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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

José Sérgio Dias

A educação musical como prática educativa emancipatória:


uma análise da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: CURRÍCULO

SÃO PAULO - SP
2022
José Sérgio Dias

A educação musical como prática educativa emancipatória:


uma análise da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação: Currículo da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Educação: Currículo, sob a orientação
da Profa. Dra. Ana Maria Saul

SÃO PAULO - SP
2022
FICHA CATALOGRÁFICA

DIAS, José Sérgio. A educação musical como prática educativa emancipatória:


uma análise da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio. 89 f.
Dissertação (Mestrado em Educação: Currículo) – Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo, 2022.
Orientadora: Prof.ª Dra. Ana Maria Saul.
Palavras-chave: educação musical; Base Nacional Comum Curricular; Paulo
Freire; práticas de ensino musical; Ensino Médio.
José Sérgio Dias

A educação musical como prática educativa emancipatória: uma análise da


Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação: Currículo da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Educação: Currículo.

Aprovada em: _____/______/_______

BANCA EXAMINADORA

___________________________________

___________________________________

___________________________________
DEDICATÓRIA

Aos estudantes e aos educadores que, cotidianamente,


buscam reinventar a escola pública com ousadia e
esperança.

Ao mestre Paulo Freire, por inspirar e guiar meu percurso


formativo como educador e pesquisador tendo em vista a
reinvenção e experimentação de seu legado na
atualidade.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes)

– Código de Financiamento 001.

Processo nº 88882.462020/2019-01

This study was financed in part by the Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes)

– Finance Code 001.

Process nº 88882.462020/2019-01
AGRADECIMENTOS

A Deus, pela vida e pela capacidade de recriar amorosamente o mundo.


À Profª. Drª. Ana Maria Saul, pela sua grande capacidade de compartilhar
conhecimentos, estímulo e confiança em mim durante o curso e a orientação desta
dissertação. Sua dedicação e exemplo de educadora que vive o que ensina servem
de inspiração e encorajamento para levar adiante o legado freireano, esperançando o
futuro.
À Profª. Drª. Marina Graziela Feldmann e à Profª. Drª Marta Regina Bruno,
pelas valiosas contribuições na qualificação deste trabalho.
Às professoras e professores do Programa de Pós-Graduação em Educação:
Currículo, pelos saberes compartilhados e estímulos.
À amiga de mestrado, Raylane, pela presença carinhosa, atenta e disponível
em todos os momentos deste percurso, sobretudo os mais desafiadores.
Ao amigo Raimundo, por ter me impulsionado a dar continuidade aos estudos
acadêmicos no Programa de Educação: Currículo, abrindo caminhos em mais uma
fase de qualificação profissional.
Ao professor Hugo, pela generosidade em partilhar sua experiência de
educação musical que inspirou e viabilizou esta dissertação.
Aos colegas de mestrado pelos momentos de convivência, partilha e
conhecimento.
Aos meus pais, José Claudio e Jovina, pela vida e cuidado incondicional. À
minha irmã, Gabriela, pelo apoio constante.
A todos, que direta ou indiretamente colaboraram com o meu trabalho.
“Na verdade, não estou no mundo para
simplesmente a ele me adaptar, mas para
transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem
um certo sonho ou projeto de mundo, devo
usar toda possibilidade que tenha para não
apenas falar de minha utopia, mas para
participar de práticas com ela coerentes.”
Paulo Freire

“Se a música não produz carros mais velozes,


ela colabora na formação de cabeças
pensantes e de indivíduos mais sensíveis à
sua condição humana.”
Maria de Lourdes Sekeff Zampronha
RESUMO

A presente pesquisa analisou a proposta da linguagem artística Música no


componente curricular Arte, expresso na Base Nacional Comum Curricular do Ensino
Médio (BNCC-EM), tomando como crivo crítico a pedagogia freireana - que tem no
horizonte a humanização e a construção de uma sociedade mais justa, democrática e
solidária. Paulo Freire, patrono da educação brasileira, é a referência desta pesquisa.
Com abordagem qualitativa, adotamos como procedimentos de investigação a
pesquisa bibliográfica e documental, bem como a realização de entrevista
semiestruturada. Para responder à questão: Como construir práticas de ensino
musical emancipatórias apesar da prescrição expressa na Base Nacional Comum
Curricular para o Ensino Médio de um paradigma neotecnicista?, além da análise de
documentos, foi apresentado um caso ilustrativo que demonstrou uma prática de
educação musical numa escola da rede pública estadual de ensino da cidade de São
Paulo. Buscou-se compreender como essa experiência contribuiu para uma educação
humanizadora com base nas categorias: diálogo, autonomia e criatividade, conceitos
presentes na pedagogia de Paulo Freire, apontando possíveis caminhos para a
reorientação de práticas de educação musical nesta etapa da educação básica. Os
resultados obtidos demonstraram que a contribuição da música, pautada no diálogo e
na valorização da autonomia do educando, auxiliou o desenvolvimento crítico dos
estudantes, suscitando neles uma forma ativa, consciente e sensível de estar no
mundo. Esta dissertação demonstra a necessidade da arte musical como elemento
indispensável para a construção de uma educação emancipatória, comprometida com
a transformação do ser humano.

Palavras-chave: educação musical; Base Nacional Comum Curricular; Paulo Freire;


práticas de ensino musical; Ensino Médio.
ABSTRACT

This research analyzed the proposal of the artistic language Music in the curricular
component Art as described in the Brazilian Common Core Standards for High School.
The analysis was carried out from a critical perspective based on the Freirean
pedagogy, which has as its goal the humanization and the construction of a fairer,
democratic and solidary society. Paulo Freire, patron of Brazilian education, is the
reference for this research. With a qualitative approach, we adopted bibliographic and
documentary research as well as semi-structured interviews. In order to answer the
question: How to build emancipatory music teaching practices despite the prescriptive
orientation and neotechnicist perspective of the Brazilian Common Core Standards for
High School?, in addition to the document analysis, we presented an illustrative case
which demonstrated a musical education practice taken place in a public school in the
city of São Paulo. We sought to understand how this experience contributed to a
humanizing education based on the categories: dialogue, autonomy and creativity,
concepts present in Paulo Freire's pedagogy, pointing out possible ways for the
reorientation of musical education practices at this level of basic education. The results
showed that the contribution of music based on dialogue and the appreciation of the
student's autonomy helped students' critical development, providing them with an
active, conscious and sensitive experience in the world. This dissertation demonstrates
the need for musical art as an indispensable element for the construction of an
emancipatory education, committed to the transformation of the human being.

Keywords: musical education; Brazilian Common Core Standards for High School;
Paulo Freire; music teaching practices; High School.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 13

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15

1 A EDUCAÇÃO MUSICAL NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR DO


ENSINO MÉDIO: (DES)CONTINUIDADES .............................................................. 22

1.1 O ensino de música na educação básica: uma breve trajetória ................... 22


1.2 O percurso da BNCC – As bases da base ....................................................... 26
1.3 O lugar da Arte e da Música na BNCC ............................................................. 30
1.4 Implicações da BNCC na formação e na atuação dos professores de
Arte/Música .............................................................................................................. 35
2 A EDUCAÇÃO MUSICAL COMO DIMENSÃO DA HUMANIZAÇÃO ................... 40

2.1 Educação bancária ou humanizadora? ........................................................... 40


2.2 O papel humanizador da arte na educação..................................................... 42
2.3 A educação musical emancipatória pressupõe o diálogo ............................. 47
2.4 A educação musical emancipatória promove a autonomia........................... 50
2.5 A educação musical emancipatória requer criatividade ................................ 51
2.6 O educador como artista .................................................................................. 53
3 REIVENTANDO A EDUCAÇÃO MUSICAL NA PERSPECTIVA FREIREANA..... 56

3.1 O diálogo como condição para a construção de conhecimento .................. 59


3.2. A autonomia como exercício crítico permanente .......................................... 62
3.3. A criatividade como forma ativa, consciente e sensível de estar no mundo
.................................................................................................................................. 64
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 67

REFERÊNCIAS......................................................................................................... 71

APÊNDICE A ............................................................................................................ 80
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Trama conceitual freireana de uma educação emancipatória.................47


LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABdC Associação Brasileira de Currículo


ABEM Associação Brasileira de Educação Musical
ANPED Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação
BDTD Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNCC Base Nacional Comum Curricular
CEB Câmara de Educação Básica (CEB)
CNE Conselho Nacional de Educação
DCNEM Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio
EM Ensino Médio
FAEB Federação de Arte-educadores do Brasil
FLADEM Fórum Latinoamericano de Educação
IDEB Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
IMSJT Instituto Meninos de São Judas Tadeu
LDB Lei de Diretrizes e Bases Nacionais
MEC Ministério da Educação
OCDE Organização para Cooperação de Desenvolvimento Econômico
PCN Paramentos Curriculares Nacionais
PISA Programa Internacional de Avaliação de Estudantes
PNE Plano Nacional de Educação
SEDUC Secretaria da Educação do Estado de São Paulo
SEMA Superintendência de Educação Musical e Artística
13

APRESENTAÇÃO

No processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquele que se


apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por
isto mesmo, reinventá-lo; aquele que é capaz de aplicar o aprendido-
apreendido a situações existenciais (FREIRE, 1983, p. 16).

O interesse pelo tema de minha dissertação surgiu, primeiramente, por meio


do questionamento sobre o ensino-aprendizagem de Arte no Ensino Médio, ainda
durante meus tempos de estudante na escola pública. Naquele momento, entre os
anos 2005 a 2008, em minha experiência, percebia que o ensino de música estava
praticamente ausente do currículo praticado e, quando aparecia, era subordinado a
um aspecto meramente utilitário e acessório, sem vinculação com a vida.
Nesse mesmo período, deu-se meu encontro com a música pela participação
no grupo de cantores e instrumentistas que animavam as celebrações litúrgicas numa
igreja católica localizada na periferia da cidade de São Paulo. Até então, não sabia
tocar nenhum instrumento ou entoar uma melodia. Aos poucos, fui aprendendo as
primeiras notas e percebendo o valor da música ao estabelecer novas relações
humanas.
Assim, ao cursar o Ensino Médio, sentia a ausência da música nas aulas de
Arte e me questionava sobre como eu poderia contribuir nesse aspecto, de modo que
a experiência vivida na igreja pudesse ser concretizada na sala de aula e aplicada a
situações existenciais. Esse desejo me impulsionou a escolher ser educador e a
ingressar num curso de formação de professores.
Após ter concluído o curso de licenciatura em Letras, comecei a atuar no Ensino
Médio na Rede Pública Estadual de ensino. Em minha prática docente cotidiana, fui
aprendendo, dia após dia, por meio da relação com os educandos, qual era o efetivo
papel do educador para a superação das situações-limite enfrentadas por eles, bem
como suas necessidades concretas, buscando promover um olhar crítico sobre elas.
Além disso, procurei perceber suas demandas e refletir sobre como a Arte
poderia contribuir na emancipação dos jovens para “ser mais”, percebendo a força
hegemônica do ensino tecnicista onde, muitas vezes, a dimensão humana e
transformadora da educação ficava em segundo plano. Nesse percurso, identifiquei a
dificuldade de educadores e educandos em trabalhar a linguagem musical dentro da
área do conhecimento Linguagens e suas tecnologias, prescrito na Base Nacional
Comum Curricular (BNCC).
14

Dessa forma, ingressei no curso de licenciatura em Música a fim de aprimorar


meus conhecimentos na área e de atuar nos diversos contextos culturais e na
comunidade. Essa experiência acadêmica me fez enxergar novas perspectivas para
o ensino da música como prática educativa transformadora, fazendo com que os
estudantes participem do mundo de forma crítica.
No mestrado em Educação: Currículo na PUC/SP, deu-se meu encontro mais
sistematizado com o educador Paulo Freire. Durante as aulas, pude contemplar a
grandeza de seu pensamento e, a partir dele, ressignificar toda a minha prática
pedagógica na busca de reinventar seu legado na atualidade. Senti-me impulsionado
a concretizar uma possível mudança do rumo da educação básica brasileira
valorizando a Arte e, mais especificamente, a Música em suas dimensões artística,
cultural, social e política.
Desse modo, almejo com esta dissertação aprofundar as concepções de
educação musical no quadro da educação crítica, contribuindo com reflexões que
possibilitem a construção/reconstrução de uma prática de ensino da música capaz de
formar educandos criativos e críticos.
Além disso, pretendo fazer indicações para a formação inicial e continuada dos
professores, de modo que eles possam trabalhar na direção da reorientação da
educação musical nas propostas curriculares e nas escolas.
15

INTRODUÇÃO

Uma das funções mais importantes da música é ser guia da evolução da


humanidade, em permanente interação com o meio, o indivíduo, a
comunidade (ZAMPRONHA, 2007, p.171).

A presente pesquisa, nomeada A educação musical como prática educativa


emancipatória: uma análise da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio,
realizou-se ao longo do curso no Programa de Pós-Graduação em Educação:
Currículo, na Pontifícia Universidade de Católica de São Paulo.
Diante das rápidas transformações enfrentadas pela sociedade brasileira em
todas as áreas, em especial na educação, surge a necessidade da compreensão da
música e de seus processos de ensino e aprendizagem tendo em vista seu importante
papel na formação do ser humano.
Durante as últimas décadas, registra-se um aumento significativo de estudos e
pesquisas que versam sobre a importância da arte e da música na escola,
promovendo reflexões sobre seus modos de implantação, de seu ensino e de sua
prática.
É bastante visível que, mesmo que a literatura em Educação tenha disposto de
vários referenciais sobre a temática da educação musical, são percebidos poucos
avanços no nível de qualidade do ensino-aprendizagem dos estudantes, bem como
na reflexão dos educadores sobre suas práticas, tendo em vista a formação de
indivíduos responsáveis por si e pelos outros, livres e autônomos para atuarem de
forma crítica no mundo.
Desta forma, colocamos em realce a educação musical na educação básica
que, ligada aos hábitos, condutas e visões de mundo da sociedade, requer constante
reflexão e discussão, sobretudo para que se compreenda o seu lugar primordial no
sistema educacional e sua potencialidade como ampla ferramenta de conhecimento e
transformação do ser humano.
As legislações que acompanham o desenvolvimento do sistema educacional
brasileiro, sempre atreladas ao contexto histórico, político e econômico, permitem
compreender a multiplicidade e complexidade da educação musical para propor o
debate acerca de novas propostas na formação dos estudantes para a sociedade.
Nesse sentido, nossa pesquisa concentra-se na compreensão de educação
musical presente na BNCC do Ensino Médio (BNCC-EM), homologada em 2018 com
16

a finalidade de orientar a formulação dos currículos dos sistemas e das redes


escolares de todo o Brasil ao longo das etapas e modalidades da educação básica,
indicando as competências e habilidades a serem desenvolvidas com os estudantes
ao longo do aprendizado.
Na BNCC-EM, a música (ao lado das linguagens artísticas: Artes Visuais,
Dança e Teatro) é tratada como “unidade temática” dentro do componente curricular
Arte (que, por sua vez, tornou-se subordinado à área de Linguagens e suas
Tecnologias, com Língua Portuguesa, Inglês e Educação Física). Essa versão está
amplamente fundamentada na Reforma do Ensino Médio, Lei n. 13.415, de 2017
(BRASIL, 2017a) que, ao modificar a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996,
estabelece itinerários formativos que os estudantes poderão construir, sendo
obrigatórias somente as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática no decorrer
dos três anos. Assim, o componente Arte, incorporado nesses percursos eletivos,
poderá se dissolver entre as grandes áreas de conhecimento da última etapa do
ensino básico.
Assumimos como quadro teórico da pesquisa a pedagogia crítica
transformadora consagrada por Paulo Freire, considerando que a obra do autor
“funciona como uma espécie de consciência crítica, que nos põe em guarda contra a
despolitização do pensamento educativo e da reflexão pedagógica” (NÓVOA, 1998,
p. 185) por meio da reflexão e da denúncia de situações desumanizadoras e do
anúncio de ações compromissadas de transformação.
Considerando a obrigatoriedade de implementar a BNCC-EM, esta pesquisa
propõe-se a investigar se, com essa legislação, a prática da educação musical pode
ser reorientada, no sentido de concretizar os princípios da pedagogia freireana que
tem no horizonte a humanização e a construção de uma sociedade mais democrática,
justa e solidária. Assim, cabe a seguinte questão: Como construir práticas de
ensino musical emancipatórias, embora exista uma prescrição na Base Nacional
Comum Curricular para o Ensino Médio que expressa um paradigma
neotecnicista?
Tal pergunta levou-nos a propor como objetivo geral deste estudo: Analisar a
proposta da linguagem artística Música no componente curricular Arte,
17

expresso na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio


tomando como crivo crítico elementos da pedagogia freireana1.
Como objetivos específicos, propomos:
a) Investigar se os conceitos de emancipação e humanização, fulcro da
proposta de Paulo Freire, estão presentes na BNCC-EM, na perspectiva de orientar o
ensino musical;
b) Apresentar e analisar uma prática de educação musical em uma escola
pública como um caso ilustrativo, buscando identificar possibilidades e limites para
uma educação emancipadora;
c) Apontar possíveis caminhos para a reorientação de práticas de educação
musical no Ensino Médio a partir do pensamento freireano.
Segundo Gainza (2011), a música é uma experiência multidimensional, um
direito humano, que deveria estar ao alcance de todas as pessoas, desde seu
nascimento e por toda a vida, bem como uma ferramenta privilegiada de intervenção
social.
Desse modo, compreende-se que os saberes da arte musical como prática
educativa na escola são adquiridos e construídos na relação com as experiências
humanas, transcendendo a mera experiência sensorial e proporcionando um
conhecimento que não tem um fim em si mesmo, ao favorecer o desenvolvimento de
sentidos e significados por meio da proposição de novas formas de sentir e pensar e
ao guiar os sujeitos para a leitura plástica, poética e expressiva do mundo.
(ZAMPRONHA, 2007)
Entretanto, tendo em vista a potencialidade e a vitalidade desses saberes que
se produzem, se articulam e se mobilizam na reflexão e ação da prática educativa a
partir do pensamento freireano, inscreve-se este estudo nos parâmetros da
investigação qualitativa. Assim, tendo como objeto de estudo a arte musical como
prática educativa em sentido emancipatório, optamos por encaminhar nosso estudo
por meio da pesquisa qualitativa, bibliográfica e documental, por compreender que
seus princípios convergem para o propósito pretendido neste estudo.
A abordagem de pesquisa qualitativa, como a palavra sugere, partilha:

1 A utilização do adjetivo “freireano” e suas flexões, assumidos nesta pesquisa, é uma questão de
preferência, pela compreensão de que a manutenção da grafia integral do sobrenome do autor destaca
com mais vigor a proveniência, a origem das produções, ou seja, o pensamento de Freire (SAUL; SAUL,
2013).
18

o pressuposto básico de que a investigação dos fenômenos humanos,


sempre saturados de razão, liberdade e vontade, estão possuídos de
características específicas: criam e atribuem significados às coisas e às
pessoas nas interações sociais e estas podem ser descritos e analisados,
prescindindo de quantificações estatísticas (CHIZZOTI, 2006, p. 29).

Segundo Lakatos e Marconi (2003, p. 183) a pesquisa bibliográfica “não é mera


repetição do que já foi dito ou escrito sobre certo assunto, mas propicia o exame de
um tema sob novo enfoque ou abordagem, chegando a conclusões inovadoras.”
Assim, pretendemos entrar em contato com a obra de Paulo Freire e de estudos
correlatos que discutem a música como dimensão da humanização.
Intentamos, também, a realização de pesquisa documental na BNCC-EM para
averiguar se nela estão presentes, explícitas ou subjacentes, as concepções
freireanas de educação emancipatória. Tal modalidade de pesquisa se faz importante,
pois não somente responde a um problema, mas proporciona uma ampliação da visão
desse problema (GIL, 2002).
Ainda acerca da pesquisa documental, Lüdke e André colocam que:

Os documentos constituem também uma fonte poderosa de onde pode ser


retirada evidências que fundamentem afirmações e declarações do
pesquisador. Representam ainda uma fonte “natural” de informações. Não
são apenas uma fonte de informação contextualizada, mas surgem num
determinado contexto e fornecem informações sobre esse mesmo contexto
(LÜDKE; ANDRÉ, 2003, p. 39).

