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José Sergio Dias
José Sergio Dias
PUC - SP
SÃO PAULO - SP
2022
José Sérgio Dias
SÃO PAULO - SP
2022
FICHA CATALOGRÁFICA
BANCA EXAMINADORA
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DEDICATÓRIA
Processo nº 88882.462020/2019-01
Process nº 88882.462020/2019-01
AGRADECIMENTOS
This research analyzed the proposal of the artistic language Music in the curricular
component Art as described in the Brazilian Common Core Standards for High School.
The analysis was carried out from a critical perspective based on the Freirean
pedagogy, which has as its goal the humanization and the construction of a fairer,
democratic and solidary society. Paulo Freire, patron of Brazilian education, is the
reference for this research. With a qualitative approach, we adopted bibliographic and
documentary research as well as semi-structured interviews. In order to answer the
question: How to build emancipatory music teaching practices despite the prescriptive
orientation and neotechnicist perspective of the Brazilian Common Core Standards for
High School?, in addition to the document analysis, we presented an illustrative case
which demonstrated a musical education practice taken place in a public school in the
city of São Paulo. We sought to understand how this experience contributed to a
humanizing education based on the categories: dialogue, autonomy and creativity,
concepts present in Paulo Freire's pedagogy, pointing out possible ways for the
reorientation of musical education practices at this level of basic education. The results
showed that the contribution of music based on dialogue and the appreciation of the
student's autonomy helped students' critical development, providing them with an
active, conscious and sensitive experience in the world. This dissertation demonstrates
the need for musical art as an indispensable element for the construction of an
emancipatory education, committed to the transformation of the human being.
Keywords: musical education; Brazilian Common Core Standards for High School;
Paulo Freire; music teaching practices; High School.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 13
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 71
APÊNDICE A ............................................................................................................ 80
LISTA DE FIGURAS
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
1 A utilização do adjetivo “freireano” e suas flexões, assumidos nesta pesquisa, é uma questão de
preferência, pela compreensão de que a manutenção da grafia integral do sobrenome do autor destaca
com mais vigor a proveniência, a origem das produções, ou seja, o pensamento de Freire (SAUL; SAUL,
2013).
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na educação básica brasileira por meio das legislações existentes até chegar na
BNCC, focalizando a situação da Arte/Música nesses documentos e refletindo sua
incidência na formação e na atuação dos educadores.
No capítulo A educação musical como dimensão da humanização, são
apresentados os referenciais freireanos para pensar a educação musical como prática
educativa emancipatória ao utilizar as categorias de análise (processos
humanizadores): diálogo, autonomia e criatividade.
No terceiro capítulo, Reinventando a educação musical na perspectiva
freireana, examinaremos os fundamentos do ensino de música para estudantes do
Ensino Médio presentes na BNCC, apresentando e analisando uma prática bem
sucedida em uma escola pública como um caso ilustrativo no qual foram buscados
elementos que pudessem apontar possíveis caminhos para a reorientação de práticas
de educação musical na referida etapa da educação básica, a partir do pensamento
de Paulo Freire.
Encerramos o trabalho tecendo as Considerações Finais, demonstrando a
importância de se reinventar o legado de Paulo Freire apesar da BNCC, apontando
caminhos para a construção de práticas de ensino musical transformadoras.
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2 Segundo Fuks (1991, p. 120), os objetivos do canto orfeônico eram, “segundo Villa-Lobos,
desenvolver, em ordem de importância: 1º - a disciplina; 2º - o civismo e 3º - a educação artística.”
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escola para escola, termina sendo dominada pelas artes plásticas, embora,
reiteradamente, atreladas a uma prática polivalente (FERRAZ; SIQUEIRA, 1987).
No ano de 1996, foi sancionada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)
nº 9.394, orientando que “o ensino de Arte, especialmente em suas expressões
regionais, constituirá componente curricular obrigatório da Educação Básica de forma
a promover o desenvolvimento cultural dos alunos” (BRASIL, 1996, art. 26). Nota-se
que a denominação “Educação Artística” é substituída por “Ensino de Arte”, cujas
possibilidades de disciplinas ofertadas poderiam ser Artes Visuais, Dança, Teatro ou
Música. Dessa forma, o texto da referida lei não especificava as linguagens artísticas
mencionadas, apenas informava que a Arte é um componente curricular obrigatório.
Assim, os docentes atuariam em uma dessas disciplinas na escola considerando sua
formação profissional (BRASIL, 1996).
Nesse sentido, o Ministério da Educação (MEC) elaborou a partir do ano de
1997 os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental e
Médio. Esses documentos consistem em diretrizes que objetivam orientar os
educadores a partir da normatização de aspectos essenciais referentes a cada
disciplina. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, embora não possuam caráter
obrigatório, constituem o primeiro documento oficial de orientação curricular em nível
nacional sob o vigor da LDB de 1996 e orientaram as ações do Ministério da
Educação, bem como as práticas pedagógicas, avaliações e investimentos no ensino
básico.
No Ensino Médio, a Arte, disciplina contida na área de Linguagens, Códigos e
suas tecnologias, integra a Base Comum e não possui uma proposta específica nos
PCN (BRASIL, 1998, 1999), mas tem a intenção de dar “continuidade aos
conhecimentos de arte desenvolvidos na educação infantil e fundamental em música,
artes visuais, dança e teatro” (BRASIL, 1999). A respeito das habilidades e
competências da linguagem musical e sua contribuição no desenvolvimento dos
estudantes, o documento versa que:
dando ao processo educativo um caráter cada vez mais utilitário, sendo que
a validade de um dado conhecimento não é mais encontrado em si mesmo,
mas na capacidade que tem de possibilitar aos indivíduos maior acúmulo de
capital humano e, consequentemente, maior capacidade de competição e
“empregabilidade” (GIROTTO, 2018, p. 26).
