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ESSE DEUS É

MEU DIABO
Copyright © 2023 por Yago Martins
Publicado por GodBooks Editora

Editor Maurício Zágari


Preparação Filipe Delage
Revisão Bianca Maria Moreira
Capa Marcus Nati
Diagramação Luciana Di Iorio
Transcrição Camila Pessoa Farias

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998, que torna ilegal a
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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
M386

Martins, Yago
Esse Deus é meu diabo: Reflexões e aplicações práticas da mensagem de Jó 1—10 / Yago
Martins. — 1. ed. — Rio de Janeiro: GodBooks, 2023.
176 p.
ISBN 978-65-89198-78-9
1. Bíblia. 2. Teologia. 3. Igreja. 4. Espiritualidade. I. Título
CDD: 241.9
CDU: 242
Categoria: Teologia

Publicado no Brasil com todos os direitos reservados por:


GodBooks Editora
Home page: www.godbooks.com.br

1ª edição: outubro de 2023


Para Lucas e Karine Laurindo.
Preguei sobre sofrimento apenas para vocês, e por graça divina
outros foram edificados.
Sumário

Introdução
1. Esse Deus é meu diabo
Jó 1
2. A fé em um caco de telha
Jó 2
3. Como crer se eu quero morrer?
Jó 3
4. Teologia certa para a dor errada
Jó 4—7
5. A humildade do diabo
Jó 8—10

Conclusão
Índice de ilustrações
Sobre o autor
“Se eu conversasse com Deus iria lhe perguntar: por que é que
sofremos tanto quando viemos pra cá?
Que dívida é essa que a gente tem que morrer pra pagar?

Perguntaria também como é que ele é feito que não dorme, que
não come e assim vive satisfeito.
Por que foi que ele não fez a gente do mesmo jeito?

Por que existem uns felizes e outros que sofrem tanto?


Nascemos do mesmo jeito, moramos no mesmo canto.
Quem foi temperar o choro e acabou salgando o pranto?”

L G  B


Poeta e cordelista paraibano
1865-1918
Introdução

es Misérables ( Os miseráveis) é um romance escrito pelo


dramaturgo francês Victor Hugo, publicado em 1862.
L Por mais que a história foque a vida de Jean Valjean, há uma
personagem que sempre me marcou, chamada Fantine. Ela era
uma jovem em extrema miséria que vivia para tentar sustentar sua
filha, após ser abandonada pelo homem que ela amava. Por ser mãe
solteira, no entanto, acabou demitida. Ela se prostituiu para cuidar da
filha, vendeu os próprios dentes, foi presa injustamente, morreu de
tuberculose e acabou jogada em uma cova pública.
Enquanto a história de Jean Valjean no começo do livro progride e
cresce, a de Fantine é uma história de derrocada cada vez maior. Ela
era uma jovem sonhadora, cheia de planos e objetivos, mas a vida lhe
tomou tudo o que tinha. Em um dos trechos do livro, perto do fim da
trajetória de Fantine, o narrador diz o seguinte:

No ponto a que chegamos desse doloroso drama, nada mais


restava a Fantine do que possuía outrora. Tornando-se lodo, ficou
como mármore. Quem tocar sentirá o frio que a invade. Ela
passa, tolera-nos e nos ignora; é a imagem ao mesmo tempo da
desonra e da severidade. A vida e a ordem social disseram-lhe sua
última palavra. Tudo que tinha de lhe acontecer já havia
acontecido. Tudo experimentou, tudo suportou, tudo sofreu, tudo
perdeu, tudo chorou. Resignou-se com essa resignação que se
assemelha à indiferença, como a morte se assemelha ao sono. Não
evita coisa alguma, não crê em coisa alguma. Que as nuvens todas
se descarreguem sobre ela, que todo o oceano passe por cima de
sua cabeça! Que importa! É uma esponja e embebida. É isso que
ela acredita; mas é um erro pensar que o destino se cansa e que se
pode chegar ao fundo do que quer que seja. O que são, porém,
esses destinos impelidos nessa confusão. Para onde se dirigem?
Por que agem dessa maneira? Aquele que o sabe penetra toda esta
sombra. Ele é único, chama-se Deus.[Nota 1]

Na pena do escritor francês, temos a história de uma mulher que


recebeu tudo de ruim que a vida poderia dar. E a resposta para o
motivo disso ela não sabia; o único que tinha ciência do porquê de
tanta miséria, desgraça e dor, de esses oceanos passarem por cima da
cabeça dela e ela já ser a esponja embebida de sofrimento era Deus. O
Senhor sabia por que Fantine, na história, passou por tudo isso.
Do mesmo modo, ele sabe por que em nossas histórias nós
passamos por tantas adversidades. Fantine não tinha conhecimento de
por que estava sendo enganada, por que fora expulsa, por que havia
sido abandonada pelo homem que amava e deixava sozinha com sua
filha, por que fora alvo do engano daqueles que cuidavam de sua filha,
fingindo doenças que não existiam para que ela tivesse de vender
cabelo, os dentes e o corpo, vivendo na mais absoluta miséria para
tentar cuidar da filha.
Quando o livro foi adaptado para um musical, em 1980, por Alain
Boublil, Fantine canta uma música solo chamada I Dreamed a Dream
[ Eu sonhei um sonho]. A canção diz o seguinte:

Eu sonhei um sonho em um tempo passado


Quando as esperanças eram grandes e a vida valia ser vivida
Eu sonhei que o amor nunca acabaria
Eu sonhei que Deus seria misericordioso.
Eu era jovem e não tinha medo
Quando os sonhos eram realizados […]

Nenhuma música sem ser cantada, nem vinho não degustado.


Mas os tigres vêm à noite,
Com suas vozes suaves como trovão,
Enquanto eles despedaçam sua esperança
Enquanto eles tornam seus sonhos em vergonha…
Mas existem sonhos que não podem ser sonhados
E existem tempestades que não podem passar.
Eu tive um sonho que minha vida seria
tão diferente deste inferno que eu vivo
Tão diferente agora do que parecia ser
Agora a vida matou o sonho Que eu sonhei.

Jó encarna a miséria de quem foi abandonado, assim como Fantine.


No entanto, diferente dela, o patriarca não é abandonado como mãe
solteira pelo seu romance juvenil. Jó acredita que é esquecido pelo
próprio Deus. Os tigres vieram à noite e mataram todos os seus
sonhos.
Jó se sente abandonado por Deus e, de todos os abandonos,
nenhum é pior que esse. Ele também teve todos os seus sonhos
despedaçados.
O título do livro, Os miseráveis, realmente explica algo sobre os
personagens, mas não apenas acerca da miséria socioeconômica, que é
constantemente acusada no livro de Victor Hugo, mas expressa uma
miséria perene a todo ser humano, seja pobre, seja rico. Há uma
miséria dentro de cada um de nós que só pode ser resolvida por Deus.
E essa miséria, cada vez mais, se aprofunda diante de nossos olhos,
quando nas más circunstâncias da vida o que nós sentimos são o
abandono, os sonhos frustrados, os dentes dos tigres que à noite
devoram tudo aquilo que a gente sonhou um dia.
Você olha para trás e vê um jovem sonhador, alguém que tinha
expectativas a serem realizadas, e enxerga tudo aquilo que almejava
ter no futuro. Então, você olha para a sua vida e parece que os sonhos
que sonhou não se realizaram.
Eu imagino que Jó, à medida que progredia, enriquecia e se
aprofundava no relacionamento com Deus, não se imaginava — talvez
já ali próximo de sua velhice — com vermes saindo da pele, raspando
suas feridas e as crostas terrosas que estavam sobre sua pele com o
caco de telha. Creio que Jó não se imaginaria pobre, doente,
abandonado até pelos amigos. Há tigres que vêm à noite e que
mastigam muitos dos nossos sonhos. Muitas vezes, nós tentamos
entender os motivos dessas desgraças, e os motivos estão no único, no
oculto, no Deus.
A boa-nova do livro de Jó é que haverá um dia em que Fantines
serão vingadas, os pobres não chorarão mais, indigentes não serão
lançados em covas rasas. Um final feliz para Fantines, após a
ressurreição. Um final que Vítor Hugo nunca imaginou.
Se permanecermos fiéis na fé de Jó, encontraremos um fim que as
melhores histórias da ficção só poderiam imaginar.
Que esta jornada pelo livro de Jó aqueça seu coração e o faça
suportar quando os tigres rondarem à noite.
Notas do Capítulo

Nota 1 - Cosac & Naify, 2012, p. 280. [Voltar]


ó é um dos livros mais agressivos e indigestos da Bíblia — pelo
J menos aos corações que desprezam um Deus soberano, cujo
propósito principal é glorificar o próprio nome em sua criação e
que não mede esforços para isso. Não é um livro fácil, não é um livro
simples; é um livro que até mesmo causa dificuldades apologéticas.
Uma fé frágil não resiste ao livro de Jó. É questionador demais,
humano demais, carniceiro demais. Ofende nossos esforços de tirar
Deus de nosso sofrimento. Não é fácil aceitar que o Senhor estava em
cada casca de ferida. O livro de Jó não apenas nos apresenta Deus
enviando o sofrimento para seus filhos, mas glorificando o próprio
nome ao fazê-lo.
Essa é uma mensagem escandalosa, não facilmente aceita por
corações distantes da fé. Quando John Piper, o famoso teólogo batista
americano, publicou Coronavírus e Cristo, um pequeno livro acerca
da pandemia de Covid-19, que se iniciou em 2020, vimos muitas
pessoas na internet revoltadas e consternadas pelo fato de que John
Piper dizia que Deus havia enviado a pandemia. Dos vários
comentários revoltosos, um me chamou muita atenção, e dizia
exatamente o seguinte: “Esse Deus é o meu diabo”.
Qual o motivo? John Piper afirma no livro que Deus foi o
responsável por nos enviar a pandemia, que Deus foi quem nos pôs
naquela situação. E que isso não foi simplesmente um ato maligno do
diabo, realizado a partir dos porões do inferno, fora do alcance da
visão de Deus, mas que o Senhor soberano nos havia posto naquela
situação.
O que a pessoa que comentou queria dizer era que o Deus de John
Piper — um Deus soberano, que permite sofrimento, que manda males
tão terríveis sobre a vida das pessoas — era, na visão do crítico, o que
ele chamava de diabo.
Esse tipo de crítica não se restringe apenas a obras americanas. No
Brasil, Ricardo Gondim, talvez o maior representante brasileiro de
uma heresia chamada teísmo aberto (a ideia de que Deus não exerce
qualquer controle sobre a criação e sequer conhece o futuro), disse em
um vídeo no canal de sua igreja que “esse vírus não foi mandado por
Deus”. Ele ainda diz que, se Deus é assim, ele é “um monstro, um
facínora”.
Isso não é novo. Há muito tempo, as pessoas se levantam contra a
ideia de um Deus que nos envia sofrimento no mundo. Na filosofia
grega, Epicuro já questionava: se Deus é bom e soberano, por que
existe mal no mundo? Se ele é bom e existe o mal, então ele não é
soberano. Se ele é soberano e existe o mal, então ele não é bom.
Mesmo dentro do cristianismo tradicional e histórico, a ideia de
que, se Deus é bom, o mal não pode ter nenhuma origem a partir da
atuação dele, cresceu muito. Por exemplo, o famoso e respeitado
teólogo sistemático escocês William Barcley publicou, em 1975, a
obra A Spiritual Autobiography, onde diz o seguinte:

Eu acredito que dor e sofrimento nunca são a vontade de Deus


para seus filhos. Não posso conceber que seja a vontade de Deus
que alguém seja atropelado por um motorista sob a influência de
bebida alcoólica, ou que uma mãe jovem morra de leucemia, ou
que alguém no primeiro estágio da juventude enfrente cada vez
mais desamparo da arteriosclerose.[Nota 1]

O livro de Jó, no entanto, nos mostra que esses homens não têm
razão para achar que Deus não nos enviou o mal e que nunca é da
vontade dele o sofrimento de seus filhos. O livro nos mostra, ainda,
que os homens nem sempre têm razão: o nosso esforço por entender
Deus ou de tentar justificar a existência pelos nossos próprios meios
não faz sentido, já que temos um Deus que não se deixa engarrafar,
que não se permite agir dentro daquilo que nos é fácil explicar.
O livro de Jó nos mostra um Deus que, para muitos, é o diabo, mas
que, para nós, que olhamos pelas lentes da fé para as circunstâncias da
vida presente, entendemos que ele é nada mais do que o bom e
soberano Senhor sobre a nossa vida e sobre cada uma das nossas
criações.
O livro de Jó é um livro sobre o sofrimento do justo e sobre um
sofrimento que Deus envia. Ele existe para nos humilhar e, de forma
indigesta, nos apresentar um Deus que envia sofrimento para seus
filhos a fim de encontrar glória para o próprio nome — e isso não faz
dele um Deus mau e tampouco menos soberano. Apesar de indigesto,
o livro de Jó é urgente. É urgente para quando nossa vida é posta em
risco, para tempos em que nossas empresas vão mal financeiramente
ou nosso emprego é ameaçado, para quando nossos familiares
adoecem ou para quando nós perdemos algum ente querido.
Em seu capítulo 1, nos é apresentada, em quatro atos, uma
narrativa sobre aquilo que precisamos nos lembrar para que não
acusemos Deus de ser o diabo, mas que esse Deus é nada mais do que
o Senhor soberano das Escrituras.

PRIMEIRO ATO: A INTEGRIDADE DE JÓ (1.1-5)


Nos primeiros cinco versículos do livro, o personagem principal da
história nos é apresentado, no caso, a figura de Jó. Também é
ressaltada a sua integridade como homem de Deus.
O contexto é um tanto incerto. Diz a Bíblia que havia esse homem
chamado Jó, nome cujo significado é um pouco complicado de ser
entendido no hebraico. Muitos teólogos concordam que é mais
provável que Jó signifique “adversário” ou, até mesmo “inimigo”,
“aquele que está do outro lado”. Assim, esse homem tinha um nome
de maldição, não de bênção; um nome dado por pais que não tinham
expectativas de que o filho fosse se dar bem na vida. Mas, talvez,
contrariando as expectativas de seus pais, Jó se tornou um grande
homem.
Jó era da terra de Uz, que ninguém sabe ao certo onde ficava. Esse
lugar também não é muito reconhecido na geografia antiga. Pode ter
sido uma grande cidade conhecida por um nome local e, por isso, não
pode, hoje, ser identificada corretamente. Mas é bem provável que
fosse uma cidade pequena, desconhecida, que não entrou no registro
da história antiga do Oriente Próximo, o que faz que seja chocante
que Jó seja o maior homem do Oriente pela sua riqueza, mesmo que
não habitasse uma grande cidade ou um centro populoso.
O que se sabe, portanto, é que Jó era um homem justo, que,
aparentemente, não carregava muitas expectativas dos pais, que veio
de lugar nenhum e era o homem mais rico do Oriente.

Justo, íntegro, reto, que temia a Deus


Essa passagem bíblica narra quatro fatos sobre Jó. O texto diz que,
em primeiro lugar, ele era um homem justo, íntegro, reto, que temia a
Deus. No hebraico, literalmente, diz que ele era um homem perfeito;
porém, perfeito no sentido humano, pois trilhava o caminho de
perfeição. Ele era alguém aperfeiçoado, que vivia no caminho da
retidão. Não havia nenhum motivo em Jó para que ele sofresse como
sofreu. Ele era um homem santo e, mesmo assim, sofreu.
As pessoas costumam achar que o sofrimento nos alcança apenas
em períodos de pecado, mas nem sempre a nossa dor está atrelada a
uma vida de pecado. Às vezes, pode estar, mas, muitas vezes, mesmo
vivendo em santidade, sofremos, porque a nossa santidade não faz
com que escapemos do sofrimento.
Achamos, por exemplo, que o coronavírus não alcançaria os crentes
de verdade, que Deus não deixaria que a igreja recebesse esse
sofrimento. Afinal, dez mil caem de um lado, dez mil caem do outro,
mas nós não seremos atingidos, porque somos justos. Mas Jó era
justo! Ainda assim, o mal e o sofrimento o alcançaram, mesmo sendo
um homem que vivia em justiça.
Vemos muitas pessoas dizerem que o cristão não adoece; que, se
determinarmos e tomarmos posse da nossa bênção, nunca sofreremos
intempéries; que basta ir à frente da igreja, com fé, receber uma
imposição de mãos e, então, não adoece-remos. Mas Jó era um
homem justo e encontrou um caminho de sofrimento.

Próspero
Em segundo lugar, Jó era próspero. E não só espiritual, mas também
financeiramente. Na teologia do Antigo Testamento, em especial na
teologia de Deuteronômio, riqueza era bênção de Deus. O povo de
Israel era abençoado à medida que era fiel ao Deus vivo e isso acabava
por se manifestar na vida de indivíduos de Israel. Temos diante de nós
um livro muito antigo, mas que ainda está sob a forma de Deus gerir a
dispensação da Antiga Aliança, onde Deus prosperava Israel quando
eles se arrependiam e os derrubava quando estavam orgulhosos no
pecado. Jesus muda essa compreensão principalmente no Sermão do
Monte, quando diz que bem-aventurados são os pobres de espírito,
contrapondo o que diziam a mística e os documentos judaicos, que
bem-aventurado é o rico no Senhor.
Na verdade, temos aqui um Jó que segue o caminho natural daquilo
que Deus prometeu ao povo de Israel: se fossem fiéis, Deus iria
prosperá-los e encher os seus celeiros. Jó era um homem abençoado
financeiramente, o que mostrava que ele era favorecido de forma
especial pelo Deus vivo. Ele era o homem mais próspero de todo o
Oriente, diz o texto, logo, ele era o homem mais rico do mundo
conhecido. Ele era um homem justo e um homem muito rico e, ainda
assim, o sofrimento o alcança. Isso porque dinheiro ou recursos não
faz ninguém escapar do sofrimento; riquezas não impedem que Deus
cumpra seus propósitos de dor em nossa vida.
Tudo ia bem na economia mundial até ocorrer a quebra na bolsa de
valores americana, em 1929, e multimilionários começaram a pular de
prédios. A sua empresa está prosperando, crescendo, tem dinheiro no
banco e, de repente, vem uma pandemia mundial e acaba com tudo.
Ou então o financiamento que fez dá errado e o dinheiro acaba e sua
poupança gordinha começa a se esvaziar. E agora?
O dinheiro de Jó não impediu que ele sofresse. Sua vida justa não
impediu seu sofrimento. Isso porque as seguranças e as circunstâncias
da vida não são suficientes para garantir que viveremos longe de
provações.

Família íntegra
Em terceiro lugar, Jó tinha uma família íntegra. Ele não foi
simplesmente o homem que cuidou da própria vida de fé, mas que
levou o cuidado para a própria família. Jó tinha filhos que viviam em
harmonia. O texto diz que ele tinha sete filhos homens, que davam
banquetes cada um em sua casa. Os filhos homens eram casados,
tinham as próprias famílias e Jó tinha três filhas que eram convidadas
a participar desses banquetes. O fato de elas não darem os banquetes
em suas casas parece indicar que ainda moravam com Jó. Então, Jó
possuía dez filhos e ter muitos filhos representava, no Antigo
Testamento, bênção de Deus.
Vemos que se tratava de uma família grande e unida, que se
amavam e cuidavam uns dos outros. Ao visualizar uma família com
dez filhos, só me vem uma coisa à mente: confusão! Eu tenho muitos
parentes que têm muitos filhos e sempre tem um que é intrigado com o
outro, que não fala com alguém ou que não se dá bem com outro — e
sempre há alguma confusão. No texto, vemos uma família de dez
filhos que se banqueteiam uns na casa dos outros e convidam as irmãs
que moram com o pai para participar. Os irmãos eram amigos e todos
pareciam ser uma família que vivia de forma harmônica. Jó passa a
impressão de ter criado bem seus filhos, ao dar uma boa estrutura de
relacionamento para eles.
Jó tinha uma família íntegra e, mesmo assim, isso não impediu que
o mal viesse sobre ela, e não só sobre Jó. Sabemos, pela história, que o
patriarca perde seus filhos. A boa educação que lhes deu não impediu
que sofressem. Porque, quando pessoas ao nosso redor sofrem, muitas
vezes perguntamos: “Onde foi que eu errei?”, “O que foi que eu fiz de
errado para que Deus punisse meu filho?”, “ Será que eu o criei
mal?”, “ Será que eu não fui um bom pai?”, “Será que eu trouxe
maldição para dentro da minha casa?”. Na verdade, podemos fazer
tudo certo e agir de forma perfeita com nossos filhos; criá-los no
caminho da Palavra; fazê-los crescer justos, íntegros e retos, tendo um
bom exemplo, e, ainda assim, as coisas darem errado.
Afinal, as nossas boas obras não garantem que, deste lado da
eternidade, as coisas darão certo, que o sofrimento não nos alcançará.

Espiritual, pastoral e missionário


Em quarto lugar, temos a ideia de que Jó era um homem espiritual,
pastoral e missionário. Vemos um Jó preocupado com a vida espiritual
de seus filhos. Ele cuidava não só do próprio coração, mas do coração
dos filhos, até daqueles já casados e que não moravam com ele.
Durante o ciclo de banquetes na casa de cada um de seus filhos, Jó,
aparentemente, os purificava. Então, cedo, ainda de madrugada, ele
fazia sacrifícios pelos pecados que eles nem sabiam se foram
cometidos ou não. “Vai que meus filhos, em todos esses banquetes,
falaram algo contra Deus ou pensaram contra Deus em seus
corações!”. Isso mostra o zelo de Jó pela vida espiritual dos filhos. E,
ainda assim, ele os perde.
Jó foi um homem pastoral e missionário. Apesar de as informações
sobre o Messias que viria ainda não serem tão amplamente reveladas,
ele já levava a mensagem de salvação aos próprios filhos. Ele era
voltado para as coisas de Deus e, ainda assim, sofreu, assim como seus
filhos. Nós podemos ser dedicados ao ministério, fazer um bom
trabalho no cuidado espiritual de nossa casa, realizar cultos
domésticos, ensinar, pregar, cuidar e, ainda assim, o sofrimento vir
sobre nós e sobre os nossos. Porque nada que possamos fazer é capaz
de impedir o sofrimento. Jó sofreu e aqueles que estavam à sua volta
também sofreram, apesar de terem recebido os cuidados de um
homem íntegro e ilibado.
Alguns podem olhar e pensar que se ele, sendo como era, sofreu
como sofreu, o que dirá de nós, homens que, talvez, não contamos
com um relato ao nosso respeito como o relato de Jó! O relato
apresentado é o de um homem plenamente justo. Por que esse homem
sofreu como sofreu? A resposta não está na terra, mas nos céus. Jó
poderia olhar para todos os lados e tentar entender seu sofrimento,
mas ele nunca entenderia o sofrimento deste lado da eternidade. E é
por isso que, aqui, finda-se o primeiro ato e tem início o segundo.
Fecham-se as cortinas, os contrarregras vão para trás do palco e
começam a desmontar o cenário, instalando um cenário novo. As
cortinas se abrem e começa o novo ato, no qual as coisas saem da
terra e acontecem nos céus.
Se olharmos para os primeiros cinco versículos de Jó, não
encontraremos motivos para Jó ter passado pelo que passou, pois a
resposta para o sofrimento dele não estava em suas circunstâncias
terrenas, em sua vida presente, nem em algo que pudéssemos aferir e
averiguar no comportamento dele. A resposta não estava na terra, mas
nos céus.
Quando passamos por sofrimentos, geralmente a primeira atitude
— e, em certo sentido, é correta — é perguntar se não estamos
fazendo algo errado, se, de alguma forma, o nosso sofrimento não
representa a mão de Deus pesando sobre nós. É uma forma humilde
de pensar, de se entender como pecador e falho, de compreender que
Deus é justo e que muitas vezes repreende o filho a quem ama. Mas
essa não é a resposta completa.
E a resposta nem sempre nos é dada. Podemos olhar para este lado
da eternidade e não encontrar a resposta para o sofrimento. Podemos
mapear cada área da nossa vida e claro que vamos encontrar pecados!
Aquele que diz que não peca mente. Nós ainda vivemos diante da
natureza de Adão, lutando contra nossas falhas todos os dias. Mas a
resposta nem sempre está aqui, ela sai desta esfera e entra na
eternidade, naquilo que não conseguimos acessar.

SEGUNDO ATO: A ACUSAÇÃO DO DIABO (1.6-12)


Em Jó 1.6-12, encontramos a resposta para a pergunta que Jó faria
mais à frente: a razão de ele estar sofrendo tanto. Nesse trecho, vemos
a acusação do diabo contra o patriarca. Novamente, o texto nos diz
algumas coisas acerca de Deus, do diabo e do modo como o mundo
espiritual se relaciona conosco.
Na ocasião, Satanás foi se apresentar diante do Senhor. A Bíblia não
detalha como acontecem essas reuniões celestiais. O texto diz “os
filhos de Deus”, uma referência aos anjos, ou a figuras superiores aos
anjos, que chegam diante de Deus nos céus. O fato de se apresentarem
diante de Deus mostra que os anjos não parecem estar nos céus o
tempo todo: eles estão na terra, ao nosso redor, acampando e lutando
em nosso favor. Mas vemos aqui que Satanás também se apresenta
diante de Deus nos céus.
Você pode se perguntar: por que o diabo vai aos céus ver Deus?
Satanás tem livre acesso de alguma forma? Novamente, não temos
detalhes para atiçar as nossas curiosidades acerca do mundo celestial.
O que sabemos é que Satanás precisa estar diante de Deus em
sujeição, pois ele não é um ser autônomo, isto é, não está livre para
fazer o que quiser. Satanás ainda está sujeito à grandeza, à autoridade
do reinado do Deus vivo.
Comumente, imaginamos o diabo no inferno, com um tridente e um
caldeirão, uma cena um tanto quanto dantesca. Mas nós temos, aqui,
um Satanás que está indo diante de Deus nos céus, sujeito ao reinado
celeste. O relato de que Satanás era um anjo que cai e desce aos
lugares mais profundos do abismo mostra que ele se deu muito mal
naquilo que intentou fazer, pois continua tendo de estar diante da
presença do Senhor para, de alguma forma, prestar contas ao Deus
vivo. Satanás não tem poder sozinho, não pode fazer as coisas que ele
quiser. Porque, se ele pudesse, quem de nós estaria vivo? Quem de nós
seria crente? Quem de nós resistiria a uma força espiritual maligna
como a do diabo contra a nossa vida? Estamos vivos porque Deus
impede que Satanás faça tudo o que ele quer.
É como se Satanás tivesse de responder a Deus sobre onde estava,
sujeito ao poder e à autoridade do Senhor. Ele não é o rei do inferno,
como geralmente imaginamos. Não é ele quem reina sobre todos nós.
Satanás não tem nada; ele ainda é alguém fraco, frágil e servo do Deus
vivo. Claro, é um ser muito poderoso, que intenta contra todos nós —
príncipe das potestades do ar —, mas, ainda assim, ele não é nada
diante do poder do nosso Deus.
No fim das contas, o diabo tenta se pôr como uma força contrária a
Deus, mas isso não condiz com a realidade. Ele é diminuto, menor,
inferior, frágil, fraco. Talvez, diante de nós, ele possa ser comparado a
um leão ao nosso derredor, tentando nos tragar. Mas, diante do Deus
vivo, ele não é autônomo, soberano nem senhor de nada.

O palco e a plateia
Na ocasião relatada no início do livro de Jó, o diabo vinha “de rodear
a terra”. Satanás não parece morar no abismo do inferno; ele está
rodeando a terra, olhando e atrapalhando os filhos de Deus,
passeando pelo mundo para o nosso mal. Sim, o mal nos alcança. Sim,
é o dedo do diabo que toca em nós. O mal nos alcança porque há
forças malignas que rodeiam a terra e intentam contra os homens de
Deus.
Nessa passagem, Deus provoca o diabo por meio de Jó. Satanás não
chegou acusando o patriarca, é Deus quem o provoca, o incita. Deus
chega para ele e diz: “Você estava onde?”. O diabo responde: “Eu
estava rodeando a terra.” É quando Deus ressalta que havia um
homem em Uz que era íntegro, crente, reto e se desviava do mal. Isso
parece loucura, pois Deus está cutucando o diabo, praticamente o
humilhando por meio da fidelidade de seus santos. Podemos perceber,
assim, que a santidade dos crentes, crentes lutando contra o pecado e
perseverando na fé, humilha as entidades espirituais malignas. Deus
nos usa como argumento contra o diabo, operando em nós
perseverança justamente para poder jogar na cara do diabo que ele
não é nada.
O sofrimento que recai sobre nossa vida — que muitas vezes é, sim,
o próprio Satanás tocando em nós — não vem simplesmente por
iniciativa do diabo. Vem, muitas vezes, por iniciativa de Deus. Isso é
chocante quando olhamos para a vida por uma perspectiva
antropocêntrica, como se fôssemos os senhores dos nossos reinos.
Achamos que Deus nunca poderia permitir que sofrêssemos, que ele
nunca planejaria nosso sofrimento, que nunca tomaria a iniciativa de
nos machucar. Mas, na revelação dos planos secretos do Senhor dos
céus, vemos um Deus que toma a iniciativa de ferir Jó. E é esse mesmo
Deus que toma a iniciativa de nos ferir hoje. Ele não só permite que
aquilo que entendemos como mal caia sobre você; ele o planeja e o
executa, justamente para que o seu nome seja glorificado em nós.
O nosso conforto e o nosso bem-estar são pouco se comparados
com os planos secretos de Deus para a nossa vida. Sempre
sacrificamos o menor em nome do maior. Sempre sacrificamos um
tempo de conforto para estudar e passar em um concurso. E Deus,
seguindo esse mesmo raciocínio, sacrifica o nosso bem-estar, a nossa
saúde, a nossa vida financeira para nos dar coisas maiores e melhores
— como mais comunhão com ele, algo muito melhor que qualquer
coisa dessa vida.
Veremos, ao longo do livro, que os planos de Deus se revelam na
vida de Jó por meio de dor e sofrimento. Mas, no fim da história, Jó
consegue ver Deus de uma forma que ele não via quando estava alheio
ao sofrimento.
Talvez esta seja a primeira grande e maravilhosa mensagem que esse
texto nos traz: nas nossas batalhas contra o pecado, nós não estamos
trancados, sozinhos, sem que ninguém nos veja. As nossas lutas contra
o pecado acontecem em um palco. E temos por plateia da nossa
perseverança os reinos espirituais — uma plateia imensa de anjos e
demônios. E, em cada escolha, há uma resposta dentro do mundo
espiritual. Porque, quando você, alcóolatra, rejeita mais um copo;
quando você, lascivo, fecha o seu computador e sai de casa; quando
você, cobiçoso, rejeita as aproximações de uma mulher que não é a
sua, ou de um marido que não é seu; quando você termina um
namoro sem futuro; quando você deixa de ser egoísta, orgulhoso,
violento... cada escolha dessas não aconteceu somente em seu coração
e em sua vida privada, mas diante de uma plateia envolvida em uma
guerra cósmica — e sua santidade gera festa nos céus, cria argumentos
contra o diabo e traz glória eterna ao Deus vivo.
Caso você tenha encontrado Jesus, saiba que foi inserido em uma
grande história argumentativa em prol da glória e da grandeza de
Deus diante de todo o mundo espiritual. Quando vemos Deus
provocar o diabo por meio da vida de Jó, ele se torna um argumento
vivo para humilhá-lo, para estabelecer, no mundo espiritual, a
grandeza de Deus e a fraqueza de Satanás. Jó é o argumento de Deus,
é o referencial teórico da prova que Deus estabelece diante dos anjos,
dos filhos de Deus, das forças espirituais, de que Satanás é um
derrotado e Deus continua grande!
Deus que nos usa como argumento para estabelecer a sua grandeza
diante do reino espiritual. Isso nos dá senso de propósito para a vida,
a santidade e nosso relacionamento com Deus. Não existimos
simplesmente como indivíduos que nascem, crescem, se reproduzem e
morrem; nós existimos diante de um grande palco do mundo
espiritual para provar que Deus é majestoso.
E, quando perseveramos e permanecemos na fé durante o
sofrimento, os anjos batem palmas, o diabo é humilhado e Deus é
honrado diante do mundo. Há alegria nos céus quando Deus
apresenta ao diabo um de seus filhos e diz: “Este é íntegro, justo, se
desvia do mal, permanece no meu caminho. Perdeu tudo, sofreu e
ainda está comigo. Criou bem os filhos, fugiu do pecado, fez um pacto
com os próprios olhos para não cobiçar as virgens, perdeu a mãe,
faliu, ficou doente, quase morreu no hospital e continuou.” Satanás é
humilhado quando lutamos contra o pecado.
Lembre-se: quando estiver diante do pecado, você não está
escondido, sozinho; mas está em um palco, diante de uma plateia. E
Deus poderá usar aquilo que ele mesmo opera em seu coração como
argumento para humilhar as hostes do mal. O livro de Jó não nos
conta a história de um diabo que toca em Jó pura e simplesmente
contra Deus, contrariando seus planos, como se o Senhor não estivesse
vendo.
Martinho Lutero dizia que até o diabo é o diabo de Deus. Por quê?
O diabo é um cachorro violento, mas há um Senhor segurando a
coleira desse cão selvagem. Ele é perigoso, mas não está fora da
soberania de Deus, pois nada está fora dela. Satanás quer nos matar,
morder e destruir. Satanás diz: “Mas tu colocaste uma barreira em
volta dele.” Satanás não nos destrói não porque ele já esteja preso —
isso virá em uma escatologia futura —, mas porque Deus coloca
barreiras ao nosso redor. Satanás não podia tocar na prosperidade de
Jó nem em sua pessoa porque Deus não permitia. Se Deus não
estivesse nos protegendo, nós não estaríamos aqui.
Lembro-me de um sermão de Spurgeon chamado Poupado!, que ele
pregou quatro anos depois da última onda de pandemia de cólera em
Londres. Ele, então, relembra que, no começo de seu ministério,
passava mais tempo enterrando mortos do que consolando vivos
devido à proliferação da doença. E ele dizia: “Por que a bala da peste
zuniu em seu ouvido e você permaneceu vivo? O que fez com que uns
que se protegeram mais morressem e você, que se protegeu menos,
esteja vivo agora?” Ele mesmo responde: “Só há uma resposta: Deus o
deixou de resto, Deus o poupou. A única coisa que faz com que nós
estejamos aqui, não enterrados, a única coisa que faz com que nós não
tenhamos que consolar seus parentes, é que Deus colocou uma cerca
ao seu redor. Até aqui, Deus o protegeu; até aqui, Deus impediu que
Satanás tocasse em você. Ele não deixou que o leão o tragasse.” A
nossa justiça, a nossa santificação, tudo aquilo que fazemos não é o
suficiente para impedir que Satanás nos toque; somos poupados
porque Deus nos protege.
Dando continuidade à narrativa, vemos Satanás tentando acusar Jó,
dizendo que sua fé não era genuína e verdadeira. Jó só tinha aquela fé
porque tudo ia bem em sua vida. E, quando tudo está indo bem, como
dizem, “até eu”. Quando tudo vai bem é fácil.
Curiosamente, por mais que nossas Bíblias tragam “Satanás”, em
muitas traduções não aparece um nome próprio. Hasatan, no
hebraico, significa “o acusador”, que é um dos nomes do diabo e é o
que o nome Satanás significa: o acusador. No contexto da passagem,
ele está justamente nos céus acusando Jó, dizendo que sua fé era falsa,
que Jó só era próspero espiritualmente porque era próspero na vida
financeira. E o que que Deus faz? Deus põe aquilo que Satanás diz à
prova. Notem que Deus não precisava provar nada a Satanás: já há
uma escatologia futura que diz que ele será destruído. Deus não
precisa provar nada para ninguém, mas ele prova. Por quê? Para que
seu nome fosse glorificado na vida de Jó, para que em toda eternidade
Deus encontrasse glória para o seu nome por meio da fidelidade de Jó
no sofrimento.
Terei, agora, o meu pequeno momento Martinho Lutero: soltar uma
frase um pouco polêmica, mas, por favor, contextualizem-na. Se você
abrir aspas, fechar aspas e publicar no Facebook, provavelmente eu
seria preso pela polícia da teologia. Então, contextualizem-na.
Quando Satanás trabalha, Deus trabalha. Quando o diabo trabalha,
Deus está trabalhando. O diabo nos toca, nos machuca, nos ofende, e
ele será punido por isso, sofrerá por toda a eternidade por causa de
todo mal que nos fez. Porém, Deus transforma o mal em bem,
transforma as ciladas do maligno em coisas que nos trazem para mais
perto dele, pois temos um Deus que é soberano até sobre as
armadilhas do maligno.
Deus não precisava provar nada ao diabo. Mas ele não está
provando somente ao diabo, ele está provando a Jó. O servo de Deus,
aqui, termina melhor do que começou. Jó sai dessa jornada com Deus
adiante das suas provações que vêm pela mão do maligno e sai mais
próximo do Altíssimo. Satanás achava que iria separar Jó de Deus ao
tocar em suas coisas. E o que Satanás fez foi aproximar Jó de Deus. O
tiro saiu pela culatra.
Não é essa a ideia por trás de Romanos 8, de sermos mais do que
vencedores? O acusador vem, tentando nos acusar, trazendo morte,
sofrimento, fome, medo, frio, espada e, diante de todas essas coisas,
saímos mais do que vencedores, pois aprendemos a nos aproximar
cada vez mais de Deus e nos tornamos mais parecidos com Cristo. Só
temos motivos de agradecer a Deus, até mesmo quando o mal nos
toca, até mesmo quando Satanás nos toca, porque Deus está agindo
soberanamente, trabalhando por meio de tudo que acontece em nossas
vidas. Enquanto Deus usa homens que tentam fazer o mal tornando-o
em bem, nós podemos encontrar graça e força para resistir, pois o mal
não vem sozinho: ele sempre vem com um Deus que está trabalhando
por trás do mal para transformá-lo em bem.
O salmo 115, verso 3, diz que nosso Deus está nos céus e faz tudo
como lhe agrada. Daniel 4.35 diz que não há ninguém que possa deter
a mão de Deus e que ninguém pode questionar o que ele faz. Deus
escolheu provar Jó incitando o diabo contra ele e tirando as barreiras
de contenção que estavam à sua volta para mostrar, aparentemente ao
diabo, que Jó era crente de verdade. Porém, ao mesmo tempo, o diabo
seria humilhado pela fidelidade de Jó, conseguindo Deus, assim, glória
para o próprio nome, mostrando a sua grandeza e a sua superioridade
contra os reinos do mal.
Mas o próprio Jó também encontra algo maravilhoso por meio da
provação que Deus dá a ele. No final do livro, somos lembrados de
que Jó tem um relacionamento mais íntimo com Deus após esses
sofrimentos. Satanás acreditava que, ao tirar o muro de proteção da
vida comum de Jó, ele se afastaria de Deus. Mas, ao contrário, Jó se
aproxima. Ele se torna mais crente no fim do livro do que era no
início. No fim das contas, Deus não está simplesmente encontrando
mais glória para seu próprio nome por meio da provação de Jó, mas
está dando mais força e mais fé a ele.
Às vezes, o nosso sofrimento não tem motivo. Olhamos e dizemos:
“eu não fiz nada de errado, eu me protegi, me cuidei, eu fiz o seguro,
andei pelo caminho correto, fui no limite de velocidade. Fiz tudo do
jeito certo, coloquei o carro no estacionamento, está tudo bonito,
correto. E agora? O que eu tenho a aprender com esse sofrimento?
Qual o lado bom? Qual o lado positivo?” Algumas coisas não têm
lado positivo. Você nunca olha para uma vítima de estupro e diz:
“veja pelo lado positivo.” Pessoas que nascem doentes, crianças que
nascem viciadas em crack na rua. Qual o lado positivo? Qual é o
motivo? O que Deus quer ensinar? Algumas coisas não parecem ter o
que ensinar. Algumas coisas não parecem ter um lado positivo.
Algumas coisas parecem ser somente dor, a mais triste humana e
rasteira dor. E o motivo dessas dúvidas é porque estamos olhando
apenas para esse lado da eternidade.
Jó não sabia, não ouviu, não recebeu um memorando dos céus
sobre aquela conversa. “Caro Jó, prepare-se, porque o bicho vai pegar.
Assinado: Javeh.” Ele estava vivendo a vida dele e, do nada, o cenário
do nosso espetáculo, da nossa peça, muda, sai do céu, as cortinas se
fecham, se abrem novamente e voltamos para assistir um dia na vida
desse personagem chamado Jó. E é um dia de vida pelo qual eu espero
nunca passar, que alguns de nós não sobreviveria.
Hoje, penso em uma série de acontecimentos que, se ocorressem em
minha vida, acho que não aguentaria firme na fé. Mas eu tenho
certeza de que, se um dia elas acontecerem, Deus vai trazer junto com
elas a graça necessária para que eu resista. Você pode ter essa
segurança em Cristo Jesus, de que ele não vai abrir espaços para que
Satanás toque em sua vida sem que ele esteja ciente, planejando e
tratando isso para o seu bem e para a glorificação do próprio nome.
Pois a segurança da nossa salvação está justamente no fato de que
Deus permite que passemos pelo sofrimento para glorificar o seu
nome, e Deus não entra em um jogo que ele vai perder. Ele sabe que
ele vai ser glorificado, Deus sabe que a vitória é certa e é dele. Então,
Deus garante que o seu próprio nome será glorificado em nós por
meio do nosso sofrimento.
Deus glorifica o seu nome quando perseveramos. Então, ele nos dá a
graça da permanência.

