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Organizadores

EDIMAR MOREIRA
VANILDO LUIZ ZUGNO

PLENAMENTE HUMANO,
SIMPLESMENTE IRMÃO

PORTO ALEGRE ESTEF


BRASILIA CRB

2021
1
Ficha catalográfica

2
Sumário
Apresentação................................................................................6
Prefácio...........................................................................................8
PLENAMENTE HUMANO,
SIMPLESMENTE IRMÃO!................................................................12
Com Maria, peregrina na fé..................................................................12
Plenamente humano: “Tomar posse do nosso processo de
maturação humana”.............................................................................12
Simplesmente e Plenamente Humano!.................................................16
Simplesmente irmão: “Viver marianamente a travessia
para a simplicidade.”.............................................................................19
Maria, Simplesmente nossa Irmã..........................................................25
“ONDE ESTÁ TEU IRMÃO?” (Gn 4,9) UMA LEITURA
NARRATIVA DO EPISÓDIO DE CAIM E ABEL............................27
Delimitação e estrutura do texto...........................................................30
A teologia.............................................................................................30
Abel, Caim e a misericórdia divina.......................................................44
Caim, Abel e nós..................................................................................45
O problema..........................................................................................45
O caminho . ........................................................................................46
Conclusão............................................................................................48
O eixo da fé (teológico)........................................................................48
O eixo da fraternidade (social)..............................................................48
RELIGIOSO IRMÃO: MEMÓRIA E ESPERANÇA.........................53
Jesus Cristo - a Igreja – opções de vida ................................................56
O itinerário da identidade do Religioso Irmão......................................58
Em outras palavras, como diz Ricoeur .................................................59
A questão da identidade pessoal e social................................................61
Desafios para viver com alegria a opção de religioso irmão . .................63
FRATERNIDADE: DOS PRINCÍPIOS DO
“SER IRMÃO” E DO “SENTIR-SE IRMÃO”....................................66
Um perpassar do “ser-irmão” ao “sentir-se irmão”.................................66
A evocação do sentimento como resposta a um
mundo profundamente carente............................................................67

3
Sentir e saber sentir, como laços necessários entre o
sentimento e a cognição.......................................................................68
O sentimento de Fraternidade: princípio e fundamento
das relações entre pessoas consagradas...................................................72
Dar nome é fazer existir........................................................................73
Dar nome é assenhorear-se...................................................................73
Dar nome é dar uma missão.................................................................74
Dar nome é fazer um convite................................................................74
Fraternidade como sinal.......................................................................75
DIGA-ME COM QUEM TU ANDAS...............................................79
O paradigma trinitário.........................................................................81
A construção das identidades................................................................82
As relações sociais.................................................................................86
Para concluir........................................................................................88
IMPLICAÇÕES ÉTICAS DE JESUS IRMÃO...................................89
Quem é meu irmão?.............................................................................90
Jesus Cristo, nosso irmão......................................................................91
Uma comunidade de irmãos . ..............................................................93
Viver como Jesus viveu.........................................................................95
O Deus encarnado se faz nosso irmão...................................................97
A CONTRIBUIÇÃO DO RELIGIOSO IRMÃO PARA OS
NOVOS CAMINHOS DA CONVERSÃO SINODAL...................101
Os religiosos irmãos na Igreja povo de Deus.......................................102
Uma Igreja Sinodal - Novos caminhos de conversão...........................103
Uma experiência Ministerial – Irmãos das Escolas
Cristãs (Lassalistas) ............................................................................105
Sensus Fidei........................................................................................111
As contribuições do religioso irmão para a conversão sinodal..............113
PAISAGEM RELIGIOSA: RELIGIOSO IRMÃO E
ECOLOGIA INTEGRAL.................................................................116
Inspirações que iluminam e desafiam a
vocaçãodo religioso irmão .................................................................121
Olhar amoroso, cuidadoso e esperançoso: aprendizagens
para a jornada de conversão. ..............................................................124
Olhar amoroso ..................................................................................124

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Olhar cuidadoso . ..............................................................................125
Olhar esperançoso..............................................................................127
Passos seguintes para outras paisagens religiosas possíveis . .................128
O PERDÃO NA VIDA DO RELIGIOSO IRMÃO..........................132
Esclarecimentos..................................................................................133
Perdão a si mesmo..............................................................................136
Jesus Cristo, plenitude do amor e do perdão.......................................139
Pessoas que cultivaram a capacidade de perdoar . ...............................141
Experiência de Deus amor e perdão....................................................142
Passagem das lutas humanas para as lutas espirituais...........................144
Fator essencial para a vivência do perdão............................................146
ITINERÁRIO DO IRMÃO EM VISTA DE
UM PROJETO DE VIDA.................................................................151
Retomando o ponto de partida...........................................................151
A necessidade do acompanhamento....................................................152
Processo para o discernimento............................................................152
Motivações vocacionais.......................................................................153
Aspectos profissionais dentro do Projeto de Vida................................155
Edificando o caminho........................................................................155
Estabelecer prioridades.......................................................................157
Refletindo sobre a sistematização do Projeto de Vida..........................157
Considerações finais...........................................................................159
O JUNIORATO E O RELIGIOSO IRMÃO:...................................161
Intuições sobre um caminho de
formação personalizada......................................................................161
O processo de decisão.........................................................................163
O estudo da Teologia..........................................................................165
Preparação para a vida profissional......................................................169
VOCAÇÃO E PROFISSIONALISMO.............................................177
O que necessitamos para sermos
bons seres humanos em nossa missão..................................................177
Referências de revistas sobre a Vida Religiosa
Consagrada de Irmãos........................................................................181

5
Apresentação

A obra intitulada “Plenamente humano, simplesmente Irmão”,


chega num momento oportuno para resgatar a laicidade consagra-
da. Arrisco a dizer que seria a semente primeira da Vida Religiosa
consagrada, ou seja, cristãos leigos e leigas, que sentiram o apelo à
fraternidade vivida num carisma especifico à luz do seguimento de
Jesus, mantendo-se livre das amarras do clericalismo. Contudo, o
dinamismo da VRC proporcionou uma mescla bastante delicada en-
tre o clerical e o laical, ofuscando até, em certa medida, a laicidade.
Parabenizo, portanto, a equipe organizadora deste estudo e es-
pero que seja uma ajuda para a reflexão sobre a vocação do irmão
consagrado nos dias atuais.
Parafraseando São João, podemos dizer que no início eram
cristãos leigos eremitas, cenobitas, mendicantes, pregadores, enfim,
consagrados para servir a humanidade na simplicidade da irman-
dade, sem a pretensão da identidade clerical. Contudo, o processo
de clericalização da Igreja católica, trouxe consigo a mistura, nem
sempre benéfica, de ambos estados de vida laical e clerical, causando
um certo mal-estar quanto ao exercício da autoridade religiosa, pois,
para muitas congregações clericais, nas quais também têm irmãos, o
acesso a determinados cargos é vetado.
O livro apresenta a identidade do irmão tendo como base a espi-
ritualidade cristã, ou seja, a laicidade. Trata-se da busca necessária da
identidade do irmão num forte contexto eclesial clerical. É fato, que
em nossos dias, o encantamento por aquilo que define o clérigo é mui-
to mais evidente e glamoroso que o laical. Há uma inquieta busca de
segurança e visibilidade, questões que parecem não serem tão obvias
no irmão consagrado. Enquanto o clérigo é pop, o irmão é ofuscado e
sem identidade definida, inclusive do ponto de vista profissional.
Então, faz-se urgente aprofundar o sentido do sentir-se irmão de
fato, como chamado a uma forma exclusiva e de total consagração

6
à luz da fidelidade dinâmica comprometida com a ação evangeli-
zadora. O irmão não é um religioso genérico, mas um ser humano
configurado a Jesus Cristo segundo o carisma fundacional. Isto re-
quer passar, no processo formativo, do funcionalismo ao ser pessoa
em missão, daquele que sabe de tudo um pouco, para o que com
competências desenvolve um serviço segundo sua originalidade.
De tudo isso brota necessariamente uma revisão do processo for-
mativo dos irmãos que possa corresponder a uma nova mentalidade,
na qual, a narrativa do passado possa iluminar o presente e projetar
um futuro para a compreensão da laicidade consagrada inserida num
projeto comum de missão do instituto, inclusive, rompendo com os
paradigmas de submissão e até de baixo estima em relação ao clérigo,
sobretudo nos institutos mistos.
Por fim, a teologia da VRC precisa avançar na reflexão do re-
ligioso irmão para evidenciar sua natureza, relevância e profetismo
na atual conjuntura da Igreja samaritana que não pode ter medo de
descer, como Jesus, ao humano para exaltar o divino.

Brasília, 08 de janeiro de 2021

Ir. Maria Inês Vieira Ribeiro, mad


Presidente da CRB Nacional

7
Prefácio
Dom Helder Câmara conta que, certa vez, foi procurado por
um homem que via nele seu último grau de esperança. Ele se lem-
brou então de um amigo que tinha uma grande loja, fez um bilhete
para que o pobre levasse consigo e entregasse quando fosse ao seu
encontro. Nele se dizia: “Acredite se puder! Severino, o Bill, que
está na sua frente, é meu irmão de sangue. Veja a situação a que ele
chegou. Pelo amor de Deus, faça com que ele volte daí empregado”.
Seu amigo recebeu a carta, lhe telefonou e disse:
–– Olha, o seu irmão está empregado. Arrumei ainda para ele
uma roupinha, um sapato... Mas me diz uma coisa, como
é que o irmão do senhor cai nesta miséria? Eu não consigo
entender! Seu irmão em uma miséria destas?!!!
–– Me diga uma coisa. Está seguro o emprego dele né?
–– Ah! Estou vendo que o senhor me enrolou!
–– Enrolei coisa alguma.
–– O senhor disse que esse era seu irmão.
–– E é! Na minha terra quem tem o mesmo pai é irmão.
–– Mas o senhor disse que era seu irmão de sangue!
–– E é! O mesmo sangue que Cristo derramou por mim, der-
ramou também por ele. Nós somos irmãos do sangue que
Cristo derramou por nós!
O santo bispo cearense colocou em prática a máxima de Jesus:
“todos vós sois irmãos” (cf. Mt 23,8). Deixou-se interpelar pelo ou-
tro e assumiu inúmeras vezes atitudes concretas diante da realidade,
principalmente em defesa dos irmãos mais vulneráveis e pequeninos
(cf. Mt 25, 31-46). Também a Vida Religiosa Consagrada tem feito
sua escolha de se fazer irmã daqueles que mais precisam. Tanto é,
que há na Igreja um modo de ser reconhecido em sua estrutura que
é chamado de “irmão”!

8
O religioso irmão é um homem que busca colher frutos mais
abundantes de sua consagração batismal por meio dos votos religio-
sos e que, a partir de um carisma específico e de seu serviço, busca
mostrar o rosto de Jesus irmão em sua vida cotidiana, em vista da an-
tecipação do Reino de Deus. Buscando evitar contra valores que não
correspondem à proposta do Reino de Deus, esse homem concreto,
integra as diversas dimensões de sua vida: oração, relações fraternas,
apostolado, lazer, cultura, estudo etc.
Jesus fez-se irmão de todos para todos. Em realidades muitas
vezes marcadas pelo desejo de oprimir e pelo abuso de poder, reco-
nhecer a grandiosidade de ser simplesmente irmão demanda uma
profunda e verdadeira integração humana. Somente quem está ver-
dadeiramente integrado, poderá acolher e viver sua vocação, dom de
Deus, sem precisar desprezar os demais e viver feliz. Por isso, o tema
que orientou o V Seminário de Religiosos Irmãos, promovido pela
CRB Nacional, em Fortaleza, CE, no ano de 2019, foi “Plenamente
humano, simplesmente irmão”.
É preciso continuar refletindo sobre a vocação do religioso ir-
mão. Mesmo autorais, ainda são poucas as obras que versam sobre
o assunto, tais como: “Todos vós sois irmãos” (Frei Fabiano Satler,
OFM), “Vocês todos são irmãos” (Frei Vanildo Zugno, OFMCap)
e “Simplesmente irmão” (Frei Edimar Moreira, O.Carm.). Uma
carência de uma obra coletiva em português que vise aprofundar,
seja a partir do ponto de vista teológico, seja a partir de outras áre-
as do conhecimento veio acompanhada da percepção do potencial
reflexivo que temos no Brasil para a elaboração de um conteúdo
relevante. O contato com algumas obras estrangeiras, como “Who
are my Brothers?”, “Blessed Ambiguity”, “Il fratello religioso nella
comunità eclesiale oggi” e “Religiosos Hermanos hoy”, serviram de
motivação para idealizar este projeto.
O título “Plenamente humano, simplesmente irmão” nos pos-
sibilita olhar pelo menos duas dimensões do ser irmão. “Plenamente
humano” parte do fato de o irmão ser uma pessoa concreta, com tudo
aquilo que o ser humano tem de potencialidade e de desafio. Por isso,
9
a busca pela integração humana é uma tarefa que perpassará toda sua
vida. Um irmão humanamente imaturo terá dificuldades em viver a
plenitude de sua vocação. “Simplesmente irmão” significa reconhe-
cer a completude de uma vocação no seio da Igreja. A relevância de
sua vida não se dá por seu status ou título, mas pela fraternidade e
simplicidade inerentes ao programa de vida daqueles e daquelas que
assumem o compromisso de seguir os passos do mestre Jesus.
Essa obra tem por objetivo refletir sobre a integração humana
do irmão, sob a ótica da espiritualidade cristã, como caminho para
ser sinal profético do Reino de Deus na Igreja e no mundo. Para tal,
são três os blocos que vinculam o tema da integração à vocação do
religioso irmão: identidade, ação e formação.
Na primeira parte, a ênfase é a identidade. Irmã Annette Ha-
venne abre o livro colocando em sintonia a busca por integração e a
simplicidade necessária para um caminho autêntico de seguimento
de Cristo. No segundo texto, frei Rivadave Paz Torquato O. Carm.,
fundamento a importância e os desafios do ser irmão a partir da
análise da relação entre Caim e Abel descrita no livro do Gênesis.
Em seguida, irmão Paulo Dullius, FSC, reflete sobre a identidade do
irmão que se torna expressão por meio também de sua missão. Os
irmãos jesuítas Epifânio Barbosa Lima e Jorge Luiz de Paula apre-
sentam o discutem os princípios do ser e do sentir-se irmão. Por
fim, com um enfoque eclesiológico, frei Vanildo Zugno, OFMCap,
propõe um modelo ministerial que prioriza uma participação mais
comunitária de todos os membros da Igreja.
Na segunda parte, a prioridade está no campo do agir. Não é o
dizer-se irmão que garante a vivência fraterna. Por isso, frei Oton da
Silva Junior, OFM, aponta para as implicações éticas inerentes do
considerar Jesus nosso irmão. Em seguida, irmão Edgar Genuino
Nicodem, FSC, à luz do sínodo da Amazônia e da experiência edu-
cacional de sua congregação, aponta para um caminho de conversão
sob uma ótica mais sinodal. Em sentido similar, seguirão os irmãos
maristas João Gutemberg Mariano Coelho Sampaio e Lucas José Ra-
mos Lopes ao refletirem a relação da vocação do irmão com o tema
10
da teologia integral. Por fim, irmão Otalívio Sarturi, FMS, discorre
sobre a temática do perdão no caminho de conversão necessária à
vida daqueles que almejam viver a fraternidade.
Na terceira e última parte, a chave de aproximação será o iti-
nerário formativo. Frei Rubens, OFM, reflete sobre as demandas
inerentes ao acompanhamento vocacional em vista da projeção e re-
alização do Projeto de Vida do candidato. Em seguida, frei Edimar
Fernando Moreira, O.Carm., pondera sobre o estudo da teologia e a
profissionalização, presentes sobretudo durante a etapa do juniorato
em diante. Por fim, irmão Cláudio André Dierings, FSC, discute so-
bre as facetas da profissionalização com as quais a VRC se relaciona.
Registramos aqui nossa gratidão a cada autor que se dedicou
generosamente para colaborar nessa empreitada. Também uma gra-
tidão à CRB Nacional, na pessoa de sua presidente, irmã Maria Inês
Vieira Ribeiro, MDA, por sua incansável missão de animar a VRC.
Ela tem sido grande instrumento de motivação para todos os irmãos,
sobretudo na animação dos Seminários e na criação do Grupo de
Trabalho dos Religiosos Irmãos.
Esse trabalho conjunto chegará a seu termo na medida em que
sirva para ampliar as reflexões sobre a vocação do religioso irmão
daqueles que dele se aproximarem. Boa leitura!

Organizadores

11
PLENAMENTE HUMANO,
SIMPLESMENTE IRMÃO!
Com Maria, peregrina na fé

Annette Havenne1

Esse artigo convida a cada um a revisitar sua caminhada voca-


cional e missionária. Olhando para o tema, “Plenamente humano,
simplesmente irmão”, nós podemos perceber os dois passos de um
processo que pode ser descrito em termos de propostas ou atitudes
de vida, a partir de um percurso! Esse percurso oferece dois impulsos
ao mesmo tempo teológicos e vivenciais: Plenamente humano, eis o
convite a tomar posse do nosso processo de maturação humana. Sim-
plesmente irmão, eis o apelo a viver marianamente a travessia para a
simplicidade. São duas dimensões muito unidas no dia-a-dia e na vida
de cada um, mas por motivos didáticos, proponho aprofundá-las uma
por uma, para depois tecer a síntese e delinear perspectivas.

Plenamente humano: “Tomar posse do nosso processo de


maturação humana”
Você já parou para verificar a solidez humana da sua proposta
de vida? Será que ela oferece condições mínimas para um desenvol-
vimento humano harmonioso ou ela infantiliza? É desta pergunta
que desejo partir: vamos verificar os fundamentos humanos, as fun-
dações do edifício, antes de continuar a construção. É prudência,
é sabedoria, é realismo, é antropologia... É consequência lógica do
seguimento de um Deus que por amor nos cria e por amor nos re-
cria em Jesus, tornando-se um de nós, nosso irmão! Sim, somos seres
1 Religiosa da Congregação das Irmãs de Santa Maria. O texto é transcrição das
intervenções de Irmã Annette no Seminário e guarda, por isso, o tom coloquial.
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vivos por causa do Espírito agindo em nós, contudo somos seres que
fazem a experiência da humanidade, nosso chão primeiro!
Na fé judaico-cristã, o primeiro homem é chamado de: o Adam,
(o Adão), nome que na realidade não é um nome próprio e sim genéri-
co, que tem sua raiz na palavra Adamá, a terra. Pois Adão é tirado dela,
moldado pelo divino Oleiro! Poderíamos traduzir esse nome: “o terro-
so” o “barroso”, o “feito-de-argila”! Ele vive num jardim, cuida deste
jardim, cultiva a terra da qual foi tirado... Você não pode sonhar uma
conexão ecológica mais expressiva, que por sinal, lembra a sabedoria
Inca: “O ser humano é terra que anda”! E como é oportuno lembrar
isso exatamente no momento do Sínodo com a Amazônia.
Para projetar este primeiro passo, vamos lançar mão da psicolo-
gia humana, escolhendo uma ferramenta que vai nos ajudar a captar
como funciona o itinerário não apenas do desenvolvimento, mas da
maturação humana, concretamente no contexto da VRC.
Pode ser que algum leitor aqui tenha alguma resistência à psico-
logia, e a resistência pode se agravar quando essa bendita psicologia
chega através de uma mulher. “Vai que esta mulher é meio cigana e
adivinha o que sinto e penso, que nem minha mãe, sem nem olhar
na palma da minha mão...”
Um entendido nesta área humana e também pessoa de fé dizia:
“Sem a psicologia há processos que não desencadeiam. Só com ela
muitos processos não chegam até fim... Tem o momento em que
psicologia e espiritualidade precisam se dar as mãos”. Vamos tentar!
A seguir, teremos a oportunidade de avançar, entrando pela porta da
espiritualidade, buscando algo mais... Por enquanto vamos ficar com
o Adão, nosso irmão terroso!
Nesta introdução gostaria de relevar o sentido da presença de
religiosas no meio de irmãos e da opção de pedir a uma mulher con-
sagrada para escrever esse primeiro capítulo. Acho uma opção muito
feliz porque nós irmãs dividimos com os irmãos a graça, - digo a
graça e não a limitação - de viver simplesmente, “tão somente” a vida
consagrada, sem somá-la com o ministério sacerdotal.

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Há anos que a CRB nacional e a CLAR, em nível de América la-
tina, vêm oferecendo propostas de aprofundamento da identidade da
VRC, como tal. Em 2018 tivemos, em Belo Horizonte, um Congres-
so de religiosos presbíteros no qual trabalhamos a identidade e missão
do religioso padre. A revista Convergência publicou artigos retoman-
do algumas palestras deste congresso. No número 519 da revista, foi
publicado um artigo com o tema: “Religiosos presbíteros: identidade
problemática!” Permitam-me então fazer um pouco de humor e reagir
dizendo: Que bom, não é a identidade nossa que é problemática!
Levantar essa questão não significa desfazer da vocação dos reli-
giosos presbíteros, mas é, para nós, convite para voltar à simplicida-
de das origens. Não cabe aqui e agora um longo estudo da história
da VRC, porém é importante lembrar que no início esta “forma de
vida” era puramente laical: nada indica que são Bento fosse sacerdo-
te, e tem historiadores questionando a realidade do diaconato de são
Francisco. O que não diminui em nada o valor destes dois santos,
cada um na origem de um novo modelo de VRC. Só depois, por
vários motivos, entre os quais a assistência ao povo de Deus, faltando
de pastores, a VRC acabou acolhendo largamente essa criatividade
vocacional do Espírito santo que é o religioso-presbítero, deixando
este último com um desafio de “interface” a resolver!
Mas vamos ao assunto que nos diz respeito, a “nosso vocação”,
permitam-me chama-la de “nossa”! Em 2015, Roma publicou um do-
cumento chamado “Identidade e missão do religioso irmão na Igreja” e
na introdução deste documento, Dom João Brás de Avis lembra que a
reflexão, com algumas adaptações, vale também para as religiosas. Por-
tanto a partir de agora falarei da “nossa vocação, identidade e missão”.
Trabalhar juntos essas questões pode também ser um bom passo
para fazer em nós a integração do masculino e do feminino, sem dú-
vida um dos passos da maturação da nossa identidade necessário para
ser plenamente humanos! Talvez essa integração seja ainda mais neces-
sária quando a gente faz opção pelo celibato consagrado! Consagrado
maduro, consagrada madura aprende a tecer relações fraternas huma-
namente significativas com o “diferente” e se enriquece com isso! Sem
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confusão com flerte, namorado ou qualquer “terceira via”, sem medo
e sem complexo de inferioridade ou de superioridade, se é que existe!
Feita esta introdução de modo a nos situar, vamos à questão
da maturação humana do religioso irmão, a partir do estilo de vida
que é o seu. Nas suas comunidades mistas ou só de irmãos, como é
o processo de formação e maturação humana?
Pois hoje temos clareza de uma coisa: o amadurecimento não vem
automaticamente junto com o processo de maturação e de envelheci-
mento físico! Muita atenção, pois percorrendo nossa linha do tempo,
podemos envelhecer amadurecendo, ou endurecendo, ou ainda apo-
drecendo! E isso vai depender muito da nossa devoção pessoal. Você é
devoto de “santo DES” ou de “santa RÉ”? Não, esses dois não foram
canonizados no inicio do mês junto com irmã Dulce... Há muitos
anos eles tem seus devotos nas comunidades de VRC!
Os devotos de “santo DES” são os que envelhecem DESencan-
tados, DESanimados, DECepcionados, DESolados, DESiludidos
com sua opção de vida e DESconsolados com as oportunidades que
perderam por causa dela! Quanto aos devotos de “santa Ré”, eles
também passam pelas crises, as dificuldades, os desafios inerentes ao
itinerário de uma vida humana, mas não estagnam nestes acidentes
de percurso. Eles, com a ajuda da santinha, tomam outra atitude:
REnovar, REciclar, REssignificar sua opção, REinventando-a em
circunstâncias externas ou internas, diferentes do momento inicial.
Eu não sou minha história nem minhas circunstâncias. Elas me
impactam, mas eu posso decidir o que faço com elas. Não escolho
tudo que acontece comigo, nem as emoções e sentimentos que sur-
gem em decorrência disso. Escolho sim, as atitudes que eu tomo
frente às dificuldades e até adversidades!
O interesse da proposta psicológica que desejo passar nessa re-
flexão é que ela vai nos ajudar a reler e ressignificar as dimensões
da nossa humanidade, ao longo da nossa vida e das nossas circuns-
tâncias. Trata-se, basicamente, de dar um novo sentido humano ao
nosso percurso, identidade e missão.

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Existe entre nós e quem sabe em nós, a caricatura do irmão
humilde, serviçal, obediente até... Porém cheio de murmuração, de
rancor e de frustrações! Não vai adiantar muito pegar um elevador,
subir para o andar de cima, o de uma santidade desligada da vida,
para chorar e rezar até o “problema” passar por milagre ou curto-
circuito! É mais eficaz rezar a partir do andar de baixo, ter a coragem
de olhar para o nosso humano e trabalhá-lo para depois subir pelas
escadas para o andar de cima! Isso sim é bom para o coração!
O esquema psicológico que estou propondo vem, da escola de
psicologia chamada “Gestalt”. Uma palavra germânica que significa
forma, figura, e por extensão configuração, constelação. Eu a escolhi
por vários motivos práticos: está muito mais perto das nossas reali-
dades do que certas análises psicanalíticas que exigem mais tempo
para entender de que se trata, a linguagem utilizada, o desenrolar da
terapia. Proponho um esquema que vai ajudar a entender e integrar
melhor o humano em nós, dentro da nossa vocação própria.
A inspiração do quadro a seguir vem do Dr. Ênio Brito, que
trabalha muito a psicologia da Gestalt entre os religiosos e sacerdotes
do Brasil. O interessante é que ele propõe exatamente o processo de
integração de tudo que nos constitui como seres humanos. Descreve
com palavras simples e concretas o que Carl Jung chamou o processo
de “individuação” da segunda metade da vida.

Simplesmente e Plenamente Humano!


Uma visão do ser humano a partir da psicologia da Gestalt.2

As dimensões da Pistas para amadurecer de modo mais saudável!


nossa identidade

2 Inspirado em: PINTO, Enio Brito. Psicologia de curta duração na


abordagem gestáltica. São Paulo, Summus , 2009.
16
Relações comigo mesmo, meu corpo,
sentimentos,
pensamentos, sexualidade, convicções, celibato!
Relações com os outros? Mulheres?
Autoridades?
Somos seres de
Terapeuta, médico...
relações.
Com crianças, com o desejo de poder?
Com os irmãos na comunidade?
Com acompanhante espiritual, sacerdote,
superior?
Com o Deus de Jesus Cristo, nosso irmão!

Espaço: Minha “zona de conforto, minha


Somos seres situados praia” ou o campo fraterno da comunidade e o
no tempo e espaço. campo aberto da missão?
Como vivo, ocupo, Tempo: passado, presente, futuro...
interajo no meu Entre a dependência infantil, a autonomia
“campo vital”? adolescente e a interdependência adulta, como
ressignifico discernimento, decisões que eu
tomo, obediência?

Estou amadurecendo, estagnando, regredindo?


Somos seres Minhas trocas com o meio são saudáveis?
evolutivos. Dar >< receber. Como ressignifico o voto de
pobreza?

Como faço uma diferença positiva, modifico


meu meio?
Exerço liberdade com responsabilidade, assumo
as consequências dos meus atos?
Somos seres Uso a criatividade para crescer, resolver meus
criativos! problemas, amar os demais? Sou criativo com o
envelhecimento?
Quais as áreas saudáveis da minha pessoa que
são minhas forças nas horas de crise? E as
fragilidades minhas?

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Como reverencio o mistério em mim, nas
outras pessoas? Para nós mesmos!
Que significado dou ao que não entendo, mas
Somos seres
posso abraçar, compreender? Por exemplo
complexos, um
a doença, o sofrimento, os conflitos, as
mistério
contradições?
Como leio o toque de Deus nesta minha
caminhada?

Como lido com a ansiedade da finitude?


O que não consigo deixar, perder?
Somos seres para a
Despojamento, partilha, simplicidade...
morte...
Qual o significado da vida eterna, da
ressurreição?

Esta reflexão que acabamos de tecer não está destinada a ficar


no papel como um belo exercício de aplicação da teoria de Gestalt à
vida dos religiosos. Somos convidados a tomar posse deste processo,
ou seja, tomar consciência das riquezas, forças e fraquezas internas
nossas, também das oportunidades e obstáculos presentes em torno a
nós, no campo da vida, da profissão, da missão, da Igreja... e a fazer o
processo de integração acontecer com liberdade e responsabilidade.
Para manter o bom humor e o ambiente mistagógico que ensi-
na usando parábolas gostaria de encerrar esta primeira reflexão com
uma história tirada da vida dos padres do deserto (séc. 2). Não vou
seguir o texto original. Contarei com minhas palavras:
“Um jovem, desejoso de abraçar a vida eremítica, foi para o de-
serto e construiu sua pequena cabana ao lado da cabana de um velho
monge com fama de santo, que indicaram para ele. Assim acontecia
a formação naqueles tempos benditos: por observação e osmose!
O noviço ficou observando o santo... não descobriu o segredo
desta santidade... Depois de um tempo, foi ter com o santo ancião
e perguntou: O que é mesmo ser santo? Não vejo em você nada de

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extraordinário: você dorme, acorda, reza, come, trabalha, reza mais
um pouco, vai para a cidade vender seu artesanato... faz um pouco
de penitência, dá esmola, acolhe quem vem lhe pedir conselhos...
Mas todos fazem isso, até eu!
O ancião olhou para ele com carinho e respondeu: sabe filho não
sei se sou santo, mas só sei que tenho uma leve diferença: eu, quando
durmo, durmo... quando rezo, rezo... quando como, como... quan-
do trabalho, trabalho... Você meu jovem, quando dorme pensa no
trabalho, quando reza pensa na comida, quando come se preocupa
com a penitência, quando escuta alguém sente sono...”
–– O que é mesmo ser plenamente humano? O que é ser sim-
plesmente santo?

Simplesmente irmão: “Viver marianamente a travessia para


a simplicidade.”
Até aqui, refletimos sobre o processo de maturação que nos tor-
na plenamente humanos, a partir de alguns elementos de antropo-
logia, trabalhados pela psicologia da Gestalt. Para nós, a maturação
passa pelo desenvolvimento adequado e saudável das relações, pela
acolhida das nossas circunstâncias como espaço, lugar, processo evo-
lutivo, capacidade criativa, complexidade e finitude. Verificar cada
uma destas dimensões se torna como um teste do nosso “Bem Viver”
na vocação à vida religiosa consagrada! Oxalá seja ela uma “Terra
sem males” neste ponto de vista.
Agora entramos na segunda parte da nossa reflexão. Provavel-
mente, a primeira parte nos deixa com gosto de queiro mais. Isso é
excelente, porque nos lembra que a meta da vida que escolhemos,
da vocação à qual respondemos não tem como mero objetivo a
nossa própria realização humana! Tem algo mais: a busca da san-
tidade, a sede de Deus, e também a inquietação com os gritos da
humanidade e da mãe terra. Por isso, em busca deste algo mais,
a reflexão nos provocará a fazer saídas: de nós mesmos, da nossa
zona de conforto, da nossa praia, das coisas que supostamente nos
19
realizam e das que não nos realizam... para empreender uma tra-
vessia de fé vocacional e missionária. Faremos essa viagem pegando
na mão de Nossa Senhora, mestra de simplicidade evangélica e
simplesmente nossa irmã! Portanto, surge-nos o convite a viver ma-
rianamente a travessia para a simplicidade evangélica!
E isso não vem ao acaso, mas quer nos lembrar exatamente em
que consiste a nossa vocação à VRC: ser simplesmente mas decidi-
damente irmãos, irmãs.
A simplicidade evangélica não tem nada a ver com ser simpló-
rio, ser ingênuo, ser intelectualmente limitado! Quantas vezes em
sua caminhada ouviram: “Ele é só irmão... não pode celebrar, não
sabe pregar, não deu para completar o curso de teologia.” Em outras
palavras o irmão é visto como pessoa de segunda classe:, “ainda bem
que temos eles para tudo que diz respeito à cozinha, horta e oficina!”
Ou a versão mais moderna da coisa: “É um cara excelente para con-
tabilidade, orientação pedagógica no colégio, gerenciamento da casa
de acolhida, um grande profissional... mas não para ser superior ou
dar retiros!” E, pior, quando acrescentam: “Mas é humilde, serviçal e
discreto, sabe ficar no seu lugar!” Como isso dói... Porque os irmãos
não são apenas uma força-tarefa... Bem como as “irmãzinhas” não
estão apenas a serviço dos padres ou das sacristias e rouparias.
Vejam bem que isso não representa uma crítica ou um menos-
prezo aos religiosos presbíteros...
Mas uma tomada de consciência de quanto o clericalismo nos
contamina! Pois o pior não é quando outros falam assim de nós, mas
é quando nós acabamos internalizando essa ideologia, pensando isso
de nós mesmos! Como no tempo passado (só no tempo passado!)
tinha mulheres que internalizavam e divulgavam o machismo sem
se dar conta, existem irmãos, que ainda hoje, expandem uma visão
clericalista da VRC.
É tempo para atualizar os dados sobre a vocação de irmão. Tran-
quilamente cavar e redefinir, reinventar a nossa vocação e missão
própria em nossas congregações, sejam elas mistas ou constituídas
unicamente por irmãos de vida consagrada.
20
Ser simplesmente irmão... O que o evangelho entende por sim-
plicidade? Algo bem diferente da humilhação, vindo de outros ou do
autodesprezo! Para o evangelho, a simplicidade do coração se refere à
falta de complicação, de duplicidade, de hipocrisia. Aqui o latim pode
até nos ajudar quando qualifica as coisas: “simplex”, “duplex”, “trí-
plex”, “complex”. “Simplex”: vivência sem retoques, na transparência
e na verdade. Homem ou mulher “de uma peça só!” Luminosidade de
um comportamento e de atitudes que condizem com o que a pessoa é,
sente, pensa e diz: a pureza de intenções, a inteireza, a integridade do
estilo de vida, do testemunho dado a Jesus e ao seu próprio projeto de
vida. Isso sim é a simplicidade... Depois ela se traduz no despojamen-
to, nas roupas descomplicadas, nas casas humildes, nas relações de paz
e sem discriminação com as pessoas, na linguagem clara, na entrega
desinteressada na missão, sem ciúmes, sem competição ou desejo de
poder. “Sede simples como pombas” nos lembra Jesus. As pombas nos
ensinam não apenas por serem lindos pássaros brancos e pacíficos, mas
principalmente porque voam em linha reta!
E, então, que tal passar do “eu sou só irmão”, dito com ar de
complexo de inferioridade ou frustração para um “eu sou somente
irmão” dito com a convicção de quem escolhe viver uma opção que
vale a pena! Por que aqui vale a lei do chamado “minimalismo” ou
para usar uma palavra mais na moda na gestão de empresas do “es-
sencialismo”. Quando menos é mais! Quando escolher um único
foco ajuda! Quando devo aprender a ser multitarefas, mas uni-foco!
Na época em que, se a gente não for cuidadosa, centrada, a dispersão
e a ativismo nos roubam de nós mesmos e da nossa identidade!
Abaixo, um texto que encontrei na revista da Gol do mês de
setembro (2019), numa das minhas últimas viagens de avião. Na
crônica de Leandro Carnal, professor na universidade estadual de
Campinas, um jovem estudante pergunta e o professor responde:
–– “Muitas vezes alcançamos a nossa meta e continuamos achan-
do que falta algo. Por que vivemos com a impressão do vazio?
–– Muitas metas são feitas para tapar um vazio já percebido.
Em outras palavras busco tal objetivo não porque ele parece
21
bom, mas porque o medo do vazio vem se instalando. Isso
acontece com quem tem filhos apenas porque os outros têm,
ou com quem faz pós porque terminou graduação. A insatis-
fação como motor de aperfeiçoamento é boa. A sensação per-
manente de frustração mesmo depois da tarefa ter sido bem
realizada, indica um “buraco negro” escondido na sua galáxia
interior. Nada poderá eliminá-lo, em particular cortinas de
fumaça travestidas de metas de produtividade frenéticas. Fa-
zer muito pode ser uma forma de evitar fazer o necessário.”
Adivinhe que título a crônica deu a esse diálogo: EU e EU!
Hora de nos perguntar: nós vivemos em torno de um buraco
negro em nossa galáxia interior ou... temos um útero? Desculpem se
provoco os irmãos com um arquétipo tão feminino... Mas a própria
Bíblia nos diz que Deus tem entranhas de mãe, em outras palavras,
um útero! Não falo aqui de biologia e sim de símbolos, mais exata-
mente de arquétipos humanos encontrados na Bíblia. Para que serve
um útero? Para a pessoa que o tem, não serve de nada. Ele serve sim
para acolher e proteger o outro, cuidar e permitir que outra vida
desabroche! Em outras palavras serve para amar...
Parece que, na vida, temos duas opções: ou construí-la em torno
de um buraco negro em nossa galáxia interior, ou dar-lhe sentido,
saindo de nós mesmos e da nossa autorreferencialidade para o amor
de cuidado, acolhendo a Deus, aos outros, sobretudo os pobres, aco-
lhendo as grandes causas da humanidade dentro de nós!
E a nossa felicidade? Ela virá como efeito colateral disso, pois
quanto mais você se preocupa com ela na primeira pessoa do verbo,
“eu felizo, eu felizardo”, mais ela nos escapa. Sim, como o lembra
Papa Francisco na Laudato Si, “Nosso horizonte, é o outro”! Nosso
horizonte de sentido é o outro!
Qual o sentido da vida de irmão? É preciso elaborar ou reelaborar
o núcleo identitário da nossa vocação primal: a de irmão, de irmã.
Antes de tudo, o seu eixo central, que é a pessoa de Jesus. Ser
irmão é corresponder ao chamado de ser simplesmente um belo
22
ícone de Jesus que quis ser, antes de tudo, nosso irmão (Jo 20,17).
Que quis nos congregar num círculo em torno dele, como seus
irmãos e suas irmãs (Mc 3,34). Que nos pede para ser irmão do
pobre, do desamparado. Um Jesus que vai se identificando com o
pobre: “ É a mim que o fazem!” “O que fizerem a uns destes meus
irmãos, é a mim que o fazem!” (Mt 25,40).
O Pe. Cantalamessa vai até dizer que como a sarça ardente do
Primeiro Testamento despertou a vocação de Moisés e sua missão de
ajudar seus irmãos a sair do Egito, o Novo Testamento também tem
sua sarça ardente que nos impele para a missão. A sarça ardente do
Novo Testamento é essa frase de Jesus a respeito dos pobres e sofre-
dores. “O que fizerem...” Jesus e os pobres são a síntese da experiên-
cia de Deus que fazemos e que nos torna irmãos!
Então, para nós, a comunidade de vida e de fé em torno de Jesus
e da sua mãe Maria, - não estou me esquecendo dela, estou deixando
ela para o fim, como o bom vinho nas bodas de Cana!- a comunida-
de, a ciranda de vida não é detalhe, ou obrigação, é vocação primeira!
“Vejam como eles se amam!” (Tertuliano, Apologia) Às vezes
nosso desencanto vem do esquecimento prático do amor frater-
no: passamos a viver o “Vejam como eles se julgam, brigam, se
ignoram, competem”. Comunidade de vida é muito mais do que
vida de comunidade. Precisamos reinventar a comunidade de vida,
além do institucional e do formal, como lar, oficina, Corpo total.
São as metáforas do padre Cabarrus para concretizar o que é uma
comunidade de vida. Lar: lugar de trocas afetivas, de atenção dada
uns aos outros. Oficina: lugar de trabalhar juntos, ombro junto ao
ombro do irmão para partilhar nossos talentos e saberes. Corpo
total: corpo congregacional marcado pelo DNA do carisma, lugar
de vivenciar a missão em saídas.
Não falem tanto da sua congregação unicamente como instituição.
Isso não ajuda. Lembre que, antes de ser instituição, somos carisma, ins-
tituintes do carisma! Entre nossas mãos esta o poder de rever, atualizar,
redesenhar, ressignificar a espiritualidade e a missão do nosso grupo.
23
Se eu escolhi ser simplesmente irmão é para ser ícone do que
realmente importa na vida consagrada, testemunha e garantia do
carisma, do “Modo-de-ser-cuidado” que passa antes do “modo-de-
ser-trabalho”! O que não quer dizer que vou ficar ocioso ou muito
ocupado em não fazer nada... Quem realmente é, também faz!
E por se falar em missão, qual a missão específica do irmão na
congregação, na Igreja, no mundo? Antes de tudo, ser a memória,
a garantia e o coração do amor fraterno em nossas casas e no meio
do povo. Simplesmente isso! Depois é que vêm os ministérios, como
expressões desta missão central e do carisma da comunidade.
Missão, outro conceito a rever! Talvez no decorrer do tem-
po, nós compreendemos a missão como propaganda, conquista,
colonização, aumento numérico. Hoje precisamos renovar a mis-
são como diálogo profético, estilo de vida que fala, que oferece uma
amostra-grátis do evangelho, um rosto de Jesus irmão. Pare de per-
der tanto tempo se perguntando: que missão Jesus tem para mim?
Pergunte a Jesus que “Mim” ele precisa para dar continuidade a
grande e extraordinária missão dele!
Aqui também quero contar uma historia, não mais dos padres
do deserto do século 2, mas da minha comunidade de inserção, na
periferia de Aracaju, numa pequena casa bem no meio das casas do
povo! A história aconteceu na noite antes da noite de Natal 2018.
Três da manhã, alguém chama no portão: “irmãs!” Uma de nós
vai olhar, na frente da casa está uma jovem senhora apavorada, segu-
rando suas duas filhas pequenas e atrás dela a viatura da polícia. Um
dos policiais pergunta: “vocês podem acolher essa senhora, o marido
tentou mata-la, a menina ligou para nós e fomos tira-la de casa. Ela
não tem parentes aqui, e não quer vir dormir na delegacia... Pediu
para vir aqui na casa de vocês. Diz que conhece vocês de vista, que
vocês são as irmãs dela, e que vocês vão abrir a porta...” E a senhora,
com lágrimas, nos olhos acrescentou: irmãs, só me vinha vocês no
coração. A porta foi aberta, elas dormiram no pequeno quarto das
aspirantes, festejamos juntas um Natal que para nós foi diferente de
24
todos os anteriores. Eelas ficaram conosco durante três dias até regu-
larizar a situação e a família vir do interior para buscá-las.
–– Qual é a primeira missão de uma comunidade de fé? Não é
de ser sinal de amor fraterno, sororal no meio do povo?
Sem o olhar de uma mãe atenta, sem o exemplo desta Mãe Ma-
ria, que soube fazer a travessia da fé e se tornar discípula do seu
Filho, irmã dos seus amigos e amigas, talvez não iríamos acertar essa
missão, nem imaginar que fosse tão simples assim. Vamos então
olhar para Maria, especialmente nas bodas de Caná, como sugerem
a CLAR e a CRB neste triênio...
A Jesus, ela diz: “Eles não tem mais vinho” (Jo 2,3).
A nós ela incentiva: “Fazei tudo que ele vos pede...” (Jo 2,5). En-
chei de novo os jarros até a borda, enchei de palavra, de oração, de
profecia, sobretudo de profecia. Pois se a função sacerdotal é ligada à
hierarquia, a missão do irmão, da irmã é antes de tudo ligada à profecia.
Como os levitas do Primeiro Testamento, estamos aí e “nossa
herança é a mais bela” (Sl 16,6). Cuidar do povo, escutar o grito do
pobre, testemunhar uma Igreja sinodal, escolhendo viver sem patri-
mônio nem matrimônio, mas com a reconfortante alegria de evan-
gelizar, sendo amostra grátis do evangelho.
Convido-o a terminar esta reflexão com um momento de leitura
orante: “Maria, simplesmente nossa irmã!”

Maria, Simplesmente nossa Irmã


–– Que passos de Maria lembram meu itinerário?

“Como se fará isso se eu não conheço Na pergunta confiante da


homem?” Lc 1, 34 busca vocacional.

