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Maria das Mercês P.

Apóstolo - 2008

A HISTÓRIA DE NÓS DOIS

Eles se conheceram na época das grandes greves, fins de 79 começo dos anos 80. Ele vinha
de militância católica, ela na militância sindical. Nada tinham em comum. Ele de classe média, filho
de professor universitário; ela de família operária, sendo ela mesma uma trabalhadora e sindicalista.
Ele tinha 19 anos e ela 28.
Na primeira vez em que se encontraram ela se apaixonou. No esplendor de sua juventude e
beleza ele lhe parecia um deus nórdico, de grandes olhos verdes e flamejante cabeleira louro-
dourada. Tinha nas maçãs do rosto deliciosas manchas de sardas que se sobressaiam nos seus
momentos de timidez ou raiva. A boca era cheia, encimada por um bigode que se reunia mais abaixo
em uma barba ruiva e cerrada que lhe dava o ar de um viking. E ela o chamava de “viking”.
Dedicava-lhe pequenos poemas produzidos em tardes modorrentas nos quais exaltava os lindos
olhos, a face perfeita e a boca doce.
Teceu em torno dele uma gaze de amor apaixonado, feita de ironias, risinhos, histórias e o
fascínio de sua mente ágil e inquieta. Ela já tinha um passado, tinha um filho, um casamento
desmanchado e alguns amantes deixados para trás. Ele recém cruzara a linha de sombra que dividia
o mundo dos adultos e o da adolescência. E essa linha sombria às vezes descia sobre a face dele,
dando-lhe um ar pensativo, quebrando-lhe os olhos com tristeza e leve cansaço, como se soubesse
que não poderia rever ou reaver o que deixara para trás. Mas logo ele se animava, pois que era feito
de risos e rosas e buscava imprimir naquele relacionamento tão desigual a marcha leve e dançante
dos amantes felizes. E ela só se sentia feliz por reflexo. À menor sombra seu sol se escondia e o que
seria um dia pleno e glorioso se transformava em tarde borrascosa e cheia de trovões. Era instável
como o clima dos trópicos, com desconhecidas e vibrantes emoções à flor da pele, torvelinhos de
sensações nas pontas dos nervos constantemente retesados. Ele era seu lago manso, a maré branda
onde descansava embalada pelo rumorejar suave dos sussurros dele, acalentada e acarinhada pelos
quentes beijos.
Entretanto, às vezes ela se perguntava por quanto tempo ele a amaria... Será que mudaria de
sentimentos ao ficar mais velho? E ela, mudaria de aparência, ficaria feia e gorda e ele não a
quereria mais? E quanto mais olhava para o rosto de efebo grego ou de anjo renascentista que era
ele, mais ela se angustiava por estar perto de tanta beleza. Sentia-se feia e comum, uma barata perto
de um beija-flor. Achava-se velha para ele e no fundo do coração temia que ele por sua vez, se
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apaixonasse por alguém, como ela se apaixonara por ele. E não era só a questão da beleza. Era
também a calma, a mansa maneira como ele deslizava pela vida, a forma como encantava a todos ao
seu redor o que a intrigava, dava-lhe inveja e a enchia de cisma e rancor. Pois ele era amado por
muitas pessoas além dela; seu sorriso cativava; sua maneira de ser, gentil e suave, predispunha a seu
favor e de todo o seu ser se desprendia um encanto ao qual, poucos ficavam imunes. E ainda por
cima era tão belo... Isso a mortificava, entristecia, não se julgava digna, merecedora daquela
dádiva.
Desenvolveu tal grau de ansiedade que passou a ter sonhos recorrentes com ele entrando na
igreja, enlaçado à outra pessoa que não ela.
Tiveram um filho. E isso longe de os aproximar, os afastou. Ele sentiu o peso da paternidade
e da família, a opressão daquele afeto extremo, o fardo de realizar a felicidade daqueles dois seres,
que aparentemente só respiravam por ele. E foi se escapando...
Passou a viajar a trabalho, intensamente, ficando longos dias afastado respirando a solidão e
a preciosa liberdade de ser quem era, longe das obrigações e dos carinhos forçados. Pois que agora,
os carinhos que proporcionava lhe pareciam mecânicos, sem alegria e sem prazer. E assim ele foi
deslizando para fora da vida dela, suavemente, gradativamente, inexoravelmente... e quando ela se
deu conta já era tarde.
Brigaram feio uma vez, pois ela descobriu que ele a havia traído em uma dessas viagens.