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3O processo foi iniciado em dezembro de 2015 pelo então presidente da Câmara dos Deputados,
Eduardo Cunha, a partir de pressupostos de denúncia por crime de responsabilidade fiscal, embora
não houvesse nada comprovado. Encerrou-se o processo em agosto de 2016 com a cassação do
mandato de Dilma.
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Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional
Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados
por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância
para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, ensino, a
saber:
I - linguagens e suas tecnologias;
II - matemática e suas tecnologias;
III - ciências da natureza e suas tecnologias;
IV - ciências humanas e sociais aplicadas;
V - formação técnica e profissional.
Assim, salienta Del-Ben (2016, p. 5), que “enfatizar a experiência estética traz
o risco de enfatizar também a relação do sujeito individual com a obra, e não a relação
entre pessoas, mediada pela obra.”
Obra pode ser reduzida a “coisa”. O uso da expressão “obra” sugere ênfase
no produto, a valorização da produção do artista. Não há produto sem
processos a ele subjacentes, mas, como, na educação básica, o que se
busca é a formação de sujeitos, parece-me que a ênfase deveria estar nos
processos, nas ações e interações que levam à “produção do produto”. Na
escola, o protagonismo é dos estudantes, e não dos artistas e sua produção.
O que se busca é a formação de sujeitos, e não a formação de público. É
preciso ampliar e aprofundar o repertório de experiências, e não
necessariamente o repertório de obras (DEL-BEN, 2016, p. 5-6).
5De maneira geral, entre os anos 70 e 80, os antigos professores de Artes Plásticas, Desenho, Música,
Artes Industriais, Artes Cênicas e os recém-formados em Educação Artística viram-se
responsabilizados por educar os alunos (em escolas de ensino médio) em todas as linguagens
artísticas, configurando-se a formação do professor polivalente em Arte. Com isso, inúmeros
professores deixaram as suas áreas específicas de formação e estudos, tentando assimilar
superficialmente as demais, na ilusão de que as dominariam em seu conjunto. A tendência passou a
ser a diminuição qualitativa dos saberes referentes às especificidades de cada uma das formas de arte
e, no lugar destas, desenvolveu-se a crença de que bastavam propostas de atividades expressivas
espontâneas para que os alunos conhecessem muito bem música, artes plásticas, cênicas, dança,
etc. (BRASIL, 1997, p. 24).
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6
Segundo Freitas (1991), o paradigma neotecnicista está baseado na: avaliação das escolas, avaliação
do professor, distribuição de verbas e salários de acordo com estas avaliações, revisão curricular;
ênfase em uma metodologia pragmática e despolitizada para obter resultados em sala de aula – ou
seja, desgarra-se a análise da escola de seus determinantes sociais e assume-se que a escola vai mal
porque lhe faltam controle, eficiência, método, racionalização e treinamento para o professor. Aceita
esta premissa, o problema da educação deixa de ser político para ser técnico. Daí o termo tecnicismo.
Mas, como nós já vimos este filme na década de setenta, daí o termo neotecnicismo (FREITAS, 1991,
p.12).
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7 Segundo Sacristán (2000, p. 104), o currículo prescrito é constituído por “todos os aspectos que
atuam como referência na ordenação do sistema curricular servindo como ponto de partida para a
elaboração de materiais, controle de sistema, etc”. Tem como intenção unificar os diferentes conteúdos
escolares para alcançar o objetivo de uma educação nacional, proporcionando uma suposta igualdade
de oportunidades ao estabelecer conteúdos mínimos que o ensino obrigatório deve oferecer. Além
disso, propõe-se como via de controle sobre a prática de ensino, condicionando-o previamente ao redor
de códigos que se projetam em metodologias nas instituições educativas.
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O primeiro mundo meu, na verdade, foi o quintal da casa onde nasci, com
suas mangueiras, seus cajueiros de fronde quase ajoelhando-se no chão
sombreado, com suas jaqueiras, com suas barrigudeiras. Árvores, cores,
cheiros, frutas, que, atraindo passarinhos vários a eles se davam como
espaço para seus cantares (FREIRE, 2012, p.25).
8Segundo Casali (2016), encontra-se no termo boniteza “o fundo semântico, existencial e ético da
declaração de Paulo Freire sobre a boniteza da vida e da educação”, ressaltando “o pleno sentido da
boniteza: o que une a bondade à beleza (a ética à estética)”, destacando “a riqueza polissêmica dos
conceitos de ética e estética como unidade de ação do sujeito concreto, histórico e cultural” (CASALI,
2016, s/n).
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O ser humano não sai ileso a uma verdadeira experiência estética que
influencia, de forma forte e sutil, sua maneira de sentir, pensar e avaliar, renovando-
o. (PERISSÉ, 2009). Tal experiência gera nele um comprometimento ativo e arrojado
“que intervém, que transforma, que fala do que faz, mas também do que sonha; que
constata, que compara, avalia, valora, que decide, que rompe” (FREIRE,1996, p. 112).
A arte também traz a possibilidade de dar significado e vida nova a algo ao
exercitar o olhar artístico. Freire e Shor (1986, p. 145) ressaltam que o ato de conhecer
passa pela via artística na medida em que leva o ser humano a desvendar um objeto,
chamando-o para a vida: “Isto é uma tarefa artística, porque nosso conhecimento tem
qualidade de dar vida, criando e animando os objetos enquanto os estudamos”
(FREIRE; SHOR, 1986, p. 145).
