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Maria de Araújo:
uma Santa Saindo da Penumbra

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Ercília Maria Braga de Olinda

Maria de Araújo:
uma Santa Saindo da Penumbra

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2019

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À Maria de Araújo, pelo muito que
me ensinou, e a todas que ousam
viver uma relação íntima com Deus
e que lutam por justiça social.

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autor:
Ercília Maria Braga de Olinda
e-mail: erciliabragadeolinda@gmail.com Índice
capa e diagramação
Cláudio Henrique M. Peixoto
@agenciadigitalcariri PREFÁCIO......................................................................................... 11
PALAVRAS INICIAIS........................................................................ 15
Todos os direitos reservados. Esta obra poderá
ser reproduzida ou transmitida por qualquer Sobre a pesquisa que deu origem a este livro .................................. 16
forma e ou por quaisquer meios (eletrônico ou Sobre o desejo de contar a história de uma grande mulher ............ 20
mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou
arquivada em qualquer sistema ou banco de
dados desde que seja citado a fonte original. 1 O QUE SABEMOS E O MUITO POR SABER SOBRE A MÍSTICA
DO JUAZEIRO............................................................................................ 25
1.1 O sangramento da hóstia consagrada, entre crédulos, incrédulos e de-
tratores: um desafio aos estudos sobre a(s) religião(ões)............................ 27
1.1.1 O lugar................................................................................................. 27
1.1.2 O episódio e seus desdobramentos............................................................ 31
1.1.3 As diferentes posições sobre os fatos extraordinários................................... 36
1.2 Maria de Araújo por ela mesma e pelas outras beatas...................... 54

revisão 2 COMO EM UM CALEIDOSCÓPIO, VI MUITAS FACETAS DE MA-


RIA DE ARAÚJO........................................................................................ 87
2.1 Maria de Araújo vista por seus contemporâneos.............................. 88
2.2 Maria de Araújo vista pelos romeiros do século XX: mártir, santa e
pecadora.................................................................................................... 106

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2.3 A devoção ao Padre Cícero e o (quase) esquecimento da beata do mi-
lagre........................................................................................................... 119
2.4 O paulatino retorno da santa entre devotos, artistas e militantes dos
movimentos sociais do Cariri.................................................................... 130
2.4.1 A Arte “alumiando” os novos caminhos da beata Maria de Araújo.......... 149

3 CONCLUSÕES...COM A CERTEZA E A ALEGRIA DE NÃO TER


DADO A ÚLTIMA PALAVRA.................................................................. 183
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4 POSFÁCIO Palavras finais... Seriam?.......................................... 191 PREFÁCIO
O CRIME DO SOCORRO
(ou a destruição do jazigo da beata Maria Magdalena do Espirito Santo de
Araújo, em 1930)........................................................................................193
1. O TÚMULO........................................................................................... 194
2. O SEPULTAMENTO............................................................................. 197
3.DEZESSEIS ANOS DE TOLERÂNCIA.............................................. 198
4.A DEMOLIÇÃO DO JAZIGO............................................................. 199 “Você é santa”, sussurrou Dona Luísa, moradora do Casarão do
5.COMENTÁRIOS................................................................................. 203 Horto, no ouvido da Doutora e pesquisadora Ercília! E acrescentou:
“Todos que levam alegria para as pessoas são santos. Desde que você
6.RESGATE E REPERCUSSÕES.......................................................... 208 chegou aqui, já me ri várias vezes... Você é santa! Quando você sair,
7.E AGORA...?........................................................................................ 208 vou sentir sua falta porque você me fez um bem... Isso é ser santa!”
ANEXO: BREVE NOTA SOBRE OS VELHOS CEMITÉRIOS DE Profunda definição da Santidade de nossa amiga Dona Luísa. De
JUAZEIRO.............................................................................................. 211 fato, a alegria é um dos dons do Espírito Santo! Como afirma São
SUGESTÕES PARA LEITURA............................................................. 218 Paulo aos Gálatas (5,22): “O fruto do Espírito é amor, alegria, paz,
paciência, bondade, generosidade, fé, humildade e domínio de si
mesmo.”
5 REFERÊNCIAS............................................................................... 223
Dona Luísa sabe, assim como o Padre Cícero, que se inspirou no

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exemplo de São Francisco de Sales, que “Um santo triste é um triste
santo!”
O último parágrafo de seu livro, querida Ercília, confirma o diag-
nóstico de Dona Luísa. Por favor, deixe-me reproduzi-lo por inteiro:
“Temos muito a aprender com esta Maria! Sinto-me transformada ao
terminar este livro. Com coragem, enfrento a minha dimensão mística e
as dificuldades de me santificar. Com alegria, partilhei as experiências
de resistência e de afirmação da liberdade de manifestação das crenças

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religiosas populares. Falei da liberdade do povo nordestino de expres-
sar suas devoções e viver suas experiências religiosas, apesar dos es-
tigmas que lhe impingiram. Mesmo não sendo católica, recebi com
esperança as elaborações de Medellín, Puebla e de Aparecida, assim
como as cartas do Papa Francisco, a nos lembrar das riquezas da re-
ligiosidade popular.”
Para alguns pesquisadores, Maria de Araújo é um “objeto passivo
de estudo” em forma de mulher negra, feia, analfabeta, que pode

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ser utilizado, manipulado como bandeira em favor do feminismo, do “A Beata Maria de Araújo é santa?”, mas respeitou o “silêncio obse-
anticlericalismo, e contra o racismo... Percebi que, para você, Ercília, quioso” de muitos devotos em relação aos “fatos de Juazeiro”, obe-
antes de tudo, Maria de Araújo é um “sujeito vivo a encontrar” por- decendo ainda hoje ao Padre Cícero! A ordem vinha de Roma! Meu
que ela já a interpelou sobre sua dimensão mística e procura de san- Padrinho pediu! Assim, nos calaremos! Esse silêncio fala mais do que
tidade! E você a deixa falar, nessas lindas páginas intituladas: “Maria muitas palavras! É o cofre de ouro que contém um segredo precioso
de Araújo por ela-mesma”! e muito bem preservado na memória popular.
Para certos pesquisadores, a “massa popular” é também “objeto Estou em sintonia com você, quando escreve: “Fortaleceu-se em
passivo de estudo” do qual se retira o que bem quer para confir- mim a intuição que me orientou desde o início da pesquisa, de que
mação de certas ideologias, preconceitos ou convicções! Percebi que Maria de Araújo ficou guardada em um compartimento bem escon-
você, Ercília, se aproxima de quem você deseja dialogar, não como dido do coração dos romeiros e que as portas deste compartimento
objetos de pesquisa, mas como pessoas ricas de uma “teologia popu- estão se abrindo, tendo três aliados fortes: a paciência das pessoas
lar” ainda pouco conhecida e valorizada, de uma “sabedoria popu- simples, a arte e os movimentos sociais”!
lar”, dom do Espírito que sopra onde quer, com afeto privilegiado Nesse mundo cada vez mais impaciente e agitado, chegando até
aos pobres. Você mesma reconhece a importância de aprofundar a histeria, a paciência do povo é fruto de grande sabedoria! A arte e
mais a “mística popular”, eu diria até “de pés descalços” porque pisa os benditos são expressões singelas e profundas que revelam o que
no mundo do sagrado! as especulações e raciocínios são incapazes de expressar! Em eco às
Percorri seu longo caminho adotando sua “santa” teimosia à pro- próprias palavras do Padre Cícero, me parece ouvir nossa Beata nos
cura daqueles que reconheciam ou reconhecem, como você, comi- aconselhando: “Não se afobem para me defender, queridos amigui-
go, a santidade da Beata Maria de Araújo, mística e instrumento de nhos do Padre Cícero: um dia, a própria Igreja me fará justiça!”
Deus. Segui seus passos, às vezes apressados demais, ao meu ritmo É claro que esta paciência do povo não justifica a preguiça ou

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de idosa, nas “espacialidades” diversas onde se interpretou e se in- desinteresse em procurar conhecer quem é, de verdade, a Beata Maria
terpreta ainda hoje a vida misteriosa e intrigante dessa mulher: nos de Araújo! Este livro apaixonante da Professora Ercília é prova disso!
arquivos, especialmente nos dois inquéritos, na correspondência en- Mas, continuamos com a sabedoria dos pobres! Suas convicções não
tre bispos, sacerdotes da época, na leitura de produções acadêmica, dependem de aprovação ou condenação por qualquer “autoridade”
de simpósios, dos poetas, do mundo dos cordelistas. Sem barreiras, a não ser a de Deus e a do Padrinho Cícero!
mas construindo pontos, você nos convida a olhar também Maria
Para aqueles de nós que têm fé nos desígnios de Deus, gostaria de
de Araújo como médium inspirada e dotada de premonição, recor-
lembrar as sábias palavras de Gamaliel (Atos, 5, 34-39) àqueles que
rendo aos pensamentos e escritos de Allan Kardek. Como aprendi

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queriam matar os apóstolos: “Deixem esses homens em paz. Porque,
muito, Ercília, seguindo seus passos de pesquisadora aberta, liberta,
se o projeto ou trabalho deles provém dos homens, será destruído.
apaixonada, com mistura de competência e seriedade!
Mas se provém de Deus, vocês não conseguirão destruí-lo.”
Mas reconheço que eu me deliciei, sobretudo nos seus encontros
Roma e Dom Joaquim exigiram do Padre Cícero e dos romeiros o
e conversas com os romeiros em circunstâncias diversas, e com al-
silêncio obsequioso sobre os fatos de Juazeiro! Todos obedeceram! Tudo
gumas “pérolas” de sabedoria popular, como Dona Rosinha, o Se-
foi feito para que Maria de Araújo fosse, para sempre, banida e esqueci-
nhor Evilásio, Dona Luísa, Dona Isaura, Dona Alzira, Dorinha dos
da! E os anos passam! Com Gamaliel, estamos observando e poderíamos
Benditos. Muitas vezes, você não recebeu a resposta a sua pergunta:
concluir: “Se o projeto ou o trabalho deles provém dos homens, ele será

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destruído por si mesmo. Mas se provém de Deus, vocês não conseguirão PALAVRAS INICIAIS...
destruí-lo!” Será que a ordem do silêncio e as perseguições consegui-
ram destruir Padre Cícero, Maria de Araújo e Juazeiro?
A Beata Maria de Araújo afirmou ter ouvido de Cristo sua deci-
Quanto mais uma coisa permanece,
são de fazer de Juazeiro do Norte “uma porta do céu e um lugar de mais ela se transforma.
salvação das almas”. Isso podemos constatar a olho nu, observando a (Marshall Sahlins)
multidão de nordestinos que chegam anualmente em romaria para
o “santo Juazeiro”! Se fosse obra dos homens e não de Deus, será que
esse fenômeno não teria desaparecido?
Apesar de este livro ser resultado de uma pesquisa acadêmica,
Com a Professora Ercília, penso que o que santificou a Beata Ma- tenho a intenção de torná-lo acessível a todos, uma vez que a figu-
ria de Araújo não foram o sangramento da hóstia e as demais “mara- ra central do seu enredo faz jus ao (re)conhecimento público. Meu
vilhas” operadas através dela, mas sua persistência na oração e no serviço objetivo é apresentar a beata Maria Magdalena do Espírito Santo de
ao próximo. Araújo em seus traços mais significativos, buscando compreender os
“Quem quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz e me siga!” A conflitos religiosos, políticos, sociais e ideológicos envolvidos na tra-
esse chamado de Cristo, Maria de Araújo viveu incompreensões e ma em que gravitou, ora como santa, ora como mártir, e depois como
condenações em comunhão com o “crucificado”. Ela mesma afirma: embusteira, até quase ser apagada da história. Ela foi uma persona-
“Nosso Senhor acrescentou que me preparasse para muito sofrer lidade ímpar e está na origem das romarias ao Juazeiro do Norte,
por amor Dele […]. Ele disse que eu me reanimasse em seu serviço sua cidade natal, localizada no belo, fértil, desigual e violento Vale
e o seguisse, pois que, por maiores que fossem os sofrimentos dessa do Cariri Cearense; “terra da fertilidade” e “chão sagrado” para os
vida, eles são passageiros.” primeiros povos indígenas que lá habitaram (CARIRY, 2008, p. 367).

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Sim! A Beata Maria de Araújo precisa sair do lugar escuro onde foi Maria de Araújo nasceu em 24 de maio de 1863 e faleceu em 17 de
colocada, não tanto para lhe fazer justiça (Deus já se encarregou dis- janeiro de 1914. Era analfabeta e proveniente de uma família muito
so!), mas porque ela é modelo vivo da serva fiel ao Senhor, manso e hu- pobre, descendente de índios e de negros. De acordo com a “expo-
milde de coração! Essa Maria encarnou em seu corpo e sua alma uma sição circunstanciada” escrita pelo Padre Cícero Romão Batista, em
PALAVRA de Cristo, palavra de misericórdia e conforto, que o povo julho de 1891, e anexada ao processo instruído sobre os “factos de
sofrido do Nordeste e Padre Cícero entenderam muito bem! E ela foi Joaseiro” e das narrativas da própria beata1 no referido inquérito,
fiel a esta missão, custar o que custar! Nem a Professora Ercília nem eu sabe-se que, aos nove anos de idade, fez a primeira comunhão e, em

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pretendemos entrar em discussões de teologia dogmática. Mas, não se seguida, consagrou-se a Jesus Cristo. A partir daí, viveu uma vida de
pode negar que a “mística popular” foi e é sensível a este SINAL, a este piedade e aprofundou suas experiências místicas, chegando a ex-
CHAMADO, a esta PALAVRA a ela destinada. Sua resposta se expressa
tão visivelmente pelo entusiasmo, a alegria e a fé da “nação romeira”!
1 A tradição de formar irmandades leigas de mulheres vem do Mestre Padre Ibiapina,
Obrigada e parabéns, prezada amiga Ercília! Que a leitura deste cuja ação missionária no Cariri (1864/5 e 1868/69) inspirou a muitos, incluindo Antônio
livro possa “fazer tanto bem” aos leitores como foi sua visita a Dona Conselheiro e o padre Cícero. Discutindo a participação feminina no movimento socior-
religioso de Juazeiro do Norte, Paz (1998) inaugurou um novo olhar sobre o papel das
Luísa, santa e sábia moradora do casarão do Horto! beatas na tensão entre catolicismo popular e catolicismo romanizado que vinha sendo
Irmã Annette Dumoulin implantado desde o primeiro bispo diocesano, Dom Luís Antônio dos Santos, no período
compreendido entre 1861 e 1881.

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perimentar a celebração de um consórcio espiritual com seu Divino tórica, etnográfica e (auto)biográfica, para envolver ideias, valores,
Redentor. Ela vestiu o hábito negro de beata , vivendo com simplici- saberes e crenças arraigados no tecido social e vivenciados por dois
dade no anonimato, até tornar-se conhecida em praticamente todo grupos: dos memorialistas, historiadores e demais pesquisadores,
o Brasil, depois dos episódios eucarísticos repetidos e presenciados que de algum modo trataram sobre nossa personagem: artistas, mi-
por centenas de pessoas. litantes de movimentos sociais, romeiros e devotos, que empresta-
O comportamento místico acompanhou-a ao longo da vida, mani- ram suas vozes para narrar o que sabiam e o que sentiam sobre a
festando-se em diferentes momentos: êxtases, crucificações, visões do beata.
mundo espiritual, transportes ou deslocamentos espirituais, premo- Utilizei as seguintes fontes documentais (primárias): a) documen-
nições, sangramentos de crucifixos e estigmas. Para Borriello (2013), tos sobre o I e II inquéritos instituídos pela Diocese de Fortaleza
a experiência mística vivida em todas as culturas e épocas históricas “acerca dos factos extraordinários ocorridos na povoação de Joazei-
demonstra a perenidade do desejo humano pelo “rosto de Deus”, ao ro” organizados por Guimarães e Dumoulin (2003); b) conjunto de
mesmo tempo em que atualiza o potencial humano para a santidade. 764 cartas arquivadas no Centro de Psicologia da Religião3 ; c) as
Mística e santidade são categorias que precisam ser problematiza- quatro Cartas Pastorais do bispo José Joaquim Vieira, editadas de
das, pois, mais que uma polissemia, há um desvirtuamento sobre o 1893, 1894, 1897,1898 e publicadas em Macedo (1981).
sentido de ambas, sobretudo da primeira. A pessoa mística é aquela As fontes bibliográficas (secundárias) foram diversificadas, en-
que procura conhecer Deus por uma experiência pessoal de forma volvendo diferentes campos do conhecimento do humano, a saber:
profunda e contínua, fazendo desta relação íntima com Deus o cen- a) produções acadêmicas sobre o fenômeno religioso juazeirense e
tro e a razão de sua vida. A pessoa mística é aquela que mergulha na sobre a beata em foco, com destaque para as seguintes: Della Cava
corajosa ousadia de experimentar o “totalmente outro” em toda sua (1976/2014); Slater (1986); Paz (1998; 2011); Forti (1999; 2009);
plenitude. Conforme veremos no capítulo 2, Maria de Araújo viven- Barbosa (2007); Cordeiro (2011); Ramos (2012); Nobre (2016);
ciava todas as características da mística popular (SEIBOLD, 2006),

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Guimarães e Dumoulin (2015); e Dumoulin (2017); b) pesquisas,
com seus traços sapienciais, ascéticos, penitenciais e de serviço ao depoimentos e pronunciamentos apresentados nos simpósios inter-
próximo. nacionais sobre o Padre Cícero, promovidos pela Universidade Re-
gional do Cariri (URCA) em parceria com outras instituições cultu-
Sobre a pesquisa que deu origem a este livro rais, religiosas e científicas; c) os estudos que propõem a consolidação
de epistemologias superadoras da perspectiva eurocêntrica (Episte-
mologias do Sul), destacando, neste grupo: as teorias da descolonia-
Neste livro, apresento parte da investigação qualitativa realizada lidade (QUIJANO, 2005, 2009) e da decolonialidade (WALSH, 2008,

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entre março de 2016 e junho de 2018. A mesma produziu uma tese 2009); d) a teoria da interseccionalidade (HIRATA, 2014; NOGUEI-
para efeito de progressão para professora titular da Universidade RA, 2017), de matiz feminista.
Federal do Ceará2. Na investigação combinei três abordagens – his-
A “hermenêutica em profundidade” (THOMPSON, 1995) nor-
teou a compreensão de que a inteligibilidade sobre a parte depende
2 Cf: OLINDA, Ercília Maria Braga de. Uma santa na penumbra: razões entrecruzadas
para o isolamento da beata Maria de Araújo na história e na prática pedagógica do ensino
fundamental. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2018. A pesquisa foi parte do
pós-doutorado realizado na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, sob a supervi- 3 Trata-se de uma reunião dos arquivos da Diocese do Crato e dos Salesianos. Nesta tese
são do Prof. Dr. Renato Kirshner farei a citação direta da carta indicando: emissor, destinatário e data.

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da consideração do todo e das relações estabelecidas no interior da Capela onde ocorreu o milagre5 , foi fechada durante vinte anos e os
peculiaridade tratada. Os estudos sobre as diferentes realidades so- padres foram obrigados a silenciar diante dos acontecimentos. Tais
ciais que compõem este complexo universo chamado Brasil ainda ações decorreram do veredito do Santo Ofício, datado de 4 de abril
são incipientes quando se trata da história local das comunidades de 1894 e tornado público em 31 de julho do mesmo ano. Assinado
sertanejas. Cada lugar tem suas particularidades que, ao serem vistas pelo Cardeal Mônaco, os fenômenos foram considerados “[...] falsos
a partir do centro do poder político, perde sua força própria e pode e manifestamente supersticiosos, e contêm gravíssima e detestável
ser profundamente desvirtuada. Assim, o grande desafio na abor- irreverência e ímpio abuso da Santíssima Eucaristia; e por isso são
dagem histórica foi buscar a devida articulação entre local e nacio- reprovados pelo juízo Apostólico e devem ser por todos reprovados
nal/internacional, intencionando compreender os interesses em jogo e condenados e havidos como tais” (GUIMARÃES; DUMOULIN,
para a manutenção de um modo de conceber o mundo que minimiza 2003, p. 83).
o papel das gentes simples e, em especial, das mulheres, perpetuan- No decorrer da pesquisa identifiquei um movimento social e ar-
do processos de subalternização seculares. tístico que se inseriu com entusiasmo na disputa pela memória polí-
Revendo um momento importante do catolicismo popular da re- tica e religiosa de Maria de Araújo. Nos esforços de fazê-la presente
gião Nordeste do Brasil - o episódio do sangramento da hóstia con- na história, nas romarias e na escola, as razões entrecruzadas para
sagrada, ocorrido, pela primeira vez, na Capela de Nossa Senhora o seu silenciamento foram ficando claras: sua condição de mulher
das Dores, em 1.º de março de 1889, tendo-se repetido ao longo de nordestina-descendente-de-negros-e-índios-pobre-analfabeta-mé-
dois anos - encarei as tensões entre uma igreja que implementava dium-mística. As duas últimas dimensões são pouco tratadas, tanto
a política ultramontana a pregar o pleno poder papal na condução nos movimentos sociais quanto na produção acadêmica6. A manu-
da Igreja Católica, enfatizando os dogmas oriundos do Concílio de tenção dessas dimensões nos quadros da patologia ou anormalidade
Trento (1545-1563), e as devoções populares herdadas da tradição é uma forma de “colonialidade do ser” (WALSH, 2008) que objetiva
lusitana. A personagem central do enredo aqui tecido era uma mís- perpetuar a dependência a autoridades e dogmas. O vínculo íntimo

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tica, representante do catolicismo popular e que, mesmo diante de com Deus é um desejo da criatura que busca entender-se no mundo
ameaças e perseguições, foi capaz de invocar a autoridade de Cristo e para além dele (transcendência); e a mediunidade é uma possibili-
sobre a autoridade eclesiástica representada pelo bispo da Diocese dade vivenciada ao longo da história da humanidade, independente
de Fortaleza. de pertenças religiosas.
A literatura especializada registra todas as interdições e castigos No contexto de uma igreja que atravessava um processo de roma-
impostos ao Padre Cícero, aos padres que declararam crer no ca- nização, as manifestações fervorosas do catolicismo popular foram
ráter sobrenatural do evento eucarístico, às beatas e, mais particu- podadas e dirigidas pelo clero. As perseguições à beata, ao padre

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larmente, à Maria de Araújo. As romarias ao Juazeiro, iniciadas em
julho de 18894, foram proibidas, inaugurando uma fase de intensas
5 Assumo o termo milagre, sem aspas, seguindo Forti (1999), pois não tenho a pretensão
hostilidades entre fiéis e representantes do clero, que seriam ameni- de entrar no mérito da Teologia Dogmática para discutir sobre a existência de um “ver-
zadas após 1970, com a chegada do padre Murilo de Sá Barreto. A dadeiro milagre”, ou seja, conforme as leis canônicas. O termo é assumido em respeito
à conotação atribuída pelos juazeirenses e romeiros ao fenômeno, para designar algo
extraordinário, onde a mão de Deus estaria presente.
6 Sobre mediunidade e fenômenos paranormais, ver Suliano Filho, 1984. Trata-se de
4 Segundo Della Cava (2014), a primeira romaria foi organizada por Monsenhor Montei- uma coletânea de palestras proferidas nas Rádio Iracema, Progresso e Vale, de Juazeiro
ro, reitor do Seminário do Crato, contando com mais de três mil pessoas. do Norte, por ocasião do cinquentenário da morte do Padre Cícero.

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Cícero e à nação romeira traziam a marca do desejo de “purificar” de são elementos fundamentais para uma reflexão de conjunto sobre
o catolicismo, impondo-lhe os símbolos e ritos trazidos da Europa. a formação juvenil. Os jovens devotos do Padre Cícero mostraram
Também a historiografia, no primeiro momento, colocou-se na pers- que a experiência romeira propicia momentos de paz e de esperan-
pectiva da modernização dos costumes e superação do “fanatismo” ça, impulsionando atitudes resilientes e engajadas nas lutas cotidia-
que eles viam naquelas pessoas diferentes de si. nas. Também concluí que as emoções e reflexões vividas no espaço
sagrado do Juazeiro colaboram no encontro do sentido da vida. No
geral, esses jovens lidam com a experiência religiosa de um modo
Sobre o desejo de contar a história de uma grande mulher
peculiar, livre de muitas amarras e dogmatismos que prenderam ge-
rações em modos de práticas exteriores que não traziam, de forma
O contato com os romeiros, a leitura de seu com- consciente e construtiva, consequências edificantes para suas vidas.
portamento piedoso nos prendem a atenção, so-
bretudo, porque, se quisermos, seremos seus alu-
Entre os jovens romeiros, há uma diversidade a envolver devoção,
nos (Monsenhor Murilo de Sá Barreto).
engajamento, curiosidade, espírito de aventura e de festa.
Vivendo as tensões da “modernidade tardia” com todos os seus
riscos (BECK, 2010), parte dos jovens se permite viver crenças e
Orientada pelas sábias palavra do Monsenhor Murilo, em epígra- experiências religiosas sem, necessariamente, ter enquadramentos
fe, eu quis ser e fui aluna do povo romeiro. Partindo de uma pergun- institucionais. Essa relação mais livre e, quiçá, mais consciente, nas
ta de um jovem paraibano, surgiu o desejo de conhecer a protago- vivências religiosas, pode potencializar uma mentalidade sintonizada
nista do fenômeno do sangramento da hóstia consagrada. Para ficar com o pluralismo religioso, alicerçando vivências que permitem rela-
mais claro como a beata se tornou o centro da minha “curiosidade ções inter-religiosas que sejam fatores de enriquecimento mútuo. Vi,
epistemológica”, passo a expor parte da minha trajetória de pesqui- ainda, que a concretização dessa utopia depende de uma educação
sadora. emancipatória que propicie o contato com as diferenças e o respei-

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Desde 2008, quando fiz pós-doutorado em Ciência da Religião na to pelo outro, além de denunciar e garantir uma contínua reflexão
Universidade Federal de Juiz de Fora, sob supervisão do professor sobre as práticas e os processos colonializantes que estimularam o
doutor Marcelo Aires Camurça, pesquiso e oriento graduandos, mes- preconceito e a divisão.
trandos e doutorandos no campo das ciências da religião, buscando A dimensão religiosa tem importância significativa na vida dos jo-
compreender os significados e sentidos das pertenças religiosas para vens, mas, na opinião destes, tal fenômeno não é tratado adequada-
jovens de diferentes denominações. mente na escola, pois é recorrente o seguinte quadro: prática proseli-
Nos anos de 2013 a 2015, desenvolvi pesquisa7 nas romarias ofi- tista das religiões majoritárias (católica e evangélicas); estigmatização

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ciais de Juazeiro do Norte, buscando compreender os significados das religiões minoritárias, sobretudo daquelas do universo mediúni-
da experiência religiosa romeira para jovens nordestinos, entre 14 e co e/ou de matrizes africanas; negação do peso que as concepções re-
26 anos. As observações etnográficas empreendidas e, sobretudo, as ligiosas têm nas suas vidas, silenciando ou controlando esta dimensão
narrativas de vida levaram-me a concluir que o relacionamento com no cotidiano escolar.
o sagrado e os caminhos escolhidos para desenvolver a espiritualida- Em meio às pistas propiciadas pela escuta sensível aos jovens ro-
meiros, houve o aguçamento do meu desejo de conhecer a beata do
7 Como produto principal da pesquisa, foi publicado o livro Vidas em Romaria (OLINDA; Juazeiro. Uma questão chamou minha atenção de modo particular:
SILVA, 2016).

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quando foram indagados sobre o que gostariam de encontrar no sobre o Padre Cícero em suas aulas para não parecer que está sendo
Juazeiro, responderam, entre outras coisas: “queremos saber mais parcial. Problematizei, opinando que discutir sobre a figura central
sobre a vida do Padre Cícero”, “queremos saber sobre o milagre aqui do panorama religioso de uma cidade não é, necessariamente, fazer
ocorrido” e “queremos conhecer a beata do milagre”. Em sintonia proselitismo, pois a metodologia a ser empregada no Ensino Reli-
com o mundo da informação, sinalizavam que queriam ter acesso aos gioso é sempre da problematização, o que implica uma circulação de
conhecimentos históricos, pois a fé não dispensa a razão e o exame conhecimento e de vivência da reflexão crítica. Alguns professores
crítico dos fenômenos sociais e religiosos. Se seus pais, avós e bisa- afirmaram que a discussão sobre o Padre Cícero e sobre o fenômeno
vós tiveram que silenciar em relação à “beata do milagre”, as novas religioso em Juazeiro é feita na disciplina “Estudos Regionais”, em
gerações desejam conhecer essa figura tão isolada e deixada na pe- que fica realçada a atuação política do mesmo em benefício do cres-
numbra. Daqui, surgiram as primeiras questões para pesquisa: quem cimento do Juazeiro em todos os aspectos. Estava clara a dificuldade
foi a beata Maria de Araújo? Quais forças e interesses impuseram o em tratar interdisciplinarmente e numa perspectiva de totalidade
esquecimento da protagonista do milagre em Juazeiro? Quais razões um fenômeno presente na vida dos educandos e dos educadores.
explicam a manutenção do silêncio em relação à beata? Uma vez que nenhum docente fez menção à beata Maria de Araújo,
É importante registrar que, nos três anos da pesquisa supracita- fiquei indagando: por que, numa disciplina que deve discutir aspec-
da, não ouvi, dos romeiros mais velhos, nenhuma menção à beata. tos históricos, socioeconômicos e culturais de uma região, não há es-
Quando houve referência ao milagre da hóstia, este foi atribuído ao paço para uma mulher que esteve no centro do fenômeno principal
Padre Cícero, e Maria de Araújo foi confundida com a beata Moci- gerador do impulso socioeconômico do Juazeiro do Norte?
nha8, a governanta da casa do Padre Cícero e responsável pela admi- As perguntas se avolumaram nas minhas observações e ativida-
nistração dos seus bens quando este era vivo. des formativas levando-me a procurar rastros da beata em diferentes
Uma nova experiência na cidade de Juazeiro do Norte viria agu- espaços: nas artes plásticas e cênicas, no artesanato, na literatura de
cordel, nas narrativas de devotos do Padre Cícero, nos movimentos

revisão
çar meu desejo de pesquisar sobre Maria de Araújo: agora se tratava
de uma atividade de formação continuada em que, durante um dia, sociais, assim como na literatura especializada.
discuti a natureza do Ensino Religioso com trinta docentes, em um Buscando contribuir para a produção de conhecimento sobre o
evento organizado pela Secretaria Municipal de Educação. Nos diá- fenômeno religioso na cidade de Juazeiro do Norte, concentro-me,
logos vivenciados, os professores demonstraram uma dupla incom- no presente livro, nas questões de ordem histórica e sócio-antropo-
preensão: sobre o fenômeno religioso passado e presente da cidade lógica apresentadas a seguir: Quem era Maria de Araújo e o que ela
onde trabalham e vivem e sobre a própria natureza da disciplina representava no contexto de uma igreja que atravessava um proces-
que ministram. Para ilustrar a confusão sobre esta última questão, so de romanização? Como sua imagem foi reproduzida ao longo da

revisão
posso citar a afirmação da maioria, dando conta de que não discute história? Como os romeiros, de ontem e de hoje a concebem? Que es-
tratégias foram utilizadas para produzir e perpetuar o silenciamento
em torno da beata? A manutenção do silêncio em relação à beata
8 Assim era chamada a beata Joana Tertuliana de Jesus. A popularização da música Beata Maria de Araújo e o não reconhecimento de sua condição mística
Mocinha, de Luiz Gonzaga (1912-1989), em que aparece o trecho “Minha santa beata fortalece qual visão de mundo?
Mocinha, eu vim aqui visitar meu padim” [...], somada ao silêncio em torno de Maria de
Araújo, colaborou nesta confusão. Em busca feita na Internet realizada no dia 08/08/2018, Espero demonstrar como os conhecimentos e modos de relacio-
localizei no YouTube o áudio com a referida música, tendo, na chamada do mesmo, uma namento com o sagrado advindos das pessoas simples no Cariri cea-
foto de Maria de Araújo.
rense do final do século XIX sofreram processos de detratação, no

22 23
intuito de invisibilizá-las. Uma pergunta fica para reflexão: até que
ponto as representações colonializantes que motivaram reações de
ódio e ou desprezo por Maria de Araújo ainda persistem na atuali-
dade? Penso que entender o que essa mulher passou e quem ela foi
trará pistas para detectar persistências nessas práticas de subalterni-
zação. Como a sociedade caririense trata as “Marias de Araújo” de O QUE SABEMOS E O MUITO POR
hoje? Quantos respeitam as peculiaridades da experiência religiosa SABER SOBRE A MÍSTICA DO JUAZEIRO
de cada um? Quem acredita que Deus opera através de pessoas po-
bres, negras, indígenas, nordestinas e analfabetas?
Lembro que na história da Igreja Católica Apostólica Romana, [...] Já é hora de restituir à beata o seu
diversas pessoas manifestaram, em parte ou no todo, os mesmos fe- lugar na história de Juazeiro do Norte
nômenos “extraordinários”, “paranormais”, “sobrenaturais”, “me- (Maria do Carmo Pagan Forti).
diúnicos” e foram reconhecidos como místicas e santas. Forti (1999)
cita os seguintes casos: de Bolsena, ocorrido em 1263 e que deu ori-
gem à comemoração de Corpus Christi, e de Lanciano, por volta do Este capítulo recupera minha caminhada, às vezes tortuosa, se-
ano 700. Mulheres europeias tiveram experiências místicas seme- guindo os rastros da beata: Quem era ela? Onde ela está? Qual seu
lhantes às da beata Maria de Araújo. Para ficar apenas com os casos lugar na história do Ceará e, mais particularmente, na de Juazeiro
mais conhecidos, cito Santa Gemma Galgani (Itália) e Teresa D’Ávila do Norte? Vi, de início, que a resposta às minhas indagações exigia a
(Espanha). Por que tais manifestações não podiam ocorrer no sertão consideração das relações entre ela e o Padre Cícero Romão Batista.
nordestino, tendo como protagonista uma mulher pobre, analfabeta Como dois lados de uma mesma moeda, procurei vê-los na perspec-
e descendente de negros e índios? Convido o leitor para me acompa- tiva da complementaridade, superando as formulações dicotômicas

revisão
nhar nas reflexões que fiz com a ajuda de diversificadas vozes, a fim presentes na maioria das análises existentes.
de colaborar na elucidação das questões aqui expostas e na abertura As perguntas que formulei são próprias de quem pretende
para novas indagações. apreender o passado numa perspectiva compreensiva, no contexto
de um conhecimento que se compromete com a emancipação huma-
na, ou seja, que pensa alternativas para o presente e para o futuro.
Seguindo os alertas feitos pelo filósofo Manfredo Oliveira (1990, p.
163), no I Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero, percebo que não é

revisão
o caso de alimentar eternas discussões sobre o que ocorreu, mas “[...]
trata-se de mediar a práxis do homem de hoje e a dos homens do
futuro. Mediar uma práxis que seja capaz de emancipar os homens”.
Em outras palavras, pensar as obras humanas, para compreender
quem somos e colaborar na transformação do que resultou das nos-
sas intervenções no mundo.
Refletir sobre as experiências de uma mulher que viveu no século
XIX e início do século XX, num contexto nordestino do latifúndio,

24 25
da pistolagem e do patriarcalismo, estribados em relações escravagis- tiva: o lugar, os personagens, o enredo e suas repercussões.
tas, formal e recentemente extintas, pode ajudar a entender as raízes
dos preconceitos enfrentados hoje por seus conterrâneos, sobretudo
1.1 O sangramento da hóstia consagrada, entre crédulos,
aqueles de origem negra e indígena. Estará em foco, também, uma
incrédulos e detratores: um desafio aos estudos sobre a(s)
igreja que autoritariamente se romanizava, esmagando o modo de
religião(ões)
relacionamento popular com o sagrado, herdado da tradição lusa e
com fortes traços de hibridação com as tradições indígenas e africa-
nas, o que ajudará a pensar os desafios que essa mesma igreja enfren- Não é objetivo deste livro entrar em detalhes sobre os episódios
ta para fazer-se viva junto aos oprimidos de hoje. marcantes da chamada “Questão Religiosa de Juazeiro”, até porque,
Foi importante reconhecer práticas detratoras e autoritárias de tendo sido muitos, não seria possível esgotá-los sem correr o risco de
um clero que, hegemonicamente, não compreendia a experiência ser prolixa e fugir aos objetivos inicialmente propostos. Muito já foi
viva da fé dos pobres, seja pela formação eurocentrada que tiveram, produzido sobre os fenômenos sociorreligiosos e políticos envolven-
seja por partilharem de uma mentalidade secular que não reconhe- do o Padre Cícero, Maria de Araújo e demais atores sociais na trama
cia a riqueza cultural do povo, incluindo sua religiosidade e seus ritos que colocou a “Nova Jerusalém” num lugar destacado das peregri-
devocionais. nações populares.
Não posso deixar de reconhecer que, mesmo procurando o má-
ximo de objetividade no trato do meu “objeto de estudo”, jamais 1.1.1 O lugar...
consegui falar ou escrever sobre a Maria do Juazeiro sem um pro-
fundo sentimento de reverência. Como expressar este espírito quase Falarei do espaço onde se desenrolou a trama envolvendo Maria
devoto na linguagem acadêmica? Busquei em Walter Benjamim um de Araújo, encarando-o, não como um mero “cenário” onde os acon-

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conselho sobre como deveria narrar a saga dessa mulher nordestina tecimentos se sucedem, pois, concordando com Ramos (2012, p. 18),
que instaurou um conflito no interior da Igreja Católica Apostólica “[...] qualquer tessitura urbana ganha formas e sentidos nas expe-
Romana, ao manter-se firme nas suas crenças e ao reivindicar a au- riências sociais, no viver de quem sente o traçado das ruas [...] a cida-
toridade de Cristo: “Deus pode tudo! Deus é onipresente!”, repetia de se faz e se desfaz nos movimentos da história vivida e desejada”.
a firme Maria diante do padre Manoel Cândido9. No texto O Narra-
Assim, era uma vez um povoado fincado no Vale do Cariri Cea-
dor, o filósofo alemão mostrou a pista que eu precisava: “As melhores
rense, na confluência dos caminhos que levavam à cidade do Crato
narrativas escritas são as que menos se distinguem das histórias orais
e de Missão Velha. A primeira, era a mais populosa da microrregião
contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (BENJAMIN, 1994,

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e mantinha a hegemonia econômica e política. Lá nasceu Cícero
p. 198).
Romão Batista, que viria a ser o sexto sacerdote da Capela de Nossa
Mas, afinal, quem foi/quem é Maria Magdalena do Espírito Santo Senhora das Dores, construída em 1827 pelo padre Pedro Ribei-
Araújo? Ouçamos a pluralidade de vozes que tentam se aproximar ro, e que teve seu nome organicamente vinculado à fundação do
do significado dela para a história do Juazeiro e para o catolicismo Juazeiro como cidade independente do Crato e como terra santa.
popular. Seguirei apontando os elementos principais de uma narra- O pequeno lugarejo, originalmente denominado Sítio Taboleiro
Grande, era, em 1875, um núcleo rural composto de aproximada-
mente dois mil habitantes a servirem cinco famílias de fazendeiros
9 Cf. carta ao bispo Dom Joaquim datada de 16 de outubro de 1894.

26 27
(DELLA CAVA, 2014). p. 62) afirma que estes missionários, na maioria capuchinhos, eram
Terra sagrada para os povos indígenas que habitavam a região, tidos como racial e intelectualmente superiores e, em suas prega-
o Vale do Cariri começou a ser povoado no início do século XVIII ções, frisavam “[...] a ira de Deus e a perdição iminente do homem
por criadores de gado de origem baiana e pernambucana. Porém, por causa do pecado”. Compunham, ainda, as Missões Populares ou
a atividade agrícola se sobrepôs, graças à fecundidade das terras e Santas Missões, os lazaristas e jesuítas que difundiam uma concepção
das abundantes fontes que faziam do sul do Ceará um verdadeiro religiosa ascética estimuladora das práticas penitentes e de abstinên-
oásis. O plantio de cana de açúcar e as instalações de engenhos eram cia. O livro Missão Abreviada, usado como bússola pelos missionários,
a principal fonte geradora de riqueza da região. Tinha um comércio era destinado a “despertar os descuidados, converter os pecadores e
incipiente, funcionando pela prática do escambo. sustentar o pacto das missões” (MELO, 2004, p. 31).
Em Guimarães e Dumoulin (2015), o jovem sacerdote Cícero é O Padre Cícero bebeu nas fontes piedosas dessas missões, mas
apresentado “por ele mesmo” através das centenas de cartas que es- tinha um senso de responsabilidade social forjado nos exemplos do
creveu, copiou e arquivou cuidadosamente, indicando seu compro- mestre Ibiapina e do padre Rolim, com quem estudara em Cajazei-
misso com a preservação da memória. De início, é traçado o quadro ras, cidade do interior da Paraíba. Assim, o patriarca de Juazeiro
de um filho dedicado à família, mas que sonhava em missionar na deve ser entendido como uma síntese entre a doutrina formal da
África, socorrendo os aflitos, a exemplo do seu modelo sacerdotal Igreja, de matiz europeia, e as práticas devocionais populares herda-
– o padre Mestre Ibiapina –, que peregrinara em missão no Cariri das da colonização lusa. No meio de todas essas influências, um lema
Cearense entre os anos de 1864/65 a 1868/69, abrindo casas de cari- beneditino direcionou sua atuação: “trabalha e labora”.
dade e preparando jovens órfãs e pobres para uma vida consagrada. Todas as influências teóricas e práticas do Padre Cícero conduzi-
Em seguida, as pesquisadoras agostinianas supracitadas apresentam rão a um episódio fundante em sua vida, que trouxe consequências
a trajetória do sacerdote nas suas difíceis relações com a hierarquia, para uma construção mítica em torno de sua pessoa e da considera-

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mas no profundo vínculo com os desvalidos da sorte. ção de Juazeiro como terra sagrada: trata-se de um sonho que teve
A exemplo do que acontecia no restante do Brasil, no Cariri, antes em 1872, que, pela força do seu conteúdo profético, transformou sua
de 1860, o catolicismo ortodoxo se decompunha. Della Cava (2014, vida, as das beatas e de todo o povo oprimido do Nordeste. Como
p. 61) anuncia que “[...] o número de padres era inadequado, e gras- esse sonho é repetido em inúmeras obras, escolhi reproduzir um tre-
sava a imoralidade clerical”. O contato da população com os sacerdo- cho de Barbosa (2007, p. 17):
tes era esporádico, dando-se apenas nas procissões solenes e nos dias
santificados. Nesse contexto, entram em cena as beatas, mulheres Conta a tradição que, depois de um dia cansativo,
piedosas que tinham forte atuação nos serviços religiosos, ainda que atendendo os fiéis no confessionário e nos outros

revisão
não fossem oficialmente reconhecidas pela Igreja. O papel social des- misteres presbiteriais, dirigiu-se à escola do pro-
fessor Simeão para uma soneca, reclinando-se so-
tas mulheres era potencializado em face da quase ausência clerical e
bre a mesa que ali havia. Sonhou, então, que lhe
se firmava na dedicação absoluta à vida consagrada. aparecia Jesus, acompanhado dos doze apóstolos,
Abandonadas pelo poder secular e pelo poder espiritual, as popu- como no painel famoso da Santa Ceia de Leonar-
lações sertanejas viviam em um contexto desolador, face à opressão do da Vinci. O Cristo deixava antever também o
seu coração, aberto como nas estampas e imagens
latifundiária e aos efeitos de sucessivas secas. Tinham nos missioná-
que propagavam a devoção ao Sagrado Coração
rios estrangeiros a única força “evangelizadora”. Della Cava (2014, de Jesus. O mestre recrimina a ingratidão e rea-

28 29
firma sua disposição de dar mais uma chance de Também a beata, apesar de todos os reveses, manteve-se firme na
salvação para a humanidade pecadora. O quadro tarefa de colaborar com o Cristo para fazer do Juazeiro um lugar de
se completa com o surgimento de um grupo de remissão para os pecadores e perseverança para os justos.
flagelados, maltrapilhos e esfomeados. O Cora-
ção de Jesus volta-se, então, para o padre Cícero Em síntese, o lugar do enredo aqui tratado foi fundado entre
e diz: “E tu, Cícero, cuida deles!” lutas, sonhos e episódios milagrosos, que serão permanentemente
narrados e atualizados nos rituais de fé da nação romeira que efeti-
vamente dá vida ao lugar como terra da promissão.
Para o jovem sacerdote Cícero, o pedido soou como um impera-
tivo hierofânico, levando-o à decisão de permanecer por toda a sua
vida no Juazeiro. Ao fazer referência a esse sonho, Dumoulin (2015, 1.1.2 O episódio e seus desdobramentos...
p. 101) trouxe uma informação importante: “[...] contou o padre a
um amigo, anos depois: acordei e não vi mais nada, mas pensei um Começo apresentando a narrativa que o Padre Cícero fez sobre
pouco e decidi, mesmo errado, a obedecer”. Ele obedeceu, assim o primeiro episódio público de sangramento da hóstia consagrada,
como a beata Maria de Araújo, que, segundo ela mesma afirmou ocorrido, conforme já assinalado, na manhã do dia 1.º de março de
no primeiro inquérito, ouvira, quando criança, de Jesus Cristo, a 1889, na capela de Nossa Senhora das Dores. A narrativa é parte in-
promessa de que mandaria para o Juazeiro: “[...] um sacerdote que tegrante da exposição circunstanciada enviada ao bispo diocesano de
havia de se encarregar de minha direção espiritual e a tantas outras Fortaleza, Dom Joaquim Vieira, em 18 de julho de 1891:
almas. Esse sacerdote somente se interessaria pela salvação das al-
mas, e nada mais, não se poupando a sacrifício algum para concorrer
Era na primeira sexta-feira do mês de Março de
com Deus na obra da salvação das almas”. Não imaginava aquela me-
mil oitocentos oitenta e nove: Então, a convite
nina que, posteriormente, se envolveria num processo eclesiástico, meu, fazia toda a Associação do Sagrado Cora-

revisão
entrando na história do Ceará ao colocar “[...] a pedra fundamental ção de Jesus, legitimamente instituída na Capela
na construção do Joaseiro como cidade santa, Nova Jerusalém, porto do Juazeiro, uma comunhão reparadora pelas
de salvação, terra prometida” (BARBOSA, 2007, p. 17). necessidades da Santa Igreja, em desagravo às
injurias feitas a Nosso Senhor no Sacramento de
Tendo-se debruçado na análise do papel político do Padre Cícero seu amor e para a conversão dos pecadores, tudo
na “revolta de 1914”, Camurça (1994, p. 144) percebeu, claramente, segundo as intenções do terno e adorável Cora-
que o Padre Cícero jamais ção de Jesus. Aí, sente-se a devota chamada, não
somente a comungar sacramentalmente e com
maior amor; mas ainda a uma comunhão espiri-

revisão
[...] abriu mão de sua identidade sacra, do seu pa- tual da maior intimidade, que com razão dir-se-ia
pel de guia religioso, de líder espiritual, para se miraculosa. Passara Maria de Araújo com outras
tornar um político profissional; tampouco abriu senhoras em vigília, adorando em espirito de re-
mão da mística do milagre e de sua visão mes- paração ao Santíssimo Sacramento. Eram já cinco
siânica, simbólica do catolicismo popular, daquele horas da manhã e atendendo eu ao sacrifício que
primeiro sonho que teve quando Cristo encarre- tinham feito aquelas pessoas, passando toda noite
gou-o de cuidar do Juazeiro e de seu povo. em adoração a Nosso Senhor, julguei convenien-
te dar-lhes a comunhão, o que efetivamente se
deu. Pela vez primeira, a vi, então, tomada de um

30 31
rapto extático, resultando, segundo ela afirmara, conforme divulgado na imprensa escrita da época. No IV Simpó-
a transformação da Sagrada Hóstia em sangue, sio Internacional sobre o Padre Cícero, ocorreu uma mesa redonda
tanto que, além do que ela sorveu, parte caiu na para apresentar e discutir a repercussão do milagre da hóstia na im-
toalha e parte caiu mesmo no chão; do que tudo
foram testemunhas seis a oito pessoas que com ela prensa brasileira. Os pesquisadores Maria de Fátima Morais Pinho e
tinham comungado. Durante o tempo quaresmal Antônio Renato Casimiro destacaram a abundância de matérias e a
daquele ano e principalmente às quartas e sex- diversificação de opiniões, com destaque para a participação de José
tas-feiras de cada semana observaram-se aqueles Marrocos e do Monsenhor Monteiro, então reitor do Seminário do
fenômenos; o que deu-se, uma vez também no Crato, como entusiastas divulgadores e defensores dos eventos ex-
sábado da Paixão do mencionado ano, depois do
que passaram a ser diários até a Ascensão do Se-
traordinários tratados. O amplo levantamento incluía: atestados de
nhor. Na festa do preciosíssimo Sangue reprodu- médicos e farmacêuticos; opiniões e testemunhos de militares, juízes
ziram-se os fenômenos de que me ocupo. Era por e padres.
isso grande o temor de Maria de Araújo, que quis Dom Joaquim dera continuidade à política de romanização inicia-
até abster-se da comunhão no que, porém, con-
tinuou só por obediência. Em suas comunicações
da por seu antecessor, o bispo Dom Luís, estando ambos empenhados
íntimas com Deus, foi lhe dada a seguinte respos- na purificação do catolicismo e elevação do clero, o que, para eles,
ta, às perguntas que nesse sentido ela fizera: “É implicava podar os “excessos devocionais” praticados fartamente no
isso uma manifestação de tua fé e da misericórdia Nordeste brasileiro. Sua convicção sobre as diretrizes das orientações
de Deus para com os homens; assim é preciso e tridentinas e sua interpretação pessoal sobre o significado dos mila-
que nada mais lhe era preciso saber”. (GUIMA- gres eucarísticos, aliados ao incômodo de ter tomado conhecimento
RÃES; DUMOULIN, 2003, p. 06) dos fatos de Juazeiro pela imprensa e, depois, por receios em relação
a cismas dentro da Igreja, o bispo começou a agir para a averiguação
dos fatos.

revisão
Anteriormente, em carta datada de 7 de janeiro de 1890, o levita
já tinha manifestado sua posição ao seu superior, nos seguintes ter- Assim, no dia 17 de julho de 1891, convocou o Padre Cícero até
mos: Fortaleza para que respondesse a um “auto de perguntas”, ocasião
em que solicitou uma exposição circunstanciada dos fatos operados com
O fato extraordinário, de que V. Excia. já teve Maria de Araújo10. Dois dias após ouvir o Padre Cícero, o bispo Dom
alguma informação não só por Monsenhor Mon- Joaquim tomou, através de portaria, as primeiras medidas oficiais
teiro como por mais alguém, para maior honra e sobre os fatos em foco: proibição de qualquer culto aos panos en-
glória de Deus, eu sou obrigado a dizer que é ver- sanguentados; intimação para que o padre se retratasse em público,

revisão
dade, porque fui testemunha muitas vezes. Ainda
que exceda a pouca fé minha e de outros, que afirmando que o sangue aparecido nas hóstias “não o é nem pode
não sabemos o excesso de amor do Sagrado Co- ser o sangue de Jesus Cristo”; transferência de Maria de Araújo para
ração de Jesus fazendo esforços para salvar os ho- a Casa de Caridade do Crato. Com exceção da última medida, per-
mens, não posso duvidar porque vi muitas vezes. secutória e autoritária, uma vez que a beata não tinha obrigação de

O sangramento da hóstia se repetiu por dois anos, de acordo com 10 Já em 1886, em Quixará (hoje Quixadá), o Padre Cícero comunicou ao bispo de For-
depoimentos de centenas de pessoas de diferentes classes sociais, taleza, Dom Joaquim Vieira, sobre manifestações especiais que aconteciam com Maria de
Araújo. Cf. carta de Dom Joaquim ao Padre Cícero, datada de 7 de março de 1890.

