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O O S S I Ê

DA 11 ERA VARGAS" À FHC: transições políticas


e reformas administrativas

A reforma do Estado é a
questão mais persis-
tente na vida política brasileira
JAWDAT ABU-EL-HAJ•

RESUMO
O texto apresenta uma retrospectiva descritiva
centralizados da tomada de
decisões. A última, a reforma
reguladora, foi concebida du-
e continua sendo o foco para de abordagens e teorias que guiaram os diversos rante os mandatos de Fernan-
um desenvolvimento justo e momentos das reformas administrativas no do Henrique Cardoso ( 1994-
sustentável. Importante dis- Brasil desde a década de I 930. Delimitou três 2002), e sua doutrina seguiu
tinguir a reforma do Estado modelos que marcaram a institucionalização do os moldes de gerenciamento
da reforma administrativa. A setor público: o burocrático-racional ( 1938), o público.
empresarial (I 96 7) e o gerencial (I 99 5). Sugeriu
primeira descreve mudanças
que a consolidação de uma administração pública A "ERA VARGAS"
na estrutura, posição e forma eclética que reforçou o peso das barganhas E O ESTADO
de intervenção do Estado na pol íticas em detrimento do desempenho
INTERVENCIONISTA
sociedade, enfocando ideolo- institucional, gerando uma invasão de atribuições
gias, forças políticas e legiti- principalmente entre as três instâncias da O Brasil da década de
federação brasileira. vinte vivenciou uma profun-
midade. Enquanto a segunda
representa uma revisão dos ABSTRACT da mudança social: cresceram
mecanismos administrativos e The article presented a retrospective of approaches os centros urbanos, nasceram
técnicos adotados para viabili- and theories that guided administrative reforms in novas classes sociais, apareceu
Brasil since the I 930s. Ir indicated three basic a indústria e entraram em de-
zar a intervenção pública.
models that marked the institutionalization of cadência as antigas elites cafei-
Em 1930, a derrubada
thc public secror: bureaucratic--rational (I 938),
da primeira república inaugu- cultoras. O país se encontrava
en treprcneurial (1967) and managerial (1995).
rou uma longa odisséia para Ir suggested that thc consolidation of an eclectic
numa conjuntura de intensa
reformular o modelo político public administration strengthened political mobilização política, urbana,
brasileiro. Até o presente, esse ba rgaining to the detriment of institutional antagônica à sociedade agrária.
performance and created a tendency of rurf- Os protestos contra as práticas
caminho perpassou por três
invasion among the three leveis of the Brazilian políticas da Primeira Repúbli-
grandes reformas do Estado:
Fcderation.
o estado interventor, o estado ca (1889-1930) se tornaram o
Doutor em Ciências Políticas e professor do
· empresarial e o estado regu- foco das mobilizações sociais.
Departamento de Ciências Sociais da Universidade
lador. Esse trabalho sintetiza Federa I do Ceará. Especificamente, as críticas se
a literatura da ciência política voltaram para: a manipulação
em torno desses grandes momentos. dos votos, o uso político da administração pública
A primeira reforma adotou um modelo de e a aplicação de políticas econômicas liberais, que
intervenção centralizadora do Estado na socieda- beneficiavam os cafeicultores e seus respectivos es-
de, enquanto o governo foi organizado de acor- tados em detrimento de outros setores produtivos.
do com o modelo administrativo racional-legal A decadência dos cafeicultores já era evidente
(1930-1945). A segunda nasceu durante o regime nos primeiros anos do século vinte. O colapso dos
militar (1964-1985), e sua política de um acele- preços do café atingiu em cheio o poderio econômi-
rado crescimento econômico é conhecida como a co dessas elites. Os industriais, comerciantes, as no-
reforma empresarial do Estado. Os seus mecanis- vas classes médias urbanas e os assalariados indus-
mos administrativos assimilaram processos des- triais projetavam uma nova sociedade embrionária

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e se organizaram para desalojar do governo as elites caracteriza-se por uma combinação de intervenção
cafeicultoras. A persistente crise do café indicava política do governo federal nos estados, com uma
que o Brasil precisava de um novo modelo econô- centralização administrativa inspirada na organiza-
mico e de uma reforma do Estado que contemplasse ção racional-legal das instituições governamentais.
as mudanças sociais. Desesperadas, as referidas eli- A sua implantação ocorreu numa seqüência de dois
tes utilizavam todos os meios para prorrogar a sua intervalos. O primeiro é localizado durante o gover-
permanência no poder: aumentaram a repressão no provisório (novembro de 1930 a 16 de julho de
dos assalariados industriais, aprofundaram o empre- 1934), enquanto o segundo corresponde à fase re-
guismo, praticaram a compra de votos e utilizaram o pressora do Estado Novo (Gomes, 1980).
câmbio para aumentar as exportações do café. Dois
A CENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA (1930-
efeitos concomitantes aceleraram a queda do anti-
1934)
go regime. De um lado, fracionou-se a unidade das
elites paulistanas e, de outro, rompeu-se o pacto re- O assassinato do paraibano João Pessoa, can-
gional entre Minas Gerais e São Paulo (De Lorenzo didato à vice-presidência de Vargas, no dia 26 de ju-
e Costa, 1998). lho de 1930, foi o estopim que apressou a derrubada,
Três forças políticas se digladiavam para subs- pela força das armas, da Primeira República. Como
tituir a "Primeira República": a esquerda liderada todos os centros políticos heterogêneos, a Aliança
pelo PCB (Partido Comunista do Brasil), a extrema Liberal era polarizada entre dois projetos divergen-
direita, representada pela AIB (Ação Integralista tes. O primeiro era do Partido Democrata Paulista,
Brasileira) e o centro, aglutinando a Aliança Liberal com suas bandeiras clássicas de eleições livres e go-
e o catolicismo político. Cada agrupamento depen- verno constitucional; enquanto o segundo reunia os
dia de grupos sociais diferentes. O PCB se inspirava tenentes e intelectuais autoritários e defendia uma
nas lutas operárias. Os integralistas tiveram grande brusca centralização institucional e uma interven-
popularidade junto aos segmentos conservadores ção estatal, em prol do desenvolvimento econômico
das classes médias urbanas e a alguns círculos operá- (Lippi, 1982).
rios. As forças centristas, representadas pela Aliança Getúlio Vargas, seguidor do positivismo gaú-
Liberal e lideradas por Getúlio Vargas, consegui- cho, inclinava-se para o segundo grupo. A nomea-
ram reunir um amplo espectro: forças regionalistas ção de interventores nos estados, em substituição
contrárias à hegemonia paulistana, profissionais li- aos governadores, e a reorganização administrativa
berais, militares, empresariado industrial e as elites marcaram os primeiros atos do governo provisório.
políticas reformistas. Objetivamente, o centro era o Entre os dias 14 e 26 de novembro de 1930, Vargas
melhor posicionado para liderar o processo. Reunia criou dois super ministérios: Ministério da Educa-
o poder das armas militares, a legitimidade do clero, ção e Saúde Pública e Ministério do Trabalho, In-
os recursos do empresariado industrial e a força po- dústria e Comércio. O seu propósito era enfrentar
lítica das oligarquias estaduais. três impasses herdados do antigo regime: a questão
No dia ll de novembro de 1930, com o in- social, representada pelos protestos operários; a cri-
centivo dos militares, Getúlio Vargas dissolveu o se econômica, causada pelo colapso dos preços do
Congresso e todas as Assembléias Legislativas, além café e a assistência à agricultura que sofria de uma
de suspender os direitos políticos. Para Vargas, os crise de abastecimento (D 'Araujo, 1999).
impasses brasileiros eram causados pela anarquia Gustavo Capanema, o novo ministro da Edu-
político-administrativa. Assim, entre 1930 e 1945, cação e Saúde Pública, intelectual católico e protegi-
desencadeou uma centralização político-adminis- do de Francisco Campos, um dos mentores da "Era
trativa jamais vista no Brasil. Nesse período, popu- Vargas" e seu ministro da justiça, promoveu uma
larmente designado "Era Vargas", essa administração reorganização administrativa, absorvendo órgãos,