Nesta mesma direção, Eisner ressalta que o trabalho com as artes não visa
somente a criação de performances e produtos, mas consiste numa maneira de criar
nossas vidas ao expandir a consciência e dar forma a nossas disposições,
estabelecendo contato com outras pessoas e compartilhando uma cultura (EISNER,
2002).
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A música, sem uma única palavra, sem que a razão possa defender-se, entra
dentro do corpo e vai ao fundo da alma. Na música, a nossa beleza aparece
como entidade sonora. [...] A música é assim: Quer possuir os corpos,
transformar-se em vida, tornar-se carne” (ALVES, 1998, p. 11).
A música tem a capacidade de nos fazer sentir. Vai muito além de uma
experiência meramente estética, pois seu exercício é também uma experiência
fisiológica, psicológica e mental. Além disso, possibilita notável número de
experiências sensoriais, emocionais e sociais muito significativas, que se apresentam
como recurso de desenvolvimento pessoal, equilíbrio, estímulo e integração do ser
humano ao meio em que vive (ZAMPRONHA, 2007).
A musicista e pedagoga musical Violeta Hemsy de Gainza define a música
como experiência peculiar, única e insubstituível para a existência humana sendo, em
essência, multidimensional. Além disso, é uma ferramenta para a cura e intervenção
social e um direito humano, devendo ser ensinada em todas as escolas e em todos
os segmentos da educação básica. Logo, a música influi integralmente na pessoa
humana, não somente nos aspectos sensoriais, mas em seu desenvolvimento
intelectual e social (GAINZA, 2011).
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O educador musical Koellreutter, citado por Brito (2011), ressalta que o humano
deve ser o objetivo essencial da educação musical. Assim, o autor argumenta que a
música envolve o ser humano em sua totalidade, com suas maneiras diversas de
solucionar problemas.
Fonte: o autor
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[...] o diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria natureza
histórica dos seres humanos. É parte de nosso progresso histórico de
caminho para nos tornarmos seres humanos. [...] isto é, o diálogo é uma
espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se
transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O diálogo
é o momento em que os humanos se encontram para refletir sobre a realidade
tal como a fazem e refazem (FREIRE; SHOR, 1986, p. 122-123).
que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens” (FREIRE, 2019, p. 52).
Dessa forma, contrária a todo fatalismo e descrença, a fé nos seres humanos
contribui, mesmo diante da negação do direito de ser mais, para a transformação de
sua realidade e condições de vida.
Outra característica do diálogo é a esperança que não significa “um cruzar de
braços e esperar” (FREIRE, 2019, p. 55), mas um movimento constante de luta e
transformação. “Se o diálogo é o encontro dos homens para ser mais, não pode fazer-
se na desesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu que fazer já, não
pode haver diálogo” (FREIRE, 2019, p. 55). Desse modo, ela se faz necessária por
promover uma busca infinda pela mudança realizada em comunhão.
Assim sendo, a solidariedade faz com que os seres humanos saiam de si
mesmos, de seu individualismo e isolamento para, em comunhão, amando
profundamente o mundo e as pessoas, comprometam-se na construção de sonhos
possíveis.
A confiança também é uma condição fundamental para o diálogo, pois permite
que os sujeitos sejam “cada vez mais companheiros na pronúncia do mundo”
(FREIRE, 2019, p. 51). Ao promover o companheirismo entre os seres humanos, a
confiança exige deles autenticidade e coerência nas ações e palavras. Tal exigência
é construída pela humildade. Freire nos indica que a autossuficiência não é compatível
com o diálogo que, por sua vez, não pode realizar-se sem humildade (FREIRE, 2019).
Este percurso deve ser marcado pela escuta atenta e sensível que, segundo
Saul (2016): “é requisito para o diálogo e para a compreensão do conhecimento que
o educando traz para a situação de ensino-aprendizagem, possibilitando ao educador,
conhecer e trabalhar a partir da leitura de mundo do educando” (SAUL, 2016, p.160).
Ao escutar os educandos, procurando saber sua perspectiva a partir do que realizam
e vivenciam, é possível elencar suas dificuldades, alargando experiências sobre si
mesmos e sobre o mundo que os cerca.
O diálogo favorece o respeito às identidades dos educandos. O educador, ao
conhecer sua cultura, deve estabelecer pontos de contato, aproveitando as vivências
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trazidas por eles, buscando despertar e aperfeiçoar sua sensibilidade. Nesse sentido,
a arte, como instrumento sensível que conduz à transformação, abrange e reconhece
os valores culturais presentes nas manifestações artísticas que podem ajudar os
educandos a agirem como protagonistas e agentes transformadores da história
pessoal, comunitária e mundial.
Em vista disso, o diálogo freireano precisa começar desde a busca do conteúdo
programático, perpassando todas as práticas educativas que envolvem saberes
diversos, não impostos, mas propostos em conjunto a partir de uma perspectiva crítica
e repleta de esperança.
Como mediador das relações artísticas, o diálogo tem o objetivo de ajudar a ler
a existência humana no mundo por meio da decodificação da palavra que realiza a
pronúncia do mundo e o (re)faz. Assim, o diálogo gera, a partir da palavra dita, uma
práxis comprometida com o processo de humanização fundamentada na ação e
reflexão que, segundo Freire (2019, p. 77) são: “de tal forma solidárias, em uma
interação tão radical que, sacrificada, ainda que em parte, uma delas, se ressente,
imediatamente, a outra”.