Na clareza identitária e no
“Eis a serva do Senhor. Faça-se em
“cheque em branco” do seu
mim segundo a tua palavra.” Lc 1,38
sim à vida.
25
“Maria partiu para a região
montanhosa, dirigindo-se às pressas Na delicadeza das relações,
para uma cidade da Judeia. Entrou na na leveza e na disponibilidade
casa de Zacarias e saudou Isabel.” do serviço.
Lc 1, 39

“Meu espírito se alegra em Deus


meu Salvador porque olhou para a
humilhação da sua serva... socorre Na ação da graça e na alegria.
Israel seu servo, lembrando sua
misericórdia...” Lc 1, 47...54

“Enquanto estavam em Belém Maria


deu à luz seu filho Primogênito. Ela o
Na itinerância dos pobres,
envolveu em panos e o colocou numa
migrantes, perseguidos.
manjedoura pois não havia lugar para
eles dentro de casa”. Lc 2, 6-7

“Maria contemplava todos esses fatos e Na contemplação dos


os meditava em seu coração.” Lc 2, 19 mistérios de Jesus!

“Jesus desceu para Cafarnaum com sua


No seguimento de Jesus
mãe, seus irmãos e seus discípulos.”
como discípula.
Jo 2, 12

“Junto à cruz de Jesus estava sua mãe.”


Na resiliência diante da dor.
Jo 19, 25

“Todos eles tinham os mesmos


sentimentos e eram assíduos na
Na fidelidade à sua missão de
oração, com algumas mulheres, entre
Mãe de Jesus
elas Maria, a mãe junto à comunidade
de Jesus.” At 1, 14.

Que passos do meu itinerário devo ressignificar?

26
“ONDE ESTÁ TEU IRMÃO?” (Gn 4,9)
UMA LEITURA NARRATIVA DO EPISÓDIO
DE CAIM E ABEL

Rivaldave Paz Torquato3

Introdução4
A convivência entre irmãos é algo maravilhoso quando tudo
corre bem. Esta maravilha não passou despercebida ao salmista que
canta: “Vede como é bom e agradável os irmãos conviverem unidos”
(Sl 133,1). Entre as coisas que encantam o Sirácida está a concórdia
entre irmãos (Sir 25,1-2). Todavia, esta beleza de convívio tantas
vezes é ofuscada por um aspecto sombrio: a rivalidade e hostilidade
entre irmãos. É um problema primitivo do ser humano que o perse-
gue ao longo dos séculos. As civilizações passadas verbalizaram este
drama em suas mitologias e lendas. Daremos alguns exemplos.
Segundo a mitologia romana, a cidade de Roma foi fundada por
dois irmãos gêmeos, Rômulo e Remo. Rômulo torna-se o primeiro
rei da cidade e mata Remo (BELTZ, 1974). Na mitologia grega, o rei
Édipo de Tebas tinha dois filhos, Etéocles e Polinices. Eles disputavam
a sucessão. Após longas discussões concordaram em reinar alternada-
mente, cada um por um ano. A Etéocles, o primogênito, tocou reinar
primeiro. Entretanto, negou-se a passar o cetro ao irmão Polinices e
o expulsou da cidade. O irmão inconformado resolve usar a força e
3 Religioso presbítero carmelita. Doutor em Teologia. Professor na Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte. Endereço: rivaldave.paz@
gmail.com
4 Inspirado na Campanha da Fraternidade de 2018: Fraternidade e superação
da violência. “Vós todos sois irmãos” (Mt 23,8), este artigo foi publicado
originalmente pela Revista Bíblica (2019) p. 221-246 a quem agradecemos
a gentil autorização para aqui publicá-lo.
27
matam-se em batalha. O Egito nos legou o mito dos irmãos Osíris e
Set. Osíris, o primogênito, herdou o trono do pai e passa a governar o
país. No entanto, o irmão Set, com inveja, articula um plano macabro
e o mata. Ainda na África, conta-se a lenda dos irmãos Mexilo e Me-
xilvano. Mexilo era o irmão mais velho. Ambos caminhavam com seus
cães e chegaram a uma árvore. Nela, o cão de Mexilvano encontrou
uma abertura e dela saíam vacas gordas, ao passo que o cão de Mexilo
descobriu uma abertura da qual saíam vacas magras. Por inveja, no
caminho de volta pra casa, Mexilo matou seu irmão e levou todo o
rebanho sozinho para o vilarejo. Encontrou, porém, um homem que
o perguntou: “Onde você encontrou tantas vacas?” “Numa árvore oca
encontrei-as!” respondeu Mexilo. “Onde está teu irmão Mexilvano?”
continuou a perguntar o homem. “Eu não sei” respondeu Mexilo, “ele
disse: vai na frente com as vacas, eu te seguirei depois”. A mentira, po-
rém, foi descoberta e Mexilo foi banido para longe de seu vilarejo para
sempre (PFISTER, 1985). Também na África, os Dschagga5 contam
que após a morte dos antepassados, o primogênito teve dois filhos.
O pai deu cabras a cada um. As cabras do filho mais jovem tinham
sempre crias gêmeas, as do mais velho nunca tinham gêmeas. Uma
proposta de troca fora rejeitada pelo pai. Numa outra ocasião, quando
ambos estavam no campo a pastorear suas cabras, o mais velho matou
o mais novo. Seus gritos, contudo, foram ouvidos pelo ministro de
Deus que lhe impôs uma pesada penitência de sangue. Numa outra
narrativa, o primeiro ser humano de Tuanda, tinha cinco filhos. Ki-
twa, um deles, assassinou um de seus irmãos por inveja e seu pai o
baniu como pária. Uma antiga lenda persa fala de três irmãos que se
espalham pelo mundo. O mais novo e preferido pelo pai sofre a inveja
dos outros dois e é finalmente assassinado por eles. Na mitologia fe-
nícia, fala-se dos dois primeiros filhos do primeiro ser humano Aeon:
Usos é morto por Hypsuranios (WESTERMANN, 1986). O conflito
entre irmãos presente nestas narrativas tem sua gênese quase sempre
numa combinação de poder e inveja. Ora, a Bíblia não ficou alheia a
esta temática e nos reporta a narrativa de Caim e Abel – sem esquecer
Esaú e Jacó assim como José e seus irmãos – já em seu primeiro livro.

5 Ou Jagga ou ainda Chagga, povo autóctone da Tanzânia, de língua bantu.


28
O livro do Gênesis, porta de entrada da Sagrada Escritura, é
caracterizado pela perspectiva da Família. Nas palavras de García
López, “... o livro do Gênesis apresenta o mundo como uma grande
família” (2006, p. 60). Deus cria e organiza o mundo de tal forma
a torná-lo habitável como “casa comum” e na casa instala a família.
Sem ilusões, o autor do livro não apresenta uma família idealizada,
longe do nosso alcance, mas real, com seus dramas, cheia de virtu-
des, conflitos e também soluções como qualquer de nossas famí-
lias6. Todavia, a família é vista na perspectiva da fé, ou seja, à luz do
plano divino criador. Esta leitura visa procurar luz no texto de Gn
4,1-16 para a família humana. Seja ela o lar, a Igreja, a congregação
religiosa, a sociedade, o mundo. A família marcada pela dificuldade
de convívio entre os irmãos, pelo ciúme e violência. Interpelados,
portanto, pelos temas da fraternidade e da violência, apresentaremos
a delimitação e possível estrutura do texto e em seguida prossegui-
remos comentando o episódio conforme sua sequência narrativa em
busca de motivação teológica que ajude a melhorar a convivência e
amenizar a violência. Partiremos de uma pergunta ingênua: no con-
flito entre os irmãos Caim e Abel, Deus se revela injusto ou desperta
para o amadurecimento? Vamos ao texto.
–– Caim e Abel (Gn 4,1-16): Deus é injusto ou desperta ao cres-
cimento?
A leitura consistirá de delimitação e estrutura do texto, comen-
tário dos versos (teologia) e sua luz sobre nós.

6 A relação esposo-esposa pode ser visto nos casais: Adão/Eva; Abraão/Sara; Jacó/
Raquel; Isaac/ Rebeca. Não poderia faltar a questão “poligâmica”: AbraãoSara/
Agar/Cetura; Jacó-Lia/Raquel. A questão esposa-filho é representado pelas
matriarcas Sara, Rebeca e Raquel. Todas estéreis durante certo período (Gn 11,30;
25,21; 29,31). Relação pai-filhos: Abraão/Isaac, Ismael; Rebeca/Jacó; Jacó/filhos;
Ló/filhas. Relações conflituosas entre irmãos: que culmina em morte, o fratricídio
(nosso texto), irmãos que litigam e se reconciliam: Jacó/Esaú; José/irmãos.
Relação sogro-genro: Labão/Jacó. Relação tio-sobrinho: Abraão/Ló. Relações de
parentesco: Abraão/Ló; Ismael/Isaac. Relação avô-netos: Jacó/Efraim-Manassés.
Realização da lei do cunhado (ou levirato cf. Gn 38): Judá/Tamar. Todas estas
relações estão na esfera da família e são relações, em geral, conflitivas.
29
Delimitação e estrutura do texto
Gn 4 está dividido em três partes, delimitadas pela fórmula ge-
nealógica: “X conheceu sua mulher e ela concebeu e deu à luz a Y”
(vv. 1.17.25) (GARCIA LOPEZ, 2006, p. 70). Elas apresentam os
descendentes do homem (v. 1a): Caim e Abel (vv. 1-16), os cainitas
(vv. 17-24) e os setitas (vv. 25-26). O v. 17 abre, portanto, uma
nova temática: a descendência de Caim. Abel está ausente. Por outro
lado, os dois protagonistas de 4,1-16, Caim e Abel, não fazem parte
da cena anterior que culminava no afastamento de Adão e Eva do
jardim (3,24). O episódio de Caim e Abel apresenta, desta forma,
início, meio (conflito e tentativa de solução) e desfecho final. Tem-se
aí nos vv. 1-16, portanto, uma clara unidade em si, intercalada por
narrativas e diálogos, tendo como ponto central o fratricídio (v. 8).
Quanto à estrutura, Wénin (2001, p. 126) propõe uma forma con-
cêntrica na perspectiva de Caim:
A – nascimento de Caim – cultivador (1-2)
B – o solo produz fruto – sacrifício (3-5a)
C – o Senhor fala com Caim para fazer-lhe refletir (5b-7)
D – homicídio de Abel da parte de Caim (sem palavra) (8)
C’ – o Senhor fala com Caim a propósito do homicídio (9-10)
B’ – o solo não produz mais fruto – maldição (11-12a)
A’ – Caim errante sem terra – ‘saída’ (12b-16)

O drama humano ocupa o centro (v. 8) envolvido pela atuação


divina que não abandona suas criaturas (vv. 5b-7; 9-10). O solo, que
antes produzia (vv. 3-5a), torna-se estéril para Caim (vv. 11-12a). Ele,
antes cultivador (v. 2b), agora deve viver errante (vv. 14.16), longe da
terra (WENIN, 2001, p. 126). Arruinou o seu próprio espaço.

A teologia
Em nosso comentário seguiremos o desenrolar natural da cena:
o primeiro casal e seus filhos (vv. 1-2a); a profissão de ambos (v. 2b);
30
a vida de fé e o problema (vv. 3-5); a ajuda divina a Caim (vv. 6-7); a
aparente solução do problema (v. 8); retomada do diálogo por parte
de Deus e o ônus de Caim (vv. 9-12); reação de Caim (vv. 13-14);
intervenção divina (v. 15) e sorte de Caim (v. 16).
O primeiro casal e seus filhos (vv. 1-2a)
1
O homem conheceu Eva, sua mulher; ela concebeu e deu à luz Caim,
e disse: “Adquiri um homem com a ajuda do Senhor”. 2aDepois ela deu
também à luz a seu irmão, Abel.
Adão e Eva se unem e geram seu primeiro filho, Caim7. Tanto
a ordem de Deus na criação “crescei e multiplicai-vos” (Gn 1,28),
quanto o nome dado à mulher pelo homem, “Eva, por ser mãe dos
viventes” (3,20) tornam-se fato. Multiplicação e maternidade estão
em andamento. Em Caim, Eva experiencia a força de sua fecundida-
de. Esta dupla realização é, de certa forma, realçada pela declaração
de Eva: “Adquiri um homem com o Senhor”. A frase apresenta três
sutilezas: a) o verbo qānāh significa criar, procriar, fundar, mas tam-
bém comprar, adquirir. Dizer que Eva cria um varão com (a ajuda
do) Senhor, faz dela co-criadora, colaboradora de Deus. É estranho.
Dizer que ela compra ou adquire um varão com o Senhor ou dele,
sublinha-se as dificuldades na gestação ou no parto? Criar ou adqui-
rir seria desajeitado para exprimir o nascimento de uma criança. O
contexto, porém, sugere procriar ou conseguir; b) normalmente uma
mulher dá à luz um filho, mas o texto diz que Eva adquiriu um ’îš,
isto é, um homem (adulto). Ela vê no filho, o homem formado. To-
davia, o termo continua impróprio para um neonato. É único caso
no AT; c) a partícula hebraica ’ēt - indica o objeto direto ou equivale
à preposição com. Ora, seria complicado entender Deus sintatica-
mente como objeto direto nesta construção. Então, ela adquiriu o
filho com o Senhor, isto é, “com a ajuda dele”. Desconhecemos outro
caso de uso desta partícula com este sentido8. É possível que estas su-
7 ’ādām é homem comum e vai com artigo: o homem, o humano em geral. Em
4,25 (5,1) aparece pela primeira vez sem artigo, como nome próprio: Adão
(GARCÍA LÓPEZ, 2006, p. 71). Portanto, aqui seria um apelativo e não o
nome próprio.
8 Para estas três dificuldades cf. IBÁÑEZ ARANA, 2003; VON RAD, 1967;
31
tilezas queiram acentuar um fato: este filho é aquisição divina, é dom
de Deus. O nome, em hebraico qayin9, forma um jogo de palavra
com o verbo qānāh acentuando mais uma vez este fato.
Se por um lado, o texto mostra a preocupação da mãe em apre-
sentar este filho como dom de Deus, por outro, o mesmo texto omi-
te qualquer reação do pai. Ele não se manifesta.
Caim é o primogênito e, como tal, tem valor, tem direitos (so-
bretudo no que se refere à herança e à bênção), tem voz (fala no tex-
to) e, neste aspecto, é privilegiado. É dado por Deus, é filho da mãe
dos viventes. Ele recebe da mãe uma declaração ao nascer (PFISTER,
1985, p. 117). Caim é primícias do ser humano, é o primeiro filho
da humanidade. Todavia, Caim é um filho sem referência, único.
Não é irmão de ninguém! Falta-lhe a sociabilidade. Eis que...
“De novo deu à luz seu irmão, Abel”. Nasce o outro, a referên-
cia: “seu irmão”. Na Bíblia, é a primeira dupla de irmãos, a origem
da fraternidade, um evento ímpar. Ao surgir como irmão, Abel vem
tirar Caim do isolamento e estabelecer a sociabilidade. O termo irmão
aparece 7 vezes no texto10. O número já sugere o foco do texto. A pa-
lavra Abel, em hebraico hebel, significa: vento, sopro, alento, fumaça,
névoa, brisa, vapor, nulidade, algo que se desvanece, sem consistência,
efêmero, sem importância. Mais que um termo, hebel é um conceito.
Hebel exprime em hebraico tudo aquilo que é fugaz, rápido, pas-
sageiro, transitório11. Pode significar ainda algo inútil, nulo, (em) vão,
nada, vazio (Is 30,7; 49,4a). Pode indicar tanto o que é vaporoso
como o que é sem substância, sem conteúdo, sem peso, sem valor,

WESTERMANN, 1976. BELTZ (1974) atribui esta dificuldade à possível


influência dos mitos.
9 O termo qayin significa lança (cf. II Sm 21,16), mas também ferreiro, alguém
que trabalha com metal. Há uma tribo quenita ou qaynita (cf. p. ex.: Nm
24,21; Jz 1,16; 4,11; 5,24; I Sm 15,6-7). Se são de fato descendentes de Caim,
não se sabe. (WESTERMANN, 1986, p. 394-395).
10 Cf. vv. 2.8a.8b.9a.9b.10.11. Exatamente no centro das ocorrências está a
pergunta de Deus: “Onde está teu irmão?” (v. 9a).
11 A imagem do vento (hebel) é usada para retratar a ilusão, a frustração, o
sonho, o nada e o vazio.
32
débil, falso, mentiroso e, portanto, desemboca na esfera da metáfo-
ra. O termo caracteriza o livro de Qohelet (Ecl)12, onde é utilizado
muitas vezes na perspectiva simbólica ou metafórica para questionar
a base da vida humana que não pode ser vento. Questiona a incon-
sistência de nossos atos bem como desmascara as aparências de nossa
conduta. Enfim, o termo é usado nos Salmos para definir a condi-
ção humana, o homem como um sopro13. Como exprime E. Zenger:
“Abel é uma personificação da situação humana” (1983, p. 11).
Ora, assim como o termo irmão, Abel (hebel) ocorre também 7
vezes no nosso texto como nome próprio14. Este nome não é casual.
Ele exprime o aspecto frágil, efêmero, sem importância deste outro.
Não tem voz, nem palavra da mãe como teve Caim (v. 1b) e nem
mesmo de Deus. Seu nome exprime sua sorte. Abel é o fraco, o
desvalido. Veio, todavia, para fazer de Caim um irmão. Certamente,
as 7 ocorrências do nome Abel (hebel) associado àquelas 7 do termo
irmão caracterizam também a fragilidade desta relação de fraternida-
de como mostra o desenrolar do texto. A fraternidade não é produto
pronto, precisa de construção, pressupõe razão e maturidade.
A profissão de ambos (v. 2b)
2b
Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim cultivava o solo.
A informação é breve, mas suficiente para acentuar a diferença
entre ambos já mencionada acima. Um é agricultor15 e outro pas-
tor. Duas profissões que representam dois mundos e duas culturas,
nomadismo e sedentarismo. Dois estilos de vida diversos. Eram as
duas profissões básicas de uma época da humanidade e que carac-
terizavam a Palestina de então (BERG, 1985, p. 51). Interesses não

12 Sua obra totaliza 38 das 73 ocorrências do termo no AT (TM). Algumas de


nossas Bíblias o traduzem com o termo vaidade, via latim vanitas. Sobre o
termo cf.: ALONSO SCHÖKEL, 2015, p. 25; VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999,
p. 431-438; ALBERTZ, 1978, p. 660; SEYBOLD, 2002, p. 358-367.
13 Veja algumas ocorrências do termo: Sl 39,6.7.12b; 62,10; 78,33; 144,4; Jó 7,16.
14 Cf. vv. 2.2.4.4.8.8.9.
15 Zenger (1983, p. 10) observa que Caim é o primeiro filho do ser humano
e o primeiro que começa a viver e trabalhar na terra como o Senhor havia
disposto (Gn 2,5; 3,23).
33
raro contrastantes e conflitantes. A relação nem sempre era pacífica.
O pastor desfrutava da liberdade com seu rebanho nas pastagens
para cá e para lá, era resistente frente às intempéries da natureza,
mas era socialmente fragilizado16. Todavia, o conflito de profissão
não nos parece ser o foco da narrativa. O tema está presente só no
início (WESTERMANN, 1976, p. 399). Segundo Zenger (1983, p.
9-10), a primeira palavra do v. 1 e última palavra do v. 2 indicam o
tema da narrativa, isto é, a relação entre hā’ādām (“o ser humano”) e
’ădāmāh (“terra, solo”) e como a ’ădāmāh através de Caim, o filho de
’ādām, de lugar da vida é transformada em lugar de morte.
A vida de fé e o problema (vv. 3-5)
Passado o tempo, Caim apresentou os produtos do solo em oferenda ao Senhor;
3

Abel, por sua vez, também ofereceu as primícias e a gordura de seu rebanho.
4

Ora, o Senhor agradou-se de Abel e de sua oferenda. 5Mas não se agradou de


Caim e de sua oferenda, e Caim ficou irritado e com o rosto abatido.
Ambos são adoradores do Senhor, são religiosos. Cultuam o
Deus vivo. Cada um oferece seu produto (vegetal ou animal) se-
gundo sua modalidade de vida e assim como prescrevia a lei (cf.
Ex 34,19-26). As ofertas se equivalem uma vez que ambas são cha-
madas igualmente minḥāh = oferenda. Todavia, ocorre uma desa-
gradável surpresa na reação de Deus diante dos irmãos e de suas
oferendas: Ele aceita Abel e sua oferenda, enquanto Caim e a sua,
não. Deus frustra a expectativa de Caim. Qual a razão? Qual é a
falta de Caim? Não há aparentemente defeito na oferenda nem no
oferente17. Por que a preferência ou por que a discriminação injusti-
16 Eram sempre gērîm = hóspedes, sobretudo no período patriarcal. Sua vida
estava vinculada ao fenômeno da transumância, isto é, migração anual em
função das chuvas.
17 Caim oferece os produtos do solo, Abel as primícias do seu rebanho. Este “seu”
mostra de certo modo um envolvimento de Abel naquilo que oferece. Porém,
isto bastaria para justificar a atitude de Deus? O ato cultual está materialmente
correto. O rito, pelo que tudo indica, foi realizado formalmente segundo as
normas. Mas repousa aí a preocupação de Deus? Segundo Croatto “Não é o
fratricídio de Caim, episódio ainda não narrado. A única explicação coerente,
em nível de macrorelato (Gn 2-4), é a maldição do solo imposta em 3,17b.
Javé não pode aceitar uma oferenda que tem esta origem” (1997, p. 29).
34
ficável por parte de Deus? Autores antigos e modernos se esforçam
para justificar a conduta de Deus suprindo o que o texto não diz
(ALONSO SCHÖKEL, 2015, p. 22.27-29). Mesmo que isto impli-
que incriminar Caim18. Todavia, não é o que o texto do Gênesis faz,
ao menos até esta altura da narrativa. O texto omite uma justifica-
tiva. Na verdade, é difícil aceitar este comportamento divino. Por
outro lado, é fácil entender a reação de Caim19.
“Caim ficou irritado e com o rosto abatido” (v. 5b). É uma reação
extremamente humana. Pode ser causa de outras reações, em efeito dominó,
se não for domada. Esperava-se que Caim se alegrasse pela aceitação da
oferenda do irmão mais fraco por parte de Deus. Mas sua indignação com
tamanha “injustiça divina” o cega impossibilitando de ver o outro, o impede
de compartilhar da alegria do irmão. Caim não pode tolerar a preferência
divina por aquele fraco, mesmo que seja “seu irmão”. Caim perde a chance
de fazer a experiência da compaixão de Deus em sua família. Só pode ver a
si mesmo preterido. Sofre uma desilusão, uma falta de reconhecimento, um
desgosto e se fecha, se deprime. A tristeza é manifestada no rosto20. A escolha
divina pode ser um modo de Deus atrair a atenção de Caim para o irmão.
Isso tiraria, porém, a possibilidade de Caim ser único, ter tudo (COUTO,
2003, 260). Onde ficaria a auto-referencialidade? Então por que vê-lo?
Ora, esta reação de Caim pode ter seu efeito também no leitor.
Ela repercute em nós. Segundo Wénin:
Quando vão oferecer ao Senhor os frutos de seu trabalho, Abel
é bem recebido, Caim não. Reação espontânea: Deus é injusto! É
tanto mais injusto aos olhos de Caim, porque o preferido é o caçula,
o ‘fumaça’, aquele que não conta.
18 Tendência já presente na Igreja primitiva (cf. Hb 11,4a; I Jo 3,11-14).
Embora, segundo Westermann, esta tendência venha não diretamente da
Bíblia, mas influenciada pela interpretação rabínica tardia (1976, p. 433-
434). No Targum palestino do Pentateuco (Código Neófito), no entanto, há
apenas um diálogo entre os irmãos antes do homicídio (v. 8). Caim alega que
há acepção de pessoas no juízo e Abel responde que suas obras eram melhores
que as de Caim (CROATTO, 1997, p. 48-50).
19 O conflito extrapola o nível sociológico (pastor x agricultor) e chega à esfera
teológica.
20 O rosto é a epifania do nosso ser. Nossas reações se manifestam no rosto. Ele
espelha nosso interior.
35
A reação espontânea do leitor é a mesma que a de Caim: Deus é
injusto! É o efeito que o narrador procura produzir. O que ele quer,
de fato, é que o leitor se identifique com Caim, que sinta nele as re-
ações de Caim. A história de Caim é também nossa. Diante de nós,
há sempre um outro que desperta em nós ciúme ou inveja. Diante
de nós, há sempre alguém cuja situação – dons, privilégios, talentos,
beleza, riqueza ou mesmo outras dimensões – invejamos, mais ou
menos conscientemente (2006, p. 47).
–– Ora, como superar tal cegueira? Qual a solução para um tal
conflito?
A ajuda divina a Caim (vv. 6-7)
6
O Senhor disse a Caim: “Por que estás irritado e por que teu rosto está
abatido? 7Não é certo que, se ages bem, levantarias [a rosto]?21 Mas se não
ages bem, o pecado espreita à porta, e a ti se dirige sua cobiça; e tu tens de
dominá-lo.
Deus não desiste de Caim. Não aceita sua oferenda, mas dirige-
lhe a palavra para tirá-lo de sua cegueira. A primeira pergunta vai ao
encontro de sua ferida, sua esfera afetiva conturbada, sua carência
de reconhecimento. Na segunda, tenta curá-lo, fazer com que ele
recupere a lucidez (cf. Jó 5,18; Os 6,1). A pergunta visa já o com-
portamento, o agir “se (não) ages bem”. A irritação, o abatimento,
o ressentimento são sentimentos que, se não controlados, podem
desencadear ações desastradas. Isso é não agir bem. O texto chama
isso de pecado que “espreita (rābaṣ) à porta”. O pecado (ḥaṭṭā’ṯ)
aparece aqui como se fosse uma entidade autônoma que atua. Este
imaginário evoca Sir 27,10 que compara o pecado ao leão, isto é,
algo bestial, devorador, que ameaça a cada instante. “A ti se dirige
sua cobiça/avidez” é a terminologia para o desejo sexual. O pe-
cado tem uma tara pelo ser humano. É um cenário simbólico (ou
metafórico) que exprime a convulsão interna do homem possuído
pela desilusão, incapaz de entender e acolher as escolhas de Deus
(ALONSO SCHOKEL, 2015, p. 34).
21 O objeto do verbo levantar (nāśā’), no hebraico, está elipsado, não aparece.
Sabe-se pelos vv. 5b.6b.
36
“Tu tens de dominá-lo”. A reação de Caim é humana e, às vezes, inevitável,
mas requer elaboração. A cura deve vir dele próprio e não de fora. Ele deve
domar a fera dentro de si. Segundo Beauchamp (Apud WÉNIN, 2006, p.
142), ele deve ser “pastor da própria animalidade”. Se não domar, a fera
fará vítimas. Pois já o fez a si próprio.
Deus coloca diante de Caim alternativas: fazer ou não fazer o
bem. Isto implica reflexão, discernimento, decisão. Deus não define,
provoca para responsabilidade, para o crescimento. O verbo usado
para dominar é māšal (II, qal), significa também “governar”, isto é,
exprime a atitude de “persuadir”, “esclarecer” e “impor-se” com
a força de seu conteúdo. Não por acaso, o substantivo desta raiz é
considerado a unidade básica da sapiência e, com frequência, tra-
duzido por “sentença” ou “provérbio”. Significa que dominar aqui
pressupõe sabedoria, sensatez, domínio de si. A força do ímpeto
não funciona. Por outro lado, fazer-se de vítima é mais cômodo.
Não resolve, só prolonga a dor.22
O alerta divina é feita, mas Caim se bloqueia ao diálogo e res-
ponde inicialmente com o silêncio. Parece não escutar a voz de Deus
que apela à sua consciência.
A aparente solução do problema (v. 8)
8
Entretanto Caim disse a seu irmão Abel: [“Saiamos ao campo”]23. E, como
estavam no campo, Caim se levantou contra seu irmão Abel e o matou.
A primeira frase constata que Caim disse, mas não especifica o
que foi dito. A omissão do objeto parece ser intencional. O texto su-
gere que Caim não fala com palavras, mas com ações concretas e, neste
caso, levantar-se contra e matar24. A agressão é sua palavra. Aqui cul-
22 Vitimar-se é um processo que puxa para trás, fazendo a pessoa refém dos
“porquês”. É sensato buscar um “para que”, deslocar o olhar para uma meta e fazer
da desilusão uma chance para amadurecer. Um exemplo disso é José do Egito no
conflito com os irmãos. Sobre isso, veja nosso artigo: “Desceu com ele”.
23 As palavras de Caim a Abel “saiamos ao campo” não se encontram no hebraico.
Todavia, as traduções antigas, como LXX, Siríaca, Targum e Vulgata, as reportam.
24 “Levantou-se” pode ser visto como verbo ingressivo normal. Mas se se
considera a imagem do animal agachado à porta (v. 7) à espreita de sua presa,
aqui o animal estaria entrando em ação, a ferocidade do assassino, que realiza
37
mina sua mudez. Faz sentido a leitura feita por Judas quando diz que
“aqueles que seguem Caim” são “como animais sem palavra [hôs tà álo-
ga zôa]” (Jd 10-11) )(COUTO, 2003, p. 260; WÉNIN, 2011, p. 143.
Caim encontra-se num conflito com Deus e quer resolvê-lo. Ele
se encontra na sua razão, ou seja, se sente injustiçado. Abel não é o
motivo do não reconhecimento de Caim por Deus, mas certamente
Caim pensa que pode consumar a vingança contra Deus na pessoa
do irmão. O conflito de Caim com Deus se transfere para o irmão
(PFISTER, 1985, p. 120). É Deus quem recusa a oferenda de Caim,
mas é o irmão que é feito “bode expiatório”25. O intrigante é a oca-
sião em que o conflito emerge: o culto. Isto sugere que a relação
com Deus faz aflorar as feridas. Neste sentido, a relação com Ele é
reveladora e tem um reflexo imediato na fraternidade. Neste caso,
Caim ignora o apelo divino e as consequências são trágicas.
Caim convida o irmão para sair da esfera do culto e ir para a esfera
da vida. Lá no campo, a sós, ele quer resolver sua querela contra Deus.
O conflito é solucionado de forma radical, violenta e irreversível.
Na verdade, houve uma escalada do conflito: desilusão que cau-
sa o desejo de vingança, a recusa do diálogo oferecido por Deus e a
consumação da violência contra o inocente. É o primeiro homicídio
e simultaneamente um fratricídio. O ódio é homicida. Afirmação
já presente em I Jo 3,15a. O rancor é um animal que devora! O ato
fratricida está consumado, o pecado está realizado. Tenta-se eliminar
o Outro no outro.
A desilusão e o ressentimento são contingências que podem as-
saltar qualquer um, mas podem e devem ser trabalhadas como mos-
tra o alerta de Deus neste texto. Quando estes sentimentos não são
elaborados, quando a paixão subjuga o uso da razão desencadeia-se

o que se espera do animal (CROATTO, 1997, 34).


25 Segundo Zenger (1983, p. 14), a causa do conflito entre Caim e Abel não
é a inveja, mas a irada indignação de não ser aceito por Deus. Não é Abel o
primeiro parceiro do conflito, mas Deus. Abel é apenas a situação personificada
que levanta a problemática de sua própria relação com Deus. Caim sente o
desigual tratamento como uma ameaça de morte.
38
facilmente a agressão, a violência. Elimino a alteridade que devia me
enriquecer. É óbvio que, assim, não se resolve o conflito, apenas se
foge dele agravando-o. É uma solução aparente e ilusória, bem mais
rápida, porém, ineficaz.
Como observa Wénin, “... onde a mulher fora tentada e seduzi-
da pela serpente [3,1-6] seu filho é advertido por Deus [4,6-7] sobre
uma escolha que deve fazer e sobre o que aí estará em jogo. Como
seus pais, Caim não escuta a palavra divina” (2011).
–– Ora, por que Deus não impediu o crime? Por que deixou
Abel morrer? Não nos parece ser o foco do texto responder
esta pergunta.
Retomada do diálogo por parte de Deus e o ônus de Caim
(vv. 9-12)
9
O Senhor disse a Caim: “Onde está teu irmão Abel?” Ele respondeu: “Não
sei. Sou o guarda do meu irmão?” 10Replicou: “O que fizeste? A voz do
sangue do teu irmão clama da terra a mim. 11Por isso te amaldiçoa esta
terra que abriu a garganta para receber de tua mão o sangue do teu irmão.
12
Quando cultivares o campo, ele não te entregará sua fertilidade. Andarás
fugitivo e errante pelo mundo”.
Deus não desiste de Caim. Dirige-lhe outra vez a palavra. Dedica-
lhe atenção na sua fraqueza. O interpela para fazê-lo cair na realidade.
Deus não o acusa “você matou!”, antes a pergunta “onde está teu ir-
mão?” focaliza uma responsabilidade que precede, esta faltou. O ques-
tionamento divino visa despertar em Caim a responsabilidade pela
fraternidade negada: “Onde está teu irmão Abel?” (v. 9), isto é, onde
está o fraco? “O que fizeste?” (v. 10). Ao primogênito cabia proteger
o menor, a guarda do irmão. Neste caso, do irmão desvalido. Deus,
porém, não o incrimina, antes abre espaço para que Caim assuma seu
ato. Desta vez Caim sai de seu silêncio, porém, para mentir (“não sei”)
e renunciar formalmente frente a Deus a guarda do irmão (ALONSO
SCHÖKEL, 2015, p. 36). A sorte de seu irmão não o interessa.
Curioso é que Deus também se desloca, não fala do altar, vai
para o campo onde Caim está. É ali no cotidiano onde a fé professa-
39
da se traduz em comportamento. Fé e vida não se separam, relação
com Deus e com o irmão também não. Deus não se manifesta de
modo sensacionalista, mas na forma de questionamento (PFISTER,
1985, p. 124). Atua no nível da consciência. Interessa-se pelo com-
portamento: O que fizeste? Esperava-se a opção pelo fraco que edifica
a fraternidade. É um caminho árduo, não dá ibope e nem lucro.
Matar é mais fácil, prático e rápido.
A voz do sangue do teu irmão clama da terra a mim. Em vida, nos-
so pastor trabalha (pois tem o que oferecer), faz a oferenda, segue seu
irmão ao campo, mas cala-se todo o tempo. É vítima! Então fala, gri-
ta, seu sangue tem voz que chega a Deus26. O grito mudo da vítima
vale como prece não verbalizada e mais surpreendente ainda é que
Deus ouve. Caim quis eliminar Abel, mas não consegue. O nada,
o frágil, o inútil e descartável, fala e Deus ouve. O ouvido humano
pode ser indiferente a este grito mudo, não o é o ouvido de Deus27.
Ouvir o socialmente invisível não é um conselho, mas um impera-
tivo ético ao crente28 que, por sua vez, acolhe livremente no amor.
Tem-se aqui um exemplo cabal de que, biblicamente, ética e
teologia se pertencem. A culpa contra o irmão chega a Deus.
O discurso divino apresenta uma punição com dupla dimensão.
Uma vem da terra que não lhe dará seu fruto. Assim este agricultor
tem sua subsistência comprometida. Sua ação danificou seu espaço
de vida (BERG, 1985, p. 54). Consequentemente tem-se a segunda
punição, se tornará errante e vagabundo. Caim teve o bônus da esco-
lha no seu agir e agora tem também o ônus das consequências. Deus
o ajuda a tomar consciência deste ônus, isto é, da gravidade do seu
ato. A relação entre o agir de Caim e as consequências é evidenciada
pela seguinte figura literária.

26 A ideia é retomada duas vezes na carta aos Hebreus (11,4; 12,24).


27 Cf. Gn 16,7-11; II Sm 12; I Rs 21.
28 Para os irmãos de José do Egito, o que mais pesava na consciência não era a
venda do irmão, mas não ouvir seu grito na aflição. Algo que fere a Deus e por
isso precisa de expiação (Gn 42,21).
40
A – O que fizeste?
B – A voz do sangue de teu irmão
C – clama a mim
D – do solo
E – Agora, és maldito
D’ – do solo
C’ – que abriu a boca
B’ – para receber o sangue de teu irmão
A’ – de tua mão
Wénin observa que “Caim é o primeiro maldito da Bíblia. O
humano do jardim do Éden, que recusou a Deus, não é maldito! É
maldito aquele que mata seu irmão” (2006, p. 48). Isso mostra com
que veemência o Deus da Bíblia defende a vida e abomina o homicí-
dio. Mais tarde, dará à sua postura a força de lei (Ex 20,13; Dt 5,17).
O NT não é menos brando: “Quem odeia seu irmão é homicida” (I
Jo 3,15a; cf. Mt 5,21-26).
Este diálogo de Deus com Caim evoca aquele de 3,8-13: a voz
do Senhor (3,8) e voz do sangue (4,10); onde? (3,9 // 4,9); que fizeste?
(3,13 // 4,10). Ali o primeiro casal, aqui os primeiros irmãos. Relações
elementares da família humana. Certamente estas duplas são paradig-
mas. Ali em Gn 3 está o aspecto teológico (relação com Deus), aqui o
aspecto social (relação interpessoal) da mesma família humana. É na
convivência social que se vê os efeitos da ruptura com Deus.
Reação de Caim (vv. 13-14)
13
Então Caim disse ao Senhor: “Meu delito é muito pesado para suportar.
14
Eis! Hoje tu me banes do solo fértil, terei de ocultar-me longe de tua face
e serei um fugitivo e errante sobre a terra: mas o primeiro que me encontrar
me matará!”
Finalmente Caim se acorda e admite sua responsabilidade. Reage
e fala sobre o assunto. Tinha se negado ao diálogo, mas agora se abre.
A postura divina (vv. 9-12) o faz falar. Na expressão minha culpa, o
termo hebraico usado é ‘āwôn. O termo significa tanto falta, culpa,
erro, iniquidade, injustiça, crime, delito, quanto a punição ou castigo
pelo delito praticado. Pois o termo é dinâmico, não separa o crime da
41
pena, a ação das consequências, o delito da ruína. A expressão nāśā’
‘āwôn = portar a culpa (v. 13) significa “ver a própria ruína”, “andar
ao encontro da morte”, isto é, o indivíduo que cometeu o delito sente
o peso constantemente até o ponto de não mais suportar e cair sob o
fardo. Portanto, ‘āwôn é uma culpa contra alguém, cujas consequên-
cias nefastas como um bumerangue recai sobre o autor, a menos que
Deus intervenha. Quando Caim diz que sua ‘āwôn é muito pesada
para suportar, sugere que a consciência está muito pesada, pois se deu
conta da gravidade do ato29, como também pode estar dizendo que a
punição é muito severa ou ambas as coisas. Na primeira possibilida-
de, Caim estaria fazendo uma confissão indireta “minha culpa” e na
segunda um lamento “meu castigo é muito pesado”. Parece-nos que
Caim faz ambas as coisas: confessa e lamenta. Na verdade, é o começo
de um longo processo na direção da cura. Ela não vem com a fuga dos
conflitos, mas com o enfrentamento dos mesmos.
Caim é punido pela ’ădāmāh = terra, solo (v. 11), todavia, vê nos
efeitos de sua conduta a punição divina: “tu me banes do solo fértil”
(v. 14a). A maldição se reverte em esterilidade em seu espaço de
vida. A negação dos frutos por parte do solo (v. 12) torna-se aqui ex-
pulsão. A errância é retomada por Caim acentuando este ônus. Ele,
porém, acrescenta outra consequência: o medo da vingança (v. 14b).
A violência tende a perpetuar-se, gerar mais violência. Em 3,17
se diz: “Maldito seja ’ădāmāh = o solo por tua transgressão”, isto
é, aquela de Adão. Agora o solo se vinga: “te amaldiçoa este solo
[=’ădāmāh]” (v. 11)30. Caim mata o irmão (v. 8) e agora teme a vin-
gança (v. 14b; cf. 9,6). Ao matar descobre o que o ser humano é ca-
29 No v. 7 Deus diz: “se ages bem, levantarias [nāśā’] [a face]”. Agora Caim afirma que
seu “delito é muito pesado para suportar/levantar [nāśā’]”, isto é, não pode carregá-
lo. O fato de usar o mesmo verbo (únicas ocorrências na perícope) corrobora o
sentido de confissão da culpa, isto é, agiu mal. Por outro lado, o pecado deprime,
sobretudo, quando fere a relação que nos faria crescer. Croatto (1997, p. 42)
propõe “levantar a face” (diante do Senhor) também aqui (v. 13), já que o objeto
do verbo não é especificado, concordando com a frase “terei de ocultar-me longe
de tua face” do v. 14. Seria então uma referência à relação rompida com Deus que
gera o escondimento a exemplo do primeiro casal (3,8b.10b).
30 Cf. Nm 35,33-34.
42
paz de fazer e então vem a instabilidade, o pavor. Deus, porém, pode
interromper esta espiral. É o que mostra o passo seguinte.
Intervenção divina (v. 15)
15
O Senhor lhe respondeu: “Quem matar Caim será vingado sete vezes”. E
o Senhor colocou um sinal sobre Caim, a fim de que não fosse morto por
quem o encontrasse.
Deus não abandona Caim. Reprova o crime, mas acolhe o cri-
minoso. Não tem como retirar as consequências, Deus, porém, pro-
cura protegê-lo evitando um dano maior mediante o sinal. Caim
não protegeu a vida do irmão, mas Deus procura proteger a sua.
Não suspende o castigo, mas suaviza as consequências. Caim pode
experimentar a proteção do Senhor.
Segundo Zenger: “O Deus criador de Gn 4 não está disposto
a tolerar o fratricídio como, por assim dizer, uma variante ‘natural’
da fugacidade humana nem legitimar o aniquilamento mortal do
fratricida como ordem da criação”(1983, p. 12).
É notável o espaço que o texto dedica ao diálogo e a iniciativa é
sempre de Deus que vem ao encontro da fraqueza.
A sorte de Caim (v. 16)
16
Caim se retirou da presença do Senhor e foi morar na terra de Nod, a
leste de Éden.
Caim parece assumir a errância pronunciada nos vv. 12b.1431. Ele
vai para Nod. Segundo Berg, o termo Nōd pode lembrar nād = sem
descanso ou sossego; errante, da raiz nwd = vaguear. Caim vai para o país
da “intranquilidade”, do “desterro”, para a terra da errância, longe do
Senhor na “miséria ou desgraça”, a leste do Éden = delícias. É seu ônus!
Na formulação de Couto, Nod:
não é tanto um lugar geográfico... [...] De fato, tendo eliminado o outro,
Caim fica condenado a errar pelo mundo à procura de si mesmo. Porque se
31 A legislação posterior prescreverá cidades de refúgio para quem matar
involuntariamente, isto é, para o homicídio não culposo (Nm 35,9-15.22-
29.32; Dt 19,113). Não foi o caso de Caim.
43
é a alteridade que permite que alguém se conhece a si mesmo, como é que
aquele que elimina o outro por inveja e por ciúme se pode encontrar a si
mesmo? (2003, p. 261-262).
Abel era nômade por profissão. Caim tornou-se nômade como
foragido. Aí está a triste ironia do texto: não respeitar o outro é, na
verdade, não respeitar a si mesmo. Quem aniquila a alteridade (o
outro), não ouve (o Outro), anula-se.
Isto faz pensar na sabedoria popular que ensina que o ressenti-
mento e o desejo de vingança são sentimentos comparáveis àquele
que quer matar o outro envenenado, mas ele próprio bebe o veneno.
Ir para Nod, ser errante, vaguear sem descanso, pode ser também
um bônus: fazer o caminho interior. É um caminho longo, mas pode
ser a via da graça, ocasião de cura e amadurecimento. Nas próprias
dores e desilusões pode estar a nossa purificação, nossa cura. Tam-
bém do veneno (da víbora) se tira o antídoto para o remédio (Nm
21,7-9). O mal é efêmero, isto é, é uma ausência, um vazio e pode
ser preenchido com o bem ou transformado em bem (cf. Gn 50,20).
O texto evoca outra vez a sorte do primeiro casal: maldição (3,17
// 4,11); proteção divina (3,21 // 4,15); afastamento do Éden (3,23-24
// 4,16). García López lembra que as narrativas de culpa-pecado em Gn
1-11 apresentam um esquema que perpassa nosso texto32. Ora, os para-
lelos deste esquema corroboram o que já dissemos antes: a relação com
Deus (teologia, cf. Gn 3) se traduz em conduta social, isto é, em relação
com o outro (Gn 4,1-16). Dito de outro modo, as relações sociais espe-
lham em que Deus cremos, como cremos, qual a visão que temos dele.

