

capitalismo organizou no país, ou, ainda, para com preen­


der suas faces em diferentes momentos, contextos e esca­
las. A autora aborda, então, diferentes conceitos da m obili­
dade espacial da população através das visões neoclássica e
neomarxista e das suas categorias analíticas, as únicas dis­ GEOGRAFIA F lN -D E -S lÈ C L E :
poníveis, apesar de serem questionadas. A atual conjuntura
O DISCURSO SOBRE A O R D EM ESPACIAL
de crise no mundo do trabalho é discutida, evidenciando a
necessidade de construção de um novo paradigma das D O M U N D O E O FIM DAS ILUSÕES
migrações.
O conjunto de estudos da presente coletânea é, em Paulo Cesar da Costa Gom es
realidade, uma amostra do vigor da geografia que, ao intro­
duzir novas abordagens e temas e retom ar antigas tem áti­
cas, desempenha ativam ente seu papel de analisar, in ter­ R ecentem ente, em uma reunião de geógrafos e estu­
pretar e redescobrir a com plexa e m utável espacialidade dantes, um expositor provocou muitos risos na platéia
humana. quando se referiu às perguntas que têm , segundo ele, p er­
seguido os geógrafos a propósito do que é a G eografia,
para que serve e a quem serve. D e fato, ao percorrerm os a
Os Organizadores história recente do pensam ento geográfico, percebem os,
sem m uito esforço, que questões relativas à natureza do
conhecim ento geográfico, sobre seu objeto, seus m étodos,
os lim ites, o alcance e a im portância deste conhecim ento,
têm tid o uma recorrência insistente na voz de alguns de
seus principais representantes. M uito mais do que hilarida­
de, esta persistência deveria despertar o incóm odo, por
exprim ir a incerteza daqueles que trabalham em um dom í­
nio sobre o qual pairam reiteradas dúvidas que afetam seu
reconhecim ento, sua legitim idade e sua im portância. O fa­
to de rirm os, com suposta superioridade, não nos afasta de
nossas dificuldades, e tentar ignorá-las ou escondê-las é a
atitude, dentre todas, a mais perniciosa. P or isso voltam os a

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E X P L OR A Ç ÕE S GEOCRÁ FI CA S C E O G R A F I A FIN-DE-SlÈCLí

este assunto, acreditando que os debates não foram encer­ despeito desta atitude conservadora, essas ilusões se perde­
rados e que o único riso possível diante desta urgência é ram de form a mais ou m enos definitiva. E são essas ilusões
aquele que exprim e nosso desconforto. que gostaríamos agora de explorar um pouco mais.
O lhando p or outro ângulo, o fato de a G eografia man­
te r p or um longo período essas discussões pode se revestir
d e um significado bastante positivo. Isso quer d izer que ela O f im das ilusões
se mantém atenta sobre a definição de seu cam po de estu­
dos, sobre sua relação com as outras disciplinas, atenta A prim eira grande ilusão perdida a ser assinalada é a
sobre as questões em ergentes postas pelos novos contextos da ciência de síntese. Os historiadores da ciência e das
sociais que a atravessam e, finalm ente, atenta ao seu papel, m entalidades têm-nos mostrado o quão difundida era, no
com o cam po de reflexão e ação na sociedade. Por outro final do século X V III e ao longo do século X IX , a idéia das
lado, manter-se atenta não significa perm anecer paralisada grandes sínteses globais (G U S D O R F , 1978). Este foi o mo­
e pode m esm o sugerir que este tipo de reflexão é o veículo m ento onde a ciência, diante do renascimento da razão e
que tem conduzido os geógrafos a participarem com segu­ de sua aplicação, do crescente fluxo de informações gera­
rança, cada v e z mais ativam ente, dos principais debates das, e diante de novos campos de investigação, estabeleceu
acadêm icos e, diríam os mesmo, dentro de recortes teóricos com o orientação não só inventariar este material, mas tam­
cada vez mais amplos. bém organizá-lo segundo grandes eixos explicativos, gerais
E ntre a im agem da G eografia'com o um ideal de con­ e sintéticos, que funcionariam com o uma espécie de verte-
tem plação d o século X IX , presente no discurso de A. bração para todo conhecim ento. Os grandes pensadores
H um boldt, d e K. R itter e de E. Reclus, entre outros, ou o dessa época preocupavam-se então em encontrar grandes
ideal da “descrição animada” de Vidal de L a Blache, no m atrizes que guiariam toda a reflexão, capazes de explicar o
com eço do X X , e as posições atuais, um longo percurso foi todo e a parte, o detalhe e o global, indo do simples ao
realizado. N este trajeto, a com plexidade de seu cam po de com plexo. Esta é a época dos grandes sistemas filosóficos,
estudos fo i se afirm ando e os sucessivos debates teórico- de Kant, de H egel, de C om te, de Marx, que partilham to­
m etodológicos são, neste sentido, uma companhia necessá­ dos da mesma pretensão de produzir uma interpretação or­
ria e inseparável. M uitos avanços foram realizados, e aque­ denada e total. Com um a todos esses sistemas, há esta idéia
les que se obstinam a não os acompanhar são, em geral, os de síntese, verdadeira finalidade do conhecimento científi­
mesmos que não querem , p or com odidade ou m edo, re­ co. C oincidentem ente, esses autores também produziram
nunciar ao conforto de algumas ilusões que se associaram à grandes classificações e hierarquias entre os diversos cam­
G eografia em determ inados momentos de sua evolução. A pos disciplinares, que assim funcionariam como sequências

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EXP L ORA ÇÕES CEOCRÁF1CAS G E O G R A F I A FIN-DE-SIÈCLE

na produção da ciência-síntese, havendo, para cada um d e­ era com preender as leis do todo e a integração do conjun­
les, uma disciplina superior: História, Sociologia, F ilosofia to. N o prim eiro caso, a dinâm ica dos diversos fatores natu­
etc., que encarnaria a própria concepção de síntese. As rais, em conjunto com a ação humana, agiria no sentido de
idéias primordiais que presidiam a ciência dessa época eram, produ zir um equilíbrio. N o segundo caso, o do organicis-
pois, as de acumulação, de integração e de progresso contí­ m o, a harm onia das partes com o todo era o valor supremo
nuo. Este fo i tam bém o m om ento em que grande parte das a ser demonstrado.
disciplinas modernas adquiriram assento nas instituições A descrição da realidade deveria, pois, sempre colo­
acadêmicas e, para isso, precisavam delinear seus lim ites, car em relevo a conjunção de elem entos físicos e humanos
suas propriedades, sua especificidade e seu program a de que resulta na estruturação de um espaço, que é a síntese
resultados. da ação m últipla, diferenciada e relacional destes elem en­
A boa estratégia para a G eografia, na época, a despei­ tos. H á, p or assim dizer, uma isonom ia entre a natureza
to de outras vias concorrentes, parece ter sido a de se apre­ das coisas e a natureza humana que resulta em produtos
sentar com o o cam po de estudos da Terra, conform e apon­ sintéticos, recortes da superfície, que passam a ser conce­
tam BERDOULAY (1980) e C A P E L (1977). A Terra, em seu bidos com o os verdadeiros objetos da ciência geográfica.
conjunto, em sua com plexa organização, remonta a inúm e­ Todos os conceitos utilizados pelos geógrafos deste perío­
ros fatores de ordem física e social, mas apresenta um do, com o região, paisagem , estado, cidade, têm esse traço
resultado global visível e sintético em sua face. Em outras com um de unidade reveladora do equilíbrio ou da harmo­
palavras, a im agem da Terra, sua aparência ou as d e suas nia, d e resultado-síntese de uma dinâmica complexa.
partes (regiões, paisagens, estados), pode revelar o com ple­ E ra comum dizer-se, então, que o geógrafo olha os
xo jogo de interações de fatores e elem entos do qual ela, a fenôm enos em suas variadas relações com os outros e fo i
aparência, é o resultado-síntese. m esm o adm itido que o fator que diferenciaria os geógrafos
A idéia forte desta pretensão é a da Terra vista com o dos dem ais estudiosos, que tinham tam bém com o interesse
um todo. U m todo com posto p or diversas engrenagens de fenôm enos que ocorriam à superfície da Terra, era a form a
múltiplas relações de causa e efeito, que se estrutura na d e olhar — o olh a r geográ fico.1 Assim, à G eografia caberia
metáfora do mundo visto com o uma máquina. Ou, ainda, dom inar todos os outros campos de conhecim ento, com o
em uma versão concorrente, a Terra vista como um todo or­ geologia, m ineralogia, clim atologia, geom orfologia, botâni­
gânico, composto de parcelas com form a e função diferen ­ ca ou biogeografia, além da economia, dem ografia, sociolo­
ciadas e complementares, presente na metáfora do mundo
como um organismo. Em qualquer dessas duas acepções
1 A expressão é comum a diversos geógrafos da chamada “Escola Francesa de
dominantes no com eço deste século, o papel da G eografia G eografia”, Jules Sion, Raoul de Blanchard, Pierre Deffontaine, entre outros.

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E XP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS GEOGRAFI A FIS-DE-S1ÈCLE

gia, sem, no entanto, se especializar em nenhum deles e, sária ao conhecim ento da “ física do mundo” . A í estaria,
portanto, sem superposição com outros profissionais, geó­ pois, a sem ente de um conhecim ento propriamente geo­
logos, botânicos, biólogos, sociólogos etc., uma vez que o gráfico, na conexão entre os fenômenos; aí estava, pois, a
ob jetivo final da G eografia era a síntese. F oi também ne­ pedra angular da disciplina científica 2 que deveria passar a
cessário adm itir que esta síntese se constituía no encontro ser ensinada nas instituições acadêmicas. N o caso de R it­
de dinâmicas naturais e da ação social: G eografia física e ter, a influência do Romantismo e do Idealismo alemão foi
G eografia humana. A síntese precisava ser total. a responsável p or sua grande preocupação com a noção do
P or este prisma da síntese ou do todo, o discurso aca­ todo. Sabemos também o quanto estes dois movimentos
dêm ico da G eografia nascente conseguiu recuperar as tra­ foram reativos à idéia da análise de base racionalista; por­
dições das cosmografias, tão comuns no período da Renas­ tanto, a valorização da idéia de síntese é uma constante no
cença, e tam bém a dos relatos de viagem , que, muito mais pensam ento de Ritter. Há, em sua perspectiva, unidades
antiga, havia se renovado pela ação dos viajantes e das ex­ que congregam os princípios de organização do todo. Estas
pedições científicas dos séculos X V III e X IX . A justificativa unidades são dotadas de “personalidade” e desempenham
da perspectiva do “todo” era buscada no plano das cosm o­ papéis definidos na com posição e no movimento do todo.
grafias, pois, com o se sabe, estas em geral começavam por Assim, cada continente, p or exem plo, desempenha um pa­
descrições da Terra com o elem ento do Universo, em segui­ p el preciso na evolução da humanidade e contribui para a
da passando a descrever fenôm enos que ocorriam à super­ ordem global da Terra (N iC O LA S-O B A D IA , 1974).
fície da Terra: inundações, ventos, marés, erupções etc. O Assim, a despeito de muitos outros naturalistas e filó­
ternário era bastante variado e dependia do acesso que o sofos dos séculos X V III e X IX , com o d’Holbach, Buffon,
cosm ógrafo tivesse de outras descrições. Volney etc., a G eografia elegeu esses dois autores, Hum­
F o i neste m om ento, final do século X IX e com eço do boldt e Ritter, com o os fundadores de uma ciência sintéti­
XX, que se passou a atribuir a fundação da G eografia m o­ ca, abrangente e total. Mas sobre que critérios deve-se pro­
derna a A. von H um boldt e a K. Ritter. Ao prim eiro, a curar a conexão? N a falta de um recorte temático mais
id éia de que foi o fundador se deve ao plano e à m etodolo­ definido, passou-se a dizer que a Geografia se interessa pe­

gia de sua obra maior, o Cosmos, que correspondia em los fenôm enos que acontecem sobre a superfície da Terra.

grande parte ao ternário das cosmografias renascentistas. D efin ição nada satisfatória quando se percebe que existem
inúmeros eventos que aí ocorrem e que não fazem parte da
A lém disso, H um boldt havia sido um grande sábio, dom i­
nando diversos campos do conhecimento. E le tam bém se
2 O princípio da “conexão” foi, por exemplo, bastante valorizado por Jean
referia à necessidade de procurar a conexão entre os fen ô­
Brunhes e por E . D e Martonne, que acreditavam ser este o fundamento da ciên­
menos com o uma preocupação m etodológica maior, neces­ cia geográfica.

18
EXP L ORAÇÕES GEOGRÁFICAS GE OG RA F I A FIN-DE-SIÈCLE

pauta de interesses dos geógrafos. Além disso, há diversos previa uma descrição que invariavelm ente percorria, e qua­
outros que não ocorrem diretam ente sobre a superfície da se sem pre na mesma ordem : o relevo, o clima, a vegetação,
Terra e que são cada vez mais estudados com o fenôm enos a história, a população e as atividades económicas para cada
geológicos, estratigráficos, tectônicos etc. região descrita. Basta d izer que este m odelo foi largamente
D e fato, se a pretensão inicial fo i a de descrever a exportado pela G eografia européia e, ainda que nos outros
complementaridade ou combinação na estrutura e mani­ países não-europeus fosse d ifícil estabelecer os contornos
festação dos eventos que ocorrem à superfície da Terra, das "regiões” com a mesma nitidez e sob os mesmos vín­
muito cedo os geógrafos se viram im pedidos de assim con­ culos da história ou dos costumes consuetudinários, ainda
tinuarem a proceder pela enorm e massa de informações assim o m odelo foi em pregado para descrever diversas
que eram produzidas em áreas de interesse muito diversas
áreas da África, da Ásia e das Américas.
e por ser difícil acompanhar o desenvolvimento de todos os Se na descrição de Vidal de L a Blache o singular ain­
campos sobre os quais haviam pretendido se ocupar. C om e­
da era dado pela com binação única entre os elem entos que
çava desde então uma certa orientação para a especializa­ estruturam e dão form a e “personafidade” a uma região, no
ção, que logo depois resultou no desenvolvimento de verda­ p eríod o im ediatam ente posterior o único foi visto com o
deiras subáreas quase independentes, como, por exem plo, a sendo propriam ente os elem entos da paisagem. A G eogra­
geomorfologia. P or outro lado, despojada do interesse de fia transform a-se, pois, no elenco de características ou fatos
traçar novas conexões entre os fenômenos estudados, a dita singulares dos diversos lugares. O objetivo geral é a descri­
combinação, seja dos elementos físicos que com põem a pai­ ção. As teses sobre a com plem entaridade ou conexão fo­
sagem, seja das relações entre natureza e cultura, passou a
ram secundadas na prática p elo interesse em produzir es­
ser vista com o uma receita mais ou menos estabelecida e tudos exaustivos sobre pequenas áreas, sem qualquer outro
estabilizada em um certo gênero de descrição. A tarefa do valor dem onstrativo que não o da valorização da descrição
geógrafo passou a ser cada vez mais a de simplesmente lo­
em si mesma.
calizar os eventos sobre a superfície e muito menos de ex­ Surge deste processo de descrição, que constitui o gê­
plicá-los. As descrições regionais, anteriormente tratadas nero das m onografias regionais, a valorização do elem ento
como verdadeiras demonstrações do m étodo geográfico das vísivel, daquilo que é diferente, com o ponto de apoio para
combinações ou conexões fenomênicas, transformam-se em a caracterização regional. Interessante é perceber que os
um protocolo geral e uniforme a ser sempre seguido com lim ites da diferenciação não são aí discutidos, a unidade re­
completa submissão crítica. O ternário era sempre o mes­ gional é um fato. A escolha dos critérios, ou da magnitude
mo, a sequência descritiva também e então o gênero em po­ que estabelece a fronteira, é tomada com o um dado da
breceu pela rigidez do modelo. O chamado “plan à tir o ir ” realidade. A G eografia passa a se interessar pelo concreto e

20 21
EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS GEOGRA FI A FIN-Dí-SIÈCLE

em erge tam bém deste processo a aversão à teoria. A verdade na produção do conhecim ento .4 Ora, desde Gali-
G eografia é a ciência do em pírico, e o geógrafo é um in- leu que os nossos sentidos estavam sob suspeição como
ventariante do vísivel. G eógrafo de campo é aquele que co­ form a de aceder a um conhecim ento científico; afinal, se
nhece a realidade e se opõe ao geógrafo de gabinete, que acreditarm os em nossos olhos é efetivam ente o Sol que
procura com pensar sua ignorância pela construção d e “ fan­ gira em tom o da Terra.
tasias teóricas” . A ilusão do em pirism o ressurge extem po­ A G eografia produzida a partir desta posição procu­
rânea na G eografia com o resultado do em pobrecim ento ou rou dar um estatuto de verdade à simples constatação das
da má com preensão dos preceitos que guiaram os funda­ diferenças m orfológicas. N esta constatação, nenhuma rela-
dores da Escola francesa e de suas bases teóricas.3 tivização era admitida, o real é aquilo que se apresenta.
D escrever basta e descrever som ente aquilo que apa­ Sabemos, no entanto, que a “ realidade” e as maneiras que
rece. Este kantismo em pobrecido fo i a base de uma G eo­ dispomos para com prendê-la são produtos sociais e históri­
grafia que nutria outra grande ilusão, a da forma com o ma­ cos. As “ formas” são, em grande parte, produtos de nossa
terial explicativo em si mesmo. Kantism o em pobrecido, percepção histórica e social e dependem também dos ins­
pois na C rítica da razão pura ( K a n t , 1987), as categorias trum entos epistem ológicos desenvolvidos para as identifi­
analíticas constituem o recurso fundamental da explicação, carmos. D iante deste program a “m orfológico”, a G eografia
e a descrição e experimentação só adquirem valor quando se aproxima irrem ediavelm ente do senso comum, na m edi­
referenciadas a estas categorias. Ainda que o espaço, se­ da em que nada mais a interessa senão o inventário descri­
gundo a estética transcendental, seja uma categoria a p rio ri tivo de uma realidade que parece óbvia a todos que a
do conhecim ento, a Geografia, enquanto ciência, só pode observem . A única diferença é a erudição daquele que des­
pensar os fenôm enos que ocorrem no espaço utilizando-se creve e, p or isso, o geógrafo está sempre em busca do pito­
de conceitos. N a realidade, essa posição empirista d e al­ resco, do exótico, do detalhe. Ele também busca, todavia,
guns geógrafos retroage a uma filosofia pré-kantiana, re- uma generalidade, uma tipologia nestas formas, e a ciência
troage a uma posição que, aliás, o sistema de Kant procu­ neste sentido é vista com o simples esforço de classificação.
rou superar, àquela de que os sentidos são uma garantia da Poucas vezes os princípios classificatórios são discutidos, o
encadeam ento form al parece se im por por si mesmo, pela

3 Estes preceitos recebem o nome de neokantistas (B erdoulay , 1981), de his-


toricistas (C apel , 1981) ou fenomenológicos (B uttim er , 1971). O fato é que se
nutriam de um amálgama de idéias inspiradas no Romantismo tardio, no espiri­ 4 A despeito das enormes diferenças de interpretação do sistema kantiano, a
tualismo bergsoniano e em todo o ambiente de contestação ao racionalismo que maior parte dos seus comentadores está de acordo em afirmar que este sistema
predominou nos vinte primeiros anos deste século na França. D e qualquer for­ foi desenvolvido como alternativa às posições irredutíveis da época que opunham
ma, nada tinham de sensualistas ou empiricistas, como nos quiseram fazer acredi­ um empirismo sensualista ao ceticismo. V er, por exemplo, B o u t r o u x , 1968, B r e -
tar ulteriormente. h ie r , 1986 e G o u l y c a , 1985.

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GE OC R A F I A FIH-DE-SIÈ.CLE
EXP L ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS

ordem “ natural” das coisas. Esta “ razão classificatória”, na tos, m anteve uma relação ambígua com a cartografia. O

Geografia, foi o veículo para transformar as formas espa­ mapa passa a ser um produto da pesquisa geográfica e não
ciais visíveis em um objeto de conhecim ento em si mesmo. um instrumento, um m eio, de reflexão. Os problem as da

Ao fazê-lo, duas perspectivas se impuseram. A prim eira foi G eografia são problem as de representação, são problemas

a descrição minuciosa e exaustiva do único, do singular, do geom étricos. Localização e distância são vistas com o as ques­

diferente, e neste sentido a descrição carregava nas cores tões essenciais ao cam po da teoria geográfica e desta sim­

de tudo aquilo que diferisse do resto; a segunda se consti­ plificação herdamos uma série de m odelos e tipologias que

tuiu na tentativa de criar formas-tipo, associadas tam bém a a in d a são vistos com o ternário obrigatório da epistem ologia

processos-tipo, e nesta perspectiva procurava-se o que era da G eografia.


geral e uniforme. N o prim eiro caso, a G eografia procurava Para tentarmos dirim ir esta ilusão, tomemos um exem­

se justificar fazendo apelo à idéia de uma curiosidade gra­ p lo simples: uma praça. Ela é, sem dúvida, uma form a es­

tuita e pouco operacional. N o segundo, o nível de relação pacial, entre tantas outras que com põem aquilo que deno­
minamos cidade. Trata-se de uma área consagrada a deter­
entre form a e processo parecia tão simples que a generali­
minados tipos de atividade, um espaço público com certo
dade se transforma em banalidade. Nesse dois casos, o
núm ero d e equipam entos e frequência. Porém , que fun­
problema fundamental é tom ar o dado, o visível com o ob­
ções desempenham as praças em uma cidade, que proces­
jeto. Sem um processo de construção deste objeto, não há
sos são responsáveis por sua criação, que tipos de apropria­
questões que desafiem o conhecim ento, pois tudo o que
podemos dizer sobre estes dados da “realidade” já foram ções deste espaço existem? As respostas não podem ser

ditos ou são facilm ente subassumidos p elo saber comum. simples nem gerais sob estes pontos de vista. Praças, que

D e certa forma, uma parcela im portante da G eografia existem desde a Antiguidade, teriam uma dimensão essen­

dos anos 50, nos E U A , e nas décadas subsequentes, no cial? M esm o que pudéssemos responder afirmativamente,

Brasil, que m ultiplicou críticas ao em pirism o desta escola seria esta a pergunta fundamental a ser construída por um
especialista que procura com preender o espaço urbano?
geográfica tradicionalista, retom ou sem objeções estas “ for­
Parece que a descrição simples da form a não pode
mas” como objetos e, a despeito do instrumental estatístico
sofisticado, os resultados pecavam pela mesma banalidade dar conta de todos os significados e todas as práticas sociais
que têm sede aí. Parece que tampouco nos interessa sua
e, segundo alguns comentários mais severos, “todos os no­
geom etria se não a relacionarmos às relações sociais, con­
vos instrumentos matemáticos servem apenas para mostrar
aquilo que já sabemos” . flitos, usos e contextos sob os quais esta form a existe e
resiste em tem pos diversos. O “visível” depende assim dos
Esta ilusão da forma, que elegeu os aspectos visíveis,
ou os fenômenos que têm expressão espacial, com o ob je­ nossos óculos conceptuais.

24 25


E XP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS GE OG RA F I A FIN-DE-SIÈCLE

D a mesma maneira, a form a em si não pode ser alça­ maneiras pelas quais a natureza já foi concebida em perío­
da à posição de um objeto epistem ológico sob pena de não dos e contextos históricos diferentes, sob que ângulos e
conseguirm os d izer nada que se possa acrescentar ao co­ através de que metáforas, retirados da própria mentalidade
nhecim ento prévio que já dispomos sobre ela. SANTOS social de cada época, a natureza já foi vista.5 Parece que
(1996) nos ensina que o espaço é uma form a-conteúdo, ou finalm ente atingimos um grau de absoluta objetividade on­
seja, uma form a que só existe em relação aos usos e signifi­ de esta natureza será considerada apenas a partir de suas
cados que nela existem e que têm nela sua mesma condi­ características intrínsecas. Em outras palavras, ao assim
ção de existência. Assim, o objeto possível de investigação procederm os ainda estamos impregnados do objetivism o
não é um dado e sim uma construção. Se a ciência não positivista que pensa uma natureza passível de ser isolada
conseguir duvidar do senso comum, do óbvio, daquilo que pela ação do raciocínio e de um método. Por outro lado, é
se apresenta com o dado, então para que criaríamos concei­ este m esm o racionalismo m etodológico que nos perm itiria
tos e operacionalizaríamos categorias de análise? pensar a sociedade sem levar em conta que fazemos parte
Outra ilusão nutrida pelos geógrafos d iz respeito à dela e somos p or isso reprodutores históricos de uma certa
definição do seu objeto de estudo. Estamos acostumados a reflexão com prom etida com o contexto e, por conseguinte,
ou vir que a G eografia trata da relação entre a sociedade e a definitivam ente limitada.
natureza. Em outras palavras, o conhecim ento geográfico é D e fato, esta definição da G eografia como o campo de
d efin ido pela síntese produzida pelo encontro de suas duas relações entre sociedade e natureza é apenas uma revitali-
principais parcelas: G eografia humana e G eografia física ) zação da im agem do hom em -m eio que dominou a reflexão
Estes dois ramos só encontram sua operacionalidade últi­ geográfica na passagem do século. D e um homem em
ma quando correlacionados, sendo esta uma das especifici­ geral, de um homem visto enquanto espécie, que resultou
dades do conhecim ento geográfico face às outras discipli­ na denom inação “G eografia Humana” em detrimento de
nas. Um prim eiro e flagrante problem a nesta definição é o uma denom inação que efetivam ente pusesse em relevo a
fato de que esta afirmativa nos conduz forçosam ente a con­ essencial condição social e cultural do homem. Na verdade,
ceber estes dois term os com o mutuamente excludentes, ou esta denom inação parte de um patamar de homogeneiza­
seja, se o que nos interessa é a relação entre estes dois ção de uma sociedade que tem com o objetivo geral trans­
núcleos, então podem os distinguir com clareza e isolar a form ar uma natureza que lhe seja externa. N o geral, esta
sociedade da natureza e vice-versa. Natureza é, neste sen­ definição mostra seus compromissos de origem com o posi-*
tido, algo externo ao homem, mas com pleta e objetivam en­
te acessível ao seu conhecimento.
* Estas diferentes “imagens" da natureza são objeto de uma vasta bibliografia.
N ão im porta, neste raciocínio, constatar as diversas Ver, por exemplo, E h r a r d (1970), H u is m a n e R ibe s (1990).

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GEOGRAFIA F1N-DE-SIÈCLE
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFI CAS

tivismo clássico, sua ideologia do progresso, seus mitos da dentes sobre a legitim idade d o conhecim ento produzido
objetividade e de neutralidade transcendental. sob parâmetros bastante diferentes. A síntese hoje só pode

Desta pretensão inicial da Geografia do com eço do ser pensada com o o somatório total dos conhecimentos ge­

século sobram os retalhos reconhecíveis no discurso de al­ rados, entretanto desafia a produção de uma reflexão unifi­

guns geógrafos que continuam a afirmar a integração e uma cada sob um mesmo campo de preocupações.
complementaridade total entre as esferas físicas e sociais. O sonho, ou a ilusão, de objetividade positivista é
H oje, no entanto, este discurso tem cada vez mais o aspecto m antido tam bém pela aproximação com as ciências mate­

de uma tautologia ou se abriga sobre novas ideologias holís- máticas e naturais. Os m odelos da física, a lógica matemáti­
ticas que muitas vezes beiram o esoterismo puro e simples. ca, a linguagem form al foram alguns dos instrumentos desta
D e fato, parece que esta com plem entaridade só pode aproximação que resultou em generalizações apressadas,
ser mantida se conceberm os uma finalidade ao mundo, em leis banais ou em correlações espúrias. Procurávamos
uma criação voluntária ou um plano dem iúrgico da ordem seguir a receita durkheiminiana de tratar os fatos com o coi­
do mundo que teria posto em prática uma intenção final e sas e colocar a G eografia no contexto das ciências nom otéti-
um destino para a humanidade. Nada im pede que mante­ cas. A prim eira contextualização necessária, porém , é a des­
nhamos privadam ente crenças e dogmas, o problem a é te m esm o pensamento na busca de uma objetividade abso­
fazer destas crenças o pressuposto de um domínio do co­ luta. H oje, cada vez mais se im põe a idéia de que o homem
nhecimento. Se acreditamos que a ciência é justamente es­ é sobretudo um produtor de valores e de cultura, e a difi­
ta atividade incessante de duvidar, de produzir incertezas, culdade constitui-se justamente em afastá-lo de uma reali­
como poderem os estabelecer a base do conhecim ento so­ dade que o contém com pletamente. M odem am ente nas
bre algo até hoje indemonstrável, com o é o caso da com ­ ciências, mesmo nas físicas, o contexto é o fundamento da
plementaridade entre os fenômenos físicos e sociais? Mais explicação, a importância do conhecim ento no presente no
grave ainda é darmos a esta certeza ares de objetividade qual ele se funda e não em uma pretensa transcendência
científica ou de revelação metafísica, num ato de puro em que ela mesma é fruto de um contexto em que a ciência
voluntarismo, e tentarmos, através dela, criar uma série de é vista com o um metadiscurso da verdade.
associações impostas com o verdades absolutas. Os laços com o naturalismo se fizeram fundamental-
O fato é que geógrafos físicos e humanos constituem m ente com base em três níveis. O prim eiro é aquele que
comunidades separadas, abrigadas sob um mesmo departa­ estabelece uma isonomia entre a natureza das coisas e a
mento, que raras vezes têm oportunidade de cooperar, e natureza humana. O segundo é a afirmação de uma certa
possuem ritos académicos diversos, reuniões científicas pró­ teleologia, responsável pela integração destas duas esferas.

prias, publicações independentes e julgamentos indepen­ Finalm ente, o terceiro nível é aquele em que o discurso da

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFI CAS G E OG R A F I A FIN-DE-SIÈCLE

síntese procura afirmar-se e legitim ar-se através do reco­ O verdadeiro nexo causal neste caso realmente se si­
nhecido discurso das ciências naturais. Os exem plos são tua entre o presente que querem os explicar e a reconstitui­
inúmeros, e podem os citar alguns recorrentes, com o, por ção histórica que fazemos, ou seja, os fatos que seleciona­
exem plo, o de fazer apelo à territorialidade animal para de­ mos para criar sentido neste relato. N a verdade, omitimos
la extrair conceitos com o com petição, dom ínio, seleção neste procedim ento o dado irredutível de que uma recons­
etc., e depois os correlacionarmos aos fenôm enos territo­ tituição é sempre uma escolha e que, dos eventos, só desta­
riais que ocorrem na sociedade, que passam então a ser caremos aquilo que interessa aos nossos propósitos de­
ungidos de uma essência im utável e geral. O ato de lim itar monstrativos. A o mesmo tem po, concedemos ao fato histó­
espaços e as estratégias para controlá-los só podem ser rico uma objetividade que e le não tem. Quantas leituras e
com preendidos no contexto histórico da vida humana, so­ interpretações são passíveis dos mesmos eventos? Quantos
cial e culturalm ente determinados. N em os objetivos, nem aspectos são om itidos para que possamos demonstrar um
os instrumentos, nem as dinâmicas são os mesmos, não há sentido? A resposta a estas questões é simples: toda recons­
correlação explicativa possível entre estes dois mundos. O tituição é uma construção, mais ou menos voluntária, que
m esm o ocorre com as metáforas orgânicas funcionais, que procura um sentido demonstrativo ou exemplar. Segundo
tomam p or em préstim o um vocabulário que pretende fixar H U SSE R L (1950), este procedim ento é enganoso, pois parte
para todo o sem pre fenômenos espaciais. Artérias, coração, sem pre de uma situação a posteriori. H á sempre uma
tecidos, células etc., quando empregados para falar de fe ­ intenção no resgate do passado, e o que cabe discutir não é
nômenos espaciais, nada acrescentam ao nível da explica­ propriam ente a objetividade do fato histórico, mas sim a
ção, são falsos, trazem apenas um certo ar de fam iliaridade relação entre esta intenção e o relato que dela resulta, ou
que equivocam nossa compreensão. seja, o sentido que se procura neste resgate (LYO TARD ,
N ão poderíam os finalizar esta descrição das ilusões 1969). N este sentido, a história deixa de ser um “historicis­
sem m encionar a história. O recurso é bastante conhecido m o” , e passa a ser vista com o narrativa. Só analisando a nar­
e difundido. Para explicar fenôm enos atuais, recua-se no rativa e os sentidos que ela procura é que podemos obter
tem po e, através de uma reconstrução cronológica, explica­ uma análise objetiva. Já que o fato não existe com o realida­
mos o presente p elo passado. N este percurso, estabelece­ de absoluta, ou pelo menos para nós este patamar é inatin­
mos marcos fundamentais, nexos causais, pelos quais os gível, ao discorrermos sobre o passado procuraremos os
eventos se encadeiam. Os perigos desta conduta já nos fo­ eventos que interessam à nossa narrativa e desprezaremos
ram alertados desde há muito tem po, talvez desde a An­ tantos outros que não corroboram ou não têm importância
tiguidade, e já se mostrava que o passado nada mais era do para os nossos propósitos narrativos e explicativos. A re­
que uma invenção do presente (PESSANHA, 1992). constituição histórica é uma construção e só assim pode ser

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EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFICAS GEOGRAFI A F1H-DE-SÍÈCLE

pensada. Realidade e ficção não são termos antagónicos, a geográfica é útil, tem uma aplicabilidade e uma legitim ida­
incontom ável parcialidade dos relatos, as omissões cons­ de que ultrapassam os argumentos que, porventura, os
cientes ou não, os fragmentos da lembrança unidos em geógrafos colocam à disposição para pensar estas utilidade
busca de um sentido, criam de fato uma ficção, inspirada e aplicabilidade. Já nos fo i dito que este saber é útil para
diretamente ou não na realidade, com o base de qualquer “ fazer a guerra”, ou seja, para traçar estratégias espaciais
procedim ento de restituição histórica. A arte do rom ance é d e dom ínio e controle (LACO STE, 1976). Esta faceta, no
a restituição de uma realidade possível, mas nem sem pre entanto, não parece ser suficiente com o motivação, uma
vivida, e quem afirmaria que a leitura de um romance não v e z que a G eografia não é uma exclusividade dos “estados-
inform a sobre a realidade, às vezes muito mais do que os m aiores” militares, nem dos grandes capitalistas. Ela é um
relatos documentais ou biográficos? D escobrir o equívoco tem a de largo interesse na sociedade, tem um certo lugar
de emprestar uma objetividade absoluta aos acontecim en­ nos meios de comunicação, um certo respeito acadêmico e,
tos é, neste sentido, o prim eiro passo para reconhecer as talvez o mais im portante, é considerada em diversos siste­
enormes possibilidades de conhecimento qúe existem nos mas educacionais com o disciplina obrigatória do currículo
relatos sobre os fatos. básico.
D e fato, no final do século X IX um dos argumentos
apresentados para a necessidade de im plem entar o ensino
A geogra fia com o u m d iscu rso sob re a ord e m da G eografia fo i a perspectiva de m elhorar o material carto­
d o m undo gráfico e a cultura geográfica das tropas, face aos conflitos
que se anunciavam entre os países europeus naquela época.
A descrição destas ilusões que sustentaram o discurso Este, entretanto, não fo i o argumento fundamental prepa­
geográfico tentou mostrar as insuficiências, as lim itações e rado para a justificativa do ensino e da importância da
as contradições com as quais uma epistem ologia da G eo­ Geografia. N o caso da Alemanha, por exemplo, o objetivo
grafia se defronta. Paralelamente, se faz necessário apontar fundamental proclamado era o de fazer conhecer m elhor os
novos rumos ou, pelo menos, novas leituras que possam quadros naturais e os padrões sociais no qual se desenvolvia
construir, ou melhor, restabelecer, uma im agem renovada, a cultura teutônica, conform e apontam GUSDORF (1973) e
operacional e sistemática do saber geográfico. B r u n s c h w i g (1973). Já no caso da França, a I I I Repú­
Uma prim eira constatação é obrigatória. A despeito blica, por interm édio de seu ministro da Educação, apre­
de todas as críticas e da incapacidade de se produzir um sentava esta necessidade com o fundamento na formação de
conteúdo epistem ológico consistente, o saber geográfico um novo cidadão, capaz de refletir conscientem ente sobre a
continua a ser valorizado. Em outros termos, a inform ação política e o desenvolvim ento social (BERDOULAY, 1981).

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA {7 A Q G S V G Ô


ii^ S lB L I O T F C A DF OlENCiAS F TFP.wni n a i k /
EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFICAS GEOGRAFI A FIN-DE-SIÈCLE

Talvez m uito sim plesmente a necessidade da G eo­ ros textos da Antiguidade Clássica, o cosmos se opõe ao
grafia surja tão-somente pela condição do hom em estar no caos). A apresentação do mundo é a expressão daquilo que
mundo, um mundo diverso, variado e, na m edida em que o organiza, de seus princípios de ordem , e, no caso da G eo­
os horizontes deste homem se ampliam, no reconhecim en­ grafia, a ordem espacial do mundo. A grande precursora da
to do “ outro” e do “diverso” , ele necessite de um sistema G eografia, neste sentido, é a tradição filosófica que se pro­
de com preensão desta variedade fundamental. Já dissemos longa desde os pré-socráticos ao perguntarem o que reúne
em outra oportunidade que é provável que a G eografia a dispersão.
tenha, na verdade, nascido nos cantos dos aedos gregos Chamamos a atenção para o fato de que o saber geo­
que declamavam sobre a aventura dos deuses, das potên­ gráfico, visto com o esta descrição da ordem do mundo, que
cias naturais vivas, sobre suas origens e sobre suas relações tem uma identidade historicamente fundamentada, não se
com o devenir da vida cotidiana. As cosmogonias da Anti­ resume ao inventário das coisas sobre o espaço. A notifica­
guidade seriam, assim, os prim eiros relatos geográficos ge­ ção dos objetos espaciais não é em si matéria geográfica.
rados p or este gênero de curiosidade sobre a ordem das Observamos, por vezes, que alguns geógrafos têm a ten­
coisas no mundo (G O M E S, 1996). dência de confundir análise geográfica com simples nota­
N este sentido, a G eografia tem um com promisso fun­ ção de fenôm enos espaciais. Saem apressados em busca das
dam ental que é o de produzir uma cosmovisão. Ela é assim novidades do m omento, em geral apresentadas como mo­
o cam po de conhecim ento onde se procura uma ordem pa­ mentos originais ameaçadores. Estes profetas do catastro-
ra o diverso, para o espetáculo da dispersão espacial origi­ fismo, no entanto, estão apenas fazendo um jornalismo de
nal. N ão im porta que esse esforço se coroe de êxito no sen­ má qualidade. Não constroem instrumentos analíticos e por
tido de produzir leis gerais ou uma explicabilidade total. isso não conseguem ultrapassar o lim ite do comentário gra­
N a verdade, esta visão do mundo é carregada das incerte­ tuito e banal. O único sentido de seus discursos é procurar
zas de cada momento, voltada para os fenôm enos diversa­ nos convencer de que somos testemunhas de mudanças
m ente valorizados nas diferentes épocas. A cosmovisão é sem paralelo na história, mudanças que nos conduzem a
em si mesma matéria de investigação primária, pois, a par­ um desfecho sombrio.
tir dos instrumentos conceptuais de cada m omento, ofere­ Esta ordem espacial das coisas quer dizer que sua dis­
ce uma com preensão das imagens mentais que constroem tribuição tem uma lógica, uma coerência. É esta lógica do
a idéia de ordem ou coerência espacial em cada época. arranjo espacial a questão geográfica por excelência. Neste
Este é, aliás, o significado original da palavra “ mundo” , sentido, não im porta se estamos diante de fenômenos físi­
aquilo que tem uma ordem (em oposição ao “im undo” , que cos ou sociais, e sim do princípio da ordem que buscamos.
não tem ordem , da mesma form a como, desde os prim ei­ Evidentem ente, o que preside as causas e os significados

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EXP L ORAÇÕES GEOGRÁFICAS GEOGRAFI A F IS-DE-SIÈCLE

destas lógicas são diferentes se trabalhamos com tipos de certa relação que pressupõe que uma determ inada quanti­
vegetação ou se trabalhamos com a distribuição da popula­ dade de pessoas estará ah concentrada disposta em cadei­
ção urbana. Este, aliás, é um ponto fundamental na discus­ ras e mesas para ouvir uma outra pessoa falar, colocada em
são da G eografia e, na verdade, o que estamos afirmando é uma m esa diante de todas as outras, no caso de uma aula
que não há unidade ou complementaridade entre a G eo­ expositiva. Conform e se queira transform ar a aula em um
grafia dita física e a G eografia humana, isso para usarmos o sem inário, o que se costuma fazer é rearrumar as cadeiras
vocabulário corrente. O que existe de similar é a busca por e mesas de form a a criar uma distribuição circular, que é a
princípios de coerência dentro da ordem espacial, o que condição para que todos possam olhar para os lados em
perm ite que se continue, pois, a denominar este tipo de p erfeita relação de simetria. O exem plo é simples, mas evo­
saber de geográfico. cativo. Para que determinadas ações se produzam, é neces­
A G eografia é, assim, o ato de estabelecer lim ites, co­ sário que um certo arranjo físico-espacial seja concom itan­
locar fronteiras, fundar objetos espaciais, orientá-los, ou, tem ente produzido. Os exemplos são inúmeros, e podería­
em poucas palavras, o ato de qualificar o espaço; mas é mos falar do espaço interno de uma casa, que em certa
também simultaneamente a possibilidade de pensar estas m edida pressupõe, lim ita e condiciona as práticas que ah
ações dentro de um quadro lógico, de refletir sobre esta vão ocorrer. É claro que há sempre enormes possibihdades
ordem e sobre seus sentidos.6 d e transform ar estas práticas e de rearrumar este espaço.
Chamamos a atenção para o fato de que este arranjo O m odo com o as pessoas dispõem seus móveis e equipa­
físico das coisas é o que vai perm itir que determinadas m entos de form a diferente dentro de um edifício que pos­
ações se produzam, ou seja, as práticas sociais são depen­ sui uma mesma planta básica dos apartamentos é o sinto­
dentes de uma certa distribuição ou “arrumação” das coi­ m a disto .8 Entretanto, na maneira com o este espaço está
sas.7 N ão há, por assim dizer, uma determ inação ou um d ividido e pela form a de arrumá-lo, pressupomos lim ites
simples reflexo da sociedade no espaço. Explicando de diferenciais, por exem plo, nos níveis de intimidade com as
uma form a muito clara e através de um exem plo simples, pessoas, tanto entre aquelas que ah habitam quanto com
uma sala de aula está arrumada de form a a garantir uma aquelas que por ah passam. Naturalm ente, os objetos sobre
os quais a G eografia tem tradicionalm ente se debruçado

fi Exemplos bastante didáticos disto podem ser encontrados na obra do antropó­


para analisar possuem uma natureza bem mais com plexa e
logo L evi-Strauss , (1966 e 1967), na descrição que ele faz respectivamente da
aldeia Bororo e na estrutura espacial derivada do sistema de parentesco.
7 Não se trata do formalismo que dominou o pensamento urbanista-arquitetôni­ 8 A sociologia e a antropologia dispõem de algumas análises sobre estes fenôm e­
co, durante quase 50 anos, na arquitetura: o arranjo espacial não determina as nos, como, por exemplo, a realizada por Segalen (1996), que trata exatamente
práticas, há um permanente movimento de recriação de inscrições sociais que do problem a da disposição dos móveis na criação de “espaços". Infelizmente a
reordena e reconstrói sentidos espadais. G eografia se mantém ainda bastante tímida em relação a estes temas.

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EXP L ORA ÇÕES GEOCRÁFI CAS GEOGRA FI A FlS-DE-SltCLí

abrangente, com o a cidade, o campo, os Estados-nacionais as une espacialmente, no sentido que as atravessa nas d ife­
etc., mas os princípios que guiam esta busca de com preen­ rentes sequências de elem entos. A linguagem, assim com o
são da ordem espacial são, mutatis mutandis, os mesmos. a G eografia, devem ser vistas com o atividade, seguindo a
Efetivam ente, o objeto da G eografia é este espaço, tradição humboldtiana (d e W ilh elm ), e não com o “obra”
que simultaneamente é disposição física das coisas e práti­ realizada, com o tantas vezes nos fo i recomendado fazer.9
cas sociais que ali ocorrem . Desta maneira, não há uma Enquanto atividade, a G eografia é ação no mundo, é a per­
dicotom ia entre a G eografia física e a G eografia humana, o pétua geração de nexos na ordem espacial das coisas, é
que existem são lógicas e coerências diferentes. O que sentido e comunicação, discurso e intervenção. Assim pro­
interessará a um geom orfólogo com o intervenção humana cedendo, abandonamos definitivam ente a concepção do
na paisagem não é a discussão da lógica social que o levou espaço sob a perspectiva da form a form ata, do dado fixo,
até aquele lugar, tampouco suas m otivações económicas, da palavra im óvel e, ao contrário, concebemos o espaço
políticas ou culturais, o que im portará para ele enquanto com o composição de fo rm a form ans, de contínuo processo
objeto de pesquisa será a ação desta intervenção na acele­ de produção de sentidos e ações.
ração ou não de processos físicos que ocorrem sobre o ter­ Para finalizar, há, sem dúvida, uma certa ousadia em
reno. P or isso, esta denominação, limitada, de ação antró- contestar alguns dos preceitos que, para muitos, ainda são
pica para caracterizar este tipo de intervenção. Sim ilar­ estruturantes do pensar geográfico. Nesta apresentação,
m ente, à sociedade, em seu processo de arrumação do pareceu-nos que, dada a am plitude das questões que que­
espaço, os processos físicos interessam com o constituintes ríamos discutir e dado o espaço que dispúnhamos, nos
básicos, com o limitadores, com o contexto e a eles não se seria perdoado percorrer, com uma certa liberdade e rapi­
pode atribuir uma conexão causal com os fenôm enos so­ dez, discussões tão fundamentais. Permitimo-nos, pois, ter­
ciais, pois não possuem valor explicativo. minar esta apresentação com uma poesia, que, muito
A análise geográfica deve examinar o espaço com o em bora tenha sido gerada a partir de preocupações d ife­
um texto, onde formas são portadoras de significados e rentes, exprime com m uito mais simplicidade e beleza
sentidos. Há, por assim dizer, uma “escrita” nesta distribui­ alguns dos pontos de vista aqui sustentados.
ção das coisas no espaço. Em outros termos, o arranjo
espacial das coisas é uma linguagem. Comunica, revela e
organiza sentidos, estrutura ações, muda segundo os con­
textos, utiliza metáforas, metonímias, anacolutos, elipses e
hipérboles. H á como uma linguagem na maneira pela qual
as coisas estão postas no espaço, no fluxo de coerência que 9 Sobre W ilhelm von Humboldt, ver, por exemplo, M almberc (1991).

39
GEOGRAFI A FIN-DE-S1ÈCLE
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFI CAS

B ib lio g ra fia
Rios sem discurso
A Gabino Alejandro Carriedo
BERDOULAY, V. (1980) “Professionnalisation et institutionnalisa-
tion de la géographie”, in Organon, n? 14
Quando um rio corta, corta-se de vez
BERDOULAY, V. (1981), Laform ation de Vécole française de géo­
o discurso-rio de água que ele faria;
graphie (1870-1914), Bibliothèque Nationale, Paris.
cortado, a água se quebra em pedaços, BOUTROUX, E.(1968), La philosophie de Kant (cours professé à
em poços d’água, em água paralítica. la Sorbonne en 1896-1897), Vrin, Paris.
Em situação de poço, a água equivale BREHIER, E. (1986), Histoire de la philosophie, PUF, 4 tomos
a uma palavra em situação dicionária: (coll. Quadrige), Paris.
isolada, estanque no poço dela mesma, BRUNSCHWIG, H.(1973), Société et romantisme en Prusse au

e porque assim estanque, estancada; XVHe siècle, Flammarion, Paris.


e mais: porque assim estancada, muda; BUTTIMER, A. (1971), Society and milieu in thefrench geogra-

e muda porque com nenhuma comunica, phic tradition, AAAG, monograph series, n°. 6, Chicago.
CAPEL, H. (1977), “Institucionalización de Ia geografia y estraté­
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
gias de la comunidad científica de los geógrafos”, in Geo-
o fio de água por que ele discorria.
Crítica, 8 e 9.
CAPEL, H. (1981), Filosofia y ciência en la geografia contempo­
O curso de um rio, seu discurso-rio,
rânea, Barcanova, Barcelona.
chega raramente a se reatar de vez; EHRARD, J. (1970), Uidée de nature en France à l’aube des Lu -
um rio precisa de muito fio de água mières, Flammarion, Paris.
para refazer o fio antigo que o fez. GOMES, P. C. C. (1996), Geografia e Modernidade, Bertrand
Salvo a grandiloqiiência de uma cheia Brasil, Rio de Janeiro.
lhe im pondo interina outra linguagem, GOULYGA, A.(1985), Kant, une vie, Aubier, Paris.

um rio precisa de muita água em fios GUSDORF, G . (1973), U a vèn em en t des Sciences hum aines au siè­

para que todos os poços se enfrasem: cle des lum ières, Payot, Paris.
GUSDORF, G . (1978), La conscience révolutionnaire: les idéolo-
se reatando, de um para outro poço,
gues, Payot, Paris.
em frases curtas, então frase e frase,
HUISMAN, B. et RlBES, F.(1990), Les philosophes et la nature,
até a sentença-rio do discurso único
Bordas, Paris.
em que se tem voz a seca ele com bate .10
HUSSERL, E. (1950) Idées directrices pour une phénoménologie
et une philosophie phénoménologique pure, Gallimard (Col.
T E L ), Paris (1913).
10 M elo N eto (1986:26).

40 41
EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS

K a n t , I. (1987), Critique de la raison pure, GF-Flammarion, Pa­


ris (1781).
LACO STE, Y. (1976), La géographie ça sert d’abord à faire la
guerre, Máspero, Paris.
LEVI-St r a u s s , C. (1967), Les structures élémentaires de la pa-
renté, P U F , Paris. A EXPULSÃO DO PARAÍSO.
L E V I -S T R A U S S , C. (1966), Tristes tropiques, P U F , Paris. O “PARADIGMA DA COMPLEXIDADE”
LYOTARD , J.-F. (1969), La Phénoménologie, P U F , col. “ Q ue sais-
E O DESENVOLVIMENTO SÓCIO-ESPACIAL
je ? ” , Paris.
M ALM BERG, B. (1991), Histoire de la linguistique, P U F , Paris.
M arcelo Lopes de Souza*
MELO N e t o , J. C. (1986), Poesias completas, 4? ed., José Olym -
pio, Rio de Janeiro.
NlCOLAS-OBADIA, G. (1974), Cari R itter et la form ation de
“S o b e , e u te sigo, c o n d u to r sincero:
Vaxiomatique géographique, Belles Lettres, Paris. M e u s passos gu ia: h u m ild e aos C é u s m e curvo.
PESSANHA, J. A. M . (1992), “ O sono e a vigília” , in Tempo e His­ S e ja q u a l fo r a p u n iç ã o , o fere ço

tória, Cia. das Letras, São Paulo. M e u co ra ç ã o d e to d o resignado:


M u n id o d e p a c iê n c ia m e destino
SANTOS, M . (1996), A Natureza do Espaço: técnica e tempo, ra­
A co n q u istar, se o b t e r m e é d a d o tanto,
zão e emoção, Hucitec, São Paulo.
P o r á s p e ro tra b a lh o a p a z ditosa.”
SEGALEN, M. (1996), Sociologie de la fam ille, Armand Colin,
Paris. (P a lav ra s d e A d ã o ao arcanjo M ig u e l n o C a n to
XL d e Paraíso P erd id o, d e John M ilt o n )

In tro d u ç ã o : o p ro p ó s ito d este tra b a lh o

H á mais de duas décadas vem se desenhando, tendo a


Física e a Biologia com o centros irradiadores, algo que ca-
vez mais passa a ser encarado com o um novo paradigma
ciência — o “paradigma da complexidade” — , ao qual

* Professor Adjunto do Departamento de Geografia da UFRJ e pesquisador do


CNPq.

42 43
EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS A EX P UL S Ã O DO PARAÍSO

se associam diversos conceitos, teorias e vertentes analíti­ as ciências sociais, apesar e por trás do m odism o? O autor
cas, como a superstar Teoria do Caos. Em bora se referisse deste trabalho acredita que sim, e o objetivo destas Unhas,
inicialmente a uma nova leitura da realidade física e do as quais aperfeiçoam , com plem entam e aprofundam as
vivente, o paradigma em gestação aos poucos vem ultrapas­ idéias contidas na introdução de um artigo anterior (SOU­
sando as fronteiras do dom ínio das ciências da m atéria e da ZA, 1995a), não é outro senão o de argumentar nesse senti­
vida. Com efeito, em que pese o fato de que este novo pa­ do, em bora relativizando a novidade e a utilidade das “li­
radigma se fe z anunciar, a partir dos anos 60-70 (se bem ções” dos cientistas naturais. Os exemplos e a preocupação
que suas raízes rem ontem a bem antes disso), com base no central e im ediata deste trabalho referem -se à questão do
trabalho de cientistas naturais, com o o físico Herm ann H a- desenvolvim ento sócio-espacial, vasto cam po tem ático ao
ken e o físico-quím ico Ilya Prigogine, já de alguns anos qual têm estado vinculadas as investigações do autor. T o­
para cá vêm sendo feitas diversas tentativas de aplicação de davia, é desde já evidente que o tipo de discussão aqui p re­
conceitos e esquemas interpretativos à própria realidade sente d iz respeito, de algum a maneira, à epistem ologia da
social. Disso têm se encarregado não apenas cientistas so­ pesquisa social em geral.
ciais de diferentes form ações, com o R lT T E R , 1991; O R -
L é a n , 1991; B a i l l e a u , 1991; L o is t l & B e t z , 1993; tam­
bém os autores dos artigos contidos na coletânea organiza­ Q u a l é a essência d o “p a ra d ig m a da co m p le xid a d e ” ?
da por K lE L & E L L IO T T , 1996, e até mesmo alguns cientis­
tas naturais, com o H a k e n , 1983; H a k e n , 1990; E b e l i n g Prim eiram ente, um esclarecim ento term inológico. O
& F e i s t e l , 1994. term o “paradigma”, usado p or vários autores a propósito da
Caos, Term odinâm ica das estruturas dissipativas, frac- “com plexidade” (e não só p or cientistas naturais: vide, por
tais, Teoria da Autopoese, Sinergética... Poucas décadas exem plo, Edgar M O R IN [s/d-a; s/d-b] e Jean-Pierre D U PU Y
após a realização dos trabalhos pioneiros que confluiriam [1990]), nos rem ete à idéia de paradigma científico contida
para uma renovação das pesquisas sobre a natureza, eis na conhecida obra de Thom as Kuhn sobre a estrutura das
que as ciências naturais exercitam , mais uma vez, seu p o­ revoluções científicas (K U H N , 1982). A anáhse de Kuhn
der de sedução: dos livros de divulgação científica (às vezes não deve, porém , ser incorporada sem ressalvas pelas ciên­
escritos por jornalistas) que se tom am best-sellers até as cias sociais, particularmente a noção de “ciência norm al” ,
diversas disciplinas das ciências sociais, idéias e expressões que significa o estado de dominância com base em critérios
associadas à Teoria do Caos e consortes têm fascinado, e d e superioridade científica de um dado conjunto de con­
mesmo assumido, as feições de uma nova m oda intelectual. ceitos, m odelos e teorias tributários de um mesmo espírito
Haverá, contudo, algo de consistentemente prom issor, para ou crivo discursivo legitim ador, ou seja, tributários de um

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E X P L O R A Ç Õ E S GEOGRÁFI CAS A EX P UL S Ã O DO PARAÍSO

determ inado “paradigm a” . N o caso das ciências sociais, verso daquilo que M orin chama de ciência clássica. D ito la-
onde a superioridade estritam ente científica não é som ente conicam ente, o paradigm a da complexidade romperia com
a única causa, mas am iúde nem mesmo é a causa mais os raciocínios lineares e reducionistas, incorporando um en­
im portante da superação de um enfoque por outro, além do foqu e que busca interações complexas (vide, por exemplo, a
fato de que uma form a de abordagem “ marginal” pode coe­ Sinergética hakeniana e a Term odinâmica não-linear), além
xistir décadas a fio com uma outra “oficial”, sem que a de adm itir que não apenas a necessidade (determ inidade),
“marginal” seja necessariamente abalada sob o ângulo cien­ mas igualm ente o acaso (a contingência, o inesperado) são
tífico, a idéia de “ ciência normal”, e por extensão tam bém a definidores da dinâm ica do mundo real — e eis aqui o cer­
d e “paradigma” , pode dar uma impressão errónea do que ne das im plicações filosóficas da T eoria do Caos e da Si­
realm ente ocorre. N o entanto, talvez seja possível continuar nergética. Sim plificações serão sem pre inevitáveis, mesmo
usando a palavra paradigma, mesmo em se tratando das para o cientista que d ecid ir abraçar a complexidade. À di­
ciências sociais, desde que se abandone a idéia da dominân­ ferença da ciência clássica, no entanto, a ciência do com ­
cia absoluta com base em uma superioridade estritam ente plexo manter-se-ia constantem ente alerta para os riscos da
científica. sim plificação, não se deixando por ela hipnotizar (ver MO-
O paradigma da com plexidade — longe ainda d e se RIN, s/d-a: 1.1, p. 348; s/d-a: t. II, pp. 361-362). A tarefa do
instalar definitivam ente — prom ove uma genuína revolu­ cientista não é, em últim a análise, propriamente simplificar
ção científica, e tem seu antípoda e concorrente no “para­ o real, mas sim tom á-lo in teligível, operando com imagens
digm a de sim plificação”, cujas características foram assim e m odelos suficientem ente poderosos e não subestimando
sintetizadas p or Edgar M orin: as dificuldades de se d efin ir os constructos, a fim de que
nossa representação da realidade não seja drasticamente
“ 1) Cham o ciência clássica a toda a tentativa científica que
em pobrecida e distorcida.
obedece ao paradigma de simplificação.

2 ) O paradigma de sim plificação opera por redução (d o


com plexo ao simples, do m olar ao elem entar), rejeição Desenvolvim ento sócio-espacial, um fenômeno
(da eventualidade, da desordem, do singular, do indivi­ (e um desafio) com plexo p o r excelência
dual), disjunção (entre os objetos e o seu am biente, entre
sujeito e objeto).” (M ORIN, s/d-a, t. II, p. 332, nota 1) N o que concerne ao desenvolvim ento sódo-espacial,
a questão epistem ológica geral “em que condições se elabo­
Quanto à perspectiva que busca a com plexidade do ra o conhecim ento?” adm ite ser assim especificada: em que
real ou está aberta para ela, é óbvio que ela prom ove o in­ condições se elabora o conhecim ento sobre os fatores e con­

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFI CAS A EXP UL SÃO DO PARAÍSO

dições que tom a m as sociedades, aos olhos de seus mem­ atinentes a distintos espaços e escalas de análise. O que
bros, mais justas e aceitáveis? A despeito das numerosas à prim eira vista parece endógeno a um recorte espacial
diferenças que apresentam entre si, as teorias do desenvol­ deve sua existência igualm ente a fatores externos mais
vimento elaboradas no segundo pós-guerra guardam uma ou menos rem otos no tem po, ou atinentes a escalas mais
cumplicidade essencial, sob o ângulo epistem ológico: em abrangentes, enquanto que o exógeno, por seu turno,
maior ou m enor grau admitem ser vistas com o com prom e­ amiúde tem a sua influência filtrada p or peculiaridades
tidas com o “paradigma da sim plificação” de que fala E d­ internas. Os qualificativos “endógeno” e “exógeno” pos­
gar Morin. Que sejam listados os principais sintomas dessa suem valor operacional, mas seu em prego não pode le ­
inclinação obsessiva para a simplificação: var a que se perca de vista que são mutilações. Em últi­
ma instância, o endógeno e o exógeno se acham amalga­
• Monodimensionalidade. Entendendo por dimensões das mados no bojo dos processos históricos.
relações sociais as diversas facetas principais da vida so­
cial (econom ia, política, cultura), a m onodim ensionali­ • Abordagens monoescalares ou m u ito fracam ente m ul-
dade consiste na interpretação dos fatores do “ (s u b d e ­ tiescalares. Um vício epistem ológico m uito comum con­
senvolvimento” a partir da consideração menos ou mais siste na desatenção para com o fato de que os fenôm e­
exclusiva de uma dimensão, e sobre a base uma ontolo­ nos sociais, ainda que im ediatam ente referenciados, en­
gia fragm entadora do social e com respaldo na divisão quanto objetos de estudo, a um recorte espacial e um
do trabalho acadêmico em vigor. O exem plo máximo é o nível escalar específicos, têm sua génese, sua dinâmica
conceito, tão em pobrecedor e restritivo, de “desenvolvi­ atual e suas perspectivas explicáveis ou analisáveis m e­
mento económ ico” (ver, para uma critica, SOUZA, 1995b; diante a identificação de fatores que em ergem e operam
1996c). A monodimensionalidade, faz-se m ister ainda em diferentes espaços e escalas. Sublinhe-se, portanto, a
acrescentar, costuma andar de braços dados com outro necessidade de considerar as interações sócio-espaciais
vício — o vício da monocausalidade (explicações m ono- horizontais e as articulações “verticais” entre fatores que
causais).• rem etem a distintos níveis escalares.