A música pressupõe e promove o diálogo, pois enquanto linguagem, carrega
em si um potencial dialógico por meio do discurso musical. De acordo com Oliveira
(2014, p. 100), “a compreensão da música envolve todos, um ouvindo o outro,
estabelecendo comunicabilidade musical”. Por meio dela, é possível construir diversos
saberes tendo por base a comunicação crítica e esperançosa sobre a condição
humana, além de estabelecer relações com os seres e com o mundo.
Ademais, a arte musical promove o diálogo ao colocar os sujeitos numa relação
horizontal onde a realidade coletiva e consentida entre ambos; promove a
transformação dos envolvidos em pessoas mais sensíveis no aspecto musical e
humano. Ambos aprendem, ensinam e testemunham a abertura aos outros e a
disponibilidade curiosa à vida e a seus desafios.
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Buscando vivenciar sua vocação de ser mais, o ser humano, consciente de seu
inacabamento, reconhecendo-se como sujeito histórico, carrega em si um impulso
criador, capaz de criar coisas, pensamentos, ideias e de solucionar desafios advindos
52
A criatividade tem que ver muito com uma das conotações da vida, do
fenômeno vital, que é a curiosidade. […] Assim, ao nível da experiência
existencial, a curiosidade, que implica às vezes uma certa estupefação diante
do mundo, uma certa admiração, uma certa inquietação, um conjunto de
perguntas, indagações ou silêncios, termina nos empurrando para uma
refeitura do mundo (FREIRE, 2013, p. 359).
Não há, nunca houve nem pode haver educação sem conteúdo, a não ser
que os seres humanos se transformem de tal modo que os processos que
hoje conhecemos como processos de conhecer e de formar percam seu
sentido atual. O ato de ensinar e de aprender, dimensões do processo maior
– o de conhecer – fazem parte da natureza da prática educativa. Não há
educação sem ensino, sistemático ou não, de certo conteúdo. E ensinar é um
verbo transitivo-relativo. Quem ensina, ensina alguma coisa – conteúdo – a
alguém – aluno (FREIRE, 2014, p. 110).
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9 A pandemia de COVID-19 foi declarada em 11 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) em decorrência de uma doença respiratória altamente contagiosa causada pelo vírus da
síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), resultando na maior crise enfrentada no último
século que impactou profundamente não só a organização do sistema de saúde, mas as formas de
interação social, a economia, a política e os instrumentos culturais.
10 A entrevista realizada foi fundamental para as análises desta pesquisa. Sua transcrição completa se
encontra no corpo deste texto (ver Apêndice A) a fim de fornecer elementos que possam sinalizar uma
abertura para a concretização de princípios e práticas de concepção educativa emancipatória.
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A escola não é local para receber instruções apenas, mas deve impulsionar os
estudantes a tornarem-se sujeitos de sua própria história, construindo relações
horizontais onde todos os envolvidos aprendam, ensinem, abrindo-se aos outros, e
encarando os desafios da vida. Desse modo, a opção dialógica deve perpassar todas
as práticas educativas desde os momentos de planejamento, de decisão sobre os
objetivos de trabalho, escolha do conteúdo e avaliação (A.M. SAUL; A. SAUL, 2018).
Nesse sentido, o ensino e aprendizagem de música, ao considerar os
interesses, valores e saberes dos estudantes, pode promover relações dialógicas
comprometidas com a humanização que possibilitem a construção de sujeitos críticos
que, educando-se em comunhão a partir do movimento dialético ação-reflexão-ação,
sejam capazes de transformar o mundo e empenhar-se por uma vida digna para si
mesmos e para o outro:
60
A intenção foi escutar o sujeito além da fala, escutar o espaço no qual está
inserido, do tempo e tudo isso. A minha ideia era justamente fazer essa
escuta territorial, escutar os meninos, a identidade dos meninos, as
experiências deles, as trocas e, nesse sentido, utilizar a música como o vetor
para isso. A música, então, entrou como coadjuvante e saiu como
personagem principal que sempre foi o pano de fundo da escuta, da parceria
e daquilo que surgiu. Desde o começo, tinha essa intenção de se ter uma
escuta para além do que se fala onde os meninos pudessem se colocar ali
(HUGO DIAS).
participação dos estudantes, porque surgiram coisas que não dava ou, às
vezes, eu não conhecia para poder tocar no violão. Até que um aluno sugeriu:
“Ah, vamos ver o Natiruts.” Apareceu também a sugestão do Racionais que
acabou sendo substituída pela música: “Gostava tanto de você” do Tim Maria
(HUGO DIAS).
11
O Instituto Meninos de São Judas Tadeu (IMSJT) é uma obra social, sem fins lucrativos, mantida pela
Associação Dehoniana Brasil Meridional – ADBM. Foi fundado em 15 de novembro de 1946. No início
de suas atividades, funcionava em regime de internato, acolhendo crianças órfãs de pai, de mãe ou de
ambos, abandonadas ou de famílias em precária situação financeira. É uma referência em acolhimento
e amparo às crianças, adolescentes e às famílias que mais carecem na cidade de São Paulo (SP).
62
Isso está muito presente nos discursos dos alunos: “Ah, eu não vou ser nada,
não consigo ser nada, eu não quero ser nada... pra que estudar?” A
vulnerabilidade socioeconômica reverbera no discurso de desvalorização do
próprio ser humano que não encontra saída na escola, na própria sociedade
para poder se emancipar (HUGO DIAS).
Diante disso, rompendo com essa ideia, a autonomia foi sendo promovida dia
após dia, num processo constante de amadurecimento no qual os estudantes
puderam fazer escolhas, tomar decisões, solucionar conflitos e alargar possibilidades,
conforme o relato do educador:
No começo, eu mostrei pra eles o que era ritmo percutindo caneta e lápis na
mesa. Então, a gente falou de ritmo. No início das aulas, mostramos vários
ritmos populares, desde o rock ao frevo, várias coisas, maracatu etc. [...]
