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EDIMAR MOREIRA
VANILDO LUIZ ZUGNO
PLENAMENTE HUMANO,
SIMPLESMENTE IRMÃO
2021
1
Ficha catalográfica
2
Sumário
Apresentação................................................................................6
Prefácio...........................................................................................8
PLENAMENTE HUMANO,
SIMPLESMENTE IRMÃO!................................................................12
Com Maria, peregrina na fé..................................................................12
Plenamente humano: “Tomar posse do nosso processo de
maturação humana”.............................................................................12
Simplesmente e Plenamente Humano!.................................................16
Simplesmente irmão: “Viver marianamente a travessia
para a simplicidade.”.............................................................................19
Maria, Simplesmente nossa Irmã..........................................................25
“ONDE ESTÁ TEU IRMÃO?” (Gn 4,9) UMA LEITURA
NARRATIVA DO EPISÓDIO DE CAIM E ABEL............................27
Delimitação e estrutura do texto...........................................................30
A teologia.............................................................................................30
Abel, Caim e a misericórdia divina.......................................................44
Caim, Abel e nós..................................................................................45
O problema..........................................................................................45
O caminho . ........................................................................................46
Conclusão............................................................................................48
O eixo da fé (teológico)........................................................................48
O eixo da fraternidade (social)..............................................................48
RELIGIOSO IRMÃO: MEMÓRIA E ESPERANÇA.........................53
Jesus Cristo - a Igreja – opções de vida ................................................56
O itinerário da identidade do Religioso Irmão......................................58
Em outras palavras, como diz Ricoeur .................................................59
A questão da identidade pessoal e social................................................61
Desafios para viver com alegria a opção de religioso irmão . .................63
FRATERNIDADE: DOS PRINCÍPIOS DO
“SER IRMÃO” E DO “SENTIR-SE IRMÃO”....................................66
Um perpassar do “ser-irmão” ao “sentir-se irmão”.................................66
A evocação do sentimento como resposta a um
mundo profundamente carente............................................................67
3
Sentir e saber sentir, como laços necessários entre o
sentimento e a cognição.......................................................................68
O sentimento de Fraternidade: princípio e fundamento
das relações entre pessoas consagradas...................................................72
Dar nome é fazer existir........................................................................73
Dar nome é assenhorear-se...................................................................73
Dar nome é dar uma missão.................................................................74
Dar nome é fazer um convite................................................................74
Fraternidade como sinal.......................................................................75
DIGA-ME COM QUEM TU ANDAS...............................................79
O paradigma trinitário.........................................................................81
A construção das identidades................................................................82
As relações sociais.................................................................................86
Para concluir........................................................................................88
IMPLICAÇÕES ÉTICAS DE JESUS IRMÃO...................................89
Quem é meu irmão?.............................................................................90
Jesus Cristo, nosso irmão......................................................................91
Uma comunidade de irmãos . ..............................................................93
Viver como Jesus viveu.........................................................................95
O Deus encarnado se faz nosso irmão...................................................97
A CONTRIBUIÇÃO DO RELIGIOSO IRMÃO PARA OS
NOVOS CAMINHOS DA CONVERSÃO SINODAL...................101
Os religiosos irmãos na Igreja povo de Deus.......................................102
Uma Igreja Sinodal - Novos caminhos de conversão...........................103
Uma experiência Ministerial – Irmãos das Escolas
Cristãs (Lassalistas) ............................................................................105
Sensus Fidei........................................................................................111
As contribuições do religioso irmão para a conversão sinodal..............113
PAISAGEM RELIGIOSA: RELIGIOSO IRMÃO E
ECOLOGIA INTEGRAL.................................................................116
Inspirações que iluminam e desafiam a
vocaçãodo religioso irmão .................................................................121
Olhar amoroso, cuidadoso e esperançoso: aprendizagens
para a jornada de conversão. ..............................................................124
Olhar amoroso ..................................................................................124
4
Olhar cuidadoso . ..............................................................................125
Olhar esperançoso..............................................................................127
Passos seguintes para outras paisagens religiosas possíveis . .................128
O PERDÃO NA VIDA DO RELIGIOSO IRMÃO..........................132
Esclarecimentos..................................................................................133
Perdão a si mesmo..............................................................................136
Jesus Cristo, plenitude do amor e do perdão.......................................139
Pessoas que cultivaram a capacidade de perdoar . ...............................141
Experiência de Deus amor e perdão....................................................142
Passagem das lutas humanas para as lutas espirituais...........................144
Fator essencial para a vivência do perdão............................................146
ITINERÁRIO DO IRMÃO EM VISTA DE
UM PROJETO DE VIDA.................................................................151
Retomando o ponto de partida...........................................................151
A necessidade do acompanhamento....................................................152
Processo para o discernimento............................................................152
Motivações vocacionais.......................................................................153
Aspectos profissionais dentro do Projeto de Vida................................155
Edificando o caminho........................................................................155
Estabelecer prioridades.......................................................................157
Refletindo sobre a sistematização do Projeto de Vida..........................157
Considerações finais...........................................................................159
O JUNIORATO E O RELIGIOSO IRMÃO:...................................161
Intuições sobre um caminho de
formação personalizada......................................................................161
O processo de decisão.........................................................................163
O estudo da Teologia..........................................................................165
Preparação para a vida profissional......................................................169
VOCAÇÃO E PROFISSIONALISMO.............................................177
O que necessitamos para sermos
bons seres humanos em nossa missão..................................................177
Referências de revistas sobre a Vida Religiosa
Consagrada de Irmãos........................................................................181
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Apresentação
6
à luz da fidelidade dinâmica comprometida com a ação evangeli-
zadora. O irmão não é um religioso genérico, mas um ser humano
configurado a Jesus Cristo segundo o carisma fundacional. Isto re-
quer passar, no processo formativo, do funcionalismo ao ser pessoa
em missão, daquele que sabe de tudo um pouco, para o que com
competências desenvolve um serviço segundo sua originalidade.
De tudo isso brota necessariamente uma revisão do processo for-
mativo dos irmãos que possa corresponder a uma nova mentalidade,
na qual, a narrativa do passado possa iluminar o presente e projetar
um futuro para a compreensão da laicidade consagrada inserida num
projeto comum de missão do instituto, inclusive, rompendo com os
paradigmas de submissão e até de baixo estima em relação ao clérigo,
sobretudo nos institutos mistos.
Por fim, a teologia da VRC precisa avançar na reflexão do re-
ligioso irmão para evidenciar sua natureza, relevância e profetismo
na atual conjuntura da Igreja samaritana que não pode ter medo de
descer, como Jesus, ao humano para exaltar o divino.
7
Prefácio
Dom Helder Câmara conta que, certa vez, foi procurado por
um homem que via nele seu último grau de esperança. Ele se lem-
brou então de um amigo que tinha uma grande loja, fez um bilhete
para que o pobre levasse consigo e entregasse quando fosse ao seu
encontro. Nele se dizia: “Acredite se puder! Severino, o Bill, que
está na sua frente, é meu irmão de sangue. Veja a situação a que ele
chegou. Pelo amor de Deus, faça com que ele volte daí empregado”.
Seu amigo recebeu a carta, lhe telefonou e disse:
–– Olha, o seu irmão está empregado. Arrumei ainda para ele
uma roupinha, um sapato... Mas me diz uma coisa, como
é que o irmão do senhor cai nesta miséria? Eu não consigo
entender! Seu irmão em uma miséria destas?!!!
–– Me diga uma coisa. Está seguro o emprego dele né?
–– Ah! Estou vendo que o senhor me enrolou!
–– Enrolei coisa alguma.
–– O senhor disse que esse era seu irmão.
–– E é! Na minha terra quem tem o mesmo pai é irmão.
–– Mas o senhor disse que era seu irmão de sangue!
–– E é! O mesmo sangue que Cristo derramou por mim, der-
ramou também por ele. Nós somos irmãos do sangue que
Cristo derramou por nós!
O santo bispo cearense colocou em prática a máxima de Jesus:
“todos vós sois irmãos” (cf. Mt 23,8). Deixou-se interpelar pelo ou-
tro e assumiu inúmeras vezes atitudes concretas diante da realidade,
principalmente em defesa dos irmãos mais vulneráveis e pequeninos
(cf. Mt 25, 31-46). Também a Vida Religiosa Consagrada tem feito
sua escolha de se fazer irmã daqueles que mais precisam. Tanto é,
que há na Igreja um modo de ser reconhecido em sua estrutura que
é chamado de “irmão”!
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O religioso irmão é um homem que busca colher frutos mais
abundantes de sua consagração batismal por meio dos votos religio-
sos e que, a partir de um carisma específico e de seu serviço, busca
mostrar o rosto de Jesus irmão em sua vida cotidiana, em vista da an-
tecipação do Reino de Deus. Buscando evitar contra valores que não
correspondem à proposta do Reino de Deus, esse homem concreto,
integra as diversas dimensões de sua vida: oração, relações fraternas,
apostolado, lazer, cultura, estudo etc.
Jesus fez-se irmão de todos para todos. Em realidades muitas
vezes marcadas pelo desejo de oprimir e pelo abuso de poder, reco-
nhecer a grandiosidade de ser simplesmente irmão demanda uma
profunda e verdadeira integração humana. Somente quem está ver-
dadeiramente integrado, poderá acolher e viver sua vocação, dom de
Deus, sem precisar desprezar os demais e viver feliz. Por isso, o tema
que orientou o V Seminário de Religiosos Irmãos, promovido pela
CRB Nacional, em Fortaleza, CE, no ano de 2019, foi “Plenamente
humano, simplesmente irmão”.
É preciso continuar refletindo sobre a vocação do religioso ir-
mão. Mesmo autorais, ainda são poucas as obras que versam sobre
o assunto, tais como: “Todos vós sois irmãos” (Frei Fabiano Satler,
OFM), “Vocês todos são irmãos” (Frei Vanildo Zugno, OFMCap)
e “Simplesmente irmão” (Frei Edimar Moreira, O.Carm.). Uma
carência de uma obra coletiva em português que vise aprofundar,
seja a partir do ponto de vista teológico, seja a partir de outras áre-
as do conhecimento veio acompanhada da percepção do potencial
reflexivo que temos no Brasil para a elaboração de um conteúdo
relevante. O contato com algumas obras estrangeiras, como “Who
are my Brothers?”, “Blessed Ambiguity”, “Il fratello religioso nella
comunità eclesiale oggi” e “Religiosos Hermanos hoy”, serviram de
motivação para idealizar este projeto.
O título “Plenamente humano, simplesmente irmão” nos pos-
sibilita olhar pelo menos duas dimensões do ser irmão. “Plenamente
humano” parte do fato de o irmão ser uma pessoa concreta, com tudo
aquilo que o ser humano tem de potencialidade e de desafio. Por isso,
9
a busca pela integração humana é uma tarefa que perpassará toda sua
vida. Um irmão humanamente imaturo terá dificuldades em viver a
plenitude de sua vocação. “Simplesmente irmão” significa reconhe-
cer a completude de uma vocação no seio da Igreja. A relevância de
sua vida não se dá por seu status ou título, mas pela fraternidade e
simplicidade inerentes ao programa de vida daqueles e daquelas que
assumem o compromisso de seguir os passos do mestre Jesus.
Essa obra tem por objetivo refletir sobre a integração humana
do irmão, sob a ótica da espiritualidade cristã, como caminho para
ser sinal profético do Reino de Deus na Igreja e no mundo. Para tal,
são três os blocos que vinculam o tema da integração à vocação do
religioso irmão: identidade, ação e formação.
Na primeira parte, a ênfase é a identidade. Irmã Annette Ha-
venne abre o livro colocando em sintonia a busca por integração e a
simplicidade necessária para um caminho autêntico de seguimento
de Cristo. No segundo texto, frei Rivadave Paz Torquato O. Carm.,
fundamento a importância e os desafios do ser irmão a partir da
análise da relação entre Caim e Abel descrita no livro do Gênesis.
Em seguida, irmão Paulo Dullius, FSC, reflete sobre a identidade do
irmão que se torna expressão por meio também de sua missão. Os
irmãos jesuítas Epifânio Barbosa Lima e Jorge Luiz de Paula apre-
sentam o discutem os princípios do ser e do sentir-se irmão. Por
fim, com um enfoque eclesiológico, frei Vanildo Zugno, OFMCap,
propõe um modelo ministerial que prioriza uma participação mais
comunitária de todos os membros da Igreja.
Na segunda parte, a prioridade está no campo do agir. Não é o
dizer-se irmão que garante a vivência fraterna. Por isso, frei Oton da
Silva Junior, OFM, aponta para as implicações éticas inerentes do
considerar Jesus nosso irmão. Em seguida, irmão Edgar Genuino
Nicodem, FSC, à luz do sínodo da Amazônia e da experiência edu-
cacional de sua congregação, aponta para um caminho de conversão
sob uma ótica mais sinodal. Em sentido similar, seguirão os irmãos
maristas João Gutemberg Mariano Coelho Sampaio e Lucas José Ra-
mos Lopes ao refletirem a relação da vocação do irmão com o tema
10
da teologia integral. Por fim, irmão Otalívio Sarturi, FMS, discorre
sobre a temática do perdão no caminho de conversão necessária à
vida daqueles que almejam viver a fraternidade.
Na terceira e última parte, a chave de aproximação será o iti-
nerário formativo. Frei Rubens, OFM, reflete sobre as demandas
inerentes ao acompanhamento vocacional em vista da projeção e re-
alização do Projeto de Vida do candidato. Em seguida, frei Edimar
Fernando Moreira, O.Carm., pondera sobre o estudo da teologia e a
profissionalização, presentes sobretudo durante a etapa do juniorato
em diante. Por fim, irmão Cláudio André Dierings, FSC, discute so-
bre as facetas da profissionalização com as quais a VRC se relaciona.
Registramos aqui nossa gratidão a cada autor que se dedicou
generosamente para colaborar nessa empreitada. Também uma gra-
tidão à CRB Nacional, na pessoa de sua presidente, irmã Maria Inês
Vieira Ribeiro, MDA, por sua incansável missão de animar a VRC.
Ela tem sido grande instrumento de motivação para todos os irmãos,
sobretudo na animação dos Seminários e na criação do Grupo de
Trabalho dos Religiosos Irmãos.
Esse trabalho conjunto chegará a seu termo na medida em que
sirva para ampliar as reflexões sobre a vocação do religioso irmão
daqueles que dele se aproximarem. Boa leitura!
Organizadores
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PLENAMENTE HUMANO,
SIMPLESMENTE IRMÃO!
Com Maria, peregrina na fé
Annette Havenne1
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Há anos que a CRB nacional e a CLAR, em nível de América la-
tina, vêm oferecendo propostas de aprofundamento da identidade da
VRC, como tal. Em 2018 tivemos, em Belo Horizonte, um Congres-
so de religiosos presbíteros no qual trabalhamos a identidade e missão
do religioso padre. A revista Convergência publicou artigos retoman-
do algumas palestras deste congresso. No número 519 da revista, foi
publicado um artigo com o tema: “Religiosos presbíteros: identidade
problemática!” Permitam-me então fazer um pouco de humor e reagir
dizendo: Que bom, não é a identidade nossa que é problemática!
Levantar essa questão não significa desfazer da vocação dos reli-
giosos presbíteros, mas é, para nós, convite para voltar à simplicida-
de das origens. Não cabe aqui e agora um longo estudo da história
da VRC, porém é importante lembrar que no início esta “forma de
vida” era puramente laical: nada indica que são Bento fosse sacerdo-
te, e tem historiadores questionando a realidade do diaconato de são
Francisco. O que não diminui em nada o valor destes dois santos,
cada um na origem de um novo modelo de VRC. Só depois, por
vários motivos, entre os quais a assistência ao povo de Deus, faltando
de pastores, a VRC acabou acolhendo largamente essa criatividade
vocacional do Espírito santo que é o religioso-presbítero, deixando
este último com um desafio de “interface” a resolver!
Mas vamos ao assunto que nos diz respeito, a “nosso vocação”,
permitam-me chama-la de “nossa”! Em 2015, Roma publicou um do-
cumento chamado “Identidade e missão do religioso irmão na Igreja” e
na introdução deste documento, Dom João Brás de Avis lembra que a
reflexão, com algumas adaptações, vale também para as religiosas. Por-
tanto a partir de agora falarei da “nossa vocação, identidade e missão”.
Trabalhar juntos essas questões pode também ser um bom passo
para fazer em nós a integração do masculino e do feminino, sem dú-
vida um dos passos da maturação da nossa identidade necessário para
ser plenamente humanos! Talvez essa integração seja ainda mais neces-
sária quando a gente faz opção pelo celibato consagrado! Consagrado
maduro, consagrada madura aprende a tecer relações fraternas huma-
namente significativas com o “diferente” e se enriquece com isso! Sem
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confusão com flerte, namorado ou qualquer “terceira via”, sem medo
e sem complexo de inferioridade ou de superioridade, se é que existe!
Feita esta introdução de modo a nos situar, vamos à questão
da maturação humana do religioso irmão, a partir do estilo de vida
que é o seu. Nas suas comunidades mistas ou só de irmãos, como é
o processo de formação e maturação humana?
Pois hoje temos clareza de uma coisa: o amadurecimento não vem
automaticamente junto com o processo de maturação e de envelheci-
mento físico! Muita atenção, pois percorrendo nossa linha do tempo,
podemos envelhecer amadurecendo, ou endurecendo, ou ainda apo-
drecendo! E isso vai depender muito da nossa devoção pessoal. Você é
devoto de “santo DES” ou de “santa RÉ”? Não, esses dois não foram
canonizados no inicio do mês junto com irmã Dulce... Há muitos
anos eles tem seus devotos nas comunidades de VRC!