• Separação simplista entre endógeno e exógeno. Fatores • N egligência para com o papel do espaço. Além da sepa­
do “(sub)desenvolvim ento” com um ente são vistos de ração artificial entre as dimensões das relações sociais,
maneira absoluta com o internos ou externos a um país, a têm sido tam bém usuais a separação entre espaço e rela­
uma região etc., negligenciando-se assim os com plicados ções sociais, a articulação deficiente entre espacialidade
entrelaçamentos históricos e feedbacks entre processos e historicidade e a negligência para com o papel dos es-

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E XP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS A EXP UL SÃO DO PARAÍSO

paços (enquanto espaços natural e social) nos processos visão etnocêntrica, fechada e absolutizante do desenvol­
de desenvolvim ento. Com algumas exceções (teoria dos vim ento (O ciden te com o m odelo implícito; “desenvolvi­
pólos de crescim ento, Econom ia Regional), as teorias da m ento” defin ível universal e transculturalmente), sem
m odernização e do crescimento dos anos 50 e 60 secun- contar o seu frequente com prom etim ento com visões
darizavam o papel do espaço, o mesmo podendo ser dito, teleológicas (“ etapas do desenvolvim ento” ), incorrigivel-
em m aior ou m enor grau, de abordagens anteriores (so­ m ente sim plificadoras — na verdade, convenientemente
cialismos utópicos, marxismo etc.) e posteriores ( redistri- sim plificadoras, sob o ângulo ideológico.
bution w ith grow th, satisfação de necessidades básicas,
‘T e o ria da D ependência”...). Os geógrafos, que poderiam O fracasso prático das estratégias, instituições etc., de

ter desem penhado um papel alternativo a esse respeito, “desenvolvim ento” , e a própria complexidade crescente do

lam entavelm ente só ofereceram uma contribuição teóri­ ‘T e rc e iro M undo” têm conduzido a uma crise de produção
teórica, a um desânimo. N o entanto, o minimalismo anti-
ca direta diminuta para os estudos sobre desenvolvim en­
teórico ( “pós-m odem o” ) não é uma solução, mas somente
to. Quanto ao “ fetichism o espacial” contido em algumas
um escapismo inconsequente. U rge, sim, aceitar abando­
visões normativas, notadamente a propósito do desenvol­
nar o paraíso ilusório das soluções prontas e fechadas, das
vim ento urbano (urbanismo modernista corbusiano,
explicações transculturais, eternas e universais, para nos
principalm ente), ele não resolve o problem a da falta de
exilarmos no mundo concreto, cuja apreensão é muito mais
integração, pois apenas inverte os sinais, substituindo o
d ifícil e nos exige mais flexibilidade e, ao mesmo tempo,
descuido para com o papel do espaço pela superestima-
mais humildade (v e r SOUZA, 1996a).
ção do papel das formas espaciais. Também as correntes
que reclamam um “desenvolvim ento sustentável” não
apontam para soluções consistentes, uma vez que, se por O q u e há de n ov o , sob o p ris m a da pesquisa social,
um lado sublinham os riscos da degradação do “ m eio am­ na com p lexid a d e revela d a pelas ciências naturais
biente” (nisso diferindo de abordagens com o as teorias ren ova d a s?
da m odernização e do crescim ento), por outro subesti­
mam, no âm bito de um enfoque que contém um viés “O hom em não nos interessa apenas porque somos
naturalizante e banalizador das causas dos problemas homens. O hom em deve nos interessar porque, de acordo
sociais, o papel do espaço propriam ente social.• com tudo que sabemos, o fantástico nó de questões ligadas
à existência do homem e ao tipo ontológico de ser por ele
• C aráter fechado, absolutizante, etnocêntrico e teleológi- representado não é redutível à Física ou à Biologia.” (CAS-
co das teorias. As teorias herdadas são, também, por sua TORIADIS, 1986: 221)

50 51
EX P L ORA ÇÕE S GEOCRÁFI CAS A EXP UL SÃ O DO PARAÍSO

“ Estou cada v e z mais convencido de que a ciência ao que se poderia talvez chamar de estilo de ra ciocín io, a
antropossocial tem de articular-se na ciência da natureza, e originalidade do anticartesianismo inspirado pelas ciências
que esta articulação requer uma reorganização da própria naturais renovadas é, no m ínim o, questionável. É fato que
estrutura do saber.” (M O R IN , s/d-a, 1.1, p. 13) os próprios cientistas naturais, sobretudo os físicos, do alto
do O lim po intelectual de que desfrutam no âm bito da
Aparentem ente, as duas citações acima refletem in­ ciência moderna, muitas vezes desdenham ou ignoram que
conciliáveis posicionam entos por parte de C om elius Cas- certos aspectos da “com plexidade” já foram , em um plano
toriadis — filósofo que, com profundidade singular, tem filo s ó fico e m etodológico geral, apontados há bastante tem ­
insistido sobre a singularidade ontológica da sociedade e, po p or algum filósofo ou cientista social defunto (registre-
por conseguinte, sobre as especificidades epistem ológicas se, p or exem plo, que na virada deste século um sociólogo,
da análise social — e E dgar M orin — filósofo e sociólogo Lester W ARD [apud POSADA, 1929], desenvolveu o concei­
que, persuasiva e seriam ente, tem sublinhado a im portân­ to de sinergia de m aneira qualitativam ente similar ao con­
cia da integração dos conhecim entos das ciências humano- tido no enfoque batizado de Sinergética por Herm ann
sociais e naturais. N o entanto, o autor deste trabalho acre­ Haken, ao qual este chegaria, muitas décadas mais tarde, a
dita ser possível acatar a exigência castoriadiana — aceita­ partir de suas pesquisas sobre o raio laser). Am iúde igno­
ção da singularidade do social e da sua irredutibilidade ao ram, igualm ente, que a crítica do pensamento linear é um
físico ou ao biológico — sem sacrificar a concordância com legado antiquíssimo de diversas correntes filosóficas, de
M orin em que o diálogo entre os dois grandes campos H eráclito ao pensamento dialético de H egel e Marx, ao
(ciência da natureza e ciência antropossocial) é necessário que se devem acrescentar as contribuições de importantes
e promissor. Tudo dependerá dos termos desse diálogo, o cientistas sociais ao longo do século XX.
qual, por parte das ciências sociais, não deve im plicar em Seria atrevim ento concluir que algumas correntes da
perda de identidade. Filosofia e das ciências humanas têm estado, há m uito
M esm o entre cientistas sociais, certas idéias associa­ tem po, na vanguarda da construção de perspectivas que
das à “ N ova Física” , à B iologia M olecular ou à N eu robio- poderíam os denom inar d e “complexas” ? É reconfortante
logia são, mais freqiien tem en te do que o autor gostaria de verificar o que, a esse respeito, escreveu o próprio P rigo-
supor, encaradas com o uma grande novidade, uma reve­ gine, em livro escrito em co-autoria com Isabelle Stengers:
lação. E specialm ente para alguém que, com o o autor des­ “ [s]e quisermos situar (...) a contribuição das noções de
tas linhas, tem uma grande dívida intelectual com a tradi­ não-linearidade, de instabilidade, de amplificação dos
ção do pensam ento dialético, essa euforia é m otivo de sur­ pequenos afastamentos, é bom com eçar por sublinhar que
presa e m esm o de irritação, uma vez que, no que concerne as ciências das sociedades não esperaram pela Física para

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E X P L OR A Ç ÕE S GEOGRÁ FI CA S A EXP UL SÃ O DO PARAÍSO

descrever tipos de processos segundo as perspectivas que tanto, de um ardiloso canto de sereia, uma vez que, de um
acabamos de indicar [isto é, a partir da ótica da complexi­ m odo geral, as possibilidades de mensuração dos construc-
dade].” (PRIGOGINE & STENGERS, 1991: 139) tos, com recurso em escalas de intervalo e razão, têm-se
A o que tudo indica, contudo, a m odéstia de Prigogine mostrado, em nosso terreno de atuação, e em razão da pró­
e Stengers é uma exceção. Alguns de seus colegas vão tão pria natureza mais com plexa da realidade social-histórica,
longe a ponto de injustamente m inim izar até a contribui­ m uito mais modestas do que no âmbito dos fenômenos
ção de um gigante pion eiro com o o biólogo alemão Ludw ig naturais. Afinal, conform e reconheceu Abraham M oles, o
von Bertalanfíy, o pai da “Teoria G eral dos Sistemas” ; a p ri­ físico, em sua reflexão sobre as “ciências do im preciso”,
m eira grande crítica do raciocínio linear interna às ciências para as ciências da sociedade o que interessa “não é a mira­
naturais, nos anos 40 e 50 (elogiada, ironicam ente, p elo fi­ gem do algarismo, e sim a im portância da adequação à na­
lósofo marxista K arel KOSIK [1985]). M esm o Herm ann tureza intrínseca do fenôm eno que elas estão consideran­
Haken, que em um de seus livros m enciona Bertalanfíy, do” ( M o l e s , 1995:137).
lem bra-o apenas m uito marginalmente, sem fazer verda­ A o que parece, os “ensinamentos” emanados da Física
deira justiça à sua im portância (HAKEN, 1983: 352). apresentam um conteúdo de inovação relativamente restri­
Um a nota d e história pessoal. O autor das presentes to para a pesquisa social quando comparado com as ciên­
linhas teve a oportunidade, há alguns anos, de indagar a cias naturais, já que, com o bem notaram Prigogine e Sten­

um dos assistentes de Herm ann Haken sobre as razões gers, aquela não esperou p or estas para ir além do eartesia-
nismo, do pensamento linear e sim plificador (se bem que
desse silêncio relativas ao que se poderia chamar de os
— e esse é precisam ente o problem a — as contribuições
“precursores” do paradigm a da com plexidade na Filosofia
dos “precursores” não se difundiram e nem se desenvolve­
e nas ciências sociais. Sua resposta foi, literalm ente, que
ram a contento). E, se a pretensa “grande novidade” em
não se deveria confundir H im gespinste (maluquices, ex­
relação à especulação filosófica — a quantificação — não
centricidades) com a verdadeira ciência; aqueles a quem o
passa, em larga medida, de uma quim era quando se trata
presente autor chamara de “precursores” não m ereceriam
da pesquisa social (pois, ao contrário do que tantos físicos
maiores atenções, p or não terem elevado o conhecim ento a
imaginam, não seria a matematização que permitiria enxer­
um nível efetivam ente científico (o que para ele significa­ gar m elhor a com plexidade dos fenômenos sociais — pelo
va: expresso em linguagem matemática). Esse estilo de crí­ contrário, ela freqiientem ente im plicaria em um formalis­
tica, típico do lim itado diálogo entre ciências sociais e m o reducionista), então o que restaria, em termos de possi­
naturais, é assaz decepcionante. O “avanço” quantificador bilidade de diálogo frutífero, aos investigadores sociais e
secularmente cobrado das ciências sociais não passa, entre­ aos cientistas naturais vinculados ao paradigma emergente?

54 55
E X P L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS A EXPUL SÃO D 0 PARAÍSO

Apesar das ressalvas dos parágrafos anteriores, qu er o Mas, concretam ente: o que poderia, para a pesquisa
autor asseverar que seria açodamento descartar a utilidade social, trazer esse diálogo, sob os ângulos epistem ológico e
desse diálogo para as ciências sociais. Mais do que isso: se­ m etodológico? Em que m edida o “ paradigma da com plexi­

ria injusto im aginar que toda tentativa de diálogo com os dade” inspirado pelas ciências naturais contribuiria para

cientistas naturais constituiria uma manifestação de “positi­ expulsar a teoria do desenvolvim ento de seu pseudoparaíso

vismo” (segundo o am plo significado conferido a este ter­ de certezas mumificadas? O autor crê que três temas inter-
relacionados, envolvendo questões referentes à teorização
mo pela Escola de Frankfurt), com o se o desejo de inter­
sobre o desenvolvim ento sócio-espacial, bastarão para ilus­
câmbio fosse suficiente para levantar a suspeita de im itação
trar adequadamente, ainda que em caráter prelim inar, a
metodológica e transposição irrefletida de conceitos e teo­
presente tese sobre a im portância dessa troca intelectual.
rias das ciências naturais para as sociais. Sem dúvida, o risco
de se com eter tais deslizes existe, já que ainda hoje muitos
pesquisadores não estão suficientem ente imunizados. Toda­
“Caos”: acaso e necessidade nos processos sociais
via, um receio d o diálogo, sintomático de um com plexo de
inferioridade, é, mais que nunca, extemporâneo: afinal, so­
O prim eiro tem a d iz respeito à revisão, sob inspiração
mos hoje testemunhas de uma “crise da explicação simples”
da Teoria do Caos, da im portância da contingência e do sig­
também nas ciências naturais, e, ironicam ente, “ o que pare­
nificado da previsibilidade no dom ínio social-histórico. So­
ciam ser os resíduos não científicos das ciências humanas, a
bretudo, certas interpretações vulgares do materialismo his­
incerteza, a desordem , a contradição, a pluralidade, a com ­
tórico marxista, com o as contidas nos “manuais” de materia­
plicação etc. fazem hoje parte de uma problem ática geral
lism o histórico e dialético em suas versões stalinista ou crip-
do conhecimento científico” (M O R IN , s/d-b:138). Cum pre,
tosstalinista e no pensamento estruturalista althusseriano —
pois, reconhecer, seguindo o exem plo de Edgar M orin, que se bem que a raiz do problem a se encontre já no próprio
uma maior aproximação entre as ciências naturais e as H u­ pensamento de Marx — , caracterizaram-se por m in im iza r
manidades é, mais que desejável, importantíssima, m esm o excessivamente a im portância das subjetividades e da con­
que não se abra m ão de buscar a singularidade do social, tribuição do papel ativo potencialm ente desempenhável p or
conforme tem sido enfatizado de maneira bastante insti- cada sujeito social individualm ente na m odelagem do pro­
gante, sobretudo p or CASTORIADIS (1975; 1986; 1990b). O cesso histórico. Trata-se de avaliar até onde os indivíduos de
confronto de posições e resultados, e não a “auto-segrega- p e r se, muito especialm ente as chamadas “grandes persona­
ção” , é a m elhor m aneira de se perscrutar as especificida­ lidades” (norm alm ente líderes políticos ou m ilitares), cen­
des ontológicas do próprio objeto. tro das atenções da historiografia burguesa, seriam capazes

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E X P L O R A Ç Õ E S GEOGRÁFI CAS A EXP UL SÃ O DO PARAÍSO

de influir no curso dos acontecimentos históricos. Presumiu- E quanto ao dom ínio social-histórico? Seria ele mais
se que essa capacidade seria m uito m enor do que a histo­ imune às consequências do puro acaso que o mundo físico?
riografia idealista e romântica postulava, e que o essencial Responder negativam ente a esta pergunta não significa,
residiria, na verdade, na dinâmica histórica “objetiva” , “es­ neste trabalho, negar o peso das estruturas e dos contextos
trutural” e “ sistémica” do m odo de produção (notadam ente em nom e de um absurdo “tudo é possível”. Por que dever-
a contradição entre relações de produção e forças produti­ se-ia, no entanto, justamente em um domínio onde inter­
vas), o que acarretaria que o papel dos indivíduos, indepen­ vêm subjetividades e em oções cambiantes, postular a im­
dentem ente de seu brilho intelectual e sua proeminência, possibilidade de reordenamentos macroscópicos a partir dos
seria inteiram ente secundário. Em suma, não haveria nin­ desdobram entos de flutuações? Na realidade, as flutuações
guém que fosse “insubstituível” : cada m om ento histórico no dom ínio social-histórico sequer precisam estar ligadas à
objetivo produziria o agente individual para desempenhar vida de “grandes personalidades” : mesmo atos banais de
um determ inado papel “historicam ente necessário” . desconhecidos podem ter consequências insuspeitadas.
O que nos tem a dizer, a propósito dos vínculos entre N o que concerne à teorização sobre o desenvolvimen­
acaso e necessidade, a Teoria do Caos? O “caos determ inís- to, a T eoria do Caos representa um reforço considerável
tico” postulado p or essa teoria, a unir contingência e deter- dos argumentos anti-historicistas, que recusam as visões te-
minidade em uma solidariedade essencial, nos recorda, leológicas e etapistas do processo de “subdesenvolvimen­
através do que fo i apelidado de “ efeito da asa da borbole­ to”/"desenvolvim ento” . Vale a pena reproduzir, a esse res­
ta” , que minúsculas perturbações, “flutuações” m icroscópi­ peito, uma passagem do geógrafo alemão Wigand Ritter,
cas em um sistema, podem produzir, de maneira im previsí­ que no contexto de uma discussão sobre o “desenvolvimen­
vel e p or efeito d e am plificação, alterações macroscópicas to em sistemas regionais” , onde é tentada uma articulação
e mesmo mudanças qualitativas (“ bifurcações” ), devido à com o pensam ento de Prigogine, antecipa, ainda que de
natureza intrínseca dos chamados atratores “estranhos” ou maneira incom pleta e não suficientem ente explícita, a pre­
“caóticos” , associados a sistemas dinâmicos tam bém deno­ sente interpretação:
minados “ caóticos” pelos físicos .1
“A teoria das estruturas dissipativas entende todos os
1 D e maneira muito preliminar pode-se definir atrator (ou estado atrator) como desenvolvim entos [Entwicklungen\ com o sendo abertos [gri-
tudo aquilo pelo que um sistema é atraído. O estado atrator é aquele ao qual o
sistema invariavelmente retorna, após uma perturbação exógena que não seja
muito grande, mas que o afasta temporariamente do estado original. Pense-se em sistema é perféitamente previsível. Já o mesmo não acontece com os sistemas
um sistema muito simples, por exemplo, em um pêndulo, cujo movimento dimi­ caóticos (caso da dinâmica atmosférica, q ue é um exemplo freqiientemente cita­
nui progressivamente; seu atrator (ou estado atrator) corresponderá à sua situa­ do), cuja evolução cria dificuldades a qualquer previsão, especialmente a previ­
ção de equilíbrio mecânico. Bem , ocorre que, no caso do pêndulo, a evolução do sões de médio e longo prazos.

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caótico. Suas contradições internas existem, mas elas ainda mas” , entretanto, podem ter um interesse objetivo latente
não são suficientem ente fortes a ponto de tom ar instável o ou m esm o consciente em sua destruição enquanto tal, ain­
conjunto do sistema. (...) Elem entos obsolescentes, herda­ da que sejam funcionalm ente dependentes dos “ subsiste­
dos de fases anteriores, são eliminados ou transformados mas” pró-estabilização (o que configura uma contradição
no período subsequente, desenvolvido, o que em princípio dialética inexistente em sistemas físicos, quím icos ou bioló­
é suficiente para prolongar o estado sistémico estável. À gicos).2 Outra ressalva concerne à questão dos lim ites do
luz da realidade do mundo, isto é a aproximação mais ra­ sistema, norm alm ente m uito mais fluidos e indefinidos no
zoável de um estado desenvolvido. caso de “ sistemas sociais” (ver, a propósito, G lD D E N S ,
Vista dessa form a, a situação de desenvolvim ento não 1989:134 e segs.). Infelizm en te, mesmo um trabalho com o
representa qualquer idílio. E la não encarna nem perfeição o de H a r v e y & R e e d (1996), de resto bastante ponderado
na utilização dos recursos nem um desenvolvim ento [E nt- em sua objeção tanto ao positivism o quanto ao “pós-
faltu n g] da econom ia que seja duradouro e prescinda de m odem ism o” , não dá a devida atenção a restrições com o as
aperfeiçoamentos ulteriores. E la assinala antes o estado de precedentes em seu esforço para redefinir a ciência social
ordenamento atual e num futuro previsível do sistema real­ com o o “ estudo de sistemas complexos” , e até m estre MO-
mente existente. É por isso que falamos de países indus­
R IN (s/d-b:199 e segs.), em balado pelo realce dos isom or­
trializados desenvolvidos, m uito em bora estes de maneira
fismos físico-bioantropossociais, com ete idêntico deslize.
alguma possam oferecer aos indivíduos condições ótimas
P or fim , um outro lem brete a propósito do em prego da
de existência.” (R it t e r , 1991:167-8)
palavra sistema diz respeito ao fato de que, além da objeti­
vidade das estruturas e dos mecanismos sistémicos (econó­
A concepção da sociedade com o simplesmente um
micos e político-institucionais), há tam bém a imensa e irre-
“sistema” , ressalve-se, é assaz problemática; a idéia de con­
tradição, para citar um prim eiro exemplo, não convive fa­
cilmente com a id éia de sistema, a não ser que se desvincu­ 2 D e mais a mais, como seria verdadeiramente possível falar de equilíbrio no con­
texto de uma sociedade como a capitalista? Equilíbrio (d o lat. aequilibriu = peso
le esta idéia da noção de equ ilíb rio. D entro de um sistema, igual) pressupõe simetria, enquanto que a explorado sobre a base da proprieda­
digamos, do sistema capitalista, cuja vocação não é tender de privada dos meios de produção e a heteronomia características das sociedades
capitalistas (mesmo das “desenvolvidas") representa um a nítida assimetria estru­
ao equilíbrio (ao contrário da profissão de fé da teoria eco- tural (Sou za, 1993).

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E X P L OR A Ç ÕE S GEOGRÁFI CAS A EXPUL SÃO DO PARAÍSO

du tível riqueza do “ mundo da vida” (Lebenswelt), onde as precisas e ao m esm o tem po significativas sobre o seu com­
categorias sujeito —> subjetividade —» intersubjetividade, portam ento. A partir de um certo limiar, precisão e signifi-
descartadas por L U H M A N N (1987) em favor da oposição cância (relevância) tom am -se qualidades quase mutua-
sistema/ambiente ( System/Umwelt), encontram necessária m ente excludentes.” E, usando a palavra sistema mais uma
acolhida (H A B E R M A S , 1993, cap. X II; ver, ainda, H A B E R - vez de maneira parcialm ente m etafórica: não há sistema
MAS, 1988). mais com plexo que uma sociedade.
N o entanto, em que pesem todas as ressalvas, e ape­ As restrições acima não im pedem , porém, que se
nas para em pregar o term o p or analogia, em sentido par­ extraia da Teoria do Caos uma lição indireta de grande al­
cialm ente m etafórico (já que a realidade social não é p le­ cance m etodológico: a necessidade de se pensar dialetica-
nam ente redutível a um “ sistema”3): não há sistema mais m ente (ou, com o p refere M orin, “dialogicamente”), a fim
sensível aos caprichos do acaso que uma sociedade. (Aliás, de não se privilegiar, a p rio ri, nem o polo da determinida-
m esm o a face determ inista do binóm io necessidade/acaso de (referen te à lógica de certos processos e mecanismos, p.
não há de exprimir-se, no caso do dom ínio social-histórico, ex., económ icos e políticos, no âm bito de certas regras de
d e m aneira m uito formalizada. N em todo caos é propria­ jo g o gerais, com o o funcionam ento do modo de produção
m ente determ inístico e, ademais disso, a prova matemática capitalista), nem o p ólo da contingência (concernente a flu­
da existência de um verdadeiro caos determ inístico subja­ tuações que m odelam de m odo im previsível o devir). Na
cente a uma série de dados qualquer é um requisito d ifícil sociedade há “atratores” (códigos de conduta, lógicas espe­
d e satisfazer nas ciências sociais, inclusive devido à insufi­ cíficas dos m odos de produção etc.), mas a evolução de
ciência de dados, conform e tem sido reconhecido na litera­ uma sociedade e as configurações desta em momentos his­
tura.) Quanto mais com plexo for um sistema, m aior será a tóricos definidos (seja em term os de um regime político,
perda de inform ação ao se tentar exprim i-lo formalizada- de um estilo de desenvolvim ento, de uma forma de organi­
m ente, segundo adm itiu o fundador da.fuzzy logic, o mate­ zação sócio-espacial) não são verdadeiramente predizíveis.
m ático L o tfi Z A D E H (apud Z lM M E R M A N N , 1993: 90): “ N a (E m se tratando do social, a expressão “ etapa de desenvol­
m esm a proporção em que cresce a com plexidade de um vim ento” ou exerce um papel ideológico — sejam as “eta­
sistema, diminui a nossa capacidade de fazer afirmações pas do crescim ento económ ico” de Rostow, seja a sucessão
de m odos de produção do marxismo — , enquanto viés pro­
priam ente teleológico, ou é simples racionalização mode-
3 N e m , conforme já se disse, sob a forma de instâncias concretas representando
tipos de integração societária “sistémica” (através dos “subsistemas" mercado e lística de um processo, à qual se procede retrospectiva-
Estado) em contraposição ao “mundo da vida" (H abermas , 1988), nem, obvia- m ente.) Constatar, retrospectivam ente, que a sociedade
mente, enquanto um modelo explicativo, onde as partes componentes e suas rela­
ções podem ser claramente distinguidas. européia deu origem à econom ia capitalista após uma tran-

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EXP L ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS A EXPUL SÃO DO PARAÍSO

sição que se arrastou entre os séculos X V I (ou m esm o Asiáticos” , m uito especialm ente da C oréia do Sul: estaria o
antes) e X V III, não quer dizer que fosse possível prever, no exem plo sul-coreano demonstrando, com o os mais conser­
século X V I, a natureza da econom ia capitalista do século vadores argumentam, que o desenvolvim ento do ‘T erceiro
X IX , e menos ainda as trilhas efetivas pelas quais chegou- M undo” é perfeitam ente possível nos marcos do capitalis­
se até aí. É este núcleo de indeterm inação, a despeito de mo, ou seria a C oréia do Sul um caso por demais im perfei­
qualquer dimensão de determ inação realm ente presente to, com o preferem insistir muitos analistas de esquerda?
(descortinada e simultaneamente superestimada p elo ma­ Ainda que bastante im perfeito (o que não é exclusividade
terialismo histórico marxista), que tom a a Teoria do Caos sua enquanto sociedade capitalista), o caso sul-coreano não
uma fonte de inspiração válida para os próprios teóricos do somente lança uma derradeira pá de cal sobre a já há mui­
desenvolvimento das sociedades, não obstante o fato cons­ to tem po ultrapassada abordagem do “desenvolvim ento do
trangedor de que eles, antes de quaisquer outros, deveriam subdesenvolvim ento” de G under Frank, mas tam bém con­
ter sido capazes d e form ular a questão do papel constituti­ tribui para a superação do antigo enfoque “dependentista”
vo do acaso em toda a sua radicalidade. Infelizm ente, na à la Cardoso & Faletto (onde se enxergava o desenvolvi­
verdade, abundam os exemplos de estudiosos do social que m ento económ ico, mas não se deixava de salientar o con­
se encontram aquém do espírito da seguinte passagem esti­ texto de dependência), além de abalar o enfoque sistémico
mulante com que nos brindaram Prigogine e Stengers: wallersteiniano (dem asiado determ inístico, extem alista e
econom icista) quanto à questão dos lim ites do desenvolvi­
“ Longe do equilíbrio, os processos já não podem ser m ento no âm bito do capitalismo. Afinal, a C oréia do Sul
compreendidos a partir de estados onde, em m édia, os alcançou, nas últimas décadas, não apenas um notável d e­
seus efeitos se compensam. Eles articulam-se em disposi­ senvolvim ento económ ico capitalista, mas, tam bém, uma
ções particulares, sensíveis às circunstâncias, susceptíveis significativa m elhoria de indicadores sociais. N o entanto,
de mutações qualitativas, disposições essas que perm item isso não significa que não existem enorm es em pecilhos
dar um sentido a uma idéia anteriorm ente inconcebível: económ icos e geopolíticos, situados no âmago da lógica do
explicar a novidade sem a reduzir a uma aparência.” (P r i - sistema m undial capitalista, à “ desperiferização” dos países
g o g in e & St e n g e r s , 1990:114) subdesenvolvidos em seu conjunto. P or que não se poderia
entender a instalação de infra-estruturas pelos japoneses
M encione-se, por fim , que a perspectiva que aceita a durante sua ocupação do país, a reform a agrária conduzida,
possibilidade do surgim ento de novas ordens através de após a Segunda Guerra, sob a batuta norte-americana, e a
flutuações pode ser uma pista para se repensar um certo colossal ajuda externa recebida pela C oréia devido à sua
tipo de querela teórica estimulada pelo sucesso dos “Tigres singular im portância geopolítica com o flutuações que, con-

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jugadas com aspectos estruturais favoráveis (com o a cultu­ ocupar m uito com ela”, indicando o surgimento espontâneo
ra, valorizadora da disciplina e da educação), conduziram o de normas em m eio a processos anômicos (um fenômeno,
país à sua atual condição? Vista a partir desse ângulo, a portanto, de “ auto-organização” ). Em Durkheim, porém, a
experiência sul-coreana (assim com o, antes dela, a japone­ desordem é algo essencialmente negativo, encarado en­
sa) contradiz enfoques rigidam ente deterministas sem, ne­ quanto perturbação da ordem (BRUSEKE, 1995: 4).
cessariamente, excluir a existência de determ inações que Seria uma simples questão de conservadorismo, este
obstaculizam a superação do “ subdesenvolvim ento” em viés que consiste em ver na “ desordem ” algo basicamente
escala planetária. negativo e excepcional? Já se viu que desde o próprio Marx
o marxismo teve igualm ente dificuldades com o pólo da
“desordem ” , com o aleatório e inesperado, com o inapre-
“O rd e m ”, “d es ord e m ”, socied ade e espaço ensível (e não-controlado/incontrolável...). Marx e Engels
trataram de form a nitidam ente depreciativa o lumpempro-
O segundo tem a diz respeito à dialética entre ordem e letariado (M A R X , 1978; MARX, 1980; MARX & ENGELS,

desordem, e busca a com preensão da criação de “desor­ 1982), legando-nos inclusive algumas passagens levem ente
dem ” a p a rtir de uma “ordem ” que é pretensamente encar­ tingidas com um moralismo pequeno-burguês. Enquanto o
nação de progresso universal, assim com o do surgim ento proletariado stricto sensu, trabalhador e virtuoso, aos seus
de novas “ordens” a p a rtir da “desordem”. Conform e vol- olhos era o efetivo “sujeito da história” e parteiro da nova
tar-se-á mais à frente, a questão da dialética entre “ ordem ” ordem socialista, os pais do “socialism o científico” viam, no
e “ desordem ” possui im plicações que transcendem a T eo­ “ rebotalho do proletariado” (para usar palavras de Marx),
ria do Caos, no seio da qual os vínculos entre ordem e d e­ ou seja, no subproletariado, essencialmente, uma massa
sordem são tam bém tematizados, p or arrostar o investiga­ degradada — e avessa a seu discurso ordenador. Para o
dor social com a necessidade de considerar diversas escalas marxismo, o subproletariado não seria portador de qual­
de analise e as distintas percepções dos diversos indivíduos quer ordem redentora, e sim para empregar novamente
e grupos sociais em seu estudo. palavras d e Marx, uma “putrefação passiva da velha or­
As mais prestigiosas tradições do pensamento socioló­ dem ” : uma espécie de aglom erado de criaturas eticamente
gico, com o as inauguradas por W eber e Durkheim, apre­ desprezíveis (crim inosos, prostitutas, mendigos...), além de
sentaram uma nítida preferência pela dimensão da “ordem ” histórica e politicam ente irrelevantes (a não ser, eventual­
na sociedade, ainda que tenham tem atizado (m aiginalm en- m ente, com o grotesco sustentáculo do status quo, como
te ) também a “desordem ” (B R U S E K E , 1995). Durkheim, por mostra M arx em “ O dezoito Brum ário de Luís Bonapar-
exem plo, “percebe a problem ática do caos sem contudo se te ” ). A lérgico à desordem , o pensam ento crítico de Marx e

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EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS A EXPUL SÃO DO PARAÍSO

Engels deixa entrever os lim ites de seu criticismo: a obses­ m ente excludente, segregacionista e, logo, não apenas cria­
são pelo controle, prenúncio distante do totalitarismo. dora d e riqueza, mas também de pobreza. N ão é de hoje
O Brasil urbano-metropolitano contemporâneo, nota- que o estilo de progresso técnico poupador de m ão-de-
damente a realidade das duas m etrópoles nacionais de São obra acarreta desem prego e nutre o subem prego em eco­
Paulo e R io de Janeiro, demonstra à saciedade o anacronis­ nomias com o a brasileira, a isso tendo de ser adicionados
mo que seria continuar sustentando o enfoque marxiano. os fatores conducentes à form ação de um “exército indus­
D e uma parte, o “proletariado” (conceito, aliás, deveras trial d e reserva” . Sem querer, de m odo algum, elid ir a im ­
problem ático [C A S T O R IA D IS , 1983]) se “integra” na socie­ portância d e fatores não-econômicos, o fato é que a con­
dade de consumo moderna, mesmo em um país com o o centração de renda (agravada na década de 80, justamente
Brasil. Isso, se não significa o fim da exploração do traba­ o período em que o tráfico experim entou um salto qualita­
lho pelo capital, é ao menos uma expressão do fato de que tivo), o desem prego e a penúria a que é condenada a m aior
o “proletariado”, ou seja, aqueles dos quais se extrai a parte daqueles relegados ao setor não-m odem o da econo­
“mais-valia” (o que rem ete em prim eiro lugar ao operaria­ m ia são estímulos estruturais ao ingresso na delinquência
do industrial), é relativam ente privilegiado, pois é consti­ com o estratégia de sobrevivência.
tuído por trabalhadores com contrato de trabalho form al e P o r outro lado, na esteira da crise da dívida externa e
empregados no setor m oderno da economia. D e outra par­ do esgotam ento defin itivo do m odelo de industrialização
te, segmentos do subproletariado, com o muitos trabalha­ por substituição de im portações, nos anos 80 o estilo de
dores do setor inform al legal (cuja legião aumenta constan­ desenvolvim ento económ ico capitalista capitaneado p elo
temente no âmbito da reestruturação produtiva em curso), "Estado desenvolvim entista” chega ao fim . Detonada pela
mas especialmente os criminosos, sobretudo aqueles liga­ crise da dívida, a crise fiscal do Estado desembocará, p or
dos ao tráfico de drogas, não podem mais, em numerosas seu turno, em uma inflação galopante, a qual conduzirá a
cidades brasileiras da atualidade, ser tratados com o ele­ um aum ento da pobreza relativa (se bem que, com a exce­
mentos irrelevantes no cenário sócio-político. ção do R io de Janeiro, o percentual de pobreza absoluta
O tráfico de drogas, cujas evolução e dinâmica com­ nas m etrópoles não aumentou no decénio passado), acom­
portam uma vinculação não-linear entre ordem e desor­ panhado, na prim eira m etade da década, p or cortes de gas­
dem já abordada pelo autor em trabalhos anteriores (S O U ­ tos públicos sociais, tendência só revertida com a redem o-
ZA, 1995a; 1996b), é um exem plo particularmente rico. N o cratização. À crise fiscal do Estado se somarão, após 1990,
tocante à evolução, a dimensão de ordem é representada os im pactos da globalização e da transição do m odo de
pela própria lógica do sistema capitalista, a qual, principal­ regulação e do regim e de acumulação tipicam ente fordistas
mente no contexto do capitalismo periférico, é profunda­ para o regim e de acumulação flexível e, no plano id eológi­

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co, a influência do neoliberalism o. Em que pese o alívio angústia e incerteza provocadas pelas “balas perdidas” .
decorrente da estabilização da inflação em um patamar Todavia, em bora a sua presença esteja direta ou indireta­
baixo após 1994, o prosseguim ento da precarização das m ente relacionada com um aumento da “entropia social”
condições de trabalho registrada na década de 80 e o cres­ na escala da cidade com o u m todo, sobretudo no Rio de
cim ento preocupante do desem prego, associados à nova Janeiro (form ação de enclaves territoriais nas favelas, in­
conjuntura liberalizante e de reestruturação produtiva (ins­ crem ento da violência, estím ulo à auto-segregação das eli­
crita no contexto de uma reestruturação económ ica em tes, deterioração do “clim a social” ), seria erróneo supor
curso em escala m undial) afetam severamente a qualidade que o p ólo da ordem é estranho ao tráfico de drogas ilíci­
de vida dos pobres urbanos. Com isso, não apenas a ordem tas. A lém do nível de organização do próprio tráfico en­
sistémica básica (o próprio capitalismo em sua versão peri­ quanto atividade económ ica, há também o fato de que, in -
férica), mas tam bém a conjuntura de colapso de uma tem a m en te a cada favela , os traficantes representam um
determ inada form a de arranjo do sistema, provocando um fa to r d e ordem , assumindo as funções de estabelecer nor­
certo tipo de desordem tem porária rumo a uma nova mas d e conduta e julgar e reprim ir os transgressores dessas
ordem (ao nível do m odo de regulação e do regim e de acu­ normas (SOUZA, 1995a; 1996b). E isto, apesar de também
mulação) ainda mais excludente que a anterior e que com nas favelas o tráfico gerar tem ores, tensões, incertezas, de­
ela se vai mesclando bem à brasileira, contribuem , nos sordem (SOUZA, 1996b). Esta relatividade da ordem e da
marcos da influência de certos fatores culturais (fortaleci­ desordem rem ete a dois aspectos fundamentais para a aná­
m ento de valores consumistas, hedonistas e individualistas) lise social: de um lado, a im portância de se conjugar d ife­
e político-institucionais (corrupção policial), para o incre­ rentes escalas de análise quando do tratamento de um pro­
m ento do tráfico de drogas. Finalm ente, pode-se perceber blem a concreto (no caso específico da investigação sobre a
que singularidades locais vinculam-se estreitam ente a con­ dinâm ica e os impactos sócio-espaciais do tráfico de drogas
tingências históricas ou flutuações — logo, a uma dimen­ nas cidades brasileiras, da escala da favela até a internacio­
são de desordem — , as quais ajudam a explicar, por exem­ nal, passando pela escala da cidade/metrópole e a nacio­
plo, porque o R io de Janeiro, mais que São Paulo ou qual­ nal); d e outro lado, a constatação de que “ordem” e “desor­
quer outra m etrópole, se converteu no grande sím bolo na­ dem ” não são realidades simplesmente objetivas, mas sim
cional da violência associada ao tráfico de varejo. realidades que se constroem na relação sujeito/objeto. D e
O tráfico de tóxicos contribui decisivam ente, a partir acordo com o nível de análise com que o pesquisador este­
da década de 80, para piorar o quadro de esgarçamento do ja lidando em um determ inado momento, se a escala de
tecido social em diversas m etrópoles brasileiras — ou seja, uma favela ou a da m etrópole em seu conjunto, a faceta
para um tipo de desordem a nível local, sim bolizado pela que sobressairá poderá ser a da ordem, mais diretamente

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E XP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS A EXPULSÃO DO PARAÍSO

ligada à vivência dos m oradores de favelas, ou a da desor­ gresso social. Quanto ao segundo m ovim ento — a ordem
dem, fortem ente vinculada às percepções e tem ores dos em ergindo em m eio à desordem — , ele nos remete, por
moradores da “cidade legal” , do “asfalto”, e que term ina exem plo, à critica ao simplismo de enxergar no subproleta-
por ser o ângulo privilegiado pela mídia. riado apenas um “rebotalho”, e não também criação e retra-
A dinâmica sócio-espacial do tráfico de tóxicos serve balhamento de valores e cultura (do rap e do fu n k à banali-
perfeitam ente para ilustrar dois fenômenos fundamentais, zação da violência) e, enfim , ordem e organização, signifi­
na realidade dois movimentos circularmente interligados: o cando respostas, a nível m icro(favela), para os desafios deri­
surgimento de “desordem” a p a rtir da “ordem ” e o seu in­ vados em última análise da (des)ordem sistémica. Entre­
verso, o surgim ento de “ordem ” a p a rtir da “desordem”. tanto, considerando a questão da “ingovem abilidade urba­
Ambos os movimentos coexistem no interior de uma dada na” — preocupação legítim a de diversos setores da socieda­
realidade social e, em bora possuam uma indiscutível di­ de carioca, mas usualmente veiculada de maneira conserva­
mensão objetiva, facetas diferentes vão surgindo ante os dora, exagerada e até mesmo histérica — , verifica-se que, se
olhos do analista à m edida que ele se reporta a escalas dis­ por um lado um certo grau de desordem é condição de fle ­
tintas, da mesma m aneira que os próprios indivíduos envol­ xibilidade e capacidade adaptativa criadora a novas situa­
vidos extraem e desenvolvem percepções particulares a par­ ções, com o sugere Atlan em sua teoria da “ ordem a partir
tir de suas experiências sócio-espaciais concretas e suas do ruído” (A t l a n , 1992, cap. 3), a partir de um dado lim ite
situações sociais diferenciadas. D a mesma maneira que a a desordem pode revelar-se francamente disfuncional, ainda
ordem é algo relativo e carregado de subjetividade, e não que não necessariamente para todos os grupos e interesses.
alguma coisa com pletam ente exterior ao sujeito cognoscen- O caso do tráfico de drogas baseado em favelas é, ademais,
te (o que foi admitido inclusive por um cientista natural interessante por apontar, no âmago de interações com ple­
como ATLAN [1992, cap. 2 ]), uma vez que aquilo que é per­ xas, a multifacetada importância do espaço social: palco de
cebido com o “ordem ” p or alguns pode bem ser percebido relações sociais e arena de luta; referencial cultural, identi-
como “desordem” por outros, a desordem encarna, simulta­ tário e simbólico, e também um recurso (a localização e a
neamente, a angústia da dissolução de uma velha ordem e estrutura espacial labiríntica das favelas são bastante vanta­
as incertezas que acompanham a formação de uma nova. josas para os traficantes); produto social, mas também um
D o ponto de vista da teoria do desenvolvimento, uma fator de condicionamento das relações e imagens sociais.
possível conclusão é que o prim eiro movimento — ou seja, Pois bem : justam ente cientistas naturais, mais que
a ordem criadora de desordem — nos rem ete à crítica do muitos pesquisadores sociais, oferecem hoje discussões
etnocentrismo da apologia universalizante da ordem capita­ teóricas estimulantes a propósito das conexões entre or­
lista-ocidental como representando um paradigma de pro­ dem e desordem , discussões essas passíveis de serem, de

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EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS A EXP UL SÃO DO PARAÍSO

algum m odo, apropriadas por aqueles interessados em fe ­ que suas contribuições não podem ser sempre aplicadas
nôm enos sociais. M esm o um filósofo e sociólogo com o analogam ente a questões geográficas. Na Geografia E co­
E dgar M orin, cuja lembrança nos veríam os talvez tentados nóm ica trata-se, ademais, sempre de problemas em tom o
a evocar com o fito de se relativizar a afirmação preceden­ de sistemas auto-referenciados, onde indivíduos refletem
te, pois ele vem há vários anos chamando a atenção tam ­ sobre os objetivos e o sentido de suas ações.” (RlTTER,
bém dos cientistas sociais para a importância m etodológica 1991:101)
sem inal da interação entre ordem e desordem , mostrando
com o esta pode ser profundam ente criadora (vide M O R IN , Voltar-se-á a esse tipo de alerta na próxima seção.
s/d-a) — mesmo M orin tem buscado sua inspiração nas
pesquisas e reflexões no cam po das ciências naturais. N ão
são, portanto, exageradas as palavras de Dupuy, quando ele Sinergética: perspectivas de uma apropriação crítica
d iz que as ciências sociais “ estão a reboque” (D U P U Y , pela pesquisa social
1990:59).
Seja com o for, é im portante reconhecer que o estí­ O últim o tem a se refere à Sinergética de Hermann
m ulo oriundo das ciências naturais renovadas precisa ser Haken, a “Lehre vom Zusammenwirken” (= doutrina do
sem pre criticam ente encarado e filtra d o pelos pesquisado­ agir em conjunto). M uito em bora Haken não admita a exis­
res sociais. A própria questão de uma dialética entre tência de precursores de seu enfoque (com o o sociólogo
ordem e desordem é algo que se coloca de maneira plena­ L ester W ard), nem com preenda que os processos sociais
m ente apropriada apenas no campo social, uma vez que a não podem ser tratados com o mesmo rigor formal que os
dialética — repetindo M erleau-Ponty ao exorcizar uma processos físicos, a Sinergética pode ser útil no sentido de
certa dimensão “positivista” do marxismo, no estilo da “dia­ recolocar na ordem -do-dia o im perativo epistemológico e
lética da natureza” de Engels (M E R L E A U -P O N T Y , 1975) — m etodológico de recusa da monocausalidade nas explica­
não é independente do sujeito cognoscente, ou seja, da sig­ ções d e problem as sociais complexos, por exemplo, o cha­
nificação atribuída pelo sujeito à “ordem ” e à “desordem ” . mado “ subdesenvolvim ento” : necessidade de articulação
Tem razão W igand Ritter, por conseguinte, ao ponderar, mais consistente entre as dimensões económica, política e
preocupado com aplicações no campo da G eografia E co­ cultural, além dos condicionamentos espaciais relativos;
nómica, que com preensão dos ritmos diferentes dos processos (p. ex.,
atritos entre as dimensões económica e cultural), e sua
“ [a] teoria das estruturas dissipativas foi (...) construí­ confluência histórica no bojo de uma complexa dialética
da a partir de sistemas físicos e biológicos. Isso significa entre fatores endógenos e exógenos. A abordagem da Si­

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E X P L O R A Ç Õ E S CEOCRÁFI CAS A EXPULSÃO DO PARAÍSO

nergética possui, m a lgré o antifilosófico Haken, uma evi­ tões d o “caos” e da dialética entre ordem e desordem em
dente afinidade com o velho princípio dialético de que “o uma abordagem coerente e útil à investigação social.
todo é maior que a som a das partes” . Enquanto este princí­ Faz-se mister, porém , saber separar o jo io do trigo na
pio permite, porém, ser lido de m odo simplesmente “estru­ contribuição de H . Haken, sob o ângulo da pesquisa social.
tural” — por exem plo, ao admitir-se que a totalidade (que Para explicar o que é auto-organização Haken recorre, em
pode ser uma formação sócio-espacial determinada), e não uma d e suas obras (HAKEN, 1983), inicialm ente ao exem ­
uma simples justaposição das partes, faz com que certos p lo de um grupo d e operários. E le principia pela caracteri­
processos venham a te r lugar — , a Sinergética sugere fluxos zação do que é organização-.
diferentes, processos distintos correndo paralelamente no
tem po e com durações e ritmos variáveis, mas eventual­ “ Consider, fo r example, a group o f workers. W e then
m ente ou a partir d e um determ inado momento interagin­ speak o f organization or, m ore exactly, o f organized beha-
do uns com os outros, propiciando fenômenos em ergentes vior i f each w orker acts in a w ell-d efin ed way on given
ao nível do todo. externai orders, i.e., b y the boss. It is understood that the
Um exem plo de aplicação do raciocínio sinergético ao thus-regulated behavior results in a join t action to produce
dom ínio social-histórico seria a explicação das causas do som e product.” (p. 191)
agravamento da “questão urbana” no Rio de Janeiro na
esteira em grande parte do increm ento do tráfico de tóxi­ E , logo a seguir, na mesma página:
cos, a partir dos anos 80: uma explicação consistente terá
de articular um grande número de fatores, operando em “W e w ould call the same process as being self-organi-
escalas espaciais diferentes, da internacional à local; fatores zed i f there are no externai orders given but the workers
com temporalidades distintas, e alguns deles com portando- w ork togeth er b y som e kind o f mutual understanding, each
se como determ inações sistémicas, enquanto que outros doin g his job so as to produce a product.”
aparecem com o flutuações. Fatores, por fim , que tanto
podem indicar um m ovim ento que vai da ordem à desor­ N o entanto, a pergunta realm ente relevante é: de on­
dem, como um m ovim ento que vai da desordem à ordem. de vem e com o se dá esse “m utual understanding”? A res­
Pode-se verificar, assim, que a visão de uma sinergia positi­ posta a esta pergunta é o que elucida a dinâmica do grupo,
va, gerando uma situação nova (às vezes inteiram ente ines­ rem etendo a questões tão complicadas quanto as relações
perada), ou a ultrapassagem de um lim ite crítico com base entre o im aginário social, as modalidades de cooperação
na confluência e no reforço mútuo de n processos distin­ interindividual, o tip o de organização política, as formas de
tos, oferece inclusive a possibilidade de se integrar as ques­ produção etc. — e essa resposta, contrariam ente ao que

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E XP L ORA ÇÕES GEOCR Á F I CA S A EXP UL SÃ O DO PARAÍSO

desejaria qualquer físico, não é form alizável. “Auto-organi- to físico ou inesgotáveis p or referência a elementos “reais”
zação” de um sistema na Física possui uma conotação dis­ e “ racionais” (D eus, pecado, justiça...), é passível de “eluci­
tinta e m enos com plexa que “ auto-instituição” (ou auto- dação” e discussão através d o recurso a modelos verbais
criação) do Social em C A S T O R IA D IS (1975; ver, tam bém, (textos), mais abertos a sutilezas, mas é avesso a esquema-
C A S T O R IA D IS , 1986 e 1990b); mas é precisam ente a “auto- tism os gráficos ou matemáticos. N o campo social, comple­
instituição” que coloca os problem as verdadeiram ente in­ xidade quer d izer m uito mais que meramente não-lineari­
teressantes. E não se trata apenas de que, com o diria H a­ dade: quer dizer, para usar o term o castoriadiano, uma si­
ken, os “ subsistemas” do “sistema” sociedade (isto é, os in­ tuação d e “ magma” , com significações que rem etem a ou­
divíduos) são demasiado com plicados para que se possa tras significações, inesgotavelm ente, indefinidamente (no
com preender sua dinâmica em detalhes — o que, para duplo sentido de sem fim e sem definição absoluta). A isso
Haken, não im pediria o conhecim ento da dinâm ica ma­ deve-se adicionar a questão (igualm ente posta por CASTO-

croscópica (g era l) do sistema, inclusive a sua form alização R IA D IS [1986: 235-6]) do caráter conservador da “auto-
dentro dos cânones daquilo que o físico alemão denom ina organização” no caso de sistemas físicos, químicos ou bio­
d e “ Sinergética fenom enológica”, com a possibilidade de lógicos. N o caso de um sistema natural, a auto-organização
simulações e (!) predições (H A K E N & W U N D E R L IN , 1991: se perpetuará até que a “ fadiga d o material” atinja um limi­
241-247). te crítico, ocorra um acidente de comunicação ou uma for­
C onform e sublinha C A S T O R IA D IS (1975, 1986), não é ça externa bloqu eie o processo ou mesmo destrua o siste­
lícito reduzir o Social à sua face “distinta e definida” , for­ ma. Isto se dá porque um sistem a natural não possui verda­
m alizável — “id entitário-conjuntista” (identitaire-ensem - deiras contradições internas (não se fala, aqui, da “compe­
b liste), para usar as suas palavras — , muito em bora essa tição” entre “parâmetros de ordem ” [Ordnungsparameter,
face seja uma parte real dele (e é através dela que se pode o rd e r param eters], no sentido da Sinergética, mas de efeti­
dar o diálogo com as ciências naturais). É válido form alizar vas contradições dialéticas). A sociedade, contudo, as pos­
esta face; entretanto, querer form alizar a dimensão im agi­ sui, conform e já se fe z notar anteriorm ente — o que, diga-
nária — o “magma de significações imaginárias sociais” de se de passagem, demanda uma correspondente flexibiliza-
que fala Castoriadis — é um absurdo. Diversam ente de ção da idéia de “atrator”, para fins de aplicação ao domínio
um sistema natural, cada sociedade cria uma trama de sig­ social-histórico. O que poderia significar, assim, uma socie­
nificações para representar a si mesma e o mundo, trama dade enquanto sistema auto-organizado total? Decerto se­
essa que, por sua vez, estabelece o caldo de cultura onde ria uma sociedade onde a possibilidade de questionamento
são socializados os indivíduos. O processo histórico de cria­ a p a rtir de dentro estaria irrem ediavelm ente interditada,
ção de significações, inclusive de significações sem correla­ pelo peso esmagador da repressão ou, mais efetivamente

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EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFICAS A EXPULSÃO DO PARAl SO

ainda, do próprio imaginário; uma sociedade onde o con­ que nós observamos é a em ergência de uma nova significa­
junto dos indivíduos teria a sua dinâmica plenam ente “ es­ ção im aginária social: a expansão ilim itada da m atriz ‘ra­
cravizada” (versklavt) por “parâmetros de ordem ” sócio- cional’ (que se instrumenta, para começar, na expansão ili­
político-culturais, para usar duas expressões de Haken que, mitada das forças produtivas), simultaneamente com a atua­
involuntariamente, pintam já um quadro de horror. Seria, ção de um grande número de fatores de extrema diversida­
em suma, uma sociedade ultratotalitária, com o a do “ 1984” de. Ex post, e uma vez que estamos de posse do resultado,
de Orwell. Um a tal sociedade representaria exatamente o não podem os deixar de admirar a sinergia [grifo de Cas­
máximo em m atéria de heteronom ia, no sentido de Casto- toriadis] (incrível e enigm ática) desses fatores em ‘produ­
riadis (C A S T O R IA D IS , 1986: 236; ver, também, C A S T O R IA - zir’ uma forma, o capitalismo, que não fo i ‘pretendida’ por
D IS , 1983; 1990a). É conveniente, por conseguinte, m ode­ nenhum ator ou grupo de atores, e a qual decerto não p o­
lar o Social sistemicamente, por razões didáticas e, em par­ deria ser ‘construída’ por m eio da reunião aleatória de ‘ele­
te, heurísticas (considere-se, por exem plo, o valor de siste- m entos’ preexistentes.” (C A S T O R IA D IS , 1986: 234)
mogramas, ou diagramas sistémicos, tanto para a transmis­
são de conhecim entos quanto para o ordenam ento do ra­ Sem em bargo, a fonte de inspiração de Castoriadis
ciocínio) — desde que se tenha consciência, todavia, de decerto não fo i a obra de Haken... A Sinergética hakenia-
que essa m odelagem é e sempre será perigosa, por conti- na, aplicada a um sistema físico, quím ico ou biológico, for­
nuamente seduzir o intelectual a pensar que ela esgota a nece uma analogia deveras interessante, e tão mais interes­
questão da natureza da realidade social, quando na verda­ sante quanto mais renitentes forem os teóricos do desen­
de ela mal dá conta do seu “esqueleto” (isto é, da sua d i­ volvim ento das sociedades em se aferrarem a esquemas
mensão conjuntista-identitária). interpretativos monocausais. Um a vez aplicada a Sinergé­
Vale a pena notar, por fim , que o próprio Castoriadis tica à sociedade à maneira de Haken, porém , o tiro pode
não se furta a um raciocínio explicitam ente sinergético, ao sair pela culatra, e ao invés de com plexidade estar-se-á di­
comentar, em um ensaio sobre o dom ínio social-histórico, ante de mais um reducionismo. Em resumo: a idéia de si­
o processo de génese do capitalismo moderno: nergia, sim, ela nos é útil — mas não especificamente em
sua versão hakeniana.
“ Nós não observamos na Europa Ocidental, entre, d i­
gamos, os séculos X II e X V III, uma produção ‘aleatória’ de
um número im enso de variedades de sociedades e a elim i­
nação de todas elas, menos uma, por serem ‘inaptas’, e a
seleção do capitalismo com o a única form a social ‘apta’ . O

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EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS A EXPUL SÃO DO PARAÍSO

Conclusão voluções sociais (ver HAKEN, 1990), para se ganhar um co­


nhecim ento qualitativamente superior, é um delírio retró­
As páginas precedentes revelaram — o autor de bom grado. Um delírio, a propósito, positivista, tributário da ve­
grado reconhece — uma reflexão em estado ainda em brio­ lha arrogância mais ou menos redutora da realidade social à
nário, e além disso uma reflexão que tenta ser cautelosa. A biológica (e, em última instância, à física). Mas... não seria
intenção fo i m eram ente a de destacar alguns exem plos de esta inclinação (este vício), presente em muitos cientistas
possibilidades de releitura de problemas sociais, com vistas naturais (LEW IN [1994] oferece vários exemplos, lamenta­
a uma crítica construtiva das teorias do desenvolvim ento, velm ente endossando-os) e incorporado por outros tantos
articulando novos conceitos e term inologias (inspirados, cientistas sociais, justamente contraditório com o verdadei­
originalm ente, em contribuições das ciências naturais) com ro espírito da complexidade, conform e sintetizado por Ed­
certas tradições da Filosofia e das ciências sociais, notada- gar M orin na passagem citada na introdução deste artigo?
m ente retom ando o fio do pensamento dialético — o qual Seja com o for, a despeito de todas as ressalvas, obje­
não deve ser confundido com ou reduzido ao pensam ento ções e advertências, o diálogo com as ciências naturais se
marxista. afigura necessário. Estamos sendo expulsos do aparente
O desafio, é fácil perceber, é múltiplo, e não simples: paraíso das explicações reducionistas, e as ciências naturais
não apenas o desafio de abrir-se ao novo, mas o de discer­ renovadas estão a jogar um certo papel nessa expulsão. Só
nir as múltiplas raízes desse novo, relativizando assim a sua que, ironicam ente, o ganho mais importante nesse diálogo
novidade. Com isto corre-se o risco de bancar o desm an­ não é aquilo que os cientistas sociais (teóricos do desenvol­
cha-prazeres para quem pensa ter descoberto a pólvora, vim ento incluídos) podem propriam ente “aprender” com
especialm ente se esse tipo de relativização é com plem enta­ os naturais (m entalidade que já conduziu a várias aberra­
do p or uma exigência de serenidade com o a que, aceitando ções), mas sim o fato de que o exem plo dos cientistas natu­
e buscando o diálogo com o Outro (com as ciências natu­ rais recordará aos cientistas sociais que estes conseguem,
rais), ao mesmo tem po repudia qualquer tentativa de negar muitas vezes, ser mais “sim plificadores” que aqueles... A fi­
a especificidade do M esm o (das ciências sociais e, na base, nal, som ente as próprias ciências sociais poderão definir o
do seu objeto, a sociedade). O autor do presente ensaio que, em seu âm bito, caracteriza a “complexidade" — vale
não crê, contudo, existir neste caso alternativa razoável dizer, a singular com plexidade do seu objeto inconfundível,
para uma significativa prudência. Errar é humano, persistir a sociedade.
no erro é tolice; imaginar que basta que esquemas analíti­
cos com o a Sinergética sejam aplicados de maneira form al
aos mais diferentes objetos, por exemplo, no estudo d e re­

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EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFICAS A EXPULSÃO DO PARAÍSO

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86
AS ABORDAGENS DA
G e o g r a f ia C u l t u r a l

Paul C laval*

A geografia cultural está associada à experiência que


os homens têm da Terra, da natureza e do ambiente, estu­
da a m aneira pela qual eles os m odelam para responder às
suas necessidades, seus gostos e suas aspirações e procura
com preender a m aneira com o eles aprendem a se definir, a
construir sua identidade e a se realizar.
A geografia cultural dem orou m uito para se consti­
tuir, uma vez que ela necessita, para se desenvolver, que a
disciplina não seja som ente uma ciência natural de paisa­
gens e de regiões, com o o era no com eço do século, e que
não se reduza à análise dos mecanismos que perm item às
sociedades funcionar, triunfando sobre o obstáculo da dis­
persão e da distância, segundo os esquemas que prevale­
ciam nos anos 1960. É preciso que ela se tom e uma refle­
xão sobre a geograficidade, ou seja, sobre o papel que o

* Traduzido do francês po r Paulo Cesar da Costa Gomes.


EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS AS ABORDAGENS DA G E O C R A F I A CULTURAL

espaço e o m eio têm na vida dos homens, sobre o sentido dem os reencontrá-la na idéia d e força determinante das
que eles lhes dão e sobre a maneira pela qual eles os utili­ culturas utilizada por Pierre Gourou ão longo de toda a sua
zam para m elhor se com preenderem e construírem seu ser carreira.
profundo. As idéias de Eric D ardel, que foi o prim eiro a Existe uma outra maneira, entre os geógrafos france­
lutar por esta concepção verdadeiram ente humana da geo­ ses, de explorar os fatos da civilização: estudar os traços
grafia, levaram mais de vinte anos para serem reconheci­ culturais, sua distribuição e a marca que eles imprimem na
das: as m entalidades não estavam suficientem ente maduras paisagem. Este estilo de análise foi posto em prática por
para a mudança radical na concepção da disciplina com o Jean Brunhes e desenvolvido p or P ierre Deffontaines. Deu
ele recomendava. origem a monografias apaixonantes que, no entanto, ábor-
D izer que a geografia cultural só pôde se desenvolver dam a cultura pelo exterior e se recusam a realizar o ques-
recentem ente não quer dizer que este dom ínio tenha per­ tionam ento das representações e dos valores que levam as
m anecido ignorado pelos pesquisadores. Eles o aborda­ pessoas a agirem de uma certa maneira ao invés de outra, a
vam, mas não dispunham dos meios necessários para anali- organizar o espaço segundo um m odelo ao invés de outro.
sá-lo em todas as suas dimensões. As abordagens que prati­ Pierre D effontaines aborda a geografia religiosa através das
cavam eram sem pre parciais. Alguns exem plos o mostram marcas que esta im prim e nas paisagens (igrejas, mesquitas,
m uito bem : na França, no com eço do século, a noção de santuários, tem plos, cruz etc.) pelos obstáculos que ela im ­
gênero de vida tem uma dimensão ecológica, naturalista; põe a certos gêneros de vida (obrigação do jejum na sexta-
ela serve prim eiram ente para mostrar com o os grupos se feira, interdição do álcool e do consumo da carne de porco,
adaptam ao am biente. Ela tem tam bém, entretanto, uma por exem plo), e pelos gêneros de vida que ela faz nascer (o
dimensão social e cultural: com o nota Vidal de la Blache, a dos padres ou dos monges). A religião não é nunca tratada
força do hábito tom a-se tão forte que o grupo humano p er­ nela mesma (D E F F O N T A IN E S , 1948).
de sua plasticidade. A o invés de se adaptar ao m eio, ele Nos Estados Unidos, C ari Sauer se interessa pelas
procura m odificá-lo para perm anecer com seus hábitos: transformações que a cultura im põe aos ambientes natu­
observa-se por ocasião das migrações; os recém -chegados rais. E le estuda as paisagens para dimensionar com o o ho-
em um país fazem em geral de tudo para continuar a viver m en m odifica, de forma mais ou menos profunda, o que ele
com o eles o faziam em seus países de origem . V idal de la encontra, instalando-se em m eios ainda naturais (SAUER,
Blache, que faz do gênero de vida um dos eixos da geogra­ 1963). Aqui ainda a abordagem é exterior.
fia humana que ele elabora, é, desta forma, o prim eiro a * A geografia cultural de língua alemã se interessa tam­
sugerir que ele pode ter uma dimensão cultural. A idéia bém pela paisagem. Ela estuda a presença de traços cultu­
está presente em muitos trabalhos da escola francesa. P o­ rais, à maneira de Jean Brunhes, o recuo da floresta e de

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E X P L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS AS ABORDAGE NS DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

outras formações naturais diante do machado dos cultiva­ A geografia cultural parte das sensações e das
dores e das queimadas repetitivas dos criadores de gado. representações
Ela se interessa, tam bém, pela harmonia profunda que se
observa, às vezes, entre a organização do espaço, os traços O hom em apreende o mundo através dos seus senti­
visíveis da paisagem e a alma do povo que a m odelou dos: ele observa as formas, escuta os barulhos e sente os
(A N D R E O T T I, 1994; 1996). odores daquilo que o envolve. Os m ovim entos do seu cor­
A geografia cultural moderna, ao fazer do hom em o po constituem uma experiência direta do espaço. O gosto
centro de sua análise, fo i obrigada a desenvolver novas abor­ lhe revela, quando ele com e ou bebe, outras propriedades
dagens. Ela se construiu em tom o de três eixos que são do m undo que o envolve. O hom em age prim eiram ente
igualmente necessários e complementares: prim eiro, ela em função das indicações que ele recebe dos seus sentidos.
parte das sensações e das percepções; segundo, a cultura é As sensações são uma apreensão do real, mas só se
estudada através da ótica da comunicação, que é, pois, com ­ tornam seguras quando assumem uma form a estável. Isto
preendida com o uma criação coletiva; terceiro, a cultura é ocorre quando se superpõe à sensação uma percepção. Os
apreendida na perspectiva da construção de identidades, homens quase sem pre ouviram falar d e lugares que eles
insiste-se então no papel do indivíduo e nas dimensões sim­ abordam antes de os pisarem, de m odo que seu olhar não é
bólicas da vida coletiva. mais perfeitam ente novo. Sua experiência é guiada p or
aquilo que eles aprenderam ao escutarem as pessoas em
tom o deles e discutindo com elas. A geografia que estuda
Os três eixos da análise geográfica da cultura grupos humanos se detém nos discursos e nas representa­
ções que os codificam , uma vez que estas últimas traduzem
Até os anos 1960, o desenvolvim ento da geografia cul­ maneiras de v e r padronizadas.
tural esteve arrefecido pela sua recusa de se afastar da pai­ As representações que o indivíduo recebe através de
sagem ou dos artefatos e por se interessar pelo que se passa sua educação, que ele aprende no contato com outros, que
no espírito das pessoas. Este bloqueio diminuiu hoje em ele constrói e que reinterpreta, constituem um universo
dia. Por se interessar prim eiram ente pelos homens, os estu­ mental que se interpõe entre as sensações recebidas e a
dos podem hoje ir m uito mais longe do que no passado. im agem construída em seu espírito. As representações fo r­
necem malhas para apreender o real. Elas perm item su­
perpor ao aqui e ao agora os algures, que são sociais, geo­
gráficos ou m etafísicos. Elas dão assim origem a valores e
instituem uma ordem normativa.

