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“Qual o propósito da vida?”, por J. R. R.

Tolkien

Publicado em http://tocace.conselhobranco.com.br/2014/05/19/qual-o-proposito-da-
vida-por-tolkien/

Em 20 de maio de 1969 – há 45 anos – Tolkien escreveu uma carta para Camilla Unwin,
filha de Rayner Unwin. Rayner foi aquele garoto de 10 anos filho do editor Stanley Unwin
que leu os manuscritos de O Hobbit, opinando/aprovando sua publicação ao pai. Logo
após uma semana, a editora George Allen and Unwin escreveu a Tolkien o interesse em
publicar o livro.

Com a finalidade de concluir um trabalho escolar, Camilla escreveu e perguntou para


Tolkien:” Qual o propósito da vida?” Eis que Tolkien responde em sua carta 310:

“ Cara Srta. Unwin,

Lamento que minha resposta tenha se atrasado. Espero que ela chegue à senhorita a
tempo. Que pergunta tão ampla! Não creio que “opiniões”, não importando a quem
pertençam, sejam de muita utilidade sem alguma explicação de como se chegou a elas;
mas sobre esta pergunta não é fácil ser breve.

O que a pergunta realmente significa? Tanto Propósito como Vida necessitam de alguma
definição. É uma pergunta puramente humana e moral ou ela se refere ao Universo? Ela
poderia significar: Como eu deveria tentar usar o tempo de vida que me é concedido?
OU: A que propósito/desígnio os seres vivos servem por estarem vivos? A primeira
pergunta, no entanto, só encontrará uma resposta (caso haja alguma) após a segunda ter
sido considerada. Creio que perguntas sobre “propósito” só são realmente úteis quando
se referem aos propósitos ou objetivos conscientes dos seres humanos, ou aos usos das
coisas que planejam e criam. Quanto às “outras coisas”, seu valor reside em si mesmas:
elas SÃO, elas existiriam mesmo que não existíssemos. Mas uma vez que existimos, uma
de suas funções é a de serem contempladas por nós. Se subirmos a escala do ser até
“outros seres vivos”, tais como, digamos, alguma planta pequena, ela apresenta forma e
organização: um “padrão” reconhecido (com variações) em sua família e prole; e isso é
muito interessante, pois essas coisas são “outras” e não as criamos, e elas parecem provir
de uma fonte de invenção incalculavelmente mais rica do que a nossa.
A curiosidade humana logo faz a pergunta COMO: de que modo isso passou a existir? E
visto que o “padrão” reconhecível sugere desígnio, pode passar para POR QUÊ? Mas
PORQUE, nesse sentido, que implica razões e motivos, só pode se referir a uma MENTE.
Apenas uma Mente pode ter propósitos de qualquer modo ou grau parecidos com os
propósitos humanos. De maneira que imediatamente qualquer pergunta: “Por que a vida,
a comunidade de seres vivos, apareceu no Universo físico?” introduz a pergunta: Existe
um Deus, um Criador-Planejador, uma Mente a qual nossas mentes se assemelham (sendo
derivadas dela), de modo que Ela nos é parcialmente inteligível? Com isso chegamos à
religião e às ideias morais que provêm dela. Dessas coisas direi apenas que a “moral”
possui dois lados, derivados do fato de que somos indivíduos (como em determinado grau
o são todos os seres vivos) mas que não vivemos, não podemos viver, em isolamento e
que possuímos um elo com todas as outras coisas, cada vez mais próximo do elo absoluto
com nossa própria espécie humana.

Assim, a moral deveria ser um guia para nossos propósitos humanos, a conduta de nossas
vidas: (a) os modos pelos quais nossos talentos individuais podem ser desenvolvidos sem
desperdício ou uso impróprio; e (b) sem ferir nossos parentes ou interferir em seu
desenvolvimento. (Para além disto e em uma posição mais elevada situa-se o sacrifício
de si mesmo por amor.)

Mas essas são apenas respostas para a pergunta menor. Para a maior não há resposta,
porque isso requer um conhecimento completo de Deus, o que é inatingível. Se
perguntarmos por que Deus nos incluiu em seu Desígnio, realmente não podemos dizer
mais do que porque Ele assim o Fez.

Se você não acredita em um Deus pessoal, a pergunta: “Qual é o propósito da vida?” é


impossível de ser feita e respondida. A quem ou a que você dirigiria a pergunta? Mas
visto que em um canto estranho (ou cantos estranhos) do Universo as coisas se
desenvolveram com mentes que fazem perguntas e tentam respondê-las, você poderia
mencionar uma dessas coisas peculiares. Como uma delas, eu ousaria dizer (falando com
arrogância absurda em nome do Universo): “Sou como sou. Não há nada que você possa
fazer a respeito. Você pode continuar tentando descobrir o que sou, mas jamais terá
sucesso. E porque você quer saber, eu não sei. Talvez o desejo de saber pelo mero
conhecimento em si esteja relacionado com as preces que alguns de vocês dirigem ao que
vocês chamam de Deus. Na melhor das hipóteses, essas preces parecem simplesmente
louvá-Lo por Ele ser como é, e por fazer o que Ele fez, tal como Ele o fez”.

Aqueles que acreditam em um Deus, em um Criador pessoal, não acham que o Universo
em si é digno de adoração, embora o estudo devotado dele possa ser um dos modos de
honrá-Lo. E enquanto estivermos, como criaturas vivas que somos (em parte), dentro dele
e formos parte dele, nossas ideias de Deus e as maneiras de expressá-las serão em grande
parte derivadas da contemplação do mundo ao nosso redor. (Embora também haja
revelações dirigidas tanto a todos os homens como a pessoas em particular.)

Assim, pode-se dizer que o principal propósito da vida, para qualquer um de nós, é
aumentar, de acordo com nossa capacidade, nosso conhecimento de Deus por todos os
meios que tivermos, e ficarmos comovidos por tal conhecimento para louvar e agradecer.
Para fazer como dizemos no Gloria in Excelsis: Laudamus te, benedicamus te, adoramus
te, glorificamus te, gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam. Louvamo-te,
santificamo-te, adoramo-te, glorificamo-te, agradecemo-te pela grandeza de teu
esplendor.

E em momentos de exaltação, podemos apelar a todas as coisas criadas para que se unam
ao nosso coro, falando em nome delas, como é feito no Salmo 148 e n’A Canção das Três
Crianças, em Daniel II. LOUVADO SEJA O SENHOR . . . todas as montanhas e colinas,
todos os pomares e florestas, todas as coisas que rastejam e os pássaros em voo.

Isso é longo demais, e também curto demais — para semelhante pergunta.

Com os melhores votos

J. R. R. Tolkien.”

CARPENTER, Humphrey; TOLKIEN, Christopher. As Cartas de J. R. R. Tolkien. Curitiba: Arte


& Letra, 2006. p 377.

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