A fim de analisar uma prática de educação musical com potencialidade de


desenvolver uma educação emancipatória, numa escola da rede pública estadual da
cidade de São Paulo, realizamos uma entrevista semiestruturada com o propósito de
reunir os aspectos que entendemos ser expressivos dessa realidade, considerando o
contexto e os objetivos da pesquisa.
Segundo Manzini (1991):

[...] a entrevista semiestruturada está focalizada em um assunto sobre o qual


confeccionamos um roteiro com perguntas principais, complementadas por
outras questões inerentes às circunstâncias momentâneas à entrevista. Para
o autor, esse tipo de entrevista pode fazer emergir informações de forma mais
livre e as respostas não estão condicionadas a uma padronização de
alternativas (MANZINI, 1991, p. 1540).

O emprego da entrevista em nosso estudo objetiva identificar nas atividades


educativas musicais, bem como na prática do ensino musical propriamente dita,
elementos que possam sinalizar uma abertura para a concretização de princípios e
19

práticas de concepção educativa emancipatória. De acordo com Duarte (2004, p. 215),


“as entrevistas são fundamentais quando se precisa/deseja mapear práticas, crenças,
valores e sistemas classificatórios de universos sociais específicos, mais ou menos
bem delimitados” E, ainda:

[...] se forem bem realizadas, elas permitirão ao pesquisador fazer uma


espécie de mergulho em profundidade, coletando indícios dos modos como
cada um daqueles sujeitos percebe e significa sua realidade e levantando
informações consistentes que lhe permitam descrever e compreender a
lógica que preside as relações que se estabelecem no interior daquele grupo
(DUARTE, 2004, p. 215).

Ao realizar a busca por trabalhos sobre a temática em questão que pudessem


cooperar no desenvolvimento desta pesquisa, foram selecionados estudos correlatos
relacionados às produções científicas disponíveis na base de dados Biblioteca Digital
Brasileira de Teses e Dissertações (BDD) por meio de combinações com as seguintes
palavras-chave: “Base Nacional Comum Curricular”, “Ensino Médio”, “Escola Pública”,
“Educação musical” e “Paulo Freire” e em descritores que pudessem melhor delimitar
o tema de pesquisa.
No levantamento das produções, foram feitas diversas buscas com descritores
diferentes para ter acesso a trabalhos que dialogassem com a educação musical em
diferentes aspectos, que são explicitados a seguir:
Partindo do descritor “educação musical na escola pública”, selecionou-se a
pesquisa Políticas públicas educacionais: prática musical na escola pública paulista,
de Leila Guimarães, que discute o papel do ensino da música nos diferentes períodos
históricos, a partir da promulgação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Além disso, versa sobre a arte na educação brasileira, enfocando a prática
musical nas escolas de ensino fundamental no qual se faz um histórico da educação
musical no Brasil, considerando a visão de alguns educadores por meio de entrevistas
com professores de Artes da rede pública estadual e municipal de São Paulo para se
chegar a um provável panorama da prática musical na rede pública do Ensino
Fundamental e Médio nos últimos anos.
Ao utilizar os buscadores “educação musical no ensino médio”, selecionou-se
a pesquisa Aula de música e escola: concepções e expectativas de alunos do Ensino
Médio, de Cristina Bertoni dos Santos, que busca compreender as relações que
permeiam as concepções e expectativas de alunos do Ensino Médio a respeito da
aula de música na escola, examinando suas concepções e significados atribuídos aos
20

processos de ensino e aprendizagem musical e à aula de música no espaço escolar.


Para tanto, analisa as falas dos estudantes que permitiram perceber que a música tem
sentido para eles e que a aula de música na escola é reconhecida como um
espaço/momento de aprendizagens específicas relacionadas à música, contribuindo
para o desenvolvimento do sujeito no sentido amplo.
Ao buscar “educação musical na BNCC”, elegeu-se a pesquisa Configurações
do ensino de música frente ao componente curricular Arte: um estudo com professores
de Música da Educação Básica, de André Rangel de Carvalho, que propõe a
compreensão sobre qual o lugar da música na aula de Arte e no currículo escolar.
Além disso, busca refletir sobre a atuação dos professores de música nas aulas de
Arte e como esses estão interpretando e aplicando a BNCC em suas práticas
pedagógicas, oferecendo pistas que contribuam com a formação de professores de
música para a atuação na educação básica frente aos desafios impostos pelo
componente curricular Arte.
Por fim, ao buscar por “educação musical e Paulo Freire”, encontrou-se a tese
de Doutorado Tecendo Cidadania no Território da educação Musical: A experiência
do Programa Guri Santa Marcelina, de Marta Regina Pastor Bruno, a qual analisa a
contribuição da aliança do trabalho social com a educação musical como prática de
um currículo orientado nos preceitos de Paulo Freire, trazendo embasamento teórico
para pensar a educação musical no sentido emancipatório. Esse trabalho, tomado
como referência para a presente discussão, ao utilizar um espaço educativo não-
formal regido sob os princípios da educação popular, serve como inspiração para uma
educação musical transformadora no ensino regular.
A partir desse levantamento, nosso estudo pretende dar continuidade às
discussões sobre a importância da arte e da música na escola, especialmente na
última etapa da educação básica, sob a perspectiva crítica, tendo em vista a formação
de educandos criativos e autônomos. Outrossim, aspira oferecer contribuições aos
professores, responsáveis pelo componente curricular Arte, de modo que, apesar da
obrigatoriedade da BNCC, possam reorientar suas práticas no sentido emancipatório.
A fim de compilar os resultados do estudo desenvolvido nesta pesquisa, este escrito
será estruturado em três capítulos, precedidos pela Apresentação, por esta
Introdução, e seguidos pelas Considerações finais.
O primeiro capítulo, A educação musical na Base Nacional Comum Curricular
do Ensino Médio: (des)continuidades, traça uma breve trajetória do ensino de música
21

na educação básica brasileira por meio das legislações existentes até chegar na
BNCC, focalizando a situação da Arte/Música nesses documentos e refletindo sua
incidência na formação e na atuação dos educadores.
No capítulo A educação musical como dimensão da humanização, são
apresentados os referenciais freireanos para pensar a educação musical como prática
educativa emancipatória ao utilizar as categorias de análise (processos
humanizadores): diálogo, autonomia e criatividade.
No terceiro capítulo, Reinventando a educação musical na perspectiva
freireana, examinaremos os fundamentos do ensino de música para estudantes do
Ensino Médio presentes na BNCC, apresentando e analisando uma prática bem
sucedida em uma escola pública como um caso ilustrativo no qual foram buscados
elementos que pudessem apontar possíveis caminhos para a reorientação de práticas
de educação musical na referida etapa da educação básica, a partir do pensamento
de Paulo Freire.
Encerramos o trabalho tecendo as Considerações Finais, demonstrando a
importância de se reinventar o legado de Paulo Freire apesar da BNCC, apontando
caminhos para a construção de práticas de ensino musical transformadoras.
22

1 A EDUCAÇÃO MUSICAL NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR DO


ENSINO MÉDIO: (DES)CONTINUIDADES

É preciso que a educação esteja - em seu conteúdo, em seus programas e


em seus métodos - adaptada ao fim que se persegue: permitir ao homem
chegar a ser sujeito, construir-se como pessoa, transformar o mundo,
estabelecer com os outros homens relações de reciprocidade, fazer a cultura
e a história (FREIRE, 1980, p. 39).

1.1 O ensino de música na educação básica: uma breve trajetória

Faz-se necessário conhecer a trajetória do ensino de música na educação


básica brasileira por meio das legislações existentes no intuito de compreender esse
percurso e debater novas propostas na formação dos estudantes para a sociedade.
Nesse sentido, revisitar processos históricos permite reconhecer o importante papel
da educação musical, bem como sua multiplicidade e complexidade.
No século XIX, precisamente no ano de 1851, por meio do decreto nº 630 de
17 de setembro, encontrou-se pela primeira a vez a menção ao ensino de música,
tendo sua normatização três anos depois, em 1854, pelo Decreto Lei nº 1.331-A, que
previa noções de música e exercícios de cantos para os estudantes do segundo grau.
Após a conclusão, poderiam optar pela instrução Pública Secundária, que englobava
também o ensino de música, apesar de ter como foco as letras (GREZELI;
WOLFFENBÜTTEL, 2021).
Ao ser instaurada a República, em 1890, uma nova reforma educacional é
efetivada por meio do Decreto nº 981, que estende o ensino de música, naquele
momento intitulado Elementos de Música, a todas as faixas etárias e aos estudantes
mais novos do primeiro grau, inclusive. Além disso, estabeleceu orientações sobre a
formação específica para professores que fossem lecionar a partir do segundo grau.
Ao adentrar o século XX, no ano de 1931, por meio do decreto nº 19.890,
ocorreu uma notável mudança no ensino de música, que passou a se chamar Canto
Orfeônico, marcado por práticas grupais de canto. O maestro Heitor Villa-Lobos foi o
grande expoente dessa prática de educação musical, defendendo uma música
genuinamente brasileira com viés nacionalista, utilizando-se do folclore para
propagação de suas concepções musicais2. É importante destacar que, em 1932,

2 Segundo Fuks (1991, p. 120), os objetivos do canto orfeônico eram, “segundo Villa-Lobos,
desenvolver, em ordem de importância: 1º - a disciplina; 2º - o civismo e 3º - a educação artística.”
23

Villa-Lobos assumiu a Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA) na


função de diretor, que tinha por objetivo a orientação, planejamento e
desenvolvimento do estudo da música nas escolas em todos os níveis. Dez anos
depois, em 1942, houve a criação do Conservatório Brasileiro de Canto Orfeônico –
formação dos professores para ministrar a disciplina de Canto Orfeônico no Brasil até
o início da década de 1960. Tal estratégia foi considerada efetiva tendo em vista o
baixo investimento que a prática do canto coral apresenta, além de democratizar o
contato com as aulas de música no país na tentativa da formação uma identidade
nacional.
No ano de 1961, por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação n.º 4.024
(BRASIL, 1961), o Canto Orfeônico deu lugar à disciplina de Educação musical, que
perdurou durante 10 anos, quando foi instituída a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional nº 5.692, de 1971, gerada sob o regime militar e que retirou a
educação musical do currículo escolar, sendo essa substituída pela atividade
educativa Educação Artística, que passou a incluir as linguagens artísticas: música,
artes plásticas, artes cênicas e desenho (Parecer nº1284/73). A Lei 5692/71, que
promoveu a reforma do ensino de primeiro e segundo grau, acompanhou uma
tendência tecnicista desencadeada pela influência do mercado de trabalho na
educação. Naquela época, também foi criado o curso de Licenciatura em Educação
Artística ou licenciatura curta, que consistia na formação polivalente do professor de
Arte. Após o término do curso, era possível cursar a licenciatura plena com habilitação
específica em Artes Plásticas, Desenho, Artes Cênicas ou Música. Dessa forma,
houve um esvaziamento da presença de profissionais de educação musical nas
escolas (HENTSCHKE; OLIVEIRA, 2000). Segundo Grezeli e Wolffenbüttel (2021):

Essa proposta fez com que alguns professores de música se afastassem do


contexto escolar, buscando o trabalho em conservatórios ou escolas
especializadas em música. Desse modo, a relação com o conhecimento
musical perdeu o seu acesso democrático, tornando, de certo modo, mais
difícil o acesso a este conteúdo. Portanto, entende-se ter ocorrido a perda de
um valioso espaço conquistado pela educação musical nas escolas durante
120 anos, ou seja, desde o Decreto n.º 630, de 1851, ainda durante o Império,
um retrocesso sem precedentes sobre o ensino de música na história da
educação (GREZELI; WOLFFENBÜTTEL, p. 8, 2021).

Percebe-se, no entanto, que a música, nesse período não consegue adentrar


significativamente no espaço escolar, e a prática da Educação Artística, diferente de
24

escola para escola, termina sendo dominada pelas artes plásticas, embora,
reiteradamente, atreladas a uma prática polivalente (FERRAZ; SIQUEIRA, 1987).
No ano de 1996, foi sancionada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)
nº 9.394, orientando que “o ensino de Arte, especialmente em suas expressões
regionais, constituirá componente curricular obrigatório da Educação Básica de forma
a promover o desenvolvimento cultural dos alunos” (BRASIL, 1996, art. 26). Nota-se
que a denominação “Educação Artística” é substituída por “Ensino de Arte”, cujas
possibilidades de disciplinas ofertadas poderiam ser Artes Visuais, Dança, Teatro ou
Música. Dessa forma, o texto da referida lei não especificava as linguagens artísticas
mencionadas, apenas informava que a Arte é um componente curricular obrigatório.
Assim, os docentes atuariam em uma dessas disciplinas na escola considerando sua
formação profissional (BRASIL, 1996).
Nesse sentido, o Ministério da Educação (MEC) elaborou a partir do ano de
1997 os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental e
Médio. Esses documentos consistem em diretrizes que objetivam orientar os
educadores a partir da normatização de aspectos essenciais referentes a cada
disciplina. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, embora não possuam caráter
obrigatório, constituem o primeiro documento oficial de orientação curricular em nível
nacional sob o vigor da LDB de 1996 e orientaram as ações do Ministério da
Educação, bem como as práticas pedagógicas, avaliações e investimentos no ensino
básico.
No Ensino Médio, a Arte, disciplina contida na área de Linguagens, Códigos e
suas tecnologias, integra a Base Comum e não possui uma proposta específica nos
PCN (BRASIL, 1998, 1999), mas tem a intenção de dar “continuidade aos
conhecimentos de arte desenvolvidos na educação infantil e fundamental em música,
artes visuais, dança e teatro” (BRASIL, 1999). A respeito das habilidades e
competências da linguagem musical e sua contribuição no desenvolvimento dos
estudantes, o documento versa que:

[...] construindo sua competência artística nessa linguagem, sabendo


comunicar-se e expressar-se musicalmente, o aluno poderá, ao conectar o
imaginário e a fantasia aos processos de criação, interpretação e fruição,
desenvolver o poético, a dimensão sensível que a música traz ao ser humano
(BRASIL, 1998, p. 80).
25

Em relação ao tratamento das várias linguagens artísticas, as decisões ficavam


sob responsabilidade de cada estabelecimento de ensino. Essa flexibilidade buscava
abranger os diversos contextos escolares do Brasil, fato que, no entanto, dava
margem para que as escolhas das unidades escolares não contemplassem todas as
linguagens (PENNA, 2012).
Ao adentrar o século XXI, houve um grande esforço de artistas, educadores
musicais e associações, como a ABEM (Associação Brasileira de Educação Musical)
no sentido de aprimorar a legislação, considerando a música como componente
curricular nas escolas. Tal esforço, resultou na aprovação da Lei n.º 11.769, de 2008,
que alterou o Art. 26 da LDB 9.394, de 1996 estabelecendo que: “§ 6º A música deverá
ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular de que trata o
§ 2o deste artigo (NR)” (BRASIL, 2008).
Não obstante, a mesma legislação recebeu o veto ao Art. 2º, que versava sobre
a obrigatoriedade da formação específica do educador musical, contrapondo-se à
própria LDB (9394/96), que garantia a formação plena em licenciatura para atuar na
Educação Básica. Assim, para ministrar as aulas de música não seria necessário um
profissional específico da área. Como consequência disso, observa-se uma
diversidade de níveis de formação dos profissionais, inclusive, sem formação
acadêmica ou oficial, dos músicos brasileiros ligados ao ensino de música nas
escolas.
Admite-se a relevância da Lei nº 11.769 de 2008 para o ensino de música nas
escolas básicas do Brasil. No entanto, por não ser apresentada como um componente
curricular específico, mas somente como conteúdo obrigatório, abriu-se espaço para
discussões diversas e acentuadas sobre o papel que a música poderia ter no ambiente
escolar (SOUTO; WOLFFENBÜTTEL; PIMENTEL, 2019).
Em 2016, o Ministério da Educação, por meio do Conselho Nacional de
Educação (CNE) e da Câmara de Educação Básica (CEB), apresentou a
normatização para o ensino de Música com a Resolução n.º 2, que “Define Diretrizes
Nacionais para operacionalização do ensino de Música na Educação Básica”
(Resolução CNE/CEB nº 2/2016) (BRASIL, 2016) com a seguinte finalidade:

Art. 1º Esta Resolução tem por finalidade orientar as escolas, as Secretarias


de Educação, as instituições formadoras de profissionais e docentes de
Música, o Ministério da Educação e os Conselhos de Educação para a
operacionalização do ensino de Música na Educação Básica, conforme
26

definido pela Lei nº 11.769/2008, em suas diversas etapas e modalidades.


(BRASIL, 2016).

É importante destacar que na resolução nº 2 de 2016 há uma orientação sobre


a formação específica do educador para as aulas de música na escola:

V - organizar seus quadros de profissionais da educação com professores


licenciados em Música, incorporando a contribuição dos mestres de saberes
musicais, bem como de outros profissionais vocacionados à prática de ensino
(BRASIL, 2016, p. 1).

Tal orientação está em consonância com a meta 15 do Plano Nacional de


Educação:

Garantir um regime de colaboração entre a união, estados, distrito federal e


os municípios que todos os professores da educação básica possuam
formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área
do conhecimento em que atuam (BRASIL, 2010, p. 88).

No mesmo ano, por meio da Lei nº13.278 de 2016, houve a alteração do


parágrafo 6º da LDB nº 9.394 de 1996 (BRASIL, 1996) que incluiu as artes visuais, a
dança e o teatro enquanto linguagens que constituirão, junto à música, o ensino de
Arte, estando inseridos na área das Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. A Lei
também determinou o prazo de cinco anos para que a nova orientação se
concretizasse nas escolas.
A versão final da BNCC correspondente às etapas da Educação Infantil e do
Ensino Fundamental foi homologada em 2017, definindo o conjunto orgânico e
progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao
longo das etapas e modalidades da educação básica. (BRASIL, 2017b) Assim,
veremos como foi o seu processo de elaboração, culminando na homologação da 3ª
versão do documento referente ao Ensino Médio em 2018:

1.2 O percurso da BNCC – As bases da base

Segundo Macedo (2014), a discussão sobre a elaboração de uma base comum


em nível nacional não é recente no Brasil, remontada desde os anos 1980. Dessa
forma, a LDB promulgada em 1996 propõe a construção de uma base nacional
comum:
27

Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino


médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada
sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte
diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade,
da cultura, da economia e dos educandos (BRASIL, 1996).

A proposição da construção de uma base nacional comum se associou à


discussão sobre diretrizes curriculares em nível nacional, tendo como referência a
própria LDB (MACEDO, 2014). No Art. 9º, vê-se a incumbência da união que deverá:

IV - estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os


Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino
fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos
mínimos, de modo a assegurar formação básica comum (BRASIL, 1996).