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E XP L ORA ÇÕES CEOGRÁFI CAS AS A B OR DA C E N S DA G E O G R A F I A CULTURAL

Os homens não agem em função do real, mas em naturais do corpo, de m odo que se adquire, ao manipulá-
razão da im agem que fazem dele. Aproxim ar-se da geogra­ los, o know how daqueles que os conceberam. As mídias
fia cultural é, antes de mais nada, captar a idéia que tem os modernas perm item as trocas orais e a aprendizagem pela
do am biente próxim o, do país e do mundo. É se interrogar im itação dos gestos. Elas substituem mal a escrita para a
em seguida sobre a maneira com o as representações são veiculação das idéias abstratas (M cLU H A N , 1968).
construídas, sobre o seu papel no m odelam ento do real e As inform ações que com põem as culturas transitam
sobre sua perm anência, sua fragilidade e as reações que sem cessar de indivíduo para indivíduo. Elas passam de
provocam . uma geração a outra, de m odo que a sociedade permanece
ainda que seus velhos desapareçam e sejam substituídos pe­
los jovens. Elas circulam entre vizinhos, entre amigos, entre
A d im ensão c o le tiv a : a cu ltu ra deve s e r estudada sob a parceiros de trabalho ou de negócios. Cada um recebe, ao
ó tic a da co m u n ica çã o longo dessas trocas, know how , conhecimentos e descobre
atitudes e crenças que lhes eram estranhas; retém-se e inte­
O estudo da dimensão coletiva dos fatos culturais fo i rioriza-se uma parcela mais ou menos larga.
renovado pelos progressos da linguística e da teoria da O conteúdo das mensagens trocadas não pode geral­
comunicação. A cultura é feita de inform ações que circu­ m ente ser com preendido fora d o contexto onde se encon­
lam entre os indivíduos e lhes perm item agir. Códigos ser­ tram os parceiros. Os jovens citadinos aprendem o que é o
vem para organizá-los ou para trocá-los. centro de sua cidade sem que isto jamais lhe tenha sido
As inform ações que constituem a cultura concernem o explicado: eles vislumbram o term o associando-o a um cer­
am biente natural no qual vivem os homens, a maneira de to bairro, ao com ércio, aos bares ou aos bancos que ali se
produzir alimentos, energias e matérias-primas, assim com o encontram. Assim, o que eles adquirem só é válido dentro
as formas de construir instrumentos e de em pregá-los para dos lim ites do grupo de intercom unicação ao qual eles per­
criar ambientes artificiais. As informações que constituem a tencem (S t a s z a k , 1997).
cultura tratam em seguida da sociedade, da natureza, dos Esta perspectiva sublinha que a cultura é antes uma
laços que unem seus membros e das regras que devem ser realidade de escala local: de um círculo de interação a ou­
respeitadas nas relações que se estabelecem. tro, trocas têm lugar; equivalências se desenvolvem, de mo­
Essas inform ações se transmitem pela observação e do que a comunicação seja possível, porém nem tudo é
im itação, pela palavra ou pela escrita. Os instrumentos transmitido. N ão existe com preensão real dos processos cul­
têm , assim, um papel importante neste dom ínio: eles foram turais se negligenciarm os o jo g o da intersubjetividade.
concebidos para guiar os gestos e tirar partido dos ritmos

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EXP L ORAÇÕES CEOGRÁFI CAS
AS A BORDAGENS DA GEOGRA FI A C U L T U R A L

A dim ensão in d iv id u a l: a cu ltu ra fo r ja identidades não se pode alcançar, ou em um futuro indefinido da


U topia. O mundo real é duplicado p or mundos imagina­
Assim concebida, a cultura não aparece com o uma dos, que são indispensáveis para lhe dar sentido e apare­
totalidade que encontraríamos identicam ente em todos os cem freqíientem ente com o mais autênticos do que aqueles
membros de uma sociedade, com o poderia ser o caso de que nossos olhos desvelam. Esses algures afloram em cer­
um mesmo software im plantado em milhares de computa­ tos lugares. Eles transformam a sua natureza: ao universo
dores. Ela resulta de um processo de construção sem fim , profano do mundo ordinário se opõem as praias sagradas
levado a cabo pelos indivíduos. que manifestam aqui embaixo a existência desses algures
É ao longo da infância que a acumulação de know (E l ia d e , 1965).
how, de conhecimentos, de preferências e de crenças tom a A cultura incorpora, assim, valores. Estes têm uma tri­
forma: o jovem aprende a falar, a se deslocar e a agir den­ pla finalidade: prim eiro, guiar a ação, inscrevendo-a em um
tro do meio familiar; mais tarde, ele é submetido à apren­ quadro normativo; segundo, sublinhar a especificidade de
dizagem, ou vai à escola. tudo que é social, alçando a uma dignidade superior o que
A acumulação de inform ações estruturadas que resul­ passa p or procedim entos de institucionalização, e, terceiro,
ta deste processo tem p or objetivo dotar cada um da baga­ dar um sentido à vida individual e coletiva.
gem de conhecimentos indispensáveis para trabalhar e A form ação dos indivíduos term ina quando eles inte­
para se integrar à sociedade. A cultura, no entanto, não se riorizam o quadro de valores que os insere em um destino
resume a isto: ela serve para dar um sentido à existência coletivo. Esta etapa im portante dá lugar a ritos de passa­
dos indivíduos e dos grupos nos quais eles estão inseridos. gem no m om ento da adolescência (E R K S O N , 1972). É nes­
As informações que circulam nas células do corpo social te m om ento que a institucionalização do indivíduo term ina
comportam narrativas que contam a origem do mundo, o e que e le tem acesso ao mundo social pleno, o dos adultos.
prim eiro homem e a constituição da sociedade; elas inse­ E le adquire uma identidade que lhe dá um estatuto no gru­
rem a existência de cada um em um destino coletivo e lhe po e o faz existir face às outras coletividades.
dão uma significação. O processo de interiorização e de reconstrução indivi­
As perspectivas necessárias aos indivíduos para que dual da cultura não pára na adolescência. Possibilidades de
suas vidas não pareçam inúteis são abertas pela tomada em adquirir novos conhecimentos, de dom inar novas técnicas,
consideração do algures, de onde as coisas podem ser vis­ de experim entar novos valores se oferecem perm anente­
tas com recuo: eles podem estar situados para além do céu mente. Os empréstimos se sucedem, mas alguns são recu­
ou da razão, ou aqui embaixo, mas nos tem pos recuados da sados, pois colocariam em perigo a identidade individual e,
Idade do Ouro, em uma Terra sem M al tão afastada que numa outra escala, a estrutura do grupo. Para aqueles que

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EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS AS ABORDAGE NS DA G E O G R A F I A C UL T URA L

não se detêm diante dos obstáculos experim entam fases de A p reen sã o d o m u n d o atra vés dos sentidos
crise e de reconstrução do eu, freqiientem ente difíceis;
elas precedem e acompanham as conversões. N o nível Se a geografia cultural se dedica à experiência que os
coletivo, as bases morais sobre as quais a sociedade está homens têm do mundo, da natureza e da sociedade, ela
edificada podem ser transformadas, mas ao preço de revo­ deve partir daquilo que os seus sentidos lhes revelam. Os'
luções que são sem pre duras de viver, mesmo que elas não estudos não faltam a este com promisso, mas eles se detêm
sejam acompanhadas por revoltas, massacres ou guerras quase exclusivamente sobre a visão. O olhar que os ho­
civis. mens projetam sobre o am biente obteve a atenção dos
O processo de institucionalização não diz respeito geógrafos, uma vez que é ele que perm ite estruturar o
som ente ao indivíduo e à sociedade. E le se aplica aos siste­ espaço, de opor o próxim o ao distante, de distinguir planos
mas de relações cada vez que estes concernem à riqueza, escalonares e perceber a realidade em múltiplas escalas —
ao poder, ou ao prestígio e interferem por isso no funciona­ é sobre esta propriedade que se baseia toda a orientação
m ento da sociedade. A abordagem cultural tom a-se, assim, geográfica.
indispensável para com preender a arquitetura das relações Mas o olho não é um instrum ento neutro: o que nós
que dominam a vida dos grupos. Ela renova a geografia vem os nos agrada, nos em ociona, nos amedronta. O olhar
social. Ela ilum ina a vida económ ica à m edida em que p õe participa da experiência que tem os dos lugares e de suá
em evidência os objetivos perseguidos pelas famílias e dimensão em otiva — por vezes estética.
pelas empresas: suas lógicas dependem da maneira com o A audição não tem a mesma significação: ela fornece
elas estão estruturadas e dos valores que as guiam. apenas uma id éia im perfeita da geom etria do mundo; ela
inform a sobre a direção de onde provêm os sons que per­
cebem os, mas só traduz aproxim ativam ente suas distâncias.
As abordagens culturais: cultura e relações A passagem do agudo ao grave denota, ao contrário, o
com o espaço m ovim ento. O am biente sonoro faz parte da imagem que
guardamos dos lugares. A lem brança mais forte que guar­
Os geógrafos tiram partido destas orientações recen­ damos deles é, no entanto, freqiientem ente dada pelo olfa­
tes da reflexão (C laval, 1992; 1995; FOOTE et a lii, 1993) to: não esquecem os o odor dos maquis da Córsega na pri­
para com preenderem com o a cultura define o espaço. mavera, o odor do feno grego nos campos da África do
N orte ou, ainda, da terra depois da chuva de abril, o odor
do feno recém -cortado ou o perfum e dos campos de lavan­
da no vapor do mês de julho.

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E X P L O R A Ç Õ E S GE OG RÁ F I CA S AS A BO R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

A experiência do gosto é menos diretam ente associa­ das en tre nosso m undo e o O utro m undo, passa p elo cen­
da aos lugares: a terra não é degustada, só raram ente se tro d o espaço terrestre. C erta m ontanha é sagrada e é a
mastiga plantas selvagens. E ntre os sentidos, o paladar é o partir d ela que o sistem a do m undo se ordena — pense­
mais socializado (PlTTE , 1991). É através dele que fazem os mos no m onte M éru (E LIAD E, 1965).
a experiência do cru e d o cozido, daquilo que separa os
homens das espécies animais. Os sabores e os odores dos
alim entos consumidos durante a infância estão associados à C ultura e dom ínio da natureza
im agem do país natal, da fam ília e das tradições que rep re­
senta. A cultura não fala som ente do espaço; ela fala tam ­
bém da natureza. E la o tom a sim ultaneam ente com o um
m eio a dom inar para extrair aquilo que é necessário à exis­
A estruturação do espaço tência e com o um conjunto carregado d e sentidos.
O s hom ens tiram de seu am biente aquilo que eles
O espaço que percebem os é codificado p or categorias têm necessidade. E les procedem pela coleta (o que supõem
que perm item estruturá-lo: e le é ordenado em relação a que eles reconheçam , entre as dezenas ou centenas d e
um ponto de origem e às direções, o que perm ite situar os espécies, aquelas que são nutritivas, aquelas que são vene­
lugares uns em relação aos outros. Se a observação funda­ nosas, aquelas que fornecem fibras etc.), pela pesca ou p ela
m ental se d er à beira de um rio que fixa as orientações, a caça (o que im plica um inventário detalhado da fauna ter­
montante, a jusante e perpendicularm ente, direm os que restre ou aquática), p elo pastoreio (qu e se baseia na domes­
para atingir tal lugar é necessário subir o rio três horas, ticação d e uma ou várias espécies animais, no conhecim en­
depois andar duas horas perpendicularm ente ao seu curso, to de suas necessidades alimentares, seus deslocamentos
a sua esquerda. Se as direções são astronómicas se dirá que necessários para aproveitar as áreas d e pastagens nos m o­
a cidade B está a cinco léguas ao norte e dez léguas a leste m entos mais favoráveis e no recurso ao fogo para aumentar
da cidade A . Às direções se acrescentam as indicações de ou regenerar as zonas de percurso) e p ela agricultura. N es­
altitude. É preciso subir ou descer, para ir d e tal ponto a te últim o caso, os grupos aprenderam a cultivar, a conservar
outro (P a u l -LÉVY, SÉGAUD, 1983). e a consum ir certas espécies. Antes d e sem ear ou de plan­
N a m aior parte das sociedades, os pontos cardeais e o tar, eles prepararam as terras utilizando recursos frequente-
alto e o baixo estão conotados d e valores: o norte é m aléfi­ m ente com plexos. Cada uma dessas operações im plica o
co; a oeste se encontra o R ein o dos M ortos; o eixo do m un­ uso d e instrumentais variáveis.
do, pelo qual se estabelecem as comunicações mais côm o­ O dom ínio d o m eio só é possível porque os homens

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EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFICAS AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

souberam se cercar de um universo instrum ental que os geografia no com eço do século — e os símbolos de sua
perm ite trabalhar a terra, efetu ar as colheitas e preparar, a identidade.
partir d e m atérias-primas disponíveis, os artigos do qual O s hom ens inscrevem , nos m onumentos que erigem
eles têm necessidade para o consumo. e nas inscrições que fazem aqui e ah, a ordem de significa­
O dom ínio do m eio se baseia tam bém na criação d e ções qu e os m otivam . Para James Duncan, por exem plo, a
am bientes artificiais — a roupa, que p rotege das intem pé­ paisagem p od e ser fida com o um texto (D U N C A N , 1990).
ries, e a casa. E n tre as criações da cultura, a paisagem é a que retém
A geografia das técnicas constituía no com eço do nos­ m aior atenção, pois lança-se sobre ela um novo olhar.

so século o capítulo mais p rofícu o dos estudos culturais. Augustin B erque tenta com preender os sentidos que
os grupos dão ao seu am biente (B E R Q U E , 1986; 1993).
Baseado sobre práticas m uito mais do que sobre saberes
Suas análises tratam do par hom em /m eio e sobre as paisa­
padronizados, o universo instrum ental variava m uito pou­
gens on de ele se m anifesta (B E R Q U E , 1990). E le forja no­
co. O progresso cien tífico e a facilidade das com unicações
vos conceitos para m elhor apreender este dom ínio, com o o
apagaram a diversidade d e outrora. A análise das técnicas
de m esologia, “ ciência dos m eios que não são só objetivos,
tradicionais continua, entretanto, a fascinar um grande
mas vividos pelos sujeitos” . Sua idéia m estre é a de que
núm ero d e geógrafos — m esm o porque os contrastes na
a natureza é sem pre com preendida em uma perspectiva
m aneira de se vestir, de se equipar, d e habitar, estão reva­
cultural.
lorizados em uma época onde a geografia tende à unifor­
D enis C osgrove d ecifra os m odos de produção sim­
m idade.
bólicos específicos das sociedades pré-capitalistas e capita­
listas em seus trabalhos sobre a iconografia da paisagem
em V en eza e na Inglaterra. As fam ílias da aristocracia ve­
Cultura e paisagem
neziana exprim em suas convicções e suas aspirações nos
palácios e nos jardins que elas se fazem construir sobre a
A paisagem retém a atenção, uma vez que é o suporte terra firm e p or arquitetos com o Palladio (C O S G R O V E , 1984;
das representações. Ela é sim ultaneam ente m atriz e marca C O SG R O VE, D a n ie l s , 1988). Possuir uma terra mostra que
da cultura, segundo a fórm ula d e Augustin B erque (BER- a fortuna d e que se dispõe é estável. Transformá-la em uma
QUE, 1984): m atriz, visto que a organização e as formas que paisagem harm oniosa prova que se é sensível ao belo e que
estruturam a paisagem contribuem para transm itir usos e se participa de uma elite de espírito cujo m agistério é eter­
significações d e uma geração à outra; marca, visto que cada no. O s hom ens d e n egócio britânicos que multiplicam na
grupo contribui para m odificar o espaço que utiliza e gra­ área rural inglesa do século X V III belas residências e par­
var aí os sinais de sua atividade — o que era estudado p ela ques não procuram outra coisa.

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AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

N ã o se p od e com p reen d er as geografias qu e se cons­


As abordagens culturais: cultura e construção
troem sob nossos olhos se negligen ciarm os a qualidade
do eu e da sociedade
estética dos am bientes e as possibilidades d e realização
qu e eles o ferecem àqueles que os habitam ou que os fre ­
A cu ltu ra e o e n riq u e c im e n to d o s e r
quentam . As cidades gastam fortunas para criar e m anter
museus, teatros, óperas, ou para organizar festivais: elas
Os indivíduos não perm anecem passivos diante da
fixam assim as em presas ou atraem os turistas.
cultura. Eles retêm certas inform ações mais do que outras,
se interessam p ela destreza dem onstrada p or um bom op e­
rário ou p e lo p e rfe ito b ric o le u r1, evoluem a vontade na
A c o n s tru ç ã o d e id e n tid a d e s e a d ia lé tic a u n ifica çã o /
esfera dos conhecim entos cien tíficos, ou se associam p re fe ­
d iv e rs ific a ç ã o
rencialm ente à vida religiosa. E sta fam iliarização com as­
pectos particulares d o universo social lhes perm ite especia­
C om o fundam ento das identidades, a cultura reúne
lizar-se e ganhar a vid a quando as sociedades tom am -se
os hom ens ou os separa. Q uando as pessoas aderem às
complexas; eles retiram disso tam bém satisfações pessoais,
m esm as crenças, d ividem os m esm os valores e associam
ela lhes assegura prestígio e o estatuto acordado ao espe­
suas existências a objetivos próxim os, nada se op õe a qu e
cialista, ao cientista ou ao sábio.
eles se com uniquem livrem en te entre si. M as desde qu e
A arquitetura, a escultura, a pintura, o teatro estive­ eles saem d o grupo no qual se sentem solidários, suas atitu­
ram durante m uito tem po ligados à vida religiosa. Q uando
des m udam : a desconfiança se instala, as trocas se tom am
as sociedades se laicizaram , a vid a artística tom ou-se autó­
um a fon te d e ameaças, na m edida em qu e elas p odem
noma. Sobressair no dom ínio da criação aparece então
questionar a estrutura sob a qual foram construídas a p e r­
com o o signo d e um a realização particularm ente valoriza-
sonalidade dos indivíduos e a identidade dos grupos.
dora do eu. Todos aqueles que desejam se eleva r na escala
A o se con gregar em to m o d e p receitos comuns, os
do prestígio e da consideração, com eçam a frequ en tar as
grupos abolem as distâncias psicológicas qu e existem en tre
galerias de arte, os museus, as salas d e concerto, as óperas
os seus m em bros, o qu e lhes p erm ite triu nfar sobre a dis­
ou os teatros, ou a le r as grandes obras literárias. E les p ro ­
persão associada freqú en tem en te às necessidades da vida.
curam se afirm ar através do consum o cultural d e alto nível.
Jean G ottm ann fe z desse tem a, o das im agens que tem os
em com um (ícones, no sentido original d o term o), um dos

1 Pessoa que exerce diferentes ofícios; fam iliarm ente se diz de alguém q u e é capítulos essenciais da geografia p olítica — é neste sentido
capaz de fazer reparos e de construir pequ en as coisas de form a com petente, mas que e le fala de icon ografia (G O T T M A N N , 1952).
não profissionalizada.

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O s hom ens não param d e im aginar novos valores, d e ses qu e os acolhem , mas continuam fiéis às suas culturas de
construir novas classificações e d e traçar novas fronteiras. o rigem e m antêm contatos estreitos com elas. As diásporas
E ste m ovim en to não am eaça, entretanto, a coesão das so­ se m u ltiplicam (PRÉVELAKIS, 1996).
ciedades qu e reagrupam populações numerosas. Isto p or­ A s identidades se associam ao espaço: elas se baseiam
qu e sentim entos d e perten cim en to podem se hierarquizar, nas lem branças divididas, nos lugares visitados p or todos,
assim com o as culturas: em pequena escala existem form as nos m onum entos qu e refrescam a m em ória dos grandes
globalizadoras, que fundam identidades coletivas qu e com ­ m om entos d o passado, nos sím bolos gravados nas pedras
partilham um p equ en o núm ero d e valores p olíticos, os das esculturas ou nas inscrições. A territorialidade se trans­
prin cípios da C onstituição am ericana para os Estados U n i­ form ou em um dos com ponentes mais im portantes das
dos, a L ib erd ad e, a Igu aldade e a Fraternidade para a R e­ novas orientações d o m undo social e político (BONNE-
pú blica francesa; em grande escala, os particularism os se M a i s o n , 1986; K e i t h , P i l e , 1993).
expandem , o dos confessionais, dos grupos étnicos e das
seitas na sociedade am ericana, o dos laços locais e regio­
nais e dos m ilitantism os políticos ou sindicais na sociedade A cultu ra recorta categorias no real e lhes dá vida
francesa.
O paradoxo da situação atual é que na ép oca em que C om o se dar conta da tendência à pulverização tão
a universalização das técnicas está praticam ente consuma­ fo rte d o m undo atual? As abordagens culturais, que se
da, os valores com fo rte carga unificadora d e outrora, a fé im puseram logo em seguida aos trabalhos fenom enológicos
no progresso, o liberalism o e a tolerância cessam d e ser sobre a intersubjetividade, conduzem ao questionam ento
atraentes. O processo d e divisão se segm enta, pois cada dos instrum entos qu e o observador utiliza espontaneamen­
grupo se considera igual aos outros em d ireito e dignidade. te (STASZAK, 1997; RlCHARDSON, 1981). Ao supor formas
É neste contexto qu e é preciso recolocar a m aior par­ universais na m aneira d e con ceb er o real sobre o qual se
te das pesquisas contem porâneas da geografia cultural: os debruça, o observador tem a tendência de naturalizar a
nacionalism os e os regionalism os se exasperam, as socieda­ realidade. A finalidade profunda da geografia cultural é
des on de as m inorias acabavam p or ser assimiladas através in com p atível com um a tal m aneira d e ver. O problem a não
d e m ecanism os diversos d e integração evoluem para o mul- é ap licar ao real um a m alha válida em todos os contextos e
ticulturalism o, sem que possamos estar certos d e que seus para todas as culturas, mas com preen der como cada grupo
com ponentes possuem ainda realm ente algum a coisa em rein ven ta perm anentem ente o m undo, introduzindo novos
com um . O s im igrantes que fogem da m iséria d o T erceiro recortes.
M undo desejam se b en eficiar das vantagens sociais dos paí- A escala das análises muda: para apreender os proces-

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sos culturais verdadeiram ente significativos, os geógrafos interessa p ela m aneira com o são estabelecidos os critérios
se debruçam sobre a experiên cia das pessoas, sobre seus que separam o grupo do qual fazem os parte daqueles que
contatos, sobre suas m aneiras de falar. E les descobrem , nos são estrangeiros. N o m undo atual isto conduz a p rivile­
assim, com o as atitudes m udam e os objetivos coletivos se giar, com o ob jetos geográficos da pesquisa cultural, a raça,
constroem ao sabor das interações. As pesquisas se in teres­ a etnia, a ju ven tu de, a velh ice ou as categorias sexuais (h o­
sam mais fortem en te pelas pequenas com unidades, pelos mens, m ulheres, homossexuais, transexuais): fo i a isto que
bandos e gangues dos subúrbios, das com unidades d e bair­ P eter Jackson reduziu os M aps o fM e a n in g que e le p ropõe
ros, das células d o m undo rural do que pelas realidades na sua interpretação geográfica da cultura (JACKSON, 1989;
globais. Pratica-se a geografia cultural sem que as pesqu i­ v er tam bém ANDERSON, G a l e , 1992; JACKSON, PENROSE,
sas nos levem a inform ações sobre o que é a cultura chine­ 1993). N a geografia política é a im agem da fronteira e da­
sa, a cultura am ericana, ou a cultura urbana. O que elas queles que estão instalados para além dela, e que são vistos
trazem é a id éia de que as regras da vida social variam de com o diferen tes, que retém a atenção mais espontanea­
um ponto a outro e se m odificam sem cessar. Trata-se m ui­ m ente (PAASI, 1996). O olhar dos ocidentais sobre os outros
to menos d e m udança de princípios do que propriam ente povos está na base do im perialism o que e le denom ina e
da m aneira d e interpretá-los ou de transgredi-los, para se justifica. Se querem os com bater as form as d e opressão do
adaptarem às circunstâncias. Os subúrbios populares das m undo atual é mais im portante, pois, aprender a descons-
grandes cidades são assom brados p or bandos de joven s que truir a im agem d o O utro qu e o m undo ocidental tem com o
procuram desesperadam ente afirm ar sua originalidade, re­ eviden te d esd e que com eçou a se con ceber com o superior
correndo para isso a tem as d e uma afligen te m onotonia. aos outros.
A em ergência d e subculturas reforça as clivagens que
nascem da divisão d o trabalho. U m sentim ento d e solida­
riedade operária p o r m uito tem po im pediu que os filhos A ordem socia l é culturalm ente instituída
dos trabalhadores tivessem um b en efício plen o das possibi­
lidades de progressão social oferecidas pela escola. Nas As abordagens fenom enológicas são m uito úteis no
zonas onde se acum ulam as populações desm unidas das esclarecim en to da fusão dos grupos, sua construção e suas
grandes cidades, uma subcultura da pobreza se cria e ten ­ barreiras psicológicas. A o se basearem , entretanto, nos es­
d e a acentuar a degradação das condições d e vida (SlBLEY, tudos da intersubjetividade, estes estudos esquecem que o
1995). m undo explorado pela geografia está investido em todas as
A orientação cultural visa com preender com o os gru­ suas partes d e valores: a encenação dos m om entos fortes
pos constroem o m undo, a sociedade e a natureza. E la se da existência coletiva através d e cerim ónias, d e rituais e d e

108 109
EXPLORA ÇÕE S GEOGRÁFICAS AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

festas p erm ite ao gru po se realim entar, fazendo apelo a seus social: sábios ou feiticeiros nas sociedades animistas, sacer­
m itos fundadores. d otes ou gurus nas religiões reveladas, intelectuais no
Atrás dos processos d e institucionalização, p odem ser m undo m oderno, qu e encontram justificativa nas id eolo­
lidos os jogos que d ivid em o m undo na esfera do sagrado e gias laicas (C L A V A L , 1980). A perspectiva cultural é assim
d o profano. A geo gra fia cultural p rivilegia assim as re li­ indispensável para com p reen d er a geografia p olítica dos
giões e m ostra com o as ideologias laicas funcionam d e fato Estados.
com o substitutas das crenças tradicionais. Face aos filó ­
sofos d o progresso social que dom inaram no O cid en te des­
d e o Século das Lu zes, vê-se desfilarem ideologias da natu­ Perspectivas sobre as culturas
reza qu e, sob o n om e d e ecologia, transform am profunda­
m en te as sociedades, propondo novos critérios d o bem e As culturas são diversas. Elas não dispõem das mes­
d o m al, d o puro e d o im puro, e im põem aos poderes novos mas técnicas e não asseguram o m esm o grau de dom ínio
objetivos para estes alcançarem o aval dos grupos cujo tra­ dos am bientes onde vivem . Poder-se-ia im aginar perspecti­
balho é o d e legitim ar as instituições — ou corroer seus vas qu e perm itissem com pará-las? H á m uito tem po, a idéia
fundam entos (B E R Q U E , 1996). d e classificá-las em função d e seus níveis de desenvolvi­
O s grupos qu e elaboram subculturas tentam p o r v e ­ m en to nos fo i im posta. U m a tal operação não p od e ser acei­
zes questionar os valores adm itidos p e lo conjunto do corp o ta sem dificu ldade: deve-se considerar que uma sociedade
social: estas contraculturas oferecem um ponto d e apoio a capaz d e organizar grupos num erosos distribuídos sobre
todos aqueles qu e se sentem feridos p ela sociedade ou qu e extensos espaços é necessariam ente mais avançada que um
se colocam em desacordo com seus princípios. Elas elab o­ gru p o cujo dom ínio perm anece lim itado a um pequeno es­
ram contram odelos que podem seduzir camadas cada v e z paço? Q u e critérios d evem ser considerados para m edir o
mais amplas da população e conduzir p o r fim a uma rees- progresso?
truturação cultural d o conjunto. As técnicas d e com unicação influem diretam ente so­
U m dos pontos essenciais de tod o grupam ento p o líti­ b re a natureza e no con teú do das culturas: uma sociedade
co é constituído p e lo sistem a de crenças e d e ideologias qu e se baseia, para transm itir seu saber, apenas sobre a
qu e dão sentido à vid a dos indivíduos e da coletividade, palavra e sobre a im itação direta dos gestos e com porta­
legitim an do o que está instituído. A d efesa dos valores exis­ m entos, apresenta d eficiên cias nos suportes de sua m em ó­
tentes, ou sua crítica e definição d e sistemas concorrentes, ria. E la m antém relações com o tem po e com a história
m obilizam a en ergia dos legitim adores, cujos títulos e fun­ d iferen tes daqueles que caracterizam os grupos que dis­
ções variam segundo os níveis e as form as d e organização p õem d e escrita. *

110 111
AS A B O R D A C E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

A única perspectiva evolucionista que pode existir na trora. Elas p od em ser apreendidas em qualquer lugar des­
d e que se disponha de obras e revistas onde os resultados
geografia cultural é, pois, aquela que classifica as sociedades
estão expostos. O cinem a e a televisão mostram a todos co­
em função dos m odos d e com unicação que as caracteriza.
m o é fá cil u tilizar a m aior parte dos artigos d e consum o
du rável oferecid os p ela indústria m oderna. N a m edida em

R evolução das com unicações e un iform iza çã o do m undo qu e a cultura resulta d e um jo g o d e m ecanism os d e com u­
nicação, ela d everia se uniform izar rapidam ente. Isto fo i em

A observação, a im itação e a palavra só são possíveis parte fe ito — a cultura de massas se assemelha cada v e z

entre pessoas d e um m esm o local. Isto quer d izer qu e os m ais em todos os cantos d o planeta ( M a c LUH AN, 1968) —

aspectos técnicos das culturas tradicionais se transm item mas outros fatores possuem um sentido inverso e condu­
zem à p roliferação dos fúndam entalism os, dos nacionalis­
localm ente em boas condições, porém a difusão d e um
pon to a outro é um processo d ifícil, len to e com porta inú­ m os e das contraculturas.
m eros problem as. A escrita perm ite fazer chegar as m ensa­ /ç persp ectiva evolucionista só é capaz de se dar conta

gens muito lon ge, o qu e favorece a difusão dos con h eci­ d e um a parcela da diversidade das culturas. Para ir adiante

m entos form alizados p ela ciência e dos textos que veiculam na com preensão, é preciso prestar atenção e entrar em sua

religiões ou ideologias. As sociedades tradicionais apresen­ lógica. É isto qu e p erm ite a perspectiva etnogeográfica.

tavam desta form a um a dupla inscrição cultural no espaço:


o m osaico com plexo d e dialetos e d e know how técnicos se
inscrevia no seio dos espaços que dividiam , freqú en tem en - A c o n s id e ra ç ã o d o s a b e r g e o g rá fic o d os gru p os:

te sobre m uito amplas extensões, a m esm a língua, os m es­ a p e rs p e c tiv a d a e tn o g e o g ra fia

m os conhecim entos científicos, a m esm a religião e os m es­


m os traços m orais: esta era a im agem associada à C hina há Todas as culturas resultam d e um trabalho de cons­

m eio século; esta havia sido a da E uropa há dois séculos. trução e dispõem d e know how e d e saberes relativos ao

As culturas populares se opunham à da elite. espaço, à natureza, à sociedade, aos m eios e às maneiras de

A revolução da m ídia transform ou esta im agem das explorá-lo. E interessante com parar estes saberes, analisar

culturas prim eiram ente em um ritm o bastante len to no fim suas bases e seus m odos d e elaboração e inventariar as

d o século passado, depois com uma am plitude cada v e z categorias sobre as quais eles repousam. É necessário tam ­
b ém deter-se sobre a m aneira com o esses conhecimentos
mais viva desde 1950. As pesquisas técnicas restringem
são utilizados, reinterpretados, respeitados (ou transgredi­
cada vez mais o dom ínio dos know how tradicionais. O s
dos), em seus conteúdos norm ativos, p or aqueles que os
conhecim entos form alizados substituem as receitas de ou-

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

colocam em prática. A etn ogeografia convida a re fle tir BERQUE, A ugustin (1986). Le Sauvage et Vartífice. Les japonais

sobre a diversidade dos sistemas d e representação e d e téc­ devant la nature, Paris, G allim ard.
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Reclus.
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intem péries, se vestir, habitar etc., e m odelam o espaço à
a u J a p o n , Paris, G allim ard.
sua im agem e em função de seus valores e d e suas aspi­
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não: os hom ens só aprendem a m obilizar a razão progressi­ ORSTOM, 2 vols.
vam ente. A cada etapa d o desenvolvim ento da geografia, CLAVAL, P au l (1980). L e s M y th e s fo n d a te u r s des S cie n ce s s o c ia -
esta últim a carrega parcelas que se diferenciam ainda m ui­ le s , Paris, P U F .
to pou co d o conhecim ento do sim ples bom senso. A etn o­ ------------(1992) .“C h a m p s et perspectives d e la géographie cultu­

geografia p erm ite, pois, renovar as abordagens contextuais, relle”, Geographie et Cultures, vol. 1, n“ 1, pp. 7-38.

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116 117
O sag rado e o espaço

Z eny Rosendahl*

Introdução

A s palavras religião, sagrado, p eregrin o e cerim onial,


en tre outras, não aparecem nos dicionários básicos de g eo ­
grafia. E n tretan to, elas indicam experiências humanas re­
pletas d e significados, ten d o uma nítida dim ensão espacial,
interessando, portanto, à geografia.
O in teresse p or essa dim ensão é antigo, ainda que da
A n tigu id a d e C lássica ao fin al d o século X IX as relações que
uniam g e o g ra fia e religião representassem , de um lado,
mais um a explicação religiosa do que científica e, de outro,
um in ven tá rio e descrição das várias religiões.
D o in íc io d o século X X até aproxim adam ente 1960,
os g e ó g ra fo s buscam com p reen d er a força da religião m o­
d ifica n d o a paisagem , com o na posição possibilista da Es­
cola V id a lin a d e G eogra fia e, particularm ente, na Escola
de G e o g ra fia C ultural d e Sauer. Exceção se pode fazer ao

* P r o fe s s o r A d ju n to d a UERJ.

119
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S 0 S AGRADO E 0 E S P A Ç O

trabalho de D E F F O N T A IN E S (1948), que exam inou os sig­ D u r k h e i m (1968), W e b e r (1964), E l i a d e (1959 e


nificados sim bólicos da casa em term os religiosos. 1962), B O U R D IE U (1987) e BERGER (1985) são autores
A partir da década d e 1960, a geografia da religião d e­ fundamentais em razão da grande influência q u e têm nos
senvolveu-se, con form e verifica-se nos estudos, entre ou­ estudos sobre religião nas ciências sociais. Acreditamos que
tros, de IS A A C (1960), SOPHER (1967 e 1981) e BÚTTNER o desenvolvimento pleno da geografia da religião não possa
(1985). Foram valorizadas as relações recíprocas entre re li­ prescindir d a contribuição, alternativa ou complementar,
gião e am biente, incluindo-se a análise da paisagem , o sim ­ d e cada um deles.
bolism o dos lugares sagrados e as práticas espaciais associa­ O prop ósito deste capítulo é explicitar qu e o sagrado
das ao sagrado. R O SEND AH L (1996) apresenta uma propos­ se m anifesta sob a form a de h ierofan ia no espaço (E LIA D E ,
ta para o estudo geográfico da religião. São quatro os tem as 1959 e 1962), revela-se com o um dom carism ático que o
propostos: difusão e área de abrangência da religião, os cen ­ o b je to ou a pessoa possui (W E B E R , 1964) e se im põe p o r
tros de peregrinação, território e territorialidade e p ercep - e le m esm o (D UR K H E IM , 1968 e BERGER, 1985).
ção e vivência do espaço sagrado. Baseado nestas idéias, com o tam bém nas d e T U A N
O presente artigo ob jetiva contribuir para o d esen vol­ (1 9 7 8 ) e C LA V A L (1992), elaborou-se uma representação
vim en to da geografia da religião no Brasil, discutindo, p ri­ diagram ática d a dim ensão espacial qu e o sagrado im p õe ao
m eiram ente, os con ceitos d e sagrado e profano, procuran­ lugar. N a F igu ra 1 o espaço sagrado é o locus d e um a h ie ­
do enfatizar a dim ensão espacial associada. O sagrado e o rofania, isto é, um a m anifestação d o sagrado, a qual p erm i­
sim bolism o das form as espaciais são abordados a seguir. O te qu e se d efin a um “ ponto fixo” , pon to d e toda a orien ta­
sagrado e a vivên cia d o espaço são então considerados e, ção in icial, o “ cen tro d o m undo” .
finalm ente, tecem -se algumas considerações sobre a gestão O ritual da construção d o espaço sagrado im plica um
religiosa do espaço sagrado. d u p lo sim bolism o. Prim eiram en te na construção d o “ cen ­
tro d o m undo” , este se constitui em um referen cial, cu jo
p re s tíg io está b em determ inado. E m segundo lugar, a
Os conceitos construção d o espaço sagrado im p õe uma in terpretação
sim b ólica da m aterialização d o centro. E com o to d o o
O tem a religião engloba um núm ero cada v e z m aior espaço sagrado coin cid e com o cen tro do m undo, to d o o
de estudiosos na sociologia, antropologia, etnologia, filo so ­ te m p o d e qu alqu er ritual coin cid e com o tem po m ítico, in
fia, história, p sicologia e teologia. Qual a contribuição d e illo tem p o re , em qu e ocorreu um ato cosm ogônico. N a
cada uma dessas ciências? Em que e com o os geógrafos rep etiçã o d este ato ficam
podem se b en eficiar dessas contribuições?

120 121
EXP LORAÇÕES GEOGRÁFICAS 0 S A GRA DO E 0 ESPAÇO

“asseguradas a realidade e a duração de um a con stru ­


ção, não só pela transform ação de u m espaço p ro fa n o
n u m espaço transcendente, ‘o C en tro\ mas tam bém
pela tran sform a çã o do tem po con creto em tem p o
sagrado. ” (E l ia d e , 1959:33-34)

É possível distingu ir dois elem entos fundam entais n o


espaço sagrado: o “ p on to fixo” e o seu entorno. N o p rim e i­
ro, as form as espaciais existentes cum prem funções qu e
estão diretam ente associadas à h ierofan ia m aterializada n o
o b je to im pregnado d o sagrado. O entorn o possui os e le ­
m entos necessários ao cren te para a realização d e suas p rá­
ticas e d e seu ro teiro devocional. E n fim , d efin e-se o espa­
ço sagrado com o um cam po d e forças e d e valores qu e e le ­
v a o hom em religioso àcim a d e si m esm o, que o transporta
para um m eio distinto daquele no qual transcorre sua exis­
tência. É p o r m eio dos sím bolos, dos m itos e dos ritos qu e
o sagrado exerce sua função de m ediação entre o h om em e
a divindade. E é o espaço sagrado, enquanto expressão d o
sagrado, que possibilita ao hom em entrar em contato com
a realidade transcendente cham ada “ deuses” nas relig iõ es
politeístas e “ D eu s” nas m onoteístas.
A experiên cia d o espaço sagrado se opõe à exp eriên ­
cia d o espaço profano. E m relação a este aplicam -se as
in terdições aos ob jetos e coisas qu e estão vinculadas ao
sagrado, numa realidade diferenciada da realidade sagrada.
C onstitui-se naquele espaço ao “ red or” e “em fren te” d o
espaço sagrado. A través da segregação qu e o sagrado im ­
p õ e à organização espacial e baseado em C o r r ê a (19 89 ),
E l ia d e (1991) e RINSCHEDE (1985) é possível id en tifica r

123
E X P L O R A Ç Õ E S GE O G R Á F I CA S 0 S A GRA DO E 0 E S P A Ç O

o espaço profano diretam ente vinculado ao sagrado, o es­ depen d en tes no tem po e no espaço. O espaço sagrado se
paço profano indiretam en te vinculado e o espaço p rofan o rev e la não som ente através d e um a hierofan ia, mas tam ­
rem otam ente vinculado ao sagrado. b ém p o r rituais d e construção, e, neste caso, os rituais
O sagrad o é p e r c e p t ív e l n a o rg a n iza ç ã o es p a cia l, n ã o represen tam rep etições d e hierofanias prim ord iais con h e­
s o m e n te p e lo s im p a c to s d e s e n c a d e a d o s p e lo s d e v o t o s n o cidas. Assim , o espaço sagrado é um a p rodu ção in telectu al.
lugar, mas ta m b é m p e la fo r m a e s s e n c ia lm e n te in t e g r a d a Sofisticadam ente ou não, o hom em organiza as forças da
e n tr e r e lig iã o e t e m p o . A e x p e r iê n c ia d o t e m p o nas d i f e ­ socied ad e e da natureza. A construção d o espaço sagrado,
r e n te s culturas é d e s e n v o lv id a p o r E L IA D E (1 9 9 1 ), q u e n o tem p o sagrado, satisfaz as necessidades intelectu ais e
r e c o n h e c e q u e os fe n ô m e n o s r e lig io s o s se d e s e n v o lv e m psicológicas. A m anifestação d o sagrado é um a realidade
n ã o só nu m e s p a ç o co n s a g ra d o , m as ta m b é m n u m t e m p o qu e se exp rim e sob as form as sim bólicas qu e se d esen vol­
sa grad o, “ n a q u e le t e m p o ” — in illo tem pore, ad o rig in e — vem e se relacionam no espaço e no tem po.
e m q u e o ritu a l é r e a liz a d o .
Os fenôm enos religiosos se m anifestam num m om en ­
to histórico e não há fato religioso fora do tem po. Para O sagrado e o simbolismo das formas espaciais
E liade o tem po não é h om ogén eo nem contínuo; existem
duas espécies d e tem po: o tem po sagrado e o tem po p ro fa ­ V ários autores sustentaram qu e as construções das
no. O tem po sagrado é o tem po das festas. É de natureza form as espaciais são o resultado não apenas d e fatores
reversível, recuperável e rep etitível. É um tem po on toló gi­ com o clim a ou topografia, mas são m oldadas pelas
co p or excelência. E m cada festa periódica reencontram os
o m esm o tem po sagrado, o m esm o que se m anifestou na “idéias de um a sociedade, suas form a s de orga n ização
festa do ano an terior e na festa de há um século (E L IA D E , econ óm ica e social, sua d istrib u içã o de recursos e au­
1962). Já o tem po profan o revela-se com o a duração tem ­ torid a d e, suas atividades e crenças e valores que
poral ordinária, na qual ocorrem os atos privados d e sign ifi­ preva lecem em q u a lq u er p e río d o de te m p o ” (K lN G ,
cação religiosa. Assim , o hom em religioso vive duas m oda­ 1972, p . 1).
lidades de tem po. A mais im portante é o tem po sagrado,
no qual ele se rein tegra através da linguagem dos ritos, U m dos mais im portantes tem as atualm ente em voga
perm itindo-lhe solução de continuidade da duração tem ­ en tre os geógrafos da religião d iz respeito aos significados
poral ordinária, introdu zindo-o no tem po sagrado. da interação d e paisagem e lugar, de um lado, e o sagrado
A problem ática geográfica se expressa no âm bito da d e outro. Assim , enquanto TU AN (1978) focalizou os luga­
dimensão sim bólica d o sagrado, cujos elem entos são in ter­ res sagrados e as necessidades im ediatas da im aginação

124 125
EXPLORAÇÕES CEOGRÁFICAS 0 S A GR A DO E 0 ES P A ÇO

h u m a n a , S H IL A V (1 9 8 3 ) a n a lisou o s im b o lis m o e a fu n ç ã o separados dos residentes da cidade p o r algum tip o de


d a s sin a g o g a s s o b a in flu ê n c ia d a c o n tu r b a d a d is p u ta p o r dem arcação. Entretanto, as cidades d o vale do N ilo e da
s o lo u rb a n o . C O O P E R (1 9 9 4 ), p o r sua v e z , in t e r p r e ta o s d i­ A m érica não eram muradas.
le m a s d e id e n t id a d e r e lig io s a , p a is a g e m e lu g a r e m u m a E xem plos clássicos d e cidades cerim oniais são encon­
p a r ó q u ia d e S u ffo lk n a In g la te r r a . trados em Teotihuacán, no M éxico, e Tíkal, na Guatemala.
A d efin ição d e um lugar sagrado refle te a p ercep çã o E d ificações maciças, construídas sem uso aparente d e ins­
d o gru po en volvid o. C om o o sim bolism o das form as espa­ trum entos d e m etal, eram um a indicação da sofisticação
ciais varia d e grupo para grupo, d ificilm en te se p od e g en e ­ tecn ológica dos construtores qu e criaram uma paisagem
ralizar sobre os prin cípios da paisagem religiosa, apesar dos urbana característica. E m Teotihuacán, o Tem plo d o Sol
geógrafos possuírem agora um viés explicativo m uito m ais eleva-se a um a altura de sessenta e seis m etros (JACKSON e
am plo qu e no passado. H U D M A N , 1990 ).
O sim bolism o cósm ico das cidades antigas estava no Outras cidades cerim oniais com o Cholollán, M onte
con ju nto d o tem plo. N o in ício este era d e fácil acesso ao A lbán, Tuia, Xochicalco, Tajin, C hichén Itzá e Tenochtitlán
p ovo, mas lentam ente fo i se am pliando a distância en tre o caracterizavam -se p or sua organização interna específica.
te m p lo e o povo. O zigu rate na cidade d e Ur, dois m il anos Estas cidades sugerem uma ordem espacial hierarquizada,
antes d e C risto, in icialm en te era mais acessível ao p ovo, centrada no espaço sagrado. D irigid as p elo clero organiza­
tom an d o-se inacessível. O zigurate possuía inúm eros sign i­ d o e dirigentes diversos, essas cidades sagradas ou hierópo-
ficados sim bólicos. R epresen ta-o a rocha sólida qu e em er­ lis eram assinaladas p or tem plos piram idais, pátios cerim o­
gia d o caos; era a m ontanha que ficava no centro d o uni­ niais, praças d e m ercado e terraços. As elites sacerdotais
verso; o tron o terren o para os deuses; o lugar m onum ental organizavam as cidades em to m o do santuário que ligava o
para a realização dos sacrifícios; a escada que condu zia aos p ovo ao m undo sobrenatural.
céus. O s zigurates foram durante bastante tem po um a fo r ­ D e acordo com B H AR D W AJ (1 9 9 1 ) os locais sagrados
m a arqu itetônica dom inante na M esopotâm ia, sendo um hindus estão localizados às m argens de rios ou áreas costei­
in dicad or para realçar o significado transcendental das c i­ ras, refletin d o o fato do hinduísm o estar ligado ao caráter
dades. A expressão d o sagrado nas cidades m esopotâm icas sagrado de grande parte da paisagem indiana. O autor nos
encontrava-se explícita nos santuários e nos tem plos. forn ece uma hierarquia d e santuários que atraem peregri­
N o vale d o N ilo e na A m érica pré-colom biana, as c i­ nos estrangeiros e outros d e caráter local. Por outro lado, a
dades eram sem elhantes às encontradas na M esopotâm ia. im portância sim bólica dos santuários indianos é estabeleci­
Continham um centro religioso adm inistrativo — o tem p lo da p o r tradição e não p or doutrina.
ou santuário — e um palácio para a classe govern ante, O sagrado deixa um registro perm anente na paisa­

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EX PL ORA ÇÕE S GEOGRÁFICAS 0 S AG R A D O E 0 E S P A Ç O

gem . São recon h ecíveis d iferen tes form as m ágico-religio­ pu lar d e M eca. A tu alm en te é um acon tecim en to altam ente

sas no espaço. As form as sagradas na paisagem cristã são as organizado p e lo govern o árabe-saudita. A gências d e via ­

igrejas. A frequ ên cia a um serviço coletivo d e culto é extre­ gens operam em vários países e há conexão dos vôos com

m am ente im portante no cristianism o, em contraste com os ônibus destinados ao transporte d e peregrin os.

outras religiões nas quais há m en or necessidade d e um P elos estudos desen volvidos p o r K lN G (1 9 7 2 ), SO-

lugar santificado para o culto. O islam ism o tem um espaço P H E R (1967 e 1981) e JACKSON e H U D M A N (1 9 90 ), o as­

para reunião com unitária na form a d e um a m esquita. N as p e cto religioso da p eregrin ação a M e ca é m arcado p o r prá­

religiões orientais, com o o hinduísm o, as form as sagradas ticas devocionais bastante significativas para os m uçulm a­

para o culto coletivo têm pouca im portância. N estes casos, nos. A cerim ón ia m odern a no m ês d e D hu ’l-H ijja é a fusão

as funções religiosas m ais relevantes se realizam no lar, d e duas cerim ónias anteriores, a hajj e o um ra, e tem p or

numa unidade fam iliar, enquanto os tem plos abrigam san­ cen tro M e ca e o seu santuário, a Caaba. Algum as práticas

tuários a deuses particulares, em v e z do culto con gregacio- religiosas exigem visita a lugares externos à cid ad e d e

nal. Já os pagodes, que forn ecem a form a sim bólica re lig io ­ M eca . P rim eiram en te o p eregrin o veste um a roupa espe­

sa na paisagem budista, são ed ificações extrem am ente e la ­ cial, ritu alm ente lim pa, a ihran, e en tão p od e in iciar as prá­

boradas e delicadas, projetadas para oração ou m editação ticas tradicionais da peregrin ação. In clu i diversas cerim ó­
individual, não sendo utilizadas para o culto congregacional nias, com o visitar o recin to sagrado d e H aran, a perm anên­
(L U B E IG T , 1987). cia em A rafat, visitar o lugar d e m artírios e testem u nho e

N o interesse d e con h ecer o im pacto que o sagrado ap ed rejar o satanás. É a mais im portante, a qu e exige que

im põe ao lugar e no arranjo das atividades humanas, sele­ o p ereg rin o cam inhe sete vezes ao red o r da C aaba e b e ije a

cionamos quatro exem plos d e lugares consagrados ao exer­ P e d ra N e g ra em sua parede. D e acordo com a tradição

cício da religião: M eca, cidade de peregrinação do islam is­ islâm ica, a P ed ra N eg ra fo i en tregu e a A braão p e lo anjo

m o; Lourdes, um a im portante cidade-santuário do cristia­ G ab riel.


nismo; Shikoku, lugar d e peregrin ação do budism o; e M u - M e ca e Jerusalém são cidades-santuários qu e pos­
quém , centro religioso n o in terior do Brasil. suem en orm e im portância p o r serem lugares d e origem de

A peregrinação anual a M eca ou H ajj é um dos m ais relig iõ e s — M e ca para o islam ism o e Jerusalém para o cris­

notáveis m ovim entos d e população no O rien te M éd io, ten ­ tianism o. H á lugares, contudo, em qu e a peregrin ação teve

do durado, sem interrupção, os treze séculos do islam ism o. o rig em num a hierofan ia, e o lugar fo i então revestid o do

Constitui-se na prin cipal fon te d e renda para a região d e caráter sagrado, com o em Lou rdes, na França. A cidade-

H ijaz, na Arábia Saudita “N ós não plantam os trig o ou sor­ santuário d e Lou rd es está situada no sopé dos Pirineus
go, os peregrinos são nossas colheitas”, d iz um ditado p o ­ franceses, sendo a segunda cidade, na religião católica, d e­

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EXP LORAÇÕES GEOGRÁFICAS 0 S AG R A D O E 0 ES PA ÇO

p ois d e Rom a, p ela im portância d o fluxo d e peregrin os. A A p r á tic a d e p e r e g r in a ç õ e s a lu gares sagrados pa ra
p eregrin ação te v e sua origem em 1853, a p artir da aparição b e n e f ic io e s p ir itu a l e p a r a p r e s ta r h o m e n a g e m é c o m u m

d e M aria, m ãe d e Jesus C risto, à m enina chamada B em a- t a m b é m n o b u d is m o . O g e ó g r a fo T A N A K A (1 9 8 1 ) analisou

d e tte Soubirous, nas grutas às m argens d o R io G ave d e os s ig n ific a d o s s im b ó lic o s n o it in e r á r io dos p e r e g r in o s e d a

Pau. D esd e o sécu lo X IX a pequena cidade se tom ou um t o p o g r a fia s a g ra d a das “ u n id a d e s ritu a is” esp a ço -tem p o ra is

cen tro con vergen te d e peregrin os católicos d e procedên cia q u e se r e p e t e m e m c a d a u m a da s o it e n t a e o ito es ta çõ es d o

in icialm en te region al, depois nacional e finalm ente in ter­ c a m in h o d e p e r e g r in a ç ã o , a o r e d o r d a ilh a Shikoku.

nacional. O fen ôm en o espacial da peregrinação a L ou rd es A característica singular da peregrinação Shikoku é


d ife re da H a jj a M eca, mas as funções urbanas nessas cida­ sua estrutura espacial. O s locais d e peregrinação surgem,
des-santuários, d e sistemas religiosos diferentes, apresen­ declinam e às vezes se propagam . Tanaka explora essa na­
tam um padrão com um d e atendim ento aos peregrin os. A tu reza dinâm ica da p eregrin ação Shikoku, peregrinação
cid ad e se organ iza para os devotos. É preciso p rim eira­ budista popu lar no Japão, exem plifican do os lugares de p e­
m en te dar con dições d e acesso ao lugar sagrado e em se­ regrinação e com o eles se estabelecem . Analisa a p eregri­
guida alojar os peregrin os. nação circu lar com o sistem a espacial-sim bólico, conside­ \

P ou co a pou co as cidades-santuários m ultiplicam e rando os vários ajustam entos espaciais que se verificam
m odern izam o acesso d e chegada dos peregrinos, bem c o ­ d en tro da peregrin ação.
m o constroem albergues m odestos e dorm itórios, ao lado N a ten tativa d e relacionar religião e am biente através t
Sj

d e luxuosos hotéis. E m Lou rdes há tam bém alojam entos d o estudo da organização espacial dos centros de p eregri­
especializados para peregrin os doentes. A cidade-santuário nação d o in terio r d o Brasil, ROSENDAHL (1994a) analisou
d e L ou rd es com p reen d e o espaço sagrado da gruta, on d e M uquém , no E stado d e G oiás. Trata-se d e um núcleo rural
hou ve a aparição e contém um a fon te d’água e locais d e d e con vergên cia religiosa, predom inantem ente do catoli­
banho, sobre os quais se construiu a basílica subterrânea. cism o popular, nos quais o fen ôm en o religioso recria o es­
O cen tro da gruta está situado nas partes oriental e sul do paço sagrado p o r ocasião da peregrinação.
R io G ave d e Pau. R lN S C H E D E (1 9 8 5 ) descreve o arranjo O p ovoad o d o M uquém no m unicípio de N iquelândia
espacial das atividades em Lourdes. E le reconhece as revela, um a v e z p o r ano, a cada festa da padroeira, uma
seguintes divisões funcionais: área com hotéis, pensões e organização singular e rep etitiva com um nos centros de
abrigos para doentes às m argens do R io G ave d e Pau, área rom aria d e áreas rurais. N a F igu ra 2 o espaço sagrado é o
com prédios adm inistrativos pertencentes à igreja, no cen ­ lugar da santa, o lugar superior e não profano, onde ocorre
tro religioso, e área com o com ércio d e artigos religiosos, visivelm en te o en con tro sim bólico da santa com o povo,
localizada na parte orien tal d o rio. num contato d ireto, sem interm ediários. O espaço profano,

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E X P L O R A Ç Õ E S GE O G R Á F I CA S 0 S A G R A D O E 0 E S P A ÇO

na parte mais baixa d o terren o, é o espaço destinado ao


com ércio e ao lazer, numa espetacular m escla en tre ce ri­
m ónia religiosa e atividades profanas. A missa, a procissão
e o sermão d o padre representam a marca do sagrado o fi­
cial. A dança, as frequ en tes bebedeiras e as brigas testem u­
nham o profano. O espaço profano diretam ente vinculado
ao sagrado consiste d o conjunto de atividades não re lig io ­
sas e apresenta um a articulação com o sagrado. C om p re­
ende a área dos com erciantes e barraqueiros.
Poucos geógrafos têm se interessado pelas consequên­
cias políticas acarretadas p e lo contexto da peregrinação ou
p elo grupo d e peregrinos. Alguns eventos, contudo, tiveram
efeitos políticos e foram ob jeto de investigação. D estacam -
se o estudo sim bólico-cultural em Madras, no p eríod o pós-
colonial, realizado p o r L E W A N D O W S K I (1984), o estudo
sobre o sím bolo p olítico da Basílica de Sacre-C oeur em
Paris, desenvolvido p o r H A R V E Y (1979), e a peregrinação
do M anto Sagrado, no contexto p olítico d o plebiscito do
Território do Sarre, abordado p o r A L L IS O N (1989).
O estudo d e L E W A N D O W S K I (1984) m ostra com o,
através do hinduísm o e seus sím bolos, fo i construída, no
período pós-colonial, um a arquitetura urbana em M adras.
A princípio, com o tentativa popular de se ligar ao seu pas­
sado para reviver e renovar as estruturas históricas e sagra­
das do p eríodo pré-colonial, reforçan do a identidade cultu­
ral da tradição hindu.
Os investim entos aplicados pelos governos estadual e
nacional serviram para a criação d e uma paisagem urbana
que fosse ao encontro das necessidades d e seus cidadãos
contem porâneos e tam bém contribuísse para sua próp ria

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS 0 SAGRADO E O ES PAÇO

legitim ação p olítica. C om o parte do processo de mudança, ép oca d e sua construção, era tam bém vista por muitos
realizou -se a troca d e nom es d e ruas, refletin d o agora sim ­ com o um a provocação para a gu erra civil, perm anecendo
b olicam en te os heróis populares do passado e do presente h o je com o sím bolo p o lítico e religioso.
da ín d ia. F o i tam bém feita a construção de estátuas h om e­ A L L IS O N (1989) exam inou a peregrinação ao M anto

nageando os escritores e figuras religiosas, em sua língua Sagrado em 1933, em T rier, na Alem anha. Seu significado
clássica, o tâm il, numa substituição da influência colon ial só p o d e ser com p reen d id o em term os da devoção popular
inglesa anterior. p ecu liarm en te dupla qu e a m otivou e a im pregnou, com o
A história das lutas de classes no lugar sagrado está R eich absorvendo em alto grau os benefícios. Seu efeito
registrada p o r H A R V E Y (1979), no m ovim ento d e constru­ p o lític o e eficiên cia estão na d evoção popular religiosa e
ção da B asílica d e Sacre-C oeu r em Paris. D om inando nacionalista, explorada para abrandar m edos e form ar no­
estratégica e sim bolicam ente o alto da colina de M ontm ar- vas op in iões no con texto p o lítico da época.
tre, a B asílica tem um a história atorm entada. C oncebida Esses exem plos d e even tos d e devoção popular inse­
durante a gu erra franco-prussiana de 1870-71, sua constru­ ridos em com plexos históricos, aqui especificam ente p o líti­
ção era vista p o r alguns com o um ato d e penitência p ela cos, indicam qu e religiã o e p olítica ocorrem conjuntam en­
d ecadên cia m oral d o im p ério napoleônico e pelos supostos te num espaço e num tem p o específicos.
excessos da Com una d e Paris d e 1871. P or parte dos católi­
cos, um m ovim en to fo rte p ela construção da Basílica em
função d o cu lto ao Sagrado C oração comandava a aprova­ O sagrado e a vivência do espaço no
ção d o p ro jeto. Finalm ente, em 1882, sua construção fo i catolicismo popular
term inada e consagrada. H arvey acrescenta em seu estudo
qu e a B asílica esconde os segredos dos que lutaram contra N os sábados e prin cipalm ente nas manhãs de dom in­
e a favor d o em belezam ento d o local, e que o visitante qu e go, os santuários receb em um grande núm ero de rom eiros
olha para aqu ela estrutura sem elhante a um mausoléu, qu e que, na m aioria das vezes, corresponde à metade d e sua
é o Sacre-Coeur, pensaria no qu e está enterrado ali. O es­ população residente. A organização espacial do centro re li­
p írito d e 1789? Os pecados da França? A aliança en tre o gioso é, em gran de parte, uma expressão da hierofania qu e
catolicism o intransigente e o m onarquism o reacionário? O ali se realizou e qu e gerou a con vergên cia periódica e siste­
sangue d e m ártires com o L ecom te e C lem ent Thom as? O u m ática d e peregrin os.
o d e E u gen e Varlin e d e aproxim adam ente 20.000 partidá­ E xiste um a realidade na paisagem religiosa; e la é
rios da C om una im piedosam ente massacrados com ele? essencialm ente visível, porém , para explicá-la, é preciso
A Basílica, enquanto evocava respostas políticas na apelar para os fatores invisíveis presentes nas práticas re li­

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS 0 S A GR A DO E 0 E S P A Ç O

giosas. Os rom eiros realizam um a com binação d e ativida­ O com portam en to do rom eiro no espaço sagrado
des religiosas que, p ela sua repetição habitual, con ferem consiste em dar qualidade nova ao qu e é declarado, d eseja­
um a fisionom ia próp ria aos centros religiosos. Essas p ráti­ d o e consagrado. Espera-se a m udança das coisas profanas
cas religiosas possuem um roteiro mais ou m enos preesta­ para a esfera d o sagrado. Assim é possível recon h ecer atos
b elecid o na p ercepção hierárquica do p eregrin o de v iv e r o religiosos e práticas religiosas. O s atos da vid a religiosa são
sagrado no espaço e n o tem po. Tentar-se-á desvendar os os tradicionais, realizados p o r especialistas d o sagrado —
sím bolos do im aginário popular com o m ais um m eio d e padre, pastor, freiras e outros. Práticas religiosas são rig o ­
conhecim ento do sagrado no espaço através dos atos com - rosam ente pessoais (M A U S S , 1979: 1 3 7 ), não são rep e titi­
portam entais d e visitar a im agem e segu ir a procissão, a vas, não estão subm etidas a qu alqu er regulam entação.
bênção d’água e a bênção da saúde, “ fazer” e “pagar” p ro ­ A o geógrafo da religião cabe valorizar as diversas
messas e assistir à missa e participar dos atos religiosos. manifestações de espontaneidade do devoto e da criativi­
Os ritos d e benzedura são considerados eficazes p o r­ dade hum ana em suas atividades no centro religioso. P r e d

qu e recolhem , para dentro do crente, os m itos, os sím bo­ (1 9 8 9 ), a partir das ideias de H ãgerstrand, evoca a rep re­

los, os gestos e as falas sagradas. Variando d e cultura para sentação gráfica não-linear com o objetivo d e cham ar aten­
cultura, a eficácia da benzedura encontra na linguagem um ção para os múltiplos significados da vida social. O autor
sentim ento lógico qu e vai ao encontro d e suas necessida­ argum enta q u e tal representação é capaz de “ca p tu ra r
des. Juntamente com a bênção, a p rece m erece atenção. sim ultaneidades e conjunturas que podem fa cilm e n te esca­
Para MAUSS (1 9 7 9 ) é o ponto d e con vergên cia d e um gran­ p a r á lin gua gem lin e a r ’ (GREGORY, 1994: 2 4 8 ).
d e número de fenôm enos religiosos. O autor acrescenta: Segundo os argumentos de Pred , òptou-se em realçar
a vivên cia d o peregrin o no santuário ou hierópolis. F ie l ao
“A prece p a rticip a ao mesm o tem po da natureza d o em p írico elaborou-se o gráfico d e perm anência d o rom eiro
rito e da natureza da crença. É u m rito , pois ela é no espaço-tem po sagrado (F igu ra 3). É a reconstrução plena
uma atitud e tom ada, um ato realizado diante das c o i­ d o roteiro devocional d e um crente num centro religioso.
sas sagradas. E la se d irig e à divind ade e à in flu ên cia ; A ida ao santuário tem seu in ício na saída d e sua resi­
ela consiste em m ovim entos m ateriais dos quais se dência, que ocorre, na m aioria das vezes, p ela m adrugada.
esperam resultados ” (1 9 7 9 : 1 0 3). As em oções qu e orientam este trajeto, as vivências na es­
trada, ao lo n go da viagem , fazem parte da rom aria. É um a
Tem os aí uma visão particularm ente favorável de m anifesta­ litu rgia pop u lar que se estende até a chegada ao espaço
ção da fé que en volve o d evoto num m om ento religioso sagrado d o santuário, que ocorre aproxim adam ente às 6
bastante comum no espaço sagrado dos santuários católicos. horas da manhã.

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EXPLORA ÇÕES GEOGRÁFICAS 0 S AG R A D O E O E S P A ÇO

M esm o quando não vai para participar das cerim ónias


F i g u r a 3: A P e r m a n ê n c ia d o R o m e ir o religiosas, o rom eiro declara qu e v e io pagar promessa;
no C e n t r o R e l ig io s o algum as vezes não se considera católico e afirm a não gostar
d e padres. M as fa z prom essa sem pre que precisa; “ Sem pre
h sou aten did o e vo lto para pagar” . Sendo assim, a Sala dos
M ilagres é visita ob rigatória para a m aioria dos devotos; o
fluxo m aior d e rom eiros é p ela manhã, e m enor à tarde.
N o que se re fe re à alim entação, os rom eiros trazem um
lanche d e casa ou fazem as refeiçõ es em restaurante ou
um a lig eira refe iç ã o na lan ch on ete da igreja. A perm anên­
cia no Santuário é fortem en te m arcada pela religiosidade,
m esm o na h ora d o com ércio e d o lazer que o d evoto exer­
ce n o espaço profano.
N os santuários localizados em áreas rurais a perm a­
nência dos rom eiros no espaço sagrado é m aior no tem po
d e festas d o qu e nos fins d e semana. Já nos centros religio­
sos d e área urbana os rom eiros são “peregrinos d e um dia”
(R IN S C H E D E , 1985: 201), isto é, perm anecem no Santuário
d e seis a sete horas: chegam p ela manhã, assistem à missa e
visitam a cap ela original, na qual está a im agem m ilagrosa
O roteiro d evocion al atinge ali, n o lugar sagrado, o seu pon­
to alto. A p ós perm an ecer em um a fila, quase sem pre longa,
o d evoto se aproxim a da im agem , toca-a, faz suas orações e
sai da capela. A s poucas horas d e perm anência dos rom ei­
m E s p a ç o S agrado ros no Santuário são vivenciadas com grande intensidade,
j E s p a ç o P ro fa n o D ir e t a m e n t e V in c u la d o num com portam en to ch eio d e fé , piedade e devoção. A
roteiro devocional
ITiVl E s p a ç o P ro fa n o In d ire ta m e n te V in c u la d o d o romeiro razão prin cipal das peregrin ações é a devoção.
I I E s p a ç o P ro fa n o R e m o ta m e n te V in c u la d o
O espaço-tem p o d o rom eiro representa a vivência de
O rg a n iz a d o p o r R o s e n d a h l , Z . sua prática d e seus atos religiosos. Assistir à missa, fazer a
B a s e a d o e m P r e d (1 9 8 9 ) e R i n s c h e d e (1 9 8 5 )
confissão e rec e b e r a com unhão, num a vivência com o sa-

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E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S 0 S A GR A DO E 0 E S P A Ç O

grado oficial, são realizados p elo rom eiro no espaço sagra­ O fluxo de retirada do centro religioso ocorre p o r v o l­
do. G eneralizando, pode-se d izer que 90% dos rom eiros ta d e 14 horas para alguns devotos. O utros retom am ao
reproduzem no Santuário a vivên cia do catolicism o p op u ­ espaço sagrado para a últim a bênção ou para se d esp ed i­
lar, com seus rituais religiosos, no ato d e agradecer ou "p a ­ rem d o lugar sagrado. As 18 horas não é com um encontrar
gar promessas” . A vivên cia do sagrado, para esses rom eiros, p eregrin os na área. O espaço sagrado é restrito aos m ora­
está expressa num cód igo p róp rio produ zido p elo im aginá- j dores ou à com unidade religiosa qu e fech a a igreja.
rio social em suas relações reais entre o d evoto e o santo. A p artir da contribuição de E l ia d e (1991), R O S E N -
A diversidade das m ercadorias não religiosas coloca­ D A H L (1994b) eviden cia a recriação d o espaço sagrado a

das à venda revela que são, em sua m aioria, d e uso pessoal, cada tem p o sagrado pelos rom eiros que, ao realizarem suas
e estão integradas à cultura local, poden do com p reen d er práticas, reorganizam o espaço. A F igu ra 4 m ostra a pulsa­
tipos de vestuário, alim entação típica do lugar, utensílios ção d o sagrado, na hierópolis d e P o rto das Caixas, no R io
com um ente usados nas residências, entre outros. São o b je ­ d e Janeiro, em três m om entos. N o tem p o com um , o espa­
tos tradicionais, já fazen do parte d o im aginário religioso ço sagrado reduz-se ao pon to fixo e seu entorno. A cada
católico, com o as im agens do santo padroeiro, os terços, as fim d e sem ana o espaço am plia-se, ocupando, sobretudo, a
medalhas, crucifixos, livretos das ladainhas e santinhos. E s­ fren te da igreja e a m a próxim a. Nas festas da padroeira, o
ses objetos, em sua m aioria, sim bolizam o lugar, e o m otivo espaço sagrado dilata-se mais ainda, incorporan do p arte d o
da sua aquisição é sem pre o m esm o: “ levar com o lem bran­ espaço profano.
ça do lugar” , “ colocar o santo em m inha casa” ou “levar co­ A credita-se que a percepção d o rom eiro que visita o
m igo a recordação do lugar” . lugar sagrado representa uma necessidade d o exercício da
O consumo do sagrado é uma característica singular religião, que som ente ali p od e concentrar sua atenção, e ex­
nas cidades-santuários e independe da localização do espa­ prim ir, sob form as sim bólicas, seu relacionam ento pessoal
ço sagrado, podendo ocorrer no Santuário d e Fátim a, em com D eus. O lugar p od e ser o m esm o, mas a concepção
Portugal, no espaço sagrado de Lou rdes, na França, no Va­ sim bólica p od e variar entre os m oradores e tam bém en tre
ticano, na Itália, ou m esm o nos espaços sagrados brasilei­ os peregrin os. E le está sem pre m udando d e significado, na
ros de Canindé, no Ceará, M uquém , em G oiás, e Santa m edida em que cada grupo social lh e atribui valores d ife ­
C ruz dos M ilagres, no Piauí, e outros. A pesar das d iferen ­ renciados aos elem entos do espaço. A esse respeito, afirm a-
ças sociais e culturais qu e esses centros possuem , o com ér­ se qu e cada lugar possui um a com binação singular d e variá­
cio do sagrado é realizado com os artigos religiosos da m es­ veis, dessa form a indicando que os elem entos variam e
ma natureza, sendo o sagrado com ercializado de form a m udam d e valor segundo um tem po espacial próprio.
integrada com o sistem a religioso católico universal.

