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Universidade Estadual de Feira de Santana

Departamento de Ciência Humanas e Filosofia


Programa de Pós-Graduação Lato Sensu

Vinicius Pimentel Ferreira

O Hermetismo Antigo como proposta educacional


A filosofia como um modo de vida

Feira de Santana
2023
Vinicius Pimentel Ferreira

O Hermetismo Antigo como proposta educacional


A filosofia como um modo de vida

E aquele que persegue a filosofia


ao seu mais alto alcance aprenderá
onde está a Realidade e o que ela
é; e tendo aprendido isso, ele será
ainda mais piedoso. E daí em
diante será impossível para ele se
afastar do Bem. Pois nunca, meu
filho, uma alma que se elevou
tanto a ponto de compreender o
verdadeiramente bom e real pode
escorregar para o mal e o irreal;
pois a alma adquire um
maravilhoso anseio pelo Bem e o
esquecimento de todos os males,
quando aprende a conhecer seu
próprio Antepassado.
FHE. IIb-3.

Feira de Santana
2023
2
Resumo: Os textos do hermetismo antigo, atribuídos ao lendário Hermes Trismegisto são
uma coletânea filosófico-religiosa do séc I d.e.c, por meio de alegorias míticas e conceitos
muito próprios, o hermetismo surge como uma proposta de modo de vida que tem como
fundamentação base propor a necessidade do ser humano reconhecer-se como possuidor de
afetos responsáveis por seus sofrimentos e vícios. Nessa caminhada pelo reconhecimento da
existência desses afetos, o hermetismo traz a perspectiva de que nosso sofrimento e vício pode
ser superado através de uma busca do conhecimento verdadeiro e de um ethos que nos
encaminharia ao que ele chama de “regeneração”. Essa regeneração, que é uma proposta de
vida prática baseada em um viver no mundo a partir de uma perspectiva filosófica, seria o
primeiro passo em busca de uma vida mais feliz e mais responsável com os indivíduos e com
o mundo em que vivemos. Nesse sentido, o estudo do hermetismo como uma proposta
educacional, é uma proposta para a construção de um ethos onde o indivíduo parte da busca
do conhecimento daquilo que é verdadeiro para assumir sua responsabilidade consigo mesmo,
com seu meio e com seus pares.

Palavras chave: Hermetismo; Educação; Filosofia; Modo de Vida

Abstract: The texts of ancient Hermetism, attributed to the legendary Hermes Trismegistus,
are a philosophical and religious collection from the 1st century CE. Through mythical
allegories and unique concepts, Hermetism emerges as a proposal for a way of life that is
based on the fundamental idea that human beings need to recognize themselves as possessors
of emotions that are responsible for their sufferings and vices. In this journey of
acknowledging the existence of these emotions, Hermetism offers the perspective that our
suffering and vices can be overcome through a search for true knowledge and an ethos that
would lead us to what it calls "regeneration." This regeneration, which is a practical approach
to life based on a philosophical perspective, would be the first step towards a happier and
more responsible life with oneself and the world we live in. In this sense, the study of
Hermetism as an educational proposal is a proposition for building an ethos where individuals
embark on the pursuit of knowledge of what is true in order to assume their responsibility
towards themselves, their environment, and their peers.

Keywords: Hermeticism; Education; Philosophy; Way of Life

3
Siglas:
CH - Corpus Hermeticum
LT - Logos Teleios ou Asclépios Latino
FHE- Fragmentos Herméticos Estobeus
KK - Kore kosmou
a.e.c - Antes da era comum
d.e.c - Durante da era comum

4
Índice

História, nous e logos. página 06


O Homem da queda à ascensão: uma Filosofia de Vida. página 10
A via hermética da educação. página 20
Conclusão. página 21
Bibliografia página 23

5
História, nous e logos.

O Hermetismo deve ser entendido aqui como o nome dado a doutrina atribuída a
Hermes Trismegisto entre o século I e IV da era comum. Essa doutrina é dividida em um
conjunto de textos que atualmente conhecemos como Corpus Hermeticum, O Asclépio Latino
ou Logos Teleios, Fragmentos Herméticos de João Estobeu, Fragmentos Herméticos
Armênios e Fragmentos Herméticos de Nag Hammadi. Todas essas obras foram escritas nos
idiomas grego antigo, latim, copta e armênio e possuem sua origem localizada na cidade de
Alexandria no Egito. Os antigos entendiam que a doutrina de Hermes Trismegistos tinha uma
caráter filosófico, sagrado, educacional, mágico e científico (pois em seus textos práticos,
abordava também medicina, astronomia e filosofia natural). As obras herméticas são divididas
em hermetismo teórico ou filosófico e em hermetismo prático, nesse artigo irei me ater
unicamente ao considerado hermetismo filosófico.
Na antiguidade tardia vários autores usavam o termo Hermaikoi [Ἑρμαϊκοὶ], ou
Hermaikoi Bibloi [Ἑρμαϊκοὶ Βίβλοι], ou Hermaika Bíblia [Ἑρμαϊκὰ Βιβλία], para se referir
aos textos ou doutrina original de Hermes Trismegistos, embora na própria coleção de textos
do hermetismo o termo hermaikos [ἑρμαϊκός] não aparecesse. Dentre os autores que tinham
conhecimento desse conjunto de obras naquele período, alguns afirmavam-se pertencentes ou
meramente conhecedores da corrente de pensamento de Hermes [ἑρμαϊκὴ σειρά] como por
exemplo o Proclo1, Jâmblico, Cirilo de Alexandria, Tertuliano, Cipriano, Zósimo de
Panópolis, João Estobeu e Santo Agostinho.2 Porém afirmar que esses autores conheciam ou
se intitulam seguidores da corrente de pensamento de Hermes não deve implicar que faziam
parte de um grupo, escola ou seita fechada a Ἑρμαϊκὰ Βιβλία, mas deve apontar para o fato de
que esses textos eram conhecidos, lidos e que influenciaram muitos autores.
O termo hermético normalmente atribuído a doutrina de Hermes Trismegistos não
possui sua origem no grego antigo, com evidências de que começa a ser apresentado no
século XIX d.e.c nos textos no grego moderno. Essa palavra na língua portuguesa é uma
transliteração que vem do grego moderno Hermetikós [ἑρμητικός] que por sua vez vem da
influência francesa hermétique, no francês deriva do latim hermeticus, derivado do teônimo
grego antigo Hermes [Ἑρμῆς]. O uso do termo hermético para fazer referência a algo fechado
ou de difícil acesso só surge com os alquimistas medievais, e fazia referência a vasos que
guardavam compostos nocivos como o mercúrio (nome romano de Hermes) e que precisavam