Nesse sentido, coube ao Conselho Nacional de Educação (CNE), criado em


1995 com o objetivo de determinar “normativas, deliberativas e de assessoramento
ao Ministro de Estado da Educação e do Desporto” (BRASIL, 1995, artigo 7º), o
estabelecimento dessas competências e diretrizes que garantissem uma formação
básica comum.
Assim, em 1996, o Ministério da Educação (MEC) enviou ao Conselho Nacional
de Educação (CNE) a versão final dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). O
Conselho, por sua vez, recusou a proposta pelo nível de detalhamento que possuía e
elaborou diretrizes mais gerais, conservando os PCN como alternativa curricular não
obrigatória (MACEDO, 2014).
As Diretrizes Nacionais Curriculares eram mais abrangentes, pois iriam
sistematizar princípios e diretrizes gerais da educação básica que aparecem na LDB
de 1996, traduzindo-se em orientações para subsidiar a formulação, execução e
avaliação dos projetos políticos pedagógicos das escolas tendo em vista assegurar a
formação básica comum nacional. Segundo Del-Ben (2020), já havia uma Base
Nacional Comum que está na LDB e em outras orientações curriculares. Tais
documentos não faziam referência a uma Base Nacional Comum Curricular, mas a
uma Base Comum que serviria de apoio para Estados e Municípios constituírem seus
currículos (DEL-BEN, 2020).
Então, o que justificaria a criação de uma Base Nacional Comum Curricular?
Segundo Macedo (2014), “vivia-se, em meados da década de 1990, o auge da
definição de políticas educacionais nacionais marcadas por intervenções
28

centralizadas no currículo, na avaliação e na formação de professores” (MACEDO,


2014, p. 1533).
Sendo assim, havia uma demanda de diferentes setores da sociedade que
vinculavam a qualidade da educação a currículos centralizados ou à padronização
curricular. Foi o que ocorreu em diversos países em contextos distintos, cujas razões
para a criação de uma base curricular comum são variadas e estão atreladas às
circunstâncias sociopolíticas, econômicas e sociais (MACEDO, 2014).
Del-Ben (2020) salienta que a Base surgiu da demanda de governos que
defendem uma política educacional neoliberal ao propor uma perspectiva de
educação seletiva e minimalista para aqueles que irão exercer trabalhos simples
durante toda a vida, priorizando a educação básica, restringindo-se às necessidades
básicas de aprendizagem onde, segundo Girotto (2018, p. 25), “valores como
individualismo, competitividade, meritocracia, empreendedorismo, protagonismo
passam ser os principais referentes”.
Conjuntamente, agentes sociais privados entram no cenário da educação,
procurando intervir nas políticas públicas educacionais na intenção de obter maior
controle sobre os currículos (MACEDO, 2014). Esses agentes estavam antenados ao
cenário desenhado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE),
entidade que indica ao ambiente empresarial os locais mais atrativos de investimentos
no setor privado.
Tendo como suporte o Programme for International Student Assessment (PISA)
e pesquisas comparativas, as políticas educacionais foram integrando as diretrizes da
OCDE que, ao possuir uma avaliação internacional, começou a exigir um currículo
que legitimasse essa avaliação como forma de “ranquear” países que estabelecessem
padrões curriculares a fim de permitir um desempenho mensurável e satisfatório
(CURY; REIS; ZANARDI, 2018).
Foi nesse contexto que as noções de habilidade e competência ganham força,
justamente por estarem de acordo com os ditames desses organismos internacionais
que atendem aos critérios do ingresso ao mercado de trabalho,

dando ao processo educativo um caráter cada vez mais utilitário, sendo que
a validade de um dado conhecimento não é mais encontrado em si mesmo,
mas na capacidade que tem de possibilitar aos indivíduos maior acúmulo de
capital humano e, consequentemente, maior capacidade de competição e
“empregabilidade” (GIROTTO, 2018, p. 26).
29

No Brasil, o movimento Todos pela Educação, fundado em 2006, tem


coordenado a ação dos empresários no campo da educação. Tem como apoiadores,
mantenedores e parceiros como a Fundação Bradesco, Itaú Social, Fundação
Lemann, Instituto Unibanco, Instituto Natura, Rede Globo, Fundação Roberto Marinho,
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Fundação Santillana, Fundação
Victor Civita, entre outros (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2018).
No Plano Nacional de Educação (PNE), previsto na Lei nº 13.005 de 2014
(BRASIL, 2014), há a reiteração da necessidade de elaboração de uma base nacional
comum. O documento define que: “União, Estados, Distrito Federal e Municípios
[devem pactuar] [...] a implantação dos direitos e objetivos de aprendizagem e
desenvolvimento que configurarão a base nacional comum curricular do ensino
fundamental” (meta 2). Além disso, a relaciona a outras metas que tratam da
universalização do ensino fundamental, da avaliação, do IDEB (meta 7) e da formação
docente (meta 15).
Nesse contexto, em 2015, a base começou a ser debatida e escrita com a
participação de vários especialistas de diferentes áreas do conhecimento com o
objetivo de estruturar um documento único que abrangesse as especificidades de
cada área. Porém, esse percurso foi se modificando e seguindo outros caminhos.
Diversas entidades representativas apresentaram posições contrárias ao
estabelecimento de uma Base Nacional Comum Curricular como a Associação
Brasileira de Currículo (ABdC) e a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa
em Educação (ANPED) que, inclusive, elaboraram o ofício nº 01/2015/GR. 1. No
documento intitulado “Exposição de Motivos sobre a Base Nacional Comum
Curricular”, a comunidade científica afirma sua insatisfação com seu processo de
elaboração, feito de forma enviesada, apressada e desrespeitosa à diversidade do
povo brasileiro. Além disso, critica a visão homogênea dos estudantes bem como a
destituição da liberdade de atuação dos professores em sala de aula, o que pode
acarretar a desumanização do trabalho docente (ANPED; ABDC, 2015).
Em 2016, o contexto político, com o impeachment3 da então presidente Dilma
Rousseff, movido, segundo Santos (2019), pela “necessidade de substituição de um

3O processo foi iniciado em dezembro de 2015 pelo então presidente da Câmara dos Deputados,
Eduardo Cunha, a partir de pressupostos de denúncia por crime de responsabilidade fiscal, embora
não houvesse nada comprovado. Encerrou-se o processo em agosto de 2016 com a cassação do
mandato de Dilma.
30

governo constituído legal e democraticamente por um chefe de estado que atendesse


de forma mais solícita às exigências do capital com vistas à superação de sua crise.”
Nesse cenário, é que as políticas públicas da educação se mostram ancoradas,
claramente, no tecnicismo e gerencialismo de caráter meritocrático e excludente,
embasando-se nos discursos de liberdade de escolha e de igualdade de
oportunidades (CURY; REIS; ZANARDI, 2018).
Sendo assim, a primeira versão com a proposta preliminar da BNCC foi
apresentada em setembro de 2015 e a segunda em maio de 2016. A versão final do
documento para a etapa do Ensino Médio foi homologada em 14 de dezembro de
2018. Conforme Santos (2019), essa versão homologada possui forte ruptura com o
trabalho que estava sendo realizado por meio de mudanças consideráveis e
discussões acentuadas a respeito de seus aspectos formais e de conteúdo. Vale
ressaltar que o processo de construção da Base ocorreu sem participação maciça da
sociedade onde, segundo Peroni, Caetano e Lima (2017) houve “um esvaziamento da
participação, autonomia e transparência dos sistemas e as políticas de educação são
impressas de cima para baixo, de fora para dentro” (PERONI; CAETANO; LIMA,
p.422, 2017).

1.3 O lugar da Arte e da Música na BNCC

Nesta última versão da BNCC-EM, o componente curricular Arte torna-se


subordinado à área de Linguagens, perdendo seu aspecto de área de conhecimento
específico ao dar “ênfase às práticas expressivas pouco contextualizadas, tendo como
foco o direcionamento no fazer, desprezando a sua dimensão crítica e conceitual”
(PERES, 2017, p. 27).
Observa-se um significativo avanço obtido por meio da Lei nº 11.769 de 2008,
que dispõe sobre a obrigatoriedade da Música como conteúdo obrigatório, mas não
exclusivo da educação básica, que, posteriormente, foi atualizada com a Lei nº 13.278
de 2016, mais completa, que abrange todas as linguagens artísticas (Artes Visuais,
Dança, Música e Teatro) no componente curricular Arte. Entretanto, a BNCC
desconsidera essa legislação ao diminuir os vastos campos de conhecimento
referentes a cada linguagem artística, cada qual com sua especificidade, reduzindo-
os na forma de “unidades temáticas”.
31

Ainda que, na BNCC, as linguagens artísticas das Artes Visuais, da Dança,


da Música e do Teatro sejam consideradas em suas especificidades, as
experiências e vivências dos sujeitos em sua relação com a Arte não
acontecem de forma compartimentada ou estanque (BRASIL, 2017b, p. 194).

Conforme as proposições da ABEM (2016, p. 4), “cada uma das linguagens


artísticas tem características de componentes curriculares, pelo fato de possuírem
especificidades distintas que necessitam de professores com formação específica
para atendê-las adequadamente.” Ao considerar as linguagens artísticas como
subcomponentes fragmentados, acaba-se por “legitimar a visão distorcida referente
ao ensino de Arte, construída ao longo da história” (ABEM, 2016, p. 4-5).
A versão homologada da BNCC do Ensino Médio está largamente
fundamentada na Reforma do Ensino Médio, Lei n. 13.415, de 2017 (BRASIL, 2017a)
que, ao modificar a LDB de 1996, estabelece itinerários formativos que os estudantes
poderão construir. Assim, as disciplinas, como estão postas atualmente, seriam
incorporadas nesses percursos por meio de práticas e estudos tendo somente os
componentes de Língua Portuguesa e Matemática como obrigatórios no decorrer dos
três anos do Ensino Médio:

Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional
Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados
por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância
para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, ensino, a
saber:
I - linguagens e suas tecnologias;
II - matemática e suas tecnologias;
III - ciências da natureza e suas tecnologias;
IV - ciências humanas e sociais aplicadas;
V - formação técnica e profissional.

[...] A critério dos sistemas de ensino, poderá ser composto itinerário


formativo integrado, que se traduz na composição de componentes
curriculares da Base Nacional Comum Curricular - BNCC e dos itinerários
formativos, considerando os incisos I a V do caput (BRASIL, 2017a).

Na BNCC-EM, não há orientações a respeito dos conteúdos a serem


trabalhados a cada ano, afirmando que “os currículos das escolas serão compostos
pela BNCC e pelos itinerários formativos que serão ofertados pelas escolas” e
“deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares,
conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino”
(BRASIL, 2018).
32

A legislação que regulamenta os itinerários formativos por meio da lei 13.415 e


das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM/18) não assegura a
obrigatoriedade dos sistemas de ensino a ofertarem todas as áreas específicas de
conhecimento. Assim, caberá ao estudante a escolha por áreas flexíveis do currículo.
Carvalho et al. (2017) afirma que tal reforma adquire potencial destrutivo no
público brasileiro pela ausência de um sistema de educação nacional que ofereça o
mínimo de unidade ao promover a fragmentação identitária do Ensino Médio.
Cesar Callegari, sociólogo e ex-presidente da comissão encarregada em
analisar a BNCC do Ensino Médio, no Conselho Nacional da Educação (CNE),
ressalta:

No documento preparado pelo MEC, com exceção de língua portuguesa e


matemática (que são importantes, mas não as únicas), na sua BNCC
desaparece a menção às demais disciplinas cujos conteúdos passam a ficar
diluídos no que se chama de áreas do conhecimento. Sem que fique
minimamente claro o que deve ser garantido nessas áreas. Contudo,
sabemos que os direitos de aprendizagem devem expressar a capacidade do
estudante de conhecer não só conteúdos, mas também de estabelecer
relações e pensar sobre eles de forma crítica e criativa. Isso só é possível
com referenciais teóricos e conceituais. Ao abandonar a atenção aos
domínios conceituais próprios das diferentes disciplinas, a proposta do MEC
não só dificulta uma visão interdisciplinar e contextualizada do mundo, mas
pode levar à formação de uma geração de jovens pouco qualificados,
acríticos, manipuláveis, incapazes de criar e condenados aos trabalhos mais
simples e entediantes, cada vez mais raros e mal remunerados4.

Neste contexto, corre-se o grande perigo do componente Arte, em especial a


música, dissolver-se entre as grandes áreas de conhecimento do Ensino Médio,
tornando-se, segundo Peres (2017), “apenas uma disciplina que ajudará na
compreensão dos conteúdos de Língua Portuguesa ou Literatura, sendo
negligenciados seus conteúdos próprios” (PERES, 2017, p. 30-31).
Iavelberg (2018, p. 75) observa que “na BNCC há maior diferença de extensão
entre o componente Arte e os demais componentes e áreas, sendo Língua Portuguesa
e Matemática os mais privilegiados”. Além disso, a autora pondera que essa
“descontinuidade denota uma desvalorização da Arte no currículo escolar e está
relacionada à exclusão do componente das avaliações de aprendizagens dos
sistemas de ensino” (IAVELBERG, 2018, p. 76).

4Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/carta-aos-conselheiros-do-conselho-nacional-de-


educacao-cesar-callegari-renuncia-a-presidencia-da. Acesso em: 10 jan. 2022.
33

Logo na introdução da área de Linguagens e suas Tecnologias, o texto do


documento se refere à Arte como “área do conhecimento humano que contribui para
o desenvolvimento da autonomia reflexiva, criativa e expressiva dos estudantes, por
meio da conexão entre o pensamento, a sensibilidade, a intuição e a ludicidade.”
Outrossim, afirma que é “na aprendizagem, na pesquisa e no fazer artístico que as
percepções e compreensões do mundo se ampliam” (BRASIL, 2018).
Chama a atenção o uso das expressões: “sensibilidade”, “intuição”, “ludicidade”
e “fazer artístico” que, segundo Peres (2017), configuram-se como práticas
expressivas individualizadas de cunho meramente estético, desconsiderando a
dimensão crítica e conceitual da Arte.
De acordo com Pedrosa (2011), considerar a arte como conhecimento implica
a obtenção de informações sobre o contexto cultural em que a obra foi realizada, sua
história e seus elementos formais que integram a produção artística. Afinal, somente
os sentimentos, paixões e sensações são insuficientes para promover um
conhecimento amplo.
A competência 6 da área de Linguagens e suas Tecnologias sugere ao
estudante: “Apreciar esteticamente as mais diversas produções artísticas e culturais,
considerando suas características locais, regionais e globais.” (BRASIL, 2018, p. 482)
Assim, diante da grande produção sobre as dimensões sociais, culturais e políticas da
Arte, considerou-se somente a dimensão estética.
Ao tratar especificamente da música, veremos como ela aparece no texto da
BNCC do Ensino Médio. A ABEM ao refletir sobre o ensino de música descrito no
documento na referida etapa da Educação Básica diz que:

As direções para a implementação e o desenvolvimento do ensino de música


no ensino médio, conforme aponta a terceira versão da BNCC, são
alarmantes, pois são apenas 15 o número de ocorrências do termo “Música”
na BNCC-EM. Dessas, são apenas 4 menções a respeito de como a subárea
pode ser tratada na educação básica (ABEM, 2018).

Perante as possibilidades de interligação das áreas de conhecimento, o texto


traz o termo “musicalidades”, apresentando-o como uma possibilidade
descontextualizada que se articula entre as áreas do conhecimento ligadas aos
“núcleos de criação artística” que:
34

desenvolvem processos criativos e colaborativos, com base nos interesses


de pesquisa dos jovens e na investigação das corporalidades,
espacialidades, musicalidades, textualidades literárias e teatralidades
presentes em suas vidas e nas manifestações culturais das suas
comunidades, articulando a prática da criação artística com a apreciação,
análise e reflexão sobre referências históricas, estéticas, sociais e culturais
(artes integradas, videoarte, performance, intervenções urbanas, cinema,
fotografia, slam, hip hop etc.) (BRASIL, 2018, p. 472).

Ainda que a noção de pluralidade esteja apontada, é somente na proposta de


Núcleos de Criação que a música é mencionada de forma vaga e aleatória num
contexto pouco propositivo, desvalorizando-a em sua singularidade, reduzindo-a a um
meio de entretenimento.
A música, segundo o documento, é parte integrante da manifestação juvenil.
Localizada dentro das linguagens artísticas, no campo da vida pessoal, aponta para a
habilidade de:

(EM13LP20) Produzir, de forma colaborativa, e socializar playlists


comentadas de preferências culturais e de entretenimento, revistas culturais,
fanzines, e-zines ou publicações afins que divulguem, comentem e avaliem
músicas, games, séries, filmes, quadrinhos, livros, peças, exposições,
espetáculos de dança etc., de forma a compartilhar gostos, identificar
afinidades, fomentar comunidades etc (BRASIL, 2018, p. 502).

Ela também está presente em um dos parâmetros para a


organização/progressão curricular no campo artístico-literário:

Diversificar, ao longo do Ensino Médio, produções das culturas juvenis


contemporâneas (slams, vídeos de diferentes tipos, playlists comentadas,
raps e outros gêneros musicais etc.), minicontos, nanocontos, best-sellers,
literatura juvenil brasileira e estrangeira, incluindo entre elas a literatura
africana de língua portuguesa, a afro-brasileira, a latino-americana etc., obras
da tradição popular (versos, cordéis, cirandas, canções em geral, contos
folclóricos de matrizes europeias, africanas, indígenas etc.) que possam
aproximar os estudantes de culturas que subjazem na formação identitária de
grupos de diferentes regiões do Brasil (BRASIL, 2018, p. 514).

A habilidade relacionada a esse parâmetro destaca uma concepção rasa e


limitada do fazer artístico musical, reduzido à “participação de eventos” “socialização
de produção individualizada” e “interpretação de obras de outros”:

(EM13LP46) Participar de eventos (saraus, competições orais, audições,


mostras, festivais, feiras culturais e literárias, rodas e clubes de leitura,
cooperativas culturais, jograis, repentes, slams etc.), inclusive para socializar
obras da própria autoria (poemas, contos e suas variedades, roteiros e
microrroteiros, videominutos, playlists comentadas de música etc.) e/ou
interpretar obras de outros, inserindo-se nas diferentes práticas culturais de
seu tempo (BRASIL, 2018, p. 515).
35

Assim, salienta Del-Ben (2016, p. 5), que “enfatizar a experiência estética traz
o risco de enfatizar também a relação do sujeito individual com a obra, e não a relação
entre pessoas, mediada pela obra.”

Obra pode ser reduzida a “coisa”. O uso da expressão “obra” sugere ênfase
no produto, a valorização da produção do artista. Não há produto sem
processos a ele subjacentes, mas, como, na educação básica, o que se
busca é a formação de sujeitos, parece-me que a ênfase deveria estar nos
processos, nas ações e interações que levam à “produção do produto”. Na
escola, o protagonismo é dos estudantes, e não dos artistas e sua produção.
O que se busca é a formação de sujeitos, e não a formação de público. É
preciso ampliar e aprofundar o repertório de experiências, e não
necessariamente o repertório de obras (DEL-BEN, 2016, p. 5-6).

Segundo Peres (2017), a concepção de Arte contida na BNCC não contém a


preocupação de oferecer aos estudantes um entendimento mais sólido sobre os
conteúdos do processo artístico. Assim, terão uma formação cerceada que não
contribuirá para o aprofundamento da dimensão crítica da Arte e da sociedade.

1.4 Implicações da BNCC na formação e na atuação dos professores de


Arte/Música

A formação e a atuação dos professores de Arte foram duramente atingidas


pela dissolução das linguagens artísticas (Artes Visuais, Música, Teatro e Dança) na
área de Linguagens, comprometendo a conquista dos docentes de Arte em
licenciaturas específicas. Dessa maneira, centros universitários, faculdades e
universidades do Brasil foram diretamente afetados, pois essa dissolução ofereceu
abertura para que profissionais licenciados em outras áreas pudessem lecionar, como
ocorria no período da Ditadura Militar5 (PERES, 2017).
Conforme as Diretrizes Nacionais para a operacionalização do ensino de
Música na Educação Básica:

5De maneira geral, entre os anos 70 e 80, os antigos professores de Artes Plásticas, Desenho, Música,
Artes Industriais, Artes Cênicas e os recém-formados em Educação Artística viram-se
responsabilizados por educar os alunos (em escolas de ensino médio) em todas as linguagens
artísticas, configurando-se a formação do professor polivalente em Arte. Com isso, inúmeros
professores deixaram as suas áreas específicas de formação e estudos, tentando assimilar
superficialmente as demais, na ilusão de que as dominariam em seu conjunto. A tendência passou a
ser a diminuição qualitativa dos saberes referentes às especificidades de cada uma das formas de arte
e, no lugar destas, desenvolveu-se a crença de que bastavam propostas de atividades expressivas
espontâneas para que os alunos conhecessem muito bem música, artes plásticas, cênicas, dança,
etc. (BRASIL, 1997, p. 24).
36

A trajetória do ensino e da aprendizagem das artes no Brasil é paralela à luta


de profissionais comprometidos com a construção de políticas educacionais
que subsidiam a qualificação das artes na escola. As lutas têm sido por um
“saber de base”, um “saber específico”, que reconheça as artes como
conhecimentos imprescindíveis na formação plena do cidadão [...] (BRASIL
2016).