Os devotos de “santo DES” são os que envelhecem DESencan-
tados, DESanimados, DECepcionados, DESolados, DESiludidos
com sua opção de vida e DESconsolados com as oportunidades que
perderam por causa dela! Quanto aos devotos de “santa Ré”, eles
também passam pelas crises, as dificuldades, os desafios inerentes ao
itinerário de uma vida humana, mas não estagnam nestes acidentes
de percurso. Eles, com a ajuda da santinha, tomam outra atitude:
REnovar, REciclar, REssignificar sua opção, REinventando-a em
circunstâncias externas ou internas, diferentes do momento inicial.
Eu não sou minha história nem minhas circunstâncias. Elas me
impactam, mas eu posso decidir o que faço com elas. Não escolho
tudo que acontece comigo, nem as emoções e sentimentos que sur-
gem em decorrência disso. Escolho sim, as atitudes que eu tomo
frente às dificuldades e até adversidades!
O interesse da proposta psicológica que desejo passar nessa re-
flexão é que ela vai nos ajudar a reler e ressignificar as dimensões
da nossa humanidade, ao longo da nossa vida e das nossas circuns-
tâncias. Trata-se, basicamente, de dar um novo sentido humano ao
nosso percurso, identidade e missão.
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Existe entre nós e quem sabe em nós, a caricatura do irmão
humilde, serviçal, obediente até... Porém cheio de murmuração, de
rancor e de frustrações! Não vai adiantar muito pegar um elevador,
subir para o andar de cima, o de uma santidade desligada da vida,
para chorar e rezar até o “problema” passar por milagre ou curto-
circuito! É mais eficaz rezar a partir do andar de baixo, ter a coragem
de olhar para o nosso humano e trabalhá-lo para depois subir pelas
escadas para o andar de cima! Isso sim é bom para o coração!
O esquema psicológico que estou propondo vem, da escola de
psicologia chamada “Gestalt”. Uma palavra germânica que significa
forma, figura, e por extensão configuração, constelação. Eu a escolhi
por vários motivos práticos: está muito mais perto das nossas reali-
dades do que certas análises psicanalíticas que exigem mais tempo
para entender de que se trata, a linguagem utilizada, o desenrolar da
terapia. Proponho um esquema que vai ajudar a entender e integrar
melhor o humano em nós, dentro da nossa vocação própria.
A inspiração do quadro a seguir vem do Dr. Ênio Brito, que
trabalha muito a psicologia da Gestalt entre os religiosos e sacerdotes
do Brasil. O interessante é que ele propõe exatamente o processo de
integração de tudo que nos constitui como seres humanos. Descreve
com palavras simples e concretas o que Carl Jung chamou o processo
de “individuação” da segunda metade da vida.
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Como reverencio o mistério em mim, nas
outras pessoas? Para nós mesmos!
Que significado dou ao que não entendo, mas
Somos seres
posso abraçar, compreender? Por exemplo
complexos, um
a doença, o sofrimento, os conflitos, as
mistério
contradições?
Como leio o toque de Deus nesta minha
caminhada?
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extraordinário: você dorme, acorda, reza, come, trabalha, reza mais
um pouco, vai para a cidade vender seu artesanato... faz um pouco
de penitência, dá esmola, acolhe quem vem lhe pedir conselhos...
Mas todos fazem isso, até eu!
O ancião olhou para ele com carinho e respondeu: sabe filho não
sei se sou santo, mas só sei que tenho uma leve diferença: eu, quando
durmo, durmo... quando rezo, rezo... quando como, como... quan-
do trabalho, trabalho... Você meu jovem, quando dorme pensa no
trabalho, quando reza pensa na comida, quando come se preocupa
com a penitência, quando escuta alguém sente sono...”
–– O que é mesmo ser plenamente humano? O que é ser sim-
plesmente santo?
Na clareza identitária e no
“Eis a serva do Senhor. Faça-se em
“cheque em branco” do seu
mim segundo a tua palavra.” Lc 1,38
sim à vida.
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“Maria partiu para a região
montanhosa, dirigindo-se às pressas Na delicadeza das relações,
para uma cidade da Judeia. Entrou na na leveza e na disponibilidade
casa de Zacarias e saudou Isabel.” do serviço.
Lc 1, 39
26
“ONDE ESTÁ TEU IRMÃO?” (Gn 4,9)
UMA LEITURA NARRATIVA DO EPISÓDIO
DE CAIM E ABEL
Introdução4
A convivência entre irmãos é algo maravilhoso quando tudo
corre bem. Esta maravilha não passou despercebida ao salmista que
canta: “Vede como é bom e agradável os irmãos conviverem unidos”
(Sl 133,1). Entre as coisas que encantam o Sirácida está a concórdia
entre irmãos (Sir 25,1-2). Todavia, esta beleza de convívio tantas
vezes é ofuscada por um aspecto sombrio: a rivalidade e hostilidade
entre irmãos. É um problema primitivo do ser humano que o perse-
gue ao longo dos séculos. As civilizações passadas verbalizaram este
drama em suas mitologias e lendas. Daremos alguns exemplos.
Segundo a mitologia romana, a cidade de Roma foi fundada por
dois irmãos gêmeos, Rômulo e Remo. Rômulo torna-se o primeiro
rei da cidade e mata Remo (BELTZ, 1974). Na mitologia grega, o rei
Édipo de Tebas tinha dois filhos, Etéocles e Polinices. Eles disputavam
a sucessão. Após longas discussões concordaram em reinar alternada-
mente, cada um por um ano. A Etéocles, o primogênito, tocou reinar
primeiro. Entretanto, negou-se a passar o cetro ao irmão Polinices e
o expulsou da cidade. O irmão inconformado resolve usar a força e
3 Religioso presbítero carmelita. Doutor em Teologia. Professor na Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte. Endereço: rivaldave.paz@
gmail.com
4 Inspirado na Campanha da Fraternidade de 2018: Fraternidade e superação
da violência. “Vós todos sois irmãos” (Mt 23,8), este artigo foi publicado
originalmente pela Revista Bíblica (2019) p. 221-246 a quem agradecemos
a gentil autorização para aqui publicá-lo.
27
matam-se em batalha. O Egito nos legou o mito dos irmãos Osíris e
Set. Osíris, o primogênito, herdou o trono do pai e passa a governar o
país. No entanto, o irmão Set, com inveja, articula um plano macabro
e o mata. Ainda na África, conta-se a lenda dos irmãos Mexilo e Me-
xilvano. Mexilo era o irmão mais velho. Ambos caminhavam com seus
cães e chegaram a uma árvore. Nela, o cão de Mexilvano encontrou
uma abertura e dela saíam vacas gordas, ao passo que o cão de Mexilo
descobriu uma abertura da qual saíam vacas magras. Por inveja, no
caminho de volta pra casa, Mexilo matou seu irmão e levou todo o
rebanho sozinho para o vilarejo. Encontrou, porém, um homem que
o perguntou: “Onde você encontrou tantas vacas?” “Numa árvore oca
encontrei-as!” respondeu Mexilo. “Onde está teu irmão Mexilvano?”
continuou a perguntar o homem. “Eu não sei” respondeu Mexilo, “ele
disse: vai na frente com as vacas, eu te seguirei depois”. A mentira, po-
rém, foi descoberta e Mexilo foi banido para longe de seu vilarejo para
sempre (PFISTER, 1985). Também na África, os Dschagga5 contam
que após a morte dos antepassados, o primogênito teve dois filhos.
O pai deu cabras a cada um. As cabras do filho mais jovem tinham
sempre crias gêmeas, as do mais velho nunca tinham gêmeas. Uma
proposta de troca fora rejeitada pelo pai. Numa outra ocasião, quando
ambos estavam no campo a pastorear suas cabras, o mais velho matou
o mais novo. Seus gritos, contudo, foram ouvidos pelo ministro de
Deus que lhe impôs uma pesada penitência de sangue. Numa outra
narrativa, o primeiro ser humano de Tuanda, tinha cinco filhos. Ki-
twa, um deles, assassinou um de seus irmãos por inveja e seu pai o
baniu como pária. Uma antiga lenda persa fala de três irmãos que se
espalham pelo mundo. O mais novo e preferido pelo pai sofre a inveja
dos outros dois e é finalmente assassinado por eles. Na mitologia fe-
nícia, fala-se dos dois primeiros filhos do primeiro ser humano Aeon:
Usos é morto por Hypsuranios (WESTERMANN, 1986). O conflito
entre irmãos presente nestas narrativas tem sua gênese quase sempre
numa combinação de poder e inveja. Ora, a Bíblia não ficou alheia a
esta temática e nos reporta a narrativa de Caim e Abel – sem esquecer
Esaú e Jacó assim como José e seus irmãos – já em seu primeiro livro.
6 A relação esposo-esposa pode ser visto nos casais: Adão/Eva; Abraão/Sara; Jacó/
Raquel; Isaac/ Rebeca. Não poderia faltar a questão “poligâmica”: AbraãoSara/
Agar/Cetura; Jacó-Lia/Raquel. A questão esposa-filho é representado pelas
matriarcas Sara, Rebeca e Raquel. Todas estéreis durante certo período (Gn 11,30;
25,21; 29,31). Relação pai-filhos: Abraão/Isaac, Ismael; Rebeca/Jacó; Jacó/filhos;
Ló/filhas. Relações conflituosas entre irmãos: que culmina em morte, o fratricídio
(nosso texto), irmãos que litigam e se reconciliam: Jacó/Esaú; José/irmãos.
Relação sogro-genro: Labão/Jacó. Relação tio-sobrinho: Abraão/Ló. Relações de
parentesco: Abraão/Ló; Ismael/Isaac. Relação avô-netos: Jacó/Efraim-Manassés.
Realização da lei do cunhado (ou levirato cf. Gn 38): Judá/Tamar. Todas estas
relações estão na esfera da família e são relações, em geral, conflitivas.
29
Delimitação e estrutura do texto
Gn 4 está dividido em três partes, delimitadas pela fórmula ge-
nealógica: “X conheceu sua mulher e ela concebeu e deu à luz a Y”
(vv. 1.17.25) (GARCIA LOPEZ, 2006, p. 70). Elas apresentam os
descendentes do homem (v. 1a): Caim e Abel (vv. 1-16), os cainitas
(vv. 17-24) e os setitas (vv. 25-26). O v. 17 abre, portanto, uma
nova temática: a descendência de Caim. Abel está ausente. Por outro
lado, os dois protagonistas de 4,1-16, Caim e Abel, não fazem parte
da cena anterior que culminava no afastamento de Adão e Eva do
jardim (3,24). O episódio de Caim e Abel apresenta, desta forma,
início, meio (conflito e tentativa de solução) e desfecho final. Tem-se
aí nos vv. 1-16, portanto, uma clara unidade em si, intercalada por
narrativas e diálogos, tendo como ponto central o fratricídio (v. 8).
Quanto à estrutura, Wénin (2001, p. 126) propõe uma forma con-
cêntrica na perspectiva de Caim:
A – nascimento de Caim – cultivador (1-2)
B – o solo produz fruto – sacrifício (3-5a)
C – o Senhor fala com Caim para fazer-lhe refletir (5b-7)
D – homicídio de Abel da parte de Caim (sem palavra) (8)
C’ – o Senhor fala com Caim a propósito do homicídio (9-10)
B’ – o solo não produz mais fruto – maldição (11-12a)
A’ – Caim errante sem terra – ‘saída’ (12b-16)
A teologia
Em nosso comentário seguiremos o desenrolar natural da cena:
o primeiro casal e seus filhos (vv. 1-2a); a profissão de ambos (v. 2b);
30
a vida de fé e o problema (vv. 3-5); a ajuda divina a Caim (vv. 6-7); a
aparente solução do problema (v. 8); retomada do diálogo por parte
de Deus e o ônus de Caim (vv. 9-12); reação de Caim (vv. 13-14);
intervenção divina (v. 15) e sorte de Caim (v. 16).
O primeiro casal e seus filhos (vv. 1-2a)
1
O homem conheceu Eva, sua mulher; ela concebeu e deu à luz Caim,
e disse: “Adquiri um homem com a ajuda do Senhor”. 2aDepois ela deu
também à luz a seu irmão, Abel.
Adão e Eva se unem e geram seu primeiro filho, Caim7. Tanto
a ordem de Deus na criação “crescei e multiplicai-vos” (Gn 1,28),
quanto o nome dado à mulher pelo homem, “Eva, por ser mãe dos
viventes” (3,20) tornam-se fato. Multiplicação e maternidade estão
em andamento. Em Caim, Eva experiencia a força de sua fecundida-
de. Esta dupla realização é, de certa forma, realçada pela declaração
de Eva: “Adquiri um homem com o Senhor”. A frase apresenta três
sutilezas: a) o verbo qānāh significa criar, procriar, fundar, mas tam-
bém comprar, adquirir. Dizer que Eva cria um varão com (a ajuda
do) Senhor, faz dela co-criadora, colaboradora de Deus. É estranho.
Dizer que ela compra ou adquire um varão com o Senhor ou dele,
sublinha-se as dificuldades na gestação ou no parto? Criar ou adqui-
rir seria desajeitado para exprimir o nascimento de uma criança. O
contexto, porém, sugere procriar ou conseguir; b) normalmente uma
mulher dá à luz um filho, mas o texto diz que Eva adquiriu um ’îš,
isto é, um homem (adulto). Ela vê no filho, o homem formado. To-
davia, o termo continua impróprio para um neonato. É único caso
no AT; c) a partícula hebraica ’ēt - indica o objeto direto ou equivale
à preposição com. Ora, seria complicado entender Deus sintatica-
mente como objeto direto nesta construção. Então, ela adquiriu o
filho com o Senhor, isto é, “com a ajuda dele”. Desconhecemos outro
caso de uso desta partícula com este sentido8. É possível que estas su-
7 ’ādām é homem comum e vai com artigo: o homem, o humano em geral. Em
4,25 (5,1) aparece pela primeira vez sem artigo, como nome próprio: Adão
(GARCÍA LÓPEZ, 2006, p. 71). Portanto, aqui seria um apelativo e não o
nome próprio.
8 Para estas três dificuldades cf. IBÁÑEZ ARANA, 2003; VON RAD, 1967;
31
tilezas queiram acentuar um fato: este filho é aquisição divina, é dom
de Deus. O nome, em hebraico qayin9, forma um jogo de palavra
com o verbo qānāh acentuando mais uma vez este fato.
Se por um lado, o texto mostra a preocupação da mãe em apre-
sentar este filho como dom de Deus, por outro, o mesmo texto omi-
te qualquer reação do pai. Ele não se manifesta.
Caim é o primogênito e, como tal, tem valor, tem direitos (so-
bretudo no que se refere à herança e à bênção), tem voz (fala no tex-
to) e, neste aspecto, é privilegiado. É dado por Deus, é filho da mãe
dos viventes. Ele recebe da mãe uma declaração ao nascer (PFISTER,
1985, p. 117). Caim é primícias do ser humano, é o primeiro filho
da humanidade. Todavia, Caim é um filho sem referência, único.
Não é irmão de ninguém! Falta-lhe a sociabilidade. Eis que...
“De novo deu à luz seu irmão, Abel”. Nasce o outro, a referên-
cia: “seu irmão”. Na Bíblia, é a primeira dupla de irmãos, a origem
da fraternidade, um evento ímpar. Ao surgir como irmão, Abel vem
tirar Caim do isolamento e estabelecer a sociabilidade. O termo irmão
aparece 7 vezes no texto10. O número já sugere o foco do texto. A pa-
lavra Abel, em hebraico hebel, significa: vento, sopro, alento, fumaça,
névoa, brisa, vapor, nulidade, algo que se desvanece, sem consistência,
efêmero, sem importância. Mais que um termo, hebel é um conceito.
Hebel exprime em hebraico tudo aquilo que é fugaz, rápido, pas-
sageiro, transitório11. Pode significar ainda algo inútil, nulo, (em) vão,
nada, vazio (Is 30,7; 49,4a). Pode indicar tanto o que é vaporoso
como o que é sem substância, sem conteúdo, sem peso, sem valor,
Abel, por sua vez, também ofereceu as primícias e a gordura de seu rebanho.
4
O problema
É bela a curiosidade de nossa gente que se agarra ao texto assim
como ele é e o toma como história literalmente. Fazem uma pergun-
ta ao texto que ele não está preocupado em responder. Não convém
eliminar a pergunta, mas repropô-la de outra forma: “Caim e Abel
existiram ou existem?” Procurar entender o que o texto quer ensinar.
Na verdade, aquela preocupação do ser humano com o drama da
rivalidade e hostilidade até mesmo fratricida entre irmãos que apa-
rece nos mitos –como indicamos na introdução– não era apenas a
realidade de um passado distante, é atualíssima.
45
O Papa João Paulo II, em Denver, por ocasião do VIII Dia
Mundial da Juventude, bradava:
com o tempo, as ameaças contra a vida não diminuíram. Elas,
ao contrário, assumem dimensões enormes. Não se trata apenas de
ameaças vindas do exterior, de forças da natureza ou dos “Cains”
que assassinam os “Abéis”; não, trata-se de ameaças programadas
de maneira científica e sistemática. O século XX ficará considerado
uma época de ataques maciços contra a vida, uma série infindável
de guerras e um massacre permanente de vidas humanas inocentes.
Os falsos profetas e os falsos mestres conheceram o maior sucesso
possível (1994, p. 419).