Depois, fomos para os instrumentos em si, mostrando como cada um
funcionava. Apresentei os instrumentos de percussão e com isso cada aluno
foi escolhendo o seu [...] As músicas foram escolhidas por eles também, do
que dava pra fazer. Tinha coisa que não dava certo, por exemplo, tocar trap,
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que é um ritmo que a molecada gosta. Então, com o tempo, foi ficando
orgânico, nascendo a partir do que um e outro trazia. Aquele que era mais
engajado acabava liderando e ajudando o outro. Quando saía do ritmo, um já
orientava o outro e corrigia. Até a gente pegar o ritmo legal, demandou tempo,
mas depois começou a fluir de forma automática (HUGO DIAS).
12 A Sala São Paulo localiza-se na Praça Júlio Prestes, no bairro de Campos Elíseos, no centro da
cidade de São Paulo. Faz parte de um importante conjunto arquitetônico e patrimônio histórico da
cidade, sendo palco para orquestras, corais, grupos de dança, atores e solistas do mundo todo.
13 A apresentação na Sala São Paulo foi registrada em vídeo, disponível na plataforma digital YouTube:
Apresentação musical dos alunos da EEEI Profa. Lygia de Azevedo Souza e Sá junto ao Prof. Hugo
Dias. Youtube, 22 mar. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qAyOvkCtfec. Acesso
em: 27 ago. 2022.
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A minha ideia era criar um ponto de ancoragem dos estudantes para que
pudessem, entre eles, trocar as ideias, refletir, pensar comigo. Aí eu agia, na
verdade, como um líder dentro desse grupo pra que pudessem, juntos, criar
alguma coisa e sentir que essa criação é verdadeira e deu frutos. [...] Naquele
momento em que estão entre eles fazendo música é que têm a possibilidade
de falar das coisas, da vida, se emocionam... e aí conseguimos até mesmo
criar algumas músicas, quem sabe plantar uma sementinha de um cantor, de
um instrumentista (HUGO DIAS).
Nesse processo criativo, uma das estudantes da turma desenvolveu uma letra
para ser acrescida à composição instrumental, que partiu de uma situação-limite
percebida por ela: a discriminação étnico-racial:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acho que a parte que eu vou levar pra minha vida é que a música deixou a
turma mais unida, porque tinha muita gente ali que não se falava, na sala, e
a música fez com que eles pudessem entrar mais no nosso grupinho. Nunca
esperei que a gente fosse ficar tão unido por conta da eletiva de música14.
14Registro da Eletiva de Música e Escuta Territorial na EEEI Profa. Lygia de Azevedo Souza e Sá.
Youtube, 6 de dezembro de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cwDIV5WU38w.
Acesso em: 27 ago. 2022.
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p. 1142-1174, out./dez. 2018.
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SILVA, Mariana Galon da. Criação musical coletiva com crianças: possíveis
contribuições para processos de educação humanizadora. 2015. 147 f. Dissertação
(Mestrado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de São Carlos, São
Carlos, 2015.
APÊNDICE A
Identificação do entrevistado
Nome: Hugo Leonardo de Araújo Dias
Formação: História, Filosofia e Pedagogia
Ocupação atual Professor coordenador da área de ciências humanas
Escola em que atua E.E. PEI Profª Lygia de Azevedo Souza e Sá
Data da entrevista 20 de junho de 2022
Disciplina eletiva Música e escuta territorial: O protagonismo juvenil por meio do
desenvolvimento musical: desafios e possibilidades
Pesquisador: Por que você escolheu ser professor e atuar na rede pública?
Como foi seu “encontro” com a música?
Hugo: Eu acho que a minha história no ensino público começa sendo aluno de
escola pública. Eu fui aluno da escola pública a vida inteira, estudei na prefeitura
durante um bom tempo e depois fui para a escola do estado quando fui para o ensino
médio. Durante a adolescência, entrei em contato com a música e com o movimento
punk que tinha na região que eu vivia, que era uma região ali do Grajaú, extremo sul
da zona sul de São Paulo, bairro bem pobre, que está naquela localidade que tinha
uma efervescência cultural muito grande nesse sentido. Então, quando eu tinha uns
13 anos, meus amigos me arrumaram um violão com duas cordas. A gente fazia um
som, batucava, ouvia as músicas, gravava, [escutava] música da rádio que passava,
porque há quase 30 anos não tinha mp3, YouTube, essa grande gama de recursos.
Então, alguns mais velhos, quando um amigo mostrava uma banda diferente, e a
gente se encantava, ouvia aquilo muitas vezes, porque era o que tinha. Não havia
muito o que ouvir e aí eu aprendi a tocar. Hoje, eu sei tocar alguns instrumentos, mas
todos eles de forma muito popular, sem teoria e de forma simples, nada muito
elaborado, mas algo mais orgânico mesmo. E eu sempre tive esse trabalho dentro da
escola pública relacionado à música. Eu sou professor de filosofia e de história. Da
mesma forma que a música me tocou na adolescência, a música toca os adolescentes
até os dias de hoje e vai tocar para sempre. Então, eu tive uma proximidade muito
grande com meus alunos por meio da música, daqueles que gostavam de tocar,
estavam aprendendo a cantar alguma coisa ou admirava o professor por tocar algo.
Então, isso sempre foi uma fonte de identificação e de ligação minha com os meus
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alunos e que possibilita até os dias de hoje que eu seja bem visto e sirva como
exemplo a ser seguido de uma forma bacana.
