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UNIVERSIDADE DO EST ADO DO PARÁ

CENT RO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO


LET RAS – L ICENCIAT URA EM L ÍNG UA PORT UGUESA

BRENA GO MES RI BEIRO


LÍVIA DE SOUZA FRANCO MENDES

O FEIO CO MO ELEMENT O
COMPARAT IVO EM A BEL A E A FERA.

Belé m
2011
BRENA GO MES RI BEIRO
LÍVIA DE SOUZA FRANCO MEN DES

O FEIO CO MO ELEMENT O
COMPARAT IVO EM A BEL A E A FERA.

Belé m
2011
BRENA GO MES RI BEIRO
LÍVIA DE SOUZA FRANCO MENDES

O FEIO CO MO ELEMENT O
COMPARAT IVO EM A BEL A E A FERA.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Curso de Licenciatura em Letras, Língua
Portuguesa, como requisito para a obtenção do
grau de Licenciado em Letras, orientado pela Prof.
Mcs. Vasti da Silva Araújo.

Belé m
2011
UNIVERSI DADE DO EST ADO DO PARÁ
CENTRO DE CI ÊNCI AS SOCI AIS E EDUCAÇÃO
CURSO DE LI CENCIATURA EM L ETRAS - LÍNG UA PORTUGUESA
BRENA GO MES RI BEIRO
LÍVIA DE SOUZA FRANCO MENDES

O FEIO CO MO ELEMENT O
COMPARAT IVO EM A BEL A E A FERA.

T rabal ho a pre se nt ad o à di sci pl i na


Sem i nári os em Lí ngua Port ugue sa, com o
requi si t o de av ali ação de c oncl u sã o d e
curso, ori ent a do pel a Prof . Mcs V a st i da
Si lv a Araúj o.

Belé m
2011
BRENA GO MES RI BEIRO
LÍVIA DE SOUZA FRANCO MENDES

O FEIO CO MO ELEMENT O
COMPARAT IVO EM A BEL A E A FERA.

Banca Ex ami nadora:

___________________________________

Prof. Dr. Marco Antônio Camelo

___________________________________

Prof. Mcs. Jeséa Fares

Dat a: 07/12/2011

Belé m
2011
AG RADECIMENT OS
UM CO NT O MARAVILHOSO

Era u ma vez, nu m Reino tão tão distante, o Rei Adenil e a


Rainha Claúdi a que sonhavam co m o nascimento de sua segunda
princesa. Ao terem seu dese jo atendido, resolveram convidar todos do
reino para um belíssi mo baile e m h o menage m ao aconte ci mento: o
nascimento da princesa Brena Ribeiro. As fadas Kátia Nunes e
Rosilene Silva f oram as pri meiras a chegar e fora m logo presenteando
a pequena princesa com Amor e Sabedoria. Os sábios do Castelo
France Ferreira, W elington Ferreira, Marco Antônio Ca melo e José
Denis Bezerra apressaram-se para comunicar que ficaria m
responsáveis pela fo rmação da jo ve m. Os Bobos Carla Dias e Thiago
Sena Dantas pro metera m ao Rei e a Rainha que a princesa nunca
derramaria u ma lágrima na presença deles, pois ja mais deixaria m d e
fazê-la sorrir. E os Cavaleiros Már cio Souza e Ale xandre Go mes
jurara m lealdade e proteção à pequena.
Uma bru xa inve josa que não tinha sido convidada, invadiu a
festa e rogou três pragas na pequenina: a preguiça, a insegurança e o
tédio. A princesa nunca alcançaria seus sonhos, pois não seria capaz
de correr atrás deles, e morreria inf eliz ao vigésimo segundo ano. E
feito o feitço, a bruxa desapareceu e m u ma nuve m de fu maça dei xando
a todos estupefatos. A Rainha das Fadas, Emelina, então informou os
convidados que ainda não havia presenteado a princesa, que, de duas
folhas viram se tran sfigurar dois grilos -falantes e uma dourada
garrafinha. A Rainha das Fadas então e xplicou que dali por diante por
mais preguiçosa, insegura e entediada, a princesa nunca dei xaria de
perseguir seus sonhos por que seus grilos -falantes Luena Barros e
Paola Caracciolo não deixariam nunca ela esquecer do grande presente
guardado na garrafinha: o Elixir Força de Vontade.
Ao tér mino da vigésima segunda primavera, a bruxa raptou os
grilos e a princesa, trancando -os em masmorras separadas. Se m eles
por perto, a prin cesa entrou em desespero e caiu em sono profundo. As
princesas do reino Bruna Ribeiro, Bia Ribeiro, Maytta Costa e Ellen
Michelle fizeram o que podia m para te ntar encontrar a a miga, mas nada
funcionava. Então, todo o reino chorou pelo desaparecimento da
menina. As princesas então espalharam pelos reinos a notícia para que
assim conseguisse m a juda.
Foi então que u ma brava Princesa Guerreira, Lívia Franco
Mendes, orientada pela Fada Madrinha Vasti Araújo, calvagou em
direção ao Reino das Letras para ajudar su a amiga e m apuros. Lívia
derrotou a bruxa e libertou os grilos de volta, que fizera m a princesa
ador mecida beber o Elixir da Força de Vontade. A princesa então
despertou e os quatro amigos partiram e m direção à felicidade,
montados no lo mbo de u m belo unic órnio chamado Charlie.
Mas acontece que a Princesa Guerreira també m tinha u ma
história a contar. Antes de tornar -se parte da Ar mada do Reino das
Letras, era uma menina solitária que vivia presa em u ma alta e distante
torre. Ela conhecia os poderes do Elix ir da Força de Vontade por tê -lo
to mado, ainda pequena, das mãos da própria mãe, Leny Franco, e, por
isso, se mpre teve sede de conheci mento e liberdade, sem nunca se
deixar abater. Dentre os muitos presentes que sua mãe lhe dera, o
primeiro fora o mais sig nificativo: u m Livro Encantado, que dava
poderes mágicos ilimitados aos que o possuísse m.
Através do livro, a Princesa Lívia conheceu pessoas e lugares
maravilhosos sem precisar sair da torre. Visitou um pequeno príncipe
e m seu asteróide, u m cavaleiro louc o e seu fiel escudeiro em lutas co m
moinhos gigantes e até viajou ao País das Maravilhas. Porém, nu ma
manhã cinzenta, a mãe da pequena princesa su miu nu m passe de
mágica, deixando u m presente melho r ainda para a filha: uma ir mã e
u ma fada. Nívia Mendes e V anila Franco guiaram o ca minho da
princesa e estiveram presentes no s mo mentos de lágrimas e d e
sorrisos, sempre co m muito apoio e carinho. Porém, junto co m a mã e
das meninas, o Livro Encantado ta mbé m su mira, se m e xplicação.
A princesa, co m a enor me sede de liberdade que tinha e co m a s
experiências vividas através do livro, já não suportava viver enraizada
àquela torre e, com a a juda da Brigada das Fadas Encantadas, Edite de
Souza Franco, Vânia Franco, Maria Luiza Franco, Concita Mendes,
Lídia Salzer e Lucy Coutinho; e seu fiel guerreiro Gadelha Franco,
construiu conhecimento de vários mun dos, co m muita luta, educação e
valor às oportunidades que lhe foram dadas. A co mpanhia
indispensável de seus escudeiros Nelson Sousa, Igor Belo e Raquel
Lisboa foi de muita i mportância para os mo mentos e m que a princesa
Lívia precisava de risadas e distração; bem co mo as conversas
intermináveis co m sua s da mas de co mpanhia Raquel Nassar e Ingrid
Mendes. De vez e m quando, a princesa contava co m a a juda de u m
cavaleiro viajante , August Salzer, que anima va suas madrugadas d e
estudo e de u ma fada -aprendiz, Ana Luiza Salzer, que lhe mostrava
co mo ter doçura e encanta mento.
Quando co mpletou vinte e um anos, a princesa Lívia decidiu que
partiria sozinha numa jornada incansável em bus ca do Livro Encantado
de sua mãe. Depois de ca minhar por desertos escaldantes, montanha s
gélidas e florestas tenebrosas, ela finalmente chegou ao Reino das
Letras, onde conheceu a guerreira Ellen Michelle, que lhe mostrou u ma
maneira lutadora, divertida e leve de ver a vida; a sábia Caroline
Ro mana, que ensinou que, mesmo co m o s pés no chão, se pod e
conquistar as estrelas; e sua fiel escudeira, a bela princesa Isabelle
Bonfi m, que a fez entender que realidade e fantasia podem andar d e
mãos dadas e que os fi nais felizes são construídos por nós.
Depois de quatro anos de intensa busca, a princesa, que nunca
desistia de nada que começa va, ouviu dizer que num reino tão tão
distante, sua a miga e co mpanheira de jornada, Brena Ribeiro precisava
dela. A a miga acredit ava que Lívia er a u ma verdadeira fortaleza, ma s
não imaginava que ela havia se tornado uma Guerreira somente para
ajudá-la. Depois de muitas guerras, bruxas malvadas e noites de sono
perdidas, quando finalmente conseguira m derrotar todos os males, co m
a ajuda da Fada Madrinha Vasti Araú jo, encontrara m o livro
desaparecido e descobriram que na verdade este nunca fora
encantado, apenas despertava a maior magia do mundo: a que est á
dentro de nós.
Moral da História:
Obrigada a todos que contribuíram para a p rodução e finalização
deste, de forma a contribuir també m, para a formação da postura moral
e acadê mica que dete mos.
À Universidade Estadual do Pará, p elo suporte. Ao Prof. Dr .
Marco An tônio Ca melo e à Prof. Dr. Renilda Bastos, pelo despertar à
Literatura Infanto-Juvenil. Ao Prof. Msc. José Denis Bezerra, pela a juda
vital ao longo do caminho acadê mico. À Prof. Msc. Vasti Araú jo, pelo
brilhante direcionamento de nossas id eias e na a juda da construção de
nosso “feliz para sempre” .
E, falando de fe io artíst ico, é bom
lembrar que quase todas a s teor ias
estéticas, pelo menos aos nossos
dias, têm reconhecido que qualquer
forma de fe iúra pode ser red im ida
por uma representação artística fie l
e efica z.

Umberto Eco.
RESUMO

Tendo no processo de adaptação a aproximação de linguagens


distintas, exa minar os ele mentos co mparativos existentes entre elas
possibilita a identificação de sua s similitudes e convergências.
Apropriadas de duas dessas lingua gens, a literatura e o cinema, no s
propuse mos, co m este trabalho, estudar o conto francês A Bela e a
Fera (1746) de Mada me Leprince de Beau mont e sua adaptaçã o
cinematográfica ho môni ma (1991), dirigida por Gary Trousdale, nas
quais analisaremos, de for ma c o mp arada, o conceito filosófico de
“feio”, verificando como cada u ma das expressões artísticas o expõe m.
Amparada pelo suporte teórico necessário para análise histórica,
filosófica e comparativa – Roland Barthes e sua Análise Estrutural da
Narrativa e Umbe rto Eco e a História da Feiúra, esta pesquisa constata
a aproxi mação das duas obras, ainda que e m diferentes linguagens,
não so mente na te mática, co mo ta mbé m na for ma de abordage m.

PAL AVRAS-CHAVE: Literatura, Adaptação Cinematográfica,


Co mparação, Feio,
RESÚMEN

Teniendo en el proceso de adaptación la aproximación de lenguajes


distintos, exa minar los elementos co mparativos existentes entre ellos
posibilita la identifica ción de sus si militudes y convergencias.
Apropiadas de dos de tales le nguajes, la literatura y el cine, nos
proponemo s, con este trabajo , estudiar el cuento francé s La Bella y la
Bestia (1746), de Mada me Leprince de Beau mont y su adaptación
cinematográfica ho mó ni ma (1991), dirigida por Gary Trousdale, en las
cuales analizaremos, de for ma co mp arada, el concepto filosófico de
“feo”, verificando como cada u na de las expresiones artísticas lo
exponen. Amparada por el suporte teórico necesa rio para el análisis
histórico, filosófico y comparativo – Roland Barthes y su Análisis
Estructural de la Narrativa y Umberto Eco y la Historia de la Fealdad ,
esta pesquisa constata la aproxima ción de dos obras, aunque en
diferentes lenguajes , no solamente en la temática, co mo ta mb ién en la
for ma de aborda je .