32 33
se subordinar às suas ordens, as demais se justificavam, porque não ritual das experiências vividas. Senão, vejamos: no relatório conclusi-
havia, ainda, uma posição formal de Roma. vo (GUIMARÃES; DUMOULIN, 2003), o padre Clycerio deixa claro
Ato contínuo foi constituído de duas comissões de inquérito: a de que se convenceu do caráter sobrenatural-divino dos fenômenos, ao
1891, que praticamente atestou o fato como milagroso, ao afirmar testemunhar que das mãos das beatas Maria de Araújo e de Antônia
que não havia explicação científica para o mesmo e ao apresentar Maria da Conceição11 surgiram hóstias e que este fenômeno se dera
farta documentação a indicar a versão de testemunhas oculares; e a para que se confirmasse a ação divina.
de 1892, que, se confrontando com a anterior, concluiu tratar-se de Há, junto à documentação do segundo inquérito, uma carta do
fato natural, insinuando indícios de farsa. padre Antero dirigida ao bispo Dom Joaquim, datada de 11 de janei-
O primeiro inquérito foi realizado entre os dias 6 de setembro ro de 1892, com interessante argumentação do missivista, tentando
a 13 de outubro, tendo como delegado episcopal o padre Clycerio dissuadir o bispo de sua opinião de que o sangue que aparecia na
da Costa Lobo e como secretário o padre Dr. Francisco Ferreira An- hóstia era da própria beata. Na referida carta, lê-se: “V. Excia. po-
tero. Ambos eram reconhecidos como grandes teólogos da Diocese deria acabar com esta questão, procedendo-se a um exame especial
de Fortaleza. Della Cava (2014, p. 101) apresenta dados da carreira sobre este ponto. Seria o meio mais fácil e seguro de descobrir-se a
eclesiástica dos dois: “Padre Clycerio já somava trinta anos de sacer- falsidade e resolver-se a questão, do contrário, parecerá sempre al-
dócio e havia recusado uma indicação para o cargo de arcebispo da guma dúvida” (GUIMARÃES; DUMOULIN, 2003, p. 111-114).
Bahia e o padre Antero era doutor em Teologia, tendo estudado em Para conhecer, em detalhe, a posição de Dom Joaquim, consultei
Roma”. O referido historiador, complementa: “[...] não há dúvida de as Cartas Pastorais anteriormente citadas. Na última Pastoral, a de
que o bispo nomeara dois homens competentes, insuspeitos quanto 1898, certamente em face da não aceitação dos fiéis sobre suas inter-
à piedade e ao saber, e de reconhecidos serviços prestados à igreja. pretações teológicas e medidas disciplinares, Dom Joaquim escreve:
Não lhes escaparia qualquer irregularidade nos ‘factos de Joaseiro’”. “Precisamos, veneráveis irmãos e amados diocesanos, lançar espesso

revisão
Seguindo sua argumentação, no ponto em que analisa as conclu- véu sobre a execrável e enfadonha farsa do Juazeiro, e não mais nos
sões do primeiro inquérito, o pesquisador americano faz especulações ocupar dos deploráveis desvios religiosos e morais que ali se tem dado
sobre o que ele chamou de “deserção” dos comissários, elencando vá- [...]” (MACEDO, 1981, p. 149). Em todos os documentos anterior-
rios fatores que se entrecruzavam: “[...] a atitude prevalecente dentro mente citados, o bispo repete que Maria de Araújo é uma pobre moça
da hierarquia católica em face das transformações que se operavam “reconhecidamente doentia12” (MACEDO, 1981, p. 135). Na Pastoral
na política nacional” (DELLA CAVA, 2014, p.105), a saber: dissemi-
nação das doutrinas liberais; agitação anticlerical entre maçons, re-
11 Em Ramos (2012), temos uma elucidativa descrição e análise da participação de outras
publicanos, positivistas e materialistas; a proclamação da República;

revisão
beatas no que ele chamou de “trama das revelações”, em que “[...] nenhuma deixou de
a presença de missionários protestantes a fazer proselitismo no Cea- assumir o papel de personagem envolvida no enredo” (RAMOS, 2012, p. 46). Ele traz as
experiências místicas de Antônia Maria da Conceição, Ana Leopoldina de Aguiar Mello
rá. Para Della Cava (2014, p. 105), provavelmente “[...] tais fatores e Jael Cabral.
tenham levado os comissários a acreditar que Deus interviera em 12 A beata Joanna Tertulina de Jesus, mais conhecida como beata Mocinha, tendo con-
Joaseiro. Num dado momento, justamente para salvar os homens, vivido com Maria de Araújo pelo menos por sete anos e morado por um tempo com ela,
a fé e a nação”. Sem considerar o fundo de verdade desta hipótese, assim se pronunciou no primeiro inquérito, sobre a saúde da companheira: “[...] à exce-
ção de alguns ligeiros incômodos de estômago e alguma febre que sofre alguma vez, nela
prefiro afirmar que os padres foram “tocados” pelos fenômenos que não se nota enfermidade grave” (GUIMARÃES; DUMOULIN, 2003, p. 35). Sabemos do
presenciaram, tendo-se convencido pelo impacto psicológico e espi- sofrimento e das dificuldades que enfrentam as epilépticas. Será que ninguém notaria,
caso a beata sofresse dessa doença?

34 35
de 1893, ele chega a afirmar que ela era epiléptica. Tal dedução foi 5) o fenômeno foi uma ação simbólica e de resistência, fruto de
feita com base na informação de Padre Cícero, fornecida no “auto de um imaginário mítico;
perguntas”13, que ele respondeu antes de começar o primeiro inqué- 6) o fenômeno foi milagre; foi a manifestação de Deus para cha-
rito, em que afirmou ter sido a beata, quando criança, acometida de mar à santidade.
uma enfermidade qualificada como espasmo, que a deixava sujeita a
ataques nervosos que, segundo o mesmo padre, cessaram logo que as
manifestações maravilhosas começaram a acontecer. Sem dúvida, além da própria beata, o Padre Cícero foi aquele que
jamais negou a tese do milagre, mesmo quando poderia tê-lo feito
Desde a origem, havia muitas interpretações sobre o episódio fun-
para recuperar suas ordens, objetivo que perseguiu até o final da
dante para o surgimento das romarias; portanto, vamos conhecê-las.
sua vida. Vejamos o que asseverou Della Cava (1985, p. 279) a esse
respeito:
1.1.3 As diferentes posições sobre os fatos extraordinários...
Nada moveu mais o Patriarca, a partir de sua
Na lista de estudos sobre o milagre em Juazeiro, há uma literatu- suspensão de 1896, do que o desejo de reaver o
exercício de suas ordens. Nem a revolução vito-
ra apaixonada e nem sempre devidamente fundamentada, daqueles riosa de 1914, nem a decorrente politização de
que jamais aceitaram a possibilidade de que o fenômeno protago- sua residência sob a influência de Floro, nem seu
nizado por Maria de Araújo e por outras beatas fosse da ordem do crescente isolamento dos anos 20 diminuíram
“sobrenatural”, ou que a mão de Deus estivesse presente. Nessa ex- essa obsessão. Era realmente uma idéia fixa.
tensa literatura, bem como nos documentos escritos, encontramos as
seguintes posições: Na carta de 23 de outubro de 1914, dirigida ao padre Constanti-

revisão
no Augusto, vemos um sacerdote angustiado diante do dilema obe-
1) o fenômeno nada mais foi que manifestação de um corpo doen- diência/consciência:
tio e/ou de uma mente histérica; O Senhor Bispo exigiu de mim mais do que dos
outros; que eu perjurasse do testemunho em obe-
2) o fenômeno foi um embuste resultante de artimanhas arqui-
diência que me fez dar, me desdizendo e ainda
tetadas por José Marrocos em conluio com a beata e o Padre mais que caluniasse a pobre e inocente Maria de
Cícero; Araújo, que tinha me enganado ou outras desor-
3) o fenômeno foi obra de magnetização do Padre Cícero sobre dens que eu houvesse feito. Isto era um absurdo
que eu nunca, nem sequer pensei que o Senhor

revisão
uma médium, numa ação do demônio ou operação diabólica
Bispo se lembrasse de exigir um tão grande cri-
em que usou a beata como instrumento; me a ponto de mandar um escrito com tais dize-
4) para alguns pesquisadores da Parapsicologia, tratava-se do fe- res para eu assinar.
nômeno do “aporte”14;
Não posso deixar de lembrar que a posição dos padres que con-
duziram o primeiro inquérito foi favorável à tese do milagre; assim
13 Cf. Guimarães e Dumoulin (2003, p. 2-4). como foi a posição de centenas de pessoas que presenciaram não
14 Para saber sobre esse fenômeno parapsicológico, ver Forti (1991, p. 27 e 1999, p. 92-94).

36 37
apenas o sangramento da hóstia, mas as demais manifestações místi- que eu Conheci, a educadora Amália Xavier mostra inúmeras expres-
cas e/ou sobrenaturais/mediúnicas, vivenciadas por Maria de Araújo. sões depreciativas lançadas pelos opositores do Padre Cícero ao lugar
Em carta a Dom Arcoverde, datada de 28 de dezembro de 1891, que ele tinha como filho. A negatividade em relação ao Juazeiro era
Dom Joaquim indagava: “Posso eu proibir que mais de 20 sacerdotes constante na imprensa escrita. Vemos uma delas no Jornal A União
acreditem no milagre, embora estejam ilusos?” Nesse grupo estava o de 28 de março de 1897, trazida por Nobre (2016, p. 308-309), após
Reitor do Seminário do Crato, Monsenhor Monteiro, o primeiro a tecer comentários sobre a propalada histeria de Maria de Araújo e
divulgar o fenômeno eucarístico e a organizar uma romaria de três acusar o Padre Cícero de explorar os romeiros, o periódico afirma:
mil pessoas, saindo do Crato no dia 7 de julho de 1889. Segundo “Juazeiro está convertida em uma escola de perversão moral e religio-
Oliveira (2001, p. 79), ao ser advertido pelo Padre Cícero de que era sa”. Para mais uma ilustração da campanha difamatória sofrida pelo
cedo para divulgar tais fatos e tendo perguntado o que ele faria se o patriarca de Juazeiro e pelas beatas, Neto (2009, p. 203) divulgou
bispo reprovasse sua afirmação, ele afirmou: “Se eu negar o que vi, uma charge publicada no Jornal pernambucano Lanterna Mágica, de
ceguem meus olhos.” 30 de setembro de 1894, conforme se pode ver na imagem a seguir:
Um a um, levados por pressões do bispo, que, segundo Della
Cava, vislumbrava a edificação de uma “igreja dentro da Igreja”, e Figura 1 – Charge publicada no Jornal pernambucano Lanterna Mágica,
para não serem excomungados, negaram o que acreditavam e que de 30 de setembro de 1894.
haviam declarado ter presenciado, sob juramento do Evangelho. O
Padre Cícero e seu primo José Marrocos pagaram um preço alto
por obedecer às suas consciências. Aqui fica uma questão inquietan-
te: mesmo se houver flagrante injustiça da autoridade eclesiástica,
o voto de obediência é superior ao voto em favor da verdade? Toda
religião enfrenta a tensão entre manter a tradição e abrir-se para a

revisão
inovação, mas até quando essa tensão será resolvida com o uso da
força, do ardil e da intolerância?
O povo simples de Juazeiro e de várias cidades nordestinas jamais
duvidou do milagre e até 1930, apesar das proibições de romarias e
de qualquer atitude devocional à beata, a igreja de Nossa Senhora
do Perpétuo Socorro, onde seu túmulo fora erigido por ordem do
Padre Cícero, era visitada, sendo a primeira ação dos romeiros ao

revisão
chegarem a Juazeiro. Vale lembrar que quase sempre a igreja estava
fechada, por ordem da diocese de Fortaleza, que até então não havia
permitido que a mesma recebesse a bênção exigida para o funciona-
mento de qualquer local de culto católico. Fonte: Lira Neto (2009).
Ao analisar os intrincados sucessos da Questão Religiosa de Jua-
zeiro, percebi uma construção negativa da imagem daquele pequeno Também é famosa a fala do padre Tabosa, quando, no púlpito da
povoado, que passou a ser tido como terra de mulheres histéricas, de igreja do Crato, por ocasião da visita do bispo interino Dom Manoel
fanáticos e de cangaceiros. Na emocionante narrativa O Padre Cícero Lopes, começou seu “sermão” dizendo: “Povo nobre e altivo do Cra-

38 39
to, peço permissão para falar sobre o povo imundo do Juazeiro, que 22 de abril de 1892, tendo os padres Manoel Cândido dos Santos e
vive guiado por satanás” (BARROS, 2008, p. 285). Miguel Coelho de Sá Barreto como secretários, foram realizadas três
As representações negativas sobre Juazeiro vêm desde a época “experiências”, em que a hóstia foi ministrada à beata, fora da missa.
em que esta era uma pequena povoação pertencente ao Crato. É Como o fenômeno não se repetiu, a comissão afastou qualquer pos-
recorrente na historiografia a repetição de que lá era uma terra de sibilidade de ação divina nos fenômenos anteriormente verificados.
desordeiros e bebedores de cachaça, em flagrante desrespeito aos Também foram ouvidas as seguintes testemunhas: o Cel. Juvenal de
2.000 trabalhadores que lá habitavam. Interessante estudo em nível Alcântara Pedrosa e o advogado João Batista Siqueira. O depoimen-
de mestrado foi feito pela historiadora Antônia Otonite de Olivei- to deste último merece destaque, pois, mesmo não tendo presencia-
ra (1999), mostrando a construção da representação sobre o Crato do os fenômenos, tinha uma convicção firmada: “Colhidas as neces-
como cidade cultural em contraposição ao “atraso de Juazeiro”. Ela sárias informações fiquei desde logo convencido que não se tratava
mostra a origem e o processo consolidador da noção compartilhada de milagre mas de um fato natural explicado pela ciência, uma vez
pela elite cratense, de que sua cidade natal era o berço da cultura, em que se dava em uma mulher doente e histérica” (GUIMARÃES; DU-
contraposição aos vizinhos Juazeirenses, mergulhados em fanatismos MOULIN, 2003, p. 90). Sua segurança na crença de que as coisas
e misticismos. de Juazeiro eram falaciosas se fortaleceu, segundo ele, ao ouvir do
Doutor Madeira que “[...] no Juazeiro havia uma verdadeira epide-
Toda animosidade contra a cidade, produzida ao longo de dé-
mia de mulheres histéricas” (GUIMARÃES; DUMOULIN, 2003, p.
cadas, criou um clima favorável à má vontade quanto ao resultado
91). Curioso é que o atestado, por escrito, desse mesmo médico, que
do primeiro inquérito. Nem mesmo a palavra de centenas de teste-
jamais aceitou se retratar, não servia para que, pelo menos, colocasse
munhas das verificações de sangramentos da hóstia, os registros de
sua convicção em dúvida. Há, na questão religiosa de Juazeiro, um
crucificações da beata ou os atestados de médicos e farmacêuticos
aspecto importante a merecer futuras pesquisas: o modo como o co-
tiveram alguma valia para a consideração de que os fatos ocorridos
nhecimento científico foi manipulado para fortalecer esta ou aquela

revisão
em Juazeiro pudessem ter um caráter divino ou sobrenatural. Ao
posição ideológica ou doutrinária.
contrário, os depoimentos, cartas e relatórios que circularam após as
“experiências” do segundo inquérito, procuraram colocar as beatas, Depois do resultado do segundo inquérito, e diante do aumento
os padres Cícero e Clycerio e os profissionais da área de saúde no de pessoas que acreditaram no milagre e se deslocavam até Juazei-
ridículo. Assim, podemos ver depoimentos de mulheres da cidade ro, várias ações claramente persecutórias15 foram ordenadas, através
de União (hoje Jaguaruana) que denunciavam falsificações e artima- de Portarias Diocesanas, contra o Padre Cícero e contra Maria de
nhas para encenar fatos extraordinários envolvendo o presidente do Araújo, assim como atingiram os padres que persistiam em afirmar
primeiro inquérito (GUIMARÃES; DUMOULIN, 2003). Não posso o milagre, quanto aos romeiros que ficaram privados da presença da

revisão
deixar de registrar que não foi dado direito ao contraditório, uma beata e da orientação do seu padrinho. Vamos enumerá-las:
vez que o padre Clycerio não foi ouvido para apresentar sua versão
em relação às acusações que lhes eram dirigidas. 1) em vários momentos, o bispo ordenou que o Pe. Cícero se re-
Da mesma forma, no segundo inquérito, não foi dada nenhuma tratasse em público, retirando sua afirmação de que o sangue
oportunidade para que a beata Maria de Araújo se pronunciasse.
Desta feita a condução ficou a cargo do padre Antônio Alexandrino
15 No livro Eu Defendo o Padre Cícero, o Padre Neri Feitosa fez a seguinte afirmação quanto
de Alencar, da paróquia do Crato, que afirmou em diferentes cartas às medidas em questão: “Faltou proibir ao padre Cícero de se coçar e respirar” (FEITO-
ao bispo, estar seguindo à risca suas orientações. Nos dias 20, 21 e SA, 1982, p. 77).

40 41
derramado nas hóstias era o verdadeiro sangue de Jesus Cristo 12) foi proibida a continuidade da construção da Igreja do Sa-
(4 de agosto de 1891; 30 de setembro de 1894; 28 de novem- grado Coração de Jesus no Horto (17 de julho de 1903);
bro de 1894; 25 de dezembro de 1894); 13) Monsenhor José Alves de Lima executou ordens de D. Fran-
2) houve a reclusão de Maria de Araújo por, pelo menos, seis me- cisco e destruiu o túmulo de Maria de Araújo, transferindo
ses à casa de caridade do Crato (Decisão Interlocutória); seus restos mortais para lugar até hoje desconhecido (22 de
3) foram proibidas as comemorações da Semana Santa em Juazei- outubro de 1930).
ro (17 de março de 1892);
4) Padre Cícero foi suspenso das ordens, ficando, assim, privado Em seu conjunto, essas medidas deram fôlego aos detratores e
de pregar, confessar, orientar os fiéis, guardar hóstias no taber- foram eficazes para colocar Maria de Araújo no isolamento e, paula-
náculo da capela de Juazeiro; porém, era permitido celebrar tinamente, apagar seu nome da história de Juazeiro. Sem dúvida, a
fora do povoado (5 de agosto de 1892); fonte principal para a origem do silenciamento sobre a beata veio da
5) Padre Cícero é suspenso da função de Vigário da Paróquia de Sagrada Inquisição Romana Universal, que, em 4 de abril de 1894,
S. Pedro e é retirada a autorização para a permanência do San- deu seu primeiro veredito sobre o caso de Juazeiro, condenando-o
tíssimo na Capela de Nossa Senhora das Dores (6 de agosto de e afirmando que são “prodígios vãos e supersticiosos” (MACEDO,
1892); 1981, p. 139-140). Como medida para “se evitarem piores males que
deles podem nascer”, proibiram-se as romarias e publicação de livros
6) foi determinado o enclausuramento da beata Maria de Araú-
ou qualquer outro escrito que falasse do episódio, além de se impe-
jo para a Casa de Caridade de Barbalha (8 de dezembro de
dir que sacerdotes e leigos falassem do assunto. Quanto aos panos
1892);
ensanguentados e outras relíquias, que fossem queimadas.
7) foram proibidos a todos os sacerdotes do bispado confessar,
Vejamos, na íntegra, a sentença assinada pelo Cardeal Mônaco16:

revisão
pregar, celebrar qualquer ato religioso na capela de Juazeiro,
excetuando o vigário do Crato e os padres por ele indicados;
8) o Padre Cícero e outros sacerdotes, defensores da tese do mi- Na Congregação de quarta-feira, 4 de abril de
1894, tendo discutido os fatos que aconteceram em
lagre, foram proibidos de se comunicarem com as dez pessoas Juazeiro, da Diocese de Fortaleza, os Eminentíssi-
arroladas no processo do primeiro inquérito, bem como de ce- mos e Reverendíssimos Padres Cardeais da Santa
lebrarem em Juazeiro e vizinhanças (12 de setembro de 1894); Igreja Romana, Inquisidores Gerais, pronuncia-
9) deu-se ordem para que, em cinco dias, a beata se retirasse para ram, responderam e determinaram, como segue:
a Casa de Caridade de Barbalha, sob ameaça de perder o hábi- Os pretensos milagres e outros fatos sobrenatu-

revisão
rais que se dizem de Maria de Araújo são falsos e
to, caso se recusasse (20 de setembro de 1894 – Carta de Mons. manifestamente supersticiosos, e contêm gravís-
Alexandrino); sima e detestável irreverência e ímpio abuso da
10) Padre Cícero foi suspenso de todas as ordens sacerdotais (14 Santíssima Eucaristia; e por isso são reprovados
de maio de 1895); pelo juízo Apostólico e devem ser por todos re-
11) o Padre Francisco Ferreira Antero teve suas ordens suspensas
(Decreto Diocesano de 14 de abril de 1896);
16 Mais detalhes sobre “o veredicto de Roma e suas consequências”, ver Dumoulin (2017,
p. 135-143).

42 43
provados e condenados e havidos como tais. Para A sentença supra baseou-se nos relatórios dos inquéritos insti-
que se imponha um fim a estes excessos e ao mes- tuídos pelo bispo Dom Joaquim, que manifestara sua compreensão
mo tempo se previnam mais graves males que daí prévia sobre o sangue vertido no momento da comunhão: “não o é
se possam seguir:
e nem pode ser” o sangue de Jesus Cristo. Na prática, a segunda co-
1º. A dita Maria de Araújo, depois de lhe ser
imposta uma grave e demorada penitência, seja
missão teve a tarefa de provar que o fenômeno ocorrido com a beata
quanto antes recolhida a uma casa pia ou religio- não era “sobrenatural”, mas embuste, ou obra do demônio, endossa-
sa, onde permaneça, ao beneplácito do ordinário, do por pessoas fanatizadas.
sob a direção de piedoso e prudente confessor, Como coroamento da tarefa de colocar a figura da beata em total
devidamente informado dos antecedentes da-
quela mulher.
esquecimento, e porque ainda se mantinham devotos à sua memória,
em 22 de outubro de 1930, seus restos mortais foram sequestrados
2º. Além disto, na medida de todo o possível, seja
interdito pelos Ordinários de Fortaleza e de todo sem exumação; seu túmulo foi demolido e seu nome condenado ao
o Brasil o concurso de peregrinos ou acesso de esquecimento:
curiosos em vista a ela e às outras mulheres cul-
padas na mesma causa.
Tudo indica que o padre José Alves Lima mandou
3º. Quaisquer escritos, livros ou opúsculos edita- derrubar o túmulo da beata porque estava prepa-
dos ou que, por acaso, venham a sê-lo, o que não rando a capela para que pudesse receber as bên-
aconteça, em defesa daquelas pessoas e daqueles çãos do bispo. Era preciso evitar que os despojos
fatos, sejam tidos por condenados e proibidos, e, da beata fossem abençoados. Mais que isso: era ne-
na medida do possível, sejam recolhidos e quei- cessário expurgar do templo a memória de uma
mados. mulher negra e pobre que havia desafiado o po-
4º. Todos e cada um dos sacerdotes, bem co- der da hierarquia clerical (RAMOS, 2012, p. 68).

revisão
nhecidos do Revmo. Sr. Bispo, que trataram até
sacrilegamente a Santíssima Eucaristia, como
também seus cúmplices, sejam obrigados aos Apesar de todas as perseguições e proibições, as romarias a Jua-
Exercícios Espirituais, pelo tempo que ao mesmo zeiro do Norte continuaram e se avolumaram, ancoradas no reco-
bispo parecer conveniente, e segundo a gravida- nhecimento popular da santidade do “Padim Ciço” e na devoção a
de do crime, sejam por ele severamente punidos, Nossa Senhora das Dores, cuja origem remonta a 1827, quando o
proibindo-lhes qualquer relacionamento, mesmo
por carta, com a citada mulher, interditando-lhes, padre Pedro Ribeiro mandou construir uma capelinha para a santa
ainda, até onde e quando lhe parecer convenien- que viria a ser a padroeira de Juazeiro do Norte. Porém, a beata ficou

revisão
te, qualquer direção de almas. na penumbra... Por quê? Por que um povo aguerrido, que resistiu e
5º. Tanto a estes sacerdotes como a outros, sacer- resiste às determinações superiores da Igreja a que pertence, se sub-
dotes ou leigos, proíba-se que, por qualquer ou meteu – e ainda se submete, em parte, como veremos mais à frente
por outro escrito, tratem dos pretensos e supra- – ao silêncio, quando se trata da figura da beata? Por que as expe-
citados milagres. riências místicas de Maria de Araújo e os episódios de sangramentos
6º. Os outros panos manchados de sangue e as das hóstias foram sumariamente considerados como embuste, doen-
hóstias de que se tratou, e todas as outras coisas
guardadas como se fossem relíquias, sejam pelo
ça ou ação do demônio? Há variadas motivações para tais atitudes.
mesmo Ordinário recolhidos e queimados.
Vejamos algumas delas.

44 45
Havia as pessoas incrédulas que iam buscar nos conhecimentos do e intriga”. Ele ilustra com eloquência, trazendo à baila diversos
científicos disponíveis as explicações para os fenômenos, pois não personagens, no mundo e no Brasil, vítimas dessa quase compulsão
se convenciam das teses sobre fraudes e embustes. A beata parecia humana de destacar os aspectos negativos dos outros, silenciando
muito frágil para manter uma farsa por mais de dois anos seguidos, sobre suas virtudes, ou, simplesmente, alardeando inverdades que
assim, de início, cresciam as convicções de que ela era doente para, rebaixam e, às vezes, causam danos irreparáveis à moral da vítima.
posteriormente, tomarem corpo as explicações da Parapsicologia. Os Karnal (2016, p. 14) expõe o tripé básico da detração: “[...] um
próprios comissários do primeiro inquérito insistiram na pergunta cérebro ardiloso, um coração ressentido e uma língua ferina”. Um
sobre a saúde da beata e o bispo Dom Joaquim repetia à exaustão maldizer tem sempre uma intenção de escárnio e de ataque contra
que a mesma era doente, conforme expresso em suas cartas pastorais aqueles e aquelas que ousam desafiar o instituído e que ameaçam as
anteriormente comentadas. Interessante era a apropriação feita dos verdades que colocam alguém, um grupo ou uma instituição numa
conhecimentos da Psicologia nascente e da Psiquiatria. A “histeria” relativa zona de conforto. O mais estranho nos detratores é que eles
da beata foi diagnosticada pelo Dr. Júlio César da Fonseca Filho: não hesitam em oscilar entre um profundo respeito a uma intestina
ojeriza. Assim, o Padre Cícero passa, na avaliação de Dom Joaquim,
O fenômeno que se produz na dita beata não de um “sacerdote inteligente, modesto e virtuoso” (GUIMARÃES;
é novo nem surpreendente [...] não se trata de DUMOULIN, 2015, p. 26) a “sacerdote que não é sincero”, daí seu
impostura ou simulação [...] Maria de Araújo é desejo de que ele se retire da diocese “onde só pode fazer o mal”
simplesmente uma histérica como Maria Koerl:
(GUIMARÃES; DUMOULIN, 2015, p. 28).
tem suores de sangue, diápesis, perturbações na
inervação dos pequenos vasos das paredes das Em carta ao núncio, Dom Joaquim afirma que o Padre Cícero
glândula sudoríparas [...] durante a comunhão, é “desequilibrado das faculdades mentais” e, ainda, escrevendo ao
convergindo toda a força das suas faculdades monsenhor Guidi, afirma: “[...] é um segundo Antônio Conselheiro,
afetivas para a boca, aí, por simples afluxo san-

revisão
que tem o dom de fanatizar as classes ignorantes” (GUIMARÃES;
guíneo, perfeitamente explicável pelas leis que
regulam a circulação, manifesta-se localmente a DUMOULIN, 2015, p. 28). Na mesma linha, Dom Quintino, primei-
hemorragia. (FORTI, 1999, p. 77) ro bispo do Crato, antes amigo que tinha o Padre Cícero na conta de
lúcido sacerdote a ponto de tomá-lo como seu confessor, escreve a
Dom Manoel, na ocasião, bispo auxiliar de Fortaleza, em 31 de agos-
Nos detratores, adeptos das teses da farsa e do embuste, encon- to de 1912: “Infelizmente, ao pobre Padre Cícero sempre se depa-
trei impactantes lições sobre como não proceder com o outro. Quem ram auxiliares idôneos na execução dos vaidosos planos de grandeza
eram essas pessoas? Eram, sobretudo, membros do clero associados e renome que alimenta a olhos vistos, tirando proveito do grosseiro e

revisão
a memorialistas, jornalistas e políticos adversários do Padre Cícero. irrefreável fanatismo do povo ignaro” (GUIMARÃES; DUMOULIN,
Antes de apresentar suas “teses”, debruçar-me-ei sobre o significado 2015, p. 31). Maria de Araújo deixa de ser uma pessoa humilde,
geral da detração, prática corrente na história da humanidade e na temente a Deus e sua serva, para se transformar em embusteira. As
história brasileira, a deixar sua marca maledicente em várias vidas e mediações e o diálogo não têm espaço quando se trata de defender
grupos sociais. posições de poder!
O historiador Leandro Karnal (2016, p. 13) traz argumentos ins- Muitos exemplos teríamos para ilustrar a prática da detração,
tigantes sobre a detração, utilizando este termo como sinônimo de mas, por hora fiquemos com aquele mais exaltado: o padre Alencar
“fofoca, maledicência, maldizer, difamação, mexerico, boato, baba-

46 47
Peixoto, que, movido por um sentimento de repulsa, fruto do racis- ca dessa monstruosidade feita mulher?
mo, da misoginia e do desprezo pelos pobres, deixou para a poste- - Com muito gosto.
ridade um lamentável texto, em forma de conversa ou cartas, entre - Pois vamos lá.
duas pessoas, que ainda hoje deixa revolta em quem, minimamente, E o moço desembaraçadamente, e num rapto de
entendeu a mensagem de amor incondicional do Cristo; ou, pelo alegria infantil que lhe ourava a cabeça:
menos, que sabe o valor da alteridade e do respeito devido ao ser hu- - Maria de Araújo, que deve de orçar hoje pelos
mano. Vale a pena reproduzir, na íntegra, tão detestável texto, com seus cinquenta anos, é de estatura regular; brun-
o único objetivo de demonstrar até onde foi o desprezo de membros dúsia, triste, vagarosa, entanguida, essencialmen-
te caquética, porque tem ela uma séria ascenden-
do clero, às raças que eles consideravam desprezíveis:
te de caquéticos ou tuberculosos.
A cabeça, que por casco, como por toda parte,
Maria de Araújo traz sempre descoberta, tem a configuração de
- Onde nasceu? um corredor de boi, escarnado.
- E criou-se17? O cabelo[,] que nem é preto nem branco, pelo
- Nasceu e criou-se ela em um dos aros mais sur- que supor-se pode ter ela quarenta e poucos
rentos e miseráveis daquela esmesurada almasti- anos, é cortado à escovinha.
ga de dor, de horrores e de abandono social, que Os olhos pequenos, e sem um raio sequer de ex-
se chama Juazeiro. pressão que lhe ilumine o semblante, mexem-se
- Seu pai? histericamente nas faldas de uma testa estreita e
protuberante.
- Um divezo que andava quase sempre em tre-
mulência, um negro, mancípio que fora da gente O nariz irrompe dentre os olhos, sem base e, le-
do padre Pedro Ribeiro, de saudosa memória. vantando-se, a pouco e pouco, alarga-se de asas

revisão
chatas até os ossos malares achamboirados, estú-
- Sua mãe? pidos, nas gelhentas bochechas cavas.
- Uma cabra de cabelo ulórico e matigado que Os beiços moles e relaxados deixam a descoberto
servia fora de casa, mas muitas vezes não podia em um dos cantos da cacostoma boca, à compe-
trabalhar e se ficava de cama por causa das sovas tência com a pele cor de azeitona em estado de
que amiudamente lhe dava o macho, o marido. putrefação, denegridos, os dentes laniares.
- A mulher de que falamos, se, como dizes, e eu A saliência do maxilar inferior desafiando-lhe a
creio, é um produto, um cruzamento das duas ra- protuberância do frontal, semelha-se a de um ho-
ças mais detestáveis, não pode deixar de ser, em mem de Darwin.

revisão
todos os sentidos, uma hibridez horrível.
O pescoço como que quer desaparecer à forqui-
- De fato, amigo, e tão horrível como talvez não lha que lhe se formam os ombros alteando-se ao
imagines. nível das orelhas sem pingentes.
- Poderás vazar-me em palavras a hibridez estéti- Eis, meu amigo, em ligeiros traços, o transunto
dessa cacodemoníaca criatura que deve ser mu-
lher, que assim o indica a pênula, a murça, a bata,
17 É lamentável tal ironia sair da boca de um “cristão”, sobretudo numa região em que o vestuário, sobretal, de beata.
a fome se alastrava entre vítimas das secas e das cercas, ceifando a vida de milhares de Para todos os que viram e, como eu, a conhecem,
crianças.

48 49
talvez mais que todos, que não na perdia d’olhos, assumir que os ensinamentos do Cristo são impraticáveis e inalcan-
e segui-a por toda parte, estudando-a, examinan- çáveis?
do-a, e mais ainda suas ações, a pintura, direi, pa-
rafraseando o clássico autor de Fanny, a pintura é O Padre Cícero, as beatas e, mais fortemente, Maria de Araújo so-
por demais mesquinha, apagada e fria, em face freram detrações, que foram respondidas com silêncio e humildade,
do original. em alguns casos, ou com firmeza, conforme a necessidade.
- Muito bem! E que me dizes, agora, quanto ao Ao realçar as práticas detratoras, não tenciono isolá-las como
monstro por dentro? ações de corações perversos ou moralmente malformados. Ao con-
- Quanto à hibridez moral dessa candorça diabó- trário, quero entendê-la numa ambiência sociocultural e política de
lica a quem se ligara pela lei das moléculas afins
e com quem concertara o padre Cícero aque-
uma região isolada em um país latino-americano recém-saído de re-
le supersatânico embuste iterativo da hóstia em lações escravagistas. Para uma Igreja que enfrentava o positivismo e
sangue transformada, quem poderá debuxá-la? a modernidade, com o deslocamento de seu papel na vida das comu-
Quem poderá delinear o perfil dessa alma sobe- nidades, todas as estratégias de desmonte daquilo que a ameaçava
ranamente execrável? Quem poderá relatar as pareciam legítimas. Ao enfrentar o cientificismo, a Igreja recuperou
suas misérias e as suas torpezas? Quem poderá teses medievais em que cabia o maravilhoso, mas isso para o cen-
enumerar todos os males que ela, de mãos dadas
com o padre Cícero, tem causado à religião, à pá- tro, ou seja, para o velho mundo. No Brasil, e mais nitidamente no
tria e à humanidade? Nordeste brasileiro, a tarefa era “purificar” o catolicismo das práticas
Assim finalizou o diálogo, o moço. (PEIXOTO, herdadas de Portugal.
2011, p. 41-43) Na minha avaliação, há, mesmo em pesquisadores leigos, uma
tendência a suavizar os conteúdos detratores contra as personagens
Depois de descrição tão dantesca, voltemos às reflexões mais ame- centrais da “Questão de Juazeiro”, sobretudo quando envolve o bis-

revisão
nas de Karnal (2016, p. 20), porém, igualmente contundentes, quan- po Dom Joaquim. Defesa que é válida apenas no início das contendas
do ele duvida que se possa escapar à prática detratora e a apresenta em torno dos fatos verificados em Juazeiro, quando o bispo cumpre
como traço da natureza humana: “Parto de um princípio: onde hou- sua obrigação de averiguar criteriosamente os fatos, pois essa era a
ver pessoas, há falas, onde houver fala, há detração. A detração nasce recomendação do Concílio de Trento. Para isto, ele instituiu a pri-
com a sociedade humana e não desaparecerá enquanto houver seres meira comissão de inquérito, escolhendo dois sacerdotes de altíssimo
humanos.” Será? Sempre estranho quando um historiador fala de nível, conforme indicado anteriormente. Porém, o que vemos suce-
“natureza humana” como algo fora da história. A prática da detração der, com a recusa de considerar o relatório conclusivo apresentado
pelos comissários, além da persistência em não aceitar que se fizes-

revisão
com seus refinamentos foi construída e consolidada numa ambiência
onde os interesses particulares mesquinhos ou de uma classe social sem exames químicos nos panos ensanguentados, como fora feito no
refletem interesses contrários a relações igualitárias e socialmente caso de Lanciano na Itália18, é a expressão de uma Igreja autoritária
justas. Será que é impossível imaginar um modo de viver diferente, e distante do povo que ansiava “purificar-se” introduzindo práticas
em que, pelo menos, tenhamos consciência do nosso prazer interior eclesiais e de devoção europeias, onde o espaço do leigo é restrito e
em falar mal do outro, tirando vantagem disso? Se acreditamos que o controle clerical é absoluto. O exame da documentação disponí-
o ser humano não tem condições morais e espirituais de estabelecer
outras formas de relacionamento com seus semelhantes, temos que
18 Cf. Forti (1999, p. 71).

50 51
vel mostra não apenas o zelo de um bispo pela pureza doutrinária, carados para que aprendamos com as lições da história, a fim de
mas a verdadeira militância de alguém que não se abrira para uma construir uma nova era. Por que pessoas tão bem posicionadas
Igreja em que o laicato tivesse voz e que um simples “padre da roça” social, política e eclesiasticamente precisaram levantar tantas ca-
pudesse ser ouvido, sem ser considerado, a priori, um fanatizador e lúnias? Karnal (2016) afirma que falamos mal de quem senti-
aproveitador. mos estar acima de nós; por isso, queremos lançá-los no chão.
O sentido de santidade atribuída à Maria de Araújo, como pro- Precisamos refletir por que tanto o Padre Cícero quanto Maria
tagonista do milagre, e ao Padre Cícero, como um consolador dos de Araújo precisavam ser “lançados ao chão”. O que eles amea-
náufragos, persistiu na mente e nos corações das pessoas acolhidas çavam?
em Juazeiro do Norte e que visitavam a Jerusalém celeste, conforme Essa não é uma questão de fácil resposta. Com apoio da inter-
vimos, em busca de cura física ou espiritual, por um longo período. seccionalidade, insisto em mostrar que variáveis diversas estavam
A seguinte passagem de Della Cava ilustra o que afirmei: implicadas nesta equação: o esfacelamento da Igreja tradicional
e o projeto de romanização; a posição política e social de um lu-
Tratado como se fosse uma seita e privado de garejo perdido no Nordeste brasileiro; a posição da Igreja sobre
comemorar suas festas religiosas, o povo logo mulheres, laicato, negros e índios; a desqualificação das gentes
encontrou outras práticas para manifestar a sua simples, analfabetas ou pouco escolarizadas; o elitismo de uma
lealdade. Enfeitava as casas com retratos do Pe. sociedade que reservava aos pobres apenas um lugar subalterno,
Cícero e de Maria de Araújo, que eram tidos e longe de considerações sobre dignidade e garantia de direitos.
estimados como novos santos, os descobridores
dos novos mistérios; usavam em volta do pesco- Nesse contexto, como admitir que um nordestino pobre pu-
ço correntes com medalhas cunhadas na Europa, desse ter recebido de Jesus Cristo a missão de cuidar dos opri-
portando a efígie de seus heróis. Na medida em midos nordestinos? Como aceitar que uma mulher descendente
que esses costumes eram também condenados

revisão
de negras e de índias pudesse ser instrumento de Deus para a
“superstições grosseiras”!, constituíam, de fato,
atos de desafio. (DELLA CAVA, 2014, p. 80) transformação da hóstia consagrada em sangue? Como aceitar
que mulheres assinassem documentos encaminhados ao papa e
opinassem em questões teológicas?
Esta passagem e outras registradas na historiografia ilustram Mesmo o pior maledicente jamais assume sua maldade ou
o reconhecimento à beata, colocando-a entre as santas proteto- seus interesses pessoais e ideológicos. Os detratores sempre jus-
ras. Aqui cabe uma indagação fundamental: como ela foi sendo tificam suas posições pela “vontade de ajudar” (KARNAL, 2016,
apagada? Tentarei mostrar, no próximo capítulo, como o silen- p. 18). Quando a Igreja expulsou o padre Mestre Ibiapina do

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ciamento em torno da beata foi-se dando. Ceará, desmantelando sua obra caritativa e organizativa junto ao
Hoje, a beata ainda está na penumbra, mas os efeitos da cam- povo, fê-lo em defesa da ortodoxia. Quando o Padre Cícero teve
panha difamatória que enfrentou em vida parecem estar se des- suas ordens suspensas e foi proibido de falar dos episódios da
manchando no ar. Os preconceitos e a inveja que estão na base hóstia sangrante e das demais manifestações místicas vividas pela
da detração e que fortalecem as práticas colonializantes do po- beata Maria de Araújo, também havia justificativas teológicas e
der, do ser, do saber e sobre a mãe natureza precisam ser escan- pastorais elevadas. Quando o padre Antônio Gomes de Araújo,

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no livro Apostolado do Embuste19, levantou calúnias contra as perso- no do Estado do Ceará, no episódio denominado pela historiografia
nagens envolvidas na Questão de Juazeiro, mas principalmente con- como sedição, guerra, revolta ou revolução de Juazeiro. Milhares de
tra José Marrocos, o fez com intenções de prevenir cisma e manter nordestinos fiéis e agradecidos ao Padim Ciço resistiram bravamen-
a dignidade do clero. Quando o túmulo da beata foi profanado em te na trincheira cavada em apenas três dias, assim como em outras
1930, a intenção era inibir as romarias de “fanáticos” que resistiam frentes. Em meio à luta, uma mulher franzina e doente, que vivia
a todas as interdições e orientações ortodoxas. No entanto, quantos recolhida em sua casa, ofereceu sua vida em troca da vitória dos seus
teriam coragem de reconhecer sua aversão a uma Igreja em que as conterrâneos, parceiros de infortúnios e de injustiças sociais. Veja-
leigas não são apenas receptoras passivas dos bens salvíficos? Quan- mos o relato de Oliveira (2001, p. 34), que viu muitas vezes a beata
tos assumem sua dificuldade de reconhecer na fé da devota mais “[...] deitada numa pequena cama de vento estendida na sala de visi-
simples uma força inquebrantável com quem deveríamos aprender? tas lado do sul [...]”:
Para concluir, deixo uma pista para entendermos o furor das de-
tratoras: nossas personagens eram diferentes e apontavam para uma Maria Araújo, beata conhecida por todo povo de
Igreja onde o laicato tinha força, mas, principalmente, que demons- Juazeiro e quiçá do Nordeste brasileiro, vivia po-
travam que o encontro íntimo com Deus não lhes era interditado. bremente numa pequena casa com umas moças
desamparadas, algumas até suas parentas. Adoe-
Elas davam exemplos de reação ao racismo e aos processos colonia-
ceu gravemente; aumentaram as necessidades
lizantes que a política de purificação do catolicismo impunha. Padre com a doença agravada pela situação da guerra.
Neri Feitosa (1984), Comblin (2011) e Dom Helder Câmara20 foram O Padre mandou que passasse a morar em Casa
capazes de identificar no Padre Cícero um precursor, a exemplo do de D. Mariinha do Capitão Domingos que desfru-
padre Mestre Ibiapina, da Teologia da Libertação. Qual o papel da tava de boa situação financeira e podia ajudá-la.
beata nesse projeto? O que ela ensinou sobre opção preferencial pe- Dizem que a beata ofereceu a sua vida pela paz da
los pobres? O que ainda precisamos aprender com ela? cidade e a tranquilidade do seu pai, na ordem es-

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piritual. Se foi aceito por Deus, veremos na outra
vida. Nesta só podemos confirmar que ela mor-
1.2 Maria de Araújo por ela mesma e pelas outras beatas reu sete dias antes da tomada do Crato. (p. 33)

Em 1914, Juazeiro do Norte estava cercada por tropas do gover- Quem era essa mulher? Que qualidades interiores possuía para
tamanho desprendimento? Que crenças acalentava para oferecer sua
vida em defesa de sua cidade natal? O pedido feito pelo Padre Cícero,

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19 O autor, sempre se referindo à beata com adjetivos pejorativos, afirma que resolveu antes do início da “guerra de Juazeiro”, dá um pouco da dimensão
em definitivo a questão religiosa do Juazeiro, pois descobriu como José Marrocos agia
para encenar o sangramento da hóstia, uma vez que descobriram no espólio do mesmo,
espiritual e política desta mulher: “Minha preta, não morra. Preciso
dezesseis anos depois dos episódios protagonizados por Maria de Araújo, um livro que de suas orações. Você é minha espada forte. Você é uma guerreira21”.
ensinava a fazer reações químicas que imitavam a aparência de sangue. O pouco atento Sempre imaginei o padre e a beata num sentido complementar: ho-
investigador só não percebeu que as datas de edição dos livros eram posteriores a 1889.
mem/mulher; branco/negra; rico/pobre; intelectualizado/não escola-
20 Rampon (2013, p. 450), mostrando a relação de Dom Helder Câmara com os místicos
cearenses, dá a seguinte informação: “Do Pe. Cícero, por exemplo, o seminarista Helder
aprendeu que no coração de um cristão – sobretudo de um padre – não cabe uma gota
de ódio [...] e na sacristia da Igreja das Fronteiras, o Dom conservava, com carinho, uma 21 A pesquisadora Maria do Carmo Pagan Forti (2009) gravou em áudio este relato da
estátua de cerâmica do ‘ Padim Ciço’”. sobrinha da beata Maria de Araújo: a Sra. Baíca.

54 55
rizada; membro do clero/leiga. Tais diferenças não os afastavam; ao Inferiorizar e subalternizar são formas de “des-humanizar”, ou
contrário, um aprendia com o outro e ambos se uniam pelo Juazeiro. seja, de tirar do ser humano sua dignidade, sua condição mesma “de
Antes de começar a escrever este tópico, indaguei: como Maria se ser”. As práticas subalternizantes têm inúmeras estratégias, algumas
apresentaria para quem perguntasse quem é ela? Depois de tudo que mais violentas, outras sutis. Uma prática bastante utilizada pelas eli-
li, ouvi e vi sobre sua personalidade, penso que ela baixaria a vista e, tes opressoras foi roubar do outro a possibilidade de pronunciar sua
com toda a humildade, responderia: “Sou uma serva de Deus e da palavra. Paulo Freire (1987, p. 131) expressa magistralmente o sig-
Igreja. Luto por minha salvação e quero ajudar na salvação daqueles nificado mais profundo deste rapto da palavra do oprimido: “Desen-
que estão à minha volta, incluindo as almas que estão no purgatório volve-se no que rouba a palavra dos outros uma profunda descrença
e no inferno. Sou uma mulher que enfrentou dificuldades materiais neles, considerados como incapazes. Quanto mais diz a palavra sem
e humilhações, mas que acredita que Juazeiro pode ser a terra da a palavra daqueles que estão proibidos de dizê-la, tanto mais exercita
abundância, pois esta foi a vontade manifesta de Nosso Senhor Jesus o poder de mandar, de dirigir, de comandar”.
Cristo. Em tudo, busco estar unida a Deus e tenho conseguido me Para restituir, em algum nível, a voz da beata Maria de Araújo, uti-
aproximar d’Ele, ouvindo as orientações de Nosso Senhor Jesus Cris- lizei duas fontes: seu depoimento do dia 9 de setembro de 1891 e o
to e meditando sobre sua Paixão. Nossa Mãe Santíssima, São José, ou- aditivo feito dois dias depois. Pelo artifício da transcriação23 (MEIHY,
tros santos e meu confessor também têm me ajudado nesse esforço”. 2010, 2014; BONI, 2013), recuperei a fala de Maria de Araújo, re-
Na trilha da perspectiva feminista empreendida por Paz (1998), tirando as perguntas que lhe foram feitas e atualizando o aspecto
Forti (1999), Nobre (2016) e Ramos (2012), procurei, ao máximo, ortográfico, sem, contudo, abandonar o linguajar próprio da época.
buscar entender a personagem em foco, ouvindo-a e, ainda, procu- Também, em pequenas passagens, reordenei sua fala para melhor
rando realçar outras vozes femininas, silenciadas por uma cultura compreensão do leitor. Apesar de longo, o texto é oportuno, pois
machista e por uma historiografia que não conseguiu ou não quis mostra a voz de uma mulher humilde, mas ativa; obediente à Igre-
ja, mas segura de seu compromisso com o Cristo e com sua cidade

revisão
destacar a atuação social, política e religiosa das mulheres na funda-
ção e desenvolvimento do Juazeiro do Norte. natal. Também se justifica porque corresponde a um desejo coletivo
expresso pelos professores da escola pública de Juazeiro e de outros
Os documentos e a literatura especializada são fartos de opiniões,
segmentos que ainda não tiveram acesso aos documentos aqui trata-
depoimentos, elogios e calúnias sobre e contra a beata, mas onde
dos, sobretudo dos estudantes universitários24.
buscar sua própria voz? Silenciá-la e silenciar quem conviveu com
ela foi uma das estratégias subalternizantes utilizadas pela hierarquia
eclesiástica, daí porque temos poucos registros dela própria, assim
como de terceiros em relação a ela. Vamos ouvi-la mais demorada-

revisão
mente numa situação tensa de inquérito com o agravante de ter o
“filtro” do padre Antero (homem, branco, membro do clero com for- 23 Os trechos aqui utilizados encontram-se em Guimarães e Dumoulin (2003, p. 09-13 e
mação romanizante), a quem, como já disse, coube secretariar todo o 15-18).
processo do primeiro inquérito22. 24 Toda a documentação relativa à “questão religiosa de Juazeiro” encontra-se disponível
para consulta em vários espaços, sendo os principais: Cúria Diocesana do Crato; Arquivo
da Congregação Salesiana; e Centro de Documentação do Cariri, da URCA. Este último
equipamento recebeu a doação de todas as fontes documentais utilizadas pelo pesquisa-
22 Importante lembrar que, naquela época, não existiam meios para gravações, nem dor Ralph Della Cava, mas, infelizmente, de acordo com o professor Darlan de Oliveira
mesmo de áudio. Reis Júnior, coordenador do centro, não há uma procura significativa desse acervo, sobre-
tudo pelos professores da educação básica.