Pesquisador: Como você vê a relação entre música e educação? (no contexto
da educação básica, sobretudo na escola pública)
Hugo: Eu tenho certeza de que a música na escola pública tinha que ser muito
mais valorizada, com profissionais realmente capacitados para isso. No meu caso,
sou um professor de história e filosofia. Então, não me considero um professor de
música, nem tenho capacitação para isso. Porém, a música deveria ser muito mais
investida, justamente porque traz essa capacidade de criar grupos colaborativos com
alunos mais indisciplinados, por exemplo, que foi o caso dessa minha última
experiência: foram alunos da comunidade Mauro, que vieram dessa pandemia, que
trouxe um abismo ou um raio-x dos malefícios dessa situação. Possibilitou que os
meninos se juntassem no grupo, que era a sala de aula, mas era fora da sala onde
eles estiveram, é a responsabilidade de desenvolver esse trabalho. Então, eu me
baseei muito nas ideias de um educador chamado Anton Makarenko, que diz que você
deve dar responsabilidade. Ele trabalhava com Colônia, na Colônia Gorki, que era
como a Fundação Casa, se a gente puder fazer um paralelo. Ele dava
responsabilidade aos alunos que tinham um pouco mais de problema, às vezes de
indisciplina, mas que tinha uma liderança muito grande; eu colocava para liderar
certas partes.
Pesquisador: Como surgiu a ideia de propor uma disciplina eletiva com foco
na música? Conte como isso aconteceu e qual foi a sua intenção com esse trabalho.
Hugo: Então, tive que criar uma eletiva. Eu via esses instrumentos e já ficava
pensando em algo. No primeiro semestre eu fiz outra eletiva, mas falei que no segundo
semestre iria fazer sobre isso e caiu em minhas mãos uma sala de segundo ano, que
era considerada, como as pessoas diziam, a pior sala da escola, a mais difícil, mais
problemática, que 90% são meninos, com poucas meninas.
Quando cheguei à escola, eu me deparei com instrumentos de bateria de
samba, porque tempos atrás, na escola, houve um projeto, quando tinha aquela
Escola da Família, que abria aos finais de semana. Então, ficou lá: tinha vários
bumbos, tinha caixa, tinha muita coisa que estava meio apodrecida. Tocar samba eu
não sei. Na verdade, sei tocar bateria. Afinal, a gente só dá aquilo que a gente tem.
Aí eu pensei nessa ideia da questão da colaboração do Makarenko, de falar assim: se
cada um fazer o bumbo, outro a caixa, o outro fazer uma parte no chimbal, e outro,
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que tinha um tom tom conseguir fazer virada, a gente tem uma bateria, como uma de
rock, de música popular, só que uma orquestra de bateria.
Pesquisador: Como foi a escolha do nome da eletiva: “Música e escuta
territorial: O protagonismo juvenil por meio do desenvolvimento musical: desafios e
possibilidades”?
Hugo: A ideia não era desenvolver músicos, mas desenvolver um futuro
interior, uma perspectiva, uma união, uma junção e, nesse sentido, acho que nós
conseguimos: escutar o sujeito além da fala, escutar o espaço no qual está inserido,
do tempo e tudo isso. A minha ideia era justamente fazer essa escuta territorial,
escutar os meninos, a identidade dos meninos, as experiências deles, as trocas e,
nesse sentido, utilizar a música como o vetor para isso. A música, então, entrou como
coadjuvante e saiu como personagem principal que sempre foi o pano de fundo da
escuta, da parceria e daquilo que surgiu. Desde o começo, tinha essa intenção de se
ter uma escuta para além do que se fala onde os meninos pudessem se colocar ali.
Naquele momento em que estão entre eles fazendo música é que têm a possibilidade
de falar das coisas, da vida, se emocionam... e aí conseguimos até mesmo criar
algumas músicas, quem sabe plantar uma sementinha de um cantor, de um
instrumentista.
E a ideia surgiu disso. Daí pensei: “o que eu vou fazer com esses meninos e
com essas meninas? Vou criar alguma coisa relacionada a isso.” No começo, eu
mostrei pra eles o que era ritmo percutindo caneta e lápis na mesa. Então, a gente
falou de ritmo. No início das aulas, mostramos vários ritmos populares, desde o rock
ao frevo, várias coisas, maracatu etc. Aqueles ritmos desconhecidos, eu colocava no
YouTube e mostrava a eles. A gente conversava e isso durou umas duas aulas.
Depois, fomos para os instrumentos em si, mostrando como cada um funcionava.
Apresentei os instrumentos de percussão e com isso cada aluno foi escolhendo o seu.
Com o passar do tempo, a grande maioria ficou no bumbo, outros na caixa, no tom
tom e triângulo.
Então, no vídeo você pode ver que são segmentos simples, ‘tum tá, tum tum,
tá’, mas que isso demandou tempo e as músicas foram escolhidas pelos alunos
também, do que dava pra fazer. Tinha coisa que não dava certo, por exemplo, tocar
trap, que é um ritmo que a molecada gosta. Então, com o tempo foi ficando orgânico,
nascendo a partir do que um e outro trazia.
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vocalista do nosso grupo, o Vinicius, ele tem até o nome artístico agora, ViniP, está
gravando uns traps, umas coisas bem bacanas, tem até vídeo dele no YouTube, já
que ele mesmo produziu em casa, no quarto dele. Assim, a minha ideia era criar um
ponto de ancoragem dos estudantes para que eles pudessem, entre eles, trocar as
ideias, refletir, pensar junto comigo. Aí eu dava bronca neles, servindo, na verdade,
como um líder dentro desse grupo pra que eles pudessem, juntos, criar alguma coisa
e sentir que essa criação é verdadeira e deu frutos. Então, no final, você pode
perceber que uma das meninas no documentário se emociona e fala ‘ah, nós somos
uma família’ e isso nunca saiu da minha boca: termos família, grupo, sermos um
coletivo. Isso é um sentimento que foi gerado dentro do próprio trabalho e tê-los levado
até a sala São Paulo foi o reconhecimento de que um menino de favela, preto, pobre,
pode sim, um dia pisar dentro de um palco dos mais bonitos que a gente tem no nosso
país e, quem sabe, até no mundo.
