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Fundamentos Do Direito Digital
Fundamentos Do Direito Digital
________________________________________________________________________________
F981 Fundamentos do direito digital / João Victor Rozatti Longhi, José Luiz de
2020 Moura Faleiros Júnior; Gabriel Oliveira de Aguiar Borges, Guilherme Reis
(Coordenadores). Uberlândia: LAECC, 2020.
480 p.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-99099-21-2
Conselho Editorial
Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados - LAECC
http://laecc.org.br/conselho-editorial
ALESSANDRA SILVEIRA
Doutora em Direito pela Universidade de Coimbra – UC. Professora da Universidade do Minho –
Portugal.
ALEXANDRE DE SÁ AVELAR
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Professor da Universidade
Federal de Uberlândia – UFU.
DANIEL USTÁRROZ
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Pro-
fessor Adjunto de Direito Civil na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
VIVIANE SÉLLOS-KNOERR
Pós-Doutora pela Universidade de Coimbra – UC. Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC/SP. Professora do Centro Universitário Curitiba – UniCURITIBA.
WELLINGTON MIGLIARI
Doutor e Mestre em Direito Internacional Público pela Faculdade de Direito, Universitat de Barce-
lona – UB.
SOBRE OS AUTORES
Coordenadores
JOÃO VICTOR ROZATTI LONGHI
Defensor Público no Estado do Paraná. Professor visitante do PPGD da Universidade
Estadual do Norte do Paraná – UENP e de Graduação do Centro de Ensino Superior de
Foz do Iguaçu – CESUFOZ. Pós-Doutor em Direito pela Universidade Estadual do Norte
do Paraná – UENP. Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universida-
de de São Paulo – USP/Largo de São Francisco. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
GUILHERME REIS
Advogado atuante na área de tecnologia e cibersegurança. Especializando em Gestão de
Segurança da Informação pela Universidade do Sul do Estado de Santa Catarina (UNI-
SUL); Especializando em Direito Digital e Compliance pela Damásio Educacional; Bacha-
rel em Direito Pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Membro atuante das
comissões de Direito Digital da OAB/SC; Inovação da Advocacia da OAB/SC; Direito das
Startups da OAB/SC. Co-organizador do Meetup de Cibersegurança e Privacidade 'Cryp-
to Friday' em Florianópolis/SC. E-mail de contato: apj.guilhermereis@gmail.com.
Autores
ALINE FERREIRA COSTA CARNEIRO
Advogada, pós-graduada em Direito Digital e Compliance pelo Instituto Damásio de
Direito da Faculdade Ibmec SP, especializada em Privacidade e Proteção de Dados e
Compliance Digital e Pós-graduada em Advocacia Trabalhista pela Escola Superior de
Advocacia – ESA/MG. Membro das Comissões Advocacia 4.0 e Compliance, Direito e
Processo do Trabalho e Direito e Startups e Lawtechs e Legaltechs da OAB Uberlân-
dia/MG. Membro convidada da Comissão de Startups e Inovação da OAB Santos/SP.
GABRIELA BRIESEMEISTER
Acadêmica do 9º. Período na Universidade de Joinville, Univille. Estagiária da Polícia
Federal e, Joinville/SC.
GUILHERME REIS
Advogado atuante na área de tecnologia e cibersegurança. Especializando em Gestão de
Segurança da Informação pela Universidade do Sul do Estado de Santa Catarina (UNI-
SUL); Especializando em Direito Digital e Compliance pela Damásio Educacional; Bacha-
rel em Direito Pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Membro atuante das
comissões de Direito Digital da OAB/SC; Inovação da Advocacia da OAB/SC; Direito das
Startups da OAB/SC. Co-organizador do Meetup de Cibersegurança e Privacidade 'Cryp-
to Friday' em Florianópolis/SC. E-mail de contato: apj.guilhermereis@gmail.com.
RAFAEL ESCRICH
Estudante de Sistemas de Informação na Universidade Federal de Santa Catarina e desen-
volvedor de software blockchain na Rhizom.
RODRIGO GUGLIARA
Especialista em Direito Digital e Compliance pela Faculdade de Direito de São Bernardo
do Campo. Técnico em Informática. Professor Assistente no Lab de Inovação da Facul-
dade de Direito de São Bernardo do Campo. Autor de artigos em Direito Digital. Assis-
tente Judiciário no Tribunal de Justiça de São Paulo.
TALES CALAZA
Advogado. Pós-Graduado em Processo Civil pela UniDomBosco. Pós Graduando em
Direito do Consumidor na Era Digital pela UniDomBosco. Extensão em Direito Contra-
tual pela Harvard University. Extensão em Direito Imobiliário e Direito de Família pela
UniDomBosco e FGV. MBA de Gestão de Projetos Empresariais em curso pela Faculdade
ESAMC. Orientador de TCC na Faculdade ESAMC Uberlândia. Head de Direito Digital.
E-mail: talescalaza@gmail.com.
— DON IHDE
Technology and the Lifeworld (1990)
NOTA INTRODUTÓRIA E
AGRADECIMENTOS
XIX
ideias e propostas debatidas ao longo desses vários meses, esta obra
coletiva foi concebida.
Novamente, a organização do grupo se mostrou crucial. Tarefas e
temas foram estabelecidos, um cronograma foi definido, debates, ajustes e
aprofundamentos foram feitos aos textos e, enfim, surgiu o trabalho final
que, muito apropriadamente, se decidiu intitular “Fundamentos do direito
digital”.
O colega leitor será instigado, nas páginas que se seguem, a revisitar
bases estruturais que transcendem o Direito e formam um conjunto
fundamental para a compreensão do que hoje se convencionou denominar
“direito digital”.
Fundamental, ainda, o registro de nossa gratidão aos colegas do
Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados –
LAECC, a quem nos dirigimos, aqui, na pessoa de seu Presidente, Dr.
Alexandre Walmott Borges, pelo suporte editorial imprescindível à
concretização deste trabalho.
Por fim, esperamos que todos tenham uma experiência instigante e que
as reflexões aqui propostas sejam de grande valia!
Foz do Iguaçu, Belo Horizonte, Uberlândia, Florianópolis, maio de
2020.
XX
PREFÁCIO
1 WIENER, Norbert. The human use of human beings. Londres/Nova York: Houghton
Mifflin, 1954, p. 113.
2 JULLIEN, François. De l'universel, de l'uniforme, du commun et du dialogue entre les
cultures. Paris: Fayard, 2008, cap. XIII.
3 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the Internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 13.
XXII
Prefácio
sões do recente Marco Civil da Internet ou da Lei Geral de Proteção de
Dados, é importante que o pesquisador dedicado ao direito digital se apro-
funde e avance rumo ao estudo de suas bases fundamentais para construir
acervo essencial à completa cognição da matéria.
Algumas reflexões ecoam nesse ambiente... “o que, no presente, traz
consigo o universal? O que, no presente, é a verdade do universal?”4 Essas
são perguntas que Michel Foucault apresenta para demonstrar que é a
dialética o caminho verdadeiramente aberto e profícuo à produção do
conhecimento transversão e estruturado que consolida a pesquisa sobre
bases fundamentais de pesquisa para a consolidação do saber.
É pela atuação colaborativa e dedicada que se obtém os mais ricos subs-
tratos da ciência. E, no atingimento desse objetivo, o projeto que culmina
na publicação desta obra carrega consigo o mérito de não apenas instigar o
diálogo aberto e o aprofundamento sociológico e filosófico, mas de propi-
ciá-lo a jovens incansáveis e inspirados pela busca incessante de respostas
aos inúmeros dilemas dessa sociedade marcada pela abundância informa-
cional, pelas redes e pela hipervigilância.
---
“We, who have a private life and
hold it infinitely the dearest of our
possessions...”
— VIRGINIA WOOLF
Montaigne (1992), vol. 1, p. 60
5 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 128,
tradução livre.
6 VAIDHYANATHAN, Siva. The Googlelization of everything: (and why we should
worry). Berkeley: University of California Press, 2011.
XXIV
Prefácio
em megadados e em algoritmos computacionais.7
Ora, em uma nova ‘galáxia da Internet’8, inúmeros conceitos surgem
para delimitar a nova fronteira inaugurada pela hipercomunicação. Se o
Estado passa por densa reformulação na nova era comunicacional pela
efetiva presença da tecnologia na sociedade da informação, não se pode
olvidar das diversas reformas estruturais que se deve implementar para
que se avance pari passu aos deveres de proteção impostos constitucio-
nalmente.
Se o dataísmo emana preocupações quanto à empolgação desmedida e
incalculada sobre os impactos das novas tecnologias, não há dúvidas de
que o papel do Estado na atuação regulamentar – e, além dela, no cum-
primento de seu múnus fiscalizatório – dará a tônica de um novo momen-
to em que os filtros da privacidade, da intimidade e da liberdade se tornam
mais translúcidos.
---
“In the process of building, one can-
not help but construct every higher
step upon a lower step. It is trivial to
remark that there is no second floor
without a first (…).”
— LUCIANO FLORIDI
The Ethics of Information (2013), p. 329
7 HARARI, Yuval Noah. Homo deus: uma breve história do amanhã. Tradução de
Paulo Geiger. São Paulo: Cia. das Letras, 2016, p. 370-371.
8 CASTELLS, Manuel. The Internet galaxy: reflections on the Internet, business, and
society. Oxford: Oxford University Press, 2001.
XXV
Prefácio
Norbert Elias destaca o seguinte:
Se se abordam níveis de envolvimento e alienação, referem-se a caracterís-
ticas e à situação dos seres humanos que formam a sociedade considerada.
Referem-se a seres humanos, incluindo seus movimentos, seus gestos, e
suas ações, não menos do que seus pensamentos, seus sentimentos, seus
impulsos e o controle deles. Basicamente, os dois conceitos fazem referên-
cia aos diferentes modos segundo os quais os seres humanos se regulam,
no que podem, aliás, ser mais alienados ou mais envolvidos. Os padrões
sociais de autorregulação individual podem representar maior alienação
ou maior envolvimento, bem como seu conhecimento ou sua arte. Todas
as afirmativas referentes a envolvimento e alienação são relativas.’9
Nunca se falou tão eloquentemente em ética para simbolizar a necessi-
dade de aprimoramento dos modos pelos quais os indivíduos se portam
numa sociedade marcada pela hipervigilância. A construção dos influxos
éticos depende, contudo, de bem mais que a mera reflexão sobre sua ne-
cessidade; perpassa, é bem verdade, pela derrubada das barreiras que
imantam a cognição dos problemas centrais da sociedade para, em avanço,
descortinar horizontes de reflexão e autoaprimoramento.
Quando se fala em ética, por suposto, trabalha-se com a ideia de que
uma ‘corrida’ pelos algoritmos mais eficazes e capazes de filtrar os mais
variados acervos de dados para propiciar vantagens a seus desenvolvedores
não pode se tornar o telos da vida em sociedade.
A superação de barreiras e entraves ao desenvolvimento econômico
não pode, em nenhum grau, suplantar a própria essência que consubstan-
cia o padrão de harmonia social almejado e que parece se perder em meio
aos anseios da humanidade conectada.
Para suplantar o cenário indesejável de um Estado fraco e impotente
frente ao poderio técnico-informacional de grandes corporações, também
XXVII
SUMÁRIO
PRÓLOGO .............................................................................................................. 39
Capítulo 1
João Victor Rozatti Longhi
DISCURSO DE ÓDIO (HATE SPEECH) E A CENSURA REVERSA NA INTERNET ....... 47
1. Introdução ....................................................................................................... 47
2. A democracia na sociedade da informação ................................................ 48
3. Populismo 3.0 e liberdade de expressão...................................................... 51
4. Os ataques em massa na internet e a censura reversa ............................... 57
5. Considerações finais ...................................................................................... 64
Referências ........................................................................................................... 66
Capítulo 2
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Letícia Preti Faccio
FAKE NEWS E DESINFORMAÇÃO: UM ENSAIO PELA ÉTICA NA SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO ........................................................................................................ 69
1. Introdução ....................................................................................................... 69
2. Fake news e desinformação no Século XXI ................................................ 71
XXIX
Sumário
3. A origem do problema ético ......................................................................... 76
4. A transformação da ética e a superação da desinformação ..................... 79
5. Considerações finais ...................................................................................... 83
Referências ........................................................................................................... 85
Capítulo 3
Átila Pereira Lima
Marcos Henrique Godoi
DO EXCEDENTE COGNITIVO À COGNIÇÃO EXCEDIDA: AGÊNCIA E
RESPONSABILIDADE LEGAL NA ERA DAS FAKE NEWS ........................................... 89
1. Introdução ....................................................................................................... 89
2. Os primórdios da internet e o excedente cognitivo .................................. 90
3. Cognição humana e fake news...................................................................... 94
4. Agência humana e responsabilidade legal ................................................ 101
5. Considerações finais .................................................................................... 110
Referências ......................................................................................................... 110
Capítulo 4
Felipe Cunha Nascimento
JÁ VIVEMOS NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO? ............................................... 115
1. Introdução ..................................................................................................... 115
2. Origem do termo .......................................................................................... 117
3. Algumas características do novo modelo social ...................................... 119
4. Considerações finais .................................................................................... 130
Referências ......................................................................................................... 132
Capítulo 5
Rodrigo Gugliara
Bianca Camargo Fischer
CONCEITOS ESSENCIAIS SOBRE A SOCIEDADE EM REDE .................................... 135
1. Introdução ..................................................................................................... 135
XXX
Sumário
2. Breve contexto histórico acerca do surgimento da internet .................. 136
3. A política e a noção de tempo e espaço na sociedade em rede .............. 142
4. As mudanças sistemáticas na economia com a sociedade em rede ...... 147
5. Considerações finais .................................................................................... 152
Referências ......................................................................................................... 153
Capítulo 6
Pietra Daneluzzi Quinelato
Yolanda Corrêa Rosa
A INFORMAÇÃO E A COMPREENSÃO DO “EU” NA ERA DIGITAL: UM ENSAIO A
PARTIR DOS ESTUDOS DE LUCIANO FLORIDI ..................................................... 155
1. Introdução ..................................................................................................... 155
2. Considerações sobre a informação na compreensão do “eu” ............... 157
3. A formação do “eu” na era digital ............................................................. 161
4. A tutela do “eu” no ambiente virtual ........................................................ 162
5. Considerações finais .................................................................................... 166
Referências ......................................................................................................... 167
Capítulo 7
Tales Calaza
O DIREITO À PRIVACIDADE: ORIGEM HISTÓRICA E JURÍDICA ........................... 169
1. Introdução ..................................................................................................... 169
2. O contexto tecnológico do início da proteção dos dados pessoais ....... 170
3. O surgimento da proteção à privacidade .................................................. 171
4. O direito à atual privacidade....................................................................... 178
5. Considerações finais .................................................................................... 182
Referências ......................................................................................................... 183
Capítulo 8
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
AS REDES SOCIAIS DIGITAIS E O LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE
XXXI
Sumário
............................................................................................................................. 185
1. Introdução ..................................................................................................... 185
2. Redes sociais digitais .................................................................................... 186
3. Livre desenvolvimento da personalidade ................................................. 190
4. As redes sociais e o livre desenvolvimento da personalidade ................ 193
5. Compliance, ética, limites e possíveis soluções ........................................ 197
6. Considerações finais .................................................................................... 201
Referências ......................................................................................................... 203
Capítulo 9
Aline Ferreira Costa Carneiro
Lucimeire Zago de Brito
Viviane Ramone Tavares
COMPLIANCE DIGITAL: NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE ÉTICA NA SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO ...................................................................................................... 207
1. Introdução ..................................................................................................... 207
2. Conceitos fundamentais .............................................................................. 208
2.1. Breve contexto histórico sobre a ética .................................................... 208
2.2. Definições conceituais sobre sociedade da informação ...................... 210
2.3. Conceito e breve evolução histórica do compliance............................. 212
3. Compliance digital e os desafios éticos ...................................................... 215
3.1. Privacidade e proteção de dados pessoais ............................................. 215
3.2. Ética e desenvolvimento da inteligência artificial ................................ 219
3.3. Valores éticos no ciberespaço.................................................................. 223
4. Considerações finais .................................................................................... 226
Referências ......................................................................................................... 227
Capítulo 10
Ketlen Caroline Soares Pierazzo
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
ENSAIO SOBRE ALGUNS ASPECTOS TEÓRICOS DO COMÉRCIO ELETRÔNICO E A
XXXII
Sumário
PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR ............................................................................. 231
1. Introdução ..................................................................................................... 231
2. Contratos eletrônicos ................................................................................... 233
2.1. Aplicabilidade das normas de proteção ao consumidor nas relações
contratuais eletrônicas ..................................................................................... 236
2.1.1. Classificação de consumidor segundo a legislação ........................... 238
2.1.2. Normas de proteção ao consumidor nas relações de consumo ...... 239
2.1.3. Aplicabilidade do princípio da boa-fé nas contratações eletrônicas
............................................................................................................................. 242
3. Formação dos contratos eletrônicos.......................................................... 243
4. Responsabilidade civil nos contratos eletrônicos .................................... 247
4.1. Responsabilidade civil decorrente do inadimplemento nos contratos
eletrônicos.......................................................................................................... 249
4.2. Responsabilidade civil dos provedores segundo a lei do Marco Civil da
Internet ............................................................................................................... 249
5. UNCITRAL ................................................................................................... 251
6. Proteção dos dados pessoais do consumidor ........................................... 253
7. Considerações finais .................................................................................... 257
Referências ......................................................................................................... 259
Capítulo 11
Ana Luíza Rodrigues Pereira
Lucas Zorzenoni Andreo
Thainá Lopes Gomes Lima
GEODISCRIMINAÇÃO: ANÁLISE À LUZ DO CASO DECOLAR.COM ...................... 261
1. Introdução ..................................................................................................... 261
2. A internet, as fronteiras e os governos nacionais .................................... 266
3. Geopricing, geoblocking e a tutela do consumidor ................................... 269
4. Considerações finais .................................................................................... 273
Referências ......................................................................................................... 274
XXXIII
Sumário
Capítulo 12
Ketlen Caroline Soares Pierazzo
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
BREVE ENSAIO SOBRE SEGURANÇA JURÍDICA NO COMÉRCIO ELETRÔNICO E
ABORDAGEM LEGISLATIVALIDA ......................................................................... 277
1. Introdução ..................................................................................................... 277
2. Proteção jurídica no e-commerce ............................................................... 278
3. Decreto federal nº 7.962/2016 .................................................................... 280
4. Decreto nº 7.962/2013 ................................................................................. 280
5. Considerações finais: aspectos relevantes acerca da atualização do
Código de Defesa do Consumidor no tocante ao comércio eletrônico (PLS
nº 281/2012) ...................................................................................................... 285
Referências ......................................................................................................... 290
Capítulo 13
Arthur Pinheiro Basan
José Henrique de Oliveira Couto
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DO CONSUMIDOR E A PROTEÇÃO DE DADOS
PESSOAIS ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL ................................................ 293
1. Introdução ..................................................................................................... 293
2. Uma breve história das trocas voluntárias: do surgimento do capitalismo
à monitoração eletrônica das negociações.................................................... 295
3. Fluxos circulares de controle: os avanços na monitoração do
consumidor no ambiente da internet ............................................................ 299
4. Os dados pessoais dos consumidores enquanto direitos fundamentais
............................................................................................................................. 303
5. O domínio tecnológico da internet e o controle de dados pessoais...... 307
6. Considerações finais .................................................................................... 309
Referências ......................................................................................................... 310
XXXIV
Sumário
Capítulo 14
Samuel Nunes Furtado
Frederico Cardoso de Miranda
Bruno Facuri Silva Rassi
CONTROLES DA INTERNET: O CIBER-UTOPISMO DO MARCO CIVIL DA INTERNET
NO ART. 19 .......................................................................................................... 315
1. Introdução ..................................................................................................... 315
2. Artigo 19 do MCI e a responsabilidade dos provedores ........................ 318
3. Como os provedores são remunerados: informação como um ativo... 321
3.1. Filtros bolha e a liberdade na internet.................................................... 323
4. Ciber-otimistas e ciber-pessimistas: ciberespaço e a guerra hobbesiana
de todos contra todos ....................................................................................... 326
5. O ciber-utopismo do marco civil da internet........................................... 330
6. Considerações finais .................................................................................... 332
Referências ......................................................................................................... 334
Capítulo 15
Rafael Escrich
Guilherme Reis
O PANORAMA GERAL ENTRE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E A SOCIOLOGIA ..... 339
1. Introdução ..................................................................................................... 339
2. A origem da inteligência artificial .............................................................. 340
3. Inteligência Artificial forte ou fraca ........................................................... 342
4. Inteligência Artificial simbólica versus aprendizado de máquina ........ 344
5. Estado atual da tecnologia ........................................................................... 345
6. A busca por diretrizes éticas ao atual momento da Inteligência Artificial
............................................................................................................................. 347
7. A utilização da Inteligência Artificial e seus dilemas éticos na nossa
sociedade ............................................................................................................ 350
8. Considerações finais .................................................................................... 357
Referências ......................................................................................................... 358
XXXV
Sumário
Capítulo 16
Aline Ferreira Costa Carneiro
Juliana Gomes Pinto Borges
OS DESAFIOS DA ÉTICA E DA PRIVACIDADE FACE AO DESENVOLVIMENTO DA
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL ................................................................................. 363
1. Introdução ..................................................................................................... 363
2. Conceitos fundamentais .............................................................................. 364
2.1. Evolução do conceito de privacidade: breve contexto histórico. ....... 364
2.2. A linha tênue entre privacidade e proteção de dados pessoais
atualmente ......................................................................................................... 365
2.3. Ética e suas novas perspectivas ............................................................... 367
2.4. Ética da inteligência artificial .................................................................. 369
3. A Quarta Revolução Industrial e os desafios da ascensão da Inteligência
Artificial ............................................................................................................. 374
3.1. O equilíbrio entre a privacidade, a proteção de dados pessoais e o
desenvolvimento da inteligência artificial .................................................... 374
4. Os limites e a responsabilidade da inteligência artificial ........................ 375
5. Considerações finais .................................................................................... 381
Referências ......................................................................................................... 381
Capítulo 17
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Pietra Daneluzzi Quinelato
Júlia Gessner Strack
A ARTE E O DIREITO DE IMAGEM NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: REFLEXÕES
SOBRE TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E O ‘CASO RICHARD
PRINCE’ ............................................................................................................... 385
1. Introdução ..................................................................................................... 385
2. Arte, entretenimento e a tutela jurídica dos direitos autorais ............... 387
3. O ‘caso Richard Prince’ e a arte na pós-modernidade tecnológica ...... 396
XXXVI
Sumário
4. Considerações finais .................................................................................... 406
Referências ......................................................................................................... 407
Capítulo 18
Ana Márcia Rodrigues Moroni
Viviane Furtado Migliavacca
DOMÍNIO PÚBLICO E SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS AUTORAIS E DIREITOS
CONEXOS ............................................................................................................. 411
1. Introdução: a proteção do direito autoral no arcabouço legislativo
brasileiro ............................................................................................................ 411
2. A obra musical no direito autoral .............................................................. 414
3. O objeto da proteção autoral na obra musical ......................................... 416
4. Direito conexo .............................................................................................. 418
5. A exploração do mercado fonográfico digital pela internet .................. 419
6. O domínio público no direito autoral musical brasileiro....................... 423
7. A adequação da utilização do dado musical com as regras de compliance
digital e proteção de dados .............................................................................. 426
8. Considerações finais .................................................................................... 428
Referências ......................................................................................................... 428
Capítulo 19
Gabriela Briesemeister
Sthéfane Alves Vasconcelos
DEMOCRACIA DIGITAL E SUA GARANTIA NA RELAÇÃO ENTRE ESTADO
BRASILEIRO E SOCIEDADE ................................................................................... 431
1. Introdução ..................................................................................................... 431
2 Sociedade da informação............................................................................. 432
2.1. Informação e base de dados como nova matéria-prima ..................... 435
3. Interação digital entre estado e sociedade e o exercício da democracia
digital .................................................................................................................. 436
4. Democracia digital no brasil ....................................................................... 442
XXXVII
Sumário
4.1. Dos atos normativos atuais do governo brasileiro e a proteção à
democracia na era da informação .................................................................. 448
5. Considerações finais .................................................................................... 452
Referências ......................................................................................................... 453
Capítulo 20
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
O SISTEMA JURÍDICO DO BIG DATA E SUA REPERCUSSÃO PENAL ...................... 457
1. Introdução ..................................................................................................... 457
2. Premissas ....................................................................................................... 459
3. Problemática ................................................................................................. 463
4. Prognóstico.................................................................................................... 469
5. Considerações finais .................................................................................... 473
Referências ......................................................................................................... 474
XXXVIII
PRÓLOGO
41
Borja Muntadas Figueras
transparencia, no discriminación, bienestar social y medioambiental y
responsabilidad.
Tal y como afirmó Bauman, la nuestra es una sociedad donde el ritmo
de la vida se mueve a la velocidad de la señal electrónica; donde el tiempo
requerido para el movimiento se ha vuelto extremadamente instantáneo y
ha sucumbido a lo verdaderamente extraterritorial. En una vida así lo efí-
mero cobra cada vez más importancia, y el individuo busca referentes y
puntos de anclaje cuando compra y navega por la red y el espacio virtual.
Lo que busca, en definitiva, ante tanta fluidez es seguridad; seguridad que
sólo le puede proporcionar un ordenamiento jurídico que lo proteja como
ciudadano y consumidor.1
Las Fake News son parte del mismo desarrollo de la cultura de la co-
municación en tiempo real, amplificado gracias a Internet y a una serie de
dispositivos periféricos como, por ejemplo, los smartphones. Quizás ha-
bría que situar en el centro mismo del debate una cuestión central respecto
a la misma noción de trabajo: ¿Qué sucede con ese tiempo liberado del
trabajo gracias al desarrollo tecnológico? Si bien autores como Rifkin2 se
mostraban bastante esperanzados en que la reducción de la jornada laboral
sería posible, en pleno siglo XXI esta utopía perece esfumarse. Las tecnolo-
gías de la información, lejos de reducir la jornada de trabajo, ha hecho que
ésta invada la vida privada en todos sus aspectos; el smartphone que soste-
nemos en nuestras manos es una prolongación de la oficina que nos
acompaña, colocado en mi mesita noche, cuando intento conciliar el sue-
ño. En este sentido, la sociedad digital se encuentra dividida en dos gran-
des grupos: los que disponen de tiempo libre para seleccionar información
y producirla, y aquellos otros que en su vida monótona y acelerada la con-
sumen de forma automática. Nos encontramos aquí ante el dilema: ¿Cómo
va a ser utilizado este excedente? ¿Para lograr una sociedad más libre, jus-
44
Prólogo
sin embargo, a falta de una regulación que sancione los mensajes de odio,
las Fake News, que promueven la desinformación o la utilización los datos
de los ciudadanos con fines poco democráticos, puede ser el medio idóneo
para una nueva forma de fascismo: el Fascismo 3.0. Un claro ejemplo de
ello fue el caso de Cambridge Analítica - Facebook, que tuvo una gran
repercusión en la campaña de Trump.
Quizás lo digital e Internet sea el farmacon, como apunta Stiegler,5 -a la
vez lo que permite curar y aquello de lo cual debemos tener cuidado- de
nuestro tiempo, que allanará el camino a una democracia más directa, más
deliberativa (ciber-utopismo), pero que también erosiona los mecanismos
psíquicos de atención, manipula, estandariza, satura de información un
espacio imprescindible para la misma deliberación, y a la vez sirve de caldo
de cultivo para toda clase de movimientos antidemocráticos (como sostie-
ne el ciber-pesimismo). Este espacio es el que nuevos mecanismos legales
deben proteger. También en esta línea se mueven los planteamientos de
Leonardo Kussler,6 quién afirma que hemos pagado un tributo por el pro-
greso tecnológico. Nos se apela a extrañas utopías digitales, sino a la exi-
gencia de cumplir uno de los derechos -me refiero a derecho positivo-
fundamentales, recogido en la Declaración Universal de Derechos Huma-
nos de 1948 en su artículo 22: todo ser humano tiene derecho al libre desa-
rrollo de su personalidad. Y qué duda cabe, que la manipulación de infor-
mación, adaptada a los gustos de los usuarios, obtenida del rastro digital
que dejan los usuarios, tanto en el uso de páginas web, monitorización de
consumidores, redes sociales o geolocalización, y que pueden moldear o
construir una personalidad con fines políticos o comerciales, se aleja bas-
tante de este derecho. Y es que no sólo en función de nuestra huella digital,
sino también en función de los datos de geolocalización que enviamos a
servidores remotos, podemos ser discriminados (el caso Decolar.com). Por
5 BERNARD, S., Ce qui fait que la vie vaut la peine d´être vécue: pharmacologies de
l´esprit, du nihilisme et du capital. Paris: Flammarion, 2010.
6 KUSSLER, L., Filosofia, Cinema e Literatura. Intercessões. São Paolo: LiberArs, 2011.
45
Borja Muntadas Figueras
eso, además, este derecho debe ser reforzado con medidas éticas y de res-
ponsabilidad corporativa, y con una educación que enseñe a hacer un uso
consciente y responsable, tanto de Internet como de las redes sociales y la
navegación en el ciber espacio.
Nos encontramos ante una obra, que no solo puede ser interesante para
estudiosos e investigadores en el campo del derecho, sino también para
cualquier investigador de la cultura y la sociedad, en un sentido muy am-
plio. Quizás, para quienes no sean estudiosos del derecho haya una cues-
tión que pueda pasar desapercibida: las estructuras judiciales y las leyes
actuales son herederas de un modelo de Estado rígido y estático -
construido a partir del siglo XIX-, que hunde sus raíces en un modelo de
una temporalidad lineal. Lo que plantea esta obra, lejos de ser una colec-
ción de estudios y artículos, es la quiebra de esta linealidad temporal. Lo
digital e Internet han puesto en el centro del análisis jurídico no sólo el Big
Data, las Fake News, geopricing …, sino también otros aspectos mucho
más profundos: la inmediatez, la saturación y la aceleración.7 Si el derecho
debe defender derechos y libertades de los ciudadanos -hoy ciudadano
digital-, debe repensarse a la luz de lo digital, debe superar las barreras
rígidas de una temporalidad estrictamente lineal, debe ir más allá de las
disciplinas, debe recorrer lo transdisciplinar, y sin duda el presente trabajo
lo hace.
Barcelona, junio de 2020.
BORJA MUNTADAS FIGUERAS
Doutor em Filosofía Contemporánea y Tradición Clásica pela
Universitat de Barcelona – UB. Professor e investigador em Filo-
sofía Moderna y Contemporánea na Universitat La Salle, Campus
Barcelona, na Universitat de Barcelona – UB e Professor Convi-
dado na Universidade Federal de Uberlândia – UFU.
1
João Victor Rozatti Longhi
1. Introdução
O conceito tradicional de democracia parece estar em xeque no século
XXI, especialmente na análise dos impactos das Tecnologias da Informa-
ção e Comunicação. Nesse sentido, é dada ênfase especial ao papel das
mídias sociais, que deram voz a todos os tipos de opiniões, desafiando o
legislador a revisitar todo o arquétipo estrutural do sistema jurídico, com a
codificação de regulamentações destinadas a lidar com a Internet e sua
fluidez em termos de dissuasão de informações prejudiciais, como discur-
so de ódio ou manipulação de propaganda.
No Brasil, esse fenômeno se tornou especialmente marcante desde a se-
gunda década do século atual, com a promulgação de um Marco Civil da
Internet e uma Lei Geral de Proteção de Dados – para citar alguns.
Assim, surgem questões sobre o fenômeno da personalização e os riscos
trazidos pelas redes sociais aos postulados derivados do princípio demo-
crático, com ênfase na polarização política gerada pelos efeitos deletérios
das interações virtuais resultantes da massificação da datificação, da estig-
matização gerada pela prática de criação de perfis, além de poluição in-
47
João Victor Rozatti Longhi
formacional, notícias falsas (fake news) e pelo fenômeno que a doutrina
convencionalmente chamou de populismo digital – ou "populismo 3.0",
revisitando o conceito cunhado por Paolo Gerbaudo.
A polarização de conteúdo e a radicalização política decorrentes do
acesso em massa a dados pessoais é um risco para as liberdades democráti-
cas (incluindo a liberdade de expressão), prejudicando os direitos funda-
mentais em um período de transição que reflete a angústia resultante dos
perigos que o Estado de Direito Democrático enfrenta com a realidade em
que se sobrepôs a alguns dos princípios fundadores da Constituição da
República de 1988.
Como um problema de pesquisa, este estudo tem como objetivo discu-
tir os impactos do uso político da Internet e suas influências, não apenas
focando na formação da opinião pública durante as campanhas e eleições
eleitorais, mas em todo o processo de deliberação na esfera pública.
Daí a necessidade de se discutir certas restrições institucionais e regula-
tórias, tanto em termos de conteúdo quanto de proteção de dados, as
quais, embora insuficientes para conter todos os riscos decorrentes dessa
nova realidade, transmitem uma sintonia fina desse novo disfarce institu-
cional, que tem o poder de fornecer aos cidadãos mecanismos para prote-
ger sua dignidade informacional.
Tradução de Bruno Miragem. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 39.
2 GERBAUDO, Paolo. The digital party: political organization and online democracy.
Londres: Pluto Press, 2019, p. 177. Segundo o autor: “The rise of new political parties
reflects a new cleavage in society, stemming from technological and economic fac-
tors: a fracture between political and/or economic insiders and what I call connected
outsiders.”
3 HAURIOU, Maurice. Précis de droit administratif et de droit public. 11. ed. Paris:
Sirey, 1927, p. 301.
4 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Leopol-
do Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 77.
5 BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 10. ed. São Paulo: Malheiros,
2011, p. 107.
49
João Victor Rozatti Longhi
common law apontassem para os perigos de uma 'tirania da maioria’, en-
quanto outros, como Benjamin Constant, apontariam para a necessidade
de reler a antítese entre liberalismo e democracia. 6
Em meados do século XIX, intensas transformações sociais marcaram a
ascensão do Estado Social, especialmente após os resultados da Revolução
Industrial, que permitiram uma reformulação do papel do Estado.
O Poder Público tornou-se gradualmente o provedor direto de uma sé-
rie de garantias das quais se formou a proteção dos direitos sociais e a fle-
xibilidade da autonomia da vontade, permitindo uma revisão densa dos
institutos de direito privado e, consequentemente, também do direito pú-
blico. Com a reinterpretação do papel do Estado na nova dogmática jurídi-
ca, é importante observar que o amadurecimento do direito privado, em
termos de codificação, ocorre um pouco antes do direito público, vincula-
do por uma ampla gama de leis espalhadas por todo o ordenamento, mas
sem elaboração doutrinária completa e sujeita a excessos indesejados.
Segundo Karl Larenz7, o objetivo primordial desse novo modelo seria
impedir aqueles que acabam confiando no exercício do poder do Estado de
o usarem de maneira diferente do real significado da lei. E, nesse mesmo
sentido, é possível entender o quão importante o papel do Estado se tor-
nou quando trata da tomada de decisões e deliberações quanto à coorde-
nação da vida social8, cujo objetivo principal se tornou efetivamente foca-
do em alcançar o interesse público.
O século XXI surge e o que é perceptível é uma distância crescente en-
tre as complexidades externas do controle político institucionalizado e o
espaço em que as questões mais importantes para a vida humana são esta-
Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 244. Destaca: “The cult of participation
problematically conflates utopia and praxis, ends and means; the world we want to
build and the ways in which we can build it. Collective action runs the risk of becoming
merely therapeutic rather than emancipatory, and its nature more ethical and quasi-
religious instead of political. This tendency, which reflects the uncanny resonance be-
tween neoanarchism and neo liberalism in their common reflection of individualistic
narcissistic tendencies, considers all moves towards formalisation as necessarily equat-
ing to ossification and sclerotisation rather than, for example, maturation.”
13 VAIDHYANATHAN, Siva. Anti-social media: how Facebook disconnects us and
undermines democracy. Oxford: Oxford University Press, 2018, p. 3, tradução livre.
14 VAIDHYANATHAN, Siva. The googlization of everything (and why should we wor-
ry). Berkeley: University of California Press, 2011, p. 136.
15 MOROZOV, Evgeny. The net delusion: the dark side of Internet freedom. Nova
York: Public Affairs, 2011, p. 320.
16 GERBAUDO, Paolo. Social media and populism: an elective affinity? Media, Culture
& Society, Londres, v. 40, n. 5, 2018, p. 746.
52
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
O apoio popular é obtido através do uso massivo de redes sociais por
líderes, 'eleitos' ou não, nas mídias sociais. Agora, com a possibilidade de
comunicação direta com um grande número de seguidores – sejam huma-
nos ou de inteligência artificial (bots) – que, por sua vez, compartilham,
comentam, respondem a postagens opostas, rapidamente e/ou em tempo
real, em novo formato para interatividade a participação capaz de propa-
gar tópicos e visões de tendências em segundos surge e molda formas de
comunicação mais refinadas e complexas.
À luz do comportamento do presidente dos EUA, Donald Trump, nas
mídias sociais – um exemplo emblemático desse momento histórico – é
notável a mudança de atitude dos líderes globais, porque, em termos de
técnicas de comunicação, Trump depende quase exclusivamente da rede
social Twitter para expressar seus pontos de vista e geralmente se comuni-
car com o público, sendo essa a razão pela qual, ironicamente, alguns o
chamam de “Twitter in Chief”17, em referência ao papel presidencial de
“Commander in Chief”, nos termos da Constituição dos EUA (Artigo II,
Seção 2).
Nos posts de Trump, geralmente existem textos curtos e linguagem
simples, compreensíveis e facilmente assimilados por qualquer seguidor.
Quanto ao conteúdo, por sua vez, há uma mistura de opiniões pessoais
com fatos controversos, que mais tarde são desafiados pela mídia tradicio-
nal pela natureza controversa permeada por notícias falsas, teorias da
conspiração, ironias etc. É importante notar que o contexto das comunica-
ções – particularmente as redes sociais – revela que existe um ambiente
repleto de perigos para preservar os direitos fundamentais, especialmente
os da primeira dimensão (liberdades públicas).18
of self-insulation – by a situation in which many of us wall ourselves off from the con-
cerns and opinions of our fellow citizens”. (SUNSTEIN, Cass. #Republic: divided de-
mocracy in the age of social media. Princeton: Princeton University Press, 2017, p.
252.)
19 BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti. O papel das tecnologias da comuni-
cação em manifestações populares: a primavera árabe e as jornadas de junho no Bra-
sil. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, v. 10, n. 1, 2015, p.
391.
20 KEEN, Andrew. The internet is not the answer. Londres: Atlantic, 2015, p. 140-142.
21 Para Paolo Gerbaudo: “At the heart of the culture of contemporary social movements
there lies a third fundamental tension: that between evanescence and fixity. On the one
hand, contemporary popular movements are characterised by ‘liquid’ forms of organis-
ing; in which the use of social media by social networking sites is geared towards super-
seding the authoritarian tendencies of ‘solid’ organisations like parties and trade un-
ions, in the effort of avoiding the ‘iron law of oligarchy’. On the other hand, these
movements require the invocation of a sense of locality or ‘net locality’, which involves
bestowing them with some degree of fixity, a ‘nodal point’ in their texture of participa-
tion.” (GERBAUDO, Paolo. Tweets and the streets: social media and contemporary
activism. Londres: Pluto Press, 2012, p. 166.)
54
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
exclusão digital e ao grau de envolvimento político-democrático da popu-
lação. Esse é o argumento central que diz respeito à nebulosidade que
permeia o conhecimento dos usos e controle da Internet, principalmente
diante do domínio do poder econômico dos 'impérios da comunicação'22,
empresas privadas que subiram ao platô de entidades hegemônicas no
controle das mídias sociais.
Exemplos como a proteção de dados pessoais e a segurança da infor-
mação, que são complementares entre si, embora ambos estejam vincula-
dos a postulados de confidencialidade, integridade e disponibilidade, for-
necem um ambiente fértil para a difusão de vazamentos de notícias e in-
formações provenientes de inúmeros portais projetados para servir a uma
variedade de propósitos. Por esse motivo, essa nova realidade virtual pro-
porcionou acesso aos dados do usuário (dados pessoais), com relevância
única, impondo às empresas e organizações um cuidado especial com a
segurança dos dados e a privacidade do usuário.
Na medida em que diz respeito à liberdade de expressão, o problema da
personalização de notícias passa a revelar uma política de conteúdo apre-
sentada pela maioria dos provedores – especialmente nas mídias sociais –
formando verdadeiras bolhas de conteúdo através das quais os usuários de
aplicativos recebem informações direcionadas para suas “preferências”,
resultando em um processo crescente de radicalização, onde as pessoas
estão gradualmente se movendo para os extremos e falhando em dialogar
com outras pessoas de diferentes posições.
Em essência, pode-se conceber brevemente as liberdades comunicacio-
nais como um gênero que engloba toda a gama do direito inalienável de se
comunicar livremente. Liberdade de crença, expressão, associação (ou
não) regulamentação da propriedade da mídia, e, ultimamente, da Inter-
net, são algumas das mídias desse grande gênero, cada uma digna de uma
22 WU, Tim. The master switch: the rise and fall of information empires. Nova York:
Vintage, 2012, p. 255-257.
55
João Victor Rozatti Longhi
análise detalhada dos inúmeros problemas que envolvem seus principais
aspectos.
A expressão “free speech” é sugerida por Nigel Warburton em um sen-
tido amplo que não se restringe à palavra falada – sentido estrito –, mas a
uma gama significativa de expressões como a palavra escrita, música, fil-
mes, vídeos, fotografias, desenhos, artes e etc. Afinal, o foco não deve ser o
modo como uma ideia é expressa, mas a própria ideia, seus impactos, ou-
vintes, o entendimento das expressões utilizadas, o contexto geral etc. Por
esse motivo, como regra, situações relacionadas aos aspectos legais das
liberdades comunicativas não estão vinculadas ao uso da palavra em ambi-
entes privados, mas em “lugares” que variam de um poema a perfis em
sites de redes sociais.23
Por esse motivo, via de regra, as situações relacionadas aos aspectos le-
gais das liberdades comunicativas não estão ligadas ao uso da palavra em
ambientes privados, mas em “lugares” que variam de um poema a perfis
em sites de redes sociais.
Warburton ressalta que existem duas ordens principais de fundamen-
tos relativas à liberdade de expressão: uma de ordem moral e outra de or-
dem instrumental. Este último destaca os benefícios de uma sociedade
onde a liberdade de expressão é garantida economicamente (fornecendo
informações aos cidadãos) e socialmente, promovendo a felicidade das
pessoas e o pluralismo de idéias. No entanto, destaca também a ordem
moral como fundamento que contém um valor intrínseco quase consensu-
al: a promoção da dignidade da pessoa humana e a autonomia do indiví-
duo.24
Note-se que o autor, posteriormente, faz uma distinção terminológica
23 WARBURTON, Nigel. Free Speech: a very short introduction. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2009, p. 5.
24 WARBURTON, Nigel. Free Speech: a very short introduction. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2009, p. 16.
56
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
entre freedom of speech e freedom of expression. A ideia de expressão, ele
argumenta, expressaria com mais precisão a subjetividade de quem comu-
nica um fato a um público específico. O exemplo de Warburton é de uma
possível comunicação de um cidadão chinês sobre o chamado massacre da
Praça da Paz Celestial (1989) nos dias atuais: o que o governo chinês proí-
be é uma narrativa negativa subjetiva e crítica sobre esse fato, pois o pró-
prio fato permanece intacto.25
Em português, no entanto, é difícil visualizar uma distinção entre essas
duas liberdades. No entanto, parte da doutrina usa certas categorizações
para justificar diversos regimes legais no exercício das liberdades comuni-
cativas, em um cenário diferente do da liberdade de expressão, que, nas
palavras de Guilherme Peña de Moraes, engloba a possibilidade de expres-
são intelectual, atividades científicas, artísticas e sociais, trazendo consigo
as obrigações de indenização ou reparação de danos morais, possibilidade
de direito de resposta, anonimato e censura proibidos.26
25 WARBURTON, Nigel. Free Speech: a very short introduction. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2009, p. 6.
26 MORAES, Guilherme Peña. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas,
2015, p. 573-574.