TERCEIRO ATO: A AÇÃO DO DIABO (1.13-19)


As cortinas se fecham e, ao se abrirem novamente, estamos de volta à
terra, testemunhando uma das descrições mais terríveis que podem ser
encontradas na Escritura acerca do dia de alguém. Já experimentou
um dia ruim? Aquele dia que você deseja esquecer? Receber notícias
devastadoras que o deixam no chão? Demorar para se recuperar
delas? Um telefonema tarde da noite que ainda ecoa em sua memória?
Coloque-se no lugar de Jó.
No livro de Jó 1.13-19, encontramos o relato da derrocada da vida
dele. Essa cena é quase cinematográfica. Jó está em sua casa, enquanto
seus filhos estão desfrutando de um banquete na casa de um deles,
quando chega o primeiro servo: “Todos os bois e jumentas foram
roubados, e todos os servos que estavam lá foram mortos.” Enquanto
Jó ainda está processando essa notícia, chega outro servo apressado,
interrompendo o primeiro: “Fogo caiu dos céus, fogo de Deus, e
queimou as ovelhas e todos os servos que estavam lá morreram.”
Sobressaltado com a segunda notícia, Jó pensa: Como isso é possível?
Perdi servos, perdi dinheiro. Nesse momento, chega um terceiro servo,
ofegante: “Todos os camelos foram roubados, e todos os servos que
estavam lá foram mortos.” Jó perdeu todas as suas posses, toda a sua
riqueza; Jó estava arruina-do. Da noite para o dia, o homem mais
próspero do Oriente perdeu tudo. O que restava era apenas sua
família, seus dez filhos, sua verdadeira herança. Enquanto o terceiro
servo ainda falava, um quarto servo chega com a última e devastadora
mensagem: “Um vento do deserto soprou com força, derrubou a casa
sobre seus filhos e todos os dez morreram.” Tudo isso ocorreu
simultaneamente, de uma só vez. É um relato muito aterrorizante. Jó
perdeu sua riqueza, seus trabalhadores, seus filhos, seu patrimônio.
Quatro anúncios assolaram Jó quase ao mesmo tempo. Dois deles
foram inteiramente naturais: um ato de pilhagem, no qual inimigos
saquearam suas propriedades. Mas outros dois eram de natureza
sobrenatural. Um deles foi um poderoso vendaval que soprou do
deserto e derrubou uma casa. Observe que não era uma construção
frágil, mas sim uma estrutura robusta feita de pedra. Imagine essa
estrutura desabando e matando dez pessoas. Tudo por causa de um
vento? Normalmente, ventos não derrubam casas no Oriente, mas esse
vento foi tão impetuoso que causou a queda.
Nós poderíamos argumentar que isso era um evento natural, porém
o outro anúncio, a segunda mensagem recebida por Jó, era claramente
sobrenatural. Fogo desceu do céu. O texto afirma de forma clara que
foi um fogo de Deus que desceu dos céus e consumiu tudo. As forças
naturais estavam contra Jó, assim como outros povos e até Deus.
Muitas vezes, Deus permite que enfrentemos adversidades
simultâneas. Sofrimento após sofrimento, sem tempo para nos
recuperarmos de um antes de lidar com outro. Às vezes, tudo
desmorona de uma vez só: você perde o emprego enquanto seu
casamento desmorona, seus filhos se envolvem com drogas, sua saúde
piora e parece que tudo vem de uma vez. Isso nos lembra que
perseveramos apenas porque é Deus quem nos fortalece. Jó não pecou
durante todo esse processo; ele suportou e perseverou em uma
circunstância aparentemente impossível.
É triste quando o sofrimento não espera até nos recuperarmos do
passado. É extremamente desafiador quando o mal nos atinge de uma
só vez. Não é suficiente apenas adoecer; você tem que ficar doente e
perder o emprego. Não é o bastante perder um ente querido no
sábado; o primo precisa morrer no domingo. Lembro-me da história
de um amigo que estava à beira da morte, infectado pelo coronavírus.
Com dificuldade para respirar, ele foi levado às pressas para o
hospital, temendo o pior. Quando finalmente recebeu alta, descobriu
que os pneus de seu carro haviam sido roubados. Parece que todos nós
temos nossos dias de Jó.
O livro de Tiago nos ensina a alegrar-nos grandemente quando
enfrentamos diversas provações. Alguns teólogos sugerem que o livro
de Tiago segue em certa medida a estrutura de Jó, pois há várias
referências a Jó nele. A ideia de passar por várias provações não
significa sofrer excessivamente, mas sim enfrentar diversos tipos de
desafios. Não consigo ler Jó 1.13-19 e acreditar que ele tinha motivo
para se alegrar. Não sei se conseguiria me recuperar de notícias como
as que Jó recebeu, de uma tarde como aquela. Provavelmente, eu
precisaria de medicamentos ansiolíticos, ser sedado, passar anos em
psicoterapia; eu ficaria todo a balado. Por situações muito menos
difíceis do que essas, as pessoas abandonam a fé, abandonam a Deus.
Por questões muito menores, elas renunciam ao cristianismo,
declarando que Deus é mau e está contra elas, que Ele é injusto. No
entanto, Jó responde de uma forma maravilhosa: ele adora a Deus.

QUARTO ATO (EPÍLOGO): EM TUDO ISSO, JÓ NÃO PECA (1.20-22)


No quarto e último ato, as cortinas não se fecham, os cenários não
são alterados, ninguém sai de cena. No palco, apenas o monólogo de
adoração de Jó é ouvido.
Jó, o mesmo homem que sacrificava a Deus por medo de que seus
filhos blasfemassem em seus corações, não blasfema contra Deus em
seu sofrimento. Jó permanece firme na provação porque colhe os
frutos da fé que exerceu durante a bonança.
Não existe um livro sobre a vida de alguém que possamos abrir, ler
e entender por que Deus fez o que fez, por que Deus permitiu o que
permitiu. O que temos é a fé de saber que existem realidades
espirituais às quais não podemos acessar. Existem planos de Deus que
não vemos; precisamos apenas confiar, e a fé é isso. A fé é entender
que não sabemos por que estamos sofrendo, mas sabemos que Deus é
bom. Não sabemos por que isso aconteceu, mas sabemos que Deus
está no controle. Não sabemos por que adoecemos, falimos ou
perdemos tudo; só sabemos que Deus está presente. Não sabemos por
que não conseguimos nos livrar do sentimento de angústia que nos
impede de sair da cama todos os dias, mas sabemos que Deus é bom e
nos ajuda em meio a tudo isso. Não sabemos, mas nossa perseverança
não depende do conhecimento, mas sim da crença, da confiança e do
conhecimento de que Deus é bom, justo e recompensa aqueles que o
buscam.
Vemos um Jó que sofre genuinamente. O santo, o homem justo, não
é aquele que fica impassível diante do sofrimento. Quando tudo dá
errado, quando uma pessoa perde a empresa ou seus filhos morrem, o
homem justo não pode chorar? Não é assim. Observamos que Jó
sofre, rasga suas próprias roupas em um ato de profundo e extremo
desespero. Ele raspa a cabeça, um sinal de humilhação na cultura
judaica. Ele se prostra no chão, deita-se com o rosto na terra. E então,
ele adora.
O santo sofre durante a provação. Você pode sofrer. Você não é
menos crente porque chora no velório de seu filho. Você não é menos
crente porque está preocupado e triste pela falência de sua empresa.
Você pode lamentar, chorar, sofrer; o que você não pode fazer é deixar
de adorar. Jó é um homem que sofre e adora a Deus durante seu
sofrimento.
Jó perdeu tudo, inclusive seus dez filhos. Um pai não deveria perder
um filho, não é natural. Existe uma palavra para descrever um filho
que perdeu o pai: órfão. Mas não há uma palavra que descreva um pai
que perdeu um filho. Pelo menos não em nenhum idioma que eu
conheça. Não existe uma palavra que normalize essa experiência. Os
pais não deveriam enterrar seus filhos, mas sim o contrário. No relato
bíblico, ocorre um acidente, uma catástrofe, e no mesmo dia em que
Jó perde tudo, ele também perde seus dez filhos. As três filhas que
moravam com ele, ainda virgens e sem se casar, tinham uma vida
inteira pela frente. Seus sete filhos eram casados, tinham esposas e
provavelmente filhos — Jó pode ter perdido seus netos. Todos eles
morreram ao mesmo tempo.
Jó, então, rasga suas vestes. Esse é um ato claro, embora ritualístico,
de desespero, sofrimento, angústia e dor. Ser crente não significa ser
indiferente à dor. Os crentes sofrem, choram, gemem e gritam quando
enfrentam o sofrimento, e não há problema algum nisso.
Em seguida, ele raspou a cabeça, prostrou-se no chão e se deitou
com o rosto no solo. Ao observar essa cena, fica evidente que ele está
mergulhado em profunda angústia e sofrimento. No entanto, Jó adora
e louva a Deus. Ele continua adorando ao Senhor mesmo depois de
perder seus dez filhos e de deixar de ser um homem muito rico para
não ter absolutamente nada.
Muitas vezes, soltamos palavrões quando batemos o dedinho na
quina de um móvel, blasfemamos quando o motorista não para o
ônibus, pensamos em abandonar nossa fé quando perdemos uma
namorada. Mas aqui vemos Jó, que sofre genuinamente e adora a
Deus. Isso é uma obra da graça de Deus no coração desse homem. E
como ele adora? Ele expressa uma frase simples, porém
profundamente significativa, que explica como Jó conseguiu lidar com
tudo aquilo. Jó diz: “Saí nu do ventre de minha mãe e nu partirei. O
Senhor deu, o Senhor tomou; bendito seja o nome do Senhor.” Jó
sabia que ele veio a este mundo sem nada e partirá da mesma forma.
Ele está dizendo que esta vida terrena, toda a nossa existência, é
apenas um estado intermediário entre dois estágios de vazio, de nudez;
que esta vida é apenas um “por enquanto” entre não ter nada e voltar
a não ter nada. Portanto, se perdemos algumas coisas nesta vida, no
final das contas, o que realmente estamos perdendo?
Quando começamos a enxergar a vida real, a vida eterna, todas as
coisas que acumulamos nesta vida parecem insignificantes, vazias,
tolices e bobagens. Elas podem até nos trazer alegria, assim como um
jogo traz alegria quando jogamos com nossos filhos, mas acaba. Não
vale a pena se apegar com todas as forças às notas de dinheiro do
jogo. As coisas que temos não podem nos possuir, porque quando elas
nos possuem, não conseguimos adorar aquele que nos possui, aquele
que é nosso dono. Se continuarmos entendendo que esta vida é
transitória, suportamos as perdas que sofremos.
Jó tinha plena convicção de que não valia a pena se apegar às coisas
que possuía, nem mesmo às coisas boas e valiosas, como seus filhos, a
ponto de abandonar Deus. Ele sabia que havia vindo sem nada e iria
embora sem nada. Ele adorou a Deus durante o sofrimento, em
primeiro lugar, porque compreendia que esta vida é passageira e as
coisas são temporárias. Se ele perdesse tudo um pouco antes da morte,
qual diferença isso faria? Talvez a jornada se tornasse um pouco mais
difícil, mas, no final das contas, em pouco tempo, ele perderia tudo de
qualquer maneira. Jó era um homem extremamente rico por fora, mas
não permitiu que a riqueza o corrompesse por dentro. As bênçãos de
Deus não se tornaram um ídolo para Jó, pois quando ele as perdeu,
continuou firme em sua fé. Nem mesmo sua família se tornou um
ídolo para ele, pois quando perdeu seus filhos, chorou, sofreu — como
é natural fazer —, mas Jó permaneceu em Deus e o adorou.
Em segundo lugar, Jó perseverou porque disse: “O Senhor deu, o
Senhor tomou. Bendito seja o nome do Senhor.” Aqui estão duas
sentenças que explicam como Jó perseverou. Em primeiro lugar, ele
entendia que havia vindo sem nada e que iria embora sem nada, e
compreendia que tudo o que tinha lhe fora dado por Deus. Em
segundo lugar, Jó conseguia adorar durante um sofrimento tão intenso
porque sabia que tudo o que possuía não era seu, mas pertencia a
Deus. E se Deus havia dado, ele também podia tomar de volta.
Foi Deus quem lhe deu seus filhos. Seu dinheiro, a comida em sua
mesa, sua inteligência, sua saúde, tudo é fruto de Deus. Se ele quiser,
amanhã pode tirar tudo de você. Um ser microscópico, um vírus, pode
entrar em seu corpo e tirar sua vida. Foi Deus quem deu e, se foi ele
quem deu, deixe-o tomar de volta.
Jó conseguia perseverar e adorar no sofrimento porque não
acreditava que as coisas que possuía vinham dele mesmo; ele sabia que
tudo vinha de Deus — Jó tinha uma perspectiva centrada no Senhor.
Ele entendia que toda sua vida era um presente de Deus estava sendo
sustentado por ele, e que, quando Deus, quisesse retirar, ele o faria.
Uma vez, um amigo meu estava sem lugar para morar e prestes a ser
despejado. Então, um missionário amigo dele ia passar um ou dois
anos nos Estados Unidos. E esse missionário tinha uma mansão e disse
ao meu amigo: “Cara, estou indo para os Estados Unidos. Minha casa
vai ficar vazia. Você quer ficar na minha casa, cuidando dela enquanto
estou fora?”. E ele aceitou. A casa estava completamente mobiliada,
enorme, com piscina, tudo de bom. Ele morou naquela casa por dois
anos, aproveitou o máximo que pôde e foi feliz lá, sem pagar um
centavo de aluguel. Depois de dois anos, o missionário voltou e meu
amigo precisou sair da casa. Obviamente, a casa pertencia ao
missionário, e ele precisou encontrar outro lugar para ficar. E o que
meu amigo diria? “Esse missionário é um idiota, é cruel, ele não gosta
de mim. Morei aqui por dois anos e agora ele está voltando para casa
sem me deixar ficar aqui.” O correto seria ele dizer: “Esse cara me
emprestou a casa por dois anos. Amém, obrigado por esse tempo”.
Devemos fazer o mesmo em nossa vida. “Obrigado porque eu
consegui ter um carro por um ano e meio”; “obrigado porque eu
consegui ter uma casa boa desse tamanho por cinco anos”; “obrigado,
Deus, porque eu consegui ter um relacionamento com meu filho por x
anos antes que ele morresse”.
Nós não queremos perder nossos filhos ou nossos bens, mas Deus
deu, veio dele, não fomos nós que conquistamos, não fizemos por
merecer; tudo veio da mão do Senhor. Eu espero não ter que ser
colocado à prova, como Jó foi, mas quero ter a força que ele teve. Eu
quero que nós, como igreja, tenhamos essa força de louvar a Deus por
aquilo que ele nos deu e por aquilo que ele nos tirou. Nós vamos
aceitar aquilo que Deus nos dá, mas vamos rejeitar quando Deus tira?
A que nos apegamos nessa vida ao ponto de achar que vale a pena
abandonar a Deus, caso a percamos? Eu choraria desesperadamente,
pularia no buraco da cova aberto para o caixão, caso eu perdesse
minha filha. Eu seria aquele tipo de pessoa que dá escândalo em
velório, que rasga a roupa, que chora desesperado, desmaia. Mas eu
gostaria de ser o tipo de homem que adora, que diz: “Deus me deu,
Deus levou. Bendito seja Deus”.
Jó nos ensina que está tudo bem em sofrer, em chorar as perdas,
lamentar. O que não fica bem é atribuirmos culpa a Deus, achar que
Deus errou, que ele nos odeia.
Algo maravilhoso na narrativa de Jó 1 é a maneira como Jó, que
sacrificava com medo de que seus filhos tivessem amaldiçoado Deus
em seus corações, é tentado a amaldiçoar Deus em seu próprio
sofrimento, mas não blasfema. A história se fecha com ele,
preocupado com que seus filhos não blasfemem na bonança,
permanecendo firme na provação. Jó colhe os frutos da fé que cultivou
nos tempos de bonança durante sua provação. O que semeamos nos
tempos de bonança é o que colhemos nos tempos de provação. Nos
momentos de dor e sofrimento, como no leito de um hospital lutando
para respirar, colhemos os frutos da fé que exercitamos livremente em
casa. A falta de culto durante três ou quatro meses é com-pensada
pelo exercício da fé em nossa família, construída ao longo dos anos
frequentando a igreja.
Recentemente, o pai de um amigo meu contraiu câncer e passou por
uma situação muito difícil. Graças a Deus, ele sobreviveu. Ao chamar
sua família para compartilhar a notícia do câncer, ele disse: “Filho,
este é o momento em que os fortes precisam ser fortes. Estudamos a
Palavra de Deus sobre sofrimento e fé ao longo de toda a nossa vida,
justamente para momentos como este. Agora é a hora de colocarmos
em prática tudo o que aprendemos.” E assim fizeram, permanecendo
firmes na fé e no caminho do Senhor.
Isso nos leva a refletir. Quando as coisas vão bem e estamos
saudáveis, muitas vezes negligenciamos o cuidado espiritual, deixando
de nutrir nosso coração. E quando a adversidade chega, não temos
nada para colher; perdemos o período das “sete vacas gordas”,
quando deveríamos nos alimentar espiritualmente, crescer, aprender e
memorizar versículos para enfrentar as dificuldades. É por isso que
Eclesiastes nos diz para buscar a Deus durante a juventude, porque
será mais difícil quando estivermos enfraquecidos e desanimados.
Ouvimos muitas coisas na igreja que às vezes parecem teóricas
demais, como perseverar na fé durante o sofrimento. Na maioria das
vezes, nossos dias são tranquilos e nossa vida é pacífica. No entanto,
chegam momentos em que os fortes precisam ser fortes, momentos em
que as coisas dão errado e o sofrimento nos atinge. E é nesses
momentos que colhemos os frutos da fé que cultivamos durante os
períodos de bonança. Portanto, exercite seus músculos espirituais
todos os dias, para que quando o mal chegar, você esteja vigilante e
não fragilizado.
Jó não entendia os motivos daquele sofrimento, mas nem por isso
questionava a Deus. No livro de Jó, não encontramos nenhuma
indagação do tipo “por que, Deus?”. Jó simplesmente dizia: “Bendito
seja Deus! Ele dá e ele toma. Não sei o porquê, mas bendito seja o
nome de Deus.” Isso é plena confiança em Deus. Isso é dizer: “Eu não
entendo, mas confio. E não sei, mas aceito. Eu não tenho explicações
deste lado da eternidade, talvez um dia as terei. Mas até lá, confio
plenamente nos caminhos que Deus me proporciona.” Martinho
Lutero costumava dizer: “Não sei por quais caminhos Deus me
conduz, mas confio na bondade daquele que me guia”.
Não sabemos para onde Deus está nos guiando, mas confiamos.
Não sabemos o motivo, mas sabemos que Deus dá e, por isso, ele
retira. Portanto, pare de tentar encontrar a razão dos acontecimentos;
não sabemos o que ocorre nos conselhos celestiais. A Escritura fala
muito pouco sobre o que se passa do outro lado da eternidade. Eu
penso que Deus não quer que passemos tanto tempo especulando
sobre as realidades além deste plano e que aceitemos o que provém da
boa mão de Deus. O muro de proteção que Deus colocou ao redor de
Jó foi concedido por ele. E o mal, o sofrimento, a perda de filhos e a
perda de bens também foram concedidos por Deus. Jó não atribuiu
culpa a Deus; mas reconheceu a soberania dele em tudo. Jó não
compreendia, mas adorava em meio às incertezas.
Qualquer um de nós pode passar por sofrimentos cujos motivos
parecem inexistentes, mas ainda assim podemos expressar como o
salmista no salmo 63.3: “Pois a tua graça é melhor do que a vida; os
meus lábios te louvam.” A graça de Deus é superior à vida, e se
perdermos tudo, ainda teremos a graça. Podemos perder tudo e,
mesmo assim, não ter perdido nada, pois, em última instância, a graça
é melhor do que a vida. Ainda podemos louvar com os lábios e adorar
mesmo nos momentos de sofrimento mais intensos.
Em conclusão, Deus põe seus filhos em sofrimento e dificuldades.
Alguém pode dizer: “ Não acho isso justo. Não acho certo que Deus
faça isso. Ele está nos fazendo sofrer e zombando de nós enquanto
lutamos para suportar as tribulações desta vida, e ele está lá, sem se
importar.” No entanto, lembrem-se: temos um Deus que fez o próprio
Filho sofrer em nosso favor. Se adoramos um Deus que sofreu, quem
somos nós para pensar que podemos viver sem sofrimento?Adoramos
alguém que escolheu morrer com uma coroa de espinhos, com cravos
nas mãos, com o lado ferido. Como podemos achar que a maneira
como Deus nos tratará será muito melhor do que a forma como ele
tratou Cristo Jesus, seu Filho? Temos um Deus que escolheu sofrer por
meio de Cristo Jesus. Pensar que Deus está no céu nos colocando em
dificuldades para obter glória, como se ele não se importasse conosco
e não entendesse pelo que estamos passando, é uma visão equivocada
de quem ele é, porque temos um Deus que escolheu sofrer em Cristo
Jesus.
E mais, Deus se coloca nas nossas dificuldades por meio do Espírito
Santo. É isso que Paulo diz em Romanos 8: o Espírito Santo geme
orando por nós em nossas dores. Neste texto, há um gemido da
criação: a terra geme, e a ideia ali é de sofrimento. Há um gemido dos
eleitos esperando a revelação do Filho de Deus, e esse gemido também
é sofrimento. Paulo ainda diz que o Espírito Santo geme com gemidos
inexprimíveis. O contexto, sem dúvidas, é de sofrimento. O apóstolo
desenvolve a ideia de sofrimento dizendo que, quando Deus nos
coloca em adversidade, ele se coloca conosco nessa situação. Deus não
é um sádico nos céus, ignorando as nossas questões emocionais e
físicas, colocando-nos em dores ao bel-prazer. Deus nunca coloca você
na dor sem se colocar com você nessa dor.
Deus sentou-se com Jó naquele monturo; ele raspou as próprias
feridas com um caco de telha, assim como Jó raspou. Deus senta-se ao
nosso lado em cada uma de nossas provações. Isso é maravilhoso
porque ele é Deus, é grande, é justo, está acima de tudo. Ele é o
Criador, fez tudo pelo poder de sua voz e escolhe, por meio da
atuação de seu Espírito, sentar conosco em cada uma das nossas
provações.
E ele se colocou em um sofrimento maior em Jesus, que era muito
mais íntegro e justo do que Jó ou qualquer um de nós. Aquilo que foi
declarado sobre Jó e sua justiça não chega aos pés do que foi
declarado sobre o Cristo perfeito, impecável, sem nenhuma falha.
Jesus era mais íntegro, justo, sacrificial e redentivo do que Jó, e
Satanás se levantou contra Jesus muito mais do que contra Jó.
Todas as hostes espirituais se levantaram contra Cristo na cruz. O
próprio diabo sentou-se com Cristo no deserto, a fim de impedi-lo de
morrer em nosso lugar. Satanás tentou contra Jesus muito mais do que
tentou contra Jó. Jesus sofreu muito mais do que Jó. Jesus, o justo e
íntegro, passou pela própria separação de Deus na cruz, levando nosso
pecado. Ele tomou o cálice da ira em nosso lugar. Se Deus fez isso com
o próprio Filho, por que ele não pode fazer algo muito menor
conosco?
Deus, ao nos pôr em provações, não está fazendo conosco algo que
ele mesmo não tenha experimentado. Ele veio na frente, colocou-se em
primeiro lugar na fila e bebeu para si sofrimentos muito maiores do
que qualquer um de nós poderia sofrer: os sofrimentos ao tomar para
si o cálice da ira do juízo de Deus. Jó foi um justo que sofreu, mas o
justo que sofreu e nos salva não é Jó, mas o Cristo perfeito e pleno,
que mostra que o que Deus fez com Jó não é diferente do que ele fez
consigo mesmo por meio de seu Filho.
Quando estamos em sofrimento, não podemos amaldiçoar Deus e
dizer: “O Senhor não está no meu lugar.” Temos um Cristo com
cicatrizes nas mãos e nos pés, olhando para nós e dizendo: “Eu estive
em seu lugar, eu me coloquei em seu lugar. E porque eu me coloquei
em seu lugar, eu bebi da ira que era sua, tomei em meu corpo o
pecado que era seu, para que agora você possa ficar em meu lugar”.
O livro de Jó nos lembra como passar bem pelo sofrimento, mas
também nos lembra de um Cristo que sofreu mais do que qualquer um
de nós e que nos apresenta um caminho de paz com Deus, de amor, de
esperança, de contrato de dívida pago, que Jó daria tudo para ter — e
que ele teve por meio da crença no Messias que viria. Que o livro de
Jó nos lembre dessas maravilhas acerca de como enfrentar bem o
sofrimento.
Notas do Capítulo

Nota 1 - Eerdmans, 1975. [Voltar]


D. A. C
HOW LONG, O LORD?[Nota 1]
Notas do Capítulo

Nota 1 - Baker Academic, 2006, p. 159. [Voltar]


uando vivemos a pandemia de Covid-19, atravessamos dias

Q anormais. As circunstâncias em que Deus nos pôs naquela


época não eram circunstâncias para as quais nós nos
preparamos ao longo de nossa vida. Eu, como pastor de igreja,
não fui ensinado no seminário a lidar com os dias que vivemos.
Ninguém me ensinou a consolar três enlutados por semana, ninguém
me ensinou a ter que lidar com um exercício de ministério onde a
minha presença é potencialmente prejudicial, ninguém me ensinou a
lidar com circunstâncias em que trabalhar é um problema, ninguém
me ensinou a conseguir passar parte do meu tempo de ministério
isolado e trancado dentro da minha própria casa, sem poder fazer
aquilo que eu fui ensinado a fazer. Vivemos em circunstâncias
anormais.
Em Meditaciones del Quijote, de 1914, o filósofo espanhol José
Ortega y Gasset escreve uma profunda síntese filosófica logo em sua
introdução: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela,
não me salvo a mim.” Para o filósofo, a identidade do homem é
indissociável da sua circunstância enquanto indivíduo; a sua salvação,
ele — e aqui ele não está falando necessariamente de salvação religiosa
— passa por salvar suas circunstâncias. Se o indivíduo é o seu
entorno, o meio onde vive, ele precisa salvar a circunstância, ou seja, o
ambiente onde está inserido para que ele próprio possa ser salvo. Para
o filósofo espanhol, nós somos as circunstâncias em que nós estamos
mergulhados.
De fato, muitos têm pensado no homem como fruto mais ou menos
intenso de suas circunstâncias. Essa ideia tem as suas versões nas mais
variadas áreas da ciência e do conhecimento, da Filosofia à Sociologia.
Na Psicologia, por exemplo, Frederic Skinner falava de um
behaviorismo radical. Na Filosofia Política, Jürgen Habermas evocava
o homem como fruto do meio. Nas Ciências Naturais, E. O. Wilson
advogava uma tal de Sociobiologia e que nós éramos definidos pela
nossa genética. Em muitos ambientes, crê-se que o homem é nada
mais do que reflexo de onde ele está inserido, de forma que eu sou eu
e minha circunstância, de que nós somos nós mais o ambiente em que
estamos inseridos. No entanto, o livro de Jó é uma fonte
antropológica muito antiga que mostra um homem vencendo o meio,
de um homem vencendo suas circunstâncias, mesmo quando ele é
incapaz de modificá-las.
Muitas vezes, nós achamos que somos servos inescapáveis do meio,
das circunstâncias e das situações, quando, na verdade, ainda que
sejamos incapazes de agir sobre as situações, nós podemos, ainda
assim, influenciá-las. Muitas vezes, nós não temos poder sobre o que
acontece, mas temos poder para agir sobre aquele que está vivendo o
acontecimento.
Jó foi um homem que viveu circunstâncias anormais, circunstâncias
que nos dão uma fonte de conhecimento antropológico muito
profundo acerca daquilo que Deus espera de nós quando as nossas
circunstâncias não são aquelas para as quais fomos preparados. Jó
passa por um segundo momento de provação, onde a sua fé se
manifesta em um caco de telha. Nesse momento, novamente Satanás
aparece diante de Deus. No capítulo 2, vemos o homem vencendo o
seu meio, as circunstâncias, as influências, mesmo quando ele não
tinha poder nenhum sobre elas.