1
Proclo, p 21. 2020 e Lira, p 28.2014
2
Lira, p 30. 2014 e Oxford, p29 . 1924
6
ser muito bem lacrados para evitar vazamentos, esses vasos lacrados e ocupados por mercúrio
eram chamados de vasos herméticos ou vasos de hermes (vas Hermetis ou vas
hermeticum).Dessa maneira compreendo que o termo hermético como entendemos na
atualidade deriva do latim hermeticus, implicando àquilo que é lacrado e só vem a ter seu uso
vernacular na modernidade.3
O termo hermetismo ou hermeticismo também utilizado para se referir a doutrina
“filosófica” de Hermes Trismegistos, e quase que exclusivamente para isso, só vem a fazer
parte do uso corrente em diversos idiomas a partir dos séculos XIX e XX da era comum,
como do inglês hermetism, do francês hermétisme, do espanhol e do português hermetismo,
do italiano ermetismo e do alemão Hermetismus. No século XVIII usou-se também o termo
hermético para se referir ao conglomerado de conhecimentos místicos ou religiosos,
organizados de forma eclética, que misturava sem nenhum rigor histórico ou conceitual
noções de egipcismo, egiptomania, orfismo, pitagorismo, judaísmo esotérico, cabala,
astrologia, alquimia, salomonismo, catolicismo místico, rosacrucianismo e etc. De modo que
tornou-se também usual compreender como hermético qualquer conteúdo de cunho religioso
ou místico de caráter multifacetado, multicultural e sem rigor. Por essa influência que nos
séculos XIX e XX uma grande quantidade de clubes, sociedades ou seitas passaram a surgir
atribuindo a si mesmas o título de herméticas, evocando ou não o nome de Hermes
Trismegistos, com o sentido de se afirmarem como fechadas, dotadas de segredo, de difícil
entrada muito mais influenciadas pela percepção da palavra hermética derivada da alquimia
medieval que da doutrina de Hermes Trismegistos propriamente.4
O Hermetismo dentro do ambiente acadêmico, entre os séculos XIX e XX, inspirado
talvez pela visão da antiguidade tardia, passou a se delimitar aos textos atribuídos a Hermes
Trismegistos [Ἑρμῆς Τρισμέγιστος], em que o próprio Hermes Trismegistos não só é visto
como autor, mas também como personagem na maioria das obras, os textos são apresentados
em estilo dialogado, lembrando os textos platônicos, textos esses que integram um grupo
específico de personagens, e que se relacionam a partir de ideias doutrinárias específicas que
propõe uma relação integrada de perspectivas sobre Deus, sobre o Homem, sobre o Mundo,
sobre a Alma, sobre a Origem e a Finalidade de todas as coisas.5 Existe uma forte discussão
entre os acadêmicos se os textos de Hermes devem ser considerados textos religiosos ou
filosóficos, ou se são textos que são em algumas passagens filosóficos e em outras passagens

3
Lira.p 26 e 27. 2014
4
Lira.p 26 e 27. 2014
5
Lira.p 31. 2014
7
são textos religiosos. Não pretendo desenvolver essa questão por quatro motivos, o primeiro é
que enquadrar o texto hermético não ajuda o desenvolvimento do meu trabalho que é
compreender como o hermetismo pensa uma proposta de ser no mundo e como essa proposta
pode implicar positivamente na reflexão sobre o ensino de filosofia, o segundo motivo se trata
que mesmo que eu viesse a fazer a proposta de que esses escritos são textos puramente
religiosos, nada me impediria de estudá-los filosoficamente, o terceiro motivo é que, aquilo
que se considera filosófico nas obras herméticas é colocado como ferramenta para
desenvolver e apoiar aquilo que é considerado religioso6 e por último e não menos importante
a razão de que não há um consenso dentro do próprio meio acadêmico do que por acaso possa
vir a ser considerado filosofia ou se há uma única forma de filosofia ao invés de filosofias.7
E em paralelo a essa discussão contemporânea o próprio hermetismo vê a si mesmo
como filosofia, e principalmente como uma filosofia diferente dos moldes gregos.8 Para o
hermetismo a Filosofia dos gregos busca tratar da multiplicidade das coisas, da multiplicidade
dos raciocínios enquanto a filosofia hermética (aqui chamada pela obra de “A Verdadeira
Filosofia”) tem como finalidade orientar a razão (λόγος) pelo nous [νους], com a finalidade
única de revelar o primeiro princípio de todas as coisas, buscando a unidade e não a
multiplicidade como meio de orientar o homem ao encontro da Verdade e de si mesmo, com a
finalidade de elevá-lo ao seu ser verdadeiro, que é o melhor que ele pode ser.9
Para pode tratar do hermetismo como modo de vida e educação filosófica, se faz antes
necessário compreender os principais conceitos e premissas de seu pensamento. A palavra
Nous [νους] como exposta no Hermetismo Antigo não possui uma tradução na língua
portuguesa, sendo traduzida normalmente para Mente, Intelecto ou Inteligência, não podendo
ser compreendida no sentido de uma mente psicológica, emocional ou racional. Sendo uma
faculdade do conhecimento superior a razão, a imaginação e a emoção que nos permite a
compreensão e a aproximação do conhecimento Verdadeiro, sobrenatural ou metafísico
mediante processos que se traduzem através de símbolos, enigmas e intuições, mas jamais por
meio de processos dedutivos ou lógicos. As coisas que só podem ser compreendidas pelo
Nous são chamadas de noéticas ou inteligíveis, que são por exemplo os objetos da ética (o
bem) e da estética (o belo). É o nous que faculta o homem a possibilidade de conhecer a Deus

6
Lira.p 34. 2014
7
E, como podemos encontrar a resposta unívoca para “que é filosofia?”, não somente não é possível,
mas cada uma das eventuais respostas poderia dar lugar a concepções diferentes da filosofia e do
filosofar. Alejandro, Cerletti. p 11 .2009
8
Corpus Hermeticum XVI-2 e Logos Teleios - 4.
9
Logos Teleios - 4.
8
ou o sobrenatural, e o conhecimento noético não pode ser expresso claramente pela linguagem
(λόγος10) a não ser por meio de alegorias, analogias, símbolos e enigmas que servem como
ponte para a experiência noética.
Nesse sentido a coisa noética ela mesma não pode ser dita de forma nua, pois para o
Hermetismo o λόγος somente é capaz de dizer o mundo, porém apesar da linguagem não ter
acesso ao inteligível ele mesmo, por meio dos sentidos e da linguagem (que servem de gatilho
para o processo de reminiscência) o νους encontra o caminho para o que há de superior e
Verdadeiro. O νους além de ser uma faculdade do conhecimento muito superior a razão
(λόγος), é também considerada aquilo que realmente nos torna humanos no sentido último da
palavra, é parte de nós que nos separa dos demais animais e nos permite a possibilidade de
compreender o cosmos como alguém que se coloca do ponto de vista transcendental,
transformando o cosmos não apenas no mundo ao nosso redor, mas em um objeto do
pensamento. Por sua vez o Logos [λόγος] é para o hermetismo a faculdade da razão e da
linguagem, capaz de dizer o mundo ao passo que recebe as impressões advindas dos sentidos.
O Nous e o Logos não são separados um do outro, ao mesmo tempo que, o Logos é gerado
pelo Nous, de modo que na hierarquia das faculdades do conhecimento temos em primeiro
lugar o Nous, em segundo o Logos e por último a sensibilidade.

O Logos difere do Nous do mesmo modo que a divindade difere de


Deus. A divindade nasce de Deus, assim como o pensamento (Logos),
que é irmão da palavra, nasce da Inteligência (Nous). De fato: o
pensamento e a palavra são um o instrumento do outro, pois nem a
palavra é falada sem pensamento nem o pensamento manifesta-se sem
a palavra. Portanto, a sensação e o pensamento brotam juntos e estão
entrelaçados no ser humano. Não há pensamento possível sem a
sensação, nem sensação sem pensamento. CH IX - 1 e 211

10
λόγος (Logos) é utilizado no hermetismo para se referir a linguagem, a palavra, ao discurso racional
e a razão.
11
νοήσεως δὲ ὁ νοῦς διαφέρει τοσοῦτον ὅσον ὁ θεὸς θειότητος. ἡ μὲν γὰρ θειότης ὑπὸ τοῦ
θεοῦ γίνεται, ἡ δὲ νόησις ὑπὸ τοῦ νοῦ, ἀδελφὴ οὖσα τοῦ λόγου, καὶ όργανα (ταῦτα ἀλλήλων·
οὔτε γὰρ ὁ λόγος [[ἐκφωνεῖται] (... ) χωρὶς νοήσεως, οὔτε ἡ νόησις [φαίνεται] (ἐκφωνεῖται)
χωρίς λόγου. ἡ οὖν αἴσθησις καὶ ἡ νόησις ἀμφότεραι εἰς τὸν ἄνθρωπον συνεπεισρέουσιν
ἀλλήλαις, ὥσπερ συμπεπλεγμέναι
9
O Homem, da queda à ascensão: uma Filosofia de Vida.