27 ROUVENAT, Fernanda. Livros com temática LGBT comprados por Felipe Neto são
distribuídos na Bienal. G1 Rio de Janeiro, 7 set. 2019. Disponível em:
https://glo.bo/2Yf5mgP. Acesso em: 14 mar. 2020.
57
João Victor Rozatti Longhi
O ambiente de hostilidade é mais um capítulo da crescente atmosfera
de ódio que recentemente assola o mundo. O contexto em que se insere o
problema da ameaça a figuras públicas no Brasil, contudo, carece de análi-
se especialmente pelo fato de que a violência é sobretudo perpetrada pela
Internet.
Para a compreensão do fenômeno, preliminarmente, levam-se em con-
ta as ideias de Tim Wu: “(...) se um dia era difícil de falar, hoje é difícil ser
escutado.”29 Trata-se de síntese apropriada do ambiente informacional
que se tem na atualidade. Afinal, hoje, a informação é abundante e falar em
tese é fácil, ao mesmo passo que o tempo e a atenção do ouvinte têm se
tornado, a cada dia, valiosas commodities, já que sujeitas à escassez, o que
Wu descreve como economia da atenção: “(...) atenção tem sido ampla-
mente reconhecida como uma mercadoria, como trigo, gordura animal ou
petróleo bruto.”30
Em razão do volume informacional, que é impossível de ser consumido
por um ser um humano, passa a fazer sentido aquilo que o autor chama de
“homo distractus”, ilustrado por aquele que senta para ler um simples e-
mail e passa horas sentado ao computador vendo redes sociais, vídeos,
notícias e publicidade e perdendo a noção do tempo. Tal ambiente fez
surgirem os “mercadores da atenção”, intermediários que lucram por ofe-
recer o conteúdo mais propício a prender a atenção do consumidor, le-
vando à disputa pela melhor personalização de acordo com seu perfil.31
28 FRANK, Gustavo. Felipe Neto cancela participação em evento após ameaças: "Já tirei
minha mãe do Brasil". UOL, 16 set. 2019. Disponível em: https://bit.ly/2x5Wu1E.
Acesso em: 14 mar. 2020.
29 WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geof-
frey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019, p.
276, tradução livre.
30 WU, Tim. The attention merchants: the epic scramble to get inside our heads. Nova
York: Vintage, 2016, p. 6, tradução livre.
31 WU, Tim. The attention merchants: the epic scramble to get inside our heads. Nova
58
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
Como dimensão política do fenômeno, surgem as “bolhas de informa-
ção”32, em que o cidadão se atenta cada vez mais para conteúdos que cor-
roborem sua atual opinião e reiterem suas convicções ideológicas naquele
momento, levando a um ambiente de contínua radicalização e polarização.
Em última análise, tal situação enfraquece a base da democracia deliberati-
va: a esfera pública.33
Percebendo tal fraqueza, regimes e líderes de tendências autocráticas –
em regra levados ao poder como produto de radicalização e não do debate
– adaptam-se a este ambiente, promovendo desinformação e extremismo
como políticas de comunicação. Afinal, parte-se da constatação de que
uma das maneiras mais eficientes de se controlar o exercício das liberdades
comunicacionais – de expressão, opinião e comunicação – é atingir a aten-
ção do espectador e, assim, não mais são empreendidos esforços que visam
impedir diretamente alguém de se manifestar, mas que buscam sobrepor a
visão do poder constituído sobre a da oposição.
Trata-se de um paradoxo relatado pelo autor, uma vez que, no passado,
muitos apostaram na Internet como um veículo que promoveria a liberda-
de de se comunicar, e não o contrário. Entretanto, cada dia mais, a Rede
mostra a dimensão gigantesca dos desafios que hoje se enfrenta, uma vez
que se tem notado uma redução dos espaços para o exercício do free spe-
ech. Como alerta Wu, poucos anteviram que este ambiente de suposta
facilidade para o exercício das liberdades comunicacionais seria o próprio
meio de se limitar a liberdade de expressão.34-35
35 A autora lembrada como exceção é Danielle Keats Citron, que, no passado, alertou
para tais riscos. Para maiores informações, consulte-se: CITRON, Danielle Keats.
Cyber civil rights. Boston University Law Review, Boston, v. 89, p. 61-125, 2009.
36 WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geof-
frey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019, p.
280.
37 WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geof-
frey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019, p.
281.
38 Astroturf é um termo usado pela imprensa norte-americana para designar a simula-
ção de um movimento popular espontâneo. Sua origem remonta à década de 1980
60
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
programação com quantidade suficiente de informação para sufocar dis-
cursos desfavoráveis, ou ao menos para distorcer o ambiente informacio-
nal. Geralmente envolve a divulgação maciça de fake news (ou propaganda
radical) para distrair e desacreditar as críticas, qualificada como forma de
controle de opinião que tem por alvo o ouvinte, espectador ou leitor e não
quem produz o conteúdo.39 Como exemplos, além da Rússia cita a China,
onde se pagaria mais de 2 milhões de pessoas para postarem online em
nome do partido comunista.
Finalmente, deve-se acrescer que os ataques à mídia tradicional e, espe-
cialmente, o uso crescente de robôs, perfis falsos movidos por inteligência
artificial em sites de redes sociais, também conhecidos como “bots” expo-
nenciam os efeitos deste método comunicacional e, quando usados de
forma sistemática pelos detentores de um poder hegemônico, levam ao
40 WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geof-
frey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019, p.
286.
41 WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geof-
frey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019, p.
287.
62
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
regulamentação da Internet ainda esteja em construção com a aprovação
do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014, MCI) e da Lei Geral de
Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018, LGPD), a ausência de um direito
fundamental à proteção de dados torna sua proteção ainda incompleta.
Combatendo isso, uma Proposta de Emenda à Constituição Federal (PEC
17/2019) inclui o referido direito fundamental no texto constitucional
(com o acréscimo do inciso XII-A ao rol do art. 5º da CF).42 Apesar disso, a
proteção implícita já existe e é decorrente dos direitos fundamentais à pri-
vacidade, à intimidade e à liberdade.
Mesmo assim, a LGPD trouxe avanços inegáveis, embora seus concei-
tos não contenham os ricos detalhes da regulamentação europeia. Para
esclarecer, os dados pessoais, de acordo com a lei brasileira, são as infor-
mações relacionadas a uma pessoa física identificada ou identificável (art.
5º, I). Além disso, como subespécie, dada a necessidade de tratamento
legal específico, também são regulados os dados sensíveis (art. 5º, II) e os
dados anonimizados (art. 5º, III).
A regra geral relativa à disposição dos dados pessoais pelo usuário deve
cumprir o chamado princípio de consentimento (art. 7º, I), que deve ser
obtido por escrito ou por outros meios inequívocos e pode ser revogado a
qualquer momento, sendo o responsável pelo ônus da prova o cumpri-
mento de tais requisitos (art. 8º, caput e §§ 1º, 2º e 3º). Sobre a responsabi-
lidade dos agentes de dados pessoais, que são os operadores e controlado-
res dos dados (art. 5º, VII, VIII e IX, LGPD), os artigos 42 e seguintes defi-
nem a responsabilidade objetiva, seja por ação (art. 42, caput) ou por
omissão (art. 44), causada pela violação de seus deveres como prestadores
de serviços.
A referida conclusão é tirada a priori e se baseia amplamente na ausên-
cia de qualquer menção à culpa subjetiva do agente, e há também uma lista
5. Considerações finais
O ponto fundamental do estudo dos impactos das Tecnologias de In-
formação e Comunicação (TICs), especialmente da Internet, sobre o re-
cente delineamento do princípio democrático, reside no problema de en-
curtar a distância entre o Estado e a sociedade civil, como é observou uma
distorção sensível do uso da web para finalidades diferentes daquelas con-
cebidas em sua origem.
Quanto às redes sociais, existem vários efeitos nocivos das chamadas
“bolhas de informação”, nas quais os cidadãos consomem conteúdo su-
64
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
postamente direcionado às suas preferências, favorecendo o surgimento de
tendências que fraturam a noção de esfera pública. Assim, existe o risco de
que o fornecimento de conteúdo com caráter propagandístico resulte em
um ambiente de extrema polarização política, altamente prejudicial ao
debate e, consequentemente, com grande potencial prejudicial ao princí-
pio democrático.
O conceito contemporâneo de populismo digital ou ‘populismo 3.0’,
extraído especialmente das preocupações de Paolo Gerbaudo, tem relevân-
cia especial para a compreensão desse fenômeno, à medida que as técnicas
comunicacionais são expandidas em um universo marcado pela massifica-
ção de dados, não apenas para influenciar campanhas e eleições, mas inter-
ferir com todo âmbito relacionado à liberdade de expressão, o que abre
margem a ataques em massa e à propagação do discurso de ódio.
Em conclusão, pode-se afirmar que as leis de proteção de dados pesso-
ais não necessariamente impediriam casos como esse, mas proteger esse
direito fundamental do cidadão dificultaria a influência de tais processos
deliberativos para conteúdo tóxico, como notícias falsas e discurso de
ódio. Certas restrições institucionais e regulatórias, especialmente no cam-
po da proteção de dados, podem ajudar, mas não serão suficientes. Mesmo
assim, uma Agência de Proteção de Dados independente é imprescrindível
como meio de fornecer aos cidadãos mecanismos institucionais para pro-
teger sua dignidade informacional, sob pena de se tornar mais uma enun-
ciação de direitos com “limites de papel”.
Os ataques constituem, por fim, uma afronta ao próprio direito inalie-
nável de manifestar sua opinião a favor ou contra qualquer dos lados do
espectro político. Atacar alguém cuja opinião influencia milhões de pesso-
as tem por consequência o espraiar de um ambiente de medo que leva ao
chamado efeito amedrontador (chilling effect) da liberdade de expressão.
Quantos “Felipes Neto” não se sentem acuados de manifestar suas opini-
ões quando ameaças desta natureza não são sequer investigadas e os ver-
dadeiros interessados na proliferação do discurso de ódio responsabiliza-
65
João Victor Rozatti Longhi
dos?
Referências
ANDERSON, Bryan. Tweeter-in-Chief: a content analysis of President
Trump’s tweeting habits. Elon Journal of Undergraduate Research in
Communications, Elon, v. 8, n. 2, 2017.
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da comunicação em manifestações populares: a primavera árabe e as
jornadas de junho no Brasil. Revista Eletrônica do Curso de Direito da
UFSM, Santa Maria, v. 10, n. 1, 2015.
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68
FAKE NEWS E DESINFORMAÇÃO: UM
ENSAIO PELA ÉTICA NA SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO
2
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Letícia Preti Faccio
1. Introdução
O perigoso cenário das fake news carrega tamanha complexidade que
atinge diversas ciências, como direito, filosofia, psicologia, medicina, se-
miótica, entre outras. Nesse estudo, trataremos dos reflexos desse fenôme-
no, nos campos do direito e da ética, trazendo à discussão as aporias quan-
to às responsabilidades decorrentes do ‘poder’ que a tecnologia confere.
Essa noção é colhida dos escritos de Hans Jonas, que sugere ser possível
a existência de uma nova ética para a atual civilização tecnológica, se re-
portando ao conto mitológico de Hefesto acorrentando o titã Prometeu,
conforme ilustrado em tela de Dirck van Baburen (1623).1 Em síntese, a
Prometeu teria sido dada a incumbência de supervisionar a criação dos
70
Fake news e desinformação
nho do status quo atual: uma disseminação de informações, um jogo às
cegas entre “verdadeiro ou falso” e uma óbvia consequência à humanida-
de, que se vê descrente, polarizada, com uma ética esvaecida.
2 RAIS, Diogo. Fake news e eleições. In: RAIS, Diogo (Coord.). Fake news: a conexão
entre a desinformação e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 107. Ex-
plica: “A polissemia aplicada à expressão fake news confunde ainda mais o seu senti-
do e alcance, ora indica como se fosse uma notícia falsa, ora como se fosse uma notí-
cia fraudulenta, ora como se fosse uma reportagem deficiente ou parcial, ou, ainda,
uma agressão a alguém ou a alguma ideologia. Daí uma das críticas ao uso da expres-
são fake news: a impossibilidade de sua precisão. Fake news tem assumido um signifi-
cado cada vez mais diverso, e essa amplitude tende a inviabilizar seu diagnóstico, afi-
nal, se uma expressão significa tudo, como identificar seu adequado tratamento? Não
é possível encontrar uma solução para um desafio com múltiplos sentidos.”
71
José Faleiros Júnior · Letícia Preti Faccio
dados obscuros e estruturado através de técnicas de psicometria, demons-
trando um sério problema que vai além das fake news e abrange a manipu-
lação da população.3
Fala-se em ‘pós-verdade’4 e ‘desinformação’, fenômenos aparentemen-
te recentíssimos, mas que estão ligados à própria natureza humana e à
“atmosfera de incertezas e desconfianças” que paira em relação ao tema.
O caso retratado por Zanatta envolveu as empresas Facebook e Cam-
bridge Analytica. Esta última é empresa de consultoria e análise de dados e
foi acusada de obter ilegalmente informações pessoais de milhões de perfis
do Facebook e as ter utilizado na campanha eleitoral de Donald Trump,
atual presidente dos EUA.5 A manipulação de dados alcançou mais de 50
milhões de usuários e a repercussão do caso foi tamanha que é considerada
a maior crise de imagem do Facebook. Foi estabelecida uma multa de US$
5 bilhões (cerca de R$ 19 bilhões) por violar as informações de privacidade
dos usuários da rede, batendo recorde mundial de maior multa da FTC
(Federal Trade Commission) a uma empresa de tecnologia.6
Vale ressaltar que essa manipulação eleitoral, vista evidentemente no
contexto americano, também ocorre em diversos países, entre eles o Brasil.
O autor Bernardo Brasil Campinho estuda a questão eleitoral e apresenta
de Diego Alfaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 156. Diz o autor: “Com muita fre-
quência, os executivos do Facebook, Google e outras empresas socialmente impor-
tantes se fazem de bobos: são os revolucionários sociais quando lhes convêm e em-
presários amorais quando não. E as duas posturas deixam muito a desejar.”
11 Os impactos do populismo podem ser complementados, ademais, pela leitura de:
LONGHI, João Victor Rozatti. Dignidade.com: direitos fundamentais na era do po-
pulismo 3.0. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de
Moura (Coords.). Estudos essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p.
189 et seq.
12 KALOGEROPOULOS, Antonis. Groups and Private Networks – Time Well Spent?
Reuters Institute for the Study of Journalism. University of Oxford, Digital News Re-
port. Disponível em: http://www.digitalnewsreport.org/survey/2019/groups-and-
private-networks-time-well-spent/. Acesso em: 10 abr. 2020.
74
Fake news e desinformação
‘festa da televisão’ cinicamente profissionalizada para a era pós-Guerra
Fria de alto neoliberalismo. Esse tipo de partido emergente integra as no-
vas formas de comunicação e organização introduzidas pelos oligopólios
de Big Data, explorando os dispositivos, serviços, aplicativos que se torna-
ram a marca mais reconhecível da era atual, das mídias sociais como Face-
book e Twitter, até aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram,
canais nos quais as pessoas podem acompanhar qualquer tipo de evento
político, (...). A ascensão do partido digital reflete, assim, como a inovação
tecnológica também moldou os partidos políticos, alterando uma forma de
organização que durante muito tempo parecia impermeável a mudanças,
em meio a um sistema político congelado.13
Vale ressaltar que a última pesquisa divulgada pelo Digital News Report
ainda revela que a preocupação com a desinformação, que permanece alta,
apesar dos esforços das plataformas e de editores de tentar criar confiança
no público. No Brasil, por exemplo, 85% concordam com a afirmação de
que estão preocupados com o que é real e falso na Internet. Outros dados
de preocupação alta se encontram no Reino Unido (70%) e nos EUA
(67%).14
13 GERBAUDO, Paolo. The digital party: political organisation and online democracy.
Londres: Pluto Press, 2019, p. 4-5, tradução livre. No original: “The digital party, or
alternatively the ‘platform party’, to indicate its adoption of the platform logic of social
media, is to the current informational era of ubiquitous networks, social media and
smartphone apps – what the mass party was to the industrial era or the cynically pro-
fessionalised ‘television party’ was during the post–Cold War era of high neoliberal-
ism. This emerging party-type integrates within itself the new forms of communication
and organisation introduced by Big Data oligopolies, by exploiting the devices, services,
applications that have become the most recognisable mark of the present age, from so-
cial media like Facebook and Twitter, to messaging apps like WhatsApp and Telegram,
channels on which people can follow any sort of political event such as a Five Star
Movement convention. The rise of the digital party thus reflects how technological in-
novation has also shaped the political party, a form of organisation that for a long time
had seemed impervious to change amidst a frozen political system.”
14 KALOGEROPOULOS, Antonis. Groups and Private Networks – Time Well Spent?
75
José Faleiros Júnior · Letícia Preti Faccio
Destarte, em todos os países analisados, o nível médio de confiança nas
notícias em geral caiu 2 (dois) pontos percentuais, demonstrando que o
reflexo da disseminação de um mix de informações a cada milésimo de
segundo, e a constante dúvida entre o real e o falso causam descrença po-
pulacional.
Reuters Institute for the Study of Journalism. University of Oxford, Digital News Re-
port. Disponível em: http://www.digitalnewsreport.org/survey/2019/groups-and-
private-networks-time-well-spent/. Acesso em: 10 abr. 2020.
15 DUPUY, Jean-Pierre. Some pitfalls in the philosophical foundations of nanoethics.
The Journal of Medicine and Philosophy: a Forum for Bioethics and Philosophy of
Medicine, Oxford, v. 32, n. 3, p. 237-261, 2007, passim.
16 IHDE, Don. Bodies in technology. Electronic mediations. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 2002, v. 5, p. 104. Explica: “The antinomy can be stated simply: if
philosophers are to take any normative role concerning new technologies, they will
find, from within the structure of technologies as such and compound historically by
unexpected uses and unintended consequences, that technologies virtually always ex-
ceed or veer away from intended design. How, then, can any normative or prognostic
role be possible? (...) Of course, the objections in turn imply the continuance of a status
76
Fake news e desinformação
sa mistura, dificultando o julgamento, a valoração moral dos fatos e cau-
sando uma flexibilização da própria ética no seu contraste com a ciência.
A existência de uma realidade abrangida por infinitas informações –
verdadeiras e falsas – criadas e espalhadas em milésimos de segundos refle-
te exatamente a ideia supra, trazida por Dupuy. Essa mistura entre a natu-
reza e a artificialidade nos remete a uma dificuldade de valoração moral
dos fatos, de julgamento, e flexibiliza a aplicação da ética social. Pode-se
concluir, portanto, que as fake news são resultado dessa mistura e a falta de
ética é o preço a ser pago pela humanidade.
Leonardo Kussler, ao tratar da ética como um possível “tributo” pago
pelo progresso tecnológico, explica as inúmeras vantagens do desenvolvi-
mento científico à vida humana, que desencadeiam, diariamente, o au-
mento da qualidade de vida, das condições de trabalho e os avanços cientí-
ficos. Entretanto, nos indica que há um preço por esses avanços, tratando a
ética como um dos tributos.17 A Internet aparece nesse contexto como
agente propagador do progresso. Tem-se, ao alcance das mãos, acesso
(aparentemente) quase universal à informação, que gera a percepção de
que ‘memorizar’, ‘assimilar’ e até mesmo ‘compreender’ não são mais
atividades necessárias ao desenvolvimento do intelecto humano.
A isso se dá o nome de cognitive offloading, fenômeno que se refere à
quo among the technocrats, who remain free to develop anything whatsoever and free
from reflective considerations.”
17 KUSSLER, Leonardo Marques. Técnica, tecnologia e tecnociência: da filosofia antiga
à filosofia contemporânea. Kínesis, Santa Maria, v. VII, n. 15, p. 187-202, dez. 2015,
p. 195. Explica: “Certamente, é inegável que o processo de desenvolvimento científi-
co trouxe inúmeras vantagens à vida humana, em termos de informações sobre apara-
tos médicos, qualidade de vida, condições de trabalho. A questão é: será que tais in-
formações, que altera[ra]m drasticamente nossa realidade, nossa natureza, realmente
trouxeram mudanças perceptivas ao nível ontológico, de modo que nos tornamos
mais aptos a viver? O ponto é que, ao que tudo indica, o advento tecnológico traz,
consigo, um novo modo de pensar, um novo modo de sentir, um novo modo de se
relacionar, para o qual, talvez, podemos não estar preparados.”
77
José Faleiros Júnior · Letícia Preti Faccio
nossa dependência do ambiente externo, a fim de reduzir a demanda cog-
nitiva. Por exemplo, as pessoas escrevem notas em papel ou smartphones
para não esquecer as listas de compras ou compromissos futuros.18 Como
consequência disso, tem-se uma humanidade cada vez mais displicente
com a checagem de conteúdos. A Internet parece oferecer amplo acesso
informacional a ponto de não parecer necessária a formação de sólida base
de valores e estruturas neurais baseadas na leitura, na escrita e na formula-
ção do discernimento.
Matthew D’Ancona argumenta acerca de alguns prognósticos positivos
desses avanços, mas sinaliza a necessidade de ponderação e traça um con-
traponto:
A sobrecarga de informação significa que todos nós devemos nos tornar
editores: filtrar, checar e avaliar o que lemos. Da mesma forma que crian-
ças são ensinadas a como entender textos impressos, suas faculdades críti-
cas devem ser treinadas para enfrentar os desafios muito diferentes de um
feed digital. Que selo de qualidade, caso exista, recomenda um post ou site
específico como fonte confiável? As recomendações sugeridas são apoia-
das por links, notas de rodapé ou dados convincentes? A tendência de al-
guns professores de tratarem a Internet como fonte de segunda categoria
não percebe o sentido exato da questão. Para a geração agora na escola, e
aquelas que vão chegar, é a única fonte significativa.19
Dessa forma, é possível entender que o despedaço da ética, analisado a
princípio pelo cosmo da tecnologia, pode trazer consequências completa-
mente prejudiciais à humanidade a ponto de termos a saudade que Harari
comenta: da impotência diante das epidemias naturais e a inexistência das
20 HARARI, Yuval Noah. Homo deus: uma breve história do amanhã. Tradução de
Paulo Geiger. São Paulo: Cia. das Letras, 2016, p. 19.
21 KUSSLER, Leonardo Marques. Técnica, tecnologia e tecnociência: da filosofia antiga
à filosofia contemporânea. Kínesis, Santa Maria, v. VII, n. 15, p. 187-202, dez. 2015,
p. 200-201.
22 GROSS, Clarissa Piterman. Fake news e democracia: discutindo o status normativo
do falso e a liberdade de expressão. In: RAIS, Diogo (Coord.). Fake news: a conexão
entre a desinformação e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 170. E a
autora complementa: “Não precisamos ser cientistas políticos, jornalistas ou econo-
mistas para participar do debate público. A maior parte de nós expressa posiciona-
mentos políticos com base em interpretações que fazemos de determinados cenários,
ainda que não tenhamos bom domínio dos fatos pertinentes. É por essa razão que pa-
rece violador da liberdade política a proibição e punição da expressão de cidadãos
comuns acerca de assuntos e personalidades públicas. Por exemplo, as redes sociais
são hoje repletas de manifestações veementes de milhões de pessoas acerca dos mais
diversos acontecimentos e pessoas públicas. Não parece plausível que políticos como
Dilma Rousseff ou Aécio Neves, por exemplo, possam se engajar em uma verdadeira
caça virtual para identificar e punir todos aqueles que fazem a eles críticas cáusticas e
ofensivas, atribuindo a eles inclusive práticas ilícitas, tais como corrupção, na inter-
net. E isso porque o debate público inclui a possibilidade de livre manifestação acerca
de políticos no que diz respeito aos assuntos da política.”
23
JONAS, Hans. Le principe responsabilité: une éthique pour la civilisation technolo-
gique. Tradução do alemão para o francês de Jean Greisch. 2. ed. Paris: Cerf, 1992, p.
7-16.
79
José Faleiros Júnior · Letícia Preti Faccio
ção, Hefesto acorrentando Prometeu, em tela de Dirck van Baburen
(1623), é, objetivamente, a imagem antagônica à teoria de Jonas, que nos
traz no prefácio do livro a ideia de “Le Prométhée définitivement déchaîné”
ou seja, “Prometeu definitivamente desacorrentado”. A tela é extrema-
mente emblemática e a narrativa mitológica que a inspira revelam um
aspecto crucial para que se tenha a almejada ética.
A imagem que o filósofo pretende criar na mente de seus leitores é do
excesso de poder dado pela ciência à tecnologia, e de um impulso infatigá-
vel à economia, além da total liberdade dos seres humanos de lidar com
esses mecanismos, ou seja, Prometeu definitivamente desacorrentado com
o Fogo e, talvez, palha em suas mãos. Nos dizeres de Jonas, “l'homme est
devenu une menace non seulement pour lui-même mais pour la biosphère
toute entière.” ou seja, o homem está se tornando uma ameaça não somen-
te a ele mesmo, mas também para toda a biosfera.24
Dessa forma, munido de poder e impulso, o cenário moderno e total-
mente tecnológico leva à busca pelo clamor de uma ética regulamentadora
que freie e impeça os homens de se tornarem uma desgraça a eles mesmos.
Jonas explica que a promessa da tecnologia moderna, do status quo ante,
torna-se uma ameaça no status quo atual. Destarte, Prometeu desacorren-
tado evidencia o perigo de uma tecnologia moderna, poderosa e desmedi-
da que pode desencadear intervencionismo dominador e transfigurador,
ameaçando a natureza.
A palavra ética, que vem do grego ethos (ἔθος), significando ‘modo de
ser’, ‘costume’ ou ‘hábito’ e, assim, é evidentemente transmutada. Os cos-
tumes e hábitos se alteram constantemente, obrigando o surgimento de
uma nova disciplina do comportamento humano, do modo de ser ideal.
Prometeu acorrentado nos traz uma realidade abrangida pelo ethos e, ao
5. Considerações finais
Nessas breves reflexões, com abordou-se, no primeiro momento, o sig-
nificado da expressão fake news e seu contexto na sociedade da informa-
ção, com precedentes mundiais, como o caso de Facebook e Cambridge
Analytica, além de outros, e, no segundo momento, argumentou-se, em
breves linhas, quanto à origem do problema ético que a tecnociência en-
frenta, em especial no contraponto trazido pela imperiosa educação digi-
84
Fake news e desinformação
tanto prejudicam o senso de realidade, e que desestabilizam e desacredi-
tam a humanidade – deve-se trilhar um percurso ético que somente pode-
rá ser balizado pelo reencontro com valores essenciais à condição humana,
como o ceticismo, a curiosidade e a visão crítica.
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DO EXCEDENTE COGNITIVO À
COGNIÇÃO EXCEDIDA: AGÊNCIA
E RESPONSABILIDADE LEGAL NA
ERA DAS FAKE NEWS
3
Átila Pereira Lima
Marcos Henrique Godoi
1. Introdução
O surgimento da internet trouxe grandes esperanças quanto a difusão
da informação e aos benefícios que a acompanhariam. Porém, se a internet
trouxe, sem dúvidas, grandes vantagens, os malefícios que a seguiram fo-
ram subestimados. Com a difusão dos smartphones, a informação que
antes estava confinada aos usuários de personal computers (PCs) passou a
estar ao alcance de pessoas que até então não se interessavam pela infor-
mática. Com isso, o problema da difusão de fake news pela internet passou
a ter uma escala sem precedentes. Os resultados podem ser observados no
noticiário: ascensão de movimentos fascistas, do negacionismo climáticos
e até mesmo de defensores de que o planeta seja plano.
Neste artigo, propõe-se a discussão destas questões apoiada pelos
89
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
conceitos de excedente cognitivo1 e de viés cognitivo2. O problema anali-
sado aqui se relaciona ao fato de que, frente uma enxurrada de informação,
se torna cada vez mais difícil para a pessoa média discernir o que é verdade
do que é falso, o que é agravado pelo fato de que muitas dessas informa-
ções falsas são promovidas propositalmente para atender os interesses
escusos de alguns grupos organizados. Sem conseguir filtrar adequada-
mente a informação que recebem, muitas vezes as pessoas acabam adotan-
do crenças bizarras e, ao agir baseada nelas, acabam causando um mal para
a sociedade. Porém, se essas pessoas foram induzidas a agir dessa forma
pelos disseminadores de fake news, qual é a capacidade de agência destas
pessoas, e, por consequência, sua responsabilidade frente a estes impactos
deletérios?
Para lidar com esta questão, este artigo será composto de cinco seções,
contando com esta introdução. A segunda seção trata dos primórdios da
internet e das grandes esperanças relacionadas a ela, cristalizados pelo
conceito de excedente cognitivo. A terceira seção analisa a situação da
internet na última década, caracterizada pelo excesso de informação e di-
fusão de fake news, sob a ótica das ciências cognitivas. A quarta seção lida
com a questão da agência e da responsabilidade legal dos usuários da in-
ternet que, sujeitos às suas limitações cognitivas, acabam agindo de forma
prejudicial a sociedade. Por fim, a quinta seção traz as considerações finais.
3 CURRAN, James. The internet of dreams: Reinterpreting the internet. In: CURRAN,
James; FENTON, Natalie; FREEDMAN, Des. Misunderstanding the internet.
Abingdon: Routledge, 2012.
4 Esse festival chegou a reunir mais pessoas que Woodstock.
91
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
sivos5.
Mesmo com o fim dessa era “heróica” da internet, muitos entusiastas
continuaram defendendo o potencial da internet em relação a descentrali-
zação e democratização promovidas por esta. Castells6 defende que, apesar
da comercialização e da desigualdade na difusão da internet, o conteúdo
disponível na rede ainda era em sua maioria espontâneo, desorganizado e
diversificado. De acordo com ele, era do interesse tanto das empresas
quanto dos governos que o uso da internet fosse o mais diversificado pos-
sível, pois isso maximizaria o valor agregado desta. A comercialização do
ciberespaço se pareceria mais com o comércio de rua do que shoppings
centers assépticos. A internet preservaria a informalidade e o auto-
direcionamento da comunicação, característico da primeira fase, mesmo
com a entrada de tantos novos usuários sem grandes conhecimentos técni-
cos, onde cada um cada um teria sua própria voz e esperaria uma resposta
individualizada.
Em outra obra, Castells7 afirma que movimentos sociais gestados na in-
ternet são altamente reflexivos. Com isso, ele quer dizer que eles se questi-
onam constantemente sobre quem eles são, o que querem conquistar e em
que tipo de sociedade querem viver. Eles refletem uma cultura de autono-
mia que busca transformar as pessoas em sujeitos de suas próprias vidas.
Autonomia, para o autor, se refere a capacidade do ator social de se tornar
sujeito ao definir suas ações em torno de projetos construídos independen-
temente das instituições, de acordo com seus valores e interesses. A inter-
net forneceria uma plataforma de comunicação organizada que traduz
uma cultura de liberdade na prática da autonomia, pois a tecnologia que a
5 CURRAN, James. Rethinking Internet History In: CURRAN, James; FENTON, Na-
talie; FREEDMAN, Des. Misunderstanding the internet. Abingdon: Routledge, 2012.
6 CASTELLS, Manuel. The Information Age: Economy, Society and Culture. Volume 1:
The Rise of the Network Society. Segunda edição. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010.
7 CASTELLS, Manuel. Networks of Outrage and Hope: Social Movements in the Inter-
net Age. Segunda edição. Cambridge: Polity Press, 2015.
92
Do excedente cognitivo à cognição excedida
produz incorporaria essa cultura.
Essa visão da internet como algo intrinsecamente benéfico, cuja própria
tecnologia já incorpora valores libertários, era comum até o início da se-
gunda década do século XXI. Baseando-se nela, Shirky8 introduz o concei-
to de excedente cognitivo. Este conceito reflete o tempo livre agregado de
todas as pessoas em uma sociedade. A industrialização e os avanços tecno-
lógicos dos últimos séculos permitiram um aumento substancial do tempo
livre agregado. A Wikipédia é o exemplo que o autor utiliza para mensurar
este agregado. Ele estima que o tempo necessário para produzir a Wikipe-
dia (da forma como ela se encontrava no momento da escrita do livro)
seria de cerca de 100 milhões de horas. No entanto, ele afirma que os ame-
ricanos assistem cerca de 200 bilhões de horas de televisão por ano. Por-
tanto, a Wikipédia seria um investimento pequeno de tempo comparado
com outros usos deste tempo livre. A partir da introdução da internet,
tornou-se possível usar este tempo livre para produzir e divulgar coisas
que tem utilidade para os outros, em oposição à atividade passiva de assis-
tir televisão.
Shirky9 apresenta outros exemplos de aplicação socialmente benéfica
do excedente cognitivo. Um deles é o Ushahidi, um serviço introduzido no
Quênia para identificar e denunciar violência étnica. O serviço foi criado
por uma ativista local para agregar denúncias enviadas pela internet e por
mensagens de texto e dispô-las em um mapa em tempo real, fazendo com
que informações qe se encontravam dispersas pudessem ser facilmente
obtidas pelos interessados. Por meio da internet, com um pequeno gasto
de tempo de cada colaborador, é possível criar serviços de grande utilidade
para a sociedade.
12 RIFKIN, Jeremy. The Zero Marginal Cost Society: The Internet of Things, the Collab-
orative Commons, and the eclipse of Capitalism. Nova York: Palgrave Macmillan,
2014.
95
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
so de representação do ambiente no qual o organismo está inserido, usa os
dois tipos de processos cognitivos. Porém, o grau de atenção que se presta
varia de acordo com a atividade que está sendo realizada e com o que está
acontecendo no ambiente. Quando o ambiente fornece inputs sensoriais
tais que o cérebro não julga suficientes para alocar muita atenção, pode-se
falar em conforto cognitivo (cognitive ease). Se o ambiente se mostra ame-
açador, ou simplesmente desconhecido, o cérebro aloca uma maior aten-
ção, o que se pode chamar de tensão cognitiva (cognitive strain)13. Proces-
sos cognitivos de tipo 2 consomem mais energia, sendo limitados pela
disponibilidade de glucose no cérebro14.
Como a quantidade de energia disponível no cérebro é limitada por
questões metabólicas, a atenção disponível é escassa e precisa ser distribuí-
da entre diferentes atividades. Com isso, apenas algumas informações se-
rão cuidadosamente avaliadas, enquanto a maioria das informações rece-
bidas serão internalizadas sem maiores considerações por processos cogni-
tivos de tipo 1. Como estes processos visam a economia de energia no cé-
rebro, eles dão origem aos vieses cognitivos, que produzem respostas rápi-
das, porém irrefletidas. Frente a um número muito grande de fontes de
informação disponíveis, é impossível para uma pessoa que não esteja fami-
liarizada com os assuntos tratados discernir quais fontes são fidedignas e
quais estão divulgando falsidades. Como os agentes estão sujeitos a vieses
em função da grande quantidade de informações a ser considerada vis-a-
vis, o pequeno tempo que possuem para considerar essas informações faz
com que, de forma contraintuitiva, mais opções não sejam sempre melhor
31 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 12. ed. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 22.
102
Do excedente cognitivo à cognição excedida
ta a responsabilidade onde houver a violação de um dever jurídico e desta
violação resultar um dano.
A responsabilidade em nosso ordenamento jurídico divide-se em obje-
tiva e subjetiva, a primeira tem como requisitos a conduta, o dano e o nexo
causal, sendo esta a exceção, enquanto a segunda, a regra do ordenamento,
possui como requisito o dano e o nexo causal; a conduta e a culpa.
Quanto ao dano, não são necessárias muitas explanações, uma vez que
se considera dano a ofensa a direito individual ou coletivo. No caso da fake
news, os danos podem gerar prejuízos aos direitos pessoais dos indivíduos,
assim como podem atingir a democracia, a ordem social ou econômica,
dentre outros. Assim, a comprovação do dano causado por fake news se faz
necessária para que o agente seja responsabilizado, bem como o nexo cau-
sal entre o dano e a ação ou omissão do agente que causou ou ensejou a
efetivação deste, visto que o dano é elemento essencial e indispensável à
responsabilização do agente32.
Tratando-se de fake news que objetivam danos a democracia, econo-
mia, instituições sociais, saúde pública, dentre outros, a sua comprovação,
ante a subjetividade deste dano é frágil, contudo, jamais inexistente. Já o
nexo causal se apresenta como o condão que liga a conduta do agente ao
dano, ou seja, a relação causa-efeito entre a ação do ofensor e o dano sofri-
do pela vítima33. O nexo causal aliado ao dano são os requisitos basilares
da responsabilização, uma vez que, caso reste inexistente a ligação entre a
ação ou omissão humana e o dano sofrido pela vítima, não há a possibili-
dade de responsabilização legal.
A conduta do agente, portanto, se apresenta como a possibilidade de
107
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
ciência da conduta e do resultado. Posteriormente o agente manifesta sua
consciência sobre o nexo de causalidade, ou seja, entre o ato a ser pratica-
do e o resultado que dele decorrerá, e por fim, o indivíduo, ou os indiví-
duos exteriorizam sua vontade de realizar a conduta e produzir o resulta-
do. No que diz respeito a vontade, ela pode ser considerada como um fato,
um estado mental, algo que se encontra dentro da psique de alguém. Em
sentido normativo, a vontade não é um fato, mas uma forma de interpretar
determinado comportamento. Para o dolo, basta que o resultado produzi-
do esteja em conformidade com a vontade esboçada pelo agente.
A partir disso, vislumbra-se que, em grande parte, os agentes não pos-
suem vontade de disseminar fake news, mas numa perspectiva normativa-
atributiva, o seu comportamento (ato de compartilhar) é o que poderia ser
atribuído a ele37. Assim, antes de se criminalizar determinada conduta, não
devem existir dúvidas acerca da intencionalidade de divulgar um conteúdo
falso, pois, muitos agentes acreditam se tratar de um material verdadeiro.
A intenção permite distinguir entre a ação e a reação na difusão de fake
news.
No caso da culpa, sua caracterização importa maior dificuldade, visto
que tem por essência o descumprimento de um dever de cuidado38. Tra-
duz-se numa situação em que o agente podia conhecer e observar. Em
relação às fake news, a culpa é muito clara, quando o agente, dentro da sua
capacidade cognitiva limitada, ao se deparar com uma notícia que possui
todas as características de uma notícia/reportagem/artigo verdadeira o
compartilha com seus contatos sem realizar as diligências necessárias, ou
seja, sem resguardar o dever de cuidado ou ao praticar erro de conduta. A
culpa não é a vontade de praticar determinado ato ilícito, isso é o dolo, a
39 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 12. ed. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 55.
109
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
caso ainda seja vislumbrada a necessidade de aplicação de penas, que estas
sejam proporcionais ao fato jurídico ocorrido, a culpa ou dolo do agente e
sua capacidade cognitiva para a realização desta conduta.
5. Considerações finais
Embora a internet tenha surgido em meio a ideais liberais e gran-
des expectativas, o que tempo revelou que a existência de um grupo com
tempo e recursos suficientes pode torná-la um ambiente de desinformação
em prejuízo à democracia e a ordem social. Portanto, agentes que contri-
buam para a construção desse ambiente precisam ser responsabilizados.
No entanto, essa responsabilização deve levar em consideração as limita-
ções cognitivas do sujeito.
O presente trabalho não pretende isentar os propagadores de fake news,
mas compreender que suas ações, ainda que positivas, partem dessa limi-
tação cognitiva, de forma que o agente não possui capacidade de resguar-
dar o dever de cuidado e proceder com a conduta adequada. Ao lado do
dever imposto por lei ou regulamento que obrigue o indivíduo a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa, bem como ao realizar as atividades humanas
há também a capacidade cognitiva do indivíduo que determina sua capa-
cidade de ação, em oposição à mera reação. O equacionamento dessa ques-
tão é essencial para a retomada da ordem e harmonia social que se encon-
tram prejudicadas pelas fake news no mundo contemporâneo.
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JÁ VIVEMOS NA SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO?
4
Felipe Cunha Nascimento
1. Introdução
Estamos atravessando como humanidade um período de avanço tecno-
lógico profundo, iniciado em meados da década de 1960, a partir do sur-
gimento e popularização dos microcomputadores. Ainda naquela década,
teóricos como o americano Fritz Machlup e os japoneses Tadao Umesao e
Yujiro Hayashi, atentos ao poder da recém criada tecnologia, já anteviam
que esta seria responsável por mudanças sociais significantes dali então,
marcando a passagem da era industrial, para um novo momento histórico
a "sociedade da informação”.
A previsão ganhou ainda mais força a partir dos anos 1990, com o in-
cremento das Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs, que
permitiram, dentre outros avanços, o advento da internet que hoje já ga-
nha status de meio ambiente, a infosfera, para onde praticamente tudo está
a migrar, numa reprodução virtual das relações sociais do mundo físico.
Atualmente, laptops, smartphones e dispositivos vestíveis (wearables),
como smartwatchs e smartglasses, aliados aos softwares, estão a tornar-se
115
Felipe Cunha Nascimento
gradativamente extensão de nosso arcabouço cognitivo1, transformando-
nos, sem que nos demos conta, em organismos informacionais, ou sim-
plesmente “inforgs”2.
Também em razão desse conjunto de fatores, nossa percepção de espa-
ço, tempo, e a própria noção de realidade está-se a modificar, numa mescla
entre o concreto e o etéreo. Ressalve-se que a capacidade para dar como
válidas situações abstratas é fenômeno imanente ao ser humano, basta
pensar nas pessoas jurídicas, ficções a quem convencionalmente conferi-
mos direitos e deveres como se vivas fossem. Ou, na ancestral noção de
dinheiro, pedaço de metal ou folha de papel cuja relação com o homem
Karl Marx apropriadamente chamou de fetiche3.
Na contemporaneidade, nossa noção de realidade está a ser alterada por
meio dos equipamentos informáticos e da internet, por onde a informação
flui convertida em bits. Em várias situações do cotidiano, convalidamos
fatos eminentemente virtuais, assim como é, por exemplo, uma sentença
judicial, exarada no bojo de um processo judicial eletrônico, cuja força
como título executivo não se questiona. Ou um contrato de compra e ven-
da celebrado via e-commerce, e pago por operação bancária, também onli-
ne, no qual muitas vezes sequer o produto ou serviço adquirido é físico, a
1 Segundo Pasquale, “decisões que costumavam ser baseadas na reflexão humana são
agora feitas automaticamente, por meio dos algoritimos. In: PASQUALE, Frank. The
Black Box Society: the secret algorithms that control money and information. Cam-
bridge: Harvard University Press, 2015, p. 8.
2 FLORIDI, Luciano. Information: a very short introduction. Oxford: Oxford Universi-
ty Press, 2010, p. 13.
3 “Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantas-
magórica de uma relação entre coisas. Para encontrar uma símile, temos que recorrer
à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de
vida própria, figuras autônomas que mantém relações entre si e com os seres huma-
nos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias.
Chamo isto de fetichismo […].” In. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia po-
lítica. 6 vols. Rio de Janeiro: Bertrand, 1994, p. 81.
116
Já vivemos na sociedade da informação?
exemplo da assinatura de uma de plataforma de vídeos ou músicas.
Apesar de evidentes os câmbios, perceptíveis a todos nesse primeiro
quartel de século XXI, ainda é clara a dificuldade em se definir o que seria
a sociedade da informação, e o que permitiria afirmar que determinada
nação, ou sociedade, atingiu tal patamar. Alguns teóricos se aplicam nesse
desiderato, tomando cada um critérios distintos, tais como a quantidade
de equipamentos eletrônicos à nossa disposição, a riqueza gerada pelos
dados informacionais ou a quantidade de trabalhadores que lidam com a
tecnologia, para justificar o exsurgir desse novo momento histórico.
O presente artigo tem por objetivo elencar em rápidas passagens alguns
desses critérios a fim de confirmar (ou não) que a sociedade da informação
já se faz presente entre nós.
2. Origem do termo
Não há unanimidade acerca da expressão mais adequada a definir o
momento histórico sobre o qual deitamos observação. Vários teóricos de
envergadura cunharam expressões próprias em seus estudos sobre as mu-
danças sociais causadas pelo avanço tecnológico, a exemplo os termos
“sociedade pós-industrial” usado por Daniel Bell4, “sociedade pós-
moderna”, de Jean Baudrillard5; e, “sociedade informacional”, de Manuel
Castells6.