Em documento, a Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM),


questionando a diminuição das linguagens artísticas em subcomponentes e
reconhecendo a importância de se garantir professores habilitados para cada uma
delas, realiza alguns apontamentos, ao considerar:

inadequadas as definições da BNCC de conceber “Arte” como “componente


curricular” e, consequentemente, Artes Visuais, Dança, Música e Teatro como
“subcomponente”. De acordo com as próprias especificações do texto
apresentado na BNCC, “ao considerar que a formação em Arte acontece em
licenciaturas específicas (artes visuais, dança, teatro e música), é necessário
garantir professores habilitados em cada um dos subcomponentes, para
todas as etapas da educação básica”. Assim, fica evidente que Artes Visuais,
Dança, Música e Teatro têm características de componentes curriculares, e
não de subcomponentes, considerando que cada uma dessas áreas possui
necessidades distintas e necessita de professores com formação específica
para atendê-las adequadamente (ABEM, 2016, p. 4).

A Federação de Arte-educadores do Brasil, no Ofício nº06/2015, destinado ao


Ministério da Educação, relata a falta de prestígio do componente Arte frente aos
demais componentes, desprezando a abrangência e complexidade dessas áreas de
saber na Educação Básica:

A BNCC, ao apresentar, em 11 páginas, o componente curricular Arte, em


contraste com os demais que envolvem de 20 a 30 páginas, acentua um olhar
aligeirado para a Arte, ao mesmo tempo em que evidencia as prioridades do
currículo (FAEB, 2015).

Conforme Iavelberg (p.78, 2018), tal desvalorização “está relacionada com a


exclusão do componente das avaliações das aprendizagens dos sistemas de ensino".
Além disso, está em consonância com os interesses do mercado de trabalho e do
capital por meio de uma formação regida por eles, tendo em vista a ampliação de
consumidores. Dessa forma, está ausente uma formação em Arte que promova um
sujeito sensível e crítico que participe artística e culturalmente da sociedade
(IAVELBERG, 2018).
37

Carvalho (2017) destaca a mudança de perspectiva dos saberes e disciplinas


sob um caráter mais instrumental, ligados ao mercado e ao consumo, bem como o
risco de atribuir à formação educacional um significado político e existencial:

A preocupação de pensar a experiência escolar a partir de suas finalidades


práticas e de sua suposta relevância econômica tem posto em risco a
possibilidade de se atribuir à formação educacional um significado político e
existencial. Note- se que essa supremacia do caráter instrumental dos
discursos educacionais não implica o desaparecimento de disciplinas e
saberes tidos como integrantes de uma concepção humanista de formação,
como a literatura, as artes ou a filosofia. Significa, antes, que mesmo esses
saberes e disciplinas passam a ter outro papel: o de coadjuvantes na
supremacia do instrumentalismo vinculado ao mercado e à sociedade de
consumidores (CARVALHO, 2017, p.30).

Nesse sentido, submissa a um paradigma neotecnicista6, a educação passa a


ser metrificada e quantificada por meio das habilidades e competências como
enquadramentos conceituais que tornam a educação uma área subserviente ao
mercado de trabalho e às expectativas das elites dominantes em relação à formação
dos trabalhadores.
A padronização dessas competências e habilidades pré-determinadas
presentes no documento não estão atreladas a um conteúdo específico, uma vez que
elas não se conectam aos componentes curriculares, tampouco se determinam a
partir do conhecimento oriundo deles. Há, portanto, incoerência em almejar a
possibilidade de executar diversas competências de ordem cultural e artística sem que
esses saberes específicos das linguagens sejam desenvolvidos no percurso do
Ensino Médio (ABEM, 2018).
Iavelberg (2018) aponta algumas razões que explicam a imprecisão do texto na
diferenciação das habilidades, a explicitação dos conteúdos e o grande esforço a ser
concretizado na formação docente na implantação da BNCC:

6
Segundo Freitas (1991), o paradigma neotecnicista está baseado na: avaliação das escolas, avaliação
do professor, distribuição de verbas e salários de acordo com estas avaliações, revisão curricular;
ênfase em uma metodologia pragmática e despolitizada para obter resultados em sala de aula – ou
seja, desgarra-se a análise da escola de seus determinantes sociais e assume-se que a escola vai mal
porque lhe faltam controle, eficiência, método, racionalização e treinamento para o professor. Aceita
esta premissa, o problema da educação deixa de ser político para ser técnico. Daí o termo tecnicismo.
Mas, como nós já vimos este filme na década de setenta, daí o termo neotecnicismo (FREITAS, 1991,
p.12).
38

Os limites de ordem política e econômica se impuseram à terceira versão da


BNCC e marcaram a escrita do documento, na medida em que, como se
sabe, não existiu investimento para que a equipe de elaboradores da referida
versão fosse oriunda das diferentes linguagens da Arte. Isso pode explicar a
pouca diferenciação das habilidades entre as linguagens, a magra
explicitação de conteúdos e, mais uma vez, nos alerta para o grande esforço
a ser feito na formação dos professores de Arte, enquanto profissionais
práticos reflexivos, com autonomia para a implantação da BNCC
(IAVELBERG, 2018, p. 82).

Gatti e Barreto (2009) ressaltam que a organização dos diversos cursos de


licenciatura é determinada por decisões a respeito do currículo da Educação Básica
que decorrem da disputa de diversos atores sociais, que almejam “maior
representação de determinados conhecimentos, valores, habilidades e competências
no currículo” (GATTI; BARRETO, 2009, p. 68).
Amato (2016, p. 162), aponta que o “ensino de música nas escolas regulares é
escasso, o que nos leva a refletir que a educação musical dentro da disciplina Arte faz
parte meramente de manuais e propostas curriculares veiculadas por órgãos
governamentais”, consolidando, assim, o que o pedagogo José Gimeno Sacristán
denominou de currículo prescrito7, definindo-o como normatizador e cumpridor de
orientações e regulações econômicas, políticas e administrativas para o sistema
educacional e para os profissionais da educação.
É de suma importância identificar essas prescrições presentes na BNCC que
bloqueiam a arte de educar dos professores a fim de que não sejam, segundo Arroyo
(2013), meros “repetidores” de conteúdos, e que consigam construir um currículo
vivido, que considere os aspectos da identidade e da subjetividade, pautados nas
necessidades sociais, culturais, afetivas e cognitivas dos estudantes.
Em vista disso, faz-se necessário esclarecer o papel do ensino de música no
contexto escolar que deve estar interligado aos demais conhecimentos. Bellochio e
Figueiredo (2017) ressaltam a importância de estar sempre atento à produção sonora
(ouvir, apreciar, cantar, tocar, compor, improvisar, etc.) e desenvolver uma maior
compreensão das práticas musicais, buscando caminhos para fazer melhor:

7 Segundo Sacristán (2000, p. 104), o currículo prescrito é constituído por “todos os aspectos que
atuam como referência na ordenação do sistema curricular servindo como ponto de partida para a
elaboração de materiais, controle de sistema, etc”. Tem como intenção unificar os diferentes conteúdos
escolares para alcançar o objetivo de uma educação nacional, proporcionando uma suposta igualdade
de oportunidades ao estabelecer conteúdos mínimos que o ensino obrigatório deve oferecer. Além
disso, propõe-se como via de controle sobre a prática de ensino, condicionando-o previamente ao redor
de códigos que se projetam em metodologias nas instituições educativas.
39

Ensinar música na escola envolve a experiência musical de forma direta,


ouvindo, apreciando, cantando, tocando, compondo, improvisando, dentre
outras. Falar sobre música com os alunos é uma atividade que também
envolve conhecimentos musicais, mas não os coloca em contato direto com
a Linguagem musical. Ensinar música envolve fazer música, produzir
sonoramente e estar atento a essa produção sonora. Estar atento implica
apreciar e entender o que se está fazendo, buscar alternativas para fazer
melhor. É importante, também, pensarmos que ensinar música na escola é
uma prática que não acontece de modo isolado dos demais conhecimentos
escolares. (BELLOCHIO; FIGUEIREDO, 2017, p. 39-40).

Cabe dizer que a BNCC não apresenta referências bibliográficas para a


compreensão e aprofundamento de suas proposições. Desse modo, faz-se
necessário que os profissionais da educação de Arte sejam protagonistas de suas
ações para que articulem teoria e prática em diálogo com as histórias e as culturas
em contextos educativos diversos. Penna (2014) sugere a valorização das ações
locais em detrimento de intervenções de grande alcance:

diante da realidade multifacetada dos contextos educacionais, são mais


eficazes e produtivas as ações que refletem as possibilidades locais, do que
atos legais de alcance nacional” “a conquista de espaços para a música na
escola depende, em grande parte, do modo como atuamos concretamente
no cotidiano escolar e diante das diversas instâncias educacionais” (PENNA,
2014, p. 63).

Assim, é imperioso o fortalecimento da autonomia das escolas, educadores e


educandos, prezando pela democratização dos saberes não impostos, que não
homogeneízam os sujeitos, e que corroboram em sua transformação. A música
ganhará espaço no cotidiano escolar a partir do comprometimento dos professores
em suas práticas. Em sua fala, Penna (2020) afirma que é importante que o docente
“saiba justificar o seu trabalho, argumentar e valer das normas que regem o ensino de
música no contexto escolar.”
Novas percepções devem ser incorporadas constantemente ao trabalho do
educador musical que, atento à sua formação inicial ou continuada, possa valorizar a
música como área independente de conhecimento.
40

2 A EDUCAÇÃO MUSICAL COMO DIMENSÃO DA HUMANIZAÇÃO

2.1 Educação bancária ou humanizadora?

Freire apresenta a existência de duas concepções de educação totalmente


opostas: uma, classificada como “bancária”, que conduz à desumanização, e a outra
“humanizadora”, que conduz à transformação. A “educação bancária” retrata muito
bem a tendência dominante dos processos de ensino-aprendizagem, restritos
somente à narração de conteúdos e não, efetivamente, à socialização do
conhecimento que promove o desenvolvimento integral do ser humano.
Essa compreensão está baseada na transmissão e na memorização, que
mantém as pessoas alienadas, dominadas e oprimidas, e coloca os educandos na
condição de “coisas” (FREIRE, 2019). Além disso, funciona de forma rígida,
hierarquizada e tecnicista, coibindo a capacidade de criação dos educandos e
desestimulando o pensamento crítico a respeito das contradições e inconformidades
presentes no cotidiano.
Nela, “o educador aparece como seu indiscutível agente, como seu real sujeito,
cuja tarefa indeclinável é ‘encher’ os educandos dos conteúdos de sua narração”
(FREIRE, 2019, p. 79). Dessa forma, acabam se tornando fragmentos da realidade,
desconectados da vida sem nenhum significado.
Em contrapartida, a educação humanizadora propõe relações horizontais,
marcadas pelo diálogo estabelecido entre educando e educador, que “já não é o que
apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando
que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo
em que crescem juntos” (FREIRE, 2019, p. 78).
Nessa perspectiva dialógica, tal concepção de educação considera o pleno
desenvolvimento da vida humana, levando em conta suas condições biológicas,
psicológicas, socioculturais e econômicas – buscando meios de superar tensões e
conflitos que ferem o direito à vida digna, formando “pessoas críticas, de raciocínio
rápido, com sentido de risco, curiosas, indagadoras” (FREIRE, 2000a, p. 45).
Acerca da pedagogia freireana, Bruno afirma que:
41

O legado de Paulo Freire é extenso, denso, pulsante, vibrante. Quando se


mergulha em qualquer um de seus textos, é possível sentir a intensidade do
seu compromisso e a verdade nas suas palavras. Se esse mergulho se
estender e transitar por vários de seus textos, é possível perceber, sem
nenhum esforço, porque salta aos olhos a coerência de seu discurso e de sua
práxis, lição que reverbera para todo o educador e toda educadora que faz a
opção por uma educação crítico-libertadora (BRUNO, 2013, p. 24).

Assim, o pensamento freireano aponta para uma forma peculiar de enxergar a


história e o mundo, chamado a resgatar sua humanidade por meio da reflexão, do
diálogo, da problematização da realidade e da práxis, e, assim, alargar nossa visão
limitada e alimentada, muitas vezes, por sistemas opressores.
Na teoria freireana, a humanização sempre esteve presente justamente por
empoderar os seres humanos para que sejam “capazes de intervir no mundo, de
comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher, capazes de grandes ações,
de significantes testemunhos [...]” (FREIRE, 1996, p. 51).
Toda pessoa tem a possibilidade de interagir no mundo e com o mundo a fim de
torná-lo um lugar melhor. Dentro de nós existe o potencial para se viver em plenitude,
melhorando constantemente nossas relações ao nos abrirmos para aprendermos e
ensinarmos uns com os outros, afinal, para Freire (2019) “ninguém educa ninguém,
ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo
mundo” (FREIRE, 2019, p. 54).
Assim, entende-se por humanização, a busca constante de homens e mulheres
pela sua vocação ontológica de ser mais. Tal categoria, para Freire, está
profundamente ligada à concepção de ser humano que, como “eterno aprendiz”,
busca aprimorar sua relação consigo mesmo e com o outro de forma mais consciente.
A procura por ser mais se justifica em razão do inacabamento e da inconclusão
do ser humano que, consciente dessa condição, busca constantemente desenvolver
suas próprias potencialidades a fim de construir novos sentidos e formas de viver no
mundo. Descobrindo-se inacabado, reflete criticamente sobre si mesmo e, por meio
de sua autorreflexão, lança-se ao desafio de transformar a realidade.
São inúmeras as situações-limite que roubam a humanidade de homens e
mulheres, impedindo-os de serem mais. Diante disso, lutar pela humanização, para
Freire, é uma condição existencial do ser humano que, reconhecendo sua
incompletude, busca reinventar-se e dar novo rumo à sua história.
Assim, ao ultrapassar as barreiras que impossibilitam o ser humano de ser
mais, a educação humanizadora pode impulsionar as pessoas a lutarem pelo inédito-
42

viável ao buscar um nível mais elevado de humanização no mundo por meio da


compreensão crítica da realidade.

2.2 O papel humanizador da arte na educação

A obra de Freire está impregnada de pistas preciosas que iluminam a vivência


da Arte na Educação e seu papel fundamental na humanização. Em À sombra dessa
mangueira, Paulo Freire retrata sua infância com poesia e boniteza, transformando
suas experiências de vida em Arte, sob as árvores do quintal de sua casa no Recife:

O primeiro mundo meu, na verdade, foi o quintal da casa onde nasci, com
suas mangueiras, seus cajueiros de fronde quase ajoelhando-se no chão
sombreado, com suas jaqueiras, com suas barrigudeiras. Árvores, cores,
cheiros, frutas, que, atraindo passarinhos vários a eles se davam como
espaço para seus cantares (FREIRE, 2012, p.25).

Ao despertar os sentidos (cheiros, cores, sombras, sons), Freire realizava suas


primeiras leituras de mundo e da palavra. Exercitando o olhar artístico, com
sensibilidade aguçada, “usava a amenidade das sombras para estudar, para brincar”,
para conversar com seu irmão sobre eles mesmos, “sobre o amanhã, sobre a saudade
do pai falecido; para curtir, mergulhado em si mesmo” (FREIRE, 2012, p. 25). Dessa
forma, ao contemplar a belezura estética das coisas, abria caminho para a descoberta
da boniteza8 da própria vida.
A arte conduz à humanização na medida em que integra sentimentos e
emoções na transformação dos sujeitos ao impulsioná-los para a ação
transformadora, consciente e criativa. Nesse processo, Eisner (2002) ressalta que as
Artes:

Refinam nossos sentidos para que a nossa capacidade de experenciar o


mundo torne-se mais complexa e sutil; promovem o uso de nossas
capacidades imaginativas, de modo que possamos vislumbrar o que não
podemos realmente ver, provar, tocar, ouvir e cheirar; fornecem modelos
através dos quais podemos experimentar o mundo de maneiras novas
(EISNER, 2002, p.19).

8Segundo Casali (2016), encontra-se no termo boniteza “o fundo semântico, existencial e ético da
declaração de Paulo Freire sobre a boniteza da vida e da educação”, ressaltando “o pleno sentido da
boniteza: o que une a bondade à beleza (a ética à estética)”, destacando “a riqueza polissêmica dos
conceitos de ética e estética como unidade de ação do sujeito concreto, histórico e cultural” (CASALI,
2016, s/n).
43

Conectada intimamente à vida, a arte abre espaço para a humanização pois,


atinge o ser humano por inteiro, move seus sentidos, desperta suas emoções e
provoca mudanças. Segundo Caetano (2015), a arte:

ensina os alunos a apreciar as consequências das escolhas, a ter confiança


nos sentimentos, nas nuances, na intuição, inspira os alunos a serem
cidadãos e se responsabilizarem por agir e julgar na ausência de regras.
Essas habilidades cultivam outro modo de se comportarem na vida
(CAETANO, 2015, p. 30).

Além disso, apresenta-se como ferramenta privilegiada para a humanização ao


colocar o ser humano em relação ao outro, à sociedade e a tudo que o cerca,
oferecendo a ele a capacidade de sensibilizar-se, conduzindo-o a agir criativamente:

A arte educa na medida em que, atraindo nossa visão, encantando nossa


audição, agindo sobre nossa imaginação, dialoga com a nossa consciência.
Mais do que nos fazer reagir à melodia, à rima, à composição pictórica, às
cenas do filme, esses estímulos que nos chegam pela arte criam um espaço
de liberdade, de beleza, no qual nos sentimos convidados a agir criativamente
(PERISSÉ, 2009, p. 36).

O ser humano não sai ileso a uma verdadeira experiência estética que
influencia, de forma forte e sutil, sua maneira de sentir, pensar e avaliar, renovando-
o. (PERISSÉ, 2009). Tal experiência gera nele um comprometimento ativo e arrojado
“que intervém, que transforma, que fala do que faz, mas também do que sonha; que
constata, que compara, avalia, valora, que decide, que rompe” (FREIRE,1996, p. 112).
A arte também traz a possibilidade de dar significado e vida nova a algo ao
exercitar o olhar artístico. Freire e Shor (1986, p. 145) ressaltam que o ato de conhecer
passa pela via artística na medida em que leva o ser humano a desvendar um objeto,
chamando-o para a vida: “Isto é uma tarefa artística, porque nosso conhecimento tem
qualidade de dar vida, criando e animando os objetos enquanto os estudamos”
(FREIRE; SHOR, 1986, p. 145).
Nesta mesma direção, Eisner ressalta que o trabalho com as artes não visa
somente a criação de performances e produtos, mas consiste numa maneira de criar
nossas vidas ao expandir a consciência e dar forma a nossas disposições,
estabelecendo contato com outras pessoas e compartilhando uma cultura (EISNER,
2002).
44

Ernst Cassirer (1997), filósofo judaico-alemão, em sua teoria dos símbolos,


defende que todo conhecimento e toda relação humana com o mundo se dá no âmbito
das diversas formas simbólicas. Assim, o ser humano, como ser simbólico por
excelência, cria o seu próprio universo, organizando e interpretando o mundo por meio
das representações.
Dentre esses universos representativos, a Arte é uma modalidade de
simbolização que demarca a sua percepção de realidade revelando instâncias do
pensar, sentir e agir no mundo. Segundo Feldmann (2008):

A arte é vista como parte constitutiva das várias manifestações simbólicas de


cultura. No processo educacional, o seu entendimento vai além de vê-la como
manifestação de sentimentos, formas de expressão; a arte precisa ser vista
também, e principalmente, como forma de pensamento - base epistemológica
tão importante na formação do aluno e no território curricular das escolas
quanto o estatuto de outras disciplinas (FELDMANN, 2008, p.18).