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extinguindo cargos e criando novas funções. O ob- Vargas é empossado presidente, para um mandato
jetivo era a centralização de todas as entidades e re- de quatro anos, sem a possibilidade de reeleição.
partições públicas ligadas a assuntos educacionais e Nesse intervalo, o governo procurou aprofundar a
de saúde, numa única administração. sua reforma administrativa, iniciando uma fase de
O Ministério do Trabalho, Indústria e Co- conflitos latentes com o Legislativo, como conseqü-
mércio, autodenominado Ministério da Revolução, ência dos inquéritos administrativos direcionados a
teve o impacto mais prolongado pelo fato de haver modificar a natureza da administração pública no
redefinido as relações trabalhistas. Lindolfo Collor, Brasil.
então ministro do Trabalho e principal intelectual O conflito dos inquéritos se deflagrou, em 16
das reformas trabalhistas na "Era Vargas", defendeu a de maio de 1935, pela sub-comissão Nabuco. Mau-
tese segundo a qual, na sociedade urbana-industrial rício Nabuco, diplomata e filho de Joaquim Nabuco,
os conflitos trabalhistas não somente eram recorren- foi convocado por Vargas para participar da Co-
tes, mas naturais e poderiam ser apaziguados com a missão Mista de Reforma Econômica-financeira.
formalização c a regulação dos mercados de traba- Reconhecido por seus méritos na reforma admi-
lho. A organização corporativa das classes sociais e nistrativa do Itamarty, Nabuco foi designado como
as negociações coletivas intermediadas pelo Estado relator da Sub-comissão do serviço público. Em se-
seriam um substituto tanto do socialismo estatizante tembro, apresentou ao ministro da Fazenda, Artur
como do capitalismo liberal anárquico. A paz social de Sousa Costa, um dos mais minuciosos relatórios
se concretizaria, na medida em que patrões e empre- da situação do serviço público brasileiro. Descre-
gados se organizassem em sindicatos e negociassem, via uma situação caótica, assinalando a ausência de
de forma ordeira, as suas reivindicações, por inter- critérios para definições de funções e salários, e os
médio do Estado. fluxos desordenados de decisões. Recomendou mu-
Juarez Távora, ao assumir o Ministério da danças nos métodos de recrutamento, critérios para
Agricultura, em 14 de abril de 1932, colocou três progressão funcional e um remanejamento de ór-
metas como princípios que norteariam o desenvol- gãos. Na sua conclusão, Nabuco sugeriu a exclusão
vimento agrário: coordenação maior entre os órgãos dos extra-numerários (funcionários nomeados) da
governamentais; a liberação das instituições públi- folha de pagamentos, deixando a sua incorporação
cas do jogo político; e a redução da irracionalida- a uma comissão especial. O diagnóstico da sub-co-
de administrativa, manifestada pela duplicidade de missão Nabuco implicava um golpe fatal para o Es-
funções. tado Patrimonialista da primeira república e estava
A centralização institucional surtiu poucos predestinado a sofrer uma resistência tenaz das elites
efeitos para amenizar a estagnação econômica e os dominantes no Congresso.
conflitos sociais. Os confrontos trabalhistas perma- A resposta do Legislativo foi negativa e o
neceram intensos e as colisões entre os comunistas ministro da Fazenda reagiu, confiscando as edições
e os integralistas se tornaram ocorrências freqüen - do relatório e nomeando outra sub-comissão de par-
tes. O quadro político se agravou, em julho de 1932, lamentares, esta sob a direção do deputado José Ber-
quando os paulistas deflagraram uma revolta, pro- nardino. A sub-comissão Bernardino reiterou todos
testando contra a nomeação de um interventor per- os critérios técnicos de Nabuco; todavia, recomen-
nambucano e pedindo o fim do governo de exceção dou a incorporação dos extranumerários ao serviço
(Skidmore, 1996). público. Essa demanda implicava uma institucio-
Pressionado, em maio de 1933, Vargas con- nalização do controle oligárquico da administração
voca eleições da Assembléia Constituinte. Em 1934, pública, uma vez que admitia, permanentemente,
a terceira Constituição brasileira é promulgada e milhares de seguidores e afilhados políticos no setor

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público, bloqueando as possibilidades de reformas a instalação do "Estado Novo" e uma nova Consti-
políticas. tuição, autoritária, que previa eleições somente num
Em dezembro de 1935, Vargas tomou a ini- prazo de seis anos.
ciativa e nomeou dois confidentes: Luiz Simões Lo- O Estado Novo foi marcado por contradições.
pes (político gaúcho) e Moacir Ribeiro Briggs (di- De um lado, pôs em prática um dos mais brutais
plomata), para dirigirem a Comissão Presidencial sistemas de repressão. Por outro, incentivou o apa-
e elaborarem um relatório definitivo da situação do recimento de uma nova elite tecnoburocrática, mo-
funcionalismo público. Conhecida como Comissão derna, centrada no DASP (Departamento Adminis-
do Reajustamento, esta criou um plano de cargos e trativo do Serviço Público).
salários, instituiu o concurso público como critério
O DASP E A FORMALIZAÇÃO DO ESTADO
de ingresso no serviço público e criou o Conselho RACIONAL-BUROCRÁTICO (1938-1945)
Federal do Serviço Público para promover a unifi-
cação das carreiras e dos vencimentos nas reparti- No dia 30 de julho de 1938, o DASP foi fun-
ções federais. Em outubro de 1936, as recomenda- dado pelo Decreto-lei 579, com a incorporação do
ções foram transformadas na Lei de Reajustamento Conselho Federal de Serviço Público. A institui-
ção foi pensada como um· centro de planejamento
dos Quadros e dos Vencimentos do Funcionalismo
estratégico da reforma administrativa, tendo cinco
Público Civil da União (Lei 281). A administração
atribuições: 1. selecionar os candidatos aos cargos
pública brasileira se aproximou do modelo clássico
públicos federais; 2. promover a readaptação dos
racional-legal, adquirindo regras de ingresso, pisos
funcionários de carreira aos novos padrões adminis-
salariais, critérios de progressão e um sistema de
trativos; 3. padronizar as compras do Estado, através
acompanhamento e avaliação (Wahlrich, 1983).
de regras transparentes e licitações; 4. auxiliar o Pre-
O modelo administrativo racional-legal, de-
sidente na elaboração dos projetos a serem subme-
fendido por Simões e Briggs, era influenciado pelas
tidos à sanção e 5. inspecionar o serviço público e
teorias clássicas da administração pública e sinte-
apresentar relatórios anuais sobre a situação do ser-
tizava seis princípios: 1. funcionários públicos sem
viço público.
lealdades políticas; 2. hierarquias e regras bem defi-
Para desempenhar o papel de coordenação, o
nidas; 3. permanência e estabilidade no emprego; 4.
DASP foi organizado em cinco divisões: organização
institucionalização derivada de um perfil profissio-
e coordenação, empregados públicos, extranumerá-
nal bem demarcado; 5. regulação interna para evitar rios, seleção e treinamento e materiais. Na época,
arbitrariedades e 6. isonomia salarial e das condições uma sexta divisão foi estabelecida, a das finanças;
contratuais. mas, pela resistência demonstrada pelo Ministério
Os conflitos entre as elites políticas, no entan- da Fazenda, a sua operacionalização foi adiada até
to, permaneceram como fonte de instabilidade. Nos 1940, quando foi criada a Comissão do Orçamento,
meados de 1937, apresentavam-se dois candidatos à localizada no Ministério das Finanças, mas presidi-
sucessão de Vargas: Armando de Sales Oliveira, ex- da pelo diretor do DASP. A jurisprudência financeira
governador de São Paulo e representante das elites do DASP foi ampliada, alguns meses antes da queda
paulistas, e José Américo de Almeida, um integran- de Vargas, para englobar a preparação integral do
te do movimento tenentista. A vitória de Armando orçamento geral da União.
Sales era inevitável. Para impedir o retorno das eli- Os fundadores do DASP evitaram as pressões
tes paulistas ao poder e, incentivado pelos militares políticas, negando a transferência de pessoal dos
Góis Monteiro e Eurico Dutra, Vargas sucumbiu à outros ministérios para o preenchimento dos novos
tentação autoritária. No dia 1Ode novembro de 1937, cargos. Um concurso público para "técnicos de ad-
ordenou o cerco ao Congresso Nacional, anunciou ministração" foi aberto. O conteúdo do concurso re-

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lletiu a posição central que o DASP assumiu dentro A adaptação das teorias weberianas por
do serviço público. As provas exigiam candidatos de William Willoughby, para os mecanismos da de-
elevada preparação acadêmica e uma especialização mocracia representativa, gerou uma compartimen-
técnica, de acordo com a função a ser preenchida. talização formal dos papéis das instâncias políticas
Por exemplo, os concursos eram divididos em três e administrativas. Seguindo esse autor, os daspianos
fases: um exame escrito de conhecimentos técnicos; defendiam a diferenciação entre os mecanismos ad -
a elaboração de uma tese na área de especialização e ministrativos (governança) e as negociações políti-
uma defesa pública do texto apresentado. Essa cri- cas, formação de consensos políticos e a elaboração
teriosa seleção criou um grupo de construtores do de programas governamentais (governabilidade). A
Estado Moderno, no Brasil, cuja legitimidade residia política é a arena de representação dos interesses so-
no conhecimento técnico c na capacidade de plane- ciais e particulares e é exercida, principalmente no
jamento, atributos alheios aos típicos funcionários poder Legislativo, pelos partidos. A administração
patrimonialistas da Primeira República. O novo técnica baseada na eficiência operacional é uma es-
estamento representava, na essência, o embrião de fera exclusiva do Executivo, que gerencia as institui-
uma nova classe média urbana, disposta a assumir ções governamentais como um "conselho diretor" de
um papel político e administrativo central na cons- uma sociedade anônima. Para Willoughby, há duas
trução de uma sociedade urbana-industrial, no Bra- típicas atividades administrativas: os fins do Estado,
sil. que englobavam os serviços fornecidos ao público
Apesar do Estado Novo ter ílertado com os fas - (saúde, educação, transporte, defesa nacional, finan-
cistas, as referências teóricas dos daspianos eram os ças, relações exteriores, etc) e atividades de plane-
clássicos da administração pública liberal: Max We- jamento e administração. O segundo são funções
ber, William Willoughby, Henri Fayol e Luther Gu- essenciais para o desempenho das primeiras. Essas
lick. Os relatórios da reforma administrativa ameri- atividades requerem a determinação e definição de
cana, durante o governo Roosevelt, "The President's autoridade, organização racional, pessoal e material,
Committee on Administrative Management Report" dotação orçamentária e adoção de métodos adequa-
(1936) , e o relatório da Brookings Institution (1937) dos de trabalho.
tiveram uma grande ressonância junto a Luiz Simões 1-Ienri Fayol, o mentor das reformas adminis-
Lopes, o mentor da entidade. trativas francesas, distinguiu entre princípio admi-
Da obra original de Weber, os daspianos deri- nistrativo e elementos administrativos. O primeiro é
varam os princípios gerais que definiam o tipo ideal composto pela divisão de trabalho, autoridade, uni-
da administração pública racional -legal. Esse mo - dade de comando, unidade de direção, centralização,
delo implica a existência de instituições gerenciadas hierarquia e disciplina. Enquanto os elementos da
por uma burocracia em que há uma hierarquização e administração representam planejamento (previsão
racionalização de funções; divisão de trabalho; auto- de resultados), organização, comando e organização
ridade limitada do cargo, regida por normas explíci- (POCCC) . Finalmente, Luther Gulick, o intelectual
tas; remuneração fixa e de acordo com a função; es- orgânico das reformas administrativas americanas
pecialização competente do funcionário nomeado, e da era Roosevelt, acreditava que as instituições go -
não eleito; a dedicação exclusiva; carreiras estáveis; vernamentais deveriam se organizar de acordo com
separação entre a propriedade do funcionário e os as seguintes linhas: planejamento, organização, re-
bens públicos e comunicações escritas e documenta- crutamento pessoal (staffing), direção, coordenação,
das. Três termos resumem a cultura organizacional informação e orçamento.
desse tipo : impessoalidade, imparcialidade e neutra- Seis princípios passaram a representar um
lidade. consenso em torno da teoria clássica da administra -