Entretanto, o termo “sociedade da informação”, nos parece ser o mais
popular desde que os avanços informáticos passaram a promover altera-
ções estruturais nas sociedades.
2006, p. 13.
23 FLORIDI, Luciano. Information: a very short introduction. Oxford: Oxford Universi-
ty Press, 2010, p. 9.
24 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,
2006, p. 21.
25 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,
2006, p. 16.
122
Já vivemos na sociedade da informação?
viria a definir uma sociedade como sendo informacional, na opinião de
Webster26.
Umbilicalmente ligado ao setor econômico, o mundo do trabalho tam-
bém está a sofrer radical mudança na contemporaneidade. Trabalhadores
nas sociedades da informação não lidarão com coisas, como no modelo
industrial, mas com informação, de alguma forma ou de outra. A mais-
valia no século XXI, dependerá menos do esforço físico, ou de um conhe-
cimento prático, mas sim de ideias, habilidades cognitivas e criatividade.27
Alguns estudiosos lecionam que a sociedade da informação é alcançada
quando há preponderância de trabalho informacional, em detrimento do
trabalho manufatureiro. Por essa ótica, países da Europa ocidental, Japão e
Coréia do Norte, onde mais de 70% da força de trabalho encontra-se alo-
cada em atividades informacionais, principalmente no setor de serviços,
poderiam ser entendidos como sociedades informacionais.28
Tais critérios, sofrem críticas pertinentes por também estarem ampara-
dos em avaliações quantitativas, inexistindo clareza quanto a que tipos de
atividades poderiam ser tidas como informacionais. Nesse passo, Charles
Leadbeater enfatiza que a quantidade de trabalhadores do setor informaci-
onal, por si, não tornaria uma sociedade informacional, visto que seriam
relativamente poucos os profissionais que realmente causariam impacto
nesse novo modelo social, tais como programadores, designers, biotecno-
logistas, engenheiros genéticos, engenheiros da computação, engenheiros
da telecomunicação. Estes sim, exerceriam papel inovador em termos so-
ciais, criando e usando a informação e o conhecimento como ferramentas
33 HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Tradução de
Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das letras, 2016, p. 329.
34 MOELLER, Carolin. Are we prepared for the 4th Industrial Revolution? Data protec-
tion and data security challenges of Industry 4.0 in the EU Context. In: LEENES,
Ronald; VAN BRAKEL, Rosamunde; GUTWIRTH, Serge; DE HERT, Paul (Eds.).
Data protection and privacy: the age of intelligent machines. Oxford: Hart Publish-
ing, 2017, p. 144.
35 “Indústria 4.0 (IND 4.0) é considerada a quarta revolução na história do industria-
lismo. A primeira resultou da combinação do motor a vapor e produção mecânica, a
segunda, resultou da combinação da eletricidade e linhas de montagem, e a terceira
revolução industrial resulta da combinação de tecnologia da informação e globaliza-
ção. A quarta é marcada pela combinação de fatores inteligentes com cada parte da
cadeia de produção. Pode ser descrita como uma série de inovações disruptivas na
produção e saltos no processo industrial resultando em alta produtividade” (MOEL-
LER, Carolin. Are we prepared for the 4th Industrial Revolution? Data protection
and data security challenges of Industry 4.0 in the EU Context. In: LEENES, Ronald;
VAN BRAKEL, Rosamunde; GUTWIRTH, Serge; DE HERT, Paul (Eds.). Data pro-
tection and privacy: the age of intelligent machines. Oxford: Hart Publishing, 2017, p.
146-7, trad. livre).
125
Felipe Cunha Nascimento
A internet das coisas (“IoT”, na sigla em inglês) tem permitido que
máquinas interajam tanto com o ser humano quanto entre si, dispensando
a mão de obra viva ao mesmo tempo em que se atingem altíssimos níveis
de produtividade.
A questão levanta obviamente dilemas éticos, como o descarte da mão
de obra humana, substituído pelo trabalho morto (máquina), que implica
num enorme contingente desempregados ou subempregados desprovidos
do mínimo existencial, a converter-se em um grave problema social36-37 a
ser enfrentado pelos governos no porvir. 38
A conclusão a que se chega, nesse ponto é que a percentagem do PIB de
uma nação, ou a quantidade de atividades econômicas relacionadas aos
meios informacionais apesar de criticados por aqueles que como Frank
Webster entendem tratarem-se de critérios quantitativos servem a eviden-
ciar que os câmbios sociais advindos do uso da tecnologia computacional
já exercem preponderância em muitas nações e se não as enquadram como
sociedades informacionais, as colocam à frente de outras sociedades que
ainda encontram-se sob o estagio de desenvolvimento industrial.
36 LORENTZ, Lutiana Nacur; NEVES, Rubia Carneiro. Terceirização feita pelas organi-
zações empresariais de vigilância e segurança: aspectos trabalhistas, empresariais e a
Súmula 331, V, DO TST. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, Ano
XXI, n. 43, mar. 2012, p. 77.
37 Oberve-se que, o art. 7º, XXVII, da Constituição Federal Brasileira preceitua serem
direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de
sua condição social a proteção em face da automação, na forma da lei; por seu turno,
o art. 170 determina ser a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, con-
forme os ditames da justiça social.
38 “(...) a complexidade da tecnologia permite uma melhor distribuição do conheci-
mento. Sua complexidade e custo, entretanto pode servir a intensificar desigualdades
socialis ou mesmo criar um largo grupo de excluídos, pessoas que não se adequam à
sociedade da informação.” VAN DIJK, Jan. The network society: social aspects of new
media. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 3, trad. livre.
126
Já vivemos na sociedade da informação?
39 BUCKLAND, Michael. Information and society. Cambridge: The MIT Press, 2017, p.
49
40 “As infovias resultam em uma nova ênfase no fluxo da informação (Castels 1996),
algo que leva para a radical revisão do tempo e espaço no que pertine às relações hu-
manas” WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres:
Routledge, 2006, p. 18, trad. livre.
127
Felipe Cunha Nascimento
mesma realidade interacional41-42.
Antes do advento das tecnologias computacionais tínhamos acesso, ou
estávamos submetidos, a uma quantidade significativamente menor de
informação. Por outro lado, tínhamos muito mais tempo para refletir criti-
camente sobre aquilo que nos chegava, o que se tornou mais difícil nos
dias de hoje, com a informação sendo produzida e reproduzida exponenci-
almente.
A digitalização, está a permitir a desmaterialização e o acúmulo dos da-
dos em meios virtuais (bits) numa escala jamais experimentada pela hu-
manidade. Para ilustrar, em 2003, pesquisadores da Berkeley's School of
Information Management and Systems estimaram que a humanidade acu-
mulou aproximadamente 12 exabytes43 44 de dados no curso da sua histó-
ria até a criação dos computadores. Por outro lado, somente no ano de
2012, segundo a mesma pesquisa, o armazenamento de informações em
mídias magnéticas (discos rígidos, CDs, DVDs etc) produziu mais de cin-
41 “Alguém que faz a clara distinção entre amigo virtual e amigo real provavelmente
pertence a um grupo mais velho. Falar e sentir que alguém real é somente um ser de
carne e osso que está na minha frente, e que isso é muito superior a alguém que só
existe no Instagram, é juízo emitido por uma pessoa que nasceu e foi criado sem a
tecnologia. KARNAL, Leandro. O Dilema do Porco-Espinho: como encarar a solidão.
São Paulo: Planeta, 2018, p. 34.
42 Muitas vezes no mundo virtual nossa figura é chamada de “avatar”, palavra de ori-
gem Sânscrita que significa reencarnação; transformação ou transfiguração, numa
alusão a que possuímos vida em uma outra dimensão, a dimensão virtual.
43 A menor unidade de medida para medir-se dados é o bit. Um único bi” pode ter o
valor de 0 ou 1. 1 byte equivale a 8 bits; kilobyte equivale a 1000¹ bytes; 1 megagyte
equivale a 1000² bytes; 1 gigabyte equivale a 1000³ bytes; 1 terabyte equivale a
10004 bytes; 1 petabyte equivale a 10005 bytes; 1 exabyte equivale a 10006 “bytes”.
Disponível em: https://techterms.com/help/data_storage_units_of_measurement.
Acesso em: 11 abr. 2020.
44 “(...) gravado num vídeo de qualidade DVD um “exabyte” de dados, dispenderia 50
mil anos para ser completamente reproduzido”. In: FLORIDI, Luciano. Information:
a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 11, trad. livre.
128
Já vivemos na sociedade da informação?
co exabytes, o equivalente a quase 800 megabytes (MB) de dados por pes-
soa.45 Atualmente, sequer se prescinde de meios físicos de armazenamento
(CDs, pendrives, HDs) graças ao armazenamento em nuvem nos provedo-
res de hospedagem, que permitem o armazenamento de dados em servido-
res de acesso remoto46.
Por consequência, quantidade de informação disponível atualmente
aumentou exponencialmente, a quantidade de músicas, livros, filmes, in-
formações educacionais disponíveis.
Para Jean Baudrillard, tanta informação acaba por gerar uma falta de
significação da própria vida, um “colapso de significados”, nas palavras do
escritor. Nas sociedades moderna, “há mais e mais informação e cada vez
menos significado”47 esse volume absurdo de informação, de certa forma
acaba por desnortear os cidadãos, pois os fatos e dados vêm de tantas dire-
ções e são tão diversos, mutáveis e contraditórios que o seu poder de sim-
bolização se esmaece, gerando uma crise de confiabilidade, de maneira que
a sociedade da informação está plena de informações sem significado.
A cobertura midiática da Guerra do Golfo, na década de 90 ilustra bem
esse contexto. Durante aquele conflito, as emissoras de televisão realiza-
ram a cobertura, de forma fracionada em “capítulos” diários, como um
folhetim, com imagens noturnas dos bombardeios americanos, semelhan-
tes a um videogame, impossibilitando ao receptor da informação refletir
de forma crítica sobre os motivos a guerra em si.48
4. Considerações finais
A maioria dos teóricos discorre sobre a sociedade da informação no
momento presente, interrogando se de fato já existem sociedades que atin-
giram um patamar de diferenciação evolucional baseado na tecnologia
computacional.
Luciano Floridi49, por exemplo, se dá por convencido de que algumas
sociedades já podem ser assim consideradas a exemplo de Canadá, França,
cance planetário (a CNN Cable News Network, CNN), graças a um satélite retrans-
missor estrategicamente colocado em órbita polar estacionária. Também foi a pri-
meira vez que se utilizou, em larga escala, a técnica de transmissão de imagens digita-
lizadas (isto é, criadas por um processo de simulação). E - e outro fato inédito – a
grande personagem da guerra, ao contrário daquilo que, apenas em certa medida,
havia caracterizado a Guerra do Vietnã, nos anos 60, não foi o homem, os horrores,
ódios e esperanças provocados pela destruição, mas a tecnologia, as armas “inteligen-
tes”, as operações “cirúrgicas”. In. ARBEX JÚNIOR, José. Showrnalismo: a notícia
como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2001, p. 31.
49 FLORIDI, Luciano. Information: a very short introduction. Oxford: Oxford Universi-
ty Press, 2010, passim.
130
Já vivemos na sociedade da informação?
Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos50, diante do fato de
a organização social daquelas nações, (economia, política, direito, traba-
lho, universidades, relações interpessoais em geral etc), encontrar-se direta
ou indiretamente amparada no uso intensivo dos meios computacionais
aliados às Tecnologias da Comunicação e Informação.
Outros, a exemplo de Frank Webster adotam postura mais cética e co-
medida, defendendo que os avanços informacionais, apesar de terem sido
assimilados pelas sociedades ditas “mais avançadas”, desde a década de
1960, ainda não resultaram em mudanças estruturais em nível social e
pessoal, mas tão-somente “informatizaram”51 a vida moderna. Referido
autor ainda admoesta que “não podemos confundir a indispensabilidade
do fenômeno”, a popularização dos meios tecnológicos informacionais,
com “a capacidade de definir uma ordem social.” 52
Mesmo para os que se alinham à conclusão de Webster, parece inegá-
vel, que a longo prazo, a sociedade da informação tornar-se-á o modelo
prevalecente, implicando numa inexorável mudança das estruturas sociais
do século passado, que já está em curso nesse primeiro quarto de século
XXI53.
O grande desafio que se impõe, quando se vislumbra esse futuro, dirá
respeito a fazer com que a tecnologia informacional, enquanto criação
humana54, seja algo que de fato sirva a promover o bem geral, irrestrito e
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134
CONCEITOS ESSENCIAIS SOBRE A
SOCIEDADE EM REDE
5
Rodrigo Gugliara
Bianca Camargo Fischer
1. Introdução
Desde o século XX, o uso da Internet e das redes de computadores pro-
grediu exponencialmente. O desenvolvimento de suas ferramentas, por
cientistas e profissionais de tecnologias da informação e telecomunicações,
conferiu automatizações, desintermediações e inovações em diversos seto-
res estruturais da sociedade como: econômicos, culturais, políticos, sociais,
entre outros. Além disso, uma das grandes inovações da utilização das
redes e da Internet foi o aparato de comunicação entre inúmeros indiví-
duos, de diversos locais do mundo e de forma instantânea, alterando a
percepção humana acerca de duas principais dimensões da matéria: o
tempo e o espaço.
Nesse contexto de aproximação de pessoas, em nível global, a rede tor-
nou-se um ambiente inovador e dinâmico. Com o advento da Internet,
nasceu uma nova forma de organização social: a sociedade em rede. Desde
a formação à sua expansão, foram incalculáveis as decorrências no plano
existencial: surgimento de novos comportamentos, relacionamentos, for-
135
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer
mas de mercado, tipos de consumo, dentre outras, que, atualmente, conti-
nuam surgindo e modificando-se, sendo possível fazer recortes destas para
reflexão, críticas e observações.
Nesse contexto, o presente estudo tem por finalidade abordar al-
guns breves conceitos intrinsecamente relacionados à sociedade em rede,
especialmente a partir da análise de obras de autores com diferentes con-
ceitos acerca do assunto como Manuel Castells na obra The Rise of
1 2
Network Society e Jan Van Dijk em The Network Society . Tais autores
foram adotados como base para o presente estudo, uma vez que figuram
como referencial teórico do tema. Van Dijk como pioneiro na percepção
das circunstâncias que ensejaram as modificações sociais na percepção da
chamada sociedade em rede e Castells como responsável por rever os con-
ceitos de Van Dijk, trazendo em seus estudos determinadas críticas e con-
trapontos a visão do seu precursor.
Na obra de Van Dijk o autor trata de inúmeros conceitos sociais que fo-
ram efetivamente modificados através da denominada sociedade em rede,
tais como cultura, economia, direito e outros. Com início em sucintos
apontamentos sobre o histórico do nascimento da internet, o presente
estudo abordará a política e a noção de tempo e espaço como elementos
sociais estruturais atingidos pela sociedade em rede e, em seguida, tratará
sucintamente sobre as substanciais mudanças causadas pela sociedade em
rede na economia, buscando sempre apontar o elo entre tais conceitos e a
realidade vivenciada atualmente por todos nós.
1 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy,
society, and culture. 2. ed. Oxford/West Sussex: Wiley-Blackwell, 2010, v. 1.
2 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006.
136
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
ocorreram no âmbito militar. Tal ferramenta fora útil às estratégias de
conquista de território e telecomunicações na corrida indireta armamen-
tista e espacial entre os Estados Unidos e a extinta União Soviética, duran-
te a Guerra Fria, em meados da década de 1960.
A Internet foi um instrumento de tática de guerra utilizada pela Defesa
Americana, que construiu uma rede de comunicação por meio de compu-
tadores, e cada um deles consistia em um “nó”3. A perda de um dos nós
não afetava o todo4, ou seja, ainda que inimigos bombardeassem um deles,
os outros continuariam em funcionamento, dando continuidade à comu-
nicação entre as bases militares e o departamento de pesquisas do governo
americano. A estratégia dos nós descentralizava a operação e reduzia o
risco inerente. Essa rede era intitulada como Advanced Research Projects
Agency (ARPANET)5, criada no Pentágono, e foi pioneira do que conhe-
permitisse o trabalho cooperativo em grupos, mesmo que fossem integrados por pes-
soas geograficamente distantes, além de permitir o compartilhamento de recursos es-
cassos, como, por exemplo o super-computador ILLIAC IV, em construção na Uni-
versidade de Illinois, com o patrocínio da própria ARPA”.
6 O Network Control Protocol foi o primeiro protocolo servidor a servidor da ARPA-
NET, que permitia a interligação dos centros de pesquisa e militares sem a necessi-
dade de um ponto central definido. Todavia, após a abertura da rede para utilização,
nas universidades, por exemplo, acabou restando inadequado, sendo forçosa a cria-
ção de um protocolo livre de inconsistências.
7 O protocolo TCP/IP é o principal protocolo utilizado hodiernamente para envio e
recebimento de dados na rede mundial de computadores. Após desenvolvido, obser-
vou-se que ele não apenas resolveu as inconsistências do protocolo anterior
(Network Control Protocol), mas permitiu uma expansão sem precedentes de comu-
nicação entre os computadores em rede.
8 A RAND Corporation é uma instituição sem fins lucrativos, atua como uma entidade
que desenvolve pesquisas e análises para o Departamento de Defesa dos Estados
Unidos no modelo “think tank”, que consistem em instituições e/ou grupos formado
por especialistas, que desenvolvem ideias e pesquisas, de natureza investigativa e re-
flexiva, acerca de diversos ramos estruturais da sociedade.
138
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
O segundo “nó”, surgiu no Stanford Research Institute (SRI) pelo D.
Engelbart9, o precursor na criação de compartilhamento de informações
por texto, imagens e sons através do hipertexto, lido no meio digital, em
que havia interligações não apenas de máquinas, mas de pessoas e, sendo
assim, tornando possível a interação entre elas. Após, diversos outros pes-
quisadores e acadêmicos empenharam-se em criar mecanismos de com-
partilhamento de informações através da Internet visando o desenvolvi-
mento do mundo científico na rede.
Em 1983, há uma separação efetiva entre a utilização das redes em nível
militar, que passou de ARPANet para MILNET, e civil. Neste cenário,
surgiram novos servidores e domínios na Internet, ficando conhecido co-
mo “cyberspace”10, expressão criada por Willian Gibson.
Em 198511, surgiu uma das primeiras comunidades virtual de usuários,
a WELL (Whole Earth ‘Lectronic Link)12, criada pela revista Whole Earth
Review13, em que diversos usuários passaram a abordar interesses em co-
muns, como esportes, entretenimento, política, comércio, saúde e etc., em
fóruns e salas de bate-papo, ficando também, um banco de dados com
artigos sobre os temas discutidos à disposição para cada participante, e
conseguia-se visualizar os perfis de cada integrante e seus endereços ele-
trônicos.
26 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy,
society, and culture, p. 119, 2010. “It is informal because the productivity and compet-
itiveness of units or agents in this economy (be it firms, regions, or nations) fundamen-
tally depend upon their capacity to generate, process, and apply efficiently knowledge-
based information”.
27 VAN DIJK, Jan apud FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. The Network Society,
de Jan van Dijk. Revista Faculdade de Direito da UFU, Uberlândia, v. 47, n. 1,
jan./jun. 2019, p. 406-414, p. 408.
28 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy,
society, and culture, p. 566, 2010. Traduzido para o português: “o que é um nó de-
pende do tipo de redes concretas (...). São mercados de bolsas de valores e suas cen-
trais de serviços auxiliares avançados na rede dos fluxos financeiros globais. São con-
selhos nacionais de ministros e comissários europeus da rede política que governa a
União Européia. São campos de coca e papoula, laboratórios clandestinos, pistas de
aterrisagem secretas, gangues de rua e instituições financeiras para lavagem de di-
143
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer
comunicação entre os indivíduos sempre existiram, mas com a tecnologia,
foi possível instrumentalizá-la pelo computador, celular e demais apare-
lhos conectados à Internet e como resultado, despareceram diversas bar-
reiras de comunicação entre diversos locais, aproximando assim diversas
culturas e sociedades, relativizando as barreiras geográficas.
Atualmente, após aproximadamente 30 anos da publicação do primeiro
estudo de Van Dijk, podemos perceber na sociedade diversas circunstân-
cias já apontadas por ele. Uma das mudanças sociais na sociedade em rede
informatizada foi a integração entre diversas comunidades para debates
sobre política, cidadania e participação social, não sendo mais restrito
apenas aos grupos sociais detentores de poder econômico, isto é, cada vez
a informação passa a ser mais democrática. Frise-se que ainda existem
países em desvantagem econômica em uma lenta inclusão de acesso à In-
ternet. Contudo, não raras vezes surgem novas iniciativas cujo principal
objetivo é fomentar o acesso à internet, como ocorre no projeto Starlink29.
Mesmo com a existência de diversos obstáculos, podemos verificar que
diversos grupos têm se organizado para reivindicar direitos sociais, reu-
nindo adeptos através da rede. Um exemplo foi a organização do movi-
mento Zapatista, através da rede, constituído por diversos cidadãos do
México, de raízes indígenas30. Em que pese ter surgido em meados de
1910, no final no final da década de 90, durante a emersão da Internet, o
32 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 13-
14.
146
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
das de atitudes, numa toada de inconstância e incerteza, repleta de falta
dos pontos de referência socialmente estabelecidos.
Bauman cita, em uma de suas afirmativas, como a Internet e as redes
influíram na desconstrução das tradições sociais, ou seja, antes o processo
de aprendizagem baseava-se na imitação passada de pais para filhos, após a
Internet, o acesso à diferentes culturas, informações e referências tornou-
se colossal e a formação de identidade dos indivíduos volátil e indefinida,
não sendo possível presumir as consequências psicossociais deste fato. Em
sua obra Modernidade Líquida, expõe tal linha de pensamento, vejamos:
São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que
podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais po-
díamos nos deixar depois guiar, que estão cada vez mais em falta. (...) Quer
dizer que estamos passando de uma era de 'grupos de referência' prede-
terminados a uma outra de 'comparação universal'33.
Ainda que com posições distintas a partir das obras de cada um
dos autores, não se questiona que a sociedade em rede está em constante
modificação em relação à política, cabendo a cada um analisar as modifi-
cações e concluir pela maior existência de benefícios ou malefícios.
33 Ibidem, p. 229. “Sua natureza “explosiva” combina bem com as identidades da era
moderna líquida: de modo semelhante a tais identidades, as comunidades em ques-
tão tendem a ser voláteis, transitórias e voltadas ao “aspecto único” ou “propósito
único”. Sua duração é curta, embora cheia de som e fúria. Extraem poder não de sua
possível duração mas, paradoxalmente, de sua precariedade e de seu futuro incerto,
da vigilância e investimento emocional que sua frágil existência demanda a gritos”.
147
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer
de informação e telecomunicação, as denominadas TICs34.
A introdução das TICs na estrutura socioeconômica ocasionou diversas
mudanças, uma delas foi a reestruturação empresarial em busca de dimi-
nuição dos gastos com produção e maiores lucratividades, além de utiliza-
ção de ferramentas de informática para o armazenar dados, promoção de
automação de processos, bem como uma nova estruturação de sistemas de
pagamentos e de gestão de recursos humanos, entre outras inúmeras faci-
lidades.
A priori, o referido autor afirma que as utilizações das TICs instaura-
ram uma nova forma de capitalismo: o informacional, diferindo-o do su-
perado capitalismo industrial.35 Antes o foco empresarial era concentrado
especialmente na alta produção industrial. Na era informacional, interes-
sa-se em utilizar meios de produção eficientes, utilizando tecnologias para
aumento dos lucros e diminuição do tempo. Assim, a geração de riqueza
ganhou uma nova definição, fortalecendo o mercado de tecnologia de in-
formações e comunicações.36
Neste contexto, as empresas precisaram de uma reformulação orga-
nizacional-administrativa para acompanhar as mudanças de geração de
riqueza, aperfeiçoando seus negócios com as TICs e incluindo gastos com
37 Produto Interno Bruto: representa a soma dos bens e serviços finais produzidos
numa determinada região, durante um período determinado.
38 VAN DIJK, Jan. Ob. Cit., p. 01.
149
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer
nanceira, pelo impacto que causam na publicidade empresarial, alavan-
cando o consumo de seus produtos e serviços. Por outro lado, com perda
dos postos laborativos da mão-de-obra menos especializada, aumentaram
os índices de trabalho informal e desemprego, culminando em consequên-
cias jurídico-sociais não tão positivas.
Essa nova dinâmica de utilização das TICs não ficou restrita às empre-
sas, os Estados observaram que as tecnologias eram imprescindíveis à ad-
ministração e gestão pública e um dos exemplos do que fizeram foi criar
mecanismos na rede para responder às demandas de serviços públicos de
forma mais eficiente e eficaz, bem como implementação de transparência e
prestação de contas à sociedade e novos espaços de participação no fazer
público, através de softwares de automação voltados a melhorar o fluxo de
informação entre Estado e sociedade civil. Como ocorreu no setor privado,
os países que não se adequaram às novas dinâmicas tecnológicas sofreram
isolamento no comércio internacional.
De forma generalizada, os setores públicos e privados implementa-
ram as TICs em suas gestões, dessa forma, como definido por Castells,
surgiu uma nova Economia Global, por volta de 1990 e, com ela, as mu-
danças alcançaram o mercado. Castells destacou cinco delas39: desregula-
mentação dos mercados financeiros, criação de infraestrutura tecnológi-
cas, novos produtos financeiros (por exemplo, os bitcoins40), integração
dos mercados financeiros e formas e avaliação de mercado.
No cenário de investimentos, as transações eletrônicas diminuíram o
custo das operações em 50%41, enfraquecendo as empresas corretoras in-
39 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy,
society, and culture, p. 144-145, 2010.
40 Primeiras criptomoedas, moedas virtuais ou dinheiro eletrônico, utilizadas como
meio de troca, criada pelo pseudônimo Satoshi Nakamoto. As transações feitas com
elas ficam registradas no "blockchain", uma espécie de banco de dados descentraliza-
do que usa criptografia para controlar transações ponto-a-ponto.
41 CASTELLS, Manuel. Ibidem, p. 196, 2010. Traduzido para o português: “por que é
150
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
termediadoras e atraindo investidores que tinham fáceis e rápidas infor-
mações para seus investimentos online. Assim, com o enfraquecimento
dos intermediadores, as empresas de e-commerce traduziram as mudanças
da Economia Global no que diz respeito à desregulamentação e desinter-
mediação, assim, nomes como Amazon.com, Inc., uma das pioneiras no
ramo neste ramo, tornaram-se alvo de interesse dos investidores.
Pontuamos, no entanto, que a redução da relevância de intermediação
é relativa. Isso, pois na realidade hodierna vemos uma revolução no mer-
cado de intermediação. Ao mesmo tempo que os players da intermediação
clássica efetivamente têm sua participação reduzida no mercado, atual-
mente novas atividades empresariais de intermediação ganham cada vez
mais relevância, como ocorre com plataformas digitais como Uber e Air-
bnb, que realizam a intermediação entre prestadores de serviços e consu-
midores através da internet.
O valor agregado das empresas não se restringem mais apenas na lucra-
tividade, mas na expectativa de aderência ao mercado, na aceitação de seus
serviços e produtos pela sociedade, por isso, os investidores passaram a
buscar por startups42 com ideias inovadoras com alta expectativa de adesão
no mercado e, nessa temática, voltamos a indicar a empresa Uber como
clássico exemplo disso, pois embora seja uma referência na sua área de
atuação, com grande aderência em diversos setores da sociedade, é uma
empresa que apresentou enormes prejuízos em diversos momentos da
história43.
5. Considerações finais
Diante do exposto, é possível perceber a sociedade em rede traz impor-
tantes conceitos no que diz respeito às mudanças sociais, políticas, cultu-
rais e econômicas. Castells ressalta aspectos relevantes sobre os papeis que
os dados, informações e conhecimento desempenham na sociedade em
rede, através da Internet, sendo o elemento principal das inovações mer-
cadológicas, econômicas e financeiras. A nova Economia Global, presente
no capitalismo informacional, impulsionou a concorrência no mercado,
desregulamentou o comércio e diminuiu a presença de intermediadores
nos negócios.
Nesse novo cenário houve notável aumento de produtividade e redução
dos custos de produção empresariais com instrumentos de trabalho avan-
çados, com a inclusão das TICs e maior geração de valor em novas empre-
sas, como startups. Outrossim, importante foi também a análise de Bau-
man, sobre os vínculos gerados na sociedade em rede, formação de perso-
nalidade dos indivíduos mediante um grande acesso a diversas informa-
ções.
Por fim, não menos importante, é imperioso ressaltar que junto ao no-
vo capitalismo informacional, à nova Economia Global e à formação da
sociedade em rede, também surgiram outras desigualdades, como supra-
mencionado, no que diz respeito ao surgimento do mercado informacio-
nal, perda de postos de trabalho, dificuldade de inclusão na Economia nos
países subdesenvolvidos, além das falhas e riscos na transmissão de dados
e informações. A fluidez e imaterialidade dos dados adquiriram grande
valor econômico por seu conteúdo e valor agregado, e ataques cibernéticos
trazem inseguranças às empresas, governos e sociedade. Por isso, atual-
mente discute-se sobre a proteção de dados no âmbito público e privado.
lhões de dólares.
152
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
Os principais conceitos tratados no presente estudo, embora identifica-
dos ainda em 1991 por Jan Van Dijk, são de grande relevância até os dias
de hoje e, por mais surpreendente que pareça, se mostram mais atuais do
que inúmeros estudos produzidos recentemente por diversos outros auto-
res. Mostra-se essencial, portanto, o conhecimento dos conceitos cunha-
dos por tais autores como ferramenta para melhor entendimento da socie-
dade atual.
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__________________________________________________
154
A INFORMAÇÃO E A COMPREENSÃO DO
“EU” NA ERA DIGITAL: UM ENSAIO A
PARTIR DOS ESTUDOS DE LUCIANO
FLORIDI
6
Pietra Daneluzzi Quinelato
Yolanda Corrêa Rosa
1. Introdução
Dificilmente haverá oposição quando dito que a “sociedade da informa-
ção” é uma das maiores interlocuções da modernidade no século XXI, vez
que vivemos em um século em que a quantidade informações trocadas por
segundos cresce de maneira exponencial, com destaque ao rápido desen-
volvimento dos meios de comunicação. Inteligências Artificiais, Tecnolo-
gias da Informação e Comunicação (TICs) transformam a realidade do
mundo físico e virtual através de aceleradas mudanças, impactando dire-
tamente na construção do indivíduo, seja em sua personalidade ou na
forma de perceber o mundo.
Neste trabalho, adotamos o conceito de informação explorado pelo fi-
lósofo italiano Luciano Floridi, tratando-se da abstração feita pelo indiví-
duo a partir de determinado conjunto de dados. Essa informação depende-
155
Pietra Daneluzzi Quinelato · Yolanda Corrêa Rosa
rá da maturidade do sujeito que a abstrai, do seu prévio conhecimento e do
contexto em que se insere. Já os dados serão sempre corretos e verídicos.
Diante disso, várias áreas de ciência se esforçaram para definir o conceito
da informação, mas foi através da Filosofia da Informação que se compre-
endeu que tal elemento depende dos avanços epistemológicos do indiví-
duo que o analisa. Ou seja, a informação estará intrinsicamente ligada com
o meio e dependerá de algumas variáveis que podem alterar a realidade
dos dados que a fundamentaram.
Nossos dados pessoais são valiosos para empresas que, principalmente
por meio de plataformas digitais, traçam as características de seus usuá-
rios. Esse tratamento dos dados resulta em uma informação, que poderá
aproximar-se da realidade ou não. Essa informação poderá divergir da
expectativa do indivíduo titular dos dados que foram coletados, ultrapas-
sando limites do seu consentimento e atingindo direitos fundamentais.
Posto isso, iremos traçar brevemente esclarecimentos sobre a transfor-
mação epistemológica na compreensão do “eu” e do mundo, dando desta-
que ao contexto atual em que os dados pessoais, além de emanarem do
próprio sujeito expressando suas características mais íntimas, são tratados
como informações para categorizar perfis de consumo e preferências indi-
viduais, como é feito por superplataformas. Essa nova dinâmica econômi-
ca pode extrapolar limites estabelecidos por regulações voltadas à proteção
aos dados pessoais, inferindo informações de forma prejudicial aos indiví-
duos sem que estes sequer saibam.
Diante dos impactos na compreensão do eu e do mundo no cenário
atual, em que plataformas como o Facebook possuem bases de dados soci-
ológicos enormes, a busca de explicações do fenômeno na filosofia e ética
se mostram essenciais. Com isso, poderemos lidar melhor com as novas
possibilidades, restrições e desafios trazidos pelo desenvolvimento expo-
nencial das tecnologias digitais, o que deve ser feito em paralelo com o
desenvolvimento de uma ética relacionada ao indivíduo.
156
A informação e a compreensão do “eu” na era digital
11 Ibid., p. 58
12 FLORIDI, Luciano. The informational nature of personal identity. Minds & Ma-
chines, Dordrecht, v. 21, 2011. p. 3.
13 As campanhas eleitorais da eleição presidencial do Brasil em 2018 foram amplamen-
te realizadas em redes sociais sendo que foi eleito o político que teve a campanha
principalmente online.
161
Pietra Daneluzzi Quinelato · Yolanda Corrêa Rosa
identidade pessoal (a questão quem sou para você ”, se torna “quem sou
eu on-line?”), em um ciclo de ajustes e modificações que conduz a um
equilíbrio entre o on e o off-line selves14
Aprofundando-se na observação de Floridi15, o self pode ser um sistema
informacional multiagente (informational multiagent system) de forma
que todas as informações criadas no âmbito virtual são construções de
processos interativos perante o outro, definindo também como nos posici-
onaremos para a sociedade. Com isso, se produz informação a partir dos
significados compartilhados nas relações entre os indivíduos e empresas,
em que houve troca de dados pessoais. Por outro lado, a formação do self a
partir da interação intersubjetiva no mundo online pode representar equi-
vocadamente um indivíduo e suas predileções16.
Com essa exuberância de dados pessoais disponíveis no ambiente vir-
tual, devido às experiências “onlife”, nascem questões ligadas à privacida-
de do indivíduo, como a necessidade de consentimento para o tratamento
de seus dados e a formação, por empresas, de perfis de consumo, financei-
ros ou de predileções pessoais equivocados, prejudicando o titular dos
dados pessoais.
14 FLORIDI, Luciano. The informational nature of personal identity. Minds & Ma-
chines, Dordrecht, v. 21, 2011, p. 3-4.
15 Ibid., p. 3.
16 Ibid., 3-4.
162
A informação e a compreensão do “eu” na era digital
Há pouco mais de trinta anos, a Internet não passava de um projeto, o
termo “globalização” não havia sido cunhado e a transmissão de dados
por fibra óptica não existia. Informação era um item caro, pouco acessível
e centralizado. (...) Com as mudanças ocorridas desde então, ingressamos
na era do tempo real, do deslocamento virtual dos negócios, da quebra de
paradigma. Essa nova era traz transformações em vários segmentos da so-
ciedade – não apenas transformações tecnológicas, mas mudanças de con-
ceitos, métodos de trabalho e estruturas. 17
Na chamada Sociedade da Informação, os dados pessoais extrapolaram
os indivíduos e passaram a compor modelos de negócios como peças fun-
damentais. As empresas não apenas acessam, como também coletam in-
formações, armazenam, categorizam e possuem bases de dados voltadas a
diversas finalidades, que podem representar ativos valiosos. Doneda18 ex-
plica que a informação pessoal extrapola o próprio indivíduo:
As tecnologias da informação contribuíram para que a informação pessoal
se tornasse capaz de extrapolar a própria pessoa. A facilidade da sua coleta,
armazenamento e a sua utilidade para diversos fins tornou-a um bem em
si, ligado à pessoa, mas capaz de ser objetivado e tratado longe e mesmo a
despeito dela – não é por outro motivo que a informação pessoal é o ele-
mento fundamental em uma série de novos negócios típicos da Sociedade
da Informação. 19
Dados pessoais são tratados pelas empresas, transformados em infor-
mações, nas quais ficam fundamentados preferências dos indivíduos, perfis
socioeconômicos, formas de consumo, laços pessoais, entre inúmeras ou-
tras ferramentas que permitem que seja extraído algum valor monetário
no oferecimento de produtos e serviços a esse indivíduo.
Quando o usuário navega na internet, há uma série de cliques que revela
17 PECK PINHEIRO, Patricia. Direito Digital. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
18 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2019, passim.
19 Ibid, p 35.
163
Pietra Daneluzzi Quinelato · Yolanda Corrêa Rosa
uma infinidade de informações sobre as suas predileções, possibilitando
que a abordagem publicitária as utilize para estar preciosamente harmoni-
zada com elas.20
Por meio dos perfis de consumo traçados a partir de informações abs-
traídas dos titulares dos dados, são oferecidos espaços publicitários perso-
nalizados para empresas interessadas em vender seus produtos ou serviços.
O Facebook, como a atual maior empresa com base de dados sociológicos,
é um grande exemplo de plataforma que utiliza essa forma de publicidade
personalizada: a partir de um perfil inferido com informações provenien-
tes dos dados pessoais de determinado sujeito, há o oferecimento de pro-
dutos ou serviços a ele relacionados. Ao consumidor, em troca, os benefí-
cios seriam a otimização do tempo na busca de seus interesses e o acesso
“gratuito” à rede social. Sabemos, no entanto, que esse acesso não é gratui-
to, mas monetizado a partir da coleta e tratamento dos dados pessoais dos
usuários da plataforma, conforme Bioni explica:
Em um primeiro momento, atrai-se o usuário para que ele usufrua do
produto ou serviço para, em um segundo momento, coletar seus dados
pessoais e, então, viabilizar o direcionamento da mensagem publicitária,
que a fonte da rentabilização.21
Nessa perspectiva, afirma-se de forma contundente que o pagamento seja
ele integral ou parcial de muitos produtos e serviços é realizado com os
dados pessoais do próprio consumidor.22
Diante desse funcionamento, os dados pessoais no ambiente virtual ex-
põem indivíduos e interferem na formação de seus selves, pois as informa-
ções inferidas nem sempre correspondem às suas expectativas. Essa dinâ-
mica muitas vezes afeta direitos fundamentais dos titulares desses dados
23 Mais de 130 países possuem leis de proteção aos dados pessoais atualmente.
165
Pietra Daneluzzi Quinelato · Yolanda Corrêa Rosa
nação, responsabilização e prestação de contas, que visam à autodetermi-
nação informacional do indivíduo. Vários são os direitos desses titulares,
que poderão requerer, a título exemplificativo, a exclusão, a portabilidade,
a retificação, a anonimização, a confirmação, o acesso, a oposição ao tra-
tamento de seus dados, bem como a revisão de uma decisão informatizada
feita a partir das suas informações. Neste último caso, as informações dos
titulares dos dados provenientes de uma análise de seus dados disponibili-
zados motivarão uma decisão que poderá ser revista, não deixando o indi-
víduo à mercê da abstração de informações feita pela empresa.
Estudos da Filosofia da Informação, brevemente apresentada com fun-
damento nas teorias de Floridi, auxiliam na conscientização de que há
grande dificuldade de inferir informações condizentes com a realidade e
que estejam de acordo com o que os titulares dos dados pessoais esperam.
Isso porque a utilização de tecnologias facilita cada vez mais essa dinâmica
de tratamento de dados, influenciando na criação de selves que, muitas
vezes, não correspondem aos seus titulares. No cenário atual, o tratamento
dos dados pessoais, em conformidade com as regulações mencionadas,
poderá ajudar na construção do “eu” e do seu self na dinâmica da vida
“onlife” de acordo com as expectativas do sujeito, prezando-se pela auto-
determinação informacional.
5. Considerações finais
Na “Quarta Revolução Industrial”, as Inteligências Artificiais, Tecnolo-
gias da Informação e Comunicação (TICs) transformam o mundo de for-
ma acelerada, impactando na compreensão do “eu” e na sua percepção de
mundo. No mundo online, através dos nossos dados pessoais, deixamos
pegadas virtuais que serão interpretadas por terceiros como informações,
formando um perfil - um self - nesse ambiente. Esse self molda as relações
sociais do sujeito, mas também pode ser utilizado comercialmente. Isso
porque a exploração dos dados pessoais, principalmente no que tange às
166
A informação e a compreensão do “eu” na era digital
superplataformas, se tornou um tema economicamente estratégico.
Com o avanço da tecnologia, conseguimos processar imensas quanti-
dades de dados, tendo como eixo central o indivíduo. O poder dos méto-
dos estatísticos, a massa de dados, o barateamento de tratamento, bem
como o ambiente em que as informações são inferidas, são fatores que
apenas fortalecem um laço indissociável entre dados e inteligência artificial
(TICs) voltados à obtenção de lucros. A partir disso, são inferidas informa-
ções voltadas aos interesses comerciais do agente que as trata para o ofere-
cimento de produtos e serviços que, muitas vezes, não correspondem à
realidade. Além disso, podem extrapolar as finalidades para as quais os
dados pessoais foram coletados e, como consequência, as expectativas de
seus titulares.
A Filosofia da Informação, brevemente mencionada nessa pesquisa, é a
proposta de uma área do saber destinada a investigar uma série de pro-
blemas originados e relacionados com o desenvolvimento do acesso da
informação por parte da sociedade e tecnologias que interferirão na auto-
compreensão do “eu” e do mundo. Entendemos que a questão levantada,
envolvendo ética no tratamento de dados pelas empresas, deve ser explo-
rada diante das perspectivas dessa área, vez que pode influenciar direta-
mente na cognição do sujeito como indivíduo e na perspectiva de mundo
que possui. Não apenas, as informações inferidas poderão tanto prejudicar
quanto beneficiar o indivíduo, sendo de extrema necessidade que haja
respeito ao princípio da autodeterminação informacional. Caso contrário,
seremos vítimas das informações abstraídas de nossos dados pessoais sem
que tenhamos, sequer, conhecimento.
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QUINELATO, Pietra Daneluzzi; ROSA, Yolanda Corrêa. A informação e
a compreensão do “eu” na era digital: um ensaio a partir dos estudos de
Luciano Floridi. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR,
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Guilherme (Orgs.). Fundamentos de direito digital: a ciência jurídica na
sociedade da informação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 155-168.
__________________________________________________
168
O DIREITO À PRIVACIDADE: ORIGEM
HISTÓRICA E JURÍDICA
7
Tales Calaza
1. Introdução
A privacidade tem sido um tema cada dia mais presente no cotidiano
global. Com o avanço das tecnologias e seu uso pela atual sociedade da
informação, o direito à privacidade vem sendo relativizado e, inclusive,
esquecido, ao passo em que as pessoas fornecem seus dados em troca de
futilidades, como benefícios em jogos de celulares e acessos a sites aleató-
rios de entretenimento.
Atualmente, a discussão sobre o fornecimento dos dados pessoais tem
avançado, de modo que as pessoas já começaram a questionar a real neces-
sidade de compartilhamento destes itens de privacidade em contextos
inadequados. Mais especificamente, o Brasil também tem avançado neste
sentido, com o surgimento de normas legais regulatórias e sancionatórias
aplicáveis ao tratamento indevido de dados, como o Marco Civil da Inter-
net (Lei n° 12.965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n°
13.709/2018).
Em que pese essa discussão jurídica sobre a privacidade aparentemente
ter “surgido” na atualidade, sua real origem pode ser observada no ano de
1890, em um texto publicado na Harvard Law Review, por Samuel D.
169
Tales Calaza
Warren e Louis D. Brandeis1, sendo que o presente trabalho utilizar-se-á
do método hipotético-dedutivo, se baseando nesta e outras doutrinas
combinadas com reflexões sobre a origem e a evolução do direito à priva-
cidade. Ao final, procurar-se-á estabelecer os pontos de contato do tema
com a problemática investigada, apresentando-se as considerações finais.
1 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
2 ISAACSON, Walter. Os inovadores: uma biografia da revolução digital. 1ª ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2014. Ordem cronológica apresentada pela brilhante
obra “Os Inovadores”, de Walter Isaacson, autor de “Steve Jobs: A Biografia”. Na-
quela obra, o autor apresenta o que ele denomina de “uma biografia da revolução di-
gital”, ao trazer minuciosos detalhes desde o primeiro ideal de um computador, rela-
tado por Ada Lovelace em 1843, até a complexa revolução digital que presenciamos
na contemporaneidade.