140 141
••cOfciíAL DO UEASA
RJL-i.::' • i c l ECMGLG-í-y *
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S 0 SAGRADO E 0 ESPAÇO

Gestão religiosa do espaço:


F i g u r a 4: E s p a ç o Sa g r a d o n o s D iv e r s o s T e m p o s territorialidade católica
Sa g r a d o s e m P o r t o d a s C a ix a s

N o Brasil, os m istérios da fé cristã foram introduzidos


oficialm en te p elos portugueses, não só através da interven­
ção d o E stado, mas tam bém das ordens religiosas e pela
ação dos colonos. O com p lexo processo de ocupação do
espaço b rasileiro, fe ito em etapas e valorizando áreas em
m om entos distintos, perm itiu qu e o catolicism o no Brasil
assumisse características próprias, bastante distintas do ca­
tolicism o europeu. N o Brasil colonial, a participação bas­
tante acentuada das irm andades nas igrejas e o predom ínio
do aspecto d evocion al dos fiéis, expresso através de rom a­
rias, das prom essas e ex-votos, das procissões e festas d edi­
cadas aos santos, dão um caráter em inentem ente social e
popular ao catolicism o brasileiro.
D estaca-se no século X V I a atuação dos missionários
jesuítas e franciscanos na conquista e ocupação do litoral
brasileiro, b em com o a fo rte atuação, principalm ente dos
jesuítas, n o estab elecim en to d o sistem a colonial português
no país. A s rom arias nesse século foram incentivadas pelos
religiosos e tinham um a fin alidade missionária de cateque­
se e de evan gelização d o país.
D urante os séculos X V II e X V III, as romarias, princi­
palm ente n o in terio r d o país, nasciam espontaneam ente da
O Espaço Sagrado no piedade p op u lar e se desenvolviam com ampla liberdade
50 lOOm
g g T e m p o Sagrado d e 2 * a 6.“-feira na igreja de expressão p o r parte d o povo. As devoções surgem do
132 T em p o Sagrado em fim de semana povo. As im agens eram encontradas p o r pescadores, ín­
T em p o Sagrado na Festa d o Padroeiro dios, aventureiros, e o aspecto m ilagroso da aparição da
im agem eviden ciava a vontade divina que escolhera esse
Organizado por R o s e n d a h l , Z.
lugar para ser destinado ao culto. O p ovo constrói, assim, o

142 143
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS 0 S AG R A D O E 0 E S P A Ç O

espaço sagrado, realizando com ilimitada liberdade seus cism o oficial. C ada santuário possui um conjunto de rep re­
cultos religiosos (HOONAERT, 1984). sentações e práticas religiosas desen volvidas p e lo im aginá­
Durante o século X V III, a expansão dos santuários rio popu lar com um à com unidade local. Essas representa­
coincide com a grande corren te m igratória de aventureiros ções e práticas representam o sincretism o dos sím bolos re ­
portugueses e brasileiros em direção a M inas G erais e d e­ ligiosos introdu zidos no B rasil pelos m issionários portugue­
mais regiões m ineiras. O qu e caracteriza a form ação dos ses e p o r alguns sím bolos religiosos indígenas e africanos.
santuários nesse século é a ausência das ordens religiosas R epresen tam um trabalho anónim o e c o le tiv o d e um grupo
clássicas que evangelizaram o litoral brasileiro: os francis- hum ano e, com o tal, está necessariam ente condicionado ao
canos, os jesuítas, os beneditinos e os carm elitas. O m ovi­ con texto socioecon ôm ico d o país. O reg im e d e padroado
m ento m issionário d o século X V III não fo i clerical e sim vigo ra até a instituição da R epú blica, em 1889, quando fo i
leigo. Os santuários que surgem neste p erío d o represen ­ tam bém proclam ada a separação en tre Ig re ja e Estado. A
tam uma tentativa popular d e valorização da fé e da m oral religiã o católica perm aneceu fortem en te leiga através da
católicas, em oposição aos m ales trazidos p e lo ouro. É nes­ ação das confrarias e da ação individu al dos erm itões (O L I­
se contexto socioecon ôm ico, que produziu luxo e p o d er VEIRA, 1985).
para uns, e m iséria e opressão para outros, qu e o núm ero As confrarias são associações religiosas nas quais se
d e ermidas ganha m aior im portância. Enquanto a m aioria reúnem os leigos com a fin alidade d e con stru ir igrejas, rea­
concentrava suas esperanças no garim po, em busca da ilu ­ liza r os cultos e p rom over a devoção dos santos. H á dois
sória riqueza, outros escolheram outra form a d e vida, radi­ tipos principais d e confrarias: as Irm andades e as O rdens
calm ente contrária: foram os erm itões. Terceiras. A s confrarias, tanto no p erío d o colon ial com o no
N o Brasil, tal m ovim en to é levado adiante p o r leigos im perial, m antiveram sem pre um caráter m arcadam ente
que deixam a vid a m undana para viver no ascetism o e na religioso e devocional. E ntretanto, algum as possuíam um
penitência ju n to a algum a erm ida. Às vezes, agrupam -se e aspecto em in en tem en te social, exem p lificad o p ela Irm an­
form am uma pequena com unidade. F reqiien tem en te cria­ dade d a M isericórdia. P resen te no país desde o século
va-se uma confraria para ajudar o erm itão a cuidar da X V I, m antém até os dias d e h o je um a fo rte atuação social e
erm ida e a acolher os rom eiros. Assim , no sécu lo X V III religiosa. D eclin ou apenas na fase republicana, ao ser m ar­
foram -se constituindo os santuários. C om o exem plo m en­ ginalizada p ela Ig re ja oficial, sobretudo na segunda m etade
ciona-se o de Bom Jesus da Lapa, na Bahia. d o século X IX , no m ovim en to d e rom anização no Brasil.
D o século X V I ao X V III, a génese dos santuários este­ N a história dos santuários, a passagem d o controle da
ve associada aos sacerdotes e leigos unidos na devoção dos Irm andade para o con trole dos bispos ocorreu, na sua
santos, predom inando o catolicism o popular e não o catoli­ m aioria, com desavenças e brigas judiciais. N os centros

14 4 145
i

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S 0 S A G R A D O E 0 ESPAÇO

religiosos estudados, essa perda do p od er se deu de m od o rais o processo d e rom anização não prevaleceu. Isoladas no
dram ático, prin cipalm en te para as Irm andades, o qu e é in terior, dispersas, sem contato perm anente com o padre,
explicado p e lo m od elo urbano de adm inistração económ ica p erm an ecem nas mãos d e agentes religiosos leigos. Os re-
que as Irm andades possuíam . Elas funcionavam com o v e r­ zadores, beatos e capelães m antêm as práticas tradicionais
dadeiros bancos m odernos: em préstim os pessoais a ju ros e d o catolicism o popular.
hipotecas, e com o “ c o fre ” para o com ércio local. Q uem N o século X X , os bispos procuram assumir o controle
controlasse a Irm andade, controlava o com ércio e a vid a dos centros d e irradiação d o catolicism o popular, pela
p olítica e econ óm ica d o lugar. substituição da Irm andade p ela congregação religiosa eu-
U m exem p lo d e con trole e p od er é forn ecido p ela rop éia na adm inistração dos santuários. Atualm ente, é atra­
Irm andade d e N ossa Senhora d ’Abadia do M uquém , cu jo vés da Pastoral dos Santuários que parte a diretriz rom ani-
presidente, José Joaquim Francisco da Silva, con hecido zadora sobre a massa dos fiéis.
com o “T e rro r d o N o rte d e Goyas” , acum ulava as funções É nessa estratégia geo grá fica de controle de pessoas e
de presid en te da Irm andade, m estre da L o ja M açónica d e coisas qu e a instituição com plexa da Ig re ja C atólica Apos­
São José, C om andante G era l da G uarda N acional da C o ­ tó lica R om ana d eve ser analisada. C ontém ela exem plos
m arca dos R ios das Alm as e M aranhão, com erciante, fa ­ com plexos d e territórios. SACK (1986:93) considera que a
zen d eiro e govern ad or d e São José d e Tocantins p o r 50 Ig re ja possui duas naturezas. A prim eira constitui um siste­
anos (R O S E N D A H L , 1994b: 77). ma abstrato d e fé e d e doutrina, originando a Igreja invisí­
P ela história d o catolicism o popular no Brasil pode-se vel; a segunda refere-se às instituições sociais da Igreja.
afirm ar qu e os centros religiosos se desenvolvem sem pre a C om p reen d e seus m em bros, funcionários, regulamentos e
partir de dois m ovim entos paralelos: d e um lado, o p od er suas estruturas físicas, d efin in d o a Igreja visível. E difícios
p olítico e/ou eclesiástico, qu e tenta conservar ou possuir o da Ig re ja , propriedades, lugares sagrados, paróquias e d io­
m aior con trole sobre os centros d e devoção, representando ceses são lugares separados p o r lim ites, dentro dos quais a
as classes dom inantes da sociedade; do ou tro lado, o p ovo e autoridade e o acesso são controlados, constituindo-se em
seus representantes mais significativos, que procuram d e­ territórios.
fen d er suas práticas e crenças religiosas: são os oprim idos e A Ig re ja C atólica Rom ana reconhece e controla vários
dom inados (HOONAERT, 1984). tipos d e territórios, mas focalizar-se-á apenas um: os cen­
O século X X não d ifere m uito do anterior. O processo tros d e peregrin ação d o catolicism o popular no Brasil. Sa­
de rom anização, que incluía a substituição das devoções be-se q u e todos os lugares sagrados não são igualm ente
tradicionais pelas novas devoções, m ostrou-se bastante e fi­ santos ou sagrados para os católicos. Algumas igrejas são
caz nas paróquias urbanas. Entretanto, nos santuários ru- mais sagradas, pois são consagradas a um evento m iraculo-

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS 0 SAGRADO E 0 ESPAÇO

so. N os santuários a dinâm ica espacial do p od er religioso Trata-se d o C onselho d e R eitores d e Santuários d o Brasil,
p od e ser apreendida se considerarm os o espaço sagrado que fa z parte d o C onselho N acion al dos Bispos do Brasil.
com o centro de gestão religiosa e territorial. C om p õe-se das aplicações norm ativas d o C ó d igo d e D i­
N o processo d e form ação d e um espaço sagrado reco­ reito C an ón ico e das D iretrizes da Pastoral dos Santuários.
nhece-se três fases hierarquizadas d e con trole d o sagrado. N esta fase, o p od er d e con trole e decisão não é local e sim
Estas fases, contudo, p odem oco rrer em m om entos distin­ central. O p o d er religioso local, qu e na realidade é “ fran­
tos do tem po em pírico, ou duas fases podem ocorrer no qu iado” a um a C ongregação qu e o adm inistra, está integra­
m esm o tem po. Assim , um santuário p ode, p or exem plo, si­ d o à “ red e ” d e santuários, que atinge espaços sagrados
tuar-se numa fase, enquanto outro p od e situar-se em outra m ultilocalizados. P od e-se im aginar um aglom erado d e san­
fase. Vejamos, agora, a p rim eira fase. O p od er d e con trole tuários nacionais e internacionais integrados e que fu n cio­
e decisão das atividades religiosas e sociais d o Santuário na harm onicam ente, segundo d iretrizes ditadas p ela sede
estava ligado ao p od er da Irm andade local. N esta fase, o — o Vaticano. C om o exem plo dessa terceira fase m encio-
controle adm inistrativo do sagrado é local. E xem plifica-se na-se, en tre m uitos, o Santuário d e Jesus C ru cificado d e
com o Santuário de N ossa Senhora da G lória d o O u teiro P o rto das Caixas, M u n icíp io d e Itaboraí, no R io d e Janeiro
(1739-1996), na cidade do R io de Janeiro. O p od er d e con­ ( R o s e n d a h l , 1 9 9 4 b ). N es te sentido, o refe rid o Santuário
trole e decisão religiosa é da Im p eria l Irm andade d e Nossa tem um sign ificado qu e não se dissocia d o p apel qu e
Senhora da G lória do O u teiro. desem pen ha numa red e d e lugares sagrados, controlada
A segunda fase da gestão religiosa é caracterizada p ela S ed e O ficia l localizada no Vaticano.
p elo im pacto da perda da autoridade p ela Irm andade local,
passando o con trole e decisão d o sagrado a p erten cer ao
padre diocesano. Essa perda, na m aioria das vezes, en volve Considerações finais
conflitos nas relações en tre a Irm andade e o padre diocesa­
no e concentra-se nos bens m ateriais que a Ig re ja possuía e O geó gra fo quando estabelece com o ob jeto central d e
eram administrados p ela Irm andade. C om o exem plo de sua análise a religião, encara-a sob a dim ensão espacial. E
santuário d e gestão religiosa diocesana m enciona-se o para realizar sua pesquisa reconstrói teoricam en te o papel
Santuário d e Nossa Senhora d ’Abadia do M uquém , em d o sagrado na recriação d o espaço, reconhecendo o sagra­
Goiás, administrado p e lo bispo da C idade de Uruaçu. do não com o sim ples aspecto da paisagem , mas com o e le ­
A terceira fase da gestão religiosa é m arcada pelas m en to d e produção d o espaço. E talvez seja nas hierópolis
articulações entre os santuários e o processo d e gestão que que, m ais nitidam ente, o sagrado esteja m aterializado atra­
os integram em um p od er superior, com sede em Brasília. vés d e form as espaciais. O rom eiro ou p eregrin o é o agente

148 149
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS 0 SAGRADO E 0 ESPAÇO

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153
152
IM A G IN Á R IO PO LÍT IC O E TERRITÓRIO:
NATUREZA, REGIO NALISM O
E REPRESENTAÇÃO

In á Elias de Castro

Introdução

C onsiderar im agin ário p o lítico e território com o ter­


mos qu e possam articular-se coeren tem en te numa discus­
são acadêm ica d eco rre da acepção m ínim a da política co­
m o con trole das paixões humanas e d o território com o o
suporte m aterial para a convivência, necessária à liberação
da en ergia in eren te àqu ela pulsão. O im aginário social, por
sua vez, é o cim en to dessa coerên cia p or tom ar visível e
in terp retável os sim bolism os presentes nas relações dos
hom ens en tre si e com o seu m eio, os quais m aterializam-
se nos d iferen tes m odos d e organização sócio-espacial. É
neste sentido que im aginário p olítico, território e natureza
encontram -se entrelaçados em situações concretas, expli­
cando algum as das questões-chave, tanto da representação
territorial da p olítica com o o sentido dos seus discursos e
das bandeiras regionalistas.
D esse m odo, a resposta ao desafio de com preender o

155
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS IMAGINÁRIO POLÍTICO E TERRITÓRIO

m undo em que se colocam os geógrafos requ er tam bém que com p õem o im aginário, o espaço é ao m esm o tem po
considerar a força dos sím bolos, das im agens e d o im aginá­ con tin en te e conteúdo dos seus signos e sím bolos. N o
rio com o parte integrante dos conteúdos da disciplina. entanto, p o r se tratarem d e relações humanas, as “paixões”
Constituindo a base das representações que orientam as a elas inerentes lh e con ferem dim ensão política. Assim , o
direções das ações dos hom ens sobre o espaço, o dom ínio im agin ário social desdobra-se em im aginário p o lítico e,
do sim bólico possui um in egável valor explicativo. M ais d o am bos, p o r sua m atriz espacial e p o r serem inform ados
que fonte de sobrevivência, a terra é um registro sim bólico p ela geo gra fia dos lugares, encerram em si o im aginário
p or excelência e, apesar d e a racionalidade m oderna te r geográfico.
conquistado os espaços objetivos das relações sociais, as Assim , m ais d o qu e um a preocupação em buscar um a
representações perm anecem nos dispositivos sim bólicos, d efin ição d e im agin ário geográfico fren te à acepção d e
nas práticas codificadas e ritualizadas, no im aginário e em im agin ário social, o o b jetivo aqui proposto é duplo. P ri­
suas projeções. m eiro, argum entar em favor da inseparabilidade entre im a­
Esta é certam ente um a questão para a geografia na ginário, p olítica e territó rio ; segundo, apontar as possibili­
m edida em que ela é conhecim ento do espaço, mas tam ­ dades em píricas d o con ceito d e im aginário para a com pre­
bém um m odo d e vê-lo, d e interpretá-lo e d e codificá-lo, ensão das form as d e apropriação d o espaço p ela sociedade.
tanto através de seu discurso acadêm ico com o p or in ter­ Trata-se d e p ro p or o inverso d o que há m uito tem po têm
m édio de seus avatares nos discursos do senso com um . P or­ fe ito os antropólogos ao utilizarem os valores sim bólicos do
tanto, sendo a terra desde a aurora dos tem pos fon te de espaço das sociedades com o um recurso em p írico funda­
símbolos e de significados, o discurso geográfico, com eçan­ m ental para com p reen d er o seu im aginário e con hecer os
do p or aquele contido nos relatos dos viajantes do m undo form atos fundam entais da sua organização.
antigo até o dos intérpretes contem porâneos d o espaço glo­ A u tilização dos conceitos d e im aginação, im agem e
balizado, contribui com sua retórica para construir e ali­ im agin ário tem sido cada v e z mais frequ en te em diferentes
mentar o im aginário social. Portanto, se a interpretação des­ linhas d e pesquisa geográficas, desde as incursões fen om e-
te imaginário é necessária para a construção d o conheci­ nológicas da G eogra fia H um anística até as discussões sobre
m ento, a geografia, nada inocente no assunto, d eve m obili­ as im aginações geográficas e a renovação da geografia cul­
zar seus recursos intelectuais para participar desta tarefa. tural. Sinal da p ertin ên cia d o tem a é a presença d o term o
C om o contribuição, este trabalho desenvolve-se em im a g in á rio en tre as palavras da geografia qu e com põem o
tom o da id éia central da necessária interação entre a terra dicion ário organizado p o r R oger B R U N E T (1992) e com o
e o hom em com o fundadora do im aginário social. M ais do um capítu lo da en ciclop éd ia d e geografia organizada p or
que inspirador dos m itos e base da organização dos rituais B A IL L Y e t al. (1995). A s abordagens geográficas dos p ro­

156 157
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I M A G I N Á R I O P O L Í T I CO E T E R R I T Ó R I O

blem as relativos ao im aginário indicam a sensibilidade da pectiva, a rígid a busca, na disciplina, d e fatores causais d e­
disciplin a a este percurso nas ciências sociais, am pliando as fin ia o con teú do explicativo dos fatos geográficos em fun­
possibilidades em píricas d e utilização do con ceito, ainda ção da possibilidade d e claras e objetivas relações de causa
p olêm ico e, durante m uito tem po, chasse gardée da filoso­ e e fe ito , qu alqu er referên cia à im agem , sím bolo ou im agi­
fia, da an tropologia e da sócio-linguística. C ertam ente é na nário só m erecia status explicativo se subordinada à lógica
com petên cia geográfica sobre o espaço que reside sua con­ o b jetiva da base m aterial, sendo esses conceitos natural­
tribu ição ao debate e à elaboração d e novas questões que, m en te decod ificad os com o ideologia. A incorporação des­
d e um pon to d e vista acadêm ico, representem um avanço ses con ceitos, em b ora ainda objetos d e polêm ica, através
tanto para o tem a em geral com o para a disciplina em par­ da abordagem fen om en ológica da G eografia Hum anística
ticular. contribuiu para am pliar a agenda tem ática e o cam po em ­
E m sua tarefa d e p rod u zir conhecim ento sobre o es­ p írico da disciplina. N o entanto, o m om ento presente é im ­
paço, a G eogra fia funda tam bém um discurso sobre o espa­ p ortan te p o r estim ular a busca d e novos percursos intelec­
ço (B E R D O U L A Y , 1 9 88 ). M as qu em lhe d á sentido e consis­ tuais para a explicação geográfica, que devem ir além tanto
tência, sancionando-o, é a sociedade, com suas contradi­ da rig id e z d e um esquem a explicativo universal com o da
ções, pulsões, desejos, con flitos — em síntese, paixões; p o ­ flexib ilid a d e im aginativa e sensorial da corrente humanista.
rém necessariam ente contextualizadas no tem po e no espa­ A necessidade d e as ciências am pliarem os lim ites explica­
ço. N este sentido, com o a am bição de com preen der e ex­ tivos m ais além da razão da m atriz iluminista, sem perder
p licar o espaço através d e um a racionalidade objetiva, com d e vista o rigo r d o m étodo, revela-se nas críticas cada vez
a pretensão d e exclusividade na apreensão d o rea l e na ela­ m ais ressonantes ao paradigm a cien tífico vigente, id en tifi­
boração d e um discurso unívoco sobre ele, está epistem o- cado p o r M O RIN (1996) com o da sim plificação, numa clara
logicam en te em crise, novos cam inhos, m esm o que p o lê­ alusão à sua perspectiva d e qu e fenôm enos complexos pos­
m icos, devem ser tentados. sam ser reduzidos às suas causas mais simples. A contribui­
E m seu percurso com o disciplina acadêm ica, a G eo­ ção desta crítica está na possibilidade d e com preensão da
grafia tem incorporado conceituai e m etodologicam ente a com plexidade dos fenôm enos pela incorporação dos con­
sociedade, ou seja, o fa zer social e sua dinâm ica. P rision ei­ teúdos d e suas significações sim bólicas, o que amplia o co­
ra da razão ilum inista, a ob jetivid ad e necessária ao fazer n h ecim en to para além d o dom ínio das causalidades con­
cien tífico expulsava d e suas argum entações tudo qu e não cretas, visíveis e objetivas.
tivesse existência concreta ou qu e não pudesse ser explica­ Q uestões novas estão sendo colocadas para os indiví­
do d e acordo com a razão, faculdade que tem o ser huma­ duos e para a sociedade e, conseqiientem ente, para as dis­
no d e avaliar, julgar, ponderar idéias universais. N esta pers- ciplinas qu e se p rop õem am pliar o conhecim ento sobre a

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I M A G I N Á R I O P O L Í T I CO E T E R R I T Ó R I O

dinâm ica e interação en tre am bos com o espaço. As im a­ qu estões qu e se colocam para a agenda d e pesquisas da
gens, sua extensão vertical e horizontal, im põem conteúdos geo gra fia contem porânea. N este sentido, d ize r qu e o espa­
novos às ciências sociais p ela am pliação do m undo cotidia- ç o g eo grá fico é o espaço da p olítica, apesar d e à prim eira
no, pela incorporação d e um novo cosmos (propiciado p e ­ vista p a recer uma banalidade, serve com o p on to d e partida
las pesquisas espaciais) no qual elas substituem os relatos para um a discussão dos significados dos conteúdos p o líti­
do cosmos dos antigos. H á uma nova dinâm ica das im agens cos d o espaço e das m ediações dos conteúdos espaciais no
pela contínua produção d e sím bolos, tom ando mais num e­ fa ze r p olítico . Se aceitam os com o d efin ição m ínim a d e es­
rosos e com plexos os aparatos para sua produção. A lém p aço “ o conjunto indissociável d e sistemas d e objetos e sis­
disso, novos m odos d e apreensão e de vivên cia dos sím bo­ tem as d e ações” proposto p o r M ilton SA N TO S (1996), p o ­
los produzem im portantes efeitos sobre o com portam ento dem os acrescentar que há na id éia d e “ ação” um fo rte nexo
individual e coletivo; sobre a p olítica e o processo d ecisório com portam en tal e decisional, o qu e nos p erm ite recon h e­
e sobre o território, enquanto produto e continente — na­ c e r q u e o espaço é b em mais que um a instância p olítica,
da passivo ou inocen te — d o conteúdo social. sendo m esm o parte integrante da sua essência. A id éia d e
Todas estas questões apontam para a relação necessá­ essência aqui é fo rte e, certam ente, vista com reservas nas
ria entre o im aginário e a epistem ologia. Prim eiro, o p ap el abordagens não espaciais da política. P orém , com o nosso
heurístico do im aginário, cujos conteúdos sim bólicos das p rob lem a é dem onstrar que espaço e p olítica são indisso­
imagens, do im preciso, das contradições constituem desa­ ciáveis, tentarem os progressivam ente elaborar e d efen d er
fios colocados à investigação científica, em qualquer cam po, esse argum ento.
há m uito tem po. Segundo, e decorrência natural do p rim ei­ P artin d o da p olítica com o um a palavra-chave e in do
ro, considerar conceituai e em piricam ente o im aginário b em m ais além d o seu significado institucional, ou seja, a
constitui uma alternativa m etodológica para lidar com a centralização da organização da vid a p olítica e social no
com plexidade dos fenôm enos geográficos; ou seja, com a E stado, um a discussão mais abrangente d o term o d eve
m ultiplicidade das suas m ediações e dos seus símbolos, com con siderar com o postulado que a p olítica funda a vid a
a incorporação explicativa d o não racional e d o em ocional e social p ela possibilidade qu e ela o fe rec e d e con trole das
com o ressurgim ento do fenôm eno, rejeitado pelas ativida­ “paixões” desencadeadas p e lo con vívio hum ano em co leti­
des racionais desde o final d o século X V III. vidades, qu alqu er que seja o núm ero d e seus integrantes.
O cam po das relações entre a política, com o con trole E m outras palavras, com o a convivência humana é fon te
da ação individual e coletiva, e o espaço, com o continente p oten cia l d e con flito, o sentido da p olítica é, justam ente,
destas ações em função da inserção territorial fundadora estab elecer os seus lim ites. A p olítica é, portanto, o m eio
do fato político, revela um am plo e estim ulante lequ e d e d e con trole das paixões; em bora progressivam ente encaste­

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lada na esfera pública, perm anece tam bém com o regulação A com preensão d e qu e um a form a duradoura de con­
na esfera privada. N a realidade, o processo d e socialização trole dos con flitos sociais requ eria um a clara e segura d eli­
ao m esm o tem p o em que d iferen cia a espécie humana dos m itação territo rial fo i a questão central d e O P rín cip e, de
anim ais, estab elece as condições para a liberação das pul- M aquiavel. C ircunscrevendo o “p olítico” em seu caráter
sões mais caracteristicam ente humanas, que vão desde a puro e irred u tível, M aqu iavel reconhece o caráter confli-
afetivid ad e e generosidade até o ódio, inveja e am bição. Se tual d o corp o social e aponta a necessidade de controles
o dom ín io dos dois prim eiros estabelece as bases para a legais e m orais (este term o tenta assim ilar a “idéia regula­
p az e a cooperação, a intervenção de qualquer um dos dora” con tida no seu con ceito d e v irtu ), mas volta-se para
outros três cria as condições para disputas. Esta p ersp ecti­ uma realidade em pírica, na qual a fórm u la da base territo­
va d e um con vívio ao m esm o tem po instituinte d o ser rial para a estabilidade das condições para o exercício do
social e intrinsecam ente conflituoso constitui o paradoxo p od er d o p rín cip e e da riqu eza da sociedade era funda­
qu e funda a p olítica na esfera social. m ental. Sua questão mais im portante era a divisão da Itália
O pensam ento p olítico m oderno, desde M aquiavel,
daqu ele tem p o em cinco centros de p od er: o Papa, Veneza,
passando p o r B odin, H obbes, Rousseau, tinha com o p ro­
N ápoles, M ilã o e Floren ça, o que a tornava vulnerável,
blem a central a organização d e um sistema d e regras que
"sem um ch efe, sem ordem , batida, espoliada, dilacerada,
perm itisse regular e con trolar os interesses, avatares das
invadida e suportando todos os infortúnios”. N a realidade,
paixões humanas, de m odo duradouro. A o Estado M o d er­
M aqu iavel tinha em m ente o novo fenôm eno das nações-
no, com seu aparato institucional e legal de con trole, in d i­
estado, com o a França, cuja unidade e autonomia conquis­
vidual e coletivo, e de m onopólio da violência legítim a, tem
tadas con tra a dispersão feu dal e o p od er espiritual dos
cabido, há três séculos, a tarefa d e subm eter e estabelecer
Papas encontravam -se em plen a consolidação. Para ele,
os lim ites dos con flitos sociais em recortes espaciais parti­
fo rtu n a (acaso e oportu nidade) e v irtu (qualidade e pré-
culares. E ste m od elo d e organização da vida social em E s­
requisito da lideran ça) são os dois pólos da ação política,
tado territorial, dom inante na m odernidade, d eriva da in ­
que, em bora qualificativos humanos, são engendrados a
separabilidade entre espaço e sociedade e en tre sociedade
partir da base territorial da ação.
e política. É preciso acrescentar aqui que o term o socieda­
de, além da acepção m ínim a de associação, contém tam ­ A discussão da inseparabilidade en tre espaço e p olíti­

bém a id éia d e um balizam ento de espaço e d e tem po. ca refere-se, portanto, à questão da violência fundadora

Portanto, cada sociedade está contextualizada p ela sua his­ das relações sociais e à necessidade d e formas institucio­

tória e p ela sua geografia; com o corolário, tam bém as rela­ nais e d e recortes territoriais para o seu controle. Bem
ções políticas no seu interior. mais antiga qu e os postulados d o Estado M oderno, esta

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perspectiva é encontrada em todos os pensadores p olíticos, D o imaginário ao imaginário político


qualquer que seja a sua época, e fundam enta a existência
d e um im a gin ário p o lítico , constituído no paradoxo da n e­ O term o im aginário rem ete necessariam ente às suas
cessidade social d e estar junto e na latência do con fron to raízes — - im agem e im aginação, e conseqú entem ente ao
gerado na satisfação desta necessidade. Para a discussão da sign ificado corren te d e produ to da im aginação e, com o tal,
evidência do espaço com o referen te da ação política, pelos sem possibilidade d e existência concreta, opondo-se à ex­
seus conteúdos m ateriais e sim bólicos, e da política com o p eriên cia com o fon te d o conhecim ento. E ste é o prim eiro,
decisão que configura o espaço é preciso recorrer a soció­ e fundam ental, problem a d e atribuir ao vocábu lo um con­

logos ou politólogos com sensibilidade espacial e a geógra­ c e ito academ icam ente ú til fora das disciplinas que têm nas

fos com sensibilidade política. N o entanto, não é evid en te im agens m entais e psicológicas seu ob jeto d e reflexão. N a
realidade, a tensão en tre im agem /im aginação e razão com o
que as discussões contenham , d e form a acabada, os argu­
substratos d o conhecim ento e da busca da verd ad e é uma
m entos úteis à proposta da análise da inseparabilidade con­
questão colocada para os grandes sistemas m etafísicos des­
ceituai de espaço e política. É preciso extrair fragm entos
d e a an tigu idade grega. A busca da verdade em Sócrates,
para reuni-los nesta construção.
passando p o r Platão e A ristóteles, estabelecia que a única
C om o percurso m etodológico, optam os pela discus­
v ia d e acesso a ela era a experiên cia dos fatos. A pesar d e
são conceituai d o im aginário social, que se desdobra em
P latão e seus seguidores considerarem o m ito um a possibi­
im aginário político, o qual p o r sua v e z se alim enta d o e
lid ad e para alcançar verdades indem onstráveis, graças a
realim enta o im aginário geográfico. C om o os term os im a­
sua lin gu agem sim bólica e im aginária, as correntes raciona-
gem , im aginação e im aginário têm hoje uma presença forte
listas qu e renegavam a im aginação p or constituir fon te d e
nos trabalhos geográficos, uma contextualização destes te r­
erros e d e falseam entos im puseram -se progressivam ente
mos em relação às suas m atrizes intelectuais, m esm o que
no pensam ento ocidental. Foram , então, com pletam ente
sumária, pode ser útil com o base d e referência. Nossa p ro­
excluídas dos procedim entos intelectuais, a partir do século
posta de trabalho é, portanto, a discussão do im aginário X V II, todas as reflexões que não estivessem apoiadas na
p olítico e sua utilidade conceituai e em pírica para am pliar exp eriên cia e na razão com o form a de acesso ao conheci­
a agenda da geografia p olítica e avançar o conhecim ento m en to verd ad eiro. A pesar d o dom ínio das correntes racio-
sobre o espaço geográfico, especialm ente seu desdobra­ nalistas, a tensão en tre os dois conjuntos d e concepções
m ento em pírico representado p elo território. filosóficas sobre as mais consistentes vias d e acesso ao
con h ecim en to não desapareceu com pletam ente na m oder­
n idade ocidental.

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O p rim eiro desses conjuntos p erten ce à tradição ilu- senciais em nossa relação com o mundo. Para esta relação,
m inista qu e desvaloriza a im agem e a função da im aginação o im aginário, sendo função e produto da im aginação, in­
p ela contradição entre im aginário e realidade concreta, que corp ora e reconstrói o real. Trata-se, aqui, de p erceb ê-lo
só p od e ser apreendida p ela razão. A função da im aginação com o substantivo, com o m ediação da realidade. (S A R T R E ,
é, justam ente, libertar-se da razão e, portanto, negá-la, d ifi­ 1980; V É D R IN E , 1990; B A L A N D IE R , 1994, 1997; C ASTO -
cultando a com preensão da realidade. D escartes, Pascal, R IA D IS , 1997)
Spinoza, L eib n iz denunciavam a im aginação com o o fim d o Tam bém os avanços da psicologia, especialm ente com
progresso d o conhecim ento, atribuindo-lhe as noções d e F reu d , qu e apontou o papel decisivo das imagens com o
ilusão e fantasia, considerando-a o vazio da razão. A exclusi­ m ensagens que chegam à consciência a partir do incons­
vidade do m étodo proposto p o r Descartes com o único m eio cien te, abriram cam inho para a revalorização da im agem ,
d e acesso à verdade científica, que invadiu tod o o cam po de d o sim bólico, qu e na psicologia perm itiu, com Jung, o res­
investigação d o saber verdadeiro, fo i decisiva no fortaleci­ gate da im portância d o im aginário para além das referên ­
m ento d o paradigm a racionalista em todos os ramos da cias à cultura ocidental, d e m atriz européia. A o identificar,
ciên cia m oderna. A im agem , produto d o devaneio, d o fal­ em seu m étodo terapêu tico, os arquétipos, ou seja, as im a­
seam ento da razão, fo i relegada à arte d e persuadir dos p re­ gens psíquicas d o inconsciente coletivo, que constituem
gadores, dos poetas, dos pintores, sem jam ais te r acesso à um a herança com um d e toda a humanidade, o discípulo de
dignidade d e uma arte d e dem onstrar (D U R A N D , 1994). F reu d estabeleceu tam bém novos elem entos para a discus­
O segundo, pode-se dizer, representa a herança p lató­ são e com preensão d o im aginário social fator de conheci­
nica que, em bora d e m odo esporádico, fincou alguns ali­ m en to d o com portam ento individual e coletivo.
cerces para a crítica d o dom ínio da razão com o única fon te As discussões acim a perm item uma prim eira tom ada
d e acesso à verdade. N o século X V III, K ant já elaborava a d e posição conceitu ai d o im aginário com o a força atuante
resistência a um racionalism o dogm ático, fortalecid a no da id éia e da representação m ental da im agem . N este sen­
século X IX , prim eiro p ela reação rom ântica aos excessos tid o, o im aginário constitui uma energia que se form aliza
do m ecanicism o e d o m aterialism o cartesianos e p osterior- individual e coletivam ente, m aterializando-se em ações in­
m ente p ela revolução filosófica do final d o século que res­ form adas p or im agens e sím bolos (D U B O IS , 1995). D es­
gatou a im agem , não apenas com o ob jeto d o con hecim ento vendar o im aginário significa, pois, revelar o substrato sim­
atual, mas com o todo ob jeto passível de um a representação b ólico das ações concretas dos atores sociais, tanto no tem ­
(B E R G S O N , cf. SARTRE, 1984). N o século X X , com Bache- p o com o no espaço.
lard e Sartre, im agem e im aginação são percebidas com o E m síntese, o con ceito d e im aginário, enquanto subs­
faculdad e de conhecim ento e estado de con hecim en to, es­ tan tivo da im aginação produtora, ou seja, a mediação entre

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IMAGINÁRIO POLÍTICO E TERRITÓRIO
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o mundo in terior e o exterior, entre o real e o im aginado, d o en tão “ o im aginário esta conexão obrigatória, p ela qual

supõe a utilização de sím bolos, signos e alegorias. Se com o se constitui toda a representação humana” , podem os acres­

articulação en tre realidade, discurso e conhecim ento o con ­ cen tar qu e esta conexão se faz necessariam ente no espaço,

ceito de im aginário p od e ser em piricam ente útil, a extrem a com o fo n te inesgotável d e signos e sím bolos d o im aginário

confusão no uso de term os a e le relacionados, pela desvalo­ social. D e v e ser acrescentado, p orém , que não há unanim i­

rização da im aginação nas correntes racionalistas do pensa­ dade nas correntes qu e reconhecem a im aginação com o

m ento ocidental, tom a-o um con ceito de utilização sem pre fo n te d e conhecim ento. Estas desdobram -se na p ersp ecti­

polêm ica. va d o sím bolo com o base da representação humana, com o

Não se trata aqui d e reproduzir a história e as reflexões in d ica D urand, ou na im aginação com o ob jeto d e reflexão
sobre a polêm ica em to m o d o valor heurístico da im agem e qu e não p od e ser exclu ído p ela razão, com o qu er Sartre,
da imaginação nos sistemas m etafísicos que têm , desde a ou fo n te d e criação, psiquicam ente fundam ental, com o
antiguidade clássica, estruturado nossos paradigmas na bus­ aponta Bachelard, ou ainda com Castoriadis, com o alterna­
ca do conhecim ento através da ciência. Autores com o SAR- tiva aos lim ites im postos p ela rigid ez explicativa d o m ate­
T R E (1980); D U R A N D (1992, 1994); C AS TO R IA D IS (1991, rialism o histórico e seu con ceito d e id eologia. M as, qual­
1997); V E D R IN E (1990) já o fizeram , e m uito bem . N osso q u er qu e seja a p erspectiva dada à questão, d eve ser ressal­
objetivo, ao trazer fragm entos desta discussão, é argum entar tada a posição de B A L A N D IE R (1997), para quem “ o im agi­
em favor d o sim bólico e d o im aginário com o objetos d e nário perm anece mais d o qu e nunca necessário, sendo d e
reflexão acadêm ica e com o possibilidade m etodológica d e algum m od o o oxigén io sem o qual toda a vid a pessoal e
abordagem d o real, tam bém nas pesquisas em píricas qu e se co letiva se arruinariam ” .
propõem a am pliar o conhecim ento sobre o espaço. Trata- P o r tudo isto, tem sido cada v e z mais consensual no
se de alim entar o caudal das correntes geográficas qu e in­ n ovo paradigm a cien tífico a incorporação da im agem , d o
corporam as representações sociais com o m ediações funda­ sim b ólico e d o im aginário com o problem as que d evem ser
mentais ao conhecim ento da sociedade e do espaço, contri­ considerados na busca d o conhecim ento. Paralelam ente,
buindo com a articulação necessária entre objetos concretos tam bém o espaço com o ob jeto e com o continente/conteú-
e seus conteúdos sim bólicos, procurando com preender o d o sim b ólico tem sido considerado nas pesquisas orienta­
seu significado para a geografia. das na d ireção desse n ovo paradigm a. Bachelard, cujas re­
P a rtin d o d a p r o p o s ta d e D U R A N D (1 9 9 4 ) d e q u e t o d o flexões ajudou a d elin ear este novo espírito cien tífico, res­
p e n sa m en to h u m a n o é re p re s e n ta ç ã o , q u e r d izer, passa p e ­ gatou a im portância da im aginação e d o im aginário, argu­
las m ed ia ç õ es sim b ó lica s e q u e n ão h á solu ção d e c o n tin u i­ m entando sobre a referên cia fundam ental d e am bos à na­
d a d e , para o h o m e m , e n tr e o im a gin ário e o sim bólico, sen ­ tu reza e ao espaço; estes com o com ponentes do psiquism o

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hum ano e com o referên cias obrigatórias para a com p reen ­ A lém dos elem en tos terrestres presentes nas re fle ­
são d o p on to em que se cruzam ciência e poesia, razão e xões d o filósofo, tam bém o espaço é interpretado com o um
devaneio. E m sua interpretação do espírito cien tífico é arqu étipo, com o um elem en to essencial da estrutura psico­
incorporada a criatividade d o espírito p or via da im agina­ lógica d o indivíduo. E m sua Poética d o espaço, são desven­
ção, associada à experiên cia com a natureza e com o espa­ dados os “valores d o espaço habitado” , “ o não-eu que p ro­
ço, para um a contínua retificação dos conceitos e rem oção te g e o eu ” . O espaço da casa constitui “ a concha protetora
d e obstáculos ep istem ológicos colocados p e lo ap ego à ex­ e criadora d e im agens que perm anecem guardadas, escon­
p eriên cia com o pon to d e partida absoluto. didas nas profundezas da alm a humana” . O valor sim bólico
A pesar da sua rejeição in icial das im agens p e lo risco d o espaço está con tid o na sua proposta de pesquisar a
das m etáforas enganadoras qu e elas im plicam , B achelard to p o filia para “d eterm in ar o valor humano dos espaços de
apontou, na fase final da sua obra, a im portância da im agi­ posse, espaços p roibidos a forças adversas, espaços am a­
nação, d esen volven do sim ultaneam ente um a dupla fen o- dos” . A relação psicológica d o hom em com o seu espaço
m en ologia d o im aginário: na ciência e na poesia. In co r­ encontra-se tam bém na base d e sua proposta de um a to -
porando o p ap el d o sim bolism o im aginário na representa­ poanálise, ou seja, um estudo p sicológico sistem ático dos
ção à discussão dos lim ites d o debate en tre as corren tes lugares físicos da nossa vid a íntim a. É im portante reter o
racionalistas e realistas, criticou a encruzilhada dos cam i­ e lo a fetivo entre a pessoa e o lugar, ou am biente físico,
nhos en tre realism o e racionalism o que p rod u z o duplo com o um com ponen te d o im aginário social e das paixões
m ovim en to p e lo qual a ciên cia sim plifica o real e com p lica qu e constituem os alicerces das relações sociais. R ecor­
a razão. Para o autor, a im aginação é dinam ism o organiza­ ren do ao qu e fo i d ito no in ício, na política, quando paixões
d or e este é fator d e hom ogen eidade na representação. transform am -se em interesse, tam bém a relação afetiva
Para ele, lon ge d e ser faculdade d e form ar im agens, a im a­ com o espaço participa desta mudança. Ou seja, o espaço
ginação é p otên cia dinâm ica qu e “ deform a” as cópias prag­ contém os sím bolos d o im aginário social e é um com po­
m áticas fornecidas p ela percep ção (PE S S A N H A , 1 9 8 4 ). E sta nente d ele, tanto em sua dim ensão em ocional com o m ate­
últim a rem ete à representação, às suas m etáforas e aos rial, e p o r isso um cam po d e disputas entre interesses p ri­
seus sím bolos. Sua extensa obra sobre a m otivação sim bóli­ vados d e indivíduos ou grupos.
ca contida nos elem entos terrestres — terra, fogo, água e N a perspectiva d e qu e a realidade é criada p elo im a­
ar — indica o caráter prim itivo, psiquicam ente fundam en­ gin ário social e não um a m era representação das im agens
tal da im aginação criadora e o pap el im portante que a assi­ com o reflexos d e um real distorcido, Castoriadis aprofunda
m ilação subjetiva jo g a no encadeam ento dos sím bolos e d e a discussão entre im aginário e representação com o m eios
suas m otivações. d e con hecim ento e abre novo cam po d e polêm ica, agora

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tam bém nas hostes d o m aterialism o histórico. U tilizan do a tóxicos recen tes” , em b ora as relações sociais reais sejam
im agem e a im aginação na proposta de um a nova perspec- vistas sem pre com o instituídas p orqu e foram reconhecidas
tiva teórica para com p reen der o social, em oposição tanto com o m aneiras d e fa zer universais, sim bolizadas e sancio­
ao sono dogm ático do s er determ inado, contido no m ateria­ nadas p elos seu rituais.
lism o marxista, com o à com preensão do im aginário com o E m trabalho m ais recen te, Castoriadis vai ainda m ais
especular, com o reflexo e com o fictício, o autor p rop õe lo n ge e retom a o con ceito de im agin ário social, d ifere n ­
com o conceito d e im aginário “ a criação incessante e essen­ ciando a im aginação da im aginação ra dical. Esta ú ltim a
cialm ente indeterm inada (social-histórica e psíquica) d e fi- sign ifican d o o im a g in á rio social in s titu in te é central para a
guras/formas/imagens, a partir das quais som ente é possí­ sua reflexão. Para e le , a realidade o é p orqu e existe im a g i­
v e l falar-se de algum a coisa. A qu ilo que denom inam os rea­ nação ra d ica l e im a g in á rio in stitu in te. D efin in d o seus te r­
lidade e racionalidade são seus produtos.” N esta perspecti- m os, duas conotações são atribuídas à im aginação: a p ri­
va, seu livro A in stitu içã o im aginária da sociedade, mais d o m eira estab elece a conexão com a im agem , não apenas
que um projeto teó rico sobre a sociedade ou a história, é visual, mas tam bém com a form a; a segunda relaciona-a
um projeto p olítico, pois tem o ob jetivo da elucid-ação críti­ com a id éia, com a invenção, ou seja, com a criação, rep ro ­
ca da verdade, o que é indissociável d e um a finalidade, du tiva ou com binatória. Seu con ceito d e im aginação ra d i­
para a qual se p rop õe um a ação. ca l op õe-se ao d e im aginação sim plesm ente reprodu tora e
Nesse p rojeto, preocupado com os sistemas sim bóli­ sublinha a id éia d e qu e essa im aginação (rad ical) vem antes
cos sancionados que legitim am as instituições, o autor des­ da distinção d o “rea l” e d o “im aginário” ou “ fictício ” . P ois
venda os ritos e sím bolos que instituem uma ordem sim bó­ “ é p orq u e existe im aginação radical e im aginário instituinte
lica, sem se privarem da referên cia ao real, mas que se sa­ qu e existe para nós realidade”. O term o im aginário é, pois,
cramentam no ritual. C om o um ritual é um a prática pauta­ aqui um substantivo e se refe re diretam ente a uma subs­
da em valores sim bólicos que organiza hierarquicam ente tância, não se trata d e um ad jetivo denotando uma qualida­
os símbolos de status e d e poder, o autor aponta que toda de. P ara o autor a sede d o viés d o im aginário social insti­
instituição, m uito além das instituições religiosas, em ten ­ tu in te é o coletivo anónim o e, d e m odo geral, o cam po
d o seu ritual não racional, existe no plano sim bólico. Sua social h istórico (C A S T O R IA D IS , 1997). E m síntese, o im agi­
reflexão é dirigida então para a com preensão, p ela socieda­ nário d e qu e fala é então “ a criação incessante e essencial­
de, da lógica sim bólica das suas instituições, tanto públicas m en te indeterm in ada d e figuras, form as, im agens, a p artir
com o privadas, com o fatores que pesam na evolução da sua das quais som ente é possível falar-se de algum a coisa ”.
organização, pois “a conquista da lógica sim bólica das insti­ A q u ilo qu e denom inam os “ realidade” e “racionalidade” são
tuições e sua racionalização progressiva são processos his- seus produtos, ou seja, a realidade é criada p elo im aginário

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T E RRI TÓ RI O

social. Para o autor, p rivilegia r a im aginação e o im aginário con vivên cia é ritualizada, com o nas festas religiosas ou p o ­
é, com o já fo i d ito an teriorm ente, p rop or despertar d e um pulares, tem na proxem ia um con ceito fundamental. Este
sono dogm ático d o se r determ in ad o, é ser capaz d e p erce­ rem ete às histórias vividas no dia-a-dia, a situações im per-
b e r a realidade histórico-social na sua dim ensão d e criação cep tíveis qu e constituem a tram a com unitária, a trama da
continuada. relação interindividu al, mas tam bém àquela que “ m e liga a
A pesar da riqu eza das argum entações d e Castoriadis, um territó rio , a um a cidade, a um am biente natural que
é o com ponen te sim bólico das instituições sociais, necessa­ p artilh o com ou tros” . E ste é o fundam ento d o territó rio -
riam ente conectadas com o espaço, cujos conteúdos d e fi­ m ito e da estruturação d e um a m em ória coletiva (M AFFE ­
n em e delim itam seus rituais, qu e querem os reter com o SOLI, 1987), retom ada d e variadas form as p o r filósofos e
recurso para o conhecim ento da realidade social e que nos cientistas sociais. Assim , em sua análise do fato social, o
será ú til na com preensão da espacialização das sociedades. autor apóia-se na perspectiva da p olítica com o controle das
D a m esm a form a, BOURDIEU (1989), com seu P o d e r s im ­ tensões in eren tes às relações sociais através da fo rç a im agi­
b ó lic o , contribui para a discussão dos rituais institucionais e nai existente em toda vid a em sociedade, tomando-a com o
seu peso n o processo decisório e nas diferen ciações sociais pon to d e partida para com p reen d er a violência fu n d a d ora
e espaciais. d e toda agregação social1 sem descartar, porém , os princí­
Tam bém buscando alternativas à com preensão da d i­ pios da territorialização das sociedades e sua influência no
nâm ica social para além dos m odelos explicativos únicos, com portam ento e nas ações sociais.
MAFFESOLI, (1984, 1987, 1992) aponta o im aginário social P orém , as paixões com uns ou o sentim ento coletivo,
com o força instituidora d o im aginário p o lítico e o espaço presentes nas reflexões da filosofia política, fazem parte,
com o o lócus p o r excelência d o arm azenam ento e libera­ para o autor, d e um sim bolism o geral, m ediante o qual a
ção desta energia. N a busca d e um m odelo explicativo da com unidade é p arte integrante d e um vasto conjunto cós­
dinâm ica social qu e ultrapasse a prisão da racionalidade m ico d o qual ela é apenas um elem ento. É nesta perspecti­
ocidental m oderna e d o determ inism o m ecanicista, o autor va qu e M a ffeso li aponta o e lo fundam ental da política com
se volta para o qu e e le denom ina d e fo r ç a im aginai, m oral o espaço, quando cham a a atenção para a origem ecológica
ou sim bólica, que constrange à submissão às regras sociais, do p o d e r e d esd ob ra o argum ento do laço q u e se to m a
constituindo a pulsão que está na raiz da dim ensão m ental lugar. Para ele, o espaço é um nicho, um abrigo no qual “ o

d o p olítico (M AFFESOLI, 1992), qu e d e certo m odo está na portador d o p o d e r cristaliza a en ergia interna da com uni­
essência d o argum ento d e L a B oétie sobre a servidão vo­
luntária. M as, esta força latente criadora nas com unidades E m bora sua argum entação conduza ao p o d e r do nós fusionai, d e reações com -
P etamente im previsíveis, frente a instituição regulada contratualmente pelo
d e seus espaços d e convivia lidad e, ou seja, aqueles onde a Estado.

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E X P L O R A Ç Õ E S G E OG R Á F I C A S IMAGINÁRIO POLÍTICO E TERRI TÓ RIO

dade, m obiliza a.fo rç a im aginai que a constitui e assegura form a e sím bolo, é o con tinente que afeta o seu conteúdo
um bom equ ilíb rio entre esta e o m eio em to m o , tanto social e é da m esm a form a afetado p o r ele.
social com o natural” . Sua discussão revela o enraizam ento É possível, pois, p ro p or qu e tod o im agin ário social, da
cósm ico na essência da p olítica necessária a toda vid a em m esm a form a que possui um fo rte com p on en te p olítico,
sociedade. Para o autor, em term os mais clássicos, não há possui tam bém um fo rte com ponen te espacial p elo p o d er
política sem religião, esta no sentido original d e religa re, sim b ólico atribuído aos objetos geográficos, naturais ou
no qual pessoas partilham um conjunto d e pressupostos construídos, que estão em relação d ireta com a existência
comuns, recorrendo a M arx, que dizia que a p olítica era a humana. E m outras palavras, tod o im agin ário social p od e
form a profana da religião, para reforçar seu argum ento. revelar-se im aginário geográfico. A an trop ologia há m uito
D esse m odo, com o todo o sagrado que organiza seus espa­ p erceb eu e estuda a profu nda relação en tre o m eio m ate­
ços de culto a p artir de ritos e sím bolos que os d iferen ciam rial e o im aginário. Para BALANDIER (19 97 ), “ o im aginário
dos outros, tam bém a p olítica sacraliza, a seu m odo, os rep orta-se a espaços, p rod u z um a top ografia que lhe é p ró­
espaços profanos da convivência social. p ria e refle te , em bora transform ado, as relações que o ho­
m em estabeleceu com o espaço, onde o passado trouxe suas
inscrições, dando assim um a m aterialidade à m em ória cole­
D o Imaginário político ao imaginário geográfico tiva” . O m useu im aginário d e que fala A n d ré M alraux é fru­
to desta m aterialidade, desta geografia transform ada, p re­
Tam bém na geografia há um a forte consciência d o sente n o im aginário dos povos (B a i l l y e F e r r a z , 1997).
p oder sim bólico d o território, estabelecido pelos seus con­ A com plexidade da tarefa de com preen der o m undo,
teúdos m ateriais, p ela sua natureza, pela proxem ia , todos nada sim ples, e a necessidade de p erceb er tanto os proces­
portadores d e significados, algumas vezes m últiplos e id en ­ sos visíveis com o aqueles decorrentes da sim bologia dos
tificáveis pelos utilizadores dos lugares (BAILLY e DEBAR- lugares, seus aspectos m íticos e suas conotações subjetivas
BIEUX, 1984). D esse m odo, o laço se to m a lu ga r p orqu e o têm sido tam bém preocupação dos geógrafos. Afinal, o
im aginário p o lítico se tom a im aginário territorial e se ali­ m u seu im aginário é com posto pelas im agens que a m em ó­
m enta dele. H á aqui, portanto, uma forte in terd epen dên ­ ria lem b ra e reconstitui lo g o que uma m enção de um lugar,
cia sócio-espacial objetivada no im aginário social d e con ­ d e um m onum ento ou d e um a paisagem é feita (BAILLY e
teúdo político e territorial. Podem os, talvez, ousar e usar a FERRAZ, 1997). Portanto, mais do que tentar qualificar em
fórm ula de Sim m el (C f. MAFFESOLI, 1992) da fo r m a f o r - separado um im aginário geográfico, ob jeto d e estudo dos
m ante, que determ ina, lim ita, mas ao m esm o tem po tom a- geógrafos, estamos diante da tarefa de interpretar a geogra­
se (dá a ser). E m outras palavras, o território, enquanto fia con tida no im aginário social, e expressa no próprio dis­

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I MA G 1 N Á R I 0 P O L Í T I CO E T E R R I TÓ R I O

curso geográfico, com o um dos cam inhos para com preen­ ção de um discurso que não é neutro, mas, ao contrário,
d er o p ap el que as representações do m eio desem penham qu alifica o espaço e seus objetos, tom ando-os significantes,
nas práticas espaciais e na organização do espaço. portadores de significados nas representações sociais. Con-
Reafirm am os, com o desdobram ento das discussões aci­ seqúentem ente, este discurso expressa valores simbólicos
ma, que tod o im aginário social é tam bém im aginário geográ­ que presidem a estruturação funcional d o espaço, com con­
fico, porqu e, em bora fru to d e um atributo humano — a sequências im portantes sobre a sua organização pela socie­
im aginação — é alim entado pelos atributos espaciais, não dade em função dos significados que lh e são atribuídos.
havendo com o dissociá-los. E m outras palavras, os objetos A argumentação desenvolvida acim a sobre o valor sim­
geográficos fazem parte do cotidiano individual e coletivo, b ólico dos objetos geográficos, sobre sua importância nas
participam da prática social que lhes con fere valor sim bóli­ representações sociais, aponta para o desdobram ento essen­
co. A natureza — praias, rios, montanhas, florestas, campos, cial de um im aginário geográfico contido no imaginário polí­
planícies etc. — e as construções — ruas, praças, m onum en­
tico. Alguns temas podem ser trabalhados nesta perspectiva:
tos, bairros, quarteirões, cidades — transform am -se em im a­
a correspondência entre a natureza e o discurso político,
gens, cam inhos e representações da alma coletiva. Estas re­
fundado no im aginário social sobre ela; o regionalismo,
presentações geográficas constituem então um m odo d e ser,
apoiado em um nós coletivo d e base territorial e a repre­
um m odo d e falar da Terra, “teatro da aventura humana” ,
sentação política territorial, que realiza a prática política
com o diria J. P. F E R R IE R (1990). Há, portanto, no im aginá­
com suporte no im aginário geográfico. A discussão que se
rio social um a profunda geograficidade pela relação concreta
segue tem por ob jetivo apontar as possibilidades empíricas
que se estabelece entre o hom em e a Terra. R elação aqui
da incorporação d o con ceito d e im aginário a temas rele­
d eve ser com preendida, em seu sentido forte, com o uma ca­
vantes para a com preensão dos m odos e meios utilizados
tegoria que indica o caráter de dois ou mais objetos d e p en ­
sam ento qu e são concebidos com o sendo, ou podendo ser, pelos atores sociais para organizar seu território, suas rela­

com preendidos num único ato intelectual de natureza d e­ ções sociais, seu m odo d e vida.
term inada, definindo o m odo d e sua existência e de seu des­
tino. É nesse sentido que D a r d e l (1952) utiliza o term o,
quando destaca que “a experiência geográfica, tão profunda Im a g in á rio p o lític o e n a tu re za
e tão sim ples, convida o hom em a atribuir às realidades g eo ­
gráficas um tip o de animação e de fisionom ia no qual revive A suposição da relação entre a natureza e o im aginá­
sua experiência humana, in terior e social” . rio p olítico defin e um a abordagem que busca com preen­
Existe, pois, uma relação, que não p od e ser ignorada, d er formas possíveis d e utilização d e aspectos particulares
entre a geograficidade da experiência humana e a elabora­ da natureza na construção do im aginário coletivo de uma

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EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFICAS IMAGINÁRIO POLÍTICO E T E R R I T Ó R I O

sociedade e a instrum entalização deste im aginário para des humanas em fu nção das qu alid ad es d o h a b ita t, o d e­
ações de base p olítica no seu território. Portanto, tom ar a term in ism o não abandonou d e to d o o “ m useu im aginário”
natureza um recurso p olítico supõe, não apenas a sua u tili­ ociden tal, nem sua im portân cia n o d iscu rso p olítico.
dade, mas a form a com o ela é percebida coletivam ente. A N o Brasil, o caso d o sem i-árid o n ord estin o é exem ­
relação, no sentido forte antes explicitado, entre o im aginá­ plar. D esd e o final d o sécu lo passado, a sua natureza sem i-
rio político e o território é uma questão antiga, e tem assu­ árida tem sido vista com o a p rin cip a l causa dos problem as
m ido, ao lon go da história, diferentes form as d e racionali­ da reg iã o e tem sido am plam en te u tiliza d a nos discursos
dade e de objetivação, que vão desde os recursos disponí­ das elites regionais para o b te r m aiores b e n e fício s ju n to ao
veis na sua natureza, com o suporte para a subsistência ou govern o fed eral (C A S T R O , 1992). N a rea lid a d e, a id éia de
para o processo de desenvolvim ento económ ico, até a pers- qu e o clim a sem i-árido é respon sável p e lo atraso no N o r­
pectiva dos entraves naturais a ambos. Porém , são as im a­ deste fa z parte d o im agin ário reg io n a l, e nacional, e revela
gens construídas socialm ente sobre eles que constituem a um a p ercep ção na qu al o d eterm in ism o d a natureza está
base fundamental do im aginário social e recurso para a re­ im p lícito, tanto na id é ia d e qu e o “ serta n ejo é antes d e
tórica ou para a ação política. tudo um fo rte ” d e E u clid es da C unha, c o m o na perspecti-
Visões particulares da natureza sem pre alim entaram va d o territó rio con den ado ao so frim en to e à pob reza p or
concepções políticas e as correntes determ inistas da geo­ um a natureza d ifíc il d e ser dom ada. N o entanto, quando
grafia deram im portante contribuição aos seus discursos. A esta m esm a natureza tom a-se base d e discu rso e fon te d e
interpretação d e M ontesquieu da relação entre as leis da recursos públicos, m ais d o qu e um s ím b o lo d o im aginário
natureza e as leis colocadas p elo p od er p olítico em seu social, e la passa a rep resen tar um va lio so p o d e r sim bólico
L ivro D écim o Quarto do E sp írito das leis indica as vanta­ para o im aginário p o lític o region al. A n a tu reza sem i-árida,
gens encontradas nos homens dos clim as frios e, conse­ neste caso, portan to, é exem p la rm en te apropriada p elo
quentem ente, para o processo civilizatório p o r eles realiza­ im aginário coletivo através d e im agen s q u e são retrabalha-
do. Filósofo fid o e respeitado em sua época, refletia e re­ das n o sistem a d e valores, dando su p orte a o discurso e aos
forçava a visão d e uma civilização que, através de uma bem atos p olíticos.
elaborada im agem d e si mesma, cujo valor n a tu ra l era ci- A seca é, na realid ad e, um a p alavra-ch ave. E la rep re­
entificam ente com provado, justificava intelectu al e etica­ senta objetivam en te fa lta d e chuva, m as tam b ém sim boli­
m ente a dom inação sobre outros povos em outras nature­ cam ente a R egião N o rd e s te e os p rob lem as sociais e eco­
zas. Apesar da im portância das correntes possibilistas e da nóm icos qu e são p ecu liares às con d ições d a sua natureza
superação, na geografia, de um determ inism o “ científico hostil, com o: m iséria, an alfabetism o, d oen ça, descapitaliza­
que buscava estabelecer leis de com portam ento e qualida­ ção etc. E la é ainda fu n dam en to na p ro d u çã o d e uma soli­