O Livro um do Corpus Hermeticum, intitulado Poimandres, trata-se de um texto


alegórico onde narra-se a criação do mundo, do homem e o propósito existencial humano. O
texto inicia quando Hermes Trismegisto se põe a refletir sobre os seres (sobre o sagrado) seu
Nous (sua faculdade de manifestar e se conectar ao divino) se conecta ao Nous-Deus12 e então
seu objeto de reflexão se faz presente. Quando o Nous-Soberano aparece, Hermes pergunta
sua identidade, e ele responde:

“Eu sou o Poimandres, o Nous da autoridade. Eu sei que desejas, e estou presente em todos os
lugares para te ensinar tudo o que queres saber, e eu te ensinarei.” (CH. I-2)13

Quando a entidade apresenta seu nome, fala também a que veio, a palavra Poimandres
também tem origem grega e comunica um significado. Poimandres vem do grego Ποιμανδρές
que é a união de (ποιμεν: pastor) e (άνδρες: homens) de modo que ao afirmar “eu sou
Poimandres” ele diz “eu sou o guia dos homens”. Essa escolha de nome faz sentido, pois o
papel desempenhado por Poimandres é de o grande iniciador, o orientador do modo correto de
viver. Hermes Trismegisto é então iniciado na perspectiva filosófica e religiosa apresentada
por Poimandres e é consagrado a partir daí a um sacerdócio ou função orientadora. Hermes
foi iniciado por um mestre não humano (no sentidos de ter carne e osso), chama seu mestre
iniciador de Agathodaemon14 (CH.XII-1) implicando a ele não apenas um caráter simbólico
ou alegórico de entidade, mas como uma entidade viva intelectualmente e moralmente boa
que o guia em seu modo de vida para que Hermes torne-se algo além do homem ordinário,
mas um homem ciente da própria natureza e propósito, tornando-se também um
“poimandres”. Diz Hermes:

“Eu, depois de erguê-los, tornei-me o guia da raça humana, ensinando-lhes palavras sobre
como e por qual meio serão salvos. Semeei entre eles as palavras da sabedoria e foram
alimentados com a água ambrosíaca.” (CH. I-29)15

12
A inteligência divina, Deus enquanto guia da humanidade
13
Εγώ μέν, φησίν, εἰμὶ ὁ Ποιμάνδρης, ὁ τῆς αὐθεντίας νοῦς.
14
O bom daimon, o daimon no hermetismo é aquele que distribui o fado, o responsável pelos
caminhos dos homens, sejam eles bons ou maus.
15
ἐγὼ δέ, ἀναστήσας αὐτούς, καθοδηγὸς ἐγενόμην τοῦ γένους, τοὺς λόγους διδάσκων, πῶς καὶ τίνι
τρόπῳ σωθήσονται, καὶ ἔσπειρα ἐν αὐτοῖς τοὺς τῆς σοφίας λόγους, καὶ ἐτράφησαν τὸ σπαρὶν ἐκ τοῦ
ἀμβροσίου ὕδατος. Hermes Trismegistos- I-29
10
Surge então o Hermes-Poimandres, que guiado pelo nous torna-se o guia dos homens,
o grande sacerdote e educador da filosofia a qual chama-se de Hermetismo. Na literatura
adota como discípulo seu filho Tat, Asclépio e o Faraó Amon. Considerando então que o
primeiro iniciador foi o Nous-Deus e o segundo Hermes Trismegisto nessa proposta mítica
em que a iniciação se dá pelo conhecimento dos absolutos do divino (os Seres) através do
nous que trás a γνοσε16, percebemos pelas consequências dessa iniciação que o primeiro
caminho apascentado por Hermes Trimegisto pelo Hermetismo é, dentre vários de suma
importância, o de ser um iniciador, de ser um educador dos mistérios sagrados da vida.
Como já foi dito, primeiro tomo do Corpus Hermeticum (CH) é uma narrativa da
iniciação de Hermes Trismegisto nos mistérios divinos pelo Agathodaimon Poimandres que é
apresentado como uma entidade superior a todas, por ser a primeira manifestação, ao mesmo
tempo que é o Nous Deus, ou seja, uma manifestação da mente divina dotada de Logos
(linguagem e razão). Neste livro Poimandres submete Hermes a experiência religiosa
(portanto simbólica) sobre a cosmogonia e a antropogonia, partindo desses para sugerir um
ethos, ou seja, parte da história mítica revelada para propor o modo correto de viver para
todos aqueles que buscam purificar-se do que não são e ascender ao estado divino (apoteosis)
que é a proposta central do CH.
O Kore Kosmos17, assim como o Poimandres é também um livro de caráter iniciático
ou educador, se passando dentro da “mitologia hermética” como um acontecimento anterior a
iniciação de Hermes por Poimandres, trazendo a narrativa da deusa Ísis que inicia seu filho
Hórus nos mistérios da imortalidade e da criação do Homem e do Cosmos para, a partir dessa
narrativa traçar qual a finalidade existencial humana e divina. Ambos os textos (O
Poimandres e o Kore Kosmos) apresentam mitos que justificam a queda do homem, mitos
diferentes é bem verdade, mas que possuem para além da vestimenta simbólica a perspectiva
de que a causa da queda do homem se dá por um não comprimento do seu dever existencial,
dever esse que apesar de diferentes em finalidades é dividido por todos os entes (incluindo
daemons e deuses) e que seu não cumprimento implica num afastamento do divino, numa
corrupção e por tanto em uma queda.
No Kore Kosmos a queda se dá pela desobediência das leis divinas que apontavam
qual a função e posição existencial do Homem (KK I-17,24 e 25). Vale salientar a incrível

16
gnose: o conhecimento superior adquirido de forma noética (pelo nous) e não racionalmente
17
Texto pertencente a coleção “Fragmentos Herméticos Estobeus”
11
semelhança dessa perspectiva com a encontrada no livro A República de Platão18 que também
parte do princípio que a corrupção é consequência do afastamento entre o sujeito e sua função
cósmica, mostrando a queda como um não cumprimento do dever celestialmente imposto
precede a literatura hermética. Para o Hermetismo todas as coisas possuem uma função que
lhe é própria, a exemplo da função dos seres demiúrgicos é criar, das árvores é gerar frutos e
do Homem é ser piedoso buscando o conhecimento e o cuidado das coisas divinas e naturais
por meio do nous que traz a purificação por intermédio da gnose, da magia, da ciência e da
arte (KK I-68).
Para compreender melhor a queda do homem se faz necessário narrar aqui um pouco
de sua origem, ou seja, da antropogonia hermética que justificará não apenas o processo de
queda como a possibilidade de ascensão. No primeiro tomo do Corpus Hermeticum é
afirmado pelo daemon Poimandres que o Homem foi feito a imagem e semelhança de Deus,
essa afirmação carrega consigo uma pista da natureza do Homem quando bem analisamos a
passagem que diz:

“No entanto, o Nous, Pai de todas as coisas , sendo vida e luz,


engendrou um ser humano semelhante a ele mesmo e o amou como
seu próprio filho, uma vez que o Ser Humano era muito belo: ele
reproduzia a imagem do seu Pai, de modo que, na verdade, Deus amou
sua própria forma e entregou-lhe todas as suas criaturas.” CH 1-1219

Nesta passagem é afirmado que o homem foi criado à imagem e


semelhança do Nous de Deus, propondo por tanto que somos em
realidade um Nous. Seguindo esta passagem podemos pensar que
não somos nosso corpo (Soma), nem nossa mente racional (Logos),
nem nosso espírito vivificador (Pneuma) e muito menos a coisa
que veste o corpo e carrega nosso Nous e nossos afetos, ou seja,
nossa alma (Psykhé), uma vez que somos a imagem e semelhança
do Nous. Para que isso fique claro se faz necessário explicar o que
são cada uma dessas partes que compõem o que chamamos de ser humano expressas na
gravura ao lado intitulada “camadas do homem no hermetismo”.