No Brasil, a cifra dos assassinatos ultrapassou os 57 mil em
2016, os 59 mil em 2017 e 51 mil em 2018 (FBSP, 2019). Uma ci-
dade na faixa de 55 mil habitantes é apagada sistematicamente todo
ano nesta nação. Está em curso no país um verdadeiro massacre de
jovens, particularmente de negros pobres, sem falar no feminicídio.
Portanto, Caim e Abel, enquanto expressão do fratricídio, apon-
tam para um problema real e presente. Como bem formula Müller:
“A figura de Caim é um símbolo. A história de Caim e Abel exprime,
num quadro de violência elementar, algo da essência do pecado: ela
é nossa história”(1965, p. 73) e muito atual. Há uma saída?
O caminho
Diversamente dos mitos, o texto bíblico não fica no passado, an-
tes quer trabalhar a questão no leitor para tentar quebrar a partir dele
esta rivalidade que devora. É uma pedagogia curativa. Wénin destaca
esta genialidade do narrador: “O modo de relatar friamente as coisas
produz, efetivamente, no leitor um sentimento análogo ao de Caim.
[...] Na realidade tudo se passa como se, por meio de Caim, o narra-
dor levasse o leitor para sua própria história... ” (2011, p. 135).
Ao iniciar a leitura do texto, não raro o leitor entende que Caim
é “vítima de Deus” por ter seu sacrifício rejeitado e se coloca do
lado de Caim contra Deus. Quantos não assumem as dores de Caim
46
convencidos de que Deus é injusto ao rejeitar seu sacrifício (cf. v.
5a)? Onde já se viu um Deus com tais preferências? Quantas pessoas
e setores da Igreja não se escandalizam com a opção preferencial
da Igreja pelos pobres?34 Não é raro assumirmos a postura de Caim
fazendo-nos de vítimas. É mais cômodo que assumir a via do ama-
durecimento. Wénin faz uma observação pertinente sobre isso: “É
que o ciumento tem o sentimento de ser a inocente vítima de uma
injustiça e sofre por causa dela. Cria-se destarte nele uma forma de
ilusão que consiste em crer que o problema não está nele mas no
outro, o que o impede de vê-lo como irmão”(2011, p. 143).
À medida em que a leitura avança, o leitor vê Abel se tornar
vítima de Caim e passa a se colocar do lado de Abel contra Caim.
São reações humanas e bonitas fazer-se solidário ao lado da vítima.
Todavia, é prudente não ter a tentação de avaliar o texto apenas a
nível de sentimento sem deixar-se interpelar por ele35.
Na verdade, Caim e Abel são figuras paradigmáticas para todo
ser humano. O leitor pode se encontrar neles. Não são figuras do
passado, podem estar dentro de cada um de nós. Ambos são fracos e
por ambos Deus opta, estende sua misericórdia, vem ao encontro da
fraqueza para fazer crescer.
O texto quer desarticular em nós sentimentos e raciocínios que
negam a alteridade, negam o outro fraco, impossibilitando o encontro,
a fraternidade. Eis a chance de sermos sinal do encontro num mundo
“desencontrado”. É um convite a promover a cultura do encontro e
do diálogo como insiste o papa Francisco. Algo que pressupõe a opção
pelo fraco. O diálogo pressupõe dois sujeitos, relações horizontais e
não verticalizadas, na linguagem comum: “de cima pra baixo”. Não
pode haver diálogo entre sujeito e objeto, relações opressoras. A alteri-
dade é pressuposto elementar para a relação entre iguais.
Conclusão
Ao longo deste estudo viu-se que a violência não era um problema
das civilizações antigas, dos mitos, coisa do passado, mas do presente.
O texto sugere dois eixos básicos que podem ser luz para o crente.
O eixo da fé (teológico)
Ressaltou-se ao longo da abordagem os vários paralelos entre
este episódio e aquele de queda do primeiro casal no capítulo pre-
cedente. Segundo Blenkinsopp, “tudo indica que as duas passagens
então unidas no sentido de que o que ocorre no jardim determina o
que tem lugar depois da expulsão” (1999, p. 96). Na mesma linha,
Zenger afirma: “Gn 3 descreve o lado interno, enquanto Gn 4 o lado
externo do ser humano que tornou-se, isto é, torna-se culpado. O
fratricídio enraíza-se no abandono de Deus e torna manifesto este
abandono” (1983, p. 22). Concordamos que o episódio do fratri-
cídio decorre do rompimento com o Criador. Sem ele a pessoa vai
involuindo, isto é, vai se desumanizando e se animalizando, passa a
reproduzir comportamentos reservados aos animais sem palavra e
sem razão. Ora, o inverso é também verdadeiro, restaurar a relação
e a harmonia com o Criador é decisivo na construção da fraternida-
de. Noutras palavras, não tem fraternidade sem experiência séria do
Pai, sem fanatismo que cega. O processo de tornar-se irmão implica
também tornar-se filho. Encontrar o outro no Outro e vice-versa.
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RELIGIOSO IRMÃO: MEMÓRIA E
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65
FRATERNIDADE: DOS PRINCÍPIOS DO “SER
IRMÃO” E DO “SENTIR-SE IRMÃO”
73
cuidado. Dar nome vem com a missão de sermos responsáveis pelo que
nomeamos; de sermos criativos sobre como mais e melhor servir; de
sermos cuidadosos da vida nas realidades de morte que se nos acercam.
Deus começa Sua obra e, de certo modo, pede que a continue-
mos. Ele mesmo faz do humano senhor sobre os demais seres cria-
dos, colocando-nos em pé de igualdade entre nós, seguindo Seu divi-
no exemplo: o bem que qualquer um é chamado a fazer no mundo,
todos são chamados a fazer.
74
em que convida à missão, convoca também à fraternidade, como
condição necessária à vocação posta em comum para a maior glória
divina e salvação de todos.
Para concluir
Em síntese, a oferta dessa oficina levou à consideração apro-
fundada dos religiosos Irmãos presentes, no tocante a que os sen-
timentos tendencialmente negativos, existentes na relação fraterna,
fazem-nos crescer quando os superamos; que os sentimentos posi-
tivos presentes na relação fraterna nos fazem ter atenção redobrada
75
para sua manutenção e não enfraquecimento; e que o trabalho para
que o positivo não mude em negativo e o trabalho para que o negati-
vo mude em positivo na relação fraterna, é uma máxima encontrada
em Hill (2018) e deve estar escrita em nossos corações (e em nossos
post-its das várias áreas de trabalho que temos).
Desse modo, podemos, sumamente, concluir que por um per-
passar do “ser-irmão” ao “Sentir-se irmão” chegamos à evocação do
sentimento como resposta a um mundo profundamente carente
através do “sentir” e do “saber sentir” como laços necessários entre o
sentimento e a cognição.
Inferimos, também, que a base da fraternidade não pode pres-
cindir do sentimento de si; do sentimento do outro; do sentimento
do mundo; e do sentimento de Deus. Dar nome aos sentimentos
e às pessoas com as quais sentimos e somos é, nada menos que fa-
zer existir, assenhorear-se, dar uma missão e fazer um convite para
juntos sermos mais. Em suma, “sentir-se irmão” é simplesmente ser
sempre o seu melhor no mundo.
Por essa razão, a fraternidade nos desafia a criar laços de comu-
nhão com todos, a sermos criadores de comunidades fraternas, nos
sentindo parte ativa da comunidade, comprometendo-nos em nos-
sos bairros, cidades, estados e países, com aquilo que está acontecen-
do hoje em nosso mundo, para nos identificarmos com as alegrias e
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de nosso tempo,
principalmente os pobres e os que sofrem. Enfim, que tudo que seja
humano tenha eco em nossos corações.
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78
DIGA-ME COM QUEM TU ANDAS
O paradigma trinitário
A identidade de todo cristão e toda cristã tem necessariamente,
desde o ponto de vista da fé, como seu eixo articulador, o modo de
ser do Deus no qual acredita. Assim sendo, nosso paradigma para
pensar a identidade não pode ser diferente do que sustenta a experi-
ência cristã, o Deus-Trindade.
No ser de Deus, cada uma das pessoas que o configuram –- Pai,
Filho e Espírito –- tem sua identidade ao dar-se plenamente aos ou-
tros e, no mesmo movimento, reciprocamente, acolher plenamente
o ser dos outros. É o que a teologia trinitária costumou chamar de
pericorese trinitária (BOFF, 1986, p. 156-102).
Ou seja, o modo de ser do Deus-Trindade nos ensina que a iden-
tidade não é construída a partir de si mesmo, mas a partir do outro.
Paradoxalmente, a identidade é constituída na relação com o outro.
Em outras palavras, somos capazes de construir nossa identidade na
medida em que olhamos, interpelamos e interagimos com os outros e
outras e nos deixamos por eles e elas olhar, interpelar e provocar.
81
Como então, a partir deste paradigma trinitário pericorético,
resgatar nossa identidade de religiosos leigos na Igreja e na socie-
dade? Como acabamos de dizer, com certeza não o lograremos se
ficarmos olhando-nos a nós mesmos...
A partir de uma análise de nossas relações com outros modos de ser,
poderemos sentir, pensar e atuar nossa identidade de religiosos irmãos.
83
Neste esquema piramidal que retrata o que a autora chama de
Modelo Romano Constantiniano Patriarcal de Igreja, vemos que a
VRC feminina e os religiosos homens se encontram numa situação
muito semelhante. Ambos os grupos estão localizados num territó-
rio intermediário da Igreja onde se mesclam submissão e dominação.
Para usar uma imagem, poderíamos dizer que se encontram numa
“terra de ninguém” ou, numa figura teológica, estão “no limbo”.
As religiosas, neste paradigma de Igreja, sofrem uma dupla sub-
missão. Por sua condição feminina, encontram-se submissas aos ho-
mens. Por sua condição leiga, encontram-se em condição inferior
na relação aos homens clérigos. Porém, por sua condição de virgens,
têm um lugar privilegiado em relação às outras mulheres. Primeira-
mente, em relação às mulheres esposas e mães e, com muito mais
distância, em relação às mulheres não-casadas, mães solteiras, sepa-
radas, lésbicas, prostitutas e outras mulheres marginalizadas...
Os religiosos leigos, por sua vez, pela sua condição masculina
84
e pelo celibato, estão numa posição privilegiada em relação a todo
tipo de mulher, inclusive as religiosas. Porém, por sua condição de
leigos, estão inferiormente situados em relação aos clérigos, sejam
estes do clero secular ou religioso, e inclusive aos clérigos de suas
congregações ou ordens, no caso de religiosos leigos vivendo em
congregações mistas.
Como se pode ver no esquema, na Igreja há setores que vivem
uma situação de déficit de cidadania eclesial. Por um ou outro fator,
não podem viver ativa e plenamente sua pertença ao Povo de Deus.
Ali estão os leigos, homens ou mulheres e, entre estas, as religio-
sas, os negros e negras, os povos indígenas, os separados e separadas,
casais vivendo em segunda união ou em outras situações irregulares
diante do Direito Canônico, as mães solteiras, os e as homossexuais,
os e as que pertencem a outras igrejas cristãs, etc.
Numa situação de tensão intra-eclesial, quem está num espaço
intermediário tem duas opções: colocar-se do lado de cima, dos que
podem; ou colocar-se do lado debaixo, dos que não podem.
Concretamente, a tentação de clericalização da VRC leiga mas-
culina é grande e real. Afinal, quem não gosta de estar do lado de
cima da pirâmide? Aceitar essa solução, no entanto, seria negar a
própria identidade...
A alternativa, a nosso modo de ver, é outra. É intensificar as
relações com os que estão abaixo. É na relação com estes setores
marginais da Igreja que os religiosos leigos podem reconstruir sua
identidade, de modo que possam ser, nas suas realidades específicas,
uma presença profética de um novo modo de ser Igreja. Uma Igreja
que já não se pense de modo hierárquico, mas de modo fraterno-
sororal, igualitário, onde a diferença de condição e de carisma sirva,
não para a negação, mas para a edificação de todo o corpo eclesial e,
nele, dos que parecem ser os membros mais débeis e necessitados de
cuidado (1Cor 12,23).
85
Um novo modo de ser Igreja, que poderia ser assim representado:
As relações sociais
Há outro espaço onde também se constrói a identidade dos re-
ligiosos leigos: são as relações sociais. Com efeito, sempre é bom
lembrar que nem a Igreja nem a VRC estão fora do mundo. Por bem
ou por mal, sempre estamos inseridos numa realidade social. Nela
somos e com ela interagimos. Mesmo se tentarmos nos afastar da
sociedade e romper toda relação com ela, seguiremos sendo, mesmo
que simbolicamente, funcionais ou disfuncionais a ela.
Toda realidade social, por mais simples e tranquila que possa
parecer, tem sempre um grau de complexidade e de tensão. Em todas
as realidades sociais há diversos atores com diferentes identidades e
com distintos e até contraditórios interesses. Se assim não fosse, já
estaríamos vivendo o Reino de Deus...
Enquanto religiosos leigos, nossa identidade também se constrói
no modo de sentir, interpelar e atuar ante e/ou com os diversos ato-
res sociais, tanto ativa como passivamente.
Historicamente, a VRC, tanto em sua primeira configuração na
vida monástica, como na segunda, a VRC mendicante, e na terceira,
a VRC missionária que surge com a modernidade, sempre nasceu e
construiu sua identidade na aproximação aos grupos eclesiais e so-
ciais marginalizados, em seus respectivos momentos históricos.
Com o tempo, no entanto, tanto as Ordens religiosas do pri-
meiro e segundo ciclo, como as Congregações do terceiro ciclo, esta-
beleceram relações privilegiadas com os grupos sociais intermédios e
superiores da sociedade e, nessas novas relações, reconstruíram suas
identidades e se relocalizaram em um novo lugar social, na maioria
dos casos, distante dos pobres e excluídos da sociedade. A clericaliza-
ção da VRC foi, ao mesmo tempo, causa e consequência inevitável
desta deslocação eclesial e social.
86
Os religiosos leigos, pela sua condição de marginalidade na Igre-
ja, foram, em muitos casos, os que mantiveram laços e relações com
os setores sociais e eclesiais que, como eles, eram marginalizados na
Igreja e/ou na sociedade.
No período pós-conciliar, dentro da dinâmica da inserção da
VRC, religiosos e religiosas reataram suas relações com setores popu-
lares marginais e, como vimos acima, começaram a reconstruir suas
identidades plurais na unidade da VRC.
Ao lado das religiosas que foram, sem sombra de dúvida, as pio-
neiras e as mais radicais nesse processo, os religiosos leigos também
tiveram uma presença significativa no mundo da inserção. Sua presen-
ça solidária e ativa nas lutas dos camponeses, negros, indígenas, sem-
terra, sem-teto, moradores de rua, dependentes químicos, migrantes...
fizeram com que fossem vistos com outros olhos – como bons, do lado
dos pobres; como maus, do lado dos ricos – e assim se começasse a
construir uma outra identidade da VRC leiga masculina. Foi um pro-
cesso de uma minoria profética, mas que, cremos, assinala o caminho
por onde temos que seguir e nos aprofundar se queremos reconstruir
a identidade da VRC e da VRC leiga que nos ponha outra vez nos ca-
minhos das origens de um novo modo de ser Igreja em busca de uma
Nova Sociedade, que seja antecipação do Reino de Deus.
Para concluir
Tempos de crise são sempre tempos de oportunidades. A crise
da identidade da VRC e, o que aqui nos interessa, da VRC leiga mas-
culina, é rica em oportunidades para a reconstrução de identidades.
O trabalho teórico, em nosso caso, teológico, é sempre impor-
tante neste momento. Temos que, a partir de nossa condição laical,
recolocar as grandes questões teológicas. Seja para libertar a teologia
(SEGUNDO, 1978) das amarras que lhe foram postas, seja para
resgatar velhos paradigmas teológicos, que nos permitam viver a ori-
ginalidade da proposta de Jesus.
87
Seguindo o acima proposto e pensando- o a partir da rica tra-
dição da VRC latino-americana naquilo que mais a caracteriza, a
opção pelos pobres e a luta contra toda forma de pobreza e morte,
vemos que a reconstrução da identidade da VRC masculina leiga,
pode dar-se sobre dois eixos: na aproximação, diálogo e cooperação
com os setores marginalizados na Igreja, e na aproximação, diálogo e
cooperação com os setores marginalizados na sociedade.
Referências
BOFF, Leonardo. A Trindade, a sociedade e a Libertação. Petrópolis:
Vozes, 1986.
DOCUMENTOS DO VATICANO II. Constituições, decretos e
declarações. Petrópolis, Vozes, 1966.
FIORENZA, Elisabeth S. Los Caminos de la Sabiduría: una intro-
ducción a la interpretación feminista de la Biblia. Santander: Sal
Terrae, 2004.
JOÃO PAULO II. Vita Consecrata. Exortação Apostólica Pós-Sino-
dal sobre a Vida Consagrada e sua missão na Igreja e no mundo.
Roma, 25 de março de 1996. Disponível em: http://www.vati-
can.va/content/john-paul-ii/pt/apost_exhortations/documents/
hf_jp-ii_exh_25031996_vita-consecrata.html Acesso em: 20 de
fevereiro de 2020.
SEGUNDO, Juan Luis. A Libertação da Teologia. São Paulo: Loyo-
la, 1978.
88
IMPLICAÇÕES ÉTICAS DE JESUS IRMÃO
89
A tentação da lei permanecerá contínua ao longo da história do
cristianismo, já que muitos preferem a segurança das normas à inse-
gurança do seguimento de Jesus, a ética normativa à ética do amor
fraterno (MIRANDA, 2019, p. 59).