170
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
Herman Hollerith, que ocorreu meio século antes de serem apresentadas
as válvulas termiônicas, que posteriormente seriam substituídas pelos mi-
crochips, o que demonstra que a busca pelo direito à privacidade ocorreu
muito anteriormente em relação às atuais violações proporcionadas pelas
redes sociais, pelos vazamentos de dados das grandes empresas e pelos
diferentes meios de invasões à privacidade que a sociedade vive na con-
temporaneidade.
A obra que deu início a essa discussão foi publicada na Harvard Law
Review, por Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis, nomeada “The Right
to Privacy”3, sendo ela considerada um dos ensaios mais relevantes e influ-
entes da história do direito americano, por ser reconhecida como a primei-
ra publicação a defender o direito à privacidade, sob o pretexto de que este
seria tutelado a partir do que os autores nomeiam de “right to be left alo-
ne”, ou seja, “o direito de ser deixado em paz”.
Tendo em vista que, na época da publicação do texto, ainda não haviam
redes sociais ou tecnologias de compartilhamento de informações massi-
vas, ele foi inspirado nas violações e invasões que as colunas sociais dos
jornais da época provocavam nas vidas íntimas das pessoas.
Com essas considerações, chega-se ao objeto investigado pelo presente
estudo: observar o contexto em que a proteção à privacidade começou a
ser discutido e as transformações que este direito sofreu até a atualidade.
3 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
171
Tales Calaza
telas legais surgirem posteriormente, é inegável que os princípios relacio-
nados à proteção dos direitos individuais da pessoa e de sua intimidade são
tão antigos quanto o próprio surgimento do common law4. Dessa forma,
com o passar do tempo, se mostrou necessário definir novas naturezas e
novos limites para a adequada tutela destes direitos.
No início da aplicação do common law, a lei garantia apenas um remé-
dio jurídico para interferências físicas que envolviam a vida e a proprieda-
de, de modo que somente eram tuteladas ações concretas, palpáveis. O
direito à liberdade era apenas garantido em relação à liberdade física, cor-
pórea, e não à liberdade subjetiva como entende-se hoje, que é garantida a
liberdade de expressão, de pensamento, entre outras. Da mesma forma, a
proteção à propriedade era somente garantida em casos de invasão à pro-
priedade, de modo que propriedades imateriais, como marcas, patentes,
não eram protegidas.
Com o avanço da lei, outros direitos pessoais passaram a ser reconheci-
dos e tutelados, os chamados “direitos de natureza espiritual”5, que envol-
vem os sentimentos e o intelecto. Neste momento, é possível visualizar o
início de uma tutela do que hoje é conhecido por “dano moral” (proteção
jurídica dos sentimentos) e por “direito autoral” (proteção jurídica ao
intelecto).
Na época da publicação do artigo estudado (ano de 1890), os autores
comentam que o direito havia evoluído para um patamar em que grandes
áreas estruturais do direito compreendiam proteções atuais à época, a
exemplo de o direito à vida, que passava a compreender o direito de “cur-
tir a vida”, e não apenas de continuar vivo; o direito à liberdade, que pas-
4 Common Law é o modelo jurídico adotado nos Estados Unidos, que garante uma
maior força jurídica aos precedentes (casos concretos) do que à legislação em si. É di-
ferente do Civil Law, modelo adotado no Brasil, que garante uma maior validade ju-
rídica às leis do que aos precedentes.
5 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
172
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
sava a envolver o exercício dos privilégios da vida civil, como a liberdade
de expressão e de pensamento; e o direito à propriedade, que passava a
tutelar a propriedade intelectual, ao passo em que compreendia itens tan-
gíveis e intangíveis.
Em relação à segurança da pessoa, inicialmente, era apenas garantida a
proteção contra violações estritamente físicas praticadas contra o indiví-
duo, ou seja, a lei tipificava apenas atos que resultavam em efetivas lesões
ao corpo, como homicídio e lesão corporal. Com o avanço do common
law, outras condutas, que não só efetivamente causavam lesões, mas que
poderiam vir a causar danos, passaram a ser tuteladas, como o roubo e o
uso de substâncias letais. Posteriormente, a lei evoluiu de tal forma que
extrapolou os limites físicos da segurança e passou a tutelar a qualidade de
vida, como a tranquilidade da pessoa frente a itens subjetivos como maus
odores, barulhos altos, fumaça e sujeira. E foi nesse momento que surgiu a
chamada “Law of Nuisance” (traduzida como “Lei dos Incômodos”), que
veio com o principal objetivo de tutelar as emoções e sensações humanas
que vão além do físico e do corpóreo.
O desenvolvimento desta lei era inevitável, uma vez que o decorrer do
tempo traz consigo a evolução exponencial de intensas emoções e de de-
senvolvimento intelectual, deixando evidente, para a época, que a lei não
poderia se limitar apenas a tutelar bens jurídicos físicos, uma vez que os
pensamentos, as emoções e as sensações clamavam por seu reconhecimen-
to e sua proteção jurídica, visto que o direito à privacidade, mesmo que
ainda não fosse legalmente reconhecido, já se mostrava ameaçado ao passo
em que, já no ano de publicação do texto, as mídias impressas invadiam a
vida privada e doméstica das pessoas, por intermédio das notícias e dos
paparazzi, o que levou a discussão que fez surgir o direito de ser deixado
em paz (right to be left alone).6
6 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
173
Tales Calaza
Os autores do texto de objeto deste estudo fizeram questão de deixar
claro que não são contra a propagação de notícias pelas mídias impressas,
mas repudiam quando a notícia é baseada em uma “fofoca”, de modo que
se apresenta como uma moeda viciada7 que propaga informações íntimas
da vida das pessoas, em troca de reconhecimento e dinheiro para fomentar
a indústria de invasão à privacidade. Ainda é feita uma comparação com
outros modelos de negócio, visto que a oferta e a demanda estão vincula-
das, de modo que a propagação de cada notícia íntima sobre a vida do
indivíduo gera o desejo de mais informações desse cunho, o que desenca-
deia cada vez mais a publicação de notícias inverídicas, sensacionalistas,
fantasiosas e imorais.
Algo que merece ser criticado é a solução jurídica dada pela lei da época
nas situações acima apresentadas.
No final do século XIX, a common law tratava a propagação de notícias
inverídicas e imorais apenas como um instituto parecido com o que hoje
entende-se por “difamação”, de modo que a lei apenas protegia os danos
externos causados ao indivíduo, uma vez que o ordenamento jurídico se
encontrava mais preocupado com uma tutela material do que com uma
tutela espiritual (como o caso do dano moral)8.
Como a legislação não tutelava os danos imateriais causados pela viola-
ção da privacidade, os autores de “The Right to Privacy” defendiam que,
nestes casos, deveria ser aplicado o princípio do damnum absque injuria9,
7 O termo “moeda viciada” é utilizado pelos autores para evidenciar que a indústria da
mídia utilizava as informações íntimas das pessoas, sem o seu consentimento ou
mesmo sua ciência, por isso o termo “viciada”, para obter lucro às custas de sua vida
privada, de modo que as notícias se transformavam em uma verdadeira fonte de ren-
da, por isso o termo “moeda”.
8 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
9 Damnum absque injuria é o princípio utilizado quando uma pessoa sofre uma lesão
que não é física. Pode ser traduzido como “dano sem lesão”. Ocorre quando há algo
174
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
de modo que as lesões subjetivas causadas ao indivíduo deveriam gerar
consequências ao infrator, uma vez que não deveriam apenas ser tuteladas
as lesões externas causadas ao indivíduo, mas este também deveria ver
compensados os danos que sofreu internamente, como sua própria estima
e seus sentimentos como elementos essenciais atingidos pela ação violado-
ra10. É partindo deste ideal que pode se verificar a evolução para o que se
entende hoje por dano moral.
O real empecilho da época que retardava o surgimento e a consolidação
do direito à privacidade ocorria ao passo em que a maior parte da socieda-
de não via sua violação como algo relevante, que merecia ser juridicamente
tutelado.
Para contornar este entendimento e trazer uma maior relevância jurídi-
ca ao instituto da privacidade, os autores de “The Right to Privacy” propõe
uma analogia para que sua violação fosse entendida como uma violação
direta à honra, e mais, uma violação à propriedade (um dos institutos mais
protegidos à época).
Passa-se a elaborar: o direito à propriedade, conforme já exposto, inici-
almente compreendia somente itens tangíveis (palpáveis).
Com o avanço do direito, passou a compreender também itens intangí-
veis, como marcas e patentes (propriedades intelectuais)11. Para o item
intangível ser considerado uma propriedade, os autores propõem que ele
deveria atender a três requisitos, quais sejam, ser transferível, ter valor e
sua publicação ou reprodução também gerar valor.
Dessa forma, uma vez que as notícias íntimas fossem publicadas sobre
parecido com um “dano aos sentimentos”, que nada mais é do que hoje é conceitua-
do como dano moral, que evoluiu deste conceito.
10 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
11 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
175
Tales Calaza
as pessoas, violando sua privacidade, elas atendiam a estes três requisitos
(eram transferíveis, tinham valor e sua publicação gerava ainda mais va-
lor), o que deveria as levar a serem compreendidas como propriedade, de
modo que mereciam ser juridicamente tuteladas. Surge então o começo do
conceito do que hoje compreende-se como direito de imagem e direito
autoral.
Algo que gerou a indagação dos autores e um dos itens que deu início
ao seu estudo sobre o tema, foi o chamado “caso da carta”12.
Nesse exemplo, inicialmente, trabalha-se com a hipótese de uma carta
redigida por um artista contendo uma composição literária.
É inegável que, à esta carta, será garantida a proteção legal de uma pro-
priedade intelectual. Entretanto, e se esta carta não contiver um produto
intelectual, mas apenas relatar, por exemplo, uma ocorrência doméstica?
Como um pai escrevendo para seu filho relatando algo íntimo sobre a saú-
de de sua mãe? Neste caso, muitos entenderiam que não há nada a ser
protegido, e o conteúdo seria irrelevante, de modo que sua violação não
geraria consequências.
Entretanto, veja que, neste caso, o conteúdo merece idêntica proteção
legal, mas aqui os itens tutelados não seriam composições artísticas ou
obras literárias, mas sim os fatos relatados, uma vez que o vazamento deste
conteúdo não geraria hipóteses de lucros cessantes ou direitos autorais,
mas geraria vantagens indevidas a terceiros, às custas de quem teve sua
intimidade violada, o que causaria o chamado “dano sentimental”.13
As considerações acima realizadas levam à conclusão de que, a proteção
assegurada aos pensamentos, aos sentimentos e às emoções, expressadas
por escrito ou por outros meios, assim como a proteção aos conteúdos
12 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 201.
13 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
176
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
cujos autores visam obstar a publicação, seriam itens englobados e tutela-
dos pela teoria do “Right to be Left Alone”14, ou seja, o direito de ser dei-
xado em paz. Ao passo em que essa teoria passa a ser estudada e aplicada
de forma ampla, começa a se consolidar um inicial direito à personalidade,
que é algo consagrado no ordenamento jurídico brasileiro atual.
Com o avanço dos estudos na área, foi verificado que, em que pese o
brilhantismo dos autores ao propor uma analogia entre o direito à privaci-
dade e o direito à propriedade, este não compreendia aquele15, uma vez
que este já era legalmente delimitado, enquanto aquele não possuía limites
ou extensões para sua tutela, de modo que deveria evoluir e compreender
diversos outros institutos ainda não protegidos, como a aparência pessoal,
a forma de comunicação, os atos e as relações pessoais e domésticas.
O grande desafio, proposto à época, seria encontrar a tênue linha exis-
tente entre o direito à privacidade e a liberdade de expressão, de modo a
aliar os campos do bem social e da informação da sociedade à conveniên-
cia individual e a dignidade de cada pessoa. Nesse sentido, os autores ci-
tam que este instituto já encontrou expressão na legislação francesa, na
conhecida Loi Relative à la Presse (Lei da Imprensa), que tipificava a con-
duta de publicar fatos relativos à vida privada em jornais, o que seria con-
siderado uma contravenção punida pecuniariamente16.
Em conclusão, para chegar ao objetivo almejado, os autores trazem
princípios que deveriam ser observados para garantir que a liberdade de
expressão não entrasse em conflito com o direito à privacidade.
Para alcançar essa finalidade, o direito à privacidade não deveria proi-
14 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 193.
15 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 203.
16 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 214.
177
Tales Calaza
bir qualquer publicação de matéria que consistisse em interesse público,
genérico ou que a lei definisse como comunicação privilegiada. Da mesma
forma, a lei não concederia nenhuma reparação por invasão de privacida-
de realizada por publicação oral, se não fosse demonstrada a ocorrência de
danos no caso concreto.
Além dos princípios acima trazidos, o direito à privacidade sobre um
fato cessaria com a sua publicação pelo próprio indivíduo, ou com o seu
consentimento, assim como a verdade da matéria publicada não afastaria a
caracterização de invasão de privacidade, uma vez que este ramo do direito
não estaria preocupado com a verdade das informações, mas sim com a
intimidade do indivíduo.
Por fim, quanto aos princípios para garantir a harmonia do direito à
privacidade com a liberdade de expressão, deveria ser notório que a ausên-
cia de “malícia” de quem publicou a matéria não afastaria a caracterização
de invasão, uma vez que a incorrência em tal conduta corresponderia a
caracterização da responsabilidade objetiva trazida pelo ordenamento ju-
rídico brasileiro, ou seja, independe da demonstração de culpa por parte
do infrator. 17
Em que pese estes princípios terem sido trazidos em 1890, muitos deles
se mostram extremamente atuais e, apesar de serem desenvolvidos para
aplicação no common law, também são perfeitamente aplicáveis ao civil
law, como é possível observar nas legislações brasileiras recentes que vi-
sam tutelar o que se tem hoje delimitado com direito à privacidade.
17 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
178
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
el D. Warren e Louis D. Brandeis. A partir deste ponto, este conceito evo-
luiu, foi adaptado e adotado em outros países, legislações e ordenamentos
jurídicos.
Ocorre que, ao passo em que a legislação relativa ao direito à privacida-
de evolui de forma gradual, as tecnologias que permitem a invasão e a vio-
lação da intimidade evoluem de maneira exponencial, de modo que a tute-
la deste direito não deve apenas ser realizada em conformidade com a lei
vigente, mas também com os princípios, os costumes e a analogia, de mo-
do que as demais fontes do direito devem ser exploradas para garantir
proteção mais completa possível à este direito constitucional (Artigo 5°,
inciso X da CF)18.
Na atual sociedade da informação19, o conceito de privacidade já não é
o mesmo utilizado em 1890. Com a intensa e volumosa transmissão de
dados e informações, em velocidade cada vez maior, é possível que um
dado percorra todo o planeta em questão de segundos, ultrapassado as
barreiras temporais e territoriais20.
Por este motivo, os estudiosos da área celebram a criação de novas le-
gislações acerca do interesse à proteção de dados (à exemplo do Regula-
mento Europeu de Proteção de Dados e da Lei Geral de Proteção de Da-
dos), mas não se apegam estritamente à lei, de modo que a doutrina criou
um novo campo, denominado direito digital, utilizado para discutir, estu-
dar e desenvolver conceitos e ideais diretamente ligados aos conceitos de
dados e privacidade. Perceba que, a área é nova, mas seu objeto de discus-
são é o produto derivado das legislações e fontes do direito anteriores, em
21 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 35.
22 MEIRA, Matheus Junqueira de Almeida. Acesso à internet como direito fundamen-
tal. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Co-
ord.). Estudos essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p. 291-327, p.
291-327.
180
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
trazia a proteção à intimidade como um direito fundamental, ou seja, já
visava tutelar a privacidade do indivíduo.
Atualmente, o Brasil se encontra na vanguarda do direito digital, uma
vez que, além de possuir uma legislação própria para lidar diretamente
com a proteção dos dados pessoais23, o país também possui diversos pro-
fissionais jurídicos e dos ramos da tecnologia atuando em conjunto para
proporcionar a garantia à privacidade da maneira mais efetiva possível.
Além dos institutos já consagrados no ordenamento jurídico, relativos
à tutela da privacidade, e o grande interesse que os estudiosos da área têm
demonstrado no assunto (a exemplo dos incontáveis eventos de direito
digital que ocorreram entre os anos de 2019 e 2020), o Brasil se coloca à
frente do mundo inteiro ao passo em que apresentou uma PEC para inclu-
ir o acesso à internet como direito fundamental do cidadão24.
Dessa forma, a visão do futuro é otimista em relação à proteção da pri-
vacidade e dos dados pessoais, objetivada inicialmente pelos autores Sa-
muel D. Warren e Louis D. Brandeis, em 1890, de modo que o caminhar
da humanidade se mostra desenvolto a tutelar legalmente e proteger essa
premissa fundamental, acompanhando o desenvolvimento das tecnologias
exponenciais.
Para finalizar o tema, este autor lhes traz uma reflexão25:
A proteção da sociedade deve surgir a partir do reconhecimento dos direi-
tos de cada indivíduo. Cada pessoa é responsável pelas próprias ações e
omissões. Se a pessoa tolera o que ela reprova, é o mesmo que buscar a paz
com uma arma na mão, de modo que será igualmente responsável pelos
23 BRASIL. Planalto. Lei n° 13.709/2018. Lei geral de proteção de dados. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso
em 11 fev. 2020.
24 BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC 185/15. Disponível em:
https://bit.ly/2M4fM9q. Acesso em 11 mar. 2020.
25 Inspirado por WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy.
Harvard Law Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 220, trad. livre.
181
Tales Calaza
resultados. O common law, assim como o civil law, sempre reconheceu a
casa de um homem como seu castelo inexpugnável, então deveriam os tri-
bunais fechar o portão principal frente à autoridade constituída e abrir o
portão dos fundos para satisfazer a curiosidade ociosa?
Ainda há muito o que se discutir sobre a extensão e os limites da priva-
cidade, assim como a proteção e a ética que a envolve, mas se espera que
esta obra possa ser um grande passo inicial na jornada de estudo deste
instituto essencial que a cada dia se torna mais necessário na sociedade da
informação.
5. Considerações finais
Pelo que se apurou neste estudo, não resta dúvidas que o direito à pri-
vacidade encontrou espaço para sua instauração e desenvolvimento no
ordenamento jurídico pátrio.
Foi possível observar o tímido caminhar inicial de um ideal de proteção
aos dados pessoais trazidos pelo artigo inicialmente publicado em 1890,
até a gigantesca revolução global contemporânea neste sentido, com a
publicação e vigência de leis que alteram a estrutura de todos que realizam
o tratamento de dados, desde um simples comerciante local até a maior
companhia multinacional.
A tendência mundial é seguir os exemplos de países que estão na van-
guarda da tutela do direito à intimidade, como o Brasil e os integrantes da
União Europeia, de modo que, em alguns anos, será possível realizar um
tratamento de dados de forma segura em qualquer local do globo, o que
nada mais é do que um dever de adaptação ao surgimento e evolução das
tecnologias exponenciais.
Espera-se que o direito digital continue a evoluir e que traga, por evi-
dente, inovações condizentes com a proteção à segurança de dados indivi-
duais e coletivos, premissa essencial para a construção de uma sociedade
da informação.
182
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
Referências
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mação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 169-183.
__________________________________________________
183
AS REDES SOCIAIS DIGITAIS E O LIVRE
DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE
8
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
1. Introdução
Atualmente, é comum que as pessoas tenham pelo menos uma das de-
zenas de redes sociais digitais disponíveis na internet. As redes sociais digi-
tais podem representar benefícios e malefícios, depende da forma como
são usadas. Por um lado, proporcionam entretenimento, servem como
ferramenta de trabalho, disponibilizam material para educação e ajudam a
fomentar o empreendedorismo. Por outro, podem causar dependência,
afetar seriamente a saúde mental de alguns de seus usuários, interferir no
livre desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, bem como ser
palco de fake news, cibercrimes e ciberbullying.
O livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural diz respei-
to à liberdade no exercício do desenvolvimento das características e atribu-
tos da pessoa humana, que se concretiza por meio da possibilidade do ser
edificar a sua própria história de vida, valendo-se de suas escolhas existen-
ciais sem interferências e imposições externas.
Diante deste cenário, o problema proposto por este estudo é a discussão
sobre os impactos das redes sociais digitais no livre desenvolvimento da
personalidade humana, cujas influências vão para além da manipulação do
comportamento, influenciando, ainda, a título de exemplo, nos elementos
185
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
de definição da própria identidade, na exploração da vulnerabilidade da
psicologia humana, trazendo consequências como a radicalização, bipola-
rização, intransigência e até riscos à democracia.
É importante destacar que não há a pretensão, nesse texto, de se con-
cluir, sem sombra de dúvidas, sobre como é que se dá a influência das re-
des sociais no livre desenvolvimento da personalidade dos seus usuários.
Isso porque, tal conclusão demandaria um estudo aprofundado que con-
gregasse várias áreas do conhecimento como a Filosofia, a Antropologia, a
Sociologia, a Psicologia e a Estatística. Entretanto, em linhas gerais, busca-
se demonstrar que as redes sociais digitais têm um grande potencial para
criar um ambiente nocivo ao livre desenvolvimento da personalidade, de
modo que se faz necessária uma proposição ética e filosófica sobre a tecno-
logia, programas de Compliance, bem como estratégias para proteção e
promoção deste direito tão caro.
3 O termo “redes sociais” será utilizado em diversos momentos nesse texto. Assim, é
importante ressaltar a diferença entre as “redes sociais offline” e as redes sociais digi-
tais (virtuais ou online). Isso porque, os primeiros estudos de redes sociais, se deram
com as “redes sociais offline”, compostas por pessoas, organizações e instituições do
mundo “físico”. E o objeto de estudo deste texto são as redes sociais digitais, presen-
tes no ciberespaço. Além disso, as redes sociais digitais aqui tratadas, serão vistas
como uma entidade. São dezenas as redes sociais disponíveis atualmente, como por
exemplo: Facebook, WhatsApp, Instagram, Youtube, Tinder, Linkedin WeChat,
TikTok. Estas redes não param de nascer e ganhar adeptos. Deste modo, quando for
necessário fazer menção a uma rede social específica, isto será feito.
4 Recuero destaca alguns estudos e estudiosos que durante o século XX buscaram
compreender o fenômeno das redes sociais offline. Entre eles a autora cita Ludwig
Von Bertalanffy (1975), que desenvolveu a chamada “Teoria dos Sistemas”; Was-
serman e Faust (1994); Barabási e Albert (1999); Degenne e Forsé (1999); Scott
(2000); entre outros que se debruçaram sobre a “Análise estrutural das redes sociais”
(RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 18 - 20).
5 LEMIEUX, Vicent; OUIMET, Mathieu. Análise Estrutural das Redes Sociais. Lisboa:
Instituto Piaget, 2004.
6 ACIOLI, Sonia. Redes sociais e teoria social: revendo os fundamentos do conceito.
Informação & Informação, v. 12, n. 1esp, p. 8-19, dez. 2007. Disponível em:
http://srv-009.uel.br/seer/index.php/informacao/article/view/1784. Acesso em: 12
mar. 2020. p. 9
187
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
sociais no ciberespaço7 e permitiu estudar o surgimento de estruturas soci-
ais, suas dinâmicas, a criação do capital social, a cooperação, a competição,
a diferença entre os variados grupos e seu impacto nos indivíduos.8
Mas, afinal, o que são as redes sociais digitais? São redes formadas por
indivíduos que têm algum grau de relacionamento.9 Recuero define as
redes sociais digitais como “agrupamentos complexos instituídos por inte-
rações sociais apoiadas em tecnologias digitais de comunicação”10. Segun-
do Gabardo, as redes sociais também podem representar “relações que não
são obrigatoriamente comunicacionais, como, por exemplo, relações co-
merciais e diplomáticas entre países ou, ainda, relações comerciais entre
empresas”.11
Dois elementos compõem as redes sociais, quais sejam: os atores e as
conexões entre estes atores. Os atores são os indivíduos e os grupos, consi-
derados os nós da rede. As conexões são as interações ou os laços sociais
que existem entre estes nós.12
As redes sociais são marcadas pelas comunidades virtuais, que tem co-
mo base os clusters. Um cluster é um grupo, um aglomerado de nós carac-
terizado pela desterritorialização dos laços sociais13. O agrupamento destas
comunidades pode se dar de acordo com características que os atores
compartilham (suas afinidades) ou então de acordo com a topologia da
40 “Uma das estratégias do Facebook em busca do sucesso, foi permitir que os desen-
volvedores construíssem aplicativos diretamente no portal. Essas apps se populariza-
ram tanto quanto a rede social, englobando desde formulários de pesquisa até jogos e
ferramentas de e-commerce. Para dar suporte a esse tipo de desenvolvimento, o Face-
book disponibilizou um SDK (Software Development Kit) e uma API (Application
Programming Interface), que facilitam muito a interação com os dados da rede social.
Essas ferramentas permitem que programadores de linguagens como Java, PHP e C#
possam acessar as informações da rede social. Existe também uma API chamada
Graph API, que possibilita o acesso a diversas informações do usuário, como dados
de conta, imagem de exibição do usuário e listagem de amigos. (...) Por meio da API é
possível construir programas para acessar os dados de um usuário em praticamente
qualquer linguagem e plataforma”. (GABARDO, op. cit., p. 94)
41 Input, em tradução livre feita pelo autor tem o significado de entrada.
42 Output em tradução livre feita pelo autor tem o significado de saída.
43 ABIDO, op. cit., p. 162-163.
195
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
gera um padrão de comportamento e enviesamento de decisões.44
É um sistema em que os atores sociais informam aos algoritmos como
normalmente agem. Com base nisso, os algoritmos reforçam este padrão
de conduta e as empresas que têm potencial de processar todas essas in-
formações, podem esperar determinado comportamento dos usuários que
é repetido ao longo do tempo. “A partir desse momento, a pessoa corre o
risco de repetir sempre o mesmo padrão de comportamento, influenciada
por algoritmos, sem ter consciência disso”.45
O que se observa deste cenário, portanto, é que influenciados pelos
amigos, pela imposição social, para comunicar com os colegas e familiares
ou com o fim de aproveitar as oportunidades, as pessoas criam perfis nas
redes sociais. Uma vez que estão nestas plataformas, recebem diversos
incentivos para continuar46 e são vigiadas constantemente.
O uso diário das redes faz com os usuários forneçam dados que serão
utilizados para classificá-las, prever, induzir e manipular o seu comporta-
mento. Além disso, correm o risco de cair nas chamadas “bolhas de filtro”
o que faz com que repitam um mesmo padrão de comportamento, influ-
enciado pelos algoritmos. Todo esse conjunto de fatores faz com que o
usuário fique limitado e incapacitado de construir, autonomamente, a sua
personalidade, ou seja, há um desgaste do direito ao livre desenvolvimento
da personalidade.
deveria ser visto como uma promessa renovada e transferida do corpo físico ao corpo
eletrônico, devendo ser rejeitadas todas as formas de reducionismo; (vii) especial
atenção deve ser dada à “minimização” da coleta de dados; (viii) devem ser introdu-
zidos procedimentos de avaliação de impacto sobre a privacidade; (iv) os diversos ti-
pos de retenção de dados devem ser regulados por iniciativas específicas, e a redução
e/ou eliminação do consentimento informado deve ser impedida; (x) o direito fun-
damental à proteção de dados deve ser considerado um componente essencial da fu-
tura Carta de Direitos da Internet (RODOTÁ, op. cit., p. 18-21).
200
As redes sociais digitais e o livre desenvolvimento da personalidade
recomendar e promover conteúdo desinformador e pernicioso; (ii) cons-
truíssem algoritmos que evitassem o aparecimento das “bolhas”; (iii) não
coletassem - ou que coletassem o mínimo necessário (para não ser utópi-
co) - de dados dos usuários; (iv) advertissem os usuários sobre o excesso
de tempo que estes passam nas timelines; (v) desenvolvessem, dentro das
redes sociais, plataformas de checagem de fatos e eliminação de material
falso, as fake news.
Quanto aos usuários, estes deveriam: (i) avaliar como gerenciam seu
tempo nas redes; (ii) proceder à checagem de fatos das notícias que são
compartilhadas; (iii) procurar fontes alternativas de informação, diversas
daquelas sugeridas pelos algoritmos; (iv) buscar familiarizar-se às políticas
de privacidade das redes sociais, bem como aos termos de uso e contesta-
los, se necessário, em âmbito judicial; (v) cogitar se a informação que pre-
tendem compartilhar pode ter algum efeito sobre o bem-estar do outro.
6. Considerações finais
Não se deseja, com tudo o que foi dito até aqui, demonizar ou abolir as
redes sociais, até porque, como já foi destacado na introdução, elas repre-
sentarão benefícios ou malefícios, a depender de como serão usadas. Não
cabe a este autor definir o que é certo e errado, bem como o que é bom ou
mau. Entretanto, não podemos negligenciar as armadilhas presentes nestas
mídias sociais e as consequências que elas podem trazer.
Metade da população global está conectada à internet. Bilhões de seres
humanos utilizam redes sociais todos os dias. Atualmente, é praticamente
impossível não utilizar uma rede social, independentemente da motivação
e do objetivo que o indivíduo tenha. Deste modo, o uso das redes sociais
deve ser encarado com mais seriedade.
As redes sociais e seus algoritmos têm um potencial tremendo de cole-
tar dados, traçar perfis, predizer preferências e direcionar postagens (pu-
blicitárias ou não) capazes de influenciar no aspecto subjetivo do livre
201
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
desenvolvimento da personalidade, ou seja, impossibilitar a livre constru-
ção da personalidade, cerceando qualquer tipo de autodeterminação pró-
pria do seu desenvolvimento.
Além disso, a arquitetura e o design das redes e a forma como são cons-
truídos (e como funcionam) os algoritmos, transformam este ambiente
virtual e as relações sociais que se desenvolvem nestas mídias digitais, em
flagrante violação à esfera objetiva do direito geral de personalidade, posto
que não proporcionam um local adequado para a autoconstrução da pes-
soa humana.
Quando falamos de privacidade, proteção de dados, liberdade e livre
desenvolvimento da personalidade, estamos falando de direitos humanos,
direitos fundamentais, direitos da personalidade, estamos falando, ao cabo,
da dignidade da pessoa humana. E, para além disso, estamos falando de
poder, poder que poucas empresas das Tecnologias da Informação e Co-
municação (TIC) detém sobre os milhões de usuários de suas plataformas.
Afinal, estamos passando pela Quarta Revolução Industrial, estamos na
Sociedade da Informação, presenciando a “web 3.0” e estamos indo rumo
à “web 4.0” contextualizada pela Era da Internet das Coisas. Dados, infor-
mações e conhecimento são um dos maiores ativos da contemporaneida-
de. Ter conhecimento e possibilidade de manipulação, significa ter um
poder incomensurável, que é capaz de influenciar eleições, induzir os ru-
mos da economia e da política e interferir direta ou indiretamente nos
caminhos que tomará a sociedade e cada um dos seus indivíduos, o que
nos leva à inevitabilidade do Compliance, do debate da Ética e da respon-
sabilidade.
Daí a necessidade de que sejam traçadas estratégias de proteção de da-
dos, de que sejam debatidos controles institucionais, de que hajam freios
para limitar certos usos das redes, de que a Governança da Internet seja
efetiva, de que sejam pensadas novas regulamentações direcionadas para
as redes sociais digitais, bem como que hajam proposições éticas e filosófi-
202
As redes sociais digitais e o livre desenvolvimento da personalidade
cas sobre a tecnologia e seus impactos na sociedade e nos indivíduos.
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Oliveira Aguiar; REIS, Guilherme (Orgs.). Fundamentos de direito digi-
tal: a ciência jurídica na sociedade da informação. Uberlândia: LAECC,
2020, pp. 185-205.
__________________________________________________
205
COMPLIANCE DIGITAL: NOVAS
PERSPECTIVAS SOBRE ÉTICA NA
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
9
Aline Ferreira Costa Carneiro
Lucimeire Zago de Brito
Viviane Ramone Tavares
1. Introdução
Está claro perceber que nossa sociedade, inclusive sob a análise global,
passa por mudanças admiráveis nos aspectos de inovação, tecnologia, rela-
ções interpessoais, exigindo, por isso, uma consciência ética cada vez mais
presente.
A prática de atos de corrupção acontece desde os tempos primórdios,
porém, atualmente vivemos situações que enfrentam o uso de informações
antes sigilosas e que agora passam a ser imprescindíveis, principalmente
porque é feito o uso de inteligência artificial em praticamente quase todos
os segmentos da sociedade.
Dessa maneira, o objetivo deste estudo é demonstrar de forma breve a
necessidade de comportamentos éticos e íntegros diante das inovações
impostas pela sociedade da informação.
207
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
2. Conceitos fundamentais
É sabido que estamos vivendo a quarta revolução industrial, que com-
preende essencialmente a transformação digital e a revolução tecnológica,
com o envolvimento de big data, algoritmos, internet das coisas, inteligên-
cia artificial, ecossistemas de inovação industrial e diversos outros fatores
de ascensão de novas tecnologias.
Com todos os impactos que a revolução tecnológica está causando na
sociedade, nos propomos a (re)pensar as novas perspectivas da ética, a fim
de questionarmos quais parâmetros éticos devemos estar em Compliance
(conformidade), na tentativa de garantirmos que a essência humana será
cuidada diante da ascensão do aprendizado da máquina.
208
Compliance digital
de sua existência. É nesse quadro intra-humano que habita toda ética tra-
dicional, adaptada às dimensões do agir humano assim condicionado1.
Sendo assim, Hans Jonas explica que o significado ético tradicional “di-
zia respeito ao relacionamento direto de homem com homem, inclusive o
de cada homem consigo mesmo”2 e que a preocupação ética tinha a ver
com o agir imediato, ou seja, surgia de acordo com as ocasiões que se apre-
sentavam naquele momento.
Atualmente, além das circunstâncias que se apresentam no aqui e no
agora, a preocupação ética se estende para o futuro, na tentativa de definir
parâmetros éticos que deverão permear a evolução tecnológica, de modo a
abarcar a relação entre os seres humanos e a autonomia das máquinas, e a
relação entre as próprias máquinas.
Yuval Harari propõe que levemos a sério as transformações sociais que
o avanço no conhecimento científico e tecnológico causará na própria
identidade humana. Em suas palavras:
O que devemos levar a sério é a ideia de que a próxima etapa da história
incluirá não só transformações tecnológicas e organizacionais como tam-
bém transformações sociais na consciência e na identidade humana. E es-
sas podem ser transformações tão fundamentais que colocarão em dúvida
o próprio termo “humano”3.
Diante das implicações éticas que a revolução tecnológica faz emergir e
do contexto em que as máquinas estão se tornando cada vez mais autôno-
mas e com mais características similares aos humanos, Harari explica que
lhães; LONGHI, João Victor Rozatti (Orgs.). Direito Digital: direito privado e inter-
net. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 39
9 CUNHA, Matheus Lourenço Rodrigues; KALAY, Marcio El. (Orgs). Manual de
Compliance: compliance mastermind. Vol. 1. São Paulo: LEC Editora, 2019, p. 19.
10 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Department of Justice. Statute. Foreign Corrupt
212
Compliance digital
denominada FCPA, que foi a primeira lei no mundo a tratar da criminali-
zação de atos de suborno para com funcionários estrangeiros, sendo tam-
bém aplicável a pessoas estrangeiras e pessoas físicas que causem atos de
corrupção, mesmo que fora do território americano, possuindo por isso
influência em ordenamentos jurídicos internacionais.
Referido regramento norte americano desde então tem sido extrema-
mente importante para combater a corrupção no mundo, principalmente
por conter previsões específicas sobre Programas de Compliance efetivos,
de modo a inspirar legislações em várias partes do mundo, a exemplo do
Brasil.
O Brasil possui um vasto conjunto normativo que envolvem Leis, Leis
Complementares e Decretos, que tratam questões anticorrupção e a des-
crição de condutas ilícitas e respectivas sanções, sendo todas com lastro na
própria Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 37 estabelece,
dentre outros princípios e garantias, o princípio da moralidade na Admi-
nistração Pública direta e indireta de quaisquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
No entanto, para a finalidade do presente artigo, chamamos a atenção
para a Lei 12.846/13 (conhecida como Lei Anticorrupção ou Lei da Em-
presa Limpa) e o Decreto Federal n.º 8.240/2015 (Decreto Anticorrupção)
que a regulamentou, os quais representam a evolução do conceito de
Compliance no país, tratando não apenas da necessidade de se evitar frau-
des e atos de corrupção, mas também de sistemas efetivos de gestão nas
organizações, e por conseguinte refletindo a imagem de uma empresa idô-
nea e com melhor potencial de competitividade comercial.
Acrescente-se ainda, além do caráter punitivo estabelecido na lei, há
também espaço muito relevante para medidas anticorrupção a serem ado-
223
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
objetivo a prevenção da cegueira causada por diabetes com base em ima-
gens de retina29. A aplicação do FAT permitiu resultados mais éticos, atra-
vés da adoção como elementos de treinamento dados balanceados, respei-
tando a diversidade da população.
Assim a necessidade, por exemplo, de profissionais da área do direito
que sejam também programadores, para direcionar os trabalhos com base
nos valores éticos. Principalmente quando o Supremo Tribunal Federal já
conta com o auxílio, para a análise dos processos, da ferramenta “Victor”;
o Superior Tribunal de Justiça conta com o “Sócrates”; o Conselho da Jus-
tiça Federal conta com a “Lia” (Lógica de Inteligência Artificial); o Tribu-
nal de Justiça de Rondônia desenvolveu o “Sinapse”; o Tribunal do Rio
Grande do Norte conta com o “Poti”; o Tribunal de Minas Gerais conta
com o “Radar”; o Tribunal de Pernambuco conta com “Elis”, dentre ou-
tras muitas ferramentas.
Nesse diapasão a SAP® tornou-se a primeira empresa europeia de tec-
nologia a possuir um Conselho Consultivo de ética para Inteligência Arti-
ficial, composta por especialistas do meio acadêmico, políticos e profissio-
nais do setor.
O desenvolvimento da técnica da deep learning30 com o uso de redes
neurais para incremento do reconhecimento fala, visão computacional e
processamento de linguagem natural não pode, assim, afastar-se da ética,
sob pena de prejuízos incomensuráveis para toda a sociedade.
Cabe recordar a experiência da Microsoft em 2016 com o “CHATBOT
– TAY” - programa de IA que simulava um agente de atendimento ao
usuário, automatizando processos, funções de suporte e oferecendo res-
postas para suas perguntas de forma divertida e descontraída. Contudo, ao
instante em que aprendia com a interação com as pessoas (sem qualquer
4. Considerações finais
Como visto, a consciência ética de nossa sociedade passa por mudanças
significativas de modo que a globalização, o acesso à informação e o de-
senvolvimento tecnológico, serão grandes aliados a um processo de mu-
dança de comportamento, desde que utilizados considerando condutas
íntegras e éticas.
Vivendo na sociedade da informação, precisamos estar atentos para as
inovações que diuturnamente trazem mudanças nas relações, principal-
mente com a inserção da inteligência artificial e também do envolvimento
e disseminação de informações por meio do uso (e respectiva guarda) de
dados pessoais, sendo de extrema importância a análise em conjunto não
apenas da Lei 13.709/18 (Lei Geral de Proteção de Dados), como também
da Lei do Marco Civil na Internet (Lei n° 12.965/2014).
Porém, mais do que considerar os precitados regramentos legais, vê-se
que a sociedade, aqui citada a nível global, já vivencia acontecimentos
únicos nos quais o uso da inteligência artificial em conjunto com a coleta
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BRASIL. Lei 12.846/13, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabi-
lização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos
227
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras
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Acesso em: 22 mar. 2020.
RODOTÁ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje.
Organização, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes.
Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro:
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207-230.
__________________________________________________
230
ENSAIO SOBRE ALGUNS ASPECTOS
TEÓRICOS DO COMÉRCIO ELETRÔNICO E A
PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR
10
Ketlen Caroline Soares Pierazzo
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
1. Introdução
A expansão do comércio eletrônico traz à tona diversas indagações por
estar tomando uma grande proporção no comércio atual através do desen-
volvimento dos meios eletrônicos. Nos leva a questionar acerca do trata-
mento jurídico que tem sido adotado nesta modalidade contratual e da
forma que ocorrem as contratações, bem como, a proteção das partes.
A expansão da globalização torna a internet o maior instrumento de
desenvolvimento na sociedade através das comunicações em tempo real,
compartilhamento de dados, sons e imagens que ocorrem de forma instan-
tânea e sem limites territoriais, portanto, trata-se de uma comunicação
mundial em massa.
É evidente a evolução dos meios de comunicação, causando impactos
inclusive no campo da economia mundial, pois surgiram benefícios que
facilitaram a contratação e ofertas de forma mais eficiente, onde o consu-
midor busca de forma específica os produtos e serviços que tem interesse,
compara valores e seleciona a forma de pagamento conforme as opções
231
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
ofertadas à ele.
Para alguns doutrinadores, já haviam sistemas que permitiam uma de-
terminada manifestação eletrônica para efetuar negócios, como as redes
interbancárias. Porém, era de acesso privado, hoje tornou-se uma plata-
forma mais acessível em decorrência da revolução tecnológica, tornando-
se mais acessível aos usuários por meio de caixas eletrônicos e aplicativos
de celulares.
Tratar sobre o e-commerce é afirmar que essa modalidade contratual é
decorrente do desenvolvimento da tecnologia, que proporciona diversos
meios para ser realizada, onde ocorrem transações financeiras diante de
uma plataforma virtual onde são comercializados produtos intangíveis,
como softwares e arquivos digitais e de bens tangíveis, como celulares,
televisão, móveis, e etc.
As práticas negociais eletrônicas exigem do ordenamento jurídico
normas específicas para a regulação contratual, ressalta-se acerca da pro-
blemática que permeia o comércio eletrônico, onde não é viável que a le-
gislação deva ser atualizada toda vez que houver evoluções tecnológicas,
pois estas ocorrem com frequência e tornando-se impossível adaptar um
dispositivo legal pertinente com tantas modificações.
Portanto, insta mencionar que o e-commerce possui uma classificação
ampla por não se restringir somente a um tipo de venda em específico.
Mas o comércio tradicional não foi extinto com essa evolução tecnológica,
inclusive, as empresas tem adotado meios tecnológicos para ajudar na
divulgação e venda de produtos, visando a expansão dos negócios.
O comércio eletrônico aborda um novo panorama no âmbito da con-
tratação, desta feita é necessário que o ordenamento jurídico tenha um
entendimento consolidado quanto as modalidades contratuais, inclusive as
que são concretizadas de forma digital, que se distanciam das modalidades
tradicionais.
Este trabalho aqui proposto tem como objetivo tratar de alguns reflexos
232
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
do e-commerce na legislação, no comércio e a forma que a legislação brasi-
leira rege as relações de consumo e os contratos.
2. Contratos eletrônicos
Na abordagem sobre o comércio eletrônico, cumpre mencionar, preci-
puamente sobre os contratos eletrônicos, os quais refletem o desenvolvi-
mento deste método de contratação que advém de uma sociedade globali-
zada e da expansão da internet. Quando se trata de contratos, podemos
utilizar o conceito clássico contrato é o acordo de vontades entre duas ou
mais pessoas com a finalidade de adquirir, resguardar, modificar ou extin-
guir direito”1.
Destarte, na contratação eletrônica existem algumas particularidades
quanto aos contratos convencionais, que torna necessário ponderar tais
diferenças. Quanto ao conceito de contratos eletrônicos, segundo a análise
de Patrícia Peck Pinheiro2 “o contrato eletrônico é caracterizado por em-
pregar meio eletrônico para sua celebração”, bem como, “é o negócio jurí-
dico bilateral que resulta do encontro de duas declarações de vontade e é
celebrado por meio da transmissão eletrônica de dados”.
De acordo com o conceito acima, o contrato eletrônico se refere a uma
relação contratual realizada por meio de uma transação eletrônica, onde as
partes manifestam sua vontade por intermédio de um computador, onde
tal manifestação também pode ocorrer entre um sistema informatizado ou
entre duas pessoas em plataformas de compra e venda, por exemplo.