18
“ A Justiça consiste em fazer seu próprio trabalho e não interferir nos dos outros[...] Assim, esse
princípio nos ordena que cada um desempenhe a sua função própria de ser, de certo modo, a
justiça.[...] Dessa virtude pela qual cada um se ocupa da sua tarefa própria e não interfere na dos
outros.” (Platão. A República. p 132. Livro IV)
19
“ὁ δὲ πάντων πατὴρ ὁ Νοῦς, ὢν ζωὴ καὶ φῶς, ἀπεκύησεν Ἄνθρωπον αὐτῷ ἴσον, οὗ ἠράσθη ὡς ἰδίου
τόκου· περικαλλὴς γάρ, τὴν τοῦ πατρὸς εἰκόνα ἔχων· ὄντως γὰρ καὶ ὁ θεὸς ἠράσθη τῆς ἰδίας μορφῆς,
παρέδωκε τὰ ἑαυτοῦ πάντα δημιουργήματα.” CH 1-12

12
No Hermetismo o corpo material20 é o veículo no qual a alma se torna manifesta no
mundo material e é também ele quem permite nosso contato e apreensão das coisas
pertencentes ao cosmos, sem os sentidos agindo sobre o mundo não seria possível o
pensamento (CH IX-2 e LT-8), de modo que a existência humana material no Hermetismo é
condição necessária ao conhecimento das coisas também de natureza material, o corpo é o
envólucro de quem somos, mas não é quem nós somos. O corpo por sua vez envolve a
pneuma colocada em algumas traduções como espírito, a pneuma tem o papel de vivificar
nosso corpo, de modo que morrer implica que esta substância não está mais agindo na
animação corpórea. A pneuma por sua vez está entre o corpo e a alma (e aparentemente é
proveniente da alma, pois para lá se retira no momento da morte, como é afirmado no CH
X-13) que é envolvida pelo corpo e pela pneuma, a alma é o receptáculo que mantém nossa
individualidade, nossa identidade, nossa faculdade racional e nossa faculdade noética. Dentro
da alma está o logos que nos dá a faculdade do pensamento dedutivo, da razão, da linguagem
e da imaginação, da produção de símbolos que servem como envoltórios do que é noético e
também em nossa alma está o nosso nous que é superior a linguagem e que nos dá faculdade
da gnose, do conhecimento transcendental e inteligível, que nos dá sabedoria supra simbólica,
da reminiscência e que é o nosso Eu Verdadeiro acima da identidade individual e nos eleva ao
que é universal.

“eis como é constituída a alma do homem: o nous está no logos; o


logos na psykhé; a psykhé na pneuma, a pneuma na soma. A pneuma
penetra pelas veias , as artérias e o sangue, faz com que o ente vivo se
mova e assim o conduz. Há quem diga que a alma está no sangue, mas
isso é conhecer mal sua natureza. Essas pessoas não se dão conta que
quando a penuma se retira para o interior da alma, o sangue se
congela, as veias e as artérias se esvaziam e o ente vivo perece. Assim
é a morte do corpo”21CH X-13

Mais uma vez, no X-16, o corpus fala que ao final do processo de purificação o Nous
se desvencilha da alma adquirindo uma vestimenta divina (σώματος πυρίνου) e ascende
deixando para trás a alma que já não lhe serve mais, dando a entender que não somos a alma
tal como não somos o corpo:

“A mesma coisa acontece com aqueles que saem do corpo. A alma


entra de novo em si mesma , a pneuma se retira no sangue, a psykhé

20
somático ou hílico.
21
ψυχὴ δὲ ἀνθρώπου ὀχεῖται τὸν τρόπον τοῦτον, ὁ νοῦς ἐν τῷ λόγῳ, ὁ λόγος ἐν τῇ ψυχῇ, ἡ
δὲ ψυχὴ ἐν τῷ πνεύματι· τὸ δὲ πνεῦμα, διῆκον διὰ τῶν φλεβῶν καὶ ἀρτηριῶν καὶ μετὰ τοῦ
αἵματος, κινεῖ τὸ ζῷον ως καὶ ὥσπερ φόρτον τινὰ βαστάζει. διὸ καί τινες τὴν ψυχὴν αἷμα
ἐνόμισαν εἶναι, σφαλλόμενοι τῆς φύσεως, οὐκ εἰδότες ὅτι πρῶτον δεῖ τοῦ πνεύματος
ἀναχωρήσαντος εἰς τὴν ψυχήν, καὶ τότε, τοῦ πνεύματος ἀναχωρήσαντος εἰς; τὸ περιέχον, τὸ
αἷμα παγῆναι κατὰ τὰς φλέβας, καὶ τὰς ἀρτηρίας κενωθείσας τὸ ζῷον καταλ επεῖν. καὶ τοῦτο
ἔστιν ὁ θάνατος τοῦ σώματος. CH X-13

13
na pneuma, o nous tendo se purificado e libertado dos seus envoltórios
, sendo divino por natureza, recebe um corpo de fogo e percorre todo o
espaço, abandonando a alma ao julgamento e a punição que
merece.”22CH X – 16

Tendo deixado claro que o Homem Verdadeiro é o Nous puro (fica em aberto se
possuidor ou não de uma personalidade dada pelas experiências da vida, pessoalmente eu
defendo que não) podemos finalmente começar a tratar sobre a queda e tudo que é advindo
dela. No Poimandres é afirmado que após o Homem ter sido criado à imagem e semelhança
do Nous-Deus ele decide ir em direção ao círculo de criação para também criar sobre a
natureza(CH I-13), ao se inclinar pela periferia do círculo de criação ele vislumbra seu próprio
reflexo nas águas e sombra na terra, diante do próprio reflexo se apaixona pela aparência
divina de sua semelhança com o Nous-Deus e se atira, recordando o mito de Eco e Narciso,
em direção a materialidade. O Homem após cair é abraçado pela materialidade e recebe um
corpo material (somático) com o qual está unido até hoje e por intermédio dele recebe os
sentidos e a mortalidade. Porém cabe repetir mais uma vez que o homem não é o seu corpo
físico, mas o Nous que está no centro deste corpo físico, o corpo físico chamado de Soma ou
somatos no grego original é constituído no hermetismo como uma prisão para o eu verdadeiro
que só pode se libertar mediante um processo soteriológico. Nesse mito, narra-se que o
homem é divino e superior a materialidade e imortal, porém sua queda lhe impõe as
vicissitudes de um corpo material, queda esta causada pelo amor/afeto a imagem, ao reflexo e
a sombra, cai pela busca daquilo que não possui realidade em si, ou seja, caímos por
buscarmos e nos identificarmos pela não Realidade, pelo que não-é, que apenas reflete a coisa
real. Afirmar que caímos, implica em afirmar que deixamos nosso lugar de origem, que
deixamos nosso posto na determinação cósmica (neste caso supra-cósmica) a qual realmente
pertencemos, o lugar original do Homem, acima das esferas celestes, acima ou junto aos
deuses.