Dentre as artes, a música é uma forma privilegiada de mover o ser humano,


revelando sua beleza e suscitando suas potencialidades. O educador Rubem Alves
afirma que:

A música, sem uma única palavra, sem que a razão possa defender-se, entra
dentro do corpo e vai ao fundo da alma. Na música, a nossa beleza aparece
como entidade sonora. [...] A música é assim: Quer possuir os corpos,
transformar-se em vida, tornar-se carne” (ALVES, 1998, p. 11).

A música tem a capacidade de nos fazer sentir. Vai muito além de uma
experiência meramente estética, pois seu exercício é também uma experiência
fisiológica, psicológica e mental. Além disso, possibilita notável número de
experiências sensoriais, emocionais e sociais muito significativas, que se apresentam
como recurso de desenvolvimento pessoal, equilíbrio, estímulo e integração do ser
humano ao meio em que vive (ZAMPRONHA, 2007).
A musicista e pedagoga musical Violeta Hemsy de Gainza define a música
como experiência peculiar, única e insubstituível para a existência humana sendo, em
essência, multidimensional. Além disso, é uma ferramenta para a cura e intervenção
social e um direito humano, devendo ser ensinada em todas as escolas e em todos
os segmentos da educação básica. Logo, a música influi integralmente na pessoa
humana, não somente nos aspectos sensoriais, mas em seu desenvolvimento
intelectual e social (GAINZA, 2011).
45

O educador musical Koellreutter, citado por Brito (2011), ressalta que o humano
deve ser o objetivo essencial da educação musical. Assim, o autor argumenta que a
música envolve o ser humano em sua totalidade, com suas maneiras diversas de
solucionar problemas.

Processos de educação musical que tenham como objetivo a formação


integral do ser humano só podem acontecer em contextos que respeitem e
estimulem os alunos a explorar, experimentar, sentir, pensar, questionar,
criar, discutir, argumentar (BRITO, 2011, p. 3).

Dessa forma, música e construção humana caminham juntas. Ambas são


ferramentas originais de formação que geram processos de conhecimento e
autoconhecimento. Assim, o papel da educação musical é favorecer a compreensão
de si mesmo e do mundo, incitando uma visão mais autêntica e criativa da realidade
(KATER, 2004).
Favorecendo a concepção de si mesmo, interiormente e externamente, a
música ajuda o educando que, consciente de seu inacabamento, busca encontrar sua
vocação ontológica de ser mais, criando e recriando o seu mundo.

A humanização em um contexto musical educacional diz respeito a uma


abordagem que busca transformar o ensino verticalizado em uma educação
não-diretiva que privilegia as potencialidades do educando; a uma atitude que
envolve sensibilidade, solidariedade, compaixão, dialogicidade; como um
processo fundamentado na valorização da pessoa humana (DEMORE, 2019,
p.11)

Tendo por horizonte a humanização, a música “deve permitir que os sujeitos se


“des-coisifiquem”, através de um processo que revitalize o interesse pelas músicas,
pelas fontes sonoras, pelas pessoas e pelo mundo que constroem e habitam” (GALON
et al., 2013, p. 5). Isto posto, vemos a importância desta linguagem artística não
somente no nível técnico – instrumental, mas como ferramenta ampla de
conhecimento e transformação humana.
A música não se fecha em si mesma, mas cumpre a função de aprofundar a
vocação de “ser mais” de homens e mulheres que, enquanto humanos, refletem,
decidem, pronunciam, respeitam, criticam, produzem, amam. Para isso, selecionamos
algumas categorias que dão base ao pensamento de Paulo Freire, em especial: o
diálogo, a autonomia e a criatividade. Estas categorias se relacionam com a educação
humanizadora tendo em vista a emancipação dos sujeitos. A fim de sistematizar e
46

facilitar a compreensão desses conceitos, construímos uma Trama Conceitual


Freireana que tem no centro a educação emancipatória, com a intenção de melhor
explicitar os conceitos fundamentais para a construção/reconstrução de uma prática
de ensino da música capaz de formar educandos criativos e críticos
Conforme Ana Maria Saul e Alexandre Saul:

As tramas consistem em representações de proposições compostas por


conceitos e suas interconexões. A construção de uma trama é uma ação
criadora que permite novas sínteses críticas sobre aspectos da teoria e da
prática, por meio do entrelaçamento metódico de conceitos e da
problematização de suas interrelações. Daí o seu caráter epistemológico,
caracterizado pelo rigor teórico de processos e produção de conhecimento,
sob uma nova lógica. Não é uma produção estática, necessitando ser
revisitada e recriada de acordo com a problemática que se quer
explicitar/pesquisar e o momento histórico em que se vive (A.M. SAUL; A.
SAUL, 2018, p. 1149).

A figura 1, a seguir, apresenta a representação gráfica dessa trama conceitual


freireana:

Figura 1 – Trama conceitual freireana centrada na educação emancipatória

Fonte: o autor
47

A leitura dessa representação gráfica propõe que a educação emancipatória


promove a autonomia, pressupõe o diálogo e requer criatividade. A partir dessa
compreensão, podemos pensar que ela também pode se aplicar à educação musical.
Os conceitos e a interconexão entre eles serão, a seguir, explicitados, no
esforço de se pensar o campo da educação musical emancipatória.

2.3 A educação musical emancipatória pressupõe o diálogo

[...] o diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria natureza
histórica dos seres humanos. É parte de nosso progresso histórico de
caminho para nos tornarmos seres humanos. [...] isto é, o diálogo é uma
espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se
transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O diálogo
é o momento em que os humanos se encontram para refletir sobre a realidade
tal como a fazem e refazem (FREIRE; SHOR, 1986, p. 122-123).

O diálogo é uma das categorias essenciais no processo de humanização. A


palavra, que vem do grego, é formada pelo prefixo dia-, que significa "por intermédio
de", e por logos, que significa "palavra". Para Freire, não é simplesmente a
conversação entre duas ou mais pessoas, mas um pronunciar do mundo, que busca
desvelar as realidades desumanizadoras em que os seres humanos se encontram.
Por meio dele:

podemos olhar o mundo e a nossa existência em sociedade como processo,


algo em construção, como realidade inacabada e em constante
transformação [...] como força que impulsiona o pensar crítico-
problematizador em relação à condição humana no mundo (ZITKOSKI, 2016,
p. 117).

Ao contemplar o mundo em construção, somos impulsionados pelo diálogo a


pensarmos e agirmos de outro modo a fim de transformá-lo.
Para Freire (2019), “o diálogo, como encontro dos homens para a ‘pronúncia’
do mundo, é uma condição fundamental para a sua real humanização” (FREIRE,
2019, p.156), estabelecendo-se “como caminho pelo qual ganham significação
enquanto homens. Por isso, o diálogo é uma exigência existencial” (FREIRE, 2019,
p. 134). Dentre seus fundamentos, destacamos: a fé, a esperança, a solidariedade, o
amor, a confiança, a humildade e a escuta.
Segundo Freire, “não há diálogo, se não há uma intensa fé nos homens. Fé no
seu poder de fazer e de refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais,
48

que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens” (FREIRE, 2019, p. 52).
Dessa forma, contrária a todo fatalismo e descrença, a fé nos seres humanos
contribui, mesmo diante da negação do direito de ser mais, para a transformação de
sua realidade e condições de vida.
Outra característica do diálogo é a esperança que não significa “um cruzar de
braços e esperar” (FREIRE, 2019, p. 55), mas um movimento constante de luta e
transformação. “Se o diálogo é o encontro dos homens para ser mais, não pode fazer-
se na desesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu que fazer já, não
pode haver diálogo” (FREIRE, 2019, p. 55). Desse modo, ela se faz necessária por
promover uma busca infinda pela mudança realizada em comunhão.
Assim sendo, a solidariedade faz com que os seres humanos saiam de si
mesmos, de seu individualismo e isolamento para, em comunhão, amando
profundamente o mundo e as pessoas, comprometam-se na construção de sonhos
possíveis.
A confiança também é uma condição fundamental para o diálogo, pois permite
que os sujeitos sejam “cada vez mais companheiros na pronúncia do mundo”
(FREIRE, 2019, p. 51). Ao promover o companheirismo entre os seres humanos, a
confiança exige deles autenticidade e coerência nas ações e palavras. Tal exigência
é construída pela humildade. Freire nos indica que a autossuficiência não é compatível
com o diálogo que, por sua vez, não pode realizar-se sem humildade (FREIRE, 2019).

Os homens que não têm humildade ou a perdem, não podem aproximar-se


do povo. Não podem ser seus companheiros de pronúncia do mundo. Se
alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é
que lhe falta ainda muito que caminhar, para chegar ao lugar de encontro com
eles (FREIRE, 2019, p. 52).

Este percurso deve ser marcado pela escuta atenta e sensível que, segundo
Saul (2016): “é requisito para o diálogo e para a compreensão do conhecimento que
o educando traz para a situação de ensino-aprendizagem, possibilitando ao educador,
conhecer e trabalhar a partir da leitura de mundo do educando” (SAUL, 2016, p.160).
Ao escutar os educandos, procurando saber sua perspectiva a partir do que realizam
e vivenciam, é possível elencar suas dificuldades, alargando experiências sobre si
mesmos e sobre o mundo que os cerca.
O diálogo favorece o respeito às identidades dos educandos. O educador, ao
conhecer sua cultura, deve estabelecer pontos de contato, aproveitando as vivências
49

trazidas por eles, buscando despertar e aperfeiçoar sua sensibilidade. Nesse sentido,
a arte, como instrumento sensível que conduz à transformação, abrange e reconhece
os valores culturais presentes nas manifestações artísticas que podem ajudar os
educandos a agirem como protagonistas e agentes transformadores da história
pessoal, comunitária e mundial.
Em vista disso, o diálogo freireano precisa começar desde a busca do conteúdo
programático, perpassando todas as práticas educativas que envolvem saberes
diversos, não impostos, mas propostos em conjunto a partir de uma perspectiva crítica
e repleta de esperança.

Na proposta freireana de construção e prática do currículo, o diálogo entre os


educadores e educandos marca os momentos de planejamento e decisão
sobre os objetivos do trabalho, a seleção do conteúdo programático, o
desenvolvimento da programação, a definição das ações que serão geradas
a partir do que se aprendeu e de avaliação do processo, abrindo espaço para
que a opção dialógica transversalize todas as práticas educativas (SAUL;
SAUL, 2018, p. 1163).

Como mediador das relações artísticas, o diálogo tem o objetivo de ajudar a ler
a existência humana no mundo por meio da decodificação da palavra que realiza a
pronúncia do mundo e o (re)faz. Assim, o diálogo gera, a partir da palavra dita, uma
práxis comprometida com o processo de humanização fundamentada na ação e
reflexão que, segundo Freire (2019, p. 77) são: “de tal forma solidárias, em uma
interação tão radical que, sacrificada, ainda que em parte, uma delas, se ressente,
imediatamente, a outra”.
A música pressupõe e promove o diálogo, pois enquanto linguagem, carrega
em si um potencial dialógico por meio do discurso musical. De acordo com Oliveira
(2014, p. 100), “a compreensão da música envolve todos, um ouvindo o outro,
estabelecendo comunicabilidade musical”. Por meio dela, é possível construir diversos
saberes tendo por base a comunicação crítica e esperançosa sobre a condição
humana, além de estabelecer relações com os seres e com o mundo.
Ademais, a arte musical promove o diálogo ao colocar os sujeitos numa relação
horizontal onde a realidade coletiva e consentida entre ambos; promove a
transformação dos envolvidos em pessoas mais sensíveis no aspecto musical e
humano. Ambos aprendem, ensinam e testemunham a abertura aos outros e a
disponibilidade curiosa à vida e a seus desafios.
50

2.4 A educação musical emancipatória promove a autonomia

Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém


amadurece de repente, aos vinte e cinco anos. A gente vai amadurecendo
todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é
processo, é vir a ser (FREIRE, 1996, p. 105).

Paulo Freire reúne um conjunto de 27 saberes necessários à prática educativa


de educadores críticos e progressistas com o objetivo de desenvolver a autonomia,
fundada em escolhas, tomada de decisões, formulação de perguntas e respostas e
valorização da curiosidade dos sujeitos.
A autonomia, segundo Freire (1996), é um princípio fundamental necessário à
prática educativa humanizadora. Vista como direito pessoal, está aberta a todos
aqueles que, reconhecendo sua condição de inacabamento, estão inseridos no
processo educacional visando a construção de uma sociedade mais digna, respeitosa
e democrática.
Além disso, confere aos sujeitos a responsabilidade ativa por suas ações nos
ambientes que os circundam, assumindo sua presença do mundo, “não apenas como
quem se adapta a ele, mas a de quem nele se insere e arrisca-se na luta para não ser
objetos, mas sujeitos da história” (FREIRE, 1996, p.23).
Como experiência de liberdade e contrária a qualquer relação de dependência,
a autonomia constitui indivíduos “livres para deixar cair às barreiras que não permitem
que os outros sejam outros e não um espelho de nós mesmos.” (MACHADO, 2016, p.
53). Para Freire, ela ocorre quando assumimos a radicalidade do nosso próprio “eu”,
saindo dele dirigindo-se ao encontro do outro, “não eu” (FREIRE, 1996) a fim de
promover relações solidárias e comunitárias.
A autonomia não se realiza subitamente nem “com data marcada”, mas se
constrói ao longo da história a partir das diversas decisões tomadas pelos seres
humanos como uma experiência de amadurecimento e liberdade:

Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se


constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo
tomadas. [...] A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é
processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma
pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências
estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências
respeitosas da liberdade (FREIRE, 1996, p. 107).
51

Sob essas inspirações freireanas, a arte mobiliza o ser autônomo que,


consciente de seu papel, contrário a toda forma de individualismo, adestramento e
submissão a um paradigma neotecnicista voltado às forças do mercado, assume seu
modo de viver, de aprender e ensinar, de sentir, de dizer e de agir.
Dessa forma, uma educação musical emancipatória promove a autonomia do
educando, colocando-o como condutor de seus projetos, levando-o a pensar
criticamente sobre si mesmo, capacitando-o para a ação consciente e ativa sobre a
realidade. Nesse sentido, a música deve levar o indivíduo a existir humanamente no
mundo e a pronunciar sua palavra, motivando-o a:

[...] romper pensamentos prefixados, induzindo-o à projeção de sentimentos,


auxiliando-o no desenvolvimento e no equilíbrio de sua vida afetiva,
intelectual, social, contribuindo enfim para a sua condição de ser pensante
(ZAMPRONHA, 2007, p. 128).

Além disso, a música favorece a participação dos educandos na escolha do


que se faz mais necessário em seu processo de aprendizagem, considerando sempre
sua bagagem cultural e musical de forma que possam assumir-se como seres sociais
e históricos, pensantes, comunicantes, transformadores, criadores, realizadores de
sonhos, capazes de amar (FREIRE, 1996).
A música na educação concretiza sentimentos em formas expressivas, faz
refletir sobre a posição humana no mundo dando sentido à nossa condição de
cidadãos (ZAMPRONHA, 2007). Assim, é capaz de humanizar o educando que passa
a ser artífice de sua própria formação, tornando-se mais criativo, que ouve, toca e
aprende com o outro, aberto a experiências musicais e não apenas a informações
musicais, autônomo de suas escolhas e produtor de cultura (GALON et al, 2013).

2.5 A educação musical emancipatória requer criatividade

Em todo homem existe um ímpeto criador. O ímpeto de criar nasce da


inconclusão do homem. A educação é tanto mais autêntica quanto mais
desenvolve este ímpeto ontológico de criar (FREIRE, 1979, p. 32).

Buscando vivenciar sua vocação de ser mais, o ser humano, consciente de seu
inacabamento, reconhecendo-se como sujeito histórico, carrega em si um impulso
criador, capaz de criar coisas, pensamentos, ideias e de solucionar desafios advindos
52

da realidade, tomando decisões e atuando criativamente. Segundo Rosas (2016, p.


20): “como verbo, criatividade se encontra articulada a ação de ‘criar’, ‘recriar’,
‘inventar’ ou ‘reinventar’.’’
Paulo Freire afirma que o ser humano é o único ser apto a criar. Os demais
seres vivos são privados dos elementos essenciais para o processo criativo como:
raciocínio, liberdade de opção, de decisão e julgamento. Assim, os seres humanos,
como sujeitos de relações, são capazes de construir seu mundo por meio da
criatividade (FREIRE, 1996).
A curiosidade humana é condição vital que conduz à criatividade. Para Freire,
não existe educação sem que os sujeitos que dela participam desenvolvam a
curiosidade que permite ler e reler o mundo com inquietude, buscando alternativas
para modificá-lo:

A criatividade tem que ver muito com uma das conotações da vida, do
fenômeno vital, que é a curiosidade. […] Assim, ao nível da experiência
existencial, a curiosidade, que implica às vezes uma certa estupefação diante
do mundo, uma certa admiração, uma certa inquietação, um conjunto de
perguntas, indagações ou silêncios, termina nos empurrando para uma
refeitura do mundo (FREIRE, 2013, p. 359).

Como seres conscientes, mulheres e homens existem com o mundo e não


somente no mundo. Como seres “abertos”, possuem a capacidade de realizar a tarefa
complexa de transformá-lo através de sua ação, captando a realidade e expressando-
a por meio de sua linguagem criadora (FREIRE, 1981).
As artes estimulam a criatividade ao auxiliar no processo de (re)criação de nós
mesmos, refinando e despertando nossos sentidos e alargando nossa imaginação
(EISNER, 2002). Assim, segundo, Freire (2013, p. 359): “Nós, mulheres e homens,
nos tornamos seres refazedores, reconstrutores do mundo. E não há reconstrução
sem criatividade. No fundo, a criatividade tem que ver com a remodelação do mundo”.
Nessa perspectiva, a música como linguagem artística é a própria mediação da
criação humana. Ao fazer música criativamente, o educando elabora suas
potencialidades articulando: “percepção, imaginação, reflexão, sentimentos e
emoções. Enquanto produz esta objetividade, produz a si mesmo, em um movimento
de (re)criar a si como sujeito” (WAZLAWICK; MAHEIRIE, 2010, p. 433).
De acordo com Oliveira:
53

A música desenvolve a percepção de modo geral, desperta a sensibilidade,


revela valores éticos e estéticos, tornando o ser humano mais sensível e
criativo e, nesse sentido, como meio de expressão e como força geradora de
energia é um componente fundamental para a formação da personalidade
humana (OLIVEIRA, 2005, p. 5).

Assim, ao formar a personalidade humana, a música sensibiliza o educando


para que de maneira lúdica, instigante e prazerosa alcance uma postura crítica, saindo
da mesmice, propondo o novo a fim de redimensionar sua percepção de mundo e
aprimorar sua atuação nele com ser social, competente e feliz (ZAMPRONHA, 2007).

2.6 O educador como artista

A educação é uma obra de arte. É nesse sentido que o educador é também


artista: ele refaz o mundo, ele redesenha o mundo, repinta o mundo, recanta
o mundo, redança o mundo (FREIRE, 2000b: 6m42-7m02).