PAL ABRAS-CL AVE: Literatura, Adaptaci ón Cinematográfica,


Co mparación, Feo.
ÍNDICE

PAL AVRAS INICIAIS ............................................................... 14


CAPÍT ULO 1 – Literatura, Cine ma e Comparação ................... 16
1.1 Literatura Comparada ......................................................... 16
1.2 Literatura Infanto -juvenil .................................................... 20
1.3 Literatura e Cinema ............................................................ 24
CAPÍT ULO 2 – A Bela e a Fera: do cont o ao cinema ............... 29
2.1 A Bela e a Fera de Mada me Leprince .................................. 29
2.3 A Bela e a Fera da Disney: a versão de Gary Trousdale ........ 32
CAPÍT ULO 3 – O Feio Como Eleme nt o Comparativo ................ 39
3.1 Tradução na Adaptação Cine matográfica ............................. 39
3.2 Uma breve história do Feio ................................................. 40
3.3 A Mani festação do Feio nas Obras ...................................... 42
CONSIDERAÇÕES F INAIS ....................................................... 56
REFERÊNCIAS ....................................................................... 58
LIST A DE F IGURAS

Figura 1: O feitiço ilustrado em vitral ........................................ 33


Figura 2: Bela ......................................................................... 35
Figura 3: Gaston ..................................................................... 36
Figura 4: Lu miére, Mada me Sa mo var e Horloge ........................ 37
Figura 5: A fada e m for ma de mendiga ..................................... 45
Figura 6: O bosque ................................................................. 46
Figura 7: Fachada do castelo ................................................... 46
Figura 8: Retrato desfigurado do príncipe ................................. 47
Figura 9: O castigo ilustrado em vitral ...................................... 51
Figura 10: Gaston a medrontando os aldeões ............................ 53
Figura 11: A Fera .................................................................... 54
PAL AVRAS INICIAIS

Considerando a sociedade contempor ânea e a forma de recepção


das informações ao seu redor, as t endências midiáticas atuais são
for matos de construção e e xposiçã o de produções artísticas que
refletem gostos, pensa mentos e sentimentos do l eitor atual.
Apresentando as linguagens literária e cinematográfica, esta pesquisa
per meia a linha limite e, ao mesmo te mpo, conectora das si militudes e
da convergência de seus elementos. També m interessa-se pela for ma
co mo u ma ani mação fíl mica pode recriar e traduzir um conceito
filosófico – o feio – a partir de um conto recolhido das camadas
populares da França do século XVIII e avalia tal elemento co mparando -
o e m duas diferentes manifestações: a obra literária e sua adaptação
para o cinema.
O presente trabalho analisa o conto maravilhoso A Bela e a Fera ,
co mparando o feio e m duas de suas versões: a obra literária do século
XVIII, escrita por Mada me Leprince de Beau mont e sua adaptaçã o
ho môni ma para o cine ma, dirigida por Gary Trousdale e produzida
pelos estúdios Disney. Para tal, o estudo das linguagens utilizadas e m
a mbas obras é de i mportância vertebral para a compo sição da análise
proposta, bem co mo a revisão teórica dos ca mpos de estudo nos quais
elas estão inseridas.
O capítulo 1 dedica-se à apresentação das correntes teóricas
utilizadas para o estudo das obras. Uma e xposição sobre Literatura
Co mparada e as abordagens desenvolvidas na análise estrutural
barthesiana da narrativa é o foco deste primeiro mo mento . Ta mbé m é
designado espaço para u m breve h istó rico da Literatura Infanto -juvenil,
desde as recolhas da oralidade campesina medieval à sua utilização
co mo recurso pedagógico na educação conte mporânea . Por fim, o
diálogo entre Literatura e Cinema é fe ito com o ob jetivo de de monstrar
co mo pode ser realizada a tradução do signo verbal para o imagético.
A apresentação das duas obras é feita no segundo capítulo, onde
ta mbé m é e xposta u ma rápida mostr a da s narrativas e u ma análise
superficial de elementos acessórios funda mentais para a compreensão
da trama. No pri meiro item, dedicado à obra literária, está a
contextualização da sociedade francesa do século XVIII na qual a
autora encontrava -se, enquanto que no segundo, destinado ao filme,
está situada a cultura conte mporânea pluralizada e a influência que a
Disney deté m sobre seus espectadore s.
O terceiro capítulo apresenta o conflito e o diálogo entre as
obras, poré m atido ao conceito filosófico do feio e, e mbasado
principalmente pela teoria de Roland Barthes e Umberto Eco, de co mo
este ele mento se mostra p resente e m a mbas a s linguagens. Para tal
análise, um retrocesso histórico da representação da feiúra na arte é
feito, bem co mo o exa me dos co mpon entes que indiciam a presença do
feio no conto e na produção cinematog ráfica.
CAPÍT ULO 1
LIT ERAT URA, CINEMA E CO MPARAÇÃO

1.1. Literatura Comparada

Bastara m e xistir duas literaturas distintas para que se fizesse u m


estudo co mparatista - co mo se te m r eferê ncia das tradições greg a e
ro mana -, mas a Literatura C omparad a co mo atividade intelectual ma is
cultivada, assim co mo disciplina acadê mica, apenas consolidou -se no
século XIX co m o auxílio da visão cosmopolita como gheist ze it 1.
Intelectuais da época similares a Goethe ou Mme. de Stäel eram
grandes entusiastas do amplo contato co m as literaturas es trangeiras.
Neste contexto , Villemain, Ampère e Chasles começara m a ministrar
literatura comparada nos meios acadê micos. T iveram co mo base a
teoria de que “a expressão „literatura co mparada‟ derivou de u m
processo metodológico aplicável às ciências, no qua l comparar ou
contrastar servia co mo um meio para confirmar u ma hipótese”
(NITRINI, 2010, p.20).
É i mportante de marcar que o períod o e m questão se trata d o
contexto de for mação das nações on de as discussões sobre cultura e
identidade nacional estava m em vo ga; a e xpressão “literatura
co mparada”, nascida nestes te mpo s, então, desde se mpre esteve
ligada à política. Philarète Chasles, em u ma das pri meiras tentativas de
delinear a silhueta do objeto fuga z da literatura comparada, sugere que
é possível o espírito de u ma na ção influenciar o escritor de outra
cultura. Influência será um conceito muito discutido no desenvolvimento
dos estudos comparatistas, principalmente no século XX, e que será
muito contestado a partir dos anos 50.
Um dos principais comparat istas franceses, Brunetiére, chegou a
atribuir aos conhecimentos sobre as literaturas estrangeiras a
renovação da crítica literária francesa. Mas , quando se pensou que
todos os intelectuais sabiam o que era literatura compara da, Benedetto

1
Expressão que conota o “espírito de uma época”, ou seja, as tendências teórico-filosóficas de
determinado contexto.
Croce (apud NITRI NI, 2010, p. 22) q uestionava o que era e qual seu
objeto de estudo. A crítica consistia no fato de que o métod o
co mparativo não poderia definir sozinho o ca mpo de estudos qu e
pretendiam os que falava m e m literatu ra co mparada, já que era co mu m
a toda sorte de estudos. Croce con siderava ainda que a Literatura
Co mparada não era nada diferente do que a História da L iteratura fazia
e a sua denominação era apenas um pleonasmo . Para a maioria dos
co mparatistas, a finalidade última da Literatura Comparada era a
pesquisa das idéias e tema s, e m te mpos e literaturas diferentes, que
criam ou apresenta m traços co muns e relações entre si. Croce nega
capacidade às influências de construir algo concr eto, principalmente
e m relação à gênese estética, o que , para ele, representava a
verdadeira importância à história literária e artística. Croce afirmava
que u m bo m procedi mento seria o est udo da obra na totalidade de seu
ser ou da síntese histórico -estética. O debate sobre a limitação do
objeto da Literatura Co mparada atr avessar á o século XX se m que
nunca se chegue a um consenso e, no final deste , com a influência de
novas tendências teó ricas, como a dos cultural studies 2, e a ampliação
de seu objeto.
Se tratar mos da Literatura Comparad a quando consolidada como
disciplina acadêmi ca do final do século XIX, tere mos que levar e m
consideração suas tendências, metód icas e metodológicas , baseadas
no positivismo. Paul Van Thiegem é considerado o grande expoente da
Literatura Comparada no séc ulo XI X, já que sua obra dá lugar à
disciplina entre a história literária de u ma nação e a história mais geral
e, como disciplina , tem seu objeto e método próprios. O objeto
configura-se, essencialmente, nas relações das diversas literaturas
entre si, na forma, estilo, inspiração e conteúdo. A distinçã o entre
Literatura Compa rada e Literatura Geral dar -se-ia pelo objeto da
primeira ser a relação baseada em co ntatos binários (obra e obra, obra
e autor, autor e autor) , já a série de estudos de contatos binários
delimitaria o objeto da segunda. Log o, à literatura nacional caberia o

2
Trata-se de uma escola inglesa, cujo aspecto chave é a transposição das coordenadas estéticas e
éticas, associadas à crítica literária, para a prática das culturas vivas ou populares.
lugar de uma obra e m u m período literário nacional determinado à
literatura comparada . Atual mente, os e studos de Tieghem encontra m -se
obsoletos, pois sua análise é decorrente de u ma visão positiva que não
assu me a mutua influênci a dos três campos.
Outra classificação, não menos polê mica, foi a de Henry H. H.
Re mak, na tentativa de delinear o qu e se cha mou “escola a mericana”.
A principal diferença entre “escolas” consiste na segunda parte d a
definição proposta por Remak: a a mpliaçã o do ob jeto de e studo. Re ma k
propunha anexar os outros saberes científicos ao estudo da literatura
co mparada. Em contrapartida, os co mparatistas do Leste Europeu
contribuíram para uma ruptura dessa polaridade francesa e americana;
construída a partir de um viés mar xista, era contra essas duas escolas
e, ta mbé m, contra o cosmopolitismo. Seus principais estudiosos,
Zhirmunsky e Söter, tinham método s de comparação individuais : o
primeiro prega a similaridade baseada na evolução literária e social dos
povos a partir de fenômenos historicamente condicionados, enquanto o
segundo se apropria do método da “confrontação complexa” e da
tendência assimilatória.
Ao tratar a comparação entre dois textos , é notável a percepção
de elementos co mun s que inter -relaciona m infor mações presentes e m
a mbos. Poré m, para além da qualidade intertextual, outros conceitos
co mparativos pode m ser abordados n a leitura e análise destes. Nitrini
co menta os estudos do filólogo romeno Ale jandro Cionarescu, que
delibera a comparação literária definindo os conceitos de “influência” e
“imitação”. Sabe -se que dois textos, quando colocados em confronto
co mparativo, mantê m u ma relação interativa de força fundamental,
efeito da influência que, segundo Cionarescu, é “o resultado artístico
autôno mo de u ma relação de contato” (apud NITRINI, 2010 , p. 127).

A ex pressã o “re sul t ado a ut ônom o” ref ere -se a um a obr a


l i t erári a produzi da c om a m esm a i ndepe n dênci a e com o s
m esm os procedi m ent o s di f í cei s de anal i sa r, m as f ácei s d e
reconh ecer i nt ui t iv am ent e, da obra l i t erári a em geral ,
ost e nt and o p er son al i dade pró pri a, repre se nt and o a a rt e
l i t erári a e as dem ai s car act erí st i cas própri a s de se u s a ut ore s,
m as na qual se recon hecem , ao m esm o t empo, num grau qu e
pode v ari ar consi derav elm ent e, os i ndí ci os de cont at o ent r e
se u aut or e o ut ro, ou v ári os out ro s . (NI T RI NI , 2010, p. 127) .

É importante, assi m, que não seja m confundidas influência e


imitação, posto que a segunda se reduz a u m “si mples cote jo de
textos”, co mo afirma Nitrini enquanto Cionarescu assinala quatro
senti dos para tal conceito: a mime sis, a retórica renascentista, a
adaptação renascentista e o co mpara tismo . Outro conceito i mportante
na co mparação é o de tradução que , tradicionalmente, define -se como
“o ato de transportar, transferir, supondo -se a e xistência de algo
inerente ao texto, u m sentido, que vai ser transportado” (DINIZ, 2009,
p. 1).

T raduzi r env olv e um processo m ai s abrang ent e do que a v i a


uni di reci onal . O t ex t o resul t ant e, a t raduç ão , não con si st e d a
i ncorporaç ão do t ex t o ant eri or "t ran sp ort ad o", e si m de um
t ex t o que se ref ere a out ro( s) t ex t o(s), qu e o( s) af et a, qu e
m ant ém com el e(s) um a det erm i nada rel aç ão ou qu e ai nd a
o(s) r epre sent a de al gum m odo. É esse m odo pel o q ual um
repre se nt a out r o( s), é e sse t i po d e rel açã o que ex i st e ent r e
el es qu e é o obj et o do s e st u do s de t rad uç ão i nt ersem i óti ca.
(DI NI Z , 2009, p. 1) .