Abel, Caim e a misericórdia divina


Quando o Senhor se agrada de Abel e de sua oferenda (v. 4b), ele ma-
nifesta sua misericórdia, isto é, vai ao encontro do fraco, do efêmero (he-
bel). Agir desta forma faz parte do perfil divino (cf. I Sm 2,8//Sl 113,7)33.
32 As narrativas são Gn 3-4; 6-7; 11,1-9 e o esquema: pecado (3,6; 4,8; 6,5.11-12;
11,4) discurso (3,14-19; 4,11-12; 6,7.13-21; 11,6-7); mitigação (3,21; 4,15;
6,8.18ss; 10,1-32?); castigo (3,22-24; 4,16; 7,6-24; 11,8) (cf. Pentateuco, 64).
33 Segundo Croatto, “A preferência divina pelo mais débil configura o Javé do
nosso relato” (1997, p. 50).
44
O mesmo Deus não se agrada de Caim e de sua oferenda (v. 5a).
O fato irrita e abate Caim (vv. 5b.6). Ele parece interpretar o reação
de Deus como “injustiça” e se bloqueia, fica ressentido. Deus o alerta
para o “pecado à espreita” (v. 7). Significa que a atitude de Caim não
é sadia. A opção de Deus pelo fraco não para em Abel. Ele vê tam-
bém Caim na sua fraqueza. Deus dirige-lhe a Palavra, dialoga com
ele (vv. 6-7.9-12.15a). Praticamente a metade do texto é dedicada
à relação de Deus com Caim. Primeiro o alerta (v. 7), depois o faz
refletir para que perceba seu erro (vv. 9-10) e, se não retira as con-
sequências de seu delito (vv. 11-12), as mitiga e o protege (v. 15a).
Portanto, agradar-se ou não agradar-se da oferenda não é apenas
expressão da absoluta liberdade de Deus, mas também de seu mistério.
A atitude de Deus para com o ser humano não pressupõe mérito, é
graça (cf. Dt 7,7-8). Sua escolha não tem base, não é justificável e nem
calculável segundo critérios humanos (cf. Ex 33,19; Is 55,8) (SÖDING,
1995, p. 125). O comportamento divino, porém, se reverte em ocasião
de crescimento e autodomínio enquanto desperta para a co-responsabi-
lidade. Ocasião que pode ser desperdiçada. Olhando nesta perspectiva,
a atitude divina revela uma pedagogia que, por sua vez, é misericordiosa.

Caim, Abel e nós


É comum nas formações bíblicas com o nosso povo a pergunta
“Caim e Abel existiram ou não existiram?” Consideremos dois as-
pectos frente a esta pergunta.

O problema
É bela a curiosidade de nossa gente que se agarra ao texto assim
como ele é e o toma como história literalmente. Fazem uma pergun-
ta ao texto que ele não está preocupado em responder. Não convém
eliminar a pergunta, mas repropô-la de outra forma: “Caim e Abel
existiram ou existem?” Procurar entender o que o texto quer ensinar.
Na verdade, aquela preocupação do ser humano com o drama da
rivalidade e hostilidade até mesmo fratricida entre irmãos que apa-
rece nos mitos –como indicamos na introdução– não era apenas a
realidade de um passado distante, é atualíssima.
45
O Papa João Paulo II, em Denver, por ocasião do VIII Dia
Mundial da Juventude, bradava:
com o tempo, as ameaças contra a vida não diminuíram. Elas,
ao contrário, assumem dimensões enormes. Não se trata apenas de
ameaças vindas do exterior, de forças da natureza ou dos “Cains”
que assassinam os “Abéis”; não, trata-se de ameaças programadas
de maneira científica e sistemática. O século XX ficará considerado
uma época de ataques maciços contra a vida, uma série infindável
de guerras e um massacre permanente de vidas humanas inocentes.
Os falsos profetas e os falsos mestres conheceram o maior sucesso
possível (1994, p. 419).
No Brasil, a cifra dos assassinatos ultrapassou os 57 mil em
2016, os 59 mil em 2017 e 51 mil em 2018 (FBSP, 2019). Uma ci-
dade na faixa de 55 mil habitantes é apagada sistematicamente todo
ano nesta nação. Está em curso no país um verdadeiro massacre de
jovens, particularmente de negros pobres, sem falar no feminicídio.
Portanto, Caim e Abel, enquanto expressão do fratricídio, apon-
tam para um problema real e presente. Como bem formula Müller:
“A figura de Caim é um símbolo. A história de Caim e Abel exprime,
num quadro de violência elementar, algo da essência do pecado: ela
é nossa história”(1965, p. 73) e muito atual. Há uma saída?

O caminho
Diversamente dos mitos, o texto bíblico não fica no passado, an-
tes quer trabalhar a questão no leitor para tentar quebrar a partir dele
esta rivalidade que devora. É uma pedagogia curativa. Wénin destaca
esta genialidade do narrador: “O modo de relatar friamente as coisas
produz, efetivamente, no leitor um sentimento análogo ao de Caim.
[...] Na realidade tudo se passa como se, por meio de Caim, o narra-
dor levasse o leitor para sua própria história... ” (2011, p. 135).
Ao iniciar a leitura do texto, não raro o leitor entende que Caim
é “vítima de Deus” por ter seu sacrifício rejeitado e se coloca do
lado de Caim contra Deus. Quantos não assumem as dores de Caim
46
convencidos de que Deus é injusto ao rejeitar seu sacrifício (cf. v.
5a)? Onde já se viu um Deus com tais preferências? Quantas pessoas
e setores da Igreja não se escandalizam com a opção preferencial
da Igreja pelos pobres?34 Não é raro assumirmos a postura de Caim
fazendo-nos de vítimas. É mais cômodo que assumir a via do ama-
durecimento. Wénin faz uma observação pertinente sobre isso: “É
que o ciumento tem o sentimento de ser a inocente vítima de uma
injustiça e sofre por causa dela. Cria-se destarte nele uma forma de
ilusão que consiste em crer que o problema não está nele mas no
outro, o que o impede de vê-lo como irmão”(2011, p. 143).
À medida em que a leitura avança, o leitor vê Abel se tornar
vítima de Caim e passa a se colocar do lado de Abel contra Caim.
São reações humanas e bonitas fazer-se solidário ao lado da vítima.
Todavia, é prudente não ter a tentação de avaliar o texto apenas a
nível de sentimento sem deixar-se interpelar por ele35.
Na verdade, Caim e Abel são figuras paradigmáticas para todo
ser humano. O leitor pode se encontrar neles. Não são figuras do
passado, podem estar dentro de cada um de nós. Ambos são fracos e
por ambos Deus opta, estende sua misericórdia, vem ao encontro da
fraqueza para fazer crescer.
O texto quer desarticular em nós sentimentos e raciocínios que
negam a alteridade, negam o outro fraco, impossibilitando o encontro,
a fraternidade. Eis a chance de sermos sinal do encontro num mundo
“desencontrado”. É um convite a promover a cultura do encontro e
do diálogo como insiste o papa Francisco. Algo que pressupõe a opção
pelo fraco. O diálogo pressupõe dois sujeitos, relações horizontais e
não verticalizadas, na linguagem comum: “de cima pra baixo”. Não
pode haver diálogo entre sujeito e objeto, relações opressoras. A alteri-
dade é pressuposto elementar para a relação entre iguais.

34 Todavia, já se escandalizaram também com Jesus (Lc 19,7), apesar da bem-


aventurança (Lc 7,22-23).
35 Segundo Müller, “Quem se distancia rapidamente de Caim e se identifica
com Abel, se fecha ao caminho para a compreensão do texto. Especialmente
em crianças se constata esta tendência” (1965, 75).
47
O episódio de Caim e Abel deixa claro que se não se abraça so-
lidariamente a alteridade vulnerável e desvalida, a exemplo de Deus,
fica difícil, senão impossível, edificar a si mesmo, o irmão, a família, a
comunidade ou mesmo a nação. A cura começa, sobretudo, em nós!

Conclusão
Ao longo deste estudo viu-se que a violência não era um problema
das civilizações antigas, dos mitos, coisa do passado, mas do presente.
O texto sugere dois eixos básicos que podem ser luz para o crente.

O eixo da fé (teológico)
Ressaltou-se ao longo da abordagem os vários paralelos entre
este episódio e aquele de queda do primeiro casal no capítulo pre-
cedente. Segundo Blenkinsopp, “tudo indica que as duas passagens
então unidas no sentido de que o que ocorre no jardim determina o
que tem lugar depois da expulsão” (1999, p. 96). Na mesma linha,
Zenger afirma: “Gn 3 descreve o lado interno, enquanto Gn 4 o lado
externo do ser humano que tornou-se, isto é, torna-se culpado. O
fratricídio enraíza-se no abandono de Deus e torna manifesto este
abandono” (1983, p. 22). Concordamos que o episódio do fratri-
cídio decorre do rompimento com o Criador. Sem ele a pessoa vai
involuindo, isto é, vai se desumanizando e se animalizando, passa a
reproduzir comportamentos reservados aos animais sem palavra e
sem razão. Ora, o inverso é também verdadeiro, restaurar a relação
e a harmonia com o Criador é decisivo na construção da fraternida-
de. Noutras palavras, não tem fraternidade sem experiência séria do
Pai, sem fanatismo que cega. O processo de tornar-se irmão implica
também tornar-se filho. Encontrar o outro no Outro e vice-versa.

O eixo da fraternidade (social)


A fraternidade é dom de Deus, querida por ele, mas é também
obra de artesão. Pressupõe sensatez, atitude sapiente, auto-domínio,
48
saída de si na direção do outro com o Outro. A página bíblica que
lemos parece apresentar a única solução para o mundo: ser fraterno.
É o sonho de Deus, um mundo de irmãos36.
A narrativa de Caim e Abel nos convida a assumir a guarda do
irmão (desvalido) como via para restaurar a família humana. Essa
revolução está ao nosso alcance. É a chance de aniquilar a violên-
cia. Ter irmão é fácil embora não dependa de nós, mas dos pais, do
Pai. Difícil é ser irmão. Isso depende (também) de nós, pressupõe
nosso protagonismo.
Nos Evangelhos aparece a expressão “tornar-se [ginomai] filho
do Pai/Deus” (Mt 5,45a; Jo 1,12). O uso do verbo ginomai (= tor-
nar-se; chegar a ser) sugere que ser filho de Deus é um processo, um
caminho, uma meta a ser alcançada. Ora, por extensão, ser irmão
também. A fraternidade não se reduz ao DNA, não é mera questão
de biologia, antes é sobretudo um processo, que deve ser desejado,
abraçado. Talvez por isso, Caim só chama Abel de “meu irmão” uma
única vez e justamente para negar a responsabilidade para com ele (v.
9b). A chance de tornar-se irmão foi desperdiçada.
Assim, o pensamento do salmista –“como é bom e agradável os
irmãos conviverem unidos” (Sl 133,1)– não é, portanto, um estado
acabado, mas uma meta, um caminho a ser percorrido. É um desa-
fio, particularmente em famílias quebradas e filhos desestruturados
onde estão latentes os impulsos da violência.
Obviamente que o problema da violência apresentado tem múl-
tiplas facetas e causas. No submundo da miséria, do abandono e das
exclusões, nas periferias humanas sem formação e opção, agrava-se o
fator da violência e a solução não depende exclusivamente da fé (ou
mesmo da psicologia ou da educação). Seria ilusão querer resolver
tudo no nível da fé sem políticas públicas que promovam a vida
digna de milhões de empobrecidos. Todavia, se não buscarmos mo-
tivação na ética e sobretudo na fé, onde encontraríamos?
36 Cf. Mt 23,8b; Hb 2,11.12.17; Rm 8,29. Zenger (1983, p. 26) afirma que
a vida humana terá êxito quando descobrirmos o ‘Caim-em-nós’ e lhe
contrapormos o ‘Abraão-emnós’.
49
Conta uma narrativa rabínica que o mestre perguntou aos discí-
pulos quando terminava a noite e começava o dia. Um deles respon-
deu: “Quando alguém ao amanhecer, na distância, vê um animal e
consegue distinguir se é um cão ou uma ovelha”. O mestre replicou:
“Falso!” Um outro continuou: “Quando alguém ao raiar da aurora,
na distância, vê uma árvore e consegue distinguir se é uma manguei-
ra ou um abacateiro”. O mestre diz: “Outra vez errado!” Os discípu-
los perguntaram: “Como é então?” O mestre explicou: “Quando se é
capaz de olhar no rosto de uma pessoa e reconhecer nela um irmão,
uma irmã. Quem não é capaz disso, para ele é noite ainda que seja
meio-dia” (FERRERO, 2010, p. 18).

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52
RELIGIOSO IRMÃO: MEMÓRIA E
ESPERANÇA

Paulo Dullius37

...até que alcancemos todos nós a unidade da fé e do pleno conhecimento


do Filho de Deus, o estado de homem perfeito, a medida da estatura da
plenitude de Cristo. (Ef 4,13)
A encarnação de Jesus, sua forma de viver, sua doutrina e sua
insistência em fazer a vontade do Pai reorientaram algumas formas
de compreensão humana, várias delas bem explícitas no Antigo Tes-
tamento, como a questão da autoridade, da lei, das mulheres e dos
estrangeiros. Jesus assume modos de ser e conviver que remetem à
intenção original de Deus ao criar o ser humano conferindo-lhe suas
próprias características.
O ser humano foi criado à imagem de Deus que é amor, ver-
dade, luz, bondade, misericórdia e perdão. Estes modos de ser de
Deus – amor, verdade, luz, bondade, misericórdia, perdão – indicam
as características de qualquer pessoa, de qualquer estado de vida, de
qualquer opção, de qualquer instituição. Já desde o início, a forma
de viver e os referenciais transcendentes são essenciais, e qualquer
estrutura – família, Estado, Igreja, religião – se justifica na medida
em que protege e promove o ser humano. Olhando desta forma, na
intencionalidade original de Deus se acentuam as semelhanças como
dignidade, liberdade, valor, amor.
“Irmãos” é uma das palavras que melhor expressam aquilo que
temos em comum como seres humanos. Ser irmãos acentua os laços
de semelhança e compromissos comuns. Irmãos se compreendem, se
aceitam, se promovem, se apoiam, se defendem mutuamente, se per-
doam. Em geral, se parte do modelo biológico – irmãos de sangue

37 Irmão Lassalista. Mestre em Psicologia. Doutor em Antropologia.


53
-, mas o conteúdo de “irmão” é aplicável também ao nível psíquico,
ao estilo de relacionamento, bem como ao nível espiritual. Irmãos
se entreajudam e se empenham para o crescimento integral, para a
fidelidade profunda ao projeto de vida. Irmãos são sinal de unidade,
de solidariedade, de fraternidade, de hospitalidade.
A memória histórica nos coloca em contato com estruturas hu-
manas - sobretudo as de poder - que distanciam muitas pessoas da
identidade de ser irmão e desfiguram a dignidade humana. Em al-
guns casos, certas formas de ser pouco fraternas, sejam elas pessoais
ou comunitárias, são projetadas e justificadas no desenvolvimento
de imagens de Deus que não são do Deus do amor e da luz, como
no-lo recordou Jesus Cristo.
Dentro desta perspectiva, desenvolverei alguns aspectos da reali-
dade de ser “irmãos” como expressão de humanização, segundo Deus,
e como perspectiva de abrir o sorriso da esperança para nós, irmãos,
e para a humanidade. Esta presença de um estado de vida como ce-
libatário pelo Reino de Deus facilita a consciência e a compreensão
da identidade humana segundo Deus, e é convite evangélico para ser
adulto, livre para servir. A memória que nos remete a esta intenciona-
lidade original de Deus é recuperada como “memória”, mas ela con-
tinua sendo um desafio para toda a humanidade como “esperança”.
...e vós todos sois irmãos” (Mt 23,8)
Para que possamos todos nos sentir irmãos, segundo a afirmação
de Jesus, precisamos sentir-nos filhos do mesmo Pai. Filho significa
relacionamento próximo. Deus como pai significa autor e sustenta-
dor da vida. E este Pai está nos céus, ou seja, está onde há liberdade
e salvação plena. Neste nosso mundo terreno nos defrontamos com
a liberdade e com o mal, e precisamos de permanente reconciliação.
Na compreensão da palavra ‘irmãos’ está incluída a ideia de aceita-
ção mútua, de colaboração e apoio - atitudes que requerem também
reconciliação. Por isso, o Pai Nosso é a oração dos cristãos, na qual o
perdão de Deus está “condicionado” e precedido pelo perdão mútuo
(BERGER, 2014). Isso significa que a compreensão básica cristã sobre
o ser humano é ser realmente “irmãos” como referencial, mesmo que
54
se trate de uma complexidade de estruturas sociais: os pais precisam
munir-se de características de fraternidade em sua missão em relação a
si mesmos e aos filhos; professores e educadores dão sentido ao com-
promisso de serem irmãos maiores de irmãos menores; coordenadores
de comunidade são irmãos que recebem determinado ministério como
irmãos de outros; responsabilidades hierárquicas na Igreja – segundo o
Evangelho – são compreendidas dentro desta visão de irmãos.
É bom ter presente que Jesus não se pronunciou sobre nenhuma
estrutura como alternativa de Reino. A estrutura familiar, o culto,
o governo social... estavam em decadência no tempo de Jesus, bem
como em outras épocas. Para propor algo novo Jesus não defende a
estrutura familiar, mas sim, a substitui por estruturas comunitárias,
baseadas no Reino de Deus: mãe, filho, irmão e irmã é todo aquele
que segue Jesus e faz a vontade de Deus (Mc 3,33-35; Mt 12,49ss;
Lc 8,21). De forma muito concreta e totalmente real, a casa da fa-
mília se torna casa da comunidade (BERGER, 2009, p. 217). É fácil
compreender que, segundo Deus, Jesus Cristo, o Evangelho, não há
estrutura que por si mesma pode se justificar. Todas elas precisam
orientar-se a partir destes dois referenciais: seguimento de Jesus Cris-
to e cumprimento da vontade de Deus. Certamente há estruturas
coletivas nas quais pode ser mais fácil perceber estes dois referenciais
e, de alguma forma, continuam se inspirando na pessoa de Jesus e
no projeto do Reino. Mas não é a estrutura – nem o nome ‘Irmãos’
– o suficiente. Nosso nome “irmãos” é uma memória evangélica e
também um desafio permanente para que vivamos reconciliados e
não caiamos na tentação do poder (político, religioso, do dinheiro),
do prestígio de facilidades econômicas.
O cristianismo em suas origens não deu continuidade a formas
hierárquicas do Antigo Testamento, mas insistiu numa causa comum,
ou seja, em fazer a vontade de Deus e viver como irmãos. Bispo, sacer-
dote, diácono não são designações originárias do Cristianismo, mas do
Império Romano, e significam vigilância da unidade, sabedoria da ex-
periência de vida e serviço. Esta compreensão esteve presente na Igreja
dos primeiros cristãos e tem sentido ainda hoje. Ser irmão hoje é uma
forma de expressar opções de vida baseadas na originalidade cristã.
55
Jesus Cristo - a Igreja – opções de vida
Como religiosos irmãos, nosso primeiro desafio é viver como
irmãos, como “adultos em Cristo”, inspirando-nos no seguimento
de Jesus Cristo e estendendo-o a todas as áreas de nossa vida: hu-
mana, cristã, espiritual, relacional, bem como na presença junto aos
mais frágeis, e na forma de ver a realidade. Por isso o religioso irmão
pauta sua vida a partir de Deus, de Jesus, a partir de um amor casto e
respeitoso em relação a si, aos coirmãos e a todos os seres humanos;
amor casto e respeitoso em relação ao mundo e a Deus.
O religioso irmão realiza seu ser na concretização de um estado de
vida pautado no seguimento de Jesus Cristo e no Evangelho. Na ver-
dade, este seguimento é o que nos caracteriza como humanos, como
cristãos. Nós o fazemos por uma opção de celibato evangélico que tem
como referencial central e contínuo Deus, sua missão salvífica, e a vida
livre em Deus diante e para os homens. A consciência existencial desta
referência no Reino de Deus se transforma em vigilância permanente
para que esta opção também siga sendo uma alternativa de maturi-
dade humana e cristã. Toda a existência, os níveis físico, psíquico e
espiritual se estruturam segundo o Reino onde todos são irmãos.
Qualquer área da vida humana pode ser transformada em opção
e estado de vida. Há pessoas cuja opção de vida está centrada na
dimensão física, material. Ali instauram o seu núcleo motivador e
colocam outras áreas da vida humana a serviço desta dimensão. Há
pessoas que direcionam sua vida para o esporte, a arte, o conheci-
mento. Outras, ainda, concentram seus esforços no trabalho e na
inserção social. E há, também, pessoas que criam sua unidade de
vida a partir do nível espiritual, do sentido de sua vida. Cada opção
destas pode ser realizada como casado, como celibatário ou como
engajado num movimento de inspiração cristã e evangélica. Cada
qual vive de alguma forma o conjunto de sua vida a partir de opções
feitas segundo o nível e o sistema de opções fundamentais.
Optar por um estado de vida celibatário a partir do nível espi-
ritual – como no caso do religioso irmão – requer um permanente
esforço para viver com liberdade este nível e superação de imaturida-
56
des e dependências que possam consumir energias no nível físico e
psíquico e em formas imaturas de expressão espiritual. Desta forma,
a questão motivacional e a superação de formas imaturas de vida
favorecem viver e compreender a opção de ser religioso Irmão.
Viver a partir de uma inspiração básica dentro do nível espiri-
tual significa integração das dimensões física e psíquica. Integração
é o oposto de negação ou repressão. Integração significa acolhida e
valorização da realidade física, corporal, material de si e das pessoas
que nos circundam; significa estar satisfeito com o vivido sem guar-
dar ressentimentos nem vontades compensatórias em relação ao ter,
ao poder, ao prestígio. Integração psíquica significa êxito nos rela-
cionamentos com semelhantes, diferentes, autoridades, subalternos;
significa ter sucesso social e profissional a serviço dos demais.
Ser irmão constitui um itinerário de maturidade para servir com
liberdade, transformando-o num estado de vida - primeiro pessoal,
depois comunitário. Se Jesus não defendeu nenhuma estrutura fami-
liar, nem religiosa, nem social, Ele teve presente sua decisão de que
se viva como irmãos, portanto, como comunidade, na qual há vida e
experiência salvífica. Não como sociedade na qual há relacionamen-
tos anônimos, mas como fraternidade de zelo mútuo.
A Igreja, em suas origens, esteve muito atenta à unidade ao re-
dor do projeto de Deus, explicitado em Jesus Cristo. A dimensão de
fraternidade, de acolhida, de semelhança, de solidariedade e de hos-
pitalidade tem sido objeto de atenção dentro de cada comunidade e
também em relação a outras comunidades. A questão hierárquica foi
se estruturando posteriormente. Mesmo existindo no início da Igre-
ja, a insistência básica esteve na fidelidade a Jesus, na realização do
Reino de Deus. A questão da crença na iminência do fim do mundo
– que esteve presente no início da Igreja e em cada época da história
– serviu também de vigilância ao estilo de opções e de valores. Entre
estas opções, os religiosos Irmãos procuram ser uma memória social
da celebração da mensagem de Jesus e também um compromisso
para que o Reino venha e se realize neste mundo.
57
Todos nós conhecemos o esforço da Igreja, sobretudo após o
Vaticano II, para dar espaço e reconhecimento à vida religiosa de
irmão. Perfectae Caritatis (n. 10) fala da vida religiosa laical, que é
estado completo em si. Exorta à fidelidade e propõe atualização. Re-
demptionis Donum, de João Paulo II, insiste na vocação como consa-
gração batismal para estar em Cristo. Fala dos votos a partir do mis-
tério Pascal. Em Vita Consecrata (n. 60), João Paulo II, fala dos reli-
giosos irmãos: “Institutos religiosos de Irmãos”. Os irmãos precisam
formação humana, teológica, pastoral e profissional. São irmãos em
Cristo, unidos a Ele, ‘primogênito de muitos irmãos’ (Rom 8,29);
irmãos entre si, no amor recíproco e na Igreja; irmãos de todos os
homens. “Identidade e missão do religioso Irmão” insiste na Igreja-
comunhão (fraternidade), sinal do Evangelho para a sociedade; sinal
de Reino que busca a salvação integral da pessoa (n. 31).38
Estes documentos da Igreja facilitam a compreensão do sentido
de vida e da missão do religioso irmão dentro da Igreja. Este reco-
nhecimento é importante para uma identidade, ainda que não seja
este reconhecimento o essencial para nossa vida como irmãos. Re-
cordo o que afirmei acima: qualquer aspecto da vida humana pode
ser objeto de uma opção de vida e pode durar sempre ou por de-
terminado tempo. Como religiosos irmãos, nossa motivação central
precisa se manter, a partir do nível espiritual, e este, ser de caracte-
rísticas cristãs e realizado dentro de um celibato pelo Reino de Deus.
Evidentemente, isso significa um itinerário de superação de feridas
afetivas de qualquer espécie para ser livre, adulto e servir dentro da
visão da “Alegria do Evangelho” (Papa Francisco).

O itinerário da identidade do Religioso Irmão


Muito se tem falado sobre identidade. Isso significa que, há um
tempo, formas de ser tais como pai, professor, religioso, celibatário...
tinham seus papéis sociais bastante claramente estabelecidos e diferen-
ciados, dentro de certa constância histórica. E isso facilitou cada qual
saber quem é e qual seu lugar na sociedade. Precisamos ser nós mesmos.
38 Ver FERRE (2015) p 805-818.
58
A realidade social complexa de hoje dificulta estruturar uma iden-
tidade diferenciada mais estável. Mas isso não significa que não há esta
identidade. Pode ser mais complexa sua estruturação e diferenciação.
A identidade é fruto da elaboração contínua de variáveis inter-
nas da pessoa em relação a realidades externas que se apresentam e
têm seu influxo consciente e/ou inconsciente. “A principal tarefa do
ser humano na vida é dar à luz a si mesmo” (Erich Fromm). “A vida
é uma contínua descoberta de si mesmo”, diz J. Garner, mas esta
descoberta é própria, e este “dar à luz” a si mesmo frequentemente é
acompanhado de dores de parto. A construção da identidade pode
ser hoje mais difícil que nunca, devido ao clima de mudança, de
pluralismo e de uniformização dos valores (GOYA, 1996, p. 80).
Eric Erikson dedicou muitos estudos ao redor do tema da iden-
tidade – estudos estes já conhecidos. Ser alegre por ser a si mesmo é
complexo e é o resultado de um itinerário humanizante exitoso. O
que precisamos na vida é ser reconhecidos, valorizados, incentivados
a aproveitar as nossas forças interiores e as realidades exteriores para
crescer como pessoas adultas que fizeram certas opções específicas,
como a de religioso irmão.
A identidade conta sempre com dois aspectos: o específico e o
diferente. E isso pode ser uma opção pessoal ou coletiva, como acon-
tece quando alguém se associa a um grupo (congregação) para viver
e fazer acontecer o Reino, segundo determinado carisma.

Em outras palavras, como diz Ricoeur


longo é o caminho para o homem que ‘age e sofre’ até o reco-
nhecimento daquilo que ele é em verdade, um homem ‘capaz’ de
certas realizações. Esse reconhecimento de si ainda requer, em cada
etapa, a ajuda de outrem quando falta esse reconhecimento mútuo,
plenamente recíproco, que fará de um dos parceiros um ser-reconhe-
cido. O reconhecimento de si permanecerá não apenas inacabado
– permanecerá na verdade o reconhecimento mútuo - mas, além
disso, mutilado, em razão da assimetria persistente da relação com
59
outrem construída segundo o modelo da ajuda, mas também do
impedimento real (2006, p 85).
A identidade existe e podemos confirmar em nós que somos os
mesmos desde que existimos. Contudo, há uma dinâmica de cons-
tante mudança oriunda de nós e do mundo circundante. Em alguns
momentos fazemos escolhas que nos caracterizarão e diferenciarão de
outros que não as fizeram e que não têm o nosso passado vivido. Para
algumas pessoas há grandes mudanças no decorrer da vida, resultantes
de escolhas, de oportunidades e de discernimento pessoal; outras pes-
soas, devido a um conjunto complexo de fatores, mudam pouco no
decorrer da vida - além de mudanças de idade, de experiências.
A dialética entre o núcleo existencial e as circunstâncias diferen-
tes da vida constitui a identidade sob dois aspectos. Ricoeur fala da
identidade idem e da identidade ipse, dinamicamente interagindo na
identidade narrativa.39 Identidade idem se refere aos aspectos que rece-
bemos sem termos participado muito das escolhas, tais como ter estes
pais, pertencer a esta família, ter nascido neste tempo e lugar, nesta
cultura, ter este gênero, e outros aspectos mais. Em relação a esses
aspectos podemos nos sentir felizes ou ter ressentimentos, sobretudo
diante de feridas afetivas que geram escolhas compensatórias no futu-
ro, mas que não conseguem consolidar a unidade ao redor do amor.
A progressiva autonomia em escolhas, nas quais decidimos o
que queremos ser, nos torna paulatinamente responsáveis pela nossa
identidade e possibilidade de fidelidade ao que assumimos. Neste
caso escolhemos a partir daquilo que nos é oferecido no contexto em
mudança. É o que Ricoeur chama “identidade ipse”. Nossa capacida-
de de fazer e manter escolhas e promessas de fidelidade e identidade
são parte desta “identidade ipse”. Contudo, já que somos os mesmos
desde o início de nossa vida, todas as escolhas recebem grande influ-
ência da interação entre as experiências e estruturações do passado
39 Para tal, veja-se deste autor: O si mesmo como outro, São Paulo, Martins
Fontes, 2014; e também: A memória, a história, o esquecimento, São Paulo,
Unicamp, 2007 (2018). Veja-se também in AAVV. Paul Ricoeur: Persona,
comunità e istituzioni – dialettica tra giustizia e amore. Edizioni Cultura della
Pace, FI, 1994.
60
e as que se apresentam. Neste complexo é difícil avaliar o estágio de
maturidade, liberdade e objetividade das escolhas feitas, o que, por
sua vez, tem algum reflexo na identidade. A identidade pessoal, por-
tanto, tem, entre outras, as características de unidade, continuidade,
dinamicidade e permanente mudança e/ou crescimento.

A questão da identidade pessoal e social


Seguindo nossa reflexão sobre o religioso Irmão, estamos consta-
tando que seu referencial se baseia no Evangelho, e este, na vontade
salvífica de Deus em relação a todos os homens, independentemente
de cor, raça, credo. Deus é o Deus de todos. Todos somos de alguma
forma irmãos, ou chamados a viver como irmãos. Cada ser humano
é privilegiado diante de Deus. Não se pode pensar num povo es-
colhido, numa igreja que tem o monopólio da salvação, nem num
estado de vida - como o do religioso irmão - como estado especial
de santidade. Tudo vai depender da capacidade de amar e de ser
profundamente humano. O religioso irmão, sabendo de sua escolha
de estado de vida a partir do nível espiritual cristão, tem a missão de
ser o mais humano dos humanos. E se associa a outros para testemu-
nhar a salvação. O caminho da humanização veio pela encarnação
de Deus, em Jesus Cristo. Esta encarnação nos devolveu o sorriso
da esperança. Por isso, quanto mais humanos formos, mais seremos
instrumentos desta salvação de Deus.
O itinerário identificatório tem um aspecto pessoal, mas tam-
bém social. O itinerário pessoal segue vários aspectos importantes e
níveis, os quais requerem êxito para que aconteça uma forte identi-
ficação e estimule o crescimento. Vale tanto para indivíduos, quan-
to para grupos. Goya (1996, p. 70ss) desenvolveu esta identidade
em diferentes níveis significativos. Fala de: a) Identidade humana,
formada de todos os elementos individuais, sociais e culturais da
pessoa. Nesta identidade humana se incluem profissão e o estado
de vida escolhidos pela pessoa; b) Identidade cristã, que completa e
aperfeiçoa a religiosidade natural, num processo progressivo de total
transformação adulta em Cristo; c) Identidade de pessoas consagra-
61
das, como forma de expressão de um estado de vida, assumindo um
modelo histórico de Cristo e vivendo desta forma a centralização do
seguimento de Jesus Cristo; d) Identidade carismática, que expressa
uma forma específica de amar, seguindo um dom do Espírito à Igre-
ja. A associação a esta identidade carismática permite viver a frater-
nidade e expressá-la em associação à humanidade, em realidades nas
quais o Evangelho está mais ausente ou “desfigurado”, como entre
idosos, jovens, pobres, doentes, migrantes e outros.
Todos nós aprendemos por indicação, por identificação e imita-
ção. Desde pequenos – e ainda hoje - todos nós somos comparados
e avaliados. , nos dizem Dizem-nos como devemos ser ou não ser,
como devemos agir, etc. A nossa identidade vai depender dos conte-
údos e processos que nos são indicados pelos pais, professores, líderes
religiosos; depende dos processos identificatórios de pessoas influen-
tes e de causas significativas; depende dos rituais nos quais fomos
iniciados e das experiências que fazemos como resultado do que nos
é oferecido e do que escolhemos ou elaboramos pessoalmente. Cada
pessoa elabora esta sua identidade, que depende, também da questão
social. A forma como a sociedade e, sobretudo, a hierarquia da Igre-
ja, considera este estado de vida, pode facilitar ou pode dificultar o
estado de vida como religioso irmão. Em épocas de pouco reconhe-
cimento deste estado de vida, a identidade das pessoas e a identidade
das instituições de irmãos têm mais dificuldade de afirmar seu pro-
cesso de identificação. Mas há outros fatores intervenientes e não se
pode cair num falso determinismo para justificar as dificuldades de
nossas opções e do estado de vida que muitos assumimos.
As próprias instituições de irmãos precisam oferecer, segundo
vejo, três aspectos importantes para estimular a fidelidade e garan-
tir boa identidade a seus membros e à instituição como tal: garantir
uma formação humana, teológica e profissional em profundidade para
amadurecer integralmente e alcançar uma satisfação de vida e uma
forma de presença significativa na sociedade; uma vida fraterna que
fortifique as experiências humanas saudáveis e dê oportunidade para
superar as feridas de todo tipo, oriundas do passado, continuadas no
presente e projetadas no futuro; um projeto apostólico fascinante, que
62
envolva a todos e que todos se sintam estimulados em sua autoestima,
por participarem da instituição e de seu projeto apostólico.
Religioso irmão com fraca identidade pessoal vai depender mui-
to da identidade social, ou seja, daquilo que a sociedade e/ou a ins-
tituição lhe oferecem. Ele mesmo faz suas escolhas segundo seu es-
tágio de maturidade e as oportunidades oferecidas como superação,
como compensação ou outras formas. A interação entre indivíduo e
grupo requer uma vigilância antropológica para que a identidade e a
causa de estado de vida de irmão possam ter êxito.40

Desafios para viver com alegria a opção de religioso irmão


Ser religioso irmão e assumir esta opção como estado de vida
dentro de uma Instituição ou Congregação é um importante teste-
munho da vontade salvífica de Deus e de que todos somos Irmãos.
Esta opção está pautada a partir do nível espiritual. Esta consciência
ajuda a escolher as melhores alternativas identificatórias que se apre-
sentam nos níveis físico, psíquico e espiritual. Não se trata de nega-
ção, mas de integração, a partir do núcleo central da identificação
do religioso irmão. Cada irmão e cada instituição têm a responsabi-
lidade de evitar dissonâncias, ou seja, evitar estar demais envolvidos
em conteúdos e processos que podem distanciá-los da opção feita.
Convém escolher as experiências, convivências, ideias e presenças
pastorais que explicitam e fortalecem a opção de religioso Irmão.
Assumindo o fato que personalidades frágeis dependem muito
do contexto, esta possibilidade indica dois caminhos: a) fortalecer
os Irmãos como pessoas adultas, responsáveis, satisfeitas, com iden-
tidade segura, e b) a instituição ser muito clara em sua identidade
carismática e organizativa, em sua presença e imagem social, e ser
dinâmica e criativa ao oportunizar experiências significativas a favor
do crescimento integral.
40 Para compreender esta relação entre indivíduo e sociedade, ou seja, identidade
pessoal e identidade social, sempre se pensa na identidade e na diferença, nos
aspectos novos que se apresentam. Para tal, é útil consultar WOODWART,
Kathyn. Identidade e Diferença, Petrópolis, Vozes, 2009.
63
Como religioso irmão, pessoa e instituição, podemos ser vigi-
lantes naquilo que facilita uma boa identidade, também evitando
obstáculos desnecessários que conflitam com o ser religioso irmão.
Quatro características da vida humana, assumidas pela Igreja
das Origens, e que hoje foram assumidas pelos Institutos religiosos
de irmãos, são grandes desafios no mundo de hoje: a vida fraterna
em comunidade, o esforço para garantir a unidade, a solidariedade
e a hospitalidade.
A vida fraterna continua sendo uma forma de lembrar que somos
todos irmãos. Ferimo-nos e nos curamos nos relacionamentos. O êxi-
to nos relacionamentos nos cura, nos faz crescer, torna-nos livres e sen-
síveis aos demais, cria sentido para a vida. Compreender as diferenças
como enriquecimento humano e não como processo competitivo e
eliminatório pode incentivar a ver a profundidade dos desejos de uni-
dade, de acolhida, de amor. Solidariedade decorre do reconhecimento
da dignidade comum e merecida de todo o ser humano. Irmãos ten-
dem a ser solidários e presenças significativas em todo tipo de sofri-
mento. Hospitalidade acontece onde se considera pouco a diferença e
todos são acolhidos como irmãos. Hoje, num mundo como o conhe-
cemos, faz-se necessária a hospitalidade como sinal de sermos irmãos.
A Igreja se inspira nesta hospitalidade cristã para ser salvação hoje, o
que constitui um desafio de todos (THEOBALD, 2017, p.251).
Estas quatro características – vida fraterna em comunidade, es-
forço para garantir a unidade, solidariedade e hospitalidade - podem
ser permanente critério avaliativo em ser Igreja e referência dinâmica e
criativa para Institutos religiosos de Irmãos. Sermos os mais humanos
dos humanos é sermos presença salvífica em nosso ser, conviver e fazer.
Em síntese, a vida de religioso irmão é memória permanente de
Deus e de sua intenção ao criar o ser humano para viver em fraterni-
dade, em acolhida, em ajuda, e realizar a vontade de Deus, para que
“todos cheguem à salvação e ao conhecimento da verdade” (1 Tim
2,4). Como desafio permanece o compromisso de fidelidade e em-
penho para que esta salvação seja vivida já, agora, e como esperança.

64
Referências
BERGER, Klaus. Das Vaterunser, mit Herz und Verstand be-
ten. Freiburg: Verlag Herder, 2014.
BERGER, Klaus. I Cristiani delle Origini – Gli anni fondatori di
una religione mondiale. Brescia: Queriniana, 2009.
FERRE, José Maria. O religioso Irmão – Uma maneira de viver a
fraternidade de Jesus. Santander: Sal Terrae, 2015.
GOYA, Benito, Psicologia e vita consacrata. Milão: San Paulo, 1996.
IDENTIDADE e missão do religioso Irmão: “E todos vocês são
irmãos” (Mt 23,8). Vaticano: Livraria Vaticana, 2015.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São
Paulo: Unicamp, 2007.
RICOEUR, Paul. O si mesmo como outro. São Paulo: Martins
Fontes, 2014.
RICOEUR, Paul. Persona, comunità e istituzioni – dialettica tra
giustizia e amore. Firenze: Cultura della Pace, 1994.
THEOBALD, Christoph. Urgences Pastorales: comprendre, par-
tager, réformer. Montrouge: Bayard, 2017.
WOODWART, Kathyn. Identidade e Diferença. Petrópolis: Vozes,
2009.

65
FRATERNIDADE: DOS PRINCÍPIOS DO “SER
IRMÃO” E DO “SENTIR-SE IRMÃO”

Epifânio Barbosa Lima41


Jorge Luiz de Paula42

Despertem o mundo! Sejam testemunhos de uma forma diferente de fazer


as coisas, de agir, de viver! (Papa Francisco).

Um perpassar do “ser-irmão” ao “sentir-se irmão”


A sequência do que aqui será exposto visa a refletir sobre o pro-
cesso de amadurecimento humano do religioso consagrado irmão,
sob a ótica da espiritualidade cristã e da afetividade, como caminho
para ser sinal profético do Reino de Deus na Igreja e no mundo.
Pode-se dizer que o “sentir-se irmão”, como proposto no título des-
se artigo, evoca realidades ainda mais profundas e aderentes que a decla-
ração regular de ‘ser-Irmão’. Grosso modo, o “ser-irmão” pode resvalar
em realidades de institucionalidade religiosa por emissão de votos ou
por agenda de serviços apostólicos. Nesse sentido, o “sentir-se Irmão”
engloba o “ser-Irmão”, mas também o ultrapassa de muitos modos. Em
outras palavras, pode-se “ser-Irmão” sem sentir-se profundamente Ir-
mão; porém não é menos provável “sentir-se Irmão” sem, de fato, sê-lo.
Assim, o caminho traçado nas próximas páginas tem três eixos nor-
teadores da escrita que perpassará a evocação do sentimento – ser-irmão

41 Jesuíta Irmão. Pedagogo, Especialista em Temas Inacianos, Mestre em


Gestão Educacional e Doutorando em Educação. Escritor, Gestor de Obras
Apostólicas da Companhia de Jesus na Educação Básica e Assessor em Retiros
e Formações Pedagógicas Inacianas. Contato: amdgsj@gmail.com
42 Jesuíta Irmão, Pedagogo, Artista da Dança, Especialista em Estudos
Contemporâneos em Dança, Mestre em Dança e Doutorando em Educação.
Diretor Acadêmico da Escola Santo Afonso Rodriguez/PI e Coordenador da
Regional Teresina - CRB. Contato: jorgedepaulasj@gmail.com
66
– como resposta a um mundo profundamente carente, a partir da base
da fraternidade, como o sentimento de si e do outro, em relação a uma
análise de caso na oferta de Oficina de Sentimentos Profundos, ocorri-
dos para Religiosos Irmãos da Conferência dos Religiosos do Brasil –
CRB – em outubro de 2019 em Fortaleza-CE, no contexto da liderança
positiva que nos habita e que é tão necessária aos nossos dias.

A evocação do sentimento como resposta a um mundo


profundamente carente
O cogito ergo sum de Descartes é uma máxima popularizada e
comumente aceita pelo pensamento de certas correntes filosóficas,
que propunham a existência embasada no pensamento. Tal máxima
levou à construção de tantas outras assertivas de igual potência, tais
como: credo ergo sum ou mesmo a inversão da proposição original,
qual seja, sum ergo cogito. Aqui, propõe-se novo axioma, a partir des-
se clássico filosófico: sentio ergo sum – sinto, logo existo.
Com tal declaração, pode-se afirmar, portanto, que é a base do
sentimento profundo que faz de nós quem nós somos, que valida
a nossa existência real e que, finalmente, nos revela a nós mesmos
quem somos frente às realidades identitárias de um mundo frágil e
necessitado de referências positivas a serem seguidas. Nessa seara de
pensamento, consoante o documento “Identidade e Missão do Reli-
gioso Irmão na Igreja” (2015), tal sentimento se enraíza na iniciativa
livre de Deus e “na experiência pessoal de seu amor gratuito”.
Em outras palavras e resumindo a proposição tecida até o mo-
mento, é a evocação do sentimento profundo como marca da iden-
tidade do ser que age como resposta a um mundo profundamente
carente de referências fraternas e solidárias. Nesse viés, conforme
Vita Consecrata (2004, p. 45), “a vida consagrada, profundamente
arraigada nos exemplos e ensinamentos de Cristo Senhor, é um dom
de Deus Pai à sua Igreja, por meio do Espírito”.
Nisso, a Vida Religiosa Consagrada vivida pelos irmãos, tem
muito a dizer, não só como carisma institucional, mas também como
67
individualidade entregue e abnegada, geração a geração, pela cons-
trução de um mundo melhor, mais coerente e digno com a proposta
do Reino, mais justo e fraterno, perfazendo a vida e a missão que
Jesus de Nazaré deixou-nos como exemplo a ser imitado e seguido.
Então é apenas com essa perspectiva clara e benfazeja que se pode
promover e divulgar a vocação do religioso consagrado irmão, como
um caminho de realização vocacional na Igreja e para o mundo.
De modo que, segundo o documento “Partir de Cristo” (2002),
“é precisamente, no simples cotidiano que a vida consagrada cresce,
em progressivo amadurecimento, a fim de se tornar anúncio de um
modo de viver alternativo aos do mundo e da cultura dominante”. As-
sim, não se pode enganar-se levianamente,- que a realidade socioeconô-
mica ou político -administrativa tenha em si a capacidade de ser o guião
de certezas plenas e saberes absolutos que apenas categorias como a fé
militante, a caridade sincera e a esperança ativa podem proporcionar.
O mundo encontra-se extremamente carente de tudo e, por
isso, apega-se a figuras menores de poder mesquinho ou de autorida-
de limitada aos interesses de seu próprio bem estar conveniente. Ser
religioso irmão, nesse contexto, é perseguir o modelo de testemunho
simples e abnegado, frente ao luxo, ao poder e à busca desenfreada
por prazer auto-realizatório.