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E X P L O K A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S I M A G I N Á R I O P OL Í T I C O E T E R R I TÓ R I O

dariedade social, criadora d e um nós coletivo qu e equalíza branca, educada e mais desenvolvida fren te a uma outra
a todos diante da força da sua tragédia, produtores grandes sociedade na parte norte, tropical, negra, mestiça, pobre e
e pequenos, proprietários ou não. N esse sentido, o sign ifi­ socialm ente m enos desenvolvida. Para quem argumenta
cado desses conteúdos vai m uito além da relação en tre na­ sobre a superação d e determ inism os clim áticos no im agi­
tureza e atividade produtiva, evidenciando-se nas possibili­ nário social, obviam ente inform ado p elos manuais de geo­
dades da natureza para a produção d e um im aginário p o lí­ grafia, este é um bom tem a de pesquisa.
tico, socialm ente equ alizador e institucionalm ente eficien ­ O u tro aspecto do im aginário p olítico de base territo­
te para obtenção d e recursos financeiros e d e poder. rial é a relação entre a dim ensão d o território e as possibili­
Q uando o deputado Jorge C oelh o afirm a qu e “ a es­ dades para um processo civilizatório d e democracia, opor­
cassez d e água no N ord este já fe z incontáveis vítim as, de- tunidades e justiça identificados objetivam ente p or Tocque-
sagregou fam ílias, sem eou m iséria e sofrim ento, condenou ville, na extensão do território am ericano, e simbolicamente
a região a um a posição d e in feriorid ad e no cenário nacio­ p or Tu m er, na sua fron teira . O prim eiro, em sua viagem
nal” ( C a s t r o ; M ag d aleno , 19 9 6 ) ilustra bem o qu e fo i pelos Estados U nidos no início dos anos 30 do século X IX ,
d ito acima. M uitos outros discursos poderiam ser citados cujas reflexões e anotações deram origem ao seu D em o­
(C A S T R O , 1 9 9 1 ), mas não há necessidade p o r qu e são p or cracia na A m érica , apontou entusiasticamente as vantagens
dem ais conhecidos. N o entanto, é sabido tam bém qu e há do territó rio am ericano: sua extensão e a disponibilidade de
grande d iferen ça en tre a água disponível h oje na região e a recursos naturais, que foram considerados dados im portan­
qu e havia no in ício d o século, quando da criação da Ins- tes nas condições para a criação d e um caráter nacional de­
p etoria d e Obras C ontra as Secas. O N ord este atualm ente m ocrático, em bora sua questão central fosse o problem a da
é a região seiru-ánda mais bem servida d e água represada dem ocracia e suas dificuldades para se im por nas socieda­
d o m undo, o qu e não chegou a alterar m uito suas ativida­ des aristocráticas européias, especialm ente França e Ingla­
des, seu quadro social d e m iséria, nem o im aginário dos terra. T ocqu eville era leitor d e M ontesquieu, e as caracte-
porta -vozes regionais mais tradicionais sobre as dificu lda­ rísticas da geografia am ericana não lhe passaram desperce­
des para o seu desenvolvim ento. bidas. E m bora suas observações sobre estas questões não
A in da no Brasil, o abortado m ovim ento separatista O sejam levadas em consideração pelos analistas d e sua obra,
sul é o m eu país indica qu e o fantasm a d e M ontesquieu sociólogos ou politólogos, a um geógrafo elas saltam aos
está lon ge d e te r sido exorcizado, quando subsume em olhos. D a m esm a form a, uma leitura d o livro Am érica, de
seus argum entos para a fundação d e um ou tro estado-na- Kafka, dá bem a dim ensão do im aginário europeu, alimen­
ção a vantagem d o clim a subtropical, mais frio , com o fator tado p o r recortes territoriais acanhados frente ao gigante
d e diferenciação qualitativa da sociedade sulista d o país, norte-am ericano. As dim ensões descomunais dos prédios,

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I MAG INÁ RI O P O LÍ T I C O E T ERRI TÓRI O

viadutos, autom óveis e trens sim bolizam a im agem d e um etc. adquire corp o no espaço determ inado qu e tam bém

país de enormes recursos, onde tudo é fartura e exagero. As estrutura as situações vividas” . Seja este espaço a casa, o

condições do território fundando um im aginário articulado bairro, a cidade, o território, o m esm o represen ta um a fo r­

com a extensão, com a riqueza, com as disponibilidades m a particular d e com partilhar p orqu e se b en eficia da p ro ­

propiciadas p o r uma natureza generosa e, portanto, com xim id ade e se op õe ao outro, ao externo, p ela distância físi­

mais possibilidades de ser dem ocrática. ca. É nesta correspondência d o in tern o — da proxim idade

N o final do século X IX , em 1893, o historiador F re- — com o externo — da distância — que se engendram as

derick Jackson Tum er, analisando a im portância àa.fro n te ira tensões, tanto sim bólicas com o m ateriais, dos particularis-

para explicar a sociedade americana, endossou com petente­ m os fren te ao jacobinism o d o p o d er institucionalizado cen­
tralizad o no Estado M odern o. P orém , a sabedoria dos ho­
m ente este im aginário. Para ele, a fronteira fe z da A m érica
m ens da p olítica lhes perm ite u tilizar esta en ergia agrega-
um a sodedade aberta, o que propiciou a m obilidade social e
dora das m enores escalas dos espaços da socialidade para
esta o otimismo. A marcha para o O este forneceu ao p ovo
estab elecer os nexos de dom inação e con trole dos poderes
americano um grande m ito, o da possibilidade d o renasci­
centralizados e distantes.
m ento e da renovação. Desse m odo, na consciência am eri­
Existe, pois, um im aginário p olítico que se funda na
cana o Oeste sim bolizou a esperança e figurou no processo
civilizatório com o progresso, tom ando-se, num sentido ló g i­ fo rç a im aginai do estar junto e se realiza na inserção territo­
rial d o fato social. Esta dupla dim ensão partilhada da socie­
co, sinónimo d o sonho americano. C om o m ito, o terjâtóiio
dade — nós com unitário que funda o contrato social e os
da fronteira confirm ou a dem ocracia política, a infinitude
lim ites territoriais d e reconhecim ento deste contrato — im ­
humana e o idealism o filosófico (S lM O N S O N , 1989).
plica duas dim ensões da dialética do um versus o todo. N a
dim ensão das relações sociais é possível falar na tensão entre
o indivíduo e o grupo social, na qual o “eu” é um ator ao
Im a g in á rio p o lític o e re g io n a lis m o
m esm o tem po ativo e passivo, m oldando e sendo m oldado
p ela alm a do gru p o, p elo habitus. Ou seja, os cidadãos p olíti­
A im portância d o enraizam ento social — o term o
cos participam de um “coletivo de pensam ento”, qu e se abri­
aqui utilizado na sua acepção mais fo rte de ra iz, com toda
ga profundam ente no im aginário do grupo social, com todos
a sim bologia que d ela decorre, com o: seiva, alim ento, esta­
os m ecanismos d e conform idade, mas tam bém com iniciati­
bilidade, vida — constitui a base da dim ensão espacial da
vas que um tal coletivo pode induzir (M A F F E S O L I, 1992).
socialidade, que M affesoli analisou em “A conquista do
N u m a perspectiva espacial, existe tam bém um a ten­
Presente” . Para ele, “tudo que p od e ser dito acerca da es­
são d e base no m oderno estado territorial. N a realidade,
trutura e desenvolvim ento (da socialidade), sua pluralidade

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T ERRI TÓRI O

este tem represen tado ao m esm o tem po um ab rigo para a constituem um dos paradoxos da m odernidade m ediante o
preservação d e iden tidades territoriais am eaçadas e um a qual as sociedades, enquanto se territorializam , se preser­
am eaça à sobrevivên cia destas identidades p e lo p od er sim ­ vam e resistem , ao m esm o tem p o que, enquanto se univer­
b ó lic o do nacionalism o, necessário para fazer face à am ea­ salizam, se renovam e sobrevivem . H á, portanto, uma asso­
ça laten te dos outros estados e das forças h om ogen eizad o- ciação necessária en tre os regionalism os e a form ação dos
ras em escala planetária. N este sentido, o territó rio da so­ estados-nacionais, quando se im pôs a idéia-força da nacio­
beran ia estatal, enqu anto espaço p o lítico e da p olítica, nalidade sobre os território ditos nacionais. N este sentido,
re fle te o paradoxo d o singular versus geral e só p od e ser o regionalism o é gerado no con texto dos estados m odernos
com p reen d id o num a perspectiva dialógica, ou seja, que que se tom aram , alguns antes, e a m aioria a partir do sécu­
in corp ore as lógicas contraditórias, mas interdepen den tes, lo X IX , estados nacionais territoriais, ou seja, submetidos a
das dinâm icas sociais geradas p ela proxim idade e aquelas uma lógica d e p o d e r “territorialista” , sob a qual o território
geradas p ela distância. A percepção da França, com o um a é tanto a base da soberania e d o exercício do p od er com o
unidad e fo rja d a na diversidade tão bem descrita p o r F e r- tam bém o rep ositório dos conteúdos dos símbolos m obili­
nand Braudel, é certam ente um bom exem plo desta dialó­ zados para fundar o nós c o le tiv o da identidade nacional
g ica e de sua id en tificação e utilização no plano sim bólico. que garante a adesão social ao pacto nacionalista.
C om o desdobram ento dessa d ialética territo ria l da O regionalism o, enquanto m obilização p olítica de ba­
p arte versus todo, o regionalism o, m ovim en to p o lítico d e se territorial, d ecorre justam ente dos modos através dos
base territorial, é um p roblem a geográfico-p olítico p o r ex­ quais o estado nacional tem organizado, ou administrado,
celên cia. Surgido com o reação ao jacobinism o d o estado- as diferenças — culturais e económ icas — em seu territó­
nação e levantando bandeiras da identidade, da autonom ia, rio para fundar a id eologia da unidade nacional. Os esta­
d o d ireito à diferença, e le não p od e prescindir d o “ nicho” dos-nacionais h o je conhecidos foram consolidados, em sua
p ro teto r que este m esm o estado am eaçador representa m aior parte, a p artir do dom ín io hegem ónico de uma re­
h o je fren te à am eaça d e uma hom ogeneização em escala gião que im pôs cultura, língua, religião e sistema produtivo
planetária. Os regionalism os das regiões espanholas, que, sobre as outras. É justam ente nas clivagens desta dom ina­
com exceção de um segm ento d o m ovim en to basco, não ção que se tem desen volvido a id eologia regionalista. N a
dispensam o Estado espanhol e as am biguidades d o m ovi­ form ação dos estados m odernos, depois estados-nacionais,
m en to p olítico autonom ista do Q uebec, que p rop õe Aima A r r ig hi (1996) aponta a im portância do territorialism o e
soberania que não abre m ão do passaporte (ou seja, cida­ o triu nfo da id eolog ia nacionalista em todo o território.
dania) e da m oeda canadenses, são significativos da com ­ N este sentido, os regionalism os representam m uito mais
plexidade desta coexistência. N a realidade, estas questões lutas p o r disputas d e recursos com base no poder sim bóli-

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E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T E R R I TÓ R I O

co da afirmação de uma identidade ou solidariedade a te r­ B ra s il p o d e s e r tra b a lh a d o g e o g r a fic a m e n t e d e n tr o d o s r e ­

ritórios particulares d o que um desejo real de soberania. c o r te s p o lític o -a d m in is tra tiv o s , s e n d o e s te o lim ite le g ít im o

Trata-se, na realidade, da articulação entre escalas territo­ d e id e n t id a d e e d e ex p ressã o d e r e iv in d ic a ç õ e s p o lític a s d e

riais de poder e de identidade que, sendo contraditórias b a s e te rrito ria l, n u m es p a ç o n a c io n a l cu ja re p re s e n ta ç ã o p o ­

com o essência, são com plem entares enquanto prática p o lí­ lít ic a é o r g a n iz a d a a p a r tir d e r e c o r te s te rrito ria is leg a is. S o ­

tica. Neste sentido, em bora identidades culturais fortes co­ c ió lo g o s , h is to ria d o re s e p o litó lo g o s j á o fa z e m h á b a sta n te

m o língua, religião e etnia sejam símbolos eficientes nas t e m p o , r e v e la n d o as e s p e c ific id a d e s s ó c io -te rrito ria is co n s­

disputas regionalistas, o regionalismo não se esgota neste tru íd a s h is to r ic a m e n te n os lim ite s a d m in istra tivo s su b n a cio-

tipo de viés cultural. n a is b ra s ile iro s (G O M E S , 1980; S C H W A R T Z M A N , 1 9 8 2 ).

Um a distinção é necessária entre o sentido dos regio- O tem a d o regionalismo sob a perspectiva do imaginá­
nalismos e nacionalismos. Em bora ambos m obilizem sím ­ rio político encontra-se em aberto na geografia brasileira.
bolos para alimentar os rituais da identidade sócio-territo­ A lé m da existência de múltiplas escalas das relações de
rial, a teleologia de cada um é diferente. O prim eiro busca p o d e r no território nacional, o aparecim ento de novas estra­
a construção de um estado-nação, o segundo busca mais tégias d e relações centro-periferia, os novos arranjos espa­
vantagens, ou menos desvantagens nas disputas com outras ciais e d e solidariedades propiciadas pelas mudanças tecno­
regiões, no conjunto d e um estado-nação consolidado. O lógicas, o fortalecim ento dos poderes regionais e locais com o
fato de um m ovim ento regionalista levantar bandeiras se­ novos interlocutores nas relações supranacionais são proble­
paratistas pode ser, com o o é em muitos casos, muito mais m as que se colocam hoje para os arranjos dos interesses no
uma estratégia de luta frente ao p od er central do que uma territó rio e tendem a transformar o am biente das tradicio­
verdadeira busca de form ação de um novo estado-nação. nais alianças políticas, definindo-se novos símbolos, elabo­
N o Brasil, o processo histórico político, que progressi­ rando-se novos discursos, mobilizando-se novos territórios.
vamente delineou os limites das unidades administrativas e
os valores simbólicos dos territórios para as sociedades em
cada uma, contribuiu para forjar escalas de interesse refo r­ Im a g in á r io p o lític o e re p re s e n ta çã o t e r r ito r ia l
çadas pelos discursos da identidade e da solidariedade.
C om exceção do regionalismo nordestino, no qual o recorte A institucionalização da representação política e do
regional e os interesses políticos coincidem , as identidades e q u ilíb rio dos poderes nas democracias modernas é, neces­
territoriais no país se fazem nos limites administrativos dos sariam ente, espacializada a partir de diferentes escalas que
estados. O trabalho de H A E S B A E R T (1 9 8 8 ) sobre a identi­ e n g lo b a m desde os espaços da convivência estabelecidos
dade gaúcha é significativo de que o term o regional no n a p ro xe m ia , até aqueles mais amplos do dom ínio sim bóli­

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T E RRI TÓ RI O

co d o perten cim ento a uma nacionalidade. M esm o a d i­ tem desdobram entos im portantes para a geografia política.
mensão não espacial do político, com o a pretensão univer­ A cidadania instituída p elo co n tra to fundador do estado
sal e cósmica das leis, precisa do território delim itado e o r­ m oderno, em sendo um con ceito de caráter universal, esta­
ganizado historicam ente p ela sociedade para se exercer. b e lec e a igualdade d e todos no usufruto dos seus direitos e
A lé m disso, apesar da objetividade dos interesses qu e no no cum prim ento dos seus deveres. Em bora no contrato
plano teórico fundam a política m oderna, no plano prático com o L e v ia tã hobbesiano apenas o direito à proteção con­
ela não p od e dispensar o recurso ao sim bólico para elab o­ tra m orte violenta fosse con cedido em troca da alienação
rar seu discurso e conquistar adesões. da liberdade, a progressiva expansão dos direitos políticos e
Trata-se aqui de trazer para a agenda temática da g e o ­ sociais nas modernas dem ocracias ocidentais ampliou o
grafia política brasileira o problem a dos símbolos e dos con­ con ceito d e cidadania e consagrou sua prática na socieda­
teúdos espaciais na força imaginai do político, e esta nos de. Porém , se há na essência do conceito a universalidade,
m odos pelos quais as sociedades vivem o seu território. a m ediação territorial d o seu exercício im põe alguns pro­
C o m o a representação política, instituinte da cidadania d o blemas. N a realidade, não havendo homogeneidade na
indivíduo nas democracias modernas, se faz tam bém com base material do território, as condições para o exercício
base nos recortes territoriais administrativos, é na perspec- desta cidadania ampliada qu e inclui hoje não apenas o
tiva da representação territorializada do cidadão que d evem d ireito à proteção, o de votar e d e ser votado ou a possibili­
ser com preendidos os recortes territoriais da política nas dade de controle dos governantes, mas também direitos
democracias representativas contemporâneas. C om o princí­ relacionados à qualidade de vid a e às condições para a sua
pio desta engenharia política, não apenas o cidadão é rep re­ reprodução, encontram-se afetadas.
sentado com o indivíduo, mas tam bém o seu território com o N esta perspectiva, o p roblem a do exercício da cidada­
parte inseparável da sua cidadania. N esse sentido, proble- nia em países com grandes disparidades económicas e so­
matizar o espaço político, no qual se fazem a representação ciais é, mais do que um p rob lem a constitucional legal, um
e a administração de interesses contraditórios, requer id en ­ problem a territorial. É aí que deve ser inserida a polêmica
tificar tanto seus conteúdos simbólicos e materiais com o a atual do sistema representativo proporcional brasileiro e as
articulação do espaço da função política com outras dim en­ mazelas dos episódios de representantes despreparados, de
sões do espaço da sociedade. O território, com toda a sua corrupção e dos balcões de interesses pessoais armados na
carga simbólica, desem penha um papel fundamental na dis­ Câm ara dos Deputados, p o r definição, o lugar da prática
puta política, fornecendo os símbolos necessários para o nós dem ocrática e da garantia dos direitos da cidadania. Talvez
fu sion a i presente nos rituais da disputa eleitoral. os geógrafos possam responder a algumas questões sobre o
A questão do com ponente territorial da cidadania problem a. Prim eiro, com o estabelece a p rio ri que a repre-

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E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S IMAGINÁRIO POLÍTICO E TERRITÓRIO

sentação é do cidadão sem considerar o fato banal, mas fun­ fica p od e contribuir para en ten der as origens e a perpetua­
damental, de que ele habita um território, no qual sua vida ção das desigualdades sociais. Seu en foq u e das condições
está organizada e seus interesses estão estabelecidos? Se­ de m obilização dos recursos para a representação, estabe­
gundo, como garantir uma proporcionalidade absoluta em lecidas p or diferentes grupos em disputa p e lo controle dos
um território tão desigualmente povoado sem deixar territó­ rituais e dos espaços institucionalizados de p o d e r no terri­
rios e sua população sem representação, ou seja, sem direito tório americano, apontou as possibilidades de contribuição
a uma cidadania elementar, e sem inflar enorm em ente o da geografia para com p reen d er o com portam ento político
número de representantes na Câmara, com todos os proble­ para além das solidariedades das classes sociais das aborda­
mas de custos e eficiência decorrentes? Terceiro, com o ter gens sociológicas tradicionais. Tam bém D E A R (1 9 8 9 ) d e ­
uma proporcionalidade ideal e ao mesmo tem po controlar a monstrou o papel do território na m odelagem da vida so­
possibilidade da tirania da maioria e do fortalecim ento das cial, a partir das condições d o consumo coletivo de bens e
hegemonias dos interesses territoriais numa situação de p er­ serviços públicos nos locais d e moradia, as disputas entre
sistentes disparidades regionais e de fortes injustiças espa­ grupos e entre lugares e os conflitos delas decorrentes.
ciais? O que se afirma aqui é que o debate sobre os proble­ Apesar dos trabalhos que consideravam a importância
mas da representação política no Brasil não se esgota no cál­ das relações sociais no lugar com o fator relevante da expli­
culo dos coeficientes que estabelecem o número d e repre­ cação em geografia política, foi A G N E W (1987) que aprofun­
sentantes por estado, eixo das análises políticas, mas numa dou o argumento sobre o papel da individualidade das so­
compreensão mais profunda das muitas realidades sociais ciedades locais no com portam ento político. Polem izando
do espaço brasileiro, especialmente aquelas que historica­ com as ciências sociais em geral e com a ciência política em
mente, em algumas áreas do país, têm levado muitos “ cida­ particular, ele aponta a necessidade de incorporar o lu ga r
dãos” a perceberem o voto, não com o um certificado de ci­ nas suas teorias para com preender o com portam ento políti­
dadania, mas com o um bem virtual que pode transformar-se co e as diferenças, uma v e z que ambos não p odem ser com ­
em outros bens mais palpáveis, com o alimentos, roupas, do­ preendidos apenas através das categorias sociais tradicional­
cumentos etc. Estas são questões para as quais a geografia m ente consideradas nessas ciências, engrossando o caudal
política brasileira pode dar grande contribuição. dos cientistas sociais — antropólogos e sociólogos — que
Seguindo um outro eixo d a relação entre espaço e interpretam o genius lo c i com o um dado necessário à análi­
representação política e num a perspectiva sistémica da se política. Diante do problem a de enfocar a individualidade
geografia anglo-saxônica dos anos 70, JOHNSTON (1979) dos lugares e de reconhecer a real interdependência entre
abordou os inputs e outputs geográficos do sistema político eles, ele se coloca a questão da simultaneidade necessária, e
eleitoral para com preender de que m odo a análise geográ­ não contraditória, no campo político social, entre o único e o

192 19 3
EXPLO RAÇ ÕES GEOGRÁFICAS I M A G I N Á R I O P OL Í T I C O E T E RRI TÓ RI O

geral e o problem a da mediação entre estado e sociedade. Ballly, A., F erraz, R. (1997). Éleménts d’épistémologie de la
Seu argumento é o de que, com o o estado territorial é com ­ géographie. Paris, Armand Colin.
posto de lugares, o ja cob in ism o das ciências sociais levou-as B A L A N D IE R , Georges (1994). Le dédale. Paris, Fayard.
a um “ silêncio oficial” sobre o papel da localidade, ou do ------------ (1997). O contorno. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
lugar, na mediação das recentes inter-relações das institui­ BERDOULAY, Vincent (1988). Des mots et des lieux. Paris, Ed.
ções do Estado e os processos sociais. E m sua perspectiva do CNRS.
lugar com o processo, argumenta que, mais do que um epife- Pierre (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro,
B O U R D IE U ,

nôm eno da sociedade, ele é central para sua estruturação. Bertrand Brasil.

É, portanto, na perspectiva da com preensão da base C A S T O R IA D IS , Comelius (1991). A instituição imaginária da


material do território com o significante, a partir do qual o sociedade. São Paulo, Rio de Janeiro, Paz e Terra.

imaginário político constrói seu significado, que as pesqui­ ------------ (1997). Fait e àfaire. Paris, Seuil.

sas em geografia política p odem contribuir para a com ­ CASTRO, Iná E. O m ito da necessidade. Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil, 1992.
preensão das forças, das tensões e dos conflitos que presi­
dem o processo de organização espacial das sociedades. ------------ (1991). Imaginário político e realidade económica.
Nova Economia. Belo Horizonte. V.2/N2.
D esse m odo, a agenda da geografia política brasileira en-
contra-se e m aberto, especialm ente na necessária busca de ------------ e Magdaleno, F. (1996). O imaginário da pobreza e a

inform ações que perm itam com preender as diferenças ter­ implantação industrial no semi-árido nordestino. Anuário do
Instituto de Geociências. Rio de Janeiro, vol. 19:21-34.
ritoriais no exercício p len o da cidadania; a com plexidade e
Eric (1952). L ’Homme et la terre. Paris, Éditions
D a r d e l, du
a dinâmica dos interesses que os lugares representam e o
CTHS, 1990.
devir da sua sociedade e d o seu território no contexto de
D E B A R B IE U X , Bernard (1995). Imagination et imaginaire géogra-
uma política cada vez mais globalizada, de lugares cada vez
phiques. In: B a il l y , A. et alii (Org.). Encyclopédie de Géo­
mais com petitivos e de estruturas estatais em mutação.
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194

1
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

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Brasil. Às vésperas de entrarmos no século X X I, somos vol­
M A Q U IA V E L , Nicollò (1986). O Príncipe. 11? ed., São Paulo, Ber­
ta e m eia lem brados que muitos problem as d o país têm
trand Brasil.
origens distantes no tem po e acompanham-nos desde os
P E S S A N H A , J. A. (1984). Bachelard. Vida e obra. In: Bachelard.
prim órdios da colonização. Tam bém não são poucas as oca­
Coleção: Os Pensadores. 2? ed., São Paulo, Ed. Abril.
siões em qu e nos deparamos com linguagens barrocas e
SANTOS, Milton (1996). A natureza do espaço. São Paulo, H U C I-
com term os antigos e estranhos, incom preensíveis até mes­
TEC.
S A R T R E , Jean Paul (1980). A imaginação. 5? ed., Rio de Janeiro,
m o para o cidadão esclarecido, mas que ainda continuam a

DIFEL. ser utilizados, notadam ente nos m eios jurídicos. E é com


SCH W ARTZM AN, Simon (1982). Bases do autoritarismo brasilei­ espanto ainda m aior que descobrim os que muitos desses
ro. Brasília, Editora Universidade Nacional de Brasília. “ anacronismos” são ainda bastante atuais e continuam a
S lM O N S O N , Harold P. (1989). Beyond the fron tier. Texas Chris- fazer sentir o seu peso na estrutura social do país.
tian University Press. A organização territorial é um cam po fértil para a
V É D R IN E , Hélène (1990). Les grandes concéptions de Vima- descoberta dessas heranças do passado. A estrutura agrária
ginaire. Paris, Biblio Essais. injusta do país é sem pre relacionada ao sistema sesm arial
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Unwin Hyman.
* P rofessor d o D epartam ento de Geografia — UFR J.

196 197
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO BRASI L C O L O N I A L
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

proprietário local interessado na consolidação d o povoa­ S esm a ria s m e d ie v a is p o rtu g u e sa s

m ento d o lugar ou, o que foi mais comum, instituído p elo


rei através d e cartas de fo r a l (R a u , 1982: Cap. I I). Já no iní­ A instituição de um conselho municipal implicava a
cio do século X I I I toda a terra em Portugal havia se tom ado necessidade da distribuição de suas terras pelos morado­
d om in ia l, isto é, estava sob o dom ínio direto de alguma res. Para coibir pretensões territoriais desmesuradas, gene­
autoridade. Destacavam-se aí (SERRÃO, 1975, V. 1: passim ): ralizou-se nessa época a utilização de uma variante do anti­
g o instrum ento greco-rom ano da enfiteuse, que ficou co­

(1 ) os bens da Coroa, indivisos e inalienáveis, patrim ónio nhecida com o sesmaria.

do Estado; ^ A enfiteuse (ou a fora m en to) é um contrato de aliena­


(2 ) os bens pessoais do rei (os chamados reguengos); ção territorial que divide a propriedade de um im óvel em
(3 ) as terras da nobreza, do clero, das ordens monásticas e dois tipos de dom ínio: o d om ín io em inente, ou d ireto, e o
das ordens mihtares; d o m ín io ú til, ou in d ireto . A o utilizar um contrato enfitêuti-
(4 ) algumas propriedades alodiais, livres de direitos e de co, o proprietário de p len o direito de um bem não o trans-
deveres senhoriais; fe re integralm ente a terceiros. A penas cede o seu domínio
(5 ) as terra s de natureza com unal, em geral concedidas útil, isto é, o direito de utilizar o im óvel e de nele fazer
p elo rei aos habitantes dos conselhos, e que se subdivi­ benfeitorias, retendo, entretanto, para si o domínio direto.
diam em (a ) terras dos conselhos, de propriedade adm i­ a prop ried ad e em última instância. E m troca do domínio
nistrativa dos governos locais e que podiam ser p o r eles in d ireto que lhe é repassado, o outorgado aceita uma série
distribuídas aos seus “vizinhos” , e (b ) baldios, terras de d e condições que lhe são impostas, e obriga-se também a
usufruto com um , insusceptíveis de individualização, pagar uma p ensão anual (ou f o r o ) ao proprietário do dom í­
destinadas à pastagem do gado e à obtenção d e lenhas. nio direto, razão pela qual transforma-se em fo re iro deste
últim o. N ã o cum prindo o foreiro as condições do contrato,
É na distribuição das terras dos conselhos que está a o d om ín io útil reverte ao detentor do domínio direto.
origem d o sistema sesmaria!, uma form a de apropriação . O que singularizava a sesmaria do tradicional contrato
territorial que se difundiu p elo sul de Portugal a partir do enfitêutico era um único detalhe: ao contrário da obrigato­
século X I I I e que se converteu em verdadeira política de riedade de pagam ento de um foro (que às vezes também
povoam ento. ocorria), o que se exigia era o cultivo da terra num tem po
determ inado. N ã o sendo satisfeita essa condição, o deten­
to r do dom ínio em inente (um conselho municipal, por
exem p lo) poderia retom ar o dom ínio útil da gleba (então

200 201
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chamada de casal) e outorgá-lo a outros. Buscava-se com antigo sistema sesmarial senão um ponto de contacto: a
isso garantir o uso produtivo da terra e o sucesso d o esfor­ obrigatoriedade d e cultivo com o condição d e posse da ter­
ço de povoamento. ra e a expropriação da gleba ao proprietário que a deixasse
A origem d o nom e sesmaria está ligada à organização inculta. N o mais, tudo nela era coação, pois o seu objetivo
territorial dos conselhos. Para m elhor distribuir os casais, m aior era obrigar os trabalhadores rurais a perm anecerem
passou-se a dividir as terras dos conselhos em sesmos, ou no cam po (RAU, 1982: 87). É im portante notar, entretanto,
sextas partes. A fim de evitar injustiças nas doações e fisca­ que ela introduziu um elem ento im portante na legislação
lizar o cum prim ento das condições legais, era indicado um da época, já que restituiu ao Estado o princípio da não
hom em bom (um cidadão) para cada sesmo, exigindo-se a absolutização da terra, outorgando-lhe o dom ínio em inente
sua presença ali durante um dos dias úteis da semana. Os sobre todo o território, o que abria caminho para com bater
sesmos ficaram então conhecidos com o sesmos d e segun­ o latifúndio e expropriar qualquer propriedade que não
da-feira, de terça-feira etc., e os delegados municipais to­ fosse aproveitada no tem po convencionado (SMITH, 1990;
maram a denom inação de sesm eiros. P o r sua vez, as terras M a r q u e s , 1975: 544; R a u , 1982: Cap. V I).
que eles concediam ficaram conhecidas com o sesmarias Tod a a legislação sobre sesmarias foi incorporada, em
(R a u , 1982: 47-57). Utilizadas depois para povoar os re- 1446, às Ordenações Afonsinas (L iv ro IV, T ítu lo 81), e
guengos e as terras da Igreja e da nobreza, as sesmarias mantida, com poucas alterações, nas Ordenações M anue­
foram assim mais uma form a d e apropriação do que de linas (L iv r o IV, T ítu lo 67), de 1521, e nas Ordenações
propriedade (MARQUES, 1975: 543). Filipinas (L iv r o IV, Título 43), d e 1603. C o m a expansão
E m meados do século XIV, com o progresso do p o ­ marítima portuguesa, o instituto da sesmaria foi transposto
voamento, poucas eram as glebas ainda disponíveis, mas a para as conquistas (com o, de resto, toda a estrutura ju rídi­
eclosão da peste negra e a elevação dos salários artesanais ca lusa). G rande viabilizador do processo d e apropriação
urbanos logo levaram a um crescente êxodo rural. As terras do território brasileiro, é im possível enten der o período
marinhas (terrenos incultos de propriedade particular) tor­ colonial sem que se faça referência ao sistema sesmarial,
naram-se então mais numerosas, causando diminuição de que só fo i abohdo às vésperas da Independência. Todavia,
renda e decréscim o da produção de grãos. Para com bater seu im pacto sobre a estrutura fundiária do país faz-se sen­
essa situação, a C oroa prom ulgou então “ uma das prim ei­ tir até hoje.
ras leis agrárias da Europa que m ereça tal nom e” (R a u ,
1982: cap. V ).
A lei das sesmarias, assinada p o r D. Fernando em
1375, foi na realidade uma lei violenta, que não teve com o

202 203
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRASI L C O L O N I AL

A transposição do sistema sesmarial para o Brasil dados aos donatários, com o atesta bem o de Duarte C oe­
lho, mandava o E l-R ei D . João I I I que repartissem as terras
A C o ro a Portuguesa tom ou posse d o território brasi­
leiro p o r aquisiçã o o rig in á ria , isto é, p o r d ire ito de co n ­ “ na form a e m aneira que se conthem em minhas
quista (C lR N E L i m a , 1954: 8 9 ). P or essa razão, todas as ter­ ordenações [isto é ], o capitam da dita capitania e seus
ras “ descobertas” passaram a ser consideradas com o terra sobcesores daram e repartiram todas as terras delia
v irg em sem qualqu er senhorio ou cultivo anterior, o que d e sesmarya a quaesquer pesoas de qualquer calyda-
perm itiu que a C oroa pudesse traspassá-las a terceiros, v i­ d e e condiçam que seyam contanto que seyam chris-
sando com isso assegurar a colonização. tãos lyvrem ente sem foro nem dereito algum somente
A carta patente dada a M artim Afonso de Souza é o dízim o que seram obrigados de pagar a hordem de
unanim em ente considerada com o o prim eiro docum ento m estrado d e noso Senhor Jhesu Christo de tudo o
sobre sesmarias do Brasil. N a realidade, M artim Afonso que nas ditas terras ouverem...” ( F o r a l ...: 312).

trouxe consigo três cartas régias. A prim eira outorgava-lhe


“ grandes poderes” , nom eando-o capitão-mor da armada e Se a ordem da C oroa era para que a concessão de ses­

d e todas as terras qu e fossem descobertas, com plena juris­ marias no Brasil fosse feita segundo estabeleciam as

dição sobre as pessoas que com ele seguissem, que já esti­ Ordenações, a verdade é que a prática acabou sendo bem

vessem n o Brasil, ou que para aí fossem depois. A segunda outra. A o com entar o sistema sesmarial implantado além-

p erm itia q u e ele nomeasse oficiais de justiça, necessários à oceano, Costa P orto (1965: 58) assim se expressou:

tom ada d e posse e à governança da terra. A última, enfim,


“ O erro de base do sesmarialismo brasileiro .. [consis­
dava-lhe p od er para doar sesmarias às pessoas
tiu] ... em haver-se transplantado, quase sem nenhum
retoque, a legislação reinol para m eio totalmente di­
“ q u e n a d ita t e r r a q u y s e r e m v y u e r e p o u o a r ... se g u n ­
verso, de tal m odo pesando as influências diferencia-
d o o m e r e c e r e m as d itas pessoas p o r seus seru yço s e
doras de espaço e tem po que, via de regra, ou o siste­
c a ly d a d e s p e r a aas a p r o u e y ta r e m e as terras q u e hasy
m a não funcionou, ou, funcionando, acarretou, aqui,
d e r s e ra s o m e n t e nas vid as d a q u e lle s a q u e as d e r e
resultados opostos àqueles obtidos em Portugal.”
m a y s n a m ... “ ( I n F R E IT A S , 1924: 1 5 9 -1 6 0 ).

Quais seriam essas influências diferenciadoras de es­


A instituição, logo a seguir, do sistema de capitanias paço e tem p o? C om o funcionou o sistema sesmarial no
hereditárias, em nada mudou o espírito da lei. Nos forais Brasil? C om o o sesmarialismo português acabou se trans-

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E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B R A S I L C O L O N I A L

formando em sesmarialismo colonial? U m a breve análise se dessem “m aiores terras a um a pessoa de sesmaria que
dessas questões, sustentada p or autores que as discutiram a aquelas qu e razoadam ente p a recer que no d ito tem po p o ­
fundo, perm ite que cheguem os a algumas conclusões im ­ d erã o a p rov e ita r” (O rdenações Manuelinas, L iv ro IV, T í­
portantes. tulo 67, § 3), tom ou igualm ente nova feição no Brasil. C o ­
A prim eira é que as “influências diferenciadoras de m o o sistema de produção colonial crescia p o r extensão, a
espaço e tem po” fizeram-se sentir desde o início. A o con­ liberalidade na concessão passou a ser a regra, sobretudo
ced er as primeiras sesmarias, M artim Afonso já o fe z em no século X V I, o que fe z surgir propriedades de dimensões
caráter perpétuo, contrariando o texto régio que estabele­ im pensáveis no agro português, “ áreas imensas de quatro,
cia que a doação seria apenas vitalícia. N ão há dúvida, cinco, dez, vinte léguas, muitas vezes em quadra ...”1 e que
entretanto, que essa m odificação v eio a se adequar m elhor cresciam ainda mais p o r aquisição derivada, isto é, pela ane­
h
aos objetivos da colonização: não seria possível povoar uma xação d e outras glebas obtidas p o r doação, compra, ou he­
terra tão longínqua e habitada p or povos hostis, sem que se rança (C O S T A P o r t o , 1965: 61-65). A esse respeito assim
pudesse garantir aos conquistadores o direito de transferir se expressou Silva (1 9 9 0 ,1: 39,47):
o fruto de seus esforços a seus herdeiros.
A determinação das Ordenações para que os sesmei­ "... as possibilidades comerciais do cultivo da cana-de-
ros estabelecessem "... sem pre tem po aos que as derem , ao açúcar, que dem andava grandes extensões de terras,
mais de cin co anos e d a í para baixo, que as lavrem e a pro­ levou a m etrópole a fechar os olhos frente ao des-
veitem ... E se as pessoas... as não aproveitarem ... os sesmei­ cum prim ento das suas próprias exigências no tocante
ros... dêem as terras... a ou tros que as a proveitem ” (O r ­ à legislação d e sesmarias... F oi, portanto, a form a de
denações Manuelinas, L iv ro IV, T ítu lo 67, § 3), tam bém foi inserção da colónia no am plo m ercado mundial que
o >
pouco respeitada. L o g o ficou claro que o tem po não p o d e ­ se abria para determ inados produtos, com o o açúcar,
ria começar a correr desde a que traçou o m od elo da agricultura aqui instalada:
\\b
insubmissão do indígena dificultava o aproveitamento das qS ^ latifundiána, m onocultora e escravista. Essas condi­
terras (uma condição essencial) e, não raro, im pedia mes- jy jp ções é que explicam tamanha liberalidade p or parte
m o a sua ocupação (M E R Ê A , 1924: 183). P o r essa razão, x da m etrópole na disposição do solo colonial, muito
muitas sesmarias só acabaram sendo cultivadas bem depois ^ mais do que a ganância e a cupidez dos colonos che­
' í* *
do período estabelecido nas cartas de concessão, e não
LO gados à A m érica para fazer fortuna” .
foram poucas as doações que acabaram caducando p or
terem seus beneficiários desistido d e aproveitá-las.
O velho preceito das Ordenações mandando que não ‘ U m a lé gu a em quadra equivale a 4.356 ha ou a 1.800 alqueires.

206

A
#
E X P L O R A Ç Õ E S G E OG R Á F I C A S
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRASIL C O L O N I A L

N a realidade, a própria C oroa incentivou a concentra­


esta teve que assumir em troca, acabaram se constituindo
ção de terras. A o instituir-se o G overno Geral, ordenou El-
em p eça fundamental d o processo de organização territo­
R e i a T o m é de Souza que só concedesse terras para a cons­ rial d o Brasil.
trução d e engenhos de açúcar àqueles que tivessem posses
A form a com o a terra brasileira acabou sendo pro­
bastantes para fazê-los (In FLEIUSS, 1925: 17). C om o pro­
p riedade da C oroa Portuguesa, mas sujeita à jurisdição es­
gred ir da colonização, entretanto, essas exigências acaba­
piritual da O rdem de Cristo, foi bem descrita p or Costa
ram p o r se estender a todos os que solicitavam sesmarias,
P o rto (1965: 42-51), que recuperou todo o emaranhado de
que passaram a te r que provar que tinham recursos (nota-
bulas papais que concederam privilégios a Portugal nos sé­
dam ente escravos) para p od er recebê-las; cortou-se, assim,
culos X IV , X V e X V I. D ecidid a a m anter no Reino os inú­
o acesso à propriedade a inúmeros colonos.
m eros bens aí possuídos pela antiga Ordem dos Tem plá­
H á que se notar, finalmente, que até mesmo o signifi­
rios, extinta em 1312 p o r C lem en te V, solicitou a monar­
cado do term o sesm eiro acabou se invertendo no Brasil. N a
quia lusa a João X X II, seu sucessor, que incorporasse esse
colónia, ele passou a ser aplicado ao beneficiário da doação
e não, com o era uso em Portugal, àquele que tinha p od er patrim ónio à C oroa ou que o adjudicasse a uma nova insti­

real para distribuir terras d e sesmaria. tuição, de caráter local. Pela bula A d ea ex quibus, de 14 de
m arço d e 1319, decidiu-se então o papa pela segunda
opção, surgindo então a O rd em do M estrado de Nosso

O dízim o, as obrigações da Coroa e a organização do S en h or Jesus C risto.


território D e início a O rd em de C ris to teve existência autóno­
m a em relação à Coroa, ainda que tenha participado das
O que dava originalidade ao sistema sesmarial era a guerras em que esta se envolvia contra Castela e contra os
obrigatoriedade de cultivar o solo num determ inado prazo, mouros. Aos poucos, entretanto, ela começou a financiar o
sob pena de cancelam ento da concessão. Nas conquistas, p rojeto m arítim o português. Para justificar o processo ex-
entretanto, as sesmarias incorporaram uma exigência adi­ pansionista, solicitou então D . João I a Martinho V que
cional: o pagam ento do dízim o à O rdem de Cristo, o que concedesse a Portugal o dom ínio tem poral sobre as terras
na realidade q ueria d izer pagamento à própria C oroa. Mais descobertas ou conquistadas, tendo obtido também a auto­
d o que um im posto cobrado dos que recebiam terras, o rização para que o Infante D . H enrique, seu filho, assumis­
dízim o era a justificativa m esm o do processo de conquista. se o grão-mestrado da O rdem . A partir daí os interesses da
E ao simbolizar toda a relação que se estabeleceu entre O rd em e os da C oroa passaram a se identificar cada vez
Estado e Igreja na “ era dos descobrimentos” , o pagamento mais, com o provam diversos éditos papais emitidos duran­
desse tributo à Coroa, e as consequentes obrigações que te o século X V

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*'•' ' ■. nictãCxAs t têo m o j . rism*

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B R A S I L C O L O N I A L

Assim, pela bula C uncta m u n d i, de 8 de jan eiro de missão evangelizadora sob a qual obtivera d o papado a legi­
1454, Nicolau V acrescentou ao dom ínio tem poral a juris- tim ação de suas conquistas, cabia à C oroa fazer a sua co­
! dição in spiritualibus, que ficou conhecida com o o pa d roa ­ brança ( C o s t a P o r t o , 1965: 96; S m i t h , 1990:166).
^ 9 d o, e que consistia no privilégio concedido à C oroa d e A arrecadação do dízim o criou no Brasil um eficiente
cobrar o dízim o eclesiástico nas conquistas para aí e rig ir esquem a d e delegação de poderes que deu origem , p o r sua
dioceses e sustentar a religião e o culto. Todavia, com o era vez, a um engenhoso sistema de regionalização da cobran­
«T

í a rica Ordem de Cristo que financiava o projeto expansio- ça. Im possibilitada de controlar diretam ente tudo que era
nista luso, solicitou a C oroa que o padroado fosse transferi­ produzido, a C oroa optou desde o início p e lo sistema de
contratação, já bastante utilizado no Reino. A intervalos 'ti?
do a essa milícia, o que foi autorizado por Calixto I I I atra­
r
vés da bula In te r C oetera, de 13 d e março de 1456. G rão- regulares, punha-se o serviço de cobrança d e cada capita­

a
mestre da O rdem de Cristo desde 1485, ao assumir o tron o nia em arrematação, sendo o contrato entregue a quem
d ez anos mais tarde D . M anuel I enfeixou pela p rim eira oferecesse mais. Ressarcida p o r aquele período, a C oroa
v e z as duas dignidades na mão d o R ei, situação que p erm a­ delegava então ao arrematante (tam bém conhecido com o
neceu com D . João I I I , tom ando-se definitiva em 1551, d iz im e iro ou co n tra ta d o r dos dízim os rea is) o p od er de
quando o papa Júlio I I I , através da bula Praeclara cla rissi- cobrar o tributo dos produtores diretos, que podiam pagá-
m i, determinou que, daí por diante, fosse o grão-mestrado lo em espécie ou em d in h eiro de contado.
da Ordem exercido pelos monarcas lusitanos. M esm o regionalizada a nível das capitanias, a cobran­
■ Quando os portugueses tomaram posse do território ça dos dízim os ainda assim era tarefa im possível para uma
brasileiro, exercia, pois, E l-R ei tanto o domínio tem poral só pessoa. Tom ou -se então comum a prática da subcontra­
sobre as terras conquistadas, com o também o espiritual. tação. Os contratos passaram a ser divididos em “ ramos” de
Eram poderes distintos, mas, com o estavam agora nas mes­ produção (d o açúcar, dos gados, do peixe, da farinha, e das
mas mãos, acabaram p or se confundir. Isto explica por que as “miunças” , ou seja, da produção menor: cabritos, frangos,
sesmarias brasileiras eram isentas de foro (por não pertence­ galinhas, ovos etc.), que eram em seguida repassados a
rem a quaisquer senhoriosh mas sujeitas ao pagamento do quem m aior quantia desse p o r eles. Esses ramos, p or seu
dízimo a Deus (isto é, à Ordem d e Cristo, isto é, à Coroa). lado, eram freqiien tem ente regionalizados ainda mais, sur­
(-----C> O dízimo era um ônus sobre a produção — um em dez gindo daí outros subcontratos (d o dízim o do açúcar de tal
* dos fru to s da terra — e incidia sobre a agricultura e a pecuá­ região de tal capitania, por exem plo).
} ria coloniais. Era, na realidade, um tributo eclesiástico, que Assim com o ocorreu com os demais contratos colo­
deveria ser pago inclusive por quem não possuísse terra, já niais (sal, tabaco, baleias etc.), a arrematação dos dízimos
que, como cristãos, todos os produtores deveriam contribuir reais revelou-se um negócio muito rendoso. C om o a maior
para o programa de propagação da fé. E com o gestora da quantia o ferecid a sem pre ficava muito aquém da arrecada-

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i
EXPLORAÇÕES GEOCRÁFICAS A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO BRASIL C O L O N I A L

ção efetiva, a obtenção desses contratos e subcontratos aca­ As terras urbanas


bou gerando pequenas fortunas na colónia. P o r sua vez, a
prática da subcontratação fez com que o cerco sobre o p ro­
C om o b em lembrou Costa P orto (1965: 158-159), com
dutor direto fosse se refinando cada v e z mais com o tem po,
a conquista foram transplantadas para o Brasil as praxes m e­
o que diminuiu as chances de sonegação, mas deu origem
tropolitanas de controle territorial, dentre as quais tomou
a inúm eros conflitos locais, muitos dos quais exigiram a
vulto, desde o início, a adoção de um sistema municipalista
intervenção direta do rei.
d e base urbana e de raízes romanas, cujas manifestações
F on te im portante de recursos reais, a cobrança d o
materiais foram o a rra ia l (ou p ovoa d o), a vila e a cidade.
dízim o, p or ser feita em nome da O rdem de Cristo, exigiu
entretanto uma contrapartida de peso: a jurisdição espiri­ D en tre esses, apenas o arraial teve origem espontânea,

tual da colónia. Resultou daí um extenso rol de obrigações resultando do agrupamento de famílias em algumas resi­

que a C oroa passou a ter no Brasil, tais com o sustentar e dências chamadas fo g o s — que apresentavam certa con­
difundir o culto; criar paróquias; autorizar a criação de tiguidade e unidade formal. Os demais surgiram sempre da
igrejas, conventos e irmandades; edificar ou reparar tem ­ ação direta ou indireta dó Estado.
plos; estabelecer e manter burocracias eclesiásticas; man­ As vilas resultaram da decisão de donatários e gover­
ter ou subsidiar colégios e mosteiros; indicar prelados em nadores, que tinham p o d e r para criá-las, ou de ordem real
suas diversas hierarquias etc. para que se elevasse a essa categoria algum arraial. A cria-
A progressão do povoam ento só fe z aumentar esses ção de cidades, entretanto, fo i sem pre um atributo exclusi-
encargos. A cada criação de freguesia surgiam novas despe­ t é v o da Coroa. Os donatários não tinham o direito de fundá-
sas. E os encargos se multiplicavam quando uma cidade ou las porqu e “ as cidades, perpetuando em si o antigo M u ­
vila era elevada a sede episcopal, já que então era preciso nicípio romano, d e natureza independente, só assentavam
p rover o recém -criado bispado de todas as prerrogativas e } em terras próprias alodiais” (F L E IU S S , 1925: 10). Para fun­
dignidades que lhes eram devidas, que eram regulamenta­ dar a cidade do Salvador, por exem plo, a Coroa teve que
das p o r leis do Estado e por bulas papais .2

dois de meia preben da, um subchantre, quatro capelães, quatro moços do coro,
2 F o i o q u e aconteceu, po r exemplo, quando da elevação do R io de Janeiro à um organista, um m estre da capela, um sacristão, um porteiro da massa, um cura
categoria d e bispado, determ inada pela bula Romani P on tificit, de Inocêncio XI, e um coadjutor. A partir d e 1689 passou a contar também com um mestre-de-
expedida em 16 de novem bro de 1676. P ela Provisão de 18 de novem bro de cerimônias. D u ran te tod o o século X V I I I este corpo eclesiástico continuou a
1681, o Príncipe Regente D . P edro instituiu o C o rpo Capitular da nova sé, que aum entar, expandindo-se ainda mais em 1808, quando a Sé Catedral foi conde­
só tom ou posse, entretanto, após a chegada do novo bispo, D . José de Barros corada, pelo recém -ch egado Príncipe Regente, com o título e dignidade de
Alarcão. E ste "quadro eclesiástico" consistia de um deão, um chantre, um tesou­ C a p ela Real, sendo igualada então ao Patriarcado d e Lisboa. V e r Pizarro e Araújo
reiro-m or, um mestre-escola, um arcediago, seis cónegos de prebenda inteira e (1820-1822), vol. 6.

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B RA S I L C O L O N I A L

recuperar prim eiro a jurisdição da antiga capitania da se m aterializava obrigatoriam ente na paisagem urbana pela
Bahia de Todos os Santos (AZEVEDO, 1956: 14). ereção de um pelou rin h o. Tinham direito, ademais, às dig­
A elevação de um núcleo urbano a sede de bispado nidades e regalias conferidas pelas Ordenações aos conse­
exigia a promulgação d e instrumentos jurídicos adicionais. lhos e a seus cidadãos. E possuíam, finalmente, um term o,
C om o todo o solo colonial estava sujeito à jurisdição espiri­ ou área de jurisdição, dentro da qual se situavam os arraiais,
tual da Ordem de Cristo, fazia-se então im prescindível que e um patrim ónio fundiário: as terras d o Conselho.
E l-R ei ou o Papa quebrassem os vínculos que submetiam a
sede do novo bispado ao controle da O rdem , pois sendo
nobres de prim eira grandeza os bispos somente podiam O p a tr im ó n io m u n ic ip a l
residir em terras alodiais (FLEIUSS, 1925: 11).
(^ A diferenciação entre vilas e cidades era, pois, d e A doação de terras para as câmaras municipais é c o e ­
caráter jurisdicional e não hierárquico. As cidades, p o r se­ va dos prim eiros anos da colonização, tendo sido inclusive
rem da Coroa, eram chamadas de cidades reais, mas nem determ inada nos forais dos donatários. Data d e 1537, p or
A '^ A todas alcançaram o papel de comando que o título lhes exem plo, a instituição do patrim ónio de O linda (C O S T A
conferia .3 Por outro lado, o status de vila não diminuía a PORTO, 1965: 160). Já as terras dadas ao R io de Janeiro an­
P importância de um centro urbano. Olinda e São Paulo, p or tecedem m esm o a conquista definitiva da terra. A imissão
exem plo, núcleos de indiscutível importância nos prim ór- de posse desse património era pública e solene, e seguia
\' ^ dios da colonização, só foram elevadas à categoria de cida- um rígido cerim onial medieval, que atribuía os foros de le ­
‘ ' de depois que suas terras reverteram à C oroa (em 1676 e galidade exigidos pelas praxes metropolitanas, com o bem
1711, respectivamente). demonstra o exem plo carioca:
Vilas e cidades diferenciavam-se, entretanto, bastante
dos arraiais, pois só nelas estava a sede de um govern o ••• lo g o os ditos moradores e povoadores disseram,
loca l. A li fazia-se justiça em nom e do R ei, prerrogativa que que e lle dito João Prosse tomasse a dita posse, em
nom e d e todos assim presentes com o ausentes, e que
*
o dito M eirin ho lhe m ettêra nas mãos terra, pedra,
J ’A °3 É o caso, por exemplo, de Filipéia d e Nossa Senhora das Neves, hoje João
agua, páos e hervas, e que e lle João Prosse passeara e
Pessoa, fundada em 1585, de São Cristóvão, em Sergipe, fundada em 1590, e de
o
N o ssa Senhora da Assunção d o C a b o Frio, fundada em 1615. Mariana, p o r sua andára p ela dita terra, assim elle, com o os m oradores
vez, só foi elevada à dignidade de cidade, em 1745, po r ter-se tornado sede epis­
copal. P or outro lado, tam bém houve exemplos de vilas que, po r motivos nitida­
e povoadores que presente forão, e se houverão p or
; m ente políticos, só obtiveram o estatuto de cidade muito depois de outros nú­ empossados, e mettidos da dita posse, sem pessôa
cleos rivais. É o caso d o Recife, q ue só alcançou a honraria que já distinguia
O lin d a desde o século X V I I após a Independência (1823).
nenhum a o contradizer...” (Traslado...).

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS A A P R O P R I AÇ Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRASI L C O L O N I A L

Os patrimónios municipais destinavam-se a garantir livre, sem encargo nem pensão para o sesmeiro, e da mes­
renda para os conselhos, que podiam dividi-los em glebas e ma sorte ficará a terra que se lhe houver de dar para bens
aforá-las aos m oradores. N o Brasil, e les tiveram os mais do C onselho” (R ecife, 1955).
variados tamanhos. As Ordenações eram mudas a esse res­ Os patrimónios municipais foram muitas vezes chama­
peito, e a diversidade de situações foi grande. Salvador, p o r dos de “ rossio da vila”, de “ rossio d o conselho” ou de “ rossio
exem plo, recebeu três léguas ao longo d o mar, nos lim ites da Câmara” . É necessário, entretanto, ficar atento às arma­
d o term o da cidade (R u y , 1953: 58). São Paulo, ao que tu­ dilhas que o term o “ rossio” contém, pois ele tanto podia sig­
d o indica, teve m eia légua em quadra (Inform ação...). nificar a sesmaria dada à res pu blica (isto é, às terras do
M e m de Sá deu ao R io de Janeiro duas léguas em quadra. C on selho), com o referir-se àquelas terras que em Portugal
M uitos núcleos urbanos, com o Vila R ica (VASCONCELOS, ( eram denominadas de baldios, e que no Brasil ficaram mais
1956: 34) e B elém (apud MOURÃO, 1987), receberam uma //ijJjLfc*' conhecidas com o logradouros públicos. Situadas no termo
légua em quadra, área que ficou conhecida mais tarde c o ­ .j \< , das municipalidades, essas terras eram, entretanto, inaliená-
4
m o “ légua do patrim ónio” ou “ légua patrimonial” . Já a pau­ veis, pois destinavam-se à “ serventia do povo” para a pasta­
lista Cananéia teve a “ meia légua de terras [em quadra] que gem do gado ou para a “ utilidade pública e proveito comum
se costuma dar de rossio às vilas” (ALM EIDA, 1966: 118). V i­ a toda [a] Vila, para madeira, lenha, canas e cipós, onde
la Bela da Santíssima Trindade do M ato Grosso recebeu todos mandam buscar com o mato destinado para o bem
quatro léguas em quadra (Auto da...). Vila Boa de Goiás, com um ” , com o consta de um antigo documento de São
p o r outro lado, tam bém recebeu um património de “ 4 lé ­ Paulo d e Piratininga (Informação...: 66 ).
guas em quadra na circunferência da vila, fazendo pião no Terras do conselho e logradouros públicos sempre
pelourinho dela” (São Paulo, 1944). As vilas fundadas no contaram com a defesa da Coroa. As Ordenações eram
litoral da Bahia nos fins do século X V II I tiveram tam bém os bastante explícitas quanto a isso, cabendo aos Ouvidores,
mais variados patrimónios, predominando em algumas a em suas correições (auditorias) periódicas, verificar se am­
“ légua patrimonial” , e sendo doadas a outras quatro léguas bos estavam bem utilizados e protegidos. N ão foram pou­
em quadra (FREIRE, 1906). cas as admoestações feitas p o r eles às Câmaras Municipais
C om o progredir do povoamento, a C oroa preocu­ para que cuidassem m elhor de seus patrimónios e im pedis­
pou-se em garantir terras para as vilas que ainda seriam sem a apropriação indébita dos baldios, notadamente da­
criadas. Passou-se então a incluir nas cartas de sesmaria, a queles destinados à engorda d o gado destinado à com ercia­
partir do início do século X V III, a cláusula de que se E l- lização ou ao abate (as invem adas).
R e i decidisse “ fundar naqueles distritos alguma vila, o
poderia mandar fazer, ficando a terra em que se fundar

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRA S I L C O L O N I A L

A s sesm arias d e chãos Costa P orto (1965: 96) indica que, em Pernambuco,
os exem plos dessa isenção são vários: “ quando fazem doa­
Além das sesmarias de terras dadas a particulares ção d e ‘chão’, as cartas ou adotam a linguagem genérica do
para fazer lavouras e criar gado, e das sesmarias dadas aos ‘livre, foro [fo rro ] e isento’, ou declaram, expressamente,
conselhos para patrim ónio municipal, os representantes da qu e a doação é ‘isenta do dízim o de D eus’, ou com isenção,
C oroa (donatários, governadores, capitães-mores etc.) doa­ ‘p o r não ser para cultivar’, ou ‘visto serem para edificar’ .”
ram também um outro tipo de sesmaria no Brasil colonial. N ã o é certo que a mesma prática tenha ocorrido em todas
Trata-se das sesmarias de chãos, ou seja, da doação d e solo as outras capitanias. N o R io de Janeiro, as poucas cartas.de
aos moradores dos núcleos urbanos para que ah construís­ doação que resistiram ao tem po reproduzem o que as
sem suas casas d e moradia e quintais. O rdenações exigiam para as concessões de sesmarias de
M uito pouco se sabe hoje dessas doações urbanas p ri­ terras, isto é, determ inam o pagam ento do dízim o. Toda­
mordiais; seus registros, hoje na m aior parte perdidos, via, os chãos destinavam-se à construção de residência e à
foram geralmente desprezados pelos historiadores do pas­ produção de quintal, de uso dom éstico, e jamais foram eles
sado (P iz a r r o e A r a ú j o , 1900; Jo f f i l y , 1893; F r e i r e , sujeitos ao tributo.
1906). Preocupados em registrar as sesmarias de terras, um • A doação de sesmarias de chãos com plexificou bas­
esforço louvável, eles acabaram deixando de lado “ as cartas
tante o panorama territorial dos núcleos urbanos coloniais.
dos pequenos chãos para casas, distribuídos no perím etro
A lé m de não estarem sujeitas ao pagamento do dízim o,
urbano, tão importantes para a localização das moradas dos
essas terras, p or serem alodiais, também estavam isentas
primeiros habitantes da cidade e para a história de nossos
de qualquer tributo municipal, ainda que ocupassem as
logradouros” (Arquivo Nacional, 1967: vi).
áreas mais centrais (e valorizadas) das cidades e vilas. C om
A o contrário das sesmarias de terras, as doações de
o correr da colonização, e procurando aumentar as suas
chãos não estavam sujeitas ao dízim o. C om o já visto, o d ízi­
rendas, não foram poucos os governos locais que tentaram
m o se aplicava, não sobre o solo, mas sobre a produção, in ­
im p or foros a esses chãos alodiais, o que deu origem a inú­
cidindo, assim, não sobre o m orador na qualidade de p ro ­
meras demandas judiciais. Graças a elas, podem os recupe­
prietário, mas sobre o cristão, que sendo o único habilitado
rar, hoje, diversas informações sobre o Brasil urbano do
a receber terras de sesmaria, era então obrigado a concor­
passado.
rer financeiramente para o esforço de propagação da fé.
P o r isso, só estavam sujeitas ao pagam ento do dízim o as
terras destinadas à agricultura e à pecuária, ficando livres
do tributo os chãos dados para moradia.

218 2 19

y
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO BRASIL C O L O N I A L

A alienação da propriedade territorial terra, isto p o d e parecer uma incongruência. Há, entretan­
to, uma racionalidade bastante clara nessas transações. As
F o i através do sistema sesmarial que se teve acesso doaçoes d e sesmarias, bastante generosas, faziam-se sempre
legal à terra no Brasil Colónia. Cumpridas as exigências, a partir d e um determ inado ponto d e comando do território
ficavam os proprietários de terras livres para fazer delas o (um a vila ou uma cidade). P o r essa razão, a fronteira entre
que b em quisessem. Variando na forma, os docum entos de as terras já concedidas e as que ainda estavam disponíveis
doação eram explícitos quanto a esse direito: "... e para sua para doação foi rapidamente se afastando dos núcleos de
guarda e segurança lhes m andou ser fe ita esta C a rta pela colonização. C o m o para garantir a doação bastava p ôr em
qu a l manda que eles hajam a posse e senhorio da d ita terra produção um a p a rte da terra recebida, logo ficou claro que
para sem pre, para eles e todos seus herdeiros e sucessores, terra virgem não era sinónimo de terra disponível, e esta é a
ascendentes e descendentes...” (A rqu ivo Nacional, 1967). A razao pela qual muitas cartas de sesmaria estatuíam que,
alienação das propriedades variou, entretanto, em função em sendo a terra solicitada já concedida, “ corresse adiante” ,
de quem era o beneficiário original. ou seja, que fossem doadas as terras seguintes.
( g j A form a mais comum de alienação das sesmarias da­ Resultou dai que, já no século X V I, o acesso k terra se
das a particulares foi a partilha pelos herdeiros. Muitas en­ tom ou difícil a muitos colonos recém-chegados. M esm o que
tretanto passaram de mão por dote de casam ento ou por tivessem recursos materiais para solicitar sesmarias, as terras
legados pios, isto é, por doações feitas à Igreja e às ordens disponíveis já se situavam longe dos portos ou muito perto
religiosas, que se com prometiam , em contrapartida, a cum ­ do gentio hostil. Surgiu daí o paradoxo do aparecimento de
prir diversas obrigações p ost-m ortem aos doadores, com o um ativo m ercado de terras junto aos centros de povoamen­
dar-lhes sepultura em recinto sagrado, oficiar capelas de to, com os sesmeiros mais antigos vendendo ou arrendando
missas (50 missas) por suas almas etc. E m terras de en ge­ suas cobiçadas terras àqueles que chegaram depois.
nho, foi comum a alienação por enfiteuse, utilizando-se a As sesmarias concedidas às ordens religiosas e às
tarefa (30 braças em quadra, ou 4.356 m2) com o m edida de câmaras municipais seguiram um outro processo: aí predo­
referência para a transferência do dom ínio útil. E m bora m inou a alienação p o r enfiteuse, variando, entretanto, o
mais raro, foram instituídos também alguns m orgados, for­ prazo de cessão d o dom ínio útil. E m muitos casos optou-se
ma jurídica segundo a qual o proprietário assegurava a p e lo fa teu sim p e rp é tu o ,4 ou seja, pela transferência do *
transferência das terras apenas ao filho mais velho, evitan­
do assim o seu retalhamento.
* Variadas são as formas pelas quais o contrato enfitêutico em perpetuidade apa­
A venda e o arrendamento tam bém se verificaram
rece nos documentos d e arquivo. A s seguintes denotações foram encontradas em
desde o início da colonização. Dada a existência d e tanta nossa pesquisa: fateosim, fatoesim, fatoizim, fatuizem, fatuizim, factuizim.