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ção pública: 1. funcionários públicos apolíticos (sem (Consolidação das Leis Trabalhistas), em 1943, e a
lealdades políticas); 2. hierarquias e regras bem de- possibilidade de uma nova Assembléia Constiluin- .
finidas; 3. permanência e estabilidade no emprego; te, desta vez com o apoio da esquerda, alertaram a
1. institucionalização derivada de perfil profissional linha dura do Exército, dominada por uma paranóia
bem demarcado; 5. regulação interna para evitar anti-comunista. Os seus dois representantes, Góis
arbitrariedades e 6. isonomia salarial das condições Monteiro e Eurico Dutra, do grupo autoritário das
contratuais. forças armadas, considerado amigável aos países do
A doutrina daspiana adaptou os princípios eixo, durante a segunda guerra mundial, aliaram-se
da teoria tradicional e formulou nove premissas à ala conservadora-liberal, liderada por Juarez Tá-
que guiariam a atuação das instituições públicas: 1. vora e Juracy Magalhães, rechaçaram os oficiais le-
racionalização da autoridade, através de uma divi- galistas, integrantes da FEB (Força Expedicionária
são hierárquica de trabalho; 2. estabelecimento de Brasileira) na Itália, e exigiram a renúncia de Vargas.
normas que minimizassem a interferência política; Temiam uma aproximação deste com os comunistas
3. ajustamento de salários, de acordo com as fun- e a deflagração de um novo golpe do Estado, de in-
ções enquadradas na hierarquia interna; 4. seleção clinações esquerdistas.
meritocrática, baseada na competência técnica dos No mesmo dia da queda de Vargas, Luiz Si-
servidores e determinada por um concurso rigoroso mões Lopes e lodos os diretores do DASP pediram
e especializado; 5. dedicação exclusiva à profissão, exoneração. Moacir Briggs assumiu a direção, até o
fixada através de um contrato de tempo integral; 6. dia 11 de dezembro de 1945, quando deixou seu car-
unidade do comando administrativo; 7. unidade da go, em protesto contra as nomeações políticas prati-
direção institucional; 8. centralização administrativa cadas pelo governo interino de José Linhares, presi-
e 9. disciplina. dente do Supremo Tribunal Federal. Na sua ofensiva
A partir de 1912, o modelo do DASP se alas- contra o DASP, Linhares alegou que as atribuições
trou às unidades federativas, começando com a deste órgão teriam excedido os poderes normais da
organização do Departamento do Serviço Público burocracia numa sociedade democrática. A sua crí-
da Bahia. A pedido dos governos estaduais, outros tica se baseou em duas funções consideradas rema-
"daspinhos" (designados como DSP- Departamen- nescentes do centralismo autoritário: a elaboração e
to de Serviço Público) foram fundados em Pará, aprovação dos orçamentos da União e a fiscalização
Maranhão, Piauí, Ceará, Paraíba, Alagoas, Sergipe, dos gastos governamentais.
Espírito Santo, Rio de Janeiro e Goiás. Seguindo as Os verdadeiros motivos da ofensiva contra o
diretrizes centrais, os "daspinhos" foram encarrega- DASP, como revelou Mário Wagner Cunha, eram
dos pela análise de racionalização das instituições as nomeações políticas e, principalmente de paren-
públicas, estaduais e municipais. Para melhorar o tescos, feitas por Linhares. Em pouco mais de dois
seu desempenho, as unidades e os setores de estatís- meses, entre 29 de outubro de 1945 e 02 de janeiro
ticas dos escritórios estaduais do IBGE foram trans- de 1946, milhares de aliados políticos e familiares do
feridos aos "daspinhos". presidente interino ingressaram sem concurso no
O destino do DASP, o núcleo planejador da governo federal. A situação foi agravada pela Consti-
reforma administrativa do Estado Novo, foi selado tuinte de 1946, que transformou as nomeações tem-
junto a Vargas. Ironicamente, os dois generais que porárias em cargos permanentes do serviço público.
forneceram as armas para a instalação do Estado Em 1948, o potentado DASP perdeu o que restou de
Novo lideraram a deposição de Getúlio Vargas, no suas atribuições deliberativas e foi reduzido a um es-
am. T3 dia 29 de outubro de 1915. A aproximação de Var- critório de assessoramento técnico.
I gas dos sindicatos, em 1942, a aprovação da CLT O surpreendente desmoronamento do DASP
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a tem duas interpretações. Wahlrich (1983) atribuiu a vam sobre um amplo consenso político. Arruinado
sua fragilidade à tradição oligárquica brasileira. Su- o Estado Novo, as elites conservadoras, sob o pretex-
geriu que o afastamento de Vargas retirou o escudo to da redemocratização, retomaram as suas práticas
político daquela instituição, deixando seus funcioná- clientelistas e invadiram as instituições públicas, pi-
rios vulneráveis à ofensiva oligárquica. Esses grupos lhando o Estado c seus fundos públicos.
ficaram latentes na vida política brasileira, esperan - A experiência daspiana não foi inteiramente
do uma oportunidade para re tomar os seus mandos perdida. Apesar do seu desaparecimento como nú-
dentro da administração pública. Na luta pelo poder, cleo estratégico dentro da administração pública,
entre as novas elites tecnoburocráticas e as antigas deixou o embrião de uma nova ética pública, endos-
elites políticas, o primeiro grupo não conseguiu res- sada pelas forças democráticas. Noções básicas de
guardar a sua autonomia. um "público universal", estado racional a serviço do
A segunda explicação é de Wagner Cunha, que bem -estar geral da sociedade e um conceito de ins-
localiza na cultura organizacional elitista do DASP tituições públicas, resistentes às manipulações polí-
as razões do naufrágio. O excessivo isolamento da ticas são heranças que sobrevivem, como doutrinas
nova tecnoburocracia e a proteção semi -paternal administrativas consagradas, na sociedade brasileira.
oferecida por Vargas o inibiram de estabelecer uma Muitos dos daspianos permaneceram no setor pú-
rede de proteção política, que poderia sustentar a blico e tiveram um papel decisivo no planejamento
instituição, após a mudança do regime. A dedicação industrial. Alguns dos ícones do desenvolvimentis-
quase monástica dos seus dois fundadores, Moacir mo iniciaram suas carreiras no seleto quadro daspia-
Briggs e Luiz Simões Lopes, às noções de meritocra- no, entre eles: Guerreiro Ramos (fundador do ISEB),
cia, racionalização e imparcialidade distanciou a ins- Celso Furtado (o mentor do desenvolvimentismo
tituição das forças políticas vivas na sociedade brasi- no Brasil) , Lucas Lopes (principal administrador do
leira. Perante a ofensiva clientelista, nenhum partido plano de metas) e Luiz Simões Lopes (presidente do
político se mobilizou para proteger o símbolo maior DASP, entre 1938 e 1945, e idealizador da Fundação
Getúlio Vargas).
da meritocracia pública no Brasil.
Sintetizando as duas explicações, é provável PROTO-DESENVOLVIMENTISMO: AS
que o divórcio entre os meios e os fins empregados COMISSÕES ECONÕMICAS E A CRIAÇÃO DO
pelo Estado Novo tenha sido o motivo maior do fra - BNDE
casso do DASP. Seduzido pelo imediatismo autori-
O fracassado projeto daspiano reforçou o
tário, Vargas renunciou aos objetivos democráticos
aspecto pulverizado das ações governamentais. As
da revolução de trinta e a Constituição de 1934. Esse
atenções se voltaram, exclusivamente, ao controle da
período ( 1930-1937) foi um dos mais ricos interva- inflação e ao ajuste da balança de pagamentos. En -
los da construção política no Brasil: decaíram as ins - tre 1945 e 1955, uma série de relatórios econômicos
tituições das oligarquias fundiárias; ascenderam ao procurou delimitar o papel do Estado e suas formas
poder novas classes sociais; despertou um novo sin- de intervenção. Dois pioneiros estudos, Relatório
dicalismo, representativo dos assalariados urbanos Niemeyer (1931) e o Memorando da Missão Cooke
e das massas rurais; apareceram projetos de desen- (19 112), haviam defendido a ampliação do mercado
volvimento industrial e se iniciou a reorganização interno, a diversificação da produção e uma política
de uma moderna administração pública. A tentação industrial mais agressiva. Todavia, em 1948, a Mis -
autoritária, de 1937, interrompeu o processo demo- são Abbink recuou, em relação às recomendações
crático de mudança social. Apesar das aparências só- iniciais, da industrialização, e advogou uma política
lidas do Estado Novo e suas instituições políticas, os monetarista mais rígida, para contornar a inflação,
pilares do regime eram frágeis, pois não se edifica- atrair investimentos internacionais e acel erar as ex-