Co mpaginando esses conceitos, te mo s a Teoria da


Intertextualidade, instrumento de valorizada eficácia para o estudo
co mparatista. Concebida por Julia Kisteva e fo mentada pelo linguista
Mikhail Bakhtin, o intertexto – novo t exto – é conte xtualizado em dois
eixos: o diálogo e a ambivalência, remetendo ao texto original.
Para a análise comparada proposta ne ste trabalho, utilizaremos o
método estrutural barthesiano, que tem por conceitos fu nda mentais a
noção de estrutura comparada à noçã o mate mática de con junto, isto é,
u m todo co mposto por muitas partes articuladas.
A análise de uma narrativa, segundo Roland Barthes, se comp õ e
da adequação dessas partes aos mo delos usados como instrumento s
metodológicos de transforma ção de u ma linguagem fa ctual em
conhecimento, construindo u m discurso que, por sua vez, é co mpost o
de linguagem heterogênea, montando u m siste ma se miótico constituído
de mitologias e cosmologias , be m co mo se notará na análise pr oposta
neste.
1.2 Literatura Infa nto-Juvenil

Ligada desde a origem ao caráter d ivertido ou pedagógico da


criação literária, a Literatura Infanto -Juvenil sempre esteve atrelada à
menção de livros onde image m e cor prevaleciam sobre a arte da
escrita. Numa confusão co mu m, chegou a ser denominada e
reconhecida como Literatura Para Crianças, detendo seu manifesto
histórico baseado fundamental mente n o recurso didático.
A indagação proposta por Nelly Coelho em L iteratura Infant il
(2000) aproxi ma as divergência s com relação à função real dessa
vertente literária. Literatura Infantil, afinal, é arte literária ou
pedagógica? Atida às histórias, inicialmente consideradas infantis,
nu ma Idade Média permeada pela presença de contos mais
assustadores que educativos, n ão é d e se estranhar que sua evolução
ru masse ao conteúdo pedagógico.
Desde a Novelística Popular Medieval , difundidas através da
Tradição Oral, as histórias maravilhosas tê m sua orige m marcada, e m
território europeu principalmente, pela literatura folcló rica popular e,
co m o passar dos séculos, fora m transfor mando -se, através da
oralidade, em contos infantis. Essa transmissão oral acabou por
proporcionar sua conversão em supor te a partir da recolha feita pelos
estudiosos que, mais tarde, seriam reconhecid os como seus autores.
Tomada co mo referência a obscura situação ca mpesina da Idade
Média, quando u ma das características era a ausência da infância
co mo fase inocente da vida, é comu m perceber que as histórias
contadas às crianças fosse m reflexo dessa rea lidade. Em seu livro O
Grande Massacre dos Gatos (1988), Robert Darnton remonta
descritivamente a sociedade campon esa medieval, mostrando co mo o
contexto influenciou a criação de contos que era m quase cópias fiéis
das situações vividas pelos aldeões.
Em te mpos onde miséria e indigência eram a condição social
predo minante no ca mpo, crianças e adultos dividiam os mesmos
a mbientes e as mesmas tarefas. As fa mílias dor mia m e m u m único
cô modo, co mpartilhado ta mbé m co m os ani mais do mésticos, a fi m d e
a menizar o frio. Assim, recé m-nascid os eram mortos asfixiados entre
os de mais, crianças presenciavam o ato sexual dos pais e se já
estivesse m e m idade de andar, exerciam serviços diretamente n o
ca mpo. A infância não era considerada u ma etapa diferente da vida.

Ó di o, i nv ej a e conf l i t os de i nt ere sse s f erv iam na soci eda d e


cam pone sa. A al dei a não era um a com uni dade f el i z e
harm oni osa. Para a m ai ori a dos cam pone se s, a v i da era um a
l ut a pel a sob rev iv ênci a acim a da l i nha que separav a os po bre s
e o s i ndi gent e s. (. . . ) O s c am p one se s, no i ní ci o da F ra nç a
m oderna, habi t av am um m undo de m adrast as e órf ão s, d e
l abut a i nex oráv el, i nt ermi náv el e de em oçõe s brut ai s, t ant o
apare nt e s qu ant o r epri m i das. A condi ção hum ana m udo u
t ant o, de sde e nt ão, qu e m al podem os im agi nar com o era, para
pe ssoa s c om v i das re al m ent e desagr adáv ei s, gro ssei ras e
curt as. (DAR NT O N, 1988, p. 43) .

Se to mados co mo e xe mplo alguns contos infantis , é possível


encontrar tra mas ainda ligadas ao reflexo dessa caótica sociedade
medieval. Era mais co mu m a separação de ca sais por morte que por
desavenças fa miliares, então, te me ndo a indigência, os viúvos se
uniam nu m segundo casa mento e m bu sca da sobrevivência. Em grande
parte das vezes, ambas as fa mílias continham muitos filhos que, sob
maior observação da mulher – que passava mais te mpo co m eles – ,
era m selecionados pela força e habilidade laboral para que
per manecesse m na fa mília. As de mai s crianças eram abandonadas na
floresta ou na estrada para que fosse m acolhidas por que m precisasse
delas. Entende m-se, assi m, históri as co mo João e Maria, que fora m
abandonados pelo pai, ou os inúmeros contos de fadas, co mo
Cinderela e Branca de Neve, onde a principal vilã é a madrasta.
Poré m, apesar de refletir a situação medieval de quase todo o
ocidente europeu, “foi na França, so mente na segunda metade d o
século XVIII, que se manifestou abert a mente a preocupação co m u ma
literatura para crianças.” (COELHO, 2010 , p 7). Antes transmitidas
oralmente co m u m to m de terror p ara a medrontar os aldeões, as
histórias fantásticas foram reunida s a partir de recolhas e começara m a
ser organizadas e escritas com u m fo co voltado para o público infantil.
Pioneiros na área, La Fontaine com As Fábulas (1668), Charles
Perrault com Os Contos da Mamãe Gans o (1691-1697) e Mme. D‟Aunoy
co m Os Contos de Fad as (8 vols., 1696 -1699), iniciaram u m mo vi mento
literário precursor do que seria mais tarde denominado co mo Literatura
Infantil.

É essa um a l i t erat ura que r e sul t a da v al ori zação da F a nt a si a e


da I m agi nação e qu e se c on st rói a p ar t i r de t ex t os d a
Ant i gui dade Cl ássi ca ou d e narrat iv as que v iv i am oralm ent e
ent re o pov o. (CO ELHO , 2010, p. 75)

No século onde a cultura clássica grega era cultuada co mo


cânone único e superior, um me mbro da Acade mia Francesa se
predispõe a provar que a cultura mod erna ta mbé m se destaca entre as
importantes manifestações artísticas. Nu ma luta entre antigos e
modernos, co m u m to m moralizante, influências fantásticas condizentes
co m sua for mação católica e com u m direciona mento à infância e à
juventude, o contista francês Charles Pe rrault foi responsável por
ta manha contribuição para essa criação literária que, ainda hoje, é
conhecido como “pai da literatura infantil”. Nomen claturas à parte, a
obra de Perrault é indispensável ao estudo dos contos maravilhosos.
Em Os Contos da Mamãe G anso, o autor reúne histórias que se
tornaram clássicos da literatura infantil francesa da época e,
posteriormente, do mundo ocidental.
Quase dois séculos depois , entre os anos 1812 e 1822 no L este
Europeu, Jacob e W ilhelm Grimm publicam o pri meiro volume d e
Contos de Fadas para Criança s e Adultos . Filólogos, folcloristas e
estudiosos da mitologia e da história germânica, “os irmãos recolhe m
diretamente da me mória popular as an tigas narrativas, lendas ou sagas
ger mânicas conservadas pela tradição oral” (CO ELHO, 2010, p. 149). À
diferença dos contos reunid os por Perrault, que ainda detinha m o to m
violento e ameaçador característico do reflexo das histórias medievais,
os Ir mãos Grimm “buscara m suavizar o rigor doutrinal e levaram e m
conta as exigências da men talidade infantil”. (SORIANO, 2002, p. 289).
À exe mplo, nota -se a mudança ao final do conto Chapeu zinho
Vermelho, onde o lobo devora avó e neta na história publicada por
Perrault e tem a barriga aberta por um caçador que salva as duas e o
mata, co mo descri to pelos dois irmãos.
Mesclando realidade e maravilha, quase conte mporâneo ao s
Grimm e inspirado pela recolha feita a partir da mitologia nórdica, o
poeta e novelista dinamarquês Han s Christian Andersen se utiliza do
cotidiano e do real tanto para publica r contos derivados da tradição
oral difundida pelos bardos quanto para escrever histórias inéditas. É
quando fato e mito co meça m a intervir na me mória literária da criança,
propiciando uma for mação onde arte e pedagogia se fundem e faze m
parte da construção cultural do indivíduo.
De fato, a arte literária quando voltada para o público infantil
acaba por ser fundida entre o pensa mento mágico e o pensa mento
lógico, afinal, teoricamente, seres fant ásticos ou ob jetos ani mados são
mais críveis no a mbiente cogni tivo da criança. É então que se
diferenciam e se confunde m as histórias onde fantasia e realidade
pode m ser considerado s elementos t anto da Literatura Adulta quanto
da Infantil. Vladmir Propp, e m Morfolo gia do Conto Maravilhoso (2010),
analisa as histórias , antes tratadas co mo fantasiosas, e as classifica
co mo Contos Maravilhosos.
Propp, dentre as propostas de classificação do Conto Maravilhoso
de inúmeros autores descrit os e m se u livro, sugere u ma for ma h íbrida
de analisá-los. O que se afirma, assim, é qu e o conto, antes d e
qualquer função educadora, deve ser analisado e descrito como for ma
escrita de arte, suporte digno de morf ologia e estudo aprofundado. De
acordo co m Coelho (2000, p. 17) “o Maravilhoso sempre foi e continua
sendo um dos ele mentos mais i mportantes na literatura destinada às
crianças” e, segundo estudos psicanalíticos, os significados simbólicos
que os contos detê m estão ligados ao maniqueísmo natural da
for mação hu mana. A divisão entre o bo m e o mau, o belo e o feio, o
poderoso e o fraco, o certo e o errado, nor mal mente estabelecida no
conto infantil, tende a facilitar à criança u ma co mpreensão de valores,
se mpre transmitida através da linguage m si mbólica característica. É o
que Coelho define como polarização do conto ; os extre mos se mantê m
alheios u m ao outro, propiciando ao leitor a diferenciação imediata
entre eles. Tal polarização se vê discutível quando, em deter minados
contos, as características de condu ta das personagens se deixa m
mesclar, co mo é notado no conto analisado neste traba lho e que se
discutirá mais adiante.

1.3 Literatura e Cine ma

Fazer o diálogo entre duas obras – u ma literária outra


cinematográfica – não implica soment e comentar sobre se melhanças e
diferenças, tão pouco falar de fidelidade “do filme sobre o livro”, ma s
perceber a pluralidade de leituras que delas podemos fazer. Essa
polivalência se dá a partir das peculiaridades e especificidades
encontradas em cada u ma das duas manifestações artísticas e m
questão, u ma vez que a diferenciação de linguagens possibilita uma
estrutura fundamental à análise destas. Sabe -se que as artes literária e
fílmica detê m seu ponto principal de divergência na linguagem
utilizada; enquanto a primeira é atida ao signo verbal, a segunda se
co mpõe do visual. Porém, a mbas, ainda que manife stadas de for ma
diferente, são criações artísticas irmãs, já que:

Em prim ei ro l ugar, porq ue não se p o dem repre sent ar


v i sualm ent e si gni f i cados v erbai s, da m e sm a f orm a que é
prat i cam ent e im possí v el ex primi r com pal av ras o que e st á
ex presso em l i nhas, f orm as e c ore s. E m segu ndo l ugar ,
porqu e a i m agem concei t ual que a l ei t ura f az nasc er n o
espí ri t o, é f undam ent al m ent e dif erent e da i m agem f í lmi ca,
ba sea da em um dado real q ue é no s of ereci do i m edi at am ent e
para se v er, e não para se i m agi nar grad ual m ent e. Poi s, s e o
rom ance narra um m undo, o f i lm e nos col oca di ant e de um
m undo organi zad o de ac ordo com um a cont i nui dade e um a
cont i güi dade. (SCO RSI , 2005, p. 4 0)

També m não pode mos hierarquizá -las, pois isto significaria


reduzir a grandiosidade e importânci a das diferentes for mas de arte, e
sugerir a preponderância de uma sobr e a outra.

A t radução d e um a obra à t el a nece ssi t a, o m ai s po ssí v el ,


t ocar o s pont o s de ori gem da obra, p a ra real i zar essa
narrat iv a dent ro da com preen sã o t em poral que o ci nem a di t a.
E i st o ocor re n o di f í cil i nt erv al o de t radução que l i gará par a
sem pre a o bra e scri t a à i m agem que se m ov im ent a na t el a.
Q uero di zer qu e e sse “l ugar -qu a se” de i m ersã o, na t rad ução ,
abol e qual q uer hi erar qui zação d a s l i nguage ns. O f at o de um a
t radi ção de e scri t a t er se f i rm ado na cul t ura não po de e nã o
dev e si t uar a l i t erat ura em po si ção d e pri m azi a, nest e
m om ent o, ou def i ni r a escri t a com o cri t éri o ab sol ut o em um a
com posi ção que def i ni ri a a i m agem com o um sub st i t ut o m ai s
ou m enos i m perf ei t o. Carregam os um a t radi ção de e scri t a,
si m , porém reconhecem o -no s c ada v ez m ai s com o um a
civ il i zação de i m agem. E, nesse proce sso c ul t ural , dest ac am -
se a s i m agen s- son s em m ov im ent o produzi do s pel o ci nem a .
(SCO RSI , 2005, p. 42)

Tendo em vista o paradigma atual da sociedade ocidental - que


Lucia Santaella chama de Cultura d as Mídias -, há de se levar e m
consideração “as novas for mas de per cepção e cognição que os atuais
suportes eletrônicos e estruturas híbridas e alineares do texto e scrito
estão fazendo e mergir.” (SANTAELL A, 2010, p. 1 7). Esta pesquisa não
pretende entrar nos debates sobre o possível de saparecimento do livro
impresso ou a i mportância deste ou de outro veículo, pois se admite
que:

(. . . ) o cont ex t o sem i óti co do có di go e scri t o f oi hi st ori cam ent e


m odif i cando-se, m escl an d o- se com out ro s proce sso s d e
si gno s, com out ro s suport e s e ci rcun st ân ci as di st i nt a s d o
l iv ro, o at o de l er f oi t am bém se ex pandi do para o ut ra s
si t uaçõe s. Nad a m ai s nat ural , port ant o, que c oncei t o d e
l ei t ura acom panhe e ssa ex pan sã o (SANT AEL LA, 2010, p. 17).