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E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S A A P R OP R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO B R A S I L C O L O N I A L

dom ínio indireto para sempre, beneficiando o fo reiro e espécie d e im posto de transmissão. Os aforamentos p o r
todos os seus herdeiros. M uitos aforamentos, entretanto, prazo lim itado continham, p or sua vez, uma cláusula im ­
foram feitos p or tem po determ inado, limitando-se o prazo portante: em bora determ inando que o dom ínio útil rever­
em vidas (por exem plo, em 3 vidas, o que incluía a vida do teria ao aforador ao fim do contrato, garantia-se ao foreiro
foreiro original e as de dois de seus herdeiros) ou em anos qu e quisesse renová-lo a precedência sobre quaisquer ou­
(sendo comum aqui o aforam ento p or nove anos ou seus tros pretendentes (o d ire ito de preem p çã o).
múltiplos). Este últim o tipo de aforam ento tinha a vanta­ Am bos os contratos continham, finalm ente, outra
gem de perm itir que o detentor do dom ínio direto optasse cláusula importante: proibia-se o desm em bram ento das
p or reaver o dom ínio útil da terra ao fim do contrato, terras durante a sua vigência. Esta condição, imposta pelas
pagando, entretanto, pelas benfeitorias nela realizadas p e lo O rdenações aos contratos enfitêuticos, determ inava ainda
foreiro. que, no caso de m orte d o foreiro, todas as terras passariam
Independente d o tem po de cessão do domínio- útil, o a um só herdeiro, exigência que hoje se revela preciosa aos
diplom a enfitêutico era perm eado de condições que lim ita­ pesquisadores, que p od em assim tentar recuperar (existin­
vam a ação dos foreiros, ainda que nem sem pre tenham si­ d o ainda a docum entação) os antigos lim ites territoriais da
do elas rigidamente obedecidas. Estatuía-se sem pre a anu­ colónia.
lação do contrato se o foro deixasse de ser pago p o r três
anos consecutivos, perdendo então o foreiro não apenas as
terras, mas tam bém as benfeitorias nelas realizadas. Proi- Controles, descontroles e “brechas”
bia-se ainda ao foreiro vender, traspassar, dar ou escambar da apropriação territorial
as terras sem o consentimento do proprietário direto. T o ­
davia, concordando este últim o com a transação, uma nova Caracterizado, desde o início, pela im ensidão das g le ­
carta deveria ser expedida ao novo foreiro. bas concedidas e pela im precisão de seus lim ites, era inevi­
O contrato em perpetuidade não isentava o foreiro, tável qu e o processo d e apropriação das terras brasileiras
cada vez que alienasse o dom ínio útil das terras, de pagar acabasse dando origem , com o tem po, a uma série de
ao senhorio direto um tributo de 2,5% sobre o valor da conflitos.
venda. Era o laudêm io, ou laudêm io da quarentena, uma Os posseiros surgiram desde o início. N ã o tendo aces­
so a terras gratuitas a não ser a grandes distâncias dos
núcleos de povoam ento, muitos sesmeiros potenciais sim­
factiiozim, fauteusim, fetuizim, fetulzin, fatíosim, fatíosiom, fatiozam, fateo sim, plesm ente optaram p o r ocupar porções não aproveitadas
fateum sine, phateosim, phateozim, phateusim, phatoesim, infatuizi, infituizi,
enfittoizim, enfiteusim, emphiteuti, infatíota. de sesmarias já concedidas. Alguns deles, ricos e podero-

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

sos, conseguiram inclusive ob ter legalm ente essas terras, mais extensa que a m etrópole, fracam ente povoada, sujeita

tom ando letra morta a cláusula sesmarial de que a doação a um processo d e exploração de terras grandemente preda­
tório, d ifícil de ser fiscalizada e, portanto, pouco enquadrá-
só era válida “ não tendo sido já dada a terra a outrem ” .
v e l aos controles administrativos que vigoravam no Reino.
As im precisões das cartas d e sesmaria tam bém facili­
Tentando retom ar as rédeas do processo de colonização,
taram bastante a eclosão de disputas fundiárias. O uso de
marcos qu e não tinham perenidade era com um ( “ uma pal­ que lhe fugia das mãos, o governo português passou então

m eira que está em cim a d o outeiro” , p or exem plo), não a intervir cada v e z mais nos assuntos territoriais brasileiros.

sendo rara a ausência total d e qualquer identificação preci- Sucederam-se então as cartas régias, as disposições, as p ro ­

f. sa (umas terras atrás da Serra da Boa Vista, p o r exem plo). visões, os alvarás, os avisos e os decretos, que tentaram dis­

Adem ais, as sesmarias eram doadas “em quadra” , “ com o se ciplinar, às vezes d e form a contraditória, a concessão de

o solo, onde se as devia dem arcar fosse uma superfície sesmarias no Brasil.

v) p '/ ^ r e g u la r , plana, horizontal, desataviada de acidentes geográ- A legislação específica com eça a surgir em 1695,
v?0 '
ficos, sem relevo de qualquer espécie” (FERREIRA, 1979: quando a Carta R égia de 27 de dezem bro ordenou ao Go-
V*1 45). Resultou daí que muitas doações acabaram se inserin­ vem ad or-G eral que “ às pessoas, a quem se der de futuro,

do umas nas outras, gerando as mais diversas tensões. sesmarias, se imponha, além da obrigação do dízim o e as
Nas áreas urbanas tam bém eclodiram conflitos, seja mais costumadas, a de um foro, segundo a grandeza ou
pela apropriação indébita das terras públicas, seja devido à bondade da terra” . C om o o foro “ não incidia sobre a pro­
ocupação crescente dos terrenos localizados à beira do m ar dução, mas sobre as terras (ao contrário do dízimo), com ­

ou dos rios navegáveis, que causava em pecilhos à defesa preende-se que um dos objetivos visados pela m etrópole

das cidades e vilas e ao transporte de mercadorias. Sur­ era desestimular sesmeiros a m anterem sob seu dom ínio

gidos os conflitos, e dada a extrem a centralização do pro­ terras im produtivas” (SILVA, 1990:1, 53).

cesso decisório que caracterizou a colonização portuguesa A ordem , entretanto, era polêm ica. Para C im e Lim a

no ultramar, a interferência da M etróp ole acabou quase (1954: 38), a diretiva “ envolvia uma transformação com ple­
sempre sendo necessária. ta da situação jurídica d o solo colonial... e inaugurava, en­
tre nós, o regim e dominialista” . Para Freire (1906: 137),
p o r outro lado, ela transformava os sesmeiros em enfiteu­

Controles im postos às sesm arias de terras tas d o Estado. Indepen den te dessas filigranas jurídicas, o
fato é que a resistência dos colonos foi grande, as consultas

N o final do século X V II, a C oroa reconheceu os tra­ ao C onselho Ultram arino se sucederam, e estas parecem

ços singulares de sua principal colónia, incom paravelm ente te r sido as razões pelas quais a le i “ não pegou” de imediato

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em toda parte: a não ser em Pernambuco, onde as cartas ses que demarcassem as terras antes d e tom ar posse delas.
de doação incluem essa cláusula já a partir de 1699 (R e ­ O Alvará d e 3 de maio de 1795, p or sua vez, tentou conso­
cife: 1954), nas demais capitanias isso só ocorreu bem mais lidar todas essas determ inações num único diplom a, e
tarde. N ão há com o negar, entretanto, que a Carta d e 1695 introduziu o e feito retroativo: quem não cumprisse o esta­
foi o passo inicial do desligam ento do sesmarialismo brasi­ b elecid o perdia a sesmaria. Esse alvará, qu e tam bém d e­
leiro do texto das Ordenações (C l R N E L I M A , 1954: 39). term inava que o dom ínio pleno das terras só ocorria após a
Esse não cum prim ento de uma ordem real não d eve sua demarcação e confirm ação real, acabou entretanto sen­
causar espanto. A legislação colonial era dispersa e se pau­ d o suspenso sine d ie p elo alvará de 10 de dezem b ro de
tou pela inconstância. Pela m esm a Carta R égia de 1695, 1796, devido aos “ embaraços e inconvenientes que podem
por exemplo, a M etróp ole fixou lim ites às sesmarias, d eter­ resultar da [sua] im ediata execução” (COSTA PORTO, 1965:
minando que não se concedesse “ a cada m orador mais de 137-141).
quatro léguas de com prim ento, e uma de largo” . Todavia, P o r ser a legislação bastante avulsa, consistindo de
logo a seguir, a Carta R égia de 7 d e dezem bro de 1697 e a normas e providências que se aplicavam às vezes a uma
Provisão de 20 de janeiro de 1699 reduziram esse lim ite única capitania, às vezes sobre todas elas ,5 C im e Lim a
para três léguas de com prido e uma de largo, ou légua e (1954: 39) considerou que, à prim eira vista, era difícil cha­
m eia em quadra, “que é o que se entende p ode uma pes­ m ar o estatuto da sesmaria de estatuto, concluindo, entre­
soa cultivar no term o da L ei, porque o mais é im pedir que tanto, que essa denom inação não lhe era descabida. Isto
os outros povoem ...” . Esse patamar foi novamente aum en­ não quer dizer, entretanto, que as diretivas reais tenham
tado pela Carta R égia de 12 de janeiro de 1701, que trata sido sem pre seguidas. Com pulsoriam ente incluídas nas
de doações no R io Grande do N orte, para “ quatro léguas cartas de doação, as ordens régias nem sem pre eram rigi­
de comprido e uma de largo, ou duas em quadra, que é o dam ente cumpridas. Ademais, algumas condições, com o a
que comodamente pode povoar cada m orador” . A provisão obrigatoriedade de m edição e de confirm ação régia, im pli­
de 19 de maio de 1729, entretanto, determ inou que “ as cavam altos gastos p or parte dos sesmeiros, qu e as poster­
sesmarias não devem exceder a três léguas de com prido e
uma de largo” (Fragmentos...: 96-97).
5 H o u v e diversas legislações específicas. A partir de 1697, as cartas de sesmaria
Outra im portante decisão foi a obrigatoriedade de concedidas em algumas capitanias passaram a incluir a cláusula de ficarem as
madeiras nobres (tapinhoães e perobas) reservadas para o real serviço, proibindo-
confirmação régia da doação para a garantia da proprieda­
se o seu corte. P o r isso foram posteriormente chamadas d e m adeiras-de-lei. A
de plena, introduzida pela Carta R égia de 23 de novem bro carta régia de 1711, po r outro lado, limitou as dadas de terras situadas junto aos
caminhos abertos para as minas gerais em um a légua em quadra. Provisão passa­
de 1698, endereçada ao governador do R io de Janeiro.
d a ao G overn ador do Rio de Janeiro, Lu iz Vahia Monteiro, em 15/3/1731, dimi­
L o g o a seguir, exigiu-se tam bém dos sesmeiros flum inen­ nuiu entretanto esse limite para m eia légua em quadra.

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gavam o mais que podiam , ou m esm o descumpriam-nas. reconheceu as sesmarias antigas, ratificou formalmente o
C om o b em lem brou Silva (1990, I: 82), regim e das posses, e instituiu a com pra com o a única for­
m a de obtenção d e terras. Só em 1854, entretanto, é que
“ a M etró p ole insistia em considerar o assunto apenas essa lei foi regulam entada (SILVA, 1990).
do ponto de vista jurídico, sem atentar para as con di­
ções socioeconôm icas da colónia, que haviam gerado
aquele padrão de ocupação territorial. N a realidade
C ontroles sobre as propriedades das ordens religiosas
subestimaram a força social dos moradores e colonos
que cada v e z mais se afirmavam com o os donos da
terra. A m etrópole tam bém não atentou para o fato Grandes parceiras do processo colonizador, as ordens
de que a multiplicação das exigências para legalizar as religiosas regulares receberam diversas sesmarias no Brasil.
propriedades dos colonos sesmeiros, e a sua resistên­ D e início, as terras concedidas às “ religiões” , com o eram
cia em obedecê-las, estabeleciam cada vez mais um então conhecidas, estavam sujeitas ao dízimo. Logo, entre­
cam po de interesse com um entre uma parcela dos tanto, isso mudou. Os jesuítas foram dispensados do tribu­
colonos sesmeiros e os colonos posseiros. Interesse to p o r breve d e Sisto V já no final d o século X V I (L iv ro de
com um que desafiava a autoridade da m etrópole” . Tom bo..: 348). Beneditinos e carmelitas, ao que parece,
jam ais obtiveram esse privilégio, mas passaram também a
O sistema sesmarial perdurou no Brasil até 17 de demandá-lo, ou recusaram-se m esm o a pagar o dízimo,
julho de 1822, quando a Resolução 76, atribuída a José B o ­ alegando que a sua cobrança servia para financiar o esforço
nifácio d e Andrada e Silva, pôs term o a esse regim e de d e propagação da fé católica, e este era, pelo menos em
apropriação de terras. Segundo Smith (1990: 284, 304), “ a tese, o objetivo da vinda das corporações religiosas ao
m edida suspensiva de doação de sesmarias... encontrava-se Brasil.
inserida numa simples sentença de concessão d e terra, C om o tem po, o patrim ónio territorial dos conventos e
onde, em continuidade, um adendo declarava laconicamen- mosteiros com eçou a crescer bastante, seja por compra ou,
te a suspensão, a partir daquela data, de todas as concessões o que foi mais com um , graças aos legados pios. Mesm o
futuras de sesmarias, até a convocação da Assembléia G eral ob ten do rendas crescentes de suas propriedades, as corpo­
Constituinte” . rações resistiam ao pagam ento d o dízim o, em claro prejuízo
A partir daí a posse passou a cam pear livrem ente no da Fazenda Real. Relatando esta situação, assim se expres­
país, estendendo-se essa situação até a promulgação da L e i sava “ um contem porâneo muito bem informado” do final
de Terras (L e i n.° 601, de 18 de setem bro de 1850), que d o século X V II, com o o qualificou Capistrano de Abreu:

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“ Das fazendas, terras, lavouras e propriedades possuí­ “ Porquanto o passarem os bens foreiros para Religião,
das das Religiões nem Sua Majestade tem tributos, ou outras comunidades que nunca morrem , e raras
nem subsídios, nem dízimos, nem as misericórdias, vezes alheiam, é em grande prejuízo, assim dos foros
nem os hospitais, nem as sés, nem as matrizes e mais em vida, pela falta de renovação, e d e quaisquer, pela
igrejas, nem as confrarias e irmandades, nem as p o ­ diminuição dos laudêmios, ordenou que sendo caso
bres órfas e viúvas têm esm ola alguma: só são úteis às que daqui por diante se aforem ou renove alguma pro­
Religiões que as possuem e não a outra pessoa algu­ priedade, se lhe ponha expressa condição de não pas­
ma... Anualmente vão indo às Religiões muitas p ro ­ sarem as ditas... a comunidades que chamam recair em
priedades, terras, fazendas, ou por compras, ou p or
mão ou cabeça morta...” (TOURINHO, 1931: 16).
deixa, ou por herança, ou p o r demanda d e pretensões
de 60, 70, 80, 90 e 100 anos, as quais em p od er dos
vassalos seculares eram sujeitas a dízimos, tributos e Essa diretiva acabou se aplicando, logo a seguir, a
mais pensões e, incorporadas em religiões, ficam todas as terras dadas de sesmaria. Pela Carta Régia de 27
isentas.” (apud COSTA PORTO, 1965: 107-108) de junho d e 1711, ordenou o R ei que nelas não sucedessem
religiões por nenhum título, e, se isso acontecesse, que fos­
Preocupada com o crescente poderio das ordens reli­ se com o encargo do pagamento do dízim o (Fragm entos:
giosas, e atendendo às reclamações dos contratadores dos 103-104). O cerco atingiu seu clímax em 1759, quando D.
dízimos e das câmaras municipais, a C oroa decidiu então José I aboliu a Companhia de Jesus de todos os seus dom í­
vigiar mais de perto as “ religiões” . As crises económicas do nios e ordenou o confisco de seus bens, o que fe z reverter à
final do século X V II, ao exigirem do Estado um redobrado C oroa o imenso património fundiário que os jesuítas
esforço arrecadador, atuaram tam bém nessa direção. M os­ haviam amealhado no Brasil desde o início da colonização,
teiros e conventos foram então obrigados a apresentar se­
grande parte do qual foi logo vendida a particulares.
guidas relações dos rendimentos de suas fazendas, en ge­
Poupadas dessa decisão extrema, as demais ordens
nhos, currais, e roças, para que o dízim o fosse cobrado
religiosas não escaparam entretanto do cerco do Estado.
(Segundo Livro do Tombo: xxi).
As requisições de relações detalhadas d e propriedades não
N o século X V III o cerco se intensificou ainda mais.
só continuaram, com o foram seguidas, v e z por outra, de
Tentando evitar que as rendas municipais fossem dim inuí­
ordens expressas para que alienassem bens de raiz, doando
das por legados pios feitos às com unidades de m ã o-m orta ,
os ouvidores da Coroa passaram a im pedir que isso viesse a o dinheiro obtido à C oroa ou em prestando-o a juros favo­

ocorrer, com o bem demonstra o auto da correição ocorrida ráveis. A Independência não diminuiu a pressão sobre os

no R io de Janeiro em 1710: bens das “religiões” . Proibidas de aceitar noviços para que

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não se expandissem, as ordens religiosas foram tam bém à terra. Os que possuíam recursos puderam adquirir ou
com pelidas p elo G overno Im perial a desamortizar seus aforar antigas sesmarias ou partes delas. Grande parte,
bens de raiz, que diminuíram bastante. F o i só com a pro­ entretanto, acabou se transformando em meeiros, rendei­
clamação da República, e com a consequente separação da ros, ou simples “agregados” dos proprietários rurais, for­
Igreja do Estado, que lhes foi dada plena liberdade para, m ando toda uma classe de pobres livres que habitava o
com o sociedades anónimas, administrar seus bens, receb er cam po, mas que não tinha bens de raiz.
novamente noviços, e gerir, enfim , seu próprio destino A im portância dessa população não-proprietária para
(Segundo L iv ro do Tom bo: xxv-xxxi). o setor produtivo era, entretanto, bastante grande, e é por
isso qu e os patrimónios religiosos foram surgindo por toda
a colónia. Eram glebas cedidas por um ou vários proprietá­
I
O s 'p a trim ó n io s re lig io s o s rios fundiários para que os trabalhadores sem terra pudes­
sem ah fixar residência. A cessão, entretanto, não se fazia
Concomitante ao crescente controle do Estado sobre diretam ente a eles. O beneficiário era sempre o orago de
as ordens religiosas, floresceu no Brasil do passado um ou­ uma capela já existente ou que se queria erigir no local,
tro tipo d e apropriação territorial que teve na Igreja um im ­ cabendo à Igreja, em nom e do padroeiro, administrar esse
portante ponto de apoio. Trata-se dos pa trim ónios re lig io ­ p a trim ó n io . Para tanto, era comum a instituição de uma
sos, verdadeiras “ brechas” d o e no sistema sesmarial, com o irmandade, que aforava então aos colonos as terras recebi­
bem os definiu M urillo Marx (1991: 41). Vários autores já os das. Garantia-se assim uma renda regular à capela, condi­
discutiram com petentem ente (MORAES, 1935; DEFFONTAI- ção que o ju ízo eclesiástico impunha para que os serviços
NES, 1944; AZEVEDO, 1957; MARX, 1991). religiosos pudessem ser oferecidos com a regularidade e
C om o já visto, o progredir da colonização interiorizou decên cia exigidas pelas leis canónicas.
rapidamente a apropriação de ju r e do território. Todavia, a ' $ > Para os proprietários fundiários, a instituição de um
expansão d o povoam ento sobre as terras concedidas de patrim ónio religioso era vantajosa: pela cessão de uma p e ­
sesmaria, isto é, a sua apropriação de fa c to , acabou sendo quena porção de terra garantiam a presença, no local, de
mais lenta. D e um lado, as glebas tendiam a ser grandes uma população gregária que lhe era bastante dependente,
demais; de outro, e salvo as exceções dos ricos sesmeiros, o notadam ente para a obtenção de trabalho. Para os colonos,
seu aproveitamento integral implicava despesas elevadas p or sua vez, a obtenção d e um chão, p or menor que fosse,
(notadamente em escravos), que a maioria não tinha com o significava ter acesso à terra. D a repartição desses patrimó­
fazer. Muitos colonos acabaram também não tendo acesso nios surgiram, portanto, pequenos arraiais, alguns dos quais

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O N'0 B R A S I L C O L O N I A L

prosperaram e tom aram -se freguesias. M uitos foram mais e que, para a construção, reclam avam pesados e custosos
tarde elevados à categoria de vilas .6 serviços d e aterro e de drenagem . C o m o p rogred ir do p o ­
i Os patrimónios religiosos não foram uma peculiarida­ voam ento, entretanto, esse ecossistem a assumiu uma im ­
de do período colonial. C om o mostrou M o n b e ig (1984), a portância vital para a econom ia colonial.
expansão do café p elo oeste paulista e p e lo norte d o is Im prestáveis para a construção, os terrenos d e man­
Paraná, em pleno século XX, se apoiou fortem en te nesses gue forneciam , entretanto, uma excelente m adeira para
encaibrar as edificações, e, d e sua casca, rica em tanino, ./ f
patrimónios, que deram origem a um sem-número d e
núcleos urbanos. A partir d e meados do século X IX , entre­ serviam-se os curtidores, razão p ela qual era conhecida 'V y
tanto, passou a ser mais com um o estabelecim ento d e com o m angue verm elh o, ou m angue de sapateiro. E ra tam-
pa trim ónios leigos, isto é, de glebas que eram reservadas b é m nos mangues que os fogões dom ésticos e as fornalhas
em loteamentos rurais feitos por indivíduos ou p or socieda­ dos engenhos e caieiras preferen cialm ente se abasteciam
des imobiliárias. A í eram construídas edificações destina­ d e lenha. Os manguezais alimentavam, ademais, m ultidões
das à administração ou ao com ércio, que se constituíram, d e crustáceos, que desde cedo constituíram-se em com p le­
p o r sua vez, em em briões d e outros tantos núcleos urbanos m en to essencial da dieta alim entar das populações mais <J y tí
d o país. pobres.
Incluídos nas glebas distribuídas de sesmaria, os man­
gues, p o r suas diversas utilizações, ced o tomaram -se palco
O s terre n os d e m a rin h a d e conflitos. O prim eiro d e que se tem notícia ocorreu no
R io d e Janeiro em 1647 e envolveu a Com panhia d e Jesus.
Com o lembrou Costa Porto (1965: 161), sobrando ter­ D onos d e grande sesmaria às margens da baía d e Gua­
ra firm e por toda parte nos com eços da colonização para la­ nabara, os jesuítas passaram a im p ed ir que a população se
vouras e edificações, ninguém iria se interessar pelos man- utilizasse dos mangues aí existentes, o que levou a Câmara
guezais, terrenos alagadiços imprestáveis para a agricultura a se dirigir diretam ente ao R ei, argumentando que “ os
mangues e salgado eram livres” e que sobre essa questão já
havia “ algumas sentenças, que foram dadas em a form a dos
6 N o te-se que nas regiões q ue ainda estavam sendo povoadas, e onde ainda esta­
forais” (Prefeitura..., 1935: 137). Apelava-se, ademais, às
vam sendo concedidas sesmarias, era o próprio E stado q u e instituía um patrim ó­
nio. Diversos sâo os casos de concessão d e sesmarias para “património da Igreja Ordenações, que definiam que todos os rios navegáveis e
M atriz”, que tendiam a ser b em maiores q u e os patrimónios religiosos instituídos
portos d e mar eram propriedade real (O . M ., L iv ro II,
p o r particulares. A instituição d a freguesia de Guaratuba, Paraná, foi acom panha­
d a d e um património de meia légu a em quadra. O “registro d e Curitiba", p o r sua T ítu lo X V ).
vez, recebeu uma légua em quadra. Já os “C am pos das Lages” foram agraciados
E m 1677, novo incidente ocorreu com os jesuítas do
com duas léguas e meia em quadra (São Paulo...).

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EXP LORAÇÕES GEOGRÁFICAS A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO BRASIL C O L O N I A L

R io, que haviam ob tid o do administrador eclesiástico a que essa “ extensão da m aior onda” acabou sendo regula­
proibição da exploração dos mangues pelos moradores, sob mentada.

pena de excomunhão. A Câmara novamente oficiou a E l- P e lo Aviso R égio de 18 d e novembro de 1818, definiu-
R e i pedindo providências, havendo então o soberano ord e­ se que da “ linha d ’água para dentro sempre são reservadas
nado ao G overnador do R io de Janeiro, p or Carta R égia de 15 braças p ela borda do m ar para o serviço público”. O
4 d e outubro de 1678, que assegurasse aos moradores “ a Aviso de 29 d e abril de 1826, p or sua vez, explicitou que a
posse em que estão d e cortarem os mangues” , levando em distância era d e 15 braças do bater d o mar, em marés vivas.
conta que “ estes mangues são de minha regalia, p or nasce­ A regulam entação final só v eio durante a Regência, quando
rem em salgado, onde só chega o m ar com a enchente” a L e i de 15 d e novem bro de 1831 permitiu que as Câmaras
( C o s t a P o r t o , 1965:162). Municipais aforassem os terrenos de marinha do Im pério,
Só vinte anos depois, entretanto, é que surgiu o pri­ definindo então a Instrução n? 348, de 14 de novem bro de
m eiro disciplinamento geral da matéria, e agora não mais 1832, que “hão de considerar-se terrenos de marinhas todos
lim itado à questão dos mangues. Preocupada com a cres­ os que, banhados pelas águas do mar, ou dos rios navegá­
cente ocupação das “ marinhas , isto é, de todos os terrenos veis, vão até à distância de 15 braças craveiras [qu e são 33
lindeiros ao mar, que dificultava a defesa da colónia e obs- metros segundo o D ecreto 4105 de 22/2/1868] para a parte
taculizava o “ real serviço” , a C oroa baixou nova Carta da terra, contadas estas desde os pontos a que chega o prea­
R égia em 12 de novem bro de 1698, que firm ou jurispru­ m ar m éd io” ( C o s t a P o r t o , 1965: 165; M e l l o M o r a e s ,
dência: terrenos de marinha eram “ o salgado, onde só che­ 1881:30; A n d r a d e , 1890:16).
ga o mar com a enchente” , e somente o rei tinha faculdade C onsolidando resoluções anteriores, o D ecreto 4105,
para distribuí-los, pois “ são de minha regalia” (COSTA de 2 2 d e fe v e re iro de 1868, colocou um ponto final nessa
PORTO, 1965: 162-163). A partir daí, somente com a auto­ matéria. E m p rim eiro lugar, e considerando que os limites
rização dos representantes da C oroa é que se poderia ocu­ determ inados anteriorm ente podiam sofrer mudanças pelo
par os terrenos litorâneos. assoreamento natural das costas e margens dos rios ou por
U m a questão, entretanto, não foi resolvida: até onde trabalhos d e aterro, definiu que esses acréscimos, que pas­
se estendia o “ salgado” ? Para a Câmara do R io de Janeiro, saram a ser conhecidos com o “terrenos acrescidos de mari­
“ o lim ite da ribeira do m ar [era] aquele que o m esmo mar nhas”, pertenciam tam bém à Nação, estando sujeitos, por­
abaliza com a extensão da m aior onda que costuma lançar, tanto, ao pagam ento de foros e laudêmios. Em segundo,
[ficando] porém pertencendo a propriedade da mais terra reservou para a servidão pública, nas margens dos rios na­
que se segue à mesma R ibeira ao dono da herdade vizinha” vegáveis e d e seus formadores, todos os terrenos que, ba­
(C arta do Senado...: 329). Só no século X IX , entretanto, é nhados p o r suas águas e estando fora do alcance das marés,

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E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B R A S I L C O L O N I A L

se estendessem até a distância de 7 braças craveiras (ou O p rogred ir do m odo de produção capitalista fe z tam ­
15,4 metros) para a parte da terra, “ contadas desde o ponto bém com que os campos comunais fossem desaparecendo
m édio das enchentes ordinárias” (Andrade; 33-35 ).7 D e i­ cada v e z mais. A C oroa m esm o passou a incentivar a sua
xou claro, enfim, que os lim ites dos terrenos de m arinha alienação, com o provam as diversas leis que, a partir da
são aqueles definidos pela ação das marés em 1831, e é p or segunda m etade d o século X V II I , crescentem ente confun­
essa razão que terrenos situados a distâncias b em maiores dem os baldios com as terras d o conselho, passo im portan­
que 3 3 metros da linha d e costa atual continuam sujeitos te para a sua desamortização.
ao pagamento de laudêm ios à União (Brasil, 1988). E m Portugal, os baldios acabaram oficialm ente em
1867, quando o C ód igo C ivil pôs fim aos pastos comunais,
entregando-os às municipalidades para que os aforassem.
O a ta q u e co n sta n te a o p a tr im ó n io p ú b lic o
N o Brasil, essa passagem se deu na m esm a época. A in da
que a L e i de Terras tenha reconhecido a continuidade do
Donas inicialm ente d e apreciáveis bens d e raiz, as
instituto das terras comunais, suas legislações com p lem en ­
câmaras municipais viram-nos diminuir bastante com o d e ­
tares acabaram p o r transferi-las para a jurisdição das p ro­
correr do tempo. Buscando aumentar seus recursos, m ui­
víncias e dos municípios. C om a R epública essa tendência
tas venderam terras do seu patrim ónio (ao invés de aforá-
fo i reforçada, o que levou à crescente alienação dos logra­
las), ou então rem iram foros, perdendo então o dom ínio
douros públicos p o r aforam ento ou, o que foi mais comum,
direto sobre esses bens. A apropriação p o r particulares fo i
tam bém frequente, e facilitada pela falta de dem arcação à sua apropriação p o r invasão (apud C A M PO S , 1991: 49-52;

oficial do património público ou p e lo pouco ze lo dos o fi­ 127-128).

ciais da Câmara. E muitas foram as terras que, legalm ente D os baldios que serviam às antigas cidades e vilas
aforadas, acabaram se perdendo, seja p or deficiência no coloniais só restam hoje, quando muito, algumas praças,
controle de pagamento dos foros e laudêmios, seja p ela muitas das quais conservam, paradoxalmente, a denom ina­
perda de seus registros legais, não raro consumidos p o r ção de cam po. Os logradouros públicos situados a distân­
incêndios criminosos. cias maiores dos núcleos urbanos tam bém não tiveram
m elh or sorte. C o m o bem dem onstrou Cam pos (1991) em
7 O m esm o decreto definiu ainda q u e “o limite q u e separa o dom ínio marítimo seu excelente trabalho, dessas antigas terras comunais só
d o dom ínio fluvial, para o efeito d e m edirem -se e dem arcarem -se 15 o u 7 braças,
restam alguns resquícios na paisagem atual, qu e tendem a
conform e os terrenos estiverem dentro ou fora do alcance das marés, será indica­
do pelo ponto onde as águas deixarem d e ser salgadas de um m o d o sensível, o u desaparecer.
não houver depósitos marinhos, o u qualquer outro fato geológico, q u e prove a
ação poderosa do mar.” (V e r A n d r a d e , 1890: 34-35).

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1
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO BRASI L C O L O N I A L

Conclusão tivos a processos de aforamentos de terrenos das sesmarias


municipaes da Capital Federal e dos de marinhas, accrescidos
Para se analisar o espaço geográfico não basta desven­ e mangues, feita para uso do serviço da Directoria do Tom-
dar as suas múltiplas dimensões atuais. H á que se investi­ bamento Municipal. Rio de Janeiro: Typ. do Rio.
gar tam bém o processo histórico que lhe deu origem , pois ARQUIVO N a c i o n a l (1967). Tombos das cartas de sesmarias do
aí estão, muitas vezes, os segredos da sua boa interpreta­ R io de Janeiro, 1594-1595; 1602-1605. Rio de Janeiro: Ar­
ção. N essa busca d o passado, entretanto, não devem os nos quivo Nacional.
ater apenas aos vestígios concretos que ele deixou, isto é, AUTO da fundação da Villa Bella da SS. Trindade do Mato Gros­
às formas materiais que ainda subsistem na paisagem. As so, em 19 de março de 1752. In MELLO, Silveira de (Gene­
formas não materiais tam bém precisam ser investigadas. ral) (1952). Auto da fundação de Vila Bela de Mato Grosso e
As formas jurídicas, não materiais, que presidiram o seus brasões. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
processo de apropriação territorial no Brasil colonial fazem Brasileiro. Rio de Janeiro, 216: 190-197.
AZEVEDO, Aroldo de (1956). Vilas e cidades do Brasil colonial;
valer os seus efeitos até hoje. Sem com preendê-las bem ,
ensaio de geografia urbana retrospectiva. São Paulo: Facul­
não conseguirem os pensar adequadamente o espaço brasi­
dade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São
leiro atual de form a holística, e nem seremos capazes de
Paulo, Boletim n.° 208.
contextualizar b em as questões territoriais que em ergem
_______ (1957). Embriões de cidades brasileiras. Boletim Paulista
concretam ente aqui e ah, no cam po e nas cidades.
de Geografia, São Paulo, 25: 31-69.
Pensar o passado d o espaço não significa fazer g e o ­
(1988). Legislação patrimonial. Bens imóveis da União.
B r a s il
grafia antiquária. Significa buscar e m tem pos já idos as
Brasília: Ministério da Fazenda.
chaves da interpretação d o presente, passo fundamental
CAM POS, Nazareno José de (1991). Terras comunais na Ilha de
para que possamos pensar com segurança o espaço do
Santa Catarina. Florianópolis: FCC Editora/Editora da
futuro que querem os ter. UFSC.
CARTA do Senado escrita ao General em satisfação do Provedor
da Fazenda Real mandar desfazer o curral que se mandou
B ib lio g ra fia
fazer para o gado que se matasse no açougue. Rio de Ja­
neiro, 24/3/1739. In A rquivo do D istrito Federal, Rio de
A L M E ID A , Antonio Paulino de (1963, 1966, 1981). Memória his­ Janeiro, 1,1950: 329-331.
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240
241
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO B R A S I L C O L O N I A L

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242 243
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO BRASIL C O L O N I A L

provindas annexas a jurisdição do vice-rei do Estado do da form ação da propriedade privada da terra e transição
Brasil. Rio de Janeiro: na Impressão Régia e Nacional, 9 para o capitalismo no Brasil. Brasília e São Paulo, CNPq/
tomos em 10 volumes. Reeditados pela Imprensa Nacional, Editora Brasiliense.
Rio de Janeiro, 1945*1948. TOURINHO, Eduardo (1931). Autos de correições dos ouvidores
do Districto Federal (1935). O Rio de Janeiro no
P R E F E IT U R A
do R io de Janeiro, 2°. vol., 1700-1747. Rio de Janeiro: Off.
Século X V II (Accordãos e vereanças do Senado da Câmara, Graph. do “Jornal do Brasil”.
copiados do livro original existente no Archivo do D istricto TRASLADO da carta de sesmaria das terras do rocio, e termo des­
Federal, e relativos aos annos de 1635 até 1650). Rio de ta Cidade do Rio de Janeiro. In HADDOCK L o b o , Roberto
Janeiro: Oficinas Gráficas do “Jornal do Brasil”. Jorge (1863). Tombo das terras municipaes que constituem
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244 245
OS AGENTES M ODELADORES
DAS C ID A D E S BRASILEIRAS
N O PE R ÍO D O C O L O N IA L

P ed ro de A lm eid a Vasconcelos*

Para en ten der a o rganização e o funcionam ento do


espaço das cidades brasileiras d o p eríodo colonial, bem
com o d e to d o o p eríodo escravagista, é necessário adaptar,
ou m esm o criar, novos conceitos e termos, pois aqueles uti­
lizados para a com preensão das cidades atuais não corres­
pon dem satisfatoriamente às especificidades e à com plexi­
dade das sociedades pretéritas. Essa necessidade apareceu
ncTdecorrer d e pesquisas sobre a questão d o trabalho irre­
gular no p e río d o escravagista. assim com o sobre as trans-
form ações ocorridas no espaço da cidade d o Salvador.
N a geografia, alguns trabalhos fazem um apanhado
dos principais agentes da cidade capitalista moderna. O
geógrafo BAHIANA (1978) revisa a literatura sobre os
“ agentes m odeladores” do uso d o solo das cidades atuais,
destacando, especificam ente, os estudos de W illiam Form ,
publicado em 1975, de H orácio Capei, em artigo de 1972,

* Professor d o D epartam ento de Geografia da Universidade Federal da Bahia

247
OS A G E N T E S M 0 D E L A D 0 R E S DAS CI DADES BRAS I L EI RAS
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

N o caso da cidade colonial brasileira, considerando as


d e N o ra Clichevsky, de 1975, de D avid Harvey, d o seu
transform ações ocorridas na sociedade ao longo de mais de
livro de 1973, e d e J. Borja, tam bém de 1975. O autor rea­
três séculos, procura-se, neste trabalho, elaborar uma pro­
lizou uma síntese, elaborando uma tipologia com os agen­
posta de desdobram ento dos agentes que tiveram papel
tes seguintes: o “ M orad or” , os Proprietários do Solo, a In ­
im portante na conform ação da cidade colonial, e que não
dústria Im obiliária, a Indústria da Construção Civil, os P ro ­
poderiam corresponder, evidentem ente, aos atuais agentes
prietários Industriais, e o Setor Público.
Mais recentem ente, tratando das cidades do T erceiro da produção da cidade capitalista. Um prim eiro cuidado
que se d eve te r é lem brar que o Brasil, na época, estava
M undo, DURAND-LASSERVE (1986), limitando-se à ques­
inserido num contexto geográfico mais amplo, o do Im ­
tão fundiária, m encionou três atores-chaves: ( 1 ) os proprie­
p é rio Lusitano, o que leva a lem brar as possíveis similari­
tários fundiários; ( 2 ) os loteadores ou prom otores fundiá­
dades (e diferenças) com outras cidades de criação portu­
rios; e ( 3 ) o produtor e prom otor imobiliário. O p od er pú­
guesa, tanto na M etró p ole com o nas demais colónias da
blico foi tratado à parte. N o caso brasile iro , CORRÊA (1989)
Á frica e da Ásia (FERNANDES, 1991). Outro ponto a ser
quando discutiu qu em produzia o espaço urbano, conside-
m encionado é a já longa discussão sobre a tipologia rígida
rando nossa realidade, destacou os seguintes produtores d o
das cidades coloniais espanholas, que obedeciam às Leys
e spaço urbano: ( 1 ) os proprietários dos m eios d e p rod u gfo;
de los R eynos de índ ias, e o urbanismo português, mais
(2 ) os proprietários fundiários; (3 ) os prom otores im obiliá­
adaptado a cada condição local e à prática de seus habitan­
rios; (4 ) o Estado; e (5 ) os grupos sociais excluídos.
tes, con form e indica H O LA N D A (1988).
A o escrever um estudo clássico sobre a cidade p ré-
Destacam -se, no presente trabalho, com o principais
industrial, SjOBERG (1960) examinou tanto as classes so­
agentes m odeladores das cidades: (1) a Igreja; (2 ) as or­
ciais com o as estruturas económicas, políticas e religiosas
dens leigas; (3 ) o Estado; (4 ) os agentes económicos; (5) a
dessas cidades, tanto no passado com o no presente, em si­
população e os movimentos sociais. Por outro lado, preten­
tuações de fraca industrialização. O livro bastante especia­
de-se mostrar as alterações ocorridas pelo conjunto de ins­
lizado de C á r t e r (1987) sobre G eografia Histórica U rba­
tituições trazidas p e lo p od er colonial, e as adaptações ne­
na não apresenta este corte, em bora trate d e áreas sociais,
cessárias à nova sociedade em formação.
e do status social nas cidades pré-industriais.
Alguns estudos sobre as cidades coloniais brasileiras
são basilares para iniciar a discussão do assunto, tanto os A Ig r e ja
realizados p or geógrafos, com o AZEVEDO (1956), quando
p o r arquitetos-urbanistas, com o REIS FILH O (1968) ou A Igreja C atólica é examinada, por um lado, pela es­
M ARX (1980 e 1991). trutura hierárquica da Igreja, ligada ao Estado pelo estabe-

248 249
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS OS A G E N T E S M 0 D E L A D 0 R E S DAS C I D A D E S B R A S I L E I R A S

lecim ento do Padroado e, p or outro lado, pelas ordens reli­ te função social, tanto no que se refere ao local d e enonn-
giosas, relativamente independentes d o Estado e da hierar­ tros e sociabilidade (missas. casamentos, batizados, festas
quia local. O Padroado correspondia, no Brasil, a um acor­ religiosas, peças teatrais etc.) — sobretudo com o possibili­
do entre o Papado e a C oroa portuguesa, em que a m esm a dade d e saída das mulheres brancas — com o no pap el de
recebia os dízimos relativos à Igreja, e ficava responsável registro civil (censo, batismo, casamentos etc.).
pela manutenção das despesas da Igreja no Brasil.
O p a p e l d o c le r o re g u la r
O p a p e l d o c le ro s e cu la r
C orresponde ao clero que vive em comunidade, o b e ­
O clero secular era com posto, p o r um lado, pela alta decen do a uma ordem religiosa. N o Brasil, suas funções
hierarquia da Igreja, os bispos, seguido posteriorm ente p e ­ principais eram d e ordem missionária, sobretudo ju n to aos
los arcebispos, e suas instituições correspondentes, com o ameríndios. Tam bém dedicaram-se ao ensino dos filhos
os Cabidos, os Tribunais Eclesiásticos, os Seminários etc. dos colonos, com o os jesuítas. As ordens, porém , necessita­
Os bispos (ou os arcebispos) instituíam normas, e em casos vam de recursos para sobreviver. N u m contexto escravagis-
excepcionais organizavam sínodos, convocando a hierar­ ta, receberam bens de fiéis d e posses: dinheiro, terras,
quia religiosa da diocese (ou. arquidiocese). A outra parte casas, fazendas, engenhos, gado e escravos.
do clero secular correspondia aos vigários e párocos das D en tre as ordens, destacava-se a dos jesuítas, a mais
matrizes e paróquias, qu e realizavam a administração coti- poderosa. A lé m das missões, os jesuítas possuíam fazendas,
diana das células territoriais m enores da Igreja. Inclui-se, cais próprios, g uindastes, navios (inclusive uma fragata), se­
também, parte do clero que se especializou, respondendo minários, casas para aluguel e quintas para recreio (LE ITE ,
a determinados fins da sociedade, com o os capelães m ilita­ 1965). Os beneditinos e carmelitas tam bém tinham fazen­
res, os que serviam aos senhores de engenho, e m esm o os das e escravos, e eram grandes proprietários de im óveis de
que eram contratados para trabalhar nos navios negreiros. aluguel (M a t t o s o , 1992). Os franciscanos administravam
O Bispado (ou A rcebispado) definia a localização da missões. Apesar d o voto de pobreza, realizaram a decoração
catedral e das igrejas matrizes, assim com o delimitava as interior da igreja mais opulenta d o Brasil (Salvador).
áreas territoriais correspondentes (paróquias). Essas d ivi­ D ian te da precariedade das cidades coloniais, sobre­
sões em paróquias e freguesias tiveram importância, até o tudo no início da colonização, os conventos serviram de
m om ento atual, nas consequentes divisões administrativas local de hospedaria, sobretudo para os viajantes im portan­
das cidades. As igrejas matrizes correspondiam aos núcleos tes; serviram tam bém de local de depósito de dinheiro e
das paróquias (e dos futuros bairros), tendo uma im portan­ valores (O t t , 1955); e foram, depen den do das necessida­

250 251
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS OS A G E N T E S M O D E L A D O R E S DAS CI D A DE S RRASI LEI RAS

des, transformados em quartéis, desde o século X V II, com em B oa Viagem . A cidade de Olinda, por sua vez, tinha, na
as invasões holandesas. sua parte mais alta, os conventos dos franciscanos e jesuí­
As ordens femininas foram mais tardias, em função tas, p erto da Sé; do outro lado da cidade, em outra eleva­
dos interesses divergentes entre os colonos e a Coroa, d e vi­ ção, o d e São Bento; e, numa pequena colina perto da
d o à escassez de mulheres brancas para constituírem fam í­ praia, o d o Carm o. E m R ecife, eles estavam situados em
lias. Salvador teve o m aior núm ero de conventos, destacan- to m o do centro atual, o convento de São Francisco (junto á
do-se o do D esterro, de meados do século X V II, que, além M isericórdia), o do Carm o, o dos capuchinhos, e o C olégio
d e ser proprietário de mais de cem im óveis de aluguel dos Jesuítas ( M enezes, 1988). N o bairro do Recife, o con­
(M A T T O S O , 1992), ficou conhecido p elo importante núm e­ vento de São Francisco Nery, junto ao porto, tinha aspecto
ro d e escravas em relação aos das freiras, assim com o p ela d e uma fortaleza medieval. Já no caso do Rio de Janeiro, o
discutível m oral reinante no estabelecim ento. convento dos jesuítas ficava no alto do morro do Castelo,
O que mais interessa aqui é seu papel na estruturação p erto da catedral. O convento de Sao Francisco foi cons­
das cidades coloniais. As ordens que se estabeleceram em truído no m orro d e Santo Antônio. N o outro extremo, no
prim eiro lugar, com o a dos jesuítas, localizaram-se p erto alto d e uma colina frente à baía, estava o convento de São
dos núcleos iniciais (Salvador, R io de Janeiro, Olinda), e as Bento, uma verdadeira fortaleza. O convento do Carmo
que chegaram posteriorm ente foram se instalando nas p e ­ ficava no paço da cidade, junto ao porto (FERREZ, 1963).
riferias imediatas das cidades, inclusive extramuros, com o E m São Paulo, finalm ente, o convento dos jesuítas, junto ao
no caso de Salvador (beneditinos e carmelitas). Mas, sendo colégio, deu origem à cidade. Os conventos dos benediti­
grandes consumidores de terrenos, tanto p elo seu p orte nos, dos carmelitas e dos franciscanos formavam o “triângu­
com o pelas suas atividades com plem entares (hortas, está­ lo que delim itava o atual centro de São Paulo, na elevação
bulos etc.), os conventos tiveram um papel de ponta na ex­ entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú (B R U N O , 1991).
pansão urbana colonial: localizados nas periferias, nos Os outros cultos tiveram pouca importância no perío­
finais dos eixos de crescim ento urbano, tendiam a atrair o d o colonial, devid o à situação oficial da Igreja Católica e a
crescim ento das cidades em sua direção. proibição d e tem plos protestantes, salvo com restrições,
E m Salvador este papel foi exercido pelos carmelitas com o a de não te r aparência extem a de igreja, para realizar
e ursulinas (Soledade), no eixo norte; pelos beneditinos e o culto d e pequenas comunidades estrangeiras. Por sua
ursulinas (M erc ê s ), no eixo sul; e pelos franciscanos e fran- vez, a repressão aos cristãos novos só acabou no período
ciscanas (D esterro), na periferia leste d e Salvador. Algumas pom balino. Alguns inquisidores fizeram visitas e inquéri­
capelas e hospícios, doados p o r particulares, tam bém fo ­ tos, sobretudo em Pernam buco e na Bahia. Recife teve
ram elem entos pioneiros da expansão da cidade, com o os uma sinagoga durante o p eríodo holandês. Quanto ao Islã,
beneditinos em M ontserrat e na Graça, e os franciscanos e le fo i com pletam ente erradicado, após a rebelião de 1835,

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masculinas) e as segundas (ordens regulares femininas). O


em Salvador, em bora tenha ficado a lembrança da existên­
pap el dessas ordens era im portante, pois qualquer m em ­
cia d e mesquitas, em casas particulares, através dos nomes
b ro de uma delas podia se beneficiar de seus serviços em
de ruas. Os cultos afro-brasileiros, finalmente, eram clan­
destinos, e no p eríod o colonial tem-se informação de qualquer local do im pério português onde existisse a mes­
m a ordem (M ARTIN EZ, 1979). FR E Y R E (1990) destacou
repressão a locais d e culto em áreas periféricas.
que os hospitais das Ordens Terceiras eram reservados pa­
ra os ricos, enquanto que os da M isericórdia eram voltados
As ordens leigas para os pobres e para os escravos.
As igrejas das Ordens Terceiras estavam localizadas
Embora as ordens leigas estivessem infim am ente li­ junto aos conventos a que estavam vinculadas. N o caso da
gadas à Igreja Católica, eram, de fato, instituições indepen­ O rd e m d e São Domingos, em Salvador, não havia o corres­
dentes. Eram associações de leigos, homens e mulheres, pon den te convento de dominicanos, tendo a m esm a se esta­
que tinham vários objetivos, seja de ajuda mútua, seja de b elecid o numa das duas praças principais da cidade. Em
caridade coletiva, e funcionavam tam bém com o bancos, rea­ R ecife, a igreja da O rdem Terceira de São Francisco tem o
lizando empréstimos. Tinham um grande número de im ó­ in terior mais suntuoso da cidade. Tanto em Olinda, quanto
veis urbanos para rendim ento de aluguéis. Entre aquelas de em R ecife, Salvador, R io d e Janeiro e São Paulo, as igrejas
m aior prestígio estavam, no mundo português, as Irm anda­ da M isericórd ia estavam localizadas em áreas centrais.
des da Misericórdia, exclusiva de brancos, excluindo aque­ A s outras irmandades, d e prestígio m enos elevado,
les que tivessem ascendência judia, moura ou negra. Essa refletiam as divisões da sociedade colonial brasileira: ir­
ord em teve papéis m uito importantes na cidade colonial, m andades q u e sustentavam igrejas e capelas; irmandades
que foram assumidos posteriom ente p elo Estado: ocupava-
especializadas segundo a profissão, ou seja, a dos clérigos, a
se dos enfermos, implantando os prim eiros hospitais brasi­
dos m ilitares, ou a dos artesãos; irmandades especializadas
leiros; cuidava dos enterros, inclusive de escravos; da assis­
segundo os grupos sociais: d e portugueses, de brasileiros;
tência aos presos; da sustentação de moças pobres em re­
d e m ulatos; d e crioulos; d e africanos (estas divididas por
colhimentos, fornecendo dotes, e dos órfãos em geral. Para
etnias); e ain da eram divididas segundo o sexo. Essas ir­
tanto, vivia de doações, realizava empréstimos e tam bém
m andades ta m b é m visavam a ajuda mútua, e no caso dos
tinha imóveis de aluguel (R U S S E L L -W O O D , 1981).
escravos, ta m b é m efetuavam empréstimos para alforrias.
As Ordens Terceiras tam bém eram importantes, e
A s con frarias d e m en or prestígio realizavam seus cul­
exigiam o pagamento d e jóias para entrada nas mesmas, o
tos, in ic ia lm e n te numa capela d e uma igreja ou de uma
que impedia o acesso de candidatos de poucas posses.
igreja d e c o n ve n to , em seguida estabeleciam capelas pró­
Eram “terceiras” , seguindo as primeiras (ordens regulares

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prias, e posteriorm ente edificaram igrejas de porte. E m lização de obras defensivas, e, mais recentemente, na sus­
geral, localizavam-se nas periferias. N o caso d e Salvador, as tentação das tropas. As Câmaras tinham um papel impor­
igrejas do Rosário dos Pretos e a da Barroquinha, d e ir­ tante na condução dos negócios das cidades.
mandades de cor, estavam im ediatamente fora dos muros
da cidade. E m O linda a igreja de N . S. do Guadalupe, dos O papel da Coroa e de seus representantes
pardos, e a igreja do Rosário dos N egros eram periféricas,
mas e m R ecife, a igreja do Rosário dos N egros tinha uma A C oroa portuguesa enviava ordens régias diretamen­
localização perto do centro. te para as capitanias, e tinha em Salvador (seguida pelo R io
Já as cidades mineiras apresentam o interesse da proi­ d e Janeiro) seu representante, seja como governador-geral
bição de instalação d e conventos no período colonial. e chefe das armas, e posteriorm ente como vice-rei. A partir
Assim, O uro P reto tem em tom o do seu centro e nas prin­ do início do século X V II fo i implantado um tribunal civil
cipais colinas, as igrejas das ordens terceiras e irmandades. (Relação). As repartições ligadas às finanças sempre foram
Essas irmandades eram responsáveis por numerosas importantes (Alfândegas, Casas da M oeda etc.). Ressalte-se
procissões, além daquelas de responsabilidade da Câmara, que um dos papéis mais importantes dos governadores,
d a Ig re ja Secular, ou das ordens regulares. As procissões assim com o dos capitães donatários, era a distribuição de
eram festivas, e toda sociedade participava, sendo tam bém terras urbanas e rurais, através de sesmarias, tanto para as
um desfile de prestígio social, e seu itinerário estava ligado ordens religiosas com o para indivíduos de posse.
às localizações das igrejas, assim com o ao das mas e largos O Estado tam bém intervinha nas atividades produti­
d e m aior visibilidade. H avia com petição entre as mais ricas vas, seja proibindo determinadas atividades (com o a tecela­
e que dispunham d e m aior número de andores. As irman­ gem ou a ourivesaria), ou incentivando produtos e culturas,
dades de homens d e cor participaram desta disputa até o e m esm o realizando a produção direta, como no caso dos
p erío d o imperial. estaleiros reais.
Os prédios governamentais de maior importância ocu­
pavam lugares d e destaque nas cidades coloniais, em tom o
O Estado d e praças principais. Assim, Salvador tinha sua primeira
praça form ada p elo conjunto do Palácio do Governador-
O Estado no p eríod o colonial tinha uma organização geral (depois V ice-R ei), do Senado da Câmara, e no século
bastante complexa, em bora tivesse funções bem mais res­ X V II, p elo Tribunal da Relação. N o R io de Janeiro, no Paço
tritas que o Estado atual. Destacava-se seu papel de apoio da Cidade, que lem bra o de Lisboa, o Palácio do Vice-Rei
às atividades económicas, na sustentação dos funcionários, tom ou-se o Paço R eal com a chegada da corte portuguesa,
do clero (e na manutenção das igrejas), e sobretudo na rea­ com a adição d o vizinho Convento do Carmo. Em Ouro

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Preto, na praça principal estava localizado o Palácio dos G o ­ e d e São P ed ro (sul) foram pioneiros no desenvolvim ento
vernadores, diante do Paço Municipal. Mas, a importância desses dois eixos de crescim ento, ficando inclusive após os
maior para o desenvolvimento da cidade, junto com a açao conventos mais distantes. A construção de dique no lado
da Igreja, era a contínua construção de sistemas defensivos. leste, p or outro lado, serviu com o obstáculo ao desenvolvi­
D eve-se destacar, evidentem ente, que as cidades litorâneas, m en to da cidade nessa direção.
devido ao perigo externo, tinham maior prioridade que as A cidade do R io de Janeiro tinha a entrada da sua
cidades interioranas, com exceção daquelas fronteiriças do baía defen dida pelas fortalezas de São João e da Santa
im pério colonial espanhol, em áreas disputadas. C ruz, que tom avam a cidade mais bem defendida que Sal­
Os governadores supervisionavam pessoalmente as vador, um dos motivos da preferên cia d e D . João V I p elo
construções militares, com o uma de suas principais ativida- R io d e Janeiro, segundo D ebret. A fortaleza de São Se­
d jr des: a construção de portos fortificados, de muros, mura- bastião ficava no m orro do Castelo, lado sul, e a do C o n ­
lhas e trincheiras, fortes, fortalezas e baluartes, de diques, ceiçã o na colina d o m esm o nom e, lado norte, e o litoral era
tO
rc \J armazéns para depósito de armas, munições e pólvora, sem­ p ro tegid o ainda p ela fortaleza da Ilha das Cobras.
pre acompanhando as necessidades estratégicas e possibili­ U m a questão relacionada à defesa das cidades era a
dades tecnológicas de cada período. Os governadores con­ d o alojam ento das tropas. E m Salvador, p o r exem plo, sem ­
tavam com os engenheiros militares, profissionais especiali­ p re fo i difícil alojar os oficiais e as tropas, m esm o com a
zados que vinham de Portugal para o exame das fortifica­ im plantação de quartéis na Palm a (C O STA, 1958). Para
ções. Cursos (A ulas) de engenharia militar foram estabele­ resolver a questão, os conventos serviam tam bém de quar­
cidos no século X V III, na Bahia e no R io de Janeiro. téis, inclusive com o desalojam ento dos religiosos.
O Estado sempre requisitava apoio e ajuda da popu­ Outra função im portante do Estado era a infra-estru-
lação, seja através de aumento de impostos temporários, turação urbana: construção de portos, de armazéns, de
seja através da colaboração em dinheiro, alimentos, gado e estradas. O Estado só com eçou a se ocupar d o ensino após
até no fornecimento de escravos para o levantamento de a expulsão dos jesuítas, em meados do século X V III.

5s
fortificações. Essas construções serviam para definir os nú­
cleos urbanos, quando as cidades tinham muros e portas, O p a p el das Câm aras
com a divisão conseqiientem ente das atividades “intramu-
ros” e “ extramuros” , com o tam bém na ocupação de super­ As Câmaras municipais tinham um papel bastante
fícies importantes na cidade, e serviam, juntamente com os destacado no controle das atividades urbanas: decidiam
conventos, com o “pólos” de atração para o crescim ento sobre impostos, taxas, controle de preços, lim peza das ruas,
urbano. N o caso de Salvador, os fortes de Barbalho (n orte) destino d o lixo; sobre os animais nas ruas; sobre o com por-

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tam ento de escravos etc. N o caso de Salvador, a Câmara O s proprietários rurais


chegou a definir os arruamentos das diferentes atividades
comerciais e artesanais, assim com o regras sobre o com ércio H á um prim eiro problem a: as primeiras atividades
ambulante, e o transporte de bens e pessoas pelos carrega­ económ icas importantes eram realizadas no campo (produ­
dores (V A S C O N C E L O S , 1993). Os membros da Câmara ti­ ção d o açúcar e do fumo, criação de gado). Portanto, parte
nham com petência para conceder ou aforar terras, e de d e­ dos principais agentes económicos, com o os senhores de
finir os rossios, ou terras comuns para pasto e utihzação de engenho, os plantadores de cana, os plantadores de fumo,
madeiras. As datas eram parcelas do solo doadas pela muni­ os criadores de gado (e, posteriormente, os mineradores)
cipalidade (MARX, 1991). As câmaras também realizavam passavam boa parte do seu tem po longe das cidades. E m
obras de pequena monta, com o a manutenção d e fontes, alguns casos, os engenhos de açúcar competiam com as
bicas, a conservação de pontes, o calçamento de ruas etc. cidades, pois eram quase auto-suficientes. P o r outro lado,
O controle das Câmaras estava nas mãos dos “ homens os proprietários realizavam importantes investimentos no
bons” , em geral proprietários de terra, que deveriam tam­ cam po, tanto para o exercício das atividades económicas
bém residir nas cidades. E m meados do século X V I I I os (m oinhos, escravos) com o nos magníficos solares, e em
com erciantes tam bém foram autorizados a participar da
capelas com dimensões de igrejas urbanas. Mas os proprie­
administração municipal.
tários agrícolas, que em geral eram membros das Câmaras,
A Casa da Câmara de Salvador fica na praça principal
assim com o d e irmandades de prestígio, com o a M iseri­
da cidade, junto ao Palácio do Governo. N o caso de O lin­
córdia e Ordens Terceiras, também se estabeleciam nas ci­
da, ela ficava no alto da Sé, bastante distante d o Palácio
dades. E realizavam construções d e solares imponentes,
dos Capitães Gerais, em seguida foi transferida para a
on de viviam com a família, agregados e escravaria, sobretu­
Ribeira. N o R io de Janeiro, estava no m orro d o Castelo.
d o nos períodos de entressafra e de festas religiosas. As
E m São Paulo, o Paço do Conselho era vizinho ao C olégio
principais referências que se tem de residência dos pro­
dos Jesuítas. E m Ouro Preto, o Paço M unicipal estava na
prietários agrícolas eram, no caso de Salvador, na Cidade
praça central, diante do Palácio dos Governadores.
Alta, on de se destacam solares com o o magnífico Paço do
Saldanha. E m Pernambuco, os senhores de engenho ti­
nham suas residências urbanas em Olinda, e posteriorm en­
Os agentes económicos
te n o vale do Capibaribe, não muito longe de seus enge­
Destacamos com o principais agentes económ icos do nhos. U m senhor de engenho era também grande proprie­
período colonial os proprietários rurais, os com erciantes e tário d e terrenos e casas em Olinda (M E L L O , 1975). Os
financistas, e os artesãos. senhores de engenho contribuíram para a constmção de

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conventos femininos para evitar as grandes despesas para da classe com ercial em Salvador. E m Pernambuco, os c o ­
enviar suas filhas a Portugal. D e um m odo geral, os grandes m erciantes preferiram R ecife com o local de residência. A
proprietários de terra e gado do sertão também realizaram “ G uerra dos Mascates” , no início do século X V III, foi um
vultosas doações para a construção de conventos e outros reflexo da dupla rivalidade entre as classes dos com ercian­
estabelecimentos religiosos. N o conjunto contribuíram para tes e proprietários agrícolas, e entre as cidades de R e c ife e
as fortificações das cidades. Eles tinham tropas próprias (ín ­ Olinda. N o R io d e Janeiro, os comerciantes atacadistas
dios, no início; posteriormente, escravos e moradores), que m oravam no centro (SILVA, 1978).
em vários momentos cercaram a cidade, no caso de Salvador, U m a categoria específica de negociantes era a d e tra­
quando interesses divergentes se contrapunham aos seus, se­ ficantes de escravos, que faziam o transporte d ireto dos
jam holandeses, sejam portugueses (1822-1823), sejam re­ portos brasileiros (sobretudo a partir de R ecife e de
voltosos urbanos. Salvador) em direção aos portos africanos. Eram na sua
m aioria brasileiros, e chegaram a m onopolizar a m aior par­
te do tráfico de escravos. Eles entraram em conflito com os
O s com erciantes e financistas
interesses ingleses durante o século X IX . Algumas das fa­
Os comerciantes tinham importância fundamental mílias mais ricas d e Salvador, na época, tinha seus negócios
nas cidades portuárias, sobretudo pelo seu papel de expor­ oriundos do com ércio de escravos, e alguns solares corres­
tadores-importadores. Nas cidades interioranas tinham al­ pon dem a essa riqueza acumulada. N o caso de São Paulo,
guma importância naquelas que eram entrepostos com er­ o acúm ulo de fortunas estava, inicialm ente, nas mãos dos
ciais. Inicialmente, tinham menos prestígio que os senho­ traficantes de escravos indígenas (B R U N O , 1991).
res de engenho. Somente a partir de finais do século X V II U m reflexo da im portância dos comerciantes era o de
eles começaram a p od er participar com o provedores das existir, no final do século X IX , um regim ento in d ep en d en ­
Casas da Misericórdia, e apenas em 1740 foram autoriza­ te, cham ado de “ Ú teis” , com posto d e comerciantes e seus

das pela Coroa a participar das Câmaras municipais. caixeiros (V l L H E N A , 1969).