Sentir e saber sentir, como laços necessários entre o senti-


mento e a cognição
Ao dizer que o sentimento profundo é base suficiente para uma
vida feliz e doada, não se pode negar a ligação do sentimento com as
sinapses cerebrais. Certo é que os estudos da neurociência, por exem-
plo, vêm revelando como funciona a interconexão da mente humana
e que são os processos neurais que mobilizam o “fazer” e até mesmo
condicionam o “ser agente” na vida, através da rotina e do hábito ad-
quirido e enraizado no subconsciente (DUHIGG, 2012, p. 33).
Com essa premissa, de algum modo bastante relacional entre “sen-
tir” e “saber sentir”, é o sentimento que age como resposta e conectivi-
68
dade profunda aos atos concretos que a mente elabora. Outra não é a
missão e a vocação da vida fraterna, expressa pelo religioso irmão, que a
tessitura constante e produtivamente eficaz entre o sentir e o saber sentir.
A base da fraternidade: o sentimento de si; o sentimento do
outro; o sentimento do mundo; o sentimento de Deus
A VRC começou com a fuga mundi, que entendia o fugir do
mundo como o agradar a Deus, o contrapor-se ao sistema imperante
e o buscar a paz e equilíbrio interior para a vida plena. Hoje, neces-
sariamente, não mais fugimos do mundo como os nossos primeiros
pais, mas sim, vemos como também realizável inserirmo-nos nele de
forma equilibrada, profética e testemunhal de que outro mundo é
possível, desde seu interior caótico e necessitado.
Consoante a Vita Consecrata (2004),
na vida comunitária, a energia do Espírito que existe numa pessoa, passa
contemporaneamente a todos. Nela, não só se usufrui do dom próprio, mas
este é multiplicado quando se participa aos outros, e goza-se tanto do fruto
do dom alheio como do próprio.
Nesse sentido, o princípio da Vida Religiosa era e continua sen-
do novas maneiras de repelir o “espírito do mundo” e viver e agir
para além do tempo, em um modelo celeste, Reino de Deus que, em
termos escatológicos, já o é; mas, ao mesmo tempo, ainda não o é.
Acaso pudéssemos resumir o sentimento universal do religioso
irmão, que é complexo e simples a um tempo, dir-se-ia que é o sen-
timento de si, segundo Vigarello (2014), que leva o ser humano – o
religioso consagrado, o irmão – à solidão, à reclusão, ao claustro;
que é o sentimento do outro que, no claustro ou fora dele, leva o
ser humano – o religioso consagrado, o irmão – a dar testemunho
de liderança positiva, inclusive entregando a própria vida, incruenta
ou cruentamente; que é o sentimento do mundo que nos engaja
apostolicamente para estar numa realidade em que a moral e a ética
já pouco dizem sobre o que deveríamos ser em essência.
Dessa maneira, sem contudo mesclar-se ou confundir-se com essa
superficialidade, aprofunda-se o que verdadeiramente importa à salva-
69
ção. E que, finalmente, é o sentimento de Deus que congrega todos
os demais “sentires” em um só – de si, do outro, do mundo – e assim
favorece, impele e dignifica o “ser único” e indivisível que o religioso
irmão é para si, para os outros, para o mundo e para Deus mesmo.
Desse modo, o sentimento é base sólida para a verdadeira Vida
Religiosa como irmão. Justamente por isso, precisa-se, nesse mo-
mento, expor as duas faces com as quais o sentimento pode se reves-
tir, a saber: os sentimentos tanto podem ser um recurso como pode
ser uma restrição (CARLSPECKEN, 2011, p. 418).
O sentimento como recurso é o que impulsiona o homem a ser
melhor que sua própria mesquinhez, que retira dos indivíduos as
forças que se pensava não possuir para atos de valentia e de sensibili-
dade necessários à garantia de um projeto de vida religiosa consagra-
da e fraterna. Enfim, coerente com a consagração prometida, vivida
e explicitada dia-a-dia. Destarte, é o que consola e que eleva de bem
a melhor os fiéis propósitos de vida fraterna.
Já o sentimento como restrição é o que condiciona e limita os pro-
pósitos em vistas de obedecer ao que, consciente ou inconscientemente,
é refreado em vista do cumprimento do bem mais universal em detri-
mento do bem particular; ao que inflama os homens a agir de modo
abnegado e fraterno com os demais; em suma, ao que foram chamados
positiva e verdadeiramente a serem diante de Deus e diante de todos.
Ainda assim, conforme Viscott (1982), mesmo os sentimentos
podendo ser categorizados como algo que nos impele enquanto recur-
so positivo ou que nos limita enquanto restrição, impedindo o negati-
vo em nós, mesmo assim sua complexidade na relação humana e fra-
terna é tão profunda que tal tese pode cair por terra, se restringirmos
o bem em nós e dermos ao mal, os recursos necessários à ação efetiva.
Desse modo, convém estar atentos e em constante discernimen-
to sobre qual sentimento nos move em profundidade, pois há vezes
em que a raiva, que seria algo em si negativo, não é algo necessaria-
mente ruim e que a condescendência, tendencialmente boa, pode
gerar danos imensuráveis.
70
À guisa de aprofundamento, para entender esse labirinto que os
sentimentos podem tornar-se, melhor dizendo, de que a prática e a
vivência dos sentimentos pode acarretar, já que os sentimentos são em
si neutrais, não devemos esquecer que, como mínimo, há pelo menos
mil sentimentos que nos habitam. Isso sem exageros ou hipérboles
dado que, se tomamos o Aurélio e o Houaiss como referências basi-
lares, encontramos neles a indicação de no mínimo mil verbetes da
Língua Portuguesa que se apresentam como sentimentos – sensações
– próprias do ser humano (LIMA, 2009; SOLAR, 2019).
É a esse amálgama de perspectivas de vida relacional e sentimental
que o Religioso humano está fadado a transitar de modo leve, airoso,
testemunhal, profético e martirial. Claro que conviver, e conviver frater-
nalmente, não é algo sentimentalmente fácil. Mas é algo profundamen-
te possível quando se acha o caminho das pedras43 do autoconhecimento
e do que é o seu sentir profundo ante a vida e os demais Irmãos.
Uma exposição de caso: a “Oficina sobre o sentimento de Frater-
nidade: princípio e fundamento das relações entre pessoas consagradas”
Para problematizar e iluminar alguns desafios presentes na vida
do religioso irmão, podemos trazer, neste ponto do artigo, e em arti-
culação com o dito até o presente, a análise de uma oferta de oficina
no V Seminário de Religiosos Irmãos CRB 201944.
A oficina em si compunha-se de onze passos como o exposto
nesta sequência esquemática: Passo 01: trazer, à memória, as pes-
soas com as quais convivo em minha missão diária: comunidade
religiosa, trabalho, pastoral etc. (Colocar um som ambiente); Passo
02: colocar o nome destas pessoas (Passo 01) em post-its. Um nome
43 O “caminho das pedras” reporta a uma metáfora em que as pedras se tornam
visíveis em um lago em tempos de seca e formam um caminho claro e fácil
em ser percorrido de uma margem a outra; mas que, em tempos de cheias –
tempestades –, as mesmas pedras ficam submersas no lago e não são visíveis,
dificultando os caminho para aqueles que não conhecem o lago em todos os
tempos – de cheias e de secas.
44 Sobre V Seminário de Religiosos Irmãos CRB 2019, disponível em https://
crbnacional.org.br/orientacoes-e-informacoes-em-preparacao-do-v-
seminario-nacional-de-religiosos-irmaos/ acesso em 23.05.2020.
71
por post-it; Passo 03: examinar que sentimentos atuais (positivos ou
negativos) tenho por cada uma destas pessoas; Passo 04: colocar em
post-it separado e distinto dos primeiros os sentimentos que descobri
ter em relação às pessoas que nomeei. Um sentimento por post-it;
Dando prosseguimento, Passo 05: colocar os post-it com os no-
mes das pessoas ao lado dos sentimentos que tenho por tal pessoa;
Passo 06: perceber se o sentimento pela(s) pessoa(s) que nomeei
sempre foi o mesmo ou se este sentimento foi mudando no decor-
rer do tempo de convivência com ela; Passo 07: colocar, à esquerda
do painel principal (que estará fixado na parede), os post-its com os
nomes das pessoas nomeadas; Passo 08: entre todos, contemplar os
nomes colocados nesta primeira parte do painel; Passo 09: colocar,
à direita do mesmo painel, os post-its com os nomes dos sentimen-
tos que foram escritos; Passo 10: Entre todos, contemplar a nuvem
formada pelo painel completo com nomes e sentimentos. Tendo ao
centro da nuvem a palavra FRATERNIDADE; Passo 11: partilha de
impressões, reações, vivências, quanto aos passos da Oficina sobre
Fraternidade e Sentimentos.

O sentimento de Fraternidade: princípio e fundamento das


relações entre pessoas consagradas
Aprofundando o que pode ser analisado na elaboração, oferta e
aplicação da “Oficina sobre o sentimento de Fraternidade: princípio
e fundamento das relações entre pessoas consagradas”, podemos dizer
que, ao falar em princípio e fundamento das relações; queremos, sobre-
tudo, destacar que o contato humanizante entre os consagrados se dá no
tempo (princípio) e no espaço (fundamento) (LOYOLA, 1966, p. 31 ).
Porém, não em qualquer tempo e sim no Kairós, tempo da graça
de Deus, que ultrapassa, plenifica e dá sentido ao nosso Khronos, à
nossa agenda. E não em qualquer espaço, mas sim no Reino de Deus
já aqui entre nós, como local de mística e profecia. E o que fazer
neste tempo-espaço, princípio e fundamento, que nos é dado como
dom e graça? Diakonia! Esse amor-serviço – Diakonia – é o que aju-
da a definir as relações fraternas entre os Consagrados.
72
Um modo de viver a fraternidade é dando nome ao que nos
motiva nas relações de Diakonia intra e Diakonia extra muros con-
gregacionais. Assim, ao nomear, “batizar”, as relações fraternas que
temos, será mais fácil ir ordenando os afetos, ou seja, ir conhecendo
lucidamente com o coração nossos limites e potencialidade de vida e
missão, de carisma e profetismo.

Dar nome é fazer existir


A narrativa do início do livro do Gênesis (Gn 1,1-31) ajuda-nos
a perceber a criação como advinda do desejo de Deus em que as
coisas existam. Ao dizer, “faça-se a luz, as águas, a terra, as aves, os
animais marinhos e terrestres etc.”, Deus nomeia em grandes catego-
rias todas as coisas por Ele criadas. Neste sentido, dar nome é fazer
existir, é criar e criar por amor.
Também em relação à fraternidade que o consagrado é chamado a
viver, faz-se mister dar nome para poder existir. As grandes categorias
de nossa existência relacional podem ser melhor classificadas quando
conseguimos vislumbrar os horizontes de nossas potencialidades ao
amor e ao serviço para fazer existir o eterno bem em nós. Nesse viés de
amor, cita-se o documento “Alegrai-vos” (2014), em que “ao chamar-
nos, Deus faz-nos entrar no seu repouso e pede-nos que repousemos
nele, como contínuo processo de conhecimento de amor”.
De modo que, perante os discípulos, estando eles reunidos nas
comunidades religiosas, “mulheres e homens de todas as nações, tri-
bos, povos e línguas, foram e são ainda hoje uma expressão parti-
cularmente eloquente desse sublime e ilimitado Amor” (Ap 7, 9; A
VIDA FRATERNA EM COMUNIDADE, 1994).

Dar nome é assenhorear-se


Na continuidade da narrativa do Gênesis (Gn 2,19-20), não mais é
Deus a dar nome às coisas criadas e sim o ser humano. Tal colaboração
com Deus exige de nós o dom da responsabilidade, da criatividade e do

73
cuidado. Dar nome vem com a missão de sermos responsáveis pelo que
nomeamos; de sermos criativos sobre como mais e melhor servir; de
sermos cuidadosos da vida nas realidades de morte que se nos acercam.
Deus começa Sua obra e, de certo modo, pede que a continue-
mos. Ele mesmo faz do humano senhor sobre os demais seres cria-
dos, colocando-nos em pé de igualdade entre nós, seguindo Seu divi-
no exemplo: o bem que qualquer um é chamado a fazer no mundo,
todos são chamados a fazer.

Dar nome é dar uma missão


Chamar pelo nome é também estabelecer uma missão concreta.
Assim foi com os nossos primeiros pais na fé: Abraão, Isaac, Jacó.
Um pormenor digno de nota é que, destes três patriarcas, dois deles
tiveram seus nomes mudados por Deus, pois a missão que iam assu-
mir lhe pedia novo espírito, melhor ânimo e redobrada generosida-
de; assim, Abrão se torna Abraão (Gn 17,5), Sarai se torna Sara (Gn
17,15), Jacó se torna Israel (Gn 32,29)
Também no caso de personagens bíblicos, ao chamar pelo
nome, Deus dá uma missão particular de anunciar o bem e denun-
ciar a injustiça. Em especial, referimo-nos aqui quanto a alguns casos
clássicos de certas narrativas bíblicas que, inclusive, se tornaram tex-
tos vocacionais: Moisés (Ex 3,4), Isaías (Is 6), Jeremias (Jr 1,1-12),
Samuel (I Sam 3,1-21), entre outros.

Dar nome é fazer um convite


Por fim, saber o nome é o primeiro passo para poder convidar
por amor ao serviço ao Reino a ponto de ser tido como chamado
vocacional por natureza o momento no qual Jesus fala o nome de
cada um dos discípulos que viriam a se tornar Apóstolos à medida
que seus nomes eram pronunciados pelo Mestre (Lc 6,12-16).
E, na atualidade de nossa história, Deus, em Seu Filho, pelo
Espírito, chama pelo nome a cada consagrado e, ao mesmo tempo

74
em que convida à missão, convoca também à fraternidade, como
condição necessária à vocação posta em comum para a maior glória
divina e salvação de todos.

Fraternidade como sinal


Os irmãos consagram a Deus toda a sua vida, todas as suas ações
e projetos. Assim, a fraternidade não é apenas um sentimento que
leva a um relacionamento de afeto e amizade com os outros. Jesus é
o nosso modelo, pois com atitudes e gestos revelou novas dimensões
que nos permitem entender melhor o profundo significado dos laços
de fraternidade que Deus desejou para a humanidade.
Desde o Concílio Vaticano II, a importância da fraternidade na
vida religiosa foi redescoberta. Isto é apresentado como uma experiên-
cia fraterna do evangelho e diz que nele reside o seu principal testemu-
nho, que esta é a maneira de tornar presente a salvação de Jesus Cristo
que tornou possível a fraternidade entre todos nós. Portanto, a frater-
nidade abre a vida religiosa para a universalidade na diversidade (VC).
A fraternidade faz da vida religiosa um sinal, independentemen-
te do que cada comunidade faça ou do apostolado a que se dedique:
pessoas diferentes, de diferentes culturas e raças, com diferentes sen-
sibilidades e idades diferentes e que, apesar dos inevitáveis conflitos
e dificuldades que uma vida em comum carrega com eles, vivem
juntos, oram juntos, constroem um projeto comunitário dia a dia,
crescem juntos humanamente e espiritualmente e tentam ser fiéis ao
chamado de Deus, sendo um sinal no mundo.

Para concluir
Em síntese, a oferta dessa oficina levou à consideração apro-
fundada dos religiosos Irmãos presentes, no tocante a que os sen-
timentos tendencialmente negativos, existentes na relação fraterna,
fazem-nos crescer quando os superamos; que os sentimentos posi-
tivos presentes na relação fraterna nos fazem ter atenção redobrada

75
para sua manutenção e não enfraquecimento; e que o trabalho para
que o positivo não mude em negativo e o trabalho para que o negati-
vo mude em positivo na relação fraterna, é uma máxima encontrada
em Hill (2018) e deve estar escrita em nossos corações (e em nossos
post-its das várias áreas de trabalho que temos).
Desse modo, podemos, sumamente, concluir que por um per-
passar do “ser-irmão” ao “Sentir-se irmão” chegamos à evocação do
sentimento como resposta a um mundo profundamente carente
através do “sentir” e do “saber sentir” como laços necessários entre o
sentimento e a cognição.
Inferimos, também, que a base da fraternidade não pode pres-
cindir do sentimento de si; do sentimento do outro; do sentimento
do mundo; e do sentimento de Deus. Dar nome aos sentimentos
e às pessoas com as quais sentimos e somos é, nada menos que fa-
zer existir, assenhorear-se, dar uma missão e fazer um convite para
juntos sermos mais. Em suma, “sentir-se irmão” é simplesmente ser
sempre o seu melhor no mundo.
Por essa razão, a fraternidade nos desafia a criar laços de comu-
nhão com todos, a sermos criadores de comunidades fraternas, nos
sentindo parte ativa da comunidade, comprometendo-nos em nos-
sos bairros, cidades, estados e países, com aquilo que está acontecen-
do hoje em nosso mundo, para nos identificarmos com as alegrias e
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de nosso tempo,
principalmente os pobres e os que sofrem. Enfim, que tudo que seja
humano tenha eco em nossos corações.

Referências
CONGREGAÇÃO para os Institutos de Vida Consagrada e as So-
ciedades de Vida Apostólica. Partir de Cristo. São Paulo: Pauli-
nas, 2002.
CONGREGAÇÃO para os Institutos de Vida Consagrada e as
Sociedades de Vida Apostólica. Identidade e Missão do Reli-

76
gioso Irmão Igreja. 2015. Disponível em: http://www.coindre.
org/fra_eng_esp/2016-09-12%20Identidade%20e%20mis-
sâo...%20PT.pdf Acesso em 01 de junho de 2020.
CONGREGAÇÃO para os Institutos de Vida Consagrada e as So-
ciedades de Vida Apostólica. Carta Circular aos Consagrados e
Consagradas Do Magistério do Papa Francisco. 2014. Dispo-
nível em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/
ccscrlife/documents/rc_con_ccscrlife_doc_20140202_rallegra-
tevi-lettera-consacrati_po.html Acesso em 01 de junho de 2020.
CONGREGAÇÃO para os institutos de vida consagrada e as so-
ciedades de vida apostólica. A vida fraterna em comunidade.
“Congregavit nos in unum Christi amor”. 1994. Disponível em:
https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccscrlife/
documents/rc_con_ccscrlife_doc_02021994_fraternal-life-in-
community_po.html Acessado em 31 de maio de 2020.
DUHIGG, Charles. O Poder do Hábito. Por que fazemos o que fa-
zemos na vida e nos negócios . Rio de Janeiro: Editora Objetiva
LTDA, 2012.
HILL, Napoleon. Atitude mental positiva. Porto Alegre: Citadel, 2018.
JOAO PAULO II. Exortação apostólica pós-sinodal “Vita Consecrata”.
1996. Disponível em: http://www.vatican.va/content/john-paul-
ii/pt/apost_exhortations/documents/hf_jp-ii_exh_25031996_vi-
ta-consecrata.html Acesso em 31 de meio de 2020.
LIMA, M. E.B. Dicionário de Sentimentos. 500 sensações para um
caminho do amor ao serviço. Teresina: Nova aliança, 2019.
LOYOLA, Inácio de. Exercícios Espirituais. Porto Alegre: CECREI,
1966.
PAULO VI, Papa. DECRETO Perfectae Caritatis sobre a Con-
veniente Renovação da Vida Religiosa. 1964. Disponível em
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cil/documents/vat-ii_decree_19651028_perfectae-caritatis_
po.html Acesso em 01 de junho de 2020.
77
SOLAR, Suryavan. Mindset do Coração. São Paulo: Gente, 2019.
VIGARELLO, Georges. O sentimento de si. História da percepção
do corpo. Petrópolis: Vozes, 2014.
VISCOTT, David. A linguagem dos sentimentos. São Paulo: Sum-
mus, 1982.

78
DIGA-ME COM QUEM TU ANDAS

Vanildo Luiz Zugno45

A VRC na América Latina e Caribe, dentro do movimento que


resultou na realização do Concílio Vaticano II e, no Continente, a Con-
ferência Episcopal de Medellín e as subsequentes Conferências do Ce-
lam, está passando por um profundo, bonito e -– por que não dizê-lo?
– muitas vezes, sofrido processo de redescobrimento de sua identidade.
Este processo inclui um momento negativo – talvez o mais do-
loroso– de desconstrução de uma determinada identidade que já não
responde às novas realidades vividas na região. O que torna a tare-
fa ainda mais difícil é a necessidade de, simultaneamente, ensaiar
a construção de uma nova compreensão de si mesma. Isso, sob a
pressão da urgência dos tempos e das situações. Tarefa que, mesmo
tendo começado antes do próprio Concílio, ainda está a caminho e
que, como todo processo, se não for bem conduzido e levado adiante
com o devido vigor, pode correr o risco do retrocesso.
Nesse processo, ao pôr-se a caminhar juntamente com a Igreja
que já não se pensa a si mesmo em oposição, mas em diálogo com a
sociedade, a VRC se dá conta, por um lado, que já não pode seguir
vivendo como uma eclesíola ou seita. Ela se dá conta de que, dentro
do mundo em que lhe cabe viver e dentro da catolicidade da Igreja,
tem sua contribuição específica a dar enquanto VRC.
Caminhar em Igreja permitiu à VRC redescobrir, além do espe-
cífico da VRC como um todo, também uma grande diversidade de
carismas e a riqueza que cada um deles, em diálogo com os outros,
pode aportar ao conjunto da VRC e à Igreja.

45 Frade Menor Capuchinho. Doutor em Teologia. Professor na Escola Superior


de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre, RS).
79
Do mesmo modo, o inserir-se na sociedade e, nela, tomar parte
nas lutas por libertação do povo pobre, a VRC também redescobriu
sua dimensão místico-profética e a necessidade de, para torná-la real
e explícita, desfazer-se de estruturas, modos de vida, esquemas men-
tais, teologias, espiritualidades... que, na realidade concreta do Con-
tinente, já não são sinal da presença do Reino de Deus. As lutas dos
afrodescendentes e indígenas desafiaram a religiosos e religiosas que
trazem no seu corpo – muitas vezes de modo inconsciente ou oculto
– as marcas dos 500 anos de uma mestiçagem forçada, a redescobrir-
se como afroamericanos/as ou filhos e filhas dos povos originários
destas terras e, a partir desta consciência, a pôr-se numa dinâmica de
resgate da cultura e dos direitos destes povos e, consequentemente,
também seu direito de expressar a própria fé cristã com as formas e
os conteúdos que lhe são próprios.
A proximidade com as mulheres do povo e suas lutas fez com
que muitas religiosas – o grupo mais significativo da VRC – se po-
nham a repensar sua própria condição de mulheres e a comprome-
ter-se na superação das estruturas machistas, tanto no âmbito da
mesma VRC, quanto da Igreja e da sociedade.
O Concílio Vaticano II, ao repensar o ser da Igreja, chamou
também a atenção para a realidade eclesial dos leigos. Reconheceu
sua plena condição eclesial, a partir da teologia do batismo e sua ci-
dadania eclesial, através da participação nos conselhos nos distintos
níveis eclesiais e, principalmente, por sua missão no mundo.
Neste contexto de mudanças muito rápidas e profundas, em
que nem sempre houve o tempo, coragem ou força para a devida
assimilação, a VRC, assim como a Igreja, se dá conta que, além de
seres humanos e cristãos, concretamente, somos homens ou mulhe-
res, negros, negras, brancos, brancas, índios, índias, clérigos, leigos
ou leigas... e que temos a necessidade de, nas novas circunstâncias
sociais e eclesiais, reconstruir nossas identidades.
No específico da VRC, nos damos conta de que somos homens
e mulheres – e para muitos, isso foi uma surpresa e, em alguns casos,
até um trauma! – e, em razão disso, há uma VRC feminina e uma
80
VRC masculina. Também constatamos que, entre os religiosos ho-
mens, há clérigos e há leigos.
Também nos damos conta de que há religiosos leigos, vivendo em
Congregações exclusivamente laicais e outros vivendo em Congregações
ou Ordens, onde também há clérigos... Estas duas situações concretas,
no repensar a identidade dos religiosos leigos, fazem grande diferença.
Em resumo, não há apenas uma identidade a reconstruir, mas
múltiplas identidades, pois, a VRC, mesmo sendo uma, se apresenta
sempre e cada vez mais plural e multiforme.
Tentaremos aqui colaborar na tarefa de repensar a identidade
dos religiosos leigos. Nossa reflexão se dará a partir de nossa condi-
ção pessoal, que é a de um irmão leigo vivendo numa Ordem religio-
sa, em que a maioria de seus membros é clérigo. Isso, temos consci-
ência, condicionará nossa reflexão que, sem deixar de ser particular,
quer colocar-se em diálogo com outras experiências.

O paradigma trinitário
A identidade de todo cristão e toda cristã tem necessariamente,
desde o ponto de vista da fé, como seu eixo articulador, o modo de
ser do Deus no qual acredita. Assim sendo, nosso paradigma para
pensar a identidade não pode ser diferente do que sustenta a experi-
ência cristã, o Deus-Trindade.
No ser de Deus, cada uma das pessoas que o configuram –- Pai,
Filho e Espírito –- tem sua identidade ao dar-se plenamente aos ou-
tros e, no mesmo movimento, reciprocamente, acolher plenamente
o ser dos outros. É o que a teologia trinitária costumou chamar de
pericorese trinitária (BOFF, 1986, p. 156-102).
Ou seja, o modo de ser do Deus-Trindade nos ensina que a iden-
tidade não é construída a partir de si mesmo, mas a partir do outro.
Paradoxalmente, a identidade é constituída na relação com o outro.
Em outras palavras, somos capazes de construir nossa identidade na
medida em que olhamos, interpelamos e interagimos com os outros e
outras e nos deixamos por eles e elas olhar, interpelar e provocar.
81
Como então, a partir deste paradigma trinitário pericorético,
resgatar nossa identidade de religiosos leigos na Igreja e na socie-
dade? Como acabamos de dizer, com certeza não o lograremos se
ficarmos olhando-nos a nós mesmos...
A partir de uma análise de nossas relações com outros modos de ser,
poderemos sentir, pensar e atuar nossa identidade de religiosos irmãos.

A construção das identidades


Até pouco tempo, cada Congregação ou Ordem era quase sem-
pre um mundo à parte, que não se misturava com as outras Congre-
gações ou Ordens. Essa distância, às vezes, se tornava competição,
seja para mostrar-se mais importante que os outros no interior da
Igreja ou na sociedade, seja para arregimentar vocações e clientes
para as obras educativas, de saúde ou de assistência social.
Mais recentemente, a VRC está tentando caminhar pelos sen-
deiros da intercongregacionalidade. Às vezes, nestes tempos de cri-
se e escassez de vocações e recursos, faz-se intercongregacionalidade
forçada pela necessidade... Porém, pode ser que, como diz o dito
popular, “das baixas intenções, vem o melhor resultado”.
Seja qual for a motivação que leva religiosos e religiosas de di-
ferentes congregações a atuar conjuntamente, o fato é que, ao por-
mo-nos lado a lado, vamos percebendo a riqueza da variedade de
carismas e, ao mirar que os outros e outras são diferentes de nós,
vamos redescobrindo nossas próprias identidades, na volta às fontes
e na atualização dos carismas, no confronto com as novas realidades
dentro da dinâmica da refundação da VRCO mesmo acontece nas
relações eclesiais. É analisando nossos sentimentos, nossas buscas e
nossas ações nas relações com os outros componentes do corpo ecle-
sial e tentando perceber o modo como eles e elas nos sentem, nos
interpelam e atuam em relação a nós, que vamos construindo nossa
identidade de religiosos leigos na Igreja.
Nesta convivência vamos percebendo a riqueza, mas também o
tenso e às vezes doloroso das relações eclesiais.
82
Tensões e sofrimentos não podem ser simplesmente ignorados
ou escondidos, mas devem ser assumidos com clareza e consciência
cristã, para que possam ser superados. É nessas relações que somos
formados e vamos reconstruindo nossas identidades. Em meio a
tudo isso descobrimos o lugar que nos corresponde na vida real da
Igreja e, nela, como são nossas relações com os outros e outras.
Como vimos anteriormente, a Igreja, enquanto instituição hu-
mana, ainda vive relações assimétricas, onde uns “podem” e valem
mais e outros “não podem” ou valem menos. As razões para isso são
várias e se mesclam no claro-escuro da construção eclesial: razões
históricas, teológicas, culturais, de gênero, sexo, raça, idade... Apesar
de ser essa uma situação contrária à vontade divina de uma Igreja-
comunidade-de-iguais, sempre há alguma formulação teológica que
a sustenta, dado que a teologia é, como toda ciência, uma construção
humana, condicionada pela situação de quem a produz.
Para nos ajudar a compreender as assimetrias na Igreja e o lugar
onde a VRC leiga masculina se localiza, fazemos uma adaptação do
esquema eclesiológico proposto por Fiorenza (2004, p. 179).

83
Neste esquema piramidal que retrata o que a autora chama de
Modelo Romano Constantiniano Patriarcal de Igreja, vemos que a
VRC feminina e os religiosos homens se encontram numa situação
muito semelhante. Ambos os grupos estão localizados num territó-
rio intermediário da Igreja onde se mesclam submissão e dominação.
Para usar uma imagem, poderíamos dizer que se encontram numa
“terra de ninguém” ou, numa figura teológica, estão “no limbo”.
As religiosas, neste paradigma de Igreja, sofrem uma dupla sub-
missão. Por sua condição feminina, encontram-se submissas aos ho-
mens. Por sua condição leiga, encontram-se em condição inferior
na relação aos homens clérigos. Porém, por sua condição de virgens,
têm um lugar privilegiado em relação às outras mulheres. Primeira-
mente, em relação às mulheres esposas e mães e, com muito mais
distância, em relação às mulheres não-casadas, mães solteiras, sepa-
radas, lésbicas, prostitutas e outras mulheres marginalizadas...
Os religiosos leigos, por sua vez, pela sua condição masculina

84
e pelo celibato, estão numa posição privilegiada em relação a todo
tipo de mulher, inclusive as religiosas. Porém, por sua condição de
leigos, estão inferiormente situados em relação aos clérigos, sejam
estes do clero secular ou religioso, e inclusive aos clérigos de suas
congregações ou ordens, no caso de religiosos leigos vivendo em
congregações mistas.
Como se pode ver no esquema, na Igreja há setores que vivem
uma situação de déficit de cidadania eclesial. Por um ou outro fator,
não podem viver ativa e plenamente sua pertença ao Povo de Deus.
Ali estão os leigos, homens ou mulheres e, entre estas, as religio-
sas, os negros e negras, os povos indígenas, os separados e separadas,
casais vivendo em segunda união ou em outras situações irregulares
diante do Direito Canônico, as mães solteiras, os e as homossexuais,
os e as que pertencem a outras igrejas cristãs, etc.
Numa situação de tensão intra-eclesial, quem está num espaço
intermediário tem duas opções: colocar-se do lado de cima, dos que
podem; ou colocar-se do lado debaixo, dos que não podem.
Concretamente, a tentação de clericalização da VRC leiga mas-
culina é grande e real. Afinal, quem não gosta de estar do lado de
cima da pirâmide? Aceitar essa solução, no entanto, seria negar a
própria identidade...
A alternativa, a nosso modo de ver, é outra. É intensificar as
relações com os que estão abaixo. É na relação com estes setores
marginais da Igreja que os religiosos leigos podem reconstruir sua
identidade, de modo que possam ser, nas suas realidades específicas,
uma presença profética de um novo modo de ser Igreja. Uma Igreja
que já não se pense de modo hierárquico, mas de modo fraterno-
sororal, igualitário, onde a diferença de condição e de carisma sirva,
não para a negação, mas para a edificação de todo o corpo eclesial e,
nele, dos que parecem ser os membros mais débeis e necessitados de
cuidado (1Cor 12,23).

85
Um novo modo de ser Igreja, que poderia ser assim representado:

As relações sociais
Há outro espaço onde também se constrói a identidade dos re-
ligiosos leigos: são as relações sociais. Com efeito, sempre é bom
lembrar que nem a Igreja nem a VRC estão fora do mundo. Por bem
ou por mal, sempre estamos inseridos numa realidade social. Nela
somos e com ela interagimos. Mesmo se tentarmos nos afastar da
sociedade e romper toda relação com ela, seguiremos sendo, mesmo
que simbolicamente, funcionais ou disfuncionais a ela.
Toda realidade social, por mais simples e tranquila que possa
parecer, tem sempre um grau de complexidade e de tensão. Em todas
as realidades sociais há diversos atores com diferentes identidades e
com distintos e até contraditórios interesses. Se assim não fosse, já
estaríamos vivendo o Reino de Deus...
Enquanto religiosos leigos, nossa identidade também se constrói
no modo de sentir, interpelar e atuar ante e/ou com os diversos ato-
res sociais, tanto ativa como passivamente.
Historicamente, a VRC, tanto em sua primeira configuração na
vida monástica, como na segunda, a VRC mendicante, e na terceira,
a VRC missionária que surge com a modernidade, sempre nasceu e
construiu sua identidade na aproximação aos grupos eclesiais e so-
ciais marginalizados, em seus respectivos momentos históricos.
Com o tempo, no entanto, tanto as Ordens religiosas do pri-
meiro e segundo ciclo, como as Congregações do terceiro ciclo, esta-
beleceram relações privilegiadas com os grupos sociais intermédios e
superiores da sociedade e, nessas novas relações, reconstruíram suas
identidades e se relocalizaram em um novo lugar social, na maioria
dos casos, distante dos pobres e excluídos da sociedade. A clericaliza-
ção da VRC foi, ao mesmo tempo, causa e consequência inevitável
desta deslocação eclesial e social.

86
Os religiosos leigos, pela sua condição de marginalidade na Igre-
ja, foram, em muitos casos, os que mantiveram laços e relações com
os setores sociais e eclesiais que, como eles, eram marginalizados na
Igreja e/ou na sociedade.
No período pós-conciliar, dentro da dinâmica da inserção da
VRC, religiosos e religiosas reataram suas relações com setores popu-
lares marginais e, como vimos acima, começaram a reconstruir suas
identidades plurais na unidade da VRC.
Ao lado das religiosas que foram, sem sombra de dúvida, as pio-
neiras e as mais radicais nesse processo, os religiosos leigos também
tiveram uma presença significativa no mundo da inserção. Sua presen-
ça solidária e ativa nas lutas dos camponeses, negros, indígenas, sem-
terra, sem-teto, moradores de rua, dependentes químicos, migrantes...
fizeram com que fossem vistos com outros olhos – como bons, do lado
dos pobres; como maus, do lado dos ricos – e assim se começasse a
construir uma outra identidade da VRC leiga masculina. Foi um pro-
cesso de uma minoria profética, mas que, cremos, assinala o caminho
por onde temos que seguir e nos aprofundar se queremos reconstruir
a identidade da VRC e da VRC leiga que nos ponha outra vez nos ca-
minhos das origens de um novo modo de ser Igreja em busca de uma
Nova Sociedade, que seja antecipação do Reino de Deus.

Para concluir
Tempos de crise são sempre tempos de oportunidades. A crise
da identidade da VRC e, o que aqui nos interessa, da VRC leiga mas-
culina, é rica em oportunidades para a reconstrução de identidades.
O trabalho teórico, em nosso caso, teológico, é sempre impor-
tante neste momento. Temos que, a partir de nossa condição laical,
recolocar as grandes questões teológicas. Seja para libertar a teologia
(SEGUNDO, 1978) das amarras que lhe foram postas, seja para
resgatar velhos paradigmas teológicos, que nos permitam viver a ori-
ginalidade da proposta de Jesus.

87
Seguindo o acima proposto e pensando- o a partir da rica tra-
dição da VRC latino-americana naquilo que mais a caracteriza, a
opção pelos pobres e a luta contra toda forma de pobreza e morte,
vemos que a reconstrução da identidade da VRC masculina leiga,
pode dar-se sobre dois eixos: na aproximação, diálogo e cooperação
com os setores marginalizados na Igreja, e na aproximação, diálogo e
cooperação com os setores marginalizados na sociedade.

Referências
BOFF, Leonardo. A Trindade, a sociedade e a Libertação. Petrópolis:
Vozes, 1986.
DOCUMENTOS DO VATICANO II. Constituições, decretos e
declarações. Petrópolis, Vozes, 1966.
FIORENZA, Elisabeth S. Los Caminos de la Sabiduría: una intro-
ducción a la interpretación feminista de la Biblia. Santander: Sal
Terrae, 2004.
JOÃO PAULO II. Vita Consecrata. Exortação Apostólica Pós-Sino-
dal sobre a Vida Consagrada e sua missão na Igreja e no mundo.
Roma, 25 de março de 1996. Disponível em: http://www.vati-
can.va/content/john-paul-ii/pt/apost_exhortations/documents/
hf_jp-ii_exh_25031996_vita-consecrata.html Acesso em: 20 de
fevereiro de 2020.
SEGUNDO, Juan Luis. A Libertação da Teologia. São Paulo: Loyo-
la, 1978.

88
IMPLICAÇÕES ÉTICAS DE JESUS IRMÃO

Oton da Silva A. Júnior46

Ao proclamar que o Verbo encarnado é o Filho primogênito


do Pai, a fé cristã concebe Jesus como nosso irmão, cujo desejo é
implantar um reino de irmãos e salvá-los plenamente. No entanto,
este aspecto de Jesus ficou obscurecido por outros reconhecimentos,
como o de Jesus sacerdote, príncipe da paz, rei, pastor, enfim. Li-
mitar a presença e atuação de Jesus a uma função post mortem, sem
incidência em nossa vida concreta é limitar a própria dinâmica da
encarnação. Que incidências podem emergir, então, desta relação
com Jesus, acolhido como nosso irmão?
De início, deve-se esclarecer que esta breve reflexão não visa de
modo algum questionar a identidade sacerdotal de Jesus, sua ma-
jestade, muito menos seu projeto salvífico. Mas deve-se reconhecer
que, em diferentes contextos, uma ou outra referência a Jesus e seu
projeto acabaram se sobressaindo sobre as demais. A insistência na
missão de Jesus como oferta de sacrifício, por exemplo, numa cate-
goria nitidamente judaica, fez com que seus discípulos também de-
vessem oferecer “sacrifícios espirituais agradáveis a Deus” (1Pd 2,5).�
Paulo, como fariseu bem formado, abordará a mensagem cristã da
vida, paixão e ressurreição de Jesus Cristo a partir de categorias pró-
prias do judaísmo de então, que tinha no Templo, no culto sacrifical e
na lei seus fundamentos principais (MIRANDA, 2019, p. 58).
A emancipação da vida cristã da tradição judaica ocorreu a duras
penas, sempre restando um elemento ou outro que insistia em per-
manecer, apesar dos embates.
46 Religioso da Ordem dos Frades Menores. Doutor em Teologia Moral.
Professor no Instituto Santo Tomás de Aquino (Belo Horizonte). Membro da
equipe interdisciplinar da CRB Nacional.

89
A tentação da lei permanecerá contínua ao longo da história do
cristianismo, já que muitos preferem a segurança das normas à inse-
gurança do seguimento de Jesus, a ética normativa à ética do amor
fraterno (MIRANDA, 2019, p. 59).

Quem é meu irmão?


Numa família, os vínculos e os afetos podem ser diferentes com
relação à mesma pessoa. A mesma mulher pode ser mãe, irmã, so-
brinha, avô, tia, e outros parentescos. Uma pessoa pode achar que
a característica fundamental dela é a alegria; outra, a determinação,
a fé, a serenidade. Note-se que nenhum vínculo familiar, nenhuma
característica pessoal se contrapõe necessariamente a outra. Pode-
se ser avó, alegre, determinada e, ao mesmo tempo, ser filha, de fé,
serena. O exemplo é simples, mas quer indicar que reconhecer um
aspecto de alguém não anula os demais. Dessa forma, dizer de Jesus
como nosso irmão, em nada se contrapõe à sua dimensão de sacer-
dote ou de pastor, por exemplo. Aliás, pode ser muito convidativo
pensar que aquele sacerdote é, antes de tudo, meu irmão.
No Evangelho, há uma tomada de consciência progressiva do Je-
sus-irmão. Os apóstolos, que se sentiram discípulos do Jesus-Mestre,
escutaram, na última ceia, que o Mestre já não os queria servos, mas
amigos. E o Senhor ressuscitado os chama de irmãos ao se comuni-
car a Maria de Magdala: “Vai dizer a meus irmãos: Subo para junto
do meu Pai, que é vosso Pai” (Jo 20, 17).
O caminho de fé dos homens e mulheres que seguiam Jesus
partiu de sua humanidade, e só aos poucos foram descobrindo nela
e através dela que ali se anunciava algo mais, não como algo extrater-
restre, mas que brotava de seus gestos e palavras, o que se impunha
como “significante irrenunciável, sem o qual não se entenderia nada”
(QUEIRUGA, 1999, p. 336).
Para o indivíduo do Antigo Testamento, o irmão era alguém que
pertencia, como ele, não a qualquer povo, mas ao único povo esco-

90
lhido de Deus. Isso significa que a fraternidade não dependia me-
ramente de uma descendência racial comum, mas de uma comum
eleição por Deus (RATZINGER, apud SATLER, 2015, p. 28).
Se no AT predomina o sentido biológico nas ocorrências da pa-
lavra irmão, aproximadamente metade das ocorrências dos termos
adelphos/adelphé no NT é usada de maneira figurativa, espiritualiza-
da, para falar das relações entre o povo de Israel ou entre os cristãos.
Adelphos ocorre pelo menos 343 vezes no NT, 13 das quais nos Atos
dos Apóstolos; Adelphé é usada 25 vezes. Não há, entretanto, uma
uniformidade no uso do termo (SATLER, 2015, p. 21).
Jesus não anula os laços biológicos, mas os relativiza em favor de
um projeto maior e mais radical do Reino de Deus: “Aqui estão a mi-
nha mãe e os meus irmãos, porque aquele que fizer a vontade de meu
Pai que está nos Céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12,49s).
Outro critério relevante para Jesus é o sofrimento, o qual amplia
a noção de concidadão de Israel, mediante a noção de ser próximo.
Na parábola do bom samaritano, ‘próximo’ não é somente o irmão na
fé, mas todo aquele que está na mesma situação existencial, sofrida.
Esta parábola, leva-nos a entender que não somos nós quem defini-
mos quem é o próximo e quem não o é, mas é a pessoa em situação de
necessidade que deve poder reconhecer quem é o seu próximo, ou seja,
‘quem teve compaixão por ele” (FRANCISCO, Angelus, 19.07.19).