No que tange à regulamentação destes contratos, não há uma legislação
especifica, portanto são tratados como contratos atípicos, onde o princípio
dominante3 é a liberdade de contratação e a autonomia da vontade, onde
1 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. 6. Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 535.
2 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 187-188.
3 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 537.
233
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
as partes devem se atentar nas normas contratuais e que estas não contra-
riem os princípios jurídicos.
Outros aspectos que os contratos eletrônicos se diferem é quanto à
terminologia utilizada quando tratam de serviços de tecnologia. De acordo
com a abordagem feita por Pinheiro:
É recomendável o emprego de um glossário inicial que estabeleça o signifi-
cado dos termos técnicos empregados no contrato realizado pelas partes.
Isso possibilita um menor grau de interpretação, diminuindo o risco de
duplo sentido ou de má́ compreensão do que está́ sendo contratado. Esse
quesito é fundamental nos contratos da era digital, não só́ porque nascem
novos termos quase diariamente, mas também em razão do sentido pecu-
liar dado a palavras que normalmente têm outro significado no mundo re-
al4.
Outro fator de grande importância é que haja claramente as responsa-
bilidades das partes em relação a compra, que pode incluir questões como
segurança, tecnologia, conteúdo do contrato, produto, entrega, banco de
dados, informações, atualizações entre outros5. É de grande relevância
tratar sobre a delimitação do grau de responsabilidade visando a proteção
da relação com o consumidor final, devido a aplicabilidade do Código de
Defesa do Consumidor, o qual é aplicável nas relações de consumo virtu-
ais.
É necessário atenção por meio das partes quanto á veracidade da in-
formação que é veiculada na internet, pois podem ocorrer danos devido a
mensagens falsas. Para que haja essa prevenção contratual, é importante
inserir no contrato uma cláusula arbitral, pois para Pinheiro6 “celeridade,
expertise, especialidade e sigilo são fundamentas na solução das questões
de Direito Digital”.
241
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
Parágrafo único. Os serviços prestados e os produtos remetidos ou entre-
gues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III, equiparam-se às
amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento. (BRASIL. Código de
Defesa do Consumidor.2002)
Insta mencionar o posicionamento de Teixeira16 acerca das cláusulas
abusivas “cabe esclarecer que as cláusulas abusivas são as que diminuam
os direitos do consumidor, sendo nulas de pleno direito, sem prejuízo de
possível indenização por perdas e danos do consumidor contra o fornece-
dor.”
O direito do arrependimento é amparado pela legislação, onde o con-
sumidor deve fazê-lo no prazo de 7 dias seguindo aos critérios da contrata-
ção que for feita especialmente por telefone ou domicílio. O intuito foi de
evitar as compras por impulso que ocorrem sem a devida reflexão do con-
sumidor, se tem necessidade de adquirir ou condições de pagar17. No in-
termédio das contratações eletrônicas, a aplicabilidade do direito do arre-
pendimento no Brasil é devidamente admitido pela doutrina e pelas juris-
prudências.
5. UNCITRAL
A Comissão de Direito do Comércio Internacional da Organização das
Nações Unidas (UNCITRAL) foi um dos primeiros instrumentos doutri-
nários que fez uma abordagem referente ao comércio eletrônico através de
uma lei modelo, uma espécie de diretriz para um semento legislativo em
1996.
Segundo Martins (2016, p.83) “a lei modelo se divide em duas partes.
Num primeiro momento regula o comércio eletrônico em geral, e em se-
guida disciplina o seu emprego em atividades específicas”36.
Em suma, suas regras são abordadas de forma ampla, assim permitindo
o aperfeiçoamento na implementação pelos Estados. O objetivo da lei mo-
delo é referente a regulamentação acerca da formação e da validade dos
contratos eletrônicos.
A lei menciona no artigo 5º um dos maiores focos da lei, ao dispor que
não se negarão efeitos jurídicos, validade ou força obrigatória quanto á
informação pela simples razão de que esta não esteja contida em uma
mensagem de dados que dá lugar a tal efeito jurídico37. Há uma norma que
7. Considerações finais
É notável a importância do comércio eletrônico nas transações comer-
ciais atuais há bastante tempo, independente dos produtos e serviços que
são ofertados, seja através das lojas virtuais, aplicativos de compras e sof-
twares. No decorrer do trabalho, foram demonstrados posicionamentos
acerca desta modalidade de comércio, sendo que para muitos trata-se de
uma inovação e para outros um desenvolvimento das transações comerci-
258
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
ção, vendas, produção e divulgação. O comércio eletrônico abre diversas
possibilidades de negócio para o empreendedor.
De toda forma, o comércio eletrônico, como demonstrado alhures, não
passa desapercebido pela legislação consumerista.
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do consumidor. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR,
José Luiz de Moura (Coords.); BORGES, Gabriel de Oliveira Aguiar; REIS,
Guilherme (Orgs.). Fundamentos de direito digital: a ciência jurídica na
sociedade da informação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 231-259.
__________________________________________________
259
GEODISCRIMINAÇÃO: ANÁLISE À LUZ DO
CASO DECOLAR.COM
11
Ana Luíza Rodrigues Pereira
Lucas Zorzenoni Andreo
Thainá Lopes Gomes Lima
1. Introdução
Com a ascensão da internet na atual sociedade da informação, houve
substituição significativa dos meios físicos para os meios digitais, especi-
almente em relação às compras de produtos e serviços oferecidos pelo e-
commerce que, em regra, apresenta preços mais acessíveis em razão da
diminuição dos custos, propiciadas pelo comércio virtual em detrimento
do físico.
Um grande problema enfrentado atualmente é que, diante da amplitu-
de de informações que a internet oferece, há facilidade para ocorrência de
abuso e lesões aos direitos, principalmente dos consumidores. Notoria-
mente, o meio digital tem se desenvolvido como uma ferramenta valiosa
para melhorar a experiência dos consumidores ao redor do planeta, entre-
tanto, juntamente com esse significativo bônus surgem inúmeras condutas
ilícitas, a exemplo das apreciadas no caso protagonizado pela Decolar.com,
envolvendo práticas abusivas de geopricing e geoblocking.
Assim, no decorrer deste estudo, será analisado o referido caso, cujas
261
Ana Luíza R. Pereira · Lucas Zorzenoni Andreo · Thainá Lopes Gomes Lima
peculiaridades manifestaram a discriminação geográfica no âmbito digital,
o que gerou expressiva repercussão no Brasil. Posteriormente, a quebra de
barreiras físicas das nações possibilitada pela internet, bem como eventual
utilização daquelas para aferir responsabilidades dos fornecedores, serão
objetos de exame, além da necessidade dos Estados de se movimentarem
no sentido de oferecer maior proteção possível neste contexto. Por fim,
abordam-se as maneiras pelas quais tais práticas podem ser reprimidas à
luz da legislação, especialmente voltando-se à defesa da ordem pública na
esfera virtual, vez que esta proporciona à extensão da tutela ao consumidor
àquele ambiente.
1. O caso Decolar.com
5 Cavalieri Filho explana que a vulnerabilidade fática: “[...] é a mais facilmente percep-
tível, decorrendo da discrepância entre a maior capacidade econômica e social dos
agentes econômicos – detentores dos mecanismos de controle da produção, em todas
as suas fases, e, portanto, do capital e, como consequência, de status, prestigio social
– e a condição de hipossuficiente dos consumidores.”, enquanto que a vulnerabilida-
de técnica: “[...] decorre do fato de não possuir o consumidor conhecimentos especí-
ficos sobre o processo produtivo, bem assim dos atributos específicos de determina-
dos produtos ou serviços pela falta ou inexatidão das informações que lhe são presta-
das. E o fornecedor quem detém o monopólio do conhecimento e do controle sobre
os mecanismos utilizados na cadeia produtiva. Ao consumidor resta, somente, a con-
fiança, a boa-fé, no proceder honesto, leal do fornecedor, fato que lhe deixa sensi-
velmente exposto. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor.
5. ed. – São Paulo: Atlas, 2019, p. 100-101.
264
Geodiscriminação
nhum motivo razoável. Redução do direito à informação, à vista da oculta-
ção das informações ao consumidor brasileiro, o qual, por esta razão, não
pôde exercer em plenitude a sua liberdade de contratação, bem como por-
que ter sido exposto a abusividades por meio dos métodos desleais que a
empresa lhe inseriu sem o seu conhecimento.
A fundamentação relatada foi acolhida pela diretoria do órgão compe-
tente, motivando a aplicação de sanções à Decolar.com, consistentes na de
cessação imediata das práticas abusivas de geopricing e geoblocking, além
de multa no valor de R$ 7,5 milhões em razão das violações mencionadas,
levando-se em consideração a gravidade e extensão do dano, a vantagem
auferida e a condição econômica da empresa.
Assim, cabe trazer que houve a instauração de inquérito civil no Minis-
tério Público do Rio de Janeiro que deu azo a processo judicial, o qual tra-
mita perante o Tribunal de Justiça daquele estado, sob segredo de justiça,
com o objetivo de responsabilizar e condenar a Decolar.com pelas práticas
de geopricing e geoblocking praticadas à época dos Jogos Olímpicos de
2016 realizados no Brasil, sendo sustentado pelo Ministério Público a
ocorrência de danos materiais e morais tanto no âmbito individual, quanto
no coletivo. Ressalta-se ainda que, como dito, o feito tramita sob segredo
de justiça, motivo que impossibilita maiores informações sobre a deman-
da6.
Portanto, o caso em tela evidencia que as condutas discriminatórias no
âmbito do e-commerce não somente merecem proteção jurídica no que se
refere às relações de consumo, mas também conferem legitimidade ao
Estado para intervir, sendo expressa a ilicitude das práticas de geopricing e
geoblocking e sua inadequação com os princípios e dispositivos norteado-
res do Código de Defesa do Consumidor, Constituição Federal e outros
diplomas incidentes.
7 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 13-14.
8 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 26.
266
Geodiscriminação
internet9.
Contrariando a ideia até então vigente, surge uma nova concepção rela-
tiva à matéria que privilegia os governos nacionais e as fronteiras físicas,
não como resultado direto da atuação do governo, mas pela constatação de
que os usuários mundiais da internet exigem experiências inéditas na rede,
as quais poderiam ser proporcionadas justamente a partir da localização
geográfica10.
Apontam os autores que, a partir das exigências dos usuários em rede,
passa-se a observar algo contraditório, dado que a promessa de quebra de
fronteiras em virtude da ascensão do ambiente digital passa a se valer da
localização geográfica como uma de suas ferramentas primordiais11.
Devidamente justificada a intervenção dos governos e a reprodução das
fronteiras físicas no ambiente digital, surgem os bônus e os ônus inerentes
ao modelo de geolocalização existentes no meio digital. Asseveram os au-
tores Goldsmith e Wu que os serviços de identificação geográfica estão
ajudando a impedir fraudes no ambiente virtual, protegendo os consumi-
dores e seus cartões de crédito. Entretanto, também se percebe que a utili-
zação da localização geográfica não é infalível, existindo um aumento do
número de pessoas rastreadas através de redes de Wi-Fi12.
Assim, as práticas de geopricing e geoblocking, que tomam por princípio
a localização geográfica dos consumidores, se apresentam justamente co-
mo um uso inadequado da tecnologia, prejudicando estes e favorecendo os
fornecedores. Todavia, insta ponderar que a geolocalização e as fronteiras
9 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 27.
10 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 49.
11 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 52.
12 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 57.
267
Ana Luíza R. Pereira · Lucas Zorzenoni Andreo · Thainá Lopes Gomes Lima
físicas são relevantes no meio digital, particularmente em função da exten-
são da atividade estatal repressiva, cuja resistência se volta às práticas abu-
sivas em tela.
Portanto, qual deve ser a postura dos governos nacionais no combate às
práticas abusivas que tomam por base a geodiscriminação? Uma resposta
razoável toma por consideração duas abordagens distintas, igualmente
válidas e complementares para entender qual posicionamento dos Estados
frente às práticas abusivas. A primeira delas leva em consideração o víncu-
lo entre governo e o meio digital, já a outra abordagem toma por base a
relação dos daqueles para com os consumidores.
A visão que trata sobre a relação entre o governo e ambiente virtual ex-
põe que essa tratativa pode ser proveitosa ou danosa, a depender da situa-
ção em que os agentes estão inseridos e as motivações dos governos nacio-
nais democraticamente eleitos. A propósito, Goldsmith e Wu frisam que
os particulares outrora acreditavam na possibilidade de afastar a força
estatal no meio digital, todavia, a atualidade importa no reconhecimento
da necessidade da presença da mesma em variados segmentos, visando a
adequada disponibilização dos serviços e mercadorias13.
Por sua vez, a relação regulatória entre governos nacionais e consumi-
dores é justificada pela doutrina e a sua reprodução no meio digital se afi-
gura como mera consequência, isto porque, não existem motivos razoáveis
que limitem a atuação estatal nesta situação, apenas se alterou o meio que
as relações consumeristas decorrem, em suma, passou-se do meio físico
para o meio virtual.
Logo, os governos tutelarem os consumidores no meio digital se apre-
senta como razoável e necessário para que um ambiente harmonioso e
livre de atores indesejados se desenvolva livremente. Além disso, como o
caso analisado trata dos dados pessoais dos consumidores, nota-se que
13 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 140
268
Geodiscriminação
estes se afiguram como um elemento crítico para a promoção dos bens de
consumo14, razão pela qual uma análise detalhada da situação deve afastar
a lógica exclusiva dos interesses econômicos e nortear-se pelo fluxo das
informações pessoais15.
21 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 83.
22 MIRAGEM, Bruno. A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) e o direito
do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1009, nov. 2019, p. 173-225.
23 OLIVEIRA, Marco Aurélio Belizze. LOPES, Isabela Maria Pereira. Os princípios
norteadores da proteção de dados pessoais no Brasil e sua otimização pela Lei
13.709/2018. In: FRAZÃO, Ana; TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato (Co-
ord.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no direito brasileiro.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. E-book.
24 MIRAGEM, Bruno. A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) e o direito
do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1009, nov. 2019, p. 173-225.
272
Geodiscriminação
res e fornecedores.
Conclui-se, mediante a subsunção das características do caso concreto
examinado ao ordenamento vigente, que o dirigismo estatal e a reprodu-
ção das fronteiras físicas nas relações firmadas na internet, se fortalecem
na medida em que a vulnerabilidade do consumidor é agravada em decor-
rência da facilitação do acesso aos dados pessoais pelos fornecedores no
meio digital.
Como visto, tais sujeitos da relação consumerista utilizam as informa-
ções coletadas de maneira indevida e distinta da exteriorizada aos usuários,
tal qual ocorre na geodiscriminação. A reprimenda desta patente prática
abusiva, inclusive, fica a cargo da legislação específica aplicável às relações
de consumo, bem como das que regem a proteção de dados, ordenamentos
estes compostos por considerável carga principiológica e cláusulas de
abertura, estruturadas para proporcionar a extensão da tutela do consumi-
dor aos atos de consumo efetivados no e-commerce.
Prova disto é, justamente, o caso da Decolar.com, visto que a decisão
administrativa condenatória se valeu direta ou indiretamente das sobredi-
tas leis a fim de penalizar a empresa pelas práticas discriminatórias e lesi-
vas à liberdade contratual do consumidor.
4. Considerações finais
O caso Decolar.com se revela como exemplo significante da segmenta-
ção dos consumidores mediante critérios injustificados, os quais atestam a
abusividade inerente à geodiscriminação. A prática desfavorece o equilí-
brio nas relações contratuais, particularmente por contrariar a liberdade e
a boa-fé objetiva, motivos que legitimam e sustentam a acertada penaliza-
ção da empresa na esfera administrativa.
Contudo, a pertinência da decisão condenatória vai além do viés me-
ramente punitivo, englobando importantes aspectos pedagógicos na me-
dida em que desestimula a reiteração da conduta não apenas pela Deco-
273
Ana Luíza R. Pereira · Lucas Zorzenoni Andreo · Thainá Lopes Gomes Lima
lar.com, mas também pelas demais empresas do ramo.
Não pairam dúvidas, portanto, que a repressão da geodiscriminação é
extremamente relevante e encontra fortes bases normativas, circunstâncias
que tornam prescindível a sua vedação taxativa, assim como a de outras
práticas abusivas perpetradas no ambiente digital, sendo certo que o orde-
namento – e, em especial, o Código de Defesa do Consumidor – poderá se
amoldar aos contratos contemporâneos por intermédio principal da her-
menêutica a fim de proteger o vulnerável de maneira efetiva.
Referências
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: REsp
1326592/GO, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJ
274
Geodiscriminação
07/05/2019, DJe 06/08/2019. Disponível em:
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Ana Luíza R. Pereira · Lucas Zorzenoni Andreo · Thainá Lopes Gomes Lima
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de Moura (Coords.); BORGES, Gabriel de Oliveira Aguiar; REIS, Gui-
lherme (Orgs.). Fundamentos de direito digital: a ciência jurídica na soci-
edade da informação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 261-276.
__________________________________________________
276
BREVE ENSAIO SOBRE SEGURANÇA
JURÍDICA NO COMÉRCIO ELETRÔNICO E
ABORDAGEM LEGISLATIVALIDADE
12
Ketlen Caroline Soares Pierazzo
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
1. Introdução
Para que haja justiça, é necessária uma segurança jurídica positivada
através de uma legislação específica. No âmbito do empreendedorismo
digital, é necessário que a abordagem jurídica seja adequada e pertinente,
possibilitando sua aplicabilidade pertinente as novas tecnologias comerci-
ais através de princípios reguladores do comércio eletrônico.
Desta feita, diversos atos ilegais de comércio que ocorrem na internet
podem ser impedidos, segundo Teixeira e Lopes1 “prover princípios capa-
zes de tutelar a dinâmica dos negócios digitais sem engessá-los, mas impe-
dindo, por exemplo, situações de concorrência desleal na internet”.
A segurança no meio eletrônico é abordada como um desafio, devido a
velocidade que a internet e os meios de comunicação se desenvolvem, on-
de a legislação não consegue acompanhar e fazer a normatização adequa-
1 SANTOS, K.; TEIXEIRA, T.; LOPES, A.M. Startups e inovação: direito no empreen-
dedorismo. Barueri: Manole, 2017, p. 8.
277
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
da, correndo o risco de não acompanhar a atualização e ficar defasada em
pouco tempo.
É necessário a segurança jurídica tanto para a proteção dos consumido-
res e dos empreendedores, pois as consequências da ausência de um dispo-
sitivo legal e adequado pode ocasionar mais ajuizamentos de ações de in-
denização.
2 SANTOS, K.; TEIXEIRA, T.; LOPES, A.M. Startups e inovação: direito no empreen-
dedorismo. Barueri: Manole, 2017, p. 9.
3 SANTOS, K.; TEIXEIRA, T.; LOPES, A.M. Startups e inovação: direito no empreen-
dedorismo. Barueri: Manole, 2017, p. 19.
278
Breve ensaio sobre segurança jurídica no comércio eletrônico...
Tais informações são fundamentais para que haja uma compra segura e
confiável, onde o consumidor tenha acesso à todas as informações que
sejam pertinentes em casos de surgir alguma dúvida ou imprevisto, assim,
tendo contato direto com a empresa que está adquirindo um produto ou
serviço.
A legislação que aborda sobre o e-commerce exige que o empreendedor
digital apresente um resumo detalhado do conteúdo contratual antes que
haja a sua concretização, constando informações fundamentais ao pleno
exercício de escolha do consumidor, assim como as cláusulas que expres-
sam os direitos; ferramentas e métodos eficazes ao consumidor para iden-
tificação imediata de erros que possam ocorrer durante a contratação.
O empreendedor deve se atentar quanto a disponibilização do contrato
para o consumidor e manter a sua prestação de serviço de forma adequada
e eficaz por meio eletrônico, onde possam ser esclarecidas dúvidas, local
voltado para reclamações ou cancelamento de compras. É de suma impor-
tância que haja a confirmação imediata do recebimento da aceitação da
oferta4.
Visando a segurança dos dados dos consumidores, as empresas devem
utilizar ferramentas de proteção eficazes para pagamentos e dados, com o
objetivo de evitar fraudes.
Insta mencionar quanto ao prazo de respostas a serem dadas pela em-
presa quando solicitada alguma dúvida, reclamação ou cancelamento do
contrato, neste caso a empresa tem 5 dias para prestar os devidos esclare-
cimentos. O direito de arrependimento da compra é dado ao consumidor
no prazo de 7 dias se o serviço ainda não foi prestado, poderá solicitar a
rescisão do contrato e a devolução integral do pagamento.
4 SANTOS, K.; TEIXEIRA, T.; LOPES, A.M. Startups e inovação: direito no empreen-
dedorismo. Barueri: Manole, 2017, p. 19.
279
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
3. Decreto federal nº 7.962/2016
O comércio eletrônico tem movimentado a economia do Brasil, con-
forme mencionado por Martins5 “valores superiores a 40 bilhões de reais
no ano de 2015, reforça a necessidade de regras específicas a respeito da
matéria, sobre a qual pairou durante décadas um vazio de regulação”.
O Código de Defesa do Consumidor de 1990 foi atualizado através do
Senado Federal em 2010 através da edição do Projeto de Lei nº 281/2012
criando um marco legislativo para o comércio eletrônico e o comércio à
distância no país. Conforme exposto por Martins6 “foi aprovado em no-
vembro de 2015 pelo Plenário do Senado Federal e posteriormente conver-
tido no Projeto de Lei nº 3.514, da Câmara dos Deputados, atualmente
apensado ao Projeto de Lei nº 4.906/2001”.
Em suma, trata-se de um grande avanço na legislação por abarcar o
comércio eletrônico e as suas principais características, visando a confian-
ça dos consumidores através de sua proteção nas compras, assim como a
segurança e a proteção que é tratada na mesma proporção do Código de
Defesa do Consumidor de forma mais atualizada, conforme as tendências
do comércio eletrônico.
4. Decreto nº 7.962/2013
No Brasil, no dia 15 de março de 2013 foi editado pela Presidente da
República o Decreto nº 7.962/2013 que aborda sobre a matéria do comér-
cio eletrônico no Código de Defesa do Consumidor7 diante de influências
dos dispositivos do PLS nº 281/2012.
282
Breve ensaio sobre segurança jurídica no comércio eletrônico...
Para Martins9, o Decreto nº 7.962/2019 trata da boa-fé objetiva através
da obrigação decorrente do fornecedor, de apresentar um sumário do con-
trato antes de finalizá-lo, objetivando o atendimento facilitado ao consu-
midor, conforme elencado no artigo 4º:
Art. 4º. Para garantir o atendimento facilitado ao consumidor no comércio
eletrônico, o fornecedor deverá:
I - apresentar sumário do contrato antes da contratação, com as informa-
ções necessárias ao pleno exercício do direito de escolha do consumidor,
enfatizadas as cláusulas que limitem direitos;
II - fornecer ferramentas eficazes ao consumidor para identificação e cor-
reção imediata de erros ocorridos nas etapas anteriores à finalização da
contratação;
III - confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta;
IV - disponibilizar o contrato ao consumidor em meio que permita sua
conservação e reprodução, imediatamente após a contratação;
V - manter serviço adequado e eficaz de atendimento em meio eletrônico,
que possibilite ao consumidor a resolução de demandas referentes a in-
formação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato;
VI - confirmar imediatamente o recebimento d as demandas do consumi-
dor referidas no inciso, pelo mesmo meio empregado pelo consumidor; e
VII - utilizar mecanismos de segurança eficazes para pagamento e para
tratamento de dados do consumidor.
Parágrafo único. A manifestação do fornecedor às demandas previstas no
inciso V do caput será encaminhada em até cinco dias ao consumidor.
Insta destacar acerca do prazo de 05 dias para a manifestação do forne-
cedor quando solicitadas pelo consumidor, em relação ao serviço adequa-
Referências
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do
Consumidor. Brasília, DF.
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 1232/2011.
Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPro
posicao=500481. Acesso em: 03 de set. de 2019.
BRASIL. Congresso. Senado. Constituição (2012). Projeto de Lei nº 281,
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https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-
/materia/106768. Acesso em: 05 out. 2019.
BRASIL. Congresso. Senado. Constituição (2013). Decreto nº 7962, de 15
de março de 2013. Contratação no Comércio Eletrônico. Brasília, DF,
15 mar. 2013. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2013/Decreto/D7962.htm>. Acesso em: 10 out. 2019.
MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos Eletrônicos de Consumo. São
Paulo: Atlas, 2016, 3ª ed.
SANTOS, K.; TEIXEIRA, T.; LOPES, A.M. Startups e inovação: direito no
empreendedorismo. Barueri: Manole, 2017.
290
Breve ensaio sobre segurança jurídica no comércio eletrônico...
__________________________________________________
PIERAZZO, Ketlen Caroline Soares; BORGES, Gabriel Oliveira de Aguiar.
Breve ensaio sobre segurança jurídica no comércio eletrônico e aborda-
gem legislativa. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR,
José Luiz de Moura (Coords.); BORGES, Gabriel de Oliveira Aguiar; REIS,
Guilherme (Orgs.). Fundamentos de direito digital: a ciência jurídica na
sociedade da informação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 277-291.
__________________________________________________
291
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DO
CONSUMIDOR E A PROTEÇÃO DE DADOS
PESSOAIS ENQUANTO DIREITO
FUNDAMENTAL
13
Arthur Pinheiro Basan
José Henrique de Oliveira Couto
1. Introdução
Com o impulso do capitalismo informacional, o ambiente da Internet
tomou dimensões multicontinentais especialmente no que se refere a cole-
ta e ao processamento de informações. Passamos da crise de controle ao
domínio da estabilidade com o desenvolvimento industrial e tecnológico,
apesar de ter-se indícios do retorno ao status quo embrionário com o con-
tínuo fluxo de dados trocados na Internet.
Assim, é notável que as empresas que operam no comércio eletrônico,
aproveitando-se das informações relacionadas aos hábitos de consumo,
coletadas enquanto os usuários navegam em rede, promovem ofertas pu-
blicitárias direcionadas ou mesmo direcionam determinados preços ou
condições específicas. Em outras palavras, os dados pessoais dos consumi-
dores conectados à Internet são utilizados pelas empresas fornecedoras,
para além de outras práticas de mercado, como para a indevida discrimi-
nação, também para a implementação de publicidades personalizadas e
293
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
muitas vezes não solicitadas. Então, como pode o consumidor ser juridi-
camente protegido dessa monitoração, especialmente quanto ao uso de
dados pessoais nas ofertas comerciais?
Com base nessa problemática o presente texto visa apresentar uma bre-
ve história dos negócios jurídicos, demonstrando como as trocas voluntá-
rias fazem parte da essência social das civilizações. Tal apontamento será
importante para demonstrar como o capitalismo, enquanto sistema eco-
nômico, desenvolveu-se no sentido de aproveitar-se do ambiente da Inter-
net para a promoção do comércio eletrônico e, consequentemente, como a
monitoração eletrônica dos consumidores surge como base fundamental
para essa forma de negociação, em ambiente virtual.
Trabalha-se com a hipótese de que a Internet ampliou as possibilidades
de monitoração e, consequentemente, de coletas de dados, expondo os
consumidores, agora vigiados quanto aos seus hábitos de consumo, a no-
vos riscos. Isso, evidentemente, demanda do sistema jurídico novas res-
postas, sendo estas necessárias para a efetiva tutela dessas pessoas na atual
Sociedade da Informação.1
Assim, o trabalho preocupou-se em demonstrar como a proteção de
2 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. Tradução Janaí-
na Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2018, p. 15-16.
3 DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo. Martin Claret, 2001.
4 As trocas voluntárias estão há séculos presente na civilização, portanto é uma prática
que se tornou um hábito e, por consequência, esse mesmo saiu da realidade ontológi-
ca racional para a realidade deontológica instintiva, isto é, passou duma simples ação
humana baseada na razão para uma ação inconsciente movida pelo instinto humano.
VON HAYEK, Friedrich August. Os erros fatais do socialismo: por que a teoria não
funciona na prática. Barueri: Faro Editorial, 2017.
295
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
E o sistema econômico gera uma força coercitiva nos indivíduos, que pos-
suem os padrões sociais de comercializarem. Assim, se nota que os negó-
cios jurídicos estão presentes desde os primórdios da humanidade.
Na idade antiga, 4.000 A.C a 476 D.C, o comércio teve atividades ma-
nuais e exaustivas pela escassa criação tecnológica, além da exploração
homogênea da agricultura, do artesanato e dos animais. Conforme Kehoe,
em Roma, durante o império, a atividade comercial dependeu do arren-
damento de terra dos proprietários aos portadores do bem imóvel, portan-
to a economia romana, até certo ponto, foi baseada na agricultura.5
Na idade média, 476 D.C a 1.453 D.C, o sistema Feudalista alterou o
modo de produção dos bens. Com a abolição do Império Romano, muitos
povos ficaram sem proteção, e o Feudalismo, com as hierarquias inerentes
ao seu sistema, ascendeu. Em troca de proteção, os servos cultivavam, via
sistema de três campos, nas terras dos nobres e pagavam tributos, como
porcentagens da colheita. Esse sistema fez permanecer a agricultura como
a fonte de comércio durante a idade média.
Mais tarde, com a 1ª Revolução Industrial do século XVIII, o comércio
se expandiu pelo aumento de tecnologia, tornando as trocas voluntárias
intensas pela alta produção. Os fatores de produção foram alvos de altos
investimentos, como relata Bendix:
Durante os cem anos anteriores a 1760, o número de patentes concedidas,
em cada década, só alcançará 102 apenas uma vez e flutuará entre um mí-
nimo de 22 (1700-1709) e um máximo de 92 (1750-1759). No período de
trinta anos que se seguiu (1760-1789), o número médio de patentes con-
cedidas aumentou de 205, na década de 1760, para 294, na década de 1770,
e 477, na década de 1780.6
5 KEHOE, Dennis P. Law and the rural economy in the Roman Empire. Ann Arbor:
University of Michigan Press. 2007.
6 BENDIX, Reinhard. Work and Authority in Industry. Nova York: Harper & Row;
1963, p. 27.
296
A monitoração eletrônica do consumidor e a proteção de dados pessoais...
A 1ª Revolução Industrial permitiu, pela primeira vez na história, exis-
tir mais oferta do que demanda. As novas máquinas permitiram o aumen-
to da produção, obtendo vantagem tanto o consumidor por ter mais bens
circulando, quanto o empresário por arrecadar mais lucro líquido para
investir nos fatores de produção.
Por sua vez, a 2ª Revolução Industrial, ocorrida do século XIX ao XX,
trouxe a união da ciência à produção. A sociedade começou demover o
véu da ignorância, visto que os comerciantes começaram a usar ciência na
indústria, exigindo, portanto, explicações fundamentadas cientificamente.
O surgimento da energia elétrica impulsionou o motor industrial, a alta
potência e o pequeno preço gerou uma extensa demanda pela coisa móvel.
Conforme Dathein:
A facilidade de transmissão deu à energia elétrica um caráter onipresente e
colocou-a ao alcance de uma parcela muito mais ampla da população, da-
do seu baixo custo. Facilitou também o desenvolvimento de pequenas in-
dústrias, que podiam agora utilizar a mesma fonte geradora de energia das
grandes e pagar de acordo com o seu consumo.7
Em adstrito, surgiu o Taylorismo e o Fordismo para organizar a coope-
ração trabalhista e aumentar a produção numa escala temporal menor. Por
consequências das inovações, houve a expansão do comércio, mas os ne-
gócios jurídicos transacionados foram impelidos, até certo ponto, de im-
pulsionar grandes alterações sociais, via divisão do trabalho, no mercado,
pois escassas pessoas jurídicas operaram, trazendo à sociedade a negativi-
dade do oligopólio mercantil. Realizar trocas voluntárias num mercado
sob influência de poucas empresas é, sob a ótica de Hayek, atravessar o
instinto humano, passando a racionalidade acima dum hábito milenar, que
8 VON HAYEK, Friedrich August. Os erros fatais do socialismo: por que a teoria não
funciona na prática. Barueri: Faro Editorial, 2017.
9 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2018.
10 RIFKIN, Jeremy. A Terceira Revolução Industrial. Mbooks, 2012.
11 Industrialidade é um objeto poder ter aplicação industrial no mundo dos fatos, por-
tanto pode ser usado com frequência. COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito co-
mercial: Direito de empresa. 28. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
12 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy,
society, and culture. 2. ed. Oxford/West Sussex: Wiley-Blackwell, 2010, v. 1. P. 77.
298
A monitoração eletrônica do consumidor e a proteção de dados pessoais...
figura do consumidor. Neste sentido, Bauman defende que o atual contex-
to também pode ser qualificado como “sociedade de consumo”, pela qual
o trabalhador, enquanto ator principal da ordem social, foi substituído
pelo consumidor, o responsável pela fluidez do mercado. Desse modo,
segundo o autor, os projetos de vida das pessoas não giram mais em torno
do trabalho, mas da possibilidade real de consumo. E alterando toda a
lógica do mercado, Bauman defende que os próprios consumidores se
transformam em mercadoria, inclusive sendo essa qualidade a demonstra-
ção de que são membros autênticos dessa sociedade, afinal, “tornar-se e
continuar sendo uma mercadoria vendável é o mais poderoso motivo de
preocupação do consumidor, mesmo que em geral latente e quase nunca
consciente.”13
Daí porque, para além da análise histórica das trocas voluntárias, como
forma de possibilitar o próprio desenvolvimento da sociedade como um
todo, é necessário demonstrar como a monitoração do consumidor trans-
mudou-se como instrumento necessário ao atual estágio do capitalismo,
agora inserido também no ambiente da Internet, especialmente lembrando
que a proteção do consumidor, de uma maneira geral, é um direito fun-
damental, nos termos do art. 5º, inciso XXXII da Constituição Federal. 14
19 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. Tradução Janaí-
na Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2018, p. 19.
20 BENIGER, James. The Control Revolution: Technological and Economic Origins of
the Information Society. Cambridge: Harvard University Press, 1989, p. 312.
302
A monitoração eletrônica do consumidor e a proteção de dados pessoais...
infinitos questionários virtuais, e os dados são armazenados em tanques
anônimos, cujo são escoados na medida de surgimentos nas interações do
mercado. Na era digital os dados são coletados, jamais excluídos, ficando
armazenados para futuras operações mercantis.
Diante disso, têm-se o denominado “dataísmo”, que é considerada uma
religião baseada nos algoritmos, de modo que os fenômenos existentes
podem ser medidos com base em troca de dados.21 A consequência do
capitalismo informacional, enquanto sistema repleto de conteúdos é a
existência das alianças multinacionais, onde os empreendedores se fun-
dem em parcerias políticas para coletarem e armazenarem, via sistema
online, os feedbacks dos consumidores. Portanto, a Internet ampliou as
alianças destinadas a coletas de dados, expondo os consumidores a novos
riscos e alocando-os em mais uma situação de vulnerabilidade, agora tam-
bém informacional, que demanda do sistema jurídico as respostas necessá-
rias para a tutela dessas pessoas.
21 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. Tradução Janaí-
na Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2018, p. 370.
22 ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1998.
303
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
preferências íntimas, seus segredos e sua esfera individual. Pela abundân-
cia logarítmica, houve a necessidade do aprimoramento normativo dos
dados pessoais, passando de um dever legislativo pouco efetivo de prote-
ção oferecido pelo Estado para um direito fundamental, garantido a todos
os seres humanos, sem distinção de raça, gênero, cor, religião e credos.
O conceito de dados pessoais pode ser interpretado de acordo com o
tempo vigente, para o século XX, os dados pessoais são espécimes dos di-
reitos de personalidade, isto é, um conjunto de direitos pertencentes, de
maneira intrínseca, ao ser humano, compondo o respeito a sua integridade
física, psíquica e moral; já no século XXI, o conceito evoluiu pela influên-
cia da sociedade informacional, sendo os dados pessoais direitos funda-
mentais relativos ao indivíduo, mostrando suas peculiaridades físicas, ín-
fimas, psicológicas, morais, e sociais, integrando, portanto, todas as carac-
terísticas humanas em informações. Conforme Doneda, a informação pes-
soal, que é diferente de dados pessoais, é um conteúdo que revela, median-
te lei, características da pessoa ou de suas ações, como o sobrenome ou o
domicílio.23 Portanto, há de se considerar tanto as informações pessoais
quanto os dados pessoais como essenciais, pois são direitos fundamentais
intrínsecos, vitalícios e impenhoráveis do ser humano.
Conforme se nota, a era digital trouxe novas mudanças à sociedade. Se
na França, em 1889, os revolucionários buscavam a liberdade, na revolu-
ção 4.0 a civilização buscará a proteção dos dados pessoais. Com o fim da
segregação digital, haverá a globalização da rede mundial de conexão, e as
pessoas transacionarão seus dados personalíssimos, entregando-os gratui-
tamente às indústrias informacionais, que operarão compartilhamentos, a
nível alienígena, para maximizarem os lucros. Apesar do conflito na prote-
ção das informações, há grandes divergências legislativas a respeito dos
dados serem direitos fundamentais.
30 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. Tradução Janaí-
na Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2018, p. 283-284.
31 ITU world telecommunication. ICT indicators database. 2019.
32 PALAZZO, C. Consumer campaigners read terms and conditions of their mobile
307
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
modo que tomar reflexão das cláusulas exigiria mais tempo, afinal, o con-
trato é uma rede de prestações a serem satisfeitas, cujo as obrigações são de
dar, de fazer ou de não fazer. Logo, esse analfabetismo digital pode origi-
nar uma sequela onerosa em decorrência da falta de estrutura computaci-
onal técnica.
O segundo fator externo negativo é o escasso conhecimento sobre
os termos e condições. Há uma inacessibilidade de entendimento acerca de
regras contratuais, e esse fato se estende tanto para alfabetizados quanto
para os desprovidos de educação. Potts e Jensen realizaram pesquisas so-
bre 64 políticas de privacidade de empresas, e os resultados demonstraram
que 6% das políticas são acessíveis para 28,3% da população vulnerável no
quesito educacional, e 54% dos termos estão além do alcance de 56,6% da
população no mundo online, enquanto 13% das condições são legíveis
para as pessoas com pós-graduação.33
Como consequência, a lei de proteção de dados se torna mediana-
mente eficiente, pois os restritos conhecimentos digitais e jurídicos impul-
sionam os consumidores a aceitarem cláusulas contratuais sobre a disposi-
ção e compartilhamento dos dados. Enquanto efeito dominó, a monitora-
ção eletrônica dos consumidores gera um gravíssimo adentramento na
esfera de dados pessoais, tendo em vista o defeito no consentimento para
compactuar com a disposição das informações pessoais. Conforme Scher-
tel, existem duas formas de consentimento: I) Opt out, que é o consenti-
mento válido quando não houver manifestação de vontade contrária; II)
Opt in, que é a manifestação de vontade válida quando consentida expres-
phone apps. all 250,00 words. The Telegraph. Disponível em: https://bit.ly/2KOoSbU.
Acesso em: 15 mar. 2020.
33 JENSEN, C.; POTTS, C. Privacy policies as decision-making tools: An evaluation of
online privacy notices. In: DYKSTRA-ERICKSON, K.; TSSCHELIGI, M. (Eds.), Pro-
ceedings of the SIGCHI Conference on Human Factors in Computing Systems (pp.
471–478). ACM, 2004.
308
A monitoração eletrônica do consumidor e a proteção de dados pessoais...
samente.34 No plano ontológico, os contratos digitais são inundados de
valorações aos contratos Opt’s out’s, e, por consequência, os consumidores
vulneráveis têm seus dados tolhidos e compartilhados com fins diversos a
legislação de proteção de dados, colocando em sérios riscos a integridade
dos consumidores.
6. Considerações finais
Na contemporaneidade, as pessoas não possuem o correto juízo
racional acerca da importância de seus dados pessoais, e, por consequên-
cia, entregam centenas de informações gratuitamente durante as relações
sociais que travam, especialmente no âmbito virtual. O fato se agrava pelo
exercício doloso de empresas que elaboram contratos com termos e condi-
ções impregnados de vocabulário técnico visando induzir os consumidores
a não compreenderem as cláusulas que acordam.
Isso tudo com o intuito de possibilitar, ao menos a princípio, a autori-
zação para a promoção da indesejada monitoração eletrônica. Dito de ou-
tra forma, as empresas que operam no ambiente da Internet, aproveitando-
se da vulnerabilidade das pessoas que expõe seus dados em rede, utilização
as informações pessoais para finalidades precipuamente econômicas, vi-
sando a ampliação de lucros.
Tal prática vai em sentido oposto ao sistema jurídico brasileiro, que
possui como base central sistêmica a tutela da dignidade da pessoa huma-
na, em qualquer dos âmbitos que esteja convivendo socialmente, seja con-
creto, real ou físico, seja eletrônico ou virtual.
Assim, apesar de a Internet também ser um ambiente de evolução na
aproximação entre consumidores e fornecedores, é notável o desequilíbrio
entre as partes, razão pelas quais os dados pessoais são tolhidos e usados
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313
CONTROLES DA INTERNET: O CIBER-
UTOPISMO DO MARCO CIVIL DA
INTERNET NO ART. 19
14
Samuel Nunes Furtado
Frederico Cardoso de Miranda
Bruno Facuri Silva Rassi
1. Introdução
Os desenvolvedores da Arpanet1 dificilmente imaginaram à época, que
o sistema que visava garantir a comunicação entre militares e cientistas em
campos de bombardeios, daria origem a um dos fenômenos de maior in-
fluência na dinâmica mundial: a Internet. Esse sistema apresentou profun-
das repercussões nos mais diferentes campos da sociedade. Entre tais re-
percussões, evidencia-se o fenômeno da virtualização das relações sociais,
6 A comparação deriva da tendência cada vez maior de adesão à internet como princi-
pal meio de comunicação das pessoas no cotidiano em substituição aos modelos tra-
dicionais limitados por ideias de espaço-tempo.
317
Samuel Nunes Furtado · Frederico Cardoso de Miranda · Bruno Facuri S. Rassi
2. Artigo 19 do MCI e a responsabilidade dos provedores
Inicialmente, é importante situar o debate sobre a responsabilidade dos
provedores e a incidência do artigo 19 do MCI, mesmo que de forma bre-
ve, realizando interpretação histórico-teleológica. Pois bem, a responsabi-
lidade civil pode ser estudada tradicionalmente sob dois ângulos, o contra-
tual (ou negocial), constituindo um dos elementos da obrigação (haftung),
e o extracontratual (ou extranegocial), expressado no ônus que recai sobre
determinada pessoa que cause danos a outrem, de forma culposa ou inde-
pendentemente de culpa7.
Entre os provedores de aplicação e os usuários, incide o Código de De-
fesa do Consumidor – Lei n° 8.078/90 – de forma que, em regra, a respon-
sabilidade do provedor por conteúdo ilícito gerado por terceiros seria ob-
jetiva, em razão de defeito de serviço prestado ser caracterizado pela falta
de controle de conteúdo ex ante como medida de espreita preventiva.
No entanto, o legislador, considerando o papel da internet como prin-
cipal meio de comunicação e, na tentativa de impedir censura segundo
critérios subjetivos dos provedores de aplicação8, cria a lei 12.965/2014,
cujo mandamento exime os provedores da responsabilidade objetiva, des-
de que não possuam filtro de conteúdo, transferindo ao judiciário a legiti-
midade para decidir o que deve ou não ser removido compulsoriamente da
7 TARTUCE, Flávio. Direito das obrigações e responsabilidade civil. 14. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2019.
8 ROTH, Gabriela. NUNES, Samuel. A responsabilidade civil dos provedores por
danos causados a terceiro: um estudo doutrinário e jurisprudencial do artigo 19 do
marco civil da internet. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José
Luiz de Moura. Estudos Essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p. 144
explicam que o intuito foi impedir a censura segundo critérios subjetivos do que seria
“liberdade de expressão” e seu âmbito de proteção, já que como princípio se trata de
um direito amplo cujos limites são decididos através de posicionamento político,
sendo o Judiciário único legitimado para analisar se há excessos.
318
Controles da Internet
internet.9.
A finalidade do dispositivo 19, caput10, que será objeto do trabalho, pa-
rece clara: elevar ao máximo a liberdade na internet, mediante maximiza-
ção da liberdade, independentemente de censura.