E m Salvador residiam, em sua maioria, na C idade


Baixa, onde tinham seus negócios junto ao porto. Eram, O s artesãos
em sua maioria, portugueses, e participavam de ordens te r­
ceiras em grande número, com o a de São Dom ingos, e N u m a sociedade escravocrata os artesãos tinham m e ­
tinham irmandades próprias. O prédio da Associação C o ­ nos prestígio que na Europa, em virtude de seu trabalho
mercial em Salvador, construído na C idade Baixa no início ser basicamente manual. G eralm ente os artesãos com pra­
do século XIX, é um dos melhores símbolos da importância vam escravos e ensinavam o seu trabalho, passando a su­

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pervisionar o m esm o (O TT, 1955). D a í rom perem com o O u tro s agentes económ icos
sistema de aprendizagem que existia na Europa.
Os artesãos se organizaram em confrarias, realizavam Proprietários de armações de pesca de baleia, proprie­
exames, mas o escravismo desorganizou o sistema. E les ti­ tários d e grandes embarcações não eram muito numerosos
nham irmandades próprias, e tiveram representantes, du­ para form ar grupos coesos. A proibição da propriedade de
rante um período, nas Câmaras municipais. Seu baixo pres­ saveiros no Recôncavo baiano, por africanos, após as rebe­
tígio não perm itia participarem da direção da M isericórdia, liões d o período imperial, revela a existência de centenas de
sendo considerados “irmãos de m enor condição” , já que saveiristas africanos livres. Finalmente, parte da população
realizavam trabalho manual (R U S S E L L -W O O D , 1981), e isto vivia das rendas dos escravos de ganho, com o ainda se vive
p od e ser mensurado pela organização das tropas no final d e casas de aluguel, mas não podemos considerá-los com o
do período colonial. Assim, V l L H E N A (1969) com enta que verdadeiros agentes económicos organizados.
um dos regim entos de mihcianos em Salvador era com pos­
to por artífices, vendeiros, taberneiros e “ outras quahdades
d e hom em branco” (p. 245). A população e os movimentos sociais
Os artesãos foram os discretos responsáveis p ela
construção d e inúmeras igrejas nas cidades coloniais brasi­ A lé m dos agentes económicos, que corresponderiam
leiras, sobretudo as encomendadas pelas irmandades. A l­ às classes sociais dominantes, tínhamos ainda um esboço de
guns tinham “ empresas” , compostas p or escravos, para rea­ “ classe m édia”, formada p o r pequenos assalariados livres,
lizar trabalhos p o r empreitada. em sua maioria exercendo funções públicas. As atividades
O exame da postura de 1785 (V A S C O N C E L O S , 1993) “ liberais” ainda não estavam bem consolidadas: uma das prin­
mostrou que havia um ordenam ento espacial dos arrua­ cipais profissões era a dos engenheiros, mas estes eram da
mentos, definindo a localização específica de cada grupo de corporação militar. Havia profissionais que faziam petições;
artesãos em Salvador. O referido ordenam ento deixava os outros escreviam documentos; alguns “ físico-cirurgiões”; e
lugares mais “ nobres” da cidade colonial para os negocian­ alguns professores, após a expulsão dos jesuítas.
tes, ficando outras áreas intra-urbanas para os ofícios m ecâ­ Boa parte das residências, quando não eram de pro­
nicos. As denom inações de algumas ruas de cidades brasi­ priedade das ordens religiosas ou das irmandades, era cons­
leiras lem bram as profissões dominantes no passado: rua truída p o r iniciativa dos moradores, mesmo em terrenos
dos Ourives, rua dos Caldeireiros, dos Algibebes etc. foreiros. Os sobrados dos habitantes mais abastados se con­
trapunham às simples casas térreas. Alguns estabelecimen­
tos comerciais ou artesanais estavam localizados nos térreos

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS OS A G E N T E S M 0 D E L A D 0 R E S DAS C I D A D E S BR A S I L E I R A S

dos sobrados. Nas áreas centrais, as residências eram cola­ lim peza, busca de água e despejo de resíduos, assim com o
das umas às outras. o artesanato, o com ércio ambulante, o transporte de pes­
C om a abertura dos portos (1808), os estrangeiros soas e mercadorias, a construção, e o trabalho jornaleiro ou
trouxeram novas formas de morar, casas com jardins em de ganho, qu e lhes perm itiam m aior liberdade. As pinturas
volta, e novos bairros foram escolhidos, com o o de Vitória d e D e b re t nos dão uma idéia das inúmeras possibilidades
em Salvador, ou os de B otafogo e Catete no R io de Janeiro d e trabalho escravo. A responsabilidade de alojam ento dos
(S IL V A , 1978). escravos era dos proprietários (ou dos locadores de escra­
A grande massa da população era de origem escrava, vos): há referências que mostram os possíveis alojamentos
sobretudo nas cidades mais ricas, com o R ecife, Salvador e d e escravos, sobretudo os do escravo dom éstico: residindo
R io de Janeiro. Os escravos alforriados ou os descendentes nos andares, jun to com as crianças ( K lN D E R S L E Y , 1777),
de escravos nascidos livres, os mestiços ou negros (crioulos ou em lojas, no térreo dos sobrados (D E B R E T ), em porões,
ou africanos), todos tinham dificuldades de se inserir numa cafuas, ou nos quintais. Mas com o desenvolvim ento do
sociedade escravocrata. C om o sobreviver se o trabalho escravism o urbano, com o aparecim ento da categoria de
organizado era o trabalho escravo? Alguns dedicavam-se ao escravos de ganho, eles passaram a sobreviver p or conta
cultivo de terras em to m o das cidades. Nas cidades, eles própria, desde que levassem sua contribuição diária ou
com petiam diretamente com os escravos, seja em ativida­ semanal a seus proprietários. D e dia, eles reuniam-se em
des de ganho, seja em pequenas tarefas e empreitadas. cantos, com o os d e carregadores, aguardando os fregueses
A lg u n s tinham um p equ eno com ércio. U m a outra possibi­ eventuais. H á inform ações de que residiam em quartos
lidade para os sem trabalho era a de engajar-se no serviço alugados, ou conjuntamente com libertos, conform e indi­
militar. O importante é tentar esclarecer onde os libertos cam levantamentos de revoltosos d o início d o século X IX ,
residiam: um viajante (T O L L E N A R E , 1956) inform ava que segundo R E IS (1986).
os brasileiros pobres m oravam em pequenas casas na p eri­ Os m ovim entos sociais no período colonial foram so­
feria de Recife. F R E Y R E (1990) m enciona o mucambo bretu do rebeliões: de tropas, pelos atrasos nos pagamentos;
com o moradia d e negros livres em R ecife. O núm ero d e d a população livre, contra a carestia de vida; e dos escravos,
agregados de cor (129 sobre 523 famílias) nas residências sobretudo africanos, destacando-se os haussas, majoritaria-
da freguesia de São Pedro, em Salvador, em 1775, indica m en te islamizados. Apesar de terem causado algumas des­
tam bém a possibilidade d e viverem num sistema clientelis- truições, seu im pacto nas cidades não foi m aior devid o a
ta em plena área urbana (C O S T A , 1965). violenta repressão. Outra form a de rebelião era a fuga e
Os escravos realizavam todos os tipos de trabalhos organização d e qu ilom bos em áreas urbanas e rurais. Mas as
urbanos, desde o doméstico, com o os serviços de cozinha, diferenças dificultavam a solidariedade entre os escravos,

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entre mulatos e negros, entre africanos e crioulos e m esm o tos sobretudo religiosos, enquanto que as partes baixas cor­
entre escravos e libertos. Os capitães-de-mato, responsáveis respondiam ao conjunto d e fortificações litorâneas, e, no
pela busca de escravos fugidos, eram sobretudo mulatos. seu interior, aos edifícios administrativos e aos prédios resi­
denciais. A o contrário, São Paulo e Ouro Preto, sendo cida­
des interioranas, eram diferentes das demais, mas também
Conclusão: o papel dominante da Igreja e houve, nos dois casos, opção pelas áreas mais elevadas para
do Estado nas cidades coloniais o estabelecim ento dos principais prédios religiosos.
D e um m odo geral, os critérios defensivos predomina­
É difícil trabalhar com conceitos atuais num contexto ram nas grandes cidades litorâneas: Olinda, a Cidade Alta
d e longa duração. Os agentes tiveram diferentes papéis d e Salvador e o M orro d o Castelo do Rio de Janeiro são
durante os quase três séculos do p eríod o colonial. Durante exemplos. Essa situação em acrópole necessitava de uma
esse período, a Igreja teve um papel importante, p orém comunicação com as áreas portuárias, necessariamente si­
declinante no fim d o período, enquanto que o Estado tuadas em terrenos baixos. Apesar dos ataques indígenas, de
m anteve seu papel e mesmo o ampliou no final da colónia. potências estrangeiras (França, Holanda) e de piratas e cor­
P o r outro lado, cada cidade tinha suas características p ró­ sários de várias nacionalidades, as cidades coloniais brasilei­
prias: a escolha dos sítios, a localização própria, as possibili­ ras resistiram bravamente. Essa resistência se deve muito às
dades de defesa ou d e crescimento traziam problem as escolhas d e sítios defensivos, dos melhores portos naturais,
específicos. ao estabelecim ento do sistema de fortificações, e sobretudo
Salvador teve uma cidade baixa dinâmica, p orém a uma busca incessante de produtos de exportação, que
estreita, e uma cidade alta onde se estabeleceram os prin­ perm itissem a cobertura dessas despesas de manutenção da
cipais estabelecimentos religiosos, públicos e particulares, im portante colónia.
que estavam, p o r um lado, bem protegidos, e p or outro lado Os estabelecim entos religiosos, importantes nas pai­
estavam situados nas melhores condições ambientais. Já sagens das cidades coloniais brasileiras, conforme se pode
Olinda, implantação mais antiga, teve Recife, com o uma observar nos frontispícios traçados, refletiam o papel da
enorm e “cidade baixa” portuária, que com a opção holande­ Igreja ao lon go do período e a importância que a popula­
sa tomou-se a parte mais importante do binómio. P o r sua ção dava às questões religiosas, inclusive deixando parte da
vez, a cidade do R io de Janeiro, no período colonial, com herança para fins religiosos, em detrimento de outros her­
uma topografia bastante acidentada, teve seu espaço ocupa­ deiros. M as a localização dos estabelecimentos religiosos
do de forma específica. Não havia apenas uma “ cidade al­ depen dia tam bém dos terrenos doados pelas autoridades
ta” , mas uma série de morros ocupados p or estabelecim en­ ou p o r fiéis.

26 8 269
EXPL ORAÇÕES GE OG RÁ FI CA S OS A G E N T E S M 0 D E L A D 0 R E S DAS C I D A D E S B R A S I L E I R A S

O papel da Igreja tem sido pouco destacado nos estu­ colina principal, a da Sé. Sua chegada posterior à dos jesuí­
dos urbanos. Mas, no Brasil, n o p eríodo colonial, podem os tas, e sua necessidade de amplos terrenos, tanto para a cons­
afirmar que seu papel foi determ inante na estruturação das trução dos conventos e seus anexos com o para a construção
cidades. Em prim eiro lugar, as ordens religiosas tiveram d e casas de aluguel, levavam a uma localização periférica. A
um papel fundamental, e dentre elas deve-se destacar a proibição de implantação de conventos em Minas Gerais
dos jesuítas. Sua proximidade ao poder, seu p od erio econ ó­ deu outra conform idade às cidades mineiras coloniais.
mico, sua antiguidade, e seu pap el na implantação das ati­ Quanto à Igre ja Secular, tem os qu e separar as igrejas
vidades educacionais, fizeram com que seus estabeleci­ catedrais (S é), sem pre em prédios de grande porte, e situa­
mentos estivessem sempre nos locais de m aior prestígio e dos nas áreas centrais, às vezes ju n to ao palácio do bispo
visibilidade das áreas centrais das grandes cidades colo­ (o u d o arcebispo), com o em Salvador, enquanto que as m a­
niais. A imponência de seus edifícios confirm a a utilização trizes das paróquias, mais modestas, acompanhavam o d e ­
dada aos mesmos, após a expulsão da ordem : em São Pau­ senvolvim ento dos bairros periféricos ao centro. Os Semi­
lo, cidade pela qual eles foram responsáveis p o r sua funda­ nários im plantados pelos bispados e arcebispados tam bém
ção, o prédio dos jesuítas passou a ser o palácio d o gover­ utilizaram conventos construídos p o r ordens religiosas.
no; o mesmo ocorreu em R ecife. E m Olinda, seus prédios As Ordens Leigas, p or sua vez, tinham outro tipo de
foram utilizados para o estabelecim ento do seminário re­ implantação espacial. E m prim eiro lugar, destaca-se a ordem
gional. Em Salvador, a igreja dos jesuítas tom ou-se a cate­ da Misericórdia, que pela sua antiguidade, p elo seu prestígio,
dral. A escola foi transformada em hospital militar e, poste­ e p ela importância das funções exercidas, sempre estava lo­
riormente, na prim eira Escola Cirúrgica do Brasil. N o R io calizada em áreas centrais (Salvador, Olinda, R ecife, São
d e Janeiro, o colégio foi tam bém transformado em hospital Paulo), ou próxim o da área central, com o no R io de Janeiro.
militar. O conjunto dos estabelecimentos jesuítas foi des­ As ordens terceiras, finalm ente, situavam-se, norm al­
truído com a derrubada do M o rro do Castelo. m en te, ju n to aos conventos respectivos, quando os m esm os
As outras grandes ordens, com o a do Carm o, a de São existiam nas referidas cidades. As dem ais ordens terceiras
Bento e a de São Francisco, tiveram sua localização sempre e as outras irmandades disputavam as outras localizações
periférica às áreas centrais, servindo com o pontos d e apoio à urbanas, cabendo às mais ricas as m elhores localizações, e
expansão urbana. Formavam o “triângulo” em to m o da área con seqiien tem en te às mais populares (sobretudo as de
central de São Paulo; compunham um arco em to m o do hom ens d e cor), uma localização periférica.
centro de Salvador; no R io de Janeiro estavam em to m o do P od em os resum ir que, nos casos d e Olinda, Salvador,
M orro do Castelo, em outras elevações e na parte baixa da R io d e Janeiro e São Paulo, houve sem pre uma centralida-
cidade; em Olinda estavam em colinas mais baixas que a d e e um a proxim idade da igreja principal d e cada cidade (a

270 271
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS OS A G E N T E S M O D E L A D O R E S DAS CI DA DE S BRASI L EI RAS

Sé), dos estabelecim entos da principal ord em religiosa (os nunca foi bem defendida, apesar de ter tido muros e for­
jesuítas), e da irmandade de m aior prestígio (a M isericór­ tins. São Paulo, cidade interiorana, teve um precário siste­
dia). Pode-se argumentar que fatores com o tem poralidade m a defensivo, mas contou com muros e baluartes. Ouro
(antiguidade dos estabelecim entos), vínculo com o p o d e r P reto, mais recente, e também interiorana, não foi murada,
estatal, acessibilidade e prestígio, d evem te r contado para a ten d o apenas o Palácio do G overno em forma de fortaleza.
localização dessa tríade de estabelecim entos religiosos cen ­ O s agentes económ icos tiveram um papel secundário
trais nas cidades coloniais brasileiras. R ecife, que dividia na estruturação das cidades, ao contrário do seu papel
suas funções com Olinda, e que foi uma criação holandesa dom inante nas áreas rurais. Assim, os grandes proprietários
e tardia, e O u ro Preto, que não podia te r ordens religiosas rurais tiveram p ap el indireto, na ajuda da construção de
em seu território, não seguiram a m esm a lógica. prédios religiosos e d e fortificações, mas seus solares esta­
Quanto ao Estado, este teve, naturalmente, um papel vam distribuídos no “tecid o” urbano, destacando-se mais
im portante nas cidades coloniais do ponto d e vista espacial. p e lo porte que p ela sua localização, não havendo ainda
Os palácios governamentais, sedes de govern o ou d e capi­ um a segregação residencial nítida. Os comerciantes (e em
tania geral, ou os Senados da Câmara, sem pre se localiza­ escala menor, os artesãos), tiveram um papel mais im por­
vam nas áreas centrais: em Salvador, situavam-se na cidade tante, d evid o à consolidação de arruamentos comerciais e
alta, na prim eira praça construída; no R io d e Janeiro, em d e ofícios. Mas ambas as categorias obedeciam às regula­
to m o do P aço da Cidade, na parte baixa da cidade; em São m entações municipais. N o caso de Salvador, os comercian­
Paulo, em to m o do Pátio do C olégio; em O u ro Preto, na tes se concentravam na cidade baixa, e construíram um pa­
praça principal. Apenas em O linda os dois palácios estavam lácio que representava o poderio da classe, o prédio da
localizados em diferentes colinas. Associação Com ercial.
E m relação às fortificações, elas obedeciam a um a O restante da população, com menos peso económ ico
lógica própria. A lém da escolha d e sítios em acrópole, as e p olítico que os grandes proprietários e os comerciantes,
cidades litorâneas tinham um sistema defensivo mais refo r­ preench ia os núcleos urbanos com suas residências, segun­
çado, destacando-se o controle das entradas das baías do d o suas possibilidades (quando não moravam de aluguel),
R io de Janeiro e de Salvador, a defesa dos portos dessas nos terrenos disponíveis e obedecendo à regulamentação
duas cidades (inclusive com fortes sobre rochedos), e o municipal.
estabelecim ento de fortes periféricos de grande porte. R e ­ Pode-se afirm ar que boa parte da população tinha es­
cife, de escolha holandesa, teve tam bém a im plantação de cravos d e aluguel com o fonte de renda no lugar dos im ó­
fortes para a defesa do litoral, assim com o de seus flancos. veis d e aluguel, qu e pertenciam sobretudo às ordens reli­
Olinda, tam bém situada em acrópole, mas lon ge do porto, giosas e às irmandades.

272 273
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S OS A G E N T E S M O D E L A D O R E S DAS C I D A D E S BRA S I L E I RA S

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to que os escravos domésticos residiam com seus p ro p rie ­
pp. 53-62.
tários. Os alojamentos dos escravos não se destacavam nas
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com categorias mais detalhadas, considerando que as gran­
Salvador, Beneditina (orig. 1759).
des categorias (com o, p or exem plo, Capital, Estado, P o ­
CAMPOS, João da S. (1940). Fortificações da Baía. R io d e Ja­
pulação), em bora possam facilitar o raciocínio, p od em tam ­
neiro, S .P .H .A .N .
bém ocultar questões importantes, sobretudo quando há CÁRTER, H a ro ld (1987). A n Introduction to Urban Historical
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Smith, R., Ott, C. e Ruy, A., História das Artes na Cidade do
apresentar m aior ou m enor intensidade, variar segundo a
Salvador. Salvador, Prefeitu ra Municipal.
frequ ên cia de ocorrência e, con fo rm e a distância e direção,
TOLLENARE, L. F. de (1956). Notas Dominicais. Salvador, P r o ­
caracterizar-se p o r diversos propósitos e se realizar através
gresso (orig. 1818).
d e diversos m eios e velocidades.
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Latina, 6, pp. 14-23.
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tre países, a circulação de mercadorias entre fábricas e
Bulletin de TAssociation des Géographes Français, 73:1, pp. lojas, o deslocam ento de consumidores aos centros d e com ­

21-29.
pras, a visita a parentes e am igos, a ida ao culto religioso,
V lL H E N A , Luís dos S. (1969). A Bahia no Século X V III. Salvador, praia ou cinema, o fluir de inform ações destinadas ao con­
Itapuã (orig. 1802). sumo de massa ou entre unidades d e uma mesma empresa
são, entre tantos outros, exem plos correntes de interações
espaciais em que, de uma form a ou d e outra, estamos todos
envolvidos.

* P rofessor d o D epartam ento de G e o g rafia da UFRJ.

27 8 279
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I N T E R A Ç Õ E S ESPACIAIS

O presente estudo está dividido em duas partes. N a C H IL D E (1 9 5 0 ), P lR E N N E (1 9 6 4 ), P r e d (1 9 6 2 ), B E LSH A W

prim eira procura-se estabelecer as relações entre intera­ (1 9 6 8 ) e H arvey (1 9 8 0 ).

ções espaciais e capitalismo, enquanto na segunda são dis­ Considerarem os brevem ente as interações espaciais
cutidos os padrões espaciais das interações. no capitalismo, tendo com o ponto de partida os impactos
resultantes da Revolução Industrial, impactos que altera­
ram profundam ente essas interações, estabelecendo a ma­
Interações espaciais e capitalismo triz com que hoje elas se realizam: neste sentido, o estudo
de P r e d (1962) é de fundamental importância. Segue-se
As interações espaciais devem ser vistas com o parte uma b reve descrição da espacialidade do ciclo de reprodu­
integrante da existência (e reprodução) e d o processo d e ção d o capital.
transformação social e não com o puros e simples desloca­
mentos de pessoas, mercadorias, capital e inform ação no
espaço. N o que se refere à existência e reprodução social,
A s transform ações nas interações espaciais
as interações espaciais refletem as diferenças d e lugares
face às necessidades historicam ente identificadas. N o qu e
A Revolução Industrial transformou profundamente
concerne às transformações, as interações espaciais carac-
as interações espaciais. E m resumo, essas alterações po­
terizam-se, preponderantem ente, p or uma assimetria, isto
dem ser descritas pela ampliação:
é, p or relações que tendem a favorecer um lugar em detri­
m ento de outro, ampliando as diferenças já existentes, isto é,
i - da massa de mercadorias, pessoas, recursos finan­
transformando os lugares. Consulte-se C H E P T U L I N (1982),
ceiros e inform ações em circulação;
que fom ece elem entos para uma análise materialista das
ii — da frequência com que as interações passaram a
interações espaciais.
se verificar;
Ancoradas na sociedade e em seu m ovim ento d e
ifi — dos meios de circulação e comunicação;
transformação, as interações espaciais e sua dinâmica so­
iv — dos propósitos com que são realizadas;
m ente são inteligíveis quando consideradas com o parte da
v - da velocidade, através da qual se verifica a pro­
história do hom em e d e sua mutável geografia.
gressiva superação do espaço p elo tempo;
N ão cabe aqui apresentar e discutir as relações entre
interações espaciais e dinâmica social. A bibliografia sobre vi - dos horizontes espaciais, rompendo limitadas dis­

essas relações é ampla, rem etendo aos diversos tipos d e tâncias e, adicionalmente, tomando-as multidirecionadas;

organização social, com o se exem plifica com os estudos d e vii — das redes geográficas, que se tomaram progressi­

280 281
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I N T E R A Ç Õ E S ES PACI AI S

vam ente mais complexas e abrangentes, envolvendo um so, o d e especialização e o de integração, alterando a nature­
número crescente de nós, vias e fluxos, assim com o dos za, a intensidade e os padrões espaciais d e interações.
mais diversos agentes sociais; e As interações entre cidades tomaram -se mais com ple­
viii - de sua importância na vida económica, social, xas e intensas, deixando de ser realizadas sobretudo a curta
cultural e política. distância e entre um lim itado número d e centros, com o se
verificava anteriorm ente em 1840 (P r e d , 1973). C om ple­

As complexas transformações nas interações espaciais xos padrões de interações entre centros urbanos em ergiram

resultaram, no plano im ediato, das poderosas inovações ou ganharam força, definindo uma crescente interdepen­

tecnológicas geradas no âmbito dessa com plexa teia d e dência entre cidades e áreas, expressa p or interações:

intercasualidades que foi a Revolução Industrial. O navio a


vapor, a ferrovia e o telégrafo foram as principais dessas i — entre grandes cidades localizadas na m esm a região
inovações correlatas às transformações tam bém cruciais na ou em regiões distintas;
agricultura, na indústria, nas atividades terciárias, na orga­ ii — entre uma grande cidade e centros m enores locali­
nização social e política, na urbanização e nos m odos d e zados tanto na hinterlândia com o fora dela; e
vida como, entre outros, apontam PRED (1962), D O B B fii ~ entre cidades pequenas localizadas na m esm a re­
(1977) e HOBSBAW M (1977). gião ou em regiões diferentes.
Intensificam-se e ampliam-se as interações espaciais
que, adicionalmente, tomaram-se mais rápidas e mais com ­ Interações espaciais a curta e a longa distâncias, entre
plexas. Rompem-se as amarras de horizontes espaciais lim i­ centros d e magnitude sem elhante ou distinta, envolvendo
tados e fortemente fechados, submetidos a uma econom ia uma gam a cada v e z mais com plexa de mercadorias, pes­
preponderantemente autárquica. Estabelece-se uma cres­ soas, capital e inform ação, são o resultado das transforma­
cente divisão territorial do trabalho que leva a uma necessá­ ções advindas com o capitalismo industrial.
ria articulação entre áreas e cidades através de uma rede A in da que desigualmente, as transformações, em rea­
urbana cada v e z mais importante e fortem ente articulada. lidade, verificaram -se em toda parte, gerando uma econo­
PRED (1980) argumenta, em relação aos Estados U n i­ m ia crescentem ente integrada em escala mundial, consti­
dos do período 1840-1860, que as mudanças nas funções tuída p o r nós e áreas articulados entre si p o r poderosas
urbanas, a industrialização, o processo de urbanização, a m e ­ ligações. Nas palavras de HOBSBAWM (1977, p. 69) em re-
lhoria dos transportes, especialmente o ferroviário, e a difu­ laçao ao p e río d o 1848-1875, a “ rede que unia as várias re­
são do telégrafo, geraram um duplo e complementar proces- giões d o m undo visivelm ente apertava” .

282 28 3
EXPLO RAÇ ÕES GEOGRÁFICAS I N T E R A Ç Õ E S ESPACI AI S

A partir da segunda m etade do século X IX as intera­ A espacialização do ciclo d e reprodução do capital


ções espaciais entram na m odernidade, anunciando o p re ­
sente. A superação d o espaço pelo tem po, que progressiva­ O ciclo de reprodução do capital explicitado por M a r x
m ente se tom a mais crucial à m edida que o capitalismo se ( 1984) constitui-se no processo fundamental que, no capi­
firm a, demandando a aceleração do ciclo de reprodução do talismo, origina, direta ou indiretamente, grande parte das
capital, alcança novos e sucessivos patamares que rapida­ interações espaciais.
m ente são ultrapassados a partir de novos e mais eficientes E m sua fórmula, o ciclo de reprodução do capital assu­
m eios de circulação e comunicação. me, em aparência, uma característica a-espacial. Sua fór­
A instantaneidade e a simultaneidade que hoje se mula é:
conhece no âm bito da circulação de inform ações, mas não
no que se refere às mercadorias e pessoas, é o resultado FT
desse progresso técnico m otivado pela demanda de com u­ D M P - M* D’ 9

nicação das grandes corporações multifuncionais e m ultilo- MP


calizadas.
A internacionalização do capital produtivo foi respon­ na qual D = capital-dinheiro a ser investido
sável, entre outros aspectos, pela formação de poderosas M = mercadoria
redes constituídas d e dezenas, senão centenas de unidades FT = força de trabalho
— sede social, centro d e P & D, minas, fazendas, fábricas, M P = meios de produção
depósitos, escritórios administrativos e de vendas, portos P = produção
de uso privativo, lojas, “ company-towns” etc. — localizadas M’ = m ercadoria (produto final)
em numerosos lugares distribuídos mundialmente. A eco ­ D’ = dinheiro (am pliado)
nom ia tom a-se globalizada, constituída de partes in terd e­
pendentes e na qual parcela crescente do com ércio in ter­ A espacialidade do ciclo de reprodução do capital,
nacional passa a ser feita entre unidades — filiais e subsi­ entretanto, é notável, conform e HARVEY (1982), entre ou­
diárias — da m esm a corporação. Trata-se de uma nova tros, aponta. Im plica múltiplas localizações e suas necessá­
divisão internacional do trabalho (COHEN, 1981), respon­ rias articulações, em virtude dos processos produtivo e do
sável p or complexas redes de produção e circulação de consumo apresentarem ampla escala, envolvendo diferen­
capitais, pessoas, matérias-primas, inform ações e produtos tes lugares. O ciclo de reprodução d o capital rom pe com
industrializados. horizontes espaciais limitados que caracterizava predom i­
nantem ente a vida económ ica na fase pré-industrial.

284 285
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
interações espaciais

O ciclo de reprodução do capital tom a-se, no bojo do


processo de concentração e centralização d o capital, cada
vez mais complexo. O m esm o se dá com a sua espacialidade. F igura 1: C iclo de Reprodução d o C apital e E spaço
(a) C irculação d e I nvestimentos
Ambas as complexidades são potencializadas com a consti­
tuição de poderosas corporações multifuncionais e multilo-
calizadas, envolvendo ampla gama de produtos e serviços e
inúmeras localizações.
Consideremos uma hipotética corporação constituída
por unidades localizadas em nove centros urbanos. A F igu ­
ra l a indica tais centros nomeados d e A a I: trata-se de
localizações que contêm a sede da corporação (A ), três
fábricas-filiais (B , C e D ), três centros com filiais de coleta
e beneficiamento de produtos rurais (E , F e G ) e, final­
mente, de dois centros on de estão unidades-filiais de m i­
neração. A Figura la indica tam bém outros centros (J, K ,
L , M , N , O, P, Q e R), que, no plano im ediato, não se vin­
culam à rede de centros da hipotética corporação.
A Figura l a refere-se ao m om ento inicial d o ciclo de
reprodução do capital, no qual, através d e decisões tom a­
das na sede social da corporação, verificam -se investim en­
tos de capital-dinheiro nas oito unidades-filiais espacial­
m ente dispersas. N este m om ento, as interações espaciais
são viabilizadas através d e fluxos de inform ações e recursos
financeiros via telefonia, fax, contatos face a face e através
da telemática. A rede bancária, associada ou não à corpora­
ção, cumpre, neste m om ento papel crucial. A figura l a BI S ed e da Corporação
Filial d e C oleta e Beneficiam ento
reflete, em realidade, o m om ento D — M . s Fábrica-Filial
pp ® Filial-M ineração
A Figura lb , por sua vez, refere-se ao m om ento M j^ p Indústria
~ ~ Fluxo de Investimentos
que apresenta uma espacialidade mais complexa, reportan­ O Outros Lugares
do-se à circulação da força de trabalho e dos meios de pro-

286
287
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S I N T E R A Ç Õ E S ESPACIAIS

dução e envolvendo outros centros que até então não parti­


(b) C irculação d e F orça de T rabalho cipavam das interações espaciais da corporação.
e M eios d e P rodução Das hinterlândias agrícolas dos centros E , F e G fluem,
através destes, matérias-primas para a fábrica-filial localizada
no centro B, enquanto das unidades de mineração localiza­
das em H e i fluem matérias-primas para os centros B, C e
D onde estão fábricas-filiais da corporação.
A participação d e outros centros agora se efetiva. A
indústria localizada em J, indústria pertencente a outra cor­
poração, fornece, p or exem plo, máquinas às unidades loca­
lizadas em B, C e D . Semelhantemente no centro A outras
indústrias, tam bém não vinculadas à corporação hipotética
em tela, expedem bens intermediários ao centro D.
O centro N , assim com o o centro L , por se situarem
em áreas de evasão dem ográfica, são, neste momento, eta­
pas migratórias com destino aos três centros industriais B,
C e D . M igrações diretas da zona rural para os referidos
centros tam bém ocorrem .
A rede de centros envolvidos nesse m omento do ciclo
de reprodução do capital amplia-se. As interações envolvem,
além de ordens de com pra e venda de matérias-primas,
maquinário e bens intermediários, contratos com a força de
trabalho. Envolve, de maneira expressiva, fluxos de merca­
dorias via diversos meios de transporte, caminhão, trem
e dutos.
a Sede da C orporação
• Filial d e C o leta /V ~^X Â re a de O processo produtivo s tricto sensu está pronto para se
e Benefieiamento Produção Agrícola
0 Fábrica-Filial ^ ^A Â re a d e Evasão realizar. Sua efetivação pressupõe novas interações espa­
(m ) Filial-M ineração V y D em ográfica
Indústria ciais. Estas se realizam, em parte, na escala intra-urbana,
A Etapa M igratória ^ Fluxo de F T e M P
O Outros Lugares envolvendo o deslocam ento cotidiano entre residência e
local de trabalho dos operários, assim como, para outros

288 289
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
I M E R A Ç Õ E S ESPACI AI S

momentos do ciclo, de comerciários, bancários, técnicos e


executivos do capital, entre outros. E nvolve também d eslo­
(c) C irculação de P ublicidade e Produtos I ndustriais
camentos associados à formação, existência e reprodução
daqueles envolvidos, direta e indiretam ente, no processo
produtivo. As interações se fazem sobremaneira com base
na utilização de ônibus, trens suburbanos e veículos indivi­
duais, assim com o através do telefon e e de outros m eios de
comunicação. Se fazem tam bém a pé. Este é o m om ento P
do ciclo de reprodução do capital, não representado grafi­
camente neste estudo.
A Figura l c descreve o m om ento M ’ - D ’, que en vol­
ve a distribuição e o consumo dos produtos industrializa­
dos. D a sede social da corporação campanhas publicitárias
divulgam os produtos industrializados, atingindo, através
do rádio, televisão e outd oors, lugares que, até então, não
participavam da rede de interações da corporação, com o os
centros K, M e O, conform e indicado na Figura lc .
Através de vendas atacadistas, via filiais de venda,
representantes comerciais ou atacadistas tradicionais ou
modernos, a partir dos centros B, C e D , a produção flui
para os centros varejistas que fazem a distribuição aos con ­
sumidores finais. Todos os centros indicados, de A a R,
participam da distribuição varejista, incluindo aqueles até
então ausentes, centros P e Q. Form a-se uma rede de loca­
lidades centrais caracterizada por uma hierarquia de luga­
res, atacadistas e varejistas, por exem plo, que dispõem de
áreas de mercado definidas pelos mecanismos de alcance B B *
Sede da Corporação ---- Fluxo de Publicidade
espacial máximo e mínimo.
Distribuição Atacadista ------ ► Fluxo de Produtos Industriais
As interações espaciais envolvem agora o deslocam en­
Distribuição Varejista
to aos centros intra-urbanos de compras (núcleo central de

290 291
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
INTERAÇÕES e s p a c i a i s

negócios, centros de bairro, shopping centers etc.) e lo­


calidades centrais na hinterlândia das metrópoles. A circu­
(d) C irculação de L ucros
lação de ônibus urbanos ou entre cidades, assim com o
de veículos individuais, está em parte associada a estas
interações.
C om o consumo a mais-valia efetivam ente se realiza.
Os lucros obtidos ao final do processo produtivo devem ser
rem etidos à sede da corporação localizada no centro A. É
através das agências bancárias localizadas nos centros vare­
jistas que se dá a transferência para as agências do centro
A, onde está a sede da corporação. As interações proces-
sam-se via inform ática, caracterizando-se pela instantanei-
dade das operações. Este é o m om ento D ’ — D , isto é, o
m om ento final e que viabiliza o reinicio do ciclo de repro­
dução do capital (F ig. ld ).
A mais-valia concentrada na sede da corporação não
apenas perm ite o reinicio do ciclo com o tam bém o investi­
m ento e aplicação em outros setores, com o o financeiro e o
im obiliário, e no consumo pessoal daqueles que controlam
o processo produtivo. Isto engendra novas localizações e
novas interações espaciais.
Algumas observações encerram este capítulo:

(a) A espacialidade do ciclo d e reprodução do capital


é muito mais com plexa do que a que foi aqui apresentada.
(b ) Os m om entos do ciclo de reprodução do capital
são teóricos pois, em realidade, há uma tendência à sincro- 121 S ed e d a Corporação ~ ~ + Fluxo de Lucros
nia de cada uma das partes em que o ciclo, analiticamente X Bancos

decomposto, se realiza. Os lugares e áreas, contudo, são

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293
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S I N T E R A Ç Õ E S ES PACI AI S

concretos e separados entre si. A espacialidade tem , assim, pa da rede de várias corporações, a diferenciação de cen ­
uma concretude mais evidente que a temporalidade. tros e áreas tom a-se mais complexa, im plicando en orm e
(c) Cada lugar participa diferentem ente no ciclo de com plexidade das interações espaciais. Isto nos leva a con ­
reprodução do capital de uma dada corporação. Assim, à siderar falaciosa a tese da hom ogeneização espacial en gen ­
guisa de exemplo, o centro B participa de diversos m om en­ drada p elo capitalismo.
tos, através de uma fábrica-filial, das distribuições atacadista
e varejista, e da função bancária. O centro G, p o r sua vez,
participa através da coleta e beneficiam ento de produtos Os padrões espaciais
agrícolas e com o centro varejista e bancário.
As interações espaciais contextualizadas e tomadas
Já o centro J está associado ao ciclo de reprodução do inteligíveis na sociedade capitalista a partir d o desvenda-
capital de outra corporação, integrando-se no ciclo de m en to da dim ensão espacial do ciclo de reprodução d o
reprodução da corporação em tela a partir de um d eterm i­ capital, apresentam padrões distintos no espaço e no te m ­
nado momento. Os centros K , M e Q tam bém integram -se po. E m outras palavras, os diferentes fluxos que articulam
à rede da corporação em questão apenas a partir d e d eter­ os fixos socialm ente criados são caracterizados por lógicas
minado momento. qu e lhes con ferem regularidades espaço-temporais que se
reportam à organização social e a seu desigual m ovim ento
(d ) Há, assim, uma divisão territorial do trabalho no d e transformação.
âmbito da corporação sob consideração. O centro A é o Vejamos, prim eiram ente, a variabilidade espaço-tem­
centro de gestão do território, isto é, centro de concepção, poral dos padrões de interações e, a seguir, as redes g e o ­
planejamento e controle do ciclo de reprodução do capital gráficas que, em última análise, são as formas com que as
ou, em outros termos, é um centro de acumulação capita­ interações espaciais se verificam .
lista. Alguns são centros industriais e lugares centrais, en ­ Ressalte-se qu e os diversos tipos d e interações e d e
quanto outros são centros d e com ercialização e beneficia­ redes geográficas nao sao mutuamente excludentes entre
mento da produção agrícola e lugares centrais. Outros são si. E m outras palavras, um dado centro nodal pode ser o
apenas lugares centrais. Especializações funcionais e h ie­ fo co de interações espaciais distintamente variáveis em ter­
rarquização caracterizam os centros da rede de centros as­ mos espaciais e temporais, assim com o o foco de redes dis­
sociada à corporação em questão. As áreas agrícolas, sob a tintas, revelando a enorm e com plexidade dos padrões es­
ação da corporação, também diferenciam -se entre si. paciais d e interações.
(e ) Com o cada centro, a exem plo do centro J, partici-

294 29 5
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
I N T E R A Ç Õ E S ESPACIAIS

A variabilidade espaço-tem poral


F ig u r a 2 : P a d r õ e s d e I n t e r a ç õ e s E s p a c ia is
E S U A V A R IA B IL ID A D E E s P A ç S -T E M P O ^ L
A Figura 2 descreve os principais padrões de intera­
ções com base na variabilidade no espaço e no tem po. Para
sim plificar as interações estão focalizadas em um único
(a) Interações Fortemente
centro nodal a partir do qual e para o qual fluem matérias- (b) Interações Fortemente
Regionais
primas, alimentos in natura, pessoas, produtos industriali­ Extra-regionais
zados, renda fundiária, investimentos, lucros diversos,
inform ações etc.
Os padrões em questão devem ser considerados com o
referências para situações reais e não com o modelos ideais
e normativos. P o r outro lado, não são mutuamente exclu-
dentes entre si, pois em uma situação caracterizada p or
(c) Interações Influenciadas
interações fortem en te regionais (Figura 2a) podem ser v e ­ pela Direção
rificadas influências direcionais (F igu ra 2c) e, simultanea­
m ente, descontinuidades no tem po (Figura 2d). Em outros
termos, os padrões em tela p od em combinar-se entre si e
freqiien tem en te o fazem.
Os diferentes padrões de interações espaciais deri­
vam de um amplo conjunto de razões nas quais uma delas
tende a te r m aior peso. Assim, a natureza social e económ i­
ca da hinterlândia, expressa em termos de estrutura fun­ (d) Interações Descontínuas
no Tempo
diária, relações sociais de produção, desenvolvimento te c ­
nológico das atividades produtivas, sua diversificação, natu­
reza e finalidade, é decisiva, influenciando a densidade
dem ográfica e a renda de seus habitantes. Soma-se a isto a
variação dos padrões culturais da população. E m ergem - r ' v
então ofertas e demandas de produtos e serviços que são
variáveis em volum e e no tem po, assim com o susceptíveis
® Centro N o d al
de gerarem interações a curta e/ou longa distâncias e ainda
O Lim ites Regionais Intensidade das Interações
direcionalm ente variáveis.

296
297
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S I N T E R A Ç Õ E S ES PACI AI S

As diversas soluções encontradas pela elite económ ica das no passado, em um m om ento em que a distância d e ­
do centro nodal, visando a sua própria reprodução através sempenhava, mais que atualmente, papel mais determ i­
da criação de atividades capazes de (re)inserirem o mais nante nas interações espaciais. Im plicava isto localizações
eficientem ente possível centro e hinterlândia na vida eco ­ próximas entre si, a exem plo das diversas concentrações es­
nómica, é outra razão que suscita padrões variáveis d e inte­ paciais da atividade industrial e da urbanização, que origi­
rações. Os papéis atribuídos aos centros nos quais uma cor­ naram aquilo que se denom ina d e “ core area” , onde os
poração multilocalizada tem unidades produtivas, p or ou­ centros urbanos aí localizados tendem a manter relações
tro lado, constituem outra razão que gera diferenciais de mais intensas entre si do que com centros externos.
interações espaciais entre as diversas cidades dá rede de As ligações telefónicas entre cidades, que são indica­
centros organizada pela corporação. dores da intensidade agregada d e múltiplos tipos de intera­
E m resumo, as interações espaciais variáveis derivam ções, fornecem evidências para o que foi acima afirmado.
da diferenciação de áreas conform e aponta U L L M A N (1974), Assim, as ligações telefónicas no âm bito da região urbano-
constituindo, por outro lado, uma condição de reprodução
industrial paulista (região metropolitana de São Paulo, Bai­
das diferenças. xada Santista, Vale do Paraíba e os eixos São P a u lo __ Soro­
A Figura 2a reporta-se às interações espaciais forte­
caba e São Paulo — Campinas — São Carlos — Ribeirão
m ente regionais. Associavam-se no passado a áreas relati­
P re to ) são mais intensas intem am ente do que extra-regio-
vamente integradas intem am ente e muito pouco articula­ nalmente.
das extemamente, revelando forte grau de autonomia re­
E m razão d o m aior desenvolvim ento económ ico-so­
gional e limitada participação em uma pouco desenvolvida
cial e d o forte controle exercido pela m etrópole paulista
divisão territorial do trabalho. Muitas cidades pré-indus­
sobre as atividades regionais, são mais intensas as ligações
triais européias constituem exemplos significativos de cen ­
telefónicas de São Paulo com São José dos Campos, Bauru,
tros nodais em to m o dos quais estabeleciam-se interações
Ourinhos e M arília do que, respectivamente, com R ecife,
fortemente regionais (L A M P A R D , 1955).
As interações em tela, contudo, tendem a caracterizar B elém , São Luís e Natal ( N a c if , 1993). E ressalte-se que

parcela importante das interações espaciais atuais. Carac- em cada par d e cidades considerado aquelas do interior de

terizam, por exem plo, interações dos lugares centrais, pon ­ São Pau lo são m enores qu e as suas contrapartes extra-
regionais.
tos focais da vida económ ica, social, cultural e política de
áreas próximas, as suas hinterlândias, com as quais diversos A Figu ra 2b descreve as interações fortem ente extra-
tipos de interações espaciais são realizados. regionais que, via d e regra, se fazem a longa distância, en ­
As interações espaciais fortem ente regionais se d e ­ volven d o fluxos associados a especializações funcionais, se­
vem também à força de inércia das localizações estabeleci­ jam d o setor produtivo, sejam dos serviços. Centros em i­

29 8 299
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I N T E R A Ç Õ E S ESPACIAIS

nentem ente industriais, especialmente aqueles pouco diver­ enciadas pela distância: à m edida que se verifica o aumen­
sificados, centros portuários, universitários, de veraneio, m i­ to da distância, implicando a ampliação dos custos de trans­
neração e de peregrinação religiosa constituem típicos focos ferência, de tem po e de esforço físico, verifica-se a dimi­
de interações fortem ente extra-regionais. Possuem eles uma nuição da intensidade das interações espaciais. Trata-se
relativamente limitada centralidade, pequena face ao tama­ daquilo que os economistas espaciais e os geógrafos deno­
nho dem ográfico que apresentam, inserindo-se na rede ur­ minam de “distance decay”, isto é, o efeito declinante da
bana com o centros especializados e, secundanamente, co­ distância sobre as interações espaciais e o uso da terra que
delas deriva (HOOVER, 1948 e ISARD, 1956).
m o lugares centrais.
Associado a este padrão está uma mais significativa O papel da distância foi enfatizado na geografia teoré-
divisão territorial do trabalho e uma posição geográfica dis­ tico-quantitativa, a ponto de WATSON (1955) referir-se à
tinta daquela dos lugares centrais e que assume, em muitos geografia com o uma “disciplina da distância” . Os modelos
casos, características singulares. A posição p ode ser excên­ d e von Thtinen, W e b e r e Christaller, assim com o os m ode­
trica, com o no caso das cidades portuárias, ou vincular-se à los gravitacional e potencial, que envolvem interações es­
ocorrência singular de um recurso mineral ou de uma d eci­ paciais, estão fortem ente calcados no papel da distância na
são ou evento não repetitivo. Aparentem ente, as específi­ explicação do uso agrícola da terra, da localização indus­
cas localizações de tais centros assemelham-se às distribui­ trial, da hierarquia urbana e da atratividade de um centro
ções espaciais aleatórias, mas uma análise mais acurada le ­ nodal sobre outros.

vará à descoberta de determinadas lógicas locacionais. Sem elhantem ente, o p reço da terra e as densidades
E ntre os numerosos exemplos de centros com intera­ dem ográficas intra-urbanas tam bém são fortemente influ­
ções espaciais fortem ente extra-regionais estão as cidades enciadas p ela distância ao núcleo central da cidade, aos
portuárias de R io Grande, Itajaí e Paranaguá e os centros subcentros comerciais intra-urbanos, às vias de tráfego e às
de peregrinação de Lourdes e M eca, que atraem, respecti- amenidades. Toda a concepção centro-periferia, em reali­
vam ente, católicos de toda a Europa e muçulmanos. Entre dade qualquer que seja a escala espacial, está fortem ente
os centros industriais mencionam-se Telêm aco Borba, no assentada no efeito declinante da distância (ALONSO, 1964,
Paraná, e João M onlevade, em Minas Gerais, que produ­ Cox, 1972 e H u r s t , 1972).
zem , respectivamente, papel e aço para o mercado nacio­ A despeito do efeito da distância ser considerado co­
nal. Guarapari, por sua vez, no litoral capixaba, exem plifica m o parte integrante da racionalidade económica geral, a
o centro de veraneio para uma clientela predom inantem en­ sua im portância deve ser relativizada. Assim, padrões cul­
te extra-regional, constituída em grande parte p or mineiros. turais específicos podem dar origem a interações espaciais
As interações espaciais são, em graus distintos, influ- reguladas p o r visões particulares da distância, associadas a

300 301
E X P L O R A Ç Õ E S GE O C R Á F I CA S I N T E R A Ç Õ E S ESPACI AI S

valores religiosos, etnolingiiísticos, laços de parentesco e a que têm uma posição geográfica no contato de regiões dis­
modos de vida não-capitalistas (G A L L A IS , 1977 e C O R R Ê A , tintas em term os de densidades demográficas, característi-
1995). E mesmo entre os pobres e ricos da sociedade capi­ cas sócio-econôm icas e padrões culturais, resultantes de di­
talista o papel da distância nas interações espaciais é d ife ­ ferenças na natureza e nos processos de ocupação territo­
renciado, estabelecendo-se graus distintos de m obilidade rial ou de ambos. Cidades n o contato entre planície e pla­
espacial. nalto, ju n to à confluência d e rios, e no contato entre áreas
O avanço tecnológico também m inim iza o papel da
d e vegetação florestal e campestre, p or exem plo, são nu­
djçLãnHa nas interações espaciais. É isto que, sistematica­
merosas, assim com o aquelas conhecidas tem porariam ente
m ente, tem ocorrido d e m odo crescente a partir da R e ­
com o ponta de trilho” e “ boca d e sertão” .
volução Industrial, viabilizando interações mais rápidas e
Localizada no contato Agreste — Sertão, Campina
mais eficientes, envolvendo cada v e z mais maiores volum es
G rande é a capital do Sertão (C A R D O S O , 1963). A cidade
de mercadorias a distâncias maiores e em m enor tem po e
d e Jequié, p o r sua vez, constitui-se em outro exem plo. Si­
custo. O desenvolvim ento das telecomunicações, p or outro
tua-se no contato entre a zona cacaueira, úmida, a leste, e
lado, viabiliza a superação da distância p ela possibilidade
o planalto sem i-ándo, a oeste, dom ínio da criação de gado
d e transmissão de inform ações instantaneas simultanea­
(S a n t o s , 1956): suas interações são espacialmente diferen­
m ente para vários lugares. O rádio, a televisão e a telem áti­
ciadas. As cidades de M arília e São José do R io Preto, no
ca tomaram possível articular toda a superfície terrestre de
m odo mais efetivo. Esta efetividade, contudo, pressupõe a O este paulista, p o r sua vez, já foram “pontas d e trilhos” ,

existência de com plem entaridade funcional entre áreas e enquanto Londrina, no norte d o Paraná, “boca de sertão”
centros urbanos, que, cada v e z mais, se verifica no âm bito (M O N B E IG , 1952). Os exem plos são numerosos, incluindo-

de grandes corporações multilocalizadas e atuando global­ se aí as cidades localizadas em fronteiras internacionais.

m ente (K E L L E R M A N , 1993). As interações espaciais direcionalm ente variáveis d e­


As interações espaciais podem tam bém variar d irecio­ rivam tam bém d e especializações produtivas criadas p or
nalmente. N o exem plo da Figura 2c as interações espaciais capitais locais, b em com o p o r um a corporação multifuncio­
são mais intensas na direção oriental da hinterlândia do nal e multilocalizada, que atribui a um dado centro uma
centro nodal, refletindo o fato de que este setor caracteri- função específica no âm bito d e sua própria divisão territo­
za-se p or um maior potencial de interação do que o setor rial do trabalho, expressa p o r um a rede d e centros diferen ­

ocidental. ciados. N os dois casos, p o r se tratar da produção de m até­


O diferencial de natureza e intensidade das interações rias-primas, bens interm ediários e componentes para outro

espaciais está associado, tradicionalmente, àqueles centros centro que se encarrega de concluir a produção, as intera­

30 2 303
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I N T E R A Ç Õ E S ESPACIAIS

ções espaciais são direcionadas para este centro de trans­ conform e assinala SANTOS (1960) para a zona cacaueira da

form ação final. Bahia e T a a f f e , M O R R ILL e G O U LD (1963) para o con­


A Figura 2d, finalmente, descreve interações espaciais ju nto dos países subdesenvolvidos.
descontínuas no tem po. N o prim eiro mom ento (tx) há um A safra de café, p o r outro lado, cria uma variação
dado padrão no qual os fluxos i e k são os mais intensos. N o sazonal na vida económ ica de suas áreas produtoras, susci­
segundo m om ento (t2) o padrão foi alterado. Os fluxos 7 , k, tando m aior intensidade nas interações espaciais neste p e ­
l , m e n desapareceram, enquanto o fluxo i teve a sua inten­ ríod o do que na entressafra. Ressalte-se que o efeito da sa-
sidade diminuída; p o r outro lado, dois novos fluxos em ergi­ zonabilidade é tanto m aior quanto mais dependente fo r a
ram, p e q, este últim o de expressiva intensidade. econom ia da área a um único produto.
’ A variabilidade tem poral das interações espaciais p o ­ Sem elhantem ente, mas a intervalo diferente, varia o
d e envolver diversas escalas de tem po. P od e variar em um núm ero d e peregrinos q u e se dirige aos centros de peregri­
p eríodo de alguns séculos ou de 30-50 anos, entre duas nação. N o tem po sagrado, dias de festa religiosa, o afluxo
estações chuvosas, entre duas datas em anos subsequentes d e peregrinos p ode alcançar dezenas de milhares de pes­
ou entre determ inado dia a cada semana, ou ainda no in ­ soas, enquanto nos dias comuns o afluxo se reduz muito ou
tervalo de algumas horas. N o lim ite estão aquelas intera­ é m esm o inexistente (ROSENDAHL, 1996).
ções que se realizaram apenas durante um dado m om ento Finalm ente, exem plifica-se com a variabilidade das
d o tem po e depois cessaram: o processo de difusão espa­ interações espaciais marcadas p o r uma periodicidade mais
cial d e um produto ou idéia é, a este respeito, um exem plo frequ ente, com o aquela das feiras nordestinas que, via de
contundente. regra, realizam-se a cada sete dias. Razões de ordem eco­
A variabilidade tem poral das interações espaciais re­ nóm ica com o as baixos níveis de oferta e demanda, assim
sulta, de um lado, das transformações que alteraram subs­ com o as d e ordem cultural, levam a uma periodicidade dos
tancialmente a organização espacial com o aquelas introdu­ mercados. A obra de S K IN N E R (1964) é, a este respeito
zidas a partir da Revolução Industrial, extinguindo algumas clássica. S T IN E (1962), p o r sua vez, fornece argumentos
interações e criando outras. D e outro, deriva do caráter económ icos associados à extinção dos mercados periódicos,
cíclico de determinadas ofertas e demandas, assim com o enquanto B R O M L E Y , S Y M A N S K Y e G O O D (1975) argumen­
d e eventos culturais. tos culturais a favor da persistência desses mercados e de
A expansão ferroviária a partir da segunda m etade do suas interações espaciais variáveis no tempo.
século X IX m odificou a posição geográfica de numerosos
centros, alterando os seus padrões de interações espaciais,

304 305
: UVt:'' •
^BLiOfEG
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I N T E R A Ç Õ E S E S PA CI A I S

Interações espaciais: as redes geográficas dos nós da rede, o grau de com plementaridade entre eles e
suas áreas de influência ( G a r r i s o n , 1974 e N a c i f , 1993).
É através de redes geográficas, isto é, localizações ar­ A F igu ra 3 reporta-se aos principais padrões espaciais
ticuladas entre si p o r vias e fluxos, com o aponta KANSKY em rede. C a d a um deles p ode incorporar diversas variabili­
(1963), que as interações espaciais efetivam ente se re a li­ dades espaço-temporais anteriormente abordadas, assim
zam a p artir dos atributos das localizações e das possib ili­ com o cada padrão pode ser focalizado segundo a natureza
organizacional, temporal e alguns outros aspectos em inen­
dades reais de se articularem entre si.
tem ente espaciais (CORRÊA, 1997).
Construções sociais, as redes geográficas são histori­
camente contextualizadas, constituindo-se em parte inte­ D e v e ser ressaltado que a tipologia de redes geográfi­
cas apresentada nas Figuras 3a a 3 f não abarca todas as
grante do longo e cada v e z mais com plexo processo de
possibilidades, conform e evidenciado, entre outros, por
organização espacial socialm ente engendrado. Pois as loca­
BR U N E T (1990) e HEPWORTH (1990).
lizações, vias e fluxos são elem entos essenciais e insubsti­
A Figura 3a refere-se a uma rede solar. Caracteriza-se
tuíveis da própria existência e reprodução social. As trilhas
p ela localização central de um relativamente poderoso nó,
dos povos nómades que articulavam poços de água e pasta­
p on to focal de vias e fluxos vinculados a nós muito m en o­
gens, as estradas romanas que ligavam parte significativa
res. Trata-se d e rede fortem ente centralizada, com ausên­
da Europa, as redes telegráfica e ferroviária do século X IX
cia d e ligações entre os pequenos nós subordinados. E xem ­
e as modernas redes telemáticas foram e são, a cada m o­
plifica-se, de um lado, com a rede constituída p or uma ci-
mento, cruciais para a existência, reprodução e transforma­
dade-estado ou cidade cerim onial e suas aldeias tributárias
ção social. do m od o de produção asiático. D e outro, com uma organi­
A temática em questão é rica em controvérsias e, nes­
zação simples, constituída pela sede de empresa localizada
te sentido, sugere-se a consulta, entre outros, de H A G G E T T
em uma grande cidade e um conjunto subordinado d e uni­
e C H O R LEY (1969), D U P U Y (1988), K E LLE R M A N (1993) e dades fabris ou lojas varejistas localizado, via de regra, em
D ia s (1995a e 1995b). cidades menores. U m terceiro exem plo é o da rede d e cir­
As redes geográficas, por outro lado, têm sido analisa­ culação d e ônibus urbanos em uma cidade monocêntrica:
das, em grande parte, com base na Teoria dos Grafos com todas as linhas d e ônibus convergem para o núcleo central
suas medidas estruturais que perm item mensurar o grau d e negócios da cidade.
de sua conectividade e através de sua representação matri­ A Figura 3b reporta-se a uma rede dendrítica caracte-
cial e aplicação das proposições operacionais de N YSTUEN nzada p ela localização excêntrica do centro nodal mais im ­
e D A C EY (1975), que possibilitam identificar a hierarquia portante e p or vias e fluxos que se distribuem segundo um

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I N T E R A Ç Õ E S ESPAC I AI S
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

padrão análogo ao d e uma rede fluvial. A excentricidade do


F igura 3, Padrões d e I t e r a ç õ e s E spacuus em Kede
centro mais importante, ponto final (e inicial) dos fluxos,
gera interações espaciais direcionalmente orientadas.
(b) Rede Dendrítica A hierarquia dos centros, por outro lado, é mais d e­
(a) Rede Solar
senvolvida que na red e solar, associando-se nitidamente à
acessibilidade, de m odo que à medida que a distância ao
\ í / centro principal aumenta, o nível hierárquico dos demais
centros progressivam ente diminui. Semelhantemente à re­
7 K " d e solar não há ligações laterais entre nós ou centros de
O m esm o nível hierárquico, evidenciando a função da rede
dendrítica de drenagem de recursos em geral da hinterlân-
(d) Rede Axial
(c) Rede Christalleriana dia p or parte d o principal centro nodal. Há, assim, uma
nítida relação entre função e form a espacial.
<\P <u > A rede urbana dos países de origem colonial foi em
o— CL O —°
suas origens caracterizada p elo padrão dendrítico. A cria­
ção de uma cidade junto a um estuário ou a uma baía foi o
p on to de partida para o desenvolvimento deste tipo de
rede, exem plificado, no passado, pelas redes controladas
P ? S* °
p o r Salvador, São Luís e B elém (CORRÊA, 1988).
(f) Rede de Múltiplos A rede christalleriana constitui-se em um tipo de rede
(e) Rede Circular Circuitos
geográfica consagrado entre os geógrafos. A existência ob­
je tiv a dessas redes é antiga e deve-se a CHRISTALLER
/ -o -.
(1966), com a sua clássica obra sobre os lugares centrais

P ) publicada em 1933, a sistematização sobre as característi-


cas desse tipo de rede (F igu ra 3c).
° - o - ° Trata-se de rede hierarquizada na qual o centro nodal
d e m aior nível hierárquico tem uma localização central.
Circundando-o estão centros de níveis hierárquicos in fe­

Interações Espaciais riores dispostos sistematicamente e controlando, cada um,


O Hierarquia dos Centros inúm eros centros de hierarquia ainda menor. As interações
O
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308
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS I N T E R A Ç Õ E S E SP A C I A I S

espaciais, vinculadas na formulação christalleriana a distri­ des dispersas em numerosos centros. Nestes estão as ativi­
buição varejista de bens e serviços, obedecem à hierarqura dades de gestão do nível I II , encarregadas do controle das
dos lugares centrais, havendo muito pouca ou nenhuma operações diárias. Esta estrutura hierárquica visa, segundo
interação entre centros de m esm o nível hierárquico. E m HYMER (1978, p. 110)
realidade, a rede de lugares centrais com bina caractensti-
cas das redes solar e dendrítica, sendo, entretanto, mais ...controlar o fluxo de informação. Conta com sólidas
complexa. Consulte-se BERRY (1967) sobre alguns desdo­ ligações verticais, de m odo que a inform ação sobe e
bramentos a respeito da formulação clássica de Chnstaller. as ordens descem com fluidez, e conta em seu vértice
Inúmeras são as redes geográficas organizadas segun­ com uma considerável comunicação horizontal, a fim
do o padrão em pauta. N o O este paulista a rede de lugares de lograr uma ação unificada. N a base, a com unica­
centrais em to m o de Bauru constitui-se em exem plo. C ir­ ção horizontal está cortada...”
cundando a capital regional, Bauru, estão centros sub-re-
gionais — Botucatu, Avaré, Jaú e Lins — cada um contro­ A hierarquia dos nós da rede tem, no caso, entre
lando alguns centros de zona. As redes de admmistraçao outras, uma função de controle do fluxo de informação.
pública também estão organizadas de acordo com um pa­ Mas a rede christalleriana p od e desempenhar também a
drão christalleriano, com o se verifica com as redes das se­ função d e viabilizar a distribuição d e bens e serviços, aten­
cretarias estaduais de saúde e educação, nas quais a sede dendo a demandas sociais. P o d e tam bém conform ar a es­
encontra-se na capital, as delegacias regionais em centros trutura espacial de organizações com o cooperativas, sindi­
regionais e os postos de saúde ou distritos escolares em catos, partidos políticos, enfim , de organizações voltadas
centros de hierarquia menor. para a solidariedade e não para a acumulação capitalista.
Nas complexas corporações multilocalizadas estabele­ A Figura 3d, p o r sua vez, descreve uma rede axial.
ce-se também uma hierarquia no que diz respeito à adm i­ Caracteriza-se pela disposição linear dos nós, associada, via
nistração interna. N a sede, via de regra em uma grande de regra, à existência de uma única via de tráfego linear­
cidade, localizam-se as atividades de gestão de nível supe­ m ente disposta. A hierarquia dos centros nodais obedece a
rior, encarregadas de fixarem os objetivos e estratégias a uma regularidade espacial, fruto e condição de interações
longo prazo. Constituem atividades de nível I, conform e que se realizam em duas direções. As interações perpendi­
aponta HYMER (1978) com base no esquema de Chandler culares ao eixo de tráfego são muito pouco significativas. É
e Redlich. Há, hierarquia abaixo, um conjunto de centros possível verificarem -se curto-circuitos, isto é, determ ina­
nos quais localizam-se atividades de gestão do nível II, dos fluxos ultrapassarem centros pequenos ou m esm o in­
encarregadas d o controle das atividades de diversas unida­ term ediários, dirigindo-se para um centro de hierarquia

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I N T E R A Ç Õ E S E S PAC I AI S
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

única via. É, assim, uma rede mais complexa, na qual, adi­


mais elevada (SANTOS, 1988). O número de centros neste
cionalmente, as ligações p odem se cruzar sem a mediação
tipo de rede, p o r sua vez, tende a ser m aior que nas redes
de um nó. As redes em questão podem tanto apresentar
descritas anteriorm ente, isto se devendo ao crescente custo
de transferência à m edida que a distância a um dado cen­ uma hierarquia entre os seus nós com o complementarida­
de entre eles.
tro aumenta (CH R ISTA LLER , 1966).
O Planalto O cidental paulista fom ece-nos magníficos U m mapa com rotas aéreas descreve uma rede do
tipo em tela, assim com o o mapa com as ligações telefóni­
exem plos de redes axiais, as quais foram objeto de estudos
cas entre cidades de uma região economicamente com ple­
p o r M O N B EIG (1952). Assim, nos interflúvios dos afluentes
xa. Os fluxos de matérias-primas, bens intermediários e
da m argem esquerda do Paraná, Paranapanema — Peixe,
produtos finais no âmbito de uma complexa e multilocali-
Peixe — Agu apeí e Aguapeí — Tietê, entre outros, o p o ­
zada corporação tendem a originar redes com múltiplos
voam ento ao lon go dos eixos ferroviários gerou, no passado
circuitos, refletindo padrões distintos e complexos de loca-
e em cada interflúvio, uma típica rede axial que, ainda h o ­
lizaçao das diversas unidades da corporação, assim com o a
je , marca notavelm ente as redes urbanas regionais.
A rede circular está descrita através da Figura 3e. natureza, em parte complementar, das funções que cada
unidade desempenha.
Trata-se de red e na qual há um único circuito que abarca
Nas regiões d e econom ia urbano-industrial, a exem­
todos os nós, os quais estão dispostos de m odo circular.
p lo da região com epicentro na m etrópole paulista, a rede
N este tipo de rede não há um centro nodal nitidamente
urbana — a síntese das redes geográficas — caracteriza-se
dominante, ainda que os nós possam diferenciar-se entre
p ela com plexidade das interações espaciais, resultante do
si. Os fluxos, p o r outro lado, podem assumir a direção dos
fato de cada centro desempenhar múltiplas funções, cada
ponteiros de relógio ou a direção contrária.
Exem plos d e redes circulares encontram-se nos cir­ uma originando um específico padrão de interações espa­
ciais. Isto significa que cada centro participa de várias
cuitos dos mercados periódicos, em circuitos de espetácu­
redes geográficas distintas entre si no que se refere à natu­
los teatrais ou circenses e, ao nível intra-urbano, no circui­
reza dos fluxos, intensidade, frequência, agentes sociais e
to dos ônibus “ circulares” : há neste caso, com frequência,
outros atributos organizacionais, temporais e espaciais. Os
dois trajetos em direções opostas.
centros urbanos da rede diferenciam-se entre si tanto
A Figura 3f, finalmente, descreve uma rede de m últi­
com o lugares centrais, com o também, e em muitos casos
plos circuitos, na qual existem várias ligações possíveis
d e m odo predom inante, enquanto centros especializados,
entre um m esm o par de nós. D ifere assim dos demais
padrões que se caracterizam por ligações que, entre os nós revelando uma forte divisão territorial do trabalho entre
eles.
de um m esm o par, somente se realizam através de uma

31 3
312
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
interações espaciais
Considerações finais
C ard o so , M aria Francisca T C (1965) r » ^
Função co m o Canital R « . D ' pina G ran de e sua
As interações espaciais constituem parte integrante e grafia R io 1 t * g^ n a i. Revista Brasileira cie G eo-
grafia, R io d e Janeiro, 25(4): 418-451
tradicional do ternário geográfico. A continuidade desta
tradição, em um mundo que rapidamente tem suas intera­
ções espaciais complexificadas, constitui uma tarefa que os
geógrafos devem assumir, visando contribuir para, através ' í ' bm R e v ° lu « ° " ' Town rta n m n g

de sua visão particular da realidade, tom á-la desm istificada


e inteligível.
O presente texto procurou contribuir para a continui­ m ao pu blicado era 1933 ) " C' <0ng,nal em “ le -

dade dessa tarefa, apresentando aspectos fundamentais so­


^ of
bre a natureza e os padrões espaciais das interações. N ovas
reflexões teóricas são necessárias, mas a demanda p or estu­ U ^ n lM J : ! T u f^ C 0nSmd, U lbaa.
p or M. D ear e A 1 9 „ *” Society, o r g
dos empíricos parece-nos, no m om ento, dotada de uma C orrêa r " 5 a r e A J- Sortt. London, M ethuen.
importância maior.
^ ^ s ' ° b d a 9 8 8 ,-,A R6de * C en -

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renciadas conferiram com plexidade crescente ao conceito
d e m obilidade com o expressão d e organizações sociais, si­
tuações conjunturais e relações de trabalho particulares. A
cada nova ord em política mundial correspondeu uma nova
ord em económ ica com a em ergência de novos fluxos d e ­
mográficos.
D esde as invasões dos povos bárbaros asiáticos até os
migrantes dos novos tem pos, grupos populacionais põem -
se em m ovim ento: lutam pela hegem onia de novos territó­
rios, fogem de perseguições étnicas e repressões múltiplas,
vislumbram a possibilidade de terras e mercados de traba­
lho mais promissores, ou simplesmente perambulam em
busca de tarefas que lhes assegurem a mera subsistência.
Fatos contem porâneos com o a queda do muro de
B erlim , ocorrida em 1989, a crise d o Golfo, a maré huma­
na d e refugiados africanos empurrados pelos confrontos