Jesus Cristo, nosso irmão


A Igreja é uma comunidade de irmãos, uma fraternidade reunida
pela ação do Espírito. No entanto, este aspecto é um pressuposto pouco
explorado. Ao tomarmos as Orações eucarísticas como exemplo, a ex-
pressão “Jesus, nosso irmão” raramente aparece, sendo o mais comum
o complemento Jesus Cristo “nosso Senhor”. Seguem alguns exemplos.
No prefácio da V Oração Eucarística, dirigindo-se ao Pai, se diz:
É justo e nos faz todos ser mais santos louvar a vós, ó Pai, no
mundo inteiro, de dia e de noite, agradecendo com Cristo, vosso Fi-

91
lho, nosso irmão. É ele o sacerdote verdadeiro que sempre se oferece
por nós todos, mandando que se faça a mesma coisa que fez naquela
ceia derradeira.
Essas frases são muito significativas: os discípulos são aqueles
que agradecem ao Pai, juntamente com Cristo, que é, a um só tem-
po, Filho de Deus e nosso irmão. A frase seguinte o chama de “sacer-
dote verdadeiro”, que deseja que seu exemplo seja seguido, como na
ceia derradeira, ao lavar os pés e ao partir o pão.
A Oração Eucarística VI-d elenca algumas atitudes significativas
do ministério de Jesus:
Vós nos destes vosso filho, Jesus Cristo, nosso Senhor e redentor. Ele sempre
se mostrou cheio de misericórdia pelos pequenos e pobres, pelos doentes e
pecadores, colocando-se ao lado dos perseguidos e marginalizados. Com a
vida e a palavra anunciou ao mundo que sois Pai e cuidais de todos como
filhos e filhas.
A Oração Eucarística número VII, assim se refere com relação
a Deus Pai:
Jamais nos rejeitastes, quando quebramos a vossa aliança, mas, por Jesus,
vosso Filho e nosso irmão, criastes com a família humana novo laço de
amizade, tão estreito e forte, que nada poderá romper. Concedeis agora a
vosso povo tempo de graça e reconciliação.
Dessa vez, Jesus, “Vosso Filho e nosso irmão” inaugura uma
nova família humana, com um laço estreito de amizade. Pensar a
comunidade de discípulos nessas categorias descortina uma eclesio-
logia de amigos, circular, afetuosa. O oposto disso é uma Igreja hie-
rárquica, meramente cumpridora de preceitos e normas frias. Uma
Igreja ministerial terá, sim, ministros específicos para funções espe-
cíficas, mas que em nada se sobrepõem aos demais, seus irmãos. Re-
força-se que Jesus continua a ação do Pai, que cuida de todos como
filhos e filhas. Jesus tem um lugar social, uma missão bem específica
em favor dos deserdados da terra. Implanta-se uma fraternidade in-
clusiva, na qual ninguém está banido, graças a misericórdia de Deus.

92
Por fim, destaca-se a Oração Eucarística Para Crianças (n. X),
com os seguintes enunciados: “Jesus veio tirar do coração a maldade
que não deixa ser amigo e amiga e trazer o amor que faz a gente ser
feliz. Ele prometeu que o Espírito Santo ficaria sempre em nós para
vivermos como filhos e filhas de Deus”.
Ao nomear Jesus como nosso irmão, a Igreja elege o Verbo en-
carnado como o garantidor da fraternidade humana. Para isso, os
muros que impediam as pessoas de serem irmãs foram quebrados (Ef
2,14), e nesta nova humanizada já não há nem escravos nem livres,
nem homens nem mulheres, nem grego nem judeu (Gl 3,28).

Uma comunidade de irmãos


“Todos vocês são irmãos” (Mt 23,8) são as palavras de Jesus a
seus discípulos que melhor expressam a vontade de Jesus sobre a sua
comunidade. Pela vontade do seu Senhor, a Igreja deve ser, antes
de tudo, uma fraternidade. Fiel a este ensinamento, o evangelho de
Mateus usará, com frequência, a designação de “irmão” para falar do
crente ou discípulo. A metáfora da família e especialmente a desig-
nação “irmão” entre os discípulos expressa a essência da vontade de
Jesus sobre a sua Igreja.
A vida de igualdade fraterna não ignora a diversidade e as dife-
renças naturais e carismáticas que se fazem presentes entre os irmãos/
irmãs de uma mesma família: diferenças de aptidões, diferenças de
responsabilidades entre os irmãos mais velhos e os irmãos mais no-
vos, diferença de vocações em diferentes âmbitos. A fraternidade
preconiza o estabelecimento de relações horizontais entre os irmãos,
diferentes das relações verticais entre pais e filhos. Não fecha os olhos
à presença de rivalidades entre os irmãos, decorrentes de imaturida-
des. Remete, em última instância, à ligação amorosa e natural que
há entre irmãos consanguíneos. Assim deveria ser a Igreja, segundo
Mateus (SATLER, 2015, p. 40).
Seguindo a mesma mentalidade na relação fraterna proposta por
Mateus, a carta aos Hebreus assim preconiza:
93
Convinha, de fato, que aquele por quem e para quem todas as coisas existem,
querendo conduzir muitos filhos à glória, levasse à perfeição, por meio de
sofrimentos, o Autor da salvação deles. Pois tanto o Santificador quanto os
santificados descendem de um só; razão por que não se envergonha de os
chamar irmãos, dizendo: Anunciarei o teu nome a meus irmãos; em plena
assembleia eu te louvarei (Hb 2,10-12).
Por ter-se feito irmão do gênero humano é que Jesus operou a
salvação da humanidade e de todas as demais criaturas. Coincidin-
do com a imagem de Jesus como sacerdote, nesse versículo aparece
a imagem de Jesus como irmão na fé. Mais precisamente, a ênfase
na fraternidade é afirmada como pré-requisito para o exercício do
sumo-sacerdócio: “Por isso convinha que em tudo fosse semelhante
aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que
é de Deus, para expiar os pecados do povo” (Hb 2,7).
Em outros escritos, no entanto, ocorre uma mudança signifi-
cativa na mentalidade fraterna, entre irmãos, a saber - nas cartas de
Tito e Timóteo. Tito nem utiliza o termo Adelphos (irmãos). Ambos
escritos deixam de acentuar a dimensão da irmandade/fraternidade,
para adotarem a categoria da estrutura familiar, cuja preocupação se
dá na gestão das relações entre pais e filhos, mestres e escravos.
A Igreja passa a ser entendida como uma comunidade estratifi-
cada e hierárquica, liderada por homens que também lideram suas
famílias. A hierarquia das relações sociais, encontrada no lar huma-
no, é apresentada como a estruturação ideal para a Igreja: escravos
devem servir a seus mestres, especialmente se eles são crentes (1Tm
6,1-2; Tt 2,9-10); as mulheres devem ser submissas aos seus mari-
dos e boas trabalhadoras em casa (Tt 2,5). A organização do corpo
eclesiástico foi um processo, que, sem negar o valor da irmandade,
ignorou-a como elemento estruturante das relações na Igreja.
Um breve espaço de anos separa a redação de Mateus das cartas
pastorais de Tito e Timóteo. Enquanto Mateus, em sua comunidade,
esforçava-se para manter vivo o ideal fraterno, as cartas pastorais já in-
dicam um precoce distanciamento desse ideal, com a introdução na co-
munidade de diferenciações que acabam por romper, em certo sentido,
a dimensão horizontal da fraternidade (SATLER, 2015, p. 54-57).
94
As conclusões de Mateos são perturbadoras:
Nem mesmo os tratados teológicos sobre a Igreja costumam dedicar um
capítulo à Igreja como fraternidade; isso é suposto. Porém, deveríamos, talvez,
explicitá-lo mais nas palavras e, sobretudo, nas obras. Contudo, a fraternidade
brota logicamente da fé que professamos, se tomamos a sério que Deus é Pai
e que Jesus é nosso irmão. O assunto é tão sério que, se na Igreja não se vive a
fraternidade e se ela mesma não faz da fraternidade uma razão fundamental
da sua presença no mundo, não é a Igreja de Jesus. Acontece então com a Igreja
o mesmo que com o sal, que “para nada mais presta senão para ser lançado
fora, e ser pisado pelos homens” (5,13) (apud SATLER, 2005, p. 80).

Viver como Jesus viveu


Para a comunidade de discípulos do Senhor, não basta recordar o
que o Mestre fizera ou dissera. Sua missão se estenderá na vida de seus
seguidores, que farão obras maiores que as Dele (Jo 14,12). No en-
tanto, tomar as recomendações e exemplos de Jesus e aplicar de forma
prática na vida de seus seguidores não é tarefa das mais fáceis, como
bem experimentamos. No esforço de fidelidade, alguns produzirão
trinta, outros sessenta, outros, - oxalá - cem por um (Mc 4,8). O que
não se pode é contradizer o Mestre, deturpar suas palavras e maneira
de acolher as pessoas, desviar ou anestesiar suas críticas a uma religião,
que sobrepõe o sábado (tradição) ao homem (Mc 2,27), e à sociedade,
que privilegia os abastados e deserda os miseráveis.
Nessas deturpações, será possível conceber um Jesus apegado à
Lei e preceitos cultuais, xenófobo para com os samaritanos, machista,
leniente para com o Império. Um Jesus tão perfeitamente encaixado
ao sistema religioso e aos paradigmas culturais de seu tempo que em
nada se diferencia da multidão. Um homem como outro qualquer.
Retornar às fontes evangélicas nos fará recordar o modo de Jesus aco-
lher as pessoas, mesmo pecadoras e não elogiosamente religiosas, sua relação
para com os estrangeiros, mulheres, sua presença como sopro de esperança,
boa-notícia aos caídos e à margem do sistema econômico e religioso.
Ao longo da história cristã, sabemos que “em nome de Deus” já
se consumaram as piores barbáries. Em nosso tempo, “em nome de
95
Jesus” é possível espezinhar na humanidade das pessoas, contradi-
zendo o ideal de vida em abundância apresentado por Cristo. Numa
desconfiança mútua, numa mentalidade de ‘nós-contra-eles’, às ve-
zes em nome da ortodoxia, acabamos por contradizer as indicações
primárias do Mestre.
Jesus propõe ir à raiz das questões, a fim de evitar danos maiores.
Não basta, a seu modo, matar alguém, mas deve-se evitar tudo o que
desemboque no ato assassino. É preciso arrancar de dentro de si tudo
aquilo que, de uma ou de outra maneira, possa levar à morte do ou-
tro como, por exemplo, raiva, ódio, xingamento, desejo de vingança
etc. “Se estás para fazer a tua oferta diante do altar e te lembrares de
que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante
do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; só então vem
fazer a tua oferta” (Mt 5, 23-24).
Por tudo isso e tantos outros exemplos que poderiam ser aqui lem-
brados, é possível constatar a urgência de voltar às fontes da experiência
cristã e ouvir novamente as palavras do Senhor às multidões e a seus
discípulos, voltar à cena da praça pública e extasiar-se ao ouvir o “quem
não tiver pecado atire a primeira pedra” (Jo 8,7); é preciso abrir as mãos
e receber um pedaço de pão, vindo, sabe-se lá de onde, e constatar que
ainda sobraram doze cestos (Jo 6,13); beber do vinho em Caná (Jo 2,1-
11), testemunhar o modo como o Mestre fora preso e julgado injusta-
mente. Do contrário, fantasiaremos um Jesus à nossa imagem e seme-
lhança, que corrobora nossos preconceitos e acomodações.
Mesmo sendo muito próximo a nós, Jesus continua nos intri-
gando com sua diferença:
Igual, porém, diferente; radical, porém não-violento; revolucionário,
porém amoroso e não-vingativo; não-sacral, porém em intimidade abissal
com Deus. De seu tempo como tantos líderes de então, porém mudando o
mundo para sempre; morto, porém experimentado como vivo; derrotado
pela história, porém proclamado com Filho de Deus, com uma força e
convicções nunca antes igualadas (TORRES QUEIRUGA, 1999, p. 325).
Voltar a Jesus, percorrer o caminho do evangelho deverá nos
fazer redescobrir um homem bom, misericordioso, que passou pelo
96
mundo fazendo o bem (At 10,38), e que ao vocacionar os seus às
suas fileiras, pede para fazerem a mesma coisa, como ele (Lc 10,37).
O mistério de Jesus Cristo deixa de ser algo à parte, extra-huma-
no, para ser algo nosso, que nos afeta e pode interessar-nos, diante
do qual podemos assumir uma postura responsável, seja na aceita-
ção, na dúvida ou na recusa (TORRES QUEIRUGA, 1999, p. 338).
O Evangelho, diz o papa Francisco, “convida-nos sempre a abra-
çar o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença
física que interpela, com o seu sofrimento e suas reivindicações, com
a sua alegria contagiosa permanecendo lado a lado” (EG 88)

O Deus encarnado se faz nosso irmão


Paulo de Tarso diz que a encarnação do Verbo se dera “em so-
corro de nossa fraqueza” (Rm 8,26). Se concebermos então a vida
de Jesus como socorro da fraqueza, vemos em cada gesto e palavra
seus, a face bondosa e amorosa do Pai, transmitida a nós, mediante
o seu filho, Emanuel.
Há uma predileção da parte de Deus por se tornar humano,
humanizar-se e aproximar-se da humanidade, não para puni-la,
mas para salvá-la, socorrê-la. E isso se dera por mérito ou algum
pedido irresistível da humanidade? Não, mas por pura gratuidade
e manifestação amorosa de Deus. A expressão escolhida por Paulo
foi Kenosis, abaixamento, esvaziamento (Fil 2, 6-11). Temos então
um Deus quenótico, cuja fraqueza é mais forte do que os homens
(1Cor 1,25). “Em Jesus, o Pai deu-nos um irmão, que vem procu-
rar-nos quando estamos desorientados e perdemos o rumo, e um
amigo fiel, que está sempre ao nosso lado; deu-nos o seu Filho, que
nos perdoa e levanta do pecado” (AS 3).
No entanto, a comunidade dos discípulos teve inúmeras difi-
culdades em admitir que aquele homem que “trabalhou com mãos
humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma
vontade humana, amou com um coração humano” (GS 22) era, de
fato, o próprio Deus.
97
Humanizar-se passará então a ser a grande meta e desafios de seus
discípulos, uma vez que por influência de outros pensamentos teoló-
gicos, vindos do encontro com outras realidades culturais, viu-se a hu-
manidade como sinônimo de algo inferior, ou algo do qual dever-se-ia
afastar, justamente para se aproximar de Deus. A proposta cristã é justa-
mente o contrário: Deus está de tal forma unido à humanidade que em
Jesus passa a se reconhecer nos pequenos e pobres: “o que fizestes a um
destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40). Dessa
forma, “a Palavra de Deus ensina que, no irmão, está o prolongamento
permanente da Encarnação para cada um de nós” (EG 179).
O que Deus pede de nós não é um caminho de divinização, mas
de humanização, insistirá o teólogo espanhol José Maria Castillo. Se-
gundo ele, os seres divinos, ou aqueles que se comportam como tais
se põem acima dos demais, enquanto o processo de humanização é
justamente um processo de proximidade, afeição, compaixão.
Pedimos à Igreja que ela se lembre de Jesus, que a obtenha presen-
te de verdade, que assuma seu projeto de vida. E então nos daremos
conta de que tal projeto nos leva diretamente ao ser humano. E assim,
provavelmente, poderemos compreender como e por qual razão, sen-
do plenamente humanos (ou buscando essa plenitude de humanida-
de), podemos encontrar o sentido de nossas vidas precisamente em
Deus, no Deus que nos transcende e que por isso mesmo qualificamos
como a “plenitude do divino” (CASTILLO, 2017, p. 11).
O bispo de Roma nos alerta a respeito da importância do ser irmão:
Crescer entre irmãos proporciona a bela experiência de cuidar uns dos
outros, de ajudar e ser ajudado. Por isso, a fraternidade na família
resplandece de modo especial quando vemos a solicitude, a paciência e o
carinho com que é circundado o irmãozinho ou a irmãzinha mais frágil,
doente ou deficiente. Faz falta reconhecer que ter um irmão, uma irmã
que te ama é uma experiência forte, inestimável, insubstituível (AL 195).
Ser irmão, sentir-se, fazer-se irmão é antes de tudo uma decisão
ética, para além da biologia. É esta que de fato nos move. Em nos-
sos dias, devemos nos perguntar de quem queremos ser irmãos, e o
contrário: de quem somos estranhos? Quem não consideramos de
98
nossa família? Essas aproximações não são automáticas, óbvias, mas
indicam um modo de ser no mundo. Ao sair de casa, me decido em
ser irmão: é um desejo meu! Desse desejo surgirão novas atitudes
(ARAÚJO Jr., 2019, p.78).
Se remetermos este pensamento para Jesus, podemos afirmar
que há uma decisão da parte de Deus em querer se encarnar como
nosso irmão, e não como um rei, nascido nas cortes, um sacerdote
ligado ao Templo. Francisco, na carta sobre o significado do presépio
acentua este aspecto de escolha da parte de Deus em se tornar irmão:
“De modo particular, desde a sua origem franciscana, o Presépio é
um convite a sentir, a tocar a pobreza que escolheu (grifo nosso),
para Si mesmo, o Filho de Deus na sua encarnação” (...) um apelo a
encontrá-Lo e servi-Lo, com misericórdia, nos irmãos e irmãs mais
necessitados (AS 3).

Conclusão
As comunidades dos discípulos têm ainda hoje a mesma missão
de outrora: anunciar à humanidade a ressurreição de seu Mestre e
Senhor, como grande esperança para todo homem e mulher. Este
Mestre e Senhor se fez nosso irmão, nosso parente próximo, alguém
lá de casa, coroando a dinâmica da encarnação, fazendo-se alguém
que serve, que lava os pés, que prepara um banquete para os seus,
benditos do Pai.
Refletir sobre a pessoa de Jesus como nosso irmão deve, em pri-
meiro lugar descer Deus de um trono inacessível, para fazê-lo assen-
tar-se conosco, comungar conosco das alegrias e tristezas da vida.
Em seguida, fará de nós uma comunidade de irmãos, reunidos ao
redor de nosso irmão mais velho, que nos ‘primeireou’ (Papa Fran-
cisco), que nos franqueou a vida nova do Reino.
Urge reaprender a ser irmão, estar próximo, disponível. Urge
reaprender a sermos fraternos, simpáticos, compreensíveis e bem-
humorados, não desejando estar sobre os demais, nem na Igreja,
muito menos na sociedade, mas nivelar-se, abaixar-se, para poder
99
caminhar lado a lado. Deixar o camarote e seguir a pé a aventura
da vida. Na vida familiar, se nos chega a notícia de que nosso irmão
precisa de nós, tudo cessa, cancelam-se os compromissos, pois “meu
irmão precisa de mim!”
Nessa comunidade cristã haverá diferentes dons, carismas e mi-
nistérios, mas com um grande cartaz à porta: bem-vindos a uma
comunidade de irmãos!

Referências
ARAÚJO, JR, Oton da Silva. A mística familiar de Francisco de Assis e
suas implicações éticas. Grande Sinal, Petrópolis, vol. 73, n. 01, p.
71-82, Jan./Jun. 2019.
CASTILLO, José Maria. A Humanidade de Jesus. Petrópolis, Vozes, 2017.
FERRE, José Maria. O Religioso Irmão: uma maneira de viver a fraterni-
dade de Jesus. Sal Terrae 103 (2015), 805-818.
FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. Exortação apostólica pós-sino-
dal sobre o anúncio do evangelho no mundo atual, Vaticano, 2013.
____. Amoris Laetitia. Exortação apostólica pós-sinodal sobre o amor na
família, Vaticano, 2016.
____. Admirabile Signum. Carta Apostólica sobre o significado e valor do
presépio, Vaticano, 2019.
MIRANDA, Mario de França. A Igreja em transformação: razões atuais e
perspectivas futuras. São Paulo: Paulinas, 2019.
SATLER, Fabiano Aguilar. Todos vós sois irmãos: Jesus nosso irmão e os
religiosos irmãos na vida religiosa consagrada, Paulus, 2015.
TORRES QUEIRUGA, Andres. Repensar a Cristologia. São Paulo: Pau-
linas, 1999.

100
A CONTRIBUIÇÃO DO RELIGIOSO
IRMÃO PARA OS NOVOS CAMINHOS DA
CONVERSÃO SINODAL

Edgar Genuino Nicodem47

Durante os últimos anos foram realizados diversos seminários


de Religiosos Irmãos, tanto no Brasil (CRB) quanto na América
Latina (CLAR). Considerando a riqueza das reflexões apresentadas
sobre a identidade e a missão do religioso Irmão nesses seminários,
podemos perguntar: - o que ainda pode ser dito ou escrito que não
seja mais do mesmo?
Considerando a observação do parágrafo anterior, a opção para
escrever esta reflexão foi de refletir sobre: A contribuição do religioso
Irmão para os novos caminhos da conversão sinodal. A conversão sino-
dal é uma das quatro conversões propostas pelo Sínodo para a Ama-
zônia. O Sínodo, convocado pelo papa Francisco, marcou a história
recente da Igreja mais além das fronteiras do nosso continente. A sua
importância transparece de forma inequívoca na ousadia do tema:
Novos caminhos para Igreja e para uma ecologia integral. São dois te-
mas que tocam diretamente o coração da nossa vida e a nossa missão
de religiosos Irmãos: a Igreja e a ecologia integral. Somos Igreja e
participamos, com todos os seres, do futuro da nossa querida, e por
vezes tão maltratada, Mãe Terra.
O documento final do Sínodo dos Bispos para Amazônia destaca
que “a única conversão ao Evangelho vivo, que é Jesus Cristo, poderá
se desenvolver em dimensões interligadas para motivar a saída para
as periferias existenciais, sociais e geográficas da Amazônia” (DOCU-
MENTO..., n. 19). As quatro dimensões são: a pastoral, a cultural,
a ecológica e a sinodal. Cada uma dessas dimensões apresenta, a par-
47 Irmão Lasallista. Mestre de noviços. Mestre em Teologia Moral.
101
tir da única conversão ao Evangelho, elementos para novos caminhos
de conversão. Considerando os objetivos desta reflexão, optamos por
abordar somente os “novos caminhos de conversão sinodal”. Estabe-
lecer as relações entre a contribuição do religioso Irmão em relação a
cada uma das conversões poderia ser muito rico, mas está fora do ob-
jetivo e da extensão desta reflexão. Entendemos, que a partir da pers-
pectiva da conversão sinodal, podemos identificar diversos elementos
iluminadores para a nossa vida e missão de religiosos Irmãos.
Vamos desenvolver a nossa reflexão, inicialmente, considerando
a presença dos religiosos irmãos na Igreja povo de Deus. Os passos
seguintes serão: identificar os novos caminhos de conversão em
uma Igreja sinodal; apresentar uma experiência ministerial histó-
rica, a dos Irmãos das Escolas Cristãs (Lassalistas); e a perspectiva
do sensus fidei; para finalmente destacar algumas contribuições que
os religiosos irmãos poderão dar para a conversão sinodal proposta
pelo Sínodo para Amazônia.

Os religiosos irmãos na Igreja povo de Deus


Os religiosos irmãos são um grupo muito pequeno na Igreja. Se-
gundo o Anuário Pontifício éramos 54.559 religiosos irmãos em 2018.
Diante desse quadro, podemos perguntar se um grupo tão pequeno e
até mesmo insignificante no mundo católico, e ainda mais no mundo
cristão e na sociedade, pode ter algum papel relevante? Certamente
não pela quantidade, mas, quem sabe, por outros caminhos.
Há alguns anos o alarme sobre o futuro da vocação do religio-
so irmão soou dentro do próprio Vaticano. Tanto assim que o papa
Bento XVI pediu ao Prefeito da Congregação para os Institutos de
Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica daquela época,
Cardeal Franc Rodé, para que fosse elaborado um documento sobre a
vocação do religioso Irmão. O itinerário de elaboração do documento
foi bastante complexo, com idas e vindas. Contudo, hoje o documen-
to está publicado, com elementos iluminadores bastante significativos,
mas sem grandes novidades (CONGREGAÇÃO..., 2015).

102
Uma Igreja Sinodal - Novos caminhos de conversão
Desde o início do seu pontificado, a sinodalidade está entre as
preocupações do Papa Francisco. Trata-se não somente de um tema
importante, mas de um modo próprio de ser Igreja, em fidelidade aos
caminhos do Evangelho e das primeiras comunidades cristãs. Essa
perspectiva eclesial do papa Francisco ficou evidente na sua apresen-
tação na noite da eleição. Dizia o Sumo Pontífice: “O dever do con-
clave era dar um Bispo a Roma. Parece que os meus irmãos Cardeais
foram buscá-lo no fim do mundo. Mas, aqui estamos. E agora come-
cemos este caminho, Bispo e povo, o caminho da Igreja de Roma, que
preside na caridade a todas as Igrejas, um caminho de fraternidade, de
amor e de confiança entre nós” (FRANCISCO, 2013). Transparece,
nessas palavras iniciais de saudação do papa Francisco, a perspectiva
da Igreja Povo de Deus do Concílio Vaticano II e a sua opção de per-
correr efetivamente os caminhos da sinodalidade.
Ao apresentar cada uma das quatro conversões nas conclusões,
o Sínodo destaca a expressão “novos caminhos”. Além dos aspectos
próprios ou específicos dos processos de conversão, será impor-
tante observar quais são esses possíveis novos caminhos propostos
pelo Sínodo. Serão eles tão novos assim? Ou talvez sejam percursos
transitados em outras épocas, mas pela sua importância evangélica
precisam ser recuperados para que a Igreja cumpra a sua missão
evangelizadora na construção do reino de Deus.
O capítulo V do documento conclusivo do Sínodo, divide-se
em três partes ou blocos. A primeira destaca a sinodalidade missio-
nária da Igreja. Por sua vez, a segunda, propõe novos caminhos para
a ministerialidade eclesial. E a terceira e última, aborda especifica-
mente os novos caminhos para a sinodalidade eclesial.
A sinodalidade, segundo a primeira parte do capítulo V do do-
cumento (DOCUMENTO..., n. 83), foi o modo de ser da Igreja
primitiva, conforme o capítulo 15 dos Atos dos Apóstolos. Também
é a perspectiva que caracteriza a Igreja do Concílio Vaticano II, en-
tendida como Povo de Deus, com destaque para a igualdade e a co-

103
mum dignidade de todos, diante da diversidade de ministérios, ca-
rismas e serviços. Uma Igreja que privilegia o caminhar juntos requer
a participação de todos. Para poder caminhar juntos há necessidade
de a Igreja converter-se à experiência sinodal. Em termos práticos,
isso significa fortalecer a cultura do diálogo, da escuta, do discerni-
mento, do consenso, e construir, juntos, alternativas para decidir
comunitariamente, e, dessa forma, responder aos desafios pastorais,
superando o clericalismo e as mais diversas formas de imposição.
A sinodalidade, no sentido apenas mencionado, é uma dimensão
constitutiva da Igreja, que requer uma espiritualidade de comunhão
e um discernimento comunitário, ouvindo o chamado de Deus em
cada situação histórica. A sinodalidade está associada a um estilo de
viver e de agir com implicações concretas tanto para a organização, a
gestão e o planejamento das comunidades. As conclusões do Sínodo
retomam o importante tema do sensus fidei (DOCUMENTO..., n.
88) que abordaremos mais adiante.
O segundo bloco do capítulo V, o mais longo, trata dos novos
caminhos da ministerialidade eclesial. Retoma-se a perspectiva de
uma Igreja toda ela ministerial do Concílio Vaticano II, com des-
taque para a missão dos leigos. Os leigos são considerados atores
privilegiados da presença da Igreja na região amazônica. Uma das
urgências manifestada é a promoção equitativa dos ministérios tanto
para homens quanto para mulheres. Em sintonia com a Evangelii
Gaudium, o Sínodo quer “ampliar os espaços para uma presença
feminina mais incisiva na Igreja” (EG 103). A missão da Vida con-
sagrada na Amazônia, segundo o Sínodo, é proclamar a Boa Nova,
acompanhando de perto os povos indígenas e os mais vulneráveis.
Um destaque especial merece a inserção e a itinerância dos consagra-
dos junto aos empobrecidos e excluídos.
A terceira e última parte do capítulo V, apresenta os novos ca-
minhos para a sinodalidade eclesial. Em primeiro lugar, destaca a
importância de estruturas sinodais regionais. Propõe-se, também, a
criação de uma Universidade Católica Amazônica, com a finalidade
de promover a investigação interdisciplinar, a formação docente e a

104
produção de material didático, em sintonia com a riqueza cultural da
região. Outra questão retomada pelo Sínodo é a liturgia inculturada,
que valorize a cosmovisão, as tradições, os símbolos e os ritos ori-
ginários, integrando o transcendente, o comunitário e o ecológico,
ligada aos sofrimentos e as alegrias das comunidades.
O rosto de Igreja que emerge das conclusões do Sínodo é efe-
tivamente sinodal. Tendo como referência os Atos dos Apósto-
los e o Concílio Vaticano II, busca a conversão sinodal através da
cultura do diálogo, da escuta, do discernimento, do consenso e da
construção comunitária de alternativas para responder aos desafios
pastorais desta imensa região do planeta. Diante da diversidade de
ministérios, carismas e serviços fundamentais para a vida eclesial se
reconhece a igualdade e a comum dignidade de todos os integrantes
do povo de Deus em uma Igreja pobre, com e para os pobres, desde
as periferias e a vulnerabilidade. Todos os aspectos da vida eclesial
são importantes para a conversão sinodal. É por exemplo, o caso
da liturgia inculturada. O processo de conversão sinodal requer re-
conhecer o “efetivo exercício do sensus fidei de todo povo de Deus”
(DOCUMENTO..., n. 88).

Uma experiência Ministerial – Irmãos das Escolas Cristãs


(Lassalistas)
Uma das preocupações e perspectivas apontadas pelo Sínodo
para Amazônia foi a questão dos ministérios. Há um conjunto de
propostas que o papa Francisco deverá analisar. É importante en-
fatizar que a perspectiva assumida pelo Sínodo, na linha do Con-
cílio Vaticano II, é de que toda a Igreja é ministerial. Vou tomar
a liberdade de partilhar uma experiência do Instituto dos Irmãos
das Escolas Cristãs (Lassalistas). Desde os tempos da fundação, La
Salle denomina o trabalho dos Irmãos de Ministério, mais precisa-
mente de Ministério Apostólico da Educação. Os Irmãos, segundo
La Salle, na medida em que anunciam a Boa Nova do Evangelho,
desenvolvem a mesma missão dos apóstolos. Essa perspectiva minis-
terial sempre esteve presente nos documentos oficiais e espirituais do
105
Instituto aprovados pela Igreja. Acredito que retomá-la e atualizá-la
pode nos ajudar como religiosos irmãos a responder o que o Sínodo
para a Amazônia pede para toda Igreja.
Segundo La Salle, na meditação para a festa da conversão de
São Paulo, o ministério do Irmão é um chamado de Deus. Diz La
Salle: “Alegrai-vos, com este santo pela insigne graça que recebeu de
Deus. Agradecei ao Senhor por haver-vos feito o favor de retirar-vos
do mundo e de vos chamar para tão santo ministério, qual é o de
instruir as crianças” (LA SALLE, 2012, M 102,1). Trata-se de um
ministério eminentemente eclesial. Seguidamente La Salle designa
os Irmãos como ministros da Igreja. “Deveis igualmente mostrar à
Igreja que amor tendes a ela, e dar-lhe provas de vosso zelo. Pois é
para a Igreja, corpo de Cristo e da qual fostes constituídos ministros,
que trabalhais, segundo a ordem que Deus vos deu, para ministrar
sua Palavra a vossos alunos” (LA SALLE, 2012, M 201,2).
O religioso irmão para La Salle é embaixador, ministro de Jesus
Cristo e dispensador de seus mistérios (LA SALLE, 2012, M 166,3).
São representantes do próprio Jesus Cristo na medida em que o Salva-
dor fala pela boca dos religiosos Irmãos. Os destinatários da missão são
uma carta de Cristo que eles escrevem diariamente em seus corações.
Diz ele:
Vós sois embaixadores e ministros de Jesus Cristo no emprego que exerceis.
Por isso, deveis desempenhá-lo como representantes do próprio Jesus Cristo. É
vontade dele que vossos discípulos vos considerem como a Ele mesmo e recebam
vossas instruções como dadas por Ele pessoalmente. Devem estar persuadidos de
que a verdade de Jesus Cristo fala pela vossa boca; que é unicamente em seu
nome que lhes ensinais; que é Ele que vos confere autoridade sobre eles; que
eles mesmos são a carta por Ele ditada e escrita por vós, todos os dias, em seus
corações, não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, que atua em vós e
por vós, mediante a virtude de Jesus Cristo” (LA SALLE, 2012, M 195,2).
O ministério do religioso irmão consiste, segundo La Salle, em
instruir (educar) as crianças que lhe foram confiadas por Deus (LA
SALLE, 2012, M 114,3). Trata-se de um ministério que requer ple-
nitude de fé (LA SALLE, 2012, M 139,2) e dedicação total. Por isso
deve ser exercido com zelo apostólico (LA SALLE, 2012, M 140,3).
106
La Salle associa o Ministério desenvolvido pelo religioso irmão
às funções dos apóstolos. Por isso, também o chama de ministério
apostólico. Isso podemos reconhecer na Meditação 102, 1 – sobre
São Francisco de Salles: “é assim que deveis defender os interesses de
Deus: com firmeza e generosidade verdadeiramente cristãs. Vosso
emprego a isso vos obriga. Nele desempenhais uma das principais
funções dos Apóstolos, educando na fé e na religião os novos fiéis,
que são as crianças recém repletas do Espírito Santo, no Batismo.
Seguindo o exemplo dos santos Apóstolos, tornai-vos dignos de tão
santo ministério, pelo recolhimento e pela entrega à oração” (LA
SALLE, 2012, M 101,2).
São João Batista de La Salle identifica o ministério do irmão
com o seu emprego. O emprego do Irmão é instruir (educar) as
crianças, particularmente os filhos dos artesãos e dos pobres. Em
um de seus documentos autobiográficos – “Regras que me Impus”
– La Salle afirma: “Boa norma de conduta consiste em não fazer
distinção entre as tarefas específicas do próprio estado e a tarefa da
própria salvação e perfeição, e estar certo de que nunca se assegurará
melhor a própria salvação, nem se adquirirá perfeição maior do que
cumprindo os deveres de seu ofício, contanto que realizados para
cumprir a vontade de Deus. Importa ter isso sempre presente” (LA
SALLE, 2012B, 2012, p. 50, n. 3). Está muito claro como La Salle
integra o ministério com a dimensão profissional. O dever profissio-
nal, incluída a competência e a dedicação, torna-se um compromisso
de caráter espiritual no exercício do ministério apostólico.
Tendo presente que a tarefa de educar segundo espírito do cris-
tianismo é para La Salle um ministério, será importante destacar
alguns elementos desta experiência nas origens do Instituto.
O ministério apostólico da educação em La Salle está associado
à finalidade e ao espírito de Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs:
Sensibilizados com o abandono humano e espiritual dos “filhos
dos artesãos e dos pobres”, João Batista de La Salle e seus primeiros
Irmãos consagraram-se a Deus por toda a vida, em resposta a seu
chamado, para dar-lhes educação humana e cristã e, assim, estender
107
a glória de Deus na terra. Renovaram a escola de seu tempo para
torná-la acessível aos pobres e oferecê-la a todos como sinal do Reino
e meio de salvação (INSTITUTO..., 2015, art. 1).
Consagrados ao ministério apostólico da educação, os irmãos
sabem que a missão é algo sempre a descobrir, nas diferentes etapas
de sua vida e no contato com as novas realidades (INSTITUTO...,
2015, art. 54).
O carisma lassalista é um dom de Deus acolhido por La Salle
e pelos primeiros irmãos. Sem desconsiderar o protagonismo de La
Salle, a dimensão comunitária transparece claramente, mesmo em
documentos de caráter pedagógico, como é o caso do Guia das Esco-
las Cristãs. A introdução do Guia assim o expressa:
Este guia só foi redigido em forma de regulamento após nume-
rosas trocas de ideias entre os Irmãos mais antigos deste Instituto e os
mais aptos em dar aula, e após experiência de vários anos. Nada foi
nele introduzido que não fosse muito consensual e bem comprova-
do, de que não se tivessem ponderado as vantagens e inconvenientes
e previsto, tanto quanto possível, as boas ou más consequências (LA
SALLE, 2012C, p. 112).
A história nascente do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs
foi perpassada por diversas crises e momentos onde a possibilidade
de desaparecer foi real. Contudo, é nesses momentos que emerge o
que há de mais específico e característico. Vamos mencionar breve-
mente algumas dessas crises e as estratégias de superação construídas
pelo corpo da sociedade. Trata-se de estratégias configuradas por La
Salle com os irmãos em determinados momentos, e pelos irmãos,
convocando La Salle, em outros.
Antes de indicar os momentos históricos apenas mencionados,
é importante referir que o Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs
desde as suas origens não se enquadrou muito na perspectiva tradi-
cional da Vida Religiosa Consagrada. Por exemplo, a tríade clássi-
ca dos votos de pobreza, castidade e obediência somente entrou no
Instituto com a aprovação da Igreja em 1725. Além disso, desde a

108
fundação, em 1680 até 1923, um grupo relativamente significativo
de irmãos não fazia votos (SAUVAGE, 2017, p. 7). Como os irmãos
professos, eles viviam em comunidade, desempenhavam a mesma
missão e participavam da vida espiritual. Eram considerados, por-
tanto, Irmãos tanto pela comunidade local quanto pela comunidade
religiosa. A perspectiva mais jurídica começou a entrar com mais
força a partir do Código de Direito Canônico de 1917.
Uma das crises que quase levou o Instituto a desaparecer foi no
período de 1688 a 1691. La Salle havia tomado a decisão de abrir a
primeira obra educativa da recém-fundada instituição em Paris. As
obras e comunidades de Reims estavam bastante bem. Contudo, La
Salle sentiu a necessidade de abrir a Sociedade das Escolas Cristãs
para além das fronteiras de uma Diocese. A abertura da Escola na
Paróquia de São Sulpício de Paris foi muito difícil. A ingerência do
Pároco foi insuportável. Em setembro de 1688, ele havia decidido
dispensar os Irmãos. A situação foi revertida com a chegada de um
novo Pároco, mas mesmo assim, a crise perdurava.
Além da crise de Paris, a situação também começou a desandar
em Reims. O “seminário” para professores rurais praticamente havia
fechado. Metade dos Irmãos de Reims (oito sobre dezesseis) e a meta-
de dos Irmãos de Paris (dois sobre quatro) haviam deixado o Instituto.
As novas vocações eram escassas. O Irmão Henri L’Heureux, que La
Salle havia enviado para se preparar ao sacerdócio e ser o futuro Supe-
rior Geral, havia falecido. O clima reinante entre os irmãos, tanto em
Reims quanto em Paris, era de consternação, perplexidade e cansaço
físico e espiritual. Diante dessa situação, o próprio La Salle entrou em
crise, ao ver desmoronar o projeto para o qual ele havia devotado as
suas melhores energias nos últimos dez anos. Parece que quando La
Salle, com os primeiros Irmãos, conseguia colocar dois ou três tijolos
na construção do Instituto nascente, as forças do maligno tiravam três
ou quatro. Uma situação verdadeiramente insustentável.
A reação de La Salle, tanto pessoal quanto com os irmãos, foi
estratégica e fundamental para o futuro do Instituto. São diversas as
iniciativas que vamos apresentar brevemente.
109
Diante da intenção do Pe. Baudrand, pároco de São Sulpício, de
impor o hábito eclesiástico aos irmãos, La Salle redige o Memorial
do Hábito. Mais do que defender uma vestimenta que revelasse a
identidade específica do irmão, diferente da identidade do presbítero
e do leigo, o documento foi uma intransigente defesa da autonomia
dos irmãos. Para La Salle era fundamental que os irmãos pudessem
realizar o seu ministério, de educar as crianças e os jovens, particular-
mente os pobres, com autonomia na Igreja e na sociedade.
Outra iniciativa importante foi o voto de associação de 21 de no-
vembro de 1691. Diante da crise avassaladora que estava devastando
o Instituto, La Salle, com mais dois Irmãos, Gabriel Drolin e Nicolas
Vuyart, comprometeram-se com um ato de esperança recriadora, con-
sagrando-se para o estabelecimento definitivo da Sociedade das Esco-
las Cristãs, através do voto de associação, mesmo que permanecessem
apenas os três e tivessem que pedir esmola e viver somente de pão. Esse
compromisso permaneceu secreto até a volta do Ir. Gabriel Drolin de
Roma, em 1728. Esse voto ficou conhecido como o voto heroico.
Mesmo com o voto heroico apenas mencionado, a crise não
amainava. A reação mais decisiva e fundamental veio com o voto de
associação de 1694. Desde o domingo de Pentecostes até o domingo
da Santíssima Trindade, La Salle reuniu em Vaugirard, doze irmãos.
Inicialmente os irmãos fizeram um retiro e depois se constituíram
em assembleia deliberante, considerada o 1º Capítulo Geral do Ins-
tituto. Os doze irmãos com La Salle comprometeram-se para ter
“juntos e por associação” as escolas gratuitas.
A quarta e decisiva iniciativa para a vida e o futuro do Instituto
foi a Carta dos Irmãos de Paris, de 1º de abril de 1714. Devido a pro-
blemas jurídicos La Salle teve que se afastar de Paris. Foi para o sul da
França. A situação das comunidades de Paris e arredores era ambígua.
Com o afastamento de Paris, La Salle deu a impressão de ter deixado
de ser Superior Geral. Diante da confusão reinante, os irmãos de Paris
enviaram uma carta a La Salle no dia 1º de abril de 1714. Por um lado,
os irmãos pedem humildemente, por outro, ordenam a La Salle voltar
e reassumir a direção geral do Instituto: “nós vos pedimos humilde-
110
mente e vos ordenamos em nome de parte do Corpo da Sociedade, ao
qual prometeste obediência, de reassumir imediatamente o cuidado
do governo geral de nossa sociedade”. Aqui constatamos que a dinâ-
mica do voto de associação produziu o seu efeito. Agora são os irmãos,
religiosos leigos, que ordenam a um sacerdote, para que cumpra os
compromissos que havia assumido com o corpo da sociedade.
O voto de associação para o serviço educativo aos pobres foi tão
decisivo na vida Instituto que é importante destacar alguns de seus
elementos mais característicos. Como já foi referido anteriormente,
trata-se de um ato de esperança teologal que gerou uma nova dinâ-
mica na vida do Instituto. Estamos diante de um novo começo. A
questão fundamental foi – como podemos abandonar as crianças
e os jovens, particularmente os pobres, que Deus nos confiou? O
voto de associação é um voto de um projeto. Mais do que indicar
qualquer tipo de limitação ou restrição, o central é comprometer-se
com a obra de Deus para exercer o ministério que Ele confiou ao
Instituto. É um ato de fé no Deus da vida que se encarna na realida-
de concreta para libertar as crianças e os jovens de toda e qualquer
forma de opressão ou escravidão.

Sensus Fidei
Segundo o Sínodo para Amazônia, “não se pode ser Igreja sem re-
conhecer um efetivo exercício do sensus fidei de todo o Povo de Deus”
(DOCUMENTO..., n. 88). Inspirado no Concílio Vaticano II (LG
12) e na tradição da Igreja (COMISSÃO..., 2014), o Sínodo retoma o
tema do sensus fidei. O sensus fidei é a capacidade ativa ou a sensibilidade
que torna o povo de Deus capaz de receber e compreender a fé. É um
dom de Cristo dado aos fiéis que os torna capazes de compreender,
viver e anunciar as verdades da revelação divina (COMISSÃO..., n.
46). Para o Concílio Vaticano II, todos os batizados participam, cada
um a seu modo, dos três ofícios de Cristo; profeta, sacerdote e rei.
O documento da Comissão Teológica Internacional - O sensus
fidei na vida Igreja – distingue o sensus fidei fidelis do sensus fidei fidelium.

