Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
psíquico na concepção
winnicottiana: uma
contribuição à clínica das
psicoses
The constitution of the psychic world in
Winnicott’s conception: a contribution to the
clinical treatment of psychosis
AUTORIASCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS
Resumos
Text
Datas de Publicação
Histórico
Resumos
A importância da obra de Winnicott para a psicanálise vem sendo reafirmada
nos últimos anos, junto ao seu interesse crescente para o campo das psicoses.
O propósito do presente estudo é apresentar as bases teóricas dessa que é
uma das abordagens mais fecundas para a compreensão do fenômeno
psíquico, não apenas em condições patológicas, como em condições normais
de desenvolvimento. Trata-se de um arcabouço conceitual que nos permite
pensar a problemática resultante das organizações não edipianas do aparelho
psíquico, cujas incidências na clínica contemporânea são cada vez mais
freqüentes. Enfoca-se, sobretudo, a gênese da organização psicótica, em suas
relações com a constituição do mundo interno e o papel estruturante do objeto
e da experiência ilusória no desenvolvimento psíquico.
Resumo
Abstract
Over the last few years, the importance of Winnicotts work for psychoanalysis
has been reaffirmed together with its growing interest to the field of psychosis.
The purpose of the present study was to present the theoretical basis of this
approach, which is one of the most fecund for the understanding of the psychic
phenomenon, not only in pathological conditions but also in normal
developmental conditions. This is a conceptual framework that allows us to
reflect about problems resulting from non-oedipal organization of the psychic
apparatus, which incidence in contemporary clinical practice is increasingly
frequent. Major emphasis is placed on the genesis of psychotic organization, on
its relations to the constitution of the inner world and the structuring role played
by the object, and the illusory experience in the psychic development of the
human being.
Essa continuidade não pode ser assegurada pelo indivíduo por si só, mas
depende de um meio ambiente facilitador. Por conseguinte, a falha da provisão
básica inicial perturba os processos de maturação, barrando o crescimento
emocional da criança. Nesse sentido, o que constitui a etiologia das psicoses,
em particular da esquizofrenia, é uma falha do processo de maturação e
integração. "Psicose é uma doença de deficiência do ambiente" (Winnicott,
1963b/1983, p. 231) 4. Isso não deve ser entendido como a presença de
experiências traumáticas severas ou a ocorrência de eventos adversos durante
a primeira infância 5. O ponto central é que essas falhas são imprevisíveis. Elas
não podem ser consideradas pelo bebê como projeções, porque ele ainda não
atingiu um estado tal em que a estrutura de ego torne possível atribuir ao
ambiente a produção desses fracassos, já que não há uma oposição inicial
entre o externo e o interno 6. O resultado mais marcante das falhas ambientais
é um sentimento permanente de aniquilamento e pânico que toma conta do
bebê. A continuidade de sua existência é subitamente interrompida Loparic,
1996).
As Angústias Impensáveis
De acordo com Loparic (1996), Winnicott, em sua obra, reconheceu que nas
psicoses e em outros distúrbios severos correlatos as angústias maciças não
parecem se enquadrar no clássico modelo da regressão aos pontos de fixação
pré-genitais, vinculadas ao conflito edípico mal resolvido (ver também
Winnicott, 1955/1978). Nesses pacientes, não é possível identificar a origem da
problemática em termos de dificuldades de resolução de um complexo de
Édipo plenamente desenvolvido. Ainda que tenha acatado, inicialmente, as
reformulações kleinianas em termos da posição depressiva, Winnicott acabou
se convencendo da existência de problemas iniciais do desenvolvimento
humano que desencadeiam o que ele denominou de angústias impensáveis,
que não podem ser entendidas por meio da concepção edipiana 7.
Segundo Loparic (1996), são angústias relacionadas não à função sexual, mas
às múltiplas ameaças ao sentimento de existir que assolam o bebê, tais como o
temor do retorno a um estado de não-integração (levando ao aniquilamento e à
ruptura da linha de continuidade do ser), o medo da perda de contato com a
realidade e o temor da desorientação no espaço, o pânico do desalojamento do
próprio corpo (o despencar no vazio) e de um ambiente físico imprevisível, etc.
Essas angústias primárias são impensáveis porque não podem ser definidas
em termos de relações pulsionais de objeto, baseadas no modelo
representacional (isto é, relações mediadas por representações de objeto, ou
seja, representações mentais). Ocorre que tais angústias não acedem à
percepção, nem chegam a ter um estatuto de fantasia, e à medida que não
ganham conteúdo representacional, são impedidas de alcançar a simbolização.
Essas angústias eclodem em uma etapa bastante precoce da vida, antes que
tenha sido claramente configurado um sujeito capaz de experimentá-las como
algo interno. Os estados que as originam precedem, portanto, ao início da
atividade dos mecanismos mentais e das forças pulsionais, o que implica que
essas angústias não possam ser compreendidas em termos do conflito gerado
pela situação edípica. Pode-se, então, interrogar sobre sua verdadeira origem.