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Maria de Araújo por ela mesma porta do Céu e um lugar de salvação para as almas. Por ocasião de co-
Meu nome é Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo . Sou filha 25 mungar, tem a sagrada hóstia se convertido em sangue e em carne. A
legítima de Antônio da Silva de Araújo, já falecido, e de Ana Josefa do princípio, só em sangue. A primeira vez foi na primeira sexta-feira de
Sacramento. Sou natural da Povoação do Juazeiro e tenho vinte e nove março de mil oitocentos e oitenta e nove, interrompendo-se, porém, e
anos começados26. Sou solteira e me dou ao trabalho de costuras27. Não continuando neste corrente ano até a presente data. Salvo a interrup-
sei ler e nem escrever. Sofro de ligeiros incômodos de estômago, mas ção de poucos dias deste mesmo ano; não tenho, porém, certeza de se
me alimento regularmente. Desde a idade de dois anos comecei a so- ter convertido em carne como outros testemunharam e isso em conse-
frer de ataques nervosos, com maior e menor interrupção, tendo os quência da perturbação em que então me achava. Pelo estado de per-
ditos ataques cessado há cinco anos, mais ou menos. Em consequência turbação que fico, não posso afirmar com certeza se a hóstia consagra-
de uma queda, motivada por esses ataques, tive, uma vez, um escarro da, por ocasião de minhas comunhões, tenha tomado a forma de
de sangue. Iniciei minha vida de piedade, desde os nove anos, mais ou coração humano. Mas conforme testemunho de muitas pessoas e parti-
menos. Tenho tido visões maravilhosas desde a idade de nove anos, cularmente de um médico e de alguns sacerdotes, isso ocorre. O san-
mas com alguma interrupção, e sem que bem conhecesse o que isso era. gue que aparece na minha boca por ocasião da comunhão é em grande
Há seis anos as visões tornaram-se mais frequentes e tenho tido inteiro quantidade, pelo menos na maior parte das vezes. Tenho certeza de
conhecimento delas, porquanto Nosso Senhor Jesus Cristo e a Virgem que este sangue não é meu próprio sangue, pois sinto isto e tenho a este
Santíssima se comunicam comigo, dando-me direções espirituais. respeito revelação particular. Também não experimento enfraqueci-
Quando tenho essas visões me sinto mais inteligente e melhor prepara- mento algum, nem alteração de qualquer espécie em minha saúde.
da para os conhecimentos dos mistérios divinos. Também minha von- Noto que nestas ocasiões a sagrada hóstia se move de um modo bem
tade fica mais disposta ao amor de Deus e a todos os gêneros de sacrifí- sensível na minha boca, e até sinto dar algum salto da língua, até tocar
cios para me unir com Ele. Tenho hábito de meditar e o objeto especial ao céu da boca; e isso sempre. Tenho tido êxtases, e nesse estado con-
de minhas meditações é a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, que templo a Jesus Cristo recomendando minha consagração a Ele próprio.
tem-me recomendado, por repetidas vezes, aplicar a mim mesma os Isso tanto por mim mesma, como por todos os que não O amam. Saio

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sofrimentos diversos de sua paixão. Tenho tido colóquios com Nosso do estado extático a mandado do meu diretor espiritual e até a manda-
Senhor Jesus Cristo e nessas oportunidades Ele manifesta ser de sua do de qualquer sacerdote, debaixo de obediência. Nesse estado, tenho
vontade que eu me consagre e me prepare para revelações futuras. Em tido revelações especiais acerca dos fatos ocorridos desde mil oitocentos
algumas destas revelações Ele me indicou querer fazer deste lugar uma e oitenta e nove, até a presente data, nesta Povoação do Juazeiro; por-
quanto Nosso Senhor Jesus Cristo me tem revelado que tudo isso se
opera para a conversão dos pecadores e perseverança dos justos, che-
gando até a queixar-se amargamente da ingratidão dos homens para
25 Nenhum pesquisador teve, até hoje, acesso ao seu registro de nascimento e nem com Ele, e chamando-os a aproveitarem de suas graças enquanto é
podemos afirmar se ele existiu. O Padre Cícero sempre a chamava de Maria de

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Araújo. Provavelmente, os complementos Magdalena e Espírito Santo tenham sido tempo de misericórdia. Nosso Senhor, por muitas vezes, me tem reve-
escolhidos por ela por ocasião dos votos que fez ao receber a roupa de beata. lado que a carne e o sangue que aparecem na comunhão é, verdadeira-
26 Ela nasceu no dia 24 de maio de 1863, portanto, tinha 28 anos. De acordo com mente, sua carne, e seu sangue, recomendando que, até à custa de mi-
Forti (1999, p. 37), a expressão “começados”, significava “ainda não ‘inteirados’”. nha própria vida, desse testemunho de sua glória por esse fato
27 Araújo (2014) informa que ela também se ocupou das seguintes tarefas: lavar manifestado, e que nisso lhe obedecesse, por mais que os homens se
e engomar roupas, vender doces e bolos, fiar, tecer e fazer bonecas para vender e recusassem a crer nesse mistério. A respeito da notícia da decisão do
serviços domésticos em casas de família.
Senhor Bispo Diocesano acerca da espécie da carne e do sangue apare-

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cido nas hóstias consagradas, não tenho como opinar, porquanto ape- Sempre Virgem Maria”. Ele mandava dizer, ainda: “Meu Pai, abençoai
nas ouvi alguma coisa nesse sentido da boca de particulares e não de a mim e às almas do purgatório e tudo que Jesus, Maria e José queira
sacerdotes. Eu me sinto sempre disposta, segundo recomendação a abençoar; que sejam todos abençoados e salvos pelo Sagrado Coração
mim feita por Nosso Senhor, a obedecer sempre à autoridade da Igre- de Jesus e seu preciosíssimo Sangue”. Tinha promessa de indulgência
ja. Tenho tido estigmas e, por vezes, duram por cinco ou seis horas, para toda vez que fossem recitadas essas preces. Também aprendi e até
pouco mais ou menos. Tenho sofrido exsudações sanguíneas e de ordi- recitei, juntamente com Jesus Cristo, outras orações, mas agora não me
nário isso se dá quando medito na paixão e na bondade de Nosso Divi- lembro dos termos em que elas eram concebidas. Em algumas ocasiões
no Redentor. No estado de êxtase e quando sofro as exsudações sanguí- sofri tentações diabólicas. Muitas vezes sucedeu que fui espancada pe-
neas me sinto mais atraída a Deus e disposta à imitação de Jesus Cristo. los demônios que se disfarçavam – ora na pessoa de Jesus Cristo, ora na
Também a me conformar sempre à sua divina vontade. Tenho chagas Santíssima Virgem; ora em anjos e na do próprio confessor. Estas ten-
em meu corpo e julgo que essas chagas são sobrenaturais, porquanto tações traziam ilusões muitas, todas no sentido de me distrair da vida
tenho nesse sentido particular revelação de Deus, que me diz querer, interior. Eu me livrava delas recitando a oração que mostrei antes. Te-
com isso, comunicar seu amor. No meu corpo têm-se produzido algu- nho tido muitas vezes comunhões miraculosas, isto é, que não me são
mas impressões admiráveis. Muitas vezes, em minha fronte, aparece a ministradas por sacerdotes. Estas comunhões são ministradas por Nos-
coroa de espinhos. Em minhas mãos e pés surgem os cravos e em meu so Senhor mesmo, que as tirava de seu coração entreaberto, dizendo:
peito, uma cruz. Experimento, ao mesmo tempo, uma dor forte e gran- “Come de minha carne e bebe de meu sangue; de agora em diante será
de consolação da alma. Então, Nosso Senhor me revela que isso se ope- o sustento de tua alma o meu corpo e o meu sangue”. Ele dizia que
ra para que eu, em união com os sofrimentos de sua paixão, concorres- assim eu fizesse para conversão dos pecadores, a perseverança dos jus-
se com Ele a converter os pecadores; a santificar as almas e a libertar as tos e o aumento de sua Glória. Essas comunhões são administradas
almas do purgatório. Celebrei um consórcio espiritual com Jesus Cristo muitas vezes sob a espécie de pão e algumas vezes sob a de sangue,
com solenidade na Capela do Santíssimo Sacramento, em presença de dando-se que no dia vinte e um de agosto de mil oitocentos e oitenta e
Maria Santíssima, de São José, de coros de anjos e de virgens, tendo a nove, Nosso Senhor mesmo administrou a comunhão de seu sangue

revisão
isso precedido diversos preparativos e outros desponsórios espirituais. em um cálice de ouro, repetindo-se este fato por mais algumas vezes:
Naquela inesquecível cerimônia, Jesus introduziu no meu dedo o anel foram esses fatos, como que a preparação para os que estão dando-se
nupcial, dando Sua mão e me chamando de esposa. Ele me confirmou atualmente. Quando as comunhões são administradas sob a espécie de
como tal e exigiu que a Ele me consagre de um modo mais íntimo ain- pão, quase sempre aparecem ensanguentadas, mandando, então, Nos-
da, e me anunciou que daí em diante teria mais que sofrer por seu so Senhor que eu me apresente ao confessor ou a outro qualquer sacer-
amor. Tive revelações especiais em relação aos fatos da conversão das dote para receber a bênção, como meio esse preservativo de toda a
hóstias em carne e sangue e isso comuniquei ao meu diretor, por or- ilusão diabólica. Assim, me convencia que as comunhões eram dispen-
dem divina. Também me foi revelado este fato atual da afluência de sadas por operação divina. Nosso Senhor muitas vezes asseverava se-

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grande multidão de povo de diversos bispados a este povoado; todos rem divinas as comunhões. Nosso Senhor tem permitido que eu vá
dispostos a se purificarem aqui no sacramento da penitência e assim muitas vezes em espírito ao purgatório libertar algumas almas, reco-
preparados receberem o sacramento da eucaristia. Nosso Senhor disse, mendando que entrasse na participação dos sofrimentos das almas
que isso se operaria para avivar a fé da presença real Dele na eucaristia, para assim aliviar suas dores e que concorresse com Ele para libertá-las
já muito enfraquecida nestes últimos tempos. Também tive revelações como fosse de sua divina vontade, e efetivamente assim se tem dado
sobre as perseguições à Igreja nestes últimos tempos. Lembro e posso por diversas vezes, libertando-se do purgatório muitas almas, algumas
comunicar algumas das orações que aprendi da boca de Nosso Senhor: das quais foram minhas conhecidas. Deus, Nosso Senhor, tem prometi-
“Louvada seja a morte e paixão de Jesus Cristo e as dores da Imaculada do provar com algum sinal mais evidente a sobrenaturalidade divina

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dos fatos aqui ocorridos, mas muitas vezes não me revela nada de espe- nistrou a comunhão por suas próprias mãos, sob a espécie própria do
cial a este respeito. Ele me recomendou que bastava amá-lo. Quando sangue, num cálice de ouro que me deu a beber, derramando parte
nesta ocasião me queixei dizendo que não sabia amar a Deus, ouvi de dele sobre minha cabeça, que chegou a ensopar o véu e a murça que eu
Sua boca estas palavras: “Eu te darei um coração capaz de me amar”. trazia. Assim, fiquei em estado de êxtase e ao despertar me senti aflita
Quero ainda dizer que na idade de seis a sete anos brincava com o me- por não saber o que fizesse do sangue que caiu sobre mim. Ouvi de
nino Deus, sem que, porém, o conhecesse então. Entretanto, aquele Jesus que de tudo desse parte ao meu confessor e que ele fizesse a esse
Divino-Menino que só agora me tem sido revelado quem fosse, me en- respeito o que bem entendesse. Nosso Senhor acrescentou que me pre-
sinava os mistérios de Deus e me preparava para os sacramentos da parasse para muito sofrer por amor Dele; que dias haveria que eu havia
penitência e da eucaristia. Ele me prometeu que para aqui mandaria de sofrer tanto, que suporia que Dele fora abandonada, mas que assim
um sacerdote que havia de se encarregar de minha direção espiritual e não seria. Disse que eu me reanimasse em seu serviço e o seguisse, pois
a tantas outras almas. Esse sacerdote somente se interessaria pela salva- que, por maiores que fossem os sofrimentos dessa vida, são eles passa-
ção das almas, e nada mais, não poupando-se a sacrifício algum para geiros. Declarou, ainda, que nesta vida eu nunca teria paz e nem ale-
concorrer com Deus na obra da salvação das almas. Quando Jesus ter- gria, do mesmo modo que Ele nunca as teve. Muito antes da manifes-
minou esse discurso, disse: “Seja em tudo Deus, sempre bendito e lou- tação destes fenômenos atualmente aqui ocorridos, sucedeu que ao
vado”. Depois de ter dito isto desapareceu no meio de uma grande luz. benzer um pouco de vinho que me fora ministrado por ocasião de me
28
Peço licença para voltar ao ocorrido no dia vinte e um de agosto de sentir muito enfraquecida, o vinho se converteu em sangue, que só eu
mil oitocentos e oitenta e nove, quando morava em casa de minha mãe. bebi por obediência ao meu confessor. Outro fato semelhante se repro-
Era perto de seis horas da tarde daquele dia; tive uma visão de Jesus duziu quando eu tomava um pouco de leite e algum chá que era a mim
Cristo, que aparecendo em forma humana me perguntou se eu o co- dado como medicina. Novamente Nosso Senhor declarou que tudo isso
nhecia. Respondi que não. Aí ele se apresentou a derramar sangue, era uma preparação para maiores graças no futuro. Ele disse que ia
desde a cabeça até os pés, e do próprio lado, protestando ser Ele o meu manifestar sua Divina Pessoa presente na eucaristia, fazendo aparecer
esposo que tanto me amava, com recomendação de que o amasse, e que sangue em mim e que eu acreditasse que ali estava Ele próprio. Tudo

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viesse à Igreja fazer uma confissão segundo a intenção Dele, como pre- aquilo Ele fazia para confirmar minha fé e de tantas outras pessoas, na
paração para me consagrar toda a Ele. Também me disse que assim presença real Dele na eucaristia. Sangue esse que servia de salvação
deveria me dispor para outras graças, que de futuro me tinha de dar. para muitos e de condenação para outros. Declarou mais: que ao tem-
Nosso Senhor me recomendou que fizesse quinze estações em união po em que o Reverendíssimo Monsenhor Francisco Rodrigues Montei-
com sua paixão e em honra das dores de sua Mãe Santíssima, termi- ro achava-se com Sua Excelência Reverendíssima em visita na Fregue-
nando cada uma das estações com sete Padre Nosso e sete Ave Maria. sia de Sobral, quando me achava em vigília diante do Santíssimo
Durante aquelas estações, Nosso Senhor me apareceu diversas vezes, Sacramento, me foi revelado que o Seminário do Crato se havia de
mas de relance e sempre coberto de sangue declarando, a meu pedido, abrir e dele seria reitor o mesmo Monsenhor Monteiro, que seria coad-

revisão
que assim sofria para que eu O amasse, e também pela conversão dos juvado por mais dois sacerdotes, pouco depois revelados quais eram
pecadores. Disse que eu tomasse sobre mim todos os seus sofrimentos, eles. De tudo isso dei conhecimento ao meu diretor espiritual, reco-
para a realização do que prometia novas graças que aproveitariam tan- mendando a ele até que disso se desse conhecimento ao mesmo Mon-
to a mim própria como a este lugar. No fim das ditas estações, cerca de senhor. Também a mim foi revelado que do dito seminário sairiam
duas horas da manhã do dia vinte e dois de agosto de mil oitocentos e bons padres. Esta graça eu pedi a Deus! Finalmente nessa mesma oca-
oitenta e nove, é que Nosso Senhor Jesus Cristo pela segunda vez mi- sião Nosso Senhor mesmo me falou ser Ele o próprio dono do Seminá-
rio do Crato, juntamente com Maria e José. Além dessas visões de Nos-
so Senhor, tive, muitas vezes, visão de Nossa Senhora que me aparecia
28 A partir daqui, aparece o aditamento feito pela beata em 11 de setembro de 1891,
conforme Guimarães e Dumoulin (2003, p. 16-18).
62 63
visivelmente. Numa dessas visões a Santíssima Virgem recomendou assunto e com as circunstâncias que já expus, por ordem mesmo de
que nesta Igreja do Juazeiro se cantasse das seis para as sete horas da Deus. Outra vez, a mandado do meu confessor, como penitência sa-
tarde o ofício em honra de suas dores, prometendo muitas graças cramental, fui ao Papa, mas não lembro se em todas essas vezes o
particulares que Deus tinha de dar a este lugar. Ao ofício deveria se Papa prestou atenção. Muitas vezes, na missa, na hora da comunhão,
juntar ladainha e pranto. Nesta, como em tantas outras ocasiões, a em diversos arrebatamentos de meu espírito a Deus, me tem sido
Santíssima Virgem me revelou que grandes provas aguardavam o sa- revelado que grande perseguição à Igreja Brasileira está iminente e
cerdote que aqui se achava e a si mesma, prometendo, porém, que de já em começo. Muitos padres haverão de ser perseguidos e encarce-
tudo se haviam de livrar, mediante a confiança em Deus e a interces- rados e talvez mesmo mortos, por causa do casamento civil. Que mui-
são da mesma Santíssima Virgem. Até as duas secas - de mil oitocentos to se ore para que tais coisas não sucedam. Muitos povos se levanta-
e setenta e sete e a de mil oitocentos e setenta e nove, me foi revelada rão, uns a favor e outros contra a Igreja, mas no final se dará o
da parte da mesma Santíssima Virgem, que muito recomendava que triunfo da Igreja. No correr desse processo, já há cerca de dezoito
orasse para alcançar melhor tempo, indicando mesmo diversas espé- dias, me tem sido muitas vezes divinamente revelado, e isso por oca-
cies de práticas de piedade para esse fim, como sejam: novenas das sião de comunhões miraculosas a mim administradas por Jesus Cristo
almas, das suas dores, em honra das cinco chagas. Ordenava nessa mesmo, e recebidas debaixo de obediência a Deus, que cumpria se
mesma intenção, vigílias a cada hora. As vigílias haviam de ser prati- desse pressa ao dito processo, por que assim fosse quanto antes enca-
cadas por diversas pessoas em revezamento. Tudo isso participei ao minhado ao Papa a merecer sua aprovação. Tudo isso me foi revelado
meu confessor, salvo um ou outro caso de que não tenho maior lem- tanto na Povoação do Juazeiro , como na casa da caridade, onde por
brança. Também quero dizer que tudo quanto declarei agora e no ordem do Senhor Bispo Diocesano me acho recolhida há quinze dias.
“auto de perguntas”, fiz por mim mesma e por inspiração de Deus. Em consequência disso me encontro privada da direção de meu pró-
Não foi por insinuação de meu Diretor espiritual de cuja direção, em prio diretor espiritual ordinário, como já disse antes. Mas, por uma
consequência da grande afluência de povo a este lugar com o fim de especial recomendação de Deus nesse particular, ouvi Dele que, con-
chegar-se ao sacramento da penitência, me acho privada já há muitos quanto me achasse privada de meu confessor ordinário, não seria

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dias. Nesse particular me sinto abandonada. A respeito dos fatos privada de seu Deus; que aquilo que Ele operava em outra parte,
ocorridos aqui no Juazeiro, digo que desde agosto de mil oitocentos e operava igualmente aqui, o que serviria para mais confundir os ho-
oitenta e nove a essa parte, fui mandada em espírito por ordem ime- mens, por mais inventos que houvesse para tanto, e isso se contrariar.
diata de Deus a ir ter com o Papa em Roma a recomendar-lhe a apro- Saibam que até uma solução de ferro, que me foi administrada para
vação destes fatos, com promessa de dispensação de maiores graças experiência feita pelos médicos, foi me revelada, há doze dias, pouco
para a Igreja Universal, se porventura tal aprovação se efetuasse. mais ou menos, com todas as circunstâncias que se haviam de dar
Nosso Senhor me dizia que muitos não queriam acreditar nesses mi- como de fato se deram. Além das revelações já expostas, declaro que
lagres, que diziam mesmo ser ilusão, se aprovados não fossem pela antes da transformação das hóstias em sangue, como depois do fato,

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Igreja, a isso acrescentando: “E não posso eu fazer de mim mesmo vi coros de anjos precedidos de Jesus e Maria, entrando processional-
milagres como na primitiva Igreja?!” Ao mesmo tempo me dizia Nos- mente na Igreja do Juazeiro com tochas acesas e entoando cânticos.
so Senhor: “Muitos dizem que Eu não posso mais derramar meu san- Todos iam em direção ao Altar do Santíssimo para ali adorá-lo, sendo
gue, mas não..., se me gozo Eu na glória não posso deixar de sofrer então revelado da parte de Deus, a meu pedido, que aqueles que ali
no mundo.” A isso acrescentou: “Homens que fazeis que não vindes a estavam eram anjos que vinham adorar a Jesus e que assim também
mim enquanto é tempo de misericórdia?!... De novo vou reproduzir com cânticos e tochas viriam muitos romeiros a adorar seu precioso
todos os tormentos de minha paixão para a salvação dos homens.” sangue, muitos dos quais se haviam de converter e dali se haviam de
Três vezes tive de ir em espírito a Roma a tratar com o Papa sobre esse retirar chorando, por não poderem ali ficar. Numa dessas ocasiões,

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como em tantas outras, vi Nosso Senhor em pé sobre o supedâneo, a me recolhi à casa de caridade até hoje, tenho comungado assim mira-
derramar sangue da fronte, do lado, das mãos e pés, abrindo mesmo culosamente, aparecendo as partículas ensanguentadas; o que comu-
muitas vezes seu coração, dizendo: “Ficai aqui dentro do meu coração nico por assim me ter sido ordenado divinamente. Há cerca de dois
para me amar; não somente por ti, mas por outros que não me amam; anos me aparece com o coração ensanguentado Nosso Senhor Jesus
quero aqui derramar abundantes graças do que muito se hão de Cristo, mandando-me recomendasse que os padres e os bispos fizes-
aproveitar, aqui adorando meu próprio Sangue; quero ainda aqui sem preces e celebrassem muitas missas pelo bom êxito dessa causa,
criar apóstolos do meu coração para a salvação de muitas almas, tanto prometendo abundantes graças a quantos assim fizessem; que se não
deste lugar como de outras partes.” Estava eu já recolhida na casa de conheciam esse mistério por ser um mistério novo de que não tratam
caridade da cidade do Crato, segundo ordenara sua Excelência Reve- os teólogos, se recolhessem em seu divino coração, onde beberiam o
rendíssima, o Senhor Bispo Diocesano, quando apareceu Jesus Cristo conhecimento e a crença desse mistério, como conheceriam também
em pé no supedâneo do altar da Capela da dita casa, tendo suas mãos o seu poder, sua bondade e misericórdia para com os homens. Para
e pés ensanguentados, o Coração aberto e a derramar sangue tendo concluir, digo, que muitas vezes Nosso Senhor me revelou ser de sua
nas mãos uma hóstia ensanguentada, dizendo então: “Isto faço para divina vontade a fundação aqui de uma ordem que se encarregasse
manifestação de minha glória e salvação dos homens, como para con- do culto perpétuo da Santíssima Trindade, bem como que fosse sem-
firmá-los na crença de que o sangue derramado das hóstias é o meu pre aqui bendito e louvado seu precioso sangue. Nos dias três e qua-
próprio sangue”. Dito isto, acrescentou: “Vinde todos a mim, enquan- tro do corrente mês, tanto depois da missa, como nas rezas às véspe-
to é tempo de misericórdia!” Por fim disse: “cumpre que se dê pressa ras da Festa do Santíssimo Rosário, apareceu-me a Santíssima Virgem
ao processo para que meu sangue não continue a ser profanado.” com ar de tristeza e me disse: “Todos esses fatos aqui ocorridos são as
Iguais aparições de Jesus ocorreram na mesma Capela nos dias trinta graças reservadas para os últimos tempos. O meu Divino Filho quer
do mês próximo passado, no dia primeiro e segundo do corrente mês castigar os homens acabando com o mundo e, por mais que eu ore em
de outubro, sendo, porém, os primeiros de que acima se trata, nos favor do mundo, respondeu-me que já não pode mais, que já se vê
dias vinte e um, vinte e dois e vinte e três do mês passado, declarando obrigado a castigar o mundo.” Por fim, quero contar mais um fato: eu

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Nosso Senhor em todas essas aparições que qualquer demora no pro- tinha vindo da Igreja em dias do corrente ano, muito aflita com os
cesso era como um abuso de graças. Diversas vezes, já na oração antes fenômenos dados nas hóstias consagradas, então alguém apareceu
e depois da missa, como ainda antes, no ato e depois da comunhão, para me consolar dizendo que tudo era da vontade de Deus, que
Nosso Senhor me apareceu todo ensanguentado, revelando-me que, aquele sangue derramado das hóstias consagradas era o sangue de
para confirmar os padres da comissão na verdade de seu sangue, apa- Jesus Cristo para a salvação dos homens; nesse momento uma criança
recido nas hóstias ia Ele fazer-lhes ver duas hóstias ensanguentadas de sete meses, que até então se conservava calada, respondeu bem
que Ele tiraria do seu próprio coração, para que não somente vissem, distintamente: “É!”, continuou ela a dizer que aquele sangue seria
mas ainda comungassem. Era no dia vinte e oito de setembro, próxi- para a salvação de uns e condenação de outros, quando a mesma

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mo passado, quando eu estava meditando na Paixão de Nosso Senhor criança disse outra vez: “É!”, o que foi testemunhado por duas pes-
Jesus Cristo, juntamente com Monsenhor Monteiro e ao mesmo tem- soas além de outra que ouviu do quarto contiguo em que estava.
po fazia a renovação de meus votos particulares, quando Nosso Se-
nhor apareceu-me e pôs-me nas mãos duas partículas que tirara do
seu coração dizendo que dava aquelas partículas para que as vissem os
padres da comissão; sendo de sua vontade que até mesmo comungas-
sem, como de fato comungaram logo depois, os padres da comissão
essas partículas miraculosas – ensanguentadas. Desde o dia em que

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No primeiro inquérito, foram ouvidas dez beatas; destas, três en- pela mão de Deus que quer fazer de Juazeiro um lugar de salvação e
contravam-se recolhidas com Maria de Araújo na Casa de Caridade chamamento de muitas almas. Sou testemunha de que, em consequên-
do Crato: Antônia Maria da Conceição, Maria Joana e Ângela Merícia. cia dos fatos ocorridos em Juazeiro, tem havido muitas conversões e
Todas as dez eram pessoas do convívio cotidiano de Maria de Araújo, graças alcançadas. Tudo isso já tinha sido revelado por Deus à Maria de
tendo privado de sua companhia nas orações e nos demais serviços Araújo e a outras pessoas.
prestados à igreja. O testemunho de cada uma, feito entre os dias
15 de setembro a 13 de outubro29 de 1892, demonstra uma coesão Ouvindo Maria de Araújo, as demais beatas que conviveram com
de crenças e apresenta uma riqueza simbólica a merecer um estudo ela, os padres e populares que se privaram do seu convívio, não con-
cuidadoso. Todas demonstraram uma grande intimidade com Jesus sigo ver outra figura, senão a de uma mulher simples que sofreu mar-
Cristo, com quem mantinham uma relação pessoal e muito amorosa. tírios, mas que era uma mística, com traços de santidade e sinais de
Em relação à Maria de Araújo, havia, entre seus pares, uma grande mediunidade. Voltarei a tratar cada uma destas facetas no próximo
confiança e valorização de seus dons espirituais. Não identifiquei in- capítulo.
dícios que pudessem sugerir disputas ou invejas entre elas.
Passo a comentar sobre as repercussões dos fenômenos relacio-
Utilizando a técnica do “discurso do sujeito coletivo” (LEFÈVRE; nados à Maria de Araújo e ao Padre Cícero numa sociedade opres-
LEFÉVRE, 2003), mostro, a seguir, o que foi possível captar como sora, onde o poder era exercido na força bruta direta ou pela ação
expressão do que era compartilhado pelas referidas beatas a respeito de jagunços a mando de coronéis latifundiários. Era uma sociedade
de nossa personagem central. machista, racista, que reservava aos pobres o lugar da obediência e
do silêncio. Às mulheres era reservado o espaço do privado e, sempre
Maria de Araújo por seus pares que alguma delas ousava ter uma atuação pública com repercussões
Conheço Maria de Araújo há, pelo menos, dois anos, quando se deu na ordem estabelecida, era incriminada ou estigmatizada. À mulher

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pela primeira vez a transformação da hóstia consagrada em sangue. Sei cabia o papel de devota e/ou de mãe honrada de família. Ainda que
que desde menina ela se dá à vida espiritual. Sei por mim mesma, por pudesse não ter intenção, Maria de Araújo rompeu com a construção
ouvir do confessor dela, de outros sacerdotes e de outras pessoas de fé, social da mulher piedosa e recatada que a tudo obedece e em nada
que ela tem visões maravilhosas, ocasião em que tem revelações. Ela re- opina. A origem de sua firmeza e resistência, que alguns chamaram
cebe diretamente de Nosso Senhor Jesus Cristo direções para sua vida de soberba, estava na sua aceitação por inteiro da missão de fazer de
espiritual. Testemunhei, algumas vezes, a transformação da hóstia em Juazeiro “uma porta do céu e um lugar de salvação para as almas”.
sangue e carne e creio, por revelações divinas, que aquele é o verdadei- Esta missão ela dividia com seu diretor espiritual – o Padre Cícero –,
ro sangue e a verdadeira carne de Jesus Cristo. Tenho Maria de Araújo, porque também ele acreditava que recebera de Jesus a tarefa de cui-

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como todos em geral no Juazeiro, como uma pessoa piedosa. Presenciei dar dos desvalidos e náufragos da vida.
e sei por diversas pessoas de fé das comunhões miraculosas a ela minis-
tradas. Também a vi em êxtase, com as chagas de Cristo e passando por Forti (1999, p. 35) fez uma afirmação importante sobre os motivos
crucifixações, isto por ocasião dela meditar sobre a Paixão de Cristo. To- para o registro da beata de Juazeiro nos documentos oficiais: “[...]
dos esses fenômenos são tidos por mim como divinos. Tudo isso se gera [Maria de Araújo] perturbou a ordem estabelecida e desempenhou
um papel que não lhe foi atribuído nem pela sociedade e muito me-
nos pela Igreja”. É necessário lembrar que ainda persistia, em alguns
29 neste dia foi feito um aditamento ao depoimento da beata Maria Leopoldina Ferreira segmentos, os saudosistas da escravidão e da monarquia. Da mulher
da Soledade, registrado no relatório de fechamento do inquérito.

68 69
do século XIX se esperava dependência e obediência, além do que a cias” do segundo inquérito, há uma carta do padre Sother ao bispo,
igreja reservava apenas para seus apóstolos, patriarcas e santos o dom em que aquele presta conta da sua tarefa de “observar” a beata no
das profecias e das visões, conforme explicado na Carta Pastoral de 25 cotidiano da casa de caridade (GUIMARÃES; DUMOULIN, 2003).
de março de 1893: “[...] as visões e revelações particulares não são ob- Conforme visto anteriormente, o referido inquérito se caracte-
jeto da fé católica, pois esta baseia-se tão somente nas revelações feitas rizou por confrontar diretamente os resultados do primeiro. Todos
aos patriarcas, aos profetas e aos apóstolos, que nos são transmitidas os esforços dos dois padres inicialmente comissionados foram con-
pela tradição”. Difícil é entender, sobretudo para quem não é teóloga, siderados como encenações de mulheres histéricas, fanatizadas ou
como, então, a visão particular de tantas místicas europeias foi aceita endiabradas, a envolver padres fáceis de serem ludibriados. Trechos
e propagada pela Igreja. Um caso emblemático para o período aqui da carta do padre Félix ao Vice-Reitor do Maranhão ilustram o que
tratado foi a visão que teve Santa Margarida Maria e que serviu de acabei de afirmar:
base para a disseminação da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Ao que parece, à primeira vista, é que as visões particulares podem
[...] Se o Senhor Bispo não tivesse tomado as pro-
ser aceitas sim, desde que se mantenham sob controle do clero e da videncias enérgicas que tomou, por certo tería-
hierarquia superior. mos, que lamentar uma desorganização geral nas
No entanto, já vimos que havia uma grande barreira na aceitação consciências, e verdadeiras alucinações, sobretu-
das visões de Maria de Araújo, das outras beatas e do Padre Cícero: a do no espirito fraco das mulheres... Com fran-
queza digo a Vossa Reverendíssima que nunca vi
pobreza e a determinação de colocar-se à disposição dos oprimidos. tanta falta de tino, e prudência, como nestes Pa-
Com Maria de Araújo, havia agravantes: era mulher, descendente dres do Cariri, relativamente à direção espiritual
de negros e índios, além de ser analfabeta. Fragoso (1984, p. 99), ao destas pobres mulheres, que se dizem santas...
comentar sobre as beatas do padre Ibiapina, lembrava que em sua As mulheres do Joaseiro são privilegiadas, lá já
época vigorava “[...] a estigmatização canônica da cor negra pelos existem 4 santas, e todas fazem a mesma coisa...

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E os Padres acreditam tudo. Nunca vi Padres tão
estatutos das ordens e congregações religiosas. Quando as próprias
fáceis em acreditar em mulheres... Deus nos acu-
constituições do arcebispado da Bahia, que então regiam todo o Bra- da!! (GUIMARÃES; DUMOULIN, 2003, p. 96,
sil, classificavam a raça negra como ‘raça infecta’ e ‘raça depravada’”. grifos do autor)
Assim, tanto no primeiro quanto no segundo inquérito, e com
mais intensidade neste último, vi um processo monopolizado por ho- Muitas outras passagens nos documentos dos inquéritos e nas cor-
mens. Todas as testemunhas oficiais eram homens e, via de regra, respondências entre os padres e Dom Joaquim e dos primeiros entre
com destacada posição social. O testemunho de mulheres e de pobres si poderiam ser trazidas para mostrar a indignação do clero frente à

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era secundarizado ou totalmente desqualificado. O segundo inquéri- “audácia” de mulheres que opinaram ou participaram no caso. Para
to foi permeado de interferências do bispo Dom Joaquim, seja dire- não me alongar, registro, ainda, o protesto de Dom Joaquim, ao to-
tamente, na orientação aos padres Alexandrino e padre Sother – este mar ciência da apelação do Padre Cícero a Roma, diante de sua “de-
último capelão da Casa de Caridade do Crato, onde estava recolhida cisão interlocutória”, enviada com a assinatura de cinco mulheres:
a beata –, seja indiretamente, através de cartas a pessoas-chave que “Se quiserem apelar, não metam mulheres no meio, isso é ridículo;
participaram do primeiro inquérito, incluindo sacerdotes, militares, pois mulheres conhecem teologia ao ponto de poderem discutir como
médicos, farmacêuticos e juízes. Junto aos registros das “experiên-

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bispo Diocesano?!!!30. deiro coração divino dele. Estas revelações eram confirmadas por Ma-
Mesmo depois da documentação dos dois inquéritos ter sido en- ria Santíssima e seu esposo São José32. Também vi, em espírito, muitos
viada para Roma, continuaram as intimações às testemunhas do pri- anjos, padres e bispos, a Santíssima Virgem e São José, glorificados e
meiro inquérito, com a clara intenção de demovê-las da crença no mi- em adoração ao sangue precioso derramado das hóstias, tanto no Jua-
lagre e forçá-las a uma retratação. Nas cartas trocadas entre o padre zeiro , como nessa casa de caridade. Nosso Senhor me revelou ser de
Alexandrino e Dom Joaquim, vários momentos desses esforços são sua divina vontade fundar uma congregação de padres que se encar-
registrados. Apenas com a divulgação do veredito de Roma divulgado regariam de guardar o seu precioso sangue e de dar culto perpétuo à
por Dom Joaquim, juntamente com sua segunda Pastoral, ocorreram Santíssima Trindade e ao Divino Coração de Jesus, dizendo mais que
mandaria muitos romeiros de diversas partes e lugares ainda de gran-
as retratações de Antônia Maria da Conceição e Rachel Sisnando.
de distância a adorar no Juaseiro o seu sangue, ali se convertendo e
Visando não me estender mais nas considerações aqui tecidas, ex- chegando-se aos sacramentos da penitência e eucaristia. Muitas vezes
ponho, a seguir, os depoimentos das duas beatas anteriormente cita- fui, em espírito, a Roma, por disposição especial de Deus, para ali co-
das, para melhor avaliarmos a mudança de perspectiva nos discursos. mungar pelo Sumo Pontífice e pelo povo romano, para que o Sumo
Também aqui usei o artifício da transcriação dos depoimentos regis- Pontífice fosse levado a aprovar esses milagres com qual aprovação se
trados em Guimarães e Dumoulin (2003), lembrando que esta não derramariam abundantes graças sobre toda a Igreja. Quanto à perse-
era a fala direta das testemunhas, uma vez que não foram gravadas, guição à Igreja, muitas vezes me tem sido revelado que já está já em
mas transcritas, agora com a marca do padre que a inquiriu. começo e que tudo será por causa do casamento civil. Nosso Senhor
recomendava que muito se orasse para que tais coisas não sucedessem.
Muitas vezes Nosso Senhor me significou, no ato de minhas orações e
ANTÔNIA MARIA DA CONCEIÇÃO31 comunhões que quantos se interessassem por essa causa, que era a cau-
Conheço pessoalmente a beata Maria de Araújo há dois anos e sei por sa de seu coração, seriam grandemente recompensados, como seriam
alguma revelação divina que lhe apareceu, muitas vezes, Nosso Senhor rigorosamente castigados os que a desprezassem, pois que tudo quanto

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e Maria Santíssima. Sei, por ter Deus muitas vezes me revelado, que os se operava, por meio daqueles fatos, era um esforço do seu coração
êxtases, estigmas, suores de sangue e chagas que se veem na beata são para a salvação dos homens.
de operação divina. A beata tem ido, muitas vezes, em espírito, ao céu,
ao inferno e ao purgatório. Isto não somente me foi revelado, mas, eu
mesma vi, em espírito, a beata no céu e no purgatório. Quando ia ao
céu ela glorificava a Santíssima Trindade, e quando ia ao purgatório,
sofria em lugar de Nosso Senhor, e libertava muitas almas. Quanto ao
sangue, à carne e ao coração nas hóstias aparecidas também tenho tido

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revelações, pois tenho ido, em espírito, muitas vezes, adorar o sangue
aparecido nas hóstias na Igreja do Juazeiro. Isto como penitência sa- 32 Importante registrar a seguinte passagem do secretário da comissão: “[...] e quando
cramental, que me foi imposta. Nestas ocasiões me foi revelado, por isso dizia, eis que a testemunha tomada de êxtases apresentou entre os dedos polegar e
índice da mão direita, quatro partículas dizendo: que Nosso Senhor mandava entregar
Jesus Cristo, ser aquele sangue, aquela carne, aquele coração que nas aquelas quatro partículas a seu confessor para que ele comungasse juntamente com os
hóstias apareciam, a verdadeira carne, o verdadeiro sangue e o verda- Padres da Comissão e a própria testemunha; e isso como prova da verdade do fato de
que acima se tratava; isto é, que a carne, o sangue derramado tanto das Hóstias como dos
Crucifixos e bem assim o Coração humano em que se transformaram as Hóstias, algumas
30 Despacho dado pelo bispo em 22 de agosto de 1891. vezes, eram verdadeiramente a Carne, o Sangue e o Coração de Jesus mesmo, e ainda
para que com a propagação de todos esses fatos fosse Ele mais louvado e glorificado”. Cf.
31 Primeiro inquérito, cf. Guimarães e Dumoulin (2003, p. 52-53). Guimarães e Dumoulin (2003, p. 52).

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ANTÔNIA MARIA DA CONCEIÇÃO33 receram as primeiras notícias dos fatos ocorridos com Maria de Araújo
1) São falsas todas as declarações constantes de um depoimento feito na Povoação do Juazeiro no decurso do ano de mil oitocentos e oitenta
por mim no processo do Juazeiro . Nunca tive revelação de espécie al- e sete, mais ou menos. Desta data em diante, comecei a imitar a Maria
guma. Nunca vi ou ouvi nada que se referisse ao Juazeiro. Jesus Cristo, de Araújo em tudo, menos na apresentação de estigmas e de comu-
Maria Santíssima e São José nunca me apareceram. Os êxtases que dis- nhões de hóstias ensanguentadas. Muitas vezes me fingi extática, ora
se ter, foi todo fingido. As partículas na ocasião do primeiro inquérito no decurso da confissão, ora depois da comunhão, ficando inteiriçada
apresentadas foram por mim levadas para o fim de passá-las como mi- e letárgica, do que só despertava, ou sob pena de desobediência ou
raculosas. Tudo o mais que afirmei no processo não passou de grosseiro sacodida pelo Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro, que era meu
embuste do qual estou sinceramente arrependida. exclusivo confessor e a quem enganei sempre, convencendo-o de ter
visões maravilhosas, revelações, êxtases, colóquios com Cristo e a Vir-
2) Tudo que falei sobre os fatos do Juazeiro consta somente de inverda-
gem e outras graças singulares de que agora não recordo. Que desde o
des, bem como os fatos reputados miraculosos, que comigo ocorreram,
ano de mil oitocentos e noventa e cinco até há pouco, quando fiz uma
foram todos naturais e engenhados por minha indústria. Depois, eu
confissão geral com o padre Alexandrino, minha vida foi uma série
disse ter faltado a verdade e, portanto, perjurei, mas, não podendo
contínua de sacrilégios dos quais tinha remorsos, mas não me corrigi,
resistir por mais tempo aos estímulos de minha consciência, apresen-
até que, tocada pela graça de Deus, procurei o referido padre para fa-
tei-me espontaneamente para dizer a verdade a fim de reconciliar-me
zer as devidas revelações e confessar-me. Interrogada sobre a conferên-
com a Igreja e voltar ao caminho de onde, infelizmente, me afastei. Eu
cia que tive com Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro na véspera
disse ter cometido um perjúrio quando depus contra os referidos fatos
do dia em que este, padre Clycerio e o padre Doutor Antero recebe-
para evitar censuras que me adviriam com a confissão clara e plena da
ram e comungaram as partículas oferecida por mim como de origem
verdade. Confirmo e reitero, com plena liberdade, as confissões feitas
divina, eu respondo que de fato conferenciei com o Monsenhor, não
anteriormente. Nunca tive revelações de espécie alguma e não fui hon-
à noite, mas às nove horas da manhã. Naquela ocasião o Monsenhor
rada com aparições divinas e da Santíssima Virgem; nunca fui a Roma,
rogou encarecidamente que eu pedisse a Deus uma graça importante

revisão
em espírito, tão pouco ao céu, ao inferno, e ao purgatório. As partículas
para o dia seguinte, a fim, da vista dele, ficarem os padres da comissão
apresentadas aos padres da comissão tirei-as de uma caixa de hóstias
convencidos da veracidade dos fatos do Juazeiro, e que para satisfazer
da casa de caridade desta cidade, guardando-as nos bolsos e fingindo,
semelhante pedido fiz a farsa da apresentação das partículas que de
depois, um êxtase, tirei-as e as fiz passar por miraculosas e de origem
propósito conduzi para enganar os padres e o povo reunido na casa de
sobrenatural. A mim nunca me causaram admiração os fatos ocorridos
caridade desta cidade.
com Maria de Araújo e penso que essa beata arquitetou com jeito e
indústria os supostos milagres, mas não sei de que modo poderia ela
conseguir isso. Todo o meu depoimento no processo sobre os fatos do

revisão
Juazeiro foi um acesso de mentiras.
3) Comecei a ser dirigida por Monsenhor Francisco Rodrigues Mon-
teiro desde que ele tomou posse do cargo de Vigário do Iguatu, mas
nada se deu de extraordinário entre mim e o confessor, até que apa-

33 Depoimentos realizados em três momentos: no dia: 22 de setembro de 1894, “[...] em


uma das salas secretas da casa de caridade do Crato”; em 16 de maio de 1895 e em 17 de
julho de 1895, na residência paroquial do vigário Antônio Alexandrino de Alencar. Cf.
Guimarães e Dumoulin (2003, p. 105-106 e 107-108).

74 75
RACHEL SISNANDO LIMA34 penitência e eucaristia, se tem mostrado verdadeiramente convertidos.
Conheço a beata Maria de Araújo há dois anos e sei por testemunho Também me consta que se tenham operado milagres mediante votos
de pessoas pias, que Nosso Senhor, aparecendo a ela, prometeu comu- feitos ao sangue derramado das hóstias. Uma pessoa do meu conhe-
nicar-se por meio do seu precioso sangue. Consta, por testemunho de cimento sofria havia três anos de uma enfermidade grave e restabele-
muitas pessoas de fé, entre elas alguns sacerdotes, que a beata tem êx- ceu-se, perfeitamente, fazendo uma romaria ao precioso sangue, além
tases, estigmas, crucifixão, chagas e chamas de amor e que todos estes de outro fato semelhante, isto é, de cura de outra enfermidade, com
fenômenos são tidos como certamente divinos. Meu próprio confessor, aplicação de uma medida do precioso sangue. Testemunhei um cruci-
e além dele mais outra pessoa que presentemente não me recordo, fixo de bronze que vertera sangue, como vi também o sanguinho com
tem me revelado que a beata foi arrebatada em espírito ao céu e ao o qual se tinha purificado tal sangue. Vi na igreja do Seminário, nas
purgatório. Uma vez, da noite de uma sexta-feira para o sábado, vi o mãos do Padre Cícero, uma partícula dada miraculosamente à beata,
meu próprio confessor e a beata em êxtases, a fazer penitência no pur- cena testemunhada por muitas pessoas, como pelo atestado do Doutor
gatório, pelas almas. Ela estava a suar sangue pelos poros do rosto e ti- Ildefonso, que iguais fatos se deram na Capela do Juazeiro e no orató-
nha os lábios entumecidos. No dia de Corpus-Christi do corrente ano, rio particular do Padre Cícero com a mesma beata e mais outra.
tive ocasião de ver, na Capela do Juazeiro a hóstia transformada em
carne, já depositada numa salva, sabendo depois por comunicação de
meu próprio marido ter se verificado verter-se sangue da hóstia, assim
RACHEL SISNANDO LIMA35
transformada. Vi, ainda uma vez, esse mesmo fenômeno na casa da
caridade do Crato. Sei que na Capela do Juzeiro, muitas vezes se têm Antes eu disse o que supunha ser verdade, mas, agora reconheço que
operado esses milagres. Uma vez, no ato de ouvir a missa, e outra de- fui vítima de lamentável missão e que me submeto humildemente ao
pois da comunhão, quando então adorava Nosso Senhor, presente em decreto da Sagrada Congregação do Santo Oficio.
meu coração, pedi afetuosa e humildemente a Nosso Senhor, quisesse
Ele revelar-me se o sangue da comunhão da beata Maria de Araújo Não há como duvidar que as beatas sofreram pressão do clero!

revisão
era o seu verdadeiro sangue; então, num rapto de meu espírito, como Além do pavor em face da ameaça de excomunhão, havia o medo
da outra vez, enlevada no amor de Deus, senti-me inspirada e como
de serem expulsas da casa de caridade e de perderam seus hábitos
que ouvi, em resposta, que aquele sangue da comunhão da beata era
de beata. Assim, elas viam ameados, a um só tempo, sua seguran-
a realidade daquelas palavras que outrora dirigira Ele aos povos do
seu tempo, nestes termos: “Quem comer de minha carne e beber do ça pessoal, sua sobrevivência e o espaço reconhecido socialmente de
meu sangue terá a vida eterna” – o que com propriedade se aplicaria à servas da Igreja. Quero, ainda, comentar sobre as razões para que a
geração ventura, já alumiada pela luz de seu Evangelho, acrescentan- beata Antônia Maria da Conceição fosse intimada por três vezes. Para
do que, com a transformação das hóstias em sangue, ele revelava sem tanto, remeto o leitor a um comentário feito pelo padre Clycerio, no

revisão
véu o mistério antes anunciado. Uma vez dando-me o confessor uma relatório conclusivo do primeiro inquérito, em que ele reconhece não
bênção, senti-me levada, em espírito, à Capela do Juazeiro a adorar o apenas os dons espirituais de Maria de Araújo, mas da beata agora
precioso sangue, parecendo-me, então, ver ali, anjos em ato de adora- em questão:
ção ao mesmo sangue. Tenho presenciado grande número de povos
indo em romaria ao Juazeiro, onde chegando-se aos sacramentos da
Em abono da verdade sou obrigado a declarar

34 Depoimento no primeiro inquérito (GUIMARÃES; DUMOULIN, 2003, p. 58-59).


35 Depoimento colhido no dia 04 de outubro de 1894, na residência paroquial do vigário
Antônio Alexandrino de Alencar (GUIMARÃES; DUMOULIN, 2003, p. 106).