A prática educativa humanizadora insere educadores e educandos numa


relação horizontal para que, juntos, possam perceber e compreender o ambiente
social em que vivem, questionando, desafiando e modificando a realidade por meio
de sua práxis libertadora. A relação entre iguais, marcada pelo diálogo e pela troca de
saberes e aprendizados, favorece o desenvolvimento das capacidades do ser,
levando-o a vivenciar sua vocação ontológica de “ser mais”.
Na perspectiva freireana, a educação é uma realização estética. “Ela é em si
uma proposta artística, ela já tem arte” (FREIRE, 2013, p. 361), configurando-se como
espaço de liberdade e de escolha, suscitando uma forma sensível de ser, estar e agir
no mundo.
Visto como artista, é tarefa do educador conduzir os estudantes a descobrirem
no cotidiano escolar que “a esteticidade pode estar em todos os lugares, onde é
permitido viver uma vida decente: é a boniteza do corpo, da escola, das cidades, da
natureza, enfim do mundo” (STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 31). Assim, o professor-
artista é aquele que “atento, ouve com o corpo todo, sente, contempla, discute, se
envolve, repensa, fala, estuda, experimenta” (CAETANO, 2015, p. 34).
Nesse sentido, não há separação entre teoria e prática no ato de educar. A
práxis defendida por Freire busca a coerência entre teoria, palavra e ação, trazendo à
tona a “reflexão crítica sobre a prática” que “se torna uma exigência da relação
54

Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blá-blá-blá e a prática, ativismo”


(FREIRE, 1996, p. 25).
Dessa forma, o educador assume o papel de facilitador da aprendizagem pelo
“viés da sensibilidade, do ouvido, da musicalidade, da prática e da cognição”
(ZAMPRONHA, 2007, p.22), contribuindo para a construção de uma sociedade em
que as relações sejam mais sensíveis e humanas.
Colocando “no centro de sua proposta pedagógica o ser humano como sujeito
histórico e não como mercadoria por ele produzida” (PRETTO E ZITKOSKI, 2016, p.
52), o educador promove a formação de cidadãos críticos, perspicazes, inteiros que
aprendem com o corpo todo, com os sentimentos, emoções, desejos, medos, dúvidas,
paixão e também com a razão crítica (FREIRE, 1994).
Freire aponta para a necessidade de vivenciar e valorizar o processo global de
ensino-aprendizagem, destacando a necessidade de se constituir o espaço educativo
como ambiente de criação conjunta integrado à vida e ao mundo. Para ele,

Um acontecimento, um fato, um feito, uma canção, um gesto, um poema, um


livro se acham sempre envolvidos em densas tramas, tocadas por múltiplas
razões de ser de que algumas estão mais próximas do ocorrido ou do criado,
de que outras são mais visíveis enquanto razão de ser. Por isso a mim me
interessou sempre muito mais a compreensão do processo em que e como
as coisas se dão do que o produto em si (FREIRE, 2014, p.18).

No ensino e aprendizagem de música, faz-se necessário ir além da obtenção


de um “produto musical”, e valorizar o processo dos educandos, considerando suas
experiências e, a partir delas, ressignificar as práticas musicais, superando padrões
preestabelecidos de beleza e regularidade. Isso não quer dizer que a dimensão do
belo não deva estar presente nelas, mas se deve buscar sua conexão intrínseca à
existência humana e suas contradições.
Além disso, não deve desprezar os conteúdos em detrimento de uma prática
meramente assistencialista, mas oferecê-los de forma consistente, tendo em vista a
formação musical do educando. Freire assim elucida:

Não há, nunca houve nem pode haver educação sem conteúdo, a não ser
que os seres humanos se transformem de tal modo que os processos que
hoje conhecemos como processos de conhecer e de formar percam seu
sentido atual. O ato de ensinar e de aprender, dimensões do processo maior
– o de conhecer – fazem parte da natureza da prática educativa. Não há
educação sem ensino, sistemático ou não, de certo conteúdo. E ensinar é um
verbo transitivo-relativo. Quem ensina, ensina alguma coisa – conteúdo – a
alguém – aluno (FREIRE, 2014, p. 110).
55

Nesse processo, educador e educando assumem, juntos, o lugar de fazer


perguntas. Assim, o educando torna-se também sujeito do conhecimento: “Todo
ensino de conteúdos demanda de quem se acha na posição de aprendiz que, a partir
de certo momento, vá assumindo a autoria também do conhecimento do objeto”
(FREIRE, 1996, p. 124).
Na verdade, para a construção do conhecimento é necessário aprender a
aprender, bem como ensinar não é somente transmitir e informar, mas ensinar o
aprendente a construir respostas a partir de perguntas.
Considerando a música como objeto a ser conhecido, os envolvidos vão se
percebendo ao longo do percurso e assumindo a responsabilidade pelo seu próprio
aprendizado e transformação do mundo. Daí a importância de promover experiências
que valorizem o universo dos educandos, ajudando-os a ampliarem sua esfera de
compreensão da realidade calcada num contexto cultural e histórico particular.
56

3 REIVENTANDO A EDUCAÇÃO MUSICAL NA PERSPECTIVA FREIREANA

Para um educador progressista coerente não é possível minimizar, desprezar, o


“saber de experiência feito” que os educandos trazem para a escola [...] É preciso
inquietar os educandos, desafiando-os para que percebam que o mundo dado é um
mundo dando-se e que, por isso mesmo, pode ser mudado, transformado,
reinventado (FREIRE, 1995, p. 30).

Na perspectiva freireana, a valorização da experiência dos educandos é


elemento fundante numa ação educativa emancipatória. O saber de experiência feito
revela a leitura de mundo dos estudantes e deve ser considerada como ponto de
partida na relação educador-educandos.
Com a intenção de pesquisar possibilidades e limites para uma educação
musical emancipatória, no plano empírico, incluímos em nosso estudo a análise de
um caso ilustrativo que retrata a experiência musical de um professor do ensino médio
numa escola pública, uma vez que durante a pandemia de COVID-199 não foi possível
visitar escolas. Apesar da diversidade do contexto atual, limitado pela BNCC, esse
professor buscou desenvolver uma prática que traz indícios de um trabalho na
perspectiva da educação emancipatória.
Ler, reler e interpretar o conteúdo da experiência construída e vivenciada pelo
professor e pelos estudantes de um caso ilustrativo permitiu, a partir da concepção de
educação emancipatória, a identificação de elementos que possam apontar possíveis
caminhos para a reorientação de práticas de educação musical no ensino básico, a
partir do pensamento freireano.
A entrevista semiestruturada realizada com o professor responsável pela
disciplina eletiva: Música e escuta territorial: O protagonismo juvenil por meio do
desenvolvimento musical: desafios e possibilidades, desenvolvida na Escola Estadual
do Programa de Ensino Integral Prof.ª Lygia de Azevedo Souza e Sá no primeiro
semestre de 2021 produziu dados fundamentais para a análise dessa prática10.

9 A pandemia de COVID-19 foi declarada em 11 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) em decorrência de uma doença respiratória altamente contagiosa causada pelo vírus da
síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), resultando na maior crise enfrentada no último
século que impactou profundamente não só a organização do sistema de saúde, mas as formas de
interação social, a economia, a política e os instrumentos culturais.
10 A entrevista realizada foi fundamental para as análises desta pesquisa. Sua transcrição completa se

encontra no corpo deste texto (ver Apêndice A) a fim de fornecer elementos que possam sinalizar uma
abertura para a concretização de princípios e práticas de concepção educativa emancipatória.
57

Em maio de 2019, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc)


lançou o Programa Inova Educação com o propósito de oferecer novas oportunidades
para todos os estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.
As eletivas são disciplinas temáticas oferecidas semestralmente que podem ser
escolhidas livremente pelos estudantes na tentativa de enriquecer, aprofundar e
diversificar as experiências realizadas no espaço escolar, bem como expandir as
aprendizagens previstas na BNCC. Elas acontecem em dois tempos de 45 minutos
por semana e podem ocorrer em todos os ambientes escolares a depender do seu
planejamento. Tais atividades são concluídas num evento de culminância no qual há
a interação dos estudantes com o resultado do trabalho de outras turmas.
A disciplina eletiva analisada, segundo informações constantes no plano de
ensino cedido pelo professor responsável, teve como objetivo geral: desenvolver o
aprendizado musical por meio de instrumentos de percussão e do canto, favorecendo
a autoestima, a autonomia e o trabalho coletivo entre os estudantes. A música foi
entendida como vetor de socialização e de espaço de escuta dos estudantes,
fortalecendo um ponto de ancoragem em que pudessem demonstrar suas
insatisfações e desejos, obtendo um conhecimento de si, possibilitando pensar seu
projeto de vida de forma autônoma e concreta.
O plano de ensino apresentado pelo educador teve por objetivos específicos:
 Despertar o gosto pela música/percussão;
 Proporcionar a oportunidade de vivenciar a experiência artística, fazendo parte
de grupo de percussão;
 Expressar-se musicalmente, em nível básico, por meio da percussão popular;
 Estimular o desenvolvimento e a ampliação de conhecimento em música,
fazendo uso da percussão em conjunto;
 Compreender critérios relacionados ao domínio de técnicas para tocar
instrumentos de percussão;
 Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas,
econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais
(etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade,
cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado
histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e
discursos;
58

 Estimular o debate e a escuta territorial por meio dos ensaios musicais;


 Favorecer o desenvolvimento da pedagogia da presença;
 Estimular o protagonismo juvenil e a autonomia dos educandos.
A disciplina eletiva previa, como conteúdo programático, os seguintes tópicos:
 Introdução aos ritmos, organização e familiaridade com os instrumentos;
 Ritmos e musicalidade;
 Maracatu: Aprofundamento na cultura e principais influências;
 Ritmos carnavalescos e performances;
 Percussão no jazz, história e influência cultural;
 Hip Hop - História e influência cultural;
 Rap - História e influência cultural;
 Rock Internacional;
 Rock Nacional;
 Música clássica e arranjos;
 Mix de ritmos para a “batida perfeita”.
O professor responsável pela disciplina eletiva Hugo Dias, contextualiza, em
entrevista concedida em junho de 2022 (vide Apêndice A), a prática musical
desenvolvida, relatando como surgiu a ideia desse trabalho e sua intencionalidade:

Eu sou professor de filosofia e de história. Da mesma forma que a música me


tocou na adolescência, a música toca os adolescentes até os dias de hoje e
vai tocar para sempre [...] Quando cheguei à escola, eu me deparei com
instrumentos de bateria de samba, porque tempos atrás, na escola, houve
um projeto, quando tinha aquela Escola da Família, que abria aos finais de
semana. Então, ficou lá: tinha vários bumbos, tinha caixa, tinha muita coisa
que estava meio apodrecida. Tocar samba eu não sei. Na verdade, sei tocar
bateria. Afinal, a gente só dá aquilo que a gente tem [...] (HUGO DIAS).

A partir de sua própria experiência musical, o educador, atento à realidade,


encontrou no espaço escolar instrumentos que pudessem contribuir no
desenvolvimento da disciplina eletiva, que não tinha por objetivo o desenvolvimento
de formar músicos, mas seres humanos críticos e pensantes. Ao colocar no centro de
sua proposta o estudante, o educador alinha-se a uma proposta educativa
humanizadora que favorece uma visão mais autêntica e criativa da realidade.
59

A seguir, serão discutidos os organizadores selecionados a partir da leitura da


trama conceitual freireana apresentada neste trabalho como crivo crítico de análise
da experiência de educação musical.

3.1 O diálogo como condição para a construção de conhecimento

A perspectiva dialógica freireana sugere a valorização e a participação dos


sujeitos na construção dos saberes, contrapondo-se às propostas excludentes,
elaboradas de forma unilateral e desconectadas da realidade.
No documento: Aos que fazem a educação conosco em São Paulo (1989),
Paulo Freire ressalta a importância do diálogo ao considerar as vozes de todos os
indivíduos na construção do projeto político-pedagógico da própria escola:

Não devemos chamar o povo à escola para receber instruções, postulados,


receitas, ameaças, repreensões e punições, mas para participar
coletivamente da construção de um saber, que vai além do saber de pura
experiência feito, que leve em conta as suas necessidades e o torne
instrumento de luta, possibilitando-lhe transformar-se em sujeito de sua
própria história (SÃO PAULO, 1989, p. 8).

Nesta dimensão, os educadores são chamados a apresentar suas propostas


e a discutir as diferentes formas de viabilizá-las e a identificar o papel da
administração neste processo, de forma a garantir um esforço integrado para
viabilizar a mudança (SÃO PAULO, 1989, p. 9).

A escola não é local para receber instruções apenas, mas deve impulsionar os
estudantes a tornarem-se sujeitos de sua própria história, construindo relações
horizontais onde todos os envolvidos aprendam, ensinem, abrindo-se aos outros, e
encarando os desafios da vida. Desse modo, a opção dialógica deve perpassar todas
as práticas educativas desde os momentos de planejamento, de decisão sobre os
objetivos de trabalho, escolha do conteúdo e avaliação (A.M. SAUL; A. SAUL, 2018).
Nesse sentido, o ensino e aprendizagem de música, ao considerar os
interesses, valores e saberes dos estudantes, pode promover relações dialógicas
comprometidas com a humanização que possibilitem a construção de sujeitos críticos
que, educando-se em comunhão a partir do movimento dialético ação-reflexão-ação,
sejam capazes de transformar o mundo e empenhar-se por uma vida digna para si
mesmos e para o outro:
60

tratar da educação musical no ensino médio nos exige pensar, de um lado


sobre os jovens e suas relações tanto com a música quanto com a escola e,
de outro, sobre a escola que queremos e que podemos construir para esses
jovens (DEL-BEN, 2012, p. 38).

Promover uma educação musical transformadora exige constante reflexão


sobre a relação do jovem com a música no contexto atual e com a própria escola que
o acolhe a fim de que seja democrática, crítica e possa ressignificar, por meio do
diálogo, as propostas autoritárias da BNCC.
Encontramos na disciplina eletiva analisada ações permeadas pelo diálogo que
se concretizou através da escuta atenta e sensível. Ao justificar a escolha do nome
da eletiva, o educador coloca os sujeitos numa relação horizontal que deu visibilidade
às suas vozes:

A intenção foi escutar o sujeito além da fala, escutar o espaço no qual está
inserido, do tempo e tudo isso. A minha ideia era justamente fazer essa
escuta territorial, escutar os meninos, a identidade dos meninos, as
experiências deles, as trocas e, nesse sentido, utilizar a música como o vetor
para isso. A música, então, entrou como coadjuvante e saiu como
personagem principal que sempre foi o pano de fundo da escuta, da parceria
e daquilo que surgiu. Desde o começo, tinha essa intenção de se ter uma
escuta para além do que se fala onde os meninos pudessem se colocar ali
(HUGO DIAS).

É bastante visível a intenção dialógica impulsionada pela música, que


proporciona aos estudantes a oportunidade de expressarem sua identidade. Desta
forma, nessa prática, o ensino de música ultrapassou os limites da técnica,
apresentando-se como instrumento potente de humanização e reconstrução do
mundo.
Nessa compreensão dialógica, o professor foi estabelecendo pontos de contato
com as experiências que os estudantes traziam e, ao longo do percurso, propunha
novas possibilidades. Ele relata como as sugestões musicais que os adolescentes
apresentavam foram sendo incorporadas em sua prática:

Um exemplo disso foi Racionais. Os próprios estudantes sugeriram a música


“Vida Loka”. Eu continuei insistindo para que se lembrassem das “antigas”.
Eles disseram: “Tem uma que meu pai conhece: ‘Fim de semana no parque’”.
Foi muito legal porque fala do parque Santo Antônio, que foi o lugar onde eu
nasci. E fui ampliando com outras referências como: “O homem na estrada”,
“Ela partiu” (Tim Maia) Fazendo relação com outras músicas [...]. Foi assim...
construindo aos poucos. Ampliando e fazendo relação com outras coisas,
possibilitando que ouvissem e pensassem outras possibilidades. Em nenhum
momento recriminando, mas orientando. Um ajudou o outro. Certa vez, eu
perguntei: O que a gente vai tocar? Foi aí que se destacou ainda mais a
61

participação dos estudantes, porque surgiram coisas que não dava ou, às
vezes, eu não conhecia para poder tocar no violão. Até que um aluno sugeriu:
“Ah, vamos ver o Natiruts.” Apareceu também a sugestão do Racionais que
acabou sendo substituída pela música: “Gostava tanto de você” do Tim Maria
(HUGO DIAS).

Como “momento em que os humanos se encontram para refletir sobre a


realidade tal como a fazem e refazem” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 122), o diálogo
propicia a aproximação com a existência e a identidade dos educandos, tornando o
processo de ensino-aprendizagem mais significativo. É no encontro dialógico entre
educandos e educadores, mediatizados pelo mundo, que se dá a produção de
conhecimento. Partindo desse pressuposto, o educador pode experienciar a abertura
ao outro, a disponibilidade à vida e aos seus desafios:

Você vai entendendo um pouco mais a questão da identidade desses alunos


não vistos apenas de forma isolada ali na sala. Você vai aprendendo o nome
da família, dos pais, além de perceber que a família não é presente na escola
pública. Você fica sabendo um pouco mais da realidade deles, como eles
vivem, onde vivem, com quem vivem, quais as perspectivas de futuro que
muitos, na verdade, não têm (HUGO DIAS).

Nesse sentido, entende-se que a realidade sociocultural dos estudantes foi


considerada na prática educativa que, por sua vez, relacionava-se com o cotidiano,
com os sofrimentos, com as desigualdades e contradições vivenciadas pelos sujeitos,
buscando desvelar e superar realidades desumanizadoras:

A maioria deles pertence à comunidade Mauro, que é uma comunidade que


fica aqui próxima ao metrô São Judas, zona sul de São Paulo. Muitos dos
alunos que estavam na eletiva participavam do instituto Menino São Judas11
para meninos carentes ou que cumprem medidas socioeducativas. Eles
chamam de “o Instituto”. Lá, eles aprenderam várias coisas. [...] A ideia
sempre foi essa: que a música pudesse vir deles e eu pudesse tocar, apesar
das minhas limitações (HUGO DIAS).

Cabe ressaltar que a relação educador-educando é sempre mediada pela


realidade que guiará o processo de ensino-aprendizagem a partir da leitura do
contexto e das necessidades concretas dos estudantes, promovendo um novo olhar
crítico sobre elas. Em vista disso, fazer música é “ler o mundo externo e interno,

11
O Instituto Meninos de São Judas Tadeu (IMSJT) é uma obra social, sem fins lucrativos, mantida pela
Associação Dehoniana Brasil Meridional – ADBM. Foi fundado em 15 de novembro de 1946. No início
de suas atividades, funcionava em regime de internato, acolhendo crianças órfãs de pai, de mãe ou de
ambos, abandonadas ou de famílias em precária situação financeira. É uma referência em acolhimento
e amparo às crianças, adolescentes e às famílias que mais carecem na cidade de São Paulo (SP).
62

emprestando-lhe significação. É um gesto que se vive, é ouvir, é descobrir, é


descobrir-se” (ZAMPRONHA, 2007, p.162).

3.2. A autonomia como exercício crítico permanente

Paulo Freire conclama a ultrapassar o comportamento apassivado,


domesticado, limitado na aventura de criar, contido em sua autonomia e na autonomia
de sua escola. (FREIRE, 1993) Para ele, “autonomia é justamente libertar o ser
humano das cadeias do determinismo neoliberal, reconhecendo que a história é um
tempo de possibilidades, ensinando a ‘pensar certo’ com a força do testemunho”
(MACHADO, 2016, p. 97).
Desse modo, pela música, os estudantes, em colaboração e em diálogo
problematizador com os educadores, sujeitos mais experientes, podem construir sua
liberdade, apropriando-se dos conteúdos consistentes de formação, confiando em si
mesmos como sujeitos históricos que podem opinar, decidir, questionar, problematizar
a realidade em que estão imersos, formular perguntas e respostas, tendo por
horizonte sua transformação.
No decorrer da eletiva, o educador coletou algumas falas que expressam uma
ideologia fatalista e imobilizante que alimenta o discurso neoliberal, no qual o
estudante deve se adaptar a uma realidade que não pode ser modificada:

Isso está muito presente nos discursos dos alunos: “Ah, eu não vou ser nada,
não consigo ser nada, eu não quero ser nada... pra que estudar?” A
vulnerabilidade socioeconômica reverbera no discurso de desvalorização do
próprio ser humano que não encontra saída na escola, na própria sociedade
para poder se emancipar (HUGO DIAS).