111
O sensus fidei fidelis é a capacidade do próprio fiel de fazer um discer-
nimento justo em matéria de fé, e o sensus fidei fidelium é o sensus fidei
na sua forma eclesial. Ou seja, é o “instinto de fé da própria Igreja” (CO-
MISSÃO..., n. 3).. São duas realidades distintas, mas intimamente
conexas. Esta convergência (consensus) desempenha um papel vital
na vida da Igreja.
O sensus fidei fidelis permite ao fiel: a) discernir se um ensinamen-
to particular ou prática, que se encontra na Igreja, é coerente ou
não com a verdadeira fé; b) distinguir o essencial do secundário; c)
identificar e colocar em prática o testemunho a dar de Jesus Cristo
no contexto histórico e cultural particular (COMISSÃO..., n. 60).
Além disso, “capacita o fiel a julgar de forma espontânea se algum
ensinamento particular está ou não em conformidade com o Evan-
gelho e com a fé apostólica” (COMISSÃO..., n. 49). Graças ao sensus
fidei, continua o documento da Comissão Teológica Internacional,
“e apoiado na prudência sobrenatural dada pelo Espírito, o fiel é
capaz de perceber, em contextos históricos e culturais novos, quais
podem ser os meios mais apropriados para dar testemunho autênti-
co da verdade de Jesus Cristo, e, além disso, nele conformar as suas
ações” (COMISSÃO..., n. 65).
Uma vez que, cada fiel participa da fé Igreja, o sensus fidei fidelis
não pode estar separado ou dissociado do sensus fides fidelium, ou seja,
do sensus Ecclesiae. A Igreja inteira, hierarquia e leigos juntos, é res-
ponsável pela revelação contida na Sagrada Escritura e na Tradição.
Por isso, os fiéis são sujeitos vivos e ativos no seio da Igreja. Diante
das mutáveis situações históricas, o sensus fidei fidelium tem um papel
essencial a desempenhar. “Não é apenas reativo, mas também proa-
tivo e interativo, para que a Igreja e todos os seus membros realizem
a sua peregrinação na história” (COMISSÃO..., n. 70). Este sentir
cum Ecclesiae possibilita caminhar em meio às vicissitudes e ambigui-
dades históricas, iluminada pelo Espírito Santo, no horizonte e na
configuração do reino de Deus.
O sensus fidei constitui um verdadeiro empoderamento de todo e
qualquer cristão na vida da Igreja e na construção do reino de Deus.
112
Trata-se de um elemento fundamental, não somente para a Igreja
amazônica, mas para as comunidades eclesiais de toda e qualquer
latitude. O que está em jogo é a força do Evangelho e o seu poder
transformador na vida Igreja e da sociedade.

As contribuições do religioso irmão para a conversão sinodal


Após o percurso reflexivo que fizemos até aqui, queremos elen-
car alguns elementos que reputamos significativos para as contri-
buições do religioso irmão para a conversão sinodal. Para facilitar a
compreensão vamos apresentá-los sob a forma de tópicos.
O Sínodo para a Amazônia requer um amplo e profundo proces-
so de conversão, ancorado na única conversão ao Evangelho de Jesus
Cristo. Trata-se de um processo que toca todos os âmbitos da vida
cristã. Requer mudanças significativas no modo de configurar e teste-
munhar a fé. É um processo essencialmente espiritual. Está a serviço
da vida nova em Cristo e deve traduzir-se em ações transformadoras
na Igreja e na sociedade, segundo os valores do Evangelho. O religioso
irmão pode participar deste processo de conversão de diversas manei-
ras. A título de exemplo: 1º - Assumir a conversão sinodal em primeira
pessoa como forma de viver o Evangelho e construir a comunidade;
2º - Dar testemunho das transformações pessoais e comunitárias que
está vivendo; 3º - Ser protagonista destes processos de conversão nas
interações comunitárias, culturais e no seu ministério.
Segundo o sensus fidei todos os fiéis são sujeitos vivos e ativos no
seio da Igreja. Desde o início do cristianismo eles desempenharam
um papel ativo no desenvolvimento da fé cristã por sua capacidade
de compreender, viver e anunciar as verdades da revelação divina.
Não se trata de ficar num olhar apenas retrospectivo, mas, sobretu-
do, interativo e proativo. Por isso, diante de contextos históricos e
culturais novos, como é o amazônico, eles podem e devem contri-
buir para o autêntico desenvolvimento da fé cristã a serviço do reino
de Deus. Os fiéis da região pan-amazônica, imbuídos do sensus fidei,
têm a capacidade e o dever de contribuir na configuração de novos
caminhos para a fé propostos pelo Sínodo. Ao religioso irmão cabe
113
somar-se nesse esforço eclesial com o testemunho de sua vida e a
evangelização dos fiéis para que vivam os seus compromissos batis-
mais em plenitude.
O Ministério Apostólico da Educação esteve presente desde as
origens na vida e nos documentos oficiais do Instituto dos Irmãos
das Escolas Cristas (Lassalistas). Podemos constatar como em deter-
minados momentos se pode e se deve romper com paradigmas já
estabelecidos. Foi o que aconteceu com o carisma lassalista. Hoje, a
realidade da Igreja amazônica, e demais latitudes, requer a configu-
ração de novos ministérios. O exemplo apresentado mostra que isto
é possível e muitas vezes decisivo abrir novos caminhos para ser fiel
ao Evangelho. Os religiosos Irmãos podem contribuir significativa-
mente com a Igreja, além das fronteiras do habitual e do estabeleci-
do, imbuídos do sensus fidei, como todos os demais fieis em Cristo.
Ser um sinal vivo de esperança, eclesialidade e fraternidade – O
religioso irmão é chamado a ser na comunidade eclesial e na socieda-
de um sinal vivo do Evangelho. Um sinal ou símbolo somente é sig-
nificativo na medida em que ele é muito vivo evangelicamente. Caso
contrário, não passa de umas das inumeráveis propostas, por vezes
ridículas, da sociedade de consumo. Mais do que palavras o que con-
ta é o testemunho de vida. O religioso irmão será um sinal vivo do
Evangelho de Jesus Cristo na medida em que viver, com brilho nos
olhos, uma consagração total a Deus e à Missão, e souber conduzir
as pessoas pelos caminhos da fé, da humanização e da solidariedade,
ou seja, segundo os valores do reino de Deus.
Na medida em que o religioso irmão conseguir viver a sua voca-
ção com radicalidade evangélica, desenvolvendo o seu sensus fidei e
colocando-o a serviço da comunidade, ele será uma figura significa-
tiva na Igreja e na sociedade. Seremos sempre, um grupo reduzido,
mas nem por isso irrelevante. A nossa vocação, com ampla gama de
configurações, é um dom gratuito de Deus para o presente e o futuro
da Igreja e da sociedade. Como religiosos irmãos, podemos contri-
buir, não somente com o nosso testemunho pessoal e comunitário,
mas, também, alavancar processos de conversão sinodal na Igreja,
reforçando elementos da tradição eclesial e outros novos.
114
Referências
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. O Sensus Fidei
na Vida da Igreja. Roma, 2014.. Disponível em: http://www.vatican.va/
roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20140610_
sensus-fidei_po.html Acesso em 22/05/2020.
CONGREGAÇÃO para os Institutos de Vida Consagrada e as So-
ciedades de Vida Apostólica. Identidade e Missão do Religioso Irmão na
Igreja. Roma: 2015. Disponível em: http://www.coindre.org/fra_eng_
esp/2016-09-12%20Identidade%20e%20miss%C3%A2o...%20PT.pdf
DOCUMENTO Final do Sínodo para Amazônia, Edições CNBB,
Brasília: 2019.
FRANCISCO, Papa. Eleição do Papa Francisco. Vaticano, 2013. Dis-
ponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ggIezbaZ7RM Acesso
em 22/05/2020.
FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. Exortação Apostólica Pòs-
sinodal sobre a Evangelização no mundo de hoje. São Paulo, Paulinas,
2014.
INSTITUTO dos Irmãos das Escolas Cristãs Regla de los Herma-
nos de las escuelas cristianas, 2015. Disponível em: https://www.lasalle.
org/wp-content/uploads/2019/07/Regla_2015_spa.pdf Acesso em
22/05/2020.
LA SALLE, João Batista de. Obras Completas, Volume I. Canoas,
Unilasalle, 2012.
LA SALLE, João Batista de. Obras Completas, Volume II-B. Canoas,
Unilasalle, 2012.
LA SALLE, Obras completas, volume III. Canoas, Unilasalle, 2012.
SAUVAGE, Michel. Mieux compreendre l’association lasallie-
ne, p. 9. Disponível em : https://www.lasalle.org/wp-content/uploa-
ds/2019/07/02_es.pdf Acesso em 22/05/2020.

115
PAISAGEM RELIGIOSA: RELIGIOSO IRMÃO E
ECOLOGIA INTEGRAL

João Gutemberg Mariano Coelho Sampaio48


Lucas José Ramos Lopes49

Contemplação, diálogo, síntese, encarnação e profecia no cui-


dado da sociedade e do ambiente natural constituem imperativos
atuais para a vocação do religioso irmão e toda vida consagrada. Isso
se conecta com os horizontes da missão da Igreja, à luz dos novos
desafios e oportunidades anunciados desde a Carta Encíclica Lauda-
to Si’, aplicados no Horizonte Inspirador da Confederação Latino-
americana e Caribenha de Religiosos e Religiosas – CLAR, contex-
tualizados pelo Sínodo para a Amazônia e confirmados pela Exorta-
ção Apostólica Pós-Sinodal “Querida Amazônia” do Papa Francisco.
O contundente chamado à conversão integral, traduzida em um
“novo esforço de inculturação, que ponha em jogo a criatividade, a
audácia missionária, a sensibilidade e a força peculiar da vida comu-
nitária” (QA 95), estabelece um percurso pessoal e coletivo – não
sem tensões – rumo à construção de novos sentidos e significados
para a vocação do religioso irmão. São elementos que favorecem o
fortalecimento e a atualização de sua identidade de consagrado, mas
com suficiente profecia para integrar novos valores e atitudes que
respondam aos apelos da Igreja, aos gritos da humanidade e aos ape-
los da nossa Casa Comum.
Neste sentido convém considerar que, na vocação do religio-
so irmão, também se reconheça o ministério do cuidado da casa
comum como agente de pastoral da ecologia integral (Documento
48 Irmão Marista. Doutor em Teologia. Pastoralista ligado às causas
socioambientais.
49 Irmão Marista. Cientista social e Mestre em Direitos Humanos e Políticas
Públicas.
116
Final, n. 79 e 82), com a missão de anunciar e defender o Reino da
Vida (DAp 143), paz, justiça e conservação. Implica assumir em
seu projeto de vida três novas posturas de olhar. Primeiramente, um
olhar amoroso, “que contempla e admira a vida das pessoas e da mãe
natureza no contexto local e do planeta, louvando o Criador por
cada nova descoberta” (DOCUMENTO PREPARATÓRIO, 2018,
p. 57). Desenvolve uma sensibilidade capaz de perceber a criação e
integrá-la ao seu louvor cotidiano.
Outra mudança de olhar consiste na cultura do cuidado, por-
tanto, assume em sua vida um olhar cuidadoso que “nasce da expe-
riência evangélica samaritana, que se preocupa com os problemas
encontrados na vida das pessoas e do ambiente natural, se enche de
compaixão, reconhece as fragilidades e busca soluções em favor da
vida”. E, seguindo o mesmo dinamismo, cultiva um olhar de espe-
rança, “que acredita que é possível cuidar da qualidade de vida em
todas as suas dimensões. Por isso, organiza a esperança com ações de
incidências pessoais e comunitárias de curto, médio e longo prazos,
pensando nas atuais e nas futuras gerações” (DOCUMENTO PRE-
PARATÓRIO, 2018, p. 57).
Não obstante os compromissos assumidos em nível pessoal, os
irmãos podem descortinar uma ampla realidade de oportunidades e
desafios localizados na fronteira entre indivíduos e instituições. Elas
estão emolduradas pela institucionalização da vida, pela inspiração
cristã: “Vós sois todos irmãos” (Mt 23,8) e diretamente relacionados com a
vivência dos Conselhos Evangélicos de obediência, castidade e pobre-
za, ainda que, em sentido teológico, alcancem outros matizes que não
apenas a conformação da vida a condutas sustentáveis, social, cultu-
ral, política e economicamente. A mesma moldura, ou seja, contorno
institucional, traz aos indivíduos a necessária condição de negociação
para realização de seus projetos de vida e o projeto comunitário do
grupo de compartilhamento de fé. A este ponto, importa mencionar-
mos o debate entre individualismo religioso e individualismo moder-
no, que tem impactado frontalmente os grupos humanos, quando,
em sua liberdade, assumem projetos comunitários por convicções de
fé como é o caso das comunidades de vida e congregações religiosas.
117
Mais claramente, identifica-se no cenário das comunidades re-
ligiosas, e, portanto, toca diretamente um dos aspectos da vocação
do religioso irmão, a construção da paisagem religiosa no interior
das comunidades e relações, que significa oportunidades e desafios
na interação entre o legado, a tradição do grupo e as subjetividades
dos seus membros.
Com pesquisa bibliográfica exploratória e entrevistas focais, a
contribuição deste artigo intenciona oferecer ao leitor uma aborda-
gem sociológica e pastoral dos desafios e oportunidades para a voca-
ção do religioso irmão, sob o ponto de vista do compromisso com
a ecologia integral. As contribuições weberianas de Hervieu-Léger
(2010) fundamentarão a análise e a construção das pistas de ação.
Os caminhos de mediação das tensões, identificação das opor-
tunidades e reconhecimento do ministério do cuidado com a Casa
Comum, em potência, resultam no fortalecimento de projetos de vida,
vitalidade carismática, construção e fortalecimento de redes de frater-
nidade e conversão ao mundo, com toda a força do seu significado.
Contribuição sociológica à vocação do religioso irmão para no-
vos caminhos de conversão ecológica
A vasta produção da sociologia da religião no campo de estudo
do individualismo moderno e do individualismo religioso demons-
tram os processos de desinstitucionalização e subjetivação de prá-
ticas e crenças que caracterizam a modernidade. Isso vem apoiado,
sobretudo, na falência de determinadas observâncias, no avanço de
sistemas individuais de crença e no surgimento de novos rituais. Até
então, nenhuma novidade, pois o individualismo religioso não é
uma descoberta da modernidade e já estava presente na história das
grandes religiões, identificado nos processos de diferenciação entre o
indivíduo e a comunidade. A individualização dos religiosos ocorre
na diferenciação entre a religião ritual, entendida aqui como obser-
vância e reprodução das práticas previstas na tradição, traduzidas na
Regra de Vida, e a religião da interioridade no sentido ético da ex-
periência pessoal e subjetiva, resultante da relação da pessoa religiosa
com a religiosidade exterior expressada pelo rito.
118
A associação do individualismo religioso com o individualismo
moderno é corriqueiramente reproduzida em muitas narrativas para
explicar a falência de sistemas valorativos. Mas a associação entre o
individualismo religioso e o moderno pode ser equivocada se não
considerar dois aspectos que os separam e distinguem. O individu-
alismo religioso está inscrito no movimento de entrega a Deus e o
segundo, relativiza, e, no extremo, desvaloriza, as realidades mate-
riais do mundo que enfraquecem ou impedem sua relação com o
transcendente. É o que a conversão ecológica, retorno ao mundo, às
realidades da criação, como lugar teológico, tenta corrigir. Esse é um
desafio para a Teologia como um todo. Estamos abordando a con-
cepção extramundana da vocação do religioso, associada à ética da
virtude presente na tradição católica que se distingue da concepção
intramundana preconizada pela Reforma.
Salvo tais considerações, estudos da sociologia da religião obser-
vam a integração do individualismo religioso ao individualismo mo-
derno. Essa integração pode ser compreendida como uma economia.
Neste sentido, Hervieu-Léger (2010) problematiza quais formas de
sociabilidade religiosa são capazes de existir se o indivíduo, de for-
ma autônoma, pode estabelecer uma relação com o transcendente,
às vezes capaz de significar toda sua vida, respondendo as questões
existenciais mais profundas. Qual lugar a comunidade religiosa pode
ocupar nesta economia, para além do papel de suprimir a necessida-
de de proteção e subsistência dos seus membros?
No limite e em hipótese, a expansão da espiritualidade moder-
na, ancorada no individualismo religioso de uma procura subjetiva
da verdade, potencializaria as buscas espirituais individuais, rom-
pendo o vínculo religioso constituído de uma verdade compartilha-
da, ou seja, reduzindo o aspecto comunitário da crença apenas às
conveniências institucionais da vida comunitária (suprimento das
necessidades básicas, segurança, ancoragem simbólica e exercício de
um pseudo-poder).
Este cenário, responde aos sinais de enfraquecimento da capa-
cidade institucional dos Institutos e Congregações em regular os
119
sistemas de crença, a manutenção da tradição, a atração de novos
membros e o aumento exponencial de contradições internas. A esta
altura, um grupo de religiosos ou um seu líder responderá à crise
apostando na estratégia de reafirmar a identidade do grupo, revisan-
do e atualizando a roupagem carismática, criando novas metáforas,
resgatando símbolos da tradição e conferindo a eles novos significa-
dos, remodelando as narrativas e provocando, nas palavras de Her-
vieu-Léger (2010), uma reorganização global da paisagem religiosa.
A nova paisagem religiosa contemporânea é caracterizada por
dois movimentos que já podem ser observados nas comunidades dos
religiosos irmãos. O primeiro movimento valoriza a experiência in-
dividual de apropriação de sentido. Na comunidade, seu papel não
é legitimar uma hipotética ou esperada homogeneidade das crenças
e práticas, mas revelar as convergências das experiências individuais
que podem, colocadas em partilha, produzir práticas coletivas a par-
tir da experiência dos sujeitos. Neste movimento, o reconhecimento
das diferenças é tão importante quanto a reprodução das práticas
coletivas, herdadas pela tradição ou aquelas novas partilhadas pelos
membros da comunidade, em algum grau, assumidas como comuni-
tárias. Importa observar ao leitor que a matéria “identidade e sujei-
tos” não está compreendida neste trabalho na perspectiva da gramá-
tica do reconhecimento de Honneth (2009). Neste ângulo, a teoria
do reconhecimento busca conceituar as mudanças sociais a partir de
disputas por reconhecimento motivadas por razões morais de grupos
que, coletivamente, legitimam, progressivamente, o reconhecimento
recíproco, pelas vias da institucionalização ou da aceitação cultural.
Uma análise nessa perspectiva exigiria a abordagem de outros ele-
mentos que fogem aos objetivos do presente trabalho.
A identidade da comunidade é constantemente revisada a partir
das experiências de seus membros e, ainda que importante, a tradi-
ção perde força na revisão da paisagem religiosa. Os membros cons-
troem neste movimento, um novo acordo que insere na economia
do carisma uma convergência ética, que reúne sujeitos de direitos e
suas subjetividades, com seus projetos de vida que juntos, produzem
uma nova coesão, em outras palavras, a missão da comunidade.
120
Por outro lado, o segundo movimento que caracteriza a paisagem
religiosa contemporânea das comunidades se opõe à ideia de constru-
ção a partir dos sujeitos. As experiências religiosas são possíveis graças
a um disco rígido – comumente apresentado como tradição ou heran-
ça dos que foram fiéis ao carisma fundacional – de pequenos campos
de certezas que possibilitam as experiências dos membros da comu-
nidade. Os sujeitos deixam de ser fonte para a revisão da identidade
comunitária. Apenas um conjunto de práticas, crenças, narrativas e
sentidos, coordenam a vida comunitária, estabelecem os limites e pro-
duzem a coesão do grupo. Neste movimento, o que diverge do cole-
tivo é potencialmente observado, reorientado, quando não, excluído.
Os dois movimentos descritos disputam a construção da paisagem
religiosa com a potência de produzirem dois modelos opostos e às ve-
zes irreconciliáveis. Tal mecanismo, sofisticado, opera no inconsciente
das lideranças religiosas. Sem perceberem estão, por razões de obedi-
ência, vitalidade carismática ou convicção pessoal – reproduzindo o
repertório institucional de controle e manutenção das comunidades,
força vital para a continuidade da experiência. Não sendo moral, não
se trata de julgar ou avaliar o mecanismo. O antídoto é a ampliação
do repertório na leitura dos contextos que pode favorecer a observação
dos movimentos em questão na vida das comunidades.

Inspirações que iluminam e desafiam a vocação do


religioso irmão
Com base na discussão apresentada, vamos olhar uma fração da
realidade – com todos os limites de representação que isso significa –
para identificar os dois mecanismos. As reflexões que seguem foram
aportadas por um grupo de onze religiosos irmãos50, de sete nacio-
nalidades diferentes, com idades de 27 a 75 anos. Dedicados pois,
50 Participaram do grupo focal os religiosos irmãos: Luis Ernesto Guardado
Salinas (El Salvador); Manuel Delgado Carrillo (México); Marlon Poicón
Santiago (Peru); René Reynoso Sánchez (México); Miguel Fernandes Ribeiro
(Brasil); Danilo Ferreira da Silva (Brasil); Juan Sebastián Herrera (Colombia);
Juan Bolaños Ordóñez (Colombia); José Rui Da Silva Pires (Portugal);
Alfonso Eduardo Lozano Castillo (México); Gilles Lacasse (Canadá).
121
a discutir os dois movimentos apresentados na sessão anterior, as
reflexões, exemplos, comentários e contextos vividos foram reorga-
nizados pelos autores e panoramicamente são apresentados a seguir.
Embora a análise de Hervieu-Léger (2010) tenha se concentra-
do nas expressões de religiosidade dos sujeitos, para o grupo con-
sultado há uma associação inevitável à ação empreendida pelos re-
ligiosos irmãos entendida muitas vezes como ação pastoral. Didati-
camente, apresentaremos, primeiro, o conjunto de intervenções que
expressam o primeiro movimento, aquele que valoriza a experiência
individual de apropriação de sentido. Na sequência, as contribuições
que evidenciam características do segundo movimento - aquele em
que apenas um conjunto de práticas, crenças, narrativas e sentidos,
coordenam a vida comunitária, estabelecem os limites e produzem a
coesão do grupo.
Na ordem do dia, o elemento da tradição foi preponderante nas
narrativas do primeiro movimento e pode ser observado em expres-
sões como “sobre as crenças, a maneira como vamos atualizando a
missão que [o fundador] iniciou e como respondemos a ela. Sim,
reconhecemos a inspiração primeira, mas como atualizarmos não
apenas desde a tradição?” O sujeito da fala reivindica seu papel na
construção da paisagem religiosa e reconhece espaços de abertura
em sua comunidade quando observa, “[o fundador] também tinha
sonhos e que bom que nos dão esses espaços para sonhar”.
Também o aspecto identitário foi mencionado e reconhecido
como parte do primeiro movimento: “Também para mim é impor-
tante o que entendemos o que é o irmão jovem. Ele é alguém que
deve assumir o que os outros faziam? É a expectativa que se tem
sobre os irmãos. A identidade deve vir fora dessa expectativa. Temos
que trabalhar mais a identidade do jovem irmão”. Este recorte evi-
dencia mais uma vez a necessidade de participação na construção da
paisagem religiosa, relacionado com as questões geracionais. A ne-
cessidade de revisão identitária pode explicar um potencial conflito
entre os dois movimentos quando assumidos pelos sujeitos – ainda

122
que inconscientemente – ou seja, as tensões entre grupos que rei-
vindicam novidade a partir de seus projetos de vida e grupos que
postulam a tradição, relativizando a participação dos novos sujeitos.
A disputa na construção da paisagem religiosa é vista com cla-
reza e assumida como dever dos sujeitos: “Eu preciso ter claro meus
sonhos e encontrar os caminhos para a mudança e encontrar os ca-
minhos para realizá-los, pelas vias institucionais”. “Tenho que saber
vender meu sonho, saber propor, expressar com claridade para a ins-
tituição”. O dever é entendido desde a perspectiva do valor das iden-
tidades, exatamente como descrito no primeiro movimento: “Há
muita riqueza desde a minha identidade e a identidade dos demais”.
Em suma, o reconhecimento da presença do primeiro movimen-
to pode ser verificado no testemunho a seguir. “Minha formação foi
há sessenta anos. E o que escutei hoje, com a transparência, vem do
interior. Há 70 anos não teríamos chance de compartilharmos isso
que estamos discutindo hoje. Se compartilharmos os sonhos podere-
mos ter sonhos coletivos, no mistério da Trindade”.
Quanto ao segundo movimento, embora com menor frequência,
é possível ser identificado em elementos como a “fraternidade como
testemunho na individualidade moderna”. Para o sujeito da fala, a fra-
ternidade, construída com base no segundo movimento pode teste-
munhar comunhão se opondo ao individualismo moderno. O grupo
consultado reconhece a presença deste segundo movimento na cons-
trução da paisagem religiosa das comunidades, por exemplo, quando
um dos religiosos irmãos desabafa: “Para mim dói quando a Institui-
ção te trata com injustiça e quando ao religioso jovem se atribui o peso
histórico que tem muitos nomes, herança, legado. E eu, o que me dei-
xam construir? Eu valorizo o que fizeram os irmãos do passado, mas
não gosto que usem isso para justificar o que dizem que eu devo fazer”.
Tal movimento parece estar ancorado em “uma tendência ao
comodismo e a fugir novamente do mundo” e provoca uma “tensão
anacrônica, porque mencionamos situações do passado para explicar
as coisas do presente”. Mais uma vez é explicitada determinada rela-

123
ção – ainda não muito explorada neste campo de pesquisa – entre os
movimentos descritos por Hervieu-Léger e os aspectos geracionais no
interior das comunidades de religiosos irmãos. No âmbito das relações
de poder, “obedecemos a um projeto, mas nem sempre se constroem
os projetos comunitários a partir dos projetos dos irmãos”.
A riqueza das narrativas poderia, agrupadas por categorias de
análise – o que não é objetivo neste trabalho – constituir uma vasta
possibilidade de novos problemas de pesquisa e aprofundamentos
que esperamos, possam ser sequenciados por outros autores.

Olhar amoroso, cuidadoso e esperançoso: aprendizagens


para a jornada de conversão.
O reconhecimento dos dois movimentos no interior das comu-
nidades e relações, demandam um conjunto de pistas que podem
contribuir com a identificação de cada um deles e amenização das
possíveis feridas, exclusões e danos que um e outro podem causar
nos sujeitos e na dinâmica da vida comunitária. Urge que, superadas
as devidas dificuldades e aprofundados os aspectos identitários, cada
irmão e a comunidade se sintam livres, motivados, focados no pro-
jeto de vida e de missão que lhes são inerentes.
Nas linhas seguintes, serão apresentadas ideias-chave para apro-
fundamento individual e comunitário que podem orientar proces-
sos avaliativos, formativos e de tomada de decisão para religiosos
irmãos. Para uma maior aproximação da gramática religiosa e exer-
cício de uma abordagem interdisciplinar, as reflexões serão divididas
em três seções didaticamente identificadas como olhar amoroso, olhar
cuidadoso e olhar esperançoso.

Olhar amoroso
Conhecer, reconhecer e recordar o passado implica, na maté-
ria em revisão, um olhar amoroso de quem trilhou ou se propõe a
trilhar os caminhos da gratidão, do perdão e da reconciliação para

124
reconhecer os dois movimentos descritos na seção anterior: um que
considera a subjetividade dos sujeitos na construção da paisagem re-
ligiosa e outro que a relativiza e regula o grupo desde um núcleo rígi-
do (tradição, fórmulas rígidas, imposições, negação dos sujeitos etc).
Perceber os dois movimentos, ainda que não se concorde com
o ângulo da análise proposta para identificação dos mesmos, é um
passo crucial para dar materialidade histórica aos fantasmas da vida
comunitária, sempre culpados por todo fracasso, mas nunca respon-
sabilizados, justamente por não terem nome, forma e por estarem
totalmente no plano das abstrações. Reconhecer que a paisagem re-
ligiosa é construída com disputa é o primeiro passo para a aceitação
da existência do outro totalmente outro, com seus compromissos e
promessas e, sobretudo, com seus direitos.
O olhar amoroso precisa, inclusive, percorrer os corredores es-
curos das violações de direitos humanos cometidas na e pela vida
consagrada por razões de abuso de poder ou cega obediência aos fan-
tasmas dos conflitos internos e desenfreada busca de dominação dos
sentidos e dos corpos. O reconhecimento, porém, não é suficiente.
O olhar amoroso lança as bases para a reconciliação e o perdão, sem
omitir justiça, e buscá-la com todo o coração, aos que foram feridos,
reduzindo danos, restaurando relações e o bioma da fraternidade51.
Importa também que esse olhar amoroso perpasse os projetos forma-
tivos das novas gerações.

Olhar cuidadoso
Em termos práticos, o olhar cuidadoso defende e promove no
ambiente comunitário a possibilidade de coexistência harmoniosa,
a partir de homens históricos e não entidades folclóricas ideais, que
povoam abstratamente o imaginário religioso das cenas pitorescas
51 A expressão bioma da fraternidade refere-se à interligação e interdependência
do ecossistema (Laudato Sì, 2015, p. 29), como uma comunidade de
organismos vivos vinculados ao conceito de bioma entendido como conjunto
dos seres vivos de uma determinada área ou o conjunto de ecossistemas
terrestres Coutinho (2006, p. 14).
125
do Jardim do Éden, ou alegóricos, como o paraíso de William Blake
(1808). Por isso, superiores/as e animadores/as, devem considerar
integralmente, na constituição das comunidades, na orientação para
os projetos de vida comunitária e no acompanhamento pessoal dos
religiosos irmãos, os religiosos com toda a sua história pessoal. Ter
em conta que eles são sujeitos de direitos civis e direitos humanos.
Mediar processos de disputa sadia da paisagem religiosa no interior
da comunidade e orientar o discernimento dos religiosos irmãos
cujos mecanismos de defesa podem trazer para o bioma da fraterni-
dade resistências e imposições verticais e inegociáveis que deturpam
o desenvolvimento dos irmãos e reduzem a capacidade profética da
comunidade de viver a missão a ela confiada. No plano do olhar
amoroso, inegociável é tolerar qualquer forma de imposição ou do-
minação da paisagem religiosa, dos sentidos e dos corpos.
O olhar cuidadoso traduz em vida, no interior das comunida-
des, a conversão pastoral da Evangelii Gaudium, a conversão ecológi-
ca proposta pela Laudato Si’ e as conversões cultural e sinodal acres-
centadas no Documento Final do Sínodo da Amazônia. Da mesma
forma, o número 42 da Exortação Pós-Sinodal “Querida Amazônia”
insiste que “se o cuidado das pessoas e o cuidado dos ecossistemas
são inseparáveis, isto torna-se particularmente significativo lá onde
a floresta não é um recurso para explorar, é um ser ou vários seres
com os quais se relacionar”. Esta expressão sintetiza, de forma bem
concreta, o entendimento do olhar cuidadoso, aplicado também ao
contexto da Vida Religiosa, entendida aqui como um ecossistema de
relações mútuas e corresponsabilidades fraternas.
As quatro conversões constituem um projeto ousado, inerente
aos projetos comunitários e projetos pessoais dos religiosos irmãos.
Elas indicam um caminho possível para a construção da paisa-
gem religiosa contemporânea com potencialidade para ampliação
da consciência sobre o mecanismo sociologicamente revisado nes-
te artigo que indica na direção do fortalecimento das alteridades,
emancipação dos sujeitos e seus corpos para uma entrega total e po-
tencialmente definitiva ao projeto que fundamenta sua experiência
religiosa e dá significado a toda a sua vida.
126
Olhar esperançoso
Olhar com esperança é organizar o futuro. Mas poucas são as
variáveis controladas pela experiência humana histórica52. A despeito
do que foge ao controle, importa aos religiosos irmãos o cultivo per-
manente da capacidade de ver a vida com positividade e entusiasmo.
O olhar esperançoso nesta jornada de conversão pode ser melhor
entendido com base no Horizonte Inspirador da CLAR.
A esperança na fraternidade, na realização pessoal e comunitária,
na defesa da vida, no reconhecimento das subjetividades, na valori-
zação e defesa das diferenças e na construção da paisagem religiosa
contemporânea demandam uma opção pela Ecologia Integral: o reco-
nhecimento da sacralidade da criação e da interdependência mútua
entre todas as criaturas. Essa esperança se manifesta denunciando a
exploração da Mãe Terra e a violação de seus direitos e de toda forma
de opressão da vida humana, adotando novas formas de consumo e
oferecendo, desde as comunidades, novas formas de sociabilidade
humana. O olhar esperançoso quer devolver os religiosos ao mundo,
convertê-los a ele, naquela perspectiva do verbo Esperançar que fez
de Dom Hélder Câmara um modelo de esperança, um religioso,
com suas circunstâncias, sua trajetória, os dramas e os enredos que
o conduziram na direção de uma atividade pastoral progressista, re-
volucionária, humanista e, por isso mesmo, profundamente cristã
(CONDINI, 2008, p. 10).
A esperança, construída hoje por religiosos irmãos jovens e
religiosos irmãos mais experimentados abre caminhos para superar
o paradigma analítico simplista das relações geracionais. Endos-
sar mecanismos de discriminação, controle dos corpos e sentidos e
perpetuar visões de mundo colonialistas, justificando conflito gera-
cional, é um equívoco persistente na literatura pastoral e religiosa,
frequente nas narrativas comunitárias.

52 Olhar esperançoso relacionado aqui ao verbo Esperançar  que, segundo


o filósofo Mário Sérgio  Cortella, “significa almejar, sonhar, agir, buscar”.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=IGWgnsscBmQ. Acesso
em: 05/05/2020.
127
A inegável diferença entre gerações não é privilégio da vida con-
sagrada, mas povoa as relações sociais em todos os outros contextos
da vida social. Recorrer a ela para explicar dominação na construção
da paisagem religiosa é ocultar a perigosa face da colonização das
subjetividades que quase sempre marginaliza os extremos, os mais
jovens e/ou os mais idosos, e não assume a realidade tal como ela é:
a vida comunitária religiosa masculina implica em convivência de
homens com idades diferentes e, consequentemente, formas distin-
tas de ver o mundo. Mas isso não confere a ninguém, em nome da
“sua geração” seja qual for, qualquer prerrogativa para a imposição
de padrões morais, ideológicos e estéticos.

Passos seguintes para outras paisagens religiosas possíveis


O fortalecimento de discursos de ódio e disseminação da intole-
rância, devastação dos biomas e esgotamento de recursos, apenas al-
guns dos traços da crise humanitária contemporânea, descortinam o
grito dos pobres, o grito da Terra. Uma nova e urgente relação entre a
Mãe Terra e os seres humanos, seus irmãos e irmãs, implica mudanças
também na vida do religioso irmão e suas comunidades, na perspecti-
va de resgate da fraternidade entre todos os elementos da criação.
Ser irmão, não é um título, ou um status social, mas uma iden-
tidade relacional, um modo de ser junto aos outros. Para ser um an-
tídoto, ou uma proposta de bem para com um contexto intolerante,
se requer que, tanto o irmão como a instituição à qual ele pertence,
recuperem a positividade de sua própria identidade: a fraternidade.
Esse seria o resultado de personalidades individuais bem integradas
e abertas a procurar respostas eficazes à construção do Reino da vida.
A soma dos indivíduos não seria apenas uma justaposição, mas um
fato integrador no conjunto da instituição que o abriga. Todos cami-
nham nesse discernimento atualizado dos sinais da vida que quer ser
gerada tanto individual quanto institucionalmente.
O aprofundamento do axioma realidade – expectativa, que enseja,
constantemente, a superação de conflitos, ajuda na sadia construção

128
da paisagem religiosa em sua constante busca de atualização pessoal
e pastoral. A avaliação pessoal e comunitária do trajeto percorrido e
do percurso ainda necessário para converter-se ao mundo não é tarefa
retórica. Implica em avaliação séria e contínua dos hábitos de consu-
mo dos religiosos, da capacidade de reduzir o impacto de sua vida no
planeta, do compromisso com a ética da vida e da disposição autêntica
de buscar a verdade de si e de comunicá-la ao mundo.
Em nível institucional, a mudança da paisagem religiosa e a
identificação dos mecanismos que a regulam, como os abordados
neste trabalho e os que ainda necessitam de análise ou revisão, tam-
bém exigem superação da retórica. As instituições mantenedoras da
vida consagrada podem, com algum esforço político e analítico, ve-
rificar como o seu desenho institucional favorece a vitalidade caris-
mática no interior das comunidades e em cada um de seus membros
e o quanto os seus resultados não são suficientes para a fecundidade
vocacional e a fidelidade dos religiosos irmãos. De igual maneira,
a indissociabilidade entre a ação pastoral em termos de carisma –
obras, projetos, instituições e equipamentos – e a vida consagrada
exige coerência ética, nem sempre fácil de alcançar.
Em matéria de ecologia integral, cabe às organizações religiosas
e estruturas afins avaliarem o coeficiente da relação investimentos
e fidelidade carismática e a capacidade institucional de avaliar seus
resultados com indicadores de missão suficientes para mensurar o
impacto da missão. Portanto, também demonstrar qualitativamente
e quantitativamente os resultados em termos de justiça social e das
demais variáveis econômicas, políticas, sociais e ambientais do pro-
jeto societário, advindo do Evangelho de Jesus Cristo.
Este trabalho lança luzes a um debate interdisciplinar e complexo.
Não sendo conclusivo, não é uma panaceia aos dilemas da vida ins-
titucionalizada e às suas consequências nos indivíduos. Ao contrário,
oferece ao leitor uma revisão muito particular de um elemento da vida
do religioso irmão no interior das comunidades e propõe diálogo crí-
tico sobre ele. Ao mesmo tempo, abre janelas pouco exploradas e deixa
a luz entrar. No limite, talvez efetivamente a única contribuição que
129
deixa é a mensagem fraterna de que algo não anda bem na intimidade
da vida consagrada e a conversão a uma ecologia integral pode ser um
caminho de esperança. Talvez seja o único caminho.

Referências
BLAKE, Willian. The Butts. Conjunto de ilustrações para Paradise
Lost. Fotografia © [2018] Museu de Belas Artes, Boston Catá-
logo Raisonné: Butlin 536 [1–9], números de acesso 90.94-102
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CLAR. Horizonte Inspirador da Confederação Latino-americana
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www.clar.org/horizonte-inspirador/. Acesso em 20.04.2020
CONDINI, Martinho. Dom Hélder Câmara um modelo de espe-
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CORTELLA, Mário Sérgio. Esperançar. Disponível em https://
www.youtube.com/watch?v=IGWgnsscBmQ. Acesso em:
05/05/2020.
DOCUMENTO FINAL. Assembleia Especial do Sínodo dos Bis-
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para a Igreja e para uma ecologia integral. Brasília: CNBB, 2019.
DOCUMENTO PREPARATÓRIO. Sínodo Especial para a Re-
gião Pan-Amazônica. Amazônia: novos caminhos para a Igreja e
para uma ecologia integral. Brasília: CNBB, 2018.
HERVIEU-LÉGER, Danièle. Le partage du croire religieux dans
des sociétés d’individus. L’Année sociologique, vol. 60, n. 1,
2010, pp. 41-62.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a Gramática Moral
dos Conflitos Sociais. 2 ed. Editora 34, 2009.

130
FRANCISCO, Papa. Laudato Si. Carta Encíclica sobre o cuidado
da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
FRANCISCO, Papa. Querida Amazônia. Exortação Apostólica
Pós-Sinodal.. Disponível em http://www.sinodoamazonico.va/.
Acesso em 03.05.2020.
FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. Exortação Apostólica Pós-
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papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.
html Acesso em: 21/05/2020

131
O PERDÃO NA VIDA DO RELIGIOSO IRMÃO

Otalívio Sarturi53

O ser humano encontra-se diante do mundo que, às vezes, pode


dar a impressão de que a violência, o ódio, a vingança e a guerra
são realidades normais da vida. No entanto, ele tem em si mesmo a
capacidade de gerar paz, estabelecer laços de comunhão, abrir o seu
próprio coração para perdoar.
Embora nem sempre seja fácil concretizá-lo, são tantas as pes-
soas que, sintonizadas com Deus, longe de manter ódio e desejo de
vingança, vivem experiências significativas de misericórdia.
O religioso irmão, chamado a seguir Jesus Cristo, segundo o
carisma da sua congregação, apesar dos desafios peculiares que a vida
lhe apresenta, é convidado a viver o amor, a comunhão, a misericór-
dia no cotidiano da vida.
Sabe-se que o plano divino de salvação da humanidade se des-
dobra numa história de aliança. A fonte desta realidade está na co-
munhão do Filho com o Pai, no dom do Espírito Santo. Essa comu-
nhão é o modelo, fonte e meta da comunhão dos cristãos entre si.
O religioso irmão encontra ali o significado profundo de sua própria
vocação. (CONGREGAÇÃO..., 2016, p. 12).
João Paulo II assim se expressa: “Só no interior do mistério da Igreja
como mistério de comunhão se revela a identidade dos fiéis leigos, a sua
original dignidade. E só no interior dessa dignidade se pode definir a sua
vocação e a sua missão na Igreja e no mundo” (CL 8).
O religioso irmão, assumindo a Vida Consagrada que “não
constitui um estado intermediário entre o clerical e o laical” (LG
43), como membro do povo e da missão da Igreja, vive o chamado a
ser memória da aliança, por meio da sua consagração a Deus numa
53 Irmão marista. Psicopedagogo e Mestre em Espiritualidade.
132
vida fraterna, em comunidade, para a missão, tornando mais visível
a comunhão que o Povo de Deus é chamado a encarnar.
A fraternidade é a pérola que os religiosos irmãos cultivam com
cuidado especial. Desta forma são, para a comunidade eclesial, me-
mória profética de sua origem e estímulo para retornar a Ele (CON-
GREGAÇÃO..., 2016, p. 12).
A fortaleza da Vida Consagrada está na experiência relacional e
apaixonada por Jesus Cristo. Os fundadores e fundadoras, primeiros
em cada instituição religiosa a consagrar suas vidas, foram homens e
mulheres que viveram intensa experiência espiritual. Essa foi a realidade
profunda que lhes dava força, coragem, fé e luz para viverem uma vida
alternativa. Espiritualidade supõe entrega, comunhão, amor a Deus e
espírito de reconciliação com o próximo (MATOS, 2015, p. 42).
O amor fraterno concretiza-se em diversos serviços, capazes de
ajudar os cegos a verem, os coxos a andarem, os prisioneiros a se
libertarem; expressa-se por meio da acolhida, do diálogo, do respeito
e, especialmente por intermédio do perdão.
Quem já não experimentou o que significa ser perdoado por al-
guém! Diante de uma experiência sincera de perdão, o peso da culpa
é aliviado; o medo de não ser acolhido é abrandado; o sentimento
de dúvida é suavizado, dando espaço para a confiança; o olhar, antes
tenso e carregado, passa a transparecer alegria.
O fio condutor deste texto consistirá em apresentar a dimensão
do perdão na vocação do irmão religioso, onde serão desenvolvidos
os seguintes aspectos: esclarecimentos sobre o perdão; a necessidade
de perdoar-se; Jesus Cristo, plenitude do amor e do perdão; expe-
riência de Deus amor e perdão; lutas humanas, lutas espirituais e o
fator essencial para a vivência do perdão.