UMA NOVA ACUSAÇÃO (2.1-6)


Nesta passagem, encontramos um texto que se assemelha muito a Jó
1, quando os filhos de Deus — seres angelicais, possivelmente anjos ou
alguma casta especial de anjos, ou até mesmo figuras superiores aos
anjos — se apresentam diante de Deus. Nessa ocasião, Satanás
também se apresenta ao Senhor, demonstrando que, mesmo após a
catástrofe na vida de Jó, ele ainda está submisso a Deus. Conforme
veremos adiante, quando Satanás toca na pessoa de Jó fisicamente,
não representa um grande momento de autonomia do diabo, mas sim,
ele toca em Jó como um servo, ainda sob o controle e poder de Deus
(quando Satanás nos toca, nos machuca e perturba nossas vidas, ele
não o faz porque conseguiu escapar do controle de Deus, mas ele o faz
ainda sob o controle e soberania do Senhor).
Então, Deus volta a questionar Satanás, assim como fez no primeiro
capítulo: “Onde você estava?”. Satanás responde que estava
percorrendo a terra. Mais uma vez, Deus menciona Jó: “Você viu meu
servo? Íntegro, reto, que se desvia do mal.” Neste ponto, o texto difere
do capítulo 1, pois já conhecemos o que aconteceu com Jó. Portanto,
Deus prossegue: “Ele permanece íntegro, mesmo você me incitando
sem motivo contra ele.” Há algo interessante aqui. Deus próprio
reconhece que o ato de Satanás tocar na vida de Jó foi, na verdade,
uma ação de Deus mesmo. Satanás só pôde tocar em Jó porque Deus
permitiu. Aqui, no capítulo 2, Deus afirma claramente que foi ele
quem agiu daquela forma contra Jó: “[...] embora você me incitasse
contra ele, para destruí-lo sem motivo” (Jó 2.3).
As pessoas costumam falar muito sobre permissão: Deus permite.
Há uma vontade permissiva, Deus deixa. No entanto, não é isso que
encontramos no livro de Jó. Não encontramos aqui somente um Deus
que deixou o diabo trabalhar; encontramos um Deus que trabalha
quando o diabo trabalha. É fácil falar isso do alto de um púlpito.
Quando você está sentado na vida real e o colega pastor que perdeu a
esposa de câncer pergunta: “Então foi Deus que mandou o câncer que
matou a minha esposa?”, trememos um pouco para falar isso com
força, mas a verdade é que sim; o mal nos alcança porque o diabo
atua no mundo. O câncer, o vírus, a pandemia, as doenças, a
depressão, muitas vezes vêm a nós como uma atuação do diabo sobre
as nossas vidas. Mas não é que Deus deixa o diabo trabalhar, é que
Deus trabalha até quando o diabo nos toca com o mal. O câncer nos
alcança, o vírus nos leva para o hospital, nossa vida começa a ir para
um caminho de dificuldade. Sim, muitas vezes o diabo está se
levantando contra a igreja, mas há um Deus que continua trabalhando
enquanto o diabo trabalha e que transforma em bem aquilo que o
diabo intenta em mal. E Deus nos faz mais do que vencedores quando
as forças do mal atuam contra a igreja.
Podemos fazer aqui uma analogia com um inimigo de guerra que
não apenas não nos derrota, mas que se entrega e decide lutar ao
nosso lado, fortalecendo o nosso exército.
Satanás é duplamente derrotado porque, quando ele toca em Jó
achando que ele iria se afastar de Deus, Jó não simplesmente não se
afasta, mas se aproxima ainda mais. Satanás intenta o mal e Deus
intenta o bem. Satanás é nosso inimigo, mas há um Deus que faz com
que os inimigos nos abençoem, como vemos no caso de Ciro, que era
um rei mau e incrédulo, mas que atuava até mesmo a favor da igreja.
Vemos, também, em Romanos 8, quando diz que em todas essas
coisas, na morte, nas tempestades, nas alturas, nas profundidades,
quando as potestades se levantam contra nós, há um Deus que ainda
opera vitória em nós, enquanto o mal trabalha. Claro que isso nos
deixa assustados e até confusos, porque imaginamos, novamente, o
mal, Satanás, como antagonista completo a Deus; Deus meio que
estando de um lado tentando nos abençoar e Satanás do outro lado
tentando nos prejudicar, como se fosse uma guerra, uma queda de
braço, um cabo de guerra da nossa vida e, ora nossa está mais para
um lado, ora mais para o outro.
O livro de Jó nos deixa claro que, mesmo quando as coisas vão mal,
Deus está atuando para o nosso bem. Não sabemos de nada sobre o
que Deus sabe. E se Deus sabe, eu me sinto seguro. Confiar naquele
Deus que nós vemos pela fé é o que vai nos manter firmes e fiéis em
circunstâncias que não são normais.
Repare que não são duas coisas contraditórias: Satanás está se
levantando contra nossa vida e Deus está operando bênção. Porque,
muitas vezes, aquilo que vemos, o mal que nos alcança, a força do
diabo que vem contra nós, contra a qual lutamos e de quem nos
protegemos, vêm como parte de um plano maior de Deus — dar
vitórias e bênçãos no mundo espiritual. Se perseverarmos até o final,
no fim das contas, o diabo é derrotado. E duplamente derrotado.
Romanos 8 não diz apenas que não nos desviamos do caminho
quando o mal nos toca, mas diz que nós nos tornamos mais parecidos
com Cristo. Assim, estamos em uma guerra em que o inimigo não só
não nos vence, mas que nos deixa mais fortes. Satanás tentou tocar em
Jó e o resultado de seu trabalho foi deixá-lo ainda mais crente, levou-o
para mais perto de Deus. E isso acontece porque o diabo é um
fracassado, o seu destino está estabelecido no Apocalipse, ele é a
antiga serpente, o grande dragão que será amarrado e lançado para
sempre no lago de fogo.
Satanás busca realizar o mal com o único propósito de ser
humilhado. Ele tenta nos tocar, lutar contra Deus e acusar a igreja,
pois ele é Satanás, o acusador. No entanto, quem nos acusará, se é
Jesus quem nos justifica e intercede por nós? Mesmo que a sentença de
derrota já tenha sido declarada, Satanás persiste em suas tentativas,
continuamente se levantando apenas para cair outra vez. O diabo
pode nos afetar, é verdade. Satanás ainda tem influência sobre as vidas
dos salvos e dos crentes. Reconhecemos que o diabo é nosso inimigo e
age contra nós. No entanto, quando o diabo nos prejudica, Deus não
se esconde, não desvia o olhar e não nos abandona. Muitas vezes,
Deus está por trás disso, pois ele possui planos muito maiores para
nós. Deus utiliza até mesmo o diabo em nosso benefício, em nosso
bem, para que possamos resistir às tentações malignas, superar as
provações nesta vida terrena e emergir dessa batalha como crentes
mais firmes, mais próximos dele e mais íntegros, assim como Jó saiu
vitorioso.
O texto nos diz, ainda, que Deus foi incitado por Satanás a
consumir Jó sem motivo — outra forma de traduzir seria
“inutilmente”. Entende-se, dessa forma, que Jó não havia feito nada
de errado para que Satanás o tocasse. Isso pode passar a ideia, muitas
vezes correta, de que, às vezes, Satanás toca as pessoas devido a algum
motivo. Lemos, por exemplo, em 1Coríntios 11, sobre pessoas
morrendo, sendo punidas, porque, de forma vã, ceavam, comiam e
bebiam do corpo de Cristo sem arrependimento. Vemos, muitas vezes,
a força do mal encostando em pessoas por que simplesmente — como
se diz nos ambientes pentecostais — davam brecha ao maligno.
Satanás vem contra aqueles que são seus filhos — pessoas que vivem
longe de Deus, que fogem do caminho do Senhor, que vivem sem
arrependimento. Efésios 2 diz que os homens sem Deus estão sujeitos
a esse príncipe da potestade do ar, que estão sujeitos a essas forças
espirituais malignas.
Satanás toca em muitos homens com motivo, porque o diabo está
realmente contra eles para prejudicá-los. Porém, ele pode nos tocar
sem motivo também. Isso significa que o sofrimento pode tanto ter
uma origem em nossos pecados, em nossas falhas, quanto também
não pode. Podemos sofrer porque somos displicentes na vida comum,
não nos precavemos nos períodos de dificuldade. Podemos sofrer com
uma punição realmente divina sobre a nossa vida por causa de pecado
e falha — lembre-se de Ananias e Safira no livro de Atos, que
mentiram para a igreja, tentaram enganar o Espírito Santo e foram
fulminados por causa desse ato. Pense nos homens sem Deus que
recebem o toque do diabo. Mas é muito difícil nós julgarmos tais
coisas, é muito difícil olhar para alguém em sofrimento e dizer se
aquele sofrimento tem algum motivo ou não, se Satanás tem se
levantado contra aquela pessoa porque ela fez por merecer ou se
simplesmente o sofrimento ali não tem razão alguma — razões pelo
prisma desse lado da eternidade, não pelo viés das decisões divinas e
ocultas nos céus.
Isso revela a necessidade de cultivarmos uma maior benevolência e
paciência para com aqueles que estão passando por adversidades. Os
amigos de Jó, que posteriormente se tornarão personagens na história,
são indivíduos que o acusam de estar em pecado. É importante
compreender que Jó poderia, de fato, estar em pecado, mas também
poderia não estar, o que era o caso. Afinal, o sofrimento que ele
experimentava não era resultado de uma falha pessoal, mas sim de
uma escolha divina. Jó padecia sem justificativa aparente, sem motivo
plausível. Do lado terreno da existência, não havia nada capaz de
justificar o seu sofrimento, exceto o desígnio supremo de Deus.
Com frequência, tendemos a associar os sofrimentos alheios a
pecados cometidos em suas vidas. Quando a população enfrenta
adversidades decorrentes do coronavírus, atentados e afins, nos
permitimos conjecturar que tais eventos são consequências de uma
nação que, de alguma maneira, servem ao domínio maligno.
Anualmente, assim que surge o primeiro infortúnio após o período do
Carnaval, deparo-me com uma imagem na internet retratando alguém
vestido como Satanás, envolvido em atitudes transgressoras durante a
festividade, acompanhada da legenda: “Deus veio cobrar a conta.”
Como se esse primeiro infortúnio fosse resultante de pecados
específicos associados ao Carnaval.
Sempre nos esforçamos para estabelecer conexões diretas e
imediatas entre desgraças, sofrimentos e pecados cometidos. E, de
fato, essas relações podem existir. No entanto, o problema reside no
fato de que essas relações pertencem ao domínio da eternidade,
inacessíveis a nós. Quando um irmão na fé sofre, o livro de Tiago não
nos instrui a indagar: “Investigue se esse sofrimento é justo ou
injusto”; o livro nos instrui a chorar, a lamentar junto com aqueles
que choram. É por isso que possuímos algo maravilhoso chamado fé.
A fé é a evidência das coisas invisíveis, é a confiança a respeito
daquilo que esperamos. Confiar em Deus é precisamente o que
fazemos por não termos todas as respostas. A fé não é uma crença
cega, um mero ato de acreditar que Deus existe sem fundamentos ou
argumentos. A fé é dizer: “Estou convicto da existência desse Deus e,
portanto, confio nele. Creio nele. Todas as evidências que confirmam a
realidade desse Deus estão aqui, e é por isso que depositarei minha
confiança nele, acreditando que ele deseja o meu bem e cuidará de
mim. Eu não entendo por que nasci com essa doença, por que tive
câncer, por que fui parar no hospital incapaz de respirar, por que perdi
tudo, por que minha empresa faliu, por que meu casamento chegou ao
fim, por que meus filhos faleceram. Não sei o motivo, mas confio,
tenho fé”.
Essa é a diferença entre aqueles que se dirigem aos céus
perguntando: “Deus, por quê? Por quê?”, pois a resposta só será
revelada quando encontrarmos o Deus de todas as respostas, de forma
definitiva. E quando esse dia chegar e nossas lágrimas forem enxutas
pelo próprio dedo de Deus, talvez encontremos respostas, mas talvez
nem precisemos mais. Talvez somente Deus seja a resposta, e
contemplar a face de Cristo, tê-lo diante de nós, por si só, encerre
qualquer necessidade de respostas para nossos porquês.
Podemos ver, ainda no capítulo 2, que Deus novamente humilha
Satanás. Ele havia tentado contra Jó e fracassou. É maravilhoso que
Jó, em sua fidelidade, tenha mais uma vez servido para humilhar as
forças das trevas — Satanás precisou baixar a cabeça diante da
grandeza de Deus por causa da fidelidade de um servo seu. Deus diz:
“Você tentou contra ele e ele continua firme.” E a resposta de Satanás
é a seguinte: “Pele por pele.” Essa é uma expressão que o significado
nos foge, mas Satanás explica: o homem daria qualquer coisa pela sua
vida, pela sua pele, pela sua carne. “Você tocou nos bens de Jó, você
tocou na família de Jó; você não tocou na pele de Jó. Toque no corpo
dele, adoeça-o. Então, você irá vê-lo amaldiçoá-lo em sua face.”
Satanás é muito “gaiato”, como se diz. A princípio, ele diz: “Se você
tocar nos bens dele, ele irá desviar.” Agora, porém, diz: “Não, mas
não era bem assim não, tirou algumas coisas dele, mas só coisas
materiais. Pega na carne agora, vai no corpo”.
Satanás não é um ser espiritual comprometido com a verdade, com
o que é justo, com o que é bom. Satanás só está comprometido com o
mal, com o nosso prejuízo. Ele nos toca de uma forma, mas já quer
nos tocar de outra. E Deus, no caso de Jó, assente outra vez. Mas note
que Deus não está sendo manipulado pelo diabo, como alguns irão
dizer; Satanás não está manipulando Deus para poder tocar em Jó. É
Deus quem toma iniciativa nessas conversas com Satanás e é ele quem
apresenta Jó novamente a Satanás. E é Deus quem permite que
Satanás toque no corpo de Jó. De novo, o diabo só encosta em nós
quando Deus permite; o mal só nos alcança quando Deus deixa,
porque Deus continua trabalhando enquanto o diabo trabalha. O
texto diz, nas entrelinhas, que o toque de Satanás destruindo parte da
vida de Jó foi o toque de Deus destruindo parte da vida daquele
homem.
Você já experimentou alguma vez a sensação de que Satanás teve
um impacto em sua vida sem motivo aparente? Você tem alguma
história pessoal da qual se lembra de ter feito tudo corretamente,
agido de maneira justa, cuidado de si mesmo, se dedicado e seguido
uma vida em harmonia com Deus, e ainda assim as coisas começaram
a dar errado? Você adoeceu, perdeu o emprego, seus relacionamentos
se tornaram instáveis, e sua vida pareceu desviar-se do curso que sua
fé diligente parecia merecer? Porém, a verdade é que nenhum de nós
alcança algo por merecimento!
Jó, um homem de integridade e retidão muito além da nossa,
também sofreu e foi tocado pelo diabo. Deus permitiu que Jó fosse
afligido, suportasse um sofrimento injustificado, sem motivo ou culpa
alguma em seu histórico. Ele permitiu o sofrimento de seu mais fiel
servo para que esse servo pudesse manifestar e exercer uma forma de
perseverança que, até os dias de hoje, comunica algo poderoso a nós.
Ao contemplarmos a paciência de Jó em meio a circunstâncias tão
terríveis, somos inspirados a cultivar essa mesma virtude. Jó se tornou
um modesto precursor daquilo que Cristo viria a ser. Deus permitiu
que seu Filho perfeito fosse torturado e sacrificado, a fim de que ele se
tornasse o modelo de nossa própria salvação. Nesse supremo
sacrifício, o Filho de Deus assumiu os nossos pecados, carregando-os
em seu corpo e sendo submetido à morte, dilacerado pela própria
vontade divina.
Às vezes, a fé opera em nós de forma a resolver problemas e nos
proporcionar uma felicidade que transcende todo entendimento. No
entanto, ao examinarmos o livro de Jó, não encontramos nele um
homem feliz, mas sim um homem perseverante. Por vezes, Deus nos
priva das circunstâncias que nos trazem alegria, a fim de nos conceder
coisas muito maiores, melhores e mais valiosas. Essas são coisas que
ainda não vislumbramos deste lado da eternidade, mas que se
manifestarão eternamente na glória de Cristo que habita em nós.
Se alguém chega à fé e a abandona quando as coisas se tornam
difíceis, essa pessoa não compreendeu que adoramos a um Deus que
foi morto. Nosso Salvador não veio a este mundo simplesmente para
conquistá-lo como um líder político ou para distribuir prazeres a
todos. Nosso Deus permite que passemos por circunstâncias adversas
a fim de que encontremos, exclusivamente nele, delícias perpétuas.
Deus, a princípio, deu limitações ao diabo: “Não toque no corpo de
Jó.” Agora, ele diz: “Não tire a vida de Jó.” Jó sofreu, mas Satanás
poderia ter feito muito pior. Você pode se lembrar de sofrimentos, de
erros, de problemas em sua vida, de doenças, mas quantas limitações
Deus colocou? O câncer regrediu, a infecção passou, o prejuízo foi
vencido e você ainda está vivo, você respira, você tem as pernas, você
tem uma casa para morar, você tem comida, a sua mulher ainda está
em casa, o seu marido ainda está em casa. O mal pode ter alcançado
você e, quando olha para o mal que o alcança, muitas vezes não
consegue ver todas as limitações que Deus impôs, quantos muros de
proteção Deus colocou à nossa volta. Ele pode tirar os seus bens, mas
não tira a sua saúde; pode dar o câncer, mas não deixa ter metástase;
as coisas dão errado, mas não dão tão errado quanto poderiam dar. E
isso porque Deus não deixa.
Nós podemos glorificar a Deus e sermos contentes e alegres durante
as mais intensas provações e durante os mais ferrenhos ataques do
inimigo de nossas almas. E podemos ser felizes porque, apesar de não
sabermos quantas defesas Deus colocou diante de nós, podemos
prever. “Ele tocou em minha saúde, mas não tocou nas minhas
finanças, não tocou na minha fé, não tirou a minha vida.” “Talvez ele
tenha tirado o meu dinheiro, mas minha saúde ainda está aqui, minha
casa ainda está aqui, meu filho ainda está aqui.” “Talvez eu tenha
perdido o meu filho, mas todo o resto, a estrutura, ainda está aqui em
volta, as pessoas ainda me amam. Um filho se foi, mas o outro
permanece. Ainda tenho fecundidade para ter outros filhos.” Olhamos
para tantas coisas que dão errado, para tantos toques do maligno, e
não olhamos para tantas proteções que Deus colocou em tantas outras
áreas de nossas vidas. É no meio da dificuldade, no meio do caos, que
precisamos olhar para aquilo que vai bem. Não é olhar o lado positivo
do mal, mas olhar quantas outras áreas poderiam estar mal também e
que não estão porque Deus nos protege.
Somos mais que vencedores. Por quê? Porque, mesmo dentro do
sofrimento — na fome, na espada, no perigo, sendo entregues à morte
todos os dias —, Deus usa esse sofrimento para nos fazer mais
parecidos com Jesus, porque nada pode nos separar do amor de Deus
que está em Cristo. Não somos meramente vencedores, pessoas que
não são derrotadas pela dor e pelo sofrimento, mas nós somos mais
que vencedores, somos pessoas que são beneficiadas pela dor e pelo
sofrimento. Olhe para Jó, que terminou o livro muito mais próximo
de Deus.
Com frequência, presumimos que viver bem seja o estado natural
do crente, que uma vida normal, na qual as coisas fluem, seja nosso
estado inato. Imaginamos que tudo deva ser como um tranquilo
cruzeiro de férias, um sereno passeio pela floresta, desfrutando do
aroma das rosas e da suave brisa acariciando nossos cabelos. No
entanto, estamos em meio a um deserto, em plena tempestade de
areia, em um pântano traiçoeiro; estamos envolvidos em um combate,
navegando em um navio de guerra. Você consegue visualizar-se, neste
exato momento, em uma trincheira de guerra? O diabo está ao nosso
redor, ávido para nos devorar a cada dia, cercando a terra. Satanás
observou Jó, conhecia a sua essência. E Satanás também está lançando
suas investidas contra você. Dia após dia, ele anseia pela oportunidade
de despojar-te de tudo o que tens. No entanto, você continua a
perseverar, pois existe um muro ao seu redor, uma grade de proteção.
Nós não temos que nos espantar com o fato de as contas não
estarem sendo pagas; devemos, sim, nos espantar de termos um
emprego. Não temos que nos espantar por uma doença, por um
exame ruim; devemos, sim, nos espantar por conseguirmos respirar
ainda. Resumindo: não temos que ficar espantados pelo mal que nos
alcança. A pergunta não é por que existe mal no mundo, a pergunta é:
“Como é que nós ainda existimos?” Ainda: Como é que nós podemos
viver a vida inteira com o diabo nos rodeando? Se Satanás está o
tempo inteiro intentando nosso mal, rodeando a terra, passeando por
ela com seus asseclas e seus demônios e nós continuamos vivos,
inteiros e íntegros é, unicamente, porque Deus nos protege o tempo
inteiro.
A cada segundo Deus mostra isso. E, às vezes, é bom quando temos
um cisco no olho. Você, provavelmente, está feliz agora pelo simples
fato de não ter um cisco no olho, certo? Quando você tem um cisco
no olho, ele não sai de jeito nenhum, você lava, faz tudo o que pode, e
fica aquele desespero e dói, até que o cisco sai. Você está feliz pelo
simples fato de não estar doendo; esse é o estado natural, normal. Às
vezes, Deus tem que mandar o cisco para lembrarmos como é estar
normal, porque o estado natural no mundo caído é o cisco, é o
sofrimento, a dor; o estado natural é a perseguição, é a mordi-da. E
nós estamos vivendo a vida com Deus todos os dias felizes,
relativamente saudáveis, pagando nossas contas e vivendo a existência
comum. Podemos louvar a Deus pelo simples fato de não estar
doendo; podemos louvar a Deus pelo simples fato de estarmos
vivendo, de estarmos na vida de fé e na vida da igreja, de Satanás não
ter nos mastigado e levado tudo.

SATANÁS TOCA NOVAMENTE EM JÓ, QUE NÃO PECA (2.7-10)


Satanás emerge da presença divina e lança suas investidas sobre Jó. A
palavra empregada para descrever a doença de Jó é bastante
complexa. Muitos acreditam que se refira a tumores malignos e, de
fato, essa é a palavra utilizada. Está associada a males como a lepra
ou outras doenças de pele. A noção de tumores faz sentido dentro da
língua hebraica, mas desconhecemos a natureza exata da doença de Jó
— talvez fosse algo inexistente, algo sobrenatural.
A pele de Jó foi atacada, seu corpo foi acometido pelas mais
variadas aflições. E Jó permanecia em lamentação, ainda assentado
sobre as cinzas, como menciona o texto. Nada é dito sobre um novo
período de luto de Jó, o que indica que isso ocorreu pouco tempo após
a perda de seus bens, servos e filhos; não deve ter havido uma grande
lacuna de tempo entre um acontecimento e outro. Jó ainda estava
tentando se recuperar do primeiro toque de Satanás, buscando ar para
respirar, quando a segunda onda veio para afundá-lo. Ele bebe água
novamente. Muitas vezes, o mal não espera que tenhamos um
momento de alívio; às vezes, não há pausa entre um sofrimento e
outro, tudo chega de uma vez e, quando tentamos recuperar o fôlego,
somos arrastados outra vez pelas ondas do diabo.
No entanto, Jó persevera. Ele pega um fragmento de telha e começa
a raspar suas feridas, provavelmente buscando alívio para a coceira, já
que as feridas, além de dolorosas, deviam causar prurido. Jó não
buscava a cura com aquele pedaço de telha, apenas tentava encontrar
algum alívio para sua dor.
Por vezes, conseguimos resistir quando as provações se limitam ao
exterior de nosso corpo. Perdemos dinheiro, bens, mas como dizem:
“Com saúde e paz, o resto a gente corre atrás.” Contudo, Jó havia
perdido sua saúde. Não se pode afirmar que Jó estava em paz — pelo
menos não externamente. O próprio corpo de Jó gemia diante do
toque do diabo, diante do fardo que Satanás impusera sobre ele. No
entanto, Jó persevera. Já não tinha mais diante de si tudo o que
poderia se orgulhar como uma bênção de Deus; Jó tinha apenas sua fé
e um fragmento de telha para aliviar a coceira.
Eu fico constrangido com a fé de Jó. Ele persevera porque em sua
mão não tinha somente um caco de telha: Jó possuía fé. É como se Jó
tivesse mantido a sua fé naquele caco de telha, algo como um lembrete
da sua fé. Ele se coçava e, talvez, se machucasse ainda mais, mas Jó
permanecia curado por dentro, permanecia firme, fiel, mesmo quando
o seu corpo gemia, mesmo quando ele ia mal fisicamente, quando o
seu corpo não correspondia àquilo de que ele precisava.
Pode ser que você seja uma pessoa idosa, já enfrentando aflições
persistentes em seu corpo. Desconheço se as gerações anteriores
também passavam por situações semelhantes ou se a medicina
simplesmente não era tão avançada como nos dias atuais. Ou talvez
sejamos apenas fracos mesmo, mas muitos jovens já enfrentam uma
variedade de doenças corporais, como fibromialgia, hérnia de disco e
outras. Temos doenças em nosso corpo, sentimos dores e, por vezes,
não conseguimos manter nossa fé em meio a essas adversidades. As
dores são intensas, acordamos pela manhã com rigidez, os músculos
doloridos e as articulações rígidas ao longo do dia, o que nos impede
de realizar até mesmo as tarefas mais simples. Além disso, você pode
enfrentar outros problemas de saúde, como infertilidade ou outras
doenças físicas, talvez tenha uma predisposição genética. Às vezes, seu
próprio sistema cerebral não funciona adequadamente, enfrentando
desequilíbrios hormonais ou transtornos depressivos resultantes de um
desarranjo em seu cérebro.
Porém, há um caminho de permanência mesmo quando nosso corpo
geme. Há um caminho de permanência mesmo quando Satanás nos
fere fisicamente. Jó permaneceu, ou perseverou, quando doía na pele,
na carne. Quantos dos nossos irmãos, ao longo da história do mundo,
não permaneceram fiéis, mesmo quando as ameaças sobre eles eram
físicas, mesmo quando uma espada estava em seus pescoços, ao pé da
letra? Quantos mártires modernos não morrem literalmente? Eles não
apenas dizem: “Ah, vou morrer por Jesus”, e expiram. Não, eles
morrem, eles levam um tiro, eles levam facada, eles sangram, perdem
a vida, se ferem pelo evangelho e permanecem fiéis, assim como Jó.
Às vezes é muito fácil quando as coisas dão errado “fora de nós”.
Somos assaltados e dizemos: “Pelo menos saí com vida, é só dinheiro.
Vão-se os anéis, ficam-se os dedos.” Mas e quando se vão os dedos? E
quando sofremos na própria carne, quando a própria pele é ferida? É
fácil falar da fé em um nível metafísico, em um nível etéreo, como
quando perdemos ideias e bens. Mas quando começamos a sofrer em
quem realmente somos? A nossa própria fisicalidade sentindo o dedo e
o toque do diabo. Jó tinha um caco de telha, mas ele também tinha o
Espírito Santo, tinha integridade em Deus. Ele se raspava, se coçava
com um pedaço de barro, mas ele também se alimentava com a fé que
vinha do alto. Ele se alimentava com integridade, com força em Deus
para além de qualquer circunstância.
Jó estava no fundo do poço. Mas eu sempre ouvi dizer que nada
está tão ruim que não possa piorar. E ele perdeu filhos, bens, recursos,
servos, perdeu a saúde e, talvez o pior, não consegue encontrar nem
mesmo consolo dentro de sua própria casa. Surge, nesse momento da
história, um personagem que alguns irão dizer que é mais diabo do
que o próprio diabo. Esse personagem é a esposa de Jó. Ela aparece
muito brevemente no livro. Lemos: “Então, a sua mulher lhe disse:
Ainda conservas a tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre.” A
esposa de Jó perdeu as esperanças no próprio marido.
A situação dele era tão terrível, era algo tão calamitoso, que sua
esposa disse: “Não vale a pena continuar fiel a esse Deus, não.
Amaldiçoa, blasfema, morre, pede pra Deus consumir você. Sai dessa,
não está valendo a pena ser crente.” É triste porque, muitas vezes, de
onde mais esperamos ajuda na dificuldade é de onde vem as mais
ferrenhas oposições. Parece que a mulher de Jó tinha que ser o último
pé em seu pescoço durante aquela dor.
Muitas vezes aguentamos de tudo, a doença, a falência, mas é nos
ambientes que mais esperávamos ter cuidado e apoio que encontramos
mais incentivo ao fracasso. O marido chega em casa cansado do
trabalho, brigou com o chefe, está tudo ruim, e tem que ouvir a esposa
brigar com ele por algum motivo besta qualquer. O seu emocional não
está legal e você precisa do seu marido, mas ele está indisponível. Você
tem o seu grupo de amigos e, quando precisa de ajuda, de consolo, de
cuidado, muitas vezes você tem deles julgamento e juízo. É claro que,
muitas vezes, precisamos realmente de pessoas colocando juízo em
nossa cabeça, de sermos repreendidos. Nem sempre bons amigos, bons
maridos e boas esposas irão estar presentes para consolar; muitas
vezes estarão lá para machucar de forma amorosa e santa, para
mostrar nossos erros e pecados. Mas não era esse o caso de Jó.
Jó era um homem em sofrimento vão, sem motivo, um sofrimento
que não parecia fazer sentido, e ele não encontra nem em sua esposa
alguém que o apoie, que o abrace, que o incentive. Ele encontra uma
esposa que diz que ele tinha que morrer, que Deus devia estar era com
raiva dele, que ele havia feito alguma coisa errada. Para a esposa de
Jó, era melhor morrer do que viver do jeito que ele estava vivendo.
Eu conheço muitas pessoas que aguentariam a perda dos filhos,
resistiriam à falência financeira, perseverariam nas piores doenças,
mas que sucumbiriam no mais profundo da alma ao receberem esse
tipo de falta de apoio em seu lar. Eu acho que precisamos realmente
ter nossas zonas de conforto, nossos portos seguros, pessoas em quem
projetamos validação, seja a esposa, o marido, algum grupo íntimo de
amigos, pessoas cujas opiniões nos tocam de forma especial. Abrimos
o coração de forma um pouco mais intensa para algumas pessoas, mas
precisamos entender que até mesmo os nossos aliados podem se tornar
aliados do diabo.
O mesmo Pedro, que em um versículo diz que Jesus é o Cristo, o
filho do Deus vivo, era o Pedro que é chamado de Satanás e que é
repreendido pelo próprio Deus por emprestar a sua boca ao diabo. Jó
entendeu que, por mais que ele tivesse o coração aberto de forma
especial para sua esposa, ele não poderia ter o coração mais aberto à
esposa do que a Deus. Vemos Jesus dizer que “aquele que não odiar
sua família por amor de mim não é digno de mim; aquele que ama a
sua família mais do que ama a Deus não é digno de Deus.” E vemos
Jesus falar que, muitas vezes, Deus irá colocar pai contra filho, filho
contra mãe, marido contra esposa; que muitas vezes o preço da fé virá
com fogo e que os inimigos do homem serão os de sua própria casa.
No caso de Jó, sua esposa se levanta contra ele e Jó ama mais a Deus
do que a sua esposa. Jó prefere ser fiel a Deus do que assentir com
aquilo que sua esposa diz. Porque quando nossa esposa ou nosso
marido insulta a nossa fé, devemos preferir a fé ao casamento.
Todos desejamos e consideramos justo restaurar os
relacionamentos. No desfecho do livro de Jó, é possível inferir que seu
casamento tenha sido plenamente restabelecido, visto que ele volta a
ter filhos com sua esposa. No entanto, a questão que se coloca é que,
no momento em que alguém de sua própria casa (sua esposa) o incita
contra Deus, Jó persevera e não se alia àquele que o incita, recusando
a provocação.
Há, nesse contexto, um contraste intenso entre os céus e a terra.
Nos céus, Deus observa Jó e o declara fiel e íntegro. Na terra, sua
esposa proclama que não vale a pena ser íntegro, incitando Jó a
morrer, desvalorizando sua vida. Isso demonstra que, deste lado da
eternidade, muitas vezes o que vemos não corresponde à nossa
realidade espiritual. Parece que aqui, na terra, tudo está indo mal,
enquanto, por vezes, tudo está indo bem nos céus. Às vezes, as
circunstâncias não se encaixam aqui, mas é porque Deus nos concede
honras e glórias lá. Portanto, não devemos nos deter naquilo que é
visível, pois a aparência engana e é passageira. Pelo contrário,
devemos fixar nosso olhar naquilo que é invisível, pois é o que
perdura. E, com frequência, os conselhos que ouvimos neste mundo
são completamente opostos aos que ouviríamos nos céus.
Mais adiante no livro, Deus ainda se dirigirá a Jó, mas, por ora, Jó
permanece inacessível às palavras divinas. Em meio ao sofrimento e à
provação, ele só recebe conselhos inúteis e palavras que não lhe
trazem auxílio. Se ao menos Jó pudesse escutar os céus, então ele
saberia que havia, em certo sentido, um Cristo, um Deus a seu favor.
Embora não possamos vislumbrar diariamente a aprovação de Deus,
podemos crer nela. O mundo ao nosso redor pode argumentar que
crer não vale a pena, e a cultura secular pode tentar persuadir-nos de
que Deus nos abandonou. No entanto, se, por meio da fé, voltarmos
nossos olhos para aquilo que recebemos em Cristo Jesus, teremos a
certeza de que os julgamentos do mundo não importam, mas, sim, a
justificação do Deus vivo.
Essa é uma dádiva que possuímos e que Jó não tinha: a revelação.
Pela revelação de Cristo Jesus, sabemos que, se estamos em Cristo,
não há mais nenhuma condenação para nós. Pela revelação das
Escrituras, sabemos que, se estamos em Cristo, Deus está a nosso
favor e nos guarda.
Nós temos ainda um outro nível de revelação que Jó não possuía.
Nós temos acesso ao livro de Jó e, se somos colocados na mesma
situação que ele, podemos lê-lo para lembrar. É por isso que Tiago
escreve: “Eis que consideramos felizes os que foram perseverantes.
Vocês ouviram a respeito da paciência de Jó e sabem como o Senhor
fez com que tudo acabasse bem” (Tg 5.11). Nós temos não só o livro
de Jó, mas toda a Palavra revelada de Deus; é como se pudéssemos ler
as reuniões dos céus e saber que há um Deus do nosso lado, mesmo
que ninguém mais esteja — não importa que seja somente nós contra
o mundo, se esse for o preço para permanecermos fiéis. Nós sabemos
do conselho celeste, sabemos que há um Deus que olha para nós e diz:
“Meu”, que intercede, que cuida; sabemos que há um Espírito que
geme em nosso lugar com gemidos inexprimíveis, porque nem orar
direito sabemos.
Dentre todas as revelações da Palavra de Deus, há uma que se
destaca de forma singular. Conhecemos a revelação do Apocalipse e
sabemos que Satanás será derrotado. Haverá um novo céu, uma nova
terra, e as lágrimas serão enxutas pelo toque divino. Não preciso dar
ouvidos àqueles que desejam que eu desista; vale a pena permanecer
íntegro. É uma loucura, um delírio, afirmar que o homem deve
abandonar a fé, que não vale a pena ser crente quando as coisas dão
errado. Quantos relatos não existem de cristãos que encaram a morte
com firmeza, contemplando os céus com confiança? Quantos relatos
temos de mártires antigos e contemporâneos que, mesmo diante da
morte, louvam a Deus e partem entoando hinos de adoração?
Quantos relatos temos de judeus, durante o período sombrio de
Auschwitz, sob o regime de Hitler, encaminhando-se para as câmaras
de gás enquanto oravam a Jeová?
Como podemos permanecer fiéis diante de tais circunstâncias? A
resposta está em compreender que tanto o bem quanto o mal, nesse
contexto não como juízos morais, mas como situações favoráveis ou
adversas, provêm da mesma mão de Deus. Se recebemos o bem de
Deus, por que não aceitar também o mal? Ele nos coloca tanto na
bonança quanto na dificuldade, e precisamos exercer nossa fé assim
como Paulo fez, quando declarou em Filipenses 4.12: “Sei o que é
passar necessidade e sei também o que é ter em abundância”.
Jó não pecou com seus lábios porque ele sabia que Deus estava com
ele. Jó não pecou, mesmo em circunstâncias ruins, porque sabia que
ele era mais do que suas circunstâncias e que Deus agia de uma forma
muito maior do que aquelas circunstâncias. Satanás, assim, perde
novamente e Deus continua honrado, pois Jó havia entendido que
tanto as boas quanto as más circunstâncias vinham das mãos de Deus.
Ele não negaria o Deus que sempre o colocou em boas circunstâncias
nos momentos em que, por causa de sua vontade soberana, o
colocasse em más circunstâncias.
Se nós temos fé apenas nas circunstâncias quando tudo está bem,
nós temos fé nas circunstâncias. Se nós louvamos a Deus quando ele
nos dá coisas boas e rejeitamos em outros momentos, então, nós
louvamos as coisas boas, não a Deus. A única forma de vivermos uma
fé que é genuína e real é se nós vivermos uma fé no Deus que não
muda, mesmo quando todas as coisas estão se transformando.
Essa é uma lição que precisamos manter em nossas mentes. Quando
as coisas ficarem difíceis, quando as contas estiverem apertadas,
quando a saúde não estiver boa, não devemos negar o Deus que nos
colocou, outrora, na prosperidade e na abundância. Ele é fiel e nos dá
tudo. Louvado seja o nome do Senhor.
E, mesmo após essas provações e da provocação de sua esposa, Jó
continuou sem pecar com seus lábios, ele permanece firme. Então, eis
que na história surgem mais três personagens: são três amigos de Jó
que vieram de longe para consolá-lo na dificuldade.