Diante disso, rompendo com essa ideia, a autonomia foi sendo promovida dia
após dia, num processo constante de amadurecimento no qual os estudantes
puderam fazer escolhas, tomar decisões, solucionar conflitos e alargar possibilidades,
conforme o relato do educador:

No começo, eu mostrei pra eles o que era ritmo percutindo caneta e lápis na
mesa. Então, a gente falou de ritmo. No início das aulas, mostramos vários
ritmos populares, desde o rock ao frevo, várias coisas, maracatu etc. [...]
Depois, fomos para os instrumentos em si, mostrando como cada um
funcionava. Apresentei os instrumentos de percussão e com isso cada aluno
foi escolhendo o seu [...] As músicas foram escolhidas por eles também, do
que dava pra fazer. Tinha coisa que não dava certo, por exemplo, tocar trap,
63

que é um ritmo que a molecada gosta. Então, com o tempo, foi ficando
orgânico, nascendo a partir do que um e outro trazia. Aquele que era mais
engajado acabava liderando e ajudando o outro. Quando saía do ritmo, um já
orientava o outro e corrigia. Até a gente pegar o ritmo legal, demandou tempo,
mas depois começou a fluir de forma automática (HUGO DIAS).

Dessa forma, os educandos foram conduzidos a pensar criticamente sobre si


mesmos. Exercendo sua liberdade e confiança nos outros colegas, ajudavam-se
mutuamente, questionando e opinando a fim de que todos entrassem no mesmo ritmo.
Esse trabalho culminou numa apresentação realizada no espaço escolar em
comemoração ao Dia da Consciência Negra.
Tamanha foi a repercussão dessa prática bem-sucedida que a turma e o
professor foram convidados pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo a
subirem ao palco da Sala São Paulo12 a fim de se apresentarem para uma plateia de
1.200 profissionais da educação, estudantes e familiares, em um evento promovido
pela própria Secretaria.

O evento denominado “Show de talentos na sala São Paulo”13 com escolas


de grande parte do estado, reuniu gente de longe. [...] Foi fantástico, porque
nós tivemos, então, acesso ao camarim. Muitas vezes, a gente vai na sala
São Paulo ver a apresentação, mas não vai ver a parte de dentro, que
também é muito legal. Então, foi interessante porque os meninos e eu
também estivemos sentados nos lugares da OSESP (Orquestra Sinfônica do
Estado de São Paulo). Você via a plaquinha dos músicos e você estava ali
também. [...] Foi uma experiência fantástica e emocionante para mim e para
eles que vou guardar para o resto da minha vida. Só de ver, só de assistir, eu
já fiquei emocionado, porque é maravilhoso, muito interessante. Ter levado
os estudantes até a sala São Paulo foi o reconhecimento de que um menino
de favela, preto, pobre, pode sim, um dia pisar dentro de um palco dos mais
bonitos que a gente tem no nosso país e, quem sabe, até no mundo (HUGO
DIAS).

Assim, essa experiência musical foi capaz de humanizar os educandos, que,


ouvindo, tocando e aprendendo com o outro, superaram os obstáculos e, confiando
em si mesmos, puderam exercer seu papel de ser e estar no mundo como sujeitos
sócio-históricos-culturais, capazes de transformar a realidade.

12 A Sala São Paulo localiza-se na Praça Júlio Prestes, no bairro de Campos Elíseos, no centro da
cidade de São Paulo. Faz parte de um importante conjunto arquitetônico e patrimônio histórico da
cidade, sendo palco para orquestras, corais, grupos de dança, atores e solistas do mundo todo.
13 A apresentação na Sala São Paulo foi registrada em vídeo, disponível na plataforma digital YouTube:

Apresentação musical dos alunos da EEEI Profa. Lygia de Azevedo Souza e Sá junto ao Prof. Hugo
Dias. Youtube, 22 mar. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qAyOvkCtfec. Acesso
em: 27 ago. 2022.
64

3.3. A criatividade como forma ativa, consciente e sensível de estar no mundo

Para Freire, a educação, por si só, é um acontecimento estético que conduz a


uma nova maneira agir no mundo, envolvendo-se com a realidade muitas vezes
desumanizada. Nesse sentido, carrega em si um potencial transformador que auxilia
no processo de (re)criação de nós mesmos que, despojando-nos de nossas certezas
cristalizadas, abrimo-nos para novas possibilidades em favor de um mundo mais
humano.
Ela pode ser uma alternativa para fomentar a transformação de uma situação.
Freire exprime que “o diálogo em si é criativo e re-criativo. Em última análise, você
está se recriando no diálogo (FREIRE, 1986, p. 89).
Na prática analisada, a criatividade demonstrou estar presente, contribuindo no
processo de aprendizado e de exploração dos sujeitos e do mundo:

A minha ideia era criar um ponto de ancoragem dos estudantes para que
pudessem, entre eles, trocar as ideias, refletir, pensar comigo. Aí eu agia, na
verdade, como um líder dentro desse grupo pra que pudessem, juntos, criar
alguma coisa e sentir que essa criação é verdadeira e deu frutos. [...] Naquele
momento em que estão entre eles fazendo música é que têm a possibilidade
de falar das coisas, da vida, se emocionam... e aí conseguimos até mesmo
criar algumas músicas, quem sabe plantar uma sementinha de um cantor, de
um instrumentista (HUGO DIAS).

Paulo Freire ressalta que ensinar exige generosidade contrária à autoridade


docente mandonista, rígida, que não conta com nenhuma criatividade do educando,
impedindo nele o gosto de aventurar-se (FREIRE, 1996). Assim sendo, a postura do
educador provocou nos educandos o “alvoroço dos inquietos, a dúvida que instiga e
a esperança que desperta” (FREIRE, 1996, p.48).
Foi esta a experiência relatada pelo educador que, durante as aulas, escutou
atentamente os estudantes, que sugeriram uma música aprendida no Instituto
Meninos de São Judas Tadeu. Assim, a composição instrumental foi recriada
coletivamente:

Eles sugeriram: “Tem aquela música do Instituto”. Daí um batucou, o outro


puxou e aí a gente recriou a música do Instituto. Ficou conhecida como “a
música do Instituto”, que era só batuque, aí eu coloquei um riff simples de
guitarra, era um suingue que abre a apresentação na sala São Paulo, que é
uma música que eles trouxeram a batida, eu coloquei o suingue de guitarra
(HUGO DIAS).
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Nesse processo criativo, uma das estudantes da turma desenvolveu uma letra
para ser acrescida à composição instrumental, que partiu de uma situação-limite
percebida por ela: a discriminação étnico-racial:

Miscigenação, como me encaixar?


Pele nem clara e nem escura, cabelo cacheado, às vezes alisado “morena’’?
Dizem que morena não é branca e nem preta ou que morena é branca do cabelo preto
Mas como saber quem sou eu? Onde eu me encaixo?
Existem pessoas brancas do cabelo crespo? Existem pessoas negras de cabelo liso?
Definimos nossa raça pelo nosso tom de pele?
Hoje em dia, muitas pessoas não conseguem definir a própria raça
“ah, você não é negra de verdade, tem a pele muito clara...”
Como definir uma pessoa miscigenada?
Quando saímos na rua, vemos muitas pessoas miscigenadas, quando vamos em uma empresa de
grandes negócios, vemos pessoas brancas e um ou dois negros.
O racismo não está somente no tom de pele, está na desigualdade...
Na falta de oportunidade...
Uma pessoa branca consegue um emprego muito mais fácil do que uma pessoa negra! Um aluno
pratica racismo com o colega depois de fazer um trabalho sobre a consciência negra. Hoje em dia,
vemos pessoas negras agredindo outras pessoas negras.
Acho que o problema está nas pessoas, não no tom de pele.
(Estudante do 2º ano do Ensino Médio, novembro de 2021).

Essa prática educativa permitiu aos educandos o desenvolvimento sensível de


estar no mundo, contribuindo, por meio da arte, ao enfrentamento às desigualdades e
favorecendo o pensar crítico, ao impulsionar os estudantes para a leitura crítica da
realidade.
Evidentemente, foi possível perceber limites nessa prática educativa, a
caminho de uma educação musical emancipatória. Coube ao professor, mesmo sem
formação específica na área de música, a partir de seu compromisso com uma
educação transformadora e do seu esforço em buscar novos conhecimentos e
metodologias para superar as limitações da BNCC, promover práticas comprometidas
com a humanização dos estudantes trabalhando, igualmente, os elementos técnicos
da linguagem musical.
Mesmo a unidade escolar tendo oferecido a infraestrutura básica para que o
professor desenvolvesse seu trabalho, o espaço ainda carece de melhorias, como
66

instalação de salas apropriadas e aquisição de instrumentos e recursos que garantirão


a continuidade desta ação com mais qualidade e eficiência.
Observamos, também, que a educação musical ainda é desarticulada com
outras disciplinas do currículo escolar e requer condições necessárias para que possa
ter um valor cada vez mais significativo no processo de educação escolar,
constituindo-se efetivamente como área de conhecimento.
67

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos


atos de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura
humanizante. Por esta razão, a utopia é também um compromisso histórico
(FREIRE, 1980, p. 27).

Esta pesquisa teve o propósito de analisar a proposta da linguagem artística


Música no componente curricular Arte expresso na Base Nacional Comum Curricular
do Ensino Médio tomando como crivo crítico elementos da pedagogia freireana,
enfocando os conceitos de emancipação e humanização.
No decorrer da investigação, foi possível constatar que a proposta para a
educação musical presente na BNCC está na contramão de uma formação
humanizada e emancipatória dos estudantes do Ensino Médio, ao impor a lógica da
padronização na educação básica em nível nacional, que preconiza os valores da
eficiência, produtividade e da qualidade centrada em resultados.
Embora haja a exigência da música como conteúdo obrigatória da educação
básica, a BNCC a concebe apenas como “unidade temática” incorporada ao
componente curricular Arte. Ao tornar-se subordinada à área de Linguagens, a Arte,
especialmente a música, perde seu aspecto de área de conhecimento específico e
corre o risco de se dissolver entre as grandes áreas de conhecimento do Ensino
Médio.
Observa-se nas prescrições do documento que o foco do aprendizado musical
são os conhecimentos apresentados, assimilados e manuseados isoladamente da
realidade concreta, das subjetividades e dos processos de formação do ser humano,
desprovidos de criação, estabelecimento de relações e atribuição de significados às
experiências sociais da vida pessoal e coletiva, prevalecendo a força hegemônica do
ensino tecnicista, onde a dimensão humana e transformadora da educação fica em
segundo plano.
Tendo por crivo crítico de análise a pedagogia freireana, verificamos que a
BNCC-EM, defendendo uma centralização curricular, não permite a leitura da
realidade, deixando de estabelecer pontos de contato com o cotidiano, com as
mazelas do tempo presente e com as experiências vividas no chão da escola.
Ademais, silencia as vozes dos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.
Ao se apresentar como “referência nacional comum obrigatória”, remove a
autonomia dos sujeitos escolares, tornando-os submissos para atingir as
68

competências, habilidades, atitudes e valores pré-determinados, promovendo, assim,


o controle, padronização e homogeneização do currículo e da formação docente.
Por meio da prescrição de saberes, a BNCC acaba limitando a curiosidade e
impedindo a criatividade conectada à vida, que permite a (re)leitura crítica do mundo
em sua árdua tarefa de transformá-lo por meio da tomada de decisões, enfrentamento
de conflitos e do rompimento de padrões estabelecidos.
Ao refletirmos sobre um dos objetivos que nos propusemos a responder, neste
estudo, acreditamos que, apesar da denúncia necessária, cabe buscar o anúncio,
como propõe Freire. Torna-se urgente lutar por políticas e práticas que enfrentem os
limites do documento. Como foi possível depreender, o trabalho de Hugo Dias,
professor do Programa de Ensino Integral da Escola Estadual Prof.ª Lygia de Azevedo
Souza e Sá, no tocante à educação musical, esteve compromissado com a
humanização na formação crítica dos estudantes. Isso fez com que a disciplina eletiva
demonstrasse a possibilidade de concretizar princípios e práticas de uma concepção
educativa emancipatória, com possíveis caminhos para a reorientação de uma nova
educação musical no Ensino Médio, em confronto com proposições da BNCC.
O diálogo pode ser uma possibilidade para uma nova prática quando, por meio
dele, novas alternativas são propostas. A arte musical pode ser criada para ser
coletiva e trazer para a sala de aula experiências de vida e, a partir delas, debater e
criar caminhos a serem escolhidos que, após serem traçados, passam a ser de todos.
A autonomia foi sendo construída progressivamente, num processo de
amadurecimento no qual os estudantes puderam fazer escolhas, tomar decisões,
solucionar conflitos e alargar possibilidades, emponderando-os para que sejam
capazes de intervir no mundo. Ouvindo, tocando e aprendendo uns com os outros,
superaram obstáculos e puderam apresentar o resultado deste percurso num dos
palcos mais importantes do país e do mundo, o da Sala São Paulo.
Na prática analisada, a criatividade, entendida como a ação de ‘criar’, ‘recriar’,
‘inventar’ ou ‘reinventar’ (ROSAS, 2016), pode contribuir para a humanização ao
provocar uma nova forma ativa, consciente e sensível de estar no mundo. A
experiência tornou a turma mais humanizada, democrática e solidária. Começou na
sala de aula, revelou-se em outros espaços e no convívio com os diferentes. Conforme
o depoimento de uma das estudantes:
69

Acho que a parte que eu vou levar pra minha vida é que a música deixou a
turma mais unida, porque tinha muita gente ali que não se falava, na sala, e
a música fez com que eles pudessem entrar mais no nosso grupinho. Nunca
esperei que a gente fosse ficar tão unido por conta da eletiva de música14.

As práticas desenvolvidas na escola só foram possíveis por conta do


movimento corajoso do professor, que ousou romper padrões, incorporando em sua
prática elementos que provocassem os estudantes a “serem mais,” movendo seus
sentidos, emoções e provocando mudanças. Segundo ele, as atividades foram
construídas coletivamente, com a identidade de todos:

Numa ação educativa, o professor não é neutro. Há muito de mim naquele


trabalho que reverberou de forma positiva no sentido da participação dos
alunos. [...] A ideia não era desenvolver músicos, mas desenvolver um futuro
interior, uma perspectiva, uma união, e, nesse sentido, acho que nós
conseguimos (HUGO DIAS).

Ressalta-se, assim, a importância da música nos processos de ensino e


aprendizagem. Como parte necessária e não periférica da vida humana, deve ocupar
os espaços escolares como ferramenta ampla de conhecimento e transformação do
ser humano que, consciente de sua incompletude e encontrando sua vocação
ontológica de “ser mais”, torna-se capaz de criar e recriar o mundo, fazendo dele um
local melhor para se viver.
É necessário ultrapassar a concepção de música fragmentada e anacrônica da
BNCC nos limitados descritores de competências e habilidades, na qual ela torna-se
elemento abstrato e independente dos sujeitos. Na prática, é a escolha do professor
que deve articular as propostas a serem trabalhadas que poderão ser revistas e
alteradas na interação com os estudantes.
Reforça-se o esforço na busca de uma escola crítica, emancipatória que possa
ressignificar as propostas autoritárias da BNCC, construindo novos horizontes por
meio de ações coletivas na tentativa de construir um currículo significativo e coerente
com as contradições locais, que preze pela racionalidade, autonomia de pensamento,
sensibilidade para com os diferentes, cooperação e diálogo, percorrendo um caminho
contra-hegemônico.

14Registro da Eletiva de Música e Escuta Territorial na EEEI Profa. Lygia de Azevedo Souza e Sá.
Youtube, 6 de dezembro de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cwDIV5WU38w.
Acesso em: 27 ago. 2022.
70

Consideramos que o tema desta pesquisa ainda será motivo de análises e


estudos, tendo em vista a importância do assunto, que exige constante reflexão e
aprofundamento. Paulo Freire - grande mestre e inspirador - nos impulsiona a seguir
em frente, reinventando seu legado em nossas pesquisas teórico-práticas,
acreditando que uma nova sociedade, mais justa, democrática e solidária é possível.
71

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encaminhado ao CNE no contexto das Audiências Públicas sobre a
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80

APÊNDICE A

Transcrição da entrevista realizada

Identificação do entrevistado
Nome: Hugo Leonardo de Araújo Dias
Formação: História, Filosofia e Pedagogia
Ocupação atual Professor coordenador da área de ciências humanas
Escola em que atua E.E. PEI Profª Lygia de Azevedo Souza e Sá
Data da entrevista 20 de junho de 2022
Disciplina eletiva Música e escuta territorial: O protagonismo juvenil por meio do
desenvolvimento musical: desafios e possibilidades

Pesquisador: Por que você escolheu ser professor e atuar na rede pública?
Como foi seu “encontro” com a música?
Hugo: Eu acho que a minha história no ensino público começa sendo aluno de
escola pública. Eu fui aluno da escola pública a vida inteira, estudei na prefeitura
durante um bom tempo e depois fui para a escola do estado quando fui para o ensino
médio. Durante a adolescência, entrei em contato com a música e com o movimento
punk que tinha na região que eu vivia, que era uma região ali do Grajaú, extremo sul
da zona sul de São Paulo, bairro bem pobre, que está naquela localidade que tinha
uma efervescência cultural muito grande nesse sentido. Então, quando eu tinha uns
13 anos, meus amigos me arrumaram um violão com duas cordas. A gente fazia um
som, batucava, ouvia as músicas, gravava, [escutava] música da rádio que passava,
porque há quase 30 anos não tinha mp3, YouTube, essa grande gama de recursos.
Então, alguns mais velhos, quando um amigo mostrava uma banda diferente, e a
gente se encantava, ouvia aquilo muitas vezes, porque era o que tinha. Não havia
muito o que ouvir e aí eu aprendi a tocar. Hoje, eu sei tocar alguns instrumentos, mas
todos eles de forma muito popular, sem teoria e de forma simples, nada muito
elaborado, mas algo mais orgânico mesmo. E eu sempre tive esse trabalho dentro da
escola pública relacionado à música. Eu sou professor de filosofia e de história. Da
mesma forma que a música me tocou na adolescência, a música toca os adolescentes
até os dias de hoje e vai tocar para sempre. Então, eu tive uma proximidade muito
grande com meus alunos por meio da música, daqueles que gostavam de tocar,
estavam aprendendo a cantar alguma coisa ou admirava o professor por tocar algo.
Então, isso sempre foi uma fonte de identificação e de ligação minha com os meus
81

alunos e que possibilita até os dias de hoje que eu seja bem visto e sirva como
exemplo a ser seguido de uma forma bacana.
Pesquisador: Como você vê a relação entre música e educação? (no contexto
da educação básica, sobretudo na escola pública)
Hugo: Eu tenho certeza de que a música na escola pública tinha que ser muito
mais valorizada, com profissionais realmente capacitados para isso. No meu caso,
sou um professor de história e filosofia. Então, não me considero um professor de
música, nem tenho capacitação para isso. Porém, a música deveria ser muito mais
investida, justamente porque traz essa capacidade de criar grupos colaborativos com
alunos mais indisciplinados, por exemplo, que foi o caso dessa minha última
experiência: foram alunos da comunidade Mauro, que vieram dessa pandemia, que
trouxe um abismo ou um raio-x dos malefícios dessa situação. Possibilitou que os
meninos se juntassem no grupo, que era a sala de aula, mas era fora da sala onde
eles estiveram, é a responsabilidade de desenvolver esse trabalho. Então, eu me
baseei muito nas ideias de um educador chamado Anton Makarenko, que diz que você
deve dar responsabilidade. Ele trabalhava com Colônia, na Colônia Gorki, que era
como a Fundação Casa, se a gente puder fazer um paralelo. Ele dava
responsabilidade aos alunos que tinham um pouco mais de problema, às vezes de
indisciplina, mas que tinha uma liderança muito grande; eu colocava para liderar
certas partes.
Pesquisador: Como surgiu a ideia de propor uma disciplina eletiva com foco
na música? Conte como isso aconteceu e qual foi a sua intenção com esse trabalho.
Hugo: Então, tive que criar uma eletiva. Eu via esses instrumentos e já ficava
pensando em algo. No primeiro semestre eu fiz outra eletiva, mas falei que no segundo
semestre iria fazer sobre isso e caiu em minhas mãos uma sala de segundo ano, que
era considerada, como as pessoas diziam, a pior sala da escola, a mais difícil, mais
problemática, que 90% são meninos, com poucas meninas.
Quando cheguei à escola, eu me deparei com instrumentos de bateria de
samba, porque tempos atrás, na escola, houve um projeto, quando tinha aquela
Escola da Família, que abria aos finais de semana. Então, ficou lá: tinha vários
bumbos, tinha caixa, tinha muita coisa que estava meio apodrecida. Tocar samba eu
não sei. Na verdade, sei tocar bateria. Afinal, a gente só dá aquilo que a gente tem.
Aí eu pensei nessa ideia da questão da colaboração do Makarenko, de falar assim: se
cada um fazer o bumbo, outro a caixa, o outro fazer uma parte no chimbal, e outro,
82