90
lhido de Deus. Isso significa que a fraternidade não dependia me-
ramente de uma descendência racial comum, mas de uma comum
eleição por Deus (RATZINGER, apud SATLER, 2015, p. 28).
Se no AT predomina o sentido biológico nas ocorrências da pa-
lavra irmão, aproximadamente metade das ocorrências dos termos
adelphos/adelphé no NT é usada de maneira figurativa, espiritualiza-
da, para falar das relações entre o povo de Israel ou entre os cristãos.
Adelphos ocorre pelo menos 343 vezes no NT, 13 das quais nos Atos
dos Apóstolos; Adelphé é usada 25 vezes. Não há, entretanto, uma
uniformidade no uso do termo (SATLER, 2015, p. 21).
Jesus não anula os laços biológicos, mas os relativiza em favor de
um projeto maior e mais radical do Reino de Deus: “Aqui estão a mi-
nha mãe e os meus irmãos, porque aquele que fizer a vontade de meu
Pai que está nos Céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12,49s).
Outro critério relevante para Jesus é o sofrimento, o qual amplia
a noção de concidadão de Israel, mediante a noção de ser próximo.
Na parábola do bom samaritano, ‘próximo’ não é somente o irmão na
fé, mas todo aquele que está na mesma situação existencial, sofrida.
Esta parábola, leva-nos a entender que não somos nós quem defini-
mos quem é o próximo e quem não o é, mas é a pessoa em situação de
necessidade que deve poder reconhecer quem é o seu próximo, ou seja,
‘quem teve compaixão por ele” (FRANCISCO, Angelus, 19.07.19).
91
lho, nosso irmão. É ele o sacerdote verdadeiro que sempre se oferece
por nós todos, mandando que se faça a mesma coisa que fez naquela
ceia derradeira.
Essas frases são muito significativas: os discípulos são aqueles
que agradecem ao Pai, juntamente com Cristo, que é, a um só tem-
po, Filho de Deus e nosso irmão. A frase seguinte o chama de “sacer-
dote verdadeiro”, que deseja que seu exemplo seja seguido, como na
ceia derradeira, ao lavar os pés e ao partir o pão.
A Oração Eucarística VI-d elenca algumas atitudes significativas
do ministério de Jesus:
Vós nos destes vosso filho, Jesus Cristo, nosso Senhor e redentor. Ele sempre
se mostrou cheio de misericórdia pelos pequenos e pobres, pelos doentes e
pecadores, colocando-se ao lado dos perseguidos e marginalizados. Com a
vida e a palavra anunciou ao mundo que sois Pai e cuidais de todos como
filhos e filhas.
A Oração Eucarística número VII, assim se refere com relação
a Deus Pai:
Jamais nos rejeitastes, quando quebramos a vossa aliança, mas, por Jesus,
vosso Filho e nosso irmão, criastes com a família humana novo laço de
amizade, tão estreito e forte, que nada poderá romper. Concedeis agora a
vosso povo tempo de graça e reconciliação.
Dessa vez, Jesus, “Vosso Filho e nosso irmão” inaugura uma
nova família humana, com um laço estreito de amizade. Pensar a
comunidade de discípulos nessas categorias descortina uma eclesio-
logia de amigos, circular, afetuosa. O oposto disso é uma Igreja hie-
rárquica, meramente cumpridora de preceitos e normas frias. Uma
Igreja ministerial terá, sim, ministros específicos para funções espe-
cíficas, mas que em nada se sobrepõem aos demais, seus irmãos. Re-
força-se que Jesus continua a ação do Pai, que cuida de todos como
filhos e filhas. Jesus tem um lugar social, uma missão bem específica
em favor dos deserdados da terra. Implanta-se uma fraternidade in-
clusiva, na qual ninguém está banido, graças a misericórdia de Deus.
92
Por fim, destaca-se a Oração Eucarística Para Crianças (n. X),
com os seguintes enunciados: “Jesus veio tirar do coração a maldade
que não deixa ser amigo e amiga e trazer o amor que faz a gente ser
feliz. Ele prometeu que o Espírito Santo ficaria sempre em nós para
vivermos como filhos e filhas de Deus”.
Ao nomear Jesus como nosso irmão, a Igreja elege o Verbo en-
carnado como o garantidor da fraternidade humana. Para isso, os
muros que impediam as pessoas de serem irmãs foram quebrados (Ef
2,14), e nesta nova humanizada já não há nem escravos nem livres,
nem homens nem mulheres, nem grego nem judeu (Gl 3,28).
Conclusão
As comunidades dos discípulos têm ainda hoje a mesma missão
de outrora: anunciar à humanidade a ressurreição de seu Mestre e
Senhor, como grande esperança para todo homem e mulher. Este
Mestre e Senhor se fez nosso irmão, nosso parente próximo, alguém
lá de casa, coroando a dinâmica da encarnação, fazendo-se alguém
que serve, que lava os pés, que prepara um banquete para os seus,
benditos do Pai.
Refletir sobre a pessoa de Jesus como nosso irmão deve, em pri-
meiro lugar descer Deus de um trono inacessível, para fazê-lo assen-
tar-se conosco, comungar conosco das alegrias e tristezas da vida.
Em seguida, fará de nós uma comunidade de irmãos, reunidos ao
redor de nosso irmão mais velho, que nos ‘primeireou’ (Papa Fran-
cisco), que nos franqueou a vida nova do Reino.
Urge reaprender a ser irmão, estar próximo, disponível. Urge
reaprender a sermos fraternos, simpáticos, compreensíveis e bem-
humorados, não desejando estar sobre os demais, nem na Igreja,
muito menos na sociedade, mas nivelar-se, abaixar-se, para poder
99
caminhar lado a lado. Deixar o camarote e seguir a pé a aventura
da vida. Na vida familiar, se nos chega a notícia de que nosso irmão
precisa de nós, tudo cessa, cancelam-se os compromissos, pois “meu
irmão precisa de mim!”
Nessa comunidade cristã haverá diferentes dons, carismas e mi-
nistérios, mas com um grande cartaz à porta: bem-vindos a uma
comunidade de irmãos!
Referências
ARAÚJO, JR, Oton da Silva. A mística familiar de Francisco de Assis e
suas implicações éticas. Grande Sinal, Petrópolis, vol. 73, n. 01, p.
71-82, Jan./Jun. 2019.
CASTILLO, José Maria. A Humanidade de Jesus. Petrópolis, Vozes, 2017.
FERRE, José Maria. O Religioso Irmão: uma maneira de viver a fraterni-
dade de Jesus. Sal Terrae 103 (2015), 805-818.
FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. Exortação apostólica pós-sino-
dal sobre o anúncio do evangelho no mundo atual, Vaticano, 2013.
____. Amoris Laetitia. Exortação apostólica pós-sinodal sobre o amor na
família, Vaticano, 2016.
____. Admirabile Signum. Carta Apostólica sobre o significado e valor do
presépio, Vaticano, 2019.
MIRANDA, Mario de França. A Igreja em transformação: razões atuais e
perspectivas futuras. São Paulo: Paulinas, 2019.
SATLER, Fabiano Aguilar. Todos vós sois irmãos: Jesus nosso irmão e os
religiosos irmãos na vida religiosa consagrada, Paulus, 2015.
TORRES QUEIRUGA, Andres. Repensar a Cristologia. São Paulo: Pau-
linas, 1999.
100
A CONTRIBUIÇÃO DO RELIGIOSO
IRMÃO PARA OS NOVOS CAMINHOS DA
CONVERSÃO SINODAL
102
Uma Igreja Sinodal - Novos caminhos de conversão
Desde o início do seu pontificado, a sinodalidade está entre as
preocupações do Papa Francisco. Trata-se não somente de um tema
importante, mas de um modo próprio de ser Igreja, em fidelidade aos
caminhos do Evangelho e das primeiras comunidades cristãs. Essa
perspectiva eclesial do papa Francisco ficou evidente na sua apresen-
tação na noite da eleição. Dizia o Sumo Pontífice: “O dever do con-
clave era dar um Bispo a Roma. Parece que os meus irmãos Cardeais
foram buscá-lo no fim do mundo. Mas, aqui estamos. E agora come-
cemos este caminho, Bispo e povo, o caminho da Igreja de Roma, que
preside na caridade a todas as Igrejas, um caminho de fraternidade, de
amor e de confiança entre nós” (FRANCISCO, 2013). Transparece,
nessas palavras iniciais de saudação do papa Francisco, a perspectiva
da Igreja Povo de Deus do Concílio Vaticano II e a sua opção de per-
correr efetivamente os caminhos da sinodalidade.
Ao apresentar cada uma das quatro conversões nas conclusões,
o Sínodo destaca a expressão “novos caminhos”. Além dos aspectos
próprios ou específicos dos processos de conversão, será impor-
tante observar quais são esses possíveis novos caminhos propostos
pelo Sínodo. Serão eles tão novos assim? Ou talvez sejam percursos
transitados em outras épocas, mas pela sua importância evangélica
precisam ser recuperados para que a Igreja cumpra a sua missão
evangelizadora na construção do reino de Deus.
O capítulo V do documento conclusivo do Sínodo, divide-se
em três partes ou blocos. A primeira destaca a sinodalidade missio-
nária da Igreja. Por sua vez, a segunda, propõe novos caminhos para
a ministerialidade eclesial. E a terceira e última, aborda especifica-
mente os novos caminhos para a sinodalidade eclesial.
A sinodalidade, segundo a primeira parte do capítulo V do do-
cumento (DOCUMENTO..., n. 83), foi o modo de ser da Igreja
primitiva, conforme o capítulo 15 dos Atos dos Apóstolos. Também
é a perspectiva que caracteriza a Igreja do Concílio Vaticano II, en-
tendida como Povo de Deus, com destaque para a igualdade e a co-
103
mum dignidade de todos, diante da diversidade de ministérios, ca-
rismas e serviços. Uma Igreja que privilegia o caminhar juntos requer
a participação de todos. Para poder caminhar juntos há necessidade
de a Igreja converter-se à experiência sinodal. Em termos práticos,
isso significa fortalecer a cultura do diálogo, da escuta, do discerni-
mento, do consenso, e construir, juntos, alternativas para decidir
comunitariamente, e, dessa forma, responder aos desafios pastorais,
superando o clericalismo e as mais diversas formas de imposição.
A sinodalidade, no sentido apenas mencionado, é uma dimensão
constitutiva da Igreja, que requer uma espiritualidade de comunhão
e um discernimento comunitário, ouvindo o chamado de Deus em
cada situação histórica. A sinodalidade está associada a um estilo de
viver e de agir com implicações concretas tanto para a organização, a
gestão e o planejamento das comunidades. As conclusões do Sínodo
retomam o importante tema do sensus fidei (DOCUMENTO..., n.
88) que abordaremos mais adiante.
O segundo bloco do capítulo V, o mais longo, trata dos novos
caminhos da ministerialidade eclesial. Retoma-se a perspectiva de
uma Igreja toda ela ministerial do Concílio Vaticano II, com des-
taque para a missão dos leigos. Os leigos são considerados atores
privilegiados da presença da Igreja na região amazônica. Uma das
urgências manifestada é a promoção equitativa dos ministérios tanto
para homens quanto para mulheres. Em sintonia com a Evangelii
Gaudium, o Sínodo quer “ampliar os espaços para uma presença
feminina mais incisiva na Igreja” (EG 103). A missão da Vida con-
sagrada na Amazônia, segundo o Sínodo, é proclamar a Boa Nova,
acompanhando de perto os povos indígenas e os mais vulneráveis.
Um destaque especial merece a inserção e a itinerância dos consagra-
dos junto aos empobrecidos e excluídos.
A terceira e última parte do capítulo V, apresenta os novos ca-
minhos para a sinodalidade eclesial. Em primeiro lugar, destaca a
importância de estruturas sinodais regionais. Propõe-se, também, a
criação de uma Universidade Católica Amazônica, com a finalidade
de promover a investigação interdisciplinar, a formação docente e a
104
produção de material didático, em sintonia com a riqueza cultural da
região. Outra questão retomada pelo Sínodo é a liturgia inculturada,
que valorize a cosmovisão, as tradições, os símbolos e os ritos ori-
ginários, integrando o transcendente, o comunitário e o ecológico,
ligada aos sofrimentos e as alegrias das comunidades.
O rosto de Igreja que emerge das conclusões do Sínodo é efe-
tivamente sinodal. Tendo como referência os Atos dos Apósto-
los e o Concílio Vaticano II, busca a conversão sinodal através da
cultura do diálogo, da escuta, do discernimento, do consenso e da
construção comunitária de alternativas para responder aos desafios
pastorais desta imensa região do planeta. Diante da diversidade de
ministérios, carismas e serviços fundamentais para a vida eclesial se
reconhece a igualdade e a comum dignidade de todos os integrantes
do povo de Deus em uma Igreja pobre, com e para os pobres, desde
as periferias e a vulnerabilidade. Todos os aspectos da vida eclesial
são importantes para a conversão sinodal. É por exemplo, o caso
da liturgia inculturada. O processo de conversão sinodal requer re-
conhecer o “efetivo exercício do sensus fidei de todo povo de Deus”
(DOCUMENTO..., n. 88).
108
fundação, em 1680 até 1923, um grupo relativamente significativo
de irmãos não fazia votos (SAUVAGE, 2017, p. 7). Como os irmãos
professos, eles viviam em comunidade, desempenhavam a mesma
missão e participavam da vida espiritual. Eram considerados, por-
tanto, Irmãos tanto pela comunidade local quanto pela comunidade
religiosa. A perspectiva mais jurídica começou a entrar com mais
força a partir do Código de Direito Canônico de 1917.
Uma das crises que quase levou o Instituto a desaparecer foi no
período de 1688 a 1691. La Salle havia tomado a decisão de abrir a
primeira obra educativa da recém-fundada instituição em Paris. As
obras e comunidades de Reims estavam bastante bem. Contudo, La
Salle sentiu a necessidade de abrir a Sociedade das Escolas Cristãs
para além das fronteiras de uma Diocese. A abertura da Escola na
Paróquia de São Sulpício de Paris foi muito difícil. A ingerência do
Pároco foi insuportável. Em setembro de 1688, ele havia decidido
dispensar os Irmãos. A situação foi revertida com a chegada de um
novo Pároco, mas mesmo assim, a crise perdurava.
Além da crise de Paris, a situação também começou a desandar
em Reims. O “seminário” para professores rurais praticamente havia
fechado. Metade dos Irmãos de Reims (oito sobre dezesseis) e a meta-
de dos Irmãos de Paris (dois sobre quatro) haviam deixado o Instituto.
As novas vocações eram escassas. O Irmão Henri L’Heureux, que La
Salle havia enviado para se preparar ao sacerdócio e ser o futuro Supe-
rior Geral, havia falecido. O clima reinante entre os irmãos, tanto em
Reims quanto em Paris, era de consternação, perplexidade e cansaço
físico e espiritual. Diante dessa situação, o próprio La Salle entrou em
crise, ao ver desmoronar o projeto para o qual ele havia devotado as
suas melhores energias nos últimos dez anos. Parece que quando La
Salle, com os primeiros Irmãos, conseguia colocar dois ou três tijolos
na construção do Instituto nascente, as forças do maligno tiravam três
ou quatro. Uma situação verdadeiramente insustentável.
A reação de La Salle, tanto pessoal quanto com os irmãos, foi
estratégica e fundamental para o futuro do Instituto. São diversas as
iniciativas que vamos apresentar brevemente.
109
Diante da intenção do Pe. Baudrand, pároco de São Sulpício, de
impor o hábito eclesiástico aos irmãos, La Salle redige o Memorial
do Hábito. Mais do que defender uma vestimenta que revelasse a
identidade específica do irmão, diferente da identidade do presbítero
e do leigo, o documento foi uma intransigente defesa da autonomia
dos irmãos. Para La Salle era fundamental que os irmãos pudessem
realizar o seu ministério, de educar as crianças e os jovens, particular-
mente os pobres, com autonomia na Igreja e na sociedade.
Outra iniciativa importante foi o voto de associação de 21 de no-
vembro de 1691. Diante da crise avassaladora que estava devastando
o Instituto, La Salle, com mais dois Irmãos, Gabriel Drolin e Nicolas
Vuyart, comprometeram-se com um ato de esperança recriadora, con-
sagrando-se para o estabelecimento definitivo da Sociedade das Esco-
las Cristãs, através do voto de associação, mesmo que permanecessem
apenas os três e tivessem que pedir esmola e viver somente de pão. Esse
compromisso permaneceu secreto até a volta do Ir. Gabriel Drolin de
Roma, em 1728. Esse voto ficou conhecido como o voto heroico.
Mesmo com o voto heroico apenas mencionado, a crise não
amainava. A reação mais decisiva e fundamental veio com o voto de
associação de 1694. Desde o domingo de Pentecostes até o domingo
da Santíssima Trindade, La Salle reuniu em Vaugirard, doze irmãos.
Inicialmente os irmãos fizeram um retiro e depois se constituíram
em assembleia deliberante, considerada o 1º Capítulo Geral do Ins-
tituto. Os doze irmãos com La Salle comprometeram-se para ter
“juntos e por associação” as escolas gratuitas.
A quarta e decisiva iniciativa para a vida e o futuro do Instituto
foi a Carta dos Irmãos de Paris, de 1º de abril de 1714. Devido a pro-
blemas jurídicos La Salle teve que se afastar de Paris. Foi para o sul da
França. A situação das comunidades de Paris e arredores era ambígua.