OS AMIGOS LAMENTAM (2.11-13)


As circunstâncias de Jó aparentemente começam a mudar. Amigos
vêm consolá-lo de lugares diferentes e distantes. O pobjetivo era
condoerem-se dele e consolá-lo. Eles tinham boas intenções. “Nosso
amigo está sofrendo, vamos até ele a fim de sofrermos com ele e
consolá-lo.” Não é disso que muitas vezes precisamos nas situações
mais terríveis de sofrimento e dificuldade, amigos para nos consolar e
chorar conosco? Aparentemente, Jó irá receber esse conforto.
As intenções desses homens pareciam as melhores possíveis e, até o
fim do capítulo 2, eles agem com bons atos. Eles encontram Jó
fisicamente tão deformado que, de longe, eles não conseguiram
reconhecê-lo. Alguns teólogos cogitam que as doenças que assolavam
Jó poderiam incluir algum tipo de elefantíase ou de deformação física
muito intensa, mas talvez seja uma conjectura muito exagerada.
Porém, Jó estava, no mínimo, desfigurado e irreconhecível a certa
distância, ao ponto de os amigos olharem para ele, gritarem e
chorarem em alta voz, e seguiram o mesmo ritual de Jó em seu
sofrimento: rasgaram o manto e lançaram pó ao ar sobre as próprias
cabeças. E o texto diz que eles passaram uma semana, sete dias e sete
noites, sentados, chorando, sem dizer uma palavra, porque a dor era
enorme. É muito interessante a diferença de cenário entre a terra e os
céus. Os amigos lamentavam nas cinzas, enquanto Deus louvava
aquele homem. O sofrimento faz com que só consigamos ver esse lado
da eternidade e esqueçamos aquilo que há no mundo espiritual.
Em determinados momentos de minha vida pastoral, fui convocado
a ir a ambientes de profunda aflição, nos quais me vi sem palavras.
Certa vez, o pai de um colega veio a falecer. Ele me telefonou às cinco
horas da manhã, chorando, implorando para que eu fosse até sua
residência. Sem saber o que me aguardava, entrei em sua casa e fui
recebido pela mãe, que me comunicou que seu esposo havia partido.
Sim, era isso: o pai desse meu amigo havia falecido. Ele me olhou,
envolveu-me em um abraço e chorou em meu ombro por
aproximadamente 45 minutos, enquanto ninguém dizia uma palavra.
O que poderia eu dizer? Ele chorou, soluçou e lamentou durante 45
longos minutos, mas pareceu uma eternidade.
Na passagem do livro de Jó, seus amigos permaneceram em silêncio
por sete dias. Sete dias de absoluto silêncio, tamanho era o peso
daquela dor. Sete dias de pranto e gemidos, sete dias sentados no chão,
talvez sem se alimentarem, talvez recebendo algo para aplacar a fome
naquela situação de luto extremo pela perda do amigo.
Eles compreendem a dor de Jó e sofrem juntamente com ele. No
entanto, o que sabemos dessa história é que os amigos de Jó não se
mostrarão como personagens benevolentes; eles assumirão o papel de
antagonistas e se voltarão contra Jó. Às vezes, é justamente daqueles
de quem mais esperamos ajuda que surgem os maiores
desapontamentos, mas precisamos manter-nos firmes.
É possível que, durante esse período de sete dias, Deus tenha
fortalecido um pouco as esperanças de Jó. No próximo capítulo,
porém, descobriremos que ele não estava tão esperançoso assim. Após
sete dias, ele continua amaldiçoando o dia de seu nascimento.
Contudo, mesmo em meio a circunstâncias confusas e a um turbilhão
de emoções — amigos que choram, esposa que ofende e blasfema —
temos um Jó que, em última instância, vai além de suas circunstâncias
e se mostra maior do que qualquer pessoa que o cerca. Temos um Jó
que persevera, capaz de tudo naquele que o fortalece. Sua força
provinha de Deus, permitindo que Jó fosse fiel tanto quando era o
homem mais rico do Oriente como quando se tornou o homem mais
desolado da região.
Durante o sofrimento, é sempre muito diferente aquilo que Deus vê
e aquilo que o homem vê. Enquanto vemos uma UTI, Deus vê uma fé
sendo renovada; enquanto vemos o sofrimento, Deus vê a
transformação da alma recebendo uma dose especial de perseverança
— quando essa alma volta da dor mais crente, volta do sofrimento
mais fiel, quando Deus leva tudo aquilo a que essa alma se apegou
nessa vida para mostrar que a única coisa a que vale a pena se apegar
nessa vida é ele, porque ele, no fim das contas, é o maior presente que
ele tem para dar.

CONCLUSÃO
Será que possuímos a capacidade de ter a mesma fé que Jó? Podemos
nos inspirar na paciência de Jó? E se o mal nos atingir? E se Deus nos
colocar em circunstâncias difíceis? E se Satanás tocar em nossa carne?
E se as pessoas ao nosso redor se levantarem contra nós quando
estivermos mais vulneráveis? Continuaremos, sim, a louvar o nome de
Deus, permaneceremos firmes em nossa fé. Sim, em meio ao luto. Sim,
no sofrimento. Sim, nos mais profundos lamentos. Mas seremos firmes
em Deus, crentes no Senhor. Jó superou suas circunstâncias. Nós
também podemos superar, pois somos muito mais do que elas,
precisamente porque adoramos o Cristo que venceu as circunstâncias
por nós, adoramos o Cristo que encarnou e foi tentado muito mais do
que Jó — o próprio Satanás sentou-se com Cristo no deserto para
impedi-lo de ir para a cruz, e até as forças celestiais se voltaram contra
Cristo naquela cruz de sofrimento.
Jó, o justo que sofreu, experimentou muito pouco em comparação
com o Cristo que nos salva. E, mesmo diante das circunstâncias que Jó
enfrentou, Jesus venceu circunstâncias muito mais severas por nós.
Jesus também foi tentado a abandonar Deus. Jó foi tentado pela
esposa e pelos amigos; Jesus foi tentado pelo próprio Satanás no
deserto. Jesus também sofreu em seu corpo e venceu a “pele por pele”.
“O homem dá tudo pela própria vida”, disse Satanás ao Senhor antes
de, pela segunda vez, tocar na vida de Jó. Mas Jesus deu tudo por
nossa vida, entregou sua própria vida para que pudéssemos encontrar
redenção.
O Jesus que permaneceu firme sofreu imensamente. Ele suportou a
oposição de todos, não encontrou honra nem mesmo em sua própria
terra, nem mesmo em sua própria casa — seus próprios irmãos e mãe
não acreditaram nele a princípio, somente o fazendo após sua
crucificação. Ele sofreu em seu corpo, teve seu corpo partido por nós.
Mas, diante de tudo isso, Jesus manteve sua integridade, mesmo
quando estava na cruz e diziam que ele não tinha poder para se
libertar. Seus próprios apóstolos o abandonaram e o negaram.
Enquanto se dirigia ao julgamento, à crucificação, nenhum deles
testemunhou a seu favor. Quando confrontado, Pedro negou Jesus três
vezes. Os que eram seus não estavam ao seu lado.
Se, na história de Jó, vemos Satanás perder e Deus continuar a ser
honrado diante da fidelidade de seu servo, o diabo sofreu uma derrota
ainda mais humilhante e Deus foi glorificado de forma mais sublime
diante da fidelidade e obediência perfeita de seu Filho. Pois Cristo é a
nossa justiça, ele é o íntegro que Jó jamais poderia ser. Ele é o justo
perfeito e santo que Jó apenas vislumbrava, e é por meio da obra
perfeita desse Cristo que podemos participar da integridade de Jó.
Não é por causa de nossas obras, não é por causa de nossas
capacidades, mas porque Cristo foi muito maior do que Jó, porque
Cristo é muito maior do que nós, e é por causa dele que podemos
derrotar nosso acusador. Quando Deus olha para nós, ele proclama
coisas muito maiores a nosso respeito do que as que ele disse a
Satanás sobre Jó ao elogiá-lo, pois ele não baseia esses elogios em
nossa fidelidade, mas, sim, na fidelidade de seu Filho, Cristo Jesus,
nosso Senhor.
Jesus é nossa esperança. Foi ele quem venceu as circunstâncias. Ele é
aquele que foi íntegro e fiel. E, crendo nesse Jesus — mesmo quando
olhamos para a história de Jó e pensamos que não somos suficientes,
que não podemos ser como ele — podemos ter fé naquele que é muito
maior do que Jó e naquele em quem podemos permanecer
independentemente de nossas circunstâncias.
Podemos ter constância porque Jesus venceu as circunstâncias por
nós. Ele suportou sofrimentos muito maiores do que os de Jó. Jesus foi
tentado por Satanás de forma muito mais profunda do que Jó; sofreu
em seu corpo muito mais do que Jó sofreu. Jesus foi pendurado em
uma cruz, ferido, humilhado, teve seu corpo partido. Ele carregou
todos os pecados da humanidade sobre si, experimentou a ira de Deus
em sua própria carne. O que é o sofrimento de Jó (e nossos próprios
sofrimentos, às vezes semelhantes aos dele) em comparação com o
sofrimento de Cristo?
Permaneçamos firmes em Jesus, e estaremos juntos por toda a
eternidade, recebendo o consolo que somente Deus pode nos dar por
meio de nosso servo sofredor.
R. C. S
NOW, THAT’S A GOOD QUESTION[Nota 1]
Notas do Capítulo

Nota 1 - Tyndale House Publishers, 1996, p. 292. [Voltar]


morte já lhe pareceu uma solução? Para o jovem Werther,
A parecia. Escrito em 1774, o livro Os sofrimentos do jovem
Werther foi baseado na vida do próprio autor, Johann Wolfgang
Goethe, misturado com a história de um dos seus amigos próximos. É
o relato de uma desilusão amorosa que acaba em suicídio.
Werther é acometido de uma paixão arrebatadora por Charlotte,
uma moça comprometida. O amor não correspondido o deixa cada
vez mais desesperado, ainda mais por conseguir se aproximar de
Charlotte e de seu noivo, Albert. Em uma das conversas com Albert,
eles discutem sobre suicídio. Albert diz que se matar era uma
covardia, uma fuga. Werther discorda. Ele narra a conversa em uma
de suas cartas:

“A natureza humana”, continuei, “tem os seus limites: ela pode


suportar até um certo ponto a alegria, a dor, o sofrimento e
sucumbe caso ele seja ultrapassado. A questão aqui não é,
portanto, se alguém é fraco ou forte, mas sim se é capaz de
aguentar a medida do seu sofrimento, seja moral, seja fisicamente.
Acho tão espantoso chamar de covarde um homem que se suicida
como seria impertinente chamar de covarde alguém que está
morrendo de uma febre maligna”.[Nota 2]

Nesse momento da narrativa, Werther ainda não estava pensando


em morrer. Mas, com o tempo, a culpa e a desilusão o consomem. Ele
não conseguia viver com ela, mas também não poderia viver sem ela.
Em uma de suas últimas cartas, depois de contemplar a aliança de
casamento de seu amor proibido, ele escreve em desespero: “Por
favor... Veja, estou acabado, não vou aguentar mais tempo!”,[Nota 3] e
termina dizendo: “Meu Deus! Olhe para a minha miséria e dê um fim
nela!”.[Nota 4]
Quando essa obra foi publicada, ela tornou-se um best-seller. Ainda
hoje faz parte das cem obras mais lidas da humanidade. E o principal
efeito de sua publicação foi uma onda de suicídios. Pastores e bispos
escreveram cartas contra o livro na época. Em Milão, o arcebispo
mandou comprar todos os exemplares da obra e queimou cada um
deles em praça pública. Desde a metade do século 20, nós chamamos
na psicologia de Efeito Werther a onda de suicídios copiados que
acompanha a publicidade exagerada dada a figuras famosas que tiram
a própria vida.
Novamente: em algum momento de sua vida, você já pensou que a
morte seria uma solução? Não é um tipo de assunto que conversamos
no jantar com a família — pelo menos não costuma ser. Mas, para
muitos, morrer, em algum momento da vida, pareceu a resposta para
os problemas.
Eu não sei você, mas eu já tive de lidar com a vontade de morrer de
forma um pouco mais séria em pelo menos três períodos de minha
vida. Havia algo em comum nesses momentos: eu pensava que era
melhor morrer do que continuar vivendo daquele jeito. Algum medo,
ideia, temor ou angústia toma conta da nossa mente de tal forma que
parar de existir parece uma opção melhor do que continuarmos com
aquela vida.
Morrer, para muitos, se torna uma obsessão; para alguns, o
sentimento é tão profundo que os leva até mesmo a tentar encarar esse
medo diretamente com as próprias mãos e findar sua existência. E,
muitas vezes, o nosso cérebro, o nosso coração, nossa parte material,
nos leva a fazer cálculos que não gostaríamos, de uma forma muito
automática. Nós vivemos o tempo todo fazendo cálculos não
planejados. Calculamos se o casamento está valendo a pena, mesmo
quando não temos nenhuma intenção de nos divorciar. Calculamos se
aquele emprego é realmente o que desejamos, mesmo quando estamos
felizes no trabalho. Às vezes, nem fazemos isso com intenção alguma,
mas é o nosso coração, o nosso ser, que passa a projetar ideias sobre
questões que nunca imaginamos, e começamos a fazer cálculos para os
quais nem mesmo queremos a resposta.
Algumas vezes lutamos contra ideias de morte, mas que não
necessariamente são suicidas, no sentido pleno do termo. Às vezes,
martelamos a ideia de não viver mais, um desgosto com a própria
existência ao ponto de pensarmos: “Eu não vou me matar, mas se
Deus me levasse, seria melhor.” As duas ideias, a suicida e a do
desgosto com a existência, possuem características em comum. Existe
medo com relação a algum tipo de comportamento que possamos vir
a assumir, algo como “se for para me desviar, prefiro que Deus me
leve”. Às vezes, as frustrações da vida fazem com que a existência
pareça inócua e acabamos nos sentindo tentados à morte.
“Eu prefiro morrer a viver desse jeito.” Muitos de nós podemos
vivenciar esse sentimento, em maior ou em menor grau. Alguns podem
pensar acerca da morte como algo abstrato, como desejar que Deus os
leve, que a vida acabe logo; outros podem chegar ao ponto de
precisarem de algum tipo de intervenção, sejam medicamentos ou
tratamentos psicológicos e psiquiátricos. Quando o indivíduo começa
a considerar os meios da própria morte, planejar o fim da própria
existência, é preciso buscar tratamentos multidisciplinares, pois o
problema pode ter muitas origens; o ideal é sempre pedir ajuda. E Jó,
tendo passado por tantos sofrimentos, enfrentou essa batalha acerca
da própria existência.
Lendo os capítulos 1 e 2 do livro de Jó, vemos um homem em
derrocada externa. Ele perde dez filhos, perde seus servos, perde sua
fortuna, perde a sua saúde, perde a paz do seu relacionamento. Jó,
diante dos olhos humanos, está no fundo do poço.
Agora, ao lermos o capítulo 3, encontramos um ponto de virada no
testemunho desse homem de Deus. Nos capítulos anteriores, vimos
um homem fiel, aprovado por Deus, enfrentando com coragem as
ciladas de Satanás. Ele fala com a sua boca coisas santas, não atribui
culpa a Deus e persevera diante do sofrimento. Mas aqui, no capítulo
3, apesar de Jó continuar sendo fiel e crente, ele começa, pela primeira
vez, a verbalizar o seu sofrimento com palavras muito sofridas.
Jó, assim como muitos de nós, pensa em morrer e, assim como
muitos de nós, ele é um homem fiel, santo, justo, mas que acha que a
própria vida não vale mais a pena. Diante do sofrimento, da dor e da
catástrofe, nós vemos um homem de Deus falando bobagens acerca de
sua existência terrena. Jó começa a fraquejar, a falhar; como um
crente, como um santo, ele começa a dizer coisas que representam a
fraqueza — o que é algo natural do ser humano em momentos de
extrema tensão.
O lamento de Jó é um lamento muito profundo. E é intrigante
perceber como homens santos choram, como homens santos pensam
acerca do fim da própria existência. O livro de Jó é um momento raro,
que nós encontramos também em alguns profetas e nos Salmos, onde
os cristãos falam da própria miséria. É triste que vivamos um tipo de
cristianismo que os cristãos miseráveis não tenham o que cantar.
Nossas músicas são sempre positivas, alegres, é vitória, é crescimento,
é para frente, transbordarei, prosperarei, tudo vai dar certo, teus
celeiros fartamente se encherão. Deus o criou para reinar, para
triunfar e tudo é muito positivo, está certo. Mas o que cantamos na
miséria? O que Jó cantaria na igreja? O que Jó oraria? A ideia
comumente difundida é que você não pode ter pensamentos negativos,
mas sempre pensar positivamente. “Não pense no diabo que ele
aparece”, diziam as velhinhas.
E aqui, nessa passagem do livro, vemos um Jó que verbaliza coisas
que, às vezes, você não conta nem para o seu pastor, que você esconde
do seu psicólogo e não revela nem para a sua esposa. Jó abre a sua
boca para revelar o que há de mais vergonhoso, de mais difícil, de
mais doloroso em seu interior, enquanto passa por aquele período de
caos. Quando olhamos para os dois primeiros capítulos de Jó, nos
parece que ele é um ser impassível, que tem coração frio, que não tem
sentimento; Jó é uma muralha, é um ser poderoso. O mal vem a seu
encontro e Jó suporta com os dentes cerrados. Mas, na verdade,
vemos um homem que não blasfema, que permanece fiel, que não usa
os lábios contra Deus, mas ele é um homem que, em seu coração,
estava imerso no mais profundo e doloroso sofrimento.
Nos dez primeiros versículos do capítulo 3, Jó começa a falar sobre
nascer, que a ideia de nascer e ter que enfrentar o sofrimento é uma
coisa horrível. Então, Jó amaldiçoa o dia do seu nascimento. Ele
passa, nesse momento, a filosofar. Parece que a dor produz bons
filósofos, que a dor cria bons poetas; parece que a arte flui da dor e Jó
fala em termos poéticos aqui. No hebraico, essa passagem é quase
uma canção, onde Jó vai dizer que nascer é uma coisa ruim.

NASCER É RUIM (3.1-10)


Jó termina o verso 10 deixando claro o motivo da sua maldição: “Eu
nasci. E ter nascido foi o que me trouxe ao sofrimento.” Jó amaldiçoa
o dia em que nasceu. Enquanto, até esse ponto, havíamos lido apenas
uma ou duas frases de Jó, agora temos um discurso. Um discurso
poético, uma linguagem bonita de se ler, em certo sentido — há algo
um tanto quanto musical no modo como ele fala. O modo como ele se
expressa evoca algo do profeta Jeremias e dos Salmos, principalmente
os salmos de lamento. Jó não parece estar falando com Deus aqui; ele
não se refere ao próprio Deus em nenhum momento. Jó, talvez, nem
esteja falando com seus amigos diretamente, pois eles estavam em
silêncio em volta dele. Ele se refere ao dia, ele fala com a noite, com as
estrelas, com o dia do seu nascimento; Jó fala com as coisas.
É interessante o modo como o sofrimento faz com que Jó
simplesmente precise expressar-se mais do que falar com alguém. E ele
fala com a própria existência, declara algo sobre a realidade, porque o
problema de Jó não era com Deus, nem com os seus amigos, mas com
as circunstâncias. E, nesse caso em específico, a circunstância sobre
qual ele fala é o dia em que havia nascido.
Geralmente, o dia do nascimento de alguém é um dia a ser
celebrado. Você não olha para alguém no dia do aniversário e diz
“meus sentimentos”. Você não olha para alguém no dia do aniversário
e diz “sinto muito, meus pêsames”. O dia do aniversário vem com
parabéns, com votos de felicidade, com bênção. Desejamos ao outro a
bênção de Deus, prosperidade, saúde, paz, mais dias de aniversário
para comemorar. Nós abençoamos o dia do nascimento.
Jó faz um aniversário ao contrário. Ele quer que o dia de seu
nascimento seja a celebração do luto, como um dia de morte. Quando
perdemos algum ente querido, pai, mãe, filhos, o dia do falecimento
também é lembrado. Mas não lembrado como um dia feliz. É um dia
em que se rememora o sofrimento e a dor. E Jó queria transformar o
seu dia de nascimento, um dia de celebração, em um dia de luto, de
tristeza, de dor.
Datas marcam alguma coisa, e dias de nascimento são lembrados
como dias de bênção. E Jó quer converter o dia de seu aniversário em
um dia de tormento e de tristeza. Jó lida, aqui, com o costume de as
pessoas demonstrarem publicamente louvor pelo nascimento das
crianças. Ele fala que aquele dia a festa deveria ter sido convertida em
luto, que naquela noite ninguém glorificaria o nome de Deus. Ele
provavelmente se refere ao fato de ter nascido durante o dia, e o
costume era que, quando o filho nascia, à noite, a comunidade ia à
casa do recém-nascido, tanto para deixar presentes, quanto para
louvar a Deus por aquele nascimento. Jó deseja que aquele ambiente
de riso, de canto, de festa tivesse se tornado em luto, em silêncio. Por
que luto? Por que silêncio? Porque Jô havia nascido e isso deveria ser
lamentável.
Ser infértil naquele tempo era algo muito triste. Muitos
interpretavam que não ter filhos era sinal de maldição de Deus. Ter
filhos era bênção, um presente do Senhor. E Jó se entristece porque sua
mãe não teve o ventre fechado; ele ora para que sua mãe fosse estéril.
Jó deseja que ele nunca tivesse visto a luz. Seu desejo não era
necessariamente morrer naquele momento, mas era nunca ter nascido.
Diante de todo sofrimento que ele passou, diante de toda dor, valia a
pena existir? Ele diz, no final da passagem, que toda essa maldição ao
seu dia se dá porque Deus não escondeu de seus olhos o sofrimento.
Ele nasceu para sofrer, para sentir dor.
Você já passou por uma experiência parecida com a de Jó, de
desejar a não existência para que a dor vá embora? Pessoas que
sofrem de dor crônica muitas vezes passam por esse tipo de
experiência durante as crises. Não são poucos os relatos de suicídio de
pessoas que enfrentavam dor crônica. Muitas vezes, o excesso de
sofrimento físico acarreta tanta perturbação mental que a pessoa
passa a enfrentar quadros depressivos, crônicos inclusive, e cada vez
mais patológicos. Jó não estava aguentando o sofrimento que estava
diante de seus olhos. Mas tenha em mente sempre: Jó era um homem
santo, que não está blasfemando contra Deus, mas está demonstrando
profundo e absoluto sofrimento.
Mesmo homens de Deus, às vezes, podem vir a pensar se a própria
vida vale a pena. Paulo falou que enfrentou tribulações tão grandes
que descria da própria vida. A impressão que dá é a de que Paulo
parecia dizer: “Rapaz, o sofrimento era tão intenso que, às vezes, eu
pensava até besteira.” Jó, um homem justo e santo, diante de um
sofrimento tão intenso questiona até a própria existência do mundo.
Costumamos pensar que, se não estamos bem, se não estamos
felizes, se estamos em dor gemendo até os ossos, era melhor nem
existir, porque viver só vale a pena se for vivido com alegria. Não!
Viver vale a pena ainda que doa, ainda que sintamos vontade de
morrer. Viver vale a pena mesmo quando olhamos para trás e
achamos que a nossa existência significa muito pouco. Jó encontra
uma dor tão lacerante em sua alma e em seu corpo que ele questiona
se não era melhor não ter nascido. Mas, ainda assim, ele permanece
como exemplo de fidelidade e perseverança.
Temos a tendência em achar que a salvação resolve todos os nossos
problemas internos. Acreditamos que a salvação é uma promessa de
paz psicológica constante, de que não vamos enfrentar desafios ou
loucuras interiores, de que não vamos enfrentar perturbações ou as
mais variadas dificuldades. Certa vez, uma pessoa da igreja, que estava
em um processo de membresia, ligou-me, dizendo que precisava
conversar comigo: ela não poderia se tornar membro da igreja. “Eu
queria confessar uma coisa”, disse-me ela. Na hora imaginei que se
tratava de um adultério, de uma segunda família, um aborto, uso de
drogas... tráfico de mulheres, até. Eu estava nervoso pensando: “Meu
Deus, o que será que essa pessoa fez?” Então, ela me diz: “Pastor, eu
tenho um problema com depressão, eu tomo remédio controlado. Eu
não sei se a igreja vai me aceitar.” Eu pensei comigo mesmo: “Graças a
Deus que é depressão!”
Quantos grandes homens, ao longo da história do mundo, fiéis,
crentes, cujos sermões nos impactam até hoje, não foram homens que,
por muito tempo, pensaram se a própria vida valia a pena? Talvez
você frequente a igreja e talvez você acredite piamente que a sua fé
está abalada porque você não para de sentir dor, porque você não
para de questionar se realmente vale a pena viver do jeito que você
está vivendo, se a tristeza, a depressão, a angústia ou o luto tão
duradouros — e muitas vezes tão perfurantes — não fazem com que o
seu relacionamento com Deus esteja, de fato, abalado. Jó era um
paradigma de perseverança e, ainda assim, descreu da própria
existência. Homens e mulheres crentes podem fraquejar na fé. Você
pode fraquejar na fé, pode questionar sobre a própria vida em fé.
Precisamos entender que a salvação não é promessa de saúde
constante em todas as áreas, seja saúde física ou psicológica. Vemos
aqui um Jó claramente perturbado em suas próprias ideias sobre sua
vida, um Jó sofrendo, que não está mais raciocinando bem. Temos que
À
ser muito pacientes com homens de Deus que sofrem. Às vezes, quem
sofre joga palavras ao vento, e somos muito rápidos em tentar corrigir
essas pessoas. “Ah, não sei se Deus me ama, não sei se está dando
tudo certo.” A pessoa começa a falar umas bobagens nas quais você
sabe que ela não acredita. Mas, muitas vezes, temos o instinto em dar
a resposta teológica correta, quando, na verdade, o que temos que
fazer é ter a compaixão certa, é chorar com quem chora, é dar um
ombro e um abraço, pois aquela pessoa precisa, no momento, de um
pouco mais de compaixão para que pare de falar e pensar bobagens,
não de mais teologia.
Não deixe Satanás convencer você de que os seus sentimentos, a sua
experiência e as suas sensações de fé é que definem a qualidade do seu
relacionamento com Deus. Você pode estar na igreja feliz e exultante
e, ainda assim, caminhando com um sorriso largo para o inferno. Por
outro lado, você pode estar sofrendo, chorando, gemendo todo dia,
pode estar descrendo da própria vida, pensando em morrer, mas,
ainda assim, permanece firme em um redentor pleno e perfeito.
A promessa contida em Apocalipse 21 é a de que Cristo limpará de
nossos olhos toda lágrima. Note que a promessa não é que nós
entraremos pela porta dos céus necessariamente felizes e sorridentes;
talvez entremos chorando e é lá que receberemos a nossa cura plena e
total. Deus pode aliviar nossa dor crônica aqui, pode curar o nosso
câncer nessa vida, pode nos livrar da depressão ainda nessa existência,
mas, ainda que isso não aconteça, não importa; depois do rio dessa
vida, quando atravessarmos o mar da morte, há uma vida que vai nos
limpar de tudo, Deus vai limpar dos seus olhos as lágrimas. Não é por
chegar lá chorando, não é por estar triste, fraco, com dor ou por
descrer da própria vida que você vai entrar no céu pela porta dos
fundos. A comunidade de remidos é uma comunidade de chorosos, de
fracos de espírito. Bem-aventurados porque choram, porque há um
consolo para além dessa vida. Jó é o nosso exemplo de perseverança e,
ainda assim, ele chora e descrê da própria existência.
No meio das batalhas da vida, no meio do mar tempestuoso dos
sofrimentos, o que nos mantém firmes é a qualidade daquele que
sofreu por nós, a qualidade daquele que morreu por nós. E mesmo no
mais profundo desespero, descrendo da própria vida, devemos agarrar
esse Jesus e não o soltar por nada.
Nascer é desafiador. Vir ao mundo é entrar em uma batalha de
sofrimento que, muitas vezes, nos acovarda, nos faz perder as
estribeiras, nos faz tirar os olhos da eternidade. Aqui, diferente do que
vimos nos capítulos 1 e 2, temos um homem com palavras de
angústia, mas que continuam sendo palavras de fé. Devemos nos
lembrar de que existem lamentações nas Escrituras: o profeta Jeremias
escreveu um livro intitulado Lamentações; Habacuque escreveu
enquanto profeta uma carta que diz: “Até quando, Senhor.” Existem
relatos bíblicos de dor e sofrimento dirigidos a Deus.
Deus sabe que está doendo. Deus sabe qual é o teu desespero. O
Espírito sente contigo o que está doendo, então você pode dizer a ele.
Você pode esconder o sofrimento de seu marido, pode evitar falar com
seus filhos, você pode até explicar mal explicado para o terapeuta.
Mas Deus ouve, vê e sabe. Talvez Deus o tenha colocado em uma
situação adversa, mas você pode dizer, assim como Jó: “Senhor, está
doendo”, “Deus, está demais”, “Senhor, eu não estou aguentando”,
“Senhor, tem misericórdia de mim”, “Deus, eu olho para o dia e nem
sei se vale a pena viver”. Conte a Deus. Jó abriu seu coração.
Viver é difícil. Viver dói. Vir para esse mundo não é vir para um
grande passeio de férias. Vir a esse mundo é entrar em uma batalha
muito grande. Sofrer é normal. Pedro diz, em 1Pedro 1.6: “[...] no
presente, por breve tempo, se necessário, [serão] contristados por
várias provações.” Nascer é se alistar em uma guerra que, às vezes, é
muito intensa. Ao nascer, não nos inscrevemos em um lindo cruzeiro
de férias; estamos entrando em uma guerra pela nossa assistência, em
um mundo de pecado, em uma batalha espiritual, em uma luta pela
nossa própria alma. Entrar nessa vida é realmente desafiador; temos
que estar preparados para sofrer.
Vir para a igreja com saúde, voltar para casa e ter comida, isso é um
acidente. O normal é a catacumba, o normal é sermos crucificados
pelo Império Romano, o normal é a doença, a dor, o sofrimento e a
morte. Felicidade, casa, teto, água, comida? Isso é graça, isso é fora do
normal. Jó nasceu nu e iria embora nu, como ele mesmo afirmou. Esse
estado intermediário é só uma almofada de ar diante da loucura que é
essa existência.
Ora, mas se a vida é assim, vale a pena viver? Se a vida é cheia de
dores e sofrimentos, vale a pena, então, existir? Sim, vale. Jó está
errado nesse ponto. Aquilo que Jó diz sobre si “maldito seja o meu
nascimento, era melhor nem ter nascido”, é algo que só é dito nas
Escrituras novamente no Novo Testamento acerca da figura de Judas e
daqueles que, por quaisquer motivos, levam os pequeninos ao
escândalo. Jesus, então, em Mateus 26.24, aplica essa ideia de que era
melhor nunca terem nascido aqueles que não o conheceram ou que
conheceram e não seguiram o caminho do evangelho. Sim, para
aqueles que serão condenados, era melhor que nunca tivessem
existido.
Jó acreditava que era melhor não existir por causa do sofrimento do
tempo presente. Mas Jó esqueceu, pelo menos por alguns momentos,
que essa vida é breve, rápida e frágil. Essa vida significa pouco; vale a
pena existir, pois todo sofrimento dessa existência se justifica se nós
entendermos que há algo para além desse sofrimento, de que há algo
para além de tanta dor, para além de toda essa circunstância subjetiva
de tristeza. As mais variadas promessas que nos são dadas nos
evangelhos, nas cartas de Paulo, Pedro e João, são promessas de que
essa vida pode ser confusa, dolorosa, que você pode não realizar seus
sonhos, pode não conquistar o que quer, você pode merecer e não
receber, pode trabalhar enquanto eles dormem por um décimo de
salário, você pode ver a sua irmã crescer na vida e você não, pode ver
os seus filhos irem para um caminho que não é o que esperou para
eles, você pode cuidar da sua saúde e, ainda assim, ser menos saudável
do que os outros. Tudo pode dar errado, mas a promessa é que se
aguentarmos firmes e fiéis enquanto tudo dá errado, mais cedo ou
mais tarde, virá aquele que fará tudo ter sentido, que fará com que
essa existência bagunçada e cheia de caos passe a valer a pena; virá
aquele que vai torcer o nosso choro e transformá-lo em riso, que vai
limpar dos nossos olhos toda lágrima.
Jó não tinha que ficar questionando se valia a pena existir porque
contemplou o sofrimento, porque esse sofrimento vai parecer nada se
visto pelos olhos da eternidade. Ao que parece, Jó perde essa
perspectiva aqui por um momento. Ele para de ver as coisas como
estava vendo antes. Jó começa a olhar para o que se vê, para o que é
passageiro, transitório, ao invés de olhar para aquilo que não se vê,
que é eterno, duradouro.
Jó contemplou o sofrimento. É doloroso contemplar o sofrimento,
mas se ele não tivesse nascido, ele não contemplaria a própria
redenção. Se ele não tivesse nascido, ele não teria como esperar em
fidelidade para, então, mudar de opinião ao olhar para trás e acreditar
que a vida dele valeu a pena. A sua vida vale a pena pelo simples fato
de que o caos, a confusão, a dor, o desejo de morte de agora, é
temporário. Jó só tinha que esperar um pouco e ele veria o outro lado,
o que Deus estava construindo.
É como canta Stênio Marcius, em sua famosa canção O tapeceiro.
Como criança sentadas, olhando para cima, enquanto a mãe tece uma
tapeçaria, olhamos por aquele ângulo e não entendemos aquelas cores
alegres e escuras que compõe o quadro, não identificamos as formas.
Mas, quando a tapeçaria é virada e paramos de vê-la pelo avesso,
podemos ver a obra completa. É o mesmo que se dá quando vemos a
obra que Deus está construindo pelo ângulo correto e entendemos que
tudo valeu a pena. Entendemos que há um Deus soberano construindo
algo para a eternidade, o que inclui os nossos bons momentos e os
nossos maus momentos. Claro, a vida de alguns é melhor do que a de
outros, alguns sofrem menos que os outros, mas, no fim das contas,
isso aqui é “por enquanto”. Haverá uma redenção futura que fará
com que as nossas vidas tenham valido a pena.
Que toda depressão, toda dor, toda doença, toda pobreza, toda
frustração, que tudo isso signifique muito pouco diante do que
receberemos daquele que limpará de nosso rosto toda lágrima. No
último dia, não importa o que tenhamos passado de sofrimento
psicológico nessa vida, entenderemos que nascer valeu a pena. Jó
achava que sua existência não valia a pena porque ele havia
vivenciado a dor. Jó pareceu esquecer, por um momento, que em
breve, muito em breve, ele nunca mais veria a dor. Não é que ele se
livraria daqueles sofrimentos momentâneos, mas que se livraria do
sofrimento para sempre, por meio daquilo que seria dado em Cristo
Jesus para ele.
Jó amaldiçoa o dia de seu nascimento, esperando que o dia que
nasceu seja um dia que pereça, que seja excluído do calendário. Que
aquele dia de alegria, de festa, fosse um dia de negritude. Que o mal se
apoderasse daquele dia, que aqueles que sabem amaldiçoar os dias —
talvez magos do Oriente, ou pessoas voltadas às trevas ou algo assim
— amaldiçoassem o seu dia. “Que a noite espere a luz e a luz não
venha. Que o sol nem nasça no dia em que nasci. Triste, triste, porque
minha mãe não era estéril.”
Jó havia entendido, no começo de seu livro, que viver realmente era
algo difícil. Mas, no capítulo 3, depois de sete dias sentado no chão,
chorando, Jó quer voltar no tempo, quer impedir o próprio
nascimento, quer mudar o passado. Ele parece triste com a vida que
Deus havia lhe dado, pois estava disposto, de alguma forma, a viver
uma vida diferente; ele queria uma outra existência, ter um outro tipo
de vida.
Jó não imaginava que sua dor e seu sofrimento seriam instrumentos
para alimentar a fé de cristãos na mesma situação, ao longo de
milênios, em todo lugar do mundo. Jó não via, mas Deus viu. Se Jó
nunca tivesse nascido, como ele veria a restauração que Deus lhe deu?
Se Jó nunca tivesse nascido, como ele teria mais filhos e filhas? Se Jó
não tivesse nascido, quem teria tido aqueles dez filhos que foram
cuidados e amados pelo pai? Se Jó não tivesse nascido, quem teria
ajudado todos aqueles pobres que ajudou? Se Jó não tivesse nascido,
que exemplo de redenção, de perseverança no sofrimento, nós
teríamos?
Jó não conseguia ver, naquele momento, que por ter nascido,
gerações e gerações de cristãos encontram força em seus próprios
sofrimentos por meio de seu exemplo. Se Jó não tivesse nascido, o
mundo seria pior, nós teríamos uma revelação a menos da grandeza de
Deus, um exemplo a menos de perseverança. E, graças ao exemplo de
Jó, podemos ter confiança de que o nosso sofrimento gerará algo de
bom em nós e nos outros.
O nosso sofrimento ensina, prega, cuida e dá algo às outras pessoas.
Nós não sabemos os efeitos do nosso sofrimento na vida dos outros, o
quanto de bem nós podemos gerar à nossa volta, mesmo com a nossa
medíocre existência, mesmo quando dói ao ponto de pensar: “Será
que valeu a pena ter nascido?”. Nós só podemos lamentar a vida que
vivemos, pois não sabemos quais seriam as dores daquilo que não foi
vivido.
Se nós pudéssemos voltar atrás e ver como seria o mundo sem nós,
eu garanto que o mundo seria muito pior, pois Deus não comete erros
e não nos colocaria no mundo em vão. Se você encontrou Jesus, se
você vive a vida da fé, pode estar doendo como estiver, mas valeu a
pena você ter existido pelo simples fato de que vale a pena perseverar
para contemplar a redenção de Cristo Jesus. Jó só tinha que esperar,
aguentar firme, e ele veria o seu redentor vivo.
Nós fazemos com que nosso sofrimento valha a pena e que nossa
vida mereça continuar existindo, que nosso nascimento não seja algo a
lamentar, mesmo durante o sofrimento, quando fazemos com a nossa
vida algo de bom para outras pessoas. Seja apresentando o caminho
do evangelho, seja cuidando de forma natural do corpo, da saúde de
outras pessoas, seja como um exemplo de fé durante o sofrimento. A
simples perseverança já ensina, já prega. Quantas vidas não são
edificadas pelo testemunho de perseverança daqueles que sofrem?
Quantas vezes pastores vão pregar em velórios e voltam para casa
mais crentes diante da fé genuína daqueles que, em luto, não
blasfemam, mas louvam? Jó acha que sua vida não deveria ter inicia-
do, fala que o seu nascimento era um caso a se lamentar. Mas Jó
estava olhando para o momento; ele olhou para o episódio, não para
a temporada completa do seriado; ele olhou para o capítulo, não para
o livro em sua plenitude; ele estava olhando para aquele minuto, não
para o dia inteiro. Isso porque o sofrimento suga a nossa capacidade
de olhar para além dele. Enquanto estamos em dor, não sentimos nada
além da dor. Em meio a crises de dor crônica esquecemos de tudo, do
sabor da comida, da alegria da música, de qualquer sentimento
positivo.
A depressão também não consegue fazer isso? Você não consegue
fazer nada, sentir nada, ver nada além daquele momento de tristeza e
de profunda dor. Não é isso o que o luto, muitas vezes, faz? Não é isso
que a doença muitas vezes faz? O sofrimento é egocêntrico, é
megalomaníaco; ele quer ter um relacionamento abusivo com você,
quer que você não veja nada além dele, que não fale nada além dele,
que não vislumbre nada além dele. Nós não podemos deixar que o
sofrimento molde a forma como olhamos para toda a nossa vida.
Está doendo agora? Não dá para desprezar isso. Você está sofrendo
agora? Isso não é algo para deixar para lá. Mas lembre-se, toda dor é
“por enquanto”, como já dizia o pastor e cantor Marcos Almeida.
Todo sofrimento é só por agora; a alegria romperá e durará para
sempre por meio daquilo que Jesus preparou para os santos. Podemos
ser servos sofredores, podemos perseverar durante o sofrimento na
esperança de que, em breve, tudo isso se encerrará.
Jó amaldiçoa o dia de seu nascimento e tem uma segunda percepção
completamente errada. Se Jó tem uma percepção errada sobre o seu
nascimento, ele tem também uma percepção errada sobre a sua morte.
Jó começa a desejar morrer porque para ele morrer parecia um
descanso, parecia a solução. Ele não quer mais somente voltar ao
passado e transformar o que aconteceu, mas quer olhar para o futuro
e adiantar aqui-lo que seria inevitável, como se a morte fosse uma
bênção.