Essas angústias assaltam a mente do bebê em um estágio do desenvolvimento
primário quando há o encontro com um mundo sentido como incompreensível.
"O que ele descreve em sua transicionalidade é a perda do objeto para que
surja o sujeito. Objeto que demora em sua representação mais autônoma
(disponibilidade da representação), que se encarna nele perdendo-se (metáfora
a meio caminho, que é objeto transicional), mas que finalmente desaparece e
marcará com isto a simbolização mais acabadamente realizada e a
disponibilidade da fantasia" (Pereda, 1997, p. 85).
Talvez o que sobreviva não seja o objeto (que existe para ser "morto"), mas o
sujeito marcado pela perda ou pela destruição do objeto, testemunhando o
aparecimento da fantasia, como uma "metáfora viva" que dá acesso ao
pensamento e à cultura. Winnicott destaca que no estabelecimento da
alteridade algo se perde ao se adquirir essa conquista. Já as falhas e
distorções do brincar (processo simbólico) levam à formação de formações e
divisões que se estruturam em pseudo-identificações, na linha do falso self. As
perturbações ou a detenção do brincar criam condições para o
desenvolvimento de patologias infantis e a base para os transtornos do adulto.
É nessa área constituída pelo jogo e pelo fantasiar que a criança pode colocar
em uso o sonho e os seus impulsos de vida e, através desses recursos,
começar a manipular a realidade externa, modelando-a de acordo com suas
necessidades e possibilidades de assimilação8. O fato é que o adulto, porque
intui essa verdade, concede ao bebê licença para que ele exercite à vontade
"essa loucura". Só gradualmente exige que ele discrimine entre a realidade
subjetiva e a realidade compartilhada. Essa indulgência dos pais, uma espécie
de "moratória" do juízo crítico da realidade, prolonga-se na vida adulta, quando
se manifesta no campo cultural sob a forma de arte e religião, por exemplo.
Nessas áreas, de que todos necessitamos, também se observa esse
"descanso do teste de realidade e da aceitação da necessidade" (Winnicott,
1951/1978, p. 382).
Se o ambiente se comporta de modo uniforme, tanto mais fácil será essa tarefa
que a criança tem de estruturar. Já uma adaptação variável (meio ambiente
imprevisível e pouco sensível) tende a ser traumática, anulando o efeito
positivo dos períodos de adaptação adequada. Winnicott (1952/1978) afirma
que uma capacidade intelectual restrita induz maiores dificuldades nessa tarefa
de transformação dos traumas resultantes da adaptação insuficiente às
necessidades. Disso resultam as psicoses comuns nos deficientes mentais.
Por outro lado, também se observa que um indivíduo com uma elevada
potencialidade cognitiva, que o capacita a lidar com sérios fracassos na
adaptação à necessidade, pode desenvolver um tipo de distorção da
personalidade que Winnicott (1960/1983) denomina falso self, juntamente com
uma perversão da atividade mental, à medida que ela é utilizada contra a
psique. A hipertrofia dos processos intelectuais, nesses casos, corresponderia
a uma reação defensiva contra um colapso esquizofrênico potencial. A
atividade de pensamento acaba por se tornar inimiga da psique.
Mannoni (1970, p. 90) mostra que falso e verdadeiro self não são "dois tipos de
personalidades (...), mas uma bipolaridade em um mesmo indivíduo", sendo
que a função primordial do falso self é precisamente ocultar e proteger
o self verdadeiro. Assim, ambos permanecem como vicissitudes naturais de
expressão da vida psíquica (Pereda, 1997).
Por outro lado, o verdadeiro self não surge como resultado do conflito, mas
previamente. É uma área não reativa, talvez primária e livre de conflitos, celeiro
de possibilidades da evolução espontânea na fecunda tessitura da trama
subjetiva. Pode-se fazer uma aproximação entre a noção winnicottiana de que
o self encontra-se situado no corpo com a gênese do ego como um ego
corporal, projeção mental da superfície do corpo, conforme a descrição de
Freud (1923/1969). Mas nunca é demais lembrar que talvez não existam
equivalências possíveis e que a maioria dos conceitos não se harmonizam e
dificilmente podem ser enquadrados na metapsicologia habitual. A propósito, a
elucidação de determinadas noções é lenta e complexa, devido às suas
múltiplas conceituações e usos, e a distintas visões do aparelho psíquico, que
não se harmonizam com as noções conhecidas, como as da metapsicologia
tradicional. Além do que é necessário ter muita cautela quando se faz uma
confrontação de modelos teóricos em psicanálise e respeitar as diferenças
conceituais existentes entre os diversos autores e suas teorias inspiradas em
bases epistemológicas distintas.