Ao propor três tipos de leitores – conte mplativo, movente e


imersivo – Santaella nos desenrola a história do desenvolvimento da
leitura, desde a cultura livresca, passando pelas Revoluções Industrial
e a Eletrônica, até chegar aos dias atuais, que a autor a denomina
cibercu ltura. O primeiro leitor é fruto da cultura livresca e tem e m su a
frente objetos i móveis e manu seáveis, co mo livros, mapas, gravuras,
pinturas, etc. O segundo trata -se de u m leitor filho da Revolução
Industrial, do mundo híbrido e em movi mento, de misturas sígnicas, que
manterá suas características básicas até a revolução eletrônica, com o
apogeu da televisão. Faz uma leitura e m saltos, recolhendo fragmentos
do excesso de informações que te m a sua frente. E por fim, o leitor
imersivo que, fruto da necessidade conte mporânea de estar atento a
todo o acervo informativo ao seu redor, direciona sua leitura através da
possibilidade de escolha.
A convergência das mídias, isto é, a gradativa hibridização dos
veículos e suas respectivas linguagens, traz u ma nova perspectiva de
diálogo entre eles, assim co mo dos te mas e discussões que este s
possa m oferecer. O que interessa neste trabalho são duas linguagens
e m particular: a literatura e o cinema . O cinema, por tradição, te m na
literatura sua fonte primordial, porém, paulatinamente, observa -se que
os dois tem se influenciado mutua ment e.
Na organização social atual, onde toda infor mação não se
desperdiça ao olhar do leitor, a linguage m cine matográfica se destaca
pela complexidade e diversidade que deté m. Sabe-se que a vontade do
ho me m de representar os aspectos dinâmicos da vida humana e da
natureza foi o início da cultura virtual e i magética presente no mundo
conte mporâneo e a inspiração para as primeiras invenções destinadas
à projeção de imagens, ain da em 5.000 a.C., quando os chineses
utilizavam jogos de so mbras para pro jetar teatro de fantoches, ou co m
a Câ mara Escura, invenção de Leonardo da Vinci do século XV, que
objetivava a proje ção a partir de u ma máquina. Co m a evolução
tecnológica e a sede h umana de aperfeiçoamento, tais aparelhos fora m
aprimorados e, e m 1895, ocorre u a primeira sessão de cine ma.
O projeto partiu da criação do Cinematógrafo, u ma espécie d e
ancestral da filmadora, movido a ma nivela e composto de negativos
perfurados para regis trar o movi mento . O aparelho foi idealizado pelos
irmãos Auguste e Louis Lumière, filhos de um fotógrafo proprietário de
u ma indústria de filmes e papéis foto gráficos de Besançon, na França.
Frequentaram u ma escola técnica, onde realizaram u ma série de
estudos sobre os processos fotográficos, postos e m prática na fábrica
do pai. Louis Lumière (1864 – 1948) f oi o primeiro cineasta realizador
de docu mentários curtos e, após a invenção do Cinematógrafo ,
dedicou-se à divulgação das projeções através do aparelho , tornando o
seu no me a orige m da nova arte que surgira: o cinema.
A nova for ma de manifestação a part ir da utilização de imagen s
consolidou-se ainda no século XIX co m o surgi mento de docu mentários,
os primeiros gêneros do cinema e , mais tarde, desenvolven do a
linguagem cine matográfica a partir da criação de estruturas narrativas.
É na França, na pri meira década do século XX, que peças de teatro sã o
filmadas e exibidas posteriormente, iniciando a utilização do cinema
co mo recurso ta mbé m de entretenime nto. D uas décadas mais tarde, o
advento do so m nos Estados Unidos, revoluciona a produção
cinematográfica, consolidando estúdios, profissionais e astros do
cinema, atribuindo a ele uma ga ma indubitável de possibilidades
co merciais e artísticas.
Co m a disse minação massiva do cinema e a exigência cada vez
maior do público e da crítica, as produções co meça m a to mar for ma
espetacularizada, chegando ao atual uso de recursos tecnológicos para
a criação de um cenário que atenda à expectativa. Entre tamanh a
diversidade de elementos construtivos que alicerçam u ma produção
cinematográfica, o processo de criação do roteiro é fator visceral,
tornando inevitável que obras literárias fossem adaptadas para as
telas.
Adaptação Fíl mica ou Adaptação Cinematográfica é o u so , para a
construção de um filme , de material primeira mente publicado em outra
linguagem, originando o texto cha mad o de roteiro adaptado.

A Adapt aç ão Ci nem at ográf i ca é o proce sso at rav és do q ual


um a obra (l i t erári a, radi of ôni ca, t el ev i siv a, et c . ) t em seu s
el em ent os con si dera do s con st rut iv os t ran spo st o s para um a
narrat iv a f í lmi ca. Esse proce sso, a ssi m suci nt am ent e def i ni do,
congre ga, no ent ant o, um a séri e de que st õe s prát i ca s e
t eóri cas, sej a a f i deli dade ao t ex t o ori gi nal (. . . ), a recri ação
del i berada ou (. . . ) t en sõe s ent re si st em as de re pre se nt açã o,
poét i cas de g êner o, pont o s de v i st a i deol ó gi cos. (F REI RE et
SI LVA, 2007) .

Neste trabalho, coloca -se e m questã o a adaptação feita para o


cinema a partir de uma obra do cânone literário infantil, baseada em
u ma análise comparatista entre os có digos e as linguagens. Segundo
Marcel Silva (2009), a adaptação pode ser co mpreendida a partir de
conceitos específicos que implicam u ma análise metodológica.

A condi ção rel aci onal da adapt aç ão, no e nt ant o, pode se r


ent endi d a a par t i r d e v ári as per spect iv as. “A propri açã o”,
“assi m i l ação”, “deriv ação”, “di al ogi sm o”, “hi bri di zação”,
“i nt ert ex t uali dade”, “recri ação”, “re -i nt erpr et ação”, “t raduç ão” ,
“t ransc odi f i cação”, “t ranscri açã o”, “t ran sf orm ação”, ent r e
out ro s, sã o t erm os com um ent e a ssoci a do s à i déi a d e
adapt aç ão, o s qu ai s, em m ai or ou m enor g rau, ref erem -se a
po si ci onam ent os m et odol ógi co s p art i cul ares. As n ov as t eori a s
da ad apt açã o, t oda s i m buí das da t aref a de t ran sce nder o
di scur so da f i del i dade, apont am cami nhos para m et odol ogi a s
e ab orda gen s m ai s abr ang ent e s, n o se nt i do de acom panh a r
out ra s v ari ant es d a rel açã o e nt re ci nem a e l i t erat ura. (SI LVA,
2009, p. 4) .

Sabe-se que a relação estabelecida há te mpos entre linguage m


literária e cinematográfica tornou -se razão de constante contro vérsia
entre estudiosos de ambas as áreas. Co mentários acerca da
dependência ou sobreposição de uma e m relação à outra é a discussão
mais frequente, quando se sabe que expressão verbal e visual, apesar
de linguagens diferentes, são manifestações interligad as.

A l i t erat ura prece de em mi l êni os o ci n em a e por i sso


com põem -se est et i cam ent e de f orm a di st i nta: a l it erat ura nã o
se v al e da e st ét i ca da i m agem , enquant o o c i nem a se co n st rói
so bre el a. Am bas a s l i ngua gen s, enq ua nt o prod ut o hum ano,
se i nf l uenci am m ut uam ent e. Ent re os m ei os l it erári o e
ci nem at ográf i co exi st e um paral el o com um , f orm ado pel o
di ál ogo e pel a i m agem, sendo que n o pri m ei ro o t ext o
propri am ent e di t o é que aci onará o s sent i do s e, na m ent e do
l ei t or, se t ransf orm ará em im agem , enqu ant o no segu n d o
im agen s em m ov im ent o é que serão ex post as a o s ol ho s d o
espect ad or, e ser ão d ecodi f i cadas at rav és da s p al av ras.
(DO MI NG O S, 2007, p. 13) .

Tendo como principal alvo de tais ma nifestações o leitor atual e,


u ma vez sendo este um leitor imersivo, discutir so bre a superioridade
de u ma delas é desmerecê -las co mo produção artístico -cultural.
Literatura é image m si mbólica projeta da na mente do leitor, enquanto
filme é antes narrativa, uma ve z que o fazer criativo do roteirista, ainda
que se m ser adaptativo, reque r u m processo literário prévio. A Bela e a
Fera, tanto a obra literária original co mo a versão adaptada e m
questão, traduz esse diálogo iminente entre elementos rebuscados de
simbologia, ad mitindo sua análise coerente nas duas manifestações
artísticas esco lhidas para compor esta pesquisa.
CAPÍT ULO 2
A BEL A E A FERA: DO CO NT O AO CINEMA