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portações. Por uma década, a inconsistente e confu- Interamericano de Desenvolvimento (Sola, 1998).
sa fase dos relatórios econômicos paralisou o gover- A tendência desenvolvimentista foi reforçada,
no brasileiro. em 1953, com a conclusão do relatório do Grupo
Somente em dezembro de 1950, com a insta- Misto CEPAL-BNDES, sob a presidência do econo-
lação da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, foi mista Celso Furtado, então funcionário da CEPAL
reativado o debate em torno do futuro do Estado e (Comissão Econômica e de Planejamento da Amé-
da economia. Duas posições latentes haviam se ma- rica Latina). Os dois estudos serviram de base para
terializado: a monetarista e a desenvolvimentista. O o Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek,
relatório final da Comissão Mista se inclinou a favor iniciado em 1956, sob a coordenação de Lucas Lo-
das teses desenvolvimentistas e, com a re-eleição de pes.
Vargas à Presidência, em 31 de janeiro de 1951, esse Ironicamente, foram os daspianos, Lucas Lo-
grupo adquiriu uma preeminência na vida pública pes e Celso Furtado, os impulsores da nova onda
(Malan, 1977). desenvolvimentista. Aprovados na primeira leva de
O desenvolvimentismo atribuía ao Estado concurso do DASP, ambos haviam sido expurgados
a liderança na transição de uma sociedade agrária pela política clientelista que destruiu a instituição,
para a industrial, em dois aspectos: investimentos em 1945. Voltaram na década de cinqüenta, formu-
públicos diretos em empreendimentos econômicos lando o referido plano de metas e induzindo um dos
e sociais e a formulação de uma política industrial de processos mais curiosos de industrialização, nos pa-
integração dos setores industriais (insumos básicos e íses em desenvolvimento.
indústrias de bens de capitais). A política industrial
KUBITSCHEK E AS CONTRADIÇÕES DO
teria aspectos protecionistas, sistema de incentivos
DESENVOLVIMENTISMO
e intermediação financeira. O monetarismo é um
pensamento derivado da teoria neoclássica e acredi- Ao assumir a Presidência, em 1956, Juscelino
ta no equilíbrio espontâneo do mercado. O papel do Kubitschek (JK) enfrentou três desafios. Herdou ins-
Estado se restringe ao controle da inflação e à defesa tituições públicas debilitadas pelo clientelismo e ina-
de uma ordem monetária estável, ou seja, um equilí- bilitadas para formular complexas políticas públicas.
brio orçamentário. Segundo, a sua frágil sustentação partidária não per-
A Comissão conduziu uma abrangente pes- mitiu ousadas reformas administrativas, semelhan-
quisa sobre a situação de infra-estrutura econômica tes às da década de trinta. Finalmente, a sua vitória
e o grau de desenvolvimento industrial. Identificou eleitoral foi por uma margem reduzida de 36% dos
cinco setores que necessitavam de apoio imediato, votos válidos, com o agravante de, em São Paulo, o
para expandir o mercado interno: ferrovias (50% dos maior colégio eleitoral e o centro econômico doBra-
investimentos totais); energia elétrica (34%); cons- sil, haver recebido somente a aprovação de 9% do
trução pesada de estradas e portos (6%) e transporte eleitorado (Skidmore, 1996).
marítimo (6%). Três sugestões imediatas foram in- Para satisfazer as demandas contraditórias
cluídas: a importação de máquinas agrícolas para dos seus aliados, JK adotou uma prática que se tor-
intensificar a produção de alimentos; construção de nara clássica nas coalizões partidárias. Em 1956, a
silos para reduzir as oscilações de preços de produ- CEPA (Comissão de Estudos e Planejamento Admi-
tos e expansão das plantas industriais já existentes. nistrativo), constituída pelo presidente eleito para
Recomendou a criação do Banco Nacional de De- diagnosticar a administração pública, apresentou
senvolvimento Econômico (BNDE), em 20 de junho duas fórmulas para uma reforma administrativa:
de 1952, um banco de desenvolvimento para coor- uma reformulação ampla, nos moldes da adotada
denar os investimentos infra-estruturais previstos, na década de trinta; e outra, de uma administração
com os recursos do Export-Import Bank e do Banco paralela (bolsões de excelência), inspirada no GElA

10 I REVISTA DE CiENCIAS SOCIAIS v.36 n. 1/2 2005


(Grupo Executivo da Indústria Automobilística). do CND como do BNDE; garantiu à equipe técnica
(Almeida, 1972). O pragmático Kubitschek adotou plena autonomia para contratar seus integrantes; es-
a segunda alternativa c dividiu a administração pú- tabeleceu um canal direto com a presidência da repú-
blica em dois campos: o econômico e o social. En- blica e reservou, para tanto, uma dotação financeira,
quanto os ministérios sociais foram reservados às anual, independente do orçamento da União. A últi-
negociatas políticas e nomeações de aliados, as ins- ma medida assegurou a independência financeira do
tituições econômicas receberam a proteção pessoal Banco, até 1967. Os recursos do BNDE eram oriun-
de Kubitschek e foram preenchidas pelos melhores dos de uma sobretaxa aplicada sobre a importação
técnicos do Estado (Gomes, 1991). de petróleo, transporte ferroviário, transporte marí-
Essa peculiar divisão entre o econômico e o timo e energia elétrica. Posteriormente, outra sobre-
social era um reflexo da teoria desenvolvimenlista, taxa, de 15%, foi adicionada ao imposto de renda de
predominante na década de cinqüenta. Acreditava- grandes empresas e fortunas. Os recursos anuais do
se que a industrialização e o crescimento econômico BNDE, durante a presidência de Kubitschek, alcan-
seriam suficientes para resolver os impasses sociais. çaram uma média de 22% de todos os investimentos
Roberto Campos descreveu a essência dessa noção: federais (Lafer, 1987).
Dois objetivos nortearam a estratégia desen-
(. ..) a opçâo pelo desenvolvimento volvimentista de JK: substituição de importações e
implica a aceitação da idéia de que é melhoria da infra-estrutura básica. A primeira es-
mais importante maximizar o ritmo tratégia foi direcionada ao setor privado, enquanto a
de desenvolvimento econômico, que segunda foi desencadeada com os recursos do Pro-
corrigir as desigualdades sociais. Se o grama de Reaparelhamento Econômico. Como as
ritmo de desenvolvimento econômico é presidências do CND e do BNDE foram unificadas,
rápido, a desigualdade pode ser tolerável o planejamento econômico adquiriu uma grande vi-
e pode ser corrigida a tempo. Se baixa talidade, atenuando os obstáculos políticos e as mo-
o ritmo de desenvolvimento por falta rosidades administrativas.
de incentivos adequados, o exercício da Quatro grupos executivos (GEs) foram esca-
justiça distributiva se transforma numa lonados para planejar a substituição de importações
repartição de pobreza. de setores prioritários: GElA (Grupo Executivo da
Indústria Automobilística), GEICON (Grupo Execu-
Essa estratégia revelou ser um impasse for- tivo da Indústria de Construção Naval), GEIMAPE
midável para o desenvolvimento sustentável e so- (Grupo Executivo da Indústria Mecânica Pesada) e
cialmente justo, no Brasil, e continua sendo um dos GEIMAQ (Grupo Executivo da Indústria de Bens de
impasses mais agudos dos nossos dias (Cardoso, Capitais). Os GEs reuniram empresários e executivos
1977). do setor público, na programação de investimentos e
Kubitschek dependeu de duas instituições na importação de tecnologias. Por outro lado, as me-
para promover a transição industrial: o BNDE e o tas de expansão da infra-estrutura focalizaram cinco
Conselho Nacional de Desenvolvimento (CND), "gargalos": energia elétrica, transporte, alimentação,
criado em fevereiro de 1956. O primeiro era a fon- indústria de base e educação. Foram organizados 30
te de financiamento, enquanto o segundo assumia o Grupos de Trabalho, para traçar políticas setoriais e
planejamento setorial. Para evitar a fragmentação in- alcançar metas de produção sugeridas pelos relató-
tcrburocrática e as interferências políticas de grupos rios da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e do
empresariais, tomou quatro medidas: nomeou Lucas Grupo Misto BNDE-CEPAL (Sola, 1998).
Lopes, ex-governador mineiro, à presidência, tanto O Plano de Metas foi um sucesso produtivo.