76 77
aqui, querendo cumprir o juramento que pres- Cheguei aqui no dia 23 de setembro. Domingo,
tei de ser fiel à missão que me foi confiada que tendo eu celebrado em Missão Velha pela manhã
todo aquele que bem estudar o espírito de Maria e encontrando desde o caminho notícias dos ex-
de Araújo, como também o de Antônia Maria da cessos do R. Vigário Antônio Alexandrino. Real-
Conceição, como procuramos fazê-lo, já ouvin- mente achei o povo em tanta agitação e conster-
do a seus diretores espirituais, já a pessoas que nação que eu não sei onde iria parar tanta coisa.
as conhecem bem de perto, excluirá toda a ideia Ao povo pacífico como você sabe, que é a popu-
de artimanha e de embuste nessas comunhões e lação daqui, o Vigário ameaçou mandar espancar
partículas miraculosas-ensanguentadas. São elas, com tropa, que havia de arrastar daqui Maria de
as ditas Beatas como tantas outras, almas levadas Araújo (que está ela prostrada quase morta, pa-
à vida unitiva, à vida de contemplação, o que bem ralítica de um lado, sem quase poder falar que se
pouco se conhece e se pratica entre nós. (GUIMA- ouvisse). Ele gritava que havia de arrastá-la, aque-
RÃES; DUMOULIN, 2013, p. 72) la cabrita ou por gosto ou a força, não obstante
ela sempre dizer que não desobedecia e o irmão o
chamar na igreja que ele fosse ver o estado dela.
Os dons de Antônia Maria da Conceição vão ser registrados, ainda Várias pessoas quase tudo mulheres foram, uns
no seu depoimento na primeira comissão de inquérito, quando, em por amizade e outros por curiosidade, mas nin-
presença de inúmeras testemunhas, a beata entra em êxtase, surgin- guém havia armado e nem para se opor porque
sabiam que ela queria ir obedecer à ordem que
do duas hóstias das suas mãos, conforme trecho da nota 32. Por sua ele lhe havia intimado por ordem da Santa Sé e
importância, ela foi ouvida pela primeira vez, mas a segunda intima- do Sr. Bispo. E lá chega este Pe. com dois cabras
ção, provavelmente, se deu porque, ao sair da primeira inquirição, armados, um de faca e garrucha ou revólver e
ela afirmou ter faltado com a verdade quando negou seu depoimento outro de facão e cacete e fala com tanta impru-
do primeiro inquérito, daí porque teve que dizer que tinha “perju- dência que algumas mulheres com medo saltam

revisão
pela janela, e entram para o quarto onde estava
rado”, com medo de represálias daqueles que criam no milagre. Mas Maria de Araújo (que estava como já disse quase
seu segundo depoimento parece não ter agradado de todo ao bispo, morta de doença e aflição) fecha ou manda fechar
que orienta o padre Alexandrino a ouvi-la novamente (GUIMARÃES; a porta e estando dentro, um dos cabras armado
DUMOULIN, 2003). de facão e cacete quer entrar, então dois senhores
de consideração que aí se achavam, Leopoldino
Com os registros anteriores, fica patente que houve perseguição às do Major Pedro e outro, não consentiram que o
testemunhas. Do próprio Padre Cícero, vamos ouvir queixas relativas tal homem armado entrasse, mesmo sem se opo-
ao assunto em diferentes cartas dirigidas a membros do clero, inclusi- rem com armas, nem de modo nenhum violento,

revisão
ve fora do estado do Ceará. Em Guimarães e Dumoulin (2015), veem- somente disseram que não consentiam que ele en-
-se vários trechos de cartas neste sentido. Pelo significado profundo trasse, então saiu o Pe. de um modo que não era
da carta dirigida ao padre Antero, em 4 de outubro de 1894, em que para se supor de um padre e saiu espalhando e
dizendo pelo Crato que bem quinhentos homens
o Padre Cícero desabafa toda sua indignação diante dos “excessos do armados lhe fizeram resistência e desacato e o
vigário Antônio Alexandrino” em relação à Maria de Araújo e a quan- quiseram matar. De tanta falta de verdade teste-
tas creram no milagre do sangue precioso, reproduzo o conteúdo da munhada por tanta gente, que bem mostrava o
referida missiva na íntegra: mau espírito que o movia.
Nem nunca Maria de Araújo, nem nenhuma das

78 79
outras, em nada desobedecem, em nada, pela gra- sem pertencerem a nenhuma ordem religiosas, e
ça de Deus sofrendo como verdadeiro martírio trajam de manto e de véu somente por piedade
por Jesus Sacramentado, um abismo de calúnias, e decência). Que horror! E foi exigido que per-
de injúrias e de perseguição, em nome da Santa jurassem e afirmassem uma confissão de coisas
Sé e do Bispo (assim eram e são feitas). Maria de tão imundas e extravagantes que ficaram horro-
Araújo dentro do prazo marcado por ele (tenho rizadas. E porque duas se indignaram mais por
a carta por dele mandada) para não desobedecer umas perguntas ofensivas ao pudor e modéstias
à ordem em nome da Santa Sé e do Sr. Bispo foi o Pe. ficou zangado e saiu dizendo que tinham
em uma rede por não poder levantar-se, levada se comportado mal. Foi entregado tudo, as amea-
pelos irmãos para a casa de caridade de Barbalha ças, as seduções de todo modo, os mais refinados
(3 léguas daqui) aonde esperava o Padre Manoel sentimentos de compaixão, até as lágrimas de fino
Cândido que lhe tinha sede (é um perigo se o Sa- cômico. Elas se comportaram cheias de temor de
grado Coração não acudi-lo neste lago de leões, Deus e piedade que só ele lhes sugeriu respostas
para sua salvação), não sei como terá ido porque tão firmas e tão sábias entre tantas aflições e sem
como você bem sabe a pena que nos foi imposta apoio de ninguém. Afirmando que o que tinham
pelo nosso Bispo de suspensão, ipso facto, se tives- jurado era verdade e não era possível jurar falso
se qualquer comunicação com ela e com as outras embora sofresse tudo. Falavam do modo mais res-
mulheres testemunhas que foram no processo, peitoso e persuasivo (ainda que firmes pelo hor-
nem por escrito, nem por intermediário de qual- ror e consciência de um juramento falso, para que
quer modo. o Pe. visse que não era possível exigir semelhante
Não ficou aí. Foram intimadas por carta em nome coisa).
do Sr. Bispo pelo Vigário Pe. Alexandrino, Sole- Finalmente o Pe. não conseguiu o que exigiu em
dade e as outras por se acharem no Crato para nome do Sr. Bispo, que perjurasse e confirmas-
uns interrogatórios e outras coisas que elas não se tamanhas abominações, declarou, em nome

revisão
sabiam o que lhes seria exigido. Antes que se da Santa Igreja tirasse o vestuário religioso e fi-
preenchesse o prazo, ele mandou dizer ao Sr. cassem para sempre privadas dos Sacramentos.
Bispo que elas tinham desobedecido (ele mesmo Que horror! Em nome da Santa Igreja de N. Sr.
confessou). Elas compareceram no dia marcado Jesus Cristo, ser excomungado porque não quis
em sua presença (5.ª feira, 27 do passado). Ele cometer tão grandes crimes! Meu amigo, nunca
exigiu, em virtude da obediência, que cada uma pensei sermos testemunhas de semelhantes ex-
depor fosse, ele só e cada uma em um quarto só, cessos. E o que mais dói e aflige, é ver o esforço
para não ter testemunha para o tal interrogatório e o nenhum caso da condenação de milheiros e
e exigências e por temor de não pecar porque se milheiros de almas, se lançando do seio da Igreja

revisão
mandou em virtude da obediência. Lá para fora. Populações inteiras negando-se todos
foram e quando estavam sós ele apresentou um os sacramentos até na hora da morte. Porque o
papel, que dizia ter sido formulado pela Sr. Bispo povo que na mais íntima convicção crê que os fa-
e elas ou afirmavam aquele papel e o que ele exi- tos aqui sucedidos são verdadeiros e que lhes veio
gia ou ficavam excomungadas pela Igreja, nun- dar a despertar a Fé em N. Senhor Jesus Cristo,
ca mais recebiam nenhum Sacramento nem na na Eucarisita se convertendo uns e se apavorando
hora da morte. Ficavam por ordem do Sr. Bispo outros, como todos sabem. E muitos que foram
e da Igreja obrigadas a tirar todo hábito religio- testemunhas de vista ou firmados em pessoas de
so (quando todas vivem no seio de suas famílias, confiança não querem, estão tão entranhados que

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como dizem eles podem descrer, e convencidos e ele pensou, que os fatos do Juazeiro são embustes
certos em sua consciência que não é uma menti- e falsidades e para isto não tem escolhido meios,
ra nem embuste, sujeitam-se às excomunhões e nem poupado nada procurando fazer passar por
aos excessos com que são tratados e coitadinhos, infames, e portanto capaz de todo embuste, pes-
lançados dos Sacramentos para fora. Onde irá pa- soas que todos nós sabemos que são verdadeiras
rar tudo isto? É um horror! Porque não querem servas de Deus e da mais elevada virtude. Foram
que aqui não seja a reprodução do que já se deu estabelecidos encarregados próprios, e abriu-se
em outras partes? Expor a condenação eterna mi- a porta a toda calúnia de gente capaz de tudo e
lheiros e milheiros de almas! Como se não fosse cada caluniador tendo a certeza de lhe ser oculta-
nada. Se D. Joaquim e os outros que informados do o nome e ter liberdade de dizer o que quises-
por ele o acompanham tivessem morrido em uma se. Qualquer mulherzinha sem critério, qualquer
Cruz para salvá-las não fariam assim. Se o Santo ímpio são pessoas fidedignas e suas histórias as
Padre que é o Sagrado Coração de J. na terra, mais indignas tomadas em depoimentos e reme-
Misericórdia e Caridade soubesse de tanto horror tidos como ricos achados. Padres os mais distintos
e semelhantes excessos daria uma medida pronta jurando em Fé de sacerdote, médicos de cons-
para remediar tão grande abismo. ciência e reputação jurando em Fé de seu grau.
Meu amigo, morro de aflição, morro de aflição e Senhores de toda consideração, consciência e po-
de angústia! Gastei toda a minha vida desde que sição social não só deste, como de outros Estados
me ordenei, somente procurando a salvação dos por milheiros que aqui vinham de propósito para
outros sem me importar mesmo com a minha e ver e viam a sinceridade e verdade, e se conver-
ver uma coisa desta. Meu amigo, não sei dizer o tiam a Deus em tão grande número que quase
que sofro, desejava de todo meu coração que N. não ficava ninguém que não se convertesse sin-
Sr. me condenasse, contanto que se remediasse a ceramente. Padres esquecidos de sua dignidade,
salvação de tantas almas. Nunca pensei ver isto bacharéis, maçons, militares, assassinos horroro-

revisão
entre nós! sos, pessoas de toda a consideração que vinham
sem conhecimento de Deus e abismados em todos
Senti muito, Deus sabe quanto eu sofro, ver Maria
os vícios daqui saiam regenerados. Sinceramen-
de Araújo, na Pastoral, diante da Sagrada Con-
te convertidos e para viverem como verdadeiros
gregação de Santo Ofício, para todos que não a
cristãos e em tão grande escala que se ascendeu
conhecem, não só ela como as outras que foram
a Fé por toda a parte. E se regeneravam os cos-
testemunhas no Processo consideradas por em-
tumes nas freguesias e nos sertões todos dos Es-
busteiras e como tais sacrílegas e infames e combi-
tados vizinhos estes testemunhos e tudo quanto
nadas para semelhantes abominações e com apro-
as pessoas mais sinceras diziam, não valia nada,
vação dos padres. E que Padres, meu amigo? V.

revisão
nem servia afirmar pessoalmente ao Sr. Bispo o
Rma., o Pe. Clicério membros da Comissão, Mon-
reverendo Pároco Manoel Rodrigues, um Padre
senhor Monteiro, o Vigário Manoel Rodrigues e
de toda consideração que tinha visto mesmo com
outros. Os Padres mais distintos da Diocese e eu
toda precaução e pedindo a Deus como prova, o
que ainda que sou o mais indigno. Damos a Deus
crucifixo de metal começar debaixo de sua vista a
por testemunha, que nenhum de nós que graça a
verter e correr sangue, tomando antes toda cau-
Ele mesmo, é capaz de tais horrores e imundices
tela para que se dando o fato não pudesse ficar
e nem nunca fomos hereges e sismáticos como na
engano. A mesma coisa acontece com Monsenhor
consideração. É incrível, meu amigo, que a paixão
Pe. Monteiro, com Pe. Vicente o fato da Barbalha
ou não sei o quê, conseguir provar que é o que

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e do Juazeiro que lhe afirma em Fé de sacerdote fazem não procuravam somente outra cousa se-
que é verdade. Nada disto tem valor, não bastante não reconciliar-se com Deus, se confessar, benzer
considerar todos estes sacerdotes de toda cons- objetos de piedade e cuidar da salvação somente.
ciência e sinceridade. As histórias de qualquer E quando Maria de Araújo desde o processo con-
ímpio ou mulher sem educação nem consciência tinuou reclusa por muito tempo por ordem do Sr.
com tanto que destrua, são boas provas. Bispo mesma na casa de caridade do Crato três
V. Rma. bem sabe quem é aquele cavaleiro distinto léguas do Juazeiro e tanto lá como aqui desde sua
de que fala a Pastoral. Homem acostumado com volta sempre procurou evitar visitas, e enquanto
juramentos falsos em negócios eleitorais e quando as outras nunca foram objeto de curiosidade.
se descobre fica tão à fresca como se nada tivesse O mesmo decreto considera Maria de Araújo e as
feito. Que querendo casar e o Vigário não admi- outras mulheres testemunhas do Processo, profa-
tindo sem confessar-se simula a confissão. Passar a nadoras da Sagrada Eucaristia. Certamente por
noite no jogo e depois se ostentar que não crê em causa dos documentos que por lá foram embora
nada de religião. Come e vai receber o Santíssimo arranjados como V. Rma. sabe, depois de concluí-
Sacramento da Eucaristia. É o tal cavaleiro distin- do o Processo, quando eu sei de consciência como
to que se alega para destruir o testemunho das confessor de Maria de Araújo desde menina que
mulheres de pessoas conscienciosas e honestas. ela era dotada de um grande espírito de pieda-
Agora o Vigário, o Sr. Pe. Anto. Alexandrino e os de e temor de Deus. Incapaz de tais horrores,
outros encarregados de destruir a verdade, pega- como também as outras, que foram servir de tes-
ram uma pobre mocinha e aterrada, sem saber temunhas nesta causa obrigadas pela obediência
o que dizia, afirmou horrores, cobrindo tudo de à Comissão e aos confessores. Além disto, eu sou
infâmia e dizendo que me dava sangue de pinto testemunha que quando as sagradas hóstias se
para se botar nas hóstias e outros e outros absur- manifestavam em Sangue ela tinha tanta aflição
dos. Tudo que exigiram que dissesse, ela dizia e temendo que era castigo e indignidade sua e só

revisão
outro servindo de secretário escrevia (é de ordem comungava obrigada por obediência ao confessor
superior) para ser mandado ao Sr. Bispo e este à e muitas vezes chorando e depois só faltava mor-
Sta. Sé como documentos fidedignos. Chorando rer de aflição quando se viu obrigada aos exames
em tempo de enloquecer procurando remediar o para a verificação da verdade de facto.
mal que fez a declarando, que disse aqueles falsos A vista disto, meu bom amigo, e de tantas coisas
porque a obrigaram. Como o seu pedido foi au- que dariam um livro, cremos que Deus virá ao au-
tentificado por esta declaração, reparou o mal que xilio de tantas almas inocentes e boas que deram
tinha feito. Que calúnias e horrores não teriam testemunho e sofrem por amor de justiça. A Sa-
sido remetidos para Sagrada Congregação para grada Congregação e o Santo Padre entrando no

revisão
se lhe arrancar aquela tremenda condenação. conhecimento dos fatos será favorável a reformar
A mesma decisão dá entender proibindo romarias aquela decisão que matou em nós todos a amar-
a Maria de Araújo e as outras mulheres cúmpli- gura e se fará justiça, a obra da Misericórdia de
ces, quando aqui nunca houve romaria a Maria Deus para salvação das almas, nestes tempos em
de Araújo e nem às outras, mas somente ao S.S. que se prepara grande perseguição para a Santa
Sacramento por suas manifestações aqui ocorri- Igreja, é a Justiça de Deus para o mundo.
das. E a N. Senhora das Dores, em cuja Capela se “Oremus ad invicem” que nos preparamos para o
tinham dado estes fatos que despertaram a Fé e Céu, que lá, sim, seremos felizes.
Piedade do povo, que vindo aqui como ainda hoje

84 85
Nota avulsa
E como o sistema principal para destruir a verda-
de e sinceridade dos fatos e desmoralizar as pes-
soas, não se poupou nem se poupa nada. Avalie
um jornal das lojas maçônicas de Pernambuco
intitulado – Lanterna jornal caricata, desenhou a
mim e às piedosas donzelas testemunhas dos fac- COMO EM UM CALEIDOSCÓPIO, VI
tos, que graças a S. S. Virgem, nunca ninguém se MUITAS FACETAS DE MARIA DE ARAÚJO
atreveu a por em dúvida a nossa reputação. (GUI-
MARÃES; DUMOULIN, 2015, p. 154-162)
A beata Maria de Araújo era uma
Em face da continuidade das ações detratoras e persecutórias, em santa. Sua vida foi uma maravilha da
carta datada de 19 de novembro de 1914, Padre Cícero, continuou Graça de Deus (Padre Cícero Romão
Batista).
denunciando a campanha difamatória de que estava sendo vítima:

No espírito dos Srs. Bispos, que ouviam ao Dom No presente capítulo continuo indagando sobre nossa persona-
Joaquim que se impressionou tanto contra mim, gem central: Como era vista por seus contemporâneos? Como foi tra-
que não sei como formava a consciência para ima- tada pelos romeiros de ontem e como é encarada pelos romeiros de
ginar e dizer até em portarias e escritos, crimes e hoje? Como a arte e os movimentos populares a concebem? Quais
culpas que nunca as tive, criaram tantas preven- suas qualidades centrais que a mantêm viva na memória de muitos,
ções contra mim que perdi a liberdade de comu-
nicação com eles, sabendo que não me veem não a despeito de todas as formas de silenciamento a que foi submetida?

revisão
como sou, mas como o Sr. Dom Joaquim os per- Para responder a tais indagações, continuei buscando suporte na
suadiu e propagou. literatura especializada, acrescida de observações em romarias e en-
trevistas feitas com romeiros, pesquisadores e militantes do movimen-
Este era o clima efervescente no Juazeiro e em todo o Ceará a ali- to popular do Cariri. Também utilizei depoimentos e falas proferidos
mentar rivalidades e ódios entre pessoas, grupos e cidades, em gran- no I Seminário Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo: Onde Está
de parte reproduzindo as disputas políticas locais. Ela? – realizado na Universidade Regional do Cariri, sob coordena-
ção da professora Claudia |Rejanne Pinheiro Grangeiro, com o apoio
do movimento feminista e cultural da região, nos dias 22 e 23 de maio

revisão
de 2018.
Buscando registrar e compreender o processo de ofuscamento da
beata na história, utilizei relatos de romeiros de ontem e de hoje. Além
de entrevistas feitas por mim, utilizei trechos de entrevistas realizadas
por duas pesquisadoras em diferentes momentos: na década de 1970
e em 2006/2009. Refiro-me às pesquisas de Candace Slater (1986) e
de Paula Cordeiro (2011). A primeira, pesquisadora norte-americana
da Universidade de Bekerley, ouviu os moradores do Horto, fazendo

86 87
perguntas diretas sobre histórias envolvendo o Padre Cícero e a beata em Barbalha e, em seguida, em sua própria casa no Juazeiro. Por
Maria de Araújo, e a segunda, pesquisadora da URCA, entrevistou força de decisões oficiais, incluindo portarias diocesanas e vereditos
romeiros ao longo de quatro anos, com o objetivo de “[...] compreen- de Roma, nem o clero, nem os leigos podiam falar sobre o sangra-
der como se caracterizam os participantes que se designam romeiros mento da Hóstia Consagrada. Para avaliarmos o terror da excomu-
em meio às representações e práticas que envolvem a romaria” (COR- nhão disseminado pelo clero entre os católicos, trago o depoimento
DEIRO, 2011, p. 28). do Dr. Geraldo Menezes Barbosa (2004), registrado no discurso que
Este capítulo é marcado por uma inspiração etnográfica, daí mi- fez na abertura do III Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero.
nhas observações e interações com romeiros que vivem no Horto e Na época, ele estava na condição de diretor da Fundação Memorial
com romeiros de outros estados da federação que participaram, em Padre Cícero:
2018, nos seguintes momentos: Romaria de São Sebastião (20 de ja-
neiro) e Romaria de Nossa Senhora das Candeias (2 de fevereiro)36. Já não serão classificados como hereges aqueles
Indagar sobre a presença ou ausência de Maria de Araújo nas narra- que abordarem o “fenômeno” Padre Cícero quan-
tivas dos romeiros de ontem e de hoje é mergulhar na espacialidade do a Diocese do Crato desfralda a bandeira da re-
conciliação pelo punho do antístide, Dom Fernan-
da romaria com todas as suas facetas. Também é entrar nas tensas re-
do Panico [...] Desaparece o “medo do bispo”, de
lações entre a instituição oficial e a religiosidade popular, a nos levar a que me falou a veneranda tia Luizinha Ferreira de
conhecer oposições e interpenetrações marcadas por transformações Menezes, octogenária, quando lhe perguntei, no
no catolicismo brasileiro, parte integrante do catolicismo que reivin- ano de 1940, sobre o que viu entre o Padre Cíce-
dicou para si uma dimensão universalista. ro e a hóstia ensanguentada. A velhinha estreme-
ceu, olhou para os lados assustada e segredou-me
Começo o capítulo, interessada em responder à seguinte pergun- numa confissão quase auricular: “Vi tudo, meu fi-
ta: como a beata era vista e tratada por seus contemporâneos? Fui lho, mais de uma vez o padre retirando da boca da

revisão
buscar resposta tanto na análise documental quanto na literatura es- beata a Santa Hóstia feita em sangue. Mas quem
pecializada. Vejamos, a seguir, o resultado das minhas buscas para falasse naquilo seria excomungado por ordem do
este período. bispo. Era tanto o medo, que as pessoas choravam
sem poder falar. O padre e a beata foram levados
para o Crato. A beata apanhou de palmatória até
2.1 Maria de Araújo vista por seus contemporâneos urinar-se toda, e o bispo proibiu batizar qualquer
criança com o nome de Cícero. Faz tempo, mas
tenho medo de ser castigada por estar falando nis-
Vimos, no capítulo anterior, que havia um reconhecimento popu- so.” (BARBOSA, 2004, p. 16)

revisão
lar do papel da beata como instrumento de Deus. As testemunhas do
primeiro inquérito, incluindo beatas e padres, eram unânimes em
O testemunho ocular de Dona Luizinha e a permanência do seu
reconhecer os carismas de Maria de Araújo e sua dedicação a uma
medo falam, por si só, de dois aspectos: a determinação da hierarquia
vida piedosa, desde criança. No entanto, por obediência às decisões
eclesiástica de negar qualquer possibilidade de milagre e a eficiência
diocesanas, Maria de Araújo foi recolhida, primeiro no Crato, depois
das medidas diocesanas de silenciamento em torno dos fenômenos.
No entanto, ainda quero chamar a atenção para a pergunta feita pelo
36 As datas correspondem aos dias em que interagi com os romeiros. Apenas a segunda sobrinho da testemunha: “O que viu entre o Padre Cícero e a hóstia
romaria citada consta no calendário oficial da Diocese do Crato.

88 89
ensanguentada?” vemos que Maria de Araújo já desapareceu do epi- o que deu motivo a um dos médicos ficar inteira-
sódio, pois na resposta, seu nome também é omitido. Ser nomeada, mente perturbado a ponto de pedir a Comissão
receber um nome próprio é uma marca simbólica para aquele que excusa de tanta exigência de sua parte. Ora, se,
observei, estou com os teólogos e com a Santa Sé
é, que tem direito a um lugar no mundo. Mas nossa beata não tinha que tem aprovado muitos casos de transformação
este direito! Na análise da produção acadêmica nos cinco simpósios de hóstias consagradas em carne e sangue.
internacionais, sobre o padre Cícero (OLINDA e CORDEIRO, 2018),
mostramos que, mesmo nos poucos trabalhos em que seu nome apa-
rece, ela só é nomeada em 80% dos casos, como referência de con- Se a ocorrência de milagres não é estranha à doutrina católica,
textualização histórica. A beata também some dos objetivos da maio- porque havia tanta resistência do bispo e de parte do clero da época
ria das pesquisas sobre romarias, logo, dificilmente os pesquisadores em aceitar ou, pelo menos, aventar a possibilidade de um milagre em
faziam perguntas diretas sobre ela, dando a impressão de que ela foi Juazeiro? Já vimos, no capítulo anterior, o entrecruzamento de razões
totalmente esquecida. para tal recusa, com apoio nas características de gênero, de classe so-
cial, de raça e de escolaridade da protagonista do milagre, mas parece
Identifiquei nas cartas consultadas e nos documentos dos inquéri- faltar uma peça neste quebra cabeça: o posicionamento geopolítico
tos, diversificados trechos a indicar o reconhecimento das qualidades de Juazeiro e do Brasil. Ou seja, a questão está para além de razões
espirituais e, por que não dizer, da santidade de Maria de Araújo. Ve- teológicos, ou está no limite desta, com razões civilizatórias. Qual a
jamos alguns exemplos, começando com uma carta do padre Antero relação da Igreja com a modernidade? O enfrentamento da Igreja
para Dom Jerônimo, bispo do Pará, datada de 10 de maio de 1893, com o Positivismo e racionalismo tinha o mesmo caráter na Europa e
em que ele se defende das acusações de cismático e desobediente ao na América Latina?
bispo, ao mesmo tempo em que reafirma sua crença no milagre:
Refleti muito sobre a questão anterior, até encontrar nas elabora-
ções antropológicas de Carlos Alberto Steil uma argumentação que

revisão
Quanto então à minha crença, apesar de ser pri- me levou a compreender mais esta razão para a produção do isola-
vada, é inabalável. Tive pois ocasião de examinar
os tais fatos com toda a prudência, com todo em- mento da Maria do Juazeiro. As disputas entre razão e fé marcaram
penho para meu próprio bem e dos fiéis, e vi a a relação da Igreja Católica com a modernidade europeia do período
hóstia consagrada converter-se em carne e san- iluminista. Para Steil (2004, p. 183), “[...] contra a pretensão absolu-
gue, e isto, por muitas vezes. Quanto ao dizerem tista do conhecimento científico de deter a chave da explicação da
que o sangue é da comungante não tem absolu- natureza e do desvelamento da alma humana, a Igreja Católica evo-
tamente lugar; pois fizemos com dois médicos e
cava o milagre como o inexplicável que desafiava as leis da natureza
muitas testemunhas várias provas; como mandar

revisão
lavar imediatamente a boca e depositar em uma e apontava para a transcendência divina [...]”. Assim, a posição do
bacia com água pura e não aparecia nenhum ves- Padre Cícero e dos demais sacerdotes que creram no milagre não era
tígio de sangue, antes parecia que a água da boca uma questão de desobediência, misticismo ou fanatismo, pois o mi-
depositada na bacia purificava mais a água desta. lagre é um elemento central no sistema de crença católico, tanto que
Os médicos deram também [...] na boca uma so- outros milagres eucarísticos e aparições marianas foram validados,
lução de percloreto de ferro, assegurando a todos
que se o sangue fosse da comungante não se daria inclusive o de Lourdes no final do século XIX. Para Steil (2004, p.
mais o fenômeno, e com admiração de todos foi 183), o problema era do “[...] uso que estava sendo feito do milagre
quando observou-se um sangue mais vivo e limpo em cada contexto específico”:

90 91
Se na Europa o milagre era afirmado contra o por ação divina, mas, excepcionalmente, pode se dar pela ação de
racionalismo, em defesa do catolicismo romano, discípulos: “Seja qual for seu caráter, às vezes extraordinários, como
as autoridades eclesiásticas no Brasil viram no o dom dos milagres ou das línguas, os carismas se ordenam à graça
milagre, defendido pelo Padre Cícero, um recur-
so para a afirmação e legitimação de um habitus santificante e têm como meta o bem comum da Igreja” (2003). Ou-
católico que precisava ser erradicado. Ou seja, o tra marca dos milagres é gerar frutos positivos, sobretudo quando
Padre Cícero, aos olhos de seus superiores, estava implica conversões de almas apartadas de Deus. Padre Clycerio, na
afirmando a coisa certa no lugar errado. carta anteriormente citada, vai buscar argumentação nos frutos que
o episódio gerou:
Posso deduzir que a posição de Dom Joaquim e de outros mem-
bros da Igreja era do colonializado que já não quer mais ser visto Além disso como explicar esta romaria contínua
como atrasado. É a determinação daquele que, seduzido pelo modo de milhares de pessoas de todas as classes, ha-
de vida do opressor (FREIRE, 2014), quer demonstrar civilidade, daí vendo dias de mais de dez mil pessoas, e quan-
to mais a capital persegue mais cresce o número
tanta aversão aos pobres e aos nordestinos, por eles representados, de romeiros de quase todas as províncias. Como
apenas, como atrasados e fanáticos. Relembro que no Pedagogia do explicar milhares de conversões, de sacerdotes,
Oprimido, Paulo Freire (2014) já falava dos processos de autodesvalia bacharéis e soldados? É uma maravilha! Excelen-
e de fascinação do oprimido pelo opressor. tíssimo Senhor, estou narrando o que presencio:
ver sacerdotes de má vida hoje bons e exemplares
Então, na tensão entre atrasados e modernos, Maria de Araújo vai ministros do Senhor; vigários relaxados hoje zelo-
ser compreendida de duas maneiras opostas: como farsante, por par- sos e fervorosos. Como finalmente explicar tantos
te do clero que, de certa forma, se secularizava ao buscar na ciência milagres ali operados em virtude do Precioso San-
as comprovações para a existência ou não de milagre; e como santa, gue, muitos dos quais examinados com testemu-

revisão
para o povo e para alguns sacerdotes que privilegiam o critério da fé. nhas e juramento pela comissão? [...] dar-se um
fato tão extraordinário em nossa terra [...] Ah! Se
Assim, conforme discutido no II Simpósio Internacional, há diferen-
fosse em outro país... pobre Brasil! Parece que to-
ças fundamentais nas narrativas sobre milagres feitas pelos romeiros dos estão convencidos como os padres estrangei-
e naquelas feitas pela Igreja ou pelas camadas médias escolarizadas. ros do Seminário de Fortaleza que Nosso Senhor
Steil (2004, p. 184) trouxe o seguinte esclarecimento: “[...] para os não deixa a França para fazer milagres no Brasil.
romeiros, a prova fazia pouco sentido, uma vez que seu ponto de
apoio para a crença não estava na comprovação empírica do fato, mas
No relatório redigido por Monsenhor Monteiro e anexado ao pri-
na multiplicidade de versões do mito”. No próximo item, veremos

revisão
meiro inquérito, temos o seguinte depoimento:
como, para o romeiro de hoje, não há dificuldade para aceitação da
santidade da beata, principalmente porque ela tinha o aval do Padim
Ciço: “Se meu Padim acreditava que ela era santa, é porque era mes- É de grande interesse, para os fatos do Joaseiro,
saber-se que Maria de Araújo é uma virgem con-
mo”, disse Dona Rosinha do Horto na entrevista que me concedeu sagrada a Deus. Sei que ela guarda, por uma gra-
em janeiro de 2018. ça extraordinária a inocência do Batismo. Desde a
Então, se houve milagre, havia santo ou santos envolvidos, uma mais tenra idade é visitada por anjos, almas, parti-
vez que, de acordo com o Catecismo Católico, os milagres se operam cularmente pelo Menino Jesus. É profundamente
humilde. Na oração sente um fervor tão ardente,

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que sempre sai fora dos sentidos. Os fatos seguin- Joaquim, comunica ao Padre Cícero através de carta datada de 16 de
tes mostram a santidade de sua vida. Não saben- novembro de 1891 na “mais íntima confidência”: “[...] antes mesmo
do ler e sendo devota particularíssima da Paixão da real tradição (entrega) do processo, achei o Senhor Bispo muito
de Jesus, com o fim de prová-la, comecei a ler o
Salmo 21 – dizendo-lhe que era um cântico mui- prevenido contra os negócios de Juazeiro e não bem disposto a aceitar
to agradável, comecei a ler e ela pôs-se a gemer... provas em favor do caráter divino daqueles mesmos fatos”.
Não tenho tempo para dizer o que sei de virtudes O trecho seguinte da carta vai trazer uma informação muito impor-
e maravilhas da beata Maria de Araújo. tante para a discussão sobre a personalidade mística da beata Maria
de Araújo: o bispo não reconhecia nas beatas envolvidas no processo
Maria de Araújo era uma mística no sentido pleno do termo e “[...] o dom da contemplação, nem o espírito de profecia [...] como até
o depoimento anterior mostra isto. Mas esta característica foi pouco os dois grandes fatos operados perante a comissão, como provas ple-
realçada, por desconhecimento do significado mais profundo de mís- níssimas, como divinas que são, da sobrenaturalidade divina dos ditos
tica e porque já se popularizava uma noção negativa de mística que fatos [...]”. Lamentando as “[...] apreciações inconvenientes, impru-
se transformara na linguagem corrente em misticismo, no sentido de dentes e até injuriosas que têm sido feitas” a respeito do episódio do
fanatismo e mistificação, para indicar intenção de enganar. A história sangramento da hóstia, afirma que no Brasil muito pouco se conhece
de Juazeiro do Norte é permeada da presença de beatos, beatas, peni- sobre a Teologia Mística: “[...] a sociedade mais culta, em sua grande
tentes, sacerdotes, romeiras e romeiros místicos, mas este dado vivido maioria, não está preparada para coisas tais; desconhece-se tudo nes-
foi pouco refletido e, via de regra, avaliado negativamente. se particular; e daí chega-se a negar tudo, chegando a tachar-se de
No relatório final do primeiro inquérito, o padre Clycerio da Costa crédulos, fanáticos e abeatados os que não acompanham o indiferen-
Lôbo, chefe da comissão, assevera: tismo religioso [...]”. Com toda a clareza sobre as consequências de tal
desconhecimento, arremata:

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Em abono da verdade, sou obrigado a declarar
aqui, querendo cumprir o juramento que prestei [...] A mística, tal qual se infere de todo o pro-
de ser fiel à missão que me foi confiada, que todo cessado, não é entendida mesmo por quem es-
aquele que estudar o espírito de Maria de Araújo, tava no caso de compreendê-la. Se se trata, por
como também o de Antônia Maria da Conceição, exemplo, de que alguma das beatas tem sido, por
como procuramos fazê-lo, já ouvindo a seus dire- ordem divina, arrebatada em espírito ao céu, ao
tores espirituais, já as pessoas que as conhecem inferno ou ao purgatório, mostram-se escandali-
de perto, excluirá toda a ideia de artimanha e de zados e como que surpreendidos de nossa credu-
embuste nessas comunhões de partículas mira- lidade; entretanto é do Novo Testamento que São

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culosas ensanguentadas. São elas, as ditas beatas, Paulo foi arrebatado ao céu, e que um anjo, como
como tantas outras, almas levadas à vida unitiva, à se vê no Apocalipse, prendeu e meteu no abismo
vida de contemplação, o que pouco se conhece e a Satanás.
pratica entre nós.
O padre Clycerio deixou duas informações importantes: o próprio
Dois dias depois de o comissário episcopal chegar a Fortaleza para clero entendia pouco sobre mística e não reconhecia a experiência
dar conta da “delicada e difícil missão” que recebera do bispo Dom mística das pessoas simples envolvidas no processo. Sabemos das vi-

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cissitudes experimentadas por místicos. Os martírios sofridos por São do coração.
João da Cruz ilustram as reações violentas contra aqueles que expe- A tudo isto se reúna uma vida de jejum, oração e
rimentam uma relação de profunda intimidade com Deus. A teóloga trabalho humilde; reúna-se-lhe um grande reco-
Bingermer (2004) traz o exemplo de três místicas judias – Simone lhimento de espírito, a circunspecção nas palavras,
a serenidade nos momentos de contradição, e ter-
Weil, Edith Stein e Etty Hillesum –, que sofreram perseguições e fo- -se-á rol suficiente para explicar a comoção pro-
ram vítimas de várias violências. duzida em torno da mencionada serva de Deus.
Sem dúvida, até hoje há pouca compreensão sobre mística em geral Acima de tudo, desperta-me especial reflexão, o
e, mais acentuadamente, sobre a mística popular. Para fundamentar silêncio e conformidade em que ela se refugiou
depois que lhe comunicaram o pronunciamento
minha afirmação anterior, recorro ao seguinte fato: em setembro de condenatório do Santo Ofício, em Roma. Em lu-
2001, realizou-se, no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Re- gar de fazer comentários com o fim de justificar-
ligião da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR), um seminá- -se, absteve-se de tocar nesse assunto, sumiu-se no
rio sobre mística inter-religiosa, resultando em coletânea organizada interior de sua nova morada, quarteirão e meio
por Teixeira (2004). Esta reuniu 14 artigos, incluindo as conferências distante da igreja, e, entregue aos trabalhos mais
realizadas naquele evento, além de outros trabalhos acrescentados rudes na companhia de duas ou três mocinhas
que foram morar com ele, trabalhos esses donde
posteriormente, mas nenhum dos artigos discutia a mística popular. retirava o pão e o vestuário, assim viveu por mais
Conforme expresso fartamente nas correspondências consultadas duas décadas, até o dia 17 de janeiro de 1914,
no período da “Questão Religiosa de Juazeiro”, mesmo entre os reli- quando veio a falecer. Desapareceu das vistas do
giosos, os comportamentos místicos eram vistos como sinais de atraso mundo por tal forma que dentro em breve nin-
guém dava por sua pessoa, como se realmente já
ou de fanatismo. O padre Azarias Sobreira, na obra O Patriarca de fosse com Deus. (SOBREIRA, 2011, p. 309-310)
Juazeiro (2011, p. 314), atribui a firmeza do Padre Cícero na defesa

revisão
do milagre a “[...] uma fatalidade de seu temperamento e de suas
tendências para o misticismo inegavelmente hiperbólico [...]”. Este O padre Clycerio estranha que um religioso católico aceite que São
duplamente afilhado do Padre Cícero, mesmo não afirmando crer no Paulo foi arrebatado aos céus, mas não admita que mulheres pobres
milagre, não concordava com as teses de embuste. Vejamos, a seguir, e nordestinas possam viver tal experiência. No Livro da Vida, Santa
seu reconhecimento sobre as características místicas da beata, que ele Teresa de Jesus (ou d’Ávila) compartilha suas experiências de socorro
conheceu quando menino: aos espíritos em sofrimento, inclusive de um papa, no seu Diário.
Santa Gemma Galgani (2017) também anuncia as viagens que fa-
Dê-se a tais ocorrências a interpretação que se zia em espírito para ajudar as almas em sofrimento, bem como suas

revisão
der, não é lícito negar que em Juazeiro do Norte experiências diretas com Cristo, quando experimentava as dores e
ocorreram, na pessoa de Maria de Araújo, fatos as delícias de receber sua coroa de espinhos. Estas mulheres, uma
surpreendentes e dignos de meticuloso exame. espanhola e outra italiana, são reconhecidas como místicas e são ofi-
Além do sangue surgido nas partículas consagra- cialmente santas! Por que as beatas do Juazeiro não podiam ser? Por
das a ela distribuídas, vez por outra parecia reba-
tada em êxtase. Também nela se viram, de raro que o bispo, não se interessando pelo resultado do inquérito que ele
em raro, os tradicionais estigmas da paixão do sal- mesmo abriu, indicando os padres teólogos de sua inteira confiança,
vador: umas com listas de sangue escorrendo da não arredou pé de seu (pré)conceito? Será que o próprio bispo, com
fronte, das mãos, dos pés e dizem que igualmente

96 97
formação tão esmerada, também padecia da ignorância em relação à experiências: a vivência de um amor intenso que destaca a pessoa de
experiência mística? si mesma e a aproxima cada vez mais do Grande Mistério que é Deus;
Voltando à discussão sobre o reconhecimento da santidade da bea- a prece contínua e a disposição plena para o serviço ao próximo; o
ta por seus contemporâneos, apresento o testemunho do juiz de di- desprendimento, a pureza, o desligamento do mundo e o firme dese-
reito de Barbalha, Sr. João Gomes (Firmino) de Hollanda, dado no jo de fazer a vontade de Deus; a dificuldade de traduzir em palavras
primeiro inquérito: a experiência mística. Sobre este último aspecto, Teixeira (2004, p.
22) afirma: “Os místicos partilham da consciência viva da limitação do
humano diante do mistério impenetrável”.
A beata Maria de Araújo é uma rapariga parda
de 28 anos de idade, constituição fraca, braços Maria de Araújo apresentava todas estas características, além de
descarnados e mãos pequenas. Sai pouco de casa manifestar os dons já nomeados, sendo o mais recorrente deles o es-
para não ser perseguida pelo povo que já a con- tado de êxtase, considerado pelos estudiosos da mística como a ex-
sidera santa, tendo havido quem já a procurasse periência mais plena de Deus. Na mística Sufi, o estado de êxtase é
para beijar-lhe os pés! Ninguém pode avaliar o
número de romeiros, que em grupos, a pé e a ca- nomeado como hairah ou “estupor”, “[...] que pode ser identificado
valo, descalços e bem trajados deste e dos estados como a ‘embriaguez metafísica’ daquele que permanece atônito dian-
vizinhos têm passado por esta cidade e Missão-Ve- te da realidade da união suprema” (TEIXEIRA, 2004, p. 22).
lha em direção ao Joaseiro, e voltam tão certos Quem poderá entender tais experiências sem ter experimentado,
e convencidos de terem visto o sangue de Jesus
Cristo, que não admitem a menor observação ou mesmo em pequena medida, uma experiência viva de Deus? Tam-
contestação. Já me tinha esquecido de mencionar bém é difícil entender, num mundo secularizado, o comportamento
que depois de meu último exame o Padre Laurino das pessoas que renunciam às comodidades da vida material para se
abrindo a caixinha de madeira, sobre a qual está dedicarem a uma vida de serviço ao próximo e de busca de união com

revisão
colocado o sacrário, depositou nela o sanguinho Deus.
com as partículas, vendo eu nesta ocasião, que a
caixinha estava cheia de panos ensanguentados. Penso que há outra dimensão ainda não explorada nos estudos
Fechada de novo a caixa, o povo continuou a tirar sobre Maria de Araújo: a sua condição de médium. Como a Igreja,
com fitas e cadarços, medida dela. (GUIMARÃES; até hoje, não reconhece, com um sentido positivo, a possibilidade de
DUMOULIN, 2003, p. 87) intercâmbio entre os planos material e espiritual, as pessoas que apre-
sentam esta característica de ser intermediária entre os dois planos
Não era difícil para o povo aceitar que uma sertaneja simples como são tidas ou como loucas ou como instrumento do demônio.

revisão
eles próprios pudesse ser instrumento da ação divina, além do que, Encontrei, na correspondência consultada, a seguinte referência
todas as informações que eles tinham da beata indicavam para uma do Padre João Charnaval, em 30 de novembro de 1891, para o bispo
pessoa totalmente dedicada a Deus e à Igreja, vivendo num aniqui- Dom Joaquim: “[...] os fenômenos extraordinários que se dão com
lamento total da sua vontade pessoal, por aceitar obedientemente as esta mulher pertencem à mística diabólica, e que Maria de Araújo
determinações persecutórias do bispo que a tirara do convívio dos consciente ou inconscientemente é instrumento de operação diabóli-
seus familiares e do seu diretor espiritual – o Padim Ciço. ca”. Dom Arcoverde comungava da mesma opinião:
Há traços comuns na experiência mística, embora estes se expres-
sem de acordo com o contexto cultural e linguístico em quem vive as [...] quanto aos fatos concretos do Joazeiro, não

98 99
admito a hipótese de um sangue miraculoso. experiências e com uma mulher que tem consi-
Nada ali de miraculoso, Exmo. Revmo. Sr.; o que go, cresce de ponto a temeridade e a insubordi-
pode haver é o maravilhoso diabólico, e só este, nação sacrílega de fazerem-se semelhantes expe-
si são verdadeiros e reais os fenômenos narrados riências com gravíssimo desacato de Jesus Cristo
no folheto impresso sem autorização competente. sacramentado e abuso da credibilidade do povo
Não há nada ali de sério, Senhor Bispo. A tal simples e ignorante exposto a adorar sangue de
crucifixão da Araújo, a transudação de sangue, e galinha, de gato, de porco, etc.!! (Carta de 25 de
tudo o mais que ela apresenta não passa de um outubro de 1891, endereçada a Dom Joaquim,
derivativo diabólico ou, o que é também possível, grifos do autor)
é efeito de uma sugestão do Padre Cícero a essa
epiléptica auxiliada, já se entende, pelo demônio.
Esses fenômenos de estigmas em mulheres não O grau de desconfiança de Dom Arcoverde era tão alto, que ele
são raros, e principalmente nas histéricas, e por sequer acreditava que as hóstias oferecidas à beata do Juazeiro fossem
si sós não autorizam a dizer-se que são milagro- consagradas. Para ele, era mais plausível crer na ação supostamente
sos. Maria de Araújo acabará doida, como se tem magnetizadora do Padre Cícero a agir sobre uma médium:
dado com outras, e assim terão fim esses desa-
foros com que o demônio tem querido embair
a simplicidade de alguns desacatando o sangue Ora como é que a priori estão esses Senhores Pa-
precioso de Nosso Senhor. (Carta de 27 de no- dres a classificar de milagres os factos do Joazeiro,
vembro de 1891, endereçada a Dom Joaquim, e a dizer que ali aparece o verdadeiro sangue de
grifos do autor) Nosso Senhor Jesus Cristo em umas hóstias que
nem eu sei se foram consagradas? [...] O que sig-
nifica aproximar o Padre Cícero a face dorsal da
Mas foi o cardeal Arcoverde, em carta datada de 25 de outubro de mão aos lábios de Araújo? Não é isto um passe de

revisão
1891 endereçada ao mesmo bispo de Fortaleza, quem falou explici- magnetizador ou hipnotizador? (Carta de 12 de
tamente de mediunidade: dezembro de 1891, endereçada a Dom Joaquim,
grifos do autor)
Quanto mais leio mais asco me causa o proce-
dimento do padre Cícero, sendo causa de que Na data em que o bispo Arcoverde levantou tais proposições, Allan
tantas irreverências se cometam diante do Santís- Kardec já havia escrito e divulgado as obras fundamentais do Espiri-
simo Sacramento e a propósito do mesmo Sacra- tismo ou da codificação espírita: Livro dos Espíritos (1857); Livro dos Mé-
mento. É incrível! Eu o tomo por um hipnotiza-
diuns (1861); O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864); O Céu e o Inferno

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dor ou um magnetizador e a infeliz Araújo um
médium que age sob o influxo do padre ou sob (1865); e A Gênese (1868). Apesar de concentrar no segundo livro os
sua sugestão com intervenção do demônio para conhecimentos sobre mediunidade, este tema está disseminado nos
produzir as ilusões e maravilhas de que sabemos. demais livros e já apresentava grande divulgação no Brasil.
Suponho que ele tem já desobedecido às ordens
expressas de V.Exa., conservando em sua própria Abro um espaço para apresentar uma síntese do que o pedagogo
casa a companheira de suas experiências de mag- francês reuniu sobre mediunidade, para vermos que quase todas as
netismo e do moderno hipnotismo. Além de ser experiências relatadas pela beata nos depoimentos dados no primeiro
proibido pela Igreja que um padre se dê a essas inquérito enquadram-se nas características da mediunidade.