Com o afastamento de Paris, La Salle deu a impressão de ter deixado
de ser Superior Geral. Diante da confusão reinante, os irmãos de Paris
enviaram uma carta a La Salle no dia 1º de abril de 1714. Por um lado,
os irmãos pedem humildemente, por outro, ordenam a La Salle voltar
e reassumir a direção geral do Instituto: “nós vos pedimos humilde-
110
mente e vos ordenamos em nome de parte do Corpo da Sociedade, ao
qual prometeste obediência, de reassumir imediatamente o cuidado
do governo geral de nossa sociedade”. Aqui constatamos que a dinâ-
mica do voto de associação produziu o seu efeito. Agora são os irmãos,
religiosos leigos, que ordenam a um sacerdote, para que cumpra os
compromissos que havia assumido com o corpo da sociedade.
O voto de associação para o serviço educativo aos pobres foi tão
decisivo na vida Instituto que é importante destacar alguns de seus
elementos mais característicos. Como já foi referido anteriormente,
trata-se de um ato de esperança teologal que gerou uma nova dinâ-
mica na vida do Instituto. Estamos diante de um novo começo. A
questão fundamental foi – como podemos abandonar as crianças
e os jovens, particularmente os pobres, que Deus nos confiou? O
voto de associação é um voto de um projeto. Mais do que indicar
qualquer tipo de limitação ou restrição, o central é comprometer-se
com a obra de Deus para exercer o ministério que Ele confiou ao
Instituto. É um ato de fé no Deus da vida que se encarna na realida-
de concreta para libertar as crianças e os jovens de toda e qualquer
forma de opressão ou escravidão.
Sensus Fidei
Segundo o Sínodo para Amazônia, “não se pode ser Igreja sem re-
conhecer um efetivo exercício do sensus fidei de todo o Povo de Deus”
(DOCUMENTO..., n. 88). Inspirado no Concílio Vaticano II (LG
12) e na tradição da Igreja (COMISSÃO..., 2014), o Sínodo retoma o
tema do sensus fidei. O sensus fidei é a capacidade ativa ou a sensibilidade
que torna o povo de Deus capaz de receber e compreender a fé. É um
dom de Cristo dado aos fiéis que os torna capazes de compreender,
viver e anunciar as verdades da revelação divina (COMISSÃO..., n.
46). Para o Concílio Vaticano II, todos os batizados participam, cada
um a seu modo, dos três ofícios de Cristo; profeta, sacerdote e rei.
O documento da Comissão Teológica Internacional - O sensus
fidei na vida Igreja – distingue o sensus fidei fidelis do sensus fidei fidelium.
111
O sensus fidei fidelis é a capacidade do próprio fiel de fazer um discer-
nimento justo em matéria de fé, e o sensus fidei fidelium é o sensus fidei
na sua forma eclesial. Ou seja, é o “instinto de fé da própria Igreja” (CO-
MISSÃO..., n. 3).. São duas realidades distintas, mas intimamente
conexas. Esta convergência (consensus) desempenha um papel vital
na vida da Igreja.
O sensus fidei fidelis permite ao fiel: a) discernir se um ensinamen-
to particular ou prática, que se encontra na Igreja, é coerente ou
não com a verdadeira fé; b) distinguir o essencial do secundário; c)
identificar e colocar em prática o testemunho a dar de Jesus Cristo
no contexto histórico e cultural particular (COMISSÃO..., n. 60).
Além disso, “capacita o fiel a julgar de forma espontânea se algum
ensinamento particular está ou não em conformidade com o Evan-
gelho e com a fé apostólica” (COMISSÃO..., n. 49). Graças ao sensus
fidei, continua o documento da Comissão Teológica Internacional,
“e apoiado na prudência sobrenatural dada pelo Espírito, o fiel é
capaz de perceber, em contextos históricos e culturais novos, quais
podem ser os meios mais apropriados para dar testemunho autênti-
co da verdade de Jesus Cristo, e, além disso, nele conformar as suas
ações” (COMISSÃO..., n. 65).
Uma vez que, cada fiel participa da fé Igreja, o sensus fidei fidelis
não pode estar separado ou dissociado do sensus fides fidelium, ou seja,
do sensus Ecclesiae. A Igreja inteira, hierarquia e leigos juntos, é res-
ponsável pela revelação contida na Sagrada Escritura e na Tradição.
Por isso, os fiéis são sujeitos vivos e ativos no seio da Igreja. Diante
das mutáveis situações históricas, o sensus fidei fidelium tem um papel
essencial a desempenhar. “Não é apenas reativo, mas também proa-
tivo e interativo, para que a Igreja e todos os seus membros realizem
a sua peregrinação na história” (COMISSÃO..., n. 70). Este sentir
cum Ecclesiae possibilita caminhar em meio às vicissitudes e ambigui-
dades históricas, iluminada pelo Espírito Santo, no horizonte e na
configuração do reino de Deus.
O sensus fidei constitui um verdadeiro empoderamento de todo e
qualquer cristão na vida da Igreja e na construção do reino de Deus.
112
Trata-se de um elemento fundamental, não somente para a Igreja
amazônica, mas para as comunidades eclesiais de toda e qualquer
latitude. O que está em jogo é a força do Evangelho e o seu poder
transformador na vida Igreja e da sociedade.
115
PAISAGEM RELIGIOSA: RELIGIOSO IRMÃO E
ECOLOGIA INTEGRAL
122
que inconscientemente – ou seja, as tensões entre grupos que rei-
vindicam novidade a partir de seus projetos de vida e grupos que
postulam a tradição, relativizando a participação dos novos sujeitos.
A disputa na construção da paisagem religiosa é vista com cla-
reza e assumida como dever dos sujeitos: “Eu preciso ter claro meus
sonhos e encontrar os caminhos para a mudança e encontrar os ca-
minhos para realizá-los, pelas vias institucionais”. “Tenho que saber
vender meu sonho, saber propor, expressar com claridade para a ins-
tituição”. O dever é entendido desde a perspectiva do valor das iden-
tidades, exatamente como descrito no primeiro movimento: “Há
muita riqueza desde a minha identidade e a identidade dos demais”.
Em suma, o reconhecimento da presença do primeiro movimen-
to pode ser verificado no testemunho a seguir. “Minha formação foi
há sessenta anos. E o que escutei hoje, com a transparência, vem do
interior. Há 70 anos não teríamos chance de compartilharmos isso
que estamos discutindo hoje. Se compartilharmos os sonhos podere-
mos ter sonhos coletivos, no mistério da Trindade”.
Quanto ao segundo movimento, embora com menor frequência,
é possível ser identificado em elementos como a “fraternidade como
testemunho na individualidade moderna”. Para o sujeito da fala, a fra-
ternidade, construída com base no segundo movimento pode teste-
munhar comunhão se opondo ao individualismo moderno. O grupo
consultado reconhece a presença deste segundo movimento na cons-
trução da paisagem religiosa das comunidades, por exemplo, quando
um dos religiosos irmãos desabafa: “Para mim dói quando a Institui-
ção te trata com injustiça e quando ao religioso jovem se atribui o peso
histórico que tem muitos nomes, herança, legado. E eu, o que me dei-
xam construir? Eu valorizo o que fizeram os irmãos do passado, mas
não gosto que usem isso para justificar o que dizem que eu devo fazer”.
Tal movimento parece estar ancorado em “uma tendência ao
comodismo e a fugir novamente do mundo” e provoca uma “tensão
anacrônica, porque mencionamos situações do passado para explicar
as coisas do presente”. Mais uma vez é explicitada determinada rela-
123
ção – ainda não muito explorada neste campo de pesquisa – entre os
movimentos descritos por Hervieu-Léger e os aspectos geracionais no
interior das comunidades de religiosos irmãos. No âmbito das relações
de poder, “obedecemos a um projeto, mas nem sempre se constroem
os projetos comunitários a partir dos projetos dos irmãos”.
A riqueza das narrativas poderia, agrupadas por categorias de
análise – o que não é objetivo neste trabalho – constituir uma vasta
possibilidade de novos problemas de pesquisa e aprofundamentos
que esperamos, possam ser sequenciados por outros autores.
Olhar amoroso
Conhecer, reconhecer e recordar o passado implica, na maté-
ria em revisão, um olhar amoroso de quem trilhou ou se propõe a
trilhar os caminhos da gratidão, do perdão e da reconciliação para
124
reconhecer os dois movimentos descritos na seção anterior: um que
considera a subjetividade dos sujeitos na construção da paisagem re-
ligiosa e outro que a relativiza e regula o grupo desde um núcleo rígi-
do (tradição, fórmulas rígidas, imposições, negação dos sujeitos etc).
Perceber os dois movimentos, ainda que não se concorde com
o ângulo da análise proposta para identificação dos mesmos, é um
passo crucial para dar materialidade histórica aos fantasmas da vida
comunitária, sempre culpados por todo fracasso, mas nunca respon-
sabilizados, justamente por não terem nome, forma e por estarem
totalmente no plano das abstrações. Reconhecer que a paisagem re-
ligiosa é construída com disputa é o primeiro passo para a aceitação
da existência do outro totalmente outro, com seus compromissos e
promessas e, sobretudo, com seus direitos.
O olhar amoroso precisa, inclusive, percorrer os corredores es-
curos das violações de direitos humanos cometidas na e pela vida
consagrada por razões de abuso de poder ou cega obediência aos fan-
tasmas dos conflitos internos e desenfreada busca de dominação dos
sentidos e dos corpos. O reconhecimento, porém, não é suficiente.
O olhar amoroso lança as bases para a reconciliação e o perdão, sem
omitir justiça, e buscá-la com todo o coração, aos que foram feridos,
reduzindo danos, restaurando relações e o bioma da fraternidade51.
Importa também que esse olhar amoroso perpasse os projetos forma-
tivos das novas gerações.
Olhar cuidadoso
Em termos práticos, o olhar cuidadoso defende e promove no
ambiente comunitário a possibilidade de coexistência harmoniosa,
a partir de homens históricos e não entidades folclóricas ideais, que
povoam abstratamente o imaginário religioso das cenas pitorescas
51 A expressão bioma da fraternidade refere-se à interligação e interdependência
do ecossistema (Laudato Sì, 2015, p. 29), como uma comunidade de
organismos vivos vinculados ao conceito de bioma entendido como conjunto
dos seres vivos de uma determinada área ou o conjunto de ecossistemas
terrestres Coutinho (2006, p. 14).
125
do Jardim do Éden, ou alegóricos, como o paraíso de William Blake
(1808). Por isso, superiores/as e animadores/as, devem considerar
integralmente, na constituição das comunidades, na orientação para
os projetos de vida comunitária e no acompanhamento pessoal dos
religiosos irmãos, os religiosos com toda a sua história pessoal. Ter
em conta que eles são sujeitos de direitos civis e direitos humanos.
Mediar processos de disputa sadia da paisagem religiosa no interior
da comunidade e orientar o discernimento dos religiosos irmãos
cujos mecanismos de defesa podem trazer para o bioma da fraterni-
dade resistências e imposições verticais e inegociáveis que deturpam
o desenvolvimento dos irmãos e reduzem a capacidade profética da
comunidade de viver a missão a ela confiada. No plano do olhar
amoroso, inegociável é tolerar qualquer forma de imposição ou do-
minação da paisagem religiosa, dos sentidos e dos corpos.
O olhar cuidadoso traduz em vida, no interior das comunida-
des, a conversão pastoral da Evangelii Gaudium, a conversão ecológi-
ca proposta pela Laudato Si’ e as conversões cultural e sinodal acres-
centadas no Documento Final do Sínodo da Amazônia. Da mesma
forma, o número 42 da Exortação Pós-Sinodal “Querida Amazônia”
insiste que “se o cuidado das pessoas e o cuidado dos ecossistemas
são inseparáveis, isto torna-se particularmente significativo lá onde
a floresta não é um recurso para explorar, é um ser ou vários seres
com os quais se relacionar”. Esta expressão sintetiza, de forma bem
concreta, o entendimento do olhar cuidadoso, aplicado também ao
contexto da Vida Religiosa, entendida aqui como um ecossistema de
relações mútuas e corresponsabilidades fraternas.
As quatro conversões constituem um projeto ousado, inerente
aos projetos comunitários e projetos pessoais dos religiosos irmãos.
Elas indicam um caminho possível para a construção da paisa-
gem religiosa contemporânea com potencialidade para ampliação
da consciência sobre o mecanismo sociologicamente revisado nes-
te artigo que indica na direção do fortalecimento das alteridades,
emancipação dos sujeitos e seus corpos para uma entrega total e po-
tencialmente definitiva ao projeto que fundamenta sua experiência
religiosa e dá significado a toda a sua vida.
126
Olhar esperançoso
Olhar com esperança é organizar o futuro. Mas poucas são as
variáveis controladas pela experiência humana histórica52. A despeito
do que foge ao controle, importa aos religiosos irmãos o cultivo per-
manente da capacidade de ver a vida com positividade e entusiasmo.
O olhar esperançoso nesta jornada de conversão pode ser melhor
entendido com base no Horizonte Inspirador da CLAR.
A esperança na fraternidade, na realização pessoal e comunitária,
na defesa da vida, no reconhecimento das subjetividades, na valori-
zação e defesa das diferenças e na construção da paisagem religiosa
contemporânea demandam uma opção pela Ecologia Integral: o reco-
nhecimento da sacralidade da criação e da interdependência mútua
entre todas as criaturas. Essa esperança se manifesta denunciando a
exploração da Mãe Terra e a violação de seus direitos e de toda forma
de opressão da vida humana, adotando novas formas de consumo e
oferecendo, desde as comunidades, novas formas de sociabilidade
humana. O olhar esperançoso quer devolver os religiosos ao mundo,
convertê-los a ele, naquela perspectiva do verbo Esperançar que fez
de Dom Hélder Câmara um modelo de esperança, um religioso,
com suas circunstâncias, sua trajetória, os dramas e os enredos que
o conduziram na direção de uma atividade pastoral progressista, re-
volucionária, humanista e, por isso mesmo, profundamente cristã
(CONDINI, 2008, p. 10).
A esperança, construída hoje por religiosos irmãos jovens e
religiosos irmãos mais experimentados abre caminhos para superar
o paradigma analítico simplista das relações geracionais. Endos-
sar mecanismos de discriminação, controle dos corpos e sentidos e
perpetuar visões de mundo colonialistas, justificando conflito gera-
cional, é um equívoco persistente na literatura pastoral e religiosa,
frequente nas narrativas comunitárias.
128
da paisagem religiosa em sua constante busca de atualização pessoal
e pastoral. A avaliação pessoal e comunitária do trajeto percorrido e
do percurso ainda necessário para converter-se ao mundo não é tarefa
retórica. Implica em avaliação séria e contínua dos hábitos de consu-
mo dos religiosos, da capacidade de reduzir o impacto de sua vida no
planeta, do compromisso com a ética da vida e da disposição autêntica
de buscar a verdade de si e de comunicá-la ao mundo.
Em nível institucional, a mudança da paisagem religiosa e a
identificação dos mecanismos que a regulam, como os abordados
neste trabalho e os que ainda necessitam de análise ou revisão, tam-
bém exigem superação da retórica. As instituições mantenedoras da
vida consagrada podem, com algum esforço político e analítico, ve-
rificar como o seu desenho institucional favorece a vitalidade caris-
mática no interior das comunidades e em cada um de seus membros
e o quanto os seus resultados não são suficientes para a fecundidade
vocacional e a fidelidade dos religiosos irmãos. De igual maneira,
a indissociabilidade entre a ação pastoral em termos de carisma –
obras, projetos, instituições e equipamentos – e a vida consagrada
exige coerência ética, nem sempre fácil de alcançar.
Em matéria de ecologia integral, cabe às organizações religiosas
e estruturas afins avaliarem o coeficiente da relação investimentos
e fidelidade carismática e a capacidade institucional de avaliar seus
resultados com indicadores de missão suficientes para mensurar o
impacto da missão. Portanto, também demonstrar qualitativamente
e quantitativamente os resultados em termos de justiça social e das
demais variáveis econômicas, políticas, sociais e ambientais do pro-
jeto societário, advindo do Evangelho de Jesus Cristo.
Este trabalho lança luzes a um debate interdisciplinar e complexo.
Não sendo conclusivo, não é uma panaceia aos dilemas da vida ins-
titucionalizada e às suas consequências nos indivíduos. Ao contrário,
oferece ao leitor uma revisão muito particular de um elemento da vida
do religioso irmão no interior das comunidades e propõe diálogo crí-
tico sobre ele. Ao mesmo tempo, abre janelas pouco exploradas e deixa
a luz entrar. No limite, talvez efetivamente a única contribuição que
129
deixa é a mensagem fraterna de que algo não anda bem na intimidade
da vida consagrada e a conversão a uma ecologia integral pode ser um
caminho de esperança. Talvez seja o único caminho.
Referências
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Lost. Fotografia © [2018] Museu de Belas Artes, Boston Catá-
logo Raisonné: Butlin 536 [1–9], números de acesso 90.94-102
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www.clar.org/horizonte-inspirador/. Acesso em 20.04.2020
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HERVIEU-LÉGER, Danièle. Le partage du croire religieux dans
des sociétés d’individus. L’Année sociologique, vol. 60, n. 1,
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HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a Gramática Moral
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130
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da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
FRANCISCO, Papa. Querida Amazônia. Exortação Apostólica
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Acesso em 03.05.2020.
FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. Exortação Apostólica Pós-
Sinodal sobre o anúncio doEvangelho no mundo atual. Vatica-
no, 24 de novembro de 2013. Disponível em: http://www.va-
tican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/
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html Acesso em: 21/05/2020
131
O PERDÃO NA VIDA DO RELIGIOSO IRMÃO
Otalívio Sarturi53
Esclarecimentos
Quem já não ouviu a exclamação “Deus me perdoe!”. Essa expres-
são, quando revela medo, culpa, vergonha e insatisfação, é verbalizada
com um sentido distante do verdadeiro significado da reconciliação.
133
Na condição de criaturas humanas, cometemos erros que atin-
gem os outros ou a nós mesmos; para vivermos bem, necessitamos
nos perdoar e ser perdoados. No entanto, estamos sujeitos a confun-
dir a necessidade de perdão, quando se trata de culpa moral ou ética,
com sentimentos enganosos de vergonha, também chamada de falsa
culpa, ou ainda de culpa psicológica, considerada por psicólogos a
causa preeminente de distúrbios emocionais de nossa época (MA-
DOTT, 2003, p. 111).
A postura humilde é a saída para se perdoar, tanto para aquele
que cometeu um erro que prejudicou a alguém, como para aquele
que, diante de equívocos ou pequenos fracassos, sente-se culpado
ou com vergonha. “A humildade significa aceitar com honestidade
tanto a força quanto a fraqueza, o que é fato e o que é ilusão” (MA-
DOTT, 2003, p. 110). Ela se torna uma aliada para admitirmos,
quando objetivamente prejudicamos a alguém, ou quando fomos
apenas tomados por culpa psicológica, isto é, quando pairam, em
nós, sentimentos de termos prejudicado a alguém, mas não temos
nenhuma responsabilidade e, portanto, não há motivos objetivos
para nos sentirmos culpados.
Outros autores também colocam a humildade como aliada do
perdão. Grün acredita que para se entender melhor e se dispor a per-
doar é fundamental admitir as próprias fraquezas, realidade inerente
à natureza humana. Isso supõe humildade, dispor-se a descer do pe-
destal da imagem pessoal idealizada, curvar-se à própria realidade. A
palavra humildade vem do termo latino humilitas e significa que nós
devemos aceitar nossa própria natureza terrena, isto é, a quantidade
de húmus que existe em nós (GRÜN, 2005, p. 41).
A palavra perdão é a tradução da palavra grega aphiemi que sig-
nifica soltar, liberar. A palavra latina dimittere tem o significa seme-
lhante: mandar embora, dispensar, soltar. A palavra perdão refere-se
à culpa e significa uma ativa remissão e libertação dela, enquanto
a palavra reconciliar, muito semelhante a perdoar, significa restau-
rar, restabelecer a paz, apaziguar, aquietar, possibilitar um encontro
(GRÜN, 2005, p. 9).
134
Fica claro que um primeiro significado de perdoar consiste em
“abandonar ou soltar o ressentimento”. Somos capazes de nos liber-
tar do sentimento de culpa psicológica, ou seja, de determinada falsa
culpa, deixando de nos acusar, que provoca mal-estar, e, até mesmo
enfermidades, restituindo assim o valor e a dignidade de sermos pes-
soas com inegáveis potencialidades, mas sujeitas a fraquezas (GON-
ZALES, 2010, p. 61).
González (2010, p. 61) esclarece outros aspectos, relacionados à
realidade do perdão. Primeiramente, alguns consideram que perdoar
significa esquecer. A verdade não é essa, porque se pode recordar o
mal sofrido por alguém, mas sem manter a carga de mal-estar, de
ódio, desejo de vingança e sofrimento.Em segundo lugar, perdoar
não significa deixar que o mal tenha continuidade. Talvez se encon-
trem motivos religiosos, sociais ou de compaixão para perdoar aque-
le que tem o hábito de roubar. Isso não significa que não se faça nada
para impedir que ele continue praticando as suas ações.
Pagola (2013, p. 80) salienta que amar o injusto e violento não
significa considerar adequada sua atuação injusta e violenta. Conde-
nar de modo taxativo a injustiça e a crueldade, não nos deve levar a
cultivar ódio em relação a quem as pratica.
Além disso, perdoar não é condicional. O perdão, por ser uma
meta, depende da decisão e do próprio esforço pessoal para concre-
tizá-lo. Se alguém a sujeita a condições, especialmente aquelas que
o agressor deve cumprir, o alívio e a libertação, oportunizados pelo
perdão, não serão possíveis.
Finalmente, o ato de perdoar não consiste num mero sentimen-
to como, por exemplo, considerar que você se sentirá logo em paz
com o outro. O processo de perdoar supõe uma decisão livre e genu-
ína, nem sempre garantida a partir de um aparente alívio emocional.
Quando alguém é vítima de uma ofensa ou de uma injustiça,
geralmente reage com indignação, revolta, abatimento. No entanto,
a pessoa tem capacidade para digerir os sentimentos, que podem se
manifestar em forma de vingança, segundo o modelo do olho por
135
olho, dente por dente (Ex 21, 24); virando as costas para a pessoa,
ou seja, passar a reagir de modo semelhante ao ofensor; em forma de
negação, considerando que essas realidades são normais; ou ainda,
buscando simplesmente esquecer, como se não tivesse acontecido
nada e não tivesse ficado algum tipo de ferida.
Por incrível que pareça, pode-se reagir a uma ofensa com amor
(1Cor 13, 4-8). Agir com amor possibilita perdoar e, tal postura não
significa negar as atitudes violentas ou permanecer indiferente ao mal.
Quem consegue perdoar vive experiência espiritual autêntica,
porque se encontra sintonizado com o seu eu profundo, isto é, com
a sua essência. Assim consegue não apenas superar o eu falso, masca-
rado e de aparência, mas também reconciliar-se.
Perdão a si mesmo
Não há dúvida de que perdoando a mim mesmo, ajudo-me a
perdoar aqueles que me “ofenderam”. No entanto, há pessoas que
não conseguem efetivá-lo no cotidiano da vida. Algumas remoem a
própria culpa, outras se recriminam por ter agido de modo equivo-
cado ou por ter fracassado.
Meu compromisso não é de evitar todos os erros e nem de ficar
me punindo quando eles surgem. Em vez de me considerar um he-
rói, sou convidado a brincar com as fragilidades pessoais. Quando
aceito que sou imperfeito, sou capaz de dar risadas da minha estu-
pidez, não me impacientar com os erros dos outros; serei capaz de
abraçar mais e cobrar menos, encorajar mais e punir menos.
Reconhecer os próprios erros e pedir desculpas aos outros é um
ato solene de sabedoria. Perdoar-me revela que tenho a capacidade de
reconhecer que sou um ser humano em construção, sujeito a falhas,
revelando capacidade de seguir o pedido do Papa Francisco: “por favor,
não maltratem os limites das pessoas” (FRANCISCO, 2019, p. 70).
Irmão Pedro Bulegon, religioso marista, faleceu em 1997 em de-
corrência de um câncer, com apenas 38 anos. As palavras, expressas
136
nos últimos dias de sua vida, quando se encontrava na Residência
São José, em Florianópolis, revelam a sua marcante experiência de
reconciliação consigo mesmo e a capacidade de responsabilizar-se
pelas facetas boas e piores que aconteceram em sua vida:
Nesta velha agenda, escrevo algo, pois não sei o que poderá
acontecer daqui a pouco. Não creio que esteja preparado para par-
tir, nem tampouco tenho coragem. Mas a vida é uma realidade que
não temos como reger e nem fugir dela. Não estou revoltado com
nada. Sinto-me responsável por muitas coisas boas e não tão boas
que aconteceram em minha vida.
Deus! Tenho-o como amigo, como mãe de misericórdia e Ma-
ria como minha terna e querida mãe, figura que vejo tão parecida
com minha mãe terrena! Como amo minhas duas Marias! Graças a
esta confiança que sempre tive, que sempre recebi das mulheres, é
que aprendi a amar ao Pai como mãe, mais amigo, mais misericor-
dioso do que justo juiz.
Os Irmãos Maristas! Que bom foi ter vivido estes anos na
Congregação Marista! Admiro muito os que conseguem ser fiéis
aos princípios do Pai Champagnat!
Como custa a mim e, quem sabe, a outros companheiros, me
convencer de que é preciso amar antes para depois educar. Aí sim o
educar seria na gratuidade, sem esperar resultados matemáticos.
Meu trabalho, que paixão! Foi com este trabalho que não medi es-
forços para levar com garra e honestidade. Jamais me queixarei do peso
que perdi, dos cabelos que coloriram minha cabeça. Foi com este am-
biente que sonhei, que sorri e que chorei. (apud BALDIN, 2000, p. 61).
Quem se reconcilia consigo mesmo e com as pessoas que lhe
estiveram próximas, como é o caso de Irmão Pedro Bulegon, conse-
gue identificar os aspectos positivos da própria vida e, talvez, dessas
mesmas pessoas, descobrindo que, habitualmente, no quadro geral
da história, eles superam os negativos (CENCINI, 2007, p. 245).
137
Uma primeira condição para perdoar a si mesmo, segundo
Anselm Grün, consiste em conhecer a própria realidade, ser capaz
de se aproximar dos adversários internos e familiarizar-se com eles
(GRÜN, 2005, p. 26).
Outro passo do processo de perdoar, segundo Gonzáles, consiste
em tomar consciência dos sentimentos, tais como, decepção, culpa,
rancor, ódio, desejo de vingança (GONZÁLEZ, 2010, p. 13).
Existem experiências em que nos sentimos maltratados e ofen-
didos, que permanecem perdidas entre as sombras do esquecimento.
Basta surgir algum insucesso que remova as capas protetoras da nos-
sa experiência, para que as feridas do ser se revelem.
Depois de ter reconhecido a própria história e identificado os
sentimentos que se manifestam em mim, sou convidado a perdoar-
me (GRÜN, 2005, p. 37).
Uma das grandes tarefas do ser humano consiste em transformar
as próprias feridas em pérolas, embora não aconteça num piscar de
olhos. Isto será possível quando reconhecer e aceitar as próprias feridas
e deixar de responsabilizar os outros por elas (GRÜN, 2005, p. 38).
Pode ocorrer de termos sido educados – e a própria sociedade
reforça – com a ideia de nos empenhar para ser pessoas perfeitas,
exaltando as luzes, as realizações e os sucessos pessoais, desconside-
rando as sombras, as fraquezas e as feridas, realidades inerentes à
nossa condição humana.
Na verdade, a vida do religioso irmão e das demais pessoas é
constituída por luzes e sombras, claridades e escuridões, perfumes e
maus odores; ambas as realidades, queiramos ou não, invariavelmen-
te, fazem parte da vida.
Quando alguém reconhece que os defeitos e as sombras são
inerentes à sua vida e igualmente daqueles com os quais convive,
encontra-se em condições de perdoar a si mesmo e aos demais.
138
Jesus Cristo, plenitude do amor e do perdão
Conforme o Papa Francisco, “Jesus Cristo é o rosto da miseri-
córdia do Pai. [...] Na ‘plenitude do tempo’ (Gl 4,4), quando tudo
estava pronto segundo o seu plano de salvação, mandou o seu Filho,
nascido da Virgem Maria, para nos revelar o seu amor” (MV 1).
Continua dizendo que a “Misericórdia é o ato supremo pelo qual
Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia é a lei fundamental que mora
no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que
encontra no caminho da vida. Misericórdia é o caminho que une Deus
e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados
para sempre, apesar da limitação do nosso pecado” (MV 2).
Jesus Cristo, nas parábolas dedicadas à misericórdia, revela a
natureza de Deus como a de um Pai que nunca se dá por vencido
enquanto não tiver dissolvido o pecado e superado a recusa, com
compaixão e misericórdia. Essa realidade se expressa especialmente
na parábola da ovelha extraviada, da moeda perdida e a do pai em
relação aos seus dois filhos (Lc 15,1-32).
Ele, que viveu o amor e o perdão plenamente, teve membros da
sua comunidade apostólica que apresentavam dificuldades de rela-
cionamentos com os demais. Alguns brigavam entre si, outros dispu-
tavam espaço, no intuito de ser mais do que o outro, e outros agiam
com violência, sendo capazes até mesmo de negar e trair. Judas, que
cuidava do dinheiro, tornou-se o traidor de Jesus. O evangelho de
João o chama de “ladrão” (Jo 12, 4-6). Tiago e João eram generosos,
mas queriam ter mais poder que os outros. Por serem violentos, Je-
sus os apelidou de “filhos do trovão” (Mc 3, 17). Pedro, uma pessoa
generosa e entusiasta, além de negar por três vezes a Jesus, puxou
da espada e feriu a orelha do servo do sumo sacerdote. Jesus lhe diz:
“Guarda a tua espada na bainha” (Jo 18, 11).
Jesus Cristo, em tais circunstâncias, em vez de projetar os seus
sentimentos nos outros, em forma de discriminação, condenação e
violência, entende-os e os perdoa, sem deixar de ser autêntico e fran-
co para com eles.
139
Quando os escribas e fariseus lhe trouxeram uma mulher apa-
nhada em adultério, Jesus lhes diz: “Quem de vós não tiver pecado,
atire a primeira pedra”. No final da cena, com ternura e firmeza,
disse a ela: “Eu não te condeno. Vai, e de agora em diante não peques
mais” (Jo 8, 1-11).
No alto da cruz, já extenuado, diante das palavras do ladrão ar-
rependido, que estava pregado na cruz ao seu lado, diz: “Em verdade
te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43). Diante dos
soldados que o torturaram, crucificaram e levaram injustamente à
morte suplica ao Pai, dizendo: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o
que fazem” (Lc, 23, 34).
Percebe-se nos vários fatos mencionados que a misericórdia é o
atributo essencial e central de Deus; Jesus Cristo é o rosto humano
da misericórdia do Pai; a justiça é a misericórdia de Deus, que vai
além da justiça (CODINA, 2017, p. 160).
Jesus Cristo não responde ao mal com o mal. Embora não entre
no jogo de quem agride a dignidade humana, acolhe-os e aposta na
recuperação deles. Ele não aceitou nenhuma forma de violência. Pelo
contrário, quis eliminá-la pela raiz. A não violência é um dos traços es-
senciais da atuação e da mensagem de Jesus Cristo. No relato de Lucas,
reage energicamente e repreende seus discípulos porque desejam que
“o fogo do céu” destrua os odiados samaritanos (Lc 9, 54-56).
Para Jesus Cristo, acolher o reino de Deus significa precisamen-
te eliminar toda forma de violência entre os povos. Sua mensagem
é clara: “Deus é um Pai que está próximo. Só quer uma vida mais
digna e feliz para todos. Mudai vossa maneira de pensar e de agir e
crede nesta Boa Notícia” (PAGOLA, 2013, p. 169).
Jesus não age segundo a lei do olho por olho e dente por dente,
que incentiva a amar o próximo e odiar o inimigo. Enfatiza a neces-
sidade não apenas de amar os inimigos, mas, acima de tudo, de orar
por aqueles que nos perseguem (Mt 5, 38-48).
Pagola esclarece: “Quando Jesus fala do amor ao inimigo não
está pensando em um sentimento de afeto e carinho por ele, menos
140
ainda numa entrega apaixonada, mas numa relação radicalmente po-
sitiva por sua pessoa” (2013, p. 80).
O evangelista Lucas, na parábola do pai misericordioso, revela
claramente a relação positiva que o pai tem com o filho que se en-
contrava perdido na vida (Lc 15, 11-32). O filho, reconhecendo seus
equívocos, retorna à casa do pai. O olhar misericordioso do pai e o
seu abraço acolhedor foram a porta aberta que possibilita o regresso
do filho à vida.
141
perseguiam e como perdoar àqueles que executaram a minha famí-
lia” (ILIBAGIZA, 2008, p. 16).
Immaculée, nesse ambiente, onde se encontrava submetida ao
silêncio, ao medo e ao desespero, pouco a pouco, no encontro e diá-
logo silencioso que estabeleceu com Deus, conseguiu superar o ódio,
a revolta, o desejo de vingança, para chegar ao perdão autêntico.
À medida que estabelece encontro profundo com Deus, conse-
gue rezar para perdoar. Ocupava de 12 a 13 horas do seu dia rezando
ave-marias e pais-nossos. Com o passar dos dias, em clima sempre
mais profundo de oração, conseguiu encontrar um cantinho dentro
do seu coração. Para lá se retirava. Era seu jardim secreto, onde falava
com Deus e meditava suas palavras (ILIBAGIZA, 2008, p. 107).
A partir da experiência de encontro com Deus, vivenciada en-
quanto se manteve escondida no pequeno banheiro, além do desejo
de perdoar, surgido dentro dela, sente também a vontade de levar
esperança às crianças e jovens vítimas da guerra e ajudá-los a não
abraçar o ódio que os privara dos pais e do amor de uma família
(ILIBAGIZA, 2008, p. 173).
Immaculée Ilibagiza, atualmente, além de coordenar a Funda-
ção Ilibagiza, com o objetivo de atender sobreviventes de guerras e
genocídios, é convidada para proferir palestras em vários países.
142
Deus, ao chamar alguém à vida de Irmão, deseja-o livre, ínte-
gro e feliz, capaz de amar e de viver relações fraternas, fortalecidas
pelo perdão.
A experiência do perdão permite-o buscar a vivência do “bem
em si mesmo” e não tanto a busca do “bem para si”. O ato de
perdoar ampara-se no desejar o bem objetivo do outro – indepen-
dentemente da sua classe social, da crença a que pertence, do status
que desfruta – e não tanto no simples desejo de “sentir-se bem”,
realidade que está sujeita a mudanças.