Ficou profundamente ferida, pois a ausência durara mais de três meses, nos quais ela amargara uma
solidão terrível, plena de saudades, angústias, peso no coração e dores nas costas pelas noites mal
dormidas. E quando ele regressou, a primeira coisa que fez foi contar-lhe sobre a sua falta, não para
vangloriar-se, claro que não, ele era um homem digno. Mas para acalmar seu próprio anseio, seu
sentimento de culpa, quem sabe. Receoso, talvez de que ela descobrisse por outras vias. E então lhe
contou e o mundo veio abaixo. Ela reagiu de forma tão intensa e desesperada que ele ficou sem
reação. Sentiu-se tolhido e quase a submergir nas ondas profundas e negras daquele sofrimento sem
controle e sem consolo. Assustou-se com a intensidade daquela fúria feita de gritos e gemidos, choro
convulso e estertores agônicos, e muito no seu íntimo insinuou-se a idéia de que aquilo não era para
si. Ah! Não. Aquela emoção descabelada, aquele abismo de sentimentos escuros e pegajosos, aquela
loucura, vista de relance como através da fresta de uma porta, encheu-o de puro terror. Começou
então a planejar sua fuga. Nada claro ainda, evidentemente. Apenas a sensação de que deveria correr
para salvar-se. Buscar um lugar seguro onde ficasse fora do alcance daquelas emoções
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descontroladas. E ela totalmente absorta no seu sentir, quem sabe até extraindo algum raro e
perverso prazer do temor que via no rosto dele, nada percebeu do seu retraimento. Devia ter sido
mais esperta. Ele não lhe proporcionou o menor consolo, não se justificou e nem pediu perdão, não
tentou fazer-lhe espontaneamente nenhum agrado ou carinho. Ficou apenas olhando com aqueles
olhos verdes, abertos e espantados no fundo dos quais pulsava uma pequenina chama de ... desgosto,
desprezo, desprazer, qualquer coisa menos amor. Ela nada viu. Mergulhara em águas fundas e lutava
para voltar à tona e a briga desenrolou-se noite adentro em forma de monólogo, no qual apenas ela
atuava, para uma platéia composta de um único espectador.
Tiveram muitas outras brigas desse teor. E de cada vez os olhos dele se esverdeavam mais,
abertos em janelas pelas quais passavam vento e brisa, vento e brisa... Até que ela começou a agredi-
lo para ver se lhe arrancava alguma reação. Bateu nele uma vez, pegando-o desprevenido e ele
saltou ferido, queimado pelo toque e pela agressão. Ela percebeu então que tinha encontrado uma
maneira de ir ao seu encontro lá naquele mundo para onde ele ia quando a fitava de olhos tão verdes
e tão abertos. Bateu-lhe uma segunda vez, mas ele já estava preparado e revidou-lhe com dupla
violência, marcando os cinco dedos na face dela, que permaneceu emaciada, roxa e inchada durante
uma semana. Depois disso, ele se refugiou de vez por trás das janelas esverdeadas, fitando-a de
longe como se por detrás de cortinas de gaze e vendo-a tal como era: uma louca, uma fúria
ciumenta, uma gárgula que vertia fel em vez de água.
Tinham momentos de trégua, quando o carinho aflorava e os corpos se reconheciam na dança
do amor, e nessas ocasiões ela pensava que o tinha de volta, que ele regressara e que tudo poderia
ser esquecido e eles seriam felizes outra vez. Mas para ele eram apenas pequenas fugas, sorrateiras e
fugidias, apenas o hábito e o costume de amar aquele corpo, tocar aquela carne, cheirar aquela pele
que agora tão pouco lhe significava. E assim eles foram resvalando, cada um para um lado.
Ela engravidou mais algumas vezes e em todas elas ele se recusou a deixa-la levar adiante.
Não que a obrigasse a abortar, nada disso, ela ainda era senhora de seu corpo e ele um cavalheiro
que jamais subjugaria uma mulher. Mas seu alheamento era tal, seu desinteresse tão patente que ela
se obrigava a ir fazer o aborto na esperança de que essa atitude o comovesse e lhe mostrasse o
quanto ela o amava e levava em consideração seus sentimentos. Ele não ligava a mínima se ela o
fazia ou não. Nem mesmo se interessava pelos aspectos clínicos da coisa, ela ia sozinha ou com
amigas e ele mal tomava conhecimento. Até que no último, desconfiado talvez da persistência com
que ela teimava em engravidar, ele fez uma vasectomia.
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Ela sentia acercarem-se de si longos silêncios e ausências, a vida se manifestando muito