MORRER PARECIA UM DESCANSO (3.11-19)


A linguagem de Jó é profundamente materialista. Aqui não vemos Jó
olhando para vida após a morte, mas invejando o cadáver. Jó retira os
olhos da eternidade. Ele só queria descansar no caixão e tem inveja de
um defunto deitado em paz.
Jó nos mostra que crentes podem lidar com pensamentos horríveis,
que homens santos e justos podem desejar a morte durante dores que
Deus envia. O estado de dor e sofrimento de Jó era tão grande, mas
tão grande, que ele está preocupado em simplesmente ter a
oportunidade de se deitar no caixão. Jó não está mais preocupado
com o céu, ou com o inferno, com o seio de Abraão, com o sheol; ele
está preocupado em parar de sentir tudo aquilo. Você não deve achar
que é menos crente porque pensamentos terríveis passam pela sua
cabeça durante a dor. Efésios 2 nos diz que o salvo é aquele que não
faz a vontade dos pensamentos. Pensamentos? Claro que temos. A
questão é o que nós fazemos com eles.
Você pensa em morrer de vez em quando? Ok. Dependendo do nível
disso, você pode precisar de ajuda. A questão é: O que você faz
quando você pensa nisso? Você dá vazão aos seus pensamentos, segue
as suas vontades, simplesmente se submete a raciocínios falaciosos que
vêm de uma carne que geme? Jó tem inveja dos mortos, um homem
santo e justo deseja a morte durante a dor que Deus lhe envia.
Essa é a experiência real de um homem de fé. Muitas vezes olhamos
para o cristianismo e o achamos muito “bonitinho”. Tudo muito
simples, muito normal. C. S. Lewis, famoso escritor cristão, já dizia,
no século passado, que se você deseja uma religião que vai fazê-lo
feliz, é melhor você procurar algum outro recurso terapêutico da
cultura. Porque a promessa do cristianismo não é, acima de tudo, de
felicidade. A promessa do cristianismo não é que você vai ser livre de
qualquer coisa que vai perturbar o seu psicológico.
Um autor contemporâneo, o sociólogo Christian Smith, diz que a
religião mais famosa da modernidade é uma religião chamada deísmo
moralista terapêutico. Deísmo é a crença em um Deus que existe, mas
que não se mete muito em nossa vida. É um deísmo moralista porque
crê-se que Deus sempre abençoa as pessoas e que, no final, leva as
pessoas ditas “boas” para o céu. E é terapêutico porque sua função
principal é simplesmente dar uma paz psicológica, um bem-estar. “Eu
sou crente porque eu sou mais feliz assim.” Claramente, essa não é a
religião de Jó. A religião de Jó não era uma religião terapêutica.
Vivemos em uma cultura focada na terapia. O paradigma do ser
humano foi transformado e existimos para sermos agradados. E,
como colocamos essa ideia também na religião, esperamos que Deus
nos agrade sempre. E esperamos respostas de Deus, porque o
sofrimento insiste em ter respostas. E Jó pergunta por que ele não
morreu quando nasceu, por que ele não expirou ao sair do ventre da
mãe, por que existiu um colo que o acolheu. O que ele mais queria,
naquele momento, era repousar, ainda que fosse na cova. Porque a
cova iguala os homens: príncipes e cativos estão juntos em descanso.
O servo que é humilhado, que é escravizado, se livra de seu senhor. Jó,
talvez, quisesse ter sido um aborto espontâneo, quando a mãe, às
vezes, nem sabe que ocorreu, aquela vida se esvai e ela nunca viu a
luz. Jó queria repousar, repousar na morte.
Parece que Jó se esquece de que existe alguma coisa para além dessa
vida, que depois da morte há um acerto de contas. Ele se esquece de
que existe uma alma, que existe um espírito.
O cristianismo não existe para deixar sua vida psicológica mais
fácil. Talvez você até fique mais perturbado quando está na igreja,
porque a pessoa vem para a igreja e deixa de se anestesiar com a
cachaça, deixa de satisfazer todas as vontades dos desejos corpo nas
festas. Você, agora, tem que confrontar o seu próprio pecado. Você
não pode mais praguejar e blasfemar, não pode mais dar um murro no
rosto da pessoa que o fechou no trânsito. Você agora tem uma série de
impeditivos morais, uma série de ensinos a serem postos em prática
em sua vida que, muitas vezes, entra em conflito com a sua carne. E
agora, você luta contra si mesmo. É uma guerra da carne contra o
espírito, como diz Paulo.
A Teologia do Coaching, a Teologia da Prosperidade, o Deísmo
Moralista Terapêutico, o Cristianismo cultural, querem fazê-lo
acreditar que saúde psicológica é a maior bênção que provém de Deus.
Antes, na Teologia da Prosperidade clássica, a promessa era que Deus
queria fazê-lo rico. Na Teologia da Prosperidade moderna, a promessa
é que Deus quer fazê-lo feliz, que vai dar tudo certo em sua vida. E
Jesus virou uma grande cartela de antidepressivos. Jesus não é mais o
salvador, mas é um resolvedor do seu caos psicológico.
É importante destacar aqui que a fé de Jó foi uma fé que perseverou
mesmo enquanto ele queria morrer. Entenda que a qualidade da sua fé
não é medida pelo seu bem-estar emocional. Você pode ter uma fé
forte, mas o coração sofrer. Você pode tomar remédio controlado,
fazer terapia toda semana, pode ter que lutar contra os mais variados
conflitos internos e, ainda assim, ser um crente maduro. A maturidade
na fé, como a de Jó, não é algo que, necessariamente, vai trazer força
para não se abalar no sofrimento. O crente maduro, muitas vezes, vai
chorar, sofrer, pensar em morrer, querer nunca ter existido, e nem por
isso deixará de ser um crente maduro. Claro, Deus repreende Jó mais
à frente, dizendo que ele falou algumas coisas meio bobas, que havia
questionado demais acerca de coisas que ele deveria apenas ter
confiado. Mas repare que Jó segue sendo um homem santo e justo.
Deus não diz que Jó se desviou ou pecou com seus lábios. Ele errou,
pensou coisas erradas, teve sentimentos errados, mas manteve-se
crente e fiel. Porque você pode ter pensamentos errados, ideias
erradas, sentimentos errados, sensações erradas, por causa das
circunstâncias em que está envolvido. Precisamos lidar com esses
erros, esses bugs no nosso sistema e ainda assim sermos um homem ou
uma mulher de fé.
Sabe o que Satanás quer? Ele quer que você pense que a sua tristeza
o impede de ser amado por Deus. Satanás quer que você pense que
suas lágrimas, no sofrimento, significam que, na verdade, você não é
crente de verdade. Ele quer que você pense que seus desafios
psicológicos o separam de Jesus. Mas a verdade é que isso é tudo
mentira de Satanás. Você pode estar sofrendo — talvez precisando de
aconselhamento, de ajuda psicológica, de remédio — você pode estar
chorando todo dia antes de dormir, mas você pode continuar crente,
pode olhar e dizer: “Eu vou ficar agarrado com esse Jesus. Eu posso
chorar todo dia escondido no banho, mas eu vou continuar abraçado
com Jesus. Eu posso precisar de barreiras químicas para continuar
conseguindo existir diante de toda confusão mental que eu vivo, mas
eu vou continuar agarrado em Jesus. Eu posso estar perdendo a
sanidade mental, eu posso pensar em morrer todo dia, mas desse Jesus
eu não largo por nada”.
Você pode perseverar. Quantos irmãos, ao longo da fé, não lutaram
e enfrentaram as mais variadas batalhas psicológicas? Podemos pensar
na depressão de Spurgeon, na depressão de David Brainerd, no
espírito melancólico de Jonathan Edwards. Podemos pensar em
quantos homens de Deus enfrentaram sentimentos os mais variados e
até mesmo a loucura. Quantos homens de Deus enfrentaram desafios
psicológicos intensos, mas mesmo com seus erros, fraquezas e dores,
continuaram até encontrar um Jesus que limpou seus olhos de toda
lágrima.
Nós temos um Cristo que é acostumado a lidar com quem sofre.
Não devemos achar que o caminho para o céu é um caminho sem
choro. O caminho para o céu é um caminho em que gememos,
choramos, sofremos. Lembre-se da promessa de que ele vai limpar
toda lágrima. Não se preocupe, você pode chegar lá chorando,
gemendo, pois o consolo já está prometido. Não irão entrar pelas
portas da frente dos céus aqueles com o queixo erguido, poderosos e
fortes. Irão chegar pessoas com as costas feridas pelo azorrague da
vida, com os ombros doídos da cruz da santificação; pessoas com os
pés trôpegos, gemendo, com sangue jorrando da fronte. Seremos
recebidos pelas portas da frente, mas com a face ensanguentada. Você
continua sendo aceito por Deus. Você não vai entrar pelas portas do
fundo porque você é triste, ou porque sofre ou chora.
Alguns, talvez, tenham mais saúde psicológica ou lidem melhor com
o sofrimento. Claro, todos nós precisamos ser consolados,
incentivados, exortados a permanecermos e a termos força, mas todos
podemos perseverar, mesmo que doa. Lembre-se de que haverá um
momento, quando atravessarmos o rio da vida, em que toda dor vai
ficar para trás. Vale a pena continuar. A morte não é um descanso.
Deus nem sempre vai lhe dar uma existência agradável, porque ele
lhe deu uma existência para agradar a ele mesmo, não a você. Deus
nem sempre vai lhe dar uma vida sensorial-mente boa, porque ele lhe
deu uma vida para glorificar a ele. Essa vida não diz respeito às nossas
experiências subjetivas, às nossas sensações. Essa vida diz respeito a
como, apesar das sensações, nós glorificamos o seu nome, seja na
bonança, na saúde ou na doença.
Nesse momento da narrativa, Jó quer saber os motivos de Deus. Ele
questiona. Na Filosofia e na Teologia, o termo “teodiceia” é usado
para discutir o problema do mal no mundo. A palavra vem de θεός (
qeos) “Deus” e δίκη ( díkh), “justiça”, que significa, literalmente,
“justiça de Deus” ou “justificação de Deus”. Nossos esforços por
explicar o mal são como esforços de colocar Deus contra a parede
para que ele se explique.
Literalmente, teodiceia é a justiça de Deus, é o jeito de justificar
Deus. Existe mal do mundo? “Pronto. Deus, dê aí os seus motivos, dá
tua justiça, se explique. Vamos colocar Deus aqui no banco dos réus
para ele responder o problema da existência do mal.” A teodiceia, o
esforço por uma justiça de Deus, o esforço para explicar o mal do
mundo, é o que, muitas vezes, surge em um coração que não aguenta
mais tanto sofrimento.
Nós, muitas vezes, buscamos teodiceias, pedimos que Deus se
explique. Mas, no caso de Jó não parece que ele está pedindo uma
explicação a Deus. Jó questiona, mas não está falando diretamente
com o Senhor em momento algum. É como se perguntasse ao vento, à
existência, ao dia, ao passado, às estrelas, à alvorada; Jó parece
questionar a vida. “Por que eu tenho que viver desse jeito?”, “Por que
eu tive que ter esse tipo de existência?”. Ele quer mudar o passado,
quer mudar o futuro, quer explicações para o seu mal. Mas Jó não
tem explicações.
O problema do mal não é, muitas vezes, apologético, filosófico. O
problema do mal é um problema no coração que sente, que não
precisa de respostas intelectuais. “Ah, por que que Deus matou meu
filho?” Os porquês nem sempre existem para receberem uma
explicação teológica ou formal: basta abraçar essa mãe que perdeu o
filho e dizer que a resposta está em Cristo Jesus e que será revelada na
eternidade.
O sofrimento faz perguntas para as quais ele não espera resposta. O
sofrimento tem questionamentos, coloca em nossos corações questões
para as quais resposta alguma é suficiente. Foi por isso que Deus não
nos mandou um argumento, mas nos mandou um sacrifício; foi por
isso que Deus não nos deu um manual, mas nos deu uma história.
O sofrimento também nos impele a fazer perguntas que a resposta
não é um arrazoado filosófico, mas é um olho limpo pelo lenço de
Cristo, é o poder do Espírito Santo, é um abraço da graça, são laços
de amor nos trazendo para perto de Deus. A promessa é que, quando
queremos respostas, Deus nos dá graça; quando queremos soluções,
Deus nos dá redenção. Jó não precisava de uma resposta filosófica ou
teológica, não precisava das palavras certas; ele precisava que sua
angústia cessasse. É por isso que ao nosso sofrimento Deus não
responde com argumentos, mas com sacrifício. Diante da nossa dor,
Deus manda a redenção por meio do envio de seu filho. Deus não nos
responde com uma palestra ou com uma aula, mas nos envia um
coração amoroso, braços de misericórdia para nos alcançar e nos
trazer para ele. Ele nos dá um dedo que limpa as lágrimas de nossos
olhos, ele nos dá um céu de glória ao seu lado, ele nos dará respostas
no último dia na face reluzente de Cristo Jesus. Podemos encontrar
graça, alegria, felicidade, mesmo durante o sofrimento, quando
olhamos para além do sofrimento e focamos aquilo que Deus nos
prometeu dar para além dessa vida.
Agora, Jó faz um terceiro bloco de perguntas, bem mais curto, já
um tanto conclusivo, do versículo 20 até o 23.

POR QUE O MISERÁVEL PRECISA VIVER? (3.20-23)


No final do capítulo 3, Jó passa a dizer que para o miserável não vale
a pena viver. Será que a morte não é melhor do que determinadas
maneiras de existência? Esse é o princípio por trás da eutanásia e do
aborto. Seguindo esse raciocínio, assassinam-se os idosos por
misericórdia, pois estão em sofrimento; matam-se crianças no ventre
com a desculpa de que aquele ser não será amado, ou que a criança
tem uma doença, que talvez não viva por muitos anos. Mata-se
porque julgam que é melhor morrer do que viver essa vida.
Jó, aqui, começa a justificar a eutanásia e o aborto, a justificar que
alguns tipos de vida são menos valiosos do que outros, que para
algumas pessoas seria um favor matá-las para que a existência delas
cesse. Esse não parece o Jó dos capítulos 1 e 2, mas é o mesmo homem
de fé, em angústia e sofrimento, apesar de estar falando coisas erradas
e falsas, demonstrando, momentaneamente, uma má teologia. É muito
fácil termos uma boa teologia quando tudo vai bem, quando estamos
no seminário, quando tiramos uma foto para o Instagram do nosso
café quente e do nosso mais novo livro cristão. Mas é difícil ter uma
boa teologia no enterro do filho, quando se é acometido de câncer. E
são nesses momentos que os fortes precisam ser fortes, são nessas
horas que, muitas vezes, o nosso coração fala coisas que nem existem.
Jó arremessa palavras ao vento. Quando, mais para frente, os
amigos de Jó o repreendem, ele diz: “Pessoal, vocês não têm que me
corrigir não, eu só estou falando besteira mesmo.”E, às vezes, o
homem de Deus vai errar, vai falar besteira durante o sofrimento,
porque, no fim das contas, não é isso que nós somos? Esse mar de
confusão? Esse mar de loucura? Mas, mesmo nesses momentos de
insanidade na fé, podemos questionar: Uma fé forte que fraqueja pode
crescer novamente?Somos capazes de confiar, durante o sofrimento,
que Deus não apagou o pavio, mas que ele está apenas fumegando?
Confiamos que Deus não quebra a cana que já está toda rachada, e
que, mesmo em confusão e falando contra o Senhor em momentos de
turbulência, acreditamos que ainda há um Deus que nos ajuda a
perseverar?
Sabemos que, a partir daqui, Jó passará a dizer coisas que serão
dignas da repreensão de Deus no final do livro. Vemos, assim, que até
mesmo os santos podem fraquejar durante a dor. É importante, no
entanto, que aprendamos a fraquejar em santidade. Jó não amaldiçoa
Deus, não blasfema contra o Senhor. Jó não abandona a Deus, ainda
que amaldiçoe a própria existência: “Se é para viver assim, não vale a
pena continuar vivendo.” Morrer doeria menos. Mas Jó não joga a
culpa em Deus em momento algum. Ele questiona, mas ele mesmo não
dá respostas em nome de Deus, não coloca palavras na boca do
Senhor. Jó fala contra as circunstâncias, mas não contra o Senhor que
o colocou naquelas circunstâncias. Em nenhum momento Jó retrocede
em sua fidelidade, ainda que sofra, fraqueje, gema, entre no mais
profundo desespero, fale besteira, mas não fala besteira contra Deus.
O homem santo pode falar algumas bobagens de vez em quando
durante a dor, mas isso não significa que ele se afaste de Deus.
Podemos gemer, sofrer, falar bobagem, dizer coisas dignas de
repreensão, mas nós não falamos contra o nosso Senhor quando Deus
permanece sendo o nosso Deus no sofrimento.

CONCLUSÃO (3.24-26)
Jó conclui, nos versos 24 ao 26, de forma muito poética e muito triste:
“Porque em vez do meu pão me vêm gemidos, e os meus lamentos se
derramam como água. Aquilo que temo me sobrevém, e o que receio
me acontece. Não tenho descanso, não tenho sossego, não tenho
repouso; só tenho inquietação”.
As palavras finais de Jó são tão belas quanto terríveis. É muito triste
lermos essas palavras vindas de qualquer pessoa. O texto aqui não
fala que Jó não pecou com as palavras, como diz nos capítulos 1 e 2.
A partir do capítulo 3, verdade e mentira começam a se misturar na
boca de um homem santo e profundo em sofrimento e angústia. Mas é
importante notar que Jó não amaldiçoou a Deus, mas amaldiçoou a si,
comeu o pão dos gemidos, bebeu a água dos lamentos, recebeu tudo
aquilo que mais temia. E Jó nos mostra um caminho de fé pelo qual
podemos passar, um caminho de fé que inclui beber sofrimento, comer
gemido, receber temores e, ainda assim, perseverar.
Quando eu olho para esse livro, eu me sinto meio humilhado. Eu
vejo Jó falhando, errando, falando coisas que não deveria, mas ainda
assim eu, se estivesse no lugar dele, já teria “chutado o pau dessa
barraca” há muito tempo. Jó permanece sete dias em lamento em
grupo para começar a falar algumas coisas contra a própria vida.
Quantos de nós já não teríamos falado coisas piores em momentos
menos graves e em menos tempo de sofrimento? Mas somos capazes
de perseverar não porque somos fortes como Jó — pois até ele
fraquejou —, mas podemos perseverar porque confiamos em alguém
que foi mais forte do que Jó; confiamos em alguém que também não
amaldiçoou a Deus, mas que amaldiçoou o próprio dia; alguém que
não amaldiçoou o Pai, mas que recebeu a maldição para que nós
pudéssemos encontrar vida. Somos, sim, capazes de permanecermos
firmes na fé porque existiu alguém que suou sangue em profundo
sofrimento, que, se pudesse, teria passado dele aquele cálice, mas que
suportou até o fim a mais profunda dor e angústia por cada um de
nós. A nossa salvação, a nossa comunhão com Deus, só é possível
porque nós temos esperança em alguém que perseverou muito mais do
que Jó, alguém que, em dor, fraquezas e sofrimentos muito maiores
permaneceu firme.
Jesus viveu isso, e o dia do seu nascimento é comemora-do por
pessoas no mundo todo, em todos os países. Jesus foi amaldiçoado, e
o foi por causa de nós, em nosso lugar, para a nossa salvação. Jesus se
sentiu desamparado por Deus assim como Jó sentiu; Jesus questionou
a Deus assim como Jó questionou. Não é isso que lemos em Mateus
27.46? “Deus meu Deus meu, por que me desamparaste?” Vemos,
aqui, um Cristo em profunda dor e sofrimento questionando a Deus.
Vemos um Cristo desamparado, mas sendo firme por nós, sendo
aquilo que Jó só vislumbrou ser, para que, nele, em Cristo, sejamos
muito mais do que Jó já foi. Nós olhamos para o exemplo de Jó e nos
sentimos pequenos demais diante da grandeza daquele homem, mas
somos elevados para muito além dos méritos de Jó quando, em Cristo,
estamos diante daquele que sofreu muito mais do que Jó, mas que
permaneceu com a perseverança que é doada a cada um de nós.
O livro de Jó deve nos fazer lembrar de um Cristo que veio muito
depois de Jó, que deu a Jó a recompensa da sua perseverança diante
do sofrimento. O sofrimento nos leva a pensar coisas esquisitas, a
dizer coisas que nem acreditamos, mas o sofrimento precisa nos levar
para aquele que perseverou diante da dor. Jesus sofreu mais do que
cada um de nós ou do que Jó apenas imaginou. Mas Jesus permaneceu
firme e nos leva para um caminho de perseverança. Nossa alegria é
saber que, para sermos salvos, não dependemos de imitar Jó, mas de
confiarmos e mantermos a nossa fé naquele que foi muito maior do
que Jó, que sofreu muito mais do que Jó, que perseverou muito mais
do que Jó, que não falhou com os lábios, nem com o seu coração e foi
justo e fiel em tudo.
Você está confuso? Está difícil? Está doendo? Você já está
começando a pensar bobagens? Você, às vezes, fala coisas que nem
acredita? Lembre-se: Jesus foi para cruz. Ele amaldiçoou o próprio dia
para levar cada maldição que era nossa, para que o nosso nascimento
valesse a pena, para que a morte seja, verdadeiramente, um descanso
— não porque estaremos deitados tranquilos no caixão, mas porque
teremos o céu de glória, onde nossas lágrimas serão enxutas. Cristo
bebeu a maldição do nosso dia, para que possamos comemorar para
sempre os aniversários da redenção.
Cristo Jesus, aquele que era o redentor de Jó, nos entrega a sua
perseverança no sofrimento, para que, confiantes nele — mesmo
quando falamos bobagem, quando descremos da vida, quando
pensamos em morrer, quando nos escondemos à sombra do
amaldiçoado —, por meio de sua obra perfeita na cruz, sejamos
trazidos para perto de Deus, para que nossas lágrimas sejam limpas,
nossos desejos de morte sejam extirpa-dos no nosso coração, para que
as confusões do nosso psicológico finalmente sejam saradas (não com
qualquer resposta intelectual, teológica ou terapêutica que eu ou
alguém possa dar, mas de simplesmente contemplarmos a fase adorada
de Jesus, nosso rei). Era o rosto de Cristo que Jó queria ver. E é o
rosto que veremos e que nos dará a redenção e a esperança final,
mesmo quando acharmos que a nossa vida não vale a pena.
O jovem Werther teve uma paixão juvenil e tirou a própria vida por
isso. O Deus Pai nos amou soberanamente e se entregou por nós em
Cristo Jesus para que, com ele, ressuscitemos no último dia. Que
possamos suportar só mais um pouco. Em breve, a redenção virá e
brilhará sobre nós como o Sol ao meio-dia.
Notas do Capítulo

Nota 2 - Idem, p. 68. [Voltar]


Nota 3 - Idem, p. 130. [Voltar]
Nota 4 - Idem, p. 131. [Voltar]
J C,     [N ]
Notas do Capítulo

Nota 1 - Theodore Beza, The Life of John Calvin, in Selected Works of John Calvin, vol. 1,
ed. H. Beveridge and J. Bonnet. Grand Rapids, MI: Baker, 1983, p. xcv. [Voltar]
u gosto de livros lentos. Não que eu despreze a aventura e a ação,
E mas sempre fui arrebatado pela contemplação.
Um dos meus livros lentos favoritos se chama Gilead (prêmio
Pulitzer de 2005), escrito pela americana Marilynne Robinson. Trata-
se de um romance epistolar, em que um pastor congregacional prestes
a morrer do coração escreve para seu filho de 7 anos, com a intenção
de que ele tenha memórias. O texto é bem biográfico e o reverendo
John Aimes compartilha com o filho suas experiências e lembranças. A
Bíblia é citada constantemente na história, assim como vários debates
teológicos e filosóficos. Em um trecho particularmente bonito, já
próximo ao fim do livro, ele escreve:

Como devo lidar com esses medos que tenho, de que Jack
Boughton vai fazer mal a você e sua mãe, só porque ele pode,
apenas pela maldade astuta e irrespondível disso? [...]. Ele poderia
me derrubar escada abaixo e eu teria elaborado a teologia para
perdoá-lo antes de chegar ao fim. Mas se ele o prejudicasse da
forma mais mínima, temo que a teologia falhe comigo.

Às vezes, nossa teologia falha conosco. A de Jó falhou com ele, não


porque estava errada, mas porque ele não conseguiu viver aquilo em
que ele mesmo acreditava. O sofrimento o mudou.
Jó sente-se abandonado por Deus. De todos os abandonos, nenhum
é pior do que esse. Jó teve uma vida boa, uma vida cheia de esperança,
com sonhos realizados. Mas existem tigres que vêm à noite e que
mastigam os sonhos que muitas vezes nós temos. E quando lemos o
livro de Jó, nós encontramos alguém que teve todos os seus sonhos
despedaçados.
Há uma miséria dentro de cada um de nós que só pode ser resolvida
por Deus. E essa miséria, cada vez mais, se aprofunda diante de nossos
olhos quando, nas más circunstâncias da vida, o que nós sentimos é o
abandono, os sonhos frustrados, os dentes dos tigres que à noite
devoram tudo aquilo que sonhamos um dia. Você pode olhar para
trás, para a sua vida, e vislumbrar a esperança da vida que teve no
passado. Você vê um jovem sonhador, alguém que tinha expectativas a
serem realizadas e visualiza tudo aquilo que imaginava e queria ter no
futuro. Daí, você olha para sua vida agora e parece que os sonhos que
você sonhou não se realizaram.
Eu imagino que Jó, à medida que progredia, que enriquecia, que se
aprofundava em seu relacionamento com Deus, não se imaginava,
talvez já ali próximo de sua velhice, com vermes saindo de sua pele,
raspando suas feridas e as crostas terrosas que estavam sobre sua pele
com um caco de telha. Eu acho que Jó nunca se imaginou pobre, sem
nenhum tostão furado, abandonado até pelos seus amigos. Há tigres
que vêm à noite e que mastigam muitos dos nossos sonhos e, muitas
vezes, nós tentamos entender os motivos, mas os motivos estão em
Deus.
Eu imagino qual seria a canção de Jó, como ele cantaria a história
de sua vida. Não temos músicas compostas por Jó, pelo menos não
registradas no Novo Testamento, mas temos a letra de seus lamentos e
a sua miséria é muito bem “cantável”.
Mas observe que Jó não sofre sozinho, ele sofre em comunidade,
assim como Fantine sofria com pessoas à sua volta. Mas Jó não
encontra o consolo e a ajuda de que precisava. Quando entramos nos
capítulos 4 a 7 do livro, vemos o primeiro confronto que o alcança.
Seus amigos de Jó vieram de longe para consolá-lo. E eles, os três
amigos, se unem e se encontram com Jó naquela situação de miséria, e
então choram, passam uma semana em silêncio no pó e na cinza
olhando para o amigo que sofria. A história parece que vai ter um
final feliz, que Jó, pelo menos, havia encontrado alguém para ajudá-lo,
para consolá-lo, para servi-lo.
O primeiro amigo que se apresenta ao diálogo é Elifaz. Esse amigo
ouve o lamento de Jó e passa 2 capítulos falando com ele — do
capítulo 4.1 até Jó 5.27. Provavelmente Elifaz deveria ser o mais velho
dentre eles. E o resumo daquilo que Elifaz diz ao nosso protagonista
choroso e doído é que o sofrimento de Jó vinha por causa de seu
pecado. Se ele se arrependesse, ficaria tudo bem. Esse é o resumo
desses dois capítulos de um homem sábio aconselhando seu amigo.
Após a fala de Elifaz, encontramos Jó respondendo ao amigo, do
capítulo 6.1 ao 7.21. Observe que o livro de Jó tem três rodadas de
acusação e defesa. Temos o primeiro amigo que fala com Jó e ele se
defende em seguida. Depois, o segundo amigo fala, e Jó, novamente,
se defende. Então, o terceiro amigo fala com Jó e ele, mais uma vez,
apresenta sua defesa. Então acontece uma outra rodada — amigo 1,
defesa; amigo 2, defesa; amigo 3, defesa. Então, uma terceira rodada
— amigo 1, defesa; amigo 2, defesa; e aqui, onde entraria o terceiro
amigo, ocorre uma interrupção na história, um plot twist, como se diz
no cinema, e um outro personagem é adicionado. Olharemos,
portanto, para as três rodadas de acusação e defesa.

A PRIMEIRA ACUSAÇÃO DE ELIFAZ (CAP. 4—5)


Nesse primeiro momento de acusação e defesa, encontramos a
teologia certa para a dor errada. Vemos os amigos de Jó tentando
aplicar em sua vida verdades, mas verdades que não cabiam a Jó. A
vida traz um tormento muito grande ao usar os seus amigos como
parte dos aguilhões do sofrimento que recaem sobre ele. Quando olha
para o que Elifaz diz, ele começa perguntando, de forma um tanto
sarcástica e dura, se Jó confiava em Deus ou não:

Então Elifaz, o temanita, tomou a palavra e disse: “Se alguém


tentar falar, você terá paciência para ouvir? Mas quem poderá
conter as palavras? Veja bem! Você ensinou a muitos e fortaleceu
mãos cansadas. As suas palavras sustentaram os que tropeçavam,
e você fortaleceu joelhos vacilantes. Mas agora, quando chega a
sua vez, você perde a paciência; ao ser atingido, você fica
apavorado. Você não tem confiança no seu temor a Deus? Não
tem esperança na integridade dos seus caminhos? (v. 1-6).