Quem se deixa mover pelo mundo dos sentimentos, – como por
exemplo, a raiva, a mágoa e pelo desejo de “sentir-se bem” encontrará
dificuldades para perdoar de verdade, porque se encontra fundamen-
tado numa realidade quase que impossível de ser controlada.
O religioso irmão, quando consegue viver autêntica experiên-
cia de Deus, amor e perdão genuínos, encontra-se mais livre e em
melhores condições para a vivência do perdão. O ato de perdoar a
alguém não o diminui, apenas o coloca em sintonia com os sonhos
divinos em relação aos seus filhos: verdade, amor, liberdade, felici-
dade, dignidade, equilíbrio. O encontro que estabelece com Deus
e com a sua verdade pessoal suaviza o orgulho, aproximam-no da
humildade e fortalecem a sua vivência do amor e do perdão.
Jesus Cristo, que vive intensamente o amor e o perdão, no alto
da cruz, é a confirmação da liberdade plena. Sua liberdade e equilí-
brio pessoal lhe permitem agir com profunda compreensão, ternura
e misericórdia, em relação aos demais, sem revidar à violência, sem
suavizar a responsabilidade que compete a cada um.
Esse seu jeito de ser o levou a agir com imparcialidade diante da
mulher adúltera e dos seus acusadores. Escuta, escreve na areia, dei-
xando claro que todos carregavam consigo algum pecado, e perdoa
à mulher, sem deixar de lhe pedir para não pecar mais (Mt 8,1-11).
O religioso irmão, diante de alguma dificuldade de relaciona-
mento com alguém, na condição de ser humano, pode ser tentado
a condená-lo e se manter indiferente a ele. Postura que não resolve
143
o problema; mas pode permitir que brotem do seu próprio interior
sentimentos de acolhida, de justiça, de misericórdia e de disposição,
sem deixar de ser franco com a pessoa.
Conforme se pode ver, a experiência de Deus, ou seja, o estar
sintonizado com os desejos divinos, não apenas habilita o religioso
irmão ao perdão, mas também fortalece a sua capacidade para resis-
tir aos vendavais da vida. Ela, de modo semelhante ao alimento que
sacia e a bússola que orienta, possibilita-lhe avistar luzes até mesmo
nas situações mais duras da própria vida.
144
mentos, ódios e vinganças, ou ainda, revoltando-se contra algum
acontecimento (IMODA, 1996, p. 559-563).
Se o religioso irmão se encontra envolvido em algum tipo de
luta humana ou psicológica, não se encontra em condições de fazer
experiência de perdão. As lutas de cunho humano fortalecem o pró-
prio orgulho, move-o a se considerar inocente, vítima dos outros,
pouco responsável pela situação existente e inclinado a apontar e a
condenar os demais.
Se ele se encontra envolvido numa luta espiritual, caracterizada pelo
encontro e pelo confronto entre pessoas livres e Deus, dispõe de boas
condições para fazer a experiência do perdão (IMODA, 1996, p. 559).
Isso será possível porque, embora não esteja isento dos desafios
que a vida oferece, em vez de consumir energias para se proteger, con-
denar os outros, permite que o seu coração seja tocado por Deus. Re-
conhece as próprias potencialidades e fragilidades. De bem com sua
condição de cidadão simples e humilde, capaz de transpirar liberdade,
embora tenha suas debilidades, consegue canalizar suficientemente
suas energias para perceber as riquezas do outro, amá-lo e perdoá-lo.
Conforme se observa, o religioso irmão pode se portar diante da
vida, lutando contra os demais, contra os acontecimentos e contra
as realidades pessoais não aceitas. Essa forma de viver não permite
reconciliar-se com alguém, porque, nesse estilo de entender a vida,
perdoar adquire conotação de rebaixamento e perda.
Outra maneira bem diferente de ele viver consiste em lutar, mas
de outro modo e por outros motivos. Trata-se da luta espiritual. Nes-
sa situação, as energias pessoais não serão mais consumidas tanto em
se defender e superar a outra pessoa, mas essencialmente em respon-
der aos anseios divinos em relação ao ser humano. Neste caso, o ou-
tro será visto como companheiro de caminhada que, igualmente está
sujeito a vulnerabilidades. Numa postura assim, o ódio, a vingança
e as lutas contra o outro perdem forças, possibilitando concentrar
energias na vivência do amor e do perdãoO apóstolo Paulo é exem-
145
plo típico de alguém que foi capaz de superar as lutas humanas, con-
seguindo canalizar as suas energias para a luta espiritual (SARTURI,
2014, p. 143). Ele, cheio de zelo por Deus, fiel, instruído, prendeu e
lançou na prisão homens e mulheres. Em determinado momento de
sua vida, sente-se tocado e chamado por Deus para anunciar a incal-
culável riqueza de Cristo: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At
22, 7). Paulo pergunta: “Quem és tu, Senhor?” (At 22,8). “Senhor,
que queres de mim?”. Ouve a resposta: “Eu sou Jesus, o Nazareno,
a quem tu estás perseguindo” (At 22, 8); e o envia junto aos pagãos.
São visíveis dois momentos na impressionante experiência vivi-
da por Paulo. No primeiro, ele segue sua ordem interior para com-
bater e destruir os valores divinos e aniquilar a vida de muitos. Trava
uma luta humana, arremessando suas forças interiores contra a rea-
lidade dos valores divinos e humanos para destruir. Nesse primeiro
movimento, percebe-se um Paulo voltado para si mesmo, propenso
a defender interesses de um determinado grupo e de si mesmo.
Numa segunda fase de sua vida, depara-se com Cristo e faz
experiência do divino, que o convida a uma nova dinâmica de vida.
Deixa-se cativar pela riqueza da sua proposta e, gradativamente, a
ela adere. Suas energias, por exemplo, a agressividade e a necessida-
de de realização, não são mais direcionadas para um fim em si mes-
mo, isto é, para alcançar desejos meramente pessoais. Seu endereço
e foco agora se concentram em Deus. Por isso é capaz de afirmar:
“Eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20a).
146
cativado pela experiência relacional e apaixonada com Deus, procura
viver o perdão, embora, na condição de ser humano, nem sempre con-
siga concretizá-lo.
Fundamentado na experiência de sentir-se amado por Deus é
chamado a seguir o “jeito de viver” de Jesus Cristo. E a vivência do
amor divino expressa-se no perdão a si mesmo e na misericórdia em
relação ao próximo.
O cultivo da vida espiritual é fundamental para o religioso
irmão viver o perdão e a misericórdia. A experiência frequente de
encontro com o coração misericordioso do Filho de Deus motiva-o
a viver com paixão a rotina do dia a dia e lhe oferece condições para
agir com misericórdia e firmeza, especialmente diante dos desafios
e deslizes que a vida oferece.
A profundidade e a consistência da vivência espiritual, capazes
de gerar perdão e fraternidade, dependem do nível pessoal de liber-
dade interior (Gl 5,1.13).
A liberdade interior, caracterizada pela boa capacidade de de-
senvolver lutas espirituais e não tanto pelas lutas humanas, possi-
bilita-lhe a inspirar-se na postura de Jesus Cristo. Assim, ao invés
do individualismo que fundamenta a vida na realização de desejos
pessoais, coloca-se na realidade do outro e com ele estabelece fra-
ternidade; ao invés da indiferença em relação às situações injustas,
empenha-se para que a dignidade do ser humano prevaleça; ao
invés do rancor e da vingança, coloca-se na realidade do outro e
estabelece relações de paz e perdão com ele.
O religioso irmão, quando movido por um coração livre, encon-
tra-se em boas condições de cultivar experiência espiritual genuína e
consistente, possibilitando-lhe assim viver o perdão e a misericórdia,
mesmo em situações que, humanamente, parecem inconcebíveis.
147
Para concluir
A Vida Consagrada é uma história de graça na Igreja e para o
mundo: um dom de Deus Pai à sua Igreja através do Espírito, que
orienta o olhar dos fiéis para o mistério do Reino de Deus, que já
atua na história (VC 1).
A vida dos irmãos religiosos é uma história de salvação a seus
contemporâneos e entre eles. “O que é próprio dos irmãos é o preo-
cupar-se em ser um dom de Deus Pai para aqueles aos quais eles são
enviados. Eles são transmissores do amor que passa do Pai ao Filho e
do Filho a seus irmãos: ‘como o Pai me ama, assim eu os amo. Perma-
neçam no meu amor’ (Jo 15,9)” (CONGREGAÇÃO..., 2016, p. 62).
O perdão enobrece e diviniza a vocação do irmão religioso. Quan-
do decide dedicar a vida ao seguimento de Jesus Cristo e ao bem dos
seus irmãos e irmãs, necessita ter bem presente o fio condutor da his-
tória. O fio que tece sua vida é a experiência de se sentir enviado como
sinal da ternura de Deus e do amor fraterno de Cristo; é o fio que dá
unidade a todas as suas ações e acontecimentos para constituí-los em
história da salvação (CONGREGAÇÃO..., 2016, p. 72).
Maria, a mulher que conheceu a profundidade do mistério de
Deus feito homem, é inspiração e fortaleza da sua vocação. Nela,
tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. Ela,
pelo fato de ter participado intimamente no mistério do seu amor,
entrou no santuário da misericórdia divina: “Como uma verdadeira
mãe, caminha conosco, luta conosco e nos aproxima incessantemen-
te do amor de Deus” (EG 286). O seu cântico de louvor, na casa
de Isabel, foi dedicado à misericórdia que se estende de geração em
geração (Lc 1,50).
Ao pé da cruz, Maria, juntamente com João, é testemunha das
palavras de perdão que saem da boca de Jesus Cristo. O perdão su-
premo, oferecido a quem o crucificou, mostra-nos até onde a miseri-
córdia de Deus pode chegar. Maria atesta que a misericórdia de Deus
não conhece limites e destina-se a todos.
148
Referências
BALDIN, Agostinho. Vidas ofertadas: Irmãos Maristas. Curitiba:
Vicentina, 2000.
CENCINI, Amedeo. A Árvore da Vida. São Paulo: Paulinas, 2007.
BÍBLIA. Bíblia Sagrada. São Paulo: Canção Nova, 2008.
CODINA, Víctor. Sueños de un Viejo Teólogo: una Iglesia en cami-
no. Bilbau: Mensajero, 2017.
COMPÊNDIO do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 2000.
CONGREGAÇÃO para os Institutos de Vida Consagrada e as So-
ciedades de Vida Apostólica. Identidade e Missão do Religioso
Irmão na Igreja. São Paulo: Paulinas, 2016.
FRANCISCO, Papa. A força da vocação. Madrid: Paulinas, 2019.
FRANCISCO, Papa. Misericordiae Vultus. São Paulo: Paulinas,
2015.
FRANCISCO. Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus, 2013.
GONZÁLEZ, Luis. Salud al Perdonar. México: Duruelo, 2010.
GRÜN, Anselm. Perdoa a ti mesmo. Petrópolis: Vozes, 2005.
ILIBAGIZA, Immaculée. Sobrevivi para Contar. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2008.
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no. São Paulo: Paulinas, 1996.
JOÃO PAULO II, Papa. Christifideles Laici. São Paulo: Paulinas,
2009.
JOÃO PAULO II, Papa. Vita Consecrata. 2. ed. São Paulo: Loyola,
1996.
MADOTT, Bertha. Depressão e Espiritualidade. São Paulo: Pauli-
nas, 2003.
149
MATOS, Luiz Augusto de. Do porto seguro a um tempo de prova-
ção, da incerteza à esperança pascal. In: SUSIN, Luiz C. (org.).
Vida Religiosa Consagrada em processo de transformação. São
Paulo: CRB; Paulinas, 2015.
PAGOLA, José. Lucas: O Caminho Aberto Por Jesus. Petrópolis:
Vozes, 2013.
SARTURI, Otalivio. Livres na Verdade e no Amor. São Paulo: Nel-
pa, 2014.
150
ITINERÁRIO DO IRMÃO EM VISTA DE UM
PROJETO DE VIDA
A necessidade do acompanhamento
É tão necessário o acompanhamento quanto a preparação de
quem acompanha. Por parte de quem exerce o ministério do acom-
panhamento, há uma necessidade de formação que não seja estan-
que, mas permanente. Reflexões que ajudem a acreditar no que fala
e faz, pois deve viver primeiro, perceber-se chamado por Deus, para
assim dar testemunho a quem acompanha. Cada um de nós, irmãos,
deve esperar de quem o acompanha, a capacidade de nos levar ao
encontro conosco e com Deus, despertando assim as motivações ne-
cessárias para se dedicar a uma causa, missão.
Motivação é algo que parte de dentro e tem a ver com o que é
essencial em nossa busca. Nossa grande inspiração, Jesus de Naza-
ré, fez um longo discernimento e buscou respostas nas formas de
vida possíveis em seu tempo, como no grupo de João Batista, por
exemplo, na experiência pessoal com “Abbá” (COSTA, 1999). Sua
motivação veio quando seu itinerário o levou à resposta de que sua
missão seria fazer a vontade do “Abbá”, implantar seu Reino: eis sua
motivação. Este texto não vai dar respostas sobre a motivação pessoal
de cada um, pois não as tenho, mas sim ajudar no levantamento de
algumas reflexões que possam ajudar, tanto na desconstrução do que
lhe atrapalha, quanto na construção do que venha ajudá-la em seu
discernimento diante de suas buscas.
152
Ter atenção ao processo é valorizar a história de vida com suas
implicações. A atenção à história não é para se ater aos aspectos ne-
gativos ocorridos. Tais aspectos, se ocorreram, fazem parte da tra-
jetória, podendo influenciar, mas não o definir o destino, caso não
se permita. Se houver influencia demasiada pode significar poder
exagerado que foi atribuído ao evento ou alguma patologia capaz de
enclausurar a pessoa, mas pensemos que seremos mais fortes que os
erros e falhas. Revisar a história de vida é então, observar o caminho
percorrido para aprender e inspirar o presente, impulsionando para
o futuro que se quer construir.
Não basta revisar os acontecimentos passados, pois a palavra
processo implica ainda em assumir e ser protagonista da própria his-
tória. É assumindo minha história, como ela foi e é, com seus erros
e acertos, não fantasiando como eu gostaria que ela fosse, que terei
como ressignificá-la e impulsionar minha vida para o projeto que
desejo assumir.
Percorrer esse caminho não é simples, pois os valores e contra
valores que são construídos ao longo desse percurso podem fazer
com que eu tenha dificuldades de perceber a minha história e, prin-
cipalmente eu, como co-construtor desse edifício. Se pararmos aí
não passaremos de condenadores de pessoas e de eventos que “atra-
palharam” nossas vidas, ou vitimizadores com posturas de “coitadi-
nhos”. É preciso ir além, para não repetir a história como foi, mas
questioná-la e enriquecê-la.
Para tanto é preciso aprender com o processo percorrido para
viver o presente contextualizado, consciente das interferências do
sistema, me percebendo, quais as motivações que vou tendo para
acertar em minha vocação, em meu Projeto de Vida.
Motivações vocacionais
Para chegarmos à sistematização de um itinerário que leve à vi-
vência de um Projeto de Vida, proponho revisarmos as inspirações
primeiras pelas quais nos consagramos. A reflexão feita acima sobre
153
o processo histórico ajuda a perceber as reais motivações vocacionais.
Na mesma lógica até agora insistida, a saber, perceber as motivações,
não como critério excludente, mas a partir de elementos que podem
ajudar no processo de reflexão e maturação vocacional.
Há uma diferença entre motivação vocacional, fuga ou compen-
sação. A motivação inicial pode ser um sinal que, aparentemente, é
equivocado. Por exemplo: um jovem que queira ser religioso por ter
se encantado pelo hábito de um religioso e se sinta atraído por este
“sinal”. Ao ingressar na congregação, não é exatamente um proble-
ma ter tido este sinal. Mas o processo formativo deve levar além.
Caso não haja alteração motivacional, será preciso verificar como
está acontecendo a formação nas etapas formativas, pois permane-
cendo a mesma motivação, deve-se questionar o esquema formativo
ou a estrutura da pessoa e suas buscas. O que impulsiona é o desejo
de alcançar aquele sinal/ideal/sagrado. Não seria diferente de um
jovem que comece a namorar uma menina pelo encantamento com
seu sorriso. Se ficar somente nisto, quando aparecerem os primeiros
conflitos, a fantasia acabará. Quanto às buscas, que têm a fuga ou
compensação como motivações, já existe um aspecto complicador
para o discernimento, pois estes são mecanismos que motivam pelo
aspecto negativo, como por exemplo: um jovem que quer entrar na
instituição religiosa porque nunca deu certo em seus relacionamen-
tos afetivos ou porque não tinha estabilidade profissional. O im-
pulso que motiva é o que não está dando certo para busca de outra
possibilidade (tentativa de acerto). Obviamente devemos considerar
a graça de Deus nestes diversos chamados, pois há uma perspectiva
de que “Deus capacita os chamados e não somente chama os capaci-
tados”, bem como “escreve certo por linhas tortas”.
Mesmo considerando o chamado divino, é importante perce-
ber se a motivação é fuga de situação negativa ou chamado para
um ideal, justamente para discernir o itinerário vocacional que deve
levar ao verdadeiro chamado de Deus e a missão. Neste processo é
importante que o acompanhamento leve em consideração a dimen-
são de metanoia (COSTA, 1999), conversão, como processo diário
de mudança e aprendizado. As perguntas: o que devo deixar por não
154
estar me ajudando? E o que quero assumir neste caminho? Obter
uma resposta consistente sobre o que se pretende assumir pode, não
somente revelar a motivação que move para um verdadeiro projeto,
como possibilitar a tomada de consciência do ideal que se busca.