que tinha um tom tom conseguir fazer virada, a gente tem uma bateria, como uma de
rock, de música popular, só que uma orquestra de bateria.
Pesquisador: Como foi a escolha do nome da eletiva: “Música e escuta
territorial: O protagonismo juvenil por meio do desenvolvimento musical: desafios e
possibilidades”?
Hugo: A ideia não era desenvolver músicos, mas desenvolver um futuro
interior, uma perspectiva, uma união, uma junção e, nesse sentido, acho que nós
conseguimos: escutar o sujeito além da fala, escutar o espaço no qual está inserido,
do tempo e tudo isso. A minha ideia era justamente fazer essa escuta territorial,
escutar os meninos, a identidade dos meninos, as experiências deles, as trocas e,
nesse sentido, utilizar a música como o vetor para isso. A música, então, entrou como
coadjuvante e saiu como personagem principal que sempre foi o pano de fundo da
escuta, da parceria e daquilo que surgiu. Desde o começo, tinha essa intenção de se
ter uma escuta para além do que se fala onde os meninos pudessem se colocar ali.
Naquele momento em que estão entre eles fazendo música é que têm a possibilidade
de falar das coisas, da vida, se emocionam... e aí conseguimos até mesmo criar
algumas músicas, quem sabe plantar uma sementinha de um cantor, de um
instrumentista.
E a ideia surgiu disso. Daí pensei: “o que eu vou fazer com esses meninos e
com essas meninas? Vou criar alguma coisa relacionada a isso.” No começo, eu
mostrei pra eles o que era ritmo percutindo caneta e lápis na mesa. Então, a gente
falou de ritmo. No início das aulas, mostramos vários ritmos populares, desde o rock
ao frevo, várias coisas, maracatu etc. Aqueles ritmos desconhecidos, eu colocava no
YouTube e mostrava a eles. A gente conversava e isso durou umas duas aulas.
Depois, fomos para os instrumentos em si, mostrando como cada um funcionava.
Apresentei os instrumentos de percussão e com isso cada aluno foi escolhendo o seu.
Com o passar do tempo, a grande maioria ficou no bumbo, outros na caixa, no tom
tom e triângulo.
Então, no vídeo você pode ver que são segmentos simples, ‘tum tá, tum tum,
tá’, mas que isso demandou tempo e as músicas foram escolhidas pelos alunos
também, do que dava pra fazer. Tinha coisa que não dava certo, por exemplo, tocar
trap, que é um ritmo que a molecada gosta. Então, com o tempo foi ficando orgânico,
nascendo a partir do que um e outro trazia.
83

Pesquisador: Como foi o convite e a experiência de apresentação do grupo de


estudantes na Sala São Paulo?
Hugo: Então, a eletiva como culminância, que é essa finalização, nós fizemos
com uma apresentação. Como sou professor coordenador de área de ciências
humanas, eu organizei com a minha equipe, um evento sobre o dia da consciência
negra. Então, teve desfile, uma série de coisas nesse sentido e, por fim, dentre as
apresentações que ocorreram no dia, foi a dos meninos. Nós fizemos um
documentário do começo, como ocorreu, com o passo a passo da eletiva e isso
chegou até a Secretaria de Educação por meio de um amigo que mandou para outro
amigo. O evento, que foi denominado “Show de talentos na sala São Paulo” com
escolas de grande parte do estado, reuniu gente de longe. A eletiva ocorreu e nós
tivemos basicamente uma semana pra ensaiar, mas foi tranquilo, porque a gente já
estava bem preparado por conta da eletiva. O que fazíamos era basicamente ensaiar
ou, às vezes, tirar outras músicas, criar outras coisas. Aí, selecionamos três músicas
para a apresentação, já que nós tínhamos somente 10 minutos e, como nosso trabalho
foi bem bacana, nós abrimos os shows. Acho que foram umas 20 apresentações. Nós
fomos os primeiros. Foi fantástico, porque nós tivemos, então, acesso ao camarim,
ficamos nos camarins. Muitas vezes, a gente vai na sala São Paulo, ver a
apresentação, mas não vai ver a parte de dentro, que também é muito legal. Então,
foi interessante porque os meninos e eu também estivemos sentados nos lugares da
OSESP. Você via a plaquinha dos músicos e você estava ali também. Fomos bem
tratados nesse sentido, não só nós, como todos os outros que participaram. Cada um
tinha seu camarim, cada grupo. Passamos o som e, então, queimou meu amplificador
da guitarra. Eu liguei a guitarra em linha. Ela deu um pequeno problema no começo,
mas foi boa a apresentação: uma experiência fantástica e emocionante para mim e
para eles. Eu imagino, quer dizer, o aluno protagonista. Ele ali, como aluno artista, o
professor artista, todos na mesma [jornada]. E eu toquei, fiz umas partes de backing
vocal, mas quem cantou, quem tocou basicamente foram os meninos e o público
estimado em 1200 pessoas. Foi bem bacana. Foi bem elogiado. Tivemos convite até
pra ir a outras escolas, porém, envolveria dinheiro. Aí ficou difícil. Como isso veio via
Secretaria da Educação, a própria Diretoria de Ensino mandou ônibus, fornecendo
toda a estrutura, porque a gente tinha que levar os instrumentos, que são grandes.
Então, foi uma experiência que eu vou guardar para o resto da minha vida. Só de ver,
só de assistir, eu já fiquei emocionado porque é maravilhoso, muito interessante.
84

Pesquisador: Sobre as possibilidades para a realização do trabalho com a


música: Quais foram as condições que você teve? (Apoios técnicos, materiais,
formação, outras condições)
Como você conseguiu os materiais/equipamentos necessários? (instrumentos
musicais, equipamentos de som, outros equipamentos) Houve colaboração da
unidade escolar/diretoria de ensino/secretaria da educação, comunidade escolar?
Hugo: Para realizar a eletiva, eu tive um apoio da escola para consertar um ou
outro instrumento: uma caixa, uma coisa ou outra que eu precisava, por exemplo, uma
pele. Foi um investimento muito baixo, mas a escola ajudou dentro de um orçamento
que existe voltado para essas coisas da eletiva. O restante a escola tem, pois é bem
estruturada: tem equipamentos, caixa de som, tinha tudo o que manda o figurino. E o
resto com coisas minhas: meus instrumentos, minha guitarra. O amplificador e até o
microfone são da escola, inclusive microfone sem fio. Então, a gente teve uma
estrutura muito legal para poder fazer isso ao lado da quadra da escola. A gente se
reunia toda sexta-feira, que era o dia da eletiva. O único problema que a gente teve
foi com os vizinhos, pois a eletiva começava às 9h, se não me falha a memória. E aí
vinha o som alto e alguns vizinhos reclamavam, até porque estavam em trabalho
remoto. A gente tentava pegar um pouquinho leve, mas acho que não matou ninguém,
não. Deu certo pra todo mundo.
Pesquisador: Como você conseguiu realizar este trabalho com música na
escola apesar dos limites da BNCC?
Hugo: Conheço a BNCC, obviamente, de uma maneira muito superficial.
Deveria conhecer mais. Estou conhecendo mais agora, estudando. Na verdade, não
me baseei em documento ligado à educação propriamente dita, mas numa proposta
de uma psicanalista chamado Jorge Broide, um professor da PUC, inclusive, que tem
um trabalho voltado para a psicanálise em situações sociais críticas. Então, ele tira
um pouco essa ideia da psicanálise de consultório de alto padrão e percebe que é
possível existir essa troca, ser ouvido por alguém que é colocado dentro de um
suposto saber como professor e o aluno encontrar ali, então, uma ancoragem, que é
esse termo que ele usa. Porque, às vezes, a gente percebe que o aluno tem problema
em casa, problema de violência, pobreza e tal, mas tem alguma coisa que segura esse
cara nessa vida. Essa ancoragem aqui, que o próprio Broide trabalha com Pichon
Rivièri, que é um argentino, que também aborda as questões dos grupos. Então, a
minha ideia não era criar a música, nem é na verdade, embora a gente pudesse. O
85

vocalista do nosso grupo, o Vinicius, ele tem até o nome artístico agora, ViniP, está
gravando uns traps, umas coisas bem bacanas, tem até vídeo dele no YouTube, já
que ele mesmo produziu em casa, no quarto dele. Assim, a minha ideia era criar um
ponto de ancoragem dos estudantes para que eles pudessem, entre eles, trocar as
ideias, refletir, pensar junto comigo. Aí eu dava bronca neles, servindo, na verdade,
como um líder dentro desse grupo pra que eles pudessem, juntos, criar alguma coisa
e sentir que essa criação é verdadeira e deu frutos. Então, no final, você pode
perceber que uma das meninas no documentário se emociona e fala ‘ah, nós somos
uma família’ e isso nunca saiu da minha boca: termos família, grupo, sermos um
coletivo. Isso é um sentimento que foi gerado dentro do próprio trabalho e tê-los levado
até a sala São Paulo foi o reconhecimento de que um menino de favela, preto, pobre,
pode sim, um dia pisar dentro de um palco dos mais bonitos que a gente tem no nosso
país e, quem sabe, até no mundo.
Pesquisador: Quais foram as principais dificuldades, limites e desafios que
você teve para realizar esse trabalho de música na escola?
Hugo: Eu trabalho numa escola que é muito bem estruturada em termos de
materiais. Assim, eu não enfrentei resistência da direção. Eu acho que o maior desafio
era tentar englobar todos, já que era um grupo de 20 alunos e às vezes um ou outro
não queria participar. Às vezes, não havia aquele interesse, então 100% não deu pra
atingir, mas percebo que 90% que é o que deu resultado no trabalho. Então, um ou
outro que ficou de fora e mesmo insistindo às vezes com falas ‘ah, mas não sei tocar,
mas fica aqui’. Tem coisas que eram muito simples, como chacoalhar alguma coisa.
Mas você percebia que não era porque era música, era porque o aluno tinha algum
posicionamento de isolamento. Não queria participar mesmo. Aí, na tentativa, às
vezes, a gente não atinge. Esse é um desafio: atingir todos é complicado. Então, esse
foi o maior desafio.
Como era pandemia, a gente estava voltando da pandemia, a eletiva não foi
misturada como de costume, era por sala. Aí, fiquei com o segundo ano A, que era a
sala tida como uma problemática, alunos que não fazem nada. Tanto que agora, neste
ano de 2022, muitos ficam me cobrando: “E aí, professor não vai ter eletiva de
música?” Já que agora já é misturado, então já tem uma lista enorme. Rapaziada do
primeiro, do segundo, do nono ano que quer participar, aí é mais legal, porque tem
uns que já tocam, tocam na igreja. Tem um que toca batuque em uma religião de
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matriz africana. Então, você tem de tudo e vai dar pra fazer algo melhor ainda, porque
vai ter cara que o desejo dele dentro da música é mais forte do que de outros.
Pesquisador: Conte como foi a preparação dessa disciplina eletiva? Como
você fez o seu planejamento? Houve participação dos estudantes na escolha do que
seria abordado na eletiva? Como foi o engajamento e a avaliação dos estudantes?
Hugo: A construção primeira da eletiva não contou com a participação dos
estudantes. Em parte de criação do documento (plano de aula), a ideia era apresentar
ritmos variados por meio do YouTube, como por exemplo o Maracatu, depois Chico
Science e Nação Zumbi. Alguns questionaram: “e o funk?” Eu mostrava um funk que
eles queriam ouvir e depois apresentava, por exemplo, o “KC and the Sunshine Band”,
“James Brown”, mostrando outras coisas. Depois mostrei uma Miami Bass, que é um
ritmo dos Estados Unidos que deu origem ao funk carioca nos anos 90. Os alunos
diziam: “Ah, esse parece!” Mostrei a eles o som de Tati Quebra Barraco e comparei
com a banda Front 242, banda industrial dos anos 80, mostrando que o início da
música foi usado na composição da Tati. Pegou só esse pedacinho. Foi assim...
construindo aos poucos. Conforme ia acontecendo. Depois de mostrar, fazer relação,
porque eles estavam presos à questão do funk, do trap. Essa galera constrói música
recortando de outros lugares, reconstruindo e repaginando.
Um exemplo disso foi Racionais. Os próprios estudantes sugeriram “Vida Loka”.
Eu continuei insistindo para que se lembrassem das “antigas”. Eles disseram: Tem
uma que meu pai conhece: “Fim de semana no parque”. Foi muito legal porque fala
do parque Santo Antônio, que foi o lugar onde eu nasci. E fui ampliando com outras
referências como: “O homem na estrada”, “Ela partiu” (Tim Maia). Fazendo relação
com outras músicas. Aí surgiu a questão dos ritmos. Eu perguntei: “O que a gente vai
tocar?” Foi aí que entrou ainda mais a participação dos estudantes, porque surgiram
coisas que não dava ou, às vezes, eu não conhecia para poder tocar no violão. Até
que um aluno sugeriu: “Ah, vamos ver o Natiruts.” Apareceu também a sugestão do
Racionais, que acabou sendo substituída pela música: “Gostava tanto de você” do Tim
Maria.
Muitos dos alunos que estavam na eletiva participavam do Instituto Menino São
Judas para meninos carentes ou que cumprem medidas socioeducativas. Eles
chamam de “o Instituto”. Lá, eles aprenderam várias coisas. Eles sugeriram: “Tem
aquela do Instituto”. Daí um batucou, o outro puxou e aí a gente recriou a música do
Instituto. Ficou conhecida como "a música do Instituto”, que era só batuque, aí eu
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coloquei um riff simples de guitarra, era um suingue que abre a apresentação na sala
São Paulo, que é uma música que eles trouxeram a batida, eu coloquei o suingue de
guitarra e no meio a gente relata um texto de uma das alunas que escreveu sobre
questões antirracistas. Teve essa música que veio deles. A ideia sempre foi essa: que
pudesse vir deles e eu pudesse tocar, apesar das minhas limitações. Tudo isso trouxe
uma propriedade para os meninos. Essa coletividade muito grande entre nós todos:
entre professor e também uma professora que entrou depois, no meio da eletiva para
o final, que me ajudou muito nas gravações e registros.
Eu ia ampliando e fazendo relação com outras coisas, propiciando que
ouvissem e pensassem outras possibilidades. Em nenhum momento recriminando,
mas orientando. Nós tentamos várias coisas: rock pesado. Um ajudou o outro. Aquele
que era mais engajado acabava liderando e ajudando o outro. Quando saía do ritmo,
um já orientava o outro e corrigia. Até a gente pegar o ritmo legal demandou tempo,
mas depois começou a fluir de forma automática. Eu dizia: No começo é chato, mas
depois vocês vão sentir o prazer de tocar, pois você não vai fazer esforço para tocar.
Será algo que vai correr dentro de você. Você vai se perceber que é igual andar de
bicicleta. Terá um sentimento que é uma coisa muito bacana.
Pesquisador: Como as contradições socioculturais vivenciadas pelos
educandos apareceram durante as aulas?
Hugo: A maioria deles pertence à comunidade Mauro, que é uma comunidade
que fica aqui próxima ao metrô São Judas, zona sul de São Paulo. Elas se apresentam
das mais variadas formas. Inclusive, muitas vezes, na impossibilidade de criar algo
que seja reconhecido pelo outro. “Ah, sempre vai dar errado, nunca está bom”, mas
no fim, estão todos ansiosos para executar. Criar um grupo colaborativo, uma parceria
que a gente criasse confiança um no outro. Então, até hoje, os alunos causam
problema na escola, comigo não por questões óbvias. Eu dou aula de história. A gente
tem uma proximidade muito grande, inclusive de chamar a atenção dos alunos, faço
cortes, dou limites, mas, ao mesmo tempo, proponho um acolhimento, incentivando a
não desistirem. Isso está muito presente nos discursos dos alunos: “Ah, eu não vou
ser nada, não consigo ser nada, eu não quero ser nada... pra que estudar?”
A vulnerabilidade socioeconômica reverbera no discurso de desvalorização do
próprio ser humano que não encontra saída na escola, na própria sociedade para
poder se emancipar enquanto sujeito. Isso foi muito visível com a proximidade dos
alunos. Então, você começa a entender que uma menina tem 16 anos, mas já tem um
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filho de 3 anos, é mãe solo; o outro, o pai está preso; o outro, já passou por medida
socioeducativa. E daí você vai entendendo um pouco mais a questão da identidade
desses alunos, não vistos apenas de forma isolada ali na sala. Você vai aprendendo
o nome da família, dos pais, além de perceber que a família não é presente na escola
pública, ainda mais alunos do Ensino Médio. Você fica sabendo um pouco mais da
realidade deles, como eles vivem, onde vivem, com quem vivem, quais as
perspectivas de futuro que muitos, na verdade, não têm. Então, nesse sentido que eu
acho que a vulnerabilidade social aparece. Eles foram com as mesmas roupinhas na
sala São Paulo que eles vão pra escola a semana inteira, mas puderam tocar ali no
lugar de grandes artistas.
Pesquisador: Quais relações foram construídas na escola, durante e após a
conclusão dessa disciplina eletiva (entre os estudantes, professores, gestão escolar,
famílias etc.)?
Hugo: Construímos juntos com a identidade de todos, inclusive com a minha.
Numa ação educativa, o professor não é neutro. Há muito de mim naquele trabalho,
tanto em questões das minhas escolhas, das minhas dinâmicas com os alunos como
até em questões musicais. É muito interessante, pois fizemos apresentações. Lembro-
me de uma versão que fizemos da música no Natiruts. Foram os alunos que criaram
tudo de forma orgânica e foram incrementando. Eu só orientei o ritmo. Eu deixava, às
vezes, “o pau comer entre eles”. Discutindo e permitindo que eles mesmos
resolvessem conflitos e desentendimentos durante o processo. E dentro da linguagem
deles, se resolviam e, a partir desse atrito, surgia algo mais interessante.
Teve coisa bacana e coisa negativa. A grande parte dos professores achou
bacana, outros ficaram cansados de ouvir, às vezes, a mesma música, dias seguidos,
toda sexta-feira. Para quem está ensaiando é legal, agora para quem está ouvindo,
nem sempre. Outros professores acabam tendo certa “dor de cotovelo” porque
perceberam que os alunos que tinham certa indisciplina (alguns até colocaram fogo
na escola) começaram a mudar de atitude. Eu fui resolver isso, pois tinha proximidade
com eles. Então, eu percebo que outros alunos tiveram muito interesse em participar,
outros saíam de suas aulas para observar o que estava acontecendo na quadra,
tiravam fotos, gravavam. Alguns professores iam ver, cantavam junto. Isso trouxe uma
proximidade para a música também, despertando o interesse musical em querer
produzir alguma coisa... e trouxe aproximação do professor com os alunos, do
professor servir como um modelo a ser seguido, como um sujeito que tem um suposto
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saber. Muitas vezes, o aluno coloca um saber em nós que sabemos que não temos.
Nós, homens, servimos como modelo paternal para aqueles meninos que muitas
vezes crescem sem pai. Muitos que têm essa história. É comum, infelizmente!
Este trabalho reverberou de forma positiva no sentido de a molecada querer
participar. Isso trouxe uma notoriedade para a escola, que passou a ser vista em
outros canais e, consequentemente, para o meu trabalho. Já fui convidado para
trabalhar em outros órgãos da própria Secretaria da Educação, mas preferi ficar na
escola. Então, trouxe consequências positivas para todos. É importante saber lidar
com o desamparo e com a não possibilidade também, porque muitas vezes não é
possível. E a gente fica feliz quando é possível.

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