Jó, um homem rico, próspero, que ajudava os outros, se vê em


fraqueza, em dificuldade, em miséria. Diante de seus amigos, ele se
coloca em sinceridade, fala acerca da sua vontade de morrer, de não
ter nascido, abre o seu coração tão profundamente que até mesmo fala
coisas erradas nesse processo. A resposta do seu amigo aqui, Elifaz, é:
“Jó, você consolou outras pessoas. Havia joelhos cambaleantes que
você ergueu. Havia mãos cansadas que você consolou. Agora que é a
sua vez, você não tem força? Agora que é a sua vez, você vai fugir?
Você não tem confiança na integridade dos seus caminhos? Você não
tem confiança no seu temor a Deus?”. Elifaz não é misericordioso
durante o sofrimento de seu amigo. Jó disse coisas duras, perdeu as
estribeiras, misturou verdades e mentiras a falar sobre Deus, mas ele
fez tudo isso devido ao seu sofrimento e sua dor. E aqui, não vemos
Elifaz oferecer um ombro amigo. Ora, aqueles amigos até
conseguiram chorar com Jó diante de sua dor, mas eles não
conseguiram chorar com Jó durante sua confusão. Eles não tiveram
paciência com o homem que errava. E Elifaz se preocupa unicamente
em repreender por tudo aquilo que havia dito. Você não tem que ser
duro com aqueles com quem Deus já está sendo duro. Jesus era duro
com pessoas não arrependidas e impertinentes, de dura cerviz. Pessoas
em sofrimento sempre conheceram a face mais caridosa do nosso
Messias. Pessoas em dor e sofrimento geralmente não precisam de
repreensão, precisam de consolo, de um ombro, de paciência. Às vezes
elas vão falar coisas erradas. E o modo como nós as instruímos é com
paciência. A vida já está sendo dolorosa com elas, os tigres já vieram à
noite mastigar seus sonhos.
Desde tempos muito antigos parece que ninguém cuida de quem
cuida, e que quem está no papel de cuidador nunca vai ser aceito no
papel de ser cuidado. Assim, temos líderes, discipuladores, presbíteros,
pastores, mestres, professores, pessoas que geralmente estão cuidando,
estão oferecendo algo, mas que, quando se encontram em situações de
dificuldade, nem sempre encontram cuidado de quem está em volta, de
quem recebeu cuidados dessas próprias pessoas. Elifaz não é
misericordioso com o sofrimento de Jó; ele estava sendo duro com
quem já estava recebendo dureza.
Eu leio esse trecho de Jó e fico com pena dele, sinceramente. Jó
havia perdido tudo, havia sofrido de formas terríveis e não encontrou
alguém que lhe devolvesse aquilo que ele sempre deu. Jó aconselhava,
ensinava, fortalecia, exortava, sustentava, mas quando chega a sua
vez, a expectativa de seus amigos era de que Jó não precisasse ser,
também, sustentado, fortalecido ou levantado.
Jó, sendo cuidador como era, não é visto pelos seus amigos como
alguém a ser cuidado. Ele é visto como alguém que, por ser cuidador,
deveria ter uma força especial contra o sofrimento. Jó não tinha o
direito de fraquejar, de falhar, de ficar confuso, porque, se ele
fortalecia os outros, então ele tinha que ser um super-homem contra o
sofrimento. E essa é uma postura extremamente arrogante,
desamorosa e falha para com pessoas em sofrimento. Porque quem
sofre, ainda que seja alguém que, em outros momentos em sua vida
fortaleceu outros sofredores, ele o fez não porque é alguém especial ou
superior. Sim, ele pode ter uma resiliência maior, uma força maior
contra certas dificuldades, pode ser alguém que consegue ensinar e
ajudar, mas quando o sofrimento toca ao ponto de quebrá-lo, o que
ele precisa é de mais cuidado. Nós não cuidamos dos outros porque
somos inquebráveis. Muitos de nós quebramos. Quantos missionários
não precisam de pastoreio? Quantos pastores não precisam de
cuidado? Quantos que cuidam, muitas vezes, se encontram na
situação de também precisarem de cuidado? Jó fortaleceu os outros,
foi generoso, e quando o sofrimento chegou até ele, ele não teve uma
alma à sua volta para consolá-lo na dificuldade, para ajudá-lo na dor.
Ele só encontrou quem jogasse sobre ele a pressão de ter que ser
melhor do que aquilo.
O sofrimento externo é terrível. Mas o modo como as pressões
internas nos fazem nos colocar no sofrimento externo é uma coisa
pior ainda. Muitos pastores acreditam que não podem sofrer. Muitos
homens e mulheres maduras da igreja acham que não podem chorar.
Pais acham que não podem nunca receber um abraço de consolo dos
filhos. Muitas vezes, acreditamos que nos papéis de cuidado,
autoridade, de entrega que possuímos, nós nunca vamos poder estar
na situação de receber, de precisar de ajuda. Nós gostamos de ajudar,
lemos que é “melhor dar do que receber”, e realmente acreditamos
nisso de um jeito meio torcido. Eu nunca quero receber, só quero ser
aquele que dá, porque quem dá, geralmente, encontra um senso de
satisfação, de entrega, “de que os outros precisam de mim”. Mas, às
vezes, Deus vai colocá-lo na situação de receber. E é normal que
precisemos de cuidado tanto quanto oferecemos cuidado. Mas vemos,
aqui, que nem isso Jó encontrou. Ele encontrou um amigo que,
deveria consolá-lo, assim como ele consolava (quem sabe talvez o
próprio Elifaz tenha sido auxiliado e consolado por Jó em alguma
dificuldade), mas Jó não encontra consolo e ajuda. Ele só encontra
mais pressão para que fosse impecável, perfeito, mesmo em um
momento de dor.
Precisamos dar para as pessoas o direito de errar, de sofrer, de
chorar, de falar coisas que nem elas mesmas acreditem. Não podemos
chegar, por exemplo, para uma mãe que lamenta a perda do filho em
um velório e dar uma aula de Filosofia ou de Teologia sobre a justiça
de Deus. Devemos esperar a dor passar, oferecer o ombro, acalentar,
ignorar, inclusive, as coisas que foram ditas.
Algumas vezes você pode brigar com sua esposa e falar um monte
de coisa nas quais nem você mesmo acredita. Você pode brigar com
seu marido e jogar na cara dele coisas que nem existem mais, que ele
até já resolveu, pecados de quinze anos atrás que já foram vencidos e
resolvidos, mas a dor e o sofrimento fazem com que fale coisas que
você mesma nem acredita. E depois você para, volta atrás e percebe:
“Puxa, não devia ter falado aquilo”, e pede perdão. E muitas vezes
com Deus acontece o mesmo: erramos, falamos para Deus coisas que
nem acreditamos, motivados pela dor, E, depois, dizemos: “Eu não
devia ter dito aquilo.” E volta, pede perdão e encontramos um Deus
gracioso.
Quando estamos enlouquecidos, emburrecidos intelectualmente pela
dor que infecta até mesmo as coisas em que acreditamos, a cura para
essa loucura não vem de mais instrução, mas vem de consolo, de
carinho, de oferta de amor, que ajuda a curar as nossas dores para que
possamos voltar a pensar com a razão e com a fé que nós realmente
temos. Mas Jó não recebe isso.
Elifaz, como se precisasse, endurece ainda mais o seu discurso a
partir do versículo 7, dizendo que nenhum inocente sofreria tanto
quanto Jó estava sofrendo, que ninguém que não estivesse com sérios
problemas com Deus sofreria daquele jeito: “Pense bem: será que
algum inocente já chegou a perecer? E onde os retos foram destruídos?
Segundo eu tenho visto, os que lavram a iniquidade e semeiam o mal,
isso mesmo eles colhem. Com o hálito de Deus perecem; e com o
sopro da sua ira são consumidos” (4.7-9).
Jó, um homem íntegro, sobre quem o próprio Deus declarou justiça,
vemos aqui seu amigo declarando sobre ele iniquidade. Porque,
diferente de Deus, os homens costumam interpretar a nossa justiça
pelas nossas circunstâncias. Se tudo vai bem, é porque Deus está a seu
favor, se tudo vai mal, é porque Deus está contra você. Agora, é
relativamente fácil quando isso vem da boca de outras pessoas,
quando isso é declarado pelo mundo — você pode bloquear as pessoas
no WhatsApp ou simplesmente parar de se encontrar com elas. O
difícil é lidar com o Elifaz do nosso coração, quando quem diz essas
coisas somos nós para nós mesmos.
A verdade é que nós não podemos atrelar circunstâncias temporais
com a aprovação ou não do Deus eterno, pois Deus aprova Jó e, ainda
assim, o coloca em circunstâncias difíceis. Elifaz olha para Jó e diz:
“Se a vida está ruim, é porque você está mal com Deus”, enquanto
Deus diz: “Jó é justo, tão justo, que irei colocá-lo em uma situação
ruim”. Nem sempre as circunstâncias negativas são frutos de pecado,
e nem sempre as circunstâncias positivas são fruto de santidade. Não
atrele o seu relacionamento com Deus às circunstâncias da sua vida.
Não deixe que o Elifaz do seu coração faça com que sinta confiança
nas circunstâncias, mesmo se você estiver mal com Deus ou que sinta
desespero nas dificuldades, ou se estiver bem com Deus. No fim das
contas, as circunstâncias importam muito pouco, o que importa é que
Cristo seja nosso Senhor.
Continuando seu discurso, Elifaz começa a soltar vários aforismos
sobre como Deus traz sofrimento sobre o ímpio, sobre o injusto. E
ainda vai dizer, audaciosamente, que foi Deus quem lhe revelou sobre
a miséria de Jó. Elifaz fala sobre um tipo de revelação que teve,
quando um espírito surge para falar com ele durante a noite, em um
sonho. O espírito se aproxima — o que faz com que ele se arrepie
inteiro — e sussurra em seu ouvido. Não parece uma linguagem muito
judaica ou muito próxima do Antigo Testamento, talvez seja uma
experiência religiosa de fora do povo de Israel — pode ser uma
experiência verdadeira ou demoníaca, uma verdade ou uma mentira,
nós não sabemos. São, claramente, as palavras de um homem, não de
Deus. Mas esse ser sobrenatural diz, até o versículo 21, que todos os
homens são pecadores, que todos os homens são ímpios. Ele diz:
“Uma palavra me foi trazida em segredo, e os meus ouvidos
perceberam um sussurro dela. Entre pensamentos de visões noturnas
[...]” (4.12).
Não é uma linguagem muito profética, Deus revelar entre
pensamentos e visões noturnas. “[...] quando o sono profundo cai
sobre as pessoas, sobrevieram-me o espanto e o tremor, e todos os
meus ossos estremeceram. Então um espírito passou por diante de
mim” (4.12-13). Aqui ele está falando do espírito de Deus, de alguma
forma. Mas parece uma linguagem bem pouco judaica. Soa como um
tipo de espiritualismo acerca da voz de Deus, mas não
necessariamente algo que vinha das revelações do Antigo Testamento.

[...] e todos os meus ossos estremeceram. Então um espírito


passou por diante de mim; e se arrepiaram os cabelos do meu
corpo. Ele parou, mas não reconheci a sua aparência. Um vulto
estava diante dos meus olhos; houve silêncio, e ouvi uma voz:
Pode um mortal ser justo diante de Deus? Pode alguém ser puro
diante do seu Criador? Eis que Deus não confia nos seus servos e
aos seus anjos atribui imperfeições; quanto mais àqueles que
habitam em casas de barro, cujo fundamento está no pó, e que
são esmagados como a traça! Nascem de manhã e à tarde são
destruídos; perecem para sempre, sem que ninguém se importe
com isso. Se o fio da vida lhes é cortado, morrem e não alcançam
a sabedoria (4.14-21)

Essa teologia está certa? Sim. Lembra muito Romanos 3, que diz
que o homem é pecador, falho, e que o mal sobrevém porque o pecado
entrou no mundo. Realmente, esse espírito angelical que se apresenta
a Elifaz parece falar coisas certas. Mas existem algumas coisas
estranhas na revelação que ele faz. É dito que Deus atribui
imperfeições aos anjos. Em nenhum outro lugar do Antigo ou do
Novo Testamento lemos alguma coisa sobre isso. Não se parece com o
tipo de linguagem que encontramos na Angeologia.
E aqui temos que destacar um ponto importante sobre todo o livro
de Jó: sua interpretação, pois é um livro de teologia ruim que Deus
ofereceu para que saibamos o que é uma teologia ruim. Devemos ler
as palavras dos discursos dos amigos de Jó (e algumas partes dos
discursos do próprio Jó) da mesma forma que lemos o discurso de

É
Satanás falando com Jesus no deserto. É uma mentira, uma falsidade,
um erro.
Elifaz aplica, aqui, essa revelação que teve desse espírito à vida de
Jó. Ele o julga como alguém que estava em dor e em sofrimento por
causa do pecado que era comum aos homens. Jó estava em
sofrimento, logo, estava em pecado. Só que essa é uma visão
completamente errada acerca do modo como Deus organizou o
mundo. Nós não sofremos simplesmente porque cometemos pecados
particulares, e nós não ficamos bem, ricos e prósperos porque nos
arrependemos ou o que quer que seja. Isso é a mais pura Teologia da
Prosperidade.
Jó já se encontrava em uma situação muito difícil diante do discurso
de Elifaz, mas ele não para por aqui; Elifaz segue jogando mais
responsabilidade em cima de Jó, o convidando ao arrependimento.
Porém, observe que nem todo convite ao arrependimento provém de
Deus. Aqui, temos um homem justo em sofrimento sendo tratado
como se fosse um pecador impenitente quando, na verdade, Jó era um
homem santo passando por dificuldades.
O primeiro grande teólogo da prosperidade não foi Kennedy E.
Hagin, mas Elifaz. Ele chega com a voz do diabo e diz: “Você está
mal, sua vida está ruim por causa do pecado. Se não fosse o pecado,
você estaria melhor”, e essa é uma vi-são completamente errada de
como a vida funciona. Quando olhamos para o Antigo Testamento
vemos várias e várias vezes Davi perguntando: “Por que o ímpio
prospera?”, “Por que o justo sofre?” Essa é a realidade da Bíblia. Veja
a história de Caim e Abel. Qual dos dois era o santo, o justo? Era
aquele que foi assassinado. E quem era o pecador? O que fugiu de
Deus e construiu uma cidade. Ou seja, o santo é assassinado pelo
próprio irmão, enquanto o ímpio se torna um governador e fundador
de uma nova cidadela.
Ao lermos o Antigo Testamento notamos que há uma relação direta
entre a prosperidade ou a miséria do povo de Israel e sua obediência a
Deus. O povo, quando se arrependia, Deus os fazia prosperar; quando
viviam orgulhosos, Deus os derrubava. Mas a realidade que era dada
ao povo enquanto nação não se materializava de forma direta em cada
indivíduo. O erro aqui pode ser pegar essas promessas contidas em
Deuteronômio — e provavelmente o livro de Jó é muito anterior aos
livros de Moisés — sobre a prosperidade dos justos (no plural) e
transformar isso na prosperidade de cada justo (no singular). Deus
prospera a igreja, mas nem todo crente enriquece.
A Bíblia diz que as portas do inferno nunca prevalecerão sobre a
igreja. A igreja nunca morrerá, mas algumas igrejas fecham. Por quê?
Por que foram ímpias? Por que abandonaram ao Senhor? Às vezes, as
circunstâncias individuais não são as mesmas das circunstâncias
coletivas. Há muitas promessas ao povo de Israel, aos santos, mas
essas promessas nem sempre se aplicam diretamente ao indivíduo. O
erro de Elifaz foi achar que, devido ao pecado de forma geral, todo
mundo que estava em sofrimento era porque estava se intensificando
no esquema de pecado. E por causa das promessas de bênção, de
forma geral, todo mundo que prosperava era porque era santo de uma
forma especial. Isso não é verdade. O santo pode perecer em dor, em
sofrimento, em doença. Você pode ser generoso, ofertar, dar dinheiro,
dar esmola para o pobre, dar dinheiro para a igreja, ofertar na obra
missionária e, mesmo assim, falir. Você pode ser ganancioso, ser
alguém que guarda todo o seu dinheiro, que não compartilha com
ninguém, que não ajuda nenhum pobre e, mesmo assim, ficar ainda
mais rico. Sabe qual é o nome que a Bíblia dá para isso? É abandonar
o homem aos seus próprios desejos, como na linguagem usada em
Romanos 3. “Você é ganancioso? Seu Deus é o dinheiro? Pois toma
mais um pouquinho de dinheiro aí! Toma mais do teu Deus.” E, às
vezes, o ímpio prospera, às vezes, o homem justo perece. Por quê?
Quem sabe os porquês da vida é unicamente Deus. Ele organiza
nossa vida, nossa história, do jeito que ele quer. As lições que ele quer
nos passar, aquilo que ele quer nos ensinar, provêm da mão dele. Nós
não podemos achar que as coisas darem errado é um sinal de que
Deus não está nos aprovando, ou que as coisas darem certo é um sinal
de que Deus está feliz conosco. Às vezes, essa vida dá certo e nossa
alma está longe do Senhor. Às vezes, as coisas dão errado e Deus está
nos aprovando do céu. Nós não podemos atrelar o valor que Deus nos
dá às circunstâncias dessa vida. Você pode bater um carro, perder
dinheiro, o cano da sua casa pode estourar, você pode ficar sem
conseguir dormir, pode adoecer, tudo pode dar errado e, ainda assim,
Deus o está aprovando. Da mesma forma, tudo pode dar certo, você
ser promovido no trabalho, achar dinheiro na rua, conseguir uma boa
promoção de viagem, tudo indo muito bem e, ainda assim, você está
debaixo do juízo e da reprovação de Deus. Isso porque o modo como
vai a sua vida não representa o modo como Deus está se relacionando
com você. O que representa o favor de Deus? É estarmos sujeitos à
obra perfeita de Cristo Jesus, é estarmos confiantes naquilo que ele
fez.
Elifaz, infelizmente, julga Jó com base no modo como ele estava
recebendo a circunstância em sua vida, assim como oponentes
políticos que atacam seus adversários com a vida particular deles.
Tenta-se diminuir o outro para dizer que ele vale menos, olhar para a
dificuldade de vida do outro como se isso significasse pouco. Um
homem justo, santo e bom não pode passar por dificuldades
financeiras na vida? Homens santos, justos e bons não podem viver
vidas de provação e sofrimento? Homens canalhas, cretinos, malignos,
podem prosperar também. Conheci muita gente canalha que era podre
de dinheiro. Conheci muita gente maligna mais saudável do que muito
crente. E por quê? Quem o sabe é Deus. Nós nos sujeita-mos à
soberania e à bondade de Deus. Nós não nos julgamos, não julgamos
os outros, pelas circunstâncias da vida, porque quem nos coloca nas
circunstâncias é Deus. E é a ele a quem nós nos submetemos.
Devemos notar também que Elifaz aplica a teologia certa na dor
errada. Porque, sim, o sofrimento entrou no mundo por causa do
pecado, mas isso não significa que os sofrimentos entram em nossa
vida por causa de pecados particulares. Sim, o sofrimento faz com que
o mundo caia em dor e incerteza. Mas observe a sagacidade de Elifaz:
“Olha, todo mundo pecou, todo homem é pecador. Então, você
também é! Se arrependa e tudo vai ficar bem.” Como alguém consegue
se defender de uma acusação dessa? Ora, é claro que eu sou pecador, é
claro que Jó era pecador, é claro que Jó teria pecados para se
arrepender, mas essa não é a questão. A questão está relacionada ao
fato de que Jó não estava sofrendo por causa de algum pecado
particular, ou porque tivesse algum pecado oculto. Jó tinha pecados e
possuía suas falhas morais como todos nós possuímos. Acusar Jó de
ser pecador é óbvio. Porém, havia vários outros pecadores no mundo
e nem todos estavam raspando as suas feridas com cacos de telha.
Qual era o pecado particular do qual Jó precisava se arrepender?
Elifaz particulariza sobre Jó uma realidade geral. É uma teologia
correta, mas ele a aplica à dor errada. E não é isso o que fazemos
muitas vezes, com nossas “teologadas” apressadas, com as nossas
tentativas de respostas rápidas à dor do outro? Ao invés de ouvir e
tentar ajudar e consolar, nós somos rápidos em dar a resposta
reformada correta, que é sempre a soberania de Deus e o pecado do
homem, ponto. Então, eu estou sofrendo: “Deus é soberano”, meu
filho morreu: “Deus é soberano.” Ah, mas por quê? “É pecador”.
Muitas vezes temos a teologia certa aplicada a dores erradas.
Precisamos oferecer, muitas vezes, mais consolo do que respostas. No
meio de sua dor e do seu sofrimento, Jó não é lembrado da bondade e
da misericórdia de Deus, não é lembrado que seu Deus é um Deus que
ama, que cuida, cujos caminhos são misteriosos, mas nos quais
confiamos. Jó simplesmente é repreendido por ser um pecador e ele
não precisava ser lembrado disso. Jó precisava ser lembrado de que
Deus é bom, de que Deus é soberano, justo, honesto, que Deus cuida,
que mais cedo ou mais tarde, fosse naquela vida ou em outra vida,
Deus iria fazer com que ele fosse restaurado. Jó tinha de ser lembrado
que essa vida é muito curta e que ele podia perseverar.
Reiterando, eu não quero desprezar a verdade teológica, mas eu
quero desprezar corações pecaminosos que usam verdades teológicas
mais para ferir do que para curar. John Piper diz que a palavra é uma
lâmina afiada e não é isso o que lemos em Hebreus, que a palavra de
Deus nos penetra profundo como lâmina de dois fios, de dois gumes?
E John Piper faz uma ilustração maravilhosa: nós podemos usar
lâminas como açougueiros ou como cirurgiões. Nós temos a teologia
correta, a verdade da palavra, mas estamos cortando como um médico
que faz uma cirurgia ou estamos desferindo golpes nos outros como
açougueiros, ferindo, machucando, como estripadores que arrancam
os membros das pessoas?
Aqui, neste texto, não vemos alguém que maneja a lâmina da
palavra na vida de Jó com cuidado. Nós temos alguém simplesmente
martelando verdades teológicas em um coração que já estava
À
marcado. Às vezes, achamos que estamos fazendo certo por estarmos
dizendo o certo, mas estamos dizendo o certo para a dor errada. E
note que Elifaz, ainda por cima, solta um “Deus me disse” em Jó:
“[...] veio o espírito de noite [...]”. Como é que você argumenta diante
do “Deus me disse”?Você responde o quê?
Eu venho muito dessa cultura do “Deus me disse”. Quando eu me
converti, eu vivia em uma comunidade onde tudo era isso, tudo era
“Deus me disse”. Namoro e casamento eram na base do “Deus me
disse”. “Deus me disse que você vai namorar com fulano”, “Deus me
disse que você tem que terminar com sicrano. O “Deus me disse”
guiava as atitudes o tempo inteiro. De novo, como é que você se
defende dos “Deus me disse”, se alguém alega estar falando
diretamente da boca do Senhor? Claro, sabemos como nos esquivar
desse tipo de situação, mas Jó, no mais profundo sofrimento, ouvindo
alguém dizer que Deus havia sussurrado no ouvido sobre o pecado
que estava gerando o seu sofrimento, que toda dor vinha por causa de
suas falhas? Ainda bem que Deus fala com Jó no final do livro e não
deixa que um falso mensageiro tome a sua voz naquele momento.
Quantas vezes na dor e no sofrimento nós não somos voz do diabo
dizendo que somos voz de Deus? Quantas vezes, enquanto nossos
amigos sofrem, não achamos que estamos falando a voz de Deus,
dizendo: “Olha, assim diz o Senhor”? Nós estamos simplesmente
repetindo falhas, erros e preconceitos, aplicando inverdades ou, às
vezes, aplicando de forma errônea verdades na vida dos outros. Temos
que tomar muito cuidado quando temos a pretensão de sermos a voz
de Deus na vida de quem quer que seja.
Elifaz, então, prossegue, convidando Jó ao arrependimento: “Grite
agora, para ver se há quem responda! E para qual dos santos anjos
você se voltará? Porque a ira mata o insensato, e a inveja destrói o
tolo. Eu mesmo vi o insensato lançar raízes, mas logo declarei maldita
a sua habitação” (5.1-3). Ele começa dizendo que Jó era um insensato
que estava sendo morto por Deus, que era um tolo sendo destruído
pela inveja e que ele viu insensatos lançarem raízes. A ideia é de
ímpios prosperando de alguma forma. Elifaz diz: “[...] mas logo
declarei maldita sua habitação.” Elifaz está dizendo que Jó era um
tolo, um ímpio, um insensato que estava sofrendo porque a sua
habitação era maldita. No início, ele até começou a prosperar, mas o
correto era que ele tivesse sido realmente amaldiçoado por causa do
pecado oculto que ele tinha em seu coração.
Elifaz se coloca “por cima da carne seca”, como dizemos aqui em
Fortaleza. “O cabra se acha o suprassumo da quinta essência da
cocada preta”, acha que é melhor do que os outros. Ele diz: “Olha, eu
vi o insensato lançar suas raízes. Eu declarei maldita a sua habitação.”
O que Elifaz está insinuando? Que Jó é o insensato que lançou raízes?
Que ele é o pecador que prosperou? E que ele, Elifaz, lançou maldição
sobre a casa do insensato? Ele queria dizer que Jó estava sofrendo
porque merecia ser amaldiçoado, porque estava prosperando como
um tolo? Ele está acusando Jó de prosperar em meio a pecados
ocultos.
Elifaz, ainda, age com desfaçatez para cima de Jó. É um tipo de
coisa que nem o pior inimigo diz, quem dirá um amigo que deveria
consolá-lo. Olha o que ele diz adiante:

Os filhos dele estão longe do socorro; são espezinhados nos


tribunais, e não há quem os livre. A sua colheita, o faminto a
devora, arrebatando até o que se encontra no meio de espinhos; e
o sedento suga os seus bens. Porque a aflição não vem do pó, e o
sofrimento não brota do chão. Mas o ser humano nasce para o
sofrimento, como as faíscas das brasas voam para cima (5.4-7).

Observe o que Elifaz está dizendo. O filho do insensato se dá mal


em tudo o que faz. Jó acabou de perder dez filhos não fazia nem uma
semana. É como se Elifaz estivesse dizendo: “Olha, sabe por que seus
filhos morreram? Foi por causa dos seus pecados ocultos, você era um
insensato. Sabe a sua colheita que foi devorada? Foi por causa do seu
pecado. A aflição não vem do pó, mas o ser humano nasceu com
sofrimento por causa do pecado do ser humano.” Jó é
responsabilizado não só pelo próprio sofrimento, mas é
responsabilizado diretamente pelo sofrimento de seus filhos. Elifaz
está olhando nos olhos de seu amigo em sofrimento e dizendo: “Seus
filhos morreram por sua causa”.
Isso é algo muito sério de se dizer. Você não deve responsabilizar
alguém pelo próprio sofrimento de uma forma dura como essa. “Você
está sofrendo tudo isso? A culpa é sua. O que Deus está querendo
tratar em seu coração? E os pecados ocultos que você tem praticado?
É por isso que os seus filhos morreram.” Temos, na figura de Elifaz,
um homem cheio de certezas teológicas, aplicando, nesse caso, a
teologia errada na dor errada. Sim, devemos ter certezas teológicas,
mas temos que ter muita cautela ao achar que as aplicações dessas
verdades são sempre fáceis nas vidas dos outros — temos que tomar
cuidado até em nossas repreensões.
Novamente, vemos Elifaz se colocando “por cima da carne seca”:
“Quanto a mim, eu buscaria a Deus e a ele entregaria a minha causa”
(5.8). Como se Jó não tivesse buscado a Deus. Ele está insinuando que
Jó está sofrendo porque não buscou ao Senhor. As pessoas, às vezes,
acham que as disciplinas espirituais são algum tipo de vacina mística
contra o sofrimento. Jó constantemente sacrificava pelos filhos, ele
orava e agradecia a Deus no meio do sofrimento, e, então, chega
alguém e diz: “Olha, você está vivendo assim porque você não orou.
Busque a Deus, busque ao Senhor. É Deus que faz chover sobre a seca.
É Deus quem cuida dos enlutados”.
E Elifaz ainda diz que Deus está punindo Jó porque ele era um
astuto:

Deus frustra os planos dos astutos, para que não possam realizar
seus projetos. Ele apanha os sábios na própria astúcia deles, e o
conselho dos que tramam não chega a vingar. De dia eles
encontram as trevas, e ao meio-dia andam tateando como se fosse
noite. Porém Deus salva da espada que lhes sai da boca, salva os
necessitados das mãos dos poderosos. Assim, há esperança para
os pobres, e a iniquidade tapa a sua própria boca (5.12-16).

Não se esqueça: o justo sofre e o ímpio também prospera. Jesus diz,


em Mateus 5.45, que o sol nasce sobre bons e maus e a chuva cai
sobre justos e injustos — todos nós estamos sujeitos a circunstâncias
do tempo presente.
Elifaz prossegue: “Bem-aventurado é aquele a quem Deus
disciplina! Portanto, não despreze a disciplina do Todo-Poderoso.
Porque ele faz a ferida e ele mesmo a faz sarar; ele fere, e as suas mãos
curam” (5.17-18). Isso o que Elifaz diz aqui é verdadeiro. Mas,
novamente, é a teologia certa para a dor errada. Sim, Deus disciplina
o filho que ama, mas o que faz com que Elifaz tenha tanta certeza de
que aquele sofrimento era disciplina de Deus? É curioso pensarmos
que, se nós não tivéssemos acesso ao que ocorre nos dois primeiros
capítulos do livro, onde é revelado o conselho celeste mostrando que
Deus está do lado de Jó, poderíamos acreditar que Elifaz está certo.
Mas sabemos que Deus não estava disciplinando Jó. E Elifaz tem tanta
certeza de que é esse o caso, porém, ele não tem acesso ao trono de
Deus, não tem acesso às revelações do céu.
É importante lembrar que ninguém tem acesso ao trono de Deus,
inclusive, claro, nós mesmos. Mas, muitos de nós possuímos um Elifaz
interior, dizendo para nós mesmos que as coisas deram errado porque
pecamos, não funcionou por causa de um motivo específico, o
casamento está assim porque antes de casar fez o que não prestava.
Criamos relações completas de causa e efeito, de casualidades intensas
do tipo “eu fiz alguma coisa errada, as coisas vão dar errado”.
Eu aconselho muitos jovens com preocupações muito parecidas:
“Pastor, eu errei em meu namoro, toquei onde não devia, fiz o que não
deveria. Ainda tem como meu casamento ser feliz?” Há na mente
desses jovens uma relação direta de casualidade entre cometer erros no
namoro e a qualidade experiencial do casamento. E, pode, sim, existir
uma relação direta. Mas isso significa, então, que o inverso também é
verdadeiro? — “Tive um namoro santo, justo e puro, logo, serei pleno
e completamente feliz em meu casamento”. Pode-se casar virgem e se
casar muito mal, porque pureza sexual não é tudo; não há uma
relação íntima entre nossa experiência de fuga do pecado e as coisas
darem certo em nossa vida.
Algumas vezes, a nossa santidade vai deixar a vida mais difícil. E,
algumas vezes, o nosso pecado deixa a vida mais fácil. Nós não
estamos vivendo em santidade porque pegamos uma recompensa
divina nessa vida. Nós não estamos fugindo pecado porque achamos
que isso vai fazer com que as coisas deem certo nessa vida. Nós
estamos fugindo do pecado porque estamos esperando outra vida,
uma recompensa para a eternidade.
Dizer que Jó estava sofrendo por causa do pecado, que tudo aquilo
era disciplina direta de Deus, é idiota. E é idiota no mais puro sentido
grego da palavra. A ideia de idio é a de alguém que não consegue ver
nada além de si mesmo, alguém que é preso à própria vida, que não
participa da vida pública e da vida social, alguém que não se entrega à
democracia. Elifaz era um idiota, pois ele não consegue ver Jó. Ele não
consegue olhar para seu amigo e ver um ser humano; ele somente
consegue se ver, ver as próprias crenças e ideias e as projeta em Jó.
“Narciso acha feio tudo o que não é espelho”, diz a canção. E aqui
temos Elifaz transformando Jó em um espelho.
A frase final de Elifaz é algo terrível. Ele finaliza o discurso dizendo:
“Veja bem! Isto é o que investigamos, e assim é. Ouça e medite nisso
para o seu bem” (5.27).
A fala é de uma arrogância imensa. E é o tipo de arrogância contra
a qual nós lutamos incessantemente. Vivemos em uma época em que
as pessoas não mais identificam ou acreditam em verdades, que são
avessas às certezas absolutas, que não sabem mais o que é o
verdadeiro e o que é mentiroso; vivemos o tempo da pós-verdade, das
fake news, do relativismo. E como cristãos, os detentores da verdade
da Palavra, geralmente nos sentimos compelidos a correr para outros
extremos. “Assim investigamos, assim é. Escute isso para o seu bem.”
O problema não é Elifaz ter certezas, o problema é o modo
orgulhoso, arrogante, prepotente como ele tem certeza sobre a vida
dos outros, como tem certeza sobre o relacionamento de Jó com Deus.
Elifaz não dá espaço para dúvida ou questionamento, não dá espaço
para correções. Soa como se Elifaz fosse alguém impecável. Ora, o
anjo que apareceu para ele não disse que todos os homens são
pecadores? Isso, claro, inclui Elifaz.
Jó ouve todas aquelas acusações, aquelas certezas que não
provinham de Deus, pois muitos homens podem ter certeza absoluta
de mentiras também. E Jó passa a responder essas acusações nos dois
próximos capítulos, 6 e 7. Mas, primeiramente, Jó lamenta a Deus,
pois é o que fazemos quando o sofrimento se agrava devido ao
espinho daqueles que estão à nossa volta.
A PRIMEIRA DEFESA DE JÓ CONTRA ELIFAZ (CAPS. 6—7)
Jó, então, começa a responder em lamento: “Então Jó respondeu: Ah!
Se a minha queixa, de fato, pudesse ser pesada, e contra ela, numa
balança, se pusesse a minha miséria, esta, na verdade, pesaria mais
que a areia dos mares. Por isso é que as minhas palavras foram
precipitadas” (6.1-3).
Jó, no capítulo 3, diz coisas erradas sobre Deus, mas, no capítulo 6,
ele já reconhece que se precipitou nas coisas que havia dito. Mas note
que Jó calcula um peso aqui, tem Proporções: “Pese o que eu falei e
pese o meu sofrimento e verás que o que eu falei não foi nada se
comparado com o peso que está colocado sobre mim”.

Porque as flechas do Todo-Poderoso estão cravadas em mim, e o


meu espírito sorve o veneno delas; os terrores de Deus se armam
contra mim. Será que o jumento selvagem zurra quando está
junto à relva? Ou será que o boi berra junto ao seu pasto? Pode-se
comer sem sal o que é insípido? Ou haverá sabor na clara do ovo?
Aquilo que a minha alma recusava tocar, isso é agora a minha
comida repugnante. Quem dera que se cumprisse o meu pedido, e
que Deus me concedesse o que desejo! Que fosse do agrado de
Deus esmagar-me, que soltasse a sua mão e acabasse comigo! Isto
ainda seria a minha consolação, e eu saltaria de contente na
minha dor, que é implacável; porque não tenho negado as
palavras do Santo (6.4-10).