Este ideal é maior do que o projeto e diz respeito à emergência vo-
cacional (MOTA, 2011) que deve conduzir ao seu propósito último,
que é Deus. Mesmo que o percurso possibilite outras direções, este
ideal pautado na fidelidade ao projeto de Deus não pode ser traído,
sob o risco de trair-se, abrindo uma brecha para o distanciamento
do Reinar do Abbá instalado por Jesus Cristo. Ter atenção às moti-
vações primeiras é conjugar a história vivida com a atuação de Deus
em toda ela. É encorajar-se para perceber as armadilhas do sistema,
porém não ficar refém delas, vitimando-se em uma zona de conforto
que instala em lugares, funções e serviços. Ao contrário, é assumindo
o protagonismo que tem a ver com o dom dado por Deus, que este
carisma pede sua multiplicação, seu anúncio e evangelização.
Edificando o caminho
A descoberta para o caminho profissional, como o caminho voca-
cional em geral, pressupõe o autoconhecimento e um bom discerni-
mento capaz de verificar a devida convicção diante do leque de opções
que aparecem. São muitos os atrativos que compõem este leque, da
aptidão às necessidades financeiras. Na perspectiva cristã é necessário
compreender a dimensão profissional como parte da missão que deve
155
guiar cada pessoa em vista do bem para o outro. Este caminho deve
considerar a realização pessoal e o sentido de servir socialmente, ou
seja, a realização pessoal deve caminhar junto com a doação, a mútua
ajuda e às necessidades da instituição religiosa e da missão em geral.
Este caminho não é simples, por isso se faz necessário compar-
tilhá-lo. Obviamente não se deve expor para qualquer pessoa seus
sonhos e projetos, pois como disse Jesus, um cego não guia outro
cego. Pode-se compartilhar com um confrade experiente, com um
profissional, no caso, psicólogo, que além do autoconhecimento
pode ajudar com testes vocacionais para apontar as áreas profissio-
nais de maior afinidade, ou com um leigo ou leiga com bom nível de
maturidade, religioso/a de outra congregação, padre, enfim, alguém
de confiança e com uma caminhada mais consistente.
Para o acompanhamento em vista do itinerário de vida é importan-
te conhecer sua história de vida, buscar uma caminhada amadurecida,
ou seja, assimilar as dimensões do que pensa, fala e faz para a busca de
um equilíbrio, compreendendo os registros e marcas na história de vida.
Também é necessário um olhar na história e na ação divina dentro da
trajetória percorrida, procurando perceber a ação de Deus em toda a jor-
nada. Assim haverá uma busca pelo protagonismo, porém considerando
a ação de Deus e o chamado que se dá neste percurso.
É bom ter presente que quem acompanha deve ser um facilitador
ou facilitadora, ajudando a perceber o caminho que está fazendo e
como Deus foi e vai atuando junto. É comum que, ao dar estes passos,
a pessoa vai se dando conta das amarras que travam o processo e das
luzes que vão aparecendo. A tomada de consciência normalmente leva
à melhor percepção sobre os caminhos de identificação por áreas liga-
das ao mundo do trabalho. É importante se dar conta de cada uma das
identificações para chegar ao discernimento profissional.
Este discernimento que busca identificar na história e nas rela-
ções interpessoais qual sua profissão, não é simples. Muitas vezes exi-
ge uma equipe interdisciplinar, especialmente se o religioso estiver na
formação inicial. A indicação do envolvimento de outras pessoas não
quer ser um complicador para quem não consegue fazê-lo (questões
156
financeiras ou recursos humanos). Ao contrário, um facilitador pode
evitar equívocos e frustrações. Existem recursos naturais a serem ad-
quiridos que possibilitam um acompanhamento e que facilitam o
discernimento, tais como o exercício da escuta atenta e respeitosa,
leitura de livros, tempos de retiro, etc. As aptidões estão ligadas ao
carisma, dom de Deus e por isso é mais bem discernido dentro da
comunidade, diante da diversidade, na convivência, ação e oração.
Estabelecer prioridades
Após considerar a história pessoal e relações que estabelecemos,
é necessário um bom nível de percepção do todo para reorganizar os
dados, ou seja, olharmos o que fazemos diante do que queremos para
nossa vida profissional e vocacional em geral. A isso podemos chamar
de hierarquia de valores. Para facilitar a visualização sugiro o seguinte
exercício: 1) Desenhar um círculo que será conhecido como pizza;
recortar esta pizza em fatias de acordo com as seguintes atividades:
vida de oração e espiritualidade; vida comunitária/fraterna; trabalho;
namoro; estudos/leituras; sono; TV; Computador/Internet; refeições;
lazer/descanso; família de origem; comunidade/pastoral; amizades, etc
(Obs.: cada fatia deverá representar um lado da sua vida atual). A lar-
gura de cada fatia da pizza será proporcional ao de tempo dedicado a
cada lado da vida, atualmente. 2) Para cada fatia da pizza, coloque “+”
se você está contente com o modo como você tem vivido este lado da
vida ou coloque “–“ se você está insatisfeito ou “+-“ se você está mais
ou menos satisfeito. 3) Avalie o que está faltando para deixar você mais
feliz com os lados da vida em que você assinalou “–“ ou “+-“Diante
desta pizza, você deve estabelecer prioridades e se perguntar: Por onde
e quando começar a melhorar o que não está bom?
157
partir das experiências que fizemos nas etapas de formação. Enten-
demos que uma etapa bem vivenciada ajuda a vivenciar as demais.
Sendo assim, é necessário se perguntar:
–– O que me marcou no acompanhamento em tempos de dis-
cernimento vocacional (sentimentos sobre o que me trouxe)?
–– Quais as contribuições nas etapas iniciais de formação (o que
ficou – pontos que mais marcaram)?
Em que momento/estágio de minha VIDA e de minha VO-
CAÇÃO me encontro hoje? (sentimentos sobre o que me mantém
– buscando situar-me para elaborar/ ou reelaborar o Projeto com
maior solidez e realismo).
Estas questões têm a ver com o itinerário percorrido e impli-
cam diretamente na elaboração do Projeto, pois somos frutos de um
construto social, onde influenciamos e sofremos influência do pro-
cesso pelo qual passamos. Outros aspectos de nossa opção apontam
para um ideal de Vida Consagrada, que deve ser co-construída, pres-
supondo a contribuição do carisma de quem está entrando na con-
gregação, que abrange diversos aspectos que podem ser considerados
a partir das seguintes questões:
Vida em fraternidade/convivência:
–– Como pretendo ajudar na construção desse sonho, especial-
mente da vida fraterna/comunitária diariamente?
–– Sou único e tenho um carisma próprio, porém encontro ca-
rismas na Instituição: Como ser um Dom na vida das pessoas
com quem convivo?
2) Vida em Oração:
–– Como darei continuidade ao cultivo da experiência de Deus
que foi despertada em mim?
–– Como pretendo ajudar para que os momentos de oração fra-
terna/comunitária sejam mais ricos e proporcionem experi-
ências fortes de Deus e da Fé?
158
Vida missionária/profissional/estudos:
Como pretendo viver minha consagração? Devo aprofundar
minha opção com a seguinte pergunta: quais as motivações que me
levaram à essa opção!
–– No campo profissional: quais as motivações para cursar
uma faculdade ou curso profissionalizante? Pretendo fazer
um curso profissionalizante? Com qual área profissional me
identifico? Qual a aplicação e importância desse curso para
mim e para instituição da qual faço parte? Como ser Dom na
instituição e para o povo de Deus?
Essa terceira etapa deve ter uma ressonância entre os carismas
pessoal e institucional. Para não ter um caráter rígido de um projeto
fechado, é bom que se manifeste flexibilidade, tanto para possíveis
mudanças nas concepções pessoais, quanto para sugestões que dizem
respeito à realidade da Congregação/Instituição.
Uma questão que deve ser levada em conta em vista do mundo
profissional é verificar se, além de ser um bom profissional, como
está a vivência do carisma na fraternidade. É comum que alguns
confrades se tornem ótimos executores de tarefas, bons profissionais,
assessores, professores, etc e se distanciem da vida fraterna, do ideal
da vida religiosa. Assim a profissão terá uma conotação mais de fuga
de casa do que de realização vocacional.
Considerações finais
Para um itinerário e Projeto de Vida consistente, é importante
criar uma estrutura afetiva e efetiva, sendo critérios afetivos de forma
sadia e efetivos na execução. O Itinerário deve avaliar a maturidade
relacional, a sã compreensão e aceitação da história de vida de cada
irmão, para isso oferecidos vários elementos em busca deste equilí-
brio no caminho e execução na sistematização. Ao tratamos sobre a
atenção para com as motivações que trazemos, buscamos a saúde e
vigor do itinerário, querendo salvar a integridade do irmão, evitando
159
rótulos. O êxito dependerá de critérios e atitudes na execução e na
adaptação em cada pessoa e de sua instituição.
Para dar esta consistência ao itinerário, o irmão deve ser dinâmi-
co, cuidar da constância e disciplina, buscando a ética e a correspon-
sabilidade, bem como evitando reducionismos. Se houver um bom
processo, será possível fazer um bom discernimento, bem como sal-
var os sonhos despertados no ponto de partida ou no amor primeiro.
Referências
COSTA, João R. Abbá! Pai! O Deus de Jesus é diferente. São Pau-
lo, Loyola, 1999.
MOTA, Rubens N. Formação, desafios do Itinerário. Porto Ale-
gre, ESTEF, 2019.
160
O JUNIORATO E O RELIGIOSO IRMÃO:
Intuições sobre um caminho de
formação personalizada
O estudo da Teologia
Hoje, há uma ênfase no estudo da teologia que se manifesta
tanto quantitativa quanto qualitativamente no Brasil. No primeiro
165
sentido, vê-se um aumento estatístico da procura de cursos por lei-
gos e leigas e da disponibilidade de formações em variados níveis.
No segundo sentido, observa-se um deslocamento do interesse da
teologia, transferindo-se da mão de clérigos para as de leigos e leigas.
Antes era um patrimônio quase exclusivo do clero. A pastoral mesma
vai exigindo do cristão hodierno um maior preparo, antes de tudo
a respeito de sua própria fé (LIBANIO; MURAD, 2011, p. 25-30).
O téologo busca “dar razões de sua fé” (1Pd 3,15). Na compreen-
são de Santo Anselmo, fides quaerens intellectum (2008, p. 8). Por isso,
aquele que se coloca no caminho teológico não quer fazer um estudo
de Deus, mas aprofundar, justificar, esclarecer o ato de fé. Assim, “a te-
ologia define-se como reflexão crítica, sistemática sobre a inteleção de
fé” (LIBANIO; MURAD, 2011, p. 61). Nesse contexto, “o teólogo,
mais que um ativo perscrutador de Deus, é alguém que se sente cap-
turado por Ele” (LIBANIO; MURAD, 2011, p. 55). É fundamental
também aos irmãos aprofundarem sua fé por meio do estudo da teolo-
gia. Certamente, não é um estudo sistemático que garante a plenitude
de realização vocacional, mas, o conhecimento científico pode fazer
evitar grandes distorções que a desinformação pode ocasionar.
Os irmãos nem sempre são bem compreendidos em sua vocação
e missão na Igreja. Atribuímos essa incompreensão, principalmen-
te, à ausência de uma adequada visão teológica da VRC. Segundo
Ciardi, uma assembleia da Congregação para os Religiosos e Institu-
tos Seculares (CRIS), hoje Congregação para os Institutos de Vida
Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, em 1986, ponderou
que “existe uma problemática própria do religioso leigo que tem suas
raízes numa falta de visão teológica aprofundada, numa definição
não clara do tipo de presença eclesial, dentro de uma deficiente valo-
rização” (CIARDI, 1994, P. 135)56.
Nesse sentido, de um lado, alerta o documento Irmãos nos Institu-
tos Religiosos Leigos, estão os próprios irmãos que, em muitas ocasiões,
se mostram mais preocupados em defender tal modo de vida do que
56 Para o que segue, conferir o conteúdo foi desenvolvido em: MOREIRA,
Edimar. Simplesmente irmão: um olhar sobre a vocação do irmão na Igreja”.
São Paulo: Loyola, 2019. P. 241.
166
aprofundar seu conteúdo. De outro, há muitos que consideram os
irmãos a partir de uma situação híbrida, como pessoas situadas no
meio do caminho, incompletas, já que não são nem seculares nem or-
denados (COMISSÃO..., 1991, p. 12-13). Atribuímos isso à ausência
de uma adequada formação e compreensão teológica do que é a VRC.
Essa incompreensão teológica da VRC pode comprometer toda
a vivência e missão dos religiosos na Igreja. A própria necessidade de
defender o modo de vida do irmão, inclusive dentro da própria VRC,
já revela uma lacuna na formação religiosa como um todo. Para ilus-
trar essa situação, encontramos facilmente muitos irmãos aptos a dar
exemplos de situações em que tiveram sua vocação questionada por
toda sorte de fiéis na Igreja, inclusive bispos, religiosos presbíteros e re-
ligiosas. Só o questionamento desses já parece indicar uma incompre-
ensão da própria vocação que cada um deles assumiu na vida eclesial.
Por isso, o documento Identidade e missão do religioso irmão na
Igreja insistirá que toda a VRC é convidada a desenvolver uma reflexão
em profundidade sobre o modo de vida do irmão na Igreja. Como
pressuposto, solicita que essa reflexão se inspire “na eclesiologia e na
espiritualidade de comunhão, fundamento do estilo de vida religiosa,
que se desenvolveu na Igreja nos últimos séculos sob a forma de frater-
nidades de serviço” (CONGREGAÇÃO..., 2016, 39c). Nessa escola
de comunhão, importa que cada um tenha consciência de seu lugar e
missão na Igreja. Para isso, além de uma vivência concreta da espiritu-
alidade cristã, ajudará uma formação teológica consistente.
Deve ser oferecida ao irmão a oportunidade de se formar teolo-
gicamente. Nesse sentido, “um estudo adequado da eclesiologia de
comunhão irá ajudá-lo a relacionar-se com as pessoas que seguem
as diversas formas de vida com as quais articula-se a vida eclesial”.
Por isso, “a intuição teológica carismática que fundamenta sua voca-
ção deve estar muito presente no início da formação inicial” (CON-
GREGAÇÃO..., 2016, 34).
A preocupação por uma reflexão teológica no programa de for-
mação tem sido cada vez mais difundida. O documento expressa sua
preocupação a esse respeito:
167
A teologia da vida consagrada é chamada a desenvolver uma reflexão em
profundidade, especialmente pelos próprios Institutos de irmãos, sobre
a vida religiosa destes. Essa reflexão inspirar-se-á na eclesiologia e na
espiritualidade de comunhão, fundamento do estilo de vida religiosa, que
se desenvolveu na Igreja nos últimos séculos sob a forma de fraternidades
de serviço (CONGREGAÇÃO, 2016, 39).
A ausência de uma formação teológica consistente na VRC pode
gerar falta de clareza na identidade religiosa dos irmãos. Isso pode
levar ao esvaziamento de sentido de sua orientação religiosa, numa
vida baseada apenas no seu fazer profissional. A formação inicial
deve estar atenta a esses riscos. Além disso, é preciso haver paridade
de compreensão da comunhão. Por óbvio que pareça, vale recor-
dar que os irmãos nas congregações mistas não farão comunhão se
os ordenados também não se empenharem, tanto intelectualmente,
quanto pela prática, nesse sentido.
Sobre a formação teológica durante o juniorato, o documento
com as Orientações sobre a formação nos institutos religiosos afirma que
“no programa de estudos devem figurar em lugar importante a teolo-
gia bíblica, dogmática, espiritual e pastoral, e, em particular, o apro-
fundamento doutrinal da vida consagrada e do carisma do instituto”.
Para seu bom êxito, “ter-se-á cuidado de dar, de maneira adaptada,
uma formação filosófica de base que permita adquirir um conheci-
mento de Deus e uma visão cristã de mundo em estreita conexão com
as questões debatidas no nosso tempo, que faça ressaltar a harmonia
que existe entre o saber da razão e o da fé para a busca da única verda-
de” (n. 61). Nesse sentido, será oportuno priorizar cursos de teologia
que comportem ao menos algumas disciplinas de Filosofia.
Contudo, também não se trata apenas de estudar teologia. É
preciso perguntar: que teologia? A maioria das faculdades está volta-
da para pensar pastoralmente na formação de presbíteros, inclusive
vários desses que estão inseridos nesse contexto, acabam fazendo o
curso por mera obrigação. Libanio e Murad (2011, p. 55) afirmam
que a motivação e a intencionalidade tanto do aluno quanto do pro-
fessor é que garantirá um resultado significativo do estudo da teolo-
gia. Por isso, a abertura para ampliar horizontes de conhecimento e
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a dedicação no estudo são fundamentais por parte dos irmãos. Con-
tudo, não se pode ignorar que a própria linguagem do curso e dos
professores ou professoras pode dar um enfoque que pouco valorize
a diversidade de serviços e carismas na Igreja. A presença de leigos
em uma turma teológica, por sua vez, já surge como um elemento
positivo para superar visões clericalistas que, infelizmente, ainda po-
dem pairar sobre a Teologia.
O religioso que tem acesso a uma formação teológica consisten-
te e que se deixou transformar por ela, provavelmente terá maior ma-
turidade diante do caminho profissional que escolher. Encontrará,
nessa sua atividade, um caminho de viver sua consagração também
por meio do trabalho. Por isso a necessidade de haver também uma
formação profissional para os irmãos.
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VOCAÇÃO E PROFISSIONALISMO
O que necessitamos para sermos
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