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Kardec (2009) informa que a mediunidade é uma faculdade hu- de efeitos físicos, médiuns sensitivos ou impressionáveis, auditivos,
mana de que certas pessoas são dotadas. Estas são designadas com falantes, videntes, sonâmbulos, curandeiros, pneumatógrafos, escre-
o nome de médiuns, ou seja, assumem a posição de intermediárias ventes ou psicógrafos” (KARDEC, 2017, p. 147). Cada um dos tipos
entre os Espíritos e os homens. As causas para que algumas pessoas de mediunidade é caracterizado por Kardec, não cabendo neste espa-
manifestem mais ostensivamente tal faculdade é “[...] ao mesmo tem- ço maiores considerações, a não ser identificar na narrativa da beata
po físicas e morais, ainda imperfeitamente conhecidas, porque são Maria de Araújo, exposta no capítulo anterior que ela possuía audiên-
encontrados médiuns de todas as idades, de ambos os sexos e em to- cia, vidência, produzia efeitos físicos e era sensitiva e impressionável.
dos os graus de desenvolvimento intelectual” (KARDEC, 2009, p. 13). As duas últimas formas de mediunidade designam as pessoas capazes
Também se encontram médiuns em todas as religiões e essa faculdade de sentir a presença dos Espíritos, tratando-se de uma “[...] faculdade
se desenvolve pelo exercício. rudimentar indispensável ao desenvolvimento de todas as outras”.
Há, fundamentalmente, dois tipos de comunicações dos Espíritos (KARDEC, 2017, p. 151).
com os homens: as ocultas e as ostensivas. As primeiras ocorrem “[...] Maria de Araújo não apenas sentia a presença dos espíritos, mas os
pela influência, boa ou má, que eles exercem sobre nós com o nosso via, os ouvia e conversava com eles. Kardec (2017, p. 152) diz que, em
desconhecimento”, cabendo ao médium discernir entre as boas e más algumas vezes, “[...] se ouve uma voz interna que se faz ouvir no foro
inspirações; já o segundo tipo ocorre por meio “[...] da escrita, da pa- íntimo. De outras vezes é uma voz externa, clara e distinta como a de
lavra ou outras manifestações materiais, e mais frequentemente por uma pessoa viva”. A beata via os Espíritos em estado normal: “O mé-
intermédio dos médiuns que lhe servem de instrumento” (KARDEC, dium vidente acredita ver pelos olhos, como os que têm a dupla vista,
2009, p. 16). mas na realidade é a alma que vê, e por essa razão eles tanto veem
No Livro dos Médiuns, vemos que a faculdade mediúnica não é com os olhos abertos ou fechados. Dessa maneira, um cego pode ver
rara e nem implica privilégios: os Espíritos como os que têm visão normal (KARDEC, 2017, p. 154).

revisão
Não encontrei elementos, nem na fala da beata, nem em depoi-
Toda pessoa que sente a influência dos Espíritos, mentos sobre ela, a indicar que ela tivesse a mediunidade de cura.
em qualquer grau de intensidade, é médium. Essa Mas os relatos que ouvimos sobre o Padre Cícero indicam que ele ti-
faculdade é inerente ao homem. Por isso mesmo nha este tipo de mediunidade. Vejamos o que Allan Kardec diz sobre
não constitui privilégio e são raras as pessoas que esse gênero de mediunidade:
não a possuem pelo menos em estado rudimentar.
Pode-se dizer, pois, que todos são mais ou menos
médiuns. Usualmente, porém, essa qualificação [...] consiste principalmente no dom de curar por
se aplica somente aos que possuem uma faculda- simples toque, pelo olhar ou mesmo por um ges-

revisão
de mediúnica bem caracterizada, que se traduz to, sem nenhuma medicação. Certamente dirão
por efeitos patentes de certa intensidade, o que que se trata simplesmente de magnetismo. É evi-
depende de uma organização mais ou menos sen- dente que o fluido magnético exerce um grande
sitiva. (KARDEC, 2017, p. 147, grifos meus). papel no caso. Mas, quando se examina o fenô-
meno com o devido cuidado, facilmente se reco-
nhece a presença de mais alguma coisa. [...] entre
No entanto, a mediunidade não se revela em todos da mesma ma- os médiuns curadores a faculdade é espontânea, e
neira. “Há médiuns com aptidões variadas, senão vejamos: médiuns às vezes a possuem sem jamais terem ouvido falar
de magnetismo. A intervenção de uma potência

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oculta, que caracteriza a mediunidade, torna-se também é o resultado das comunicações ocultas,
evidente em certas circunstâncias. E o é, sobre- e é sobretudo nesse caso que se podem chamar
tudo, quando consideramos que a maioria das de médiuns de pressentimentos as pessoas assim
pessoas qualificáveis como médiuns curadores re- dotadas, que constituem uma variedade dos mé-
correm à prece, que é uma verdadeira evocação. diuns inspirados. (KARDEC, 2017, p. 166)
(KARDEC, 2017, p. 159)

A faculdade mediúnica propriamente dita é orgânica, estando in-


Por sua vez, o magnetizador, ainda que tire sua força de si mesmo, dependente do desenvolvimento moral do médium, “Mas o uso que
pode servir de intermediário a uma potência estranha. A força mag- se faz da mediunidade depende das qualidades morais do médium”
nética pertence ao homem, mas pode ser aumentada pela ajuda dos (KARDEC, 2017, p. 214). Diferentemente das concepções que atri-
Espíritos: “Se magnetizas para curar, por exemplo, e evocas um bom buem o exercício da mediunidade a ações demoníacas, para a Dou-
Espírito que se interessa por ti e pelo doente, ele aumenta a tua força trina Espírita e demais doutrinas espiritualistas que exercitam a me-
e a tua vontade, dirige os teus fluidos e lhes dá as qualidades necessá- diunidade, esta é dom de Deus para o exercício na lei do auxílio e
rias” (KARDEC, 2017, p. 159). da caridade, daí a importância da máxima cristã: “Dai gratuitamente
Podemos dizer, ainda, que Maria de Araújo se enquadrava na clas- o que gratuitamente recebestes”. Maria de Araújo, ainda que não se
sificação de médiuns inspirados, pois identificasse como médium, sabia que tinha recebido dons para o alí-
vio daqueles que sofriam e para ajudar a propagação da fé, tendo
Todos os que recebem, no seu estado normal ou sabido honrar sua missão e jamais ter se beneficiado materialmente
de êxtase, comunicações mentais estranhas às suas dos fenômenos que ocorriam através dela. No Evangelho Segundo o
ideias, sem serem, como estas, preconcebidas, po- Espiritismo, assim se colocou Kardec (2009a, p. 227-228):
dem ser considerados médiuns inspirados. Trata-

revisão
-se de uma variedade intuitiva, com a diferença de
que a intervenção de uma potência oculta é bem Os médiuns modernos – porque os apóstolos
menos sensível, sendo mais difícil de distinguir no também tinham mediunidade – igualmente re-
inspirado o pensamento próprio do que foi suge- ceberam de Deus um dom gratuito: o de serem
rido. O que caracteriza este último é sobretudo a os intérpretes dos Espíritos para a instrução dos
espontaneidade. (KARDEC, 2017, p. 164). homens, para mostrar-lhes o caminho do bem e
conduzi-los à fé, e não vender-lhes palavras que
não lhes pertencem, porque não são o produto
De acordo com a classificação kardequiana, a beata também era de sua concepção, nem de suas pesquisas, nem de

revisão
uma médium de premonição: seu trabalho pessoal. Deus quer que a luz alcan-
ce a todos. Não quer que o mais pobre dela seja
deserdado e possa dizer: Eu não tenho fé por-
O pressentimento é uma vaga intuição de aconte- que não pude pagá-la; não tive a consolação de
cimentos futuros. Certas pessoas têm essa faculda- receber os encorajamentos e os testemunhos de
de mais ou menos desenvolvida. Pode-se tratar de afeição daqueles por que choro, porque sou po-
uma espécie de dupla vista que lhes permite ver bre. Eis porque a mediunidade não é privilégio, e
as consequências do presente e o encadeamento se encontra por toda a parte; fazê-la pagar seria,
natural dos acontecimentos. Mas muitas vezes pois, desviá-la da sua finalidade providencial [...]

104 105
A mediunidade é uma coisa santa que deve ser dre Cícero durante 25 anos (1909 – 1934), tendo sido por 12 anos
praticada santamente, religiosamente. Se há um escrivão de cartas do mesmo (de 1916 a 1928): o paraibano, da cidade
gênero de mediunidade que requer essa condição de Soledade, Fausto da Costa Guimarães. Em Memórias de um Romeiro
de forma ainda mais absoluta, é a mediunidade
curadora. (GUIMARÃES, 2011, p. 73-83), ele apresenta os traços biográficos de
“beatos, beatas, criadas e tipos do Joazeiro”. Reconhece nas beatas que
acompanharam o Padre Cícero mais de perto, as seguintes caracterís-
Pode parecer estranho fazer um vínculo entre santidade e mediu- ticas: firmeza, sacrifício constante e obediência, em prol da grande luta
nidade, mas se observarmos com cuidado a história, veremos que, pelo Juazeiro. Maria de Araújo é descrita nos seguintes termos:
desde os primeiros cristãos congregados nas igrejas primitivas, os so-
nhos proféticos, as visões e revelações faziam parte da vida cotidiana.
Criatura parda, solteira, honesta, natural do Joa-
O próprio anúncio da concepção de Jesus foi feito pelo anjo Gabriel a zeiro, pobre, humilde, religiosa na altura, sincera,
Maria e, na sequência, José foi esclarecido sobre a situação, em sonho. caridosa, obediente, sofredora por causa dos fatos
A mediunidade entre os santos católicos também é bastante conhe- miraculosos na hóstia consagrada dada a ela em
cida. Em Tavares (2005), vemos o cuidadoso registro de fenômenos comunhão, aqui na Igreja de Nossa Senhora das
mediúnicos entre os santos: Francisco de Assis, Teresa D’Ávila, Teresa Dores. Sofreu horrores grandes, pesquisas pelos
padres para verificar a verdade, o que a maldade
Neumann, Catarina de Siena, Joana D’Arc, entre outros. Para validar
não conseguiu vencer, calúnias injuriosas foram
suas informações, ele pesquisou em livros chancelados com o Imprima- muitas, porém a tudo resistiu com paciência e va-
tur e o Nihil Obstat eclesiásticos. lor. Não tinha uma choupana onde morasse. Vivia
Pensar a mediunidade para além das religiões institucionalizadas debaixo da proteção de Padrinho Cícero. O sofri-
mento e a resignação eram o seu apanágio, até
pode ser uma janela para arejar relações intolerantes que teimam em
quando faleceu. Era, não há dúvida, um tipo vir-
manter a atitude de atribuir a forças malignas a possibilidade de inter-

revisão
tuoso, pelas suas qualidades. Morreu no ano de
câmbio entre os diferentes planos da vida. Cada passo que pudermos 1914, ainda forte. Era Maria de Araújo que tirava
dar no sentido do diálogo inter-religioso é importante. As violências grande quantidade de esmolas em legumes e em
religiosas se alimentaram no passado e continuam a ser nutridas pelo dinheiro para a casa de Caridade do Crato, todos
desconhecimento das infinitas capacidades da alma humana e da pe- os anos. (GUIMARÃES, 2011, p. 73)
rene indulgência divina. Quantas médiuns como Maria de Araújo fo-
ram tidas como loucas e quantas são incompreendidas na atualidade? Profundamente leal ao Padre Cícero, gastou todos os seus recursos
conseguidos como comerciante na defesa da cidade que ele chamava

revisão
2.2 Maria de Araújo vista pelos romeiros do século XX: mártir, de “Nova Jerusalém”: “[...] entrei na luta da guerra como era meu
santa e pecadora dever, fazer face ao inimigo auxiliando assim a todo meu alcance ao
Revmo. Pe. Cícero que o Rabello prometia-lhe, cortar-lhe a cabeça e a
todos nós, e reduzir o Joazeiro a cinzas [...]” (GUIMARÃES, 2011, p.
Busquei, na literatura especializada, depoimentos de romeiros an-
23). Esse romeiro também militou em outras frentes: insistiu no reco-
tigos que falassem da beata. Há uma grande escassez neste sentido;
nhecimento da veracidade do milagre da hóstia, dirigindo cartas ao
no entanto, o que consegui reunir segue comentado.
arcebispo coadjutor do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme (14 de
Começo com as memórias de um romeiro que acompanhou o Pa- janeiro de 1923), e a Dom Quintino, bispo do Crato, além de travar

106 107
conversa direta com o bispo Dom Joaquim. Na missiva ao arcebispo, humilde. Na idade de dez anos entrou a ser con-
faz uma súplica para que o reverendo, que tanto ele admirava, vol- fessada do Revmo. Pe. Cícero Romão Baptista se
tasse às funções para as quais fora preparado e que tanto ajudava aos manifestando com fervor para as coisas de Deus,
até que foi escolhida para aparecer nela os grandes
mais necessitados; ao bispo do Crato, lança um protesto contra o que acontecimentos da Hóstia Consagrada. Na ocasião
ele chamou de “horrível perseguição ao Padre Cícero e aos romeiros de receber Jesus sacramentado, por muitas vezes,
de Nossa Senhora das Dores” (GUIMARÃES, 2011, p. 32). na língua ainda se transformava em sangue vivo
Apesar de afirmar diversas vezes crer piamente no milagre da hós- e este posto em uma salva de vidro, algumas ve-
zes se formava um coração de tamanho mínimo,
tia e de reconhecer as qualidades de Maria de Araújo, nenhuma pa- o que foi testemunhado por muitos, e destes, pes-
lavra é dita em sua defesa nas referidas cartas e conversas. Ele afirma soas idôneas como padres, doutores e muitos ou-
que, depois dos fatos miraculosos, houve grande afluência de romei- tros. E verificado um sangue realmente perfeito,
ros a Juazeiro, o que gerou seu engrandecimento, mas a figura da por médicos. Morreu esta pobre moça com idade
beata fica sempre secundarizada. Por que, mesmo para um devoto média, sempre paciente, humilde e resignada com
os sofrimentos dos incômodos de saúde que eram
que acreditava ser o sangue de Jesus Cristo que se manifestara na hós- bastantes. Pobre, amiga da caridade em suma, pru-
tia consagrada ministrada à Maria de Araújo, era difícil reconhecer dente e enérgica, quando preciso. Foi muito me-
nela características de santa? Ele via e protestava contra o ódio lança- nosprezada e injuriada até mesmo de sua honra, a
do aos pobres por membros do clero e pelas pessoas mais afortunadas qual era um modelo das donzelas. Honesta, muito
do Juazeiro, do Crato e de outras cidades da região; no entanto, pa- espirituosa e ativa. Porém sempre muito comedida
recia não enxergar, em toda a sua dimensão, a opressão sofrida pela e recatada nos seus modos de observar e tratar com
quem quer que fosse e sobretudo muito leal com
beata. Será que havia uma naturalização de que sendo mulher, pobre, as pessoas de sua intimidade, tanto que sua vida
analfabeta e negra/índia, não podia lhe caber melhor posição? Ou ele de criatura pobre ao extremo, modesta, agradável,
também vivia sob a égide do medo, conforme vimos no item anterior?

revisão
sincera, sofredora e resignada como mais não po-
Não podemos esquecer do peso do veredicto vindo de Roma a con- dia se encontrar. Foi uma mártir. Morreu quando
denar os episódios extraordinários ocorridos em Juazeiro do Norte. findou a guerra aqui no tempo do Rabelo. Era tida
como justa de Deus e da estima do Padrinho Cíce-
Em outras passagens de Memórias de um Romeiro, vemos comentá- ro, de um modo extremoso. (GUIMARÃES, 2011,
rios sobre a beata, sempre a colocando numa posição de “pobre”, de p. 55-56, grifos meus)
“coitada”. Transcrevo uma longa passagem, para que examinemos o
seguinte paradoxo: uma coitadinha quase insignificante é destinatá-
O trecho destacado por mim – “pessoas idôneas como padres, dou-
ria de uma graça especial? Será que ela era mesmo coitadinha? Será

revisão
tores e muitos outros” – demonstra uma concepção elitista própria da
que ela era mesmo insignificante? A resposta pode ser sim para as
época. Pessoas pobres, não brancas, analfabetas ou pouco escolariza-
duas perguntas, em se considerando as concepções eurocêntricas que
das eram pessoas mal posicionadas socialmente, a quem não se dava
orientavam a noção de santidade e que pareciam fundamentar a visão
grande credibilidade. Quando muito, eram destinatárias da caridade
do romeiro em foco:
e da benevolência, mas não cidadãs plenas, portadoras de direitos.
Numa carta destinada a um coronel residente em Catolé do Ro-
Maria de Araújo, filha de uma família humilde da-
cha, Paraíba, ele repete a mesma argumentação, ao defender a honra
qui do Joazeiro, parda e pobre, viveu sempre vida
do Padre Cícero: “Nunca vi em si, o menor dos seus atos que mere-

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cesse reprovação e comigo muitos homens de bem e mais ainda ilus- enquadrar-se aos postulados da Igreja [...]” (RAMOS, 2012, p. 16).
trados que aqui residem e atestam o mesmo” (GUIMARÃES, 2011, p. Reconhecendo que o Padre Cícero era o protagonista, Ramos destaca
59, grifos meus). as ocasiões significativas em que a beata foi lembrada. Vejamos, em
Em síntese, o que as memórias deste romeiro letrado mostram é síntese, alguns destes momentos.
um profundo respeito por uma serva de Deus, humilde, pobre e so- No documento manuscrito em sete laudas, registrado em cartório
fredora; no entanto, as inúmeras virtudes, os dons e as obras do Padre e assinado pelo Padre Cícero e mais três testemunhas, intitulado Co-
Cícero37 o colocam numa posição de tão elevada envergadura, que o pia de um Facto Histórico do Anno de 1930: os Despojos da Beata Maria de
romeiro, numa determinada época da sua vida, chega a confundi-lo Araújo Violados em Data de 22 de Outubro de 1930 por Ordem do Vigário
com Deus: “Vi por muitas vezes no meu modo de sentir na pessoa do Padre José de Lima, após denunciar o crime de violação do túmulo,
Pe. Cícero, a pessoa de Deus em carne humana, afinal passei tempos são feitas várias referências respeitosas à beata que jamais “[...] de-
nesta dúvida, até que foi preciso ele, Pe. Cícero, tirar-me deste enga- caio de suas praticas religiosas, mantendo a sinceridade de suas vir-
no [...]” (GUIMARÃES, 2011, p. 33-34). tudes christans” (RAMOS, 2012, p. 70). Há, ainda, menção à grande
O depoimento supra contradiz a acusação dos detratores do Pa- multidão de pessoas que acompanharam o enterro da beata e que
dre Cícero, de que ele alimentava as visões equivocadas dos romeiros, todos os acontecimentos em que ela se envolveu “continuou vivo na
e ainda mostra sua marca de evangelizador que sabe orientar sem memoria de todos, mas sem se falar nos fenomenos nella operados”
humilhar. (RAMOS, 2012, p. 70). Neste documento, mesmo sob o influxo de
uma grande revolta, o Padre Cícero mantém o tom conciliador que
Na obra O Meio do Mundo: Território Sagrado em Juazeiro do Padre
marcou sua conduta, tanto nas questões religiosas, quanto políticas e
Cícero, o historiador Francisco Régis Lopes Ramos partilha impor-
administrativas. No entanto, o mais relevante é perceber a reafirmação
tantes narrativas de romeiros, poetas e cordelistas que trazem os ecos
do profundo respeito que ele devotava à sua afilhada.
dos primeiros tempos de consideração da santidade da beata Maria

revisão
de Araújo. Tendo encerrado sua pesquisa em 1999, ele descobriu, na Como pagamento de uma promessa feita em 1974, Maria da Con-
experiência religiosa romeira, não um sistema de crenças abstratas, ceição Lopes Campina escreveu o livro Voz do Padre Cícero e Outras
mas uma vivência concreta que não se deixa aprisionar em esquemas Memórias, em que compartilhou histórias, ensinamentos e profecias
conceituais fechados. Com maestria, ele mostrou as tramas sociorre- que ouviu do Padre Cícero, quando na infância viveu no orfanato
ligiosas que foram apagando a memória da beata e sua consideração por ele assistido. Numa dessas profecias, o Sagrado Coração de Jesus
como santa e mística. Com o “[...] intuito de vislumbrar imaginários pregado na Igreja Matriz de Juazeiro e entre outras admoestações
dos devotos que, das mais diversas maneiras fizeram a sacralidade àqueles que não acreditaram na sua presença na hóstia consagrada,
de Juazeiro [...]” (RAMOS, 2012, p. 14), ele chega até 1969, data da fala: “[...] então eu ressuscito Maria de Araújo, Joana e todos que

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construção da estátua do Padre Cícero na colina do Horto, para falar assistiram o Sangue precioso e eles vêm provar este sangue. Os
de uma cidade que “progrediu”, afastando o propalado fanatismo padres que viram têm que provar com a boquinha deles, aqueles que
e criando “[...] um culto racionalizado, que coloca em destaque as negaram vêm pregar sobre isto” (RAMOS, 2012, p. 72). Mais uma
virtudes pessoais do Padre Cícero, enquanto o sobrenatural procura vez, a reafirmação na crença de que o sangramento da hóstia foi um
fenômeno de ordem divina e, como tal, exige reparação daqueles que
não creram. Não estaria nesta profecia uma ideia reencarnacionista
37 Vale a pena conferir as 29 “qualidades morais e cívicas” que o Sr. Fausto enumera do
“sacerdote modelar sem mácula” e “verdadeiro sábio de Deus” (GUIMARÃES, 2011, p. velada? Como aqueles que negaram voltarão para pregar?
39-40).

110 111
Na década de 1940, a gráfica São Francisco imprimiu outra nar- Trail of Miracles: Stories from a Pilgrimage in Northeast Brazil38. Todos os
rativa que propalava o caráter divino do sangramento da hóstia: O narradores acreditavam no milagre e quase todos afirmaram que se
Chamado de Deus na Terra pela Sagrada Eucaristia, livro anônimo de 120 tratava do “sangue precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Porém,
páginas que circulou em todo o Nordeste brasileiro. todas as falas davam a entender que o milagre fora do padre. Sobre a
Outro texto anônimo que trouxe referências a Maria de Araújo beata, fundamentalmente, havia duas posições opostas: uma visão po-
relata as visões de alguém, ocorridas entre os anos de 1919 e 1922, sitiva sobre sua conduta, com a explicitação, ou não, de sua santidade;
intitulado Diário do Propheta Elias. Em uma das visões narradas, Jesus e uma visão negativa, pautada em histórias orais passadas de uma
Cristo julga os bispos e padres envolvidos na “Questão de Juazeiro” geração à outra que terminavam por atribuir à beata a culpa pelos
e, em determinado momento, convoca Maria de Araújo e esta, apre- martírios do Padim, de quem não se duvidava da santidade.
sentando-se humildemente, ouve a seguinte indagação do Salvador Vejamos o primeiro grupo: “Da transformação da hóstia não sei
lançada aos padres presentes: “Não são por ventura vós os caçado- falar muito. Que não foi do meu tempo. Viu? Mas a minha sogra co-
res de almas para o reino dos Céus? Porque não aproveitaram este nhecia a beata. Ela diz que Maria de Araújo era muitíssima católica;
(refere-se ao Padre Cícero) canal de salvação, deste manancial estu- que quase que vivia na igreja desde menina [...]” (SLATER, 1986,
pendo das minhas maravilhas?” (RAMOS, 2012, p. 77). Mais adian- p.257). Aqui se destaca um valor fundamental na religiosidade popu-
te, numa referência ao segundo inquérito, desenrola-se uma cena lar: a pertença à religião católica. Manter a herança herdada dos pais
impressionante, quando, após reconhecer sua maldade e crime, o é quase uma obrigação moral. Neste aspecto, a beata honrava a tradi-
bispo se dirige à beata Maria de Araújo e diz: “Digna filha do Senhor, ção familiar e comunitária, o que contava positivamente na avaliação
olha para mim com olhos de compaixão e intercede ao Vosso Esposo do seu caráter.
Jesus [parte do texto ilegível]. E Ella falou dizendo: Meu pae Jesus Mas a beata não era apenas uma boa católica, ela era uma santa a
[parte do texto ilegível] fui amaldiçoada, mas não amaldiçoarei [...]” quem se recorria nas horas de aflição:
(RAMOS, 2012, p. 78).

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Mesmo aparecendo em segundo plano, Maria de Araújo era re- Eu tava andando a cavalo no mato sozinho. Na-
presentada como uma beata piedosa e capaz de perdoar incondicio- quele tempo ainda tinha muita onça e era um
nalmente seus algozes. Outras duas características lhe são atribuídas: perigo passar a noite lá fora. Aí eu tava andan-
humildade e obediência, próprias das santas. do com muita pressa quando de repente aparece
uma cobra dessas grande de não sei onde. Mor-
Por fim, Ramos registra a publicação do cordel de Severino do deu o cavalo. Coitado, deu uma rinchada, tremeu
Horto em 1989, com o sugestivo título O Milagre do Padre Cícero e Ma- forte antes de cair no chão. Aí, lá tava eu, só, sem
ria de Araújo. No trecho seguinte, o poeta expressa a tensão de escre- cavalo e a noite pronta a cair. Pois naquele instan-

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ver sobre um tema condenado ao silêncio: “Botei a pena na mão/ com te eu me vali de Santa Maria Araújo. Que se ela
o coração nervoso/ para descrever em verços/ um assunto melindroso/ tivesse pena de mim e ressuscitasse meu cavalo,
desta verdade eu não fujo/ sobre Maria de Araújo/ e o sangue miste-
rioso” (RAMOS, 2012, p. 82). 38 No apêndice B do referido livro – p. 257 a 260 – as falas dos romeiros sobre o mila-
gre e sobre a beata Maria de Araújo estão disponibilizadas no que a autora chamou de
Agora, passo a comentar os depoimentos de romeiros que mora- portuguese originals, ou seja, mantendo o modo peculiar da fala das pessoas simples do
vam na ladeira do Horto na década de setenta do século passado, sertão nordestino. No presente texto, alterei para a linguagem mais próxima daquela
recolhidos pela pesquisadora Candace Slater e publicado no livro considerada padrão, a fim de facilitar a compreensão, ainda que reconheça a beleza da
linguagem popular.

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eu ia oferecer uma missa em intenção da santa do por cobra, também a ela se dirigiam preces:
alma dela. Aí de repente o cavalo tremeu de novo Maria de Araújo era uma moça que foi comungar
e se pôs em pé [...] (SLATER, 1986, p.257). e a hóstia virou sangue na boca dela. Hoje está no
céu e a gente reza para ela desse jeito: “Oh Maria
de Araújo, estais com o rosário na mão pra nós
Outro valor cultuado pelos romeiros sofridos do sertão nordesti- levar à terra do Padim Ciço...”. Tem mais outros
no é o valor da palavra: não precisa ver para crer, basta a palavra de versos mas eu estou esquecida. Só sei que Maria
quem viu: de Araújo é uma dessas santas forte (SLATER,
Maria de Araújo era Nossa Senhora pura. Quan- 1986, p.259).
do o meu padim Ciço foi dar a comunhão a ela,
apareceu o sangue precioso, viu? Tinha três mu-
lher na mesa da comunhão quando ele chegou, Importante destacar que, nas avaliações anteriores, não há dicoto-
mas o sangue apareceu foi na boca dela. Eu não mia entre Padre Cícero e Maria de Araújo: ambos eram santos, ambos
vi, não, mas acredito de todo coração em quem faziam milagres!
viu. Enterraram ela no Socorro mas o corpo su-
miu do caixão que ela foi pro céu toda santa (SLA-
Mas a disputa em torno da memória da beata envolvia um jogo
TER, 1986, p.258). com muitos lances e personagens. Nas falas do segundo grupo, apre-
sentadas a seguir, veremos fatos reais se misturarem às narrativas fan-
tasiosas, a incriminar a mulher pecadora, dissimulada, que não reco-
Na fala anterior, é dada uma explicação para o sumiço do corpo nhecia a santidade do patriarca de Juazeiro. Os sofrimentos do Padim
da beata: como Nossa Senhora, ela teria sido arrebatada para o céu. eram devidos aos pecados dela:
Como crer que um bispo ou um padre tenha profanado um túmulo?
Este era, para os entrevistados, e ainda o é para a maioria dos ro-
Tinha uma beata, a Maria de Araújo. Ela foi co-

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meiros, um pecado mortal. Como acreditar que um representante de
mungar e a hóstia desmanchou-se em sangue. Foi
Cristo na Terra pudesse perpetrar tamanho crime? por causa dessa beata que o meu padim Ciço ficou
Na próxima fala vemos mais dois valores presentes na cultura ser- suspenso de ordem.
taneja: o reconhecimento da autoridade médica e o vínculo entre san-
tidade e castidade: Maria de Araújo? Sim, já ouvi falar no caso. Foi
Dizia que Maria de Araújo queria se santificar, por causa dela que o meu padim Ciço foi chama-
que levava vidrinho de sangue de boi e tal. Mas do a Roma (SLATER, 1986, p.258).
eu não acho. Veio uma dúzia de médico examinar

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ela. Aí eles disseram que não era sangue humano Então depois daquele dia que a hóstia transfor-
nem sangue de bicho, que era um sangue todo mou-se em sangue tinha um povo que andava di-
diferente. E não notaram cicatriz nem na boca zendo que Maria de Araújo era uma mentirosa,
dela. Aí pode acreditar que ela era inocente, sem que era uma alma condenada. Rasparam a lín-
pecado e donzela das mais donzelas (SLATER, gua, arrancaram a língua da boca, aí era o começo
1986, p.258). dos sofrimentos do meu padim (SLATER, 1986,
p.258).
Além de pedirem a intercessão dela, como no caso do cavalo pica-

114 115
Maria de Araújo era uma pecadora, que não acre- sava por moça mas era a mulher do bispo. Foi
ditava em Jesus. Aí quando foi comungar o meu por isso que o bispo suspendeu meu padim das
Padim Ciço apresentou um castigo pra ela, que a ordens dele. Tirou ele de dizer a missa quando
hóstia virou sangue. Botou a hóstia na boca dela ele transformou a hóstia em sangue na boca dela
e quando minou sangue ela pedia perdão (SLA- para todo mundo ver. O bispo tinha muito medo,
TER, 1986, p.258). achava que meu Padim ia levar o sangue ensan-
guentado a Roma para mostrar para o papa. Aí
ele disse que era meu Padim que tinha andado
Aquele negócio da hóstia era um castigo da beata, que ela duvida- com ela, que era ele o amante daquela mulher.
va. Esse povo mais velho onde eu moro contava muito para minha (SLATER, 1986, p.260)
mãe que quando foi que recebia a hóstia, sempre deixava ela cair no
chão. Aí um dia quando deixou a hóstia cair apareceu foi sangue. Ela Maria de Araújo era uma beata que foi comun-
não acreditava que era o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aí meu gar, aí começou a cuspir sangue. Meu padim deu
Padim deu a comunhão a ela e a hóstia desmanchou-se em sangue a hóstia pra ela. Mas era tão pecadora que ma-
nifestou-se em sangue. Essa Maria de Araújo já
vivo (SLATER, 1986, p.258).
tinha um filho, um menininho mudo. Aí o bispo
mandou o meu Padim fazer o menino falar. “Se
Maria de Araújo era uma dessas pessoas que não você não fizer esse menino falar vou botar a sua
acreditavam nos poderes de meu Padim Cícero. batina abaixo”, ele disse. Que o bispo tinha mui-
Falava pra todo mundo que era um padre que ta raiva por causa da beata e queria botar ele no
nem qualquer um outro, que nunca tinha obrado chão. Aí trouxe o menininho mudo, achando que
milagre nenhum. Aí um dia meu Padim cansou o meu Padim não podia nada com ele. Mas meu
dos escândalos que ela levava contra ele. Aí quan- Padim botou a cabeça na mão do menino. Disse:
do foi dar a comunhão a ela, a hóstia virou-se em “Menino, em nome de Deus, diz quem é teu pai e

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sangue vivo. Ela foi castigada como aquele fazen- tua mãe”. Aí o menino disse: “Meu pai é o bispo
deiro que mandou comprar chuva. Ou aquela de Fortaleza e minha mãe é a beata Araújo”. O
moça que ele disse que não fosse pra rua dançar bispo ficou com tanta raiva por causa disto que
e ia de todo jeito. Quem fazia pouco dele recebia queria envenenar meu Padim. “Tome aqui esse
aquele castigo. Aí como é que ele não ia dar um vinho”, ele disse pra meu Padim. Meu Padim fez
castigo pra ela? (SLATER, 1986, p. 258) o sinal da cruz por cima do cálice, assim, três ve-
zes. Aí bebeu e não tinha nada. Nada! (SLATER,
1986, p.260)
No imaginário popular, expresso nas falas deste grupo, a beata

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reunia tudo de execrável: além de incrédula, era dissimulada, fazen-
do-se passar por uma jovem pura. Nas falas seguintes se expressa, Para os católicos do sertão, não era impensável que o bispo tivesse
pela negativa, os valores da castidade e da fé. No universo popular, o amantes e filhos, afinal, esta era uma prática corrente, conforme re-
castigo é inevitável para quem age de modo desonesto e em descon- gistrado por Della Cava (1976/2014). O mais significativo a destacar
formidade com as convenções sociais. nas falas anteriores é a composição da trama. Na narrativa, há todos
os ingredientes de uma verdadeira novela, a envolver: vilões e um
super-herói. Importante notar que os poderes do Padim sempre se
Maria de Araújo dizia que era uma moça. Pas-
sobrepõem aos demais poderes.

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Para finalizar, reproduzo uma fala que mostra que já na década decorrer deste capítulo.
de 1970 se iniciava uma confusão entre as beatas Maria de Araújo e a Agora, vou virar a página do século XX, para encontrar com os
beata Mocinha: romeiros do século XXI, a partir de pesquisas acadêmicas realizadas
na primeira década do mesmo que, a despeito de previsões secula-
Foi uma beata, a Maria Mocinha, que tinha sido rizantes, vive uma “explosão de religiosidade” (MARTELLI, 1995).
mulher do bispo. Era mãe dum menino mudo
mas ninguém sabia, viu? Ainda se dizia uma jo-
vem e ficava entre as outras jovens como se fos- 2.3 A devoção ao Padre Cícero e o (quase) esquecimento da
se igualzinha a elas. Meu Padim disse: “Filha, eu beata do milagre
conheço teu segredo”. Mas ela negava a contar o
pecado para ele. Aí na hora da comunhão ele deu
a hóstia a ela e transformou-se em sangue. Depois Para identificar o lugar de Maria de Araújo na narrativa dos romei-
ela foi dar queixa ao bispo. Aí o bispo contou pro ros na primeira década do século XXI, fiz uma busca nas dissertações
papa que o meu Padim tinha sido amante daquela e teses do período (2000-2010)39, utilizando os seguintes descritores:
mulher. Aí o papa mandou chamar meu padim a fenômeno religioso em Juazeiro; Padre Cícero e Maria de Araújo. As
Roma. Lá tinha que abrir uma porta bem grande
que nunca tinha sido aberta. E por detrás daque- produções acadêmicas encontradas na Biblioteca Digital Brasileira de
la porta tinha o menino mudo que era filho do Teses e Dissertações (BDTD) foram: O Meio do Mundo: Territórios do
bispo. “Quero que você faça esse menino falar”, Sagrado em Juazeiro do Padre Cícero, (Régis Lopes Ramos); A Construção
o papa disse para meu Padim. “Que o bispo diz da “Cidade da Cultura”: Crato (1889-1960) (Antônia Otonite Oliveira);
que você pe pai dele”. Pois bem, meu Padrim ba- Narradores do Padre Cícero: do Auditório à Bancada ( Marinalva Vilar de
teu na frente do menino três vezes. “Menino, ele
disse, diz pra sua santidade o nome do seu pai”.
Lima); O Joaseiro Celeste: Tempo e Paisagem na Devoção ao Padre Cícero
(Francisco Salatiel de Alencar Barbosa); O Discurso Religioso na Litera-

revisão
O menino disse: “Meu pai é o bispo de Fortaleza
e minha mãe é a beata Maria de Araújo”. Pou- tura de Cordel de Juazeiro do Norte (Claudia Rejanne Pinheiro Grangei-
co depois, o bispo mandou as tropas dele contra ro); Representações Sociais do Padre Cícero para os Moradores da Colina do
Juazeiro. Deu-se uma grande guerra em que meu Horto ( Maria de Fátima de Morais Pinho); Um Beato Líder: Narrações
Padim foi vencedor. (SLATER, 1986, p.260) Memoráveis do Caldeirão (Sávio Cordeiro); Para Onde Sopra o Vento: a
Igreja Católica e as Romarias de Juazeiro do Norte (Renata Marinho Paz);
As histórias se entrecruzam e o tempo foi se encarregando de tra- (A Sociologia de um Padre e a Antropologia de um Santo (Antônio Mendes
zer novas “verdades” e esquecimentos. O modo como os romeiros da Costa Braga); O Teatro de Deus: as Beatas do Padre Cícero e o Espaço Sa-

revisão
concebiam a beata foi marcado pela relação ambígua mantida com a
Igreja. Se os primeiros, por um lado, jamais aceitaram as interdições 39 Na referida década, realizaram-se dois simpósios internacionais sobre o Padre Cícero
impostas às suas devoções e às romarias, por outro, foram sendo cap- (o terceiro, em 2004 e o quarto, em 2010), demonstrando a efervescência e amadure-
turados pelas práticas pastorais que, sutilmente ou não, foram “puri- cimento das pesquisas com a temática do fenômeno religioso em Juazeiro do Norte.
Tanto nos trabalhos apresentados naqueles eventos, quanto nas dissertações e teses pro-
ficando” os rituais com traços ciganos, indígenas, africanos e do cato- duzidas, a figura de maior destaque foi o Padre Cícero. Porém, houve uma ampliação
licismo luso. Com a consolidação da devoção ao Padre Cícero e com a temática em torno de outros personagens, surgindo questionamentos sobre a ausência
vinculação das romarias a Nossa Senhora das Dores, a beata Maria de de Maria de Araújo na história do Juazeiro, com reflexões amparadas nas teorias de
gênero e nos estudos sobre africanidades. Nas referidas produções a beata praticamente
Araújo ficou na penumbra, sem ser esquecida, conforme veremos no ficou fora de cena.

118 119
grado de Juazeiro, (Edianne Nobre); Entre Chegadas e Partidas: Dinâmicas doutrinário, assim se expressou o autor de O Sertão das romarias sobre
das Romarias em Juazeiro do Norte (Maria Paula Cordeiro); Experiências esta via conscientizadora: “[...] ao mesmo tempo que abria um novo
formativas dos romeiros do padim Ciço: entre rezas, ritos e curas (Anair Ca- campo de compreensão, também, fechava outro ao descartar o mito
valcante). e considerá-lo como lenda, superstição ou simplesmente uma força
Para as considerações tecidas no presente item, selecionei as te- primitiva de conhecimento que era atribuído à mentalidade mágica
ses que privilegiaram as narrativas dos romeiros, reconhecendo-os dos romeiros” (STEIL, 2005, p. 16).
como forças sociais fundamentais para a produção de conhecimento Todos os trabalhos aqui considerados voltaram-se para a amplia-
sobre o fenômeno religioso em Juazeiro do Norte40: Barbosa (2007), ção da compreensão sobre a temática do Juazeiro e do Padre Cícero.
Cordeiro (2011), Paz (2011) e Ramos (2012). Com diferentes aborda- Não havia, portanto, uma intenção em aproximar as lentes para com-
gens, todos realçaram o potencial epistemológico das vozes romeiras preender a figura de Maria de Araújo. Na década aqui considerada,
eivadas de sabedoria (dimensão existencial e profética) e de riqueza este interesse estava restrito às pesquisas de Maria do Carmo Pagan
simbólica (dimensão afetiva e mítica). Tais estudos seguem a trilha Forti e de Edianne Nobre. Outros pesquisadores, romancistas e me-
aberta por Steil (1996), cujas chaves de leitura procurava organizar morialistas, sobretudo de Juazeiro, também escreveram sobre Maria
o material coletado e produzido em campo para a elaboração de de Araújo: Daniel Walker, Fátima Menezes, Nilce Costa e Silva, Rai-
um quadro analítico em que a relação entre mito e razão se coloca- mundo Araújo e padre João Carlos Perini, dentre outros.
va como uma possibilidade de lançar luzes sobre as transformações Paz (2011) inicia sua tese fazendo um recuo ao século XIX, a fim
do catolicismo, a religiosidade popular e as tensões entre a dimensão de compreender a formação sociorreligiosa do Cariri, para, em segui-
de espontaneidade e resistência das romarias com os processos de da, analisar os modos de relacionamento entre Igreja Católica com as
institucionalização das mesmas. Ao identificar as potencialidades das romarias e os romeiros. Da repressão à institucionalização das roma-
histórias contadas pelos romeiros como fonte privilegiada de conhe- rias, muitas tensões e processos de acomodação e ressignificações, de
cimento, definitivamente se excluía o estigma do fanatismo, rumo a

revisão
ambos os lados, foram analisados. Desde o fato inaugural de 1889,
uma perspectiva compreensiva em relação à lógica inerente às devo- são tratados os confrontos entre uma Igreja que se romanizava e as
ções e rituais romeiros. Para esta geração de pesquisadores, tratava-se práticas devocionais do catolicismo popular herdadas da colonização.
de investigar os significados e sentidos das romarias e a inscrição da
Com acurado senso analítico, a autora procura compreender as
experiência sociorreligiosa na visão de mundo dos sujeitos que não
disputas simbólicas em jogo no Cariri do século XIX, até chegar aos
apenas resistem às determinações normativas e ortodoxas da hierar-
“novos ventos”, a partir dos sinais de mudança de relacionamento da
quia eclesiástica, mas, também, as incorpora, ressignificando-as.
Igreja Católica com o catolicismo popular, advindos do Concílio Vati-
Realço, ainda, outra marca da produção de Steil presente nas pes- cano II (1962-1965), sobretudo depois das Conferências de Medellín

revisão
quisas selecionadas: a relativização da proposta de “conscientização” (1968) e Puebla (1979). No capítulo quinto do referido livro, a antro-
posta pela Pastoral Popular a partir da década de 1970, na esteira da póloga “[...] descreve e analisa as lentas transformações de setores da
organização das Comunidades Eclesiais de Base e da disseminação igreja em relação às romarias, e a sistematização de trabalhos pasto-
dos postulados da Teologia da Libertação. Sobre esse direcionamento rais promovidos pela equipe de romaria da Paróquia de Nossa Se-
nhora das Dores, precursora do desenvolvimento destas ações” (PAZ,
2011, p. 10-11), onde aqui se destaca a liderança dos padres Murilo
40 Todas as teses selecionadas foram publicadas, daí porque fiz referência às mesmas de Sá Barreto e José Alves de Oliveira e das irmãs agostinianas An-
utilizando as datas de suas publicações.

120 121
nette Dumoulin e Ana Tereza Guimarães. Também são registrados os século. Ela não foi devidamente focada... ainda permanecia na pe-
esforços das Filhas de Maria e dos padres salesianos no acolhimento numbra!
aos romeiros que, durante quase sete décadas, foram hostilizados ou Em seguida, trago as narrativas dos sujeitos ouvidos por Cordei-
esquecidos pela Diocese do Crato e pelos sacerdotes das localidades ro (2011), cujo interesse era compreender a multiplicidade de moti-
em que viviam as devotas do Padre Cícero e também da beata Maria vações dos romeiros para as romarias. A pesquisadora questionou a
de Araújo, até, pelo menos, a década de trinta. Veremos, a seguir, que ideia abstrata de romeiro demonstrando que não há, entre os parti-
a devoção inicial à beata foi esquecida, fortalecendo-se as primitivas cipantes das romarias, uniformidade de interesses, intenções e moti-
devoções a Nossa Senhora das Dores e ao Padre Cícero. vações. Escolhi este conjunto de narrativas por dois motivos: alcance
Ainda segundo Paz (2011, p. 217), a orientação era “[...] ignorar temporal – abarcando o período compreendido entre 2004 e 2009 – e
o movimento e o tipo de religiosidade vivenciada em Juazeiro. Nes- amplitude temática, pois inclui representações míticas sobre o Padre
te contexto de desprezo e omissão por parte do palácio episcopal, Cícero e visões mais secularizantes que o definem como homem em-
qualquer trabalho realizado com os romeiros, tendia a ser conside- preendedor.
rado como instrumento de fanatização”. Vemos, ainda, no capítulo Começo trazendo as narrativas míticas remanescente dos primei-
seguinte, as mudanças ocorridas na Diocese do Crato, desde as inicia- ros romeiros:
tivas pastorais do chamado “bispo romeiro”, Dom Fernando Panico.
As elaborações de Paz elucidam as mudanças no catolicismo e vão
[...] Meu padrinho Cícero, ele é uma das três pes-
dar suporte teórico para a compreensão sobre as interpenetrações soas da santíssima Trindade. Não sei se é o pai,
entre a Igreja oficial e a religiosidade popular. Com esta base, po- não sei se é o filho... Que ele falava a meu pai
demos melhor aquilatar os movimentos de rupturas e continuidades quando ele era pequeno que [aquilo que o] pai
nas romarias a Juazeiro do Norte. Se, ao longo de 70 anos, a tática de fazia não desmanchava, mas o que ele fizesse, ele
impedir, reprimir ou ignorar as romarias e a devoção ao Padre Cícero desmanchava. Dizia que ele era uma das pessoas

revisão
da Santíssima Trindade, que Juazeiro ia chegar a
não funcionou, agora, premida pelas novas exigências de relaciona- ser uma Jerusalém e Juazeiro é uma Jerusalém!
mento com a vida moderna que trouxe no seu bojo a secularização, O Horto das Oliveiras, tem o Santo Sepulcro. Eu
por um lado, e a expansão do pluralismo religioso de outro, as ten- digo porque tenho certeza! Quando eu grito por
sões internas da igreja em Juazeiro do Norte vão se aprofundar entre ele “Valei-me meu Padrinho Cícero!” ele me vale.
religiosos e leigos que querem “domesticar” as experiências religiosas Mas eu chamo por ele como se fosse Jesus Cristo
dos romeiros, sob a bandeira da evangelização, impedindo o que eles que morreu na cruz. Pense! O que ele passou, o
que ele sofreu e que ainda hoje nós estamos lu-
consideram excessos devocionais, não compatíveis com uma Igreja tando pela justiça que vai ser feita. Ele dizia: “A

revisão
moderna e aqueles que acolhem as manifestações romeiras como le- igreja me tira e a igreja me bota dentro da igreja”
gítimas e sinais de Deus. e isso nós estamos esperando com fé no amor do
Em todas as pesquisas selecionadas, encontrei narrativas sobre a pai porque ele é uma das três pessoas da Santíssi-
ma Trindade! (CORDEIRO, 2011, p. 34)
inequívoca santidade do Padre Cícero. Volto a afirmar que nenhuma
das pesquisadoras aqui consideradas, diferentemente de Slater, citada
no item anterior, perguntou diretamente sobre a beata. Assim, não é Se Juazeiro é o que é, é por conta dele, que aben-
çoou e disse que aqui era a Terra da Mãe de Deus.
correto afirmar que a beata estava totalmente esquecida na virada do [...] Os mais velhos é que conta os exemplo e sabe

122 123
que aqui num era nada. Foi ele que botando seus pelejar pr’eles ir pra igreja [...] Zé mesmo, aquele
pezinhos nessa terra fazia tudo acontecer. E tem menino ali, tava falando hoje de manhã com uma
mais, ele sabia de tudo, tudo que ia se passar e mocinha que nem a senhora, respondendo as
escrevia tudo no livro pra deixar pra nós se pre- questão e eu fiquei olhando assim, um cabra da-
parar. [...] Quando ele morreu, deram fim [ao li- quele que passa a romaria mais bebo que tudo, di-
vro]. Mas o povo que tinha visto e conhecia ele foi zer que é romeiro! Fica todo tempo com gaiatice,
contanto, contando e por todo canto o povo quer vai pro banho, é a noite todinha pelo mundo. [...]
ele de padrinho, que ele não é padrinho só, que Eu já fui novo e sei como é, mas tinha um respeito
ainda é pouco para tudo que ele é. (CORDEIRO, com as coisas de Deus. Eu digo a senhora, pela
2011, p. 137) hóstia consagrada, eu nunca vim aqui pra não ter
aquela coisa que pesa no coração quando a gente
entra na igreja. Esse povo, Ave Maria! Não sente
Mesmo entre as pessoas mais antigas que tiveram acesso a essas é nada! Entra na igreja, parece que tá numa fei-
narrativas míticas, a figura da beata não foi incluída. O mesmo ocor- ra, dá uma voltinha, fica por ali fazendo cera um
reu entre aqueles que trouxeram narrativas saudosistas e lamentaram pouquinho e vai simbora e pronto! (CORDEIRO,
a perda da pureza e sentido devocional das romarias de antigamente. 2011, p. 250)
Estas atitudes ligadas a uma representação mais devocional das pe-
regrinações romeiras estavam presentes, sobretudo, nos narradores Um traço fundamental nas narrativas é a força da transmissão in-
mais velhas: tergeracional. Vemos que as histórias que estes romeiros ouviram de
seus pais já excluíam a figura da beata e rememoravam apenas os
[...] A romaria é aquela que meu Padrinho Cíce- feitos do Padre Cícero:
ro disse que era para fazer: “Visitar as igrejas”...
Ele disse [que] quem viesse pra aqui que fosse de

revisão
[...] Pai só falava mal do Padre Cícero. Já tinha
carro no Horto, não dissesse que veio para a ro- chamado ele até de macaco. Mas vivia sendo
maria, veio para o Juazeiro, mas não para a roma-
perseguido nas Alagoas. O irmão dele foi morto
ria. A romaria é você vim pra aqui e ir daqui pro
quando disputava para vereador numa eleição.
Horto de a pé, fazer [rezar nas] as 12 estações, e
As terras dele foram tomadas por um coronel.
tem deles de ser [deslocar-se] de joelho [...] Eu
Pai era dono de umas terras muito boas e tam-
mesmo sou testemunha, passei por um [homem] bém ia morrer se tivesse ficado lá. Então veio pro
e quando cheguei lá no Horto ele chegou depois Juazeiro porque diziam que aqui era muito bom
ajoelhado [deslocando-se de joelhos]. (CORDEI- e mais fácil pra viver. Quando chegou foi ver o
RO, 2011, p. 232)

revisão
Padre Cícero. Todo mundo que chegava ia falar
com Padre Cícero para ser encaminhado. Naque-
Só vejo dizer que a romaria tá crescendo e tá la época os romeiros traziam loucos para o Padre
mesmo. É muita gente, muito movimento, muito Cícero curar, expulsar a loucura pra fora. Quan-
vendedor, muita coisa pra comprar [...] as igreja do pai chegou tinha uma roda de gente em torno
num enche mais como antigamente, vejo muita do Padre Cícero que olhava pra uma louca que
gente é na rua. [...] A romaria tá crescendo, mas os romeiros tinham trazido. Então ele [o padre]
não é pra dentro da igreja. Tem gente que vem, e olhando pra louca começou a dizer se ela lembra-
esse povo novo ainda é pior, que a gente precisa va das palavras maldosas que ela tinha dito sobre

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ele. A família da louca dizia: “Não meu Padim, ela meiros agente vindo aqui no Juazeiro a gente sai
nunca disse essas coisas”. E ele tornava a repetir santificado, deixa os pecados. Os pecados que a
as coisas e ia dizendo tintim por timtim o que pai gente fez durante o ano [deixa] aqui [e] a gen-
dizia dele olhando para louca. Pai disse que suava te volta zerado, volta zero, volta sem pecado ne-
e se arrupiava ouvindo aquilo. Padre Cícero tinha nhum. [...] É uma purificação. [...] [A gente vem]
um mistério com ele, entendia dos mistérios. [...] pra se organizar, é... Para diminuir os pecados,
Aí pai ficou com remorso e pediu perdão ao Pa- acho que a gente vindo aqui é três dias de céu. A
dre Cícero e uma orientação pra sua vida. Padre gente fica no céu três dias, depois volta pro tra-
Cícero disse que ele viesse morar no Juazeiro, que balho, vai e começa tudo de novo. (CORDEIRO,
aqui ele criava a família em paz. (CORDEIRO, 2011, p. 147)
2011, p. 135)
[...] Mas é que aqui acho que junta tudo. Assistir a
O Juazeiro do Norte é representado como lugar sagrado e esta missa aqui dá gosto... É tudo: o sermão dos padre,
os canto, a acolhida, o montão de gente tudo com
condição foi dada por Deus através do padrinho, daí porque é um fé, tanta beleza! [...] Isso chama os santos pra per-
grande sofrimento quando eles não conseguem ir para a romaria: to, aqui é quente, mas não é de calor somente, é
quente de Deus [...] Nosso Senhor e os santos tão
[...] é um desengano quando não vem de perder em todo canto, mas aqui eles demorar mais [risos]
de ver a festa, os andor, as procissão, a falta do e o povo sente isso. (CORDEIRO, 2011, p. 149)
povo tudo junto, de meu Padim, só de pensar em
num vim, vendo tudo lá saindo dos ônibus, nos ca- A cada viagem, mesmo enfrentando todas as dificuldades do per-
minhão... Ave Maria! (CORDEIRO, 2011, p. 95).
curso, há uma renovação da fé pelas experiências vividas intensa-
mente. As crenças se fortalecem pelo compartilhamento das graças

revisão
Ave Maria! Nem acredito que estou aqui. Nossa Se-
obtidas. Todo amparo recebido e toda dificuldade superada são enca-
nhora me guarde as vistas pra eu nunca esquecer,
pra eu num esquecer que tive no céu. Eu não sabia rados como intercessão do Padre Cícero. Tudo é milagre!
que era assim, agora eu sei [...] Até o ar é outro
aqui, eu num tô pisando [no chão]. [...] Se eu mor- Zé de Noca, num sei não, nunca tinha visto um
rer hoje, morro feliz. (CORDEIRO, 2011, p. 148) caba mais desaprumado que nem aquele. Tinha
hora que era bebo pelos canto, num servia pra
nada. Dona Toinha, coitada, só fazia rezar. Teve
A força da experiência envolve a pessoa integralmente, configu- uma vez que ele ficou foi mais de mês, sem dar

revisão
rando a romaria como um conjunto ritualístico a permitir experiên- conta de nada, só na cachaça. A cachaça era a
cias existenciais, ou seja, “[...] que agitam as coerências de uma vida, e comida e a bebida. Nós teve um dia que se juntar
até mesmo os critérios desta coerência” (JOSSO, 2010, p. 48). As nar- pra dar um banho nele, podre que nem um
rativas falam da intensidade das experiências coletivas e individuais cachorro, de mijo e tudo. Pois Dona Toinha, a
nas romarias que tocam, formam e transformam comportamentos, bichinha, num tinha sossego e fez uma promessa
com Meu Padim e trouxe ele. Por sorte ele num
afetos e valores, consolidando compromissos com uma vida mais ple- deu trabalho... Ora, por sorte, nada! É a força de
na e santificada: Meu Padim que quando você vem chegando no
É porque eu acho que durante o período dos ro- Juazeiro, ele já tomou de conta e você tendo fé aí

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é que é certo mesmo porque se nos outros canto Conversando com a irmã Annette Dumoulin, da Pastoral da Ro-
ele tem poder, no Juazeiro é que ele mesmo. maria, e que na década aqui considerada esteve em permanente con-
(CORDEIRO, 2011, p. 166) tato com a “nação romeira”, indago sobre a ausência de narrativas
sobre Maria de Araújo e acordamos sobre a eficácia das medidas para
Eu tive um problema no meu joelho direito e fiquei colocá-la no esquecimento, mas, por outro lado, identificamos “rotas
quase aleijada. Passei cinco anos andando quase
de fuga” que perpetuaram sua memória, em alguma medida. Veja-
me arrastando. Minha filha me ajudando. Aí eu
fiz uma promessa, muita gente dizia: “faça uma mos um bendito feito por Mãe Dodô41 e que continua sendo cantado
promessa sacrificosa”. Aí eu fiz uma promessa. pelas romeiras que praticam a dança de São Gonçalo e participam das
Aí eu vim pra Juazeiro nos pés de meu Padrinho ações da pastoral para organizar as romarias:
Cícero, na estátua lá em cima, no Horto. Eu fiz
uma promessa que se eu não precisasse mais
operar e ficasse boa, um ano depois eu viria aqui, Bendito, louvado seja, louvores da santa Cruz.
que tá agora completando um ano, completou Louvo ao meu padrinho Cícero e a Maria de Araújo.
ontem um ano. Eu vinha vestida na roupa de
Nossa Senhora das Dores e na Bata branca de Louvo ao meu padrinho Cícero e a Maria de Araújo.
meu Padrinho Cícero, era a roupa que eu usava e Maria de Araújo foi ao céu e ficou lá,
ia em todas as igrejas do Juazeiro de pés descalços
e assim tô fazendo, tô pagando [...]. (CORDEIRO, Pedindo a Nossa Senhora pra o mundo não se acabar,
2011, p. 179) Pedindo a Nossa Senhora pra o mundo não se acabar.