“não temamos dizer a verdade: o Ser humano Verdadeiro está acima dos deuses do céu ou,
no mínimo, é seu igual.” CH X-2423

Deve-se tomar cuidado para não confundir qualquer homem com o Homem
Verdadeiro, com efeito não somos o Homem Verdadeiro, somos o homem que caiu, que foi
destituído de sua posição, que não está mais ao lado dos deuses do céu e portanto não goza
mais da autoridade original de sua criação e que precisa por meio de um processo longo de
purificação(soteriologia) ir se livrando dos vícios e dos afetos, pertencentes ao campo

22
τὸ δὲ αὐτὸ συμβαίνει καὶ τοῖς τοῦ σώματος ἐξιοῦσιν. ἀναδραμοῦσα γὰρ ἡ ψυχὴ εἰς τὰ
ἑαυτῆς τοῦ πνεύματος χωρίζεται, καὶ ὁ νοῦς τῆς ψυχῆς · συστέλλεται κα τὸ πνεῦμα εἰς τὸ
αἷμα, ἡ δὲ ψυχὴ εἰς τὸ πνεῦμα ὁ δὲ νοῦς καθαρὸς γενόμενος τῶν ἐνδυμάτων, θεῖος ὢν φύσει,
σώματος πυρίνου ἐπι λαβόμενος περιπολεῖ πάντα τόπον, καταλιπὼν τὴν ψυχὴν κρίσει καὶ τῇ
κατ᾽ ἀξίαν δίκῃ. CH X – 16
23
“μᾶλλον δέ, εἰ χρὴ τολμήσαντας εἰπεῖν τὸ ἀληθές, καὶ ὑπὲρ ἐκείνους ἐστὶν ὁ ὄντως
ἄνθρωπος, ἢ πάντως γε ἰσοδυναμοῦσιν ἀλλήλοις.” CH X -24

14
somático e psíquico, para ir assim ganhando cada vez mais autoridade e/ou reconhecimento
entres os entes e poder por fim abandonar a veste material e habitar junto aos deuses. Nesse
caminho, quando buscamos a antropogonia do Kore Kosmos que narra a iniciação do deus
Hórus pela deusa Ísis nos mistérios divinos, é afirmado que o homem foi criado junto aos
deuses para auxiliar o processo criativo do mundo sob o comando do Demiurgo24, que lhe
dera o composto primordial da criação de todas as coisas materiais e ordenou que o homem
produzisse as criaturas que habitariam a natureza e que ao concluir não abandonassem o
próprio posto ou morada celeste que lhes havia sido estabelecido. Por terem participado do
processo criativo, as Almas Humanas orgulhosas do próprio feito, decidiram que não
deveriam limitar-se ao lugar que lhe fora estabelecido pelo Divino e passaram a transgredir
seu propósito e por essa transgressão, foram punidas sendo seladas num corpo de carne no
qual só poderiam se libertar mediante o cumprimento daquilo que lhe foi existencialmente
determinado ao longo das vidas (KK I-24).
Existe um paralelo entre os dois mitos da queda do Homem, nos dois casos o Homem
vem ao mundo por ver-se pelo que ele não é, por identificar-se como algo que não é ele
mesmo, como algo projetado. No caso do Poimandres o Homem vem ao mundo quando se
identifica pelos reflexos e ao se identificar pelo que não é, é tomado de afetos e vícios e deixa
seu posto celeste, no Kore Kosmos ocorre algo similar, o Homem passa a compreender-se
como algo distinto e independente da Vontade divina, e ao identificar-se como algo distinto
daquilo que é estabelecido para a manutenção da ordenação divina e cósmica, identifica-se
por aquilo que ele não é, ilude-se e ao iludir-se sofre o processo de queda e perda de potência.
A Verdade tem um papel fundamental no Hermetismo que compreende que na medida que
nos direcionamos ao que é verdadeiro e portanto divino, nos direcionamos a nossa
imortalidade, ao passo que na medida em que nos afastamos do divino, que é necessariamente
o ser mais verdadeiro, nos aproximamos da mortalidade, da ignorância e reavivamos o
processo de queda, repetimos o mito.
Quando se fala em Verdade nesse contexto, fala-se num sentido ontológico, para além
da crença ou da opinião, fala-se daquilo que funda o mundo, daquilo que é sempre, que é
transcendente e inteligível, fala-se do divino. Não há possibilidade dentro de um
tradicionalismo hermético de negar a Verdade como via soteriológica em prol da pluralidade
das opiniões e crenças, pois esta Verdade que aqui se enuncia não tem caráter lógico ou plural,
mas tem caráter noético e transcendental. Afirmo ser transcendental na medida em que esse
conhecimento não se dá meramente por encadeamento lógico dedutivo, tendo em vista que o
Logos enquanto faculdade do pensamento racional e da linguagem é apenas capaz de abarcar
o mundo e comunicar por meio signos do mundo, ao passo que a Verdade a qual se busca e da
qual nos afastamos, possui um caráter supramundano, não dizível, não abarcável pelo Logos e
que só pode ser aproximada por meio da gnose adquirida em processo de reminiscência que
por sua vez só se dá naqueles sujeitos tocado pelo Nous.

“Este tipo de conhecimento (gnose) não é ensinado, meu filho, mas é lembrado
(reminiscência) quando Deus quer” CH XIII – 225

24
Nome dado ao aspecto criador de Deus
25
“Τοῦτο τὸ γένος, ὦ τέκνον, οὐ διδάσκεται, ἀλλ᾽ὅταν θέλῃ ὑπὸ τοῦ θεοῦ, ὅταν θέλῃ ἀναμιμνήσκεται.”
15
O Nous, muitas vezes traduzido como inteligência ou mente, não deve ser interpretado
num sentido ordinário, pois não se refere a nada ligado a capacidade de imaginação ou
pensamento cotidiano, tampouco deve-se pensar que as traduções usuais para esta palavra dão
conta do seu real significado no hermetismo, tendo em vista que as palavras inteligência e
pensamento traduzem-se dentro de um olhar contemporâneo conceitos do psicologismo que
não são o que a Hermética deseja propor.
O nous no Hermetismo é a faculdade supra-racional do conhecimento, que nos
informa a Verdade não na medida em que racionalizamos, mas na medida em que
intuitivamente temos recordações de saberes que não nos foram anteriormente apresentados,
seja por meio de insights, sonhos, sincronicidades e experiências religiosas. Como vemos na
imagem proposta neste artigo intitulada “camadas do homem no hermetismo” o nous é
abarcado pelo logos, logos que se coloca entre o nous e a psykhé, e como foi dito
anteriormente o logos só se apresenta por meio de símbolos, fazendo com que a faculdade do
logos esteja entre o nous e a psykhé como um filtro, que traduz a reminiscência por meio de
figuras do mundo que possuam em alguma medida um caráter analógico dos objetos da
experiência noética. Com efeito, por conta deste intermediário, não temos acesso a coisa em si
mesma, ao divino em si mesmo, temos acesso ao conhecimento sagrado vestido pela
roupagem do símbolo, ou seja, a gnose que se apresenta não em sua literalidade, mas através
do seu reflexo, cabendo então ao sujeito iniciado não cometer o erro primordial de confundir a
Verdade com a representação.
A representação, quando tomada como a coisa em si (to onton), gera a multiplicidade
de opiniões, os enganos e a novas quedas. Conforme o sujeito caminha no seu processo
iniciático (de aprendizado), que no Hermetismo não se dá pela autoridade de um homem, mas
pela graça do Nous-Poimandres¹, a Luz (seu nous) passa a cada vez mais se infiltrar pelo véu
do Logos, o sujeito passa a ter mais facilidade em transcender o símbolo e a literalização
mítica, conforme vai sendo tocado por essa luz vai purificando-se até que por fim adquire a
potência para romper com a mortalidade e se torna capaz de representar o que há de mais alto
com grande verossimilhança.
Dentro da doutrina hermética, o processo soteriológico ou de purificação deve ser
construído pelo processo espiritual da piedade (eusebéia). A piedade no hermetismo
compreende a busca de tornar-se quem se é, tornar-se o que fomos criados para ser, em não
nos identificarmos pelas coisas do mundo material que são apenas reflexos numa poça escura.
Somos um ente imortal, divino, demiúrgico, filhos do Nous-Deus, responsáveis pela criação e
manutenção dessa bela obra divina que é a natureza e apenas na busca desta Verdade
poderemos finalmente parar de cair e voltar aos céus.
No processo de ascensão, o papel do Nous como guia do melhor caminho e
principalmente como guia da verdade se evidencia no tomo XI da hermética quando Hermes
vê-se incapaz de discernir mediante a multiplicidade das opiniões sobre o cosmos e sobre
Deus qual o discurso verdadeiro, e para resolver o problema da incapacidade do discurso de
dizer a Verdade ele chama pelo nous, como mostra a citação a seguir:

16
Hermes: Mas não vou hesitar em falar quando o pensamento me
ocorreu. Muitos homens me disseram muitas e diversas coisas a
respeito do universo e de Deus, mas ainda não aprendi a verdade.
Peço-lhe, portanto, Mestre, que me esclareça este assunto. Você, e
somente você, eu acreditarei, se você me mostrar a verdade sobre isso.
Nous: Ouça então, meu filho, e eu lhe direi como são as coisas, quanto
a Deus e ao universo.26 CH XI-1

Vê-se claramente na citação acima que o nous é para o Hermetismo a via mais
confiável para a Verdade, estando acima do discurso e da razão pura, isso também se
evidencia quando no CHI-2 quando ele se propõe como soberano. Mas deve-se destacar que
apesar da posição de superioridade dada ao nous em relação ao logos enquanto razão e
linguagem, não isenta o logos de ter um papel importante no caminho do conhecimento, visto
que apesar do logos em sua forma pura ser incapaz de conhecer o verdadeiro e não
alcançando nada além da opinião e da ilusão, é afirmado por Hermes que o logos orientado
pelo nous é capaz de guiar o Homem no caminho da Verdade e do Bem.

“E todos os homens passam pelo que o destino lhes designou; mas os


homens racionais (isto é, aqueles que, como eu disse, são governados
pelo nous) não o sofrem da mesma maneira que os irracionais. Eles
são libertos da maldade; eles sofrem o que é destinado, mas eles não
são maus.”27CH XII-7

Ainda sobre a Verdade e o Bem, o Hermetismo também imputa ao nous as qualidades


do Ser, propondo o nous como sempre ele mesmo e livre da corrupção das coisas corpóreas,
trazendo ao entendimento a ideia de que esta faculdade nunca se engana, e assim como o nous
é sempre, essa qualidade também recai sobre a Verdade e sobre o Bem. O Bem é a primeira
Luz “a luz arquetípica”, e segundo a literatura hermética a Luz Arquetípica é o próprio Nous,

26
-...ὡς δέ μοι ἐπῆλθεν εἰπεῖν οὐκ ὀκνήσω. ἐπεὶ πολλὰ πολλῶν καὶ ταῦτα διάφορα περὶ τοῦ παντὸς καὶ
τοῦ θεοῦ εἰπόντων ἐγὼ τὸ ἀληθὲς οὐκ ἔμαθον, σύ μοι περὶ τούτου, δέσποτα, διασάφησον· σοὶ γὰρ ἂν
καὶ μόνῳ πιστεύσαιμι τὴν περὶ τούτου φανέρωσιν.
-ὁ χρόνος Ακους, ὦ τέκνον, ὡς ἔχει ὁ θεὸς καὶ τὸ πάν.
27
καὶ πάντες μὲν ἄνθρωποι πάσχουσι τὰ είμαρμένα οἱ δὲ ἐλλόγιμοι, ὧν ἔφαμεν τὸν νοῦν ἡγεμονεύειν,
οὐχ ὁμοίως τοῖς ἄλλοις πάσχουσιν, ἀλλὰ τῆς κακίας ἀπηλλαγμένοι· οὐ (γὰρ) κακοὶ ὄντες πάσχουσι.
17
que afasta as trevas primordiais, ou seja, que afasta aquilo que é indistinto dando a
possibilidade do conhecimento.

Hermes: É o Nous, inteiro e totalmente auto-abrangente, livre do


movimento errático das coisas corpóreas; é imperturbável, intangível,
permanecendo firme em si mesmo, contendo todas as coisas e
mantendo em existência todas as coisas que são; e é a luz pela qual a
alma é iluminada.
Asklepios: Diga-me então, o que é o bem?
Hermes: O Bem é a Luz arquetípica, e a Mente e a Verdade são, por
assim dizer, raios emitidos por essa Luz.CHII-1228

“E Poimandres falou para que eu ouvisse, e disse-me: 'Você entende o


significado do que viu?' 'Diga-me o seu significado', eu disse, 'e eu
saberei.' Essa Luz', disse ele, sou eu, o próprio Nous, o primeiro Deus,
que existia antes da natureza úmida que surgiu da escuridão; e o
Logos que saiu da Luz é filho de Deus.' 'Como assim?' disse eu.
Aprenda o que quero dizer,' disse ele, 'observando o que você mesmo
tem em você; pois em ti também a palavra é filho, e o nous é pai da
palavra. Eles não estão separados um do outro; pois a vida é a união
do logos e do nous. Eu disse, 'Por isso eu te agradeço'”CHI-629

Resta ainda discorrer melhor sobre o que o Hermetismo compreende como Verdade,
pois sem a compreensão do que é esta verdade acessada pelo nous, seu conceito de nous ainda
permanece vago. A Verdade para o Hermetismo também participa do Ser e isso diz respeito
àquilo que é sempre o mesmo, que não muda, que não pode ser alcançado pelos sentidos do
corpo e muito menos pela razão, refere-se também àquilo que é primevo e necessário a tudo

28
Τὸν οὖν τόπον τὸν ἐν ᾧ τὸ πᾶν κινεῖται τί είπομεν, ἀσώματον, ὦ Ασκληπιέ. Τὸ οὖν ἀσώματον τοῦτο
τί ἔστι; Νοὺς ὅλος ἐξ ὅλου ἑαυτὸν ἐμπεριέχων, ἐλεύθερος σωματικής απλάνης, ἀπαθής, ἀναφής, αὐτὸς
ἐν ἑαυτῷ ἑστώς, συγ- χωρητικός συμ πάντων καὶ σωτήριος τῶν ὄντων, τό της κα ψυχής φως.Τί ούν
φῂς τὸ ἀγαθόν. Τὸ ἀρχέτυπον φῶς, ο ὥσπερ ἀκτῖνες εἰσιν τὸ ἀγαθὸν ὅ τε νοῦς καὶ ἡ ἀλήθεια. τὸ
ἀρχέτυπον φῶς τὸ ἀρχέτυπον τῆς ψυχῆς
29
εἰς ἀκοὴν ὁ δὲ Ποιμάνδρης εἰς ἀκοὴν ἐμοὶ ᾿Ενόησας, κ φησί, τὴν θέαν ταύτην ὅ τι καὶ βούλεται; - (.
. . ) καὶ γνώσομαι, ἔφην ἐγώ. Τὸ φῶς ἐκεῖνο, ἔφη, ἐγώ, νοῦς, ὁ πρῶτος θεός, ὁ πρὸ φύσεως ὑγρᾶς τῆς
ἐκ σκότους φανείσης· ὁ δὲ ἐκ νοὺς φωτεινὸς λόγος υἱὸς Θεοῦ.-Τί οὖν; φημί.—Οὕτω γνῶθι, τὸ ἐν σοὶ
βλέπων καὶ ἀκούων· ἐπεὶ καὶ ἐν σοὶ δ το λόγος κυρίου υἱός, ὁ δὲ νοῦς πατήρ θεός. οὐ γὰρ διίστανται
ἀπ' ἀλλήλων· ἔνωσις γὰρ τούτων ἐστὶν ἡ ζωή. Εὐχαριστῶ σοι, ἔφην ἐγώ.
18
que vem a ser. Para o Hermetismo, nem tudo que existe é real ou verdadeiro, pois existência
refere-se a tudo que é concebível, desde o manifesto ao imanifesto, enquanto o verdadeiro ou
real diz respeito àquilo que é imutável. Sobre a o Real e a Verdade Hermes diz:

“Hermes: No que diz respeito à realidade/verdade, meu filho Tat, não


é possível que alguém que seja apenas um homem fale
adequadamente; pois o homem é uma criatura imperfeita, composta de
partes que são imperfeitas, e sua estrutura mortal é composta de
muitos corpos estranhos. Mas o que está em meu poder dizer, isso eu
digo, a saber, que a realidade existe apenas nas coisas eternas (...)”
FHE. IIa-130

“TAT: Então o que é verdadeiro, Trismegisto?


HERMES: O que não é maculado, meu filho! O que não tem limites,
nem cor, nem forma. O Imutável, Nu, Luminoso - o que só pode ser
compreendido por si mesmo: o Bem inalterável, o Incorpóreo.”
CH XIII-631

O nous no Hermetismo é a faculdade do conhecimento que permite a compreensão, de


onde nasce nosso aspecto racional e dedutivo, sendo a capacidade de conhecer intuitivamente,
pré-discurso, que afasta as trevas ou o indistinto trazendo ao mundo a distinção. O
conhecimento verdadeiro, apenas alcançado pelo nous é o conhecimento daquilo que é
sempre, que está acima de qualquer discurso ou opinião e que nos livrando do engano da
sombra e do reflexo, permite regressarmos a nossa origem divina e ao conhecimento da
Verdade.

30
Περὶ ἀληθείας, ὦ Τάτ, οὐκ ἔστι δυνατόν κατ' αξίαν εἰπεῖν ἄνθρωπον ὄντα, ζῷον ἀτελές, ἐξ ἀτελῶν
συγκείμενον μερῶν, καὶ ἐξ ἀλλοτρίων σωμάτων καὶ πολλῶν τὸ σκῆνος έχοντας συνεστός τολμήσαντα
εἰπεῖν· δ δέ ἐστι δυνατόν ε ἢ δίκαιον, τοῦτο φημί, ἀλήθειαν εἶναι ἐν μόνοις τοῖς ἀιδίοις
31
Τί οὖν ἀληθές ἐστιν, ὦ τρισμέγιστε ;—Τὸ μὴ θολούμενον, ὦ τέκνον, τὸ μὴ περιοριζόμενον, τὸ
ἀχρώματον, τὸ ἀσχη- μάτιστον, τὸ ἄτρεπτον, τὸ γυμνόν, τὸ φαινόν, τὸ αὐτῷ 5 καταληπτόν, τὸ
ἄτρεπτον, τὸ ἀναλλοίωτον, τὸ ἀγαθόν τὸ ἀσώματον.
19
A via hermética da educação

Dado que para o hermetismo o processo do conhecimento verdadeiro e aquilo que guia
o ser humano a um ethos adequado não é a autoridade de um indivíduo, de um discurso ou
cultura, mas o próprio nous. E que este nous é o que há de mais essencial no homem, não
podendo ser atribuído ou subtraído por um terceiro, mas que se manifesta mediante um olhar
interno e uma busca ou reflexão sobre a natureza da Verdade, o ensino de filosofia é para o
Hermetismo não a agregação de valores e discursos específicos e muito menos uma
multiplicidade de perspectivas de mundo32, mas antes deve se dar num processo de orientação
a essa interiorização do sujeito, a capacitar ao indivíduo “refletir sobre os seres”, em última
instância permitir ao indivíduo o filosofar.
Este filosofar, que é como um ser guiado pelo nous, não é uma ação ativa como
ocorre no uso da razão, é como diz Platão, “deixar-se levar sobre uma jangada”33, a proposta
do hermetismo é flutuar diretamente na correnteza dessa revelação, e por isso não deve ser
compreendido como um processo puro da razão ou meramente um descrever de fenômenos
psíquicos e naturais, pois a razão nada mais é capaz do que elaborar descrições sobre o
fenômeno, o filosofar é antes a capacidade do indivíduo por meio do nous de adentrar o
mundo arquetípico, contemplar as formas primevas e ser capaz de compreendê-las e por meio
de símiles e alegorias descrevê-las com o máximo de potência que o discurso é capaz de
alcançar. Pois para o Hermetismo a filosofia é um desejo da alma pela Verdade (KK II-6), e
esta Verdade Transcendental é condição necessária para o bom viver:

“Tat: Se então não há nada real aqui embaixo, o que um homem deve
fazer, pai, para viver sua vida corretamente? Hermes: Ele deve ser
piedoso, meu filho, e aquele que procura ser piedoso seguirá a
filosofia. Sem filosofia é impossível ser piedoso; mas aquele que
aprendeu o que são as coisas, e como elas são ordenadas, e por quem,
e para que fim, dará graças por todas as coisas ao Criador,
considerando-o um bom pai, um amável criador e um fiel guardião; e,
assim, agradecendo, ele será piedoso. E aquele que persegue a
filosofia ao seu mais alto alcance aprenderá onde está a Realidade e o
que ela é; e tendo aprendido isso, ele será ainda mais piedoso. E daí
32
Hermes: Mas não vou hesitar em falar quando o pensamento me ocorreu. Muitos homens me
disseram muitas e diversas coisas a respeito do universo e de Deus, mas ainda não aprendi a verdade.
Peço-lhe, portanto, Mestre, que me esclareça este assunto. Você, e somente você, eu acreditarei, se
você me mostrar a verdade sobre isso. Nous: Ouça então, meu filho, e eu lhe direi como são as coisas,
quanto a Deus e ao universo. CH XI-1
33
Platão, Fédon, 85 c-d
20
em diante será impossível para ele se afastar do Bem. Pois nunca, meu
filho, uma alma que se elevou tanto a ponto de compreender o
verdadeiramente bom e real pode escorregar para o mal e o irreal; pois
a alma adquire um maravilhoso anseio pelo Bem e o esquecimento de
todos os males, quando aprende a conhecer seu próprio Antepassado.”
FHE IIB -3 e 4 34

Pois o Hermetismo defende que o indivíduo, podendo recordar desta Verdade


transcendental, quando bem orientado à prática do filosofar, tendo o nous como guia da razão,
irá solitariamente iniciar-se no caminho da Verdade, não como um criador desta Verdade, mas
como alguém que flutua no rio da memória em direção a ela, conhecerá o bom viver (Ethos) e
uma vez que conhecerá o Bem, ao invés de meramente adotar discursos, não irá se desviar
para o vício e para o mal. Sendo livre para perceber o mundo e escolher o que é bom, pois
como a alma anseia pelo Bem, sempre o escolhe, e quando padece no mal é por uma
involuntariedade.35O ensino de filosofia é então um ensinar o filosofar, um ensinar a
descoberta, ensinar uma visão de mundo derivada de uma introspecção, em uma comunicação
entre o interno e o externo que, por meio do nous, propõe um modo de viver a vida pela ética,
a única forma de viver que permite a escolha verdadeira, a escolha do Bem que toda Alma
busca, sendo o ensino da filosofia, um processo de dar o outro a oportunidade da liberdade.