Esclarecimentos
Quem já não ouviu a exclamação “Deus me perdoe!”. Essa expres-
são, quando revela medo, culpa, vergonha e insatisfação, é verbalizada
com um sentido distante do verdadeiro significado da reconciliação.
133
Na condição de criaturas humanas, cometemos erros que atin-
gem os outros ou a nós mesmos; para vivermos bem, necessitamos
nos perdoar e ser perdoados. No entanto, estamos sujeitos a confun-
dir a necessidade de perdão, quando se trata de culpa moral ou ética,
com sentimentos enganosos de vergonha, também chamada de falsa
culpa, ou ainda de culpa psicológica, considerada por psicólogos a
causa preeminente de distúrbios emocionais de nossa época (MA-
DOTT, 2003, p. 111).
A postura humilde é a saída para se perdoar, tanto para aquele
que cometeu um erro que prejudicou a alguém, como para aquele
que, diante de equívocos ou pequenos fracassos, sente-se culpado
ou com vergonha. “A humildade significa aceitar com honestidade
tanto a força quanto a fraqueza, o que é fato e o que é ilusão” (MA-
DOTT, 2003, p. 110). Ela se torna uma aliada para admitirmos,
quando objetivamente prejudicamos a alguém, ou quando fomos
apenas tomados por culpa psicológica, isto é, quando pairam, em
nós, sentimentos de termos prejudicado a alguém, mas não temos
nenhuma responsabilidade e, portanto, não há motivos objetivos
para nos sentirmos culpados.
Outros autores também colocam a humildade como aliada do
perdão. Grün acredita que para se entender melhor e se dispor a per-
doar é fundamental admitir as próprias fraquezas, realidade inerente
à natureza humana. Isso supõe humildade, dispor-se a descer do pe-
destal da imagem pessoal idealizada, curvar-se à própria realidade. A
palavra humildade vem do termo latino humilitas e significa que nós
devemos aceitar nossa própria natureza terrena, isto é, a quantidade
de húmus que existe em nós (GRÜN, 2005, p. 41).
A palavra perdão é a tradução da palavra grega aphiemi que sig-
nifica soltar, liberar. A palavra latina dimittere tem o significa seme-
lhante: mandar embora, dispensar, soltar. A palavra perdão refere-se
à culpa e significa uma ativa remissão e libertação dela, enquanto
a palavra reconciliar, muito semelhante a perdoar, significa restau-
rar, restabelecer a paz, apaziguar, aquietar, possibilitar um encontro
(GRÜN, 2005, p. 9).
134
Fica claro que um primeiro significado de perdoar consiste em
“abandonar ou soltar o ressentimento”. Somos capazes de nos liber-
tar do sentimento de culpa psicológica, ou seja, de determinada falsa
culpa, deixando de nos acusar, que provoca mal-estar, e, até mesmo
enfermidades, restituindo assim o valor e a dignidade de sermos pes-
soas com inegáveis potencialidades, mas sujeitas a fraquezas (GON-
ZALES, 2010, p. 61).
González (2010, p. 61) esclarece outros aspectos, relacionados à
realidade do perdão. Primeiramente, alguns consideram que perdoar
significa esquecer. A verdade não é essa, porque se pode recordar o
mal sofrido por alguém, mas sem manter a carga de mal-estar, de
ódio, desejo de vingança e sofrimento.Em segundo lugar, perdoar
não significa deixar que o mal tenha continuidade. Talvez se encon-
trem motivos religiosos, sociais ou de compaixão para perdoar aque-
le que tem o hábito de roubar. Isso não significa que não se faça nada
para impedir que ele continue praticando as suas ações.
Pagola (2013, p. 80) salienta que amar o injusto e violento não
significa considerar adequada sua atuação injusta e violenta. Conde-
nar de modo taxativo a injustiça e a crueldade, não nos deve levar a
cultivar ódio em relação a quem as pratica.
Além disso, perdoar não é condicional. O perdão, por ser uma
meta, depende da decisão e do próprio esforço pessoal para concre-
tizá-lo. Se alguém a sujeita a condições, especialmente aquelas que
o agressor deve cumprir, o alívio e a libertação, oportunizados pelo
perdão, não serão possíveis.
Finalmente, o ato de perdoar não consiste num mero sentimen-
to como, por exemplo, considerar que você se sentirá logo em paz
com o outro. O processo de perdoar supõe uma decisão livre e genu-
ína, nem sempre garantida a partir de um aparente alívio emocional.
Quando alguém é vítima de uma ofensa ou de uma injustiça,
geralmente reage com indignação, revolta, abatimento. No entanto,
a pessoa tem capacidade para digerir os sentimentos, que podem se
manifestar em forma de vingança, segundo o modelo do olho por

135
olho, dente por dente (Ex 21, 24); virando as costas para a pessoa,
ou seja, passar a reagir de modo semelhante ao ofensor; em forma de
negação, considerando que essas realidades são normais; ou ainda,
buscando simplesmente esquecer, como se não tivesse acontecido
nada e não tivesse ficado algum tipo de ferida.
Por incrível que pareça, pode-se reagir a uma ofensa com amor
(1Cor 13, 4-8). Agir com amor possibilita perdoar e, tal postura não
significa negar as atitudes violentas ou permanecer indiferente ao mal.
Quem consegue perdoar vive experiência espiritual autêntica,
porque se encontra sintonizado com o seu eu profundo, isto é, com
a sua essência. Assim consegue não apenas superar o eu falso, masca-
rado e de aparência, mas também reconciliar-se.

Perdão a si mesmo
Não há dúvida de que perdoando a mim mesmo, ajudo-me a
perdoar aqueles que me “ofenderam”. No entanto, há pessoas que
não conseguem efetivá-lo no cotidiano da vida. Algumas remoem a
própria culpa, outras se recriminam por ter agido de modo equivo-
cado ou por ter fracassado.
Meu compromisso não é de evitar todos os erros e nem de ficar
me punindo quando eles surgem. Em vez de me considerar um he-
rói, sou convidado a brincar com as fragilidades pessoais. Quando
aceito que sou imperfeito, sou capaz de dar risadas da minha estu-
pidez, não me impacientar com os erros dos outros; serei capaz de
abraçar mais e cobrar menos, encorajar mais e punir menos.
Reconhecer os próprios erros e pedir desculpas aos outros é um
ato solene de sabedoria. Perdoar-me revela que tenho a capacidade de
reconhecer que sou um ser humano em construção, sujeito a falhas,
revelando capacidade de seguir o pedido do Papa Francisco: “por favor,
não maltratem os limites das pessoas” (FRANCISCO, 2019, p. 70).
Irmão Pedro Bulegon, religioso marista, faleceu em 1997 em de-
corrência de um câncer, com apenas 38 anos. As palavras, expressas

136
nos últimos dias de sua vida, quando se encontrava na Residência
São José, em Florianópolis, revelam a sua marcante experiência de
reconciliação consigo mesmo e a capacidade de responsabilizar-se
pelas facetas boas e piores que aconteceram em sua vida:
Nesta velha agenda, escrevo algo, pois não sei o que poderá
acontecer daqui a pouco. Não creio que esteja preparado para par-
tir, nem tampouco tenho coragem. Mas a vida é uma realidade que
não temos como reger e nem fugir dela. Não estou revoltado com
nada. Sinto-me responsável por muitas coisas boas e não tão boas
que aconteceram em minha vida.
Deus! Tenho-o como amigo, como mãe de misericórdia e Ma-
ria como minha terna e querida mãe, figura que vejo tão parecida
com minha mãe terrena! Como amo minhas duas Marias! Graças a
esta confiança que sempre tive, que sempre recebi das mulheres, é
que aprendi a amar ao Pai como mãe, mais amigo, mais misericor-
dioso do que justo juiz.
Os Irmãos Maristas! Que bom foi ter vivido estes anos na
Congregação Marista! Admiro muito os que conseguem ser fiéis
aos princípios do Pai Champagnat!
Como custa a mim e, quem sabe, a outros companheiros, me
convencer de que é preciso amar antes para depois educar. Aí sim o
educar seria na gratuidade, sem esperar resultados matemáticos.
Meu trabalho, que paixão! Foi com este trabalho que não medi es-
forços para levar com garra e honestidade. Jamais me queixarei do peso
que perdi, dos cabelos que coloriram minha cabeça. Foi com este am-
biente que sonhei, que sorri e que chorei. (apud BALDIN, 2000, p. 61).
Quem se reconcilia consigo mesmo e com as pessoas que lhe
estiveram próximas, como é o caso de Irmão Pedro Bulegon, conse-
gue identificar os aspectos positivos da própria vida e, talvez, dessas
mesmas pessoas, descobrindo que, habitualmente, no quadro geral
da história, eles superam os negativos (CENCINI, 2007, p. 245).

137
Uma primeira condição para perdoar a si mesmo, segundo
Anselm Grün, consiste em conhecer a própria realidade, ser capaz
de se aproximar dos adversários internos e familiarizar-se com eles
(GRÜN, 2005, p. 26).
Outro passo do processo de perdoar, segundo Gonzáles, consiste
em tomar consciência dos sentimentos, tais como, decepção, culpa,
rancor, ódio, desejo de vingança (GONZÁLEZ, 2010, p. 13).
Existem experiências em que nos sentimos maltratados e ofen-
didos, que permanecem perdidas entre as sombras do esquecimento.
Basta surgir algum insucesso que remova as capas protetoras da nos-
sa experiência, para que as feridas do ser se revelem.
Depois de ter reconhecido a própria história e identificado os
sentimentos que se manifestam em mim, sou convidado a perdoar-
me (GRÜN, 2005, p. 37).
Uma das grandes tarefas do ser humano consiste em transformar
as próprias feridas em pérolas, embora não aconteça num piscar de
olhos. Isto será possível quando reconhecer e aceitar as próprias feridas
e deixar de responsabilizar os outros por elas (GRÜN, 2005, p. 38).
Pode ocorrer de termos sido educados – e a própria sociedade
reforça – com a ideia de nos empenhar para ser pessoas perfeitas,
exaltando as luzes, as realizações e os sucessos pessoais, desconside-
rando as sombras, as fraquezas e as feridas, realidades inerentes à
nossa condição humana.
Na verdade, a vida do religioso irmão e das demais pessoas é
constituída por luzes e sombras, claridades e escuridões, perfumes e
maus odores; ambas as realidades, queiramos ou não, invariavelmen-
te, fazem parte da vida.
Quando alguém reconhece que os defeitos e as sombras são
inerentes à sua vida e igualmente daqueles com os quais convive,
encontra-se em condições de perdoar a si mesmo e aos demais.

138
Jesus Cristo, plenitude do amor e do perdão
Conforme o Papa Francisco, “Jesus Cristo é o rosto da miseri-
córdia do Pai. [...] Na ‘plenitude do tempo’ (Gl 4,4), quando tudo
estava pronto segundo o seu plano de salvação, mandou o seu Filho,
nascido da Virgem Maria, para nos revelar o seu amor” (MV 1).
Continua dizendo que a “Misericórdia é o ato supremo pelo qual
Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia é a lei fundamental que mora
no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que
encontra no caminho da vida. Misericórdia é o caminho que une Deus
e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados
para sempre, apesar da limitação do nosso pecado” (MV 2).
Jesus Cristo, nas parábolas dedicadas à misericórdia, revela a
natureza de Deus como a de um Pai que nunca se dá por vencido
enquanto não tiver dissolvido o pecado e superado a recusa, com
compaixão e misericórdia. Essa realidade se expressa especialmente
na parábola da ovelha extraviada, da moeda perdida e a do pai em
relação aos seus dois filhos (Lc 15,1-32).
Ele, que viveu o amor e o perdão plenamente, teve membros da
sua comunidade apostólica que apresentavam dificuldades de rela-
cionamentos com os demais. Alguns brigavam entre si, outros dispu-
tavam espaço, no intuito de ser mais do que o outro, e outros agiam
com violência, sendo capazes até mesmo de negar e trair. Judas, que
cuidava do dinheiro, tornou-se o traidor de Jesus. O evangelho de
João o chama de “ladrão” (Jo 12, 4-6). Tiago e João eram generosos,
mas queriam ter mais poder que os outros. Por serem violentos, Je-
sus os apelidou de “filhos do trovão” (Mc 3, 17). Pedro, uma pessoa
generosa e entusiasta, além de negar por três vezes a Jesus, puxou
da espada e feriu a orelha do servo do sumo sacerdote. Jesus lhe diz:
“Guarda a tua espada na bainha” (Jo 18, 11).
Jesus Cristo, em tais circunstâncias, em vez de projetar os seus
sentimentos nos outros, em forma de discriminação, condenação e
violência, entende-os e os perdoa, sem deixar de ser autêntico e fran-
co para com eles.
139
Quando os escribas e fariseus lhe trouxeram uma mulher apa-
nhada em adultério, Jesus lhes diz: “Quem de vós não tiver pecado,
atire a primeira pedra”. No final da cena, com ternura e firmeza,
disse a ela: “Eu não te condeno. Vai, e de agora em diante não peques
mais” (Jo 8, 1-11).
No alto da cruz, já extenuado, diante das palavras do ladrão ar-
rependido, que estava pregado na cruz ao seu lado, diz: “Em verdade
te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43). Diante dos
soldados que o torturaram, crucificaram e levaram injustamente à
morte suplica ao Pai, dizendo: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o
que fazem” (Lc, 23, 34).
Percebe-se nos vários fatos mencionados que a misericórdia é o
atributo essencial e central de Deus; Jesus Cristo é o rosto humano
da misericórdia do Pai; a justiça é a misericórdia de Deus, que vai
além da justiça (CODINA, 2017, p. 160).
Jesus Cristo não responde ao mal com o mal. Embora não entre
no jogo de quem agride a dignidade humana, acolhe-os e aposta na
recuperação deles. Ele não aceitou nenhuma forma de violência. Pelo
contrário, quis eliminá-la pela raiz. A não violência é um dos traços es-
senciais da atuação e da mensagem de Jesus Cristo. No relato de Lucas,
reage energicamente e repreende seus discípulos porque desejam que
“o fogo do céu” destrua os odiados samaritanos (Lc 9, 54-56).
Para Jesus Cristo, acolher o reino de Deus significa precisamen-
te eliminar toda forma de violência entre os povos. Sua mensagem
é clara: “Deus é um Pai que está próximo. Só quer uma vida mais
digna e feliz para todos. Mudai vossa maneira de pensar e de agir e
crede nesta Boa Notícia” (PAGOLA, 2013, p. 169).
Jesus não age segundo a lei do olho por olho e dente por dente,
que incentiva a amar o próximo e odiar o inimigo. Enfatiza a neces-
sidade não apenas de amar os inimigos, mas, acima de tudo, de orar
por aqueles que nos perseguem (Mt 5, 38-48).
Pagola esclarece: “Quando Jesus fala do amor ao inimigo não
está pensando em um sentimento de afeto e carinho por ele, menos
140
ainda numa entrega apaixonada, mas numa relação radicalmente po-
sitiva por sua pessoa” (2013, p. 80).
O evangelista Lucas, na parábola do pai misericordioso, revela
claramente a relação positiva que o pai tem com o filho que se en-
contrava perdido na vida (Lc 15, 11-32). O filho, reconhecendo seus
equívocos, retorna à casa do pai. O olhar misericordioso do pai e o
seu abraço acolhedor foram a porta aberta que possibilita o regresso
do filho à vida.

Pessoas que cultivaram a capacidade de perdoar


Conforme vimos, Jesus Cristo é o exemplo pleno de vivência da
misericórdia e do perdão, em particular para o religioso irmão. São
tantos os exemplos de pessoas – como é o caso do Irmão Marista
Pedro Bulegon, já relatado – que, ao longo da vida, deram provas
concretas de que é possível seguir o exemplo do Mestre.
Estêvão, considerado o primeiro mártir da Igreja Católica, depois
de ser apedrejado, mantendo-se com coração misericordioso, foi capaz
de dizer: “Senhor, não os condenes por este pecado” (At 7, 60).
O Papa João Paulo II, no ano de 1981, sofreu atentado na Praça
de São Pedro, no Vaticano. Seu algoz, Mehmet Ali Agca, foi detido
e colocado na prisão. Dois anos depois, tocado intensamente pelo
amor divino, o Papa o visitou na cadeia de Ancona; conversou sepa-
radamente com ele e o perdoou.
Outro caso marcante de vivência de perdão foi vivido pela ruan-
desa Immaculée Ilibagiza, no final do século passado, história relata
por ela, na obra “Sobrevivi para Contar”. Ela, durante o genocídio
que se abateu sobre Ruanda, onde milhares de pessoas foram assas-
sinadas, passou noventa e um dias, com mais sete pessoas, num ba-
nheiro do tamanho de um armário (1,20m x 1,0m). Nesse período,
muitos dos seus familiares e amigos foram assassinados.
Conforme ela mesma descreve, “foi uma lição pela qual, em
meio a assassinatos em massa, aprendi a amar os que me odiavam e

141
perseguiam e como perdoar àqueles que executaram a minha famí-
lia” (ILIBAGIZA, 2008, p. 16).
Immaculée, nesse ambiente, onde se encontrava submetida ao
silêncio, ao medo e ao desespero, pouco a pouco, no encontro e diá-
logo silencioso que estabeleceu com Deus, conseguiu superar o ódio,
a revolta, o desejo de vingança, para chegar ao perdão autêntico.
À medida que estabelece encontro profundo com Deus, conse-
gue rezar para perdoar. Ocupava de 12 a 13 horas do seu dia rezando
ave-marias e pais-nossos. Com o passar dos dias, em clima sempre
mais profundo de oração, conseguiu encontrar um cantinho dentro
do seu coração. Para lá se retirava. Era seu jardim secreto, onde falava
com Deus e meditava suas palavras (ILIBAGIZA, 2008, p. 107).
A partir da experiência de encontro com Deus, vivenciada en-
quanto se manteve escondida no pequeno banheiro, além do desejo
de perdoar, surgido dentro dela, sente também a vontade de levar
esperança às crianças e jovens vítimas da guerra e ajudá-los a não
abraçar o ódio que os privara dos pais e do amor de uma família
(ILIBAGIZA, 2008, p. 173).
Immaculée Ilibagiza, atualmente, além de coordenar a Funda-
ção Ilibagiza, com o objetivo de atender sobreviventes de guerras e
genocídios, é convidada para proferir palestras em vários países.

Experiência de Deus amor e perdão


As pessoas tidas como santas são aquelas capazes de viver ex-
periências fortes da presença de Deus em suas vidas. Aproximam-se
dele, são cativadas pelo seu jeito de ser e se sentem impulsionadas a
viver a experiência de amor e perdão.
O religioso irmão, por vocação, é convidado a viver a experi-
ência de Deus bondoso e misericordioso, que ama gratuitamente a
todos. Busca manter-se focado no amor e no perdão; mantêm cons-
ciência do amor e da misericórdia divina e que a vida digna obtida é
fruto do empenho pessoal e da própria ação divina.

142
Deus, ao chamar alguém à vida de Irmão, deseja-o livre, ínte-
gro e feliz, capaz de amar e de viver relações fraternas, fortalecidas
pelo perdão.
A experiência do perdão permite-o buscar a vivência do “bem
em si mesmo” e não tanto a busca do “bem para si”. O ato de
perdoar ampara-se no desejar o bem objetivo do outro – indepen-
dentemente da sua classe social, da crença a que pertence, do status
que desfruta – e não tanto no simples desejo de “sentir-se bem”,
realidade que está sujeita a mudanças.
Quem se deixa mover pelo mundo dos sentimentos, – como por
exemplo, a raiva, a mágoa e pelo desejo de “sentir-se bem” encontrará
dificuldades para perdoar de verdade, porque se encontra fundamen-
tado numa realidade quase que impossível de ser controlada.
O religioso irmão, quando consegue viver autêntica experiên-
cia de Deus, amor e perdão genuínos, encontra-se mais livre e em
melhores condições para a vivência do perdão. O ato de perdoar a
alguém não o diminui, apenas o coloca em sintonia com os sonhos
divinos em relação aos seus filhos: verdade, amor, liberdade, felici-
dade, dignidade, equilíbrio. O encontro que estabelece com Deus
e com a sua verdade pessoal suaviza o orgulho, aproximam-no da
humildade e fortalecem a sua vivência do amor e do perdão.
Jesus Cristo, que vive intensamente o amor e o perdão, no alto
da cruz, é a confirmação da liberdade plena. Sua liberdade e equilí-
brio pessoal lhe permitem agir com profunda compreensão, ternura
e misericórdia, em relação aos demais, sem revidar à violência, sem
suavizar a responsabilidade que compete a cada um.
Esse seu jeito de ser o levou a agir com imparcialidade diante da
mulher adúltera e dos seus acusadores. Escuta, escreve na areia, dei-
xando claro que todos carregavam consigo algum pecado, e perdoa
à mulher, sem deixar de lhe pedir para não pecar mais (Mt 8,1-11).
O religioso irmão, diante de alguma dificuldade de relaciona-
mento com alguém, na condição de ser humano, pode ser tentado
a condená-lo e se manter indiferente a ele. Postura que não resolve
143
o problema; mas pode permitir que brotem do seu próprio interior
sentimentos de acolhida, de justiça, de misericórdia e de disposição,
sem deixar de ser franco com a pessoa.
Conforme se pode ver, a experiência de Deus, ou seja, o estar
sintonizado com os desejos divinos, não apenas habilita o religioso
irmão ao perdão, mas também fortalece a sua capacidade para resis-
tir aos vendavais da vida. Ela, de modo semelhante ao alimento que
sacia e a bússola que orienta, possibilita-lhe avistar luzes até mesmo
nas situações mais duras da própria vida.

Passagem das lutas humanas para as lutas espirituais


Supõe-se que o religioso irmão aprecie o perdão e já tenha re-
alizado a experiência de perdoar a alguém; mas, provavelmente, já
sentiu na pele o quanto é difícil reconciliar-se com a pessoa que o
prejudicou.
Diante de alguém que lhe causou algum tipo de mal, pode ado-
tar basicamente três posturas: fechar-se, vingar-se ou reconciliar-se.
Fechando-se ou vingando-se contra o ofensor, o ônus a ser pago
tende a ser muito caro. Poderão surgir, além de culpas desnecessárias
e provocações que reforçam ainda mais a violência, ou ainda, doen-
ças psicossomáticas.
Embora a melhor saída consista em reconciliar-se, o percurso do
caminho da leveza, da consciência limpa, gerando mais serenidade,
nem sempre é fácil, por diversos motivos. Um deles tem a ver com as
lutas humanas, também chamadas lutas psicológicas.
A luta humana ou psicológica realiza-se entre atores humanos;
um deles externo, que pode ser alguém, uma circunstância, um
acontecimento, e outro interno à própria pessoa. Essas lutas se ma-
nifestam em forma de divisões interiores; podem-se dar na falta de
serenidade em relação à realidade pessoal, ou na luta contra uma
determinada pessoa, por meio de ciúmes e invejas, fofocas e fecha-

144
mentos, ódios e vinganças, ou ainda, revoltando-se contra algum
acontecimento (IMODA, 1996, p. 559-563).
Se o religioso irmão se encontra envolvido em algum tipo de
luta humana ou psicológica, não se encontra em condições de fazer
experiência de perdão. As lutas de cunho humano fortalecem o pró-
prio orgulho, move-o a se considerar inocente, vítima dos outros,
pouco responsável pela situação existente e inclinado a apontar e a
condenar os demais.
Se ele se encontra envolvido numa luta espiritual, caracterizada pelo
encontro e pelo confronto entre pessoas livres e Deus, dispõe de boas
condições para fazer a experiência do perdão (IMODA, 1996, p. 559).
Isso será possível porque, embora não esteja isento dos desafios
que a vida oferece, em vez de consumir energias para se proteger, con-
denar os outros, permite que o seu coração seja tocado por Deus. Re-
conhece as próprias potencialidades e fragilidades. De bem com sua
condição de cidadão simples e humilde, capaz de transpirar liberdade,
embora tenha suas debilidades, consegue canalizar suficientemente
suas energias para perceber as riquezas do outro, amá-lo e perdoá-lo.
Conforme se observa, o religioso irmão pode se portar diante da
vida, lutando contra os demais, contra os acontecimentos e contra
as realidades pessoais não aceitas. Essa forma de viver não permite
reconciliar-se com alguém, porque, nesse estilo de entender a vida,
perdoar adquire conotação de rebaixamento e perda.
Outra maneira bem diferente de ele viver consiste em lutar, mas
de outro modo e por outros motivos. Trata-se da luta espiritual. Nes-
sa situação, as energias pessoais não serão mais consumidas tanto em
se defender e superar a outra pessoa, mas essencialmente em respon-
der aos anseios divinos em relação ao ser humano. Neste caso, o ou-
tro será visto como companheiro de caminhada que, igualmente está
sujeito a vulnerabilidades. Numa postura assim, o ódio, a vingança
e as lutas contra o outro perdem forças, possibilitando concentrar
energias na vivência do amor e do perdãoO apóstolo Paulo é exem-

145
plo típico de alguém que foi capaz de superar as lutas humanas, con-
seguindo canalizar as suas energias para a luta espiritual (SARTURI,
2014, p. 143). Ele, cheio de zelo por Deus, fiel, instruído, prendeu e
lançou na prisão homens e mulheres. Em determinado momento de
sua vida, sente-se tocado e chamado por Deus para anunciar a incal-
culável riqueza de Cristo: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At
22, 7). Paulo pergunta: “Quem és tu, Senhor?” (At 22,8). “Senhor,
que queres de mim?”. Ouve a resposta: “Eu sou Jesus, o Nazareno,
a quem tu estás perseguindo” (At 22, 8); e o envia junto aos pagãos.
São visíveis dois momentos na impressionante experiência vivi-
da por Paulo. No primeiro, ele segue sua ordem interior para com-
bater e destruir os valores divinos e aniquilar a vida de muitos. Trava
uma luta humana, arremessando suas forças interiores contra a rea-
lidade dos valores divinos e humanos para destruir. Nesse primeiro
movimento, percebe-se um Paulo voltado para si mesmo, propenso
a defender interesses de um determinado grupo e de si mesmo.
Numa segunda fase de sua vida, depara-se com Cristo e faz
experiência do divino, que o convida a uma nova dinâmica de vida.
Deixa-se cativar pela riqueza da sua proposta e, gradativamente, a
ela adere. Suas energias, por exemplo, a agressividade e a necessida-
de de realização, não são mais direcionadas para um fim em si mes-
mo, isto é, para alcançar desejos meramente pessoais. Seu endereço
e foco agora se concentram em Deus. Por isso é capaz de afirmar:
“Eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20a).

Fator essencial para a vivência do perdão


O religioso irmão, conforme se salientou, é convidado a fundamen-
tar a sua vida em Jesus Cristo (1Cor 3,11), segundo seu modo peculiar
de ser e de acordo com um determinado carisma congregacional. Uma
das dimensões pertinentes à sua vocação é a vivência do perdão.
Um modo peculiar de fundamentar a vida em Jesus Cristo e, a
exemplo dele, viver o perdão, está no cultivo da espiritualidade. Ele,

146
cativado pela experiência relacional e apaixonada com Deus, procura
viver o perdão, embora, na condição de ser humano, nem sempre con-
siga concretizá-lo.
Fundamentado na experiência de sentir-se amado por Deus é
chamado a seguir o “jeito de viver” de Jesus Cristo. E a vivência do
amor divino expressa-se no perdão a si mesmo e na misericórdia em
relação ao próximo.
O cultivo da vida espiritual é fundamental para o religioso
irmão viver o perdão e a misericórdia. A experiência frequente de
encontro com o coração misericordioso do Filho de Deus motiva-o
a viver com paixão a rotina do dia a dia e lhe oferece condições para
agir com misericórdia e firmeza, especialmente diante dos desafios
e deslizes que a vida oferece.
A profundidade e a consistência da vivência espiritual, capazes
de gerar perdão e fraternidade, dependem do nível pessoal de liber-
dade interior (Gl 5,1.13).
A liberdade interior, caracterizada pela boa capacidade de de-
senvolver lutas espirituais e não tanto pelas lutas humanas, possi-
bilita-lhe a inspirar-se na postura de Jesus Cristo. Assim, ao invés
do individualismo que fundamenta a vida na realização de desejos
pessoais, coloca-se na realidade do outro e com ele estabelece fra-
ternidade; ao invés da indiferença em relação às situações injustas,
empenha-se para que a dignidade do ser humano prevaleça; ao
invés do rancor e da vingança, coloca-se na realidade do outro e
estabelece relações de paz e perdão com ele.
O religioso irmão, quando movido por um coração livre, encon-
tra-se em boas condições de cultivar experiência espiritual genuína e
consistente, possibilitando-lhe assim viver o perdão e a misericórdia,
mesmo em situações que, humanamente, parecem inconcebíveis.

147
Para concluir
A Vida Consagrada é uma história de graça na Igreja e para o
mundo: um dom de Deus Pai à sua Igreja através do Espírito, que
orienta o olhar dos fiéis para o mistério do Reino de Deus, que já
atua na história (VC 1).
A vida dos irmãos religiosos é uma história de salvação a seus
contemporâneos e entre eles. “O que é próprio dos irmãos é o preo-
cupar-se em ser um dom de Deus Pai para aqueles aos quais eles são
enviados. Eles são transmissores do amor que passa do Pai ao Filho e
do Filho a seus irmãos: ‘como o Pai me ama, assim eu os amo. Perma-
neçam no meu amor’ (Jo 15,9)” (CONGREGAÇÃO..., 2016, p. 62).
O perdão enobrece e diviniza a vocação do irmão religioso. Quan-
do decide dedicar a vida ao seguimento de Jesus Cristo e ao bem dos
seus irmãos e irmãs, necessita ter bem presente o fio condutor da his-
tória. O fio que tece sua vida é a experiência de se sentir enviado como
sinal da ternura de Deus e do amor fraterno de Cristo; é o fio que dá
unidade a todas as suas ações e acontecimentos para constituí-los em
história da salvação (CONGREGAÇÃO..., 2016, p. 72).
Maria, a mulher que conheceu a profundidade do mistério de
Deus feito homem, é inspiração e fortaleza da sua vocação. Nela,
tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. Ela,
pelo fato de ter participado intimamente no mistério do seu amor,
entrou no santuário da misericórdia divina: “Como uma verdadeira
mãe, caminha conosco, luta conosco e nos aproxima incessantemen-
te do amor de Deus” (EG 286). O seu cântico de louvor, na casa
de Isabel, foi dedicado à misericórdia que se estende de geração em
geração (Lc 1,50).
Ao pé da cruz, Maria, juntamente com João, é testemunha das
palavras de perdão que saem da boca de Jesus Cristo. O perdão su-
premo, oferecido a quem o crucificou, mostra-nos até onde a miseri-
córdia de Deus pode chegar. Maria atesta que a misericórdia de Deus
não conhece limites e destina-se a todos.

148
Referências
BALDIN, Agostinho. Vidas ofertadas: Irmãos Maristas. Curitiba:
Vicentina, 2000.
CENCINI, Amedeo. A Árvore da Vida. São Paulo: Paulinas, 2007.
BÍBLIA. Bíblia Sagrada. São Paulo: Canção Nova, 2008.
CODINA, Víctor. Sueños de un Viejo Teólogo: una Iglesia en cami-
no. Bilbau: Mensajero, 2017.
COMPÊNDIO do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 2000.
CONGREGAÇÃO para os Institutos de Vida Consagrada e as So-
ciedades de Vida Apostólica. Identidade e Missão do Religioso
Irmão na Igreja. São Paulo: Paulinas, 2016.
FRANCISCO, Papa. A força da vocação. Madrid: Paulinas, 2019.
FRANCISCO, Papa. Misericordiae Vultus. São Paulo: Paulinas,
2015.
FRANCISCO. Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus, 2013.
GONZÁLEZ, Luis. Salud al Perdonar. México: Duruelo, 2010.
GRÜN, Anselm. Perdoa a ti mesmo. Petrópolis: Vozes, 2005.
ILIBAGIZA, Immaculée. Sobrevivi para Contar. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2008.
IMODA, Franco. Psicologia e Mistério: o desenvolvimento huma-
no. São Paulo: Paulinas, 1996.
JOÃO PAULO II, Papa. Christifideles Laici. São Paulo: Paulinas,
2009.
JOÃO PAULO II, Papa. Vita Consecrata. 2. ed. São Paulo: Loyola,
1996.
MADOTT, Bertha. Depressão e Espiritualidade. São Paulo: Pauli-
nas, 2003.

149
MATOS, Luiz Augusto de. Do porto seguro a um tempo de prova-
ção, da incerteza à esperança pascal. In: SUSIN, Luiz C. (org.).
Vida Religiosa Consagrada em processo de transformação. São
Paulo: CRB; Paulinas, 2015.
PAGOLA, José. Lucas: O Caminho Aberto Por Jesus. Petrópolis:
Vozes, 2013.
SARTURI, Otalivio. Livres na Verdade e no Amor. São Paulo: Nel-
pa, 2014.

150
ITINERÁRIO DO IRMÃO EM VISTA DE UM
PROJETO DE VIDA

Rubens Nunes da Mota54

Estas reflexões querem ajudar o irmão consagrado em duas di-


mensões que lhe são muito essenciais para elaboração de um Projeto
de Vida: quem sou, na perspectiva do discernimento vocacional e o
quero fazer ou faço, na dimensão profissional. Estas dimensões devem
caminhar juntas para a realização da pessoa, para contribuição na
Instituição religiosa da qual faz parte, bem como para o as dimen-
sões missionária e social.
Como irmãos somos confrontados o tempo todo entre o ser e
o fazer, ou seja, nossa identidade e nossa contribuição institucional,
eclesial e social. Para tanto é preciso que nos atentemos à nossa base,
nossa história na perspectiva de como fiz e como faço a partir da
trajetória e história de vida. Esta é uma perspectiva de vocação como
construção histórica para nos darmos conta de como estamos geran-
do este ser irmão: isto é Projeto de Vida!

Retomando o ponto de partida


Retomar o ponto de partida, como diz Santa Clara para Santa
Inês, ou amor primeiro, como relata a perspectiva da teologia vo-
cacional, é olhar para as inspirações primeiras com a bagagem que
já adquirimos no itinerário percorrido. A esta mirada reflexiva para
o passado damos o nome de amadurecimento vocacional. Processo
que diz respeito às questões ligadas à história que constituiu a pes-
soa que quer fazer seu discernimento. Contudo este conhecimento
é muito difícil que ocorra de forma isolada ou linear, pois discer-
nimento é um termo que pressupõe confronto de pontos de vista
54 Frade Menor Capuchinho. Bacharel em Teologia. Mestre em Psicologia.
151
diferentes, ou seja, alguém que possa acompanhar, questionando,
apontando, refletindo, enfim, oferecendo elementos para que possa
reconhecer sua vocação.

A necessidade do acompanhamento
É tão necessário o acompanhamento quanto a preparação de
quem acompanha. Por parte de quem exerce o ministério do acom-
panhamento, há uma necessidade de formação que não seja estan-
que, mas permanente. Reflexões que ajudem a acreditar no que fala
e faz, pois deve viver primeiro, perceber-se chamado por Deus, para
assim dar testemunho a quem acompanha. Cada um de nós, irmãos,
deve esperar de quem o acompanha, a capacidade de nos levar ao
encontro conosco e com Deus, despertando assim as motivações ne-
cessárias para se dedicar a uma causa, missão.
Motivação é algo que parte de dentro e tem a ver com o que é
essencial em nossa busca. Nossa grande inspiração, Jesus de Naza-
ré, fez um longo discernimento e buscou respostas nas formas de
vida possíveis em seu tempo, como no grupo de João Batista, por
exemplo, na experiência pessoal com “Abbá” (COSTA, 1999). Sua
motivação veio quando seu itinerário o levou à resposta de que sua
missão seria fazer a vontade do “Abbá”, implantar seu Reino: eis sua
motivação. Este texto não vai dar respostas sobre a motivação pessoal
de cada um, pois não as tenho, mas sim ajudar no levantamento de
algumas reflexões que possam ajudar, tanto na desconstrução do que
lhe atrapalha, quanto na construção do que venha ajudá-la em seu
discernimento diante de suas buscas.

Processo para o discernimento


A palavra “processo” tem significado especial no discernimento,
pois diz respeito ao desdobramento de uma caminhada que implica
na história de vida, seus limites, fragilidades e potenciais, virtudes.

152
Ter atenção ao processo é valorizar a história de vida com suas
implicações. A atenção à história não é para se ater aos aspectos ne-
gativos ocorridos. Tais aspectos, se ocorreram, fazem parte da tra-
jetória, podendo influenciar, mas não o definir o destino, caso não
se permita. Se houver influencia demasiada pode significar poder
exagerado que foi atribuído ao evento ou alguma patologia capaz de
enclausurar a pessoa, mas pensemos que seremos mais fortes que os
erros e falhas. Revisar a história de vida é então, observar o caminho
percorrido para aprender e inspirar o presente, impulsionando para
o futuro que se quer construir.
Não basta revisar os acontecimentos passados, pois a palavra
processo implica ainda em assumir e ser protagonista da própria his-
tória. É assumindo minha história, como ela foi e é, com seus erros
e acertos, não fantasiando como eu gostaria que ela fosse, que terei
como ressignificá-la e impulsionar minha vida para o projeto que
desejo assumir.
Percorrer esse caminho não é simples, pois os valores e contra
valores que são construídos ao longo desse percurso podem fazer
com que eu tenha dificuldades de perceber a minha história e, prin-
cipalmente eu, como co-construtor desse edifício. Se pararmos aí
não passaremos de condenadores de pessoas e de eventos que “atra-
palharam” nossas vidas, ou vitimizadores com posturas de “coitadi-
nhos”. É preciso ir além, para não repetir a história como foi, mas
questioná-la e enriquecê-la.
Para tanto é preciso aprender com o processo percorrido para
viver o presente contextualizado, consciente das interferências do
sistema, me percebendo, quais as motivações que vou tendo para
acertar em minha vocação, em meu Projeto de Vida.

Motivações vocacionais
Para chegarmos à sistematização de um itinerário que leve à vi-
vência de um Projeto de Vida, proponho revisarmos as inspirações
primeiras pelas quais nos consagramos. A reflexão feita acima sobre
153
o processo histórico ajuda a perceber as reais motivações vocacionais.
Na mesma lógica até agora insistida, a saber, perceber as motivações,
não como critério excludente, mas a partir de elementos que podem
ajudar no processo de reflexão e maturação vocacional.
Há uma diferença entre motivação vocacional, fuga ou compen-
sação. A motivação inicial pode ser um sinal que, aparentemente, é
equivocado. Por exemplo: um jovem que queira ser religioso por ter
se encantado pelo hábito de um religioso e se sinta atraído por este
“sinal”. Ao ingressar na congregação, não é exatamente um proble-
ma ter tido este sinal. Mas o processo formativo deve levar além.
Caso não haja alteração motivacional, será preciso verificar como
está acontecendo a formação nas etapas formativas, pois permane-
cendo a mesma motivação, deve-se questionar o esquema formativo
ou a estrutura da pessoa e suas buscas. O que impulsiona é o desejo
de alcançar aquele sinal/ideal/sagrado. Não seria diferente de um
jovem que comece a namorar uma menina pelo encantamento com
seu sorriso. Se ficar somente nisto, quando aparecerem os primeiros
conflitos, a fantasia acabará. Quanto às buscas, que têm a fuga ou
compensação como motivações, já existe um aspecto complicador
para o discernimento, pois estes são mecanismos que motivam pelo
aspecto negativo, como por exemplo: um jovem que quer entrar na
instituição religiosa porque nunca deu certo em seus relacionamen-
tos afetivos ou porque não tinha estabilidade profissional. O im-
pulso que motiva é o que não está dando certo para busca de outra
possibilidade (tentativa de acerto). Obviamente devemos considerar
a graça de Deus nestes diversos chamados, pois há uma perspectiva
de que “Deus capacita os chamados e não somente chama os capaci-
tados”, bem como “escreve certo por linhas tortas”.
Mesmo considerando o chamado divino, é importante perce-
ber se a motivação é fuga de situação negativa ou chamado para
um ideal, justamente para discernir o itinerário vocacional que deve
levar ao verdadeiro chamado de Deus e a missão. Neste processo é
importante que o acompanhamento leve em consideração a dimen-
são de metanoia (COSTA, 1999), conversão, como processo diário
de mudança e aprendizado. As perguntas: o que devo deixar por não
154
estar me ajudando? E o que quero assumir neste caminho? Obter
uma resposta consistente sobre o que se pretende assumir pode, não
somente revelar a motivação que move para um verdadeiro projeto,
como possibilitar a tomada de consciência do ideal que se busca.
Este ideal é maior do que o projeto e diz respeito à emergência vo-
cacional (MOTA, 2011) que deve conduzir ao seu propósito último,
que é Deus. Mesmo que o percurso possibilite outras direções, este
ideal pautado na fidelidade ao projeto de Deus não pode ser traído,
sob o risco de trair-se, abrindo uma brecha para o distanciamento
do Reinar do Abbá instalado por Jesus Cristo. Ter atenção às moti-
vações primeiras é conjugar a história vivida com a atuação de Deus
em toda ela. É encorajar-se para perceber as armadilhas do sistema,
porém não ficar refém delas, vitimando-se em uma zona de conforto
que instala em lugares, funções e serviços. Ao contrário, é assumindo
o protagonismo que tem a ver com o dom dado por Deus, que este
carisma pede sua multiplicação, seu anúncio e evangelização.

Aspectos profissionais dentro do Projeto de Vida


Como irmãos consagrados devemos cuidar não somente de
nossa opção vocacional, mas também refletir sobre nossa dimensão
profissional como parte integrante do Projeto de Vida. Para tanto, é
necessário observar os cuidados internos, ou seja, para não cairmos
nas armadilhas de experiências mal trabalhadas em relação à minha
história de vida, ou cuidados externos, para simplesmente atender às
expectativas institucionais ou necessidades do mercado.

Edificando o caminho
A descoberta para o caminho profissional, como o caminho voca-
cional em geral, pressupõe o autoconhecimento e um bom discerni-
mento capaz de verificar a devida convicção diante do leque de opções
que aparecem. São muitos os atrativos que compõem este leque, da
aptidão às necessidades financeiras. Na perspectiva cristã é necessário
compreender a dimensão profissional como parte da missão que deve
155
guiar cada pessoa em vista do bem para o outro. Este caminho deve
considerar a realização pessoal e o sentido de servir socialmente, ou
seja, a realização pessoal deve caminhar junto com a doação, a mútua
ajuda e às necessidades da instituição religiosa e da missão em geral.
Este caminho não é simples, por isso se faz necessário compar-
tilhá-lo. Obviamente não se deve expor para qualquer pessoa seus
sonhos e projetos, pois como disse Jesus, um cego não guia outro
cego. Pode-se compartilhar com um confrade experiente, com um
profissional, no caso, psicólogo, que além do autoconhecimento
pode ajudar com testes vocacionais para apontar as áreas profissio-
nais de maior afinidade, ou com um leigo ou leiga com bom nível de
maturidade, religioso/a de outra congregação, padre, enfim, alguém
de confiança e com uma caminhada mais consistente.
Para o acompanhamento em vista do itinerário de vida é importan-
te conhecer sua história de vida, buscar uma caminhada amadurecida,
ou seja, assimilar as dimensões do que pensa, fala e faz para a busca de
um equilíbrio, compreendendo os registros e marcas na história de vida.
Também é necessário um olhar na história e na ação divina dentro da
trajetória percorrida, procurando perceber a ação de Deus em toda a jor-
nada. Assim haverá uma busca pelo protagonismo, porém considerando
a ação de Deus e o chamado que se dá neste percurso.
É bom ter presente que quem acompanha deve ser um facilitador
ou facilitadora, ajudando a perceber o caminho que está fazendo e
como Deus foi e vai atuando junto. É comum que, ao dar estes passos,
a pessoa vai se dando conta das amarras que travam o processo e das
luzes que vão aparecendo. A tomada de consciência normalmente leva
à melhor percepção sobre os caminhos de identificação por áreas liga-
das ao mundo do trabalho. É importante se dar conta de cada uma das
identificações para chegar ao discernimento profissional.
Este discernimento que busca identificar na história e nas rela-
ções interpessoais qual sua profissão, não é simples. Muitas vezes exi-
ge uma equipe interdisciplinar, especialmente se o religioso estiver na
formação inicial. A indicação do envolvimento de outras pessoas não
quer ser um complicador para quem não consegue fazê-lo (questões
156
financeiras ou recursos humanos). Ao contrário, um facilitador pode
evitar equívocos e frustrações. Existem recursos naturais a serem ad-
quiridos que possibilitam um acompanhamento e que facilitam o
discernimento, tais como o exercício da escuta atenta e respeitosa,
leitura de livros, tempos de retiro, etc. As aptidões estão ligadas ao
carisma, dom de Deus e por isso é mais bem discernido dentro da
comunidade, diante da diversidade, na convivência, ação e oração.

Estabelecer prioridades
Após considerar a história pessoal e relações que estabelecemos,
é necessário um bom nível de percepção do todo para reorganizar os
dados, ou seja, olharmos o que fazemos diante do que queremos para
nossa vida profissional e vocacional em geral. A isso podemos chamar
de hierarquia de valores. Para facilitar a visualização sugiro o seguinte
exercício: 1) Desenhar um círculo que será conhecido como pizza;
recortar esta pizza em fatias de acordo com as seguintes atividades:
vida de oração e espiritualidade; vida comunitária/fraterna; trabalho;
namoro; estudos/leituras; sono; TV; Computador/Internet; refeições;
lazer/descanso; família de origem; comunidade/pastoral; amizades, etc
(Obs.: cada fatia deverá representar um lado da sua vida atual). A lar-
gura de cada fatia da pizza será proporcional ao de tempo dedicado a
cada lado da vida, atualmente. 2) Para cada fatia da pizza, coloque “+”
se você está contente com o modo como você tem vivido este lado da
vida ou coloque “–“ se você está insatisfeito ou “+-“ se você está mais
ou menos satisfeito. 3) Avalie o que está faltando para deixar você mais
feliz com os lados da vida em que você assinalou “–“ ou “+-“Diante
desta pizza, você deve estabelecer prioridades e se perguntar: Por onde
e quando começar a melhorar o que não está bom?