2.1. A Bela e a Fera de Madame Leprince

Em te mpos onde os contos ma ravilhosos advinham da s


adaptações feitas a partir de coletas da oralidade campesina, Mada me
Jeanne-Marie Leprince de Beaumon t atuava co mo professora e m
escolas preparatórias para meninas e pro movia a educação a partir de
contos de sua própria autoria e/ou adaptação. A Bela e a Fera , de
1756, é u ma obra por ela adaptada do conto original de 1740, escrit o
por Gabrielle-Suzanne Barbot, Da ma de Villeneuve – colhido da
oralidade – e traduz a realidade na qual Leprince estava inserida: a de
educar as crianças através da reflexão a partir da leitura.
Sabe-se que, na sociedade francesa do século XVII I ,
principalmente nas cinco pri meiras décadas, ainda existia u ma
marcante presença da cultura patriarca e moral. Os colégios destinados
à educação de meninas era m de rigor proporcional ao requinte, onde
estas era m criadas para servir à família e ao país, sempre co m bo a
educação e conhecimentos literários. Mada me Leprince, ao escrever
u m nú mero superior a setenta out ro s contos, detinha -se à questã o
moral e educadora e m sua maioria, u ma vez que seu trabalho e su a
conduta assim e xigiam.
A Be la e a Fera é o conto mais conhecido da professora e
escritora e traz reflexões sobre a mor, beleza, ganância e virtude. Bela
é u ma jo ve m doce e a mável, que vive para servir seu pai, seus três
irmãos e suas duas irmãs. Seu pai, antes u m rico mercador, ao perder
toda sua fortuna, decide ir em busca de salvar seus bens e m
negociações de outros povoados, de ixando os filhos nu ma casa de
ca mpo distante, único be m que lhe restou. Ao sair, pergunta às filhas
se deseja m que eles lhes traga algu m presente. As duas irmãs,
a mbiciosas, lhe pedem roupas e jóias; Bela, compadecida pela situação
financeira da família, pede ao pai que lhe traga a rosa mais bonita que
encontrar.
Em meio a u ma te mpestade, o pai de Bela perde -se na floresta e
se depara com u m castelo, onde é servido de alimentação, bebida e
aloja mento de maneira misteriosa me nte encantada. O mercador, ao
deixar o castelo, arranca u ma rosa do jardi m para presentear a filha e
desperta a ira do dono do castelo, uma horrenda fera que, em punição,
ordena sua morte. Pela súplica do mercador e m poder ver u ma ve z
mais sua fa mília, a Fera permite que ele volte dentro de três dias,
te mpo suficiente p ara despedir -se, mas, ao chegar e m casa e contar
aos filhos, Bela, sentindo -se culpada, se oferece para morrer e m seu
lugar.
Ao chegar ao castelo, a Fera poupa -lhe a vida e a pede e m
casa mento, pergunta refeita diariame nte durante a estada de Bela no
castelo. A convivência com Fera a faz enxergar além da selvageria de
u m ani mal co mo ele e os aproxi ma , fazendo co m que os dois se
apaixone m. Poré m, a saudade que a jove m te m da fa mília a faz pedir à
Fera que a deixe visitá -los ao menos u ma vez. O monstro a conc ede
que saia do castelo, sob a condição de voltar e m u ma se mana, caso
contrário, morreria ele de saudade. As irmãs de Bela, ao vê -la feliz e
rica, sentem-se enciu madas e a manipulam para que fique mais te mp o
e m casa, a fi m de enfurecer a Fera. Através de u m sonho, a jo ve m, a o
fim do déci mo dia fora do castelo, vê que o monstro enfraquece cada
vez mais à sua ausência e, por meio de u m ele mento mágico, u m anel
encantado, retorna. Outra vez no castelo, Bela encontra a Fera
agonizando e finalmente entende qu e a a ma de verdade, aceitando,
então, seu pedido de casamento. A Fera se transforma e m príncipe,
revelando ter sido enfeitiçado por uma fada e condenado a viver co mo
u m monstro até que algué m o a ma sse de verdade.
Na obra, nota -se, através da linguage m e das metáfora s
utilizadas, que – pelo contexto social, cultural e histórico no qual a
autora estava inserida – há uma preocupação co m a descrição do feio
co mo ele mento de maldade e horror e, ao final, a transfor mação da
feiúra em beleza como característica co mu m ao conto infantil: a
purgação através da meta morfose. Ta mbé m percebe -se que, por ser
direcionada a crianças de um centro e ducacional do século XVIII, toda s
as referências de bondade e maldade, beleza e feiúra, tristeza e
felicidade são expostas de forma polarizada, colocando o caráter
moralizante explicitamente ao longo do conto.
A Bela de Leprince não so men te é sub missa aos anseios e orden s
da família, como dese ja manter -se e m tal situação. Ao longo do conto,
inúmeras vezes a é proposto que deixe sua cas a para casar -se co m o s
inúmeros pretendentes que aparecia m, poré m, a garota prefere
continuar ao lado da fa mília e cuidar do pai. Essa ligação fa miliar se
mostra presente ta mbé m quando, ainda que satisfeita em viver ao lado
da Fera no castelo, Bela mostra dese jo de rever o pai e os irmãos. É
notado ainda o simbolismo por trás da concretização do casamento ,
ritual de união comu m e tido como st atus de estabilidade na época; a
Fera pergunta repetidamente se Bela quer se casar com ele, fazendo
de tal união a co ncretização da felicidade plena entre os dois. O anel é
o elemento que, através do regresso de Bela à convivência no castelo,
simboliza a mágica do casa mento e a eternização da relação amorosa.
A rosa é o ele mento -chave, respon sável pelo fato principal par a a
tra ma. É o roubo da flor que enfurece a Fera e o faz condenar o pai da
Bela à morte. Essa metáfora é caract erizada pela dicotomia e xistente
na figura da rosa, onde beleza e sensibilidade dividem espaço co m o
perigo de seus espinhos.
A presença dessa c onstante oposição simbólica é a marca d a
narrativa e inspirou inúmeras adaptações posteriores, tanto para outras
obras literárias como para produções fílmicas. O cineasta francês Jean
Cocteau levou às telas cinematográf icas a primeira destas versões
adaptadas. Em u ma produção e m preto e branco, co m uso de pouco s
recursos especiais e num gênero latente entre o suspense e o terror,
La Belle e La Bête (França, 1946) traduz a obra de Leprince à
linguagem cine matográfica e a torna um marco no cine ma fantástico d a
Europa. Diferente da obra original, a versão de Cocteau é destinada ao
público adulto, porém, ainda no início do filme, o próprio diretor dedica
u ma mensage m ao s espectadores:

As cri ança s acre di t am no que se di z à el a s. (. . . ) El as crêem


em mil hares d e c oi sa s i ngên ua s. É u m pouco d e ssa
i ngenui da de qu e eu v os peço e, para dar sort e, d ei x ai -m e
prof eri r est as quat ro p al av ras m ági cas, o v erdad ei ro “abre -t e
Sésam o” da i nf ânci a: era um a v ez. . . (COCT EAU, 1946, L a
Bel l e et La Bêt e) .

O desapego da realidade e a i mer são do leitor na fantasia


proposto por Cocteau é o cerne da criação e da recepção literária
infantil, característica presente també m na mais fa mosa adaptação d o
conto de Leprince e difundida mundialmente co mo parte do i maginário
da criança do século XXI : a versão dos estúdios W alt Disney.

3.2 A Bela e a Fera da Dis ne y: a vers ão de Gary T rousdale

Em 1991, a W alt Disney Pictures produziu sua trigésima


animação: a versão adaptada do conto original francês de A Bela e a
Fera, longa que marcou o ro mpi mento de todos os moldes das
produções animadas anteriores. Com orça mento de vinte e cinco
milhões de dólares, a adaptação foi a estréia do escritor e diretor
norte-americano Gary Trousdale, que e m parceria co m o ta mbé m
diretor Kirk W ise, idealizaram a anima ção mu sical que mais tarde seria
vencedora do Oscar de melhor trilha sonora original e a primeira
indicada ao de melhor filme. O mu sical conta com roteiro de Linda
W oolveton e trilha sonora de Alan Menken e Ho ward Ash man.
Inserido no contexto da cultura multip olar da América dos anos
noventa, Trousdale iniciou no mundo da arte visual ainda adolescente,
co m participações e m periódicos escolares onde contribuía com tiras e
charges. Co m habilidade notória para o desenho, desistiu de cursar
Arquitetura para ingress ar na Universidade de Arte e Design da
Califórnia, quando co meçou seu tra balho no meio cine matográfico
desenhando storyboards 3. Na Disney, assinou inúmeras outras
produções, mas manté m seu no me ligado à sua versão de A Bela e a
Fera que, co m oitenta e quat ro minut os de duração, manté m o enredo
original, diferenciando -se na presença ou ausência de elementos
acessórios.
3
St oryboar d é o roteiro desenhado em quadros, semelhante aos quadrinhos, porém sem balões de
fala (TOGINI, 2010).
De i magens co mposta s e m lu xuosos vitrais de um castelo, a vo z
do narrador anuncia o início da tragédia que impulsiona a trama:

Era um a v ez, num paí s di st a nt e, um j ov em prí nci pe q ue v iv ia


num rel uzent e c a st el o. Em bora t iv esse t u d o qu e qui se sse, o
prí nci pe era m im ado, egoí st a e gro ssei ro. M as n um a noi t e de
i nv erno, um a v el ha m endi ga v ei o ao cast el o e of ereceu a el e
um a si m pl es rosa em t roca de abri g o par a o f ri o. Repugnad o
pel a f ei úra del a, o prí nci pe zom bou da of ert a e m and ou a
v el hi nha em bora. Porém el a o acon sel ho u a não se d ei x ar
enga nar pel a s ap arênci a s, poi s a bel eza e st á no i nt eri or da s
pe ssoa s e, qu and o el e v olt ou a ex pul sá -l a, el a se t r an sf orm ou
num a bel a f ei ti cei ra. O prí nci pe t ent ou se d esc ul par m as er a
t arde d em ai s, poi s el a perc ebe u qu e n ã o hav i a am or no
coração del e e, com o cast i go, el a o t ran sf orm ou num a f era
horren da e rog ou um a pra ga n o ca st el o e em t odos q ue l á
v iv i am . Env ergonh ado de sua m onst ru o sa aparê nci a, a F er a
se e sco nde u n o ca st el o c om um espel ho m ági co, que era su a
úni ca j anel a para o m undo ex t eri or.
A rosa qu e el a of ereceu era enca nt ada e i ri a f l orescer at é o
v i gésim o prim ei ro ano. Se el e aprend e sse a am ar al guém e
f osse r et ri buí do n a ép oca em que a úl t im a pét al a caí sse ,
ent ão o f ei ti ço est ari a de sf ei t o. Se não, el e est ari a c ond ena d o
a perm anecer f era par a sem pre. Com o passar do s a no s, el e
cai u em dese spero e p erde u t oda a e sper ança, poi s q uem
seri a ca paz de am ar um m on st ro? (A Bel a e a F era, 1991) .

O título “A Bela e a Fera” to ma o centro da tela e a primeira


co mposição do musical te m início, apresentando uma pequena aldeia
francesa, a rotina e os costumes dos aldeões e uma Bela diferente da
obra original e das demais “Princesas” das animações Disney. É d e
vital relevância que se dê atenção ao termo destacado, utiliza do para
no mear as protagonistas de tais contos.

F i g u ra 1: O F ei ti ço i l ust rado em v i t ral.


F o n te: A Bel a e a F era, 1991 .
Segundo Paola Go mes (2000) “as Princesas representam u ma
potência identificatória no transcorrer de quatro décadas, de 1959 a
1999, período em que fora m con su midas co mo ícones de u ma
fe minilidade idealizada.” .

O t em a de a nál i se “pri nce sa” nã o se re f ere apen a s a o s


suj ei t o s d o sex o f em i ni no que o st e n t am est e t í t ul o
ari st ocrát i co, m as si m a per son age n s e per sonal i dade s que se
apre se nt am no i m agi nári o cul t ural com o f i gura s pert i ne nt e s a
um cont eúdo m í ti co especí f i co. (GO MES, 2000, p. 15) .

Henry Giroux, e m seu artig o A Disn eyzação da Cultura Infant il


(1995), aponta a influência doutrinante que a Disney detém sobre seu
público, comentando acerca do papel que esta exerce na moldage m da
identidade cultural da criança. Sabe -se que, de acordo co m o conceito
de Indústria Cultural 4, a sociedade de consu mo é causa e foco das
produções artístico -culturais capitalistas, tornando, assi m, o uso d a
figura da princesa como modelo social a ser seguido pelo público -alvo.
É, ta mbé m nessa questão, que aparece m as diferenças entre Bela e as
princesas anteriores, mostrando, me smo que não desligada do objetivo
mercantilista das obras do gênero, u ma influência comporta mental
positiva e divergente do padrão.

A f i gura arqu et í pi ca da j ov em heroí na de um cont o ori un do d a


t radi ção po pul ar or al é rev est i da de f orm as div ersa s n o
t ransc orrer do s proc e sso s hi st óri co s e do s d esl ocam ent o s qu e
sof re. As v ersõe s Di sney de ssa s he roí na s, al ém de e st arem
su bm et i das a v ersõe s c ondi ci onad a s a d et er mi nada s si t uaçõe s
cul t urai s, com o t ranscri çõe s de Perraul t du ra nt e o ab sol ut i sm o
m onárqui co na F ranç a do séc ul o XVI I ou o s bal és cri ad o s po r
Pet i pa dent ro do s i de ai s rom ânt i cos do sécu l o XI X, pro duzem
um ti po esp ecí f i co de pri ncesa, subor di na da ao s di scur so s
v i gent es dura nt e o perí o do em que em ergi ram . (G O MES,
2000, p. 18) .

4
Indústria Cultural é tudo o que é produzido pelo sistema industrializado de produção cultural (TV,
rádio, jornal, revistas, etc.) elaborado de forma a influenciar, aumentar o consumo, transformar
hábitos, educar, informar, pretendendo-se ainda, em alguns casos ser capaz de atingir a sociedade
como um todo.
F i g u ra 2: Bel a.
F o n te: A Bel a e a F era, 1991.

Na versão americana, a família de Bela se reduz a ela, ao pai,


Maurice, e ao cavalo dos dois, Felipe. Maurice, ao contrário do conto,
não é um ho me m rico, trabalha como inve ntor e é considerado louco
pelos demais aldeões. À Bela, é dada maior importância no que se
refere à sua vida na aldeia, seus anseios e costu mes. O longa ani mado
reflete, ainda em sua pri meira canção, u ma Bela a mbiciosa e
intelectualizada, que deseja sair da aldeia, conhecer o mundo e viver
mais do que o a mbiente e m que está p ode oferecer.
Personagens inéditos são colocados co mo ele mentos acessório s
à trama, co mo o candidato a noivo de Bela, o presunçoso e cobiçado
Gaston, e seu amigo LeFou. Os dois person ificam o co mporta mento
machista da época, mi metizado e m seus estereótipos e refletido em
suas atitudes. De aparência viril e tipicamente bonito, Gaston é o
sí mbolo machista da cidade e tem son hos que resu me m os de todos o s
ho mens da aldeia: casar, ter muit os filhos e uma esposa dona do lar.
Vale mencionar que, se mpre segui ndo seus passo s, três aldeãs
suspiram e desmaia m a cada u m de seus movi mentos. Elas, trigêmeas,
retratam a conduta padrão das mulheres dali, igualando -se, na
aparência e na atitude, para m ostrar a generalização do
co mporta men to sub misso fe minino de então.

F i g u ra 3: G ast on.
F o n te: A Bel a e a F era, 1991.