1\BU EL HAJ, Jawdat. Da "Era Vargas" à FHC: transições ... p. 33-51

I
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Na maioria dos casos, os GTs ultrapassaram as ex- senvolvimentista de JK, a dívida externa tinha subi -
pectativas. Entre 1956 e 1960, a feição econômica do de US$2,0 bilhões, em 1955, para US$2,7 bilhões,
brasileira mudou radicalmente, de uma típica socie- em 1960, e com 60% das somas com maturidade de
dade agrária para uma moderna economia indus-' 3 anos. A inflação alcançou uma taxa de 22,6%, con-
trial. Todavia, os pressupostos teóricos do desenvol- siderada excessivamente elevada para os padrões da
vimentismo e suas práticas institucionais causaram época. Enquanto São Paulo aumentou a sua parcela
graves incoerências entre: desenvolvimento econô- do setor industrial de 48%, em 1955, para 55%, em
mico, desenvolvimento político e desenvolvimento 1960, alcançando 82% nos setores de consumo de
social. massa. (Gomes, 1991).
Primeiro, a recusa de Kubitschek em promo- A experiência desenvolvimentista mostrou
ver uma ampla reforma administrativa significava que o crescimento não poderia precluir os direitos
a entrega do planejamento econômico às vontades sociais. Essa opção ergue uma economia insusten-
subjetivas, em vez das ações institucionais de longa tável, uma vez que gera uma crescente dependência
duração (Nunes, 1997). Por exemplo, com a saída de externa, com graves desequilíbrios estruturais: infla-
Lucas Lopes para assumir o Ministério da Fazenda, ção elevada, desigualdade regional e graves proble-
em junho de 1958, o CN D perdeu a sua importância mas sociais. O meio para alcançar o desenvolvimen-
como órgão de planejamento. A situação se agravou, to sócio-econômico justo é garantir uma continui-
em maio de 1959, quando toda a equipe original dade administrativa e uma convergência entre melas
deixou o BNDE, após o enfarte sofrido por Lopes econômicas e sociais.
e a nomeação de Lúcio Meira para a presidência da JANGO E AS REFORMAS DE BASE
instituição. Naquele mês, Kubitschek declarou en-
A eleição de 1960 complicou, mais ainda, a
cerrado o Plano de Metas e enviou ao Congresso
herança desenvolvimentista deixada por Kubitschek.
Nacional o seu relatório final.
Como <? sistema eleitoral permitia uma disputa in-
Segundo, a separação estabelecida entre de-
dependente entre a presidência e a vice-presidência,
senvolvimento econômico e inclusão social acelerou
o novo governo reuniu dois candidatos antagônicos.
o crescimento econômico e intensificou a industria-
O udenista Jânio Quadros derrotou o candidato ofi-
lização, e, ao mesmo tempo, estancou o mercado
cial General Lott e o ex-governador paulista Adhe-
interno. Esse fato significava que a acumulação de
mar de Barros. Por outro lado, o candidato do PTB
capital não era determinada por fatores internos,
e ex-ministro do Trabalho, João Goulart, foi mais
mas precisava de recursos externos para financiar a
votado do que Milton Campos, ex-governador de
expansão econômica. Terminado o ciclo desenvol-
Minas e um dos mais respeitados políticos da elite
vimentista, o Brasil exibia relações de dependência
tradicional.
externa bem mais complexas do que nas décadas O excêntrico Quadros iniciou seu manda-
anteriores. to aplicando políticas monetaristas clássicas para
Por outro lado, a acelerada industrialização contornar a inflação. Todavia, em março de 1961,
implicava um crescimento econômico superior ao repentinamente convidou o cientista político Cândi-
ingresso da população no consumo interno. Esse do Mendes, um desenvolvimentista moderado, para
fato gerou três impasses imediatos, que repercuti- presidir a sua assessoria econômica e passou a de-
ram sobre o colapso da democracia, em 1964: um fender uma síntese de estabilização monetária com a
endividamento externo e de curta duração; uma retomada de intervenção do Estado. Essa virada não
inflação galopante (principalmente pelos custos da foi bem recebida pelo seu partido, a UDN. A sua si-
construção de Brasília) e uma excessiva concentra- tuação se agravou quando, sob os conselhos do seu
ção industrial no Sudeste. Concluída a investida de- ministro das relações exteriores, Afonso Arinos de

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BCH-UF~
PERIODICOS
ibi- Melo Franco, propagou uma política externa autô- As Reformas de Base compunham-se de dois
~es, noma do eixo americano. Uma semana após a sua eixos: um emergencial c o outro relevante. O emer-
de condecoração de Che Guevara, Carlos Lacerda pe- gencial objetivou: melhorar a situação social através
~n­ diu a sua renúncia durante a convenção da UDN, em do abastecimento de alimentos, da erradicação do
da maio de 1961. Abandonado pelos correligionários, analfabetismo e dinamização do mercado de traba-
Quadros renunciou à Presidência, em 25 de agosto lho; combater a alta inflação e melhorar a eficácia da
de 1961 (Benevides, 1981). administração pública e iniciar uma reforma agrá-
No dia da renúncia, o vice-presidente João ria. Doze medidas relevantes foram formuladas para
Goulart se encontrava na China. Durante nove dias, viabilizar os objetivos emergenciais: plano econô-
uma batalha jurídica foi travada entre os constitu- mico anti-inflacionário, reforma tributária, reforma
cionalistas, defendendo o direito do vice assumir administrativa, desapropriação e redistribuição de
a presidência, e a UDN, que tentava barrá-lo. Um terra no campo, reforma cambial, reforma bancária,
á compromisso parlamentarista foi acertado para evi- código das telecomunicações, controle da remessa
tar uma crise institucional. Foi permitido a Jango de lucros para o exterior, punições para o abuso do
assumir a Presidência, sob a condição, no entanto, poder econômico, reformulação da política do co-
de conviver com o Parlamentarismo. Os poderes mércio exterior, nacionalização das empresas con-
presidenciais foram reduzidos à nomeação de fun- cessionárias e institucionalização do planejamento
cionários efetivos, a qual dependia da aprovação do econômico e social. Duas medidas, todavia, foram
primeiro ministro. Esse arranjo perdurou até o dia 6 as mais polêmicas e os motivos da derrubada da de-
de janeiro de 1963, quando um plebiscito restaurou mocracia no Brasil: a reforma agrária e a regulamen-
os poderes presidenciais. Nesse intervalo, o governo tação do capital internacional (Viana, 1980).
enfrentou numerosas ameaças de golpes militares. A questão agrária no Brasil, no decorrer das
A instabilidade política era tanta que, durante um décadas de 1950 e 1960, foi despertada tanto porra-
ano de regime parlamentarista, quatro gabinetes se zões técnicas como por mobilizações políticas dos
alteraram. camponeses. A industrialização acelerada provocou
Além da instabilidade política e da oposição uma desordenada transição demográfica urbana
acirrada da UDN, Jango não dispunha de institui- e uma grave crise de abastecimento alimentar. Por
ções públicas de qualidade. Os confrontos políticos exemplo: entre 1952 e 1961, a produção agrícola au-
eram tão acirrados, que as nomeações políticas para mentou 59,8%, enquanto no mesmo intervalo, a po-
cargos de direção institucional eram praticadas por pulação urbana se expandiu de 10 milhões de habi-
todo o espectro partidário, inclusive, da própria pre- tantes para 35 milhões. Esse fato causava o encolhi-
sidência da república (Carvalho, 1976). mento do mercado interno para produtos industriais
Na economia, Goulart encontrou uma situa- e implicava um entrave estrutural para a retomada
ção caótica: uma inflação galopante, dívida externa do desenvolvimento. O aumento da produtividade
pesada e baixa produtividade. Influenciado pelos de- agrária se tornou uma necessidade imprescindível
senvolvimentistas, defendeu uma estratégia estrutu- para a sustentação da industrialização.
ralista. Mas, ao mesmo tempo, assessorado pelo sá- Dois paradigmas antagônicos se posiciona-
bio São Tiago Dantas, procurou Celso Furtado para vam para solucionar a questão agrária. A primeira,
formular um plano econômico anti-inflacionário. adotada pelo governo, defendia uma reforma ba-
As medidas estruturalistas foram enviadas ao Con- seada na desapropriação do latifúndio. No projeto
gresso Nacional, em julho de 1962, conhecidas como enviado ao Congresso, Goulart acusou o "instituto
Reformas de Base, enquanto o plano de estabilização da propriedade" (referindo-se ao latifúndio impro-
inflacionária, o Plano Trienal, foi posto em prática dutivo) de ser o "gargalo" da decolagem do desenvol-
em setembro do mesmo ano. vimento interno. O projeto conclamou: "essas vastas