Refletindo sobre a sistematização do Projeto de Vida


Ao chegarmos neste último ponto de reflexão sobre o projeto,
supomos que o religioso, em nosso caso, irmãos consagrados, foi
sendo edificado, configurado, enfim, fomos nos fazendo frades a

157
partir das experiências que fizemos nas etapas de formação. Enten-
demos que uma etapa bem vivenciada ajuda a vivenciar as demais.
Sendo assim, é necessário se perguntar:
–– O que me marcou no acompanhamento em tempos de dis-
cernimento vocacional (sentimentos sobre o que me trouxe)?
–– Quais as contribuições nas etapas iniciais de formação (o que
ficou – pontos que mais marcaram)?
Em que momento/estágio de minha VIDA e de minha VO-
CAÇÃO me encontro hoje? (sentimentos sobre o que me mantém
– buscando situar-me para elaborar/ ou reelaborar o Projeto com
maior solidez e realismo).
Estas questões têm a ver com o itinerário percorrido e impli-
cam diretamente na elaboração do Projeto, pois somos frutos de um
construto social, onde influenciamos e sofremos influência do pro-
cesso pelo qual passamos. Outros aspectos de nossa opção apontam
para um ideal de Vida Consagrada, que deve ser co-construída, pres-
supondo a contribuição do carisma de quem está entrando na con-
gregação, que abrange diversos aspectos que podem ser considerados
a partir das seguintes questões:
Vida em fraternidade/convivência:
–– Como pretendo ajudar na construção desse sonho, especial-
mente da vida fraterna/comunitária diariamente?
–– Sou único e tenho um carisma próprio, porém encontro ca-
rismas na Instituição: Como ser um Dom na vida das pessoas
com quem convivo?
2) Vida em Oração:
–– Como darei continuidade ao cultivo da experiência de Deus
que foi despertada em mim?
–– Como pretendo ajudar para que os momentos de oração fra-
terna/comunitária sejam mais ricos e proporcionem experi-
ências fortes de Deus e da Fé?

158
Vida missionária/profissional/estudos:
Como pretendo viver minha consagração? Devo aprofundar
minha opção com a seguinte pergunta: quais as motivações que me
levaram à essa opção!
–– No campo profissional: quais as motivações para cursar
uma faculdade ou curso profissionalizante? Pretendo fazer
um curso profissionalizante? Com qual área profissional me
identifico? Qual a aplicação e importância desse curso para
mim e para instituição da qual faço parte? Como ser Dom na
instituição e para o povo de Deus?
Essa terceira etapa deve ter uma ressonância entre os carismas
pessoal e institucional. Para não ter um caráter rígido de um projeto
fechado, é bom que se manifeste flexibilidade, tanto para possíveis
mudanças nas concepções pessoais, quanto para sugestões que dizem
respeito à realidade da Congregação/Instituição.
Uma questão que deve ser levada em conta em vista do mundo
profissional é verificar se, além de ser um bom profissional, como
está a vivência do carisma na fraternidade. É comum que alguns
confrades se tornem ótimos executores de tarefas, bons profissionais,
assessores, professores, etc e se distanciem da vida fraterna, do ideal
da vida religiosa. Assim a profissão terá uma conotação mais de fuga
de casa do que de realização vocacional.

Considerações finais
Para um itinerário e Projeto de Vida consistente, é importante
criar uma estrutura afetiva e efetiva, sendo critérios afetivos de forma
sadia e efetivos na execução. O Itinerário deve avaliar a maturidade
relacional, a sã compreensão e aceitação da história de vida de cada
irmão, para isso oferecidos vários elementos em busca deste equilí-
brio no caminho e execução na sistematização. Ao tratamos sobre a
atenção para com as motivações que trazemos, buscamos a saúde e
vigor do itinerário, querendo salvar a integridade do irmão, evitando

159
rótulos. O êxito dependerá de critérios e atitudes na execução e na
adaptação em cada pessoa e de sua instituição.
Para dar esta consistência ao itinerário, o irmão deve ser dinâmi-
co, cuidar da constância e disciplina, buscando a ética e a correspon-
sabilidade, bem como evitando reducionismos. Se houver um bom
processo, será possível fazer um bom discernimento, bem como sal-
var os sonhos despertados no ponto de partida ou no amor primeiro.

Referências
COSTA, João R. Abbá! Pai! O Deus de Jesus é diferente. São Pau-
lo, Loyola, 1999.
MOTA, Rubens N. Formação, desafios do Itinerário. Porto Ale-
gre, ESTEF, 2019.

160
O JUNIORATO E O RELIGIOSO IRMÃO:
Intuições sobre um caminho de
formação personalizada

Edimar Fernando Moreira, Carmelita55

A Vida Religiosa Consagrada (VRC) é um dom do Espírito San-


to à Igreja que está no mundo. Ela quer ser testemunho de Cristo
pobre, casto e obediente. O consagrado é aquele que busca colher os
frutos mais abundantes da consagração batismal (LG 44). O itine-
rário formativo dele será um caminho de configuração a Cristo, que
levará toda a vida. Durante a formação inicial, o candidato receberá
uma base mais sistematizada daquilo que pretende viver. O junio-
rato, sobretudo, será o momento em que o religioso recolherá os
frutos das etapas precedentes e prosseguirá seu crescimento huma-
no e espiritual animado pela prática daquilo a que se comprometeu
(CONGREGAÇÃO..., n. 59).
Muitas vezes, infelizmente, na execução do programa formativo
nas comunidades religiosas masculinas, se projeta no formando um
aporte clerical. O ministério presbiteral torna-se o parâmetro para
sua formação religiosa. Isso ocorre em muitas das congregações cha-
madas mistas. São aquelas que, no projeto originário, se apresenta-
vam como fraternidade sem distinção entre os religiosos presbíteros
e os religiosos leigos, mas, com o passar do tempo adquiriram uma
fisionomia diversa (VC, 61).
A Ordem do Carmo, por exemplo, surgiu a partir de um grupo
de irmãos leigos e foi, pouco a pouco, se clericalizando. Na mensa-

55 Frei Carmelita. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia, Especialista


em Espiritualidade Franciscana e Formação Humana. Professor na FACASC
de Florianópolis e formador no Comissariado Geral dos Carmelitas do Paraná.
Contato: edimar_fernando@yahoo.com.br
161
gem final da Congregação Geral da Ordem, de 1974, declarou-se
que: “embora recordando com gratidão os nossos educadores, reco-
nhecemos que na maioria dos casos fomos educados para sermos sa-
cerdotes mais do que religiosos [...]. Com efeito, até agora, constitu-
ímos mais uma Ordem de padres do que de frades, isto é, de irmãos”
(A fraternidade..., p. 50). Ainda recordo ver escrito na porta da tra-
dicional e famosa “Kombi” do seminário: “Padres Carmelitas”. Não
se tinha uma preocupação em se fazer alusão à vocação do irmão.
O recente folheto vocacional dos frades do Comissariado Geral
dos Carmelitas do Paraná buscou esclarecer um pouco melhor sobre a
nossa vida, definindo quem são os frades nesses termos: “são homens
que consagram suas vidas a Deus através de três votos ou conselhos
evangélicos: pobreza, castidade e obediência. Vivendo todos como
irmãos, esses frades, ou freis, exercem seus trabalhos apostólicos em
diversas áreas. Dentre eles, no serviço ao Povo de Deus, há aqueles que
são denominados irmãos e que desempenham atividades eclesiais ou
profissionais diversas e aqueles que são ordenados padres e que exer-
cem, principalmente, as atividades próprias do ministério presbiteral”.
A Igreja semper reformanda nos interpela a atentarmo-nos às
atualizações necessárias para um melhor aproveitamento na forma-
ção dos jovens que buscam na VRC como um meio para realizar a
missão de Cristo no mundo. Esse ensaio quer compartilhar algumas
intuições sobre a vocação do religioso irmão e da experiência sobre a
etapa do juniorato que tem sido feita por uma porção dos junioristas
carmelitas do Brasil.
Sem pretender oferecer uma última palavra, busca-se apresentar
um caminho que está sendo percorrido no Comissariado Geral dos
Carmelitas do Paraná. O objetivo é ponderar sobre o processo for-
mativo dos junioristas que optam por assumir a vocação de religioso
irmão em comunidades mistas. Para isso, primeiro, vamos elucidar
nuances sobre o processo de decisão do formando. Segundo, assina-
lar a pertinência da formação teológica para a VRC. Por fim, refletir
as possibilidades profissionais, abertas durante o processo formativo.
162
O processo de decisão
Certa vez perguntei a um irmão carmelita americano, formador
no postulantado, sobre como ele lidava com a formação dos candi-
datos, uma vez que poderiam eles desejar ser presbíteros ou irmãos.
Nunca esqueci sua resposta: “eu não os formo para serem irmãos ou
presbíteros, mas para serem carmelitas”. Claro que todos os carmeli-
tas são irmãos em sentido amplo e pleno. Porém, conversávamos so-
bre aqueles que assumirão tal ministério em sua especificidade. Sua
resposta deixou claro sobre a prioridade que os valores da consagra-
ção religiosa e do carisma em si devem ter na formação para a VRC.
Definimos assim, no programa de formação do Comissariado
Geral dos Carmelitas do Paraná, recentemente atualizado: “durante
o noviciado, o candidato expressará, ainda que não necessariamente
de modo definitivo, se pretende assumir futuramente seu propósi-
to ministerial na Ordem como irmão, assumindo alguma profissão
ou serviço específico, ou como presbítero. A partir disso e do dis-
cernimento da equipe de formadores, se sistematizarão os estudos
em nível técnico de cada um” (COMISSARIADO..., 2019). Por
ora, acreditamos ser essa a melhor decisão a ser tomada. Em algum
momento da formação será necessário que se projete o futuro do
formando em vista do ministério que assumirá. O momento certo
em que essa decisão deve ser tomada pode gerar questionamentos.
Primeiro, será que o candidato teve o tempo necessário e tem
a maturidade suficiente para refletir tal matéria? O nosso progra-
ma prevê um postulantado com duração entre um e dois anos e o
noviciado de um ano. Será que ele está preparado para tal decisão?
Segundo, será que a própria instituição não poderá gerar, no grupo,
um senso de separação entre aqueles que são candidatos a servirem
como irmãos leigos e os ordenados? Parece que não são todas as
congregações que estão preparadas para esse acompanhamento mais
personalizado, sobretudo quando o candidato se sente chamado a
ser irmão. O que deveria ser mais comum na VRC – ser irmão ou
irmã –, aparece muitas vezes como algo estranho à caminhada.
163
Para todos os efeitos, é sempre salutar que a equipe de formadores
ajude o formando a perscrutar uma resposta aos seguintes questiona-
mentos: “por que almejo ser um religioso irmão?” ou “por que almejo
ser um religioso presbítero?” É tão impregnada, por vezes, a noção
que o “normal” é ser ordenado, que, de saída, já se assume que todos
almejam o mesmo caminho. Muitas vezes, nem a própria congregação
pergunta o porquê de o candidato querer ser ordenado. Esse é um in-
dício negativo, de como tal instituição reduz seu ministério às funções
clericais. A partir de uma teologia da VRC adequada, essa pergunta
é imprescindível. É sempre conveniente a pessoa ter chance de puri-
ficar suas motivações, sejam elas quais forem. Contudo, não se pode
desconsiderar que, em muitos casos, o candidato à vocação de irmão
encontra uma maior resistência por conta de sua opção, seja por parte
de seus colegas de formação, seja por parte dos frades.
Em algum momento, a congregação precisa discernir com o
candidato como ele poderá ajudar na missão da mesma, qual o espa-
ço que ele irá assumir no projeto global. Sem desconsiderar a centra-
lidade da dimensão da consagração - isto é, do ser -, a dimensão la-
boral ou ministerial - isto é, do fazer -, também deve ser considerada.
A formação precisa estar preparada para acompanhar o formando
em todas as suas dimensões. A formação personalizada tornará esse
processo tranquilo e profícuo.
Em todo caso, voltando ao programa de formação do Comissa-
riado dos Carmelitas, é a partir da resposta do candidato, em sintonia
com o acompanhamento do seu mestre e da equipe de formadores,
que se tem traçado um pouco da formação acadêmica do candidato
que deverá, ao término do noviciado, professar os votos. Em nosso
caso, estabelecemos que nos três primeiros anos, o juniorista residirá
em uma casa comum a todos os que estão em semelhante situação,
independente da formação acadêmica à qual se dedicará.
Sobre a moradia, soube, certa vez, de uma província que assiste
um crescimento expressivo no número de seus candidatos à vocação
de irmão ventilar a possibilidade em se ter uma casa exclusivamente
para irmãos. Considero essa alternativa um perigo. A intensão pa-
164
recia reta, pois facilitaria o convívio dos membros da comunidade
no tocante aos horários, bem como em uma atenção voltada para as
especificidades dessa vocação com tal.
Contudo, o convívio diário entre aqueles que futuramente teriam
ministérios diferentes ficaria comprometido, acendendo um alerta so-
bre a questão da comunhão. Acredito que, a despeito dos desafios que
surgem, o melhor é que convivam juntos tanto quanto possível. O
questionamento, na verdade, é o quanto somos capazes de pensar um
processo de formação no qual não estão todos fazendo a mesma coisa
ao mesmo tempo, mas que é personalizado, levando em consideração
a realidade e o processo de cada um. Ademais, ajudará na compre-
ensão de que, na VRC, mesmo o presbítero deve assumir como sua
primeira vocação a vivência comunitária como um entre irmãos.
Passado o período inicial, afirma a Ratio Institutionis Vitae Car-
melitanae (RIVC), que orienta o processo formativo da Ordem do
Carmo, “todo candidato tem de ser preparado adequadamente com
os conhecimentos de tipo teórico e as competências de ordem práti-
ca necessárias para o seu serviço específico, em estreita relação com a
espiritualidade e o estilo de vida carmelitanas” (RIVC 120). Por isso,
evitar-se-á desnaturalizar a dignidade da vocação religiosa para além
do seu vínculo com algum ministério ou serviço (RIVC 121).
Para a preparação científica e técnica em vista dos ministérios, no
geral, definimos que todos tenham acesso a dois cursos universitários
ou de semelhante valor, sendo pelo menos um deles na área teológica.
Para aqueles que já possuem uma graduação e pretendem servir como
presbíteros, observar-se-á o que pede a Igreja: cursar matérias especí-
ficas do curso de filosofia e o curso completo de teologia (CIC, 250).
No caso de irmãos, será averiguado caso a caso. O que ficou estabele-
cido de principal é que todos devem fazer estudos teológicos.

O estudo da Teologia
Hoje, há uma ênfase no estudo da teologia que se manifesta
tanto quantitativa quanto qualitativamente no Brasil. No primeiro
165
sentido, vê-se um aumento estatístico da procura de cursos por lei-
gos e leigas e da disponibilidade de formações em variados níveis.
No segundo sentido, observa-se um deslocamento do interesse da
teologia, transferindo-se da mão de clérigos para as de leigos e leigas.
Antes era um patrimônio quase exclusivo do clero. A pastoral mesma
vai exigindo do cristão hodierno um maior preparo, antes de tudo
a respeito de sua própria fé (LIBANIO; MURAD, 2011, p. 25-30).
O téologo busca “dar razões de sua fé” (1Pd 3,15). Na compreen-
são de Santo Anselmo, fides quaerens intellectum (2008, p. 8). Por isso,
aquele que se coloca no caminho teológico não quer fazer um estudo
de Deus, mas aprofundar, justificar, esclarecer o ato de fé. Assim, “a te-
ologia define-se como reflexão crítica, sistemática sobre a inteleção de
fé” (LIBANIO; MURAD, 2011, p. 61). Nesse contexto, “o teólogo,
mais que um ativo perscrutador de Deus, é alguém que se sente cap-
turado por Ele” (LIBANIO; MURAD, 2011, p. 55). É fundamental
também aos irmãos aprofundarem sua fé por meio do estudo da teolo-
gia. Certamente, não é um estudo sistemático que garante a plenitude
de realização vocacional, mas, o conhecimento científico pode fazer
evitar grandes distorções que a desinformação pode ocasionar.
Os irmãos nem sempre são bem compreendidos em sua vocação
e missão na Igreja. Atribuímos essa incompreensão, principalmen-
te, à ausência de uma adequada visão teológica da VRC. Segundo
Ciardi, uma assembleia da Congregação para os Religiosos e Institu-
tos Seculares (CRIS), hoje Congregação para os Institutos de Vida
Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, em 1986, ponderou
que “existe uma problemática própria do religioso leigo que tem suas
raízes numa falta de visão teológica aprofundada, numa definição
não clara do tipo de presença eclesial, dentro de uma deficiente valo-
rização” (CIARDI, 1994, P. 135)56.
Nesse sentido, de um lado, alerta o documento Irmãos nos Institu-
tos Religiosos Leigos, estão os próprios irmãos que, em muitas ocasiões,
se mostram mais preocupados em defender tal modo de vida do que
56 Para o que segue, conferir o conteúdo foi desenvolvido em: MOREIRA,
Edimar. Simplesmente irmão: um olhar sobre a vocação do irmão na Igreja”.
São Paulo: Loyola, 2019. P. 241.
166
aprofundar seu conteúdo. De outro, há muitos que consideram os
irmãos a partir de uma situação híbrida, como pessoas situadas no
meio do caminho, incompletas, já que não são nem seculares nem or-
denados (COMISSÃO..., 1991, p. 12-13). Atribuímos isso à ausência
de uma adequada formação e compreensão teológica do que é a VRC.
Essa incompreensão teológica da VRC pode comprometer toda
a vivência e missão dos religiosos na Igreja. A própria necessidade de
defender o modo de vida do irmão, inclusive dentro da própria VRC,
já revela uma lacuna na formação religiosa como um todo. Para ilus-
trar essa situação, encontramos facilmente muitos irmãos aptos a dar
exemplos de situações em que tiveram sua vocação questionada por
toda sorte de fiéis na Igreja, inclusive bispos, religiosos presbíteros e re-
ligiosas. Só o questionamento desses já parece indicar uma incompre-
ensão da própria vocação que cada um deles assumiu na vida eclesial.
Por isso, o documento Identidade e missão do religioso irmão na
Igreja insistirá que toda a VRC é convidada a desenvolver uma reflexão
em profundidade sobre o modo de vida do irmão na Igreja. Como
pressuposto, solicita que essa reflexão se inspire “na eclesiologia e na
espiritualidade de comunhão, fundamento do estilo de vida religiosa,
que se desenvolveu na Igreja nos últimos séculos sob a forma de frater-
nidades de serviço” (CONGREGAÇÃO..., 2016, 39c). Nessa escola
de comunhão, importa que cada um tenha consciência de seu lugar e
missão na Igreja. Para isso, além de uma vivência concreta da espiritu-
alidade cristã, ajudará uma formação teológica consistente.
Deve ser oferecida ao irmão a oportunidade de se formar teolo-
gicamente. Nesse sentido, “um estudo adequado da eclesiologia de
comunhão irá ajudá-lo a relacionar-se com as pessoas que seguem
as diversas formas de vida com as quais articula-se a vida eclesial”.
Por isso, “a intuição teológica carismática que fundamenta sua voca-
ção deve estar muito presente no início da formação inicial” (CON-
GREGAÇÃO..., 2016, 34).
A preocupação por uma reflexão teológica no programa de for-
mação tem sido cada vez mais difundida. O documento expressa sua
preocupação a esse respeito:
167
A teologia da vida consagrada é chamada a desenvolver uma reflexão em
profundidade, especialmente pelos próprios Institutos de irmãos, sobre
a vida religiosa destes. Essa reflexão inspirar-se-á na eclesiologia e na
espiritualidade de comunhão, fundamento do estilo de vida religiosa, que
se desenvolveu na Igreja nos últimos séculos sob a forma de fraternidades
de serviço (CONGREGAÇÃO, 2016, 39).
A ausência de uma formação teológica consistente na VRC pode
gerar falta de clareza na identidade religiosa dos irmãos. Isso pode
levar ao esvaziamento de sentido de sua orientação religiosa, numa
vida baseada apenas no seu fazer profissional. A formação inicial
deve estar atenta a esses riscos. Além disso, é preciso haver paridade
de compreensão da comunhão. Por óbvio que pareça, vale recor-
dar que os irmãos nas congregações mistas não farão comunhão se
os ordenados também não se empenharem, tanto intelectualmente,
quanto pela prática, nesse sentido.
Sobre a formação teológica durante o juniorato, o documento
com as Orientações sobre a formação nos institutos religiosos afirma que
“no programa de estudos devem figurar em lugar importante a teolo-
gia bíblica, dogmática, espiritual e pastoral, e, em particular, o apro-
fundamento doutrinal da vida consagrada e do carisma do instituto”.
Para seu bom êxito, “ter-se-á cuidado de dar, de maneira adaptada,
uma formação filosófica de base que permita adquirir um conheci-
mento de Deus e uma visão cristã de mundo em estreita conexão com
as questões debatidas no nosso tempo, que faça ressaltar a harmonia
que existe entre o saber da razão e o da fé para a busca da única verda-
de” (n. 61). Nesse sentido, será oportuno priorizar cursos de teologia
que comportem ao menos algumas disciplinas de Filosofia.
Contudo, também não se trata apenas de estudar teologia. É
preciso perguntar: que teologia? A maioria das faculdades está volta-
da para pensar pastoralmente na formação de presbíteros, inclusive
vários desses que estão inseridos nesse contexto, acabam fazendo o
curso por mera obrigação. Libanio e Murad (2011, p. 55) afirmam
que a motivação e a intencionalidade tanto do aluno quanto do pro-
fessor é que garantirá um resultado significativo do estudo da teolo-
gia. Por isso, a abertura para ampliar horizontes de conhecimento e
168
a dedicação no estudo são fundamentais por parte dos irmãos. Con-
tudo, não se pode ignorar que a própria linguagem do curso e dos
professores ou professoras pode dar um enfoque que pouco valorize
a diversidade de serviços e carismas na Igreja. A presença de leigos
em uma turma teológica, por sua vez, já surge como um elemento
positivo para superar visões clericalistas que, infelizmente, ainda po-
dem pairar sobre a Teologia.
O religioso que tem acesso a uma formação teológica consisten-
te e que se deixou transformar por ela, provavelmente terá maior ma-
turidade diante do caminho profissional que escolher. Encontrará,
nessa sua atividade, um caminho de viver sua consagração também
por meio do trabalho. Por isso a necessidade de haver também uma
formação profissional para os irmãos.

Preparação para a vida profissional


O trabalho perpassa a vida de todo ser humano. Perfectae Cari-
tatis coloca a dimensão laboral como um dos elementos para a refor-
ma e atualização da vida comum: “para que seja mais íntimo o vín-
culo da fraternidade entre os religiosos, aqueles que se dão o nome
de irmãos conversos, coadjutores, etc., estejam estreitamente unidos
à vida e aos trabalhos da comunidade” (PC 15). O trabalho oferece
à pessoa também um senso de dignidade e de corresponsabilidade.
São Francisco de Assis exerceu e incentivou tanto o trabalho
apostólico como manual. Em suas palavras,
...eu trabalhava com minhas mãos e quero trabalhar. E quero firmemente
que todos os outros irmãos se ocupem num trabalho honesto. E os que não
souberem trabalhar, o aprendam, não por interesse de receber salário do
trabalho, mas por causa do bom exemplo, e para afastar a ociosidade. E se
acaso não nos pagarem pelo trabalho, vamos recorrer à mesa do Senhor, e
pedir esmola de porta em porta (Testamento, 5).
Nesse sentido, Francisco concorda que os frades que podem tra-
balhar, devem fazê-lo. Contudo, sobre o tipo de atividade, demonstra
preocupação para que o trabalho não tire deles o caráter de seguidores
de Cristo pobre e despojado (Rnb, 7,2).
169
Ajudar o juniorista a percorrer esse caminho é fundamental. A
sabedoria conciliar explicitou que a renovação das congregações de-
pende da formação de seus membros. Nesse sentido, ela pede que:
“não se destinem às obras de apostolado imediatamente depois do
noviciado os religiosos não clérigos e as religiosas, mas prolongue-se
convenientemente, em casas aptas, a sua formação religiosa e apos-
tólica, doutrinal e técnica, sem excluir até a consecução de títulos
convenientes” (PC 18).
A formação para o serviço não pode ser compreendida mera-
mente como uma fase da formação, mas como uma dimensão que
reveste todas as fases. Nesse sentido, as responsabilidades que já têm
sido gradativamente experienciadas desde o início do processo for-
mativo, tomam rostos ainda mais relevantes no contexto do junio-
rato (RIVC 114). Quem foi confiável no pouco, será confiável no
muito (Lc 10,16). A congregação deve favorecer tanto quanto pos-
sível o acesso aos meios para que a pessoa realize seu ministério, seja
qual for, da melhor maneira possível.
A escolha de uma carreira profissional a seguir, por sua vez, não é
algo simples. No caso de um juniorista, será preciso conciliar aptidões
pessoais com o carisma e os projetos comunitários da congregação.
É uma decisão que precisa diálogo e sinceridade. O trabalho é algo
importante para a VRC. Ele está vinculado ao voto de pobreza. Cada
um, a partir de seu ofício, deve se sentir sujeitos à lei do trabalho e
confiante na Providência Divina (PC 13). No geral, na VRC, os tra-
balhos podem ser de caráter mais interno ou de caráter mais externo.
Para Antoniazzi (1977, p. 36-37), no número das diversas ati-
vidades exercidas pelos membros da Igreja (1 Cor 12,28-30), há al-
gumas que são ocasionais e espontâneas e, outras, permanentes e,
por isso, reguladas por certas normas e tradições. Nesse sentido, po-
demos classificar o serviço do cristão em três níveis: ministérios em
sentido mais amplo, ministérios instituídos e ministérios ordenados.
O ministério do irmão estaria nos dois primeiros níveis.
Ministério, num sentido mais amplo, pode ser compreendido
como “toda atividade a serviço do Evangelho no mundo ou da edi-
170
ficação da comunidade cristã; todos os cristãos, neste sentido, são
chamados a exercer um ministério” (ANTONIAZZI, 1977, p. 36).
Ele pode ser expresso tanto por sua condição, quanto por uma ativi-
dade profissional. No caso do irmão, por exemplo, sua consagração
foi ratificada publicamente e aceita pela Igreja. Sua conduta se situa
a partir de um sistema de vida aprovado pela Igreja e com finalidade
de serviço na mesma. Seu ministério, então, estará vinculado à natu-
reza da congregação a qual pertence. Acrescente-se a essa perspectiva,
a possibilidade de uma atividade profissional.
Muitos irmãos assumem uma profissão, simples ou complexa,
cuja repercussão se dá no meio secular. Aqui, “a motivação vocacio-
nal toma o ser mais profundo da pessoa e a profissão ou ocupação
realizada representa a encarnação concreta da consagração. A voca-
ção, ao proceder do Espírito, é criativa por si mesma e condiciona
a modalidade do trabalho que se realiza. Todo trabalho profissional
no religioso leigo deveria ser consequência do alento vocacional ou
carisma...” (PUJOL I BARDOLET, 1989, p. 440-441). A ligação da
dimensão profissional com a consagração permite dizer que, mesmo
que o irmão, por quaisquer razões, como saúde ou idade, não puder
exercer um ofício profissional, ainda assim é convidado a viver a
dimensão da diaconia, enraizada nos valores cristãos (CONGRE-
GAÇÃO, 2016, p. 31).
Num sentido mais estrito, ministério é entendido como “aque-
las tarefas que uma pessoa assume em nome e por mandato da co-
munidade ou que, pelo menos, a comunidade cristã reconhece de
algum modo como ‘serviços’ que lhe são prestados” (ANTONIA-
ZZI, 1977, p. 36). Entre eles, há aqueles que são publicamente ins-
tituídos, geralmente recebidos por meio de uma investidura e sub-
metidos a certas regras, como é o caso do leitorato e do acolitato, e
há aqueles que são reconhecidos, embora sem formalidades.
Algumas são atividades que podem ter um caráter mais interno,
tais como formação e administração. No geral, como são serviços
para o interior da congregação, não oferecem nenhum “salário”. In-
felizmente, ainda se pode ouvir de forma explicita ou velada, pala-
171
vras de preconceito em relação a irmãos que venham a atuar nessas
áreas: “Se fosse um padre receberia espórtula e ajudaria a comunida-
de. Como é irmão, só gera gastos”.
De fundo, o que falta é uma compreensão de vida comunitária. É
uma cultura do “vale quanto produz”, na medida em que gera receitas.
Há trabalhos fundamentais na vida da congregação e da Igreja nos
quais os irmãos atuam demonstrando grande abnegação e maturida-
de. Se não for bem elaborada dentro do irmão uma consciência espi-
ritual e vocacional clara, sua vida poderá ser uma grande frustração,
gerando infelicidade e amargura. Já vemos isso como dilema quando
idosos não são psicologicamente e espiritualmente bem resolvidos.
Por isso, requer-se, daqueles que estão à frente da formação,
uma relação saudável com o trabalho, no qual se evidencia que, a
despeito da renda que gera, o que é essencial é o anúncio do Reino. É
mostrar que nossa vida como religiosos tem valor em si. É bom que
todo formando se prepare para assumir uma profissão, mas as ativi-
dades de caráter interno também devem se manter como horizonte
quando pensamos a vivência da missão da congregação.
Na medida em que o irmão se profissionaliza, seu trabalho po-
derá ter um caráter mais externo. Ele se preparará por meio de for-
mações acadêmicas ou técnicas. Por isso que, o programa de forma-
ção do Comissariado Geral dos Carmelitas do Paraná deixou um
espaço para se obter uma segunda formação específica ou aprimora-
mento da Teologia. Não se trata de uma opção meramente pessoal,
mas carismática. Em congregações na quais os trabalhos estão mais
voltados à áreas específicas como educação ou saúde, pode ser uma
decisão mais fácil. Contudo, por exemplo, no Carmelo, o carisma
é ser uma presença orante, fraterna e profética no mundo. Grosso
modo, podemos viver esses valores em qualquer lugar, tanto é que
temos paróquias, escolas, casa de recuperação de dependentes quí-
micos etc. Por isso escolhas elaboradas deverão ser baseadas na mis-
são da congregação. Seu trabalho terá nuances a serem respeitadas
pela comunidade. Portanto, desde cedo o candidato e a comunidade
terão de aprender a conciliar vida profissional e comunitária.
172
A perspectiva teológica assumida pelo Concílio indica uma re-
novada compreensão eclesiológica dos ministérios, a fim de motivar
novas configurações ministeriais. Contudo, muitas vezes, pode-se
reduzir a uma compreensão de ministérios na Igreja e para a Igreja.
Por isso, talvez, eles devessem ser assumidos num contexto mais am-
plo, no qual Igreja aparece como Povo de Deus, enquanto dimensão
histórico-cósmica do Reino de Deus. Assim, “os ministérios, enten-
didos e instituídos na perspectiva do Reino receberiam novos conte-
údos e explicariam muito melhor sua razão de ser na Igreja, Povo de
Deus” (GARCÍA PAREDES, 1989, p. 425). Ministérios não só na
Igreja, mas também no mundo.
Nas Ordens mistas, uma participação limitada dos irmãos na
vida da comunidade se dava, sobretudo, devido à mentalidade de
eles serem considerados ignorantes, não aptos para o ministério
ordenado, enquanto os presbíteros seriam os homens das letras e
únicos capazes de intervir com acerto na condução da comunidade.
Sobre essa visão classista da sociedade se apoiava a concepção clerica-
lista da Igreja. Os irmãos tinham direitos reduzidos, tendo por escu-
sa sua inabilidade e falta de preparação para determinadas atividades
(AGUILAR, 1967, p. 370-371).
A diversidade de ações de um determinado grupo será facilmen-
te acolhida quando a comunidade compreender que a missão não é
de um indivíduo isolado, mas da comunidade. Folga durante algum
dia útil da semana, por exemplo, como acontece em muitas casas
orientadas pelo ministério do presbítero, poderá não ser adequado.
Numa comunidade servidora, criatividade para conjugar as necessi-
dades de cada membro é bem-vinda.
Deus criou! A criatividade é um dom divino que atua constan-
temente na Igreja. O irmão vive num campo privilegiado da missão,
pois se de um lado não faz parte da hierarquia, de outro, ele é me-
mória viva do anúncio do Evangelho. O irmão deve trazer em si uma
capacidade constante de ser sempre um modo novo de evangelização
na Igreja. Isso também exigirá, claro, uma abertura constante da or-
dem para esse novo horizonte.
173
No itinerário formativo, a etapa do juniorato responde a um
importante momento para o vocacionado. Por isso, a congregação
precisa ter clara uma proposta para aqueles que optam pela vida re-
ligiosa laical. O improviso gera insegurança e leva o candidato a se
perguntar se sua decisão realmente pode ser compreendida como
uma missão no programa de evangelização proposto por Cristo. É
verdade que, eventualmente, se trabalhará em toda uma busca por
fazer um acompanhamento o mais personalizado possível e o can-
didato não corresponderá às expectativas. Isso não deve surpreender
quem trabalha na formação. O caminho formativo personalizado é
uma chave importante para uma renovação e atualização da VRC hoje.
A formação tem a missão de deixar claro que todos os frades
vivem em comunhão. Isso será mais fácil para os formandos assi-
milarem quando virem os pares de votos perpétuos se respeitando
mutuamente, independentemente de suas funções ou ministérios.
O testemunho de religiosos que se respeitam e se alegram uns com
os outros é uma chama preciosa na promoção de vocações orien-
tadas para a vida de irmão. Tal vocação não pode ser esquecida ou
colocada em segundo plano na vida da Igreja. Por isso, o caminho
transformador do itinerário formativo abrirá ao jovem religioso um
horizonte de possibilidades que, ao serem bem orientadas, oferecerá
à Igreja um homem feliz e realizado por sentir-se chamado a ser ir-
mão com seus irmãos.

Referências
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da Ordem do Carmo: um caminho de renovação pós-conci-
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Bilbao: Desclée de Brouwer, 1967.
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Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008.

174
CIARDI, Fábio. A vocação do Irmão a partir de uma teologia da
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p.135-149, abr. 1994
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LIBANIO, João Batista; MURAD, Afonso. Introdução à Teolo-
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175
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Rio de Janeiro, v. 19, n. 177, p. 526-543, nov. 1984.

176
VOCAÇÃO E PROFISSIONALISMO
O que necessitamos para sermos
bons seres humanos em nossa missão

Cláudio André Dierings57

O presente texto apresenta algumas reflexões sobre a questão do


profissionalismo dentro da Vida Religiosa, como um todo. Compre-
endemos que é um tema amplo para ser dialogado, e que carece de
elementos para fundamentá-la dentro de nosso contexto religioso.
Visto que é uma temática mais no campo administrativo, necessi-
tamos alinhar para a Vida Religiosa. Porém, sua importância está
justamente na necessidade de aproximar a vida religiosa com outras
áreas, visto que pertencemos a este mundo e necessitamos dar conta
dos desafios que encontramos em nossos caminhos.
Queremos aprofundar e conhecer bem aquilo que nos funda-
menta enquanto consagrados. Para isso buscamos, em nossas ori-
gens, as respostas e elementos que podem ajudar-nos a ressignifi-
car nossa missão. Continuamos a nossa busca, em outras áreas, por
elementos que podem nos ajudar a criar pontes para sermos mais
eficazes em nossa missão de evangelização, nos diferentes segmentos
em que atuamos. É necessário lembrar que, ao passar dos tempos,
sempre fomos importantes para vida da sociedade. Hoje, mais do
que nunca, diante de tantos desafios em que a sociedade se encontra,
necessitamos ser e levar luz para as pessoas. Dentro da missão que
realizamos como consagrados, temos inúmeras formas de contribuir
na construção do Reino de Deus.
O ato de servir, dando o melhor de si mesmo e se sacrifican-
do pelos outros, é a linguagem universal que todo mundo entende.
57 Irmão Lasallista. Bacharel em Teologia e Especialista em Formação Humana e
Desenvolvimento de pessoas. Endereço: claudio.dierings@lasalle.org.br
177
Acredito que foi por isso que Jesus, Gandhi, Madre Tereza, Martin
Luther King e tantos outros líderes e servidores exerceram um im-
pacto tão profundo nas pessoas. Eles serviram e se sacrificaram por
uma causa. Chamaram a atenção de todos e os inspiraram a agir.
Dessa forma, acabaram mudando o mundo. (HUNTER, 2014).
Percebemos nas lideranças religiosas e em nosso grande líder Je-
sus Cristo, a importância da liderança. A liderança com as pessoas
na comunidade, no olhar, no escutar, carinho, atenção e servir as
pessoas. Creio que está aí a chave do nosso profissionalismo. Neste
contexto, necessitamos buscar elementos que nos ajudem a desen-
volver nossa humanidade, com o intuito de nos tornarmos pastores
e profissionais mais competentes para ajudar a sociedade em que
vivemos. Elencamos, aqui algumas, questões que podem nos ajudar
a sermos bons profissionais:
Valorização dos nossos leigos, que nos ajudam em nossa mis-
são. Os leigos, muitas vezes, possuem as melhores das intenções em
ajudar nesta caminhada. Necessitamos valorizá-los. Não podemos
julgar ou fazer comentários negativos, por não terem a mesma com-
preensão e formação que tivemos;
Todas as nossas instituições religiosas têm bens materiais. Acre-
ditamos, porém, que o problema não é o material. Se o material foi
adquirido pela instituição, através da sua missão, está tudo certo. No
entanto, o bem material necessita estar a serviço da comunidade,
realizando o bem;
Enquanto consagrados, necessitamos cuidar para não estar fechados em
casulos. Necessitamos fazer uma leitura do mundo que está ao redor de nós.
Não podemos ser indiferentes diante da realidade que nos circunda. Papa
Francisco acredita que “A Vida Consagrada é profecia. Deus nos pede sair
do ninho que nos contém e ser enviados às fronteiras do mundo, evitando
a tentação de domesticá-las. A perspectiva do mundo é diferente se a vemos
a partir do centro, e isto nos obriga a repensar, continuamente, nossa Vida
Religiosa” (82 A.G. 2013). E o Papa continua: “Não recue sobre si mesmo,
não deixe que as pequenas lutas de casa o sufoquem, não caia prisioneiro
de seus problemas... Encontrarás a vida dando a vida, a esperança dando
esperança, o amor amando” (FRANCISCO, 2014);
178
Numa instituição, necessitamos viver os valores da mesma e res-
ponder com fidelidade, diante dos desafios que venham ao nosso
encontro;
A nossa autoridade necessita servir a exemplo do nosso Mestre. Jesus
tinha autoridade porque tinha compaixão, além de ser compassivo e
empático. É bom lembrar que Jesus era leigo, os escribas é que tinham
autoridade. É neste sentido que a compaixão é importante, e dessa forma
Jesus tinha autoridade. É necessário sempre realizarmos uma revisão da
nossa vida, com a intenção de percebermos o quanto estamos conectados
com esse mundo. Necessitamos sentir vergonha em alguns momentos, assim
como sermos desafiados, pois somente dessa forma poderemos nos tornar
humildes. Se não sentirmos vergonha, algo não pode estar bem e necessita
ser reavaliado. Exemplo: quando o ginásio “Gigantinho”, de Porto Alegre-
RS, foi aberto numa noite fria, para pessoas que precisavam de ajuda;
Diante do cotidiano, deverá prevalecer a vivência da fé, antes de
qualquer outro conteúdo;
É necessário buscar sempre novas formas de evangelização. Às vezes estamos
repedindo esquemas que não atendem mais ao sistema atual. “O carisma é
criativo, busca sempre caminhos novos... A profecia consiste em reforçar o
institucional, quer dizer, o carisma, na Vida Consagrada. Não confundir
isto com a obra apostólica. A primeira fica; a segunda passa. O carisma fica
porque é forte” (82 A.G. 2013);
Outra questão importante é que não podemos nos dividir por
território geográfico, pois somos consagrados para atender todas as
realidades e locais. O povo de Deus no tempo de Jesus não tinha di-
visão para a evangelização. Somos missionários desde nosso batismo;
Em alguns momentos, necessitamos ter a coragem de Jesus para enfrentar
sistemas que não atuam para o bem comum. Isso poderá ser realizado com
maestria, para que não necessitemos entrar em guerra total. Jesus sofreu porque
não concordava e apresentava um Deus completamente diferente em Jerusalém.
“Cães vorazes: desconhecem a saciedade; são pastores sem entendimento; todos seguem
seu próprio caminho, cada um procura vantagem própria” (Is 56, 11);

É necessário que sejamos humildes quando lidamos e interagi-


mos com pessoas. Cada ser humano possui uma história única, e em
certas situações necessitamos nos colocar no lugar da outra pessoa.
179
Enquanto consagrados, buscamos, constantemente, formações
e palestras para nos ajudar, tirar nossas dúvidas e achar novos cami-
nhos mais eficazes de ser e evangelizar, diante da ineficácia em que
nos encontramos. Muitas vezes somos “conquistados” por soluções de
mercado e nos “vendemos”. Por vezes, é mais eficaz buscar aprofundar
e melhorar nossa proposta da missão, assim como resgatar nosso caris-
ma, e através da fidelidade criativa, nos reinventarmos. E, principal-
mente, não podemos esquecer de sermos valores desse Reino.
Sejam testemunhas de um modo distinto de fazer, de atuar, de
viver. Sejam valores do Reino, encarnados, homens e mulheres ca-
pazes de despertar o mundo e iluminar o futuro. O testemunho ca-
rismático deve ser realista e incluir também o fato de apresentar-se
como testemunhas pecadoras. Reconhecer nossa debilidade e admi-
tir que somos pecadores nos faz bem a todos (82 A.G. 2013).
Que nossas ações espelhem as de discípulos no meio da socieda-
de, mantendo viva a esperança das pessoas. Que saibamos reconhecer
nossas limitações e sermos melhores, humanos e fraternos, sempre tra-
balhando para o Reino de Deus. Que no encontro pessoal com Deus,
saibamos ser profissionais e perceber o amor que está em nós para
podermos comtemplar seu mistério. Assim poderemos presentear a
humanidade com nossa luz, humanidade e presença de Deus.
Estamos vivendo períodos em que muitas entidades estão voltan-
do a sua origem fundacional, e percebendo que essa forma é a melhor
para realizar sua missão. Porém, precisamos ter cuidado, pois a nossa
tendência é correr atrás de metodologias ou sistemas que prometem
ser a salvação da pátria, mas que na prática não é bem assim.
Acredito que um dos primeiros passos para sermos bons profis-
sionais é sermos bons seres humanos, buscando o autoconhecimen-
to, a inovação e ressignificação da nossa missão e papel de Igreja na
sociedade. É necessário cuidarmos para não cairmos nas tendências
da facilidade, do politicamente correto, do fazer, da pressa e da nova
tendência em achar que tudo o que é passado não tem mais signifi-
cado, que necessitamos buscar sempre o novo.
180
Às vezes podemos cair no esquecimento, pois a nossa missão
é bastante sigilosa, sem muitas propagandas, reconhecimentos, sta-
tus etc... Porém, necessitamos realizar uma leitura evangélica e re-
conhecer que nossa missão tem grande importância para o Reino
de Deus. Mesmo assim, necessitamos reconhecer nossas limitações.
É necessário que sejamos profissionais da humanização, na busca da
comunicação do Reino. “A formação se baseia em quatro palavras
fundamentais: formação espiritual, intelectual, comunitária e apos-
tólica. O objetivo é formar religiosos que tenham um coração terno
e não ácido como o vinagre” (82 A.G. 2013).
Que iluminados pelo Espírito, nos tornemos profissionais, à luz do
evangelho, inspirados em Jesus Cristo. Também, que possamos inspirar
as pessoas, partindo de nossa liderança e testemunho. Que a ferramenta
do nosso profissionalismo seja o servir e o amar, que os fundadores das
nossas congregações e nosso mestre nos pediram e deixaram esse legado.

Referências
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pessoas consagradas para a proclamação do Ano da Vida Con-
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