O castelo, pela necessária ludicidade de u m fil me infantil, deté m


à encantaria elementos essenciais à tra ma. Reto mando a ideia de que
o feitiço rogado pela fada caiu não so mente sobre o príncipe, co mo
ta mbé m sobre todos os criados do castelo, que viraram ob jetos
animados e personificados. Entre os principais, tem -se o candelabro
Lu mière, metáfora para a iluminação dos pensa mentos da Fera, u ma
vez que este é seu conselheiro; o relógio Horloge, que mi metiza o
caráter her mético, pontual e metódico dos criados; e o bule Mada me
Sa movar, que, de aparência madura, reflete a paciência da Fera e de
seus criados pela espera do desencanta mento.
F i g u ra 4: Lumi ère, Madam e Sam ov ar e Horl oge.
F o n te: A Bel a e a F era, 1991.

Na versão de Gary Trousdale, o pai de Bela sai da aldeia para


u ma feira de inventores e acaba por perder -se na floresta e encontrar o
castelo da Fera, despertando sua ira por entrar s e m ser convidado e
sendo condenado à prisão eterna. Fe lipe, o cavalo, retorna para casa
se m Maurice, o que leva Bela a sair e m busca do pai e acabar por
encontrar ta mbé m o ca stelo, oferecendo -se para a reclusão e m se u
lugar. Assim co mo no conto original, a Fera aprisiona a jove m e livra
seu pai, oportunizando a convivência e a paixão dos dois. Quando,
depois de certo tempo no castelo, Bela revela a vontade de rever o pai,
a Fera, através de u m e spelho mágico, mostra co mo Maurice encontra -
se doente e, compad ecendo-se da tristeza da garota, a deixa partir. Na
aldeia, Gaston, enciumado, co manda u ma guerra à Fera e reúne os
aldeões para invadir o castelo. Ao chegare m, Fera, triste e debilitado,
não reage aos ataques e, numa luta co m Gaston, é apunhalado. Bela
chega e, ao ver Fera morrendo, declara seu a mor por ele, desfazendo o
feitiço e transformando todos os objetos do castelo nova mente e m
criados e a Fera em príncipe.
De acordo co m Bruzzo ( 1996), tal produção “consolidou a
reto mada de liderança dos Estúdios Di sney na realização de filmes de
animação, após u m longo período de produções de pequeno i mpacto” ,
resgatando seu poder coercitivo e influente. Giroux (1995) aponta qu e
“a tentativa da Disney de transformar as crianças e m consu midoras e
construir a mercanti lização co mo um princípio definidor da cultura
infantil” é a chave para tamanho êxito de suas animações. “ A Bela e a
Fera també m pode ser lida co mo u ma rejeição da hiper -masculinidade e
u ma luta entre as sensibilidades de machão de Gaston e o se xismo
reformado da Besta.” (GIROUX, 1995, p. 9) .
Denota-se à Bela, a figura da “princesa” moderna, desligada do
rótulo da busca pelo príncipe encantado e da catarse através do
casa mento. Ela não anseia ater -se a nada que lhe prenda à aldeia e
encontra nos livros a primeira oportunidade de “viajar” a outros lugares.
Essa característica intelectualizada da protagonista é mostrada de
diversas formas ao longo do filme, ilustrada nas visitas constantes da
garota à livraria e no início do romance entre ela e a Fera, quando este
a presenteia com a biblioteca do castelo. São estes elemento s
relevantes à pesquisa, uma vez que tr aduze m os conceitos de beleza e
feiúra presentes em a mbos os ob jeto s de análise.
CAPÍT ULO 3
O FEIO CO MO ELEMENT O COMPARAT IVO

3.1. T radução na Adaptação Cine mat ográfica

Co mparar duas obras leva o pesquisador a encontrar, mais do


que elementos e m co mu m, rudi me ntos si milares, co mo traços de
co mposição e detalhes materiais. Assim, te m-se u ma apro xi maçã o
estrutural fundamental para o entendiment o do conceito abordado por
esta pesquisa para a análise de u ma obra literária e sua adaptação
cinematográfica: a tradução.
Considerando os cinco componentes 5 da obra literária, propostos
por Cionarescu (apud NITRINI, 2010) – e levados e m conta par a
estabelecer u ma diferenciação entre influência, imitação e tradução – é
possível analisar a obra de Leprince traduzida para a adaptação de
Trousdale, de forma a encontrar as similitudes. Nitrini (2010) coment a
que a influência se limita à absorção de outro desse s co mponentes,
enquanto que o uso de um nú mer o maior deles leva à imitação,
chegando à tradução co m a consideração de todos.
O tema das duas obras é a preponderância da beleza interior
sobre a externa; o molde literário é o conto maravilhoso; os recursos
estilísticos se aproxi ma m na co mposição linear da narrativa em te mpo
cronológico e na utilização do paradoxo e da antítese para a
construção dos elementos, be m co mo nos sentimentos, que co mbina m
a ideologia filosófica do caráter pedagógico e alegórico do conto
maravilhoso. Por último, a ressonância afetiva, o “registro inconfundível
da personalidade artística” do autor (NITRINI, 2010 , p. 134), é notada
de for ma peculiar e m cada u ma da s ob ras, poré m de for ma relacionada.
Leprince se deté m ao caráter moraliz ante da narrativa, porém nã o
esquecendo a alegoria necessária ao direcionamento ao público
infantil, enquanto Trousdale se preocupa com a espetacularização e o
entretenimento, se m, obvia mente, descartar a vicissitude pedagógica.

5
Tema, molde literário (ou gênero), recursos estilísticos, ideias e sentimentos e a ressonância afetiva.
Entendendo que “ a tradução se define co mo u m processo d e
transfor mação de u m te xto construído através de um det er minad o
sistema se miótico e m outro te xto, de o utro siste ma” (DINIZ, 2009, p. 3),
a transfor mação do signo verbal em visual numa adaptação
cinematográfica e xige u m proces so tr adutório carregado de minúcias,
simil aridades e acréscimos necessá rios à construção da produção
visual.

No i nst ant e em que a obra l i t erári a e sua ada pt ação se


apre se nt am com o si gno s um do out ro, c ada si gno é e nt en di d o
com o um a t radução. Assi m , a pa ssag em de um si st em a v erbal
para um não-v erbal se const i t ui com o um proce sso t radut ó ri o,
em que se t rabal ha com doi s si gno s: o t radu zi do, que é a obr a
l i t erári a em si , e o si gno t radut or, que é a t radução par a a
m í di a, quer sej a em f orm a de nov el as, m i ni -séri es,
docum ent ári os, v i deogam es, f i lm es, quadri nho s, ou out ro s.
(ALVES, 2011 , p. 3).

Tendo em vista que a proposta desta pesquisa considera a


tradução feita també m de u ma linguage m para a outra, isto é, do signo
verbal para o signo virtual, foi escolhid o, dentre os inúmeros ele men tos
que pode m ser abordados na análise co mparativa, u m rudi ment o
co mu m – o feio – cu ja carga filosófica e sub jetiva de seu conceito
propõe u m diagnóstico dialógico entre as duas obras e as dua s
linguagens, numa abordage m que per meia as considerações universais
sobre beleza, feiúra, bondade, maldade e etc ., num traço que
transcende os limites básicos de tais dicotomias.

3.2 Uma bre ve hist ória do feio

Umberto Eco e m A Histór ia da Fe iúra (2007) afirma que para se


construir uma hi stória do feio é insuficiente opô -lo ao belo, já que ao
contrário deste que foi sempre alvo das definições de ideais estéticos
de filósofos e artistas ao longo da História, ao feio apenas foram
dedicados tratados superficiais, quando não parentéticos ou ma rginais.
É necessário então buscar os próprios docu mentos das representações
visuais ou verbais do “feio”. No entanto, alguns elementos são co muns
às duas histórias. Primeiramente, Eco afirma não passar de suposição
a questão do gosto popular corre sponder ao gosto dos artistas de seu
te mpo. É i mportante delimitar a quest ão do belo e do feio a partir de
u ma perspectiva ocidental. Para além disso, o conceito de beleza foi
forte mente associado ao poder aquisitivo dos que estavam dispostos a
pagar por ela, assi m co mo feio estava ligado à uma posição marginal
da sociedade.
Co mo resu mo, pode mos afir mar que os conceitos “belo” e “feio”
estão se mpre ligados ao contexto sócio -histórico que estes estão
imersos, pois se falarmos, por e xe mplo, de “proporção” e “harmon ia”
co mo ideal estético, ainda sim tería mos conceitos muito vagos, já qu e
estes próprios muda m de senti do ao longo do curso da história.

Pergunt em a um sap o o q ue é bel eza, o v erdadei ro b el o, o t o


kál on. El e respon derá qu e con si st e em sua f êm ea, com seu s
doi s bel o s ol ho s red ond o s q ue se de st acam na cab eç a
pequ ena, a ga rga nt a l arga e ch at a, o v ent re am arel o e o d or so
esc uro. I nt err ogu em um v el ho negro da G ui né: o b el o con si st e
para el e na pel e negr a e ol eo sa, no s ol ho s enf ossado s, n o
nari z ach at ado. I nt err og uem o di abo: di rá qu e o bel o é um pa r
de chi f res, quat r o pat a s em garra s e um rabo . (VO LT AI RE
apud ECO , 201 0, p. 10).

Mas, apesar de ad mitir conceitos que depende m de su a


referência, Eco destaca que não por isso se deixou de tentar
estabelecer paradig mas para estas duas concepções – co mo e xe mplo,
ele cita a obra Crepúsculo dos Ídolo s (1888), de Nietzsche, onde o
padrão nietzschiano, o que Eco classifica “narcisamente
antropo mórfico”, nos mostra exata men te que o belo e o feio seguem u m
modelo “específico”.

A se n si bi l i dade do f al ant e com um dest aca q ue en qua nt o par a


t odo s o s si nôni m os d e bel o seri a p o ssí v el conceber um a
reação de ap reci ação de si nt er e ssad a qua se t odo s o s
si nôni m os de f ei o im pl i cam sem pre um a reaç ão d e noj o, se nã o
de v i ol ent a repul sa, horr or ou su st o (ECO , 2007, p. 19).

Logo, os conceitos de beleza e feiúra de A Bela e a Fera de


Leprince são os encontrados em u ma França provinciana, monárquica e
patriarcal, e o de Trousdale de u m Estados Unidos capitalista,
de mocrático e moderno, mas que a inda sim conserva m u ma ide ia
aproxi mada do que assusta, enoja, surpreende ou do que leva à
conclusão de que algo é feio.

3.3. A ma nifestação do feio nas obras

Para chegar mos ao percurso narr ativo do feio nas obras


propostas, utilizaremos a análise estrutural da narrativa de Roland
Barthes e para isso é nece ssá rio pontuar alguns conceitos
funda mentais. A princí pio, precisamo s conhecer o conceito de mito
proposto pelo semiólogo em M itolo gias (1993). Ele alerta para a
maneira como a i mprensa, arte ou senso co mu m mascara m a real idade,
que apesar de ser aquela na qual esta mos i mersos , não por isso deixa
de ser historicamente construída. Log o, a noção de “mito” pareceu -lhe
pertinente para descrever tais narrativas, já que mi to é u ma linguagem
(fala) específica, com limites históricos e condições de funcionamento ,
que se destaca pela sua propagação viabilizada pela insistência e
repetição.
Co m base nos e studos de Umberto Eco e m sua Histór ia da
Feiúra, abordare mos principalmente mi tos ligados ao ide al estético do
feio para as sociedades ocidentais – o feio como ele mento moralizante
de tradição cristã, a demonização do inimigo, o inquietante, e a
supre macia da beleza em relação à feiúra, e ainda , como quere m as
obras, a preponderância da beleza do esp írito sobre a feiúra da matéria
e m perspectiva platônica/agostiniana. A estrutura do mito presente e m
A Bela e a Fera será discutido mais a frente.
Então se mito é uma fala e fala é uma unidade significativa, faz -
se necessário recorrer à semiologia para um descortina ment o
aprofundado dessas narrativas. Bar thes e m Introdução à Análise
Estrutural da Narrat iva (1972), inicia seu trabalho demarcando a
presença das narrativas em todas as esferas da sociedade humana.
Estão presentes no mito, na lenda, no conto , na novela, na epopéia, na
história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomi ma, na pintura,
no vitral, no cinema, nas histórias e m quadrinhos ... E o intento do
analista é descrevê -las e analisá-las, a partir de u ma teoria que
Barthes pretende esboça r pri meira mente, já que “(...) ningué m pode
co mbinar (produzir) uma narrativa, se m se referir a u m siste ma
implícito de unidades e de regras” (BARTHES, 1993, p.21).
Para isso, o teórico estabelece o mé todo dedutivo de trabalho,
que gera um modelo hipotéti co de descrição, onde as espécies ao
mesmo te mpo e m que participam se afasta m deste. E então so mente
depois de conhecid as essas conformidades e diferenças , que será
possível encontrar a pluralidade das narrativas. Partindo de princípios
linguísticos que vi sam estudar a fr ase, Barthes propõe u m estudo
ho mólogo onde o discurso seria u ma e spécie de grande frase, estuda do
a partir de sua própria gramá tica. Barthes a no meia segunda linguística
ou linguística do discurso, onde os co mponentes da frase encontra m
seus te mpos, pessoas, modos e aspectos correspondidos e
au mentados quando transpostos ao ní vel do discurso.
É necessário, à análise estrutural , que se entenda a teoria do s
níveis proposta por Benveniste, segundo Barth es. A esta teoria estão
atreladas aos dois tipos de relações: as d istribucionais (si tuadas e m
u m me smo nível) e as i ntegrativas (relações que passam de u m nível
ao outro em pe rspectiva). Não se po de chegar à significação apenas
levando em consideração as relações distribucionais, já que o
signi ficado se constrói a partir das relações hierárquicas entres os seus
elementos.