longe como se estivesse envolvida em uma grande nuvem de algodão, embalada para uma longa
viagem. Uma viagem sem fim. Tinha a intuição de que algo grande estava a preparar-se, algo que a
engoliria e a cuspiria numa praia selvagem, nua e sem água, como um náufrago, sem esperança
alguma de retornar. Mas tolhida de medo, mal conseguia discernir o que viria. E o que afinal veio
foi tudo o que mais temia, pior do que o que mais temia e a engolfou como uma gigantesca onda,
levantou-a do chão e a atirou de volta com violência e premeditação. Em uma última briga ele saiu
de casa e voltou somente para buscar a mala.
No dia da partida vendo-o jogar na mala descuidadamente as camisas e as meias ela lhe
implorou. Revoltada e ferida, pois se considerava a vítima, a esposa leal atraiçoada tantas e tantas
vezes, mesmo assim ela lhe implorou que ficasse, que não a deixasse, pois sem ele, ela tinha certeza
que morreria. Ele apenas abanava a cabeça, ligeiramente irritado, impaciente como que a tentar se
livrar de um inseto importuno. Dirigiu-se para a porta, ela postou-se na frente como a tentar impedi-
lo. Ele com um só braço, o outro carregando a mala, empurrou-a com branda violência, uma meia
brutalidade, se é que isso é possível e afastou-a para um lado, cruzando o umbral e desaparecendo na
noite, desaparecendo de sua vida, do seu leito, da sua casa para nunca mais voltar. Ah, não é
verdade. Ele voltou sim, à casa dela. Muitas outras vezes, como pai, como inimigo, como
antagonista, mas jamais como o amante, o companheiro e o amado que fora.
Como inimigo ele voltou muito em breve. Trouxe-lhe a noticia de que iria levar o filho para
morar com ele e a nova companheira que tinha agora. Estava tentando reconstruir a vida, ele dizia. E
você deve fazer o mesmo.
Ela aferrou-se ao filho tenazmente. Era tudo o que lhe restava dele. Era além do mais o
pretexto para vê-lo nas raras ocasiões em que ele o visitava, pois ele preferia que o filho viajasse
para vê-lo a ter que se encontrar com ela.
E até esta batalha tão elementar ela perdeu. O filho preferiu o pai a ter que viver com aquela
mulher tão sombria, tão devastada, na qual mal podia reconhecer a mãe.
Ele voltou ainda uma vez, para anunciar-lhe que ia casar-se. Uma crueldade segundo ela. Por
que tinha que lhe anunciar? Era para exibir-se talvez? Mostrar-lhe que tudo estava definitivamente,
profundamente enterrado e deixado para trás?
Para ela iniciou-se então uma nova estrada, que agora deveria trilhar sozinha. E ela que a
vida inteira tão só fora, não se sentia com forças para continuar. Fraquejou, mergulhou de novo nas
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ondas negras de suas emoções, sem vontade alguma de emergir. Enovelada nas dobras de sua
autopiedade queria apenas dormir um longo sono, que tinha como núcleo o sonho de acordar e tê-lo
ali ao pé de si, comovido e morto de culpa por tê-la magoado tanto. E então ela o perdoava, apertava
nos braços aquele peito amado, sentindo as batidas alucinadas do coração em tumulto, as lágrimas
correndo de uma face à outra, misturando-se como os fluidos sexuais deles tantas vezes fizeram.
Mas os dias passavam, os meses passavam, até os anos passaram e ele não voltou. Ela então
teceu outro sonho, o da mulher vencedora, realizada, auto-suficiente, que lhe apresentaria em algum
momento, para mostrar a ele o que havia perdido. E nesse sonho ele rastejava ao pé dela, implorava
para voltar e ela com a ponta do sapato o afastava delicadamente, e dizia que não tinha tempo para
isso. Estava muito bem e feliz do jeito que estava. Esse sonho a envolveu e alimentou por quinze
longos, solitários e vazios anos, até que um dia sem mais nem menos, sorrateiramente tal como os
sonhos costumam fazer, explodiu, desapareceu sem deixar sequer fumaça e ela acordou.

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