Conclusão
O hermetismo, embora não esteja diretamente relacionado à educação, é um texto
educacional e propositivo (prático) que aborda questões de caráter filosófico-religioso,
apresentando um ethos como uma proposta para viver a vida de forma plena e significativa. O
hermetismo compreende que somos seres normalmente inconscientes de nossas fragilidades,
incoerências, sofrimentos e vícios e a partir disso compreende que devemos transpor nossa
ignorância fundamental a partir de uma busca de um conhecimento de nós mesmos, de uma
busca de conhecimento sobre o mundo que nos cerca e principalmente de uma busca de
conhecimento sobre aquilo que é verdadeiro (verdadeiro aqui significa aquilo que é imutável).
O autoconhecimento no hermetismo não implica uma busca do eu enquanto um ser no
mundo, pois para o hermetismo tudo aquilo que identificamos como nós mesmos
normalmente é uma falsa identificação ou uma opinião equivocada.
O eu no hermetismo implica em algo anterior àquilo que adquirimos pós-nascimento,
pois a doutrina não compreende que somos tudo que tomamos como nós mesmos adquiridos
da experiência do mundo, como por exemplo o nosso nome, memórias, posses, títulos e
crenças, não identificam quem nós somos e não passam daquilo que ele chama de

34
ὁ δὲ (ἄκρως) φιλοσοφῶν (μαθήσεται καὶ ποῦ ἐστιν ἡ ἀλήθεια καὶ τίς ἐστιν ἐκείνη· καὶ μαθών, ἔτι
μᾶλλον εὐσε τε βέστερος ἔσται, καὶ οὐκέτι ἀποστῆναι δυνήσεται τοῦ ἀγαθοῦ.) οὐδέποτε γάρ, ὦ
τέκνον, ψυχὴ [ἐν σώματι οὖσα καὶ] κουφίσασα ἑαυτὴν ἐπὶ τὴν κατάληψιν τοῦ ὄντως ἀγαθοῦ καὶ
ἀληθοῦς ὀλισθῆσαι δύναται ἐπὶ τὸ ἐναντίον· δεινὸν γὰρ ἐρῶτα ἴσχει καὶ λήθην πάντων τῶν κακῶν
ψυχὴ μαθοῦσα το ἑαυτῆς τὸν προπάτορα. [[καὶ οὐκέτι ἀποστῆναι δύναται τοῦ ἀγαθοῦ.]] τοῦτο, (δ)
τέκνον, τοῦτο εὐσεβείας ἐστὶ τέλος· ἐφ᾽ ὁ ἀφικ[ν]ό[υ]μενος καὶ καλῶς βιώσῃ, καὶ εὐδαιμόνως
τεθνήξῃ, τῆς ψυχῆς σου μὴ ἀγνοούσης ποῦ αὐτὴν δεῖ ἀναπτῆναι.
35
O bem é voluntário, o mal é involuntário. FHE XI - 2 (19)

21
"agregados”. Nesse sentido, o hermetismo entende e propõe que devemos buscar
compreender aquilo que somos para além das aparências, para além do que é passageiro,
buscando em nós mesmos o que é permanente e independente das vicissitudes. A proposta
hermética para o autoconhecimento implica num processo gnosiológico, ou seja, uma busca
do conhecimento daquilo que é verdadeiro a partir de reflexões intelectuais, investigações
acerca do comportamento e da natureza e principalmente da nossa capacidade de sermos
guiados pelo nosso nous. O Hermetismo compreende o Nous como sendo a coisa divina em
nós, uma faculdade do conhecimento intuitiva, imediata e independente de deduções
racionalizantes que normalmente tendem a opinião. O nous seria como uma voz interior,
similar ao instinto dos animais, porém ao invés de nos tensionar a sobrevivência da espécie,
nos tensiona ao Belo, ao Bem e à permanência.
A literatura hermética consiste então em um agrupamento de textos em estilo
dialogado entre Hermes Trismegistos e seus discípulos, onde Hermes busca instruir seus
discípulos sobre questões de ordem metafísica, sobre a influência dos impulsos viciosos no
nosso modo de viver a vida e propõe quais virtudes devemos viver para combater esses
impulsos corruptores. Nesse sentido o texto de caráter exortativo implica ao leitor uma
perspectiva crítica sobre o modo como vive a própria vida, reconhecendo suas faltas e
propõe um modo de viver a vida que visa superar a vida anterior. Apesar de ser um texto
exortativo para a busca de um melhor modo de viver e apesar de propor que a vida viciosa
implica em uma infelicidade ao passo que a vida virtuosa é uma felicidade, a doutrina
hermética implica também que esses conhecimentos de ordem metafísica e transformadora
não podem ser passadas de boca a ouvido, pois seu conteúdo não é acessível pelos limites da
linguagem e portanto cabe aquele que ensina não dizer como de forma técnica, mas por meio
de conteúdos alegóricos e simbólicos acerca do bem e da Verdade, permitir que os discípulos
por meio de intuições e insights possam encontrar sua própria porta para transcendência e um
novo modo de viver a vida.
Apesar dessa perspectiva do hermetismo não existem ainda muitas pesquisas sobre
pensar o hermetismo numa perspectiva educacional ou ética, seu estudo tem se limitado
puramente a ser histórico, exegético ou linguístico. Nesse sentido a investigação acerca de
uma filosofia da educação no hermetismo ou de um hermetismo como modo de vida seria
uma proposta inovadora, mas de modo algum impossível ou incoerente. Para o hermetismo
há uma relação íntima entre Deus, o Cosmos e o homem, e a perspectiva gnosiológica dessa
relação parte do domínio de um eu que escolhe e que pensa (nous) sobre as pulsões da alma
(kakia), e esse domínio só se dá quando tomamos conhecimento dessas pulsões na nossa vida,
ou seja, essa superação sobre os males que afetam negativamente a nossa vida começa pela
descoberta e a superação da nossa ignorância, superação da nossa identificação a partir do
nosso ser no mundo. Assim sendo a chave para uma vida mais feliz estaria do conhecimento
de si mesmo, do conhecimento de nossas pulsões, do conhecimento do mundo e de Deus e da
capacidade de assumir um papel ativo e consciente na própria vida. Nesse sentido, pensar o
estudo da educação filosófica a partir do hermetismo seria pensar um modo de vida
responsável, partindo de um conhecimento de si mesmo, de um conhecimento do nosso meio
e principalmente daquilo que é valorativo, superior e imutável. Onde o professor dá ao aluno
as ferramentas para essa descoberta de si e da verdade a partir da própria faculdade noética
que reside em cada um.
22
Referências Bibliográficas:
Cerletti, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Editora Autêntica. Belo
Horizonte. 2009.
Lira, David Pessoa. O batismo do coração no vaso do conhecimento. Editora UFPE. Recife.
2014.
Trimegisto, Hermes. Corpus Hermeticum. Editora Polar. São Paulo. 2019.
Trimegisto, Hermes. Hermetica I. Oxford University. Oxford. 1924.
Platão. A República. Editora Nova Cultural LTDA. São Paulo. 1997.

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