Justamente nesse sentido, dispõem o anteprojeto do Marco Civil, in
verbis:
As opções adotadas privilegiam a responsabilização subjetiva, como forma
de preservar as conquistas para a liberdade de expressão decorrentes da
chamada Web 2.0, que se caracteriza pela ampla liberdade de produção de
conteúdo pelos próprios usuários, sem necessidade de aprovação prévia
pelos intermediários11.
Corroborando com essa ideia, pondera Augusto Marcacini:
Tratar a questão de modo diverso gera, de um lado, um aumento exagera-
do nos riscos desses negócios e, de outro lado, o que é mais danoso soci-
almente, uma tendência a excesso censório por parte dos provedores que,
temerosos em ser diretamente responsabilizados, iriam proibir ou retirar
do ar todo o tipo de conteúdo que minimamente parecesse infringir algum
direito alheio. Essa é a tônica desses dispositivos do Marco Civil.12
Entretanto, deve ficar claro que a incidência do dispositivo em comen-
13 Como exemplo vide: ROTH, Gabriela. NUNES, Samuel. A responsabilidade civil dos
provedores por danos causados a terceiro: um estudo doutrinário e jurisprudencial
do artigo 19 do marco civil da internet. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS
JÚNIOR, José Luiz de Moura. Estudos Essenciais de direito digital. Uberlândia: LA-
ECC, 2019, p. 144.
14 SENACON, Secretaria Nacional do Consumidor. Nota Técnica nº 610/2019. Proces-
so nº 08012.003622/2019-81. p. 5.
15 Maria Celina Bodin e Chiara Spadaccini de Teffé (BODIN DE MORAES, Maria
Celina e TEFFÈ, Chiara Spadaccini de. Redes sociais virtuais: privacidade e respon-
sabilidade civil Análise a partir do Marco Civil da Internet. Revista Pensar, Fortaleza,
v. 22, n. 1, p. 108-146, jan./abr. 2017) conceituam as redes sociais “como serviços
materializados em páginas na Web ou em aplicativos que, a partir de perfis pessoais,
permitem uma ampla interação entre seus usuários, proporcionando e facilitando as
relações e os laços sociais entre os sujeitos (pessoas, instituições, empresas ou grupos)
no ambiente virtual”
16 GONÇALVES, Victor Hugo Pereira. Marco Civil da Internet: comentado. São Paulo:
Atlas, 2017, p. 11.
320
Controles da Internet
ciberespaço, bem como os algoritmos de seleção de conteúdo e de que
forma isso afeta a liberdade na internet.
20 ZUBOFF, Shoshana. Big Other: surveillance capitalism and the prospects of an in-
formation civilization. Trad. Antônio Holzmeister Osvaldo Cruz e Bruno Cardoso.
In: Tecnopolíticas da Vigilância. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 26.
21 O conceito de data mining aqui exposto não está atrelado à prática única e exclusi-
vamente dos provedores, sendo resumido, em termos genéricos “em um processo de
extração ou mineração de conhecimento em grandes quantidades de dados”. SHO-
LOM, M. WIES, Nitim Indurkhya. Predict Data Mining. 1999 apud: CORTÊS, Sérgio
da Costa et. al. Mineração de Dados – Funcionalidades, Técnicas e Abordagens.
2002.
322
Controles da Internet
Sobre o tema, Carla Oliveira afirma:
Uma análise dos serviços do Facebook mostra o quanto algoritmos
Aprendizado de Máquina influenciam na escolha das notícias, postagens e
anúncios que são exibidos na timeline do Facebook. O usuário tem a ilu-
são de que escolhe o que lê, visualiza, curte, comenta e compartilha, mas
isso é uma falsa liberdade. Na verdade, quem classifica, exclui e decide o
que aparece na timeline é um algoritmo de Aprendizagem de Máquina e é
com base nessa classificação que as interações dos usuários do Facebook
são realizadas.22
Portanto, fica evidente que a internet não é um campo livre e que sem-
pre existe alguém, ou melhor, um algoritmo que controla todos os “pas-
sos” dos usuários das redes, como será analisado a seguir.
24 PARISER, Eli. The filter bubble: what the internet is hiding from you. Nova York:
Peguin Press. 2011.
25 A figura do Prosumer é resultado da atuação da dupla atuação do indivíduo na inter-
net, como consumidor e como fator de determinação na produção de produtos e ser-
viços.
26 Sobre esse ambiente, Sorj explica que ao navegar nas redes sociais os usuários são
submetidos à uma série de conteúdos alinhados à sua maneira de pensar comparti-
lhados pelos integrantes da rede e, há uma falsa impressão de que todos pensam de
modo uniforme, quando o que ocorre é uma exclusão da amostra de postagens con-
trárias aos seus posicionamentos. SORJ, Bernado et. all. Sobrevivendo nas redes: guia
do cidadão. [S.l.]: Lilemes Comunicação, 2018.
324
Controles da Internet
são de conteúdo na internet e quebrando o monopólio da produção de
informação pela mídia de massa, por outro, fez surgir a necessidade de
controle dessa sobrecarga (information overload), que os provedores fazem
através de padrões cujo princípio norteador é o registro de dados do usuá-
rio na internet, criando um habitat perfeito para a polarização dos debates
e difusão de notícias falsas potencialmente lesivas, especial e relativamente
se analisarmos os danos morais e materiais acarretados às vítimas deste
cenário disruptivo da realidade.
Eduardo Magrani, analisando os interesses dos provedores na filtragem
de conteúdo, bem como os seus prejuízos para uma liberdade na internet,
descreve que:
Os filtros bolha-bolha limitam os usuários ao que desejam (ou desejariam)
segundo uma predisposição algorítmica, dificultando o acesso às informa-
ções que devessem ou precisassem ver para enriquecer o debate democrá-
tico [...] Desse modo, pode-se dizer que a filter bubble e seu caráter preju-
dicialmente paternalista pode implicar em restrições a direitos e a garanti-
as fundamentais, a autonomia dos indivíduos e a liberdade de expressão.27
E complementa dizendo que “o usuário de internet ao navegar pelos si-
tes mais conhecidos é alvo hoje de uma torrente de publicidade direciona-
da que denota por si só o interesse comercial por trás deste mecanismo de
filtragem e personalização.”28 Obviamente, não se pode esperar que os
provedores deixem de monetizar as atividades por trás do oferecimento de
seus serviços, mas a prática tem que se alinhar aos princípios que regem o
uso da internet v.g., pluralismo e a interconexão de ideias prejudicada por
fenômenos como o filtro bolha.
Portanto, o artigo 19 do Marco Civil da Internet, ao se preocupar uni-
29 MOROZOV, Egveny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Trad.
Cláudio Marcondes. São Paulo: Ubu, 2018, p. 256.
30 Entre os cyber-otimistas destacam-se Benkler e Manuel Castells, em contraposição
aos cyber-céticos Tim Wu e Evgeny Morozov. Há outros autores que, de igual modo
elencam pontos positivos e negativos da internet, mas que, por razões de oportuni-
dade não serão detalhados neste trabalho.
326
Controles da Internet
quanto promessa democrática de emancipação política, embasada em
princípios como a diversidade, pluralidade de informações, participação
deliberativa e pressuposto essencial para o livre e pleno desenvolvimento
da personalidade, sendo considerada, inclusive, instrumento imprescindí-
vel ao exercício da cidadania31.
Nesta égide, Benkler, pontuando as diferenças entre a mídia social crida
pela internet e a mídia de massa tradicional, trazendo à baila a perspectiva
de uma emancipação política das pessoas, predita:
Os processos de produção de informação por redes sociais de colaboração
oferecem perspectivas e leituras alternativas de realidade que podem pôr
em xeque as versões dos grandes veículos de comunicação ou grupos he-
gemônicos32.
O autor parte do fundamento de que a internet desmonopoliza a pro-
dução de informação tradicionalmente feita palas mídias de massas e, as-
sim, os usuários, antes meros espectadores, passam a possuir um papel
ativo na internet, estando menos sujeitos à manipulação dos grandes gru-
pos tradicionais de veículos de comunicação.
No mesmo raciocínio, descreve Manuel Castells:
A interatividade torna possível aos cidadãos solicitar informação, expres-
sar opiniões e pedir respostas pessoais aos seus representantes [...] e a in-
ternet fornece, em princípio, um canal de comunicação horizontal, não
controlado e relativamente barato, tanto de um para um quanto de um pa-
ra muitos.33
De fato, é indubitável o poder que a internet proporciona às pessoas,
34 Por ora, só isso: o Homem natural de hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem
que vive em sociedade. Melhor dizendo, a natureza do homem não muda conforme o
tempo, ou a história, ou a vida social”. WEFFORT, Francisco Côrrea (Org.). Os clás-
sicos da política. São Paulo: Ática. 2011, p. 45.
35 WU, Tim. Impérios da comunicação: do telefone à internet, do AT&T ao Google.
Trad. Cláudio Carina. Rio de Janeiro: Zahar. 2012, p. 143.
328
Controles da Internet
E acrescenta:
Embora possa soar extravagante, a disputa em questão está mais para ur-
sos-polares combatendo leões pelo controle do mundo. Cada animal, in-
superável em seu elemento natural [...] os ursos-polares buscarão cobrir de
neve a maior parte do mundo, enquanto os leões tentarão transformar em
savana as margens da tundra. Isso parece um absurdo, contudo, para esses
poderosos predadores, é apenas a lei da natureza.36
Na mesma linha de pensamento, Egveny Morozov37, analisando a luta
entre os gigantes da internet, descreve que o uso da internet efetivamente
possui pontos positivos, promovendo, v.g., liberdade de expressão. Entre-
tanto, nem sempre os aspectos positivos são suficientes para compensar os
negativos e, da mesma forma que serve à promoção da democracia, a in-
ternet também pode ser usada como meio de investir de poder os movi-
mentos antidemocráticos e potencialmente lesivos às pessoas, à democra-
cia e à sociedade.
Os movimentos antidemocráticos, não só hodiernamente, podem se
encontrar travestidos de fake news, deeps fakes e discursos de ódio produ-
zidos pelos usuários que, em razão do artigo 19 do Marco Civil da Internet,
não podem ser removidos extrajudicialmente38, favorecendo sua rápida
difusão e, por consequência, a intensificação dos danos causados as víti-
mas destas praticas, através do princípio da interoperabilidade da internet
39 MOROZOV, Egveny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Trad.
Cláudio Marcondes. São Paulo: Ubu, 2018, p. 184.
40 BRASIL. Anteprojeto Marco Civil da Internet.
330
Controles da Internet
com o direito à liberdade de expressão em sentido formal, isto é, possibili-
tar aos usuários a livre manifestação de pensamento no ciberespaço, não
logra êxito em seu objetivo finalístico, qual seja, a sedimentação da demo-
cracia no ciberespaço, à medida que abriu espaço para novas formas de
censura, desconsiderando os interesses obscuros de grupos antidemocráti-
cos.
Doutra feita, ao coibir o filtro prévio e a regra notice and takedown41
dos conteúdos pelos provedores, sob pena de responsabilidade objetiva, o
legislador cultivou um ambiente extremamente propício à disseminação
de conteúdos potencialmente danosos, como é o caso das fake news, deep
fakes e discursos de ódio, tornando mais crítica a vulnerabilidade digital42
do consumidor, expondo-o a riscos desmesurados no contexto das mídias
sociais em prol de uma “aparente liberdade na internet”.
Como visto, a internet não é livre e as grandes empresas provedoras, tal
como antes acontecida com as mídias de massa, dominam e controlam o
ciberespaço, concentrando a maior parte dos usuários da internet em suas
aplicações. Da mesma forma que o uso da rede pode ser base para o desen-
volvimento de uma cultura diversificada, assentada nos ideais de compre-
6. Considerações finais
Entendendo a preocupação do Legislador em estabelecer a responsabi-
lidade subjetiva dos provedores como forma de maximizar a liberdade de
expressão pressuposto de uma democracia forte, buscamos levantar algu-
mas questões de ordem teoria e prática que levam a conclusão de que o
MCI não alcançou seu objetivo final, a saber, o fortalecimento da demo-
cracia na internet.
Decerto, durante todo o trabalho, buscou-se comprovar que a liberdade
43 WEFFORT, Francisco Côrrea (Org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática. 2011,
p. 48.
332
Controles da Internet
ilimitada na internet não corresponde, necessariamente, à plena liberdade
de expressão, bem como, que o Marco Civil é ciber-utópico. Para tanto,
realizou-se análises sob diferentes ângulos de leitura do funcionamento da
internet, principalmente nas visões dos ciber-pessimistas e dos ciber-
otimistas, levando em conta a dupla atuação dos usuários na internet (pró
e contra a democracia), mas sem desconsiderar os múltiplos usos da inter-
net.
A pesquisa foi voltada, principalmente, à atuação dos intermediários da
internet na conexão entre os usuários, detalhando os interesses, muitas
vezes econômicos, dos provedores, bem como a forma de controle do con-
teúdo postado pelos usuários, produzindo fenômenos como filtros bolhas,
cujo resultado é a criação de ambientes propícios à disseminação de con-
teúdos potencialmente lesivos e a promoção de uma censura à dimensão
material da liberdade de expressão.
Responsabilizar subjetivamente o provedor é uma ferramenta que per-
mite certa liberdade de expressão, porém, um olhar mais aprofundado sob
a estrutura funcional dos provedores e da atuação dos usuários possibilita
o reconhecimento de outros pontos que são igualmente essenciais para
uma internet verdadeiramente livre, plural e diversificada v.g., a regula-
mentação das atividades econômicas dos provedores. Ademais, há que se
pensar que este modelo de responsabilidade entra em choque com outros
direitos personalíssimos igualmente protegidos pela legislação pátria, co-
mo é o caso do direito de resposta que incluí a remoção de conteúdo ilícito
prejudicado pela velocidade de compartilhamento das informações na
internet e em contraposição ao andamento processual.
Os desafios por trás da promoção da democracia mediante uso da in-
ternet são grandes e o ponto de partida para enfrentá-los é reconhecê-los,
o que só é possível quando se analisa todos os pontos que envolvem seu
uso. Sendo assim, os reais impactos que a internet pode ocasionar nos di-
reitos fundamentais, nomeadamente no que tange à liberdade de expres-
são, são desconhecidos, de modo que, qualquer análise que se preste à
333
Samuel Nunes Furtado · Frederico Cardoso de Miranda · Bruno Facuri S. Rassi
elaboração de normas voltadas à regulação da internet deve considerar
todos os seus aspectos, principalmente os vieses econômicos e políticos
por trás das atuações dos provedores.
Dessa maneira, perfilhamos com a ideia do professor Morozov, de que
a evolução e a utilização da web devem ser vistas como avanços essenciais
para a humanidade, não podendo ela ser avessas às tecnologias, mas, as
redes devem ser utilizadas com moderação, sabedoria e, principalmente,
enxergando os prejuízos que isso pode acarretar à democracia.
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337
O PANORAMA GERAL ENTRE
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E A
SOCIOLOGIA
15
Rafael Escrich
Guilherme Reis
1. Introdução
Nos últimos dez anos houve um aumento expressivo no uso de técnicas
de Inteligência Artificial (IA) em aplicações e sistemas de computador. E
acreditamos que esse aumento se dará de forma mais acelerada nesta dé-
cada que se inicia. Fruto principalmente da popularização e solidificação
de ferramentas e técnicas como Aprendizado de Máquina (Machine Lear-
ning) e Redes Neurais.
Essa nova “corrida pelo ouro’’ liderada por grandes conglomerados de
tecnologia deverá trazer grandes impactos à sociedade, tanto positivos,
pela própria natureza transformadora dessa tecnologia, quanto negativos,
como uma concorrência desleal de quem possuir a tecnologia, ou a forma
como é alimentado e desenvolvida a tecnologia. Além dos desdobramentos
éticos e morais de seu uso indiscriminado, muitas vezes, utilizando dados
pessoais ou implementando em situações perigosas para a humanidade
como um todo.
O objetivo desse ensaio é levantar questões pertinentes a algumas dire-
339
Rafael Escrich · Guilherme Reis
trizes éticas que talvez deveriam estar norteando o desenvolvimento dos
softwares e também o arcabouço regulatório necessário para a sociedade
poder fiscalizar tais tecnologias. O objetivo não é responder perguntas,
mas sim, demonstrar o que é, como é, como é feito, como estamos utili-
zando e para onde estamos indo. Nossa proposta é tensionar para pensar.
E se possível, mudar.
1 MAYOR, Adrienne. Gods and Robots: Myths, Machines, and Ancient Dreams of
Technology. Princeton: Princeton University Press, 2018.
2 Stanford researcher examines earliest concepts of artificial intelligence, robots in
ancient myths. Stanford. Disponível em:
https://news.stanford.edu/2019/02/28/ancient-myths-reveal-early-fantasies-
artificial-life/. Acessado em 09/04/2020
340
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
acima. Mas esse desejo antigo da humanidade começa a se tornar mais
realista apenas na primeira metade do século 20 conforme a criação e de-
senvolvimento da Ciência da Computação, fundamentando-se como uma
área importante no conhecimento formal.
A figura mais importante para o desenvolvimento da ciência da com-
putação, foi o matemático Alan Turing, tido por muitos como o pai da
computação, que escreveu em 1948 um artigo chamado “Intelligent Ma-
chinery”3 onde ele deixa uma pergunta a ser respondida: Podem as máqui-
nas demonstrar comportamento inteligente? Resposta esta que a humani-
dade ainda está a procura de responder.
Uma das grandes contribuições desse grande pensador à essa área foi
um exercício teórica que hoje é conhecido como teste de turing4. Nesse
teste teórico, Turing propôs que um humano avalie conversações em lin-
guagem natural entre um outro humano e uma máquina especialmente
construída para gerar respostas humanas.
O avaliador do teste poderá saber que um dos participantes é uma má-
quina e todos os participantes estarão separados uns dos outros. A conver-
sação é limitada em um canal somente de texto, como um teclado e uma
tela para que o resultado não seja dependente da habilidade da máquina de
renderizar sons parecidos com a voz humana. Se o avaliador não conseguir
distinguir entre a máquina e o humano, então é dito que essa máquina
passou no teste.
O resultado do teste não depende se a máquina dá respostas corretas
mas o quanto essas respostas se parecem às respostas que um humano
9 HAUGELAND, John. Artificial Intelligence: The Very Idea, Cambridge, 1985. Dis-
ponível em https://mitpress.mit.edu/books/artificial-intelligence-1. Acesso em: 12
mar. 2020.
10 Caso o leitor tenha mais interesse sobre o método acesse o link colaborativo: Dispo-
nível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Physical_symbol_system
11 Imagem representando a rede neural: Disponível em https://mc.ai/intuition-
learning-and-neural-networks/. Acesso em: 12 mar. 2020.
344
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
Fonte: https://mc.ai/intuition-learning-and-neural-networks/
17 Why this week’s man-versus-machine Go match doesn’t matter (and what does),
Sciencemag. Disponível em: https://www.sciencemag.org/news/2016/03/update-
why-week-s-man-versus-machine-go-match-doesn-t-matter-and-what-does. Acesso
em: 12 mar. 2020.
347
Rafael Escrich · Guilherme Reis
ção que contém recomendações sobre a criação de um Código Civil sobre
a robótica18, talvez seja a maior e única legislação específica sobre o assun-
to até hoje, mesmo que ainda lhe falte força normativa vinculante, e um
excelente parâmetro legislativo.
A resolução trouxe consigo 10 princípios éticos e basearam-se como
pilar o que a literatura considera como as leis da robótica de Isaac Asi-
mov19 (originalmente citados no prefácio de seu livro “Eu robô” e repro-
duzido na resolução.), são consideradas as três leis da robótica:
a. Um robô não causará danos a um ser humano nem permitirá que, por
inação, este sofra danos.
b. Um robô obedecerá às ordens que receber de um ser humano, a não ser
que as ordens entrem em conflito com a primeira lei.
c. Um robô protegerá sua própria existência na medida em que dita prote-
ção não entre em conflito com as leis primeira e segunda.
Partindo deste mesmo pressuposto da resolução europeia, em 8 de abril
de 2019, um grupo de especialistas de alto nível em inteligência artificial
apresentou diretrizes de ética para tornar a IA confiável. Ratificando os
princípios éticos trazidos na resolução europeia e também acrescentando
outros. Esse fato culminou com a publicação do primeiro rascunho das
diretrizes em dezembro de 2018, no qual mais de 500 comentários foram
recebidos através de uma consulta aberta.20 De acordo com as diretrizes a
349
Rafael Escrich · Guilherme Reis
Diversidade, não discriminação e justiça: o viés da injustiça deve ser evi-
tado, pois pode ter múltiplas implicações negativas, desde a marginaliza-
ção de grupos vulneráveis até a exacerbação de preconceitos e discrimina-
ção. Promovendo a diversidade, os sistemas de IA devem ser acessíveis a
todos, independentemente de qualquer deficiência e envolver as partes in-
teressadas relevantes ao longo de todo seu ciclo de vida.
Bem estar social e ambiental: os sistemas de IA devem beneficiar todos os
seres humanos inclusive as gerações futuras, portanto deve-se garantir que
sejam sustentáveis e que não agridam o meio ambiente, não agredindo ne-
nhum ser vivo e calculando seu impacto social para que não tenha prejuí-
zo.
Responsabilização: devem ser citados mecanismos para garantir a respon-
sabilização pelos sistemas de IA e seus resultados. Uma auditoria, que
permita a avaliação de algoritmos, dados e processos de design desempe-
nha um papel fundamental, especialmente em aplicações críticas. Além
disso, deve ser assegurada uma reparação adequada e acessível.
Todas as diretrizes têm a intenção de que os processos envolvendo IA
sejam seguros e justos tanto para o ser humano quanto para o meio ambi-
ente porém o grande desafio está no modo com que esses princípios estão
sendo interpretados, a quem ou quais situações devem ser aplicados e co-
mo devem ser implementados.21
21 BALAS, Valentina E., Kumar, Raghvendra, Srivastava, Rajshree (Eds.). Recent Trends
and Advances in Artificial Intelligence and Internet of Things, 2020. Prefácio. Dispo-
nível em: https://www.springer.com/gp/book/9783030326432. Acesso em: 12 mar.
2020.
350
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
amente. O que nos leva a novos paradigmas sobre a nossa sociedade.
Quando dizemos novos, infelizmente, se tratam de como utilizamos e
enfrentamos os velhos paradigmas com novas ferramentas em nosso futu-
ro. Como em qualquer tecnologia, a IA apresenta riscos e oportunidades.
Elas se enquadram amplamente em duas categorias: econômica e existen-
cial.
No lado econômico, quanto mais avançada a IA estiver, mais papéis se-
rá capaz de cumprir. O que para as empresas a primeira vista, parece um
excelente investimento. Embora o desembolso inicial para um sistema de
IA avançado seja alto e haja custos contínuos com manutenção, provavel-
mente custará menos que os salários, impostos e encargos financeiros de
seus funcionários humanos que estariam sendo substituídos, a um nível de
eficiência laboral indefinidamente maior do que do ser humano.
Por outro lado, o medo de que as máquinas substituam os humanos em
seus empregos tem fundamento, de acordo com a empresa de auditoria e
consultoria PwC, até 2030 robôs substituirão 38% das vagas de trabalho
nos Estados Unidos, 30% no Reino Unido e 21% no Japão. Os setores de
transporte, armazenamento, manufatura e varejo são os mais afetados, o
que gera alto índice de desemprego fazendo com que menos pessoas pos-
sam consumir os bens e produtos produzidos, culminando em uma eco-
nomia mais lenta.22
Alguns trabalhos considerados mais criativos já apresentam softwares
que são capazes de escrever textos jornalísticos mais básicos, como notí-
cias de partidas esportivas e resumos financeiros. Alguns experts na área,
crêem que a IA está ainda em seu processo mais inicial e tem um longo
caminho pela frente, outros pesquisadores acreditam que faltam apenas
22 BALAS, Valentina E., Kumar, Raghvendra, Srivastava, Rajshree (Eds.). Recent Trends
and Advances in Artificial Intelligence and Internet of Things, 2020. Prefácio. Dispo-
nível em: https://www.springer.com/gp/book/9783030326432. Acesso em: 12 mar.
2020.
351
Rafael Escrich · Guilherme Reis
alguns anos para que a IA supere a inteligência humana numa singularida-
de tecnológica citada anteriormente. Em pesquisas realizadas com especia-
listas na área, a maioria acredita que o nível de IA será 50% da capacidade
humana entre 2030 e 2040.23
Enquanto os debates seguem, conseguimos muitos benefícios com a IA,
já é possível fazer o diagnóstico de câncer com 90% de acerto em compa-
ração a 50% dos acertos dos médicos. Também é possível fazer leitura labi-
al com 93% de acerto com o software LipNet contra 52% de acerto dos
humanos.24
Nos sistemas de justiça do mundo, diversos softwares foram desenvol-
vidos para automatizar e acelerar a prestação do Estado e muitos deles já
embarcaram a inteligência artificial para processamento de dados. Exem-
plos claros, por exemplo, vem da Estônia, país europeu que é expoente na
tecnologia, no qual já há julgamentos feitos por IA para pequenas causas25.
O Brasil não está tão atrás no quesito justiça automatizada, com quase
todo o território brasileiro com processo eletrônico, já existem pelo menos
16 tribunais de justiça, que utilizam sistemas diversos com inteligência
artificial para automatização de rotinas. Porém, nenhum com capacidade
de julgamento (ainda). Mas o maior expoente para esse caminho, com
certeza é o “VICTOR”, o projeto de IA utilizado pelo Supremo Tribunal
Federal, que em seu estado atual compila (lendo e interpretando as peças
23 Tudo sobre inteligência artificial: 10 fatos que você precisa saber. Disponível em:
https://www.techtudo.com.br/google/amp/listas/2018/05/tudo-sobre-inteligencia-
artificial-10-fatos-que-voce-precisa-saber.ghtml. Acesso em: 12 mar. 2020.
24 New analysis shows over 99 percent of the women on Ashley Madison were fake.
Disponível em: https://www.extremetech.com/internet/213019-new-analysis-shows-
over-99-percent-of-the-women-on-ashley-madison-were-fake. Acesso em: 12 mar.
2020.
25 Can AI Be a Fair Judge in Court? Estonia Thinks So. Wired. Disponível em:
https://www.wired.com/story/can-ai-be-fair-judge-court-estonia-thinks-so/. Acesso
em: 12 mar. 2020.
352
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
processuais sem padrão algum no Brasil) todos os processos que têm os
mesmos assuntos para julgamentos maciços.26
Porém, é necessário ressaltar que há certas preocupações quanto a utili-
zação da IA pelo sistema estatal, principalmente em relação ao aumento da
vigilância estatal o que nos levam a refletir a que ponto estamos como so-
ciedade.
Por exemplo, está cada vez mais comum a utilização de softwares de re-
conhecimento facial para monitoramento de segurança pública. Este re-
curso é cada vez mais utilizado pelas polícias do mundo todo, inclusive no
Brasil27, para captura de eventuais foragidos da justiça. Em primeiro mo-
mento, nosso pensamento é de que sem dúvidas é um recurso interessante
para ser utilizado, reduzindo a presença física ostensiva do Estado.
Contudo, a preocupação pertinente acaba sendo sobre a que ponto po-
demos confiar de fato nesses sistemas e o quanto eles refletem em nossa
sociedade. Principalmente os sistemas que concernem em utilizar técnicas
de escaneamento facial utilizando IA para aprender e aumentar a acurácia
dos escaneamentos.
Em exemplos práticos, no ano de 2015, o Google teve que se desculpar
publicamente, depois que sua IA começou a classificar fotos de pessoas
negras como Gorilas.28 Outro exemplo que devemos trazer é que no ano de
2018 uma ONG que luta pela liberdade civil nos Estados Unidos da Amé-
26 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Judiciário ganha agilidade com uso de inteli-
gência artificial. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/judiciario-ganha-agilidade-
com-uso-de-inteligencia-artificial/. Acesso em: 12 mar. 2020. Acesso em: 12 mar.
2020.
27 Reconhecimento facial encontra foragidos no Carnaval de Salvador. Disponível em:
https://www.tecmundo.com.br/seguranca/150617-reconhecimento-facial-encontra-
foragidos-carnaval-salvador.htm. Acesso em: 12 mar. 2020.
28 Google Photos Mistakenly Labels Black People ‘Gorilas’. Disponível em:
https://bits.blogs.nytimes.com/2015/07/01/google-photos-mistakenly-labels-black-
people-gorillas/. Acesso em: 12 mar. 2020.
353
Rafael Escrich · Guilherme Reis
rica (EUA) fez um teste de reconhecimento facial com base em I.A. com
um software da Amazon (esse mesmo sistema é utilizado em várias polí-
cias no país citado). No experimento, escanearam todos os 535 membros
do Congresso Nacional dos EUA. O resultado foi que o software confun-
diu 28 desses membros com criminosos, e o mais assustador, porém não
surpreendente, é que a pesquisa resultou numa taxa de erro de 5% para
pessoas brancas e 39% para pessoas negras.29
No ano de 2016, a Microsoft colocou deliberadamente no Twitter, um
robô com inteligência artificial baseada em Machine Learning para intera-
gir com o público. Em apenas um dia o projeto foi desconectado da inter-
net. O motivo? A IA apenas interagindo com as pessoas se tornou racista e
xenofóbica.30
O que todos esses exemplos têm em comum, é o simples fato de que a
Inteligência Artificial como a desenvolvemos hoje, com aprendizado de
máquina, requer fornecimento constante de conteúdo para seu banco de
dados. E quanto mais dados para consumir, maior será o desenvolvimento
da sua personalidade, acurácia, e sua “inteligência” será moldada.
E neste sentido que vêm todas as preocupações concernentes a utiliza-
ção de I.A para controle social do estado. Em termos de história de nossa
sociedade, temos muito recentes problemas sociais sérios, como um ra-
cismo institucionalizado em nossos Estados.
Então se você alimenta de conhecimento uma Inteligência artificial
com um banco de dados contaminado com a face mais impura do ser hu-
mano, totalmente ausente de inteligência social, esta IA será tão impura e
29 Amazon sem querer mostrou por que não deveria oferecer seu reconhecimento facial
para a polícia. Disponível em: https://gizmodo.uol.com.br/amazon-reconhecimento-
facial-policia/. Acesso em: 12 mar. 2020.
30 Twitter taught Microsoft’s AI chatbot to be a racist asshole in less than a day. Dispo-
nível em: https://www.theverge.com/2016/3/24/11297050/tay-microsoft-chatbot-
racist. Acesso em: 12 mar. 2020.
354
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
ainda mais sincera quanto o ser humano. Uma vez que nós como pessoas
temos a capacidade de disfarçar ou ignorar que essas realidades são inexis-
tentes, mesmo convivendo com elas ou lutando contra elas diariamente.
Basicamente se assemelha ao que no direito no âmbito do processo pe-
nal é chamado de Teoria do Fruto da Árvore Envenenada, onde a conta-
minação (ausência de inteligência social) da árvore (prova), que nesse caso
substituímos pelo Banco de Dados, é o suficiente para contaminar todo o
fruto que é o resultado obtido, no exemplo seria a inteligência artificial.
Quanto a questão de discriminação de uma I.A, também vale uma res-
salva que mesmo que não haja esse vício estrutural (ausência de inteligên-
cia social) no banco de dados fornecido para a análise, ainda assim, é pos-
sível que ela seja discriminatória, porque é possível que os métodos e mo-
delos matemáticos utilizados de decisões automatizadas sejam por meio de
generalização desses dados para determinado perfil, bem como o perfil de
quem a programou para analisar os dados.31
A vigilância com uso da inteligência artificial, não ocorre apenas por
meio do Estado, mas também dos meios de relações sociais em que vive-
mos. Podemos afirmar que o desenvolvimento da tecnologia casou muito
com o avanço e a consolidação da sociedade da informação na qual vive-
mos. Uma vez que o tomamos decisões em caráter semi-automático do
processamento de informações diante da intensidade de fluxo nas quais
elas chegam a nós.32
Nos mercados econômicos que estamos envolvidos, a inteligência arti-
ficial é responsável por nos fornecer conteúdos de forma automatizada
através das nossas interações na internet ou dispositivos conectados a ela
31 DONEDA, Danilo; MENDES, Laura Schertel; SOUZA, Carlos Affonso de; ANDRA-
DE, Norberto Nuno Gomes de. Considerações iniciais sobre inteligência artificial,
ética e autonomia pessoal. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 23, n. 4,
p. 12, out./dez. 2018.
32 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 19.
355
Rafael Escrich · Guilherme Reis
(ex. Capturas de áudios ambientes ou geolocalização e geolocalização de
fotografias). Isso permite que anúncios sejam direcionados para determi-
nados perfis ou atividades, como troca de mensagens ou conversas. E no
ponto de vista político, aprendemos com o escândalo do Facebook e a
Cambridge Analytica33 o quanto isso pode influenciar nossa psique para
escolha de determinado político, fato grave que impactará em toda a soci-
edade e nossas democracias modernas que ainda estão se consolidando.
Os riscos existenciais da IA são menos prementes, mas potencialmente
mais graves. Um malware alimentado por inteligência artificial usado co-
mo arma cibernética pode devastar os países em um ataque direcionado,
causando problemas de longo prazo para esse país, não apenas no nível
administrativo ou de infra-estrutura, mas também para os residentes que
tentam seguir suas vidas diárias. Além disso se houver algum erro na codi-
ficação ou na sua implantação existe o risco dos criadores perderem o con-
trole do malware, que pode se voltar contra qualquer pessoa e todos, inclu-
indo eles mesmos.
Grandes empresários e pesquisadores renomados atuais como Elon
Musk, CEO da Tesla e da Space X, alerta que a IA pode um dia se tornar
uma ameaça à humanidade e ressalta a necessidade de sua regulamentação
para que armas autônomas sejam banidas, armamentos operados por sof-
twares inteligentes não sejam uma ameaça à vida global. Também o físico,
Stephen Hawking, manifestava sua preocupação com o poder destrutivo
de armas independentes e temia a substituição da força de trabalho huma-
na sem a criação de novas vagas. Bill Gates concorda com essas afirmações
e reforça a preocupação com a regulamentação para que não haja um co-
lapso futuro.
Por fim, existe um experimento mental assustador conhecido como Ba-
33 Fresh Cambridge Analytica leak ‘shows global manipulation is out of control’. Dis-
ponível em: https://www.theguardian.com/uk-news/2020/jan/04/cambridge-
analytica-data-leak-global-election-manipulation. Acesso em: 12 mar. 2020.
356
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
silisco de Roko. A ideia é que, no futuro, uma poderosa IA possa torturar a
todos que não a ajudaram de alguma forma a ser criada. Apenas o fato de
saber sobre o basilisco colocaria alguém em perigo, já que a IA passaria a
incluir tal pessoa em suas simulações. O experimento está fundamentado
em teorias complexas, mas que remetem a uma noção de que uma IA não
teria limites por tentar tornar o mundo cada vez melhor. Com as ambigui-
dades da tarefa e sem a moral humana, ela faria de tudo que considerasse
necessário, inclusive machucar pessoas. Assim os que não facilitaram a sua
existência e desenvolvimento estariam sob ameaça.34
Estes foram apenas alguns exemplos, relativamente problemáticos com
o uso da Inteligência Artificial para provocar o tensionamento no pensa-
mento da nossa sociedade atual. Inegavelmente a quantidade oposta a eles,
ou seja, de benefícios que elas nos trazem ao nosso dia-a-dia é indefinida-
mente maior, mas estas ficarão para um outro estudo.
8. Considerações finais
Embora ainda seja algo muito recente e que vem se discutindo a cada
dia, é de comum acordo que para evitar consequências econômicas e exis-
tenciais, os processos relacionados a IA sejam submetidos a regulamenta-
ções legais.
Se existirem robôs inteligentes no futuro, quais regras vão garantir que
as empresas que fabricarem esses artefatos tecnológicos não se utilizem de
fraquezas humanas para obterem vantagens competitivas, por exemplo:
robôs amantes para pessoas solitárias, robôs crianças para pessoas que
357
Rafael Escrich · Guilherme Reis
perderam os filhos, ou até mesmo, como já aconteceu, perfis falsos criados
em redes sociais de relacionamentos pela própria empresa, para aumentar
a quantidade de assinantes do serviço.
Essas vantagens competitivas obtidas à partir do uso dessa nova tecno-
logia podem ser tão desproporcionais que as empresas que não a possuí-
rem não terão nenhuma chance no mercado o que pode causar uma dimi-
nuição na competição e por consequência um monopólio tecnológico.
A inteligência artifical veio para ficar, pelo menos enquanto consegui-
mos distinguir sua artificialidade. Sem dúvidas, há muito mais benefícios
trazidos pela sua implementação do que malefícios, o propósito de trazer
esses questionamentos éticos é justamente para o tensionamento do que de
fato precisamos pensar em como estamos como sociedade e se o que esta-
mos fazendo hoje é de fato ético o suficiente para vivermos em harmonia.
O futuro é incerto e ainda não foi definido mas pode-se atuar de forma
que ele se torne menos desigual e que as tecnologias sendo criadas hoje
possam ser inclusivas e realmente transformativas na vida das pessoas e no
meio ambiente e a nossa sociedade precisa se adaptar cada vez mais aos
desafios que ele nos reserva.
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361
OS DESAFIOS DA ÉTICA E DA PRIVACIDADE
FACE AO DESENVOLVIMENTO DA
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
16
Aline Ferreira Costa Carneiro
Juliana Gomes Pinto Borges
1. Introdução
A constante e rápida transformação digital e avanço tecnológico trazem
consigo problemáticas e discussões em torno da privacidade e da ética dos
seres humanos, e questionamentos no sentido de como evoluir a sociedade
por meio do avanço tecnológico sem que a privacidade e os princípios
éticos dos integrantes desta sociedade sejam violados.
Assim, o que antes se entendia por ética e por privacidade vem passan-
do por novas discussões e novos conceitos, a fim de abranger as mudanças
trazidas pela revolução 4.0, mormente pela inteligência artificial (IA), que
é objeto do nosso estudo, uma vez que com o avanço cada vez mais rápido
da tecnologia, as estruturas sociais e as necessidades do ser humano mu-
dam na mesma proporção.
No presente trabalho, nos propomos a discutir, ainda que brevemente,
pois não se tem a pretensão de esgotar o assunto, as nuances que envolvem
a evolução história, a partir de um breve contexto, da ética, da privacidade
e da inteligência artificial.
363
Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
Ainda sem a pretensão de esgotar o tema, nos propomos a analisar o
desenvolvimento da inteligência artificial sob as novas perspectivas da
ética e da privacidade, inclusive sob o parâmetro da proteção de dados
pessoais e o quanto esta afeta o conceito atual de privacidade.
2. Conceitos fundamentais
Analisar o contexto histórico que envolve os conceitos sobre a ética, a
privacidade e a IA, ainda que brevemente, é importante para que possamos
entender os caminhos que deverão guiar o avanço da tecnologia.
200.
14 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019.
15 BENTHAM, Jeremy. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. apud MAGRA-
NI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconectividade. 2.
ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p. 139-140.
16 RAWLS, John. A theory of justice. Harvard. 1971. apud MAGRANI, Eduardo. Entre
dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconectividade. 2. ed. Porto Alegre:
369
Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
vo é o que justifica a teoria do utilitarismo, no entanto, o direito individual
não é levado em consideração ou não é considerado legítimo ao julgar se
um ato é moral ou não, o que pode gerar injustiças. Em suas palavras:
[...] segundo Rawls, a teoria de justificação do utilitarismo está centrada na
maximização do bem coletivo. Apesar de, a princípio, parecer positivo,
Rawls atenta para o fato de haver o preterimento do direito que cada indi-
víduo possui em face do direito dito social, gerando situações injustas na
medida em que a teoria não leva em consideração o modo de distribuição
do bem geral entre cada cidadão individualmente compreendido.
[...] Isto é, de acordo com o autor, tal teoria caracteriza a maximização da
felicidade como aquilo que é moralmente bom sem se atentar para o que é
justo e isso, no fim das contas, tem um impacto direto negativo na socie-
dade.17
Ainda, Eduardo Magrani adverte que, ao considerar um ato moral vi-
sando apenas os seus resultados, “o utilitarismo clássico parece exigir que
os agentes calculem todas as consequências que seus atos terão no futuro.
Entretanto, isso é, via de regra, impossível, sobretudo na área tecnológi-
ca”18.
Em contrapartida, a teoria deontológica está centrada na ação do agen-
te, independentemente de suas consequências. Esta teoria critica o utilita-
rismo clássico uma vez que “escolhas consequencialistas menosprezam
direitos individuais e, desta forma, mensuram quais vidas ou ‘felicidades’
valem mais – o que não deve ser feito, visto que cada indivíduo deve ser
considerado como um fim em si mesmo”19.
24 LEE, Kai Fu. Inteligência Artificial: Como os robôs estão mudando o mundo, a forma
como amamos, nos relacionamos, trabalhamos e vivemos. Tradução de Marcelo Bar-
bão. Rio de Janeiro: Globo, 2019, p. 29.
372
Os desafios da ética e da privacidade face ao desenvolvimento da IA
dades de matéria prima para alimentar as redes neurais: grande quantida-
de de poder computacional e geração de dados. Os dados passaram a
“treinar” programas, a fim de que estes reconhecessem padrões e o poder
computacional, por sua vez, fez com que os programas analisassem tais
padrões em altíssima velocidade.
Dentro desse contexto, a IA é retirada de seu status invernal, onde não
se vislumbrava em sua essência uma contribuição relevante para a socie-
dade, e passa a resolver uma série de problemas do dia a dia dos indivíduos
em suas relações interpessoais, consumeristas e profissionais, tomando,
inclusive, decisões em nome das pessoas.
Neste sentido, Erik Nybø aduz:
[...] Ao longo do livro tratamos de diversos casos em que algoritmos passa-
ram a ser utilizados no dia-a-dia das pessoas, empresas e governos. A pri-
meira razão é o reconhecimento de que o humano tem uma capacidade
limitada de processamento de dados quando comparado com algoritmos
que alimentam as máquinas. Já devemos trabalhar em uma lógica de apro-
veitamento das melhores competências de cada um, delegamos às máqui-
nas funções em que elas aparentemente são melhores, e guardamos conos-
co aquelas funções que ainda não podem ser resolvidas pelas primeiras.25
Hoje, é possível identificar inúmeros programas que, por meio de algo-
ritmos, auxiliam a sociedade em atividades como tradução de documentos,
levantamento de dados em alta escala contribuindo com identificações
comportamentais de instituições e até pessoas, bem como tomada de deci-
sões, reconhecimento de fraudes, dentre inúmeras outras possibilidades.
Com isso, vimos que estamos vivendo a quarta revolução industrial
protagonizada pela tecnologia, massificação de dados e a influência da
inteligência artificial. A tendência é que cada vez mais as atividades inte-
377
Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
9) Responsibility: Designers and builders of advanced AI systems are stake-
holders in the moral implications of their use, misuse, and actions, with a
responsibility and opportunity to shape those implications.
10) Value Alignment: Highly autonomous AI systems should be designed so
that their goals and behaviors can be assured to align with human values
throughout their operation.
11) Human Values: AI systems should be designed and operated so as to be
compatible with ideals of human dignity, rights, freedoms, and cultural di-
versity.
12) Personal Privacy: People should have the right to access, manage and
control the data they generate, given AI systems’ power to analyze and uti-
lize that data.
13) Liberty and Privacy: The application of AI to personal data must not
unreasonably curtail people’s real or perceived liberty.
14) Shared Benefit: AI technologies should benefit and empower as many
people as possible.
15) Shared Prosperity: The economic prosperity created by AI should be
shared broadly, to benefit all of humanity.
16) Human Control: Humans should choose how and whether to delegate
decisions to AI systems, to accomplish human-chosen objectives.
17) Non-subversion: The power conferred by control of highly advanced AI
systems should respect and improve, rather than subvert, the social and civic
processes on which the health of society depends.
18) AI Arms Race: An arms race in lethal autonomous weapons should be
avoided.
Longer-term Issues
19) Capability Caution: There being no consensus, we should avoid strong
assumptions regarding upper limits on future AI capabilities.
20) Importance: Advanced AI could represent a profound change in the his-
378
Os desafios da ética e da privacidade face ao desenvolvimento da IA
tory of life on Earth, and should be planned for and managed with commen-
surate care and resources.