Jó está aqui defendendo a sua santidade. É uma situação um tanto


quanto estranha. Porque, se alguém me acusa de ser pecador, eu não
discuto, sou pecador mesmo, fazer o quê? Mas Jó não está sendo
acusado de ser pecador, está sendo acusado de ser um pecador
intermitente, de ser alguém descrente, que vive uma vida de pecados
ocultos que o levaram à desgraça e ao juízo de Deus. E Jó diz: “Sim,
eu fui insensato. Sim, eu falei umas besteiras durante minha dor e meu
sofrimento, mas eu tenho seguido a verdade. Eu não tenho negado a
Palavra, eu não tenho negado aquilo que Deus fez por mim, eu não
tenho negado as palavras do Santo”.
“Por que esperar, se já não tenho forças? Por que prolongar a vida,
se o meu fim é certo? Por acaso a minha força é a força da pedra? Ou
é de bronze a minha carne? Não encontro socorro em mim mesmo;
foram afastados de mim os meus recursos” (6.11-13). Repare na
linguagem de Jó: “Olha, cara, minha pele! Não é de metal não. Gente,
eu não tenho sangue de barata. Eu sou gente.” Jó defende a sua
santidade e sua fraqueza. Ele defende o seu direito de ser fraco, o seu
direito de sofrer.
Jó está dizendo: “Eu amo a Deus, mas, sim, sou falho. Sim, eu sou
pecador. Sim, a minha pele não é de ferro. O sofrimento é tão grande
que eu preferia que Deus me matasse, mas eu não tenho negado as
palavras do Santo. Nem sempre é orgulho e altivez defender a própria
fé. Às vezes, achamos que humildade é sempre assumir a doutrina do
pecado. “Então, eu sou pecador mesmo, eu sou do mal. Ó, meu Deus
do céu, há um poço de maldade dentro de mim. Não, eu sou ruim, eu
sou o próprio diabo.” Tudo bem confessarmos a nossa maldade, o
nosso pecado, mas essa não é toda a verdade. Sim, somos maus,
pecadores falhos, mas existe um pouco mais de verdade além disso:
somos redimidos, alcançados, transformados, somos trazidos para um
caminho de fé. Sim, reconhecemos nossos pecados, assim como Jó
reconheceu, mas quando tentam jogar sobre nós o peso de que cada
pequeno sofrimento da vida veio por falta de um exercício de declarar
e tomar posse da nossa fé e de que estamos sofrendo porque somos
descrentes, devemos responder como Jó: “Espere aí, eu não tenho
negado as palavras do Santo. Não sou perfeito, acabei de falar coisas
insensatas, mas eu tenho ouvido o que o Santo fez por mim, estou
seguindo o que o Santo fez por mim”.
Não deixe Satanás convencê-lo de que você não é crente porque está
sofrendo, não deixe o Elifaz que habita o seu coração convencê-lo de
que o seu sofrimento é o jeito de Deus dizer que você não é crente. O
seu Elifaz interior vai tentar convencê-lo de que está difícil porque
Deus o abandonou, porque você é fraco e pecador. E Satanás vai
querer fazer você crer em parte da verdade de Deus, e não em sua
completude. Satanás vai lhe dar a teologia certa para a dor errada.
Não foi isso o que o diabo fez com Jesus no deserto? “Transforme
aí pedras em pão, porque está escrito. Olha, faz isso porque tá escrito.
Jogue-se daí, porque tá escrito.” Satanás usou a palavra contra Jesus e
ele vai tentar usar a boa teologia contra você também, vai tentar usar
o melhor da teologia reformada para fazê-lo ir embora da fé. Ele vai
lhe mostrar: “Olha como a doutrina do pecado nos alcançou, olha
como o sofrimento vem por causa do pecado. Como é que alguém
crente pode sofrer tanto assim? Esse sofrimento significa que Deus não
está do seu lado porque você é pecador mesmo. Quem sabe você não
seja eleito, talvez você não seja salvo.” E para deixar claro aqui: às
vezes, Satanás vai tentar usar as melhores e ortodoxas pregações para
convencê-lo de doutrinas corretas e tentar levá-lo para o inferno,
aplicando-as para a dor errada.
Tudo está dando errado? Não importa! Há um Cristo poderoso que
o alcançou. Não deixe o Elifaz do seu coração convencê-lo de que as
coisas estão indo mal porque Deus o abandonou. Deus continua fiel.
Você pode olhar nos olhos do diabo e dizer: “Eu não tenho negado as
palavras do Santo. Cristo me alcançou, Cristo me trouxe para perto
dele. Eu continuo crendo nele e o seguindo; eu não largo esse Jesus
por nada.” O sofrimento nessa vida não representa o abandono de
Deus, como não representou na vida de Jó.
A partir do verso 14, Jó começa a lamentar aos amigos: “Ao aflito
deve o amigo mostrar compaixão, mesmo ao que abandonou o temor
do Todo-Poderoso” (6.14). É constrangedor ver que Jó, em
sofrimento, tenha que ensinar seus amigos a consolá-lo. “Cara, deixa
eu lhe ensinar como é que você me consola na minha dor, porque nem
isso você sabe fazer.” Jó enfatiza, aqui, um ponto importante: quando
um amigo sofre, você deve ter compaixão dele, mesmo quando ele
abandona a fé. Por exemplo: você tem um amigo que abandonou a fé
por causa de um sofrimento específico, morreu a mãe, ou a esposa, a
pessoa acabou por abandonar a Cristo nesse sofrimento. O que você
faz? Dá uma pancada na cabeça da pessoa? Claro que não! Você tem
compaixão, misericórdia. Você atrai a pessoa de volta com laços de
amor. Porém, aquele que abandona a Deus no meio do sofrimento não
é como quem abandona a Deus no meio da bonança. Existem
abordagens diferentes e o amor que se manifesta de forma diferente.
Quem abandona a Deus na bonança recebe um tipo de cuidado
diferente daquele que abandona a Deus na provação. As palavras e a
misericórdia se manifestam antes de tudo.
“Meus irmãos me enganaram; são como um ribeiro, como a
torrente que transborda no vale, turvada com o gelo e com a neve que
nela se esconde, torrente que seca quando o tempo aquece, e que no
calor desaparece do seu lugar” (6.15-17).
Ele está dizendo: “Vocês me enganaram, vocês são como um rio que
seca quando se tem sede, vocês são como um rio que, na hora do calor
mais intenso, não está mais lá para poder se banhar. Vocês são meus
amigos, eu deveria encontrar em vocês consolo e, quando eu precisei,
não tive”.
Jó continua:

As caravanas se desviam dos seus caminhos, sobem para lugares


desolados e perecem. As caravanas de Temá procuram essa
torrente, os viajantes de Sabá por ela suspiram. Ficam
envergonhados por terem confiado; quando chegam ali, ficam
decepcionados. Assim também vocês não me ajudaram em nada;
veem os meus males e ficam com medo. Por acaso pedi que me
dessem recompensa? Ou que da riqueza de vocês me trouxessem
algum presente? Será que pedi que me livrassem do poder do
opressor? Ou que me resgatassem das mãos dos tiranos? (6.18-
23).

Ao usar a palavra “recompensa”, Jó parece deixar claro que, de


alguma forma, ele já havia consolado aqueles homens. Ele está
jogando na cara dos amigos: “Olha, eu fiz algo por vocês já. Eu não
pedi recompensa, eu não pedi para vocês virem aqui, eu não pedi que
vocês me ajudassem.” Jó, no fim das contas, está dizendo: “Eu não
pedi que vocês viessem aqui e vocês aparecem para piorar ainda mais
a minha dor. Imaginei que a vinda de vocês seria um consolo, mas foi
como uma miragem no deserto”.
Então, Jó pede para que seus amigos mudem de ideia. Apesar de
repreendê-los, Jó não os repele: no fim das contas, ele precisava
daqueles amigos. É o que vemos a partir do versículo 24: “Ensinem-
me, e eu me calarei; mostrem-me em que tenho errado” (6.24).
Pensamos que vamos encontrar aqui um Jó que tem força para se opor
aos seus amigos e dizer para eles que estão errados. Mas é triste
constatar que, na verdade, o que Jó faz é implorar para que seus
amigos mudem de atitude.
Jó é muito sagaz, pois sabe como lidar com aquela teologia certa
para a dor errado. Ele diz: “Eu sei, eu sou pecador? Ótimo. Me ensina
aí, eu vou ficar calado. Me mostrem como é que essa minha
pecaminosidade tem se manifestado a ponto de ser justo que Deus
faça isso comigo. Me mostrem onde foi que eu errei”.
“Como são persuasivas as palavras retas! Mas o que é que a
repreensão de vocês repreende?” (6.25). É como se dissesse: “Ótimo,
os argumentos de vocês são muito bons, todos somos pecadores, etc.
Mas o que exatamente vocês estão repreendendo? Qual é esse meu
pecado do qual preciso me arrepender? Me diz o que é que eu me
arrependo. É do pecado de forma geral? Mas aí todo mundo teria que
estar arrependido, era para todo mundo estar raspando a pele com um
caco de telha. Do que especificamente preciso me arrepender?”
Jó prossegue:

Por acaso vocês pensam em reprovar as minhas palavras, ditas


por um desesperado ao vento? Até sobre um órfão vocês
lançariam sortes e seriam capazes de vender um amigo! Agora,
pois, tenham a bondade de olhar para mim e vejam que não estou
mentindo na cara de vocês. Por favor, mudem de parecer, e que
não haja injustiça; mudem de parecer, e a justiça da minha causa
triunfará. Há iniquidade em meus lábios? Será que a minha boca
não consegue discernir coisas perniciosas? (6.26-30).

Jó se defende, mas ao mesmo tempo implora aos seus amigos, pois


ele precisa do consolo deles, precisa da aprovação e da validação dos
seus amigos. Ele pede “por favor” para aqueles amigos mudarem de
opinião sobre ele e seu sofrimento, pois ele não queria ficar sem o
cuidado daqueles amigos. Lemos, no Novo Testamento, que a boca
fala do que está cheio o coração, mas nem sempre é assim. Claro, isso
é verdade. Mas, às vezes, as palavras são soltas ao vento vazias de
qualquer sentimento interior que jaz no coração. Anteriormente, Jó
havia falado palavras ao vento.
O dramaturgo francês Fabrice Hadjadj lançou, em 2011, uma peça
chamada Jó ou a Tortura pelos Amigos. Agora, me responda: Não foi
isso o que realmente aconteceu com Jó? Ele está sofrendo pela mão de
Deus, mas quem intensifica o seu sofrimento são os seus amigos. Jó
está sendo torturado pelos seus amigos, ao invés de ser cuidado por
eles.

Às vezes, durante o sofrimento, o que mais pesa não é só a dor da


circunstância, mas a dor daquilo que dizem sobre nós naquela
circunstância. É a falta de cuidado, de ajuda, é a falta de consolo,
a falta de misericórdia, são os pesos, as cargas e as
responsabilidades que muitas vezes são jogadas sobre nós quando
não são nossa culpa, quando não são nossa responsabilidade. E,
enfim, entramos no capítulo 7 do livro de Jó, onde faz um
questionamento muito simples que permeia o capítulo inteiro: se
o homem não é nada, então, por que Deus dá tanta dor ao
homem? Se o homem é tão inútil, frágil, pecador, se o homem tem
uma importância tão pequena, por que Deus dá tanto sofrimento
a ele?
Não é verdade que a vida do ser humano neste mundo é uma luta
sem fim? Não são os seus dias como os de um trabalhador
diarista? Como o escravo que suspira pela sombra e como o
trabalhador que espera pelo seu salário, assim me deram por
herança meses de desengano e me proporcionaram noites de
aflição. Ao deitar-me, pergunto: quando me levantarei? Mas a
noite é longa, e estou farto de me virar na cama, até o amanhecer.
O meu corpo está vestido de vermes e de crostas terrosas; a minha
pele racha e de novo forma pus. Os meus dias são mais velozes do
que a lançadeira do tecelão e se findam sem esperança. Lembra-te,
ó Deus, de que a minha vida é um sopro; os meus olhos não
tornarão a ver a felicidade. Os olhos de quem agora me vê não me
verão mais; os teus olhos me procurarão, mas já terei
desaparecido. Assim como a nuvem se desfaz e passa, aquele que
desce à sepultura jamais voltará a subir. Nunca mais voltará para
a sua casa, e o lugar onde mora nunca mais o conhecerá. Por isso,
não reprimirei a minha boca. Na angústia do meu espírito, falarei;
na amargura da minha alma, eu me queixa-rei. Será que eu sou o
mar ou algum monstro marinho, para que me ponhas sob
guarda? Quando digo: “O meu leito me consolará, a minha cama
aliviará a minha queixa”, então me assustas com sonhos e me
atemorizas com visões (7.5-14).

Jó não tinha o direito de dormir em paz. Ele tentava descansar de


tanta dor, e o sonho era pior do que a realidade, e ele acordava em
pesadelos.

Por isso, prefiro ser estrangulado; antes a morte do que esta


tortura. Estou farto da minha vida; não quero viver para sempre.
Deixa-me em paz, porque os meus dias são um sopro. Que é o
homem, para que tu lhe dês tanta importância, para que dês a ele
atenção, para que a cada manhã o visites, e que a cada momento
o ponhas à prova? Até quando não desviarás de mim o teu olhar?
Até quando não me darás tempo de engolir a minha saliva? (7.15-
19).

“Se pequei, que mal fiz a ti, ó Espreitador da humanidade? Por que


fizeste de mim o teu alvo, tornando-me um peso para mim mesmo?
Por que não perdoas a minha transgressão e não tiras a minha
iniquidade?” (7.20-21). Repare no desespero desse homem diante
daquilo que Elifaz diz, pois o que ele diz não é automaticamente
descartado por Jó; aquilo que Jó ouve entra em seu coração de alguma
forma. Jó se defende das acusações de Elifaz, mas ele considera as
acusações feitas.
“Por que não perdoas a minha transgressão e não tiras a minha
iniquidade? Pois agora me deitarei no pó; e, se me procuras, já terei
desaparecido” (7.21). Jó sente que morrerá a qualquer momento, que
o seu fim é imediato, que não há mais nada esperando por ele nessa
vida. Ele diz: “Senhor, se somos falhos, pecadores, se não somos nada,
por que é que o Senhor está aqui ao meu redor todo dia me
machucando? Se eu não sou nada, se sou falho e pecador, por que o
Senhor está gastando tanta energia ao me punir?”. Jó não quer viver
mais. É triste que tenha chegado a esse nível de dor, de sofrimento, de
amargura e não tenha ninguém que o console, que seja um amigo.
Só podemos louvar o nome de Deus porque nós não estamos
dependendo dos “Elifazes da vida”, não dependemos que o perdão, a
esperança e o consolo venham de quem está do nosso lado, de pessoas
que nos julgam no meio da dor e da dificuldade, não dependemos de
nós mesmos para nos autojulgar. Temos alguém que é um amigo
verdadeiro, que não se coloca acima de nós, mas que se colocou
abaixo de nós; temos alguém que não simplesmente nos culpa, mas
que nos oferece redenção e limpeza. Não dependemos de nenhum
Elifaz para sermos salvos, porque Deus nos deu o amigo que Elifaz
não foi; porque ele se colocou em nosso lugar. E quando Jó pergunta:
“Senhor, por que o Senhor, então, não me perdoa?”, a verdade é que
há um perdão claro e garantido para Jó.
O problema é que ele está olhando para o lado errado. Jó só está
olhando para a dor, em vez de olhar para aquele que leva embora a
nossa dor. Jó diz: “Deus, por que o Senhor gasta tanto tempo à minha
volta me dando esse sofrimento?”, e ele não entendia que Deus ia
gastar muito mais tempo entorno dele levando sobre si o seu
sofrimento. Elifaz só tem a mensagem do pecado e da miséria, porém,
Jesus trouxe a mensagem da redenção e da salvação. Deus responderá
à pergunta de Jó. A verdade é que Deus perdoa a transgressão e tira a
iniquidade. Isso nos é oferecido de novo e de novo no evangelho, em
um Cristo que veio justamente para tirar nossa culpa, um Cristo que
veio ser amaldiçoado em nosso lugar, para que a nossa vida não fosse
constantemente amaldiçoada pelos nossos erros. Isso nos é oferecido
por um Cristo que bebeu da ira do Deus vivo, para que nós não
vivêssemos mais debaixo daquilo que Elifaz estava acusando Jó.
Uma vez que Jesus sofreu fisicamente as dores dos nossos pecados, a
nossa iniquidade foi tirada, a nossa transgressão foi perdoada. Jó
pergunta o porquê e a resposta é: “Jesus, Jó. Jesus. O Messias que virá
vai perdoar toda iniquidade. Só continue confiando, não dê ouvidos a
Elifaz. Há perdão, há um perdão claro em Cristo Jesus.” A doutrina
do pecado é uma doutrina extremamente importante, mas ela,
sozinha, só gera desespero. Jesus traz a verdade que Elifaz não viu. A
verdade de que, sim, somos todos pecadores, mas que ele mandou o
seu Filho para morrer em nosso lugar, para levar os nossos pecados —
o Filho que bebeu do nosso sofrimento, para nos dar um caminho
justo para sempre.
Satanás, assim como fez com Cristo no deserto, vai jogar a Palavra
de Deus contra nós, mas apenas parte dela. O Elifaz de nosso coração
vai tentar jogar contra nós nossas falhas, mas é importante que o Jó
de nosso coração olhe para Deus e ore pedindo por perdão das
transgressões. E Deus vai enviar um amigo, um amigo muito melhor
que Elifaz, um amigo que não vai jogar na nossa cara usando pecados,
mas que vai lançar no nosso coração o perdão que provém dele. Um
amigo que não vai se colocar acima de nós, mas que vai se fazer
menor, inferior, em nosso lugar. Um bom amigo. O amigo que carrega
conosco as nossas dificuldades, que leva para si a nossa impiedade e a
nossa transgressão. Um amigo que Elifaz não conseguiu ser. Um amigo
que oferece redenção e limpeza. Um amigo que sofreria muito mais do
que Jó sofreu, para que nós pudéssemos, por toda a eternidade,
encontrar gozo e esperança nele. Quando os Elifazes falarem em seu
coração, confiem que há um Cristo que não nos culpa, porque a culpa
já não está em nós; há um Cristo que veio não para condenar, mas
para curar, para dar consolo. Ele não é uma miragem no deserto, não
é um rio que some no período da seca, mas ele é uma água abundante
no período de dificuldade.
Quando Jó mais precisou, foi quando seus amigos mais o
abandonaram. É na nossa dificuldade, na nossa necessidade, que Jesus
é o grande amigo que nos recebe e nos leva para o lado dele. Que
possamos encontrar consolo, porque os Elifazes da vida nem sempre
estarão à nossa volta, nem sempre será alguém que vai sentar ao nosso
lado. Os Elifazes da vida, muitas vezes, estarão em nosso coração, em
nossa mente, no nosso interior. E há um Cristo que veio para calar a
boca daquilo que dizemos a nós mesmos, para calar as falsas
pregações que nós pregamos a nós mesmos, calar as teologias certas
que nós aplicamos nas dores erradas em nossas próprias vidas. E
confiamos naquele que nos oferece limpeza e redenção. Ler uma
história triste sabendo das tristezas e felicidades que virão à frente dá
um tom todo diferente à leitura. Quando lemos o livro de Jó, no
início, só tem tristeza, dor e sofrimento. Mas o final é feliz, sabemos
ao ler o livro até o fim. Porém, o final feliz de Jó não está somente no
fim do livro que traz seu nome, mas está nas revelações dos
evangelhos, está na vinda de Cristo Jesus, na revelação de Apocalipse,
está na verdade de que nossa transgressão será plenamente limpa e
viveremos para sempre, como amigos, como comunidade, no reino
eterno desse Cristo.
Deus nos revelou o final para que possamos ler com olhos de
esperança os tristes meios das histórias da vida. Jó era um miserável.
Nós, muitas vezes, somos miseráveis, mas há uma revelação de um
amigo santo, justo e poderoso que limpa a nossa miséria para que
possamos encontrar força e esperança nos maiores dias de caos.
Mesmo quando, à nossa volta, as declarações sobre o nosso
relacionamento com Deus forem baseadas nas circunstâncias, mesmo
quando o nosso coração disser para nós que Deus nos odeia, que Deus
nos abandonou, lembre-se de que o nosso redentor vive, que há um
final feliz para a história.
A boa-nova? Há uma ressurreição que nós não vemos na boca dos
amigos de Jó, mas que nos é dada pelo bom amigo que morreu por
nós.
M L[N ]
Notas do Capítulo

Nota 1 - Luther’s Works, Vol. 51: Sermons I, ed. Jaroslav Jan Pe-likan, Hilton C. Oswald,
and Helmut T. Lehmann, vol. 51. Philadelphia: Fortress Press, 1999, p. 201. [Voltar]
famoso escritor inglês G. K. Chesterton (1874–1936) escreveu

O que chegaria um tempo em que os homens seriam tão


humildes que, talvez, eles não acreditariam mais na tabuada de
multiplicar. O que ele queria dizer é que existia uma
humildade muito comum em seu tempo, que era uma humildade posta
no lugar errado. Segundo ele, a humildade que deveria fazer o homem
descrer de si, fazia com que o homem descresse da própria crença e
que achasse que, por humildade, não deveria acreditar na
possibilidade de acreditar, de que existia verdades objetivas. Já no seu
tempo, Chesterton batia de frente com algo que é muito popular ainda
hoje: de que ter certezas, assumir verdades absolutas, chamar algo de
verdade ou mentira, é arrogância, é altivez. Humildade de verdade é
dizer que “essa é a sua verdade”. Você tem a sua, eu tenho a minha;
existe uma verdade que é o seu ponto de vista, esse é só o meu ponto
de vista. Chesterton dizia que essa era a humildade no lugar errado.
O texto de Jó, que vai do capítulo 8 ao 10, narra a primeira
repreensão de Bildade contra Jó. E Bildade parece tentar gerar um tipo
de postura de humildade em Jó, espera que ele seja humilde no modo
como ele se relaciona com Deus e com o sofrimento. Mas, às vezes,
indicamos posturas humildes diante do sofrimento que são
humildades que não provêm de Deus. Existem humildades no lugar
errado. Pior, existem humildades que vêm do lugar errado, como uma
humildade que vem do diabo. Às vezes, diante do sofrimento, Satanás
tenta nos vencer ao gerar em nós um tipo de postura que parece
humilde, mas que, na verdade, mata a nossa fé. Jó, infelizmente,
sofreu esse tipo de ataque vindo das palavras de seu amigo Bildade.

A PRIMEIRA ACUSAÇÃO DE BILDADE (CAPS. 8—10)


Bildade, o suíta, começa a falar no capítulo 8 do livro de Jó. O seu
discurso é completamente arrogante. E a arrogância de Bildade era
uma arrogância que cobrava humildade, porque, às vezes, cobrar
humildade dos outros é só um jeito de nós sermos arrogantes contra
os outros. A cobrança por posturas humildes nem sempre vem de
corações humildes. Bildade começa dizendo o seguinte:
Então Bildade, o suíta, tomou a palavra e disse: “Até quando você
falará estas coisas? E até quando as palavras da sua boca serão
como um vento impetuoso? Será que Deus perverteria o direito?
Será que o Todo-Poderoso perverteria a justiça? Se os seus filhos
pecaram contra ele, também ele os entregou ao poder da
transgressão que cometeram” (8.1-4).

Primeiro, Bildade começa colocando palavras na boca de Jó. “Você


está dizendo que Deus é injusto?”, é a pergunta que ele faz. Jó já tinha
dito um pouco antes que ele era só um homem sofrendo e que, por
isso, jogava palavras ao vento. Bildade diz que aquelas palavras ao
vento, na verdade, eram vento impetuoso. E ele começa, então, a
tentar levar as palavras de Jó às últimas consequências e a criticá-lo
por possíveis implicações daquilo que dizia. Ele está insinuando que Jó
acusou Deus de perverter o direito, de perverter a justiça. “Jó, você
está dizendo que está sofrendo sem motivo. Você está se defendendo,
dizendo que não está sofrendo por causa de pecados que você tem
cometido escondido. Jó, você está dizendo que Deus é injusto? Você
está dizendo que Deus é corrupto?”
Na cabeça de Bildade, Deus entregar sofrimento sem ser por causa
do pecado seria uma injustiça. Ele possui uma teologia errada e, por
causa dessa teologia, ele julga Jó naquilo que disse. Aqui, então, ele
diz uma coisa muito séria, e de forma arrogante, acerca dos filhos de
Jó. Ele diz: “Se os filhos pecam contra Deus, esses filhos ser ão
entregues à transgressão que cometeram.” E esse “se” aqui não é de
hipótese, é um “se” que manifesta uma certeza acerca dos fatos —
“uma vez que” seria uma melhor tradução. Isso é algo extremamente
injusto de se dizer. “Jó, os seus filhos morreram por causa da própria
injustiça. Você está doente por causa da sua injustiça. Humilhe-se.
Abaixe a cabeça.” E Bildade passa a oferecer soluções simples para Jó:
“O arrependimento gera prosperidade, então, é só se arrepender, Jó,
que vai ficar tudo bem”.
“Mas, se você buscar a Deus e pedir misericórdia ao Todo-
Poderoso, se você for puro e reto, ele, sem demora, despertará para
ajudá-lo e restaurará a justiça da sua morada. O seu primeiro estado
parecerá pequeno comparado com a grandeza do seu último estado”
(8.5-7). Parece até um discurso encorajador, mas era um discurso que
só acrescentava mais peso sobre os ombros de Jó. Era um discurso que
colocava sobre Jó a total responsabilidade por sua vitória, a total
responsabilidade de se dar bem, de conseguir boas coisas de Deus.
Veja que palavras de consolo maravilhosas: “Jó, é só você se
arrepender, é só ser crente, ser reto e justo. Você já era rico, próspero e
saudável. Deus vai colocá-lo sobre coisas ainda maiores. É só se
arrepender e o seu primeiro estado de riqueza vai parecer nada se
comparado com o lugar em que Deus vai colocá-lo”.
É preciso ficar atento, pois, às vezes, as nossas palavras de consolo
provêm do diabo. As nossas promessas a outros de que tudo vai ser
melhor, de que Deus vai colocar a pessoa para cima, de que a pessoa
está sofrendo agora é porque Deus vai colocá-la em um lugar melhor,
nem sempre são palavras que representam exatamente aquilo que
Deus quer dizer aos seus filhos. Como Jó poderia agir diferentemente
de como ele já havia agido ao longo de toda a sua vida, Jó, que
sempre havia sido um homem justo e reto? Bildade está dizendo para
ele que havia uma prosperidade aberta diante dele, que havia
restauração diante de Jó, e que era responsabilidade dele ser digno
daquela restauração. A princípio, pode parecer uma palavra de
humildade: “Jó, é só ser reto, baixar a cabeça, seguir a Deus.” Porém,
Jó sempre esteve vivendo uma vida reta, sempre seguiu a Deus e já
vivia de cabeça baixa. “Ah, Jó, Deus vai restaurar a sua morada, é só
seguir o passo A, passo B, passo C...”, mas, muitas vezes, essa não é a
mensagem que Deus quer dar para o seu filho, de que tudo vai ficar
bem, que basta se arrepender e que será restaurado. Porque isso já é
assumir que, na verdade, o sofrimento vem diretamente de algum
pecado específico. Como Jó se arrependeria de algo que ele não
cometeu?
O discurso de humildade relatado aqui vai soando humilde, mas é
um discurso muito centrado no poder e na força do indivíduo — ele
tem uma humildade tóxica. E Bildade continua, pedindo que Jó
abaixasse a cabeça diante dos homens mais velhos: “Por favor,
pergunte agora aos que são de gerações passadas e atente para a
experiência dos pais deles. Porque nós somos de ontem e nada
sabemos; pois os nossos dias sobre a terra são como a sombra. Será
que os pais não o ensinarão, falando com você? Será que do próprio
entendimento não proferirão estas palavras?” (8.8-10).
É como se Bildade dissesse: “Jó, nós não somos nada. Nós
nascemos ontem, somos muito novos, somos meninos ainda. Olhe
para os pais, para os mais velhos; questione os anciãos, fale com
aqueles que têm a sabedoria do passado e eles irão confirmar essas
palavras.” As palavras de Bildade são de extrema arrogância com
pretensa humildade. Ele assume que não é ninguém (humildade), mas
se esconde atrás da validação da autoridade dos outros (arrogância):
“Eu nasci ontem, eu mesmo não sei de nada. Mas ouça os anciãos e
eles irão confirmar o que eu estou dizendo; fale com os mais velhos e
eles dirão tintim por tintim exatamente o que eu estou lhe dizendo”.
Muitas vezes, a arrogância se disfarça de submissão às tradições.
Muitos colegas que, infelizmente, abandonam a fé e passam a seguir o
catolicismo romano, usam um discurso como este: “Nós não podemos
interpretar a Escritura por nós mesmos. Nós não podemos aceitar que
temos autoridade e que temos o poder de ler a Escritura e chegar a
uma conclusão. Temos que nos submeter à igreja, às tradições, aos
Pais da Igreja, ao magistério. E você verá que eles irão dizer
exatamente o que eu estou dizendo aqui; eles sabem das coisas e irão
confirmar o que eu digo”.
Muitas vezes, carregamos um discurso que a casca é a humildade,
mas que provém direto do diabo. E é um tipo de humildade que
simplesmente joga cargas e mais pesos em cima dos outros. Bildade
diz a Jó que ele não podia se levantar contra as tradições e que, ao ter
essa postura, ele parecia estar se levantando contra a sabedoria dos
mais velhos e dos mais sábios.
No fim das contas, Bildade não está simplesmente colocando-se
junto de Jó como alguém jovem e inexperiente, mas está se colocando
contra ele e ao lado dos mais velhos e experientes, para inculcar em Jó
um tipo de orgulho que ele, talvez, nem mesmo tivesse.
“Pode o papiro crescer fora do pântano? Ou cresce o junco sem
água? Quando estão verdes, e ainda não foram colhi-dos, secam antes
de qualquer outra erva. São assim as veredas de todos os que se
esquecem de Deus” (8.11-13). Causa e consequência direta. O papiro
cresce no pântano, o junco cresce na água, a planta floresce quando é
regada, o sofrimento surge por causa do pecado, ponto. Essa é a
vereda de quem esquece de Deus, essa é a vereda de quem esquece do
Senhor.

[...] e a esperança dos ímpios perecerá. A sua firmeza será


frustrada, e a sua confiança é teia de aranha. Ele se encosta em
sua casa, mas ela não resiste; agarra-se a ela, mas ela não fica em
pé. [...] Eis no que deu a sua vida! E do pó brotarão outros. Eis
que Deus não rejeita o íntegro, nem toma os malfeitores pela
mão. Ele encherá a sua boca de riso e os seus lábios de alegria. Os
que o odeiam se cobrirão de vergonha, e a tenda dos ímpios não
subsistirá (8.13-15,19-22).

Parece um discurso motivador que você ouviria do púlpito de


alguma igreja, mas esse era um discurso que vinha do diabo, cujo
pressuposto falso é de que Jó estava sofrendo porque havia pecado. O
livro de Jó é cheio de mentiras, falsidades e inverdades vindas da boca
de seus amigos. Sim, é verdade que Deus não rejeita o íntegro. Sim, é
verdade que Deus não toma os malfeitores pelas mãos, mas essa não é
toda a verdade.
O sofrimento pode ter sua causa no pecado, mas é arrogante da
nossa parte achar que ele sempre ocorrerá por causa do pecado.
Quando estamos diante de pessoas que sofrem, a nossa principal
função não é tentar achar o que a pessoa fez de errado para que ela
esteja sofrendo, mas é apontá-la para a bondade de um Deus soberano
que guia cada detalhe da nossa vida, apontá-la para um Deus bondoso
que nos conduz de acordo com a sua boa vontade.
É possível mentir falando apenas verdades. Você pode mentir sobre
Deus apenas citando versículos — não foi o que Satanás fez com Jesus
no deserto? Existe uma humildade que provém do diabo, existem
verdades que podem ser pregadas que muitas vezes apresentam
falsidades porque são aplicadas a dores erradas, porque se manifestam
como um peso do jugo sobre homens justos e íntegros. O sofrimento
nem sempre vem para fazer você se arrepender de pecados, mas
sempre vem para fazer você confiar mais no Senhor.
Nós podemos, sim, ter uma humildade que provém de Deus quando
a nossa humildade diz mais a respeito de Deus do que a respeito de
nós mesmos. Nosso discurso, diante daqueles que sofrem, não pode
ser um discurso de cobrança de arrependimento quando nós não
conhecemos os corações. “Ah, irmão, o que Deus quer lhe ensinar?”,
“Ah, veja onde você estava falhando” —, podemos estar diante de um
justo que sofre sem motivo e dizendo inverdades sobre seu sofrimento.
E, enquanto calvinistas, sempre tentamos aplicar a doutrina do pecado
em todos os momentos, enquanto, muitas vezes, devemos motivar
essas pessoas à permanência, à confiança e à fé. Temos por hábito
mostrar tanto a face de justiça de Deus que nos esquecemos de que
existe a face da misericórdia. Satanás tenta nos vencer não apenas nos
deixando arrogantes, mas, às vezes, deixando-nos humildes do jeito
errado, achando que as circunstâncias ruins na nossa vida são sempre
o fruto do pecado.
Não parece errado convidar pessoas ao arrependimento, a baixarem
a cabeça para Deus e considerarem onde falharam. Porém, é errado
quando simplesmente aplicamos de forma direta convites ao
arrependimento como se aquela dor fosse culpa da pessoa, como se
fosse fruto direto de um erro específico. E nós, muitas vezes,
conseguimos encontrar erros nos outros com muita facilidade. Os
amigos de Jó parece que tinham plena certeza e convicção dos pecados
dele. E não é assim nas nossas amizades? Não é assim nos nossos
relacionamentos? Se eu lhe pedir para citar um erro de um amigo,
você vai saber alguns. Se eu pedir a um marido para citar um erro da
sua esposa, tenho certeza de que ele me responderá em fração de
segundos, muito mais rápido do que se eu tivesse pedido para que
citasse uma qualidade ou um acerto de sua esposa. Sempre nos
lembramos do erro dos outros, decoramos as falhas alheias, sempre
temos algum juízo para fazer acerca das outras pessoas.
Parece que o sofrimento de Jó foi uma ótima desculpa para seus
amigos cobrarem tudo aquilo de que eles não gostavam nele, talvez na
personalidade ou no tipo de vida que Jó vivia. Jó era um homem
íntegro e justo e, como diz o ditado, “Nem Jesus agradou a todos”, Jó
também teve seus acusadores, pois a nossa justiça pessoal nunca será
suficiente para que não haja acusações contra nós.
A PRIMEIRA DEFESA DE JÓ CONTRA BILDADE (CAPS. 9—10)
A postura de humildade de Jó tinha que ser uma postura de fincar o
pé naquilo que ele tinha razão e baixar a cabeça diante daquilo que ele
estivesse errado. É difícil se defender da humildade do diabo porque
pode parecer arrogância. E os amigos de Jó o acusam justamente
disso: de ser arrogante por se defender de uma humildade que
provinha do inferno, por se defender de acusações que não provinham
de Deus.
No capítulo 9, Jó responde diretamente ao seu amigo e no capítulo
10 ele lamenta diante das acusações de Bildade.
Aqui, em Jó 9.1, encontramos a verdadeira humildade de quem é
justo:

Na verdade, sei que assim é; porque, como pode o mortal ser


justo diante de Deus? Se quiser discutir com ele, nem a uma de
mil coisas lhe poderá responder. Ele é sábio de coração e grande
em poder; quem ousou desafiá-lo e sobreviveu? Ele é quem
remove os montes, sem que saibam que na sua ira ele os
transtorna. Deus remove a terra do seu lugar, e faz as suas colunas
estremecerem. Ele dá uma ordem ao sol, e este não sai, e sela as
estrelas. Sozinho ele estende os céus e anda sobre as costas do
mar. Ele fez a Ursa Maior, o Órion, o Sete-estrelo e as
constelações do Sul. Deus faz coisas grandes e insondáveis, e
maravilhas que não se podem enumerar. Eis que ele passa por
mim, e não o vejo; segue diante de mim, e não o percebo. Eis que
arrebata a presa! Quem o pode impedir? Quem lhe dirá: “O que
estás fazendo?” Deus não revogará a sua própria ira; debaixo dele
se curvam os ajudantes do monstro Raabe (9.2-13).