Nas representações registradas por Cordeiro, a santidade do Padre Maria de Araújo foi ao céu e tornou vim,
Cícero é reafirmada pela repetição das narrativas que ouvem de seus Foi chegando e foi dizendo: que este mundo é um sem fim.

revisão
familiares e pelas graças alcançadas. A socióloga, em apenas uma passagem
Foi chegando e foi dizendo: que este mundo é um sem fim.
menciona Maria de Araújo, trazendo uma afirmação importante para
aquilatarmos o lugar da beata na narrativa de seus sujeitos: Maria de Araújo recebeu a comunhão,
A hóstia virou em sague, ela ganhou a salvação.
Para parte do público romeiro, aqueles com A hóstia virou em sague, ela ganhou a salvação.
quem mantive contato, as muitas versões sobre
o fenômeno ocorrido com a beata, parecem não
importar. O que consta substancialmente nas Maria de Araújo fez uma separação,

revisão
memórias e narrações é a construção do Padre Quando recebeu a hóstia na mesa da comunhão.
Cícero como personalidade dotada de poderes
sobrenaturais, como vidência e cura; como santo Quando recebeu a hóstia na mesa da comunhão.
intercessor, como uma das pessoas da santíssima Quem esta reza, rezar, sexta-feira da paixão,
trindade cristã – Pai, Filho e Espírito Santo. Não
há uma quarta pessoa. Mas a representação
encarnada de uma das expressões de Deus. 41 Figura de destaque entre os antigos moradores, Mãe Dodô faleceu em 28 de agosto
(CORDEIRO, 2011, p. 34) de 1998 e, desde então, é considerada santa e é venerada na cidade de Santa Brígida,
na Bahia.

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Nossa Senhora defende de raio onde os cristão vão. memória sagrada/profana da beata.
Quando iniciava a fase exploratória da pesquisa, procurei
identificar romeiros mais antigos, na esperança de encontrar alguém
Quem esta reza, rezar, sem faltar dia,
que, pelo menos, possuísse algum familiar que tivesse conhecido ou
Nossa Senhora aparece antes da morte três dia. convivido com a beata. Identifiquei quatro senhoras e um senhor,
Nossa Senhora aparece antes da morte três dias. todos moradores do Horto: Dona Rosinha (89 anos); Dona Luísa (94
Oferecemo este bendito ao senhor que está na Cruz, anos); Dona Isaura (92); Dona Alzira (96) e o Sr. Evilásio (87 anos). As
Intercessão de meu padrinho Cícero e a Maria de Araújo. senhoras foram entrevistadas em suas próprias residências e o senhor
Evilásio foi entrevistado na casa da professora Dorinha, também
Intercessão de meu padrinho Cícero e a Maria de Araújo.
residente no Horto, duas horas antes de ter início, na casa desta, a
Renovação do Sagrado Coração de Jesus, no dia 17 de janeiro, data
Fortaleceu-se em mim a intuição que me orientou desde o início da de morte da beata. Ocorreu um ponto em comum nas entrevistas:
pesquisa, de que Maria de Araújo ficou guardada em um comparti- nenhuma delas quis falar diretamente da beata. Precisei usar todo
mento bem escondido do coração dos romeiros e que as portas deste tipo de estratégia para conseguir que me falassem o que seus pais,
compartimento estão se abrindo, tendo três aliados fortes: a paciência familiares ou conhecidos informavam sobre a beata. Dona Rosinha,
das pessoas simples, a arte e os movimentos sociais! comemorando o fato do próprio padre da Igreja de Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro ter dado um “viva” para a beata Maria de Araújo,
2.4 O paulatino retorno da santa entre devotos, artistas e mili- falou: “Quando menina vi diariamente o Padre Cícero dar bênçãos
tantes dos movimentos sociais do Cariri aos romeiros na janela da casa dele na Rua São José. Eu via ele de
longe... ele não queria que falassem sobre a beata... era obediência!”
Entrevistei Dona Rosinha no dia 26 de janeiro de 2017. Ela era42

revisão
E como Maria de Araújo é vista pelos romeiros de hoje? Tenho uma das figuras mais queridas da ladeira do Horto. Tinha 89 anos e
clareza que a resposta a esta indagação exige um esforço de pesquisa uma trajetória de muito sofrimento e de fé. Dona Rosinha era, como
futuro a ser realizado por um coletivo bastante entrosado, do ponto as demais romeiras de sua geração, uma mulher forte e sábia.
de vista teórico e metodológico. O que tenho visto na espacialidade
das romarias é o seguinte quadro paradoxal: desconhecimento sobre
a beata do milagre, sendo ela confundida com a beata Mocinha, na Eu morava em Juazeiro e trabalhava lá na baixada do pé da serra do Crato,
maioria das vezes, por um lado, e, por outro, o ressurgimento de uma trabalhava na roça, mas eu ia só por boniteza, meu pai não queria que eu
pegasse no cabo de uma enxada, meus irmãos ficavam trabalhando e ele me

revisão
devoção que intenta colocá-la no lugar de santa.
Neste item, trago narrativas de romeiros mais antigos, que deixava quebrando uma espiga de milho, mas tive de casar muito cedo, aí o
ainda moram na ladeira do Horto, e de peregrinos de Alagoas, sofrimento caiu na nega veia! Diz que toda Rosa é enxerida? Eu fui uma
Pernambuco, Piauí e Ceará, abordados por mim, no espaço de enxerida... não tinha nem 15 anos quando eu me casei, mas, graças a Deus,
acolhida aos romeiros, montado pela Prefeitura Municipal de vivi muito bem, pobre, mas rica nas graças de Deus. Tive 5 filhos, todos os 5
Juazeiro, ao lado da Basílica de Nossa Senhora das Dores, na
Romaria de Nossa Senhora das Candeias de 2018. Também registro
as manifestações artísticas e do movimento sociocultural a evocar a 42 Quando escrevia este capítulo, Dona Rosinha foi para junto do Padim Ciço. No dia
do seu sepultamento recebeu todo o carinho das centenas de pessoas que a amavam.

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Nosso Senhor tirou, criei da segunda mulher do meu pai 8, e hoje só tem 1. pedindo intercessão”.
O marido foi simbora e eu fiquei aqui sozinha mais meus santos, mais Deus, Ela nasceu em Palmeira dos Índios, Alagoas. Filha de romeiros,
Nossa Senhora e meus vizinhos, porque é seja feito a tua vontade, não a minha. chegou a Juazeiro com 6 anos de idade:
Depois de 18 anos meu marido voltou. Alegre ele saiu e alegre eu recebi ele,
mas nunca briguei com ele ou apanhei dele não, era uma coisa que era para
ser assim mesmo. Eu tive uma conversa com ele lá na rua (centro), eu morava Meus pais não falavam sobre a beata. A romeirada começou a falar sobre a
na rua nessa época. Eu disse: “Ficou tudo normal, mas eu não sou aquela de beata quando o sangue precioso foi derramado aqui na boca da beata. Foi
outra vez, não, eu não sou aquela Rosa que você jogou na cozinha dos outros aí que o povo veio para o Juazeiro. Quando meu pai soube que esse sangue
não”. Eu tive uma conversa uma noite todinha com ele sobre isso, num era só precioso foi derramado aqui, foi quando a gente veio morar aqui. Foi esse
chegar e conversar não, agora ia ser diferente. Cuidei dele até quando ele saiu sangue precioso que chamou essa romeirada todinha para aqui. Meu Padre
para o cemitério, vai fazer 20 anos agora. Sobre meu trabalho, eu fiz renda, fiz Cícero nunca chamou ninguém para aqui, em todo esse tempo que estou aqui,
chapéu e fiei, aprendi essas 3 coisas, e aí minha mãe perguntou o que eu queria nunca soube que o Padim chamou ninguém para morar aqui; quem chamou
dessas 3, e eu escolhi a palha, porque a palha ganhava logo o dinheirinho e foi a Mãe de Deus. Quando souberam do sangue precioso derramado nessa
dava para comprar o pão. A trança era ligeira, eu fiquei na trança do chapéu, terra, aí haja o povo vir de lá para o Juazeiro, mas ele mesmo nunca chamou
nunca ninguém me assustou porque eu era sozinha na casa, eu ficava com não, nunca chamou meu pai nem a ninguém.
meus filhos, menino morrendo por falta de médico, sem remédio para dar, era
uma proeza grande e a nega tremeu, mas tô aqui vivendo. Já fiz chapéu de Dona Rosinha gostava de dizer que conheceu o Padre Cícero e que
palha, mas agora não faço mais porque a vista tá ruim. o via aconselhando e abençoando as pessoas:

Ouvi-la foi um deleite, pois ela falava com a pureza e graciosidade Conheci, mas nunca cheguei a falar com meu Padre Cícero não, porque,

revisão
de uma criança! Quando indaguei se considerava a beata como uma quando eu cheguei aqui, ele já era velhinho, só que lá na casa do meu Padre
santa, ela abriu um sorriso de intensa felicidade e afirmou: “Ela é Cícero, se você fosse pedir um casamento, fosse pedir para comprar uma casa,
santa, pois recebeu o sangue aprecioso de Jesus. Não peço nada a ela, fosse pedir para viajar, aí você podia entrar, mas muita gente assim, muita
mas sei que ela é santa. Minha maior felicidade neste finalzim de vida velhinha da cabecinha branca. Todas as noites ele abençoava a todos na casa
é dar vivas a ela quando acaba a missa. Esta é uma grande felicidade! dele, saía na janela e dava a bença, mas entrar mesmo na casa dele, eu entrei
Ela está aparecendo agora”. É necessário descrever a expressão de uma vez, porque casou um noivo e meu pai foi testemunha nesse dia, e foi
triunfo da dona Rosinha: seu corpo franzino se agitou e seus braços se receber a bênção do meu Padim Padre Cícero, aí quando chegou lá na porta,
ergueram, repetindo a expressão “viva!”. Ela afirmou, ainda: “Minha que a beata Mocinha abriu a porta, ela já disse que “menino aqui não entra”,

revisão
alegria foi grande em ver o quadro do meu Padim entrando na igreja e só tinha eu, ia ser complicado eu ficar do lado de fora, eu não ia ficar do lado
no dia que mostraram a carta do Santo Padre, mas aquilo eu já de fora não, quando eu cheguei já dentro, ele já estava, Padre Cícero deitado
esperava. Fiquei mais feliz foi quando dei viva para a beata dentro da em uma redinha, os noivos chegaram, ajoelharam, ele deu a bênção, e ele disse
igreja!”. Quando perguntei por que ela não recorria à santa Maria de “Já casou minha amiguinha?” e ela respondeu: “Já, meu Padim, vim receber a
Araújo nos momentos de aflição, ela ficou reticente e disse não saber sua bênção”. Era um povo muito rico, casa muito rica, aí ele fez aquela bênção
explicar. Após alguns segundos, sorriu e disse: “Sou muito apegada neles dois, e aí saímos. Foi a vez que eu entrei na casa dele, vendo ele como eu
ao meu Padim e a Nossa Senhora das Dores, recorro muito a eles, estou vendo vocês aqui, mas para pegar na mão dele, eu não peguei, fui na

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casa dele de novo, no dia que ele tava na janela mais um São José, a gente disso ela sofreu e sofreu muito, aí eu chamei ela de santa, chamo, porque só um
entrava por uma porta e saía pela outra, eu morava lá na baixada, só vinha santo sofre para poder ser chamado de santo, a força vem do sofrimento que o
aqui de 8 em 8 dias. Servi muita mesa para o povo aqui para o meu Padin fez santo, perseverou e sustentou sua fé. Os romeiros não falam muito sobre ela
Ciço. Aquela madeira da rua da casa de São José, meu pai carregou telha, porque o povo não conheceu ela. Muitos deles são novatos, tão vendo a história
tijolo, para construir aquela casa. Todo domingo depois da missa das 7 horas agora, ela estava abafada. Quando eu vi meu Padim Ciço no caixão, ninguém
os homens iam mexer naqueles material, quando não era no São José, iam dava importância a ele não, ninguém falava nele, era tudo caladinho, não
para a casa dele, ele morava ali, às vezes saía às 10 horas, a gente ia receber podia nem botar o nome dele nas crianças, aí quando é hoje, é Ciço Padre, é
a bênção, junto daqueles homens que carregou aquele material. Uma vez eu cheio de Ciço, mas, naquela época era proibido. Uma coisa que eu me admirei,
saí mais o meu irmão, ele tinha uns 12 anos na época, a gente foi receber a cheguei a chorar nesse dia, com 50 anos que ele morreu, que juntaram ali uns
bênção também. Meu pai trazia arroz, feijão, meu pai era cargueiro e trazia 50 padres, arrochado mesmo, fazendo ala, mode os padres passar e ir celebrar
essas coisas para lá, e meu padim dizia assim: “Vá deixar lá no Maria, Jesus a missa, quando eu cheguei lá, e vi aqueles 50 padres, eu fiquei pensando,
e José”. Quando meu pai chegava lá, tava uma ruma de moças trabalhando, por que no dia que o caixão chegou não tinha desse tanto de gente, e agora eu
umas fiando, outras fazendo renda, outras fazendo chapéu, outras bordando, vejo esses 50 padres dando valor ao meu Padim Ciço? Aí eu chorei de alegre,
costurando, as moças estavam tudo trabalhando, e quando chegava a data por conta do Senhor estar me dando esse momento, aqueles 50 anos de alegria.
de um rapaz casar com uma delas, meu Padrinho deixava, elas pediam a ele A história mesmo que eu vejo, veio foi ao do Crato, a história saiu daí, de
e se casavam, as mesmas criaturas que essas mulheres tomavam de conta, se ninguém dar valor a ele, foi daí, mas em Roma não, Roma não botou ele para
casavam, se quisesse casar, se casava. fora não, ele foi em Roma, trouxe ordem, e de Fortaleza, sumiu, mas lá não
era para ele ter ido, trancaram ele quando foi lá, houve um trancamento que
ele não celebrava nem aqui e nem em canto nenhum. Meu Padim Ciço é santo!
Após lembrar que seu padrinho recomendava que em tudo
Eu digo com toda a fé que eu tenho em meu coração, porque ele viveu nessa
tivessem paciência, ela falou de Maria de Araújo como uma santa que
terra, estudou com tanto trabalho, e não continuou a vida dele de sacerdócio,

revisão
está aparecendo agora. Ela mostra que “para tudo, há seu tempo”:
essa dor ele levou, e passou 90 anos aqui recebendo nós, todo dia, indicando
tudo o que era bom, e nunca mais ele foi embora, até para batizar, ele dizia
Eu não conheci a Maria de Araújo porque ela morreu em 1914 e eu sou que era preciso pegar os documentos, n’era só batizei tá batizado não, tinha
de 1920. O que as pessoas falavam era que ela era uma pessoa da igreja, que apresentar e marcar direito. Agora também já estão reconhecendo a beata
sofredora. A beata Maria de Araújo era uma pessoa que só vivia de reza, Maria de Araújo... Já tão reconhecendo... o nome dela tá saindo e é muito,
cuidando das coisas e foi o Padre Cícero que criou ela. Para mim, o que ela agora, tem que ver o milagre que ela já começou a apresentar. Na música que
sofreu, depois do sangue, que a hóstia virou sangue na boca dela, de lá para fala da beata Mocinha, tem que ela é santa, mas ela não é santa. A santa que

revisão
cá, foi quando ela sofreu muito, porque eles queriam que ela negasse, e ela o povo tá começando a falar dela é a Maria de Araújo, porque essa daí tem
morreu e não negou, é ainda onde entrou a fé. Ela nunca negou que o sangue coisa para contar.
saiu da boca dela, ela sustentou, apanhou de palmatória, sofreu muito, boa
parte da história dela foi de muito sofrimento, mas ela morreu com aquela fé
Curioso é que, apesar de reconhecer a santidade da beata, ela
sustentada, não mudou. De beata santa, só tinha a Maria de Araújo... Da
afirma que, nas suas preces, só recorre ao “meu Padim Ciço”. A menção
hóstia santa, somente ela. Só ouvi falar nela mesma, nunca ouvi falar de
à beata só é feita quando a reza termina. Aí é hora de dar o viva à santa
outra beata que era santa não. Até hoje, para mim, a beata é santa, porque foi
Maria de Araújo “[...] porque ela merece! Todo dia, assim que a gente
Nosso Senhor que achou que transformando o sangue na boca dela, e depois

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acaba de rezar, todo mundo dá o ‘viva’ e dentro da igreja também ... evitar problemas com o bispo.
Oxe, até o padre diz também, ela tá sendo é reconhecida, porque está Para aquela mulher, que dedicou toda sua vida à oração, não há
mesmo, e romeiro aqui não falta não, nessa rua para reconhecer isso”. espaço para as controvérsias teológicas ou acadêmicas. No universo
No dia seguinte à entrevista de Dona Rosinha, ainda impactada romeiro, tudo é mais simples: ela é santa e ponto final! Sorri e agradeci.
pela “belezura e decência” (FREIRE, 1996) de sua narrativa, fui visitar Fiquei refletindo: a beata é uma santa de uma ordem especial, pois
Dona Alzira, uma das moradoras da casa de “Mãe Dodô” na ladeira suas devotas, na maioria, não têm imagem dela, nem recorrem a ela
antiga do Horto. Ela mantém a tradição deixada por sua benfeitor de nas preces. Uma frase de Dona Rosinha ecoou na minha mente: “O
usar uma vestimenta de algodão na cor azul claro, tendo sempre um tempo dela está chegando agora”. A sensação que tenho é que, ao
pano branco na forma de turbante, cobrindo a cabeça. enfrentarem tantas dificuldades materiais, elas aprenderam “que tudo
Dona Alzira começou dizendo que “não sabia palestrar” e que tem seu tempo na terra” e, como estão pacientemente esperando,
seria melhor esperar a moça responsável por receber as visitantes. às vezes não entendem nossa insistência e pressa. Dona Rosinha
Tranquilizei-a, dizendo que apenas queria saber como ela estava e disse que um ensinamento do seu Padim que ela nunca esqueceu foi:
conversar sobre sua fé no Padim Ciço e em Mãe Dodô. Ela suspirou e “Quando vier para o Juazeiro e precisar de dinheiro, traga meio saco
disse: “Já tenho quase 100 anos e já morri várias vezes, mas volto pela de paciência, o dinheiro sai caro, mas a paciência continua.”
graça de Deus e de meu Padim Ciço”. Não quis entrar em detalhes sobre A proibição da Igreja Católica, no sentido de que não se falasse na
o significado desta fala, apenas inferi que ela passou por problemas beata nem no milagre, foi eficaz por colocar a beata no ostracismo,
graves de saúde, mas que sobrevivera. Estávamos na sala principal da na penumbra, mas não conseguiu alcançar o coração das pessoas,
casa, onde fica um altar, tendo o Sagrado Coração de Jesus ao centro. que continuaram reconhecendo sua santidade e reverenciando sua
Lá, Mãe Dodô tem destaque, pois está representada em tamanho memória, conforme vimos até aqui. A história está cheia de exemplos
natural como uma boneca de cera. Vários santos estão presentes a mostrar que nenhum ato burocrático apaga a fé do povo!

revisão
em dezenas de quadros pregados nas paredes: São Francisco, Santa Apenas no dia 22 de setembro do mesmo ano, consegui entrevistar
Luzia, Frei Damião, Padre Cícero em diferentes momentos da vida, Dona Luísa, moradora do Casarão do Horto desde 1935. Quando lá
dentre outras. Nenhuma imagem ou referência à beata Maria de chegou, havia outras beatas, inclusive a beata Mocinha, de quem diz
Araújo, como ocorre em praticamente todos43 os altares domésticos de ter sido amiga, “apesar dela ter uma cara sempre severa e não gostar
Juazeiro. Eu perguntei: “Dona Alzira, tem muitas santas aqui, mas não de muita conversa”. Também aprendeu que não deveria comentar
tem a beata Maria de Araújo. Ela não é santa, não?” Ela, que até então sobre o milagre da hóstia, nem falar sobre a beata Maria de Araújo.
mantivera os olhos baixos, fixou o olhar para o alto, cruzou os braços Desconversou várias vezes quando fiz perguntas que envolviam
no peito e, após um longo suspiro, exclamou: “Santa... ela é santa!” o episódio e a personagem. Perguntei cinco vezes: “Dona Luísa, a

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Mais uma vez, o gesto e a expressão profunda de um sentimento senhora acha que a beata era santa?” Três vezes ela mudou de assunto.
genuíno poderia ter encerrado a conversa, mas ainda perguntei se Na penúltima vez, ela me olhou sorrindo e indagou: “Por que vocês
Mãe Dodô falava da beata. Ela respondeu que sua madrinha sempre gostam de perguntar se ela era santa? Por que vocês querem saber
dizia que o Padim Ciço pedia para não falar em Maria de Araújo, para sobre beatas? Isso já passou... agora é outro tempo!” Aproximou-se
de mim, puxando o pano que cobria suas pernas – ela estava sentada
numa poltrona confortável – e me surpreendeu, afirmando: “Você é
43 Durante o ano de 2018, identifiquei quatro residências que mantêm um retrato ou santa!” Após uma pausa, afirmou como uma teóloga popular: “Todos
uma imagem de Maria de Araújo em seus altares domésticos.

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que levam alegria para as pessoas são santos. Desde que você chegou ser dito ou perguntado.
aqui, já me ri várias vezes... Você é santa! Quando você sair, vou sentir Acompanhada da professora Dorinha, liderança reconhecida
sua falta porque você me fez um bem... Isso é ser santa!” do Horto, no dia 16 de janeiro de 2018, tive a honra de conhecer
Para quem se fixa em definições dogmáticas sobre santidade, as Dona Isaura. Apesar de sua idade avançada e da fragilidade física,
concepções de Dona Luísa podem parecer fora de propósito, mas morava sozinha em um casebre que foi cercado de muro pelos padres
ela, que ouvia das outras beatas os ensinamentos do Padre Cícero, salesianos, na subida do Horto44, recebendo assistência, unicamente,
incorporou uma concepção mais alargada sobre santidade. Aquele da própria Dorinha. Dona Isaura dormia candidamente. Dorinha
reverendo dizia: “Todos ainda podem ser santos, assim queiram e colocou um pratinho de comida ao seu lado e despejou o que restara
obedeçam ao chamado do nosso bom Deus, que, ainda, mais do que da comida do dia anterior numa lixeira. Na verdade, ela pouco tinha
nós nos quer fazer santos como ele no céu” (MARQUES, 1988, p. 89). comido no dia anterior. Dorinha disse que é assim, ela quase não
Na realidade, este foi o grande chamado de Cristo: “Portanto, sede se alimenta, pois vive em penitência, conversando com os espíritos
vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celestial” (Mateus, 5: 48). E que a orientam sobre o socorro às almas do purgatório. Vi que
ainda, chamando a atenção dos apóstolos: “Em verdade, em verdade provavelmente estava diante do último exemplar de mulher mística,
vos asseguro que aquele que crê em mim fará também as obras que médium e plenamente dedicada ao serviço espiritual, como fizera
Eu faço e outras maiores fará, pois eu vou para o meu Pai. E assim, a beata Maria de Araújo. Foi minha primeira entrevistada que, não
seja o que for que pedirdes em meu nome, isso Eu farei, a fim de que falando nada, me ensinou muito. Ela só acordou meia hora depois
o Pai seja glorificado no Filho” (João, 14: 12-13). que havíamos chegado e, reconhecendo Dorinha, perguntou quem
Dona Luísa não sabe ler a palavra escrita, mas aprendeu a ler eu era. Ela ouve pouco e parece viver mais no plano espiritual do que
o mundo com as lentes de uma sabedoria forjada em uma vida de no material. Segundo sua benfeitora, ela sabe muitas histórias sobre o
orações e de serviço ao próximo. Ela expressou a mesma concepção Padre Cícero e crê plenamente no milagre da hóstia e no destino de
Juazeiro como cidade santa.

revisão
de santidade do Papa Francisco, registrada na Exortação Apostólica
sobre o Chamado à Santidade – Gaudete et exsultate. No capítulo IV A entrevista com o Sr. Evilásio, realizada no dia 17 de janeiro de
deste importante documento são apresentadas as características da 2018, chegou a ser engraçada, pela quantidade de artifícios que ele
santidade no mundo atual: suportação, paciência e mansidão; alegria utilizou para não falar sobre a beata. Ouvi 50 minutos de episódios
e sentido de humor; ousadia e ardor; vida em comunidade e em da sua vida de agricultor e de funcionário da prefeitura, além de sua
oração constante. Assim, dona Luísa atualizou a máxima do Padre devoção ao Padim, mas nada sobre a beata. Sabendo que ele não iria
Cícero anteriormente referida, quando ele exortava a todos para uma falar, usei o seguinte artifício: “Seu Evilásio, eu sei que o Padre Cícero
vida santa, não restringindo esta condição a algumas iluminadas, mas recomendou que não se falasse na beata, mas o senhor conheceu

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a todas aquelas que procuram fazer o bem. algum beato que lhe falou sobre ela?” Ele me olhou, baixou o tom
Após ouvi-la contando uma ingênua piada sobre uma moça que de voz e, reticente, disse: “Conheci um beato que morava perto do
“tinha fogo na saia”, perguntei, dando uma entonação quase infantil casarão do Padim. O dito beato disse ter ouvido várias vezes o Padim
à fala, no intuito de sensibilizá-la: “Ô, Dona Luísa, vou sair daqui sem dizer que não era para falar no milagre, não, porque o bispo proibia,
saber se a senhora considera que a beata era santa?” Ela fez um ar
maroto e disse, levantando os ombros: “Ela é uma santa pretinha!”
Disse aquela pequena frase com tanto amor, que nada mais precisava 44 Dois meses depois dona Isaura passou a viver no casarão, juntamente com dona
Luísa.

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mas que a beata era santa.” Aproveitei o momento e disparei: “E o que não sabiam, quatro disseram que era a beata Maria de Araújo e 10
senhor acha que ela era santa?” Ele levantou, tirou o chapéu de palha disseram que era a beata Mocinha. Apenas duas das que responderam
e em tom solene e mais elevado respondeu: corretamente sabiam detalhes sobre o milagre da hóstia e afirmaram
recorrer a ela nas suas preces. Reproduzo aqui, na forma de um
“retrato instantâneo”, as conversas mais significativas.
Eu tenho a fé de acreditar nela, de graça, assim. Oficialmente, eu tenho só de
ter a coragem de falar, de saber que de todas as santa – Maria Gorete, Santa
Joana D’arc, Santa Luzia – que eu sou devoto, ela tem o previlégio, imitando a Romeira alagoana 1:
Nossa Senhora. Compreenda, nós fala na pessoa física, de Jesus e ela na santa
missa. Dentro da eucaristia num tem uma santa mais importante dentro da
- A senhora conhece esta mulher? – aponto para a estátua.
história da igreja de que a Beata Maria de Araújo. Essa aqui eu falo por mim.
Pode gravar. Olhe! Nossa Senhora, na pessoa física! A senhora tá entendendo - Acho que é a mesma que tem no Horto junto do meu Padim, mas
num tá? É ela quando Jesus consagrou: esse é meu corpo, esse é meu sangue. não sei o nome dela não... é beata?
A Beata Maria de Araújo é previligiada, de todas as santas, em primeiro lugar. - Sim, é a beata Maria de Araújo. Você conhece a história dela?
Isso agora eu falo pela minha fé. Não tem uma santa mais previlegiada na - Não... nunca tive a sorte de ninguém me contar.
história da Santa Igreja, na eucaristia, de que a mãe Beata Maria de Araújo. - Posso lhe contar?
Ai, eu tô falando por a fé que eu tenho. Concorda que eu tô falando, certo?
- Pode! – disse com ênfase e arregalou os olhos, preparando-se para
Normá? Apois, eu, Evilásio Geraldino, afilhado do Padre Ciço de batismo,
ouvir a narrativa. Duas moças que a acompanhavam e um homem
por procuração, tenho a fé e tudo que eu desejava de Juazeiro, cuma o caso do
se aproximaram para ouvir. Contei sobre o primeiro episódio do
Caldeirão... porque foi... a senhora sabe da incumpriensão da Santa Igreja,
sangramento da hóstia e sobre as demais manifestações apresentadas
mas nem por isso a Igreja deixou de ser quem é. Porque quando nós somo a
por ela. Nunca fui ouvida com tanta atenção! A romeira alagoana

revisão
Igreja verdadeira. Eu falo é pros evangélico dali. Eu digo, minino, a Igreja é
colocou a mão no coração e exclamou: “Meu Padim, ela é uma santa
tão importante que Padre Ciço nunca se apartou dela... É porque ela é que é
mesmo!” Foi até a imagem e beijou devotamente as mãos da beata,
a verdadeira!
o homem tirou o chapéu em sinal de reverência e as duas mocinhas
foram tirar fotos.
A seguir, passo a expor e comentar as reações de cinco romeiras,
ouvidas no dia 1.º de fevereiro de 2018, na Romaria de Nossa Senhora
Romeira alagoana 2:
das Candeias. No espaço lateral da Praça da Basílica de Nossa Senhora

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das Dores, havia um banco onde um Padre Cícero, confeccionado em
gesso e pó de pedra, permanecia sentado aguardando os romeiros Uma mulher franzina com um semblante triste se aproximou das
que queriam tirar fotos. Do lado esquerdo tinha a imagem da beata imagens e disse:
Maria de Araújo e do lado direito, uma imagem em tamanho natural - Misericórdia, é meu Padim purim e este é o padre Murilo!
do Monsenhor Murilo, figura muito querida da nação romeira, por Olhou para a beata e indagou para si mesma:
suas iniciativas pioneiras de acolhida e respeito às devoções populares.
- Esta é a Araújo?
Naquele dia, consegui conversar com vinte romeiros, iniciando
pela pergunta: “Vocês sabem quem é esta mulher?” Seis responderam Aproximei-me dela e respondi que sim. Um pouco confusa, ela

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perguntou: - Entra sim... Deus não faz diferenças entre suas criaturas. Tenho
- Ela é a beata Mocinha? orgulho da minha pele.
Respondi que não e disse que era muito comum a confusão entre elas. Sorriu para mim e saiu, sem que eu pudesse dar continuidade à
Perguntei se ela conhecia o episódio do sangramento da hóstia e ela conversa.
respondeu:
- O padre da minha paróquia nunca falou nada não. Como foi que se Romeira cearense:
assucedeu?
Narrei para ela e, à medida que eu falava, ela foi se emocionando e Era uma senhora bem vestida que, ao me ouvir falando com a romeira
começou a chorar, dizendo: anterior, se aproximou espontaneamente e disse:
- Vou pedir para ela ajudar meu filho que não consegue se livrar da - Só vim conhecer a história de Maria de Araújo agora. Vi no filme a
cachaça. história dela (se referia ao filme O Milagre em Juazeiro de Wolney de
Foi até à estátua e beijou a testa da beata, ficando em prece por Oliveira). Fico impressionada como não sabemos quase nada de nossa
alguns momentos. história. Viu aquela mulher que (refere-se à romeira que acabara de
sair) mal pode imaginar que uma pessoa negra entre no céu? E o
fotógrafo que perguntou se a imagem de Maria de Araújo era a de
Romeira pernambucana:
Nossa Senhora Aparecida? Misericórdia!
Após seu desabafo, mudou de tom e concluiu:
Era uma mulher forte e de pele negra. Aproximou-se lentamente e
- Não sei se Maria de Araújo era santa, mas sei que é importante
após longa observação das imagens, tirou foto com o Padre Cícero e
conhecer a história dela. Nós mulheres somos muito esquecidas!
ficou perguntando quem era aquele outro santo. Alguém da acolhida

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respondeu tratar-se do padre Murilo, que gostava muito das romeiras. Concordei com ela, feliz por ouvir uma devota preocupada com a
Ela disse: preservação da memória da participação feminina na história, me
despedi para abordar um grupo de romeiras que se aproximava.
- Não conheci ele... E esta quem é?
Adiantei-me e respondi:
Romeira paraibana:
- É a beata Maria de Araújo, a beata do milagre da hóstia.
Ela se aproximou mais ainda da estátua e disse muito admirada:

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Uma senhora sexagenária se aproximou da imagem do Padre Cícero
- Ela era negra!
e beijou respeitosamente sua mão esquerda. Fez uma prece rápida e
Após uma pausa, fez a seguinte observação: voltou a tocar na imagem, desta vez na testa. Voltou-se para a imagem
- Mas agora no céu a alma dela tá bem alvinha. da beata e, sem que desse tempo para eu perguntar, ela se antecipou
Fiquei muito impactada com tal observação. Aguardei passar minha e disse:
reação de espanto e perguntei: - Esta é a beata Maria de Araújo. Da boca dela se derramou sangue,
- Por que ela mudou de cor? No céu não entra negro? mas não quiseram mostrar... Oxe, o poder de Deus é grande! – fez
Ela refletiu um pouco e disse, num tom de voz mais altivo: esta afirmação com muita ênfase, demonstrando certo triunfo frente

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à fragilidade do poder dos homens. do evento para trazer Maria de Araújo para seu lugar de protagonista
na história do Juazeiro, evitando polêmicas infindáveis e infrutíferas,
como aquelas que, na prática, negam o lugar de santo popular ao
Nos diálogos com aquelas mulheres, senti o tamanho da nossa
Padre Cícero, como se o reconhecimento da beata precisasse do
responsabilidade como pesquisadores e educadores e vislumbrei
rebaixamento deste que é amado pelo povo nordestino. Reafirmo que
os desafios a enfrentar para tornar conhecidos os episódios que
esta dicotomização não está presente nas pessoas simples, conforme
envolveram Maria do Juazeiro e tantas outras Marias relegadas ao
visto fartamente nas entrevistas aqui socializadas. É necessário refletir
esquecimento na nossa história. Esta não é apenas uma tarefa religiosa,
os motivos pelos quais o povo o consagrou. Não concordo com a tese
mas política, daí porque é possível ver pessoas de diferentes religiões
de que ele apareceu porque a beata foi apagada. Prefiro dizer que, no
envolvidas no resgate desta memória, conforme vi nos movimentos
processo de acomodação da fé popular frente às ameaças da Igreja,
de rua e naquela mesma romaria, ao indagarem: “Onde está o corpo
a beata ficou na penumbra e o povo reconheceu no seu Padim um
da beata Maria de Araújo?”
protetor para todos os momentos. O seguinte trecho de Comblin
Minhas deambulações na romaria mostraram que não há (2011, p. 41) ilustra o que defendo:
qualquer reação negativa em relação à beata45. Ao contrário, as
pessoas demonstram grande interesse em ter acesso ao conhecimento
histórico, tirando o véu que encobriu uma mulher que guarda O povo consagrou Padre Cícero porque ele
antes entregara a sua vida aos pobres. Amou
semelhanças com suas vidas de sofrimento e de negação de direitos. sinceramente os pobres. Fo incansável defensor
Saí do espaço da romaria e dois meses depois fui para o espaço dos pobres, que o procuravam para solucionar
que deve, por vocação institucional, produzir conhecimentos sobre todo tipo de problemas e questões [...] antecipou
a história local e disseminá-los nos diferentes espaços educativos. em muitos anos as opções da Igreja na América
Latina. É impossível negar a sincera opção pelos
Percebi, mais uma vez, que a universidade ainda encontra

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pobres de alguém que. Os próprios pobres
dificuldades para cumprir adequadamente tal função. Refiro-me à proclamam.
minha participação como ouvinte e como palestrante no evento que
marcou as comemorações dos 145 anos de nascimento da beata Maria
de Araújo: I Seminário Maria Madalena do Espírito Santo Araújo: Onde ela Começo com o testemunho emocionado e emocionante de uma
está? Foram três dias de intensos debates, onde se mesclaram momentos moradora do Horto, devota do Padre Cícero e da beata Maria de
elucidativos e de demonstrações de grandes desconhecimentos sobre Araújo: Dona Dorinha do Horto. Ela começou sua fala afirmando não
os fatos históricos a envolver a aniversariante. saber muito da história da beata Maria de Araújo, mas mostrando o
que aprendeu desde criança com sua mãe, e que foi “guardando com

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Havia, por parte de algumas participantes, um forte apelo emocional
muito amor e muito carinho”.
em torno da figura da beata, sem a devida problematização esperada
do ambiente universitário. Aqui, vou me restringir às contribuições
Eu sempre ouvi falar que a vida dela foi um martírio... um sofrimento por
onde ela passou. Sofreu, mas nunca desistiu da fé e da oração. Ela foi muito
45 A única exceção foi a insistência de um guia de turismo que, ao mostrar a placa onde fiel à oração e ao amor ao pai dela e ao meu padrinho Cícero. Quando era
há o registro de que ali fora sepultada a beata Maria de Araújo (na Igreja de Nossa garota adolescente, eu tinha uma madrinha de fogueira. Uma velhinha, era
Senhora do Perpétuo Socorro), afirmava: “Por culpa dela, o Padre Cícero perdeu as
ordens”. uma senhora já bem velhinha. E ela nos contava muito a história da beata

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Maria de Araújo, porque ela disse que quase foi criado pelo padrasto da beata. resumir, ela pediu pra ajudar meu pai a criar a família. Meu padrim deu
Então, ela não morava, mas passava o dia sentada lá dentro na casa dela. uma graça a ela em sonho. Que ela ia fazer vários benditos. E ela foi fazer
Ela disse, mesmo antes de acontecer o martírio, ela já mantinha o respeito pelo bendito. E com essa graça, ela diz em sonho: ‘Mas como é que eu consigo fazer
trabalho e ensinava, sempre queria ver as crianças, as adolescentes aprendendo se eu não sei ler?’. Mas aí, logo ela começou assim se lembrando os benditos
alguma coisa. Não queria ver as crianças parada. Então, ela, mesmo depois e começou a fazer bendito. E assim minha mamãe fez vários benditos que ela
do sofrimento, do martírio que passou, ela recebia as pequenas contribuições imprimia as folhinhas e nós ia vender lá no Horto. E a gente ficou muitos anos
das pessoas que admiravam ela e sabia que ela não tinha falseado. Aí ela se alimentando também de cantar o bendito do sangue precioso, que ela fez com
distribuía tudo que o povo dava a ela. Ela mandava alguém com o pouco das muito amor, com muito respeito e ela disse: ‘Olha, esse bendito não vende! Ele
contribuições comprar linha, agulhas e tecidos e juntava com as crianças para não é pra vender! Ele vai ser todo doado. Não pode ser vendido, porque esse
dar às crianças pra fazer o bordado, pra fazer o crochê, pra fazer alguma bendito é muito fino, é do sangue precioso’. Ela não sabia muito de melodia ela
coisa, se ela visse alguém assim, tem que aprender fazer alguma coisa para criava a letra a história do bendito, mas a melodia ela não criava. Então, eu
quando crescer saberem fazer alguma coisa. E, inclusive, até boneca de pano posso cantar o bendito?
também, ela ensinava os meninos fazer boneca de pano. E com isso eu passei,
sempre aprendi isso fui crescendo, fui crescendo. E num é que depois da minha
Bendito louvada seja dolor a santa cruz
juventude pela graça de Deus, eu consegui um emprego dado pelo monsenhor
Murilo na capela Nossa Senhora Das Dores e me colocou pra trabalhar lá, pra Louvor a meu padrinho Ciço e a Maria de Araújo
trabalhar aqui de palha. E depois, ele conseguiu construir o grupo com a ajuda Louvor a meu padrinho Ciço e a Maria de Araújo
das mães e a contribuição e das pessoas das famílias. Ele conseguiu construir o
grupo lá no Horto, daí ele disse: ‘Dorinha você não vai mais trabalhar no Dom Maria de Araújo na mesa da comunhão
Pires, você vai trabalhar lá no Horto. E vai ensinar essa gente. Vai ensinar
Viu o sangue de Jesus derramado em suas mãos (2x)
palha, porque lá no Horto todo mundo quer trabalhar de palha’. Então, agora

revisão
o que é que eu fui fazer, ensinar também, bordado, crochê, corte e costura, e Aquele sangue inocente como um perfume de flor
pra isso trabalhei quase trinta anos. Hoje eu agradeço a Deus e a prefeitura, É a flor da inocência que na hóstia transformou (2x)
que agora mandou eu descansar um pouquinho, graças a Deus, eu agradeci
pela graça de Deus [refere-se à aposentadoria]. Eu acho que herdei essa Beata santa Maria é a virgem do rosário
boa vontade que a beata tinha, por isso que eu me sinto feliz o pouquinho que
eu sei da vida dela eu aprendi e Deus me abençoou que eu fiquei trabalhei esse E meu santo padre Ciço é a chave do sacrário (2x)
tempo todinho, agradecendo a Deus e lembrando que a beata Maria de Araújo Aquele sangue inocente como um perfume de flor

revisão
fez isso com as mãos dela. E fez esse tempo todinho com adolescente, jovem, É a flor da inocência que na hóstia se transformou (2x)
senhoras. É uma bênção, foi quase trinta anos de trabalho! E então, com isso,
eu fico feliz de falar da beata Maria de Araújo, é uma graça de Deus, é uma
Beata santa Maria é a virgem do rosário
bênção. E então, também conforme me autorizaram, ela [a organizadora do
evento] disse que eu podia também falar um pouco da minha mãe, que foi E meu santo padre Ciço é a chave do sacrário
uma grande devota da beata Maria de Araújo, ela não conheceu a beata, mas Maria se super Roma sacrário na santa cruz
ela conheceu pela fé. Como ela dizia: ‘Também conheci o padre Ciço pela fé’. É sacro, é individuo, é o coração de Jesus (2x)
Então, ela pediu uma graça ao padre Ciço, a história é longa, mas eu vou O papa abençoou sua imagem porque sabia

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Que o divino Espirito Santo salvar seu mundo queria (2x) poética e plástica para registrar o martírio, a saga, mas, sobretudo, as
Não deixou de celebrar missa uma hora da madrugada resistências e lutas da beata e dos romeiros que concretizaram a ideia
de Juazeiro como lugar santo.
Para botar a bênção a sua família sagrada (2x)
O Cariri é um verdadeiro “caldeirão cultural”, a espalhar a arte
Meu padrinho Ciço é santo ninguém queira duvidar
e o artesanato em toda pujança multicolorida e expressiva. Mas não
Pois seus poderes são tantos que fez o mundo falar (2x) é só isso. Para não ficar numa visão romantizada, importa falar das
Quem não crer nessa verdade não tem alma e nem juízo contradições dessa terra que concentra riqueza nas mãos de poucos e
Não tem nem anjo da guarda pra conhecer o paraíso distribui pobreza para a maioria. É preciso lembrar que é uma região
onde os índices de assassinato de jovens é elevado e o feminicídio
se apresenta com requintes de crueldade, envergonhando uma terra
Ofereço esse bendito ao onze salesianos
associada à cultura e à religiosidade. Nesse quadro, como o movimento
Os dozes apóstolos inocentes e o santo papa de Roma (2) cultural múltiplo e rico do Cariri cearense representa a beata Maria
de Araújo, atualizando sua memória transgressora?
Tendo emocionado o público presente, Dona Dorinha encerrou Os registros que trago a seguir, sem a pretensão de ser exaustiva,
sua fala com a seguinte expressão: “Juazeiro triunfou e o padre Ciço resgatam os rastros de Maria de Araújo sob a ótica das artes e são
é quem ganhou!” devedores das seguintes fontes: conversas que tive com Renato Dantas,
As pesquisadoras Annette Dumoulin e Maria do Carmo Pagan Forti além do registro de sua participação na mesa redonda Beata Maria de
contribuíram com as discussões sobre a necessidade de superação de Araújo nas Linguagens Artísticas no seminário retrocitado; entrevista
uma visão que dicotomiza as figuras do Padre Cícero e da beata Maria que realizei com Carlos Gomide, artista popular e romeiro, criador
de Araújo, com a apresentação de farta documentação histórica. da Carroça de Mamulengo e de incursões pela Internet. A intenção

revisão
Representantes do movimento negro e do movimento de foi recuperar os modos como Maria de Araújo foi/é apresentada/
mulheres do Cariri trouxeram à baila uma Maria de Araújo guerreira ressignificada em toda essa efervescência artística e militante.
e oprimida, destacando a importância política da recuperação da
sua memória para os movimentos sociais. Minhas observações, na 2.4.1 A Arte “alumiando” os novos caminhos da beata Maria de
universidade e nas manifestações de rua em que participei, revelaram Araújo46
que Maria de Araújo foi transformada em um símbolo de resistência e
de luta contra a subalternidade da mulher e do povo negro/indígena. Quem recebe flores não é esquecida.

revisão
O seminário aqui tratado estava interessado na disputa pela memória (Renato Dantas)
política mais do que pela memória religiosa da beata. De acordo com
a coordenadora do evento, “o seminário nasceu da ânsia de pessoas
e grupos que já não aceitam o silêncio em torno de uma mulher tão A divulgação da imagem de Maria de Araújo teve início quando
importante para a região do Cariri, pois foi a partir do evento por ela comerciantes locais mandaram cunhar uma singela medalha contendo
protagonizado que as romarias tiveram início”.
Esta ânsia em romper os interditos ficou patente nos coletivos de
46 O presente item foi escrito com a inestimável contribuição do pesquisador, ator e
artistas que participaram do evento, trazendo a linguagem teatral, teatrólogo juazeirense, Renato Dantas.

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seu rosto aureolado de um lado e a foto do Padre Cícero de outro. consagradas pela Igreja Católica, intermediadora
É muito sintomático o fato de que, apesar de inúmeros esforços, não oficial entre leigos e clero.. As medalhas foram
consegui localizar uma destas medalhas. Nos livros publicados até cunhadas em metal prateado e tinham na fren-
te a imagem de uma madona com raios sando
2015 a medalha aparece, apenas, mostrando o lado da foto do Padre das mãos (representação de Nossa Senhera das
Cícero, ilustrado a seguir: Graças) e a inscrição em caixa alta “MARIA DE
ARAÚJO”; atrás a imagem de um sacerdote em
hábito franciscano com a inscrição em caixa alta
Figura 2 – Medalha com o rosto de Padre Cícero Fonte: NETO, Lira, “PADRE CÍCERO” (p. 226)

Figura 3 – Medalha com o rosto de Maria de Araújo

revisão 2009.

Nobre (2016, p. 228) teve acesso ao arquivo do Vaticano e publi- Fonte: NOBRE, Edianne, 2016.
cou uma foto de uma dessas medalhas (figura 3). Os comentários da

revisão
autora são muito instigantes e esclarecedores sobre os usos comer- Temos uma única foto autêntica, que foi reproduzida no vitral
ciais e devocionais de tal relíquia. Sigamos a descrição que ela faz da exposto na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, onde está
referida medalha: o túmulo do Padre Cícero e onde esteve sepultada a própria beata:

A representação de Maria De Araújo na meda-


lha sugere o estabelecimento de uma santidade
característica que só pode ser atribuída a pessoas

150 151
Figura 4 – Fotografia autêntica da beata Maria de Araújo. Figura 5 – Supostas fotografias da beata Maria de Araújo.