Um a f unção não t em sent i do se não t iv er l ugar na açã o ger al


de um act ant e; e a própri a aç ão rece be su a si gnif i cação úl tim a
pel o f at o de ser narra da, conf i ada a um di scurso q ue t em se u
própri o códi go (BART HES, 19 93 p. 37)

Para além disso, é salutar que se delimite as unidades míni ma s


do discurso, usando co mo critério a significação, já que não se pod e
contentar co m o caráter distribucional da unidade. É importante
ta mbé m ad mitir que tudo é funcional na narrativa, mesmo a unidade
aparentemente mais insignificante, como a analogia da rosa, que é o
elemento crucial , já que, na obra de Leprince , a pedido de Bela o pai
resolve pegar u ma do jardim da Fera , o que dese mbocará nas açõ es
subsequentes. Em Trousdale, a rosa oferecida pela velha mendiga e m
troca de abrigo, que depois se revela encantad a, será um marcador
cronológico e, consequentemente , um i mportante elemento para o
au mento da e xpectativa ao final do filme. Verifica-se, melhor
exe mplificado no esquema a seguir:

Se for falado estritamente de “feio”, a extre ma beleza de Bela,


nas duas obras, não é de longe u ma si mples caracterização da
personage m, mas u m agravante que a juda a constituir, por meio do
contraste, a grande fei úra da Fera. Aliás, o contraste é o que co mpõe a
grande significação das obras a partir de oposições de categorias
se mânticas distintas – belo/feio, bom/ mau, virtude/vício.
Tanto o signo verbal como o visual ilustram o feio de for ma
presente implícita e e xplicitamente. Alguns personagens se destaca m
por mantere m tal característica em su a construção, co mo por e xe mplo ,
a fada que enfeitiça a Fera; na versão de Leprince, sua descrição física
ou psicológica é descartada, enquanto que na adaptação da Disney,
sua feiúra é o que provoca o repúdio do príncipe e desencadeia os
fatos subsequentes.
Por elementos funcionais, Barthes (1972) entende quatro
categorias: as funções cardinais, catálises, índices e informantes. As
duas categorias primeiras referem-se ao “fazer” e as duas últimas a o
“ser”, ou se ja, enquanto as pri meiras são metoní mica s as segundas sã o
metafóricas.
F i g u ra 5: A f ada em f orm a de m endi ga.
F o n te: A Bel a e a F era, 1991.

As funções cardinais, també m ch a madas de núcleos, são


elementos que inaugu ra m ou encerra m u ma incerteza. As mentiras das
irmãs de Bela terão sua consequênci a má xi ma na punição das duas,
transfor madas e m estátuas pela fada no conto, e a recusa do príncipe
e m aceitar a rosa, por repugnância a aparência da mendiga, resultará
no seu encanta mento. As catálises, diferentemente das funções
cardinais, que são os mo mentos de risco da narrativa, constituem o
mo mento de fluxo e repouso e ma nifestam-se entre duas funçõe s
cardinais, podendo retardar, resumir, desorientar ou acelerar o
discurso. Como e xe mplo se pode tomar a construção da at mosfera
tenebrosa e m que o pai de Bela se encontra antes de encontrar o
castelo encantado nas duas obras, no texto verbal , feito com palavras
que dirigem a nossa i maginação para u m bosque denso e escuro, e no
filme, co m cenas onde nós ve mos a fl oresta outonal e sombria habitada
por lobos, corujas e seres da noite, e ouvimos os ruídos horripilantes
que quebram o silêncio noturno.

Porém , com o era preci so pa ssar por um de nso bo sq ue ant e s


de al cançar sua c a sa el e se perd eu. Nev av a horriv elm ent e. O
v ent o era t ão f ort e que o derr ubo u du a s v ezes do cav al o. E
quan do a n oi t e cai u, el e pen sou que m orreri a de f om e e f ri o,
ou seri a c om i do pel os l obo s que uiv av am a su a v olt a.
(LEPRI NCE, 200 7, p. 25)
Esta catálise é notori amente u ma e xt ensão do discurso que não
se resu me e m u ma passage m pelo bo sque, mas desacelera o rit mo da
narrativa entre a viagem de Maurice e o encontro co m seu de stino, o
que alimenta o clima de suspense. No signo visual, temos a tradução
da caracterização do bosque, co mo se nota nas imagens a seguir:

F i g u ra 6: O bosq ue.
F o n te: A Bel a e a F era, 1991.

F i g u ra 7: F achada do ca st el o.
F o n te: A Bel a e a F era, 1991.

A e xistência d e uma catálise implica, não reci procamente, n a


existência de uma função pr i meira men te, pois é sobre esta relação que
deverá se definir a armadura da narrat iva (as primeiras são supri míveis
e as segundas não) . Depois, porque é u m i mportante ponto para o qu e
se propõe a debruçar -se sobre a análise estrutural e a ambiguidade
cronol ógica: tempo e lógica.
Os índices não alcançam sua significação total a não ser quando
transpostos a outros níveis. Se to marmos o e xe mplo acima citado, este
ta mbé m pode nos servir para notar que a construção da atmosfera
tenebrosa é o indício de que algo está por vir, consequentemente algo
terrível. Os informantes são cate gorias que apontam so ment e
informações co m significações imediatas co mo as descrições da feiúra
da Fera e as cenas onde a mesma aparece na obra audiovisual.
Infor mantes e índices pode m s e entrelaçar livremente na narrativa – e m
Leprince, os agrados a Bela e e m Trousdale , o retrato do príncipe –
revelam a verdadeira natureza do príncipe, tanto em beleza física e
quanto moral.

Bel a pa ssou t rê s m ese s no pal áci o com bast a nt e


t ranqüi l i dade. T oda s a s noi t e s, F era i a v ê -l a e a ent ret i nh a
durant e a c ei a com m uit o bom sen so. (. . . ) T odo di a, Bel a
de scobri a n ov as bonda de s d o m onst ro. O hábi t o de v ê -l o a
t i nha acost um ado a su a f ei úra e, l onge de t em er a sua
pre senç a, el a con sul t av a sem pre o rel ógi o p ara v er se j á eram
nov e horas, poi s a F era nunca d ei x av a de v i r a essa hor a.
(LEPRI NCE, 200 7, p. 36)

F i g u ra 8: Ret rat o desf i gurado d o prí nci pe .


F o n te: A Bel a e a F era, 1991.

Voltando a questão do te mpo i mposta pela reflexão sobre funçõe s


e catálises, é necessário sublinhar que a “te mporalidade não é mais
que uma classe estrutural da narrativa” (Barthes, 1993, p. 37), e não
pertence ao discurso e m si, mas apen as é u ma ilusão referencial. Logo,
a lógica é preponderante sobre o te mpo. Barthes destaca três teorias:
Bre mond recon stitui a sintaxe dos co mporta mento s hu manos, onde a
lógica energética se apropria dos personagens no mo mento do agir; o
modelo linguístico preocupa -se com as oposições paradigmáticas
estendidas na narrativa; por fim, Toro dov eleva a questão ao nível dos
personagens (das ações) e tenta estabelecer as regras pelas quais a
narrativa combina, varia e transforma “u m certo nú mero de predicados
de base” (apud BARTHES, 1972) . Barthes nos diz que as assertivas
são concorrentes e comple mentares ao mesmo te mpo, e acrescenta
apenas que deve mos pensar nas di mensões da análise. Ade mais dos
índices, informantes e as catálises, a narrativa ainda está lá com u m
grande número de funções cardinais, que estão sempre ligadas às
grandes articulações do text o. Na s obras analisadas, a lógica da
transfor mação Belo/Feio é determinada totalmente pela ação das
personagens. Leprince nos mostra u ma Bela disposta a enxergar além
das aparências e u ma Fera que , atr avés da doçura de seus gesto s ,
seduz a sua Bela. Trousd ale, por sua vez, desde a narração inicial,
marca a feiúra/beleza do príncipe como reflexo de suas atitudes.
No nível das ações, caracterizado por Barthes co mo nível do s
actantes, ou seja, dos personagens, cada personagem, me smo qu e
secundário, é visto co mo protagonista de sua própria sequência.
Personagens são entendidos nesse nível como participantes da ação,
não mais co mo sub jugados a ela. Portanto, a feiúra encontra a sua
personificação na figura da Fera, que no conto de Leprince, apesar de
não saber mos se foi responsável pela sua própria maldição, foi pela
sua redenção – sentencia o pai de Bela e se apaixona por ela. A Fera
de Trousdale, diferentemente, é o herói que tanto causa a su a
encantaria quanto é responsável por sua libertação do feitiço: nega
abrigo a mendiga, é sancionado, aprende a amar, é correspondido e
quebra a magia punitiva.
Ao nível narrativo, pode-se observar e m a mbas as adaptaçõe s
que o narrador é onipresente. O narrador combina as unidades de tal
modo a criar -se u m signo de leitura que não descarta ele mentos co mo
a descrição minuciosa das personagens no livro ou a narração inicial
do filme. É por este que o leitor é convidado a conhecer a verdadeira
significação do feio na história , pois, assim co mo Bela, pode ver além
das aparências.
Voltando à discussão sobre o signo mítico, Barthes nos mostr a
que todo o ob jeto do mundo pode p assar de u ma e xistência isolada
para u m estado oral, aberto, suscetí vel a apropriação da sociedade,
pois nenhuma lei pode nos impedir de falar das coisas. Lo go, tudo pode
ser mito. Mas o discurso mítico necessita de condições especiais: a
mais importante desta é o caráter neutralizante deste, ou seja, ele
torna natural o que é historicamente condicionado.
Para u ma se miologia do mito é ne cessário recorrer ao signo
linguístico proposto por Ferdinand de Saussure e m seu Curso de
Linguíst ica Geral (1999) – a relação entre a image m acústica e
significado. O signo mítico assim co mo o linguístico e formado por três
partes (signo, significado, significante), mas se di fere deste já que o
signo linguístico corresponde apenas ao significante do mítico. Barthe s
o deno mina sistema se miológico segundo.

Um si st em a l i nguí st i co, a l í ngua (o u os m odos d e


repre se nt ação q ue l he sã o a ssi mi l ados), a que cham arei
l i nguagem -obj et o, porq ue é a l i nguag em de qu e o m i t o se
serv e para con st rui r o seu pr ópri o si st em a; e o própri o m i t o a
que c ham arei m et al i nguagem , porque é um a seg und a l í ngu a,
na qual se f al a da prim ei ra (BART HES, 1993, p. 137) .

O Feio construído em A Bela e a Fera , passa a ser então a for ma


do mito, seu conceito perpassará pelas realidades historicamente
construídas que circunda m a questão do feio e m no ssa sociedade, e
circularam na so ciedade francesa do séc ulo XVIII.
A feia criatura que protagoniza junto à Bela a trama das duas
obras é també m a personage m que dará forma ao mito. A sua própria
redenção no fim da tra ma , co mo reco mpensa por bons feitos ou pelo
próprio Amor, nos mostra a preponder ância do Belo e m relação ao Feio
e m nossa sociedade, quando se aceita que, agor a bela, a Fera será
feliz.
A aceitabilidade do modelo agostiniano/platônico , onde as
virtudes são mais valiosas que o físico , també m são inerentes a os
outros personagens. As irmãs de Bela ta mbé m mi metiza m a feiúra e m
sua personalidade, com co mporta men to caracterizado pela arrogância,
inveja, vaidade e audácia. A passagem que as descreve co mo “aquelas
duas moças malvadas esfregara m cebolas nos olhos para chorar
quando Bela partiu” ( LEPRINCE, 20 07, p. 30) denota o caráter das
irmãs e exe mplifica o con ceito de feio abordado neste. No filme, sendo
Bela filha única, a figura arrogante das irmãs é substituída pela de
Gaston, que deté m as me smas ca racterísticas e, além destas, a
maldade encarnada.
Nota-se, assim, o caráter moralizante da utilização da feiú ra
co mo ele mento chave da construçã o psíquica destas personagens,
levando-se em con sideração às menções divinas em a mbas as obras.
Segundo Eco, o feio moralizante se apropria de conceitos como
punição, sacrifício e redenção, numa analogia explícita à cris tianização
da cultura ocidental.

(. . . ) de um pont o de v i st a t eol ógi co -met af í si co, t odo o


univ erso é bel o porqu e é obra div i na e at é m esm o o f ei o e o
m al são, de al gum a f orm a, redimi dos por e ssa bel eza t ot al ; em
com pensação, a ex pre ssão h um ana da div i ndade , o Cri st o ,
que sof reu por nó s, é repre sent ad o no se u m om ent o de
m áx im a hum il hação. (ECO , 2010, p. 43) .