Pesquisador: Quais foram as principais dificuldades, limites e desafios que
você teve para realizar esse trabalho de música na escola?
Hugo: Eu trabalho numa escola que é muito bem estruturada em termos de
materiais. Assim, eu não enfrentei resistência da direção. Eu acho que o maior desafio
era tentar englobar todos, já que era um grupo de 20 alunos e às vezes um ou outro
não queria participar. Às vezes, não havia aquele interesse, então 100% não deu pra
atingir, mas percebo que 90% que é o que deu resultado no trabalho. Então, um ou
outro que ficou de fora e mesmo insistindo às vezes com falas ‘ah, mas não sei tocar,
mas fica aqui’. Tem coisas que eram muito simples, como chacoalhar alguma coisa.
Mas você percebia que não era porque era música, era porque o aluno tinha algum
posicionamento de isolamento. Não queria participar mesmo. Aí, na tentativa, às
vezes, a gente não atinge. Esse é um desafio: atingir todos é complicado. Então, esse
foi o maior desafio.
Como era pandemia, a gente estava voltando da pandemia, a eletiva não foi
misturada como de costume, era por sala. Aí, fiquei com o segundo ano A, que era a
sala tida como uma problemática, alunos que não fazem nada. Tanto que agora, neste
ano de 2022, muitos ficam me cobrando: “E aí, professor não vai ter eletiva de
música?” Já que agora já é misturado, então já tem uma lista enorme. Rapaziada do
primeiro, do segundo, do nono ano que quer participar, aí é mais legal, porque tem
uns que já tocam, tocam na igreja. Tem um que toca batuque em uma religião de
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matriz africana. Então, você tem de tudo e vai dar pra fazer algo melhor ainda, porque
vai ter cara que o desejo dele dentro da música é mais forte do que de outros.
Pesquisador: Conte como foi a preparação dessa disciplina eletiva? Como
você fez o seu planejamento? Houve participação dos estudantes na escolha do que
seria abordado na eletiva? Como foi o engajamento e a avaliação dos estudantes?
Hugo: A construção primeira da eletiva não contou com a participação dos
estudantes. Em parte de criação do documento (plano de aula), a ideia era apresentar
ritmos variados por meio do YouTube, como por exemplo o Maracatu, depois Chico
Science e Nação Zumbi. Alguns questionaram: “e o funk?” Eu mostrava um funk que
eles queriam ouvir e depois apresentava, por exemplo, o “KC and the Sunshine Band”,
“James Brown”, mostrando outras coisas. Depois mostrei uma Miami Bass, que é um
ritmo dos Estados Unidos que deu origem ao funk carioca nos anos 90. Os alunos
diziam: “Ah, esse parece!” Mostrei a eles o som de Tati Quebra Barraco e comparei
com a banda Front 242, banda industrial dos anos 80, mostrando que o início da
música foi usado na composição da Tati. Pegou só esse pedacinho. Foi assim...
construindo aos poucos. Conforme ia acontecendo. Depois de mostrar, fazer relação,
porque eles estavam presos à questão do funk, do trap. Essa galera constrói música
recortando de outros lugares, reconstruindo e repaginando.
Um exemplo disso foi Racionais. Os próprios estudantes sugeriram “Vida Loka”.
Eu continuei insistindo para que se lembrassem das “antigas”. Eles disseram: Tem
uma que meu pai conhece: “Fim de semana no parque”. Foi muito legal porque fala
do parque Santo Antônio, que foi o lugar onde eu nasci. E fui ampliando com outras
referências como: “O homem na estrada”, “Ela partiu” (Tim Maia). Fazendo relação
com outras músicas. Aí surgiu a questão dos ritmos. Eu perguntei: “O que a gente vai
tocar?” Foi aí que entrou ainda mais a participação dos estudantes, porque surgiram
coisas que não dava ou, às vezes, eu não conhecia para poder tocar no violão. Até
que um aluno sugeriu: “Ah, vamos ver o Natiruts.” Apareceu também a sugestão do
Racionais, que acabou sendo substituída pela música: “Gostava tanto de você” do Tim
Maria.
Muitos dos alunos que estavam na eletiva participavam do Instituto Menino São
Judas para meninos carentes ou que cumprem medidas socioeducativas. Eles
chamam de “o Instituto”. Lá, eles aprenderam várias coisas. Eles sugeriram: “Tem
aquela do Instituto”. Daí um batucou, o outro puxou e aí a gente recriou a música do
Instituto. Ficou conhecida como "a música do Instituto”, que era só batuque, aí eu
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coloquei um riff simples de guitarra, era um suingue que abre a apresentação na sala
São Paulo, que é uma música que eles trouxeram a batida, eu coloquei o suingue de
guitarra e no meio a gente relata um texto de uma das alunas que escreveu sobre
questões antirracistas. Teve essa música que veio deles. A ideia sempre foi essa: que
pudesse vir deles e eu pudesse tocar, apesar das minhas limitações. Tudo isso trouxe
uma propriedade para os meninos. Essa coletividade muito grande entre nós todos:
entre professor e também uma professora que entrou depois, no meio da eletiva para
o final, que me ajudou muito nas gravações e registros.