ABl'-EL-HAJ, Jawdat. Da "Era Vargas" à FHC: transições ... p. 33-51


43
I
terras foram conservadas para fins especulativos ou Ao assumir, Jango herdava uma economia em
por problemas de herança, sem que a sociedade c crise, um sistema partidário conflitante, uma admi-
o poder público se animem a neles interferir para nistração pública infiltrada por interesses privados
lhes dar finalidades produtivas". A outra abordagem, e uma efervescência social e sindical jamais vista na
propagada pelas forças conservadores, apoiava-se na história brasileira. Enquanto a sociedade organizada
teoria neo-clássica, ao associar o impasse "agrícola" demandava a universalização dos direitos da cidada-
à baixa produtividade da terra. Uma combinação de nia, as elites conservadoras interpretavam as medi-
mecanização com alargamento da fronteira agrícola das reformistas como uma radicalização comunista.
resolveria o impasse, sem causar conflitos sociais no A inabilidade de Goulart, em elaborar uma clara es-
campo ou contestar a ordem tradicional da grande tratégia política e um plano administrativo para im-
propriedade privada.
plementar as reformas de base, permitiu à oposição
A regulamentação do capital internacional
conservadora paralisar o governo e desmobilizar a
foi a segunda questão mais polêmica. Duas posições
sociedade organizada.
compeliam dentro do próprio governo. De um lado,
Dessa conjuntura conflitante, conclui-se que o
Leonel Brizola assumiu uma posição maximalis-
equilíbrio entre a mobilização democrática, a admi-
ta, defendendo a estatização dos empreendimentos
nistração pública e a viabilidade política são ingre-
internacionais nos setores infra-estruturais. Como
dientes chaves para o sucesso das reformas sociais.
governador do Rio Grande do Sul, Brizola havia
Debilitando as instituições públicas e criando um
estatizado a ITT (lnternational Telefone and Tele-
conflito político irreconciliável, o governo compro-
graph) c causado uma reação negativa do governo
americano. A posição minimalista era advogada por metia a própria governabilidade. Um governo refor-
Santiago Dantas c favorecia uma síntese de regu- mista bem sucedido é aquele que incentiva a forma··
lamentação do capital internacional, aumento dos ção de um consenso político-partidário, a opinião
impostos sobre a remessa de lucros e a aquisição de pública esclarecida e uma administração pública ágil
empresas estrangeiras em setores de infra-estrutura e racional, capaz de implementar políticas públicas
(telecomunicações e energia elétrica), por preços de complexas.
custo (Bandeira, 1983).
As forças conservadoras, representadas por DECRETO- LEI 200: A REFORMA EMPRESARIAL
segmentos agrários do PSD e da UDN, interpreta- DO ESTADO
ram as "reformas de base" como uma guinada comu-
A reforma do Estado (Decreto-Lei 200), lan-
nista do governo. A UDN acusou Goulart de ques-
çada em 25 de fevereiro de 1967, formalizou a es-
tionar a propriedade privada, enquanto o governo
trutura institucional do governo federal e criou uma
americano temia uma política externa brasileira
gestão descentralizada. No Artigo 5, apontou qua-
com inclinações socialistas. Em janeiro de 1964,
tro pilares do Estado: administração direta (presi-
Goulart regulamentou a Lei da Remessa de Lucros,
dência da república e os ministérios); autarquias e
provocando a ira do governo americano. No dia 13
fundações (entidades governamentais direcionadas
de março, Goulart marcou um comício no Rio de
para executar as atividades típicas do setor público);
Janeiro em defesa da reforma agrária. Perante uma
empresas de economia mista (sociedades anônimas
massa de 150.000 manifestantes, anunciou duas me-
didas inéditas: a estatização de todas as refinarias de cujas ações com direito a voto pertencem, na sua
petróleo e a desapropriação das propriedades com maioria, à União) e empresas públicas (entidades
área acima de 100 hectares adjacentes às vias públi- da administração direta, criadas para desempenhar
cas federais. No dia 31 de março, as Forças Armadas, atividades de natureza empresarial que o governo é
apoiadas por diversos governadores, derrubaram levado a exercer por conveniência ou contingência
Goulart (De Carli, 1980). administrativa). (Lima e Abranches, 1987).

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BCH-UF 1 ~
PERIÓDICOS

em Para permitir a descentralização, o governo flexibilização e a adoção de gerenciamento privado


roi- distinguiu entre atividades de direção e atividades de objetivaram a captação de recursos internacionais e
dos execução. No primeiro grupo estariam as ações de a possibilidade de fusões entre empresas estatais e as
na planejamento, coordenação, supervisão e controle, multinacionais em projetos especiais.
1da enquanto no segundo estariam as de fornecimento A presença empresarial do Estado na econo-
:la- de serviços. A descentralização se daria através da mia se localizou em cinco setores: insumos básicos,
di- delegação de competências e da dotação orçamen- utilidades públicas, armazenagem, transportes e
:ta. tária específica. Essas entidades, além dos recursos comunicações. A estratégia do governo combinava
~s - públicos, poderiam captar financiamento externo. um esforço de cartelização do setor público econô-
n- No caso das empresas controladas pelo Estado, tanto mico e, ao mesmo tempo, garantia a sua inserção nc
ão públicas como mistas, a reforma objetivou oferecer mercado igualmente à dos agentes privados. Qua-
a condições eqüitativas do setor privado, no financia - tro grandes conglomerados industriais faziam parte
mento e na gestão. De acordo com o parágrafo único dessa estratégia: Petrobrás (fundada em outubro de
o do Artigo 27, às empresas estatais foram garantidas 1953), Eletrobrás (junho de 1962), Telebrás (1972) e
i- condições de financiamento idênticas às do setor Siderbrás (setembro de 1973).
privado, incluindo a captação de financiamento in- A crise do petróleo, de 197 4, e o avanço da
i. ternacional. O favoritismo de uma lógica empresa- oposição atingiram em cheio a reforma de 1967 e
n rial e as possibilidades de captar recursos externos provocaram o recuo da estratégia empresarial e o
ao setor público levou à multiplicação de empresas retorno à centralização. As modificações ocorreram
públicas que esperavam uma dotação orçamentá- em duas fases: 1. a organização, em 19 de março de
ria mais favorável, com empréstimos externos. Por 1974, do Conselho de Desenvolvimento Econômico
exemplo: enquanto entre 1960 e 1969 foram criadas (CDE) e os seus respectivos conselhos setoriais e 2.
39 novas empresas federais, no intervalo de 1970- a criação da SEST (Secretaria Especial das Empresas
1976 o ritmo acelerou para 70 federais. Estatais), em dezembro de 1979. Na primeira instân-
Três motivos explicam a adoção da reforma cia, o CDE e seus 30 conselhos setoriais foram en-
empresarial. Primeiro, houve uma identificação carregados da supervisão ministerial das empresas
ideológica mais próxima com a economia do mer- estatais. Os conselhos seriam subordinados ao CDE,
cado durante a guerra fria . Segundo, o crescimento presidido pelo próprio presidente, e teriam poderes
vertiginoso do número de instituições e empresas para facilitar a coordenação do conjunto do setor
públicas, na década de 1950, exigiu uma nova sis- econômico estatal (Wahlrich, 1980).
temática de controle administrativo. Finalmente, no Essa saída fracassou, como mostrou um estu-
caso das empresas públicas, a flexibilização e a ado- do encomendado pela FINEP (Financiadora de Es-
ção de gerenciamento privado objetivaram a cap- tudos e Projetos) . Como o estudo revelou a ineficá-
tação de recursos internacionais e a possibilidade cia dos conselhos de coordenação, o governo tomou
de fusões entre empresas estatais, multinacionais e uma decisão radical: abandonar o modelo empre-
empresas nacionais. Por exemplo: em 1947, existiam sarial, defendido pelo Decreto-lei 200, e retomar o
30 autarquias, compostas por institutos e caixas de controle centralizado. Além disso, a decisão foi um
previdência. Entre 1947 e 1967, esse número subiu reflexo do aumento da inflação e expansão galopante
para 80, refletindo a expansão da intervenção pú- da dívida externa.
blica na infra-estrutura, indústria pesada, produtos Ironicamente, foi o economista Delfim Neto,
primários e abastecimento alimentar. O crescimento o autor do "milagre" (1968-1974), o cérebro des-
institucional inviabilizou um controle central mais sa investida. Ao ser nomeado, em agosto de 1979,
eficiente e diversificado dessa ampla estrutura pú- apresentou um plano composto por quatro objeti-
blica. Finalmente, no caso das empresas públicas, a vos: controle inflacionário; incentivo às exportações;

ABU -EL-HAJ, Jawdat. D a "Era Vargas" à FHC: transições ... p. 33-51

I
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substituição do petróleo pelo álcool e disciplinamen- público, desgastou a infra-estrutura, provocou um
to dos preços das utilidades públicas. Esse último surto inflacionário e causou um recuo geral da eco-
ponto, considerado secundário no seu programa, foi nomia e das contas públicas. Até nossos dias, esses
um golpe fatal no setor público. A SEST (Secretaria danos deixados pelo regime autoritário continuam
Especial das Empresas Estatais) foi criada para apli- exercendo um efeito decisivo sobre o desempenho
car a última exigência e enquadrar as empresas esta- do setor público no Brasil.
tais dentro das metas inflacionárias do governo.
A REDEMOCRATIZAÇÃO DE 1988:
A nova guinada representou um golpe fatal
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COM
para o setor público. Em 1979, acelerou-se uma ten-
SUSTENTABILIDADE SOCIAL
dência detectada a partir de 1976, quando os preços
das utilidades públicas começaram a ter um reajuste O retorno das liberdades políticas, coroado
inferior à inflação. Por exemplo: por volta de 1980, com a aprovação de uma Constituição democráti-
os preços de energia, telecomunicações e aço esta- ca, criou novas esperanças de um desenvolvimento
vam valendo, em média, 65% dos preços de 1975. O econômico com justiça social. A redemocratização,
efeito imediato foi uma queda de 30% dos investi- todavia, enfrentava o duro teste da viabilidade. Três
mentos das estatais, recuando de 4,66% do PIB, em desafios dominaram o cenário: uma inflação persis-
1975, para 1,66%, em 1989. Essa política se revelou tente, um novo pacto federativo e a experimentação
desastrosa. A dívida externa cresceu vertiginosa- de uma nova política industrial.
mente, a inflação passou de um fato preocupante A inflação subiu de uma média de 70%, nos
para uma crise severa e as contas públicas entraram últimos dois anos do regime militar, para 239%, em
em plena desorganização (Abu-El-Haj, 1991). 1985, e acelerou para uma situação hiperinflacio-
A estatização da dívida externa e a explosão nária, em 1989, alcançando 1.860%. Durante essa
da inflação foram as duas conseqüências mais graves década, foram oito malogrados planos econômicos
da nova política econômica. i\ reforma empresarial aplicados pelo Estado, na tentativa de contornar a
do Estado permitiu às empresas estatais contraírem subida de preços: Plano Cruzado (março-dezembro
empréstimos externos. Com a política de carteli- de 1986); Plano Bresser (junho-dezembro de 1987),
zação aliada ao desempenho positivo da economia Plano Arroz com Feijão (1988); Plano Verão (janei-
brasileira, durante o "Milagre", as empresas estatais ro-junho de 1989); Plano Collor I (março-abril de
foram as maiores captadoras de investimentos exter- 1990); Plano Collor li (janeiro-abril de 1991) e Pla-
nos. Como resultado, a dívida externa que era priva- no Marcílio (janeiro-abrill991) . Muitas dessas ten-
da, até 1972, sofreu uma inversão de acordo com a tativas foram concebidas por economistas de oposi-
qual a dívida privada externa passou de 75,1% para ção ao Governo, utilizando uma lógica heterodoxa
24,9% do total. A política de centralização e correção (distinta da ortodoxia monetarista), que combinava
de tarifas abaixo da inflação, praticada a partir de a indexação salarial com o congelamento de preços.
1976 e acelerada com a criação da SEST, multiplicou Os fracassos criaram a impressão de que a política
as dívidas do setor público. Paralelamente, houve econômica da democracia brasileira beirava o po-
um aumento significativo dos juros internacionais, pulismo econômico, ou seja, apresentação de metas
piorando a situação da dívida externa. econômicas e sociais, por partidos governistas, que,
i\ experiência do regime autoritário confirma objetivamente, eram inalcançáveis dentro das estru-
que o uso político das empresas públicas e as ins- turas econômicas e institucionais existentes (Pereira,
tituições governamentais provocaram efeitos desas- 2000).
trosos. Além da repressão política e dos retrocessos Nas políticas sociais, o novo pacto federativo
sociais, o governo de exceção, munido de controles priorizou o município como o campo da implemen-
sociais e de contestações políticas, debilitou o setor tação e o espaço de deliberações democráticas (Dag-