FONTE: Internet

Até a década de 1930, nas feiras e praças públicas do Juazeiro, ain-


da se ouviam repentistas narrando as maravilhas havidas com Maria
de Araújo e com o Padim Ciço. A literatura de cordel também regis-
trou os martírios dos dois e as graças recebidas por quem peregrinava
devotamente pelo Juazeiro.

revisão
Figura 6 – Literatura de cordel retratando a beata Maria de Araújo.

Fonte: Internet

Quando a beata se isolou, em obediência às determinações da hie-


rarquia eclesiástica, outras fotos foram divulgadas como se dela fos-

revisão
sem. Destaco um detalhe importante nas duas principais fotos, expos-
tas a seguir: o branqueamento da beata!

Fonte: Acervo de Renato Dantas

152 153
A título de exemplo, trago os versos compostos por Severino José E a Beata comungando
da Silva (Severino do Horto)47: O sangue do redentor.

Desde já anunciação
[...]Heroína do Brasil.
Do anjo São Gabriel
É Maria de Araújo
A Maria de Nazaré
Foi santa desde menina
Fez a comunicação
Tornou-se uma Heroína
Jesus rei da redenção
Desta verdade eu não fujo
Por seu amor ao romeiro
Não tinha coração sujo
O santo mais verdadeiro
Obedecia o ministro
Ao pecado deu as costas
Não tem lado negativo
Derramou sangue na hóstia
E foi um sacrário vivo
Na Matriz de Juazeiro.
Do sangue de Jesus Cristo.
Sangue Divino na terra
A trindade reunida
Negado por Lúcifer
Padre, Filho, Espírito Santo
E pelos fracos de fé
Disse Belém é o canto
Que quiseram fazer guerra
De Jesus fazer partida
Mais o poeta não erra
Depois de perder a vida
Nem escuta Satanás
Cravado entre 2 ladrões
Porque Jesus é meu pai

revisão
Lhe viram a Ressurreição
Me ampara na necessidade
E ao pecado dá as costas
Quem negar esta verdade
Derramou o sangue na hóstia
Morre doido e nada faz.
Unido a Cícero Romão.
No altar do Coração
É um fato consumado
De Jesus lá na Matriz
Ninguém pode negar isso
Tornou-se um dia feliz
Que na mão do Padre Cícero

revisão
Na santa consagração
Jesus o ressuscitado
E Padrinho Cícero Romão
Depois de ser consagrado
Abençoando dali
O sacramento de amor
Debaixo do céu de anil
A hóstia se transformou
Jesus sangue derramando
Muito sangue derramando
E Beata comungando
Heroína do Brasil.
47 O texto integral está disponível em: <http://oberronet.blogspot.com/2014/03/milagre-
-do-padre-cicero-e-maria-de.html>

154 155
E a era da provação Foi provado todo agora
Esta era de noventa E falou Nossa Senhora
É quando Jesus se apresenta O meu filho é verdadeiro
Depois da consagração Seu sangue chama o romeiro
Padrinho Cícero Romão Padre Cícero abençoando
Da cidade é fundador E continuam visitando
Diz a questão terminou A Matriz de Juazeiro!
Satanás ficou abafado [...]
No Juazeiro é aprovado
O sangue do redentor. Gilmar de Carvalho, no prefácio ao livro Maria de Araújo: a Beata
do Milagre, de autoria de Maria do Carmo Pagan Forti, comentou so-
O Papa aprova a verdade bre o “pesado silêncio” por ocasião do falecimento da beata em 1914,
Perante o reto Juiz quando sequer um folheto foi publicado. Fato de certa maneira com-
Meu Padrinho bem feliz preensível, dada a ameaça de excomunhão, conforme vimos no capí-
O fundador da cidade tulo anterior. Incompreensível foi a reação iconoclasta diante do busto
Romeiros em quantidade da beata, mandado colocar em 4 de agosto de 1992 pela Prefeitura
Ver a mãe de Deus sorrindo Municipal de Juazeiro numa praça pública. Os mutiladores da obra de
Homem, mulher e menino arte jamais foram identificados. Vejamos a imagem do referido busto48:
Dão viva meu Padrinho Cícero
Que não mediu sacrifício Figura 7 – Busto da beata Maria de Araújo.
Em prova o sangue divino.

revisão
Maria de Araújo é santa
Também esta na matriz
Com seu coração feliz
É bem formada esta planta
Seu sorriso nos encanta
Ao lado do fundador

revisão
Que muito lhe ajudou
Quando ela comungava
A hóstia se transformava
No sangue do redentor.
Fonte: Arquivo de Renato Dantas
Jesus nos deixou a hora
A semana, o dia e o mês
48 Hoje, há outro busto de Maria de Araújo no Marco Zero e seu nome foi colocado em
E o sangue desta vez uma rua que atravessa os bairros Romeirão e João Cabral.

156 157
Tanto o silêncio quanto a animosidade, presentes nos dois mo- Nos últimos cinco anos, têm sido distribuídos nas ruas do Juazeiro
mentos anteriormente citados, foram rompidos, quando, em 1989, do Norte, como pagamento de promessas, “santinhos com orações à
aconteceu o II Simpósio Internacional em comemoração aos 100 Santa Maria de Araújo”:
anos do milagre da hóstia. Naquele ano, os repentistas Pedro Ban-
deira e João Bandeira fizeram versos sobre os acontecimentos envol-
Figura 9 – Santinhos com orações à Santa Maria de Araújo.
vendo Maria de Araújo. A partir daí, rompeu-se o silêncio em torno
da beata, tanto no cenário acadêmico, quanto no movimento social.
Mais recentemente, Maria de Araújo ressurgiu, ainda que timida-
mente, nas romarias, conforme mostrarei mais adiante. Vejamos al-
gumas obras que tratam diretamente da nossa protagonista:

Figura 8 – Obras que tratam da beata Maria de Araújo.

revisão FONTE: arquivo de Renato Dantas

Interessante registrar que ela já foi canonizada pela Igreja Cató-


lica Brasileira, pois esta toma como critério de santidade a devoção

revisão
popular. Tal fato foi comentado em cordel, em que o autor expressa
sua insatisfação com o fato, pois ela era católica apostólica romana e
será esta a igreja que deverá canonizá-la.
No cinema, o milagre da hóstia e a beata aparecem nas narrativas dos
seguintes filmes: O Milagre em Juazeiro (Wolney Oliveira, 1999)49; Padre

Fonte: Organizado pela autora 49 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fOEOgoYZxUg>. Acesso em: 15


set. 2017.
158 159
Cícero: os milagres de Juazeiro (Hélder Martins de Moraes, 1976); e Sangue de Oswald Barroso: Doce Milagre; Corpo Místico; o monólogo A Serva,
no Sertão – A história de Padre Cícero (Antônio Sagrado Bogaz, 2012)50. de Emanuel Nogueira; O Milagre, escrito por Vilma Maciel; a peça
Figura 10 – Cartazes dos filmes sobre o milagre A Beata Maria de Araújo: santidade contemporânea, encenada pelo ator
Ricardo Guilherme. A beata aparece como figura secundária na peça
O Santo Ciço51, dirigido por Miqueias Paz, que estreou em 2014.
Da peça Corpo Místico, segue um trecho de uma conversa entre o
Padre Cícero e a beata Mocinha (Joana Tertulina):

Joana: ‘Padre tem uma multidão aí fora, veio por


causa dos milagres e querem ver Maria’.
Padre: ‘Ninguém tem mais sossego aqui! Maria
acaba de receber uma leva de romeiros e agora
chega uma multidão’.
Joana: ‘Agora o bispo vai se convencer que Deus
está do nosso lado’.
Padre: ‘Dentro desse quadro vem logo o bispo da
Diocese para julgar mal.

Iniciativas teatrais mais recentes encantam os romeiros nas princi-


pais romarias. A prefeitura municipal e o Serviço Social do Comércio
(SESC) têm realizado shows nas principais romarias, integrando gru-

revisão
pos tradicionais e divulgando outras linguagens artísticas, que repre-
sentam a história do Juazeiro do Norte e trazem à cena a beata do
milagre. Tais iniciativas são importantes na educação da sensibilida-
de e para o resgate da memória de vários personagens que gravita-
ram em torno do Padre Cícero, ao mesmo tempo em que fortalecem
a turistificação das romarias52.
À exceção dos benditos, não encontrei referências à Maria de

revisão
Fonte: Internet
Araújo na música. Em entrevista a Renato Dantas, pude reunir algu-
mas preciosas informações:
No teatro, foram encenadas peças, monólogos e esquetes de uma
beleza plástica e força dramática que envolvem os expectadores num
misto de respeito e revolta. Cito como exemplos as peças com roteiro 51 Disponível em: <http://df.divirtasemais.com.br/app/noticia/programe-se/2016/07/07/
noticia_programese, 156936/ espetaculo-santo-cico-aborda-vidapolemica-do-religioso.
shtml>. Acesso em 14 ago. 2017.
52 Sobre a relação entre romarias em Juazeiro e turismo, ver: Cordeiro e Lima (2004, p.
50 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=CTucj10eiCE>. Acesso em: 15
75-90).
set. 2017.

160 161
O mais antigo registro artístico sobre Maria de Renato informou, ainda, que havia outra alusão velada à Maria,
Araújo foi na música. Mesmo não tendo seu no Bendito de Nossa Senhora das Candeias, cantado em procissões
nome expresso no Hino, ela é comparada a Ester, mais remotas:
personagem do Antigo Testamento. Os versos fo-
ram compostos pelo Padre Galdino J. Soares Pi- Oh que caminhos tão longes
mentel de Santo Antão, Pernambuco. Ele dedica Tão cheios de pedra e areia
os versos ao povo de Juazeiro representado pelo Valei-me meu Padrinho Ciço
Padre Cícero: E a Mãe de Deus das Candeias.

Nos caminhos de Juazeiro


...Lá no Joazeiro Nunca ninguém se perdeu
Se contempla isto Por causa da luminura
O tempo primeiro Da Mãe de Deus das Candeias.
Do sangue de Cristo
Foi uma mulher Aqueles paninhos bentos
De amor sincero De sangue ainda estão cheios
Perante assuero* Valei-me meu Padrinho Ciço
A segunda Ester. ... E a Mãe de Deus das Candeias.

Os versos supracitados foram publicados no seguinte livreto: Outra iniciativa musical foi a adaptação para a música, feita por
Socorro Lira do folheto de cordel “Maria de Araújo e o seu Lugar
Figura 11 – Primeira publicação sobre o milagre
na História ou a Beata Cult”, de Salete Maria. Recentemente apare-
ceu a “Cantilena da Beata Maria de Araújo”, com letra de Paulo de

revisão
Souza e Expedito Maurício e com música de Paulo de Souza. Outro
exemplo contemporâneo é o “Bendito de Romaria: Beata de Araú-
jo”, cantado por Diego e Diogo Maceió, de Alagoas. Ele é composto
com a estrutura das “incelenças”. Eis a letra:

Uma beata de Araújo


Com os seus milagres santos (bis)
Quando sobe no altar abre a sua boca

revisão
Abre sua boca e canta (bis)
Com as suas camaradas (bis)
Minha bênção meu Padrinho
Santa Quitéria que eu já vou nesta janela (bis)

Duas beata de Araújo


Com os seus milagres santos (bis)
Quando sobe no altar abre a sua boca
Fonte: Biblioteca do Memorial Padre Cícero Abre sua boca e canta (bis)
Com as suas camaradas (bis)

162 163
Minha bênção meu Padrinho Na xilogravura, destacam-se os trabalhos de José Lourenço, José
Santa Quitéria que eu já vou nesta janela (bis) Marciolino Pereira Filho, Ailton Laurindo, João Pedro C. Neto, Gil-
berto Pereira, Estênio Diniz, Abraão Batista, Hamurabi Batista e Cí-
Os artistas plásticos a retrataram de várias formas, utilizando téc- cero Vieira.
nicas diversificadas. Na pintura, destaco duas obras expostas perma-
nentemente no Memorial Padre Cícero:
Figura 13 – Xilogravuras

Figura 12 – Reprodução de pinturas da beata.

revisão Fonte: Organizado pela autora

Os santeiros e artesãos também têm reproduzido a imagem da


beata na madeira, no tecido e no barro, mas, na maioria, por enco-
menda. A comercialização nas lojas de artigos religiosos ainda não é

revisão
comum, mas sempre é possível encontrar alguma peça como as que
seguem:

Fonte: Acervo do Museu da Fundação Memorial Padre Cícero

164 165
Figura 14 – Reprodução de imagens da beata Maria. Figura 15 – esculturas em madeira

Fonte: Acervo da autora

Ainda sem a pretensão de ser exaustiva, é preciso falar de um


movimento liderado por jovens artistas, tanto de Juazeiro, quanto

revisão
de Crato e cidades vizinhas, que trouxeram a imagem da beata de
uma forma muito impactante. Em 2011 e 2012, cartazes com a foto
da beata e o slogan “PROCURA-SE” ocuparam os espaços reservados
Fonte: Organizado pela autora ao comércio citadino e às áreas de lazer do centro de Juazeiro e de
Crato.
A primeira peça da figura anterior foi adquirida por mim em uma
loja próxima à Basílica de Nossa Senhora das Dores e era a única dis-

revisão
ponível. Quando perguntei se a imagem da beata era procurada, a
vendedora respondeu: “Vendi tudo, tem muita gente que procura.”
Nas feiras do Projeto Cariri Criativo é corriqueiro encontrar ca-
misas, bolsas e imagens de Maria de Araújo. Do artista Boni adquiri
as seguintes peças:

166 167
Figura 16 – Cartazes com a foto da beata e o slogan “PROCURA-SE”. referências à beata. Recentemente, a prefeitura municipal de Juazei-
ro publicou um livreto com 22 poemas – Poemas para Maria: Beta Ma-
ria de Araújo. Dentre estes, selecionei o de Ythallo Rodrigues (2018,
p. 15)53:

Figura 17 – Capa da publicação dos poemas da 1ª. Mostra Poemas para Maria

Fonte: internet

Era mais uma intervenção do “Bando”, grupo composto pelos se-

revisão
guintes jovens: Carol Landim, Jânio Tavares e Orlando Pereira. Os
coletivos juvenis vinham acumulando experiências que datam do fi-
nal da década de 1990, com diferentes ações e utilização de múltiplas
linguagens – poesia, música, pintura, escultura e cinema. Para San-
tos (2012, p. 61), tratava-se de criações/produções artísticas “[...] que
ressignificaram a cultura sagrada – sobretudo relacionada ao Padre
Cícero Romão Batista –, dando novos sentidos ao ‘santo’ nordestino
num dinâmico ritual profano da arte contrária à manutenção de um

revisão
só imaginário social”.
Em 2009, esses jovens deixaram sua marca estética no catálogo
Juazeiro como te vejo e na exposição Miradas, esta organizada pelo Gru-
po de Apoio à Livre Orientação Sexual do Cariri (GALOSC). Outras
manifestações poéticas são registradas nas criações do Coletivo Ca-
maradas e no Festival SESC da Música Cearense (2001). Fonte: Internet
Na poesia presente nas produções dos coletivos jovens, há várias
53 Em 2019, mais uma edição veio a público.

168 169
Tu que deverias estar aqui e não estás. ou predicado que provoque alarde.
Olho-te defronte um jazigo vazio. Propaga a fé e seu astral levanta
Aquele pequeno corpo – invólucro de milagres à sombra alegre e amiga do lar de
– que milagrosamente trouxera Romão Batista. Ali começa, então,
[à tona uma cidade que há mais de século a mais bonita e divinal história,
se fazia miúdo lugar no fim do mundo. vivida nos confins do meu Sertão.
teus restos – ossos e resíduos putrefatos E que deixou bem viva na memória,
– foram banidos desta realidade Das brancas hóstias cada mutação,
[por facínoras delegados de uma religião maquiavélica. em cenas de fascínio e de glória!
Seriam santos teus despojos depositados nesta vala?
Ao fazer observações participantes na romaria de Nossa Senhora
A crença do homem é teu esquecimento. das Candeias de 2018, dois fatos importantes envolvendo a beata
tu que sufocada pelo silencio da rua padre Cícero foram registrados: a presença de uma mulher nas ruas do comércio
– ironicamente – arrancada dos braços usando a roupa da beata em pagamento de uma graça alcançada; a
[daquele povo antigo que desejava banhar-se com teu presença de várias Maria de Araújo junto à recepção feita às romei-
[sangue fruto de visões divinas. ras em frente ao Memorial Padre Cícero. Esta atividade fazia parte
de um esforço mais amplo composto por membros dos movimentos
tua pobreza te puniu. culturais tradicionais – reisados, banda cabaçais, maracatus, coco,
tua pele negra te puniu. dança de São Gonçalo e por militantes dos movimentos sociais.
teu sexo te puniu.

revisão
teu povo te puniu. Figura 18 – Estandartes da Beata Maria de Araújo e do Padre Cícero
teu santo te puniu.

agradece teu martírio e te esquece todo dia.

Ivan Magalhaes fez a biografia poética, destacando os momentos


mais significativos da vida de Maria de Araújo. Destaco um trecho

revisão
do mesmo:

Chamava-se Maria, a negra e santa


Beata do milagre, que mais tarde,
num episódio que a razão suplanta
se fez refém duma ilação covarde;
Sem a beleza que seduz e encanta,
Fonte: Arquivo da pesquisadora

170 171
O referido movimento lançou um Manifesto de Consagração à san- cada mulher desse país, cada negra, cada pobre, cada analfabeta e, também
ta do Padre Cícero, à santa do Juazeiro, conforme segue: os homens e crianças, pobres e analfabetos, a se unirem e caminharem co-
nosco, de corações e abraços abertos nessa jornada em busca de justiça em
respeito à Santa Beata Maria de Araújo e ao Santo Padre Cícero Romão
Este manifesto deseja recordar um fato que se tentou apagar da histó-
Batista. Devotos e devotas, cidadãos de fé e trabalho, povo simples que
ria de Juazeiro do Norte: a existência da Santa Beata Maria de Araújo e
luta e acredita no amor e na justiça.
dos milagres de Juazeiro, sobre os quais a Igreja Católica proibiu qualquer
menção na época em que ocorreram, sob pena de excomunhão, entre outras
ameaças. No dia 20 de janeiro de 2018, entrevistei Carlos Gomide numa
Este manifesto deseja que a Igreja Católica se pronuncie sobre a violação das pracinhas do bairro João Cabral na periferia de Juazeiro do
do túmulo da Santa Beata, contrariando o desejo de Padre Cícero que pediu Norte, enquanto aguardávamos outros membros do recém-iniciado
que seu túmulo fosse exposto em local aberto à visitação pública. Foi o pró- movimento que pretende manter viva a memória da beata do mila-
prio Padre Cícero, aos 86 anos, quem registrou desaparecimento do corpo em gre. Carlos Gomide tem 62 anos e nasceu no Estado de Goiás. Gosta
auto lavrado em cartório em 03 de dezembro de 1930. de ser chamado de “Romeirinho do Padim Ciço”, epíteto dado pela
Irmã Annette Dumoulin. Ele é o líder do grupo familiar de artistas
‘Neste vidro, devidamente lacrado, se acha tudo que encontrou-
Companhia Carroça de Mamulengos. Há quatro décadas, o grupo
-se nos despojos mortais da Beata Maria de Araújo, quando em
atua de forma itinerante pelo Brasil a fora. De acordo com Cordei-
22/10/1930, foi o seu túmulo aberto clandestinamente por ordem do
ro e Cordeiro (2017, p. 389), o ideal do grupo.
Revdmº Vigário dessa cidade Monsenhor José Alves de Lima’.
Este manifesto deseja conclamar as pessoas leigas, da Igreja e de toda
a sociedade a se unirem, a conversarem e a se posicionarem frente a essas [...] tem sido propor mudanças de paradigmas e
hábitos por meio do resgate cultural. Acreditan-
questões.

revisão
do no poder de enraizamento da cultura popu-
Nosso Padrinho pediu que providenciasse um enterro para Beata Maria lar, se apresentam em praças públicas do país,
de Araújo ‘Na capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de acor- exemplificando com sua atuação formas avan-
do com a sua importância’. çadas de relacionamentos sociais com ênfase na
atuação em comunidades, celebrando as raízes
Desejamos saber: onde estão os restos mortais da Beata Maria de Araújo? identitárias do povo brasileiro.
Desejamos que o pedido do pedido do Pe. Cícero seja realizado, retornan-
do as relíquias à exposição pública para trazer a Beata Maria de Araújo de Esse entusiasta andarilho juntou-se a outros líderes de grupos
volta a luz da história.

revisão
culturais tradicionais, partindo do bairro João Cabral, um dos mais
Desejamos que a reconciliação da Igreja Católica com o Pe. Cícero repre- populosos de Juazeiro do Norte, para indagar: Onde estão os restos
sente também a reconciliação com a Santa Beata Maria de Araújo. mortais da beata Maria de Araújo?
Acreditamos que a visão da Beata Maria de Araújo: ‘Juazeiro é a cida- O “pai” da Carroça de Mamulengo explicou sobre as origens,
de onde os pecados irão se redimir e os justos perseverar’, ilumina as motivações e objetivos do referido movimento:
ações e o caminho que conduzem à vida, a vida em abundância.
Conclamamos a todos que têm consciência que a Beata pode representar O sentido maior desse trabalho é reparar um cri-
me. É reparar uma falta imperdoável, porque até

172 173
pelos restos mortais de um bicho, de um animal, A gente sabe que, quando aconteceu de quebrar
a gente tem que ter respeito e compaixão, quanto o túmulo dela, nosso padrinho tava com oitenta
mais pelo ser humano; e principalmente se tra- e seis anos de idade. A gente também entende o
tando de Maria Madalena do Espírito Santo de momento político, que era 1930 com Getúlio che-
Araújo, a beata Maria de Araújo, que a gente gando ao poder e o fortalecimento da burguesia
sabe dos fenômenos que aconteceram com ela, da urbana no Brasil. Ele [o padim] já não tinha ne-
figura mística que ela se tornou. nhuma força política, Floro tinha morrido e ele
estava suspendo das ordens há quase quarenta
anos. Ele estava doente e já não podia fazer nada
Carlos Gomide, com profundo respeito pela beata Maria de
[...] ele só lavrou o auto de denúncia no Cartório
Araújo, passou a falar de sua importância enquanto religiosa e mu-
Machado, no dia treze de dezembro, quer dizer,
lher “que intuía o sagrado com toda profundidade”. Ele lembrou
um mês e pouco depois. Eu fico pensando, por
que, em reconhecimento por sua importância na história do Jua-
que nosso padrinho demorou para denunciar?
zeiro, o Padre Cícero mandou sepultá-la na Igreja de Nossa Senho-
Quando, a gente sabe que, quando de madruga-
ra do Perpétuo Socorro: “Ele pediu que ela fosse sepultada num
da ele ficou sabendo, ele pediu ao José Geraldo
caixão de cedro, envernizado por dentro e por fora, vestindo um
da Cruz e a um fotógrafo chamado João Cândi-
hábito de São Francisco e que fosse sepultada do lado direito de
do, para irem imediatamente ao local. Chegando
quem entra na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, para
lá, o túmulo já estava quebrado; os restos mortais
que ficasse no lugar público”. Sua indignação é dupla, pois, com a
já estavam desaparecidos, mas eles encontraram
destruição do túmulo no dia 22 de outubro de 1930, não só Maria
ainda um pedaço do crânio, alguns escapulários
de Araújo foi desrespeitada, mas também seu padrinho e todo o
e um cordão de São Francisco. Ele colocou em um

revisão
povo de Juazeiro:
vidro, lacrou e prestou o auto de denúncia. Como
eu estava dizendo, só um mês e pouco após. Eu
Já passaram oitenta e oito anos e ninguém nessa fico pensando. Por que que nosso padrinho espe-
cidade nunca fez nada. A não ser algumas come- rou esse tempo todo? Eu fico imaginando que ele
morações que fazem de vez em quando, algumas aguardou pra ver se alguma pessoa tivesse com-
poesias, e acham que tão fazendo muita coisa. Eu paixão, alguma pessoa tivesse sentido de justiça e
creio que os devotos do Padre Cícero deveriam to- fizesse isso que ele desejava que fosse feito. Como

revisão
mar consciência disso, tomar uma determinação ninguém fez nada, ele só fez a última coisa que
inabalável e cobrar da igreja: onde estão os res- ele podia fazer, que foi lavrar o auto para que as
tos mortais? E recriar o túmulo dela novamente, futuras gerações não esquecessem. E eu, quando
como meu padrinho desejou. tomei essa decisão de iniciar esse trabalho, eu con-
tava com os artistas populares e contava também
Demonstrando conhecer o contexto histórico em que se dá o se- em conversar com a gente do Juazeiro com os ho-
questro do corpo da beata, Gomide lamenta a impotência do Padre Cí- mens e mulheres dessa cidade.
cero diante do fato e, de certa fora, se coloca na posição do justiceiro:

174 175
Apesar de toda sua capacidade aglutinadora, o artista romeiro tindo João Cabral, como está aqui hoje: um bairro
tem consciência das dificuldades de manter as caminhadas que tem violento, de gente excluída, explorada e oprimida.
intenção de realizar todos os meses, pois, segundo ele, no Juazeiro Existiria o mutirão, da mesma forma. Então, na
há uma “cultura do silêncio”: verdade, ressuscitar a Beata Maria de Araújo,
fazer com que as pessoas tenham consciência do
amor que o padrinho Cícero tinha por ela e pelo
Talvez aconteça em Juazeiro com o Padre Cícero,
povo brasileiro, por esse país e que sonhava, sim,
o mesmo que acontecia quando Cristo disse “que
com vida e vida em abundância. Em que o re-
muitos me louvam pelos lábios, mas, o coração
nascimento da Beata pode iluminar nossas ações
tá longe de mim”. Então, aqui em Juazeiro, nas
nesse caminho de vida e vida em abundância? É
renovações eles cantam “meu padrinho, quanta
nisso que está o sentido maior, por quê? Quando a
saudades o senhor deixou entre nós”, mas eu fico
Beata disse que Juazeiro do Norte seria a cidade
pensando mesmo até que ponto esse povo, criado
onde pecadores iriam se redimir, e os justos iriam
na cultura do silêncio, do imobilismo, do medo e
perseverar, nós vamos refletir sobre o que isso sig-
da falta de consciência de lutar pelos seus direi-
nifica. Eu nem vou desejar refletir o que é um
tos – saúde, educação, moradia, saneamento, sem
pecador, porque, como dizia o Spinoza, “Mais do
conhecimento da história da humanidade [...]. Eu
que condenar os vícios, nós temos que ensinar as
penso que poucas pessoas percebem o quanto é las-
virtudes”. Então, a gente vai se ater em pensar o
timável essa realidade, essa humanidade tão so-
que é o justo. E o paradigma, a própria persona-
frida. Então, como eu estava dizendo, eu já tinha
lização, o sentido maior da justiça está em Cristo,
uma percepção que seria difícil e cada vez mais eu
quando ele disse “Eu vim para que todos tenham

revisão
percebo que talvez seja mais difícil ainda, mas, é
vida e vida em abundância”, isso é o próprio lu-
quando a gente acredita num ideal numa causa,
zeiro, do que significa ser justo. Estar aqui para
às vezes nem importa muito se vai ser vitorioso, a
que todos tenham vida e vida em abundância.
única coisa que eu não posso fazer é dobrar mi-
Então, o justo é isso, o justo é aquele que busca
nha consciência. Então, eu tenho que continuar.
ser justo, é aquele que quer o direito, que quer os
direitos, que quer equidade. Em síntese, é vida,
Na continuidade do seu discurso, o romeiro surpreende com a vida e vida em abundância. Então, esse é o gran-

revisão
amplitude que dá à luta. Ele disse que ficaria muito feliz se locali- de sonho, que eu sei que eu não vou ver: o Brasil
zassem os restos mortais da beata e refizessem seu túmulo na igreja mãe gentil de todos seus filhos, mas eu creio, se
do Socorro, como seu padrinho desejava, mas seu sonho é maior. nós formos refletir com os romeiros do padre Cí-
Ele fez uma reflexão crítica sobre a realidade do bairro que habita: cero, seguindo o padre mestre Ibiapina, que dizia
que nós temos que descobrir o que nós podemos
Na verdade, se nós conseguíssemos tudo isso [em fazer por nós mesmo. Se nós formos repetir o que é
relação à beata], a realidade socioeconômica dessa justo e se nós buscarmos compreender o manifesto
cidade não mudaria em nada. Continuaria exis- nacionalismo do padre Cícero, que é aquela carta

176 177
que ele escreveu pra o senador Epitácio Pessoa, sentimento de não ser nada. Agora não sendo nada é que eu vou ter
quando o Brasil cedeu um pedaço de terra para cada vez os sonhos mais belos, eternos e infinitos”.
a fundação Ford na Amazônia, ele faz uma carta O movimento prepara o segundo manifesto. Vejamos o que diz
que ele repudia o Brasil tá cedendo um pedaço Carlos Gomide sobre o mesmo:
da sua pátria ao estrangeiro, eu fico pensando
padrinho hoje, como ele estaria ao ver não só um
pedacinho de terra, mas muito das nossas terras, O parágrafo do primeiro manifesto, que traz a
da Vale do Rio Doce, da Usiminas, da Acesita, de profecia da Beata dizendo que o justo persevera-
Carajás, do urânio, do pré-sal da Petrobrás, tudo rá, ilumina o nosso caminho em busca de uma
sendo entregue e, principalmente, de uma dívida sociedade mais justa. Estamos unindo esta ideia
externa espúria que já chegou a mais de três tri- com a carta do Padre Cícero dirigida ao presi-
lhões, e que o Brasil paga praticamente cinquen- dente Epitácio Pessoa. Esse manifesto que a gente
ta por cento do produto interno bruto ao bem de está escrevendo agora: “Caminhada com o Nosso
pagar os juros e a amortização dessa dívida. São Padrinho Ciço e com a Beata Maria de Araújo”,
duzentos e oitenta bilhões que se paga. Então, eu segue exatamente o desejo do nosso padrinho. De
fico pensando que já passou da hora dessa gen- nós repudiarmos com veemência toda forma de
te tomar consciência disso e exigir uma auditoria dominação do capital estrangeiro, das empresas
no Congresso, da mesma forma que fizeram no estrangeiras, sobre as nossas riquezas, seja das
Equador, o movimento chamado Movimento Bom fábricas, das indústrias. Na carta, o padrinho co-
Viver, fizeram uma grande mobilização nacional, loca claramente que, se fosse mais novo, empreen-
exigiram uma auditoria de sua dívida e lá eles deria todos os esforços para não permitir o pre-

revisão
conseguiram diminuir 70% dessa dívida. domínio do estrangeiro sobre nossa terra. Coloca
claramente que, como sacerdote cristão, deplora o
plano inclinado a que estão destinando o Brasil
Fiquei muito impactada ouvindo aquelas reflexões, por perce- na vertigem da insânia. coloca que não faltarão
ber o quanto o conhecimento dos ensinamentos e exemplos de vida brasileiros que lutem por essa causa e termina de
de pessoas singulares pode mover grupos e toda a sociedade. Este forma enfática, dizendo: “Vamos salvar o Brasil,
é o sentido mais profundo e pedagógico de que o conhecimento salvemos nossa cara pátria”. Então, nós vamos
liberta. Também este é o sentido de se vasculharem documentos refletir sobre a necessidade da auditoria cidadã da

revisão
antigos que estavam se deteriorando nos arquivos diocesanos: ali- dívida, para rever essas privatizações. O segundo
mentar utopias e colaborar para que “os justos perseverem”. Isto manifesto já tem um contexto mais profundo num
tudo é, a um só tempo, grandioso e pequenino, diante do muito horizonte bastante político e social. Quem sabe,
a ser recuperado no campo da memória. Talvez por isto, Gomide necessitemos de um terceiro manifesto, colocando
tenha encerrado sua fala com as seguintes palavras: “Cada vez mais, claramente que, além dessa luta, nós temos uma
eu desejo me sentir muito pequeno e desejo me sentir não sendo luta em nossa alma também, porque nós deseja-
nada. Eu quero que o sagrado me coloque, possa me ungir com o mos refletir sobre a comunidade do Caldeirão e

178 179
buscar intuir que termo simbólico a prática, a ex- mento, senti que havia, por parte da população de Juazeiro e de
periência do Caldeirão podem nos servir nos dias romeiros que assistiam à manifestação, certa perplexidade, pois a
de hoje. Exatamente esse paradigma, de nada é maioria sequer sabia que o corpo da beata havia sido sequestrado e
de ninguém, tudo é nosso! A busca da fartura, de seu túmulo demolido. Nas escolas do Horto, onde realizei observa-
fazer aqui um caminho do céu... de como pode- ções participantes, conversei com professores e estudantes que dis-
mos florir nossos quintais, as nossas portas, nossas seram desconhecer o movimento. Apenas uma professora da Escola
hortas, plantar o máximo possível de frutas nas Sebastião Teixeira tinha ciência das reivindicações e fez o seguinte
nossas casas, nas chácaras, nas praças, nos logra- comentário: “Já vi, mas não gostei, não. Penso que não adianta for-
douros, ou seja, o que a comunidade do Caldeirão çar a Igreja a nada. A igreja tem seu tempo!”
pode nos auxiliar? Como ela pode ser para nós Seu Evilásio, cuja entrevista já foi comentada neste capítulo, fa-
uma busca de uma realização de que aqui seja lou o seguinte: “Pensei até em seguir a procissão pela Santa beata,
uma nova Caldeirão, o Cariri, a nova Caldeirão, mas quando eu soube que o padre não estava aprovando, não fui
o Ceará, o Nordeste, o Brasil, o mundo, a nova não.”
Caldeirão? Eu me lembro de quando a professora
Estamos diante de diferentes percepções sobre o tempo para fa-
Luitigard disse que a salvação da humanidade
zer as coisas e as formas de condução das lutas sociais, sobretudo
estava na prática dos Beatos. Essa escola, que eu
quando estas estão na confluência de questões religiosas.
creio que é a verdadeira escola de Cristo, para
vir e que todos tenham a vida em abundância. Encerro minhas reflexões trazendo um balanço feito por Renato
Se tem algo que é grandioso, é acalentar nossos Dantas sobre o papel da Arte no ressurgimento de Maria de Araújo
sonhos, nossos ideais, até o último segundo, o úl- como figura histórica que não pode ser esquecida:
timo momento de nossa respiração, sabendo que

revisão
posso fazer muito pouco, mas se tem homens e mu- Há uma busca pela historicidade da Beata Ma-
lheres sonhando hoje, é porque nosso antepassa- ria de Araújo na atualidade. Quando o coletivo
dos também tiveram a busca e vieram abanando 100 diferente lançou o panfleto “Procura-se” com
alusão a vários aspectos de sua historicidade: os
esse fogo até chegar até nós, e nosso dever é esse, milagres que apresentava; sua condenação por
nossa missão é continuar assoprando essa brasa, Roma; a morte em plena “Guerra de 14”, a vio-
essa brasinha, esse fogo, pra deixar esse sonho às lação do seu túmulo, tudo isso aguçou a juventu-
futuras gerações. de juazeirense em saber mais sobre a importân-
cia de Maria em nossa História. Em 2018 artistas

revisão
de diversos matizes de nossa cidade resolveram
É muito cedo para fazer uma avaliação sobre o movimento em através de encontros e passeatas discutir a Beata
tela. Mesmo em seu interior, ele não alcançou pleno amadureci- Maria. A poética encontrou Maria e muitos va-
mento, havendo dúvidas quanto à sua amplitude e às estratégias a tes expuseram seu pensar sobre a sua vida. Há
também uma profusão de imagens na pintura,
serem utilizadas para sensibilizar a população e mobilizá-los para os escultura, cinema, cordel e livros rebuscando o
enfrentamentos. ato falho da nossa terra que foi colocar Maria de
Acompanhando uma das caminhadas organizadas pelo movi- Araújo em quarentena. O motivo... são outros
quinhentos.

180 181
Vimos, neste livro, uma confluência de motivos para o silencia-
mento em torno de uma figura mística e fundamental para a his-
tória local. Do mesmo modo, temos, hoje, motivos variados para
trazê-la ao papel que ela sempre teve: parceira do Padre Cícero na
tarefa de socorrer os aflitos e difundir o Evangelho do Cristo vivo.
CONCLUSÕES... COM A CERTEZA E A
ALEGRIA DE NÃO TER DADO A ÚLTIMA
PALAVRA
Alegrai-vos e exultais (Mt 5,12), diz
Jesus a quantos são perseguidos ou
humilhados por causa d’ele. O Senhor
pede tudo e, em troca, oferece a vida
verdadeira, a felicidade para a qual fo-
mos criados. Quer-nos santos e espera
que não nos resignemos com uma vida
medíocre, superficial e indecisa. Com
efeito, a chamada à santidade está pa-
tente, de várias maneiras, desde as pri-
meiras páginas da Bíblia. Para Abraão
o Senhor propô-la nestes termos:
‘anda na minha presença e sê perfeito.
(Papa Francisco)

revisão Nas reflexões desenvolvidas ao longo deste livro, procurei dialo-


gar com os principais autores que se debruçaram, numa perspectiva
disciplinar ou interdisciplinar, em torno da temática do fenômeno
religioso de Juazeiro do Norte, focando na figura daquela que deu
origem às romarias e à crença de que aquele é um lugar de redenção
em que “os justos perseverarão”. Com apoio da teoria sociológica da

revisão
interseccionalidade e das teorias pós-coloniais, busquei compreender
as razões entrecruzadas que produziram seu quase apagamento da
história local.
Realizando observações participantes, ouvi romeiros, pesquisa-
dores, militantes dos movimentos sociais e artistas do Cariri, iden-
tificando a presença de Maria de Araújo como mártir, guerreira e
como santa. A memória política e religiosa da beata está em disputa
e, nos esforços de fazê-la presente na história, nas romarias e na es-

182 183
cola as razões entrecruzadas para o seu silenciamento, vão ficando plo pertencimento. A busca do que nos unifica como seres humanos
claras: sua condição de mulher nordestina-negra-índia-pobre-analfa- só pode ser feita no reconhecimento e respeito às diferenças.
beta-médium-mística. Mostrei que os dois últimos aspectos ainda não Maria de Araújo representava o povo de Deus que experimenta
receberam um tratamento mais detido, o que exige novas pesquisas. Sua presença viva e que quer se fazer igreja, em profunda comunhão
Apontei o desconhecimento do clero e dos pesquisadores sobre com o corpo de Cristo presente na hóstia consagrada e no serviço ao
mística e problematizei a mística popular, mostrando que sua conside- próximo. Mostrei que no contexto de uma Igreja que atravessava um
ração exige relações alteritárias, em que o outro seja encarado como processo de romanização, as manifestações fervorosas do catolicismo
legítimo outro, a quem não se pode impor esquemas mentais, sejam popular foram podadas e monitoradas pelo clero. As perseguições à
psicologizantes ou medicalizantes. Vi que a manutenção da dimensão beata, ao Padre Cícero e à nação romeira traziam a marca do desejo
mística nos quadros da patologia ou anormalidade é uma forma de de “purificar” o catolicismo, impondo-lhe os símbolos e ritos trazi-
colonialidade do ser, que objetiva perpetuar a dependência a autori- dos da Europa. A historiografia, no primeiro momento, colocou-se
dades e dogmas. na perspectiva da modernização dos costumes e superação do “fana-
O vínculo íntimo com Deus é um desejo da criatura que busca tismo” que eles viam naqueles diferentes de si.
entender-se no mundo e para além dele (transcendência). Tendo Nos trabalhos apresentados nos cinco simpósios internacionais so-
afirmado a autoridade de Cristo frente à autoridade eclesiástica e bre o Padre Cícero, vi a intenção explícita de superar tanto as elabo-
sustentado que era instrumento de Deus, Maria de Araújo foi exco- rações detratoras quanto as apologéticas em relação às personagens
mungada, tratada como embusteira, histérica, louca e cismática. As centrais da história de Juazeiro do Norte. Como asseverou Ralph
pessoas apartadas da intimidade com Deus se irritam com as místicas Della Cava (1976/2014), não se trata de fazer hagiografia, nem de-
e as têm como perigosas ou desequilibradas. Por quanto tempo ainda monologia. Houve, sim, por parte das pesquisas, um grande esforço
manteremos tais comportamentos? Quantas Maria de Araújo existem para compreender o Padre Cícero e, em menor medida, Maria de

revisão
neste Nordeste brasileiro, a sofrer por sua condição e por seus devo- Araújo, num quadro mais amplo de transformações socioeconômicas
tamentos? e políticas do Brasil, assim como das consequentes transformações
Qualquer ser humano, independente de pertenças religiosas ou no catolicismo. Com as ferramentas da Antropologia e da Sociologia,
não, pode descobrir e investir na sua dimensão mística. A pessoa mís- pesquisadores de diferentes áreas, buscaram compreender as origens
tica é aquela que descobre em toda plenitude o amor de Deus (dê-se a das romarias, suas tensões, rupturas e continuidades, dando-se, pau-
Ele o nome que quiser), unindo-se a Ele. É uma experiência interior latinamente, centralidade às narrativas daqueles que as sustentaram,
de Deus, que extrapola qualquer vivência ordinária do prazer carnal. mesmo quando eram perseguidos.
É gozo espiritual, que escapa ao discurso racional, mas seu acesso, Entender as motivações do povo nordestino para continuar em

revisão
em algum nível, pode ser facilitado pela narrativa e pelas diferentes romaria e o modo como a santidade do Padre Cícero foi construída
linguagens artísticas. também foi uma temática recorrente que preparou o caminho para
A realidade plural das experiências religiosas nos interpela à con- que es entenda, também, a santidade de Maria de Araújo. Pessoas,
sideração da riqueza no campo da espiritualidade. No fundo, o apelo fatos e movimentos invisibilizados ganharam, paulatinamente, espaço
à alteridade é um chamado para que aprofundemos nossas próprias nas pesquisas: beatas e participação feminina nos fenômenos religio-
experiências e fortaleçamos nossos vínculos com o lugar escolhido sos inaugurais e na existência do catolicismo popular tradicional; a
por nós. Não é ameaça à zona de comodidade, nem convite ao múlti- importância de José Marrocos na história de Juazeiro e da luta abo-

184 185
licionista; a força das penitentes e o significado das suas narrativas tentar entender por que os critérios de santidade e de mística aceitos
míticas; as beatas, em geral, e o beato José Lourenço na experiência pela Igreja Católica não se aplicaram – e ainda não se aplicam – à
comunitária do Caldeirão; as manifestações artísticas tradicionais e beata Maria de Araújo. Procurei mostrar que as estratégias utilizadas
seu papel no imaginário sobre o Padre Cícero e sobre Juazeiro como para produzir e perpetuar o silenciamento em torno da beata são as
terra santa; a participação negra na história do Cariri e nas manifes- mesmas que tentaram/tentam silenciar milhares de outras mulheres
tações religiosas e culturais. no interior dos diferentes sistemas religiosos.
Ainda há, no meio acadêmico, uma dicotomização entre a santida- Diante dos recuos no campo democrático nos últimos três anos,
de do Padre Cícero e da beata. Entre os romeiros que tiveram acesso é necessário fortalecer o anúncio e, sobretudo, a vivência em todos
às narrativas sobre o milagre por familiares ou, recentemente, através os espaços educativos, de uma pedagogia emancipatória/de(s)colonia-
da Internet, do teatro ou dos movimentos sociais, não existe essa po- lizante que inunde nossos corações de esperança. Seguindo o sábio
larização: há espaço para a santificação de ambos! Há espaço, inclu- conselho de Frei Betto “deixemos o pessimismo para tempos melho-
sive, para entendermos que todas nós somos chamadas à santidade, res!”
conforme carta do Papa Francisco recentemente divulgada. Reafirmo a potência da narrativa de si para a construção de conhe-
Sem desconsiderar o poder discriminador da cultura machista, cimentos alicerçados no paradigma do singular-plural. Pela singula-
não posso concordar com aqueles que atribuem o silenciamento da ridade de uma vida, pude compreender várias facetas das relações
beata do milagre apenas à sua condição de mulher negra/índia. Mos- sociais totais. Com a experiência de Maria de Araújo, foi possível pen-
trei, neste livro, um entrecruzamento de razões, a envolver gênero, sar uma sociedade regida por processos colonializantes e, ao mesmo
classe social, raça, nível de escolaridade e pertencimento ao Nordes- tempo, anunciar pistas para outro mundo possível. Ter espaço para
te brasileiro. Acrescentei mais dois fatores de isolamento e aversão à dizer sua palavra e ser verdadeiramente ouvido, ou seja, pronunciar
beata: a mediunidade e a condição de mística. Também não concordo sua palavra para alguém que também está aberto para ser transfor-

revisão
que seu quase desaparecimento da história e das devoções dos romei- mado por ela é um exercício de alteridade e de verdadeiro diálogo,
ros se deu para que se afirmasse a santidade do Padre Cícero. Para no sentido etimológico do termo, de deixar-se atravessar pelo outro,
elevar a beata ao lugar que lhe é devido na história do Juazeiro, não por sua verdade.
é necessário diminuir o papel do seu diretor espiritual, que, mesmo As transmissões intergeracionais foram fundamentais para man-
antes do milagre, já era admirado e tido como conselheiro e sacerdote ter a memória viva da beata Maria de Araújo. Os “causos” contados,
virtuoso. Por que não admitir o sentido de complementaridade de sobretudo pelas mulheres da família, quebraram silêncios e alimen-
uma dupla perfeita na defesa do Juazeiro como lugar sagrado? taram os mistérios em torno desta mulher nordestina, nascida em
A manutenção do silêncio em relação à beata Maria de Araújo e um lugarejo cearense, que acreditou nas promessas que ela afirmava

revisão
a outras figuras da história local fortalece uma visão de mundo ex- ter ouvido de Cristo, no sentido de fazer de Juazeiro do Norte “uma
cludente, machista e misógina; por isso, são muitos os desafios para porta do céu e um lugar de salvação das almas”. Ela resignou-se, san-
a concretização de processos educativos, escolares ou não, atentos à tamente, diante do martírio a que foi submetida, por incorporar as
problematização da história local e às denúncias dos processos subal- ordens que ela afirmou, sob juramento, ter recebido de Jesus Cristo,
ternizantes. Não é preciso ser católico para problematizar o modo repetidas vezes: que aplicasse a si mesma os sofrimentos diversos de
como Maria de Araújo foi tratada na sua própria comunidade religio- Sua paixão. O sangramento da hóstia e as demais “maravilhas” ope-
sa. Qualquer pessoa pode encontrar ensinamentos importantes, ao radas através dela não foram o que a santificou, mas sua persistência

186 187
na oração e no serviço ao próximo. pergunta anterior, ia de encontro a todos os teólogos, tendo à frente
Espero que este livro contribua para que o Ensino Religioso e os S. Tomás de Aquino, assim como outros fatos já aprovados pela Santa
Estudos Regionais, componentes curriculares potenciais para apre- Sé, como os de Orvieto, Ferrara, Bagno, Subiaco e outros. Cento e
sentar a figura da Beata Maria de Araújo no ensino fundamental, vinte e nove anos depois continuamos sem esta palavra, até quando?
sejam espaços problematizadores sobre as razões para a perpetuação No que me coube, como educadora e cientista das religiões, mos-
do silêncio em torno da mesma. A intenção não é instituir um tribunal trei que o lugar de destaque da beata Maria de Araújo na história de
para expor os erros da Igreja Católica Apostólica Romana, mas iden- Juazeiro do Norte já começou a ser restituído em diferentes níveis: na
tificar os processos colonializantes e perpetuadores do assujeitamento produção acadêmica; nas lutas feministas; nas obras artísticas; e nas
das pessoas mais simples, infelizmente ainda presentes, em seus tra- ações do poder público. Nesta última esfera, há projetos e leis que
ços gerais, na sociedade contemporânea. perpetuam o nome da santa de Juazeiro em ruas, praças, comendas
Encerro, consciente do quanto ainda é preciso pesquisar para des- e publicações.
velar as tramas que envolveram um “sacerdote da roça”, profunda- Mas o que concluí sobre o lugar de Maria de Araújo no coração
mente incompreendido no seu tempo, e uma nação romeira, devota das pessoas? Primeiramente pude identificar um movimento lento,
e fiel às suas crenças, representada por uma mulher que trazia tudo mas ascendente, de descoberta das qualidades espirituais daquela que
que a elite opressora desejava/deseja apagar: o lugar de protagonista partilhou com o Padre Cícero a missão de fazer de Juazeiro uma terra
da mulher, a força da resistência das raças consideradas inferiores – o de redenção.
negro e o índio –, a dinamicidade da presença leiga no interior da Temos muito a aprender com esta Maria! Sinto-me transformada
Igreja, buscando colocá-la a serviço dos mais pobres. ao terminar este livro. Com coragem, enfrento a minha dimensão
Não pretendi trazer conclusões fechadas para uma temática tão mística e as dificuldades de me santificar. Com alegria, partilhei as ex-
vasta quanto a que foi proposta neste livro. Também, em nenhum periências de resistência e de afirmação da liberdade de manifestação

revisão
momento, intencionei entrar nas discussões da Teologia dogmática/ das crenças religiosas populares. Falei da liberdade do povo nordes-
sagrada, enveredando pelo mérito de saber se ocorreu um milagre tino de expressar suas devoções e viver suas experiências religiosas,
em Juazeiro, tal qual caracterizado nos cânones católicos, não apenas apesar dos estigmas que lhe impingiram. Mesmo não sendo católica,
por fugir aos objetivos da pesquisa, mas porque entendo que esta é recebi com esperanças as elaborações de Medellín, Puebla e de Apa-
uma tarefa da própria Igreja Católica Apostólica Romana, através dos recida, assim como as cartas do Papa Francisco, a nos lembrar das
seus teólogos. Conforme visto no capítulo I, o Padre Clycerio, delega- riquezas da religiosidade popular.
do episcopal do primeiro inquérito que averiguou “os factos extraor- Quando encerrava a formatação do presente livro, li no Jornal do
dinários do Joazeiro”, já alertava que, para a conclusão das disputas

revisão
Cariri de 24 a 30 de setembro de 2019, um comentário do sociólogo
em torno do evento eucarístico de Juazeiro, faltava a palavra dos teó- Hedras Souto, intitulado: Sem corpo, sem túmulo e quase sem óbito, em
logos. Afirmando obediência à Igreja, ele afirmava que seus debates que comenta o assento de óbito da beata Maria de Araújo. O pes-
com o bispo Dom Joaquim envolviam uma tese teológica: “dada a quisador impressionou-se com o descaso, pois nele constava apenas
aparição miraculosa de carne e sangue na hóstia consagrada, continua três linhas sem qualquer informação adicional, conforme visto na
a presença real de Jesus Cristo no Sacramento?”. Para esta questão, figura 19.
não havia unanimidade e, segundo o mesmo padre Clycerio, a posi-
ção do bispo, ao negar a possibilidade de ser afirmativa a resposta à

188 189
Figura 19 – Assento de óbito da beata Maria de Araújo

POSFÁCIO
PALAVRAS FINAIS... SERIAM?