Eu ia ampliando e fazendo relação com outras coisas, propiciando que
ouvissem e pensassem outras possibilidades. Em nenhum momento recriminando,
mas orientando. Nós tentamos várias coisas: rock pesado. Um ajudou o outro. Aquele
que era mais engajado acabava liderando e ajudando o outro. Quando saía do ritmo,
um já orientava o outro e corrigia. Até a gente pegar o ritmo legal demandou tempo,
mas depois começou a fluir de forma automática. Eu dizia: No começo é chato, mas
depois vocês vão sentir o prazer de tocar, pois você não vai fazer esforço para tocar.
Será algo que vai correr dentro de você. Você vai se perceber que é igual andar de
bicicleta. Terá um sentimento que é uma coisa muito bacana.
Pesquisador: Como as contradições socioculturais vivenciadas pelos
educandos apareceram durante as aulas?
Hugo: A maioria deles pertence à comunidade Mauro, que é uma comunidade
que fica aqui próxima ao metrô São Judas, zona sul de São Paulo. Elas se apresentam
das mais variadas formas. Inclusive, muitas vezes, na impossibilidade de criar algo
que seja reconhecido pelo outro. “Ah, sempre vai dar errado, nunca está bom”, mas
no fim, estão todos ansiosos para executar. Criar um grupo colaborativo, uma parceria
que a gente criasse confiança um no outro. Então, até hoje, os alunos causam
problema na escola, comigo não por questões óbvias. Eu dou aula de história. A gente
tem uma proximidade muito grande, inclusive de chamar a atenção dos alunos, faço
cortes, dou limites, mas, ao mesmo tempo, proponho um acolhimento, incentivando a
não desistirem. Isso está muito presente nos discursos dos alunos: “Ah, eu não vou
ser nada, não consigo ser nada, eu não quero ser nada... pra que estudar?”
A vulnerabilidade socioeconômica reverbera no discurso de desvalorização do
próprio ser humano que não encontra saída na escola, na própria sociedade para
poder se emancipar enquanto sujeito. Isso foi muito visível com a proximidade dos
alunos. Então, você começa a entender que uma menina tem 16 anos, mas já tem um
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filho de 3 anos, é mãe solo; o outro, o pai está preso; o outro, já passou por medida
socioeducativa. E daí você vai entendendo um pouco mais a questão da identidade
desses alunos, não vistos apenas de forma isolada ali na sala. Você vai aprendendo
o nome da família, dos pais, além de perceber que a família não é presente na escola
pública, ainda mais alunos do Ensino Médio. Você fica sabendo um pouco mais da
realidade deles, como eles vivem, onde vivem, com quem vivem, quais as
perspectivas de futuro que muitos, na verdade, não têm. Então, nesse sentido que eu
acho que a vulnerabilidade social aparece. Eles foram com as mesmas roupinhas na
sala São Paulo que eles vão pra escola a semana inteira, mas puderam tocar ali no
lugar de grandes artistas.
Pesquisador: Quais relações foram construídas na escola, durante e após a
conclusão dessa disciplina eletiva (entre os estudantes, professores, gestão escolar,
famílias etc.)?
Hugo: Construímos juntos com a identidade de todos, inclusive com a minha.
Numa ação educativa, o professor não é neutro. Há muito de mim naquele trabalho,
tanto em questões das minhas escolhas, das minhas dinâmicas com os alunos como
até em questões musicais. É muito interessante, pois fizemos apresentações. Lembro-
me de uma versão que fizemos da música no Natiruts. Foram os alunos que criaram
tudo de forma orgânica e foram incrementando. Eu só orientei o ritmo. Eu deixava, às
vezes, “o pau comer entre eles”. Discutindo e permitindo que eles mesmos
resolvessem conflitos e desentendimentos durante o processo. E dentro da linguagem
deles, se resolviam e, a partir desse atrito, surgia algo mais interessante.
Teve coisa bacana e coisa negativa. A grande parte dos professores achou
bacana, outros ficaram cansados de ouvir, às vezes, a mesma música, dias seguidos,
toda sexta-feira. Para quem está ensaiando é legal, agora para quem está ouvindo,
nem sempre. Outros professores acabam tendo certa “dor de cotovelo” porque
perceberam que os alunos que tinham certa indisciplina (alguns até colocaram fogo
na escola) começaram a mudar de atitude. Eu fui resolver isso, pois tinha proximidade
com eles. Então, eu percebo que outros alunos tiveram muito interesse em participar,
outros saíam de suas aulas para observar o que estava acontecendo na quadra,
tiravam fotos, gravavam. Alguns professores iam ver, cantavam junto. Isso trouxe uma
proximidade para a música também, despertando o interesse musical em querer
produzir alguma coisa... e trouxe aproximação do professor com os alunos, do
professor servir como um modelo a ser seguido, como um sujeito que tem um suposto
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saber. Muitas vezes, o aluno coloca um saber em nós que sabemos que não temos.
Nós, homens, servimos como modelo paternal para aqueles meninos que muitas
vezes crescem sem pai. Muitos que têm essa história. É comum, infelizmente!
Este trabalho reverberou de forma positiva no sentido de a molecada querer
participar. Isso trouxe uma notoriedade para a escola, que passou a ser vista em
outros canais e, consequentemente, para o meu trabalho. Já fui convidado para
trabalhar em outros órgãos da própria Secretaria da Educação, mas preferi ficar na
escola. Então, trouxe consequências positivas para todos. É importante saber lidar
com o desamparo e com a não possibilidade também, porque muitas vezes não é
possível. E a gente fica feliz quando é possível.