E prossegue:

É na e st ei ra ag o st i ni ana que r eenc ont rarem os no pe n sam ent o


esc ol ást i co v ári os ex em pl os da j ust i f i cação do f ei o no quadr o
da bel eza t ot al do uni v erso, onde t am bém a def ormi dade e o
m al adqui rem o m esm o v al or, no qual cl aro e e scur o de um a
im agem , na proporç ão e nt re l uz e som bra, se m ani f est a a
harm oni a do conj u nt o. Al gun s di rão que t a m bém os m onst r o s
sã o b el os na m edi da em que são se re s e, e nq uant o t ai s,
cont ri buem para a harm oni a do c onj unt o e que, em bora o
pecad o rom pa a ord em da s pá gi na s, e st a or dem é
ree st abel eci da pel o ca st i go e, port ant o, o s co nde nad o s a o
i nf erno são ex em pl os de um a l ei de har m oni a. O u ai nda,
t ent arão at ri bui r a i m press ão de f ei úra ao s n o sso s própri o s
def ei t os de perce pção e p ara al gun s, p ort ant o o f ei o pod e
parecer t al em v i rt ude de um def ei t o de l uz, de um a di st ânci a
errada, d e um ol har de e sguel h a, do ar nev oent o qu e def orm a
o cont orn o da s coi sa s. (ECO , 2010, p. 46).
Se to mada co mo verdade a concepçã o cristã do feio, notar -se-á
possível a identificação da beleza nas obras co mo reco mpensa e a
feiúra como punição, como se sabe qu e acontece co m o príncipe ao ser
transfor mado e m be sta. Na narrativa da contista francesa, e sse aspecto
é notado quando se menciona, na fala da Fera, que “uma fada malvada
me havia condenado a viver sob esse aspecto até que u ma linda moça
consentisse em ca sar -se co migo.” (LEPRINCE, 2007, p. 41) e no filme ,
na sentença ilustrada, ainda no início, nos vitrais.

F i g u ra 9: O cast i go i l ust rado em v i t ral .


F o n te: A Bel a e a F era, 1991.

Uma questão de també m funda men ta l relevância, levantada por


Eco é a de monização do inimigo. Segu ndo o autor:

De sde a Ant i gui dad e, o i nimi go sem pre f oi ant es d e t udo o


O ut ro, o est ra ngei ro. Seu s t raç o s nã o par e cem correspo nd er
ao s no sso s cri t éri os de bel eza e se t em h ábi t os al im ent are s
div ersos, o c hei ro do seu al im ent o no s ch oca. E sem an da r
m uit o at rás no t em po, pod e - se r ecord ar q ue o s oci dent ai s
con si deram i nacei t áv el que os chi ne se s se a l im ent em de cãe s
e os an gl o- sax õe s que o s f rancese s com am rãs. Para nã o
f al ar do s so n s i ncom preen sí v ei s de um a l í ngua e st ran gei ra.
O s gre go s, d e f at o, def i ni am com o bárbaro s (o u sej a, g ent e
que bal buci a) t od o s aquel e s q ue não f al av a m grego e, na
esc ul t ura rom ana, os b árbar o s derrot a d os p el as l egi õe s
ex i bem barbas i ncul t as e nari ze s ach at a do s (ECO , 2010,
p. 185)

Na obra literária, as irmãs, po r vere m o be m que a Fera fez à


Bela e sentirem inveja disto, julga m o mon stro co mo se este fosse
nocivo à família, tentando impedir a irmã de voltar para seu convívio no
palácio, enquanto que , na anima ção, tal de monização é feita por
Gaston que, ao notar que Bela prefere a beleza interior, convence a
aldeia a invadir o castelo e declarar guerra à Fera. Numa tradução do
conto original – considerando as traduções, e m sequência, do cont o
medieval transmitido oralmente ao conto da Da ma de Villeneuve,
posteriormente à obra de Leprince, ao filme de Jean Cocteau, à
adaptação animada da Disney em inglês e, finalmente, à versão e m
língua portuguesa –, a Canção da M ult idão cantada por Gaston e os
aldeões, resume a for ma co mo ele de moniza a Fera e encabeça o
moti m contra ela.

Vam os l á, pel o m at o, pel as t rev as e a n ebl i na na j orn ada q u e


ser á um pe sadel o. E dep oi s de pa ssar p el a po nt e l ev adi ça,
com cert eza cada um de nós v ai v ê -l o! É um m onst ro d e
cani no s af i ados, t em boc arra e t em garra de p ant er a. Vai
urrar, e spum ar , m as nó s n ão v am os v ol t ar sem l ut ar! Sem
m at ar essa f era! (A Bel a e a F era, 1991)
F i g u ra 10: G ast on am edront a ndo o s al de õe s.
F o n te: A Bel a e a F era, 1991.

Outra questão a ser pontuada é a nor malidade. Com o fim d a


encantaria, a felicidade das personagens nas obras dá -se a partir da
nor malização da vida. A noção de no r mal está ligada à de ord em, e m
consequência à de felicidade e, em contraposição, à de inquietante.
Eco nos diz que tudo o que foge ao nor mal nos assusta, apavora, ou
nos causa estranha mento, nos inquieta, isto é, é feio.

I m agi nem os um apose nt o f am il i ar, com um a bel a l umi nári a


po st a sobr e a m esa: de r epe nt e a l um i nária se erg ue n o ar .
Est a úl t im a, a m esa, a sal a sã o sem pre a s m esm as ne nhum a
del as f i cou f ei a, m as a si t uação, si m , t ornou -se i nqui et ant e e ,
não con segui nd o ex pl i ca -l a, podem os ach ar que é an gu st i ant e
ou at é, se gun do n o sso co nt rol e do s nerv os, at errori zant e .
Est e é o pri nci pi o que re ge t od a s a s hi st óri as de f ant asm a s e
out ro s ev ent os so bren at urai s, no s q uai s o q ue no s a ssu st a o u
no s a pav ora é al go q ue não aco nt ece com o dev eri a acont ec er.
(ECO , 2010, p. 311)

Por fi m, a representação principal do feio nas obras é a própria


Fera. De aspecto bestial, a transfiguração de sua aparência se mostra
descrita com selvageria e brutalidade e m a mbas as linguagens. Na
obra de Leprince, a Fera é compa rada diversas vezes a animais
sel vagens e a medronta Bela e o pa i pela simples menção de que ,
sendo assim, possa devorá -los. Descrita com ad jetivos co mo
“horrenda”, “horrível”, “monstruosa ”, “assustadora” e ligada a
características psicológicas como fú ria ou falta de espirituosidade,
sobre a Fera se constrói a típica figura do monstro. Na versão ani mada,
u ma vez mais os recursos tradutórios ilustram, segundo os preceitos
mencionados anteriormente, a aparent e feiúra da Fera, de porte acima
do normal para u m ho me m e me sclando a figura animal co m a condição
bípede hu mana. Te m garras felinas, é bicorne e, de aparência facial
canina, deixa os dentes à mostra. A pelugem corporal també m re mete à
animália e a sua consequente selvageria, bem co mo a maneira de se
mover e rugir. À essa caracterização d eté m-se a adequação do ter mo
“besta” para referir -se à Fera. De acordo co m u ma interpretação
se miológica, a figura da besta tem sua significação ligada tanto à
etimologia da palavra (animal que se pode cavalgar), quanto à
definição cristã (selvageria apoca líptica). A sinonímia existente entre
os ter mos “ monstro”, “fera” e “besta” é notada, inclusive, na tradução
do título do conto para o utros idiomas, onde se encontram as palavras
“beast”, e m inglês; “ bête”, e m francês e “ monstro” na versão e xibida e m
Portugal.

F i g u ra 11: A F era.
F o n te: A Bel a e a F era, 1991.

Co mo co menta Coelho (2010), “ao contrário do que acontece na


maioria das histórias infantis moderna s, no conto maravilhoso o mal é
tão onipresente quanto a virtude” (COELHO, 2010, p. 55). Se for
considerada a partir de conceitos como divinização ou de monização, já
mencionados, a influência da feiúra da Fera no desencadeamento dos
fatos viscerais à narrativa, percebe -se que, mais que a aparência, a
atitude se sobrepõe. A polarização do conto, ta mbé m p roposta pela
autora, aqui é nula, uma vez que a Fera, ainda que má, monstruosa e
feia, se mostra gentil. Segundo Giroux, referindo -se à Fera da Disney,
“o monstro parecido com u m lobo de A Bela e a Fera evoca u ma rara
co mbinação de terror e delicadeza” (1995, p. 7), afir mação que se
confirma e m a mba s as obras. N a transcrição de u m diálogo entre A
Bela e a Fera de Leprince, percebe-se a configuração bondosa da
personalidade da Fera e da relação afável entre ela e Bela:

- Di ga-m e, Bel a, não m e acha f ei o?


- I sso é v erdade – di sse Bel a –, poi s nã o sei m ent i r, m as acho
que é m ui t o bom .
- (. . . ) m as al ém de ser f ei o, não pa sso de uma f era.
- Ni nguém é f era. (. . . ) É real m ent e bom . Conf esso -l he q u e
est o u m ui t o cont ent e c om o se u cor ação. Q u ando pe n so ni sso ,
não m e parece t ão f ei o.
- T enho o c oraçã o bom – re spo nde u a F er a -, m as sou um
m onst ro.
- Há m ui t os h om ens que são m ai s m on st ro s do q ue v ocê e
go st o m ai s d e v ocê com sua f i gura do qu e d aquel e s que, com
aspect o hum ano, e sco ndem um coração f also, corrom pi do e
i ngrat o. (LEPRI NCE, 200 7, p. 34)

A mesma questão é abordada, no filme, na canção Alguma Coisa


Aconteceu, onde Bela descreve a Fe ra co mo “bo m, delicado, gentil e
cortês” ou quando Gaston o cha ma de monstro e ela, imponente ,
responde “ele não é um monstro, Ga ston , você é! ”. Os conceitos de
belo e feio se mescla m e originam u m conto despolarizado, já qu e
evoca o mito do “feio bondoso”, presente em outros contos
maravilhosos, tais como o Corcunda d e Notre Dame ou Pinó qu io.
CONSIDERAÇÕES F INAIS

A Bela e a F era é u m conto maravilhoso que ve m sido revisitado


primeira mente entre as ca madas popu lares da Europa do século XVIII ,
depois por contistas que visava m o caráter moralizante da fábula e,
co m o passar do te mpo, por artistas de intentos diversos. Ao usar o
conceito de tradução, tínhamos o ob jet ivo de analisar como se transpôs
o elemento “feio” da Literatura para o Cine ma. De ssa maneira,
pude mos descortinar co mo se dá a pro pagação do mito nas artes.
A construção do a mbiente fabuloso dá u m caráter inocente ao
processo de roubada/reconstituição do mito nas obras analisadas. A
criança, co mo leitor -alvo deste tipo de narrativa, se apropria do mito,
que passa a ser u m constituinte do imaginário desta. É co mu m que se
note, a partir da leitura de um conto, a construçã o das virtudes e dos
medos de u ma criança; é co mo resultado disso que se configura a
image m que esta denota de conceitos – comu mente e xternalizados
pelas obras literárias infantis – como as dicoto mias explanadas ao
longo deste trabalho, sempre co m o pr ivil égio da sobreposição dos que
se encaixa m na conduta moral aceita co mo superior: o be m.
O “feio”, portanto, antigamente discutido a partir dos contos
moralizantes e, hoje, principalmente pelas obras audiovisuais, chega
ao ambiente infantil (e até mesmo ao a dulto) como ele mento
desprestigiado da sociedade. Ou se ja, só se é feliz se for belo; a
beleza é uma reco mpensa e, e m contr apartida, a feiúra, uma punição.
Apesar dessa preponderância da beleza sobre a feiúra na fábula,
o feio se configura como ele mento e s sencial ao desenrolar da trama ,
logo, não há os valores “melhor” ou “pior”, talvez , apenas confusão e
a mbivalência entre ambos. A personage m Fera é mostrada, nas dua s
obras analisadas neste trabalho, apenas com a proposta de
desconstruir a image m de que o bo m é belo e o feio é mal.
Bela, ade mais da influência intelectualizada, mostra ao leitor que
é possível enxergar o outro sem ater -se à aparência e, junta mente co m
os elementos acessórios da encantaria do castelo ou as contraposições
psíquicas das de mais personagens, mi metiza o co mporta mento e
conduta ideais, isto é, belas.
Entretanto, apesar da carga semiológico -filosófica que as
diversas conotações do feio carregam e que são despolarizadas no
conto e no filme – desmistificando o viés marginalizado da fe iúra –, o
desfecho da narrativa é contraposto, fazendo co m que a proposta não
consiga concluir seu objetivo totalmen te , u ma vez que a nor malidade é
estabelecida com o fi m do feitiço e, consequente mente, co m a
supre macia do belo.
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