Havia completado o texto que, enfim, distribuiria com uns pou-


Fonte: Livro de óbito de Juazeiro do Norte (Acervo pessoal de Hedras Souto)
cos leitores, na sintonia desta atualidade do que ainda se diz, e se
discute sobre a missão que coube à “infeliz” Maria de Araújo, entre
Em diferentes lugares, pesquisadores de diversificadas áreas do um nascimento - tão pouco sentido, ao tempo, até um repouso tão tu-
conhecimento vão acrescentando algum aspecto sobre o modo como multuado, pelos anos. Ocupara-me sobre algo que talvez não tivesse
a santa do Juazeiro foi tratada, tirando-a assim, da penumbra. razão maior de dizê-lo, se antes sugeri, e assim foi escrito em lápide
desconfiada: “eu não estou aqui... aliás, eu estou aqui”. Nessa crença

revisão
sobre o fato, e na descrença sobre os seus desdobramentos, à vista
do que temos presenciado, resolvi fazê-lo, ajuntando elementos que
me fortalecem neste sentimento e não me escondem na ignorância.
Assim, fui adiante do que já nem esperava ir tratando sobre este “de-
saparecimento” dos restos mortais desta Maria Magdalena. Do que
me disseram, ao conforto do que emprestamos reciprocamente, aos
escritos de uns e outros, ficou a impressão que não abusei substancial-

revisão
mente entre a aparente arrogância de gestos e atos, ao cientificismo
talvez competente para a continuidade das especulações e a certeza
de que a contemporaneidade comporta a palavra exata: crime. Na
generosa acolhida do procedente palavreado, com tal leitura qualifi-
cada, acudiu-me Ercília Maria Braga de Olinda, a considerar de boa
origem e valor o arrazoado de tais circunstâncias e argumentos, a
ponto de convidar para que este texto esteja apenso à conclusão deste
seu minucioso e competente livro, a nos esclarecer com reflexões que

190 191
confortam e ilustram o leitor mais atento. Que felicidade esta minha, O CRIME DO SOCORRO
na condição de um certo sortudo, que em tão boa companhia, ainda (ou a destruição do jazigo da beata Maria Magdalena do
tem o privilégio de aparecer para o fecho desta obra. Gracias a la vida Espirito Santo de Araújo, em 1930)
que me ha dado tanto! Então, sem mais arrodeio, conceda-me o privi-
Renato Casimiro
légio de sua leitura ansiosa, ao tempo que vou me sentindo endivida-
do em tão grata companhia, em meio a estes escritos da Dra. Ercília, a
merecer pelos tempos, de todos nós, gratidão e respeito. Maria Magdalena do Espirito Santo de Araújo, ou simplesmente
Maria de Araújo, entrou para a história de Juazeiro do Norte por
ter sido a mais importante figura, das que protagonizaram a cena do
Renato Casimiro
Milagre Eucarístico aqui acontecido, no início de março de 1889, Sex-
ta-Feira Santa daquele ano litúrgico. Desse real valor, do personagem
histórico que se tornou, já o disseram alguns dos seus biógrafos, em
várias publicações memoráveis, a exaltarem virtudes heroicas duran-
te a famosa Questão Religiosa de Joazeiro.

revisão Ilustr. 1: Três imagens da Beata Maria de Araújo: Da esq. para a direita - a:
a verdadeira (Juazeiro do Norte, CE, 1989), provavelmente após o Milagre
Eucarístico; b: uma outra beata do Joazeiro, desta mesma época, não

revisão
identificada; c: Beata Maria do Divino Coração, (Portugal) divulgada, como
sendo Maria de Araújo.

Não vamos nos ocupar aqui em revisar a vida da beata, muito


menos tentar percorrer sua trajetória, e tão somente indicamos nas
sugestões para leituras algumas fontes importantes para esta revisão
mais demorada. Para introduzir o que me motiva a discorrer, a pro-
pósito do título deste artigo, dou voz a este expressivo fragmento das

192 193
memórias de Amália Xavier de Oliveira, contido no seu apreciado Della Cava, e destas informações de Amália Xavier de Oliveira, temos
livro O Pe. Cícero que eu conheci: a situação do jazigo como foi construído, seguindo José Xavier de Oli-
veira a instrução do Pe. Cícero: situado entre a porta de entrada da
“Logo que a beata acabou de morrer, o Padre pro- Capela do Perpétuo Socorro, lado direito de quem entra, logo junto
curou meu pai (José Xavier de Oliveira, observo) e da parede interna da fachada, e próximo da primeira porta lateral de
me mandou ele encomendar o caixão mortuário acesso ao cemitério. O jazigo foi construído com paredes duplas de
que deveria ser todo de Cedro, com boa fechadu- tijolos, de forma retangular. Ele tinha uma altura de um metro, apro-
ra e envernizado por dentro e por fora. Mandou ximadamente, e tendo uma conformação de urna em que caberia o
ainda que, quanto antes providenciasse a sepultu-
ra mandando cavar dentro da Capela do Perpétuo caixão, com largura de sessenta centímetros, e cerca de dois metros de
Socorro, (tratando-se do poço do ossário, observo) comprimento. Ele tinha ao fundo um poço para servir de depósito,
na parede ao lado direito de quem entra, perto da de ossário, com a decomposição do corpo, logo abaixo de um “trave-
porta, recomendando que fizesse sobre a escavação jamento” (portanto, fundo falso de traves) que se supõe tenha sido de
o travejamento (uma grade de ripas de madeira, madeira. Deste modo, pela vinculação da construção à parede interna
provavelmente, para suportar o caixão, até a de-
da fachada da capela, a abertura da urna para o sepultamento estava
composição final do corpo, observo) no nível do
piso para receber o caixão, subindo depois um re- para o lado de dentro da capela.
tângulo com paredes de dois tijolos, um metro aci-
ma do piso, em forma de urna, semelhante a um
altar, deixando o caixão dentro. Assim foi ali, con-
servado até 1930 quando foram retiradas as pare-
des, ficando os restos mortais dentro da sepultura,
no mesmo local. Meu pai fez como ele determinou;

revisão
depois de depositar em aviada no caixão para en-
terrar, trancou, tirando a chave e no outro dia en-
tregou ao Padre Cícero.”

De acordo com esta descrição, apresento uma concepção deste


fato, através da ilustração anexa, onde se pode descrever sumaria-
mente as seguintes circunstâncias, coerentes com o texto apresentado
e sem novidades para o que já seria conhecido: o túmulo, o sepulta-

revisão
mento, dezesseis anos de tolerância, a demolição do jazigo, comentá- Ilustr. 2: Única imagem conhecida do Jazigo da Beata Maria de Araújo, na
Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, do Cemitério de Juazeiro
rios, resgate e repercussões, ...e agora?
do Norte, CE. Sem data precisa (1914-1930).

1.O TÚMULO

Nas sessões 1 e 2 da Ilustração 3 apresentada aqui, como concebi, a


partir da única imagem fotográfica que se conhece na obra de Ralph

194 195
2.O SEPULTAMENTO
O falecimento de Maria de Araújo mereceu o desprezo da Paró-
quia-Matriz de Nossa Senhora da Penha, em Crato, com o seguinte
e resumido assento do seu óbito, no respectivo livro do período de
1913, Abril / 1915, Fevereiro, p.77v: “Aos 17 dias do mez de Janeiro
de 1914 nesta Villa de Joaseiro, Freguesia do Crato, Estado do Cea-
rá, faleceo Maria de Araújo...” Como de praxe, e isto se pode ver
em assentos na mesma página do livro, outros dados do “cadáver”
são anotados. Mas, não foi o caso da “Maria”, tanto que se abre um
espaço (linhas em branco) para outras anotações que, enfim, nunca
foram feitas. Também não se assina, embora a página seja rubricada
pelo Pe. Antonio Jatahy de Souza (então vigário de Barbalha, certa-
mente cumprindo uma outra função). Maria de Araújo faleceu em
meio a um período de conflagração, em vista da chamada e nefasta
Sedição de Juazeiro, por forças estaduais, com o propósito de sua
destruição, não se tem dúvida. Neste clima, as menções encontra-
das na literatura que explorou o caso parecem nos convencer que
houve relevante reserva na publicização, tendo o fato merecido a
atenção particular do Pe. Cícero, haja vista a recomendação sobre a
urna mortuária. Passou à história a concepção que Maria de Araújo

revisão
“deu a sua vida” para libertar o Juazeiro de tão dramático episódio.
Sequer se tem notícias de que Pe. Cícero tenha participado do ato.
Quando faleceu Maria de Araújo, a Diocese de Crato ainda não
existia. Certamente era um projeto que se consolidaria “em 20 de
outubro de 1914, pelo Papa Bento XV, através da bula papal Ca-
tholicae Ecclesiae, desmembrada que foi do território da Diocese do
Ceará (hoje Arquidiocese de Fortaleza)”. A sede, portanto, passou
à Catedral de Nossa Senhora da Penha, então paróquia, cujo titu-

revisão
lar era o Mons. Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva, por sinal,
figura um tanto enigmática, aos “negócios do Joaseiro”. Voltamos
a Amália Xavier de Oliveira para a notícia fúnebre e de como foi
sepultada a devota:
“17.01.1914: Falece em Juazeiro a beata Maria
de Araújo. Dizem que a beata ofereceu sua vida
Ilustr. 3: Detalhes da construção do Jazigo da Beata Maria de Araújo e pela paz em Juazeiro, ameaçado de destruição
concepção sobre sua utilização e destruição, (1914-1930) (Renato Casimiro, pelas forças do Governo Franco Rabelo. Foi se-
em 22.10.2020).

196 197
pultada no dia 18, dentro da Capela do Socorro. 4.A DEMOLIÇÃO DO JAZIGO
A sepultura está localizada perto da 1ª porta da
frente, a direita de quem entra. Seu esquife mor-
tuário era de cedro envernizado por fora e por A Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, cena do sepul-
dentro fechado a chave. Sua mortalha era um há- tamento da beata, foi construída pelo empenho da senhora Hermí-
bito da Ordem Terceira de São Francisco.” (XA- nia Marques de Gouveia, em face de promessa feita para a cura de
VIER DE OLIVEIRA, A., Juazeiro e suas me-
mórias, texto manuscrito). uma moléstia acontecida com o Pe. Cícero. Ela teve a sua conclusão
em 1908. Daí, então, não houve qualquer interesse da Paróquia de
Nossa Senhora da Penha (Crato-CE), até 1914 e, consequentemen-
3.DEZESSEIS ANOS DE TOLERÂNCIA te, da Diocese de Crato, a partir daí, em promover a sua consagra-
ção e bênção, a despeito de ser a capela do campo santo da cidade,
Entre 18 de Janeiro de 1914 e vinte e dois de outubro de 1930, em substituição ao velho cemitério da Rua Nova (hoje Av. Dr. Floro
este túmulo de Maria de Araújo mereceu do povo desta cidade, Bartholomeu), erradicado completamente no início dos anos 1950,
desta região nordestina, uma reverência respeitosa como se ali uma para a construção de uma nova Capela. Segundo as anotações mais
santa “residisse”, e “viva”, uma destas mediações importantes da fé sumárias da professora Amália Xavier de Oliveira:
sertaneja, a caminho da vida eterna, na crença de sua ressureição. A
única imagem guardada e aqui reproduzida neste texto mostra que “22.10.1930: O vigário de Juazeiro, Mons. José
a sua conformação material era de um espaço singelo, sem osten- Alves de Lima derruba o túmulo de Maria de
tação, o suficiente para conter uma oferenda de flores, a chama de Araújo, ereto na capela do Socorro, na parede la-
teral, junto à porta de entrada que é localizada à
algumas velas em castiçal, uma imagem na parede e um crucifixo a
Direita de quem entra. O vigário queria preparar
declarar a seu amor em Cristo, Jesus. a capela para receber a benção do 2° Bispo do

revisão
Rebuscando papeis, jornais, livros e outras fontes, não se encon- Crato, D. Francisco de Assis Pires. Os restos mor-
tram denúncias de que este jazigo tenha sido objeto de profanação tais estavam desfeitos no esquife e caíram no de-
pósito de alvenaria que foi logo fechado com pla-
e de intolerância. Houve uma determinação expressa do Patriarca
ca de cimento. O Pe. Cícero que não fora avisado,
que foi cumprida à risca. Naquela Capela estão sepultados os restos logo que soube do ocorrido vivamente contraria-
mortais do Pe. Cícero, por decisão de outros que o sepultaram, o do, mandou registrar no 2° Cartório umas notas
corpo de sua mãe, das duas irmãs (Mariquinha e Angélica), de dona informativas que foram assinadas por algumas
Hermínia Marques de Gouveia, de Tereza Maria de Jesus, uma es- pessoas, por ele mesmo convidadas. Nestas notas
constam que foram encontrados: escapulários de

revisão
crava alforriada e que serviu longamente à família do Pe. Cícero,
Nossa Senhora das Dores, do Carmo e da Paixão;
e o da beata Maria de Araújo, sem que até hoje não saibamos pre- um pedaço do crânio com cabelo que foi guardado
cisamente onde seus corpos foram depositados, no mais completo num depósito de vidro; este depósito teve destino
anonimato para a atualidade, a não ser os casos do Patriarca e da ignorado. Assinaram o documento como testemu-
beata, nos atos do sepultamento. nhas: José Geraldo da Cruz – Interventor Munici-
pal; João Cândido Fonte – Fotógrafo; Ildebrando
Oliveira; Pelúsio Correia de Macedo; José Ferrei-
ra de Meneses.” (XAVIER DE OLIVEIRA, A.,
Juazeiro e suas Memórias).

198 199
Estas notas referidas foram elaboradas pelo rábula José Ferreira em tanto sangue que se extravasou na boca e de
de Menezes. Tenho entre os meus guardados, como preciosidade alastrou por cima da murça derramando-se sobre
deste momento, o rascunho que ele realizou para tal elaboração. A a roupa que trajava, chegando a gotejar no chão
em grande quantidade. Daí então não pode mais
propósito da menção deste protesto do Pe. Cícero, transcrevemos ocultar o fenômeno que se tornara tão patente e
seu texto, dos originais em cartório: principalmente porque ela ficava em êxtase por
muito tempo. Vulgarizado o fato se reproduzia
COM QUALQUER SACERDOTE que lhe minis-
“1930, 03 de dezembro – “Transcrição de um
trasse a comunhão, foi então devidamente estuda-
documento particular: NESTE VIDRO DEVI-
do o fenômeno por médicos competentes como fo-
DAMENTE LACRADO SE ACHA TUDO QUE
ram os Doutores Ildefonso Correia Lima e Marcos
ENCONTROU-SE NOS DESPOJOS MORTAIS
Rodrigues Madeira que além de outros atestaram
DA BEATA MARIA DE ARAÚJO, QUANDO EM
que se tratava de um fato sobre humano cuja ex-
22.10.30 FOI O SEU TÚMULO ABERTO CLAN-
plicação escapava a ciência médica. Nesse mesmo
DESTINAMENTE POR ORDEM DO REVDMº
tempo o Exmo. Sr. Bispo Diocesano Dom Joaquim
VIGÁRIO DESTA CIDADE MONSENHOR JOSÉ
José Vieira nomeou na Fortaleza uma comissão
ALVES DE LIMA.
especial composta pelo Revdmo. Padre Glicério
O nome da Beata Maria de Araújo se prende aos da Costa Lôbo secretariado pelo ilustrado padre
falados milagres que tanto celebrizaram o antigo Francisco Antero para sindicarem rigorosamente,
povoado do Juazeiro, transformado hoje em flo- a qual em demorado tempo tomando as necessá-
rescente cidade. Do humilde casal Antonio Araú- rias precauções, examinou conscienciosamente
jo e Anna de Araújo, naturais deste lugar onde tudo e por fim atestou também que os fenôme-
viveram e morreram como bons católicos, nasceu nos observados eram sobrenatural (sic). Além da
Maria de Araújo e mais três irmãos, perdeu to- transfusão do sangue da Beata Maria de Araújo
dos ainda na infância os seus genitores. Maria de

revisão
por várias vezes ficava extática e imóvel apresen-
Araújo com desvelo e cuidado tratou da criação tando estigmas da Paixão de Nosso Senhor Jesus
dos seus irmãos, em cujo penoso trabalho não en- Cristo, vertendo sangue das mãos, dos pés, da
fraqueceu a tendência religiosa manifesta desde chaga do lado do coração em tanta quantidade
os oito anos de idade quando começou a confes- que parecia não poder sobreviver a tão grande
sar-se e comungar frequentemente com profunda derramamento de sangue, e dos furos como pon-
e sincera devoção. Humilde por natureza e pobre tadas de espinhos que circundavam a cabeça. O
por condição, o seu nome tinha o menor relevo, ilustrado professor José Marrocos denodado abo-
até por causas que lhe eram estranhas, começa- licionista do Ceará, acompanhou o desenrolar dos
ram a aparecer alguns fenômenos por ocasião em

revisão
fatos e catalogou todos os documentos da época
que recebia na mesa da comunhão a hóstia sa- atinentes ao fenômeno, dando-lhes pública no-
cramental das mãos do seu confessor. É que então tória do primeiro Tabelião de Barbalha. Foi tão
a sagrada partícula ao ser posta na sua boca se grande a repercussão destes fatos que a Santa Sé
transforma em sangue, o que ela debalde procu- mandou instaurar um processo Canônico, sendo
rou sempre ocultar das pessoas presentes. Suce- necessário o Padre Cícero Romão Baptista então
deu, porém que na primeira sexta-feira de março Capelão do Juazeiro, ir a Roma para se defender.
de ano de mil oitocentos e oitenta e nove, estando Terminado o processo com a absolvição do Padre
Maria de Araújo com outras mulheres na mesa da Cícero, mandou-a a igreja a fazer silêncio sobre
comunhão, ao receber a hóstia, esta se transforma

200 201
os acontecimentos da Beata Maria de Araújo que trando já aberta a sepultura de momentos e foram
daí por diante não decaiu de suas virtudes cris- informados do pedreiro encarregado do vigário
tãs. O saudoso Padre Joaquim Sóther de Alencar que só existiam ali restos de panos e a madeira
e outros virtuosos sacerdotes foram seus últimos do caixão. Passaram então os encarregados a exa-
confessores em substituição ao Revdmo. Padre Cí- minar o interior do túmulo que nada continha e
cero Romão Baptista. Em dezessete (17) de janei- os escombros atirados para fora donde colheram
ro de mil novecentos e quatorze (1914) em plena apenas uns escapulários das irmandades e o cor-
revolução política, a mística maria de Araújo deu dão da Irmandade de Nossa Senhora do Carmo,
alma ao Criador a quem dias antes se oferecera da Paixão e outras irmandade o cordão de São
dando sua vida para a salvação do povo do Jua- Francisco e um pedaço do crânio com cabelos, que
zeiro que se achava debaixo do cerco das forças religiosamente está guardado neste vaso de vidro.
do Governo Estadual representado pelo Coronel A Beata Maria de Araújo que na sua vida foi ca-
Franco Rabelo. O corpo da Beata Maria de Araú- luniada de toda sorte, teve ainda depois de morta
jo foi trajado, no hábito da ordem terceira de São violado o seu túmulo. Para perpetuar a ocorrên-
Francisco, e foi depositado e trancado a chave em cia foram escritas estas notas informativas que
um ataúde de cedro, devidamente envernizado a serão transcritas no Cartório do segundo Tabelião
óleo por dentro e por fora e sepultado na capela Público desta cidade e o original devidamente as-
de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro conjunta sinados pelas testemunhas José Geraldo da Cruz,
do Cemitério Público , no dia dezoito (18) do mês Interventor Municipal, fotógrafo João Cândido
e do mesmo ano, sendo acompanhado por grande e Fontes, firmas são reconhecidas com mais duas
multidão de pessoas dentre as quais se destacava testemunhas Pelúsio Correia de Macêdo e José
o Padre Cícero e importantes vultos políticos do Ferreira de Menezes que sabem do fato e das mi-
Estado que se achavam refugiados no Juazeiro. nudências. Juazeiro, 3 de dezembro de 1930.” (Ta-
Continuou Maria de Araújo na memória de todos, belião do Segundo Oficio, Juazeiro-CE, Livro 7,

revisão
sem falar nos fenômenos nela operados até que no folhas 86/87, transcrito de MACHADO, 1994).
dia vinte e dois do mês de outubro de mil novecen-
tos e trinta, o Monsenhor José Alves de Lima man-
dou abrir o seu túmulo de alvenaria onde estava 5.COMENTÁRIOS
sepultada Maria de Araújo, e os encarregados do
serviço asseveraram que não existia dentro do re-
ferido túmulo os restos mortais da mesma Beata. Nestes anos todos, entre 1930, data do fato, e a atualidade,
A violação do túmulo foi surpresa e sem proceder quando o caso reaparece, na esteira do resgate da dignidade de tão
autorização legal, sem conhecimento, sequer do exemplar devota, maltratada pelas designações preconceituosas de

revisão
respectivo zelador do cemitério o senhor Hilde- negra, pobre, analfabeta, fanática, mistificadora, etc, etc, ainda com
brando Oliveira. Sabendo o Padre Cícero que se
a velha chamada do tipo “onde está o “corpo” da beata Maria de
tratava arrasando o referido túmulo chama rapi-
damente o atual governador da cidade o farma- Araújo?”, diversas questões foram suscitadas. A primeira diz respei-
cêutico José Geraldo da Cruz para conjuntamente to a quem determinou. Vejamos o seguinte cenário a envolver per-
com o fotógrafo João Cândido e Fontes assistirem sonagens do clero caririense de então, numa cronologia que inclui
no ato exumatório e mandaram recolher os restos a data da violência.
mortais em outro túmulo no cemitério. Esses se-
nhores sem perda de tempo foram ao local, encon- 1. Dom Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva foi o primeiro
bispo de Crato, e faleceu investido, em 28.12.1929. Mas, quando

202 203
Maria de Araújo foi sepultada, o superior do Pe. Cícero, já que a estava claro: era a necessária destruição do jazigo como fonte de
capela de Juazeiro estava submetida à Paróquia de Nossa Senhora prática fanática, e como resquício de uma época que de tudo seria
da Penha, cujo vigário era Mons. Quintino Rodrigues de Oliveira necessário fazer para acabar de vez. Era necessário “devolver a Ca-
e Silva. Mas, em 20.10.1914 foi criada a Diocese de Crato, para a pela à sua condição de imaculado templo católico”, para a bênção,
qual foi escolhido Mons. Quintino por D. Manoel da Silva Gomes, como de fato aconteceria depois. Estranho é imaginar que este tem-
Bispo do Ceará, inicialmente na função transitória de Governador plo, por mais modesto que fosse, tinha a significação de estar “na
e Vigário Geral. Ele foi efetivado como primeiro bispo de Crato, em derradeira morada” de tantos devotos, talvez pela própria Igreja,
10.03.1915, com posse em 10.01.1916. Mas não estava ausente de ilegitimamente, pois sequer lhe concebera a graça de uma bênção.
Crato e tinha função explícita, no ato do sepultamento. Portanto, é da minha exclusiva reflexão que esta decisão é credita-
2. Mons. Joviniano da Costa Barreto, entre março de 1919 e da ao consenso de Quintino, Joviniano, Vicente Sóther e José Alves
março de 1936, foi o secretário do Bispado do Crato. Mas, um pou- de Lima, sendo este último – folclórico e bonachão, como o conheci
co antes, já em 26.03.1935, acumularia inicialmente o cargo com a na minha juventude, o executor, o que determinou o gesto – sem
designação para Vigário da Paróquia-Matriz de Nossa Senhora das dúvida, mercê a visibilidade e a delegação desta hierarquia. Então,
Dores, em Juazeiro do Norte. ele serviu a isto.
3. Monsenhor Vicente Sóther de Alencar, face a vacância do Como teria sido esta destruição? A caixa (Urna), em alvenaria,
titular da Diocese de Crato, e a demora na nomeação do seu se- teria sido destruída, sem a presença de curiosos, provavelmente às
gundo Bispo, D. Francisco de Assis Pires, que somente ocorreu em portas fechadas e teria sido constatado - já que 16 anos depois do
11.08.1931, foi eleito como substituto de D. Quintino, na condição sepultamento, com o corpo em decomposição, talvez, também, com
de Vigário Capitular da Diocese, função em que permaneceria até a ruptura do fundo do caixão e das traves de sustentação, pela pu-
a posse de D. Francisco, em 10.01.1932. trefação inevitável. Talvez o pedreiro não tivesse ordem para retirar
qualquer coisa dali, sabendo que havia poço abaixo do piso, como

revisão
4. Mons. José Alves de Lima, que já fora secretário do Bispado
no desenho. Então, minha hipótese é de que restou parte do caixão
de Crato durante o ano de 1916, foi nomeado vigário de Juazeiro
(Cedro, madeira resinosa de notória ação antimicrobiana) com resí-
do Norte, e assim permaneceu entre 13.05.1927 a 17.04.1933.
duos como se descreve. Penso que a beata está lá mesmo, soterrada
Portanto, a não ser que ignoremos completamente o que se de- pelos resíduos da destruição do seu próprio túmulo, pela violência
senharia sobre a hierarquia da Igreja no Cariri, naquele período, da atitude.
a decisão de destruição do túmulo de Maria de Araújo foi algo que
Não é difícil imaginar que a carga microbiana nestes dezesseis
envolveu o entendimento destes quatro personagens. Na cronolo-
anos de sepultura tenha produzido uma completa decomposição

revisão
gia apresentada, justifica-se inicialmente que os três últimos citados
da matéria orgânica sobre o cadáver de Maria de Araújo. Ou não?
eram personagens do dia-a-dia da diocese/paróquia no território
Pois já não podemos falar de um caso de incorruptibilidade. Onde
do acontecido. Quanto a menção sobre D. Quintino, só um ato de
estaria a novidade, em se tratando de alguém que tanto se pro-
ingenuidade desacreditar que ainda na existência do foco de um
curou reduzir? Exatamente na compreensão do fato intransferível
grave problema, como a existência de Pe. Cícero Romão Baptista,
de que ele também se estenderia sobre madeira, tecido e outros
ainda com lucidez, suas ações e preocupações não envolvesse aque-
materiais daquela urna. Aliás, como já nos advertia o velho Louis
la que era uma das mais importantes paróquias da diocese e uma
Pasteur: “Messieurs, c’est les microbes qui auront le dernier mot.”
das suas capelas. Aliás, é conveniente também referir que um fato

204 205
Penso nisto, ora direis, até com tal frieza, de que decomposto,
isto é – minimamente composto, seus restos mortais, uma vez que
alguns resíduos foram encontrados (leia-se no texto do protesto, as-
sinado, testemunhado e registrado), de algum tempo afundara no
poço do ossário, de modo que a destruição da alvenaria terminou
por seus resíduos, efetivamente, sepultar definitivamente os restos
mortais da beata, ali mesmo. Então, eu lhes suplico que não me
tomem por ignorante ou descrente o quanto quiseram me conven-
cer de que, anteriormente, ou ao calor desta destruição, seu corpo
foi levado para local ignorado. Observo que essa crença, não algo
que desejo lhes convença já foi materializada quando atendendo
convite e provocação de Geová Sobreira, no desejo de fixar placa
na parede exterior da capela, aliás, a segunda em que participo, a
lembrar esse derradeiro capítulo da existência da beata, insinuei e
assim ficou escrito, sobre Maria de Araújo, parafraseando e modifi-
cando o epitáfio do poeta Mário Quintana, em cemitério portoale-
grense: “Eu não estou aqui. Aliás, eu estou aqui...”

revisão
revisão
Ilustr. 4: Personagens históricos de Juazeiro do Norte cujos restos mortais foram
sepultados em no interior da Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

206 207
Como comentários finais a estas modestas reflexões, menciona- 1. A constatação do fato levou o Pe. Cícero, presbítero
ria o detalhe significativo da postura do Pe. Cícero com respeito punido e afastado de sua Igreja, a formular através de um
às recomendações feitas ao encarregado - José Xavier de Oliveira, instrumento registrado em Cartório, relatando e firmando
cujo zelo mais se esmerou pela exigência de urna mortuária com o protesto sobre o procedimento tomado, embora aí não
madeira de qualidade, bem envernizada por dentro e por fora, fe- figure nenhuma sugestão sobre a natureza, a sua tipifica-
chada com chave que lhe foi entregue após o sepultamento. Afinal, ção eventual como algo que se aproximasse de um crime ou
o interior desta Capela, pelos anos, já abrigava a saudade de alguns abuso cometido. Então, a pergunta mais imediata é o fato de
dos seus maiores afetos, como a ilustração 4 recorda. que isto não produziu a abertura de um inquérito policial
para averiguar o acontecimento, destes que não são usuais
entre os vivos, e por que não foi?
6.RESGATE E REPERCUSSÕES
2. Tendo o fato acontecido em um próprio da Igreja/
Município (?), e havendo a devida manifestação pública, em-
Segmentos sociais bem localizados clamam pela extensão do res- bora moderada, em termos, uma vez que não se teve reper-
gate sobre a personalidade e a figura histórica da beata Maria de cussão pela imprensa, por que nem Paróquia, nem Diocese,
Araújo. A Academia tem sua parcela de entendimento, respeitável nem Municipalidade vieram a público para tornar legítimo
e procedente, pois estamos falando de algo que de fato repercute o seu procedimento?
sobre o nosso sentimento de como construímos e de como outros
3. Havia alguma dúvida que a Capela e o Cemitério
que nos antecederam firmaram este foro de cidadania, de cren-
teriam dupla figura “jurídica”, entre municipalidade e Pa-
ça e de realizações. Então, resgatar é preciso. Diante disto temos
róquia/Diocese? Afinal, como foi esta assimilação pela Igreja
nos defrontado com valiosas reflexões com as quais aprofundamos
após a construção de ambos?
nosso entendimento sobre o fenômeno religioso do Juazeiro, com

revisão
flagrantes repercussões sobre a religiosidade do povo sertanejo. 4. Por que, pelos anos adiante, os que firmaram o pro-
testo registrado em Cartório silenciaram, até falecerem sem
Então, nos cabe continuar esta construção coletiva desta memó-
uma sequer manifestação que os renovasse na sua indigna-
ria, assentando-a sobre as páginas pretéritas, mesmo que preteri-
ção, a ponto de firmarem o documento, e de modo particu-
das desta “história oficial” que, por vezes, mais reflete opressão e
lar, por que o fotógrafo presente jamais exibiu uma imagem
violência. A existência de Maria de Araújo é bem um testemunho a
do local do crime, da maneira como o termo do protesto
que se chegou.
relata?

revisão
5. Até hoje não se tem a menor informação de uma
7.E AGORA...? censura privada, reservada, aplicada ao vigário de Juazeiro
do Norte, Mons. José Alves de Lima, por ter cometido, do
No presente momento, esta revisão que fazemos do fato aconte- modo como o fez, e de moto próprio, à revelia de seus su-
cido em 1930 nos enche de dúvidas as quais reclamam explicações, periores?
esclarecimentos convincentes sobre as posturas / omissões flagran- 6. Se, de fato, os restos mortais da beata foram reti-
tes à margem do presenciado. Então, façamos um breve exercício rados do seu jazigo destruído, como se explica este crime
com respeito ao que nos parece mais intrigante: perfeito que até hoje não identificou seu paradeiro, nem

208 209
dentro do mesmo campo santo do Juazeiro, como até se ria – por exemplo, uma verificação sobre o próprio e então jazigo
tentou identificar recentemente, ou como boatos surgidos, destruído. Algo como permitir a utilização de aparato tecnológico,
de restos mortais transportados e novamente sepultos em não destrutivo, inicialmente, para monitorar o espaço em profun-
terras de outro município do Cariri? didade – quem sabe, por radar, a revelar elementos deste antigo e
7. No Protesto há a revelação de que parte dos resí- desejado ossário. Sobre a possibilidade de uso de um radar de pe-
duos que foram encontrados, como se o corpo tivesse de netração no solo ou georradar (GPR), como é sabido, é uma técnica
fato sido retirado algum tempo antes, após a abertura da de aquisição de informação espacial que se utiliza para investigar
Urna, foram acomodados em uma caixa de vidro. Onde foi ou detetar objetos e estruturas sob o solo. Já era usado na Áustria,
parar essa prova macabra, de parte de crâneo e pelos e frag- em 1929. O GPR tem várias aplicações, em muitos campos, em ro-
mentos de vestimenta, e objetos dentre outros, da qual nun- chas, solos águas e gelo. Ele é ainda usado pela polícia para detetar
ca mais se ouviu falar, se assim não era tão marginal? túmulos clandestinos e provas de crimes. Os usos militares também
incluem a detecção de minas, materiais perigosos e túneis.
8. Por que uma busca na imprensa brasileira, não so-
mente na data do acontecido, mas em anos posteriores, Outra atitude desejável é a própria abertura do local no qual se
decorrente de notícias tardias, sempre resulta em silêncio fez na origem o poço para a finalidade de ossário, como uma pro-
absoluto desta mídia? cedente exumação destes eventuais restos mortais, uma vez que,
cientes de que não houve remoção, quem sabe, eles aí estão para
9. Por que, por tantos anos, este conjunto Capela/Ce-
finalmente “terem o repouso eterno”, nas premissas de nossa Santa
mitério, funcionou sem uma legitimidade para atos litúrgi-
Madre Igreja.
cos dependente de uma formalidade com a consagração de
suas instalações ao serviço da fé cristã e para a administração
de sacramentos? Juazeiro do Norte, 17.01.2021, nos 107anos do falecimento de

revisão
10. Na oportunidade em que esta questão reacende, e Maria de Araújo.
provoca discussões e reflexões como algumas destas que
figuram aqui, qual a real significação deste fato, além da
indignação natural pela relembrança de ato tão grotesco e
ANEXO: BREVE NOTA SOBRE OS VELHOS CEMITÉ-
irresponsável, numa leitura atualizada para que não mais
RIOS DE JUAZEIRO
convivamos e não admitamos que fatos como este não se
repitam à nossa revelia?
No início dos anos 1950, os moradores da velha rua Nova (de-

revisão
pois Av. Dr. Floro) ainda reconheciam na cena do trecho entre às
Deste modo, uma outra indagação que se pode deixar no cerne
antigas ruas do Arame (depois, do Pe. Cícero) e a do velho Merca-
desta abordagem é a de que seria razoável se a Igreja se sente des-
do (depois, São Pedro), o pequeno cemitério e sua capelinha. Não
confortável ao presenciar estas insinuações, como a cobrar objetiva-
lembro de ter me encontrado com algum apontamento de quando
mente a revelação sobre estes restos mortais, para não se entender
este cemitério foi construído e passou a guardar restos mortais dos
que a Instituição de repente, por um viés inexplicável, trata disto
primeiros habitantes da povoação. Por esta época, já escrevendo
em causa mínima, a não significar essência sobre sua missão e a con-
memórias, Amália Xavier, por ter frequentado e o conhecido amiu-
tinuar sonegando este esclarecimento. Revelação, nestes termos, se-

210 211
dadamente, refere ela, numa nota de 22.01.1939 o seguinte: Referida capela foi construída pelo Pe. Pedro Ribeiro de Carvalho e
era onde os escravos tomavam parte nas funções religiosas.”
“O Cemitério Velho de Juazeiro, com a Capelinha Concluídas as obras, em 13.05.1953, em visita pastoral à cidade,
de Nossa Senhora do Rosário, construídos pelo o novo bispo da Diocese de Crato, D. Francisco de Assis Pires ben-
Pe. Pedro Ribeiro de Carvalho, 1º Capelão e neto
zeu a Capela de Nossa Senhora de Fátima, que servindo à comu-
do Brigadeiro Leandro Bezerra Monteiro, foram
demolidos por ordem da saúde pública, a pedido nidade, também se destinava ao serviço religioso do Ginásio Santa
da autoridade Diocesana. Eram situados o início Teresinha (depois Mons. Macedo). Nos seus registros, dona Amália
do 1º quarteirão da Av. Dr. Floro vizinho à casa também informa que na fachada da antiga capela daquele cemitério
daquele senhor e onde depois da morte deste, ficou havia um nicho e nele uma muito antiga estátua de Nossa Senhora
residindo o Pe. Cícero. Na época da demolição, do Rosário. Ela foi retirada de lá e sabe-se, lá, por qual decisão, foi
funcionava naquela residência o Ginásio Santa
Terezinha, propriedade da Profa. Amália Xavier colocada no nicho do arco que foi construído na então entrada da
de Oliveira. A Capelinha estava soterrando; den- cidade, junto aos Salesianos, para saudar a visita da imagem pere-
tro dela foram sepultados o Brigadeiro Leandro grina de Fátima, vinda de Portugal e que chegou à cidade naquele
Bezerra Monteiro e sua esposa, Rosa Josefa do ano. Nos anos 80, um raio derrubou aquela edificação, e a estátua
Sacramento. Algumas catacumbas do Cemitério preciosa virou pó.
estavam deterioradas, soterrando, estragadas por
enormes formigueiros. Após a demolição, foi a “Quase uns 40 anos depois, revendo estes apontamentos, dona
guarda do local confiada a Diretora do Ginásio Amália acrescentaria: “Hoje já não mais existem nem o jardim e nem
que se comprometeu de ali fazer um jardim e cons- a capela de Nossa Senhora do Rosário de Fátima que foi benta quan-
truir nova capela. O compromisso foi realizado.” do da passagem da Virgem peregrina por esta cidade. No local foram
construídas 4 casas pertencentes à Paróquia de Nossa Senhora das

revisão
E, de fato, dona Amália honrou este compromisso e ela mesma Dores.” E completo, confirmando que ainda hoje assim está. Por-
deixou pequeno relato com o qual estabelece algumas etapas das tanto, do velho e primeiro Cemitério ficaram completamente soter-
obras propostas. Assim, em 10.04.1951, “A Diretora do Ginásio San- radas as memórias dos fundadores de Juazeiro, o brigadeiro e sua
ta Terezinha, profª. Amália Xavier de Oliveira, assume, perante à senhora, e o neto, o primeiro capelão, Pe. Pedro. Convém observar
autoridade Diocesana, o compromisso de construir uma capela para que este campo santo pode ter servido à comunidade por quase
uso das alunas do mesmo Ginásio, no local onde existia a Capelinha oitenta anos.
de Nossa Senhora do Rosário, do cemitério velho, que havia soter- O segundo Cemitério, muito modesto, entre espaço e capela,
rado, bem como alguns túmulos. Por ordem a saúde pública, foi foi edificado por iniciativa da família Pereira (de onde vem os ta-

revisão
demolido aquele cemitério. A quadra do local foi confiada à Direto- beliães Luiz e Expedito Pereira). Ele estava situado na propriedade
ra do Ginásio que ali fez um jardim, até “que seja possível construir da família, no Sítio Saquinho, ao lado da antiga estrada entre Joa-
a capela substituindo a primeira e ficando sempre pertencendo ao zeiro e Crato, e provavelmente foi bento e passou a funcionar por
Patrimônio Paroquial.” No dia 13.05.1951, houve o “Lançamento mediação de Pe. Cícero, então Capelão no Joazeiro, pois consta no
da Pedra Fundamental da Capela de Nossa Senhora de Fátima, vi- seu documentário que ele se dirige ao Bispo do Ceará – D. Luiz
zinho ao Ginásio Santa Terezinha, no local do cemitério velho onde Antonio dos Santos, em data 22.09.1879, pedindo autorização para
havia a capelinha de Nossa Senhora do Rosário que foi soterrada. benzê-lo.

212 213
Para referir ao terceiro Cemitério da povoação de Joazeiro, en- com a presença do Pe. Cícero na qual o Cruzeiro foi bento. Imedia-
tão distrito do Crato, novamente recorro à memória de Amália Xa- tamente a este momento, as obras continuaram.
vier, de onde transcrevo o trecho que ela assinalou com a data de Mas, de olho no Juazeiro e nas atitudes do Pe. Cícero, D. Joa-
24.04.1899: quim José Vieira, então segundo bispo da Diocese do Ceará, deter-
“O povoado de Juazeiro é assolado por um surto mina a sua paralização por ato formal, em portaria lavrada. Com
de varíola que dizimou grande parte da popula- data de 12.05.1907, o Pe. Cícero se dirige ao diocesano su0licando
ção dificultando seu desenvolvimento e sobrecar- a continuidade das obras, nos seguintes termos:
regando de trabalho o Pe. Cícero cuja população
era toda entregue aos seus cuidados. Era o médico “Exmo. Sr. D. Joaquim José Vieira: O meu Revdo.
para atender os doentes. Precisava arranjar va- e zeloso Vigário, Pe. Quintino, sentindo ver o cemi-
cina para os que ainda não se tinham contami- tério desta povoação em campo aberto, exposto à
nado. Instalou perto dos terrenos do sítio Malvas profanação, cães e porcos, cavando-lhes as sepul-
um Cemitério, onde é hoje o bairro de São Miguel. turas, concordou comigo pedir a V. Excia., licen-
ça para cercá-lo de muralha de tijolo e construir
Nos trabalhos de vacinação do povo, era auxilia- a respectiva capela. Comunicando-me depois
do pelo boticário Ernesto Rabelo aqui residente e que lhe tinha vindo a licença pedida, concordou
por um parente dele, (Pe. Cícero) Francisco Del- também que eu me encarregasse do trabalho, e,
miro Maia. Quando terminou o tempo da peste de como todo povo se interessa por este trabalho e me
varíola, foi lá no Cemitério, construída a Capeli- ajudasse com a melhor boa vontade, em poucos
dias ficou cercado de muralha alta e sólida, todo
nha de São Miguel, pelo beato, Manoel Cego. Esta
quadrilátero do cemitério e a respectiva capela,
Capela foi reconstruída, tempos depois e é hoje a precisando apenas poucos palmos de parede para

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sede da Paróquia de Nossa Senhora de Lourdes.” receber o teto cujo madeiramento acha-se pron-
to ao pé da obra. Já neste ponto constou que V.
Excia. Revdma. levaria a mal ser eu encarregado
O quarto Cemitério Público de Juazeiro do Norte, o atual como e não ser para mim mesmo a licença concedida
conhecemos sob a invocação de Nossa Senhora do Perpétuo Socor- para tantos serviços. Parei imediatamente com
ro, teve sua construção decidida aí pelo começo de 1906. Pesou na todo trabalho e assentei comunicar a V. Excia.
decisão o estado precário do anterior, bem como sua imitação espa- todo o ocorrido, pedindo que se digne conceder-
-me sua bondosa aprovação, para que no mesmo
cial para comportar a demanda por sepultamentos na povoação em
acordo com o meu Vigário possa concluir o pouco
crescente ritmo.

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que resta fazer, visto o perigo eminente de ruína
O encarregado desta obra foi José Xavier de Oliveira, e por de- que lhe ameaça o inverno reinante. Em ação de
poimento confiável e transcrito pela filha Amália, se sabe que as graça pela mercê, todas as almas das que foram
obras, a partir do preparo da terra, serviço com o muro e assen- sepultadas naquele campo de morte, roguem todas
as felicidades a V. Excia. como eu também profun-
tamento de um portão foi tarefa que ocupou centenas de homens, damente agradecido. Orabo ad Dominum. Ass. Pe.
entre 16.08.1906 e 05.10.1906, quando concluída esta primeira eta- Cícero Romão Batista.”
pa, também à sua frente foi colocado o Cruzeiro, este mesmo que
ainda hoje pode ser visto, e houve nesta data uma breve cerimônia

214 215
Decorridos tantos anos, entre 1889 e 1907, o documentário que terminação, dirão – truculência, do doutor baiano, por conduzir a
nos serve à biografia de Cícero sugere a manutenção de um clima obra, por sua conta e risco. A razão da senhora era compreensível.
delicado nas relações do capelão de Juazeiro e seu diocesano. En- Ela era uma pessoa da relação de amizade do Pe. Cícero, integrante
tão, desencontros na comunicação entre as partes vão continuando de uma das confrarias locais da Igreja, que teria se compadecido,
a qualquer propósito, na dependência de escalões superiores por em dado momento, de uma ocorrência de erisipela com o Pe. Cíce-
benefícios que serviriam ao Juazeiro. Deste modo, por exemplo, a ro, com duração de uns três meses, até à cura, a ponto de ter feito
continuidade das obras do Cemitério da cidade é um dos focos. Por uma promessa para trabalhar pela construção e finalização da obra
carta de 05.11.1907, Pe. Cícero escreve ao Pe. Quintino, Vigário da Capela do Socorro. E de fato, isto aconteceu: curou-se o Pe. Cí-
do Crato e refere-se ao fato de haver recomeçado o trabalho da cero e dona Hermínia tinha o maior empenho para a conclusão da
Construção da Capela do Cemitério, para salvar da ruína a obra há Capela naquele ano.
muito começada. Afirma ter recebido ordem do Bispo para fazer Mas, capricho do destino, a obra ainda não tinha sido finalizada
o trabalho e assim supôs não precisar nova ordem. Nesta carta ele e foi exatamente dona Hermínia a primeira pessoa a ser sepulta-
acusa o recebimento de um cartão do Vigário Quintino dizendo da neste Cemitério. Faleceu em 15.11.1908, precocemente e está
que o Bispo lhe escrevera comunicando que não dera a faculdade sepultada no interior da capela em lugar onde sequer uma lápide
que lhe pedira ele, Pe. Cícero. Diz ainda na Carta: foi colocada. Uma só e desejável atitude não foi realizada nos próxi-
mos vinte e três anos após o sepultamento de dona Hermínia, por
“Ele é o intérprete natural das palavras que es- decisão do Pe. Cícero: a bênção da Capela. E a Igreja, recalcitrante,
creveu. Portanto se deu a faculdade que lhe pede, continuou estribada na imprudência do Pe. Cícero, conforme dizia,
retirou-a, e eu não contrarío nem a ele, nem a V. por ter sepultado uma prostituta no interior daquele templo. In-
Revdma. Assim não faço e nem entro em tal traba-
felizmente, eles ainda não tinham tido alguma notícia sobre Maria
lho. Fujo das questões”. Para terminar escreveu:
Madalena. E teria havido esta, e haveria ainda outra Maria Mag-

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“Se o Senhor Bispo me facultar dando a licença,
tenho muito gosto de fazer a Capela e nosso cemi- dalena, seis anos depois. A capela, enfim, somente foi benta por D.
tério em honra da Santíssima Virgem, porém na Francisco em 1932. Quem ainda hoje visita a Capela, verá no alto
paz e boa vontade de todos. De seu amigo em J.C. de sua fachada a inscrição com a data de 1908, pouco mais de cen-
Ass. Pe. Cícero Romão Batista”. tenária, graças a esta determinação e benemerência, às quais, sem
dúvidas, muitos agradecem tal piedade e fé cristã. Se há ainda al-
Floro Bartholomeu da Costa, em seu famoso discurso na Câma- gum incrédulo, basta comparecer ao dia-a-dia desta capela, ou aos
ra Federal, diz que tendo chegado ao Juazeiro em 1908 encontrou dias 20 de cada mês, pelas 6 da manhã, ou na grande festa anual em

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esta “pendenga” (a expressão é minha) com as suspensões da obra, memória dos falecidos.
já na fase da Capela. E por isto foi interpelado pela senhora Her- O crescimento vertiginoso da cidade estimulou nas administra-
mínia Marques de Gouveia, cearense de Jardim, e que veio residir ções municipais, como é notório, algumas atitudes para a satisfação
com sua família em Juazeiro no início do século XX. Desejava ela de necessidades locais. De modo particular, a questão do Cemitério
que ele interferisse junto a Igreja para a permissão da conclusão, Público do Socorro já despertava este interesse. Talvez uma das pri-
estando o imóvel já coberto. O vigário de Crato novamente não meiras iniciativas tenha sido no governo do prefeito Vicente Bezer-
permitiu e o que se viu foi uma das primeiras manifestações da de- ra Lima. Em 31.03.1946 ele promoveu uma reunião de autoridades

216 217
locais para estudar uma solução para a iminente saturação do espa- BEDOYA, L.E.T. Milagre, Martírio, Protagonismo da Tradição
ço do Socorro. Do debate, surgiu a ideia de ampliá-lo, agregando Religiosa Popular de Juazeiro: Pe. Cícero, Beata Maria de Araújo,
terrenos anexos que seriam desapropriados. Houve quem sugeris- Romeiros (as) e Romarias. Fortaleza: UFC, 2012.
se a ampliação de modo que, na direção da rua Santa Luzia, o Ce- BRAGA, A.M.C. Padre Cícero: sociologia de um padre, antropo-
mitério crescesse até à rua Santa Rosa, e ocuparia um novo espaço logia de um santo. Bauru-SP: EDUSC, 2008.
entre as ruas Santa Luzia, Santa Rosa, São João (hoje Alencar Peixo-
CAMURÇA, M. Marretas, Molambudos e Rabelistas: a revolta de
to) e Santa Cecilia (que na época seguia até à Av. Leandro Bezerra).
14 no Juazeiro. São Paulo: Maltese, 1994.
Muito tempo antes, já se tinha em mente que o Cemitério teria área
reservada até à confluência da Rua São José. Nada se concretizou CASIMIRO, A.R.S. (Org.) Padre Cícero Romão Baptista e os
e sua ampliação não aconteceu. A cidade comportou outros cemi- Factos do Joaseiro: A Questão Religiosa. Fortaleza: SENAI, 2012.
térios, entre o público e o privado, mas o velho campo santo do COSTA, F.B. Juazeiro e o Padre Cícero – Depoimento para a
Perpétuo Socorro continua sendo a esperança deste repouso eterno história. 2ª. ed. Natal: Sebo Vermelho Ed., 2010.
para milhões de sertanejos nordestinos, enquanto não alcançamos COSTA e SILVA, N. A Mulher sem túmulo. Fortaleza: Armazém
a ressureição, no conforto deste inquilinato transitório ao lado do da Cultura, 2014.
nosso santo padrinho, Pe. Cícero Romão Baptista, e da beata Maria DELLA CAVA, R. Milagre em Joaseiro. 3ª. ed. São Paulo: Comp.
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