46 I REVISTA DE CiENCIAS SOCIAIS v.36 n. 1/2 2005


nino, 1994). O Artigo 18 da Constituição definiu três concebidas como uma nova política industrial, ca-
níveis do sistema político-administrativo da Repú- paz de reconciliar a competitividade da empresa
blica, enquanto o Artigo 31 assegurou a autonomia nacional com a manutenção da substituição de im-
municipal. Os direitos à saúde pública foram esta- portações. Previa negociações coletivas entre em-
belecidos, nos artigos 196 e 198, e as Leis orgânicas pregados e empresários, por intermédio do Estado,
n° 8.080/90 e n° 1.142/90 regulamentaram os prin- e formulação de uma programação de investimentos
cípios da universalidade, integralidade, descentrali- e produção, compatível com níveis de competitivi-
zação e controle social. Na educação, a Constituição dade internacional. Acreditava-se que esse caminho
estabeleceu que o ensino fundamental não só seria iria reconciliar a predominância da propriedade lo-
obrigatório e gratuito, independentemente da idade, cal na indústria com a recuperação de produtividade
mas um direito público cujo não-fornecimento im- e qualidade, ameaçadas pela inflação e pelos juros
plicava a responsabilidade da autoridade competen- altos.
te. A onda da municipalização foi estendida à assis- O embrião dessa política é localizado em de-
tência social pela LOAS (Lei Orgânica da Assistência zembro de 1991, com a adoção dos acordos das câ-
Social, Lei no 8.742/93) e também à infra-estrutura maras setoriais, como estratégia de modernização
básica: transporte, saneamento e habitação. A carta do setor automobilístico (Diniz, 1997). Um acordo
magna trouxe uma inovação peculiar, ao garantir, no coletivo, envolvendo a indústria automobilística, o
Artigo 193, "a participação dos cidadãos, por meio sindicato dos metalúrgicos do ABC paulista e o go-
de suas organizações representativas, na formulação verno federal, previa uma queda de 22% dos preços
das políticas e no exercício do controle social das dos carros, com a redução de 12% do IPI e ICMS, e a
ações em todos os níveis da Federação". prorrogação da data base (data do reajuste anual de
Três ressalvas apareceram, em relação ao salários dos empregados do setor automobilístico),
avanço dos direitos sociais promovidos pela Cons- de 1o de abril para 1o de julho. Um segundo acordo,
tituição de 1988. Primeiro, a universalização não assinado em fevereiro de 1993, foi mais abrangen -
foi acompanhada por um desenvolvimento institu- te, ao estabelecer metas progressivas de produção,
cional capaz de gerenciar uma crescente complexi- iniciando com 1,2 milhões de veículos, em 1993, e
dade, gerada pelo ingresso maciço de novos grupos subindo para 1,5 milhões, em 1995, e 2 milhões, em
no sistema de proteção social. Principalmente, a ad- 2000. Os empregados teriam um aumento salarial de
ministração pública municipal, o elo mais frágil do 20%, até 1995.
sistema administrativo brasileiro, não recebeu qual- No governo de Itamar Franco, a política das
quer regulação para administrar, de forma eqüitativa, câmaras setoriais produziu os efeitos mais prolon-
as suas novas atribuições. Segundo, a participação da gados. Em março de 1993, a Presidência da Repúbli-
sociedade ficou circunscrita aos conselhos paritários ca reduziu o IPI dos "carros populares" (carros com
de controle social, mas, igualmente ao setor adminis- motor 1.0) para 1%. O aumento da produção foi
trativo, seus mecanismos de participação, atribuições imediato. Somente 83.335 carros da categoria até 1.0
e direitos legais ficaram obscuros, dependendo da ini- era produzidos, em 1992, o que representava 14,4%
ciativa pessoal do chefe do poder local. Finalmente, o de um total de 579.666 unidades. Num intervalo de
devido financiamento para os municípios e estados três anos, os "populares" pularam para 595.845 uni-
não foi adequado ao tamanho da tarefa colossal de ad- dades, de um total de 1.107.189, o equivalente a 53%
ministrar toda política social básica, num país amplo e da produção.
diversificado como o Brasil. Surpreendentemente, os ganhos dessa políti-
Paralelamente ao avanço social, houve uma ca foram assimétricos. O governo ampliou a sua ar-
tentativa de formular um novo modelo de desen- recadação de R$1.08 bilhões, em 1991, para R$1.65
volvimento econômico. As câmaras setoriais foram bilhões, em 1996. As montadoras expandiram a

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I
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produção de 1.391.435 unidades, em 1993, para pelo Plano Real, posto em vigor no dia 27 de maio
1.629.008, em 1995, sem significativos investimen- de 1994, no Governo Itamar, pelo então ministro da
tos adicionais. Previam os técnicos que a expansão fazenda Fernando Henrique Cardoso. Após uma dé-
da produção requeria US10 bilhões; todavia, os in- cada de hiperinflação, as taxas despencaram de 42%
vestimentos reais se limitaram a US$ 6.23 bilhões. mensais, registradas em abril, para 1,55%, em setem-
Os trabalhadores do setor foram os maiores prejudi- bro, e 0,57%, em dezembro de 1994 (Franco, 1995) .
cados. Apesar dos esforços das câmaras setoriais em Eleito presidente, em 1994, para o exercício
preservar os empregos durante a atualização tecno- 1995-1998, Fernando Henrique Cardoso apresentou
lógica e até as promessas de aumentos salariais, en- um dos programas mais abrangentes de reforma do
tre 1991 e 1996,23,2% dos empregos do setor foram Estado e da administração pública, desde a revolu -
eliminados, na região do ABC paulista. Em 1996, a ção de trinta. A reforma do Estado da era Cardoso
produção automobilística brasileira triplicou, com- combinou três redefinições do Estado: uma nova
parada à existente nos meados da década de oitenta, reformulação do pacto federativo, reestruturação
enquanto o setor empregava somente 68% da média econômica e adoção de uma nova concepção de ad-
da década anterior. Os salários seguiram a curva de- ministração pública, denominada de gerencial.
clinante da empregabilidade, encolhendo em 54,8%, O primeiro passo para redefinir o pacto fe-
entre março de 1995 e abril de 1988. derativo ocorreu em janeiro de 1994, quando o go-
A política industrial das câmaras setoriais se verno, sob o pretexto de reduzir o déficit público e
revelou limitada por três razões. Primeiro, a moro -
melhorar a eficiência dos gastos governamentais,
sidade das negociações coletivas foi incompatível
aprovou no Congresso uma medida provisória que
com a velocidade de investimentos e da introdu-
criava o Fundo Social Emergencial, com os recur-
ção de novas tecnologias e produtos. Segundo, essa
sos da redução em 15% das transferências financei -
política se adequou a setores concentrados como o
ras para estados e municípios. O fundo, que chegou
automobilístico; todavia, foi inviável, na maioria dos
a acumular US 16 bilhões, ficaria disponível para o
setores industriais de uma organização industrial
Executivo Federal, por um período renovável de dois
horizontal, nos quais predominam médias e peque-
anos. A centralização financeira na União fortaleceu
nas empresas. Finalmente, os ganhos dessa política
a direção político-eleitoral do governo federal, en -
foram desiguais. As indústrias receberam incentivos
fraqueceu os estados e subordinou os municípios.
fiscais para aumentar os investimentos e o governo
A reforma reguladora do Estado modificou,
conseguiu ampliar a arrecadação. O efeito sobre os
estruturalmente, o seu papel institucional e sua ló-
empregos e o poder aquisitivo dos assalariados, no
gica de intervenção. O manifesto mais claro do
entanto, foi negativo. As câmaras setoriais, na verda-
novo projeto apareceu no dia 23 de agosto de 1995,
de, levaram a um aumento brusco de demissões, nos
na Exposição de Motivos 311, do Ministério da Fa-
setores negociados.
zenda. Previa as seguintes modificações. Primeiro,
"ERA FHC": O ESTADO REGULADOR E A o Estado deveria se reservar estritamente à políti-
SOCIEDADE GLOBALIZADA ca social. Segundo, os investimentos econômicos
A permanência da inflação e as dificuldades deveriam ser exclusivos do setor privado. Terceiro,
em retomar o desenvolvimento econômico dentro avaliava-se o monopólio estatal das utilidades públi-
da tradicional substituição de importações, aliados a cas como danoso ao progresso econômico, uma vez
um quadro internacional favorável a políticas públi- que desestimulava investimentos, comprometendo a
cas orientadas para o mercado, induziram a redefi- produtividade e a qualidade dos serviços prestados
nição do papel do Estado na sociedade. Esse projeto aos cidadão:;. Quarto, a privatização do setor econô-
nasceu a partir do sucesso do controle inflacionário, mico públim democratizaria a propriedade privada