21) Risks: Risks posed by AI systems, especially catastrophic or existential
risks, must be subject to planning and mitigation efforts commensurate with
their expected impact.
22) Recursive Self-Improvement: AI systems designed to recursively self-
improve or self-replicate in a manner that could lead to rapidly increasing
quality or quantity must be subject to strict safety and control measures.
23) Common Good: Superintelligence should only be developed in the ser-
vice of widely shared ethical ideals, and for the benefit of all humanity ra-
ther than one state or organization.29
5. Considerações finais
Como ficou demonstrado, enquanto a inteligência artificial se desen-
volve em largos e velozes passos em nossa sociedade cada vez mais digital,
sua regulação e os limites de seu desenvolvimento caminham a passos
lentos e controversos.
E é exatamente em tal controvérsia e lentidão que os princípios éticos e
de privacidade exercerão fundamental influência para a construção tanto
comportamental em relação à IA, quanto de questões regulatórias sem,
efetivamente, impedir o desenvolvimento tecnológico e o avanço expo-
nencial da sociedade em todos os sentidos.
Todo o cenário da sociedade 4.0 demonstra um cunho desafiador que
os legisladores deverão, com muita singularidade e expertise, estruturar
normas e regulamentos em torno da IA, com uma visão humanitária e
evoluída.
Referências
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Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
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A ARTE E O DIREITO DE IMAGEM NA
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: REFLEXÕES
SOBRE TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E
COMUNICAÇÃO E O ‘CASO RICHARD
PRINCE’
17
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Pietra Daneluzzi Quinelato
Júlia Gessner Strack
1. Introdução
A presença da Internet e das novas tecnologias nas relações humanas
modificou sobremaneira o modo pelo qual se realiza qualquer processo de
elaboração artística. Nesse contexto, todo o esforço de formação da cultura
hodierna passa, de certa forma, pelo volume de criações e pelo acesso que
os indivíduos obtêm às inúmeras produções difundidas – o que se avolu-
ma pelas facilidades propiciadas pela rede.
O fenômeno globalizatório também exerce papel destacado nesse cam-
po, pois promove a ruptura de fronteiras físicas e garante o acesso dos
indivíduos a conteúdos produzidos em qualquer localidade. Entretanto, da
mesma forma que se observa uma aproximação inter-relacional, se ampli-
am as possibilidades de eclosão de eventos danosos e de violações a direi-
385
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
tos de imagem e a direitos autorais.
Some-se a isso o papel das mídias sociais e ter-se-á uma intrincada rela-
ção jurídica entre direitos de imagem, termos de uso, fair use, limites dos
direitos autorais e a necessidade de tutelar complexas relações jurídicas
para evitar prejuízos ou afrontas a direitos. Este é exatamente o contexto
jurídico que foi atingido pelas ações do artista norte-americano Richard
Prince, que se valeu do argumento de que suas criações artísticas eram
transformativas – embora dependentes de produções de terceiros (princi-
palmente fotografias) –, no intuito de concretizar uma empreitada que se
iniciou no ano de 2008 com o lançamento de trabalhos que reproduziam
vasto acervo de imagens feitas pelo fotógrafo Patrick Cariou.
À época, iniciou-se uma longa disputa judicial em torno dos direitos
autorais e dos limites do fair use no direito norte-americano. E, em que
pese um acordo ter sido firmado entre os dois no ano de 2014, Prince não
cessou suas atividades, tendo se apropriado de imagens postadas por usuá-
rios da rede social Instagram para, acrescentando sutis detalhes às capturas
de tela que realizava, vendê-las em canvas expostos na Gagosian Gallery,
em Nova York, por vultosas quantias.
O modus operandi do artista explorava fotografias postadas por usuá-
rios da mencionada rede social, que eram utilizadas em sua integralidade
para a composição da nova obra, sempre sob o argumento de que o acrés-
cimo de detalhes como comentários, número de likes e outros itens seme-
lhantes representava uma inovação criativa e transformativa que afastaria
qualquer grau de violação a direitos.
Em face de tantos aspectos controversos, surge grande polêmica sobre
quais seriam os limites da liberdade artística, da exploração do direito de
imagem e dos riscos à violação de direitos no intuito de se produzir arte1
1 Em relação ao termo “arte”, Lisiane Ody explica que: “(...) mesmo sem contar com
conceito jurídico expresso, a arte é objeto de normas constitucionais brasileiras, que
estabelecem (i) a liberdade criativa, (ii) a proteção dos direitos do criador, bem como
386
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
na sociedade da informação. A hipótese de pesquisa parte da necessidade
de equacionamento dos direitos autorais e de imagem a partir do filtro
hermenêutico, que a filosofia pode oferecer para trazer maior luz à pro-
blemática.
Assim, o presente ensaio procurará, em breves linhas, apontar direções
para a conciliação dos aspectos indicados. Ao final, serão apresentadas as
considerações finais, das quais se procurará extrair uma compreensão mais
assertiva quanto à problemática explicitada.
(iii) dos interesses nacionais, na hipótese de a obra se configurar como bem cultural,
(iv) definindo a quais entes incumbe proteger bens de valor artístico, e (v) determi-
nando imunidade tributária, em se tratando de obras musicais ou literomusicais de
autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros”. A auto-
ra concluí que se trata de um conceito jurídico relativo, na medida em que o termo
pode ter diferentes significados de acordo com a norma em relação a qual é conside-
rado. (ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e Arte: o direito da arte brasileiro siste-
matizado a partir do paradigma alemão. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 39).
387
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
extensão e a forma precisa de proteção para a dignidade individual
diferem acentuadamente entre os principais sistemas de civil law e de
common law. Inicialmente, a maioria dos sistemas jurídicos costumava dar
prioridade a reclamações por danos físicos e, em épocas anteriores, essas
lesões eram a principal preocupação da lei. À medida que as sociedades e
as condições de vida modernas mudam, os queixosos inevitavelmente
reivindicam reparação por outros tipos de danos. Interesses em reputação
ou honra pessoal, privacidade pessoal e interesses em liberdade do
sofrimento social tornam-se cada vez mais importantes. Normalmente, as
violações da personalidade individual são de natureza não pecuniária, não
apenas porque não podem ser avaliadas em termos monetários com
precisão matemática, mas também porque são geralmente de valor
inerentemente não econômico.2
É de se destacar, nesse campo, que os interesses comerciais são muitas
vezes tangenciados por questões relacionadas à dignidade, afrontando-a
em prol de alto potencial lucrativo associado à espetacularização de certos
tempos e espaços nos quais se tece e entretece tudo o que está relacionado
ao cotidiano.
A liberdade criativa e de espírito segue uma tradição de expressão do
pensamento que, modernamente, tem suas origens nas obras de Michel de
3 MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo:
Cia. das Letras, 2010, passim.
4 Sobre isso, tem-se o comentário de Han: “O entretenimento se eleva a um novo
paradigma, a uma nova fórmula de mundo e de ser. Para ser, para pertencer ao mun-
do, é preciso ser algo que entretém. Apenas aquilo que entretém é real ou efetivo. Não
é mais relevante a distinção entre mundo fictício e mundo real (...).” (HAN, Byung-
Chul. Bom entretenimento. Tradução de Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2019, p.
206.)
5 Para uma compreensão mais detalhada do conhecimento sob a visão do “perspecti-
vismo”, confira-se: NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução de Paulo
César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.
6 ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. Tradução de Celso Nogueira. São
Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 8.
7 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade
desorientada. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia. das Letras, 2011, p.
102. E os autores complementam: “O convívio com a arte se assemelha cada vez mais
a uma atividade turística, os filmes que alcançam os maiores sucessos visam um pú-
blico adolescente, os programas de televisão são concebidos para o espetáculo, a fim
389
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
As produções artísticas, até poucas décadas atrás, se restringiam a pou-
cas classes sociais, o que gerava, segundo Pierre Bourdieu, definições e
manifestações de pertencimento a determinada classe – e segregação em
relação a outras.8 Contudo, este panorama mudou com o advento da mo-
dernidade líquida, dando ensejo a novos movimentos e novas realizações
culturais, usualmente voltadas à obtenção de grande impacto e altos retor-
nos, com obsolescência quase instantânea.
Zygmunt Bauman explicita suas considerações sobre esse fenômeno:
Em suma, a cultura da modernidade líquida não tem um “populacho” a
ser esclarecido e dignificado; tem, contudo, clientes a seduzir. A sedução,
em contraste com o esclarecimento e a dignificação, não é uma tarefa úni-
ca, que um dia se completa, mas uma atividade com o fim em aberto. A
função da cultura não é satisfazer necessidades existentes, mas criar outras
– ao mesmo tempo que mantém as necessidades já entranhadas ou per-
manentemente irrealizadas. Sua principal preocupação é evitar o senti-
mento de satisfação em seus antigos objetos e encargos, agora transforma-
dos em clientes; e, de maneira bem particular, neutralizar sua satisfação to-
tal, completa e definitiva, o que não deixaria espaço para outras necessida-
des e fantasias novas, ainda inalcançadas.9
A partir disso,
(...) se a questão cultural tomou tal relevo é também porque o hipercapita-
lismo não cessa de criar e difundir um novo éthos de consumo que põe a
perder o ideal de formação do homem e do cidadão e que poderia minar as
virtudes necessárias à democracia, ao espírito de responsabilidade, ao sen-
so cívico. (...) Nestes tempos, multiplicam-se os alertas mais ou menos
14 MICELI, Vicenzo. I diritti della personalità: la personalità nella Filosofia del Diritto.
Milão: Società Editrice, 1922, p. 382-383, apud AMARANTE, Aparecida Imaculada.
Responsabilidade civil por dano à honra. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 118.
15 DE CUPIS, Adriano. I diritti della personalità: trattato di diritto civile e commerciale.
Milão: Giuffrè, 1973, v. 4, t. 1, p. 63 et seq.
393
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
fio inexorável à formulação de respostas jurídicas a danos que extrapolem
a normalidade e desencadeiem ofensas a terceiros, a despeito da superex-
posição e do hiperconsumo.
Segundo Nelson Rosenvald,
A violação de contratos e a prática de ilícitos extracontratuais são cami-
nhos bem trilhados na doutrina da civil law e common law, enquanto o
território dos pagamentos indevidos e seus congêneres foi sempre mal
mapeado. Porém, precisamente pelo fato de a restituição ser uma resposta
multicausal, observamos que os mapas obrigacionais falharam ao isolar o
enriquecimento injusto, pois ainda está aberto o desfio de conhecer quais
são as razões - sejam elas poucas ou variadas – que não sejam contratos ou
ilícitos, mas que todavia propiciem direito à restituição pelo enriqueci-
mento obtido às expensas do demandante.16
Exatamente por ostentar natureza ‘aberta’, o common law se afasta de
cláusulas gerais para a tutela de ilícitos extracontratuais, o que implica uma
revisitação do instituto da responsabilidade civil para a delimitação de
contornos baseados em fatos jurídicos (event-based classification) a partir
de um novo modelo imputacional relacionado à identificação da causali-
dade.17 Manual Carneiro da Frada, de forma categórica, sugere o delinea-
mento de presunções causais:
Outra forma de contornar as dificuldades de prova da causalidade é o es-
20 Em relação à liberdade artística, cumpre pontuar que esta tem significado e amplitu-
de diversos das liberdades de expressão e de informação: a primeira diz respeito à
participação em processo de criação artística; a segunda à livre manifestação do pen-
samento próprio e da exposição de opinião; e a terceira compreende o direito de in-
formar e de ser informado, estando diretamente associada à veiculação de fatos con-
temporâneos relevantes à sociedade. (ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e Arte: o
direito da arte brasileiro sistematizado a partir do paradigma alemão. São Paulo:
Marcial Pons, 2018, p. 63-64) Tais liberdades podem aparecer intrinsicamente co-
nectadas através de direitos que se situam nestes três âmbitos distintos, cenário cada
vez mais comum na sociedade da informação – como é o caso, por exemplo, do di-
reito de escrever biografia.
21 Sobre o tema, consulte-se: VAIDHYANATHAN, Siva. Intellectual property: a very
short introduction. Nova York/Oxford: Oxford University Press, 2017, Cap. 2.
396
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
Gagosian de Nova York. O caso, que ficou conhecido na jurisprudência
estadunidense como Patrick Cariou v. Richard Prince, et al22, inaugurou
sonoras discussões sobre os limites da apropriação indevida de imagens de
terceiros, uma vez que Prince foi acusado de se utilizar deliberadamente de
35 fotografias feitas por Cariou. Várias das peças mal foram editadas por
Prince, que também fez 28 pinturas que incluíam imagens do livro Yes
Rasta, de Cariou, que contém uma série de fotografias de rastafáris que
Cariou havia tirado na Jamaica23 – as quais foram alteradas por Prince
mediante pintura de objetos, mãos grandes e torsos masculinos, por
exemplo24:
Fonte: https://cpyrightvisualarts.files.wordpress.com/2011/12/richard-prince2.jpg
22 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Court of Appeals for the Second
Circuit. Patrick Cariou v. Richard Prince, et al. Docket No. 11-1197-cv, julg. 25 abr.
2013. Disponível em: https://bit.ly/2Uk6MUB. Acesso em: 25 mar. 2020.
23 MAUK, Ben. Who owns this image? The New Yorker, 12 fev. 2014. Disponível em:
https://bit.ly/2QOYxxU. Acesso em: 25 mar. 2020.
24 ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e Arte: o direito da arte brasileiro sistematizado
a partir do paradigma alemão. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 133.
25 Figura típica do direito norte-americano, o fair use é assim conceituado por Siva
397
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
que, segundo Basso, comprova-se pelo chamado three-step-test (regra dos
três passos), introduzido na Convenção de Berna, em 1967, atualmente
previsto no art. 9.2 da mesma26 (revisão de Paris) e no art. 13 do Acordo
TRIPs27 da Organização Mundial do Comércio. Leciona Basso:
À luz da Doutrina da Interpretação Consistente, o Teste dos Três Passos é a
diretriz que deve ser empregada pelo operador/intérprete/aplicador da
LDA para a definição do escopo das limitações e sua aplicação, no caso
concreto, a fim de não se causar um prejuízo injustificado aos interesses
legítimos dos autores e empresas cujas atuações sejam intimamente de-
Vaidhyanathan: “Fair use evolved within American case law throughout the nine-
teenth and twentieth centuries, and was finally codified in the Copyright Act of 1976.
The law specifically allows users to make copies of, quote from, and refer to copyrighted
works for the following purposes: in connection with criticism or comment on the work;
in the course of news reporting; for teaching or classroom use; or as part of scholarship
or research.” (VAIDHYANATHAN, Siva. Copyrights and copywrongs: the rise of in-
tellectual property and how it threatens creativity. Nova York: NYU Press, 2001, p.
27.) Quanto ao instituto, critica Lessig que, “in theory, fair use means you need no
permission. The theory therefore supports free culture and insulates against a permis-
sion culture. But in practice, fair use functions very differently. The fuzzy lines of the
law, tied to the extraordinary liability if lines are crossed, means that the effective fair
use for many types of creators is slight. The law has the right aim; practice has defeated
the aim. This practice shows just how far the law has come from its eighteenth-century
roots. The law was born as a shield to protect publishers’ profits against the unfair
competition of a pirate. It has matured into a sword that interferes with any use, trans-
formative or not” (LESSIG, Lawrence. Free culture: how big media uses technology
and the law to lock down culture and control creativity. Nova York: Penguin, 2004,
p. 111).
26 Art. 9.2 da Convenção de Berna: “2) Às legislações dos países da União reserva-se a
faculdade de permitir a reprodução das referidas obras em certos casos especiais,
contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause preju-
ízo injustificado aos interesses legítimos do autor”
27 Art. 13 do TRIPs: “Os Membros restringirão as limitações ou exceções aos direitos
exclusivos a determinados casos especiais, que não conflitem com a exploração nor-
mal da obra e não prejudiquem injustificavelmente os interesses legítimos do titular
do direito”.
398
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
pendentes dos direitos autorais e, por último, mas não menos importante,
para não se infringir obrigações internacionais assumidas pelo Brasil cujo
desrespeito pode sujeitá-lo a retaliações comerciais no âmbito do Sistema
da Organização Mundial do Comércio.28
Diante disso, Prince precisaria justificar que a exploração das obras de
terceiros teria ocorrido visando (i) a uma situação excepcional; (ii) sem
interferência em sua exploração comercial e (iii) sem gerar prejuízo injus-
tificado aos interesses legítimos do titular do direito. Porém, não foi este o
entendimento adotado pela juíza distrital Deborah Batts que, em 18 de
março de 2011, decidiu contra Prince, Gagosian Gallery, Inc. e Lawrence
Gagosian. Considerou-se que o uso de Prince não se enquadraria no con-
ceito de fair use e concedeu-se o pleito indenizatório formulado por Cari-
ou quanto a todas as imagens utilizadas.
A decisão citou muitas jurisprudências, incluindo o caso Rogers v. Ko-
ons, de 1992.29 Em 25 de abril de 2013, porém, o Tribunal de Apelações do
Segundo Circuito dos EUA revogou a decisão de primeiro grau; prevaleceu
o entendimento de que o uso das fotografias por Prince, em 25 obras, era
transformador e, portanto, justo (visualizou-se o fair use). Cinco obras
menos transformadoras foram enviadas de volta ao tribunal inferior para
revisão. O caso foi resolvido por um acordo, em 2014, e a solução definiti-
va do conceito jurisprudencial de fair use no caso Prince permaneceu em
aberto.30-31
Fonte: https://gagosian.com/exhibitions/2014/richard-prince-new-portraits/
por ocasião da publicação da decisão: “The judges at the Second Circuit court decided
that the case would hinge on whether a reasonable observer would find Prince’s works
to have been transformative, and thus protected under fair use law. The question re-
mains, who is a ‘reasonable observer?'”
31 No direito brasileiro, a resolução do caso dependeria da análise dos seguintes fatores:
“(i) se as obras de Prince seriam imitações das imagens de Cariou ou se constituiriam
em obra derivada e/ou nova; (ii) se o uso das imagens de Cariou por Prince configu-
rariam hipótese de citação ou de obra incidental; (iii) se a utilização das fotos de Ca-
riou por Prince as prejudica; (iv) e se essa utilização ofende a reputação ou honra do
autor nessa condição”. (ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e Arte: o direito da arte
brasileiro sistematizado a partir do paradigma alemão. São Paulo: Marcial Pons,
2018, p. 134).
400
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
A situação gerou verdadeiro escarcéu, uma vez que as pessoas exibidas
nas telas jamais consentiram com o uso de suas imagens e de suas fotogra-
fias; muitas sequer souberam do ocorrido até que o episódio fosse ampla-
mente propagado na grande mídia – e, novamente, surgiu forte debate em
torno do conceito de arte na pós-modernidade e sobre as implicações jurí-
dicas disso32. O fato é que o alvoroço gerado atraiu atenções e Prince obte-
ve lucros altíssimos com suas peças em vendas realizadas em exposições
ulteriores, como a Frieze Art Fair, em Nova York, no ano de 2015 (em que
versões ampliadas de seu feed no Instagram chegaram a ser vendidas por
até cem mil dólares)!33-34
Várias ações judiciais foram movidas contra o artista, incluindo uma do
fotógrafo Donald Graham, cuja foto (intitulada ‘Rastafarian Smoking a
Joint’) foi apresentada por meio de uma impressão da conta do Instagram
de outro usuário. O caso ficou conhecido como Donald Graham v. Richard
Prince, et al, e as defesas foram fortemente baseadas no julgamento do caso
Cariou.35 Diante da repercussão do fato, as próprias vítimas da atuação de
Prince decidiram tomar iniciativas próprias, como a proprietária do perfil
Suicide Girls (@suicidegirls), Selena Mooney (conhecida pelo pseudônimo
“Missy Suicide”), que decidiu vender as mesmas imagens de Richard Prin-
ce por apenas 90 dólares cada e reverter toda a renda para uma instituição
de caridade.36
32 RIDLESS, Robin. For postmodernists like Richard Prince, art is theft. The Federalist,
9 fev. 2017. Disponível em: https://bit.ly/2Jho9iI. Acesso em: 26 mar. 2020.
33 MUNRO, Cait. Richard Prince steals more Instagram photographs and sells them for
$100,000. Artnet News, 26 maio 2015. Disponível em: https://bit.ly/2xmv33s. Acesso
em: 26 mar. 2020.
34 FRID, Natasha. Richard Prince sells 'stolen' Instagram photos for $100,000. Milk.xyz,
27 maio 2015. Disponível em: https://bit.ly/3dy5sVJ. Acesso em: 26 mar. 2020.
35 NEWHOFF, David. Graham v. Prince or Art v. Fair Use. The Illusion of More: Dis-
secting the Digital Utopia, 17 out. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3ajQbGh. Aces-
so em: 26 mar. 2020.
36 NEEDHAM, Alex. Richard Prince v Suicide Girls in an Instagram price war. The
401
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
Depreende-se que, com seu trabalho, Prince atingiu não apenas o direi-
to da imagem dos indivíduos fotografados. Os direitos, no caso, são perso-
nalíssimos, mas, também o são os direitos autorais dos autores das obras37.
Transpondo-se o caso ao cenário nacional, seria necessária a análise de
ambos os institutos e, apesar das particularidades do ordenamento jurídico
brasileiro38, o caso provavelmente teria o mesmo desfecho.
A tutela de direito de imagem, além de estar consagrado pela Constitui-
ção da República de 1988 e pelo Código Civil de 2002 como um direito de
personalidade autônomo, é proveniente principalmente da jurisprudência.
Em 1922, Otávio Kelly impediu a divulgação de imagem sem consenti-
mento de seu titular39; em 1949, a Sexta Câmara Civil do Tribunal de Justi-
ça do Estado de São Paulo afirmou que o retrato emana da pessoa, sendo
que ninguém pode ser fotografado contra a própria vontade. No mesmo
sentido, foi o entendimento no Superior Tribunal de Justiça no ano de
43 LIEBENAU, Diana. What intellectual property can learn from informational privacy,
and vice versa. Harvard Journal of Law & Technology, Cambridge, v. 30, n. 1, p. 285-
307, set./dez. 2016, p. 295, tradução livre. No original: “First, a property right can be
consented away, and IP [intellectual property] and privacy face similar consent di-
lemmas. On social media, users routinely grant a worldwide, non-exclusive, royalty-
free license—with the right to sub-license—to their copyrighted content by accepting
the Terms of Service agreements. Privacy policies that govern if and how a web-site or
technology can gather, use, or disclose a user’s data are equally diverse, are often far-
reaching, and are thus hard for users to discern and calculate costs and benefits holisti-
cally. The legal question, of course, is to decide whether these licenses are enforceable.
The more a legal analysis is descriptively informed by behavioral research into user ex-
pectations and cognitive biases, the less inclined it will be to enforce these terms. How-
ever, such an analysis will ultimately fall short if it is normatively driven by an ante-
cedent control theory with individualist, liberal notions of choice and consent. The
control theory struggles to explain why people expressly value privacy highly, but easily
and consciously give it up.”
404
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
Akash Mishra destaca a existência de uma ‘Filosofia da Propriedade In-
telectual’, que percorre pensamentos utilitaristas e não utilitaristas na bus-
ca por uma equação que consiga responder o que (não) é passível de pro-
teção autoral na Internet.44 Não obstante, pode-se afirmar que a problemá-
tica é mais ampla pela própria dificuldade que se tem quanto ao controle (e
à eventual limitação) de acesso aos dados em plataformas digitais.45 Essa
‘digitalização’ é analisada por van Dijk:
Digitalização significa que cada item pode ser convertido em bytes separa-
dos, consistindo em cadeias de unidades e zeros (chamados bits). Isso se
aplica a imagens, sons, textos e dados. Eles podem ser produzidos e con-
sumidos em peças separadas e combinados de todas as maneiras imaginá-
veis. A partir de agora, cada item poderá ser apresentado em telas e acom-
panhado por som. Todos os itens podem ser armazenados em suportes de
dados digitais e recuperados deles em quantidades praticamente ilimitadas
e em velocidade praticamente ilimitada. Nas frases anteriores, a tecnologia
digital e o impacto cultural já foram vinculados.46
4. Considerações finais
Pelo exposto, ressalta-se que o papel da arte na sociedade da informa-
ção se traduz em implicações não apenas jurídicas, pois extrapola frontei-
ras nacionais em razão da ampla utilização da Internet. Há que se conside-
rar, nesse contexto, reflexões éticas que tangenciam aspectos filosóficos
concernentes à propriedade intelectual e aos impactos sociológicos do
acesso praticamente ilimitado a dados, propiciado pelas mídias digitais.
O ‘caso Richard Prince’, que, na verdade, se manifesta na reiteração de
condutas de um artista norte-americano que vislumbrou oportunidade
into separate bytes consisting of strings of ones and zeros (called bits). This applies to
images, sounds, texts and data. They can be produced and consumed in separate pieces
and combined in every manner imaginable. From now on, every item can be presented
on screens and accompanied by sound. All items can be stored on digital data carriers
and retrieved from them in virtually unlimited amounts and at virtually unlimited
speed. In the preceding sentences, digital technology and cultural impact have already
been linked.”
47 Sobre o tema, confira-se, por todos: PROWDA, Judith B. Visual arts and the law.
Londres: Lund Humphries, 2013.
406
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
única de angariar fama e lucrar a partir da escandalosa utilização de ima-
gens de terceiros, se valendo de brechas em termos de uso e em alterações
pontuais que lhe garantiram o pretenso álibi do fair use (uso justo), revela
a imperiosidade de que a ética norteie o modo de agir do indivíduo na
Internet – inclusive do leigo.
A preocupação com uma padronização e diferenciação da cultura, sua
fragmentação, os influxos de diferentes fontes culturais sobre outras, a
aceleração da cultura e suas novas formas de manifestação propiciam uma
grande nebulosidade sobre o próprio conceito de arte. Isso, em uma socie-
dade espetacularizada e marcada pela disponibilidade informacional em
abundância, ressignifica os limites da criatividade.
Se a legislação é insuficiente para atender às contingências advindas do
gap entre inovação e regulação, que é preenchido pelo amálgama de uma
criatividade de impacto, efêmera, e marcada por polêmicas e valorização,
mais do que nunca se passará a exigir de cada cidadão o verdadeiro bom
senso, o equilíbrio e a adesão a boas práticas e a regras de conduta meta-
normativas para que se possa atingir o desejado locus da paz social associ-
ada à segurança jurídica. O atuar ético é o telos de uma estrutura compor-
tamental na sociedade da informação.
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410
DOMÍNIO PÚBLICO E SUA RELAÇÃO COM
OS DIREITOS AUTORAIS E DIREITOS
CONEXOS
18
Ana Márcia Rodrigues Moroni
Viviane Furtado Migliavacca
412
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão re-
gulador e outros aspectos institucionais, nos termos da Emenda Constitu-
cional 8 de 1995, sendo conhecida como ‘Lei Geral de Telecomunicações’;
6. Decreto-Lei nº. 980, de 20 de Outubro de 1969: Dispõe sobre a cobrança
de direitos autorais nas exibições cinematográficas;
7. Lei nº. 2.415, de 9 de Fevereiro de 1955: Dispõe sobre a outorga da li-
cença autoral no rádio e televisão;
8. Decreto nº. 4.857, de 9 de novembro de 1939: Registro da propriedade
literária, científica e artística;
9. Decreto nº. 76.906, de 24 de dezembro de 1975: Promulga a Convenção
para a proteção de produtores de fonogramas contra a reprodução não au-
torizada de seus fonogramas, concluída em Genebra, em 29.10.1971;
10. Decreto nº. 75.541 – de 31 de março de 1975: Promulga a Convenção
que instituiu a Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI;
11. Decreto nº. 57.125, de 19 de outubro de 1965: Promulga a Convenção
Internacional para proteção aos artistas intérpretes ou executantes, aos
produtores de fonogramas e aos organismos de radiodifusão, assinada em
Roma, em 26.10.1961;
12. Decreto nº. 2.894, de 22 de dezembro de 1998: Regulamenta a emissão
e o fornecimento de selo ou sinal de identificação dos fonogramas e das
obras audiovisuais, previstos no art. 113 da Lei nº. 9.610, de 19 de fevereiro
de 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais
e dá outras providências;
13. Decreto s/ nº. de 13 de março de 2001: Institui Comitê Interministerial
de Combate à Pirataria.
Após a demonstração da fundamentação legal da matéria, tanto nacio-
nalmente, quanto internacionalmente, é importante destacar onde e como
a música entra dentro desse rol de propriedades protegidas.
413
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
2. A obra musical no direito autoral
São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por
qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível,
conhecido ou que se invente no futuro (art. 7º, da Lei 9.610/98). Para que
uma obra seja protegida pela lei autoral, necessário se faz que a mesma
pertença ao domínio das artes, das letras ou das ciências, que tenha origi-
nalidade e que, principalmente, não esteja no domínio público.
O fundamental destes requisitos é a originalidade, a qual não se con-
funde com novidade, pois a primeira é entendida como forma de exteriori-
zação da ideia, sempre levando em consideração as características próprias
à modalidade da obra intelectual em questão e não a ideia em si. Já a novi-
dade é requisito principal para a obtenção de privilégios no campo da pro-
priedade industrial.
Podemos distinguir a originalidade entre absoluta ou relativa. No pri-
meiro caso, quando a criação não foi derivada de outra obra intelectual e
no segundo, quando a derivação efetivamente ocorreu, tais como sua tra-
dução, adaptação, ou transformação por qualquer forma. Mesmo assim,
tanto a obra original absoluta como a relativa dão aos seus autores direitos
autorais respectivos a cada obra.
Chegamos, portanto, à conclusão de que a obra musical que pertença
ao domínio das artes que tenha originalidade e que não tenha caído no
domínio público é uma obra intelectual, produto do espírito humano,
prontamente protegida pelos Tratados internacionais sobre Direito Auto-
ral e, especificamente, pela Lei n.º 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais).
Surge, assim, a indagação do que seria, precisamente, obra musical: Es-
ta é conceituada como a síntese da melodia, da harmonia e do ritmo. Ao
citar o autor Henry Desbois1, o autor aqui utilizado, José Carlos Costa
1 COSTA NETTO, José Carlos. Os direitos de autor e os que lhes são conexos na obra
musical. 1985. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universi-
dade de São Paulo, São Paulo, 1985. p. 41.
414
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
Netto, menciona que melodia seria a emissão de um número indetermina-
do de sons sucessivos, enquanto a harmonia forneceria a roupagem da
melodia, como resultado da emissão simultânea de vários sons – acordes –
e, por fim, o ritmo seria uma sensação determinada por diferentes sons
consecutivos ou diversas repetições periódicas de um mesmo som, mar-
cando o andamento da melodia.
O elemento fundamental de uma obra musical, a originalidade, segun-
do o citado autor estaria na harmonia, trecho o qual explica com detalhes:
Assim, inegável que, dos três elementos constitutivos da obra musical, a
melodia é a essencial. É essa, justamente, a característica mais peculiar em
relação ao processo de criação da obra musical em relação às demais obras
intelectuais: mais acentuadamente na criação melódica incide a sensibili-
dade, a inspiração, e não a reflexão ou comparação. Assim, não estaria afe-
ta à melodia à inteligência e sim à sensibilidade.
A título de exemplo, poder-se-ia citar duas composições famosas na
música popular brasileira: “Esse teu olhar”, de Tom Jobim e “Promessas”
do mesmo renomado compositor. Apesar de idênticas em sua harmonia
ocorre perfeita distinção a nível melódico, o que as caracteriza como obras
originárias autônomas, cada qual absolutamente original.
Além dos três elementos fundamentais da obra musical, podem vir a
integrá-la, também, o título e a letra.
Art. 10. A proteção à obra intelectual abrange o seu título, se original e in-
confundível com o de obra do mesmo gênero, divulgada anteriormente
por outro autor. (Lei n.º 9.610/98).
Quando a obra é formada apenas pela melodia, harmonia e ritmo, de-
nominamos música; quando, além destes três elementos, existem o título e
a letra, denomina-se obra lítero-musical; e, quando a obra é transformada
e fixada em suporte, denominamos fonograma.
No que se refere à obra musical protegida pela Lei 9.610/98, importante
examinar os casos das traduções, adaptações, arranjos, orquestrações e
415
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
outras formas de transformações de obras originais, que são apresentadas
como criação intelectual nova. Em todos estes casos, é indispensável a
concordância do autor da obra original, salvo obra que esteja exposta em
domínio público.
Entrementes, o tradutor ou adaptador não pode impedir que outra pes-
soa venha a traduzir ou criar obra intelectual nova sobre a original, ressalta
Maria Helena Diniz que este (o primeiro tradutor) só poderá reclamar as
perdas e danos quando houver tradução que não passe de mera reprodu-
ção da sua2. Pedro Vicente Bobbio3, em sua antológica obra Direitos Auto-
rais na criação musical, datada de 1951, e ainda atual, denomina as obras
musicais derivadas da seguinte forma:
Denomino elaboração todo e qualquer trabalho artístico musical em que o
autor não cria “ex novo”, com originalidade formal e substancial, uma
obra musical, mas manipula criação alheia, dando vida características in-
dividualizadoras, assevero que a elaboração possui uma casuística prati-
camente infinita, cujos exemplos mais comuns e salientes são representa-
dos por: variações, adaptações ou arranjos, transcrições, reduções combi-
nações, pot-pourris, e que a todas são comuns os mesmos requisitos e os
mesmos efeitos.
Já os fonogramas são toda fixação de sons de uma execução ou inter-
pretação ou de outros sons, ou de uma representação de sons que não seja
uma fixação incluída em uma obra audiovisual.
2. DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. São Paulo: Saraiva, v.
3. 1999. p. 508. Jurisprudência neste sentido em ADCOAS, 1982, n.º 86.628, TJSP.
3 BOBBIO, Pedro Vicente. O direito de autor na criação musical. São Paulo: Lex, 1951.
p.141.
416
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
espécies de propriedade: o direito autoral moral e o patrimonial.
O direito autoral moral é intransferível – é a atribuição da obra a quem
a criou. No caso de uma composição musical, por exemplo, o direito auto-
ral moral encontra-se na necessidade de se reconhecer a composição ao
seu criador, mesmo que ela não seja comercialmente explorada por ele.
Este aspecto é intransferível.
Já o direito autoral patrimonial tange a utilização comercial de uma
obra em sua forma mais específica de mercado. Um compositor pode, por
exemplo, vender sua música para um intérprete por uma quantia fixa, por
um percentual sobre os lucros ou simplesmente doá-la. As mudanças com
a internet voam, o mercado cada vez mais amplia-se de tantas formas que
são inimagináveis, e, quanto à segurança do artista, seus direitos auto-
rais engatinham, esbarrando em trâmites e prazos que a internet não tem,
e que, muitas vezes e atualmente, vem claramente prejudicando os milha-
res de titulares desses direitos. Mesmo em uma época de publicização da
intimidade.
Caso o intérprete adquira a obra em sua totalidade, os direitos patri-
moniais daquela composição tornam-se dele, sem que o autor receba al-
guma remuneração posterior, além da venda. No entanto, o direito autoral
moral ainda é o compositor, que detém a atribuição da criação da obra,
mesmo que não a explore comercialmente.
Para Gueiros Júnior4 o Direito Autoral se compõe de dois pilares distin-
tos no que se refere à apreciação das circunstâncias que envolvem a fruição
e o exercício dos direitos decorrentes da criação intelectual humana, desta-
cando-se na parte moral a imobilidade e a perenidade, enquanto, na parte
material, econômica, prevalece a mobilidade e a temporaneidade. É consi-
derado titular de direito autoral a pessoa física ou jurídica que, não neces-
sariamente sendo autora, exerce os direitos sobre as criações, por delega-
4. Direito conexo
O direito conexo está previsto no artigo 5º, XIII, da Constituição Fede-
ral de 88, bem como no artigo 89 da Lei 9610/98, sendo que, no âmbito
internacional é regulado pela Convenção de Roma, que se acha em vigor
desde 18 de maio de 1964. Mencionada convenção agregou em um único
diploma os artistas, sobre sua interpretação ou execução; o produtor de
fonogramas, sobre sua produção sonora; e o organismo de radiodifusão,
sobre suas emissões, sendo estes os três titulares de direitos conexos. Res-
salta Eboli5 que os direitos nela compilados são distintos e não se confun-
dem com os direitos de autor da obra interpretada ou executada, com es-
pecial ênfase no artigo 1º da Convenção romana:
Art 1º A proteção prevista pela presente convenção deixa intacta e não afe-
ta, de qualquer modo, a proteção do direito do autor sobre as obras literá-
rias e artísticas. Deste modo, nenhuma disposição da presente convenção
poderá ser interpretada em prejuízo dessa proteção.
De acordo com Gueiros Júnior6 os direitos conexos podem ser assim
definidos: Os direitos conexos, por sua vez, são aqueles incidentes sobre
todas as interpretações ou execuções artísticas e as eventuais transmissões
e retransmissões destas interpretações resultantes de sua comunicação ao
público além do espectro do autor.
5 EBOLI, João Carlos de Camargo. Pequeno Mosaico do Direito Autoral. São Paulo:
Irmãos Vitale, 2006, passim.
6 GUEIROS JUNIOR, Nehemias. O direito Autoral no show business. A música.
Gryphus: Rio de Janeiro, 2005, p.51.
418
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
5. A exploração do mercado fonográfico digital pela internet
A literatura acerca da Sociedade da Informação permeia todos os ramos
do conhecimento humano, consistindo em um novo desafio para as ciên-
cias humanas, biológicas e exatas compreendê-la e conceituá-la7. Pelo fato
de a internet disseminar informação convertida em dados, portanto imate-
rial, na temática dos direitos autorais o impacto de seu uso foi mais inten-
so. Na rede, as obras musicais são digitalizadas8, pois transformadas em
bits9.
7 Neste sentido, numa abordagem filosófica ver Pierre Levy: LÉVY, Pierre. Cibercultu-
ra. 9. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000, As tecnologias da inteligência. 9. ed. Rio de
Janeiro: Editora 34, 2000; O que é virtual. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.
Numa abordagem sociológica ver: CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era
da informação: economia, sociedade e cultura, v. I. São Paulo: Paz e Terra, 1999. O
poder da identidade. A era da informação: economia, sociedade e cultura. v. II. São
Paulo: Paz e Terra, 1999. O fim do milênio. A era da informação: economia, socieda-
de e cultura. v. III. São Paulo: Paz e Terra, 1999. Novas perspectivas críticas em educa-
ção. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. Na perspectiva jurídica, encontramos o pen-
samento de: ASCENSÃO, José de Oliveira. As autoestradas da informação e a socie-
dade da informação. Estudos jurídicos. Coimbra: Almedina, 1999; ASCENSÃO, José
de Oliveira. Direitos autorais na Internet. Verba Iuris, Curitiba, ano II, n. 1, ago/99, p.
7-26; ASCENSÃO, José de Oliveira. A Sociedade da Informação. In: Direito da Socie-
dade da Informação. vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. Numa abordagem das
contradições dos processos sociais ver: MORIN, Edgar. Para sair do século XX. 30.ª
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986; GARAUDY, Roger. Apelos aos vivos. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. 4. ed.
Rio de Janeiro: Record, 2000.
8 Para detalhado histórico do roteiro da estrutura da música eletrônica, desde seu
início (em 1937, com a guitarra elétrica) até a digitalização, vide: BERTRAND, An-
dré. La musique et le droit De Bach à Internet. Paris: Éditions Litec, 2002, p.25-35.
9 Extrai-se das aulas ministradas em 1974 pelo Professor italiano Mario G. Losano no
Curso de Extensão Universitária realizado no Departamento de Direito Econômico
Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo que: "os termos ca-
racteres binários traduzem o inglês 'binary digits'. Da aglutinação destas duas pala-
vras nasceu o termo bit, que indica justamente o dígito binário. (...) Se o bit é a menor
419
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
Em forma eletrônica, as obras protegidas pelo direito de autor analisam-se
em sequências de dígitos, tal como os programas de computador em códi-
go objeto. Isto é, em forma digital, uma obra é geralmente gravada (fixada)
parte da informação, mas não tem significado, o byte é a menor parte significativa de
um código EBCD. Um byte é composto, pois, de 8 bits e corresponde à dupla tétrade
que caracteriza esse código". (LOSANO, Mario G. Lições de informática jurídica. São
Paulo: Resenha Tributária, 1974. p.67). "O sistema binário é um sistema de numera-
ção formado por apenas dois algarismos: 0 (zero) e 1 (um). Ou seja, só admite duas
possibilidades, sempre antagônicas, como: tudo/nada; ligado/desligado; presen-
ça/ausência, direito/esquerdo, alto/baixo, verdadeiro/falso, aceso/apagado... Seme-
lhante ao sistema de numeração arábico que usamos (que, quando se chega ao 9, re-
torna-se ao 0), no código binário quando se chega ao 1 volta-se ao 0, já que o conjun-
to só possui dois algarismos. Os microprocessadores percebem somente sinais elétri-
cos, distinguindo-os em dois níveis de voltagem: - nível alto, "high", H, correspon-
dente a tensão elétrica alta, e - nível baixo, "low", L, tensão elétrica baixa. Portanto,
qualquer comunicação com o microprocessador pode ser reduzida exclusivamente a esses
dois sinais, asociando-se H com o bit 1 e L com o bit 0". (CONTI, Fátima. Muitas dicas.
Disponível em: http://www.cultura.ufpa.br/dicas/ progra/arq-cod.htm. Acesso em: 5 abr.
2020). Norbert Wiener explica o motivo da escolha do código binário: "a máquina de
computação deve ser uma máquina lógica tanto quanto aritmética e devem combinar
contingências de acôrdo com algum algoritmo sistemático. Embora haja inúmeros
algoritmos que poderiam ser utilizados na combinação de contingências, o mais sim-
ples é conhecido como a álgebra da lógica par excellence, ou a álgebra de Boole. Este
algoritmo, como a aritmética binária, baseia-se na dicotomia, a escolha entre o sim e
o não, a escolha entre estar em uma classe e estar fora. As razões de sua superioridade
sôbre outros sistemas são da mesma natureza que as da superioridade da aritmética
binária sôbre outras aritméticas". (WIENER, Norbert. Cibernética; ou, contrôle e
comunicação no animal e na máquina. Trad. Gita K. Ghinzberg. São Paulo: Polígono
e Universidade de São Paulo, 1970. p.155-156). Uma curiosidade: o correspondente a
"USP", em código binário, é "010101010101001101010000" e a "direito de autor" é
"011001000110100101110010011001010110100 101110100011011110010000001100
1000 1100101001000000110000101110101011101000110111101 1100100000110100
001010". Aliás, não deixa de ser interessante saber que o equivalente a "01" é, em có-
digo binário: "0011000000110001". Existe um sítio na internet que oferece a "tradu-
ção", e pode ser acessado em http://nickciske.com/tools/binary.php. Acesso em: 5
maio 2007.
420
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
como uma sequência de códigos binários (zeros e uns) utilizando meios
especiais de codificação10.
Dentro desse contexto, diferentes instituições foram estimuladas a criar
grupos de cientistas que, coordenadamente, desenvolveram o programa de
pesquisa para a transmissão de rádio e televisão digital, resultando nos
padrões de compressão MPEG (Moving Picture Experts Group), o qual, no
que diz respeito ao áudio, recebeu, após sua denominação, a expressão
Audio Layer.
Boa parte conteúdo disponível na internet é objeto de proteção pelos
direitos autorais, o que fundamenta a necessidade de autorização de seus
respectivos titulares 11para que lá seja utilizado. Inevitável, pois, que severa
tensão passasse a ter lugar na relação entre os direitos autorais e a nova
mídia internet, já que obras de toda natureza (fotografias, textos, músicas e
vídeos) passaram a ser transferidas de seus meios físicos (corpus mechani-
cum) para o meio virtual, mediante processos de digitalização que foram
17 Denomina-se por blog um site cuja estrutura permite a atualização rápida a partir de
acréscimos dos chamados artigos, ou "posts". Estes são, em geral, organizados de
forma cronológica inversa, podendo ser escritos por um número variável de pessoas,
de acordo com a política do blog. A capacidade de leitores deixarem comentários de
forma a interagir com o autor e outros leitores é uma parte importante de muitos
blogs. A maioria dos blogs são primariamente textuais, embora uma parte seja focada
em temas exclusivos como arte, fotografia, vídeos, música ou áudio, formando uma
ampla rede de mídias sociais. Outro formato é o microblogging, que consiste em blogs
com textos curtos.