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P O P U L A Ç Ã O

tribais e ditatoriais, e as lutas nacionalistas, d e qu e a guerra fa ze r com refugiados albaneses qu e ocupam o p orto
civil na Iugoslávia e recen tem en te na Albam a sao trágicos d e B rindisi, na Itália, ou com vietnam itas encerrados
exemplos, atestam o esfacelam ento do m apa d o m undo em cam pos d e refugiados em H on g K on g? C om o agir
(dos países e dos povos) desenhado no pós-Segunda G u er­ diante d o risco d o gu eto? D ep ois d e term os apoiado o
ra. O mundo fo i red efin id o, porém , a partir d a em ergên cia d ire ito d e em igração dos europeus d o L este sob o re-
dos chamados blocos económ icos: M ercado C om um E u ro­ gim erfcomunista^ tem os o d ireito d e im p ed ir aos euro­
peu, N A F T A , A P E C . A conjugação dessa nova geografia peus ocidentais d e m orar e trabalhar nessa parte da
político-económ ica com situações de extrem a m iséria na E u ropa?” (SlM O N , 1991).
Á frica e A m érica Latin a originou fluxos m igratórios d e
magnitude considerável, caracterizando o fen ôm en o m i­ N o âm bito das m igrações internas, igualm ente d iver­
gratório dos anos 90. sificada tem sido a tip ologia dos deslocam entos. Intensos
E n treta n to , a a m e a ç a d e c re s c e n te fle x ib iliz a ç ã o d o s fluxos d e caráter rural-urbano ocorreram nas décadas d e
m ercados d e tra b a lh o c o m o a u m en to d a ex c lu s ã o so cia l, a o 50 e 60, represen tativos d e um p eríod o m arcado p o r cres­
la d o das já v is ív e is m u d an ças nas c o n fig u ra ç õ e s é tn ic o -c u l­ cen te con cen tração fundiária e p ela industrialização nos
turais das áreas d e d e s tin o , te m im p e lid o a co n stru ç ã o d e grandes centros urbanos d o Sudeste B rasileiro. Estabe­
n ovos “ m uros d a v e rg o n h a ” . S e g u n d o A R B E X (1991), esse é leceram -se m igrações interestaduais d e longa distância na
u m m o vim e n to q u e se o p õ e aos flu xos m ig ra tó rio s e q u e década d e 70, especialm ente a d e nordestinos para o eixo
apon ta para a fo rm a ç ã o d e u m n o v o “ m u ro ” se p a ra n d o ric o s R io d e Janeiro — São Paulo e a d e sulistas para as áreas do
e p o b res — os n o v o s “ b lo c o s d e p o d e r ” — n ã o m ais id e o ló ­ C en tro-O este e Am azônia, responsáveis p ela expansão e
gicos, mas es s e n c ia lm e n te e c o n ó m ic o s . consolidação d o m ercadp d e trabalho a n ível nacional.
M ultiplicaram -se as m igrações d e assalariados rurais tem ­
“ Os m ovim entos d e população revelam as feições das porários (volan tes, bóias-frias) especialm ente para as' co­
sociedades contem porâneas. É a sua ‘função de espe­ lheitas da cana e da laranja, expressão d o subem prego sa­
lho’ que se situa em todos os níveis d e análise. C om o zonal e das relações d e trabalho inform ais gerados p ela
tudo que desem penha um a função d e revelação, a m odern ização capitalista no cam po. Fom entaram -se os
migração internacional é um a questão qu e incom oda. deslocam entos sucessivos d e “barrageiros” para a constru­
Ela incom oda as sociedades onde ocorrem as saídas, ção d e grandes obras d e infra-estrutura en ergética ao lon­
pelo julgam ento qu e traz, o “ referen d o pelos pés” , go das áreas d e fron teira, seja internacional (Ita ip u ) ou
que sanciona a ditadura ou a incapacidade d e um re­ nacional (Tucuruí, B albina etc.).
gime. Tam bém incom oda países d e im igração. O que P o r o u tr o la d o , in te n s ific o u -s e a m o b ilid a d e ta n to in -

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P O P U L A Ç Ã O

term unicipal quanto intram unicipal, seja rural-urbana ou Aspectos teóricos da mobilidade espacial
rural-rural, em decorrência da progressiva escassez d o fa­ da população
to r terra, levando à eclosão de m ovim entos sociais d e resis­
tência, d o que são exem plos o M ovim en to dos Sem -Terra A m igração p od e ser d efin ida com o m obilidade espa-
(M S T ) e o das populações extrativistas da Am azônia O c i­ .c ia l da população. Sendo um m ecanism o de deslocam ento
dental. É a contram obilidade em ergin do com o expressão populacional, refle te mudanças nas relações entre as pes­
do d ireito d e “ não m igrar”, ou d e perm anecer no espaço soas (relações de produ ção) e entre essas e o seu am biente
de origem ; é a luta em defesa do “ livre-arb ítrio” quanto ao físico.
espaço a ocupar, a cultura a preservar. É o singular tentan-. A m obilidade tem sido ob jeto de diferentes interpre­
do m anter seu lugar no espaço econ óm ico global. tações ao lon go d o tem po, expressando-se, entre outros,
Outras form as e escalas d e m obilidade ainda poderiam através dos enfoques neoclássico e neomarxista.
ser Iembradks. C om o exem plos, os m ovim entos pendulares A té os anos 70, o fenôm eno m igratório era considera­
intram etropolitanos para trabalho e/ou estudo, assim com o d o a partir d e uma perspectiva neoclássica, dentro de uma
os deslocam entos intra-urbanos de caráter residencial. Es­ visão predom inantem ente descritiva e dualista. Estudavam-
ses refletem tam bém a expansao e a m ultiplicação dos espa­ se os m ovim entos m igratórios especialm ente através da
ços focais da pobreza e da violência: o rearranjo do tecid o m ensuração dos fluxos dem ográficos e das características
urbano em função das mudanças no tecido social. individuais dos m igrantes. D o ponto de vista espacial, a aná­
Assim , parece que algumas perguntas se im põem . lise estatística de fluxos (linhas) e de aglom erações (pontos)
Q ual tem sido, afinal, o significado da m obilidade popula­ era favorecida em detrim ento da visão histórico-geográfica
cional a p artir das diferentes concepções teóricas? Q ual o de um a form ação social. Tal concepção levava a um m odelo
papel das m igrações na construção histórica dos espaços redutivo da realidade onde a sociedade era considerada sob
organizados p elo capitalism o? Quais as suas faces e in terfa­ um en foqu e individualizado, atomístico: cada pessoa busca­
ces em d iferen tes m om entos, contextos e escalas? Quais as va m axim izar suas necessidades. A decisão de m igrar era
perspectivas da m obilidade da força d e trabalho no m undo p ercebida com o decorrente apenas da “decisão pessoal” e
atual ? E ste estudo se p ropõe a abordar alguns tópicos para não pressionada ou produzida por forças sócio-econom icas
a discussão dessas questões. exógenas.
A p a r tir d e m e a d o s d o s anos 70, o fe n ô m e n o m ig ra tó ­
r io fo i r e c o n s id e ra d o so b o e n fo q u e n eom arxista, d o q u e é
e x e m p lo o tra b a lh o d e G A U D E M A R (1977). A m igra çã ç»
p a ssou a s e r c o n c e b id a c o m o “ m o b ilid a d e fo rç a d a p elas

322 32 3
M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P O P U L AÇ Ã O
E X P L O R A Ç Õ E S G E OG R Á F I C A S
e s tra té g ia s d e m o b iliz a ç ã o d a p o p u la ç ã o tra b a lh a d o ra , d as
n ecessid a d es d o c a p ita l” e n ã o m ais c o m o u m a to so b era n o . suas lu ta s sa la ria is, s in d ica is e p o lític a s ?
d e v o n ta d e p e ss o a lT e m re s p o s ta a “ d ife re n ç a s d e re n d a U m n ovo paradigm a das m igrações está em gestação
u rb an a esp era d a ” (T O D A R O , 1970). com o resultante da atual internacionalização da econom ia;
Entretanto, a partir dos novos im perativos da G loba­ desen volve-se numa conjuntura onde d£-iun lado ocorrera
lização com o expressão d o neoliberalism o económ ico e m e r » reestruturação tecn ológica e, d e outro, o aprofundam ento
gem novas formas de gestão do trabalho objetivando o con­ da exclusão social. A pesar das novas tendências, tom a-se
trole de qualidade, mas produzindo sim ultaneam ente a necessário recon h ecer que:
exclusão crescente do trabalhador. O p erfil da produção e o
m ercado se reorganizam a partir de novas jornadas de traba­ “ h á c e r to c o n s e n s o q u a n to às d ific u ld a d e s p r e s e n te s
lho e novos valores de salário. A estruturação da sociedade n o tra to d a c a te g o r ia tra b a lh o ... as m u d a n ça s e m c u r­
capitalista com o uma sociedade do trabalho está em crise. s o n o c a p ita lis m o m u n d ia l in te g ra d o d e n u n c ia m u m a
p ro fu n d a c ris e n o m u n d o d o tra b a lh o . N o e n ta n to ,
“ A crise atual revelada p ela redução do trabalho assa­ n ã o d is p o m o s a in d a d e c a te g o ria s a n a lítica s q u e n o s
lariado, pela am pliação das form as d e trabalho não- p e r m ita m in c o r p o r a r ta is m u d an ças. P o r e n q u a n to ,
assalariado, pela redução d o núm ero d e trabalhadores u tiliz a m o s c o m c u id a d o as d is p o n ív e is ” (C A R L E IA L ,
sindicalizados, p elo arrefecim ento da ação sindical, 1994: 301).
pela taxa de desem prego aberta e p ela própria crise
do E stado-Previdência não parece ter solução já co­ N as próxim as seções serão tratados os con ceitos d e
nhecida” (CARLEIAL, 1994: 300). m ob ilid ad e espacial da população segundo os en foqu es até
então disponíveis: o neoclássico e o neomarxista.
O capital pode escolher a força de trabalho onde
m elhor lhe con vier e da form a que lhe fo r ainda mais ren­
tável, pois crescem d e form a assustadora os estoques d e Pressupostos e representantes da Escola N eoclássica
população excedente. Esta categoria tem sido historica­
m ente reconhecida com o estrutural nas econom ias d o D en tre os estudos tradicionais com en foq u e neoclás­
Sul. Segundo ARENDT (1993: 13), “ o que se nos depara, sico são considerados básicos aqueles desen volvidos p o r
portanto, é a possibilidade d e uma sociedade d e trabalha­ R a v e n s t e i n (1885), L E E (1966) e T O D A R O (1969), dando
dores sem trabalho” . ênfase às características pessoais dos m igrantes e alguns fa­
Surgirá uma nova form a d e im obilidade da força d e tores condicionantes das m igrações entendidos com o “ fa to -
trabalho pela ausência do trabalho? Quais serão as novas
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324
M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P O P U L A Ç Ã O
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

única nova gen eralização feita declarou que os m igrantes


res de atração-repulsão” (p u s h -p u ll fa c to rs ). C om o fatores
d e repulsão estão representadas aquelas situações d e vida tenderiam a ser joven s adultos.

responsáveis p ela insatisfação no local de origem ; já aos fa­ A p artir dos anos 40, os estudos passaram a conside­

tores d e atração correspondem aqueles atributos dos locais rar a equação m igração-distância: trabalhos estudaram as

mais distantes qu e os tom am atraentes. leis da m igração d e R avenstein a partir da form ulação de

H á mais d e cem anos o geógrafo inglês R A V E N S T E IN


m odelos m atem áticos e estatísticos. Para STO U FFER (1940)

(1885) apresentou as “ L eis da M igração” à Sociedade R eal e posteriorm ente D O R IG O e T O B L E R (1983), a m igração

Britânica. Analisou a m igração interna na Inglaterra d en tro representava agora o resultado de uma equação m atem áti­
ca: eram som ados e subtraídos efeitos dos fatores d e eva­
d o contexto da R evolução Industrial, destacando os “ fa to­
res d e atração das cidades” . O s principais tópicos então dis­ são e atração, m ediados p ela distância, esta considerada o

cutidos foram : m igração e distância, m igração p o r etapas, “ obstáculo in terven ien te” a ser vencido.

fluxos e contrafluxos, diferenças urbano-rurais na p rop en ­ LEE (1966) fo i o responsável pela criação de outro

são d e m igrar, predom inância das m ulheres nos desloca­ esquem a geral sobre as m igrações. Sua proposição envolvia

m entos d e curta distância, tecn ologia e m igração, d om i­ um conjunto d e fatores negativos e positivos nas áreas de

nância d o m otivo econ óm ico para os deslocam entos. Seu origem e destino dos m igrantes, um conjunto de obstácu­

trabalho tom ou-se o ponto de partida para os estudos em los intervenientes e um a série d e fatores pessoais. Baseado

teoria da m igração. nas L eis de R avenstein, L e e form ulou uma série d e h ipóte­

D esde então, apesar d e terem surgido centenas d e ses gerais sobre o volu m e das m igrações sob condições va­

trabalhos sob esse enfoqu e, poucas generalizações foram riadas, o desen volvim ento de fluxos e refluxos populacio­

adicionadas. A ausência d e novos aspectos generalizantes nais, assim com o sobre novas características gerais dos m i­

nesses estudos teóricos fo i notada p or LEE (1966), re fe rin ­ grantes, com o segue:
do-se ao fato d e qu e d evid o ao desenvolvim ento das análi­
ses d e equ ilíb rio os econom istas haviam abandonado os es­ H ipóteses sobre o volum e da migração-. 1) o volum e

tudos de população, enquanto os sociólogos e historiadores da m igração d en tro de um determ inado território va­
ria com o grau d e diversificação entre as áreas incluí­
tom avam -se cada v e z mais relutantes em lidar com m aio­
das nesse território; 2 ) o volum e da m igração varia
res volum es de dados estatísticos. A o m esm o tem po, d e-
com a diversificação entre os povos; 3) o volum e da
m ógrafos m ostravam -se satisfeitos com seus achados em p í­
ricos e pouco inclinados a generalizações. C on seqiien te- m igração relaciona-se com a dificuldade de superar

m ente, até os anos 30 fo i pequ eno o avanço no cam po da os obstáculos intervenientes; 4) o volum e da m igração

teoria em m igração. D e acordo com TH O M A S (1938), a varia com as flutuações da econom ia; 5) a menos que

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326
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P O P U L A Ç Ã O

freios severos sejam im postos, tanto o volum e com o a caso d e áreas onde os fatores negativos são desalenta-
taxa de m igração tenderão a crescer com o tem po; 6 ) dores para grupos inteiros de população, p od e até
o volum e e a taxa da m igração variam com o estágio m esm o deixar d e haver seleção; 4 ) considerando
d e desenvolvim ento de um país ou d e uma área. todos os m igrantes um conjunto, a seleção tende a ser
bim odal; 5 ) o grau d e seleção positiva aum enta com a
Hipóteses sobre fluxo e refluxo migratórios: 1 ) a m i­ dificu ldade dos obstáculos intervenientes; 6 ) a p ro ­
gração tende a ocorrer, em grande parte, segundo pensão mais intensa a m igrar em certas etapas d o ci­
correntes bem definidas; 2 ) para cada corren te m igra­ clo vital é im portante na seleção dos m igrantes; 7 ) as
tória im portante desenvolve-se uma contracorrente; características dos m igrantes tendem a ser in term e­
3 ) a eficiên cia da corrente (razão en tre a corren te e a diárias entre as características da população d o lugar
contracorrente, ou a redistribuição líqu ida de popula­ d e origem e da população do lugar d e destino (L E E ,
ção feita pelos fluxos opostos) é alta quando os fatores 1966: 52-57).
principais d o desenvolvim ento d e uma corren te m i­
gratória são fatores negativos que prevalecem no local Tais teorias, p orém , desconsideravam Q problem a crô-
d e origem ; 4 ) a eficiên cia da corren te e da contracor­ m co_dq desem pregQ- urbanQ £^flo subem prego nos países
rente tende a ser baixa quando os locais d e origem e subdesenvolvidos, ignorando a proporção da força d e tra­
d e destino são sem elhantes; 5 ) a eficiên cia das cor­ balho qu e não era absorvida p ela cham ada econom ia
rentes m igratórias tende a ser elevada quando os obs­ m oderna” . E m verdade, não possuíam um expressivo com ­
táculos intervenientes são grandes; 6 ) a eficiên cia d e p on en te social.
uma corrente m igratória varia com as condições eco ­ C om o resposta, T O D A R O (1969) form ulou um m od e­
nómicas, sendo elevada nas épocas d e prosperidade e lo econ óm ico baseado no com portam ento das m igrações
baixa nos p eríodos d e depressão. rurais-urbanas, reconhecendo o fato da existência d e um
sign ificativo extrato d e trabalhadores urbanos desem prega­
Hipóteses sobre as características dos migrantes: 1 ) as dos e subem pregados. Esses trabalhadores estariam sujei­
migrações são seletivas; 2 ) os m igrantes que respon­ tos a um a probabilidade de m igrar para o setor m odern o
dem principalm ente a fatores positivos prevalecentes d a econ om ia urbana, o que caracterizou esse m odelo com o
no local d e destino tendem a constituir uma seleção probabilístico.
positiva; 3 ) os m igrantes que respondem prim ordial­ F oram considerados os diferenciais d e renda espera­
mente a fatores negativos prevalecentes no local d e da na área de origem e na área d e destino. Assim , a decisão
origem tendem a constituir uma seleção negativa; no d e m igrar estaria na dependência da avaliação que o m i-

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS m o b ilid a d e espacial da população

gran te fizesse dessas diferenças d e renda esperada. T odaro Através da m aioria desses estudos, a industrialização
reconheceu igualm ente que a existência dessa massa d e vinha sendo considerada com o a força propulsora das m i­
trabalhadores urbanos desem pregados e subem pregados grações. Fluxos populacionais derivariam da m odernização,
afetaria a probabilidade d o m igrante de encontrar em p re­ isto é, da introdução d e mudanças técnicas no processo

g o no setor m oderno. prod u tivo e, con seqiien tem ente, do aprofundam ento na
O utra questão a ser enfatizada era a ocorrên cia de divisão social d o trabalho, particularm ente entre as esferas
mudanças estruturais nas econom ias dos países em desen­ rural e urbana da produção.

volvim en to. Isto tom ava-se particularm ente significativo, N essa visão neoclássica, a migração era percebida co­
um a v e z que o con ceito d e desen volvim ento econ óm ico m o um m ecanism o gerad or de equ ilíbrio para economias
frequ en tem en te era d efin id o em term os d e transferência em mudança, especialm ente aquelas mais pobres. A m obili­
d e elevadas percentagens de trabalhadores das atividades dade era considerada, portanto, com o fluxo de ajustamento,
da agricultura para as industriais. Assim , esse seria um sinal e fator de progresso económ ico. GAUDEMAR (1977:
m od elo de transferên cia de m ão-de-obra d o setor rural 18) contesta tal concepção ao discorrer sobre “a m obilidade
“ tradicional” para o urbano m oderno . T al processo se dos hom ens enquanto estratégia para perpetuar as desigual­

daria em duas etapas: dades d e espaço” , um a v e z que esse espaço não é mudado
d e form a a atender as necessidades d e sua população.
“ A prim eira etapa encontra o trabalhador rural des­
qualificado m igrando para um a área urbana e in icial­ “ A m ig ra çã o é u m fe n ô m e n o q u e p e rm ite à so cied a d e

m ente despendendo um certo p erío d o d e tem p o no a tin g ir o e q u ilíb r io d e con ju n to p o ssível, co rre sp o n ­

amado setor urbano tradicional. A segunda etapa é d e n d o à m a x im iza çã o d a ‘satisfação’... co m u m cu sto

atingida com o eventual engajam ento num setor de m ín im o , n a tu ra lm e n te , já qu e isso e v ita o d e u m arran ­

trabalho mais m oderno. E ste processo em dois está- j o h a rm o n io so d o s te rritó rio s ” (G A U D E M A R , 1977:18).

gios perm ite-nos form ular algumas questões funda­


mentais em relação à decisão d e m igrar, o tam anho Assim , ao criticar a visão neoclássica, Gaudem ar pon­
proporcional d o setor urbano tradicional, as im plica­ d erava que, sob essa lógica, som ente os fluxos m igratórios
ções do crescim ento industrial acelerado e/ou d ife ­ dos setores ou regiões “ subdesenvolvidos” (salários flexí­
renciais alternativos de renda real urbano-rural quan­ veis, fraca produtividade, produção de bens baseada no
to à participação do trabalho na econom ia m oderna” m o d elo intensivo d e m ão-de-obra) para os setores ou re­

(T odaro , 1969:139) giõ es desenvolvidos (salários rígidos, forte intensidade ca­


p italista da produ ção) constituiriam processo d e ajusta-

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M O B I L I D A D E E SPA CI AL DA POPULAÇÃO
ex plo r a çõ es g eo g r á fica s

extensões, o espaço geoecon ôm ico, isto é, o espaço através


çao nas várias form as d e produção não-capitalista”
d o qual o trabalho se expande para form ar o m ercado d e
(PEEK,1978: 2). trabalho. E ntretanto, ao m esm o tem po que a fo rça d e tra­
balho se estende sobre o espaço, ela precisa se con cen trar

° r r s : ^ c — em pontos específicos, aqueles qu e forem mais úteis à p ro ­


dução capitalista.

“A m o b ilid a d e d a fo r ç a d e tra b a lh o é, a ssim , u m a


c a ra c te rís tic a d o tra b a lh a d o r s u b m e tid o a o c a p ita l e ,
por essa ra zã o , d o m o d o d e p ro d u ç ã o c a p ita lis ta jí A
a c re s c e n te s u je iç ã o d o tra b a ­
fo r ç a d e tra b a lh o d e v e ser, p o rta n to , m ó v e l, is to é,

lh o a o cap ital- m o b ilid a d e fo r ç a d a a c a p a z d e m a n te r o s lo c a is p re p a ra d o s p e lo c a p ita l,

S e gu n d o ^ í t Z s s L e m e c a n is m o n a ex p a n sã o q u e r te n h a m s id o e s c o lh id o s o u im p o s to s ; m ó v e l q u e r
m ig ra ç ã o to m o u -s e m m r «s a n ^ ^ d iz e r a p to p a ra as d e s lo c a ç õ e s e m o d ific a ç õ e s d o seu
d o captalrim o n r o n o ^ . m obilidade d o tra- e m p r e g o ” (G A U D E M A R , 1977: 190).

“penféncas . Para espacial, em particular, era


to lh o , de um a determ inante d o processo D esta form a, a tnnhiTfriarlft ria fo rça fie trabalho p o d e
a o m es m o te m p o d e — ^ q _ d e v id a m e n te ser p erceb ida c o m o d efo rm inada p elas necessidades d o ca­
p ital. Tais necessidades irão se re fle tir em diferenciadas e
d e tT d a f o r a 0 d e s s r l i é x t o . M sim , o processo d e desen-
en en d rd a fo m d ^ q u e am pto v a a alternativas form as espaciais d e fluxos m igratórios, cen trí­
fugos ou centrípetos.
d em a n d a ^ ^ trabalho, criava a o fe ria d e trabalho qu e n e-
A outra dim ensão da m obilidade, a denom inada so-
cial, estaria, p o r sua vez, relacionada à hierarquia d o traba­
“ SSlt; V; a G A U D E M A R (1977) a m obilidade é in trodu rida
lho, originada in icialm en te p ela m anufatura e p osterior­
P j. ria forca d e trabalho se sujeitar ao capital e
m en te p ela grande indústria. A m obilidade social dos tra­
^ " e t a d o l cujo consum o criará o valor e,
balhadores od oireria en tre setores da produção, b em com o
en tre as fruições d o processo produtivo. C onform e G aude­
" " e ° s s T ^ l a m obiUdade do trab afoom ú n c
mar, a expropriação dos pequenos produtores d e seus
d u a sS n tn sb es: a e s p a ria l(h o rizo n ta l) e m eios d e produção, e sua m udança da condição d e cam po­
nês para assalariado, constituem elem en tos da m obilidade
? I° a capacidade d / fo rç a d e trabalho d e conquistar vastas
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334
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P O P U L A Ç Ã O

social, mas produzidas ao n ível espacial da transform ação dispor com o pessoa livre de sua força de trabalho
d o trabalho. com o sua m ercadoria, e o de estar livre, inteiram ente
A discussão apresentada p or Gaudem ar fo i em parte despojado d e todas as coisas necessárias à m aterializa­
criticada p or P E L IA N O (1990: 148) ao argum entar que aque­ ção d e sua força d e trabalho, não tendo, além desta,
le autor refere-se d e form a genérica e sim plista à m obilida­ outra m ercadoria para vender” (M ARX, 1887:147).
d e da força d e trabalho com o m obilidade do trabalho. E m
verdade, o que tem possibilidade d e se m obilizar é a força E ntretanto, o qu e tam bém precisa ser registrado é o
d e trabalho; o trabalho é a força de trabalho em ação, donde b p o de liberdade necessária para o processo d e acumula-
não faria sentido falar d e m obilidade d o trabalho e sim d e çao. A lib erd ad e do trabalhador aparece, pois, com o uma
m obilidade da força d e trabalho. consequência d e sua separação dos m eios de produção,
Para en ten der m elh or o fen ôm en o m igratório a p artir particularm ente a terra. Assim , quando um indivíduo apro-
da ótica neom arxista, ou seja, com o “ m obilidade da força p n a objetos naturais para a sua subsistência, ninguém mais
d e trabalho” , tom a-se im portante relem brar alguns pontos os con trola a não ser e le p róprio. C onform e explicado pela
básicos sobre a produção da força d e trabalho, con form e teoria m aterialista: r
M A R X (1887) originalm ente a concebeu. Isso im plica que
se conheça d e que m aneira e sob quais circunstâncias o C ertas condições históricas são necessárias para que
trabalho se to m a um a “ m ercadoria” . Essa, sendo conside­ um produ to possa tom ar-se uma m ercadoria. É p reci­
rada com o a p rim eira form a de gerar riqu eza no sistem a so qu e não seja prod u zid o com o m eio im ediato de
capitalista d e produção. subsistência d o p róp rio produtor, mas para o capital”
Assim , a posse d o dinheiro, m aquinaria e outros m eios (M a r x , 1887: 517).
d e produção não con verteria um a pessoa em capitalista se
não houvesse o fator “ trabalho” disponível no m ercado. T a l D e acordo com W AKEFIELD (1833),
característica básica da força d e trabalho, segundo a con-
cepção marxista, em erge quando ela tom a-se “livre” e m ó­ “A hum anidade adotou um artificio m uito mais sim­
v e l” , isto é, quando é separada de seus m eios de produção e ples para p rom over a acumulação do capital, e o uso
colocada no m ercado, tom ando-se uma “ m ercadoria . «a c a g ita l quando requ erido, tanto em grandes quan­
tidades com o em form as determinadas: dividiram -se
“ Para transform ar din h eiro em capital tem o possui­ eles próprios em detentores do capital e detentores
d or do dinheiro d e encontrar o trabalhador livre no d o trabalho. M as essa divisão foi, de fato, o resultado
m ercado d e m ercadorias, livre nos dois sentidos: o d e d e um acordo. Sendo o capital de todos igual, um ho-

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EXP LORAÇÕES GEOGRÁFICAS m o bilid ad e espacial da população

m em poupa p orq u e ele espera encontrar outros in c li­ crescim ento quando novos m ercados são abertos...
nados a trabalhar para ele; outros hom ens gastam N estas situações a econom ia precisa d e uma rápida
porque esperam encontrar alguém disposto a e m p re ­ transfusão d e trabalho: uma reserva d e força d e traba­
gá-los” (W A K E FIE LD , 1833: 327). lh o para ser trazida quando necessária e liberada na
m edida em que a dem anda dim inui ou a m ecanização
Entretanto, um a questão parece clara: prossegue. O uso da reserva d e trabalho em ocasiões
d e rápido desen volvim ento económ ico im p ed e qu e o
“ A Natureza não produz, de um lado, possuidores de lu cro seja desviado da acum ulação d o capital para o
dinheiro ou d e m ercadorias, e, d e outro, m eros pos­ trabalho” (P e e t , 1977: 115).
suidores das próprias forças de trabalho. E ssaxelação
n ão tem sua origem na natureza, nenpé-JQ ^sinojiSia As form as originais d e expressão d o cham ado “ exérci­
« q poão social- que fosse com im EAtQdos_os_psiÍQdQS to industrial d e reserva” — flutuante, latente e estagnada
E ia é eviden tem ente^ o re s u h a d o d e u rp — , apesar d e representar antigas categorias d e análisè, m e­
desenvolvim ento-histórico m S m s m J l^ m à n to d e n m i- recem ser reconsideradas com o instrum entos valiosos na
frogjrpvnllições económ icas, d o desaparecim ento d e discussão da m obilidade populacional, tanto nos seus as­
toda uma série d e antigas form ações da produção so­ pectos espaciais com o ocupacionais.

cial” (MARX, 1887: 147). Assim , a porção “ flutuante” da população exceden te


correspon deria aos trabalhadores às vezes repelidos, às v e ­
N a m edida em qu e o capital reprodu z essa relaçao, zes atraídos pelos m odernos setores da econom ia. Essa p o ­
e le tam bém cria uma população excedente d e trabalhado­ pulação já se encontraria na esfera capitalista, mas seria
res a superpopulação relativa ou “exército industrial d e re ­ ocasionalm ente dispensada d evid o à reestruturação d o p ro­
serva” conform e conceituado p or M arx. A o discutir a te o n a cesso prod u tivo. P od eria corresponder, nos dias atuais, ao
marxista da pobreza, PE E T (1977) sustenta que para suas extrato d e trabalhadores que vêm p erden do seus em pregos
operações diárias ou anuais, as econom ias capitalistas p re ­ ou m udando seu setor d e trabalho em decorrência da nova
cisam desse excedente populacional, um reservatório de ordem m undial globalizãnte.

população pobre que p od e ser usada e liberada segundo a Q uanto à população “laten te” , esta atuaria com o um

vontade do capitalista. exceden te d e população rural proven ien te d e uma esfera


on gin alm en te pré-capitalista d e produção, ou m arginal­
“ O desenvolvim ento económ ico não ocorre harm om o- m ente ocupada p e lo capital (cam poneses sem terra ou em
samente sob o capitalism o. H á súbitas explosões de vias d e p erd ê-la ), na condição d e passagem para uma situa-

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
M O B I L I D A D E ESPACI AL DA P O P U L A Ç À o

ção d e proletariad o urbano. N as áreas onde predom ina a


n h ecer a especificid ade histórica do capitalism o nas s o d e
produção d e subsistência, o capitalista através da “ expro­
dades em desenvolvim ento.
priação” dos pequenos produtores da terra, deflagrada p ela
N e s ta e ta p a d a discu ssão p re c is a s e r e n fa tiz a d o q u
m udança nas prévias condições d e trabalho, isto é, p ela
e s tá s e tra ta n d o c o m c o n c e ito s g era is. E n tr e ta n to , a o
m udança na relação sociedade-natureza, estaria criando o
a rg u m e n ta r s o b re re p ro d u ç ã o d a fo rç a d e tra b a lh o es tá
trabalhador “ liv re ” para o m ercado. D esta form a, o m ovi­
considerando u m p a r tic u la r e s tá g io d a p r o d u ç ã o s o c ia l d o s
m ento dos em igrantes rurais em direção às cidades pressu­
in d iv íd u o s . A s sim , o e s tu d o d e ca d a situ ação e x ig e q u e
punha a existência d e um crescente excedente de popula­
m e s m a seja r e fe r e n c ia d a a um d a d o p e r ío d o h is tó ric o a
ção no cam po. Essa população latente pode tam bém apa­
u m m o d o d e p ro d u ç ã o e s p e c ífic o e a u m a á re a p a rtic u la r!
recer d e outras form as nas realidades chamadas d e P ri­
A m obilidade desem penhou fim ções d iferen tes em
m eiro M undo, com o, p or exem plo, a categoria de m ulhe­
d iferen tes m odos d e produção. Nas sociedades prim itivas
res anteriorm ente integradas a um a form a de produção ex­
a m obilidade representava uma form a de sobrevivência pa­
clusivam ente dom éstica.
ra as populações itinerantes que precisavam se deslocar pa­
A terceira categoria de população excedente, a “ es­
ra encontrar alim entos e terras férteis para seus cultivos
tagnada” , correspon deria a uma parte da força d e trabalho
com unitários. N a sociedade capitalista, a m obilidade rep re­
ativa que apresentasse condições d e em prego extrem a­
senta um m eio para a reprodução do capital, um a v e z que
m ente irregular. Segundo M ARX (1887), as condições d e
um a força d e trabalho “liv re ” e “m óvel” tom a-se essencial
vid a desse gru po estariam bem abaixo do nível d o restante
para o processo d e acumulação. Nesse sentido, uma massa
da classe trabalhadora. N a conjuntura do século passado
d e trabalhadores “latentes” ou “estagnados”, seguindo os
onde fo i pensado, esse reservatório d e trabalho p oten cial­
m ovim entos do capital, representa ujn jndicador d e d e s e n ­
m ente barato, corresponderia ao em prego irregu lar da
volvim en to capitalista.
massa d e população em pobrecida e às atividades das p e ­
C on form e discutido p o r H AR V E Y (1974), o progresso
quenas indústrias dom ésticas; h oje p oderia estar relaciona­

■3 I I
acum ulação pressupunha e dependeria da existência de
d o a em pregos extrem am ente instáveis e a baixas rem une­
exced en te d e trabalho que pudesse alim entar a expan­
rações d o trabalho em certos grupos d e trabalhadores nas
da produção. *
econom ias p eriféricas.
Apesar da validade desses conceitos clássicos, ao n ível
“ M e c a n is m o s p re c is a m e x is tir p a ra a u m en ta r o e x c e ­
geral são m uitas vezes insuficientes para explicar a realida­
d e n te d e fo r ç a d e tra b a lh o através, p o r ex e m p lo , d o
d e das form ações sociais contem porâneas. D e acordo com
e s tím u lo a o c re s c im e n to d a p o p u lação, d a g e ra ç ã o d e
o pensam ento d e S L A T E R (1978), tom a-se essencial reco -
flu x o s m ig ra tó rio s , d o e m p re g o e m situ ações n ã o-ca -

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS M O B I L I D A D E ES PACIAL DA POPULAÇÃO

p ita lista s... o u c ria n d o d e s e m p r e g o p e la in tro d u ç ã o ( -g rá fic o - o en foq u e neom am sta, p o r sua vez, considerou a
d e in o v a ç õ e s p o u p a d o ra s d e m ã o -d e -o b ra (H A R V E Y , y m igração com o um processo social qu e pod e te r lon ga
1974: 264). duração.

E m decorrência, a redistribuição d e população rep re­ Se a unidade m igratória deixa d e ser o indivíduo para
sentaria uma resposta às mudanças na geografia da acum u­ ser o grupo, tam bém deixa d e te r sentido investigar-se
lação. A m igração tom a-se, assim, um im portante m ecanis­ a m igração com o um m ovim ento d e indivíduos num
m o na produção da força d e trabalho, já que vincula áreas dado p erío d o en tre dois pontos, convencionalm ente
d e diferentes escalas espaciais (region al, nacional, interna­ considerados com o d e origem e destin ofQ u an do um a
cion al) objetivando a expansão d o m ercado d e trabalho. classe social se p õ e em m ovim ento, ela cria um fluxo
U m a questão teórico-m etod ológica m erece ainda ser m igratório qu e p od e ser d e lon ga duração e que des­
tratada na discussão d o fen ôm en o m igratório: é a rela cio­ creve um trajeto qu e p od e en globar vários pontos d e
nada à defin ição d o m igrante enquanto categoria d e análi­ origem e d e destino” (S lN G E R , 1976: 237).
se. D e acordo com o C enso D em ográfico Brasileiro são con­
siderados m igrantes todos os indivíduos que apresentarem N este sentido, torna-se im portante destacar os fatores
p e lo menos um a m udança d e local d e residência, seja d e estruturais qu e determ inam o surgim ento e os desdobra­
m n m unicípio para ou tro (m igrante interm unicipal), seja m entos dos fluxos m igratórios. A p rim eira m ola propulsora
en tre diferentes categorias d e d om icílio dentro dos lim ites destes deslocam entos seria sócio-econôm ica, determ inada
d o m esm o m unicípio (m igrante intram unicipal). p e lo processo d e acum ulação d o capital; som ente num
_ Entretanto, além dessa defin ição adm inistrativa, ou­ segundo m om en to p od eria se falar nas condições subjeti­
tra poderia ser considerada a p artir da discussão neom ar- vas das m igrações e nas características dos migrantes.
xista: m igrantes são todos aqueles indivíduos qu e seguem U m quadro-resum o (Q u adro 1 ) fo i desenhado o b jeti­
os m ovim entos d o capital sob a condição d e força d e traba- vando id en tifica r algum as diferenças básicas entre os en fo ­
Iho assalariada, ou poten cialm ente assalariada. ques neoclássico e n eom am sta na discussão d o fenôm eno
Assim, enquanto no en foqu e neoclássico a categoria m igratório. \
ínigrante corresponde ao “ indivíduo” , na visão neom am sta
Jse refere a um a classe social, ou m elhor, a determ inados
grupos sócio-econôm icos. Através dos estudos neoclássicos,
a m igração era investigada com o o deslocam ento d e in d iví­
duos num dado p erío d o entre dois pontos d o espaço g eo -
\Z-'
34 2 343
M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P OP UL AÇ ÃO
E XP LOR AÇÕ ES GEOGRÁFICAS

Os contextos dos estudos de mobilidade no Brasil


par alelo E n t r e o s E n f o q u e s n e o c l á s s ic o
e n e o m a r x is t a e m M ig r a ç ã o N esta seção, a discussão do fenôm eno m igratório será

N E O C L Á S S IC O I E N F O Q U E N E O M A R X IS T A ^
relacionada aos contextos histórico, económ ico e p olítico
nos quais os m ovim entos populacionais ocorrem .
D ecisã o d e m igra r: A ênfase dada aos estudos da m igração urbana nos
D ecisã o d e m igra r:
- Migração como mobilidade força-
_ Ato de caráter individual, de livre
da pela necessidade de valorização | anos 50 e 60 e sua percepção com o fenôm eno positivo, tan­
escolha não determinado por fato­
do capital e não como ato soberano to para os indivíduos com o para o desenvolvim ento nacio­
res externos. de vontade pessoal.
- Enfoque atomístico reduzido ao nal, refletia a crescente expansão económ ica do país. R e­
indivíduo; pretensamente neutro e
presentou um p eríod o d e jntensa absorção de m ão-de-obra
apolítico-_____________
Significado: urbana decorrente tanto da política industrial de substitui­
Significado:
_ Elemento de equilíbrio em eco­ - Resultado de um processo global ção d e im portações d o Pós-G uerra quanto da deflagração
nomias subdesenvolvidas, especial­ de mudanças.
- Expressão da crescente sujeição d o Plano de M etas (1956-61) d o Governo Kubitschek.
mente as mais pobres.
- Industrialização e modernização do trabalho ao capital. P orém , a partir d e m eados dos anos 70 e principal-
como força positiva propulsora da
m ente durante a década de 80, o contexto histórico das
migração
M etod ologjM : m igrações mudou: m ultiplicavam -se os contingentes de tra­
M eto d o lo g ia :
I - Análise histórico-estrutural das balhadores desem pregados e subempregados, isto é, ocorria
— Análise descritiva, dualista e seto­
migrações. Visão de processo.
rial do fenômeno. a expansão da população excedente. Iniciou-se a “ migração
I —Enfoque dialético.
- Enfoque causal, isolado e pontual
- Considera a trajetória dos grupos d e reto m o ” para o N ordeste Brasileiro e intensificou-se o
das migrações. _
- Considera as características indi­ sociais.
|
assalariam ento tem porário nas áreas de fronteira.
viduais dos migrantes.
Esse aprofundam ento das relações capitalistas de pro­
C a teg oria d e análise:
C a teg o ria d e aruílise:
- Os grupos sociais.
dução na Am azônia ocorreu em decorrência do progressivo
—O indivíduo.
“ fecham ento da fronteira” para pequenos produtores rurais,
Dim ensão espaço-tem poral:
Dim ensão espaço-tem pond: isto é, a crescente dificuldade desses grupos em ter acesso à
_ Movimento de um conjunto de
— Deslocamento do indivíduo entre
I indivíduos, num certo período do terra. O m odelo neoclássico das migrações passou a ser
dois pontos no espaço (fluxos, li­
tempo, sobre o espaço geográfico.
nhas, pontos). A trajetória pode apresentar vários
questionado, pois perdia seu p od er de explicação geral. U m
_ Visão fixa de mercado de trabalho
pontos e ser de longa duração, pois novo m arco teórico em ergia na tentatiya de explicarmos,
homogéneo e pontual.
I representa um processo e não ape­
nas fluxos isolados.
novos contextos: os estudos neomarxistas em migração.
- Mercado de trabalho multidimen- Se o en foqu e setorial urbano utilizado nas análises
sional em transformação no tempo
anteriores passou a ser questionado, assim com o a preocu-
I e no espaço.

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS M O B I L I D A D E E S P a C I A L DA P O P U L A Ç Ã O

pação e a capacidade d o Estado em solucionar o “p ro b le­ taxas de crescim ento natural apresentadas pelos estoques
m a m igratório” , um fato tom ou-se incontestável: a m anu­ populacionais urbanos seriam suficientes para m anter o su­
tenção de um padrão d e acelerados deslocam entos d e p o ­ posto “equ ilíb rio” de salários pretendido
pulação, estabelecidos tanto a partir d e áreas rurais com o A m igração tom ou-se, então, um fenôm eno indesejá­
d e centros urbanos, em direção às áreas então de interesse v e l nos grandes centros m etropolitanos, mas necessário à
d o capital, sejam essas d o tip o urbano-industrial ou agríco­ reprodução da força d e trabalho, e, portanto, à expansão
la. B E C K E R (1983) eviden ciou a im portância d e tais d eslo­ d o capitalism o em áreas d e avanço da fron teira agrícola. O
cam entos ao registrar qu e nos anos 70 houve um acréscim o traçado d e políticas g overn am entais objetivan do o red ire-
d e 10.680.250 pessoas nas áreas m etropolitanas, 1.831.591 cionam ento dos fluxos populacionais no país indicava as
pessoas no eixo urbano-industrial d e São Paulo e 1.565.047 novas áreas d e interesse d o capital e as suas necessidades
pessoas nas áreas d e avanço da fron teira am azo nica. d e força d e trabalho.
Assim, concom itante a m etropolização da costa orien ­
tal brasileira, surgiram os focos de atração nos espaços até
então m arginalm ente ocupados p elo capital. Assistia-se tan­ O s contextos da m obilidade brasileira até os anos 70
to à expansão da agricultura capitalista no Centro-Sul, asso­
ciada à crescente concentração fundiária, com o ao avanço D urante décadas, os estudos d e m igração no Brasil
da fronteira dem ográfica na Am azônia. Em ergiam novas basearam -se num a visão dualística da estrutura social, en fa­
form as regionais d e proletarização e sem iproletarização da tizando os problem as da esfera urbana. A preocupação
população m igrante. dom inante com fluxos im igratórios urbanos era responsável
Essa força d e trabalho m igrante, tom ada crescen te^ p ela existência d e viés * nas análises. C om o resultado, v i­
m en te disponível, p od e ser ob jeto d e diferen tes in terpreta­ nham sendo subestim ados os fluxos “d e” e “para” áreas ru­
ções d e acordo com o estágio d e crescim ento económ ico e rais, e, em especial, o processo sócio-econôm ico que criava
as características d o contexto espacial n o qual está inserida. teis deslocam entos. As políticas eram form uladas para
C onform e M lR Ó e R O D R IG U E Z (1982) nem sem pre a áreas d e acelerada im igração urbana, m esm o sabendo-se
m igração pôde ser vista com o funcional ao m odelo brasilei­ qu e tanto áreas urbanas com o rurais vinham apresentando
ro d e acumulação, ainda que seja provável que o tenha sido progressiva d eteriorização nas condições d e vida de suas
durante certa etapa d o crescim ento urbano-industrial. Se a populações.
funcionalidade da m obilidade serviu d e argum ento para ex­ A em ergên cia da cham ada “ m arginalidade social ur­
plicar os baixos salários numa etapa d o capitalism o indus­ bana , relacionada ao crescim ento da população exceden­
trial, já não o fo i num estágio posterior, onde apenas as altas te, passou a ser apontada com o o principal e fe ito das m i-

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P O P U L A Ç Ã O

grações, ainda que fosse reconhecida a im portância da m o­ áreas rurais d o O este Paranaense nos anos 30 e direcionou
b ilid ad e na m anutenção dos padrões de acumulação. Sa­ m igrantes para a R egião C entro-O este nos anos 40.
bia-se que durante os anos 50 e 60, etapa de intenso cresci­ A p artir dos anos 60, a concentração da atividade in­
m en to urbano-industrial no país, a am pliação d o “ exército dustrial urbana e o estím ulo à m odernização da agricultura
industrial d e reserva” atuara com o elem ento d e estabiliza­ foram fenôm enos que caminharam juntos no país, produ­
ção dos baixos salários nas cidades. zin d o outra fase de fluxos m igratórios de grande m agnitu­
Esta dissociação entre as esferas rural e urbana apare­ d e direcionados para os contextos urbanos. Para m elhor
ceu não apenas no en foqu e setorial das políticas governa­ com preensão desta dinâm ica global das m igrações convém
m entais, mas tam bém nas atividades acadêmicas através da ressaltar que:
ten d ên cia m etod ológica em separar o urbano da problem á­
tica m aior. M lN G IO N E (1981: 67) discutiu tal questão ao “ É a p artir d e um a visão integrada do urbano-rural-
considerar que “ o urbano tom a-se um instrum ento id e o ló ­ regional, com o feições d e reprodução do capital, que
g ic o usado para isolar do com plexo processo social um a os processos d e desruralização e m etropolização ocor­
p arte da realidade, supostam ente separada” . ridos d e uma form a acentuada no Brasil passam a ter
Apesar da ênfase dada aos estudos m igratórios para significado. A urbanização estaria, portanto, nesta fa­
os quadros urbanos, convém lem brar que já nos anos 30 se, m uito mais ligada ao fenôm eno da expulsão do
foram definidas políticas governam entais objetivando a re- hom em do cam po do que a um aumento considerável
distribuição da população tam bém para os quadros rurais. da oferta dos em pregos urbanos, em especial do
Buscava-se evitar tensões sociais no Sudeste após a crise do industrial” (BECKER,1983: 20).
café, cultura intensiva d e m ão-de-obra.
M A R T IN E (1989) estim ou que aproxim adam ente 3 R efletem ainda, tais conjunturas, estudos m igratórios
m ilhões d e pessoas ( 10 % da população rural total) m igra­ d e caráter predom inantem ente descritivos objetivando a
ram d o rural para o urbano na década 1940-50, em d ecor­ iden tificação e mensuração das principais trajetórias popu­
rên cia da introdução do processo d e industrialização no lacionais, os diferenciais entre nativos e migrantes, a m ar-
país. O s anos 40 e 50 foram caracterizados p o r intensos ginalização da população m igrante nos grandes centros e a
deslocam entos populacionais destinados às áreas urbanas id en tificação d e áreas d e atração ou de evasão populacio­
m ais capitalizadas d o país (o eixo industrial São Paul R io nal, em geral tratadas separadamente.
d e Janeiro). C ontudo, sabia-se da influência exercida p elo A s investigações realizadas no Brasil m etropolitano
E stado na deflagração dos fluxos m igratórios d e destino geralm en te buscavam as diferenças entre naturais e m i­
rural no p eríod o 30-50, quando prom oveu a ocupação das grantes e/ou entre grupos d e migrantes segundo o tem po

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P O P U L A Ç Ã O

d e residência n o m unicípio. A hipótese era a d e que oco r­ lidade receptora. Finalm ente, estudiosos com o MOURA e t
ria sensível m elhora das condições sócio-econôm icas dos a lii (1975) e M e r r ic k & BRITO (1974) defendiam a id éia
m igrantes na m edida em que aumentava seu tem po d e re ­ d e qu e a dim ensão m igratória não era significativa na cons­
sidência no local d e destino. Assumia-se, portanto, que a titu ição dos grupos sócio-econôm icos.
m igração era um fen ôm en o positivo. C ou be a M A R T IN E (1976) explicar tais diferenças, ao
M A R T IN E (1976) alertava para o fato d e que se tal h i­ lançar a h ip ótese da “ retenção seletiva dos m igrantes” , isto
pótese fosse aceita provaria a existência d e um processo é, o processo m igratório seria tão ou mais sujeito ao p ro­
francam ente saudável d e m obilidade social provocado p ela cesso d e sobrevivência dos mais fortes d o que a adaptação
m obilidade g eo g rá fic a ! a m igração estaria cum prindo um progressiva dos m igrantes. E m verdade, o qu e ocorria era a
papel im portante no processo de m odernização, já que expulsão dos m igrantes m enos capacitados, dando origem a
funcionaria com o .m ecanism o através do qual a sociedade um processo d e reem igração ou, segundo esse autor, d e
d e orientação agrícola-tradicional se transform aria em m igrações repetidas” que levariam à em ergên cia d e “ um
sociedade urbano-industrial. Assumia-se qu e a m igração substrato d e verdadeiros nóm ades em busca de oportu ni­
era um fenôm eno positivo: “ Q uem muda, m elhora sinali­ dades passageiras d e subsistência” .
zavam as declarações governam entais, enquanto a Ig re ja O urbano m etropolitan o deixava d e ser, assim, o pon­
Progressista, através da C on ferên cia N acional dos Bispos to fin al na escalada m igratória d en tro de uma V isão tradi­
d o Brasil (C N B B ), adotaria em 1980 o lem a “ Q uem muda, cion al d e m igração p o r etapas rural-urbanas; passava a re­
murcha” . presentar apenas m ais uma etapa en tre as inúm eras desen-
Tais estudos d e abordagem neoclássica apresentaram , volvidas^por um a população tom ada forçosam ente itin e­
porém , resultados variados e muitas vezes contraditórios. rante.
tPara certos autores (S P IN D E L , 1974; C ASTR O e t a lii, 1976) D o p on to d e vista estatístico, um a questão m etod oló­
a população nativa se encontrava sistem aticam ente numa gica ainda se colocava: a im possibilidade de análises com ­
situação sócio-econôm ica superior à dos m igrantes; para parativas da evolu ção dos m igrantes, na m edida em qu e os
outros (M A T A e t a lii, 1973; C O STA , M ., 1975) eram os m i­ grupos em questão não representavam estoques populacio­
grantes que desfrutavam d e m elhor posição sócão-econô- nais com paráveis! O s dados censitários não representavam
m ica, uma v e z qu e representavam um a força d e trabalho o m esm o segm en to d e m igrantes ao lon go das décadas,
seletiva: eram os mais joven s e teoricam ente mais capazes mas grupos distintos.
os que m igravam . O utros pesquisadores com o M A R T IN E e O u tr o t ip o d e es tu d o , c o m o es tim a tiv a s d e m ig ra ç ã o
P E L IA N O (1975) e K E L L E R , E . (1976) já encontraram d ife ­ líq u id a a n ív e l m ic r o r r e g io n a l p a ra o p e r ío d o 1960-70, fo i
renciais variáveis segundo o tip o de fluxo e o n ível da loca­ r e a liz a d o p o r B E C K E R , B R IT O e F R IA S (1979), c o m a c o n -

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EXP LORAÇÕES GEOGRÁFICAS M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P O P U L A Ç Ã O

s e q u e n te id e n tific a ç ã o d e áreas d e a tra çã o e eva sã o p o p u ­ m ercado interno. E m adição, espetaculares projetos foram
la c io n a l. A p e s a r d e t e r s id o fe ito p a ra o c o n ju n to d o p a ís e desenvolvidos, com o a hidrelétrica de Tucuruí e o Projeto
s u g e rir a e x is tê n c ia d e fo r te s d e sig u a ld a d es d e d e s e n v o lv i­ - G rande Carajás.
m e n to ta n to a n ív e l in te r q u a n to in tra -re g io n a l, ta l e s tu d o Entretanto, a im plem entação dessas obras gigantes­
a in d a m a n tin h a u m a fe iç ã o p re d o m in a n te m e n te d e s c ritiv a cas requ eria m ão-de-obra abundante, não disponível na
das es ta tístic a s esp a cia liza d a s. R egião N o rte na ocasião. Coincidentem ente, a Política de
O utros contextos qu e se popularizaram com o palco C olonização O ficial fo i deflagrada p elo IN C R A naquela
d e históricos deslocam entos populacionais d e lon ga distân­ época, 1970. C om o aprofundam ento dos desequilíbrios in-
cia foram o Planalto C entral, com a construção da nova ter-regionais e intra-regionais de crescim ento e o conse­
capital Brasília (1960) e a F ron teira Am azônica dos anos qu en te aum ento da população excedente, m ultiplicavam -
70. O p rim eiro tom ou real a esperada M archa para o
se os fluxos m igratórios em busca de terra e trabalho, tor­
O este” em gestação desde o G overno Vargas, constituindo-
nando-se visível a m obilidade da população a nível nacio­
se a nova capital fed eral com o ponto de partida para a
nal. Esta população m igrante, livre e m óvel, estava pronta
expansão d e novas áreas d e fronteira: a R egião C en tro-
para ser redirecionada.
O este nos anos 60 e a R egião N o rte no in ício dos anos 70.
Os estudos de m igração nesse período (70-80) foram
desenvolvidos a partir de alguns eixos temáticos básicos: a
m agm tude d o fenôm eno m igratório para a Am azônia, a
M ob ilid a d e 'populacional no contexto recente da
p olítica oficial d e colonização, o impacto inicial dos gran­
fron teira am azônica
des projetos, os conflitos fundiários e o êxodo_ rural na
fronteira, bem com o o papel da fronteira no âm bito do
O s m ovim entos mais recentes de ocupação ou (r e )-
capitalism o m oderno.
ocupação dos considerados “ espaços vazios” foram acom ­
panhados d e políticas governam entais fiscais e creditícias A p artir d e meados dos anos 80, outros temas passa­

adi tadas nos anos 70. O Estado propiciou, assim, a im p le­ ram a refle tir o novo contexto d e retração da fronteira: o
m entação d e um colossal sistem a d e m fra-estrutura v i ária e intenso crescim ento urbano da Am azônia e a crescente
en ergética na Am azônia, com o expressão d o Program a d e m arginalidade ou exclusão social dos migrantes, a indus­
Integração N acional (P IN ). As rodovias Transam azo nica, trialização da Zona Franca de Manaus e da província m ine­
B elém — Brasília e a Cuiabá— Santarém foram abertas para ral d o Pará, a questão am biental. Outra vertente à qual
conectar as novas áreas de fron teira agrícola e dem ográfica foram vinculados os estudos d e m obilidade na Am azônia
com outras regiões d o país, expandindo o consum o no dos anos 80 é a que se refere à desorganização e reorgani-

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P O P U L A Ç Ã O

zação dos espaços d e fronteira com o decorrência da im ­ grandes p rojetos sobre os m ovim entos d e população. A
plantação dos grandes projetos. recen te urbanização da fron teira fo i estudada p or S A W Y E R
D entre a vasta bibliografia existente sobre os aspectos (1987) e p o r B E C K E R & M A C H A D O (1982), estas discu tin­
teóricos e em píricos da dinâm ica populacional na A m a­ d o as relações d e trabalho e a m obilidade na A m azôn ia
zônia, nos anos 70 e 80, optou-se p or trazer alguns estudos Brasileira, aspectos retom ados p o r B E C K E R (1990) no con ­
considerados representativos dos variados contextos e te ­ texto da fron teira urbana dos anos 80.
mas da região. O u tro s tem a s a p o n ta d o s p o r O L IV E IR A (1997) e q u e
Assim, registram -se as pesquisas d e caráter dem ográ­ a p re s e n ta m v in c u la ç õ e s c o m as m ig ra ç õ e s r e fe r e m -s e às

fic o do C E D E P L A R (1977, 1979) sobre a dim ensão e carac- p re s s õ e s so cia is s o b r e o s p ro d u to re s a u tó n o m o s e o c a m p e ­

terísticas das m igrações internas na R egião de Marabá/PA s in a to e m g e r a l, is to é , a c o e x is tê n c ia e n tr e e m p re sa s m o ­

e no A cre; as d e H E B E T T E & M A R IN (1979,1982) estudan­ d e rn a s e fo rm a s p rim itiv a s d e e x p lo ra ç ã o d o tra b a lh o . N e s ­


d o a atração e produção da população m igrante incorpora­ sa d ir e ç ã o e s tã o os tra b a lh o s d e H E B E T T E (1991) e LÉ N A e

da aos projetos d e colonização dos estados do Pará e R on - O L IV E IR A (1992), a b o rd a n d o a p ro g re s s iv a p e r d a d e id e n t i­

dônia, a partir da lógica da acumulação capitalista e do pa­ d a d e p o r p a r te das p o p u la ç õ e s n ativas re g io n a is , ou s e ja , as

p e l d o Estado na reprodução social dos m igrantes; T U R Ç H I tra n s fo rm a ç õ e s s o frid a s p e lo s g ru p o s lo c a is , o s c o n s e q u e n ­

(1980) revelando as contradições desse m odelo de ocupa­ te s c o n flito s e m o v im e n to s p o p u la c io n a is.

ção nos Projetos d e Assentam ento da população m igrante U m a análise dos im pactos da industrialização nas áreas
em Rondônia; O L IV E IR A (1985) estudando o processo m i­ d e fron teira (M arabá e Parauapebas no Pará e Açailândia no
gratório no A cre e a intensa e p recoce urbanização da capi­ M aranhão) fo i realizada p or CASTRO (1995), enfocando tan­
tal R io Branco. to a am pliação d o assalariamento dos m igrantes de origem
P or outro lado, destacaram-se os estudos de A R A G O N rural com o os custos sociais e ecológicos desse processo.
& M O U G E O T (1983, 1986) sobre o despovoam ento do te r­ C onvém ainda registrar a im portância dos estudos d e
ritório am azônico e sobre aspectos m etodológicos da ob ­ SALES (1991, 1992, 1994, 1996) sobre o Brasil no con texto
tenção de dados m igratórios a partir da rede de parentesco das m igrações internacionais, e mais recen tem en te sobre
fam iliar; o estudo d e B E N TE S (1983) sobre a Zona Franca as m igrações d e fron teira entre os países d o M ercosul.
e o processo m igratório para Manaus, a partir das inter-re- Para con clu ir essa seção, apresentam -se duas ques­
lações entre processos dem ográficos e sócio-econôm icos; tões percebidas com o relevantes na discussão dac m igra­
as pesquisas d e M A R T IN E (1978, 1982, 1987, 1991), discu­ ções na Am azônia: sua im portância na criação do m ercado
tin do a colonização inserida no crescim ento regional e ana­ d e trabalho region al e a característica d e “ desordem ” qu e
lisando os im pactos dem ográficos, sociais e am bientais dos lh e fo i atribu ída

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EXPLORAÇÕES CEOCRÀFICAS M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P O P U L A Ç Ã O

E m relação ao pap el da m igração na form ação d o devastação acelerada da floresta, mas sem ênfase na desar­
m ercado de trabalho regional, sabe-se que a disponibilida­ ticulação da cultura e na deteriorização d o n ível de vida
d e d e uma força d e trabalho m óvel se apresentou com o das suas populações tradicionais. E isto certam ente com
con dição básica para a realização m aterial dos investim en­ vistas à sua função d e regulador clim ático e fon te de geo-
tos prom ovidos p elo Estado B rasileiro dentro de sua estra­ plasm a internacional.
té g ia d e “ocupação dos espaços vazios” da Am azônia. E n ­ E m verdade, essa desordem física e populacional
tretanto, esta m ão-de-obra m igrante, que era elem en to es­ existe e se expressa na intensificação dos conflitos sociais,
sencial no estágio inicial d e ocupação da Am azônia (anos sendo em decorrência das distintas form as d e apropriação
7 0 ) e que se tom ou pouco dem andada na etapa seguinte da terra, dos recursos naturais e do trabalho, p or diferentes
quando a fron teira se consolidou, passou nos anos 90 a in ­ grupos sociais.
tegra r os crescentes “ bolsões de pobreza” reproduzidos nas A expansão da pecuarização sobre tradicionais áreas
periferias dos centros urbanos da Am azônia. extrativistas ou d e culturas de subsistência, o avanço dos
Quanto à “ desordem m igratória” , tem sido freq iien te- lagos das hidrelétricas inundando significativas porções da
m en te associada a “ desordem ecológica” no m odelo d e flo resta que se constituía em habitat de populações tradi­
ocupação recente da Am azônia. cionais, a presença da garim pagem desenfreada poluindo
O discurso governam ental tem usado de form a estra­ rios, degradando os solos e dizim ando grupos indígenas, a
tég ica os term os “ desordem m igratória” e “ desordem e c o ­ im plantação d e p rojetos d e colonização sobre áreas de
lógica” , em diferen tes m om entos de sua história recen te, seringais e castanhais nativos, a extração aleatória e sem
para justificar a im plantação de políticas diversificadas: con trole d e m adeiras nobres destinada aos m ercados do
redistribuição d e população, valorização d o capital e p re ­ N o rte , o carvoejam ento das matas do L este am azônico
servação am biental, esta últim a especialm ente direcionada ob jetivan do a produção d e carvão vegetal para as fábricas
à m anutenção da biodiversidade requerida a n ível interna­ d e ferro-gusa e d e cim en to do Program a G rande Carajás
cional. Portanto, a aparente desordem m igratória que ca- são a expressão desta “ desordem do progresso” na Am a­
racterizou alguns m om entos da trajetória económ ica brasi­ zôn ia Brasileira.
le ira fo i enfatizada para ju stificar a deflagração da ocupa­ Essa “desordem ecológica” é útil para a vigen te or­
ção da Am azônia: fluxos m igratórios desordenados d e p e ­ d em económ ica, em v e z d e lhe ser nefasta; ela com põe as
quenos produtores que precisavam ser canalizados para os duas faces do m odelo d e desenvolvim ento capitalista em
“ espaços vazios” da fronteira. consolidação no Brasil há muitas décadas e em im planta­
D urante algum tem po, a idéia da chamada “ d esor­ ção na Am azônia a partir dos anos 70. Quanto à aparente
dem ecológica” fo i apresentada através d e im agens da “ desordem m igratória” nada mais é do que a expressão dos

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS M O B I L I D A D E E S P A C I A L DA P O P U L A Ç Ã O

m ovim entos da população, tanto no tem po com o no espa­ riza m ta l r e a lid a d e p re c is a ria m s e r p esq u isa d a s nas esca las

ço, seguindo os interesses d o capital, seja a n ível nacional m ic r o r r e g io n a l e lo c a l.


ou internacional. 2 ) A co m p reen sã o d o s padrões-D Q igrat ónQS d a p o p u la ­
ç ã o e as ca racterística s d a fo rç a d e tra b a lh o n os p a íses d o
“ Sul” re q u e re m q u e se le v e e m co n sid era çã o o m o m e n to h is­
Reflexões fluais tó r ic o -p o lític o e a d iv e rs id a d e das áreas em q u e o fe n ô m e n o
o c o r re , is to é , o p a d rã o d e acu m u lação e as re la ç õ e s sociais

Alguns tópicos em ergiram no d ecorrer dessa discus­ d e p ro d u ç ã o n os d ife re n te s n ív eis p o lític o -e s p a c ia is (lo c a l,

são sobre m obilidade espacial da população e serão regis­ re g io n a l e n a cio n a l) rela cio n a d o s às e s p e c ific id a d e s s ó cio -
trados para posterior reflexão. ec o n ô m ic a s , cu ltu rais e a m b ien ta is d os gru p os en v o lv id o s .

1) E m relação aos níveis d e explicação da realidade, 3 ) Q uanto à equação m igração-m eio am biente, consi-
ambos os m étodos até então utilizados nos estudos de dera-se qu e a m obilidade espacial reflete mudanças nas re ­
m igração (o neoclássico e o neom arxista) p reten dem expli­ lações en tre as próprias pessoas (relações sociais d e produ-
car os fatos através d e um en foqu e extrem am ente geral. O , ção) e, num a outra dim ensão, entre essas e o m eio circun­
m odelo neoclássico, segundo STANDING (1980) não explica dante. E nquanto fator d e redistribuição da população e de
gs relações sociais de produção e, conseqíien tem ente, ig ­ exploração dos recursos naturais, influencia o tip o de
nora as relações d e dom inação na sociedade. Q uanto às g e­ degradação am biental em curso.
neralizações marxistas, perm item atingir apenas certos ní­ N o caso das sociedades mais tradicionais e particular-
veis d e explicação.^ D esta form a, parece essencial qu e se m ente dos grupos extrativistas, a desarticulação das prévias
considere com m aior cuidado as abstrações e que se traba­ relações estabelecidas p ela sociedade com o seu m eio na-
lhe com um m ontante m aior d e dados em píricos em espa­ tural tem levad o à p erd a progressiva dos seus m eios de
ços diferenciados. Assim, estar-se-ia considerando o “p arti­ subsistência e a uma ruptura da cultura anterior. O agrava­
cular” juntam ente com o “geral” na análise dos desloca­ m en to d e tal situação p od e ocorrer a partir das sucessivas
mentos espaciais da população. etapas m igratórias que a população em preender.
P o r ou tro lado, considerando-se que o fen ôm en o m i­ 4 ) A o m esm o tem p o em que a m igração cum pre um a
gratório apresenta diferentes níveis de explicação, uma função esp ecífica na degradação am biental, reforçan do a
outra questão se coloca: a busca p or escalas geográficas pressão da população sobre os recursos e serviços, constitui
adequadas para tais análises. Enquanto o processo geral tam bém um m ecanism o que refle te as transform ações em
pode ser explicado tanto a n ível internacional, nacional ou curso no m ercado de trabalho, isto é, as mudanças nas re ­
até m esm o m acrorregional, as especificidades que caracte- lações d e produção. Isto tom a-se particularm ente sign ifi-

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS M O B I L Í D A D E E S P A C I A L DA P O P U L A Ç Ã O

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