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BCH-UFr,
PERIODICOS
e diminuiria as possibilidades de monopolização. leis de 1963 (principalmente, a lei 2.004, de dezem-
Finalmente, o Estado garantiria um ganho fiscal bro de 1963) que estendia o monopólio à comercia-
permanente, com o aumento da arrecadação de im- lização interna e externa.
postos das empresas privatizadas e da ampliação da No setor elétrico, a lei no 8.987/95 distinguiu
produção e de serviços prestados por investidores atividades de geração, transmissão e distribuição de
privados. energia elétrica. O Estado teria uma participação
As privatizações poderiam ser divididas em significativa na geração, todavia, permitiria a cria-
duas "fases". Na primeira (1991-1994), foram ven- ção da figura do produtor independente, seleciona-
didas empresas públicas industriais, em setores tais do através de uma licitação pública. Os investidores
como: aeronáutica, mineração, aço, ferro, químicos, ficariam com acesso livre à transmissão e à distri -
petroquímicos e fertilizantes. A segunJa, iniciaJa buição.
em 1995 e concluída em 1999, transferiu setores de A reforma gerencial foi o terceiro componen-
utilidades públicas c bancos públicos ao controle te da reforma reguladora do Estado. Para Bresser Pe-
privado. reira, o modelo atualizava a administração pública t
A venda das empresas de utilidades públicas permitia a sua adaptação às mudanças sociais, eco-
requeria alterações constitucionais. A aprovação da nômicas e tecnológicas, iniciadas desde a segunda
nova Lei de Concessão dos Serviços Públicos (Lei metade do século XX e aceleradas com a globaliza-
8.987/95), em 07 de julho de 1995, submeteu as con- ção econômica. As mudanças sociais descrevem uma
cessões a licitações prévias; quebrou o monopólio segmentação crescente da sociedade, gerando uma
estatal das utilidades públicas e autorizou os investi- multiplicação de demandas. O aspecto econômico é
mentos privados. Em seguida, foram aprovadas leis causado pela aceleração dos fluxos financeiros inter-
específicas, para as telecomunicações, energia elétri- nacionais, enquanto o aspecto tecnológico se centra
ca e petróleo (Franco, 2000). na revolução de informática e, principalmente, das
A emenda constitucional no 08 extinguiu o telecomunicações.
monopólio estatal das telecomunicações. A Lei no A reforma gerencial do Estado é vista como
9.tl72, de 16 de julho de 1997 (Lei Mínima e Lei Ge - uma modernização da administração pública clássi-
ral das Telecomunicações), obrigou o Estado a en- ca. Assegura às instituições públicas uma autonomia
cerrar seu papel de provedor dos serviços de teleco- financeira e administrativa na prestação de serviços.
municações e passar a regular os serviços ofertados É caracterizada pela flexibilidade, e a estabilidade é
pela iniciativa privada, através da ANATEL (criada vista como secundária. Um contrato de gestão, fir-
pela Resolução 33, de julho de 1998) . mado entre o Estado e entidade pública, em torno
As mudanças na área petrolífera evitaram a de metas específicas a serem atingidas, é o principal
privatização e se contentaram com a extinção do instrumento de controle. Nesse sentido, é uma es-
monopólio público do petróleo. A Emenda Consti- trutura administrativa voltada exclusivamente para
tucional no 09, aprovada em 09 de novembro de 1995, a obtenção de resultados e se aproxima da lógica da
autorizou o Governo Federal a contratar empresas empresa privada (Pereira, 1998).
públicas c privadas para prover serviços e produtos As atribuições do Estado são divididas em
antes reservados à Petrobrás (exploração, produção, atividades exclusivas e outras não-exclusivas. A pri-
refino, exportação, importação e transporte de pe- meira é localizada na regulamentação, fiscalização,
tróleo). A lei no 9.478/97, conhecida como "Lei do fomento, segurança pública e seguridade social bá-
a Petróleo", revogou alguns marcos jurídicos do nacio- sica. Os serviços são caracterizados como atividades
nalismo, tais como: as leis de 1953, que garantiam o não- exclusivas do Estado e, portanto, abertas ao in-
monopólio público da exploração do subsolo, e as gresso de investidores privados. A flexibilização da
a

ABU-EL H .-\], Jawdat. Da "Era Yargas" à FHC: transições ... p. 33 51

I
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ação estatal, nas atividades não-exclusivas, é promo- política aparecem: a perda de eficácia política (perda
vida pela privatização, tcrceirização c publicização. do entusiasmo participativo do cidadão, pela vida
A primeira transferia a propriedade estatal P,ara in- pública) e o desaparecimento de uma oposição pro-
vestidores privados. A segunda contratava empresas gramática, debates políticos e alternativas governa-
privadas para o desempenho de serviços auxiliares mentais.
e de apoio, enquanto a publicização transformava A federação: as distorções na governabilidade
uma organização estatal em uma organização de di- repercutiram no equilíbrio federativo. Ironicamente,
reito privado. foi no regime democrático que houve uma hipertro-
As técnicas utilizadas na concepção gerencial fia da União, um encolhimento do papel administra-
se aproximaram do setor privado e, em grande parte, tivo dos governos estaduais e na subordinação dos
repetiram a lógica da reforma de 1967 (Decreto-lei municípios à União. O ecletismo político levou à fal-
200). Três metas básicas guiavam as instituições go- ta de definição de atribuições, papéis e poderes das
vernamentais na delimitação das suas prioridades: três instâncias da República. Essa distorção aumenta
definir com exatidão o público alvo, garantir a auto- a desigualdade de desempenho entre municípios, es-
nomia do administrador na gestão dos recursos hu- tados e regiões, pois os resultados concretos depen-
manos, materiais e financeiros para atingir os obje- dem de fatores subjetivos, acesso político e lealdades
tivos contratados, e cobrar resultados estabelecidos partidárias.
num contrato de gestão. O controle social: as deficiências regulatórias
não se restringem ao setor privado, pois são gritan-
CONCLUSÃO
tes no setor público. São notórios o jogo financeiro
A redemocratização assinalou transformações nas administrações municipais, as violações das leis
profundas na ordem social brasileira: apareceram e as intimidações aos conselhos participativos; em
novas elites políticas, recstruturou-sc o pacto fede- suma, a insuficiência de uma fiscalização sistemáti-
rativo, adotou-se um novo modelo administrativo e ca do poder público. Essa lacuna deixa a população
alterou-se a relação entre o Estado e a empresa pri- vulnerável às arbitrariedades políticas e aos mandos
vada. Apesar das mudanças sócio-econômicas pro- administrativos. A participação do cidadão, sem a
fundas, alguns impasses são herdados do passado e proteção da lei e a adequada fiscalização do poder
representam desafios a serem enfrentados. público, é um mero discurso formalista para cum-
Governabilidade: o primeiro e o mais grave prir os ritos constitucionais.
é o modelo de governabilidade praticado entre o A regulação econômica: a regulação dos ser-
partido governista e os partidários de sustentação viços públicos e privados, a grande esperança de
política. A governabilidade, entendida como uma um novo modelo mais flexível do setor público, se
síntese programática de diversos partidos em torno tornou o elo mais frágil As lacunas das agências
de princípios político-administrativos, é substituída reguladoras (telecomunicações, eletricidade, trans-
pelo ecletismo político. O ecletismo político é a jun- portes, etc) comprometem o desempenho geral da
ção de partidos com programas e visões do mundo, economia, pois aumentam os preços das utilidades
diferentes e freqüentemente conflitantes, no mesmo públicas e reduzem a capacidade de investimentos.
governo, causando uma inconsistência nos planos, A longo prazo, essa deficiência ameaça a vitalidade
objetivos e ações do setor público. Persistentemente, do mercado interno e compromete a competitivida-
os interesses imediatos e pessoais dos líderes par- de internacional da indústria.
tidários predominam nas nomeações políticas dos O gerenciamento público: a falta de conti-
cargos de direção. Essa prática é um vício generali- nuidade nas reformas administrativas criou um
zado, tanto na União como nos governos estaduais Estado híbrido. As suas melhores instituições são
e municipais. Duas repercussões negativas na vida reservadas às intervenções econômicas, enquanto

50 I REVISTA DE CJ•NCIAS SOCIAIS v.36 n. 1/2 2005


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