18 Denomina-se por Podcasting uma forma de publicação de arquivos de mídia digital
(áudio, vídeo, foto, PPS, etc…) pela Internet, através de um feed RSS, que permite
aos utilizadores acompanhar a sua atualização. Com isso, é possível o acompanha-
mento e/ou download automático do conteúdo de um podcast.
19 O Twitter é uma rede social na Internet que ganhou popularidade mundial desde
2006, trata-se de um servidor para microblogging que permite aos usuários enviar e
receber atualizações pessoais de outros contatos (em textos de até 140 caracteres, co-
nhecidos como "tweets"), por meio do website do serviço, por SMS e por softwares
específicos de gerenciamento.
424
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
onamento existentes na internet que criam zonas de compartilhamento de
informações.
Os direitos autorais refletem internamente o choque entre os interesses
privados do autor e demais titulares de um lado, e os interesses coletivos e
difusos da sociedade em geral, principalmente no que se refere ao acesso
ao conhecimento; daí a importância da internet proporcionando o acesso
público à produção e obras artísticas, literárias ou científicas.
Desta forma, ainda que majoritariamente a interpretação da doutrina
seja a restritiva, a flexibilização pela legalidade da cópia integral privada,
não prevista no rol expresso, obriga o reconhecimento de que a cópia aqui
referida, numa interpretação extensiva da norma coadunando-se com o
sistema vigente, pode ser a integral desde que desalijada do intuito lucrati-
vo, não caracterizando violação ao direito do autor.
Além disso, a definição do domínio público relaciona direitos autorais
que não estão mais em acordo com os direitos autorias ou nunca foram
protegidos pela lei. Está amparado na existência de um espaço em que não
se consideram a produção de obras literárias, artísticas e científicas como
propriedade privada de um ou mais indivíduos.
Para saber se determinada música pode ou não ser utilizada, é preciso
analisar os detalhes deixados pelo próprio compositor ou titular do direito.
Como bem prenota a Lei 9610, em seu inciso II, são também pertencentes
ao domínio público as obras de autor desconhecido. Nesta categoria se
enquadra a música aqui em questão “Dona Maria como vai você”, perten-
cente ao cancioneiro popular. O domínio público representa um regime de
amplas liberdades na utilização da obra autoral, uma vez que o mesmo
implica, na legislação brasileira, na eliminação do exercício dos direitos
patrimoniais, devendo o terceiro que deseje se valer de uma obra autoral
respeitar apenas os direitos morais.
No Brasil, As obras protegidas pelo Direito Autoral somente entram em
Domínio Público pela lei quando: (i) decorridos mais de 70 anos após a
425
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
morte autor no que tange aos direitos patrimoniais, (ii) quando os autores
falecidos não deixaram herdeiros ou sucessores, e, (iii) quando o próprio
autor for desconhecido (art. 45 da Lei de Direitos Autorais – Lei n.
9.610/98) de qualquer tipo de informação que lhe é inerente, sem que seja,
necessariamente se tenha que mitigar a importância do fluxo do conheci-
mento e da inapropriabilidade da informação que deve sempre estar em
Domínio Público. A informação pertence ao Domínio Público devendo
livremente circular gerando conhecimento e agregando valores sociais,
culturais e econômicos fundamentais para o desenvolvimento da socieda-
de. A Constituição Federal garante o pleno exercício do direito de infor-
mação e dos direitos culturais, a legislação deve também garantir o acesso
às fontes da cultura nacional, bem como, a legislação autoral deve propici-
ar instrumentos de acesso a bens de domínio público permitindo ampla
difusão da informação.
O Direito Autoral deve proteger, portanto, o bem intelectual, mas não
restringir a circulação da informação, pois esta pertence ao Domínio Pú-
blico comum da Sociedade. É, perfeitamente possível diferenciar o bem
intelectual tutelado pelo Direito Autoral (que possuem um direito de ex-
clusivo ao autor sobre o conteúdo de sua obra).
8. Considerações finais
Diante do exposto, entende-se que a utilização do cântico popular em
coautoria com outra produtora está em conformidade com as leis brasilei-
ras de Direitos Autorais, sendo considerada canção de domínio público,
cuja utilização satisfaz todas as normas legais nacionalmente codificadas.
Assim, não há violação de nenhum fundamento, doutrina ou jurisprudên-
cia quanto ao tema, motivo pelo qual este parecer mostra-se favorável ao
solicitado pela requerente.
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Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
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430
DEMOCRACIA DIGITAL E SUA GARANTIA
NA RELAÇÃO ENTRE ESTADO BRASILEIRO
E SOCIEDADE
19
Gabriela Briesemeister
Sthéfane Alves Vasconcelos
1. Introdução
No que lhe diz respeito, cada vez mais a ideia do filósofo canadense
Herbert Marshall McLuhan sobre o surgimento de uma aldeia global, a
partir de novas tecnologias, parece finalmente torna-se realidade.
Em que pese, ainda existir exclusão digital, principalmente nos países
ditatoriais ou carentes de recursos básicos, o progresso tecnológico
reduziu todo o planeta em um só espaço, tornando-se, de certa forma,
interligado pela globalização.
Nesta perspectiva, a fascinação em estar conectado e consumindo
conteúdos multinacionalizados, trouxe uma nova expressão que descreve
o atual momento como “sociedade da informação”. Esta por si só, ilustra
como substituto do complexo da sociedade pós-industrial, portanto, nada
mais é que o uso da Tecnologia de Informação e Comunicação – TIC pela
sociedade, no propósito de interação entre indivíduos e organizações. A
informação tornou-se a matéria prima, permitindo o homem atuar
juntamente com esta.
431
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
Diante da nova realidade, as estruturas sociais e a democracia sofreram
modificações. Neste contexto, após lutas incansáveis e mal sucedidas na
democracia tradicional, a partir do surgimento da internet, abre-se uma
porta da esperança, ferramenta emancipatória daqueles que não tinham
voz na política anteriormente.
O romantismo dessa rede mundial de computadores e aparelhos
móveis interligados encurtou tempo e distância, criando-se uma cultura de
exposição dos dados pessoais nas redes sociais como forma de interação
online, todavia, não só para o bem foi utilizado.
Importante também analisar as iniciativas do governo brasileiro na
proteção da relação com a sociedade através das tecnologias, a fim de se
evitar abusos na coleta e compartilhamento de dados pessoais do cidadão,
coibindo o vigilantismo em massa do estado, e garantindo o pleno
exercício da democracia digital.
Por meio dessa pesquisa, a expectativa do artigo é contribuir para o
melhor entendimento do assunto e verificar em que medida as
informações e ferramentas de comunicação, e as iniciativas
governamentais sobre o assunto podem interferir na democracia do país.
2 Sociedade da informação
Sociedade da informação é todo o resultado desse compartilhamento de
dados, informações, pessoas, por meio das redes sociais que se agregou
com as novas tecnologias móveis, como os smartphones. Esta sociedade
que se originou no século XX, teve seu desenvolvimento focado nas novas
tecnologias que estavam surgindo, pois comportavam-se como um
facilitador de transmissão instantânea das informações.
Nesse sentido, afirma Pinheiro:
Na Era Digital, o instrumento de poder é a informação, não só́ recebida,
mas refletida. A liberdade individual e a soberania do Estado são hoje
432
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
medidas pela capacidade de acesso à informação. Em vez de empresas,
temos organizações moleculares, baseadas no Individuo. A mudança é
constante e os avanços tecnológicos afetam diretamente as relações
sociais1.
Nos dias atuais, a sociedade necessita de um suporte tecnológico para
se propagar em todos os aspectos, seja econômico, social, cultural e
político, o que se revela um verdadeiro fenômeno social, instaurado dentro
da sociedade, levando-a a denominação de Sociedade da Informação.
Posteriormente, a tecnologia ganhou novo ímpeto e coloração com o
incremento na velocidade do seu desenvolvimento em várias áreas, como
a eletrônica, as telecomunicações e tantas outras. Essas tecnologias
passaram a condicionar diretamente a sociedade, com sua filosofia de
trabalho, seus instrumentos de produção, sua distribuição do tempo e de
espaço; além de se identificar diretamente com a substância dos
instrumentos e mecanismos de controle que podem causar a erosão da
privacidade. A dimensão que o fenômeno tecnológico assumiu passou
então a se tornar motivo de reflexão para as ciências sociais, entre elas o
direito2.
A sociedade contemporânea tem sido caracterizada como sociedade da
informação diante o papel central que a informação assumiu com as novas
Tecnologias de Informação e Comunicação – NTIC, principalmente a
partir da difusão da internet, o que vem despertando mudanças de várias
ordens nas relações econômicas, sociais, políticas, culturais e filosóficas.
Essas mudanças ainda ocorrem nos dias atuais, e se transformam à medida
que a própria tecnologia redefine seu escopo e alcance.
Assim, diante estes novos contornos, a informação deixou de ser um
processo local para se apresentar em âmbito global, encurtando as
distâncias e criando um novo tipo de sociabilidade, na qual a presença
1 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 74.
2 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2019, p. 50.
433
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
física já não é essencial para que haja uma relação.
As redes de comunicação digital são um horizonte que pela
simplicidade se agrega à vida individual e coletiva, construindo relações
pessoais e de trabalho. Por conseguinte, podem representar um atributo
que se possa ter ou não3.
A tecnologia se molda na época em que a sociedade se encontra,
juntamente com fatores socioeconômicos, onde ali encontra seus limites e
impulsos. Não se trata apenas da falsa genialidade de indivíduos isolados
que tiveram grandiosas ideias tecnologias digitais.
Desta forma, afirma Martini:
É importante ver sempre a tecnologia como o fruto das relações
econômicas e sociais de uma época, numa intrincada relação, em que
vários fatores são variáveis e devem ser observados. E nunca se ver, sob
pena de um enorme falseamento da realidade, como o trabalho de
indivíduos geniais solitários. A inventividade humana é uma das variáveis
da criação tecnológica e só se explica em relação a forças sociais e
econômicas de uma época4.
Esta sociedade pós-industrial ou “informacional”, como prefere
Castells, está ligada à expansão e reestruturação do capitalismo desde a
década de 80. A sociedade da informação e do conhecimento é sem dúvida
um capítulo a mais no processo de industrialização que começa na Europa
ocidental e se planetariza ao longo do século XX5. As transformações
geradas pela indústria e a técnica já apontavam decisivamente para ruptura
da vida tradicional.
Novas tecnologias como a internet e a telefonia móvel tornaram o
3 MARTINI, Renato. Sociedade da informação: para onde vamos. São Paulo: Trevisan,
2017. E-book.
4 MARTINI, Renato. Sociedade da informação: para onde vamos. São Paulo: Trevisan,
2017. p. 29. E-book.
5 HOBSBAWN, Eric. Marx et l’histoire. Paris: Editions Demopolis, 2008, p. 91.
434
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
cidadão um ator social com poder além do voto. Sua opinião agora se faz
ouvir cotidianamente e em tempo real, dando à sociedade a oportunidade
de exprimir sua vontade. Assim, a “revolução eletrônica” transformou a
informação em verdadeira arma, de caráter essencial na relação entre
Estado e sociedade e o exercício da democracia.
436
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
O surgimento da rede internet, por exemplo, decididamente alargou as
possibilidade de comunicação, e fez emergir um grande número de
questões ligadas à privacidade. O impacto que a rede proporcionou,
porém, já se encontrava de certa forma incubado em tecnologias
anteriores, que provocaram fenômenos assemelhados e que, se hoje
podem até parecer pálidos, devem ser considerados em relação ao que
representaram à sua época – afinal, são justamente impressões como essas
que o suceder das gerações costuma apagar da memória de uma sociedade.
Assim, o telégrafo e o telefone, como instrumentos de comunicação
bidirecional, ou mesmo o rádio e a televisão contribuíram cada um deles
para formar a consciência de que representavam um encurtamento das
distâncias, do fim de limites antes intransponíveis e, consequentemente,
de uma interação mais frequente entre as pessoas, elementos que estão no
âmago das questões relacionadas com privacidade8.
Oferecendo a Internet ao mundo, a comunidade científica lhe ofertou a
infraestrutura técnica de uma inteligência coletiva, transmitindo, assim,
para o resto da humanidade sua melhor invenção, aquela de seu próprio
modo de sociabilidade, de seu tipo humano e de sua comunicação. Essa
inteligência coletiva refinada há séculos é perfeitamente encarnada pelo
caráter livre, sem fronteiras, interconectado, cooperativo e competitivo da
Web e das comunidades virtuais9.
Ao se adentrar no campo da política, necessária análise em dois
aspectos: de um lado, o Estado, e como suas estruturas se adaptam à
utilização da internet, e viabilizam a participação, interatividade,
transparência e democratização de processos; e de outro lado, a sociedade,
com seus movimentos na atuação política e interações com o Estado,
exercendo juízo crítico e participativo.
16 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 20.
17 LONGHI, João Victor Rozatti. Dignidade.com: direitos fundamentais na era do
populismo 3.0. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de
Moura (Coord.). Estudos essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p.
200.
442
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
informações, no início da década de 2000, a Administração Pública
Federal brasileira começou a estruturar as ações de governo digital sob a
denominação de governo eletrônico – e-Gov, com a finalidade de priorizar
o uso das tecnologias de informação e comunicação - TICs para
democratizar o acesso à informação.
Desde então, várias ações foram desenvolvidas e culminaram com a
evolução do paradigma de “governo eletrônico” para “governo digital” no
Estado brasileiro. Uma das características da evolução do governo
eletrônico para o governo digital é a disponibilização de plataformas
digitais. O governo como plataforma é um dos princípios orientadores da
governança digital da administração federal.
O Governo Digital tem como escopo ampliar a interatividade e a
participação política nos processos do Estado, bem como facilitar à
população a navegação e acesso a portais e serviços de governo em prol da
integração, da transparência e do atendimento às demandas da sociedade.
A implantação do Governo Digital proporciona também melhorias na
comunicação entre governo e população, interagindo Estado com
sociedade, facilitando a prestação de contas à sociedade, e configurando
ferramenta importante para o fortalecimento da democracia.
Com este objetivo, a estrutura de governança digital brasileira compõe-se
de instâncias de decisão e participação diversas e representativas de vários
setores. Organizada por conselhos de planejamento com composições
diversas, essa estrutura busca captar as demandas e tendências da
sociedade e direcionar os processos de digitalização para, em discussões
colegiadas, definir os documentos e marcos que guiam a transformação
digital no país.
...
Os Conselhos atuam como agentes de transformação digital do governo e
elaboram, coletivamente, os documentos e guias estratégicos para as
políticas e ações do Estado no tema. O principal guia estratégico é a
Estratégia brasileira para a Transformação Digital, documento de
443
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
construção coordenada pelo MCTIC com a participação de mais de 30
órgãos e entidades da APF, além de diversos atores da academia e da
sociedade civil. A E-Digital propõe-se como documento central da política
pública para a transformação digital da economia, do governo e da
sociedade brasileira, e organiza sua abordagem em dois grandes eixos:
Transformação digital da economia e Transformação Digital do
Governo18.
Importante avanço na democracia digital foi a Lei Federal nº 12.527, de
18 de novembro de 2011, conhecida como Lei de Acesso a Informação
(LAI), que pretende promover a transparência das ações de governo,
regulamentando o acesso às informações, previsto constitucionalmente.
Assim, contribui para o aumento da eficiência do Poder Público, a
diminuição da corrupção e a elevação da participação social.
Em atendimento à legislação, restou disponibilizado o Portal de Acesso
a Informação (http://www.acessoainformacao.gov.br) pelo governo, em
que é possível a consulta às informações públicas.
No Brasil a Lei de Acesso à informação (LAI)2, em vigor desde 2012, foi
um importante passo rumo aos direitos do cidadão, garantindo o direito
de aquisição de informações públicas com maior agilidade e menos
burocracia. A participação da população na gestão pública é fundamental
para uma democracia saudável, o Estado não deve ser entendido como
uma grande máquina kafkiana que se apresenta de forma indiferente aos
anseios sociais. Tais iniciativas evidenciam os esforços, sobretudo, do
Poder Executivo, para responder as demandas atuais, entendendo a coisa
pública como uma estrutura que precisa encaixar o cidadão para além das
obrigações. O direito à informação passa a ser realmente sentido como um
direito humano legítimo e atua para tornar a relação Estado e sociedade
447
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
4.1. Dos atos normativos atuais do governo brasileiro e a proteção à
democracia na era da informação
A democracia digital não engloba apenas a facilitação do acesso e
comunicação entre governo e sociedade, sendo necessária também a
proteção pelo Estado à cidadania, diante os novos contornos e
inseguranças geradas pelo contexto tecnológico.
Apesar das alterações revolucionadas pelas tecnologias de informação e
comunicação, inegável que grande parte dos dados dos cidadãos se
encontra em poder e conhecimento do Estado, seja para auferir benefícios,
obter serviços, prestar declarações, e cumprir deveres constitucionalmente
instituídos, como pagamento de impostos.
A Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, chamada Lei Geral de
Proteção de Dados, principal lei sobre privacidade no Brasil, demorou oito
anos para ser sancionada, passando por consultas públicas, debates com a
sociedade civil e uma longa tramitação no Congresso Nacional, com
previsão de vigência plena a partir de agosto de 2020.
No entanto, no dia 09 de outubro de 2020, editado pelo chefe do Poder
Executivo os decretos nºs 10.046 e 10.047, que podem ocasionar drástico
impacto na privacidade dos cidadãos, diante a criação de uma grande base
de dados com diversas informações pessoais, de livre acesso e
conhecimento pelo governo.
Referidos decretos dão origem ao Cadastro Base do Cidadão e ao
Comitê Central de Governança de Dados, sob a justificativa de facilitar o
acesso dos brasileiros aos serviços governamentais. Ocorre que, ao reduzir
as barreiras de compartilhamento e cruzamento de bancos de dados, gera
riscos à privacidade e proteção de dados dos cidadãos, o que, inclusive
questiona a compatibilidade dos decretos com a Lei Geral de Proteção de
Dados – LGPD.
Até a edição do Decreto 8.789/2016 o compartilhamento de bases de
dados dependia da celebração de acordos e convênios entre órgãos e
448
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
entidades, o que passou a ser expressamente dispensado desde então.
Publicado em 1/7/2016 e assinado pelo presidente Michel Temer, o
Decreto nº 8.789/2016 foi divulgado como medida de modernização da
administração pública e promoção de eficiência na gestão de políticas22.
Com o atual Cadastro Base do Cidadão regulamentado no Decreto nº
10.046/2019, não apenas os antigos dados cadastrais podem ser comparti-
lhados livremente e automaticamente entre órgãos e entidades, mas uma
ampla variedade de dados pessoais produzidos e coletados pelo Estado no
curso da execução e implementação de políticas públicas.
Chama a atenção que inclusive dados sensíveis poderão ser livremente
partilhados, considerando que o decreto prevê a inclusão de dados biomé-
tricos e não estabelece quaisquer limites, excluído apenas os atributos ge-
néticos, conforme expressamente previsto no §6º do artigo 18.
Falta rigor e precisão às definições do conjunto de informações a serem
inserido no Cadastro Base, bem como ausente nos novos decretos regras e
garantias que protejam a segurança dos dados dos cidadãos. Evidente, pois
que os direitos fundamentais restaram prejudicados em face dos objetivos
estatais vislumbrados por estes atos do chefe do Poder Executivo, os quais
visam o alcance de ampla e irestrita informação sobre a população.
Ademais, os decretos sequer incorporam princípios centrais e diretrizes
já consolidados na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, ignorando o
termo “dados pessoais”, utilizando-se de expressões como “atributos
biográficos” e “atributos biométricos”.
A LGPD já prevê o tratamento e compartilhamento de dados pessoais
pela administração pública para fins de políticas públicas, no entanto, o
450
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
por membros do Poder Executivo.
Há ainda muitas incertezas sobre os impactos destes decretos, sendo
que tramitam três projetos de lei visando sustar os efeitos do Decreto nº
10.046/2019, com fundamento justamente na extrapolação do poder regu-
lamentar do Poder Executivo e sua incompatibilidade com dispositivos
constitucionais e com a LGPD. Consigna-se que o Decreto 10.047/2019,
que trata da governança do Cadastro Nacional de Informações Sociais e do
compartilhamento de informações com INSS, também está sendo questio-
nado no Legislativo.
É válida a iniciativa do governo em tratar esses dados para simplificar e
aumentar a eficiência na prestação do serviço público, no entanto, tal
iniciativa não pode configurar manejo para se facilitar a discriminação, o
perfilamento e a vigilância em massa, como já ocorreu em alguns países
como China e Índia.
Como reconhece o próprio Governo Federal, no contexto atual, alguns
dos principais desafios a serem enfrentados para aprimorar a efetividade
das ações de governança digital, e assegurar a democracia digital, são: (i)
disponibilizar serviços públicos digitais consolidados em plataforma única;
(ii) conceder amplo acesso à informação, que possibilitem o exercício da
cidadania e a inovação em tecnologias digitais; (iii) aprimorar capacidades
técnicas e humanas relativas ao uso e tratamento de grandes volumes de
dados; (iv) promover um ambiente jurídico-regulatório que estimule
investimentos e inovação, a fim de conferir segurança aos dados tratados e
adequada proteção aos dados pessoais; (v) ampliar os canais de
relacionamento entre a sociedade e o Estado, facilitando o acesso aos
serviços digitais e aos canais de participação social; (vi) mitigar as
vulnerabilidades de segurança nos sistemas de informação
governamentais; (vii) democratizar o acesso aos serviços públicos
prestados por meios digitais.
Necessário, por fim, reforçar sobre o evidente perigo de iniciativas
451
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
governamentais ao editar atos normativos que ampliem a
imprevisibilidade dos usos dos dados colhidos dos cidadãos, o que deve ser
objeto de rígido controle, a fim de garantir proteção e segurança à
sociedade na finalidade e contexto em que serão utilizados seus dados,
assegurando, assim, o exercício de sua plena cidadania, e resguardando
direitos assegurados constitucionalmente.
5. Considerações finais
O ciclo de implantação de novas tecnologias é cada vez mais acelerado,
com mudanças importantes num curto espaço de tempo. De Sociedade
Industrial passou-se rapidamente para Era da Tecnologia e mais rápido
ainda já se vive na Era Digital. Com o advento da internet, as ferramentas
de comunicação foram marcadas pela alta velocidade, com troca de
conteúdo de forma instantânea, o que transforma significativamente a
comunicação entre Estado e sociedade.
O acesso à internet proporciona a efetiva participação do indivíduo na
sociedade e isso inclui o acesso à informação e facilitação na fruição de
serviços públicos oferecidos on-line pelo governo. No entanto, com o
frequente uso das tecnologias de informação e comunicação pelos órgãos
públicos, observa-se que as disparidades sociais vão se agravando e a
parcela menos favorecida se torna renegada pela globalização.
Apesar de alguns avanços pelo governo brasileiro, a realidade atual é de
que ainda há um grande número de pessoas digitalmente excluídas no
país, ocasionado tanto pela baixa renda como também pela ineficácia de
garantia ao acesso digital pelo governo.
Assim, a inclusão digital pelo Poder Público encontra diversos
empecilhos, sendo realizada de forma vagarosa, pois, a exclusão digital é
óbice à isonomia social de acesso na esfera pública.
A participação popular é pressuposto fundamental da democracia, de
forma que garantir o acesso universal, até mesmo da classe menos
452
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
favorecida economicamente, obsta sua plena implantação e
funcionamento no setor público. Portanto, para uma total inclusão digital,
inegável se ter primeiramente a inclusão social.
A informação não pode mais ser encarada apenas num aspecto
econômico, mas sim como um verdadeiro direito humano, sendo bem
imprescindível. Evidente que a internet é hoje um meio indispensável
para o pleno exercício da cidadania e do próprio fazer democrático,
devendo o Estado estar preparado para assegurar e proteger esse direito
das mais diversas formas. A esfera virtual pode e deve se tornar ferramenta
democrática, mas, no entanto, somente a partir do momento em que ela
puder ser compreendida e direcionada a esse fim.
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455
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
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BRIESEMEISTER, Gabriela; VASCONCELOS, Sthéfane Alves. Democra-
cia digital e sua garantia na relação entre estado brasileiro e sociedade. In:
LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura
(Coords.); BORGES, Gabriel de Oliveira Aguiar; REIS, Guilherme (Orgs.).
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mação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 431-456.
__________________________________________________
456
O SISTEMA JURÍDICO DO BIG DATA E SUA
REPERCUSSÃO PENAL
20
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
1. Introdução
Em tempos passados, durante muitos séculos, a terra foi o mais impor-
tante ativo nas sociedades e sua propriedade era disputada como sinônimo
de poder. Com a Revolução Industrial, na Idade Moderna, as máquinas
substituíram a terra e quem controlava os meios de produção detinha o
poder. Hoje, na era da informação, os dados - e a própria informação -
passam a ser a nova riqueza da sociedade. Segundo Yuval Noah Harari,
esse novo paradigma pode inclusive vir a dividir a humanidade em duas
distintas espécies no futuro1.
Diferentemente das máquinas e terras, os dados virtuais são facilmente
transportados, podendo estar em qualquer lugar do planeta em frações de
segundos, ou ser, ainda, utilizados de forma concomitante e visando dife-
rentes finalidades. A complexidade da situação atual encontra-se justa-
mente na dificuldade de se estabelecer a propriedade dos dados e na abso-
1 Teoria apresentada pelo Professor Yuval Noah Harari no Fórum Econômico Mundi-
al, em 2018: “Will the future be human?”, disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=hL9uk4hKyg4, acesso em 12 dez. 2019.
Tradução Livre.
457
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
luta inexperiência humana em lidar com ativos imateriais onipresentes2.
Tal propriedade é o cerne da sociedade nas próximas gerações, principal-
mente quando esta é analisada sob a premissa de que a informação con-
centrada pode acabar desaguando em sistemas autoritaristas.
A situação se repercute em diferentes campos, sendo um impasse tanto
econômico-social, no que diz respeito ao comércio, coleta e cruzamento de
informações, quanto jurídico. O presente trabalho objetiva concentrar as
análises nesse último, que vem sendo objeto de reflexão não só quanto à
implementação da utilização de dados no atual sistema jurídico, mas em
uma verdadeira substituição total deste por um novo, baseado única e ex-
clusivamente em dados.
Dessa forma, parte-se da conjuntura atual, que vem cada vez mais utili-
zando ferramentas e tecnologias para a prática jurídica cotidiana. Como
exemplos dessa extensão, é possível citar a “Jurimetria”, que une a análise
de dados jurídicos e os conhecimentos de estatística para produzir infor-
mações precisas, analíticas e conferir uma perspectiva objetiva à subjetivi-
dade do direito; e o Big Data, que são grandes volumes de dados, produzi-
dos e lidos em alta velocidade e que possuem uma enorme diversidade,
para, posteriormente, ao serem filtrados e cruzados de forma eficiente,
poderem fornecer riquíssimas informações a seu analista.
Não se pode deixar de mencionar também a Inteligência Artificial
(I.A.), que vem sendo utilizada para ensinar as máquinas a pensar (machi-
ne learning3) e encontrar soluções para problemas que demandariam uma
2. Premissas
O Big Data, por definição, requer a utilização de um imenso volume de
dados. Mas não são quaisquer dados, como aqueles relacionados unica-
mente às preferências e histórico de consumo, porquanto muito mais
abrangentes. Os elementos dizem respeito ao próprio corpo humano e
suas necessidades, ao estado de saúde físico e mental das pessoas, às opini-
ões políticas e orientações sexuais, além de infinitos outros aspectos da
vida, que podem ser capturados e armazenados no meio eletrônico.
Seu papel reside na segmentação desses dados, sistematizando-os e en-
contrando padrões, realizando um tratamento que os transforma, a partir
de dados brutos e dispersos, em informações utilizáveis de acordo com sua
finalidade específica, dando estrutura e retirando quaisquer dados irrele-
7 ASSUNÇÃO, Luis. Machine learning, Big Data e Inteligência Artificial: qual o bene-
fício para empresas e aplicações no Direito? Disponível em:
https://www.lexmachinae.com/2017/12/08/machine-learning-big-data-e-
inteligencia-artificial-qual-o-beneficio-para-empresas-e-aplicacoes-no-direito/, aces-
so em 12 dez. 2019.
461
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
tempos atuais, é razoável assumir que não existem apenas uma replicação
da normal legal, mas inúmeros elementos que contribuem para que uma
decisão seja proferida por um magistrado, um intricado complexo de fato-
res sociais, econômicos, culturais e temporais envolvidos, os quais podem
ser facilmente influenciáveis pelos valores pessoais e políticos dos julgado-
res, como a empatia com as partes, a linha de argumentação adotada por
elas ou a pressão institucional exercida pelos órgãos de controle8. No con-
texto do julgamento criminal, por exemplo, já se mostrou que a dependên-
cia do instinto e experiência do magistrado não é suficiente, podendo até
ser considerada uma prática inadequada e antiética9. Indo além, fala-se
que a cognição de tais especialistas é limitada.
Prontamente, é possível observar que haveria uma redução na entrada
de novos processos, em razão da maior previsibilidade trazida, e, conse-
quentemente, maior celeridade no andamento dos processos já em curso.
Esta, também seria aumentada pela possibilidade de realização de prévio
diagnóstico dos casos, destacando as informações mais relevantes a partir
da indexação, o que reduziria, afinal, os custos operacionais judiciais. Em
última análise, essa estrutura traria mais rapidez, minimizando a influência
de vieses humanos, fornecendo dados claros e objetivos, de forma a tornar
todo o processo mais justo. Haveria, então, uma significativa melhora na
qualidade das decisões tomadas, já que seriam mais eficientes do que os
seres humanos e não estariam sujeitos a seus preconceitos e vieses.
Mas é possível ir além. Já se fala em um processo de desintermediação,
que irá reestruturar a lei a partir da perspectiva do legislador, que criará
micro diretivas que especificarão o comportamento exato permitido em
cada situação, substituindo a lei como é conhecida atualmente. Não seria
3. Problemática
A situação começa a ficar nebulosa a partir da hipotetização de algumas
situações. A exemplo, tem-se o seguinte cenário: uma multinacional cria
um algoritmo visando a seleção de candidatos para preenchimento de altos
cargos executivos. Ocorre que, na atual conjectura social, a grande maioria
das posições de alto escalão ainda são ocupadas por homens brancos, de
forma que a criação de um algoritmo de busca de possíveis CEOs a partir
de uma base de dados existente iria internalizar essa estigmatização social
percebida. Ainda que os dados utilizados sejam completamente fidedignos
e validáveis, os resultados poderiam ser extremamente problemáticos.
Essa situação seria verificada, inclusive, se houvesse a aplicação da inte-
ligência híbrida (human plus machine), utilizando os algoritmos apenas
para uma pré-seleção de candidatos, com a escolha final sendo feita por
uma pessoa11. Mesmo nesse último caso, as opções pré-selecionadas che-
gariam as mãos dos diretores já maculadas, transmitindo uma falsa sensa-
ção de objetividade.
Se no campo privado o cenário já é questionável, trazendo-o para o
10 DEVINS, Caryn; FELIN, Teppo; FAUFFMAN, Stuart; KOPPL, Roger. The law and
big data. Cornell Journal of Law and Public Policy, Ithaca, v. 27, n. 2, p. 357-413,
jan./abr. 2017, p. 368.
11 FERRARI, Isabela; BECKER, Daniel. Algoritmo e preconceito. Disponível em:
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/algoritmo-e-preconceito-12122017.
Acesso em: 12 dez. 2019.
463
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
âmbito da Justiça Criminal a situação fica ainda mais alarmante, não sendo
mais necessário recorrer a exemplos hipotéticos. Em parte dos Estados
Unidos da América, algoritmos já são utilizados por juízes para determinar
o grau de periculosidade dos réus, principalmente quando da concessão de
liberdade provisória ou determinação de sua prisão preventiva. No estado
de Winsconsin, por exemplo, um homem foi sentenciado a seis anos de
prisão a partir de uma análise de risco levada a efeito por um sistema de
A.I. de uma empresa privada, que o classificou como um indivíduo que
provocaria alto risco para a sociedade. O sistema funcionava em completo
segredo, o que impossibilitou a defesa do réu de examinar os cálculos en-
volvidos nessa análise de risco. Para mais, ainda que a lógica do algoritmo
fosse aberta, os magistrados não são programadores, e permaneceria a
dificuldade de eventual avaliação da presença de erros ou vieses no siste-
ma12.
Outro estudo, realizado pela organização americana Pro Publica, verifi-
cou que os algoritmos utilizados nos modelos de prevenção de reincidên-
cia de réus criminais estavam enviesados contra pessoas negras13. A partir
das análises de dados passados já documentados, o sistema, opinativo,
desincentivava a concessão de fiança e liberdade aos presos negros em
maior número do que quando comparado aos presos brancos, em situa-
ções semelhantes.
O modelo de reincidência chamado COMPAS (Correctional Offender
Management Profiling for Alternative Sanctios) é uma ferramenta baseada
em evidências destinada a avaliar os riscos e as necessidades do preso. Ca-
da preso recebe uma pontuação (score), determinada por um algoritmo
que se baseia em cálculos que levam em conta as respostas dadas pelo pró-
12 LIPTAK, Adam. Sent to prison by a software program’s secret algorithms. New York
Times. Disponível: https://nyti.ms/2yX4NNG. Acesso em: 13 dez. 2019.
13 Pesquisa entitulada de Machine Bias, pela instituição Pro Publica, disponível em
https://www.propublica.org/article/machine-bias-risk-assessments-in-criminal-
sentencing, acesso em 11 abr. 2020.
464
O sistema jurídico do Big Data e sua repercussão penal
prio preso em sede de exame de perfil, assim como diversas outras, como o
local de nascimento e criação, sua educação, informações acerca da famí-
lia, amigos e vizinhos, tão como sua atuação na sociedade, histórico de
abuso de drogas e atividades criminosas. O juiz, ao final do procedimento,
recebe apenas a pontuação final do preso, não lhe sendo apresentado quais
informações foram utilizadas e de qual modo14.
Outra situação real que ilustra a problemática de machine learning é o
caso do chatboy Tay, lançado em 2016 pela Microsoft para conversar e
aprender com usuários humanos do Twitter. Dentro de 16 horas de seu
lançamento, o robô de I.A. foi desativado como resposta da empresa às
ofensas feitas pelo mesmo. Racismo, antissemitismo, misoginia e apologia
às drogas foram replicados em razão do aprendizado a partir de informa-
ções coletadas. Sem qualquer filtro conceitual ou dogmático aplicado, tais
tecnologias desenvolvem um altíssimo potencial lesivo e discriminatório,
apesar de não intencional15.
Poder-se-ia afirmar que esse tipo de modelo melhoraria a qualidade da
decisão dos juízes acerca, por exemplo, da concessão da condicional ou da
fixação da pena, já que seriam supostamente mais eficientes e mais objeti-
vos que a intuição humana. Apesar disso, tais modelos, em vez de eliminar
os defeitos de um julgamento humano, apenas os mascaram através da
utilização da tecnologia, porquanto incorporam presunções e preconceitos
escondidos em algoritmos compreendidos apenas por um pequeno grupo
de pessoas que detém o conhecimento técnico necessário. Os “modelos de
reincidência”, criados pela reiterada utilização dos sistemas, podem acabar
14 ANGWIN, Julia; LARSON, Jeff; MATTU, Surya; KIRCHNER, Lauren. Machine Bias,
pela instituição Pro Publica, disponível em
https://www.propublica.org/article/machine-bias-risk-assessments-in-criminal-
sentencing. Acesso em: 11 abr. 2020.
15 Notícia disponível em https://www.theguardian.com/technology/2016/mar/24/tay-
microsofts-ai-chatbot-gets-a-crash-course-in-racism-from-twitter, acesso em 11 abr.
2020.
465
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
reforçando desigualdades já existentes e disfarçando uma discriminação
baseada no status demográfico e socioeconômico dos indivíduos16. Não
bastasse isso, o modelo se vale de dados que, do ponto de vista jurídico,
não poderiam nem ser considerados para a condenação do réu ou para a
dosimetria da pena, tais como circunstâncias pessoais ligadas à família,
amigos e vizinhos do preso, podendo inclusive, a depender da escala utili-
zada, regressar a justiça criminal atual ao Direito Penal do Inimigo17.
Apesar de um sistema baseado no Big Data visar ser objetivo, os pró-
prios dados, e o Direito, têm múltiplas utilizações e significados, e, con-
forme acima exemplificado, requerem uma teoria para serem adequada-
mente utilizados. Caso contrário, a simples congregação de dados produzi-
rá nada mais que soltas correlações, além de necessitar de simplificação
para melhor entendimento. Essa simplificação por si só requer aplicação
de conceitos e paradigmas humanos: o simples ato de escolha dos próprios
mecanismos utilizados, de quais dados analisar e tratar, quando e como o
fazer, requer a aplicação de teorias e premissas humanas. Tais usos e signi-
ficados, além de indefinidos, estão continuamente evoluindo e se trans-
formando, de maneira que os sistemas tecnológicos não são capazes de
prever ou acompanhar.
Tem-se, aqui, um paradoxo: quanto mais se acumula e trata dados, au-
mentando seu volume para melhor entendimento e aplicação sistemática,
mais deve-se reduzi-los para criar modelos de fácil entendimento18. Em
22 DEVINS, Caryn; FELIN, Teppo; FAUFFMAN, Stuart; KOPPL, Roger. The law and
big data. Cornell Journal of Law and Public Policy, Ithaca, v. 27, n. 2, p. 357-413,
jan./abr. 2017, p. 360.
23 Ver nota nº 1.
468
O sistema jurídico do Big Data e sua repercussão penal
tem, ao final, o poder de determinar o objeto trabalhado (nesse caso, o
próprio Direito). Além de debilitar o próprio sistema jurídico, ao estabele-
cer uma relação de dependência e minar a fonte primeira da inovação le-
gal, um Direito fundado nessa premissa estaria fadado a uma Ditatura
Digital24. Acrescentando a essa situação a ideia inicial de que o próprio
Direito será um sistema personalizado, potencializa-se o efeito colateral
antidemocrático. Isso, pois, dizer que haverão “leis” personalizadas é o
mesmo que dizer que não haverá segurança jurídica. Não seria, então,
desmedida a afirmação de algumas das maiores ambições do Big Data no
sistema jurídico seria a criação esquemas para abandonar a lei em favor de
uma série impenetrável de diretivas idiossincráticas emitidas por um cen-
tro todo-poderoso25.
O processo decisório inicial de escolha de quais dados analisar, de qual
peso dar a eles, e da forma e objetivo empregados (primeira crítica) impac-
tará o sistema de uma forma não esperada, justamente em razão da repli-
cação de ciclos interdependentes de processos (segunda crítica), dando ao
Direito porvir uma conotação tirânica e arbitrária, oposta aos valores ide-
ais atuais (terceira crítica).
4. Prognóstico
Tratar das diversas possibilidades de aplicação da tecnologia é sempre
muito atrativo, mas é necessário saber até que ponto se trata de ciência, e a
5. Considerações finais
Durante esse trabalho foram expostas razões pelas quais um sistema ju-
rídico baseado inteiramente no Big Data e demais tecnologias de informa-
ção seria problemático, principalmente no que diz respeito ao Direito Pe-
nal envolvido. Argumentou-se por três vertentes: em primeiro lugar está a
multiplicidade de faces que a lei e os dados têm, o que abre a possibilidade
de diversas interpretações e significados diferentes, naturalmente opostas
às qualidades das tecnologias objetivas trabalhadas, incompatibilizando o
modelo.
Em segundo lugar, falou-se de uma possível viralização desse novo Di-
reito, que, em razão da mútua influência dos processos antecedentes e
consequentes, estaria condenado a um loop, impossibilitando qualquer
evolução e adaptação jurídica. Por fim, como último ponto apresentado,
foi exposto o risco da criação involuntária de uma Ditadura Virtual, como
consequência dos apontamentos anteriores e da concentração do poder de
criação e decisão nas mãos de alguns poucos especialistas entendidos.
O presente tema adentrou em diversas questões filosóficas ocultas nas
questões tecnológicas da atualidade, pontuando perigos e remédios. O
cerne da questão reside na percepção dos valores que serão tidos como
prioritários nos próximos tempos. É um dever social atentar para a huma-
nização dos julgamentos e prolação de decisões, de forma que as tecnolo-
gias sirvam para auxiliar no processo e não como verdadeiros substitutos
autônomos. O Big Data deve ser utilizado como uma ferramenta informa-
cional para direcionamento de julgamentos, mas não pode decidir, por si
só, questões de significação, justiça e equidade, sob pena de colocar em
risco a objetividade e a própria ciência do Direito.
473
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
É preciso reconhecer e reafirmar os valores humanos, estabelecendo
novos alicerces éticos que servirão de base para esse processo. O imperati-
vo categórico de Kant talvez não esteja mais amoldado aos tempos atuais,
mas sua ideia de dignidade o está mais do que nunca: deve-se tratar a hu-
manidade sempre como um fim e si mesma, nunca unicamente como um
meio.
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é apresentado em congresso internacional sobre tecnologia. Disponível
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NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria: Como a estatística pode reinventar o
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rídica na sociedade da informação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 457-
476.
__________________________________________________
476
POSFÁCIO
[Polifonia]
Devido ao pré-entendimento resultante do título, confesso que, antes
de abrir o arquivo e folhear o índice do livro, esperava uma Obra muito
diferente. Esperava uma sequência estruturada, estritamente planejada em
termos geométricos e epistemológicos, tratando das bases já consolidadas
do Direito Digital, com uma sua explanação de acordo com o estado da
arte no que se refere às Fontes do Direito Brasileiro, assim como diálogos
com as de Ordenamentos próximos ou em especial relevantes.
Mas, me deparei com algo muito diferente, que me surpreendeu. Uma
demanda múltipla, entrecruzada, com ausências temáticas patentes e em
alguns aspectos com uma aparência inclusive caótica, não só e não apenas
quanto às questões enfrentadas, mas também e sobretudo nas perspectivas,
muitas delas inusuais em Obras jurídicas.
O que me levou a olhar o índice biográfico dos Autores. No qual me
aguardava mais uma surpresa, além de vários Juristas, atuantes na
Academia e com cujos trabalhos na matéria já me deparara, o integravam
Colegas oriundos das Ciências Naturais, da História, da Economia ou da
Filosofia. Embora nenhum da Computação, o que trouxe uma surpresa
dentro da surpresa. Além destes, ainda um número significativos de
Advogados, nem todos atuando prevalentemente no ramo, e bem assim
diversos estudantes de Graduação.
Porém, é esta mesma diversidade de vozes, uma polifonia, com pontos
de partida e até mundividências múltiplos, a conferir singularidade e
relevância à Obra. Embora exigindo um esforço adicional para o leitor, o
qual deve assumir todas consequência decorrentes da “Teoria [ou Estética]
da Recepção”, construindo os seus próprios percursos de leitura,
477
Manuel David Masseno
alternativos ao que lhe é sugerido pelos Organizadores, e com eles os
novos horizontes de sentido que poderá fundir com o seu anterior.
Para finalizar, confesso também haver aprendido muito e, mais ainda,
identificado conexões conduzindo a visões novas. Tenho a certeza de não
haver sido o único a chegar a uma tal conclusão.
Beja, junho de 2020.
MANUEL DAVID MASSENO
Professor Adjunto do IPBeja - Instituto Politécnico de Beja, onde
também integra as Coordenações do Laboratório UbiNET –
Segurança Informática e Cibercrime e do MESI – Mestrado em
Engenharia de Segurança Informática, sendo ainda o seu
Encarregado da Proteção de Dados. Pertence à EDEN – Rede de
Especialistas em Proteção de Dados da Europol – Agência
Europeia de Polícia e ao Grupo de Missão “Privacidade e
Segurança” da APDSI – Associação para a Promoção e
Desenvolvimento da Sociedade da Informação, em Portugal;
assim como ao Grupo de Estudos de Direito Digital e Compliance
da FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, à
Comissão Estadual de Direito Digital da Ordem dos Advogados
do Brasil, Seção de Santa Catarina e ainda à Comissão de Direito
digital da Subseção de Campinas da OAB.
478