A constituição do falso self surge também como uma defesa paradoxal, solução
de continuidade que vem preservar a continuidade do ser no self verdadeiro
ameaçado. Com a organização do falso self, o sujeito almeja proteger
o self verdadeiro de novos ataques. Trata-se de uma estratégia de
sobrevivência baseada na resignação, na qual importa sobreviver em vez de
viver. Proteção contra a regressão a estados de não-integração,
testemunhando o esforço que demanda ao self esta tarefa de unificação, de
manter separado o que é ego do que não é. É a função materna que garantirá
a continuidade do sentimento de existir da criança e evitará a reação que
resultará na dissociação, culminando com a organização de um falso self.
Green (1994) especula que esse conceito talvez acrescente um terceiro tipo de
processo, que viria completar a clássica oposição entre processos primários e
processos secundários, propondo designá-los
como processos terciários. Esses processos serviriam de agentes de ligação
entre os primários e os secundários, que estão sempre em perpétua interação.
No campo cultural, por exemplo, o mito desempenha essa função de ligação
social entre a realidade subjetiva, absolutamente singular e impermeável, e a
realidade exterior, coletiva e compartilhada. Green propõe que pensemos o
mito como um objeto transicional coletivo. Isso nos permite compreender
melhor a noção de transicionalidade.
O mito, tal qual o brincar, coloca em jogo uma forma de lógica que não pode
ser formulada nos termos da lógica da não-contradição, da linguagem binária
dos filósofos. É uma lógica do equívoco e da ambigüidade, em vez da lógica do
sim-ou-não. Um mito é e não é real, pertence à categoria da ilusão. Como todo
objeto transicional, não deve ser interpretado ao pé da letra, mas como
construções as quais não se concede a menor crença, uma vez que elas não a
reivindicam para operarem sua eficácia simbólica e desempenharem sua
função reguladora. Contudo, o consenso lhe concede uma existência inegável,
reconhecendo seu valor intrínseco.
Desse modo, o mito se liga tanto à realidade psíquica, pelas relações que
mantém com o sonho e a fantasia (ou seja, com um sentido inconsciente),
como à realidade compartilhada por toda uma sociedade, modulada pelos
desejos coletivos.
Assim, a contribuição que Winnicott (1952/1978; 1962/1983; 1963b/1983)
trouxe à problemática da representação nas psicoses parte da apropriação que
ele faz da noção freudiana de que as origens do mundo psíquico remetem à
construção de um espaço para a fantasia. Não é sem razão que todo o seu
trabalho é atravessado por uma preocupação que remonta às origens da
criatividade. Para desenvolver suas pesquisas, ele construiu um aparato
conceitual bastante engenhoso, que tem sua base na noção de espaço, objeto
e fenômenos transicionais (Winnicott, 1951/1978).
A situação do brincar - da qual a situação analítica pode ser vista como uma
variante -, solicita o arranjo de um espaço de solidão, isto é, apela para esta
possibilidade de uma "meditação associativa em presença do outro" - no caso
da situação clínica, o psicólogo ou o psicoterapeuta (Chabert, 1993). Aí se
constitui um campo de experiência, em que podemos observar a capacidade
do sujeito para situar-se em uma área transicional, o que permite apreciar a
qualidade da distância que ele assume em relação ao objeto. Dessa distância
depende, fundamentalmente, a capacidade do sujeito de jogar com o real, isto
é, de manejá-lo de maneira eficiente, através de representações que são
construídas de acordo com as necessidades de seu mundo interno.
Assim, Winnicott (1959 [1964]/1983) deduz que não se deve partir do modelo
da neurose para compreender a psicose, como uma espécie de negativo da
neurose (até porque Freud, 1905/1969, já evidenciara que o negativo da
neurose é a perversão). A psicose não é uma espécie de neurose às avessas,
ou uma neurose que ficou a meio caminho e não completou todos os seus
estágios. A neurose pressupõe que o paciente, durante a infância, atingiu um
determinado estágio de desenvolvimento emocional, em que as várias etapas
do complexo edípico foram superadas e organizadas sob a primazia da
genitalidade, de modo que certas defesas contra a ansiedade de castração
puderam ser estabelecidas. A personalidade do indivíduo está intacta, o que,
em termos evolutivos, significa que ela pôde ser construída e mantida,
conservando sua capacidade para as relações objetais.
Referências
Freud (Vol. XVIII, pp. 11-85). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em
1920)
Revisado em 12.06.99
Aceito em 15.06.99
Sobre o autor:
Datas de Publicação
Publicação nesta coleção
02 Fev 2000
Data do Fascículo
1999
Histórico
Aceito
15 Jun 1999
Recebido
15 Jan 1999
Revisado
12 Jun 1999
Rua Dr. Diogo de Faria, 1087 – 9º andar – Vila Clementino 04037-003 São Paulo/SP - Brasil
E-mail: scielo@scielo.org