Jó entende que Deus é grande, que está muito acima dele, que Deus
é forte. Mas esse é um discurso cheio de verdades e de mentiras
entrelaçadas, cheio de boas percepções de Deus, vindas do bom
histórico de Jó, mas cheio de falsas percepções de Deus, vindas de seu
sofrimento.
Jó sabia que, diante de Deus, ele não era nada e que não estava
sofrendo por arrogância ou por sentir-se mais do que era. Jó sente,
também, que Deus não o ouviria, ainda que pudesse falar com ele
usando argumentos — ele é Deus. O que Jó diria que Deus já não
soubesse? Deus era o justo juiz, como Jó poderia estabelecer sua
própria justiça?
Jó engrandece Deus, pois essa é a verdadeira humildade, não aquela
que simplesmente tenta relacionar de forma muito apressada o
sofrimento dos outros a pecados particulares. A verdadeira humildade
é aquela que levanta e coloca Deus acima de qualquer um de nós. A
postura humilde diante do sofrimento não é a postura de dizer:
pecado, pecado, pecado. A verdadeira humildade diante do sofrimento
é aquela que diz: Deus, Deus, Deus. É aquela que coloca Deus como
grande, como poderoso, como aquele que não erra, como aquele que
está diante de tudo.
Timothy Keller, em seu excelente livro Ego transformado, diz que
humildade não é pensar menos de si, humildade é pensar menos em si.
Humildade não é se arrastar no chão o máximo que puder, não é
esfregar a cabeça no estrume o máximo que conseguir e dizer: “Eu sou
o pior pecador, estou sofrendo porque eu pequei mesmo, não faço
nada que vale a pena, tudo está errado e eu erro e peco.” Humildade é
dizer: “Deus é grande, é poderoso. Deus está acima de tudo; ele é
quem fez as estrelas, quem faz cada uma das coisas.” A verdadeira
humildade é se esquecer de si mesmo e, muitas vezes, nem se colocar
na equação. Humildade não é simplesmente se sentir o menor possível
o tempo inteiro; é se esquecer. Humildade é pensar menos e se colocar
menos nas coisas e olhar mais para aquele que importa. É olhar mais
para a grandeza de Deus do que para nossa pequenez, pois, às vezes,
Satanás pode nos convencer de que somos tão pequenos que Deus não
pode se importar conosco.
Jó entendeu a grandeza de Deus: “Como eu vou discutir com ele?
Como vou argumentar com o Senhor? Olhe a grandeza dele, olhe o
que ele fez, olhe a obra de suas mãos.” É como o salmista diz no
salmo 8: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a
lua e as estrelas que estabeleceste, que é o homem, para que dele te
lembres? E o filho do homem, para que o visites?” (v.4-5). Sim, Jó se
defende, mas ele não se defende rebaixando Deus, dizendo que Deus é
fraco ou algo assim.
As acusações que Bildade faz contra Jó são acusações que provêm
do diabo porque tentam fazer com que Jó seja tão humilde, mas tão
humilde, que ele não se sinta digno de qualquer misericórdia, perdão e
graça da parte de Deus. Podemos notar que Jó fala algumas coisas
esquisitas aqui. Ele fala de um Deus que passou em sua frente sem que
ele pudesse ver, de um Deus que está do lado dele em ira. Jó, de certa
forma, aceita aquilo que seus amigos dizem. Uma das coisas mais
tristes no livro de Jó não é o seu sofrimento, mas o fato de Jó dar
ouvidos a seus amigos, de escutar maus conselhos. Mesmo quando se
defende, alguma coisa entrou na mente de Jó e ele parece ter assumido
que tudo fazia parte de algum pecado que ele havia cometido e que
Deus não queria revelar a ele qual pecado era esse.
Jó continua: “Como então poderei eu responder a ele? Como
escolher as minhas palavras, para argumentar com ele? Ainda que eu
fosse justo, não lhe responderia; pelo contrário, pediria misericórdia
ao meu Juiz” (9.14-15). Isso é humildade. É verdadeira humildade
dizer: “Ainda que eu fosse justo, perfeito, santo, impecável, não
poderia responder a Deus, porque ele é Deus, e eu não sou. E se,
porventura, eu me encontrasse com Deus, eu pediria misericórdia;
jamais olharia para os céus, bateria no peito e diria que o Senhor está
sendo injusto comigo. Eu não encontro motivo para o meu
sofrimento, mas pediria misericórdia, porque ele é o meu Juiz”.

Ainda que eu o chamasse e ele me respondesse, nem por isso eu


creria que ele deu ouvidos à minha voz. Porque me esmaga com
uma tempestade e sem motivo multiplica as minhas feridas. Não
me permite respirar, porque me enche de amargura. Se é uma
questão de força, ele é o forte; se é uma questão de justiça, ele
dirá: “Quem pode me intimar?” Ainda que eu seja justo, a minha
boca me condenará; embora eu seja íntegro, ela me declarará
culpado. Eu sou íntegro, mas não me importo comigo, não faço
caso da minha vida (9.16-21).

É
O discurso de Jó, aqui, é ao mesmo tempo bonito e errado. É belo, é
humilde, mas é um discurso que não representa exatamente a verdade
de quem Deus é. Deus não declara um íntegro culpado. Jó se humilha
diante de Deus, mas ele está sob a influência do que seus amigos lhe
disseram até esse ponto: “É para me humilhar diante de quê? Da força
de Deus? Eu sei que ele é forte. É para me humilhar diante da justiça
de Deus? Eu sei que ele é justo. É para me humilhar diante da
integridade de Deus? Ainda que eu fosse íntegro, eu seria digno de
condenação.” Onde foi que Jó falhou? Onde foi que Jó errou? E a
resposta é: em lugar nenhum, porque ele não estava sofrendo por
causa de pecado. Deus não estava tentando provar nada, apenas
estava trazendo Jó para mais perto. Deus estava usando Jó como
argumento por toda eternidade de que ele era um crente fiel.
Mas Jó (onde está seu equívoco) equaliza tudo debaixo do sol,
como se a vida desse lado da eternidade realmente representasse a
realidade das coisas: “Para mim, é tudo a mesma coisa; por isso, digo:
ele destrói tanto os íntegros como os perversos. Se um flagelo mata de
repente, ele rirá do desespero dos inocentes. A terra está entregue nas
mãos dos ímpios, e Deus ainda cobre o rosto dos juízes. Se ele não é o
causador disso, quem seria?” (9.22-24).
No filme O advogado do diabo, em um dos discursos de Al Pacino,
que interpreta o diabo, diz que, enquanto pula-mos entre um pé e
outro tentando sobreviver, Deus está lá em cima, urinando-se de rir
das nossas desgraças. Jó parece ter ouvido esse discurso do diabo. A
humildade dele aqui é uma humilhação que desonra a Deus, que trata
Deus como alguém que está rindo do desespero dos inocentes, que
trata Deus como alguém que entrega o mundo na mão dos injustos,
que cobre o rosto, que não vê, que faz os juízes da terra serem
injustos. Mas Deus não está rindo do desespero dos inocentes. Pelo
contrário, a Bíblia registra um Deus que enviou um inocente em nosso
lugar, um Deus que se coloca conosco no sofrimento inocente.
Como disse, o discurso de Jó é permeado de verdade e mentira. Sim,
Deus destrói tanto íntegros quanto perversos. Desse lado da
eternidade, Deus traz sofrimento tanto sobre homens bons quanto
sobre homens maus. Lemos no Novo Testamento que Deus levanta o
sol sobre justos e injustos e faz descer chuva sobre os ímpios e os
bons. Desse lado da eternidade, o sofrimento alcança todos os
homens. O justo prospera, assim como o ímpio, muitas vezes; o justo
perece, assim como o ímpio, muitas vezes. Mas Deus não está rindo
do desespero dos inocentes, não está entregando o mundo na mão dos
ímpios, nem está cobrindo o rosto dos juízes.
Sim, Deus era o causador de tudo o que estava acontecendo com Jó,
ele havia entendido isso. Jó repete aquilo que já havia dito no começo
do livro, que Deus deu e Deus tomou, mas o tom aqui é bem diferente
do tom usado outrora. Ele disse no princípio: “Deus deu, Deus tirou,
louvado seja o nome do Senhor.” Mas agora, Jó não descreve mais a
soberania de Deus: “Deus é o causador disso tudo, mas ele está rindo
de mim lá do céu. Deus só pode estar zombando da minha desgraça,
está rindo dos inocentes.” Jó passa a argumentar com base nos
pressupostos da argumentação de Bildade: “Se eu estou sofrendo por
ser injusto, então não há mais nada que eu possa fazer. Se eu estou em
angústias por causa da minha injustiça e do meu erro, então qual é a
alternativa que me resta? O que mais eu posso fazer, além do que eu já
fiz?”

Os meus dias são mais velozes do que um corredor; fogem sem ter
visto a felicidade. Passam como barcos de junco, como a águia
que se lança sobre a presa. Se eu disser: “Vou esquecer a minha
queixa, deixarei o meu ar triste e ficarei contente”; ainda assim
todas as minhas dores me apavoram, porque bem sei que não me
considerarás inocente. Eu serei condenado; por que, pois,
trabalho em vão? (9.25-29).

Jó, infelizmente, acreditou no que seus amigos diziam: “Jó, se


arrependa do pecado que Deus o restaurará . Jó ouviu a voz de
Satanás contra ele. O diabo pode, muitas vezes, mandar pregadores
para sua vida, mandar discursos como o de Bildade, para enfraquecê-
lo durante o sofrimento. Contudo, nem só de arrependimento viverá o
homem, mas também de toda a confiança que provém da palavra do
Senhor. Nós não devemos olhar simplesmente para o lado, baixar a
cabeça e dizer: “pequei” . Devemos também olhar para o lado e dizer:
“Deus é bom, misericordioso e justo, e eu não estou sofrendo por
causa da minha injustiça, por causa do pecado; estou sofrendo porque
Deus sabe o que faz, porque ele é bom e misericordioso”.
Uma coisa que eu já ouvi de colegas que saem do protestantismo e
vão para o catolicismo romano, é que nós somos arrogantes por
propormos a certeza da salvação. Uma coisa que perguntamos para os
novos membros da igreja é: “Se você morrer agora, você vai para
onde?” A resposta de quem confia em Cristo Jesus é uma só: “Eu vou
para o céu.” E a resposta é essa devido à confiança que temos nas
Escrituras. Paulo diz: “[...] sei em quem tenho crido e estou certo de
que ele é poderoso para guardar aquilo que me foi confiado até aquele
Dia” (1Tm 1.12). Existe um espírito que testemunha ao nosso
espírito; há uma certeza que o crente maduro encontra de salvação e
essa certeza nos dá força para perseverar.
Mas Jó estava certo de que seria condenado, tinha certeza de que
Deus não o julgaria inocente. Então, ele faz uma pergunta de
desespero: “Por que trabalho em vão?” Satanás quer tirar de você a
certeza da sua salvação. Ele quer deixá-lo tão humilde, mas tão
humilde, a ponto de você nem saber mais se vai ser salvo e ir para o
céu. Jó profere um discurso de arrependimento tão intenso que ele
entendia que sua vida não valia de nada. O seu esforço para
perseverar, para alcançar santidade, era inútil. Diante de um discurso
tão pesado, a santidade parece nem fazer sentido. “Ah, mas homem é
pecador, todas as nossas obras são trapos de imundície. Nós, mesmos
salvos, não fazemos nada certo, nada bom, nada justo. Tudo o que
fazemos é pecado, está errado; tudo o que fazemos desonra a Deus.”
Mas as Escrituras não dizem exatamente isso sobre o crente. As boas
obras que são trapos de imundície são as obras do ímpio; nossas obras
agora são recebidas diante de Deus como fruto da fé. Quem não faz
nada além de pecar é o ímpio, mas nós vivemos tentando entregar
para Deus adoração com toda a nossa força, com todo o nosso
coração e com todo o nosso entendimento. Em Cristo Jesus, nós
crescemos na graça e no conhecimento, amadurecemos como cristãos
em santidade, nos tornamos experimentados nas boas obras,
crescemos na prática de discernir o que é o bem e o mal, como é dito
em Hebreus.

À
Às vezes priorizamos um discurso tão intenso sobre o pecado e
usamos versículos que falam dos ímpios ainda não redimidos
aplicados sobre os crentes de uma forma que parece que se santificar
nem faz diferença. Se estou imerso na pornografia, no adultério, nas
drogas, na bebida, se estou imerso no orgulho, na lascívia, ou no que
quer que seja, pensamos: “Ah, tanto faz, é tudo Jesus. É tudo Jesus, é
tudo Cristo.” E acabamos caindo naquilo que Paulo condena em
Romanos, que pecamos para que a graça aumente, entendendo que,
porque Deus é misericordioso, podemos viver como quisermos, sem
consequências.
Jó parece acatar esse tipo de discurso e diz: “Por que trabalho em
vão? Eu serei condenado, ele não vai me considerar inocente.” É um
discurso de humildade, mas é um discurso do diabo, porque, em nós,
crentes, há uma confiança que nos é dada em Cristo Jesus, que Satanás
tenta tirar de nós. Satanás tenta nos fazer olhar tanto para o nosso
pecado que achamos que não podemos nos aproximar mais de Deus.

Ainda que me lave com água de neve e purifique as minhas mãos


com sabão, mesmo assim me submergirás no lodo, e as minhas
próprias roupas terão nojo de mim. Porque ele não é ser humano,
como eu, a quem eu responda, se formos juntos ao tribunal. Não
há entre nós árbitro que ponha a mão sobre nós dois. Que ele tire
a sua vara de cima de mim, e que o seu terror não me amedronte!
Então falarei sem o temer; do contrário, eu não estaria em mim
(9.30-35).

Jó entende que Deus está pesando sobre ele, que adianta ir ao


tribunal argumentar com Deus. “Ele não é gente, não é homem para
eu sentar, argumentar e me defender. Então, se é o pecado que me
trouxe até aqui, é o meu fim. Não vale a pena continuar vivendo”.
No capítulo 10, Jó se aprofunda ainda mais em seu lamento: “Estou
cansado de viver. Darei livre curso à minha queixa, falarei na
amargura da minha alma” (10.1). Jó deixa bem claro que suas
palavras são palavras de amargura. Ele não tenta fazer parecer que
aquilo que ele diz é a verdade absoluta dos fatos. Jó está deixando
claro: “Simplesmente dói e, por isso, estou falando as coisas que falo.”
Jó só quer saber o que ele fez de errado, e o sentimento de Jó algo
muito honesto.
“Pedirei a Deus: ‘Não me condenes!’ Faze-me saber o que tens
contra mim. Será que tens prazer em me oprimir, em rejeitar a obra
das tuas mãos e em favorecer o conselho dos ímpios?” (10.2-3).
Repare no pedido de Jó: faze-me saber o que tens contra mim. Ele
diz mais à frente: “São os teus dias como os dias de um mortal? Ou
são os teus anos como os anos de um ser humano, para te informares
da minha iniquidade e indagares o meu pecado? Bem sabes que eu não
sou culpado; todavia, não há ninguém que possa me livrar da tua
mão” (10.5-7). Jó tem um discurso dúbio e muito interessante aqui:
“Deus, o Senhor sabe que eu não sou culpado, mas me faça saber o
que é que o Senhor tem contra mim. Me diga o que foi que eu fiz.” O
desespero de Jó é o desespero de alguém que entende que viveu uma
vida justa com Deus, de alguém que viveu em intimidade com Deus,
mas que foi convencido de que Deus talvez o estivesse rejeitando. O
homem santo diante disso se desespera para entender qual foi o seu
pecado para se resolver com Deus. Porque o santo não sabe viver
longe do Senhor, não sabe viver com o pecado separando-o de Deus.
Jó sabe que é pecador, mas sabe que sua vida era uma vida de
integridade e de arrependimento. E se ele estava sofrendo por causa de
seu pecado, aquilo não fazia o menor sentido. Ele queria se
arrepender, mas de quê?
Note que o discurso de Jó seria um discurso considerado como
arrogante em muitas igrejas hoje em dia. Jó se reconhece como falho,
como pecador, mas entende que, ainda assim, ele vivia uma vida de
justiça. Ele se afastava do mal e vivia buscando a santidade. Se era
algum pecado a causa de seu sofrimento, então, qual era? Bastava que
Deus lhe revelasse para que ele se arrependesse. “Eu peço
misericórdia, mostre-me onde foi que eu errei que eu me arrependo
agora. Mostre-me o meu erro que eu me conserto. Diga-me onde foi
que eu errei, que eu volto atrás”.
Como Jó poderia ser mais justo do que era? Como ele poderia se
arrepender mais do que era arrependido? Jó engoliu e agora
regurgitava o discurso dos amigos. E Jó estava em desespero porque
sentia que havia feito algo errado que ele não conseguia identificar o
que era, como se Deus estivesse escondendo de Jó seu erro para
continuar punindo-o. Jó sentia que havia algo escondido que Deus
não queria revelar. Uma das coisas mais maravilhosas da obra de Jesus
é que Cristo revela o nosso pecado. E, paradoxalmente, uma das
coisas que nos deixam mais assustados é aquela ideia de que não há
nada oculto que não há de ser revelado. É aquela imagem que nos
ensinaram na igreja que, no Último Dia haverá um telão com projetor
passando todos os seus pecados para todo mundo ver. Mas sabe o que
é pior do que isso? São os teus pecados estarem escondidos de você
mesmo e você não ter a oportunidade de lidar com eles. Você ser
punido, ser separado de Deus por pecados de que você nem se lembra,
que nem sabe que cometeu e aquilo ser usado contra você.
Cristo veio para que não vivêssemos mais essa situação. Porque a
Palavra de Deus revela, mostra quem somos, escancara o nosso
pecado. Uma das grandezas da Palavra é que ela revela a nossa
miséria, ela penetra fundo para revelar quem nós somos. E é Jesus
quem mostra a nossa miséria, a nossa pecaminosidade, a nossa
incredulidade; é ele que nos deixa ver o que é que nos separa dele,
justamente para poder nos sarar. Ele é um médico que não esconde a
nossa doença, justamente para nos dar uma cura que vem de sua mão.
Quando Jesus disse que não há nada oculto que não há de ser
revelado, nós, realmente ficamos com medo, trememos diante da
possibilidade de passar vergonha. Mas, como disse, a imagem de
termos os nossos pecados encobertos é ainda mais terrível. Assim, é
como se Cristo passasse um telão diante dos nossos olhos, onde
podemos contemplar a nossa própria maldade e temos a oportunidade
de nos arrependermos. Ele nos desnuda e, então, nos limpa por
completo.
Agora, mais do que isso, nem sempre precisamos conhecer cada um
dos nossos pecados em particular e conseguir nos arrependermos de
um por um, fazer uma lista diante de Deus e conseguir pronunciar em
oração cada um dos pecados que cometemos, porque, assim como Jó,
pecamos de formas que, às vezes, nós nem vemos. Pecamos em
pensamentos, em motivações, pecamos em nosso coração de maneiras
que nós, nem sempre, temos a oportunidade de contemplar. E, ainda
assim, em Cristo Jesus, temos perdão, pois ele levou sobre si até
mesmo os pecados dos quais nem percebemos que cometemos. Ao
longo das Escrituras, vemos que todos os homens que ficaram diante
da face de Deus foram homens que tremeram diante do próprio
pecado. Quando Isaías vê a Deus, ele diz que teme, porque morrerá.
Quando João vê a revelação de Deus no Apocalipse, ele cai do chão.
Veja bem: ele não se joga no chão, ele cai. Não se deixe enganar pelos
ambientes de encontros espirituais em que os líderes dizem: “Deus está
aqui, o Espírito Santo está aqui, anjos estão aqui”, e, na verdade, está
todo mundo brincando, dançando, rindo, rodando. Quando Deus
aparece, ele mostra quem nós somos, e ver quem somos por trás da
casca machuca, e machuca muito; ofende e ofende muito; nos faz
desesperar — ai de mim!
Mas é só isso que nos salva, que nos cura; é só isso que nos dá
esperança, que nos tira do desespero. Cristo nos mostra para, então,
resolvermos. Mas, ainda mais do que isso, na obra perfeita de Cristo,
nem precisamos saber cada detalhe dos nossos pecados. Quando Davi
ora, no salmo 19.12: “Quem há que possa discernir as suas próprias
faltas? Absolve-me das que me são ocultas”, ele está prefigurando o
fato de que a obra de Jesus é tão perfeita, tão completa, tão absoluta,
que ele limpa até onde eu não sabia que estava sujo, ele cura até onde
eu não sabia que estava doente, ele resolve problemas que nós não
sabíamos que tínhamos, ele responde perguntas que nós nunca
fizemos. Em sua obra perfeita, ele nos limpa na completude, na
totalidade.
O medo de Jó relatado aqui é o medo que não precisamos ter
quando estamos em Cristo Jesus. Jó ouviu a pregação do diabo e,
infelizmente, acreditou em uma humildade que tinha cheiro de
enxofre. Jó assumiu um pressuposto falso, pretensamente humilde, de
que estava sendo punido por causa do pecado e, por isso, ele começa a
ver Deus de forma errada.
Lembro-me, sempre que leio essa passagem do livro de Jó, da obra
de William Shakespeare, Rei Lear, quando lemos aquela famosa frase:
“Como moscas para meninos perversos, somos para os deuses. Eles
nos matam por esporte.” Jó, ao assumir que estava sendo punido por
conta de pecados ocultos, que Deus estava escondendo dele os seus
pecados, ele parece acreditar que Deus o estava matando por esporte,
como uma criança com uma lupa diante de um formigueiro. Ele não
conseguiu entender que, na verdade, tudo aquilo era mentira, que seus
amigos estavam tentando convencê-lo de falsidades.

Estou cansado de viver. Darei livre curso à minha queixa, falarei


na amargura da minha alma. Pedirei a Deus: “Não me condenes!”
Faze-me saber o que tens contra mim. Será que tens prazer em me
oprimir, em rejeitar a obra das tuas mãos e em favorecer o
conselho dos ímpios? Por acaso, tens olhos de gente? Ou vês tu
como vê uma pessoa? São os teus dias como os dias de um
mortal? Ou são os teus anos como os anos de um ser humano,
para te informares da minha iniquidade e indagares o meu
pecado? Bem sabes que eu não sou culpado; todavia, não há
ninguém que possa me livrar da tua mão. As tuas mãos me
plasmaram e me fizeram, porém, agora, queres destruir-me.
Lembra-te de que me formaste como em barro. E, agora, queres
reduzir-me a pó? Por acaso, não me derramaste como leite e não
me coalhaste como queijo? De pele e carne me vestiste e de ossos
e tendões me teceste. Tu me deste vida e bondade, e o teu cuidado
guardou o meu espírito. Mas ocultaste estas coisas no teu
coração; e agora sei que este era o teu plano. Se eu pecar, tu me
observas; e da minha iniquidade não me perdoarás (10.1-14).

Jó não podia estar mais errado. É como se dissesse: “Deus está me


olhando, me vendo, me inspirando, me espreitando, procurando os
meus pecados para não me perdoar”.

Se for iníquo, ai de mim! E, se for justo, não ouso levantar a


cabeça, pois estou envergonhado e olho para a minha miséria.
Porque, se levanto a cabeça, tu me caças como um leão feroz e de
novo revelas o teu poder maravilhoso contra mim. Renovas
contra mim as tuas testemunhas e multiplicas contra mim a tua
ira; males e lutas se sucedem contra mim (10.15-17).

Não importa quão difíceis estejam as circunstâncias, não deixe que


Satanás o faça acreditar que situações difíceis significam a rejeição de
Deus; que sentir-se mal é Deus o jogando de lado, que a angústia, a
depressão, o desemprego, a solteirice prolongada, a doença são
abandono de Deus. Não acredite que a solução para esses problemas
seja mais arrependimento, autoflagelo, orar de joelho no milho, sofrer
cada vez mais até que Deus venha e resolva. As coisas não são assim,
pois a nossa confiança não está nas circunstâncias, mas está em um
Deus acima de qualquer circunstância.
Na imagem que Jó montou em sua cabeça, Deus o caçava como um
leão caça a presa. Deus não estaria disposto a perdoá-lo, porque, se
Deus continuava colocando testemunhas e acusadores contra Jó, então
é porque não o estava perdoando. Jó continuava procurando Deus e
arrependimento, prosseguia confessando o seu pecado, mas seu
sofrimento continuava. Porque o sofrimento nem sempre vem sobre a
sua vida por causa do seu pecado. Às vezes, o sofrimento vem
simplesmente para aproximá-lo da pessoa de Deus, para trazê-lo para
mais perto do Senhor.
Deus perdoa; ele não está simplesmente à espreita de pecados.
Cristo não veio para condenar o mundo, porque nós já estamos
condenados. Ele veio para nos salvar, para nos tirar da condenação
que é nossa. Deus não enviou o seu Filho simplesmente para nos fazer
sentirmos mais debaixo do pecado, mas para nos tirar desse mar de
lodo. Ele não veio para empurrar Jó para dentro do charco de lodo,
mas para tirá-lo de lá. Jó acreditou em uma humildade do diabo e essa
humildade do diabo fez com que ele visse Deus de forma errada.
Jó não tinha coragem de levantar a cabeça, mas não era como o
publicano da parábola, que nem ousava olhar para o céu e dizia: “Ó
Deus, tem pena de mim, que sou pecador”(Lc 18.10). O publicano era
detentor de uma humildade genuína, uma humildade que vinha do
Senhor. Porém, Jó estava infectado por uma humildade que vinha do
diabo, pois acreditava que Deus estava contra ele, que haveria uma
face carrancuda contra ele. Mas em Cristo Jesus podemos ter força
para olhar para cima. Dizemos, sim, ainda que com a cabeça baixa:
“Sê propício a mim, pecador”, mas olhamos, então, para os montes
com esperança de onde nos virá o socorro. Podemos erguer os nossos
olhos e olhar para Deus sem medo, deixando de lado todo temor,
sabendo que escapamos da sua ira. Ele não é como um leão ao nosso
derredor — essa é a linguagem usada para o diabo. Deus não está
espreitando as nossas falhas para, então, nos pegar desprevenidos,
como quem pula e diz: “Ahá, mais uma vez, peguei você de novo,
peguei no flagra.” Deus é aquele que nos perdoa, nos abraça, nos
recebe, nos consola. Jó não podia estar mais errado. Ele ouviu maus
conselhos, recebeu da humildade do diabo e falou bobagens sobre
Deus.
Jó se torna tão humilde que acha que o melhor seria morrer:

Por que me tiraste do ventre de minha mãe? Eu deveria ter


morrido antes que um olho me visse! Teria sido como alguém que
nunca existiu e já do ventre teria sido levado à sepultura. Não são
poucos os meus dias? Cessa, pois, e deixa-me em paz, para que
por um pouco eu tome alento, antes que eu vá para o lugar do
qual não voltarei, para a terra das trevas e da sombra da morte,
terra de escuridão, de trevas profundas, terra da sombra da morte
e do caos, onde a própria luz é como a escuridão (10.18-22).

É isso que Satanás quer gerar em seu coração. Desesperança,


desespero, impossibilidade de olhar para frente. Mais uma vez, Jó
deixa claro que quer morrer, que sua vida não vale de nada, que o
quanto antes ele partisse, melhor. O desejo de morte é uma humildade
que provém do diabo. Achar que sua vida não vale nada, que, por
causa do sofrimento, sua vida não tem nenhum valor, que é melhor
morrer logo. Tudo isso é um discurso que provém do inferno.
Satanás quer derrubá-lo no sofrimento por meio de uma falsa
humildade que faz com que você ache que é indigno, que está
separado de Deus, que não tem como ter contato novamente com o
Senhor, que tudo é culpa sua, que você está batalhando em vão. Já a
humildade verdadeira vem do mesmo sentimento que encontramos em
Cristo Jesus, de um Cristo que se humilhou, mas que se humilhou
para nos dar contato direto com Deus, para nos dar perdão e
esperança.
Nós não devemos olhar para os discursos dos amigos de Jó, mas
devemos olhar para a obra perfeita de Cristo Jesus.Somos salvos,
erguidos por um Cristo que foi humilde, que se humilhou, desceu à
Terra; é o Deus que se fez homem, que se faz humano, que vive, sofre
e morre em nosso lugar para revelar nossos pecados e nos dar um
perdão verdadeiro. Somos salvos por um Cristo que veio para nos
dizer que Deus está conosco como Emanuel, para dizer que ele é o
nosso amigo, que está do nosso lado, que está próximo, que lava os
nossos pés, que leva os nossos pecados, que nos traz para perto dele à
destra de Deus. Somos erguidos por um Cristo que, se humilhando,
não considerou por usurpação ser igual a Deus, mas que se rebaixou
por nós. Nós encontramos nele motivo para erguer a cabeça, para
olhar para cima. Nós olhamos para os céus com confiança de que há
um Deus poderoso, um Deus eterno, um Deus humilde, que perdoa os
nossos pecados, as nossas falhas, que ouve os nossos pedidos de
misericórdia.
O sofrimento quer gerar em nós humildade, mas uma humildade
que olha para Cristo com confiança e que, crentes na obra perfeita de
Jesus, nós aceitemos o perdão que nos é conferido pelo Deus vivo.
Não cremos — nem devemos crer — que Deus esconde de nós as
nossas falhas para se levantar contra nós, mas cremos que ele revela os
nossos pecados, às vezes, por meio do sofrimento e que está de braços
abertos para nos doar a sua graça, a sua misericórdia e a sua
redenção.
Jó ainda não via, mas a nós já foi revelado no poder maravilhoso
dos evangelhos, confirmado nas epístolas e é consuma-do no
Apocalipse o fato de que nosso pecado não nos separa mais de Deus,
porque Cristo já foi separado ao tomar sobre si as nossas falhas e
dores. Sabemos que as circunstâncias ruins não nos separam de Deus,
porque nós adoramos um Deus que tomou todas as circunstâncias
ruins sobre si; adoramos um Deus que tem cicatrizes, que cambaleou
até seu trono. Nós somos salvos por um Senhor de glória, que não
está à espreita, mas que nos carrega nos braços.
Se você está em dificuldade, esse é o momento de se apegar ainda
mais no Senhor, ignorar a humildade do diabo e, sim, arrepender-se
dos seus pecados, mas confiar na obra perfeita de Cristo Jesus. É o
momento de olhar para baixo, bater no peito, pedir misericórdia e,
então, erguer os olhos com confiança, olhar para os céus, sabendo que
existe um Deus que o recebe pelos méritos de Cristo Jesus, e não
porque você seja justo e bom — como os amigos de Jó cobravam que
ele fosse. Não deixe os sofrimentos tornarem os seus ouvidos moucos
para as palavras da graça. Não deixe o sofrimento fazê-lo olhar
apenas para baixo, apenas para as dificuldades, para os aspectos
negativos da existência. Às vezes, Satanás quer engambelar você com
um discurso de arrependimento, mas um discurso que ignora o perdão
e a redenção que existe em Cristo Jesus. E olhando para a grandeza do
nosso Salvador e para a sua obra é que conseguimos perseverar na
dor.
Conclusão

as páginas anteriores, mergulhamos nos dez primeiros capítulos


N do livro de Jó, testemunhando sua jornada inigualável de
sofrimento e questionamento. Por meio das palavras inspiradas e
da narrativa poética, fomos levados a refletir sobre a natureza da
existência humana, a dor, a sabedoria e a fidelidade de Deus.
No início da narrativa, conhecemos Jó, um homem justo e temeroso
a Deus, que desfrutava de riquezas, saúde e uma família abençoada.
No entanto, em um momento cruel e desafiador, ele perde tudo o que
possuía: seus filhos, bens e saúde. O cenário é estabelecido para um
intenso diálogo entre Jó e seus amigos, que, em vez de buscar
compreender o propósito divino por trás de sua aflição, acabam em
um jogo terrível de acusação.
Enquanto os amigos argumentam que o sofrimento de Jó é
resultado direto de sua suposta culpa, o patriarca persiste em sua
defesa da própria inocência. Ele clama por justiça, questiona a
sabedoria de Deus e deseja ardentemente encontrar um mediador
entre ele e o Todo-Poderoso. A angústia de Jó revela a natureza
inerentemente complexa e misteriosa da vida.
Ao longo dos capítulos, somos levados a considerar as profundas
questões teológicas e filosóficas que surgem do sofrimento humano.
Continuaremos nesta jornada no próximo volume desta trilogia sobre
o livro de Jó, onde, por meio das palavras do patriarca e de seus
amigos, seremos desafiados a confrontar nossas próprias concepções
sobre a justiça divina, a retidão e a relação entre o homem e seu
Criador.
A jornada de Jó nos ensina que o sofrimento pode ser uma
oportunidade para o crescimento espiritual e aprofundamento da fé. É
uma lembrança de que, embora não possamos compreender
plenamente os desígnios de Deus, podemos confiar em sua sabedoria e
amor infinitos. Ao abraçar a esperança e a redenção, Jó emerge como
um exemplo de resiliência, perseverança e confiança inabalável em
meio às adversidades.
Que as revelações de Jó inspirem todos nós a enfrentar os desafios
da vida com fé e esperança, sabendo que, mesmo nas situações mais
sombrias, Deus está presente e pode transformar nossa dor em
bênçãos abundantes.
Espero você no próximo volume desta série de reflexões sobre o tão
desafiador livro de Jó!
Índice de ilustrações

Capítulo 1
Jó é açoitado por Satanás
Dirck Volckertsz. Coornhert (atribuído a), após um desenho de:
Maarten van Heemskerck.
1548-1550

Capítulo 2
Jó reprovado por seus amigos
James Barry
1777

Capítulo 3
A meditação da paixão: Jeremias, Cristo e Jó
Vittore Carpaccio
1490

Capítulo 4
A visão de Elifaz
William Blake
1825

Capítulo 5
Jó e seus amigos
Ilya Repin
1869
Sobre o autor

Yago Martins é mestre (Th.M) em Teologia Sistemática pelo Instituto


Aubrey Clark (Fortaleza/CE) e bacharel em Teologia pela Faculdade
Teológica Sul Americana (Londrina/PR), além de formado na primeira
turma de pós-graduação em Escola Austríaca de Economia do Centro
Universitário Ítalo Brasileiro (São Paulo/SP) e na pós-graduação em
Neurociência e Psicologia aplicada da Universidade Presbiteriana
Mackenzie (São Paulo/SP).
É autor e coautor de outros dezessete livros, entre eles, A religião do
bolsonarismo (2021, Episteme), No alvorecer dos deuses (2020,
Thomas Nelson Brasil ) e A máfia dos mendigos (2019, Record).
Em 2017, seu artigo Escatologia e utopia: As origens religiosas da
esperança socialista recebeu o Prêmio Gabriel Oliva como melhor
artigo na categoria Ciência Política na 5a edição da Conferência de
Escola Austríaca no Brasil. Em 2018, foi homenageado pela Câmara
Municipal de Fortaleza pelo seu protagonismo na luta pela liberdade
religiosa.
Pastor na Igreja Batista Maanaim, trabalha desde 2009 com
evangelismo de estudantes secundaristas e universitários na Missão
GAP, sendo presidente do conselho diretor desde 2016. Preside o
Instituto Schaeffer de Teologia e Cultura, por meio do qual organiza
anualmente o Fórum Nordestino de Cosmovisão Cristã.
É casado com Isa Martins e pai de Catarina e Bernardo.
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