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BRONCKART, Jean-Paul
Reference
BRONCKART, Jean-Paul. Um século de crise em psicologia: a dificuldade de uma abordagem
materialista des significações. In: J.-P. Bronckart & E. Bulea Bronckart. As unidades
semióticas em ação. Estudos linguísticos e didáticos na perspectiva do
interacionismo sociodiscursivo. Campinas : Mercado de Letras, 2017. p. 19-36
Available at:
http://archive-ouverte.unige.ch/unige:109166
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Carateristicas da crise hoje em dia
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Sem drivida, a situaçâo descrita por Vygotski existe
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)S B até hoje: embora tenham nascido novos paradigmas,
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estes seguiram a mesma lôgica de super-extensâo dos
1S t' seus principios explicativos em todos os objetos da sua
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disciplina, como mostram, por exemplo, as ambiçôes
al i, hegemônicas da neurociência. A psicologia geral que o
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autor desejava naquela época nâo pode ser elaborada,
p. e isso levou a ocorrer a persistência, ou a acentuaçâo do
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re fracionamento dos objetos (e das subdisciplinas querendo
e analisâ-las), e a uma real resistência na abordagem das
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relaçôes entre dimensôes ontol6gicas e gnoseol6gicas dos
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fenômenos psfquicos.
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Sobre essa ûltima problemâtica, a anâlise proposta
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por Vygotski parece lacunar, se nâo problemâtica, em
,: dois aspectos. Primeiramente, se podemos admitir que
o método analitico proposto para os fatos psiquicos deve
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fazer abstraçâo da vivência individual dos pesquisadores
:e ou dos sujeitos analisados, o objetivo desse processo
)S nâo deixa de ser a construçâo de um conhecimento que,
sendo coletivo, é gnoseol6gico por essência! Portanto,
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o verdadeiro problema é das condiçôes de elaboraçâo de
elementos gnoseol6gicos cuja validade foi estabelecida
de uma forma coletiva e cientifica, além desses elementos
de gnoseologia "primâria": que constituem o vivido e
os conhecimentos dos individuos; isto implica que seja
clarificado o estatuto respectivo desses dois tipos de
gnoseologia e as modalidades de suas relaçôes. Em
segundo lugar e mais importante, quando um psic6logo (ou
um pedagogo) intervém de forma prâtica em um processo
de formaçâo ou de educaçâo, ele pretende agir sobre o ser
do psiquismo, ou sobre a vivência das pessoas? De fato,
a resposta a essa pergunta nâo é nada 6bvia. Contudo, o
fato de ela existir indica que é, sem drivida excessivo, supor
Ua que a gnoseologia individual é apenas uma aparência sem
u-' importância para o psic6logo.
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Essas sâo as problemâticas que estâo no centro da
nossa reflexâo e, numa perspectiva muito vygotskiana,
elas serâo discutidas num primeiro momento sob uma
abordagem "genética", reexaminando as condiçôes da
constituiçâo do psiquismo propriamente humano.
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que eram comuns ao ser humano e ao ser
vivo. O mecanismo de construçâo dos signos
implica apenas processos que jâ estavam
implementados, e, assim, constitui o l6cus da
continuidade na emergência do humano (sem
necessidade de qualquer mutaçâo genética).
d) Com a emergência dos signos, esses processos
herdados aplicam-se agora a objetos sociar's (a
essas associaçôes convencionais de entidades
sonoras e mundanas), enquanto no mundo
animal s6 se aplicavam aentidades estritamente
fisicas. E foi essa rn udanç a de status dos obj etos
para os quais esses processos se aplicam que
constitui a ruptura humana: os signos têm essa
propriedade radicalmente nova na evoluçâo de
constituir cristalizaçôes psiquicas de unidades
de troca social.
e) A interiorizaçâo dos signos confere, entâo,
necessariamente um carâter social às primeiras
unidades de pensamento. E se consideramos
que as operaçôes iniciais do pensamento
constituem também necessariamente o
produto da interiorizaçâo das relaçôes
predicativas da lfngua das pessoas ao seu
redor (para uma demonstraçâo desta riltima
tese, confira Bronckart 2002), temos que admitir
que, como afirmava vygotski (1g34l1gg7l), o
psiquismo é, no principio fundamentalmente
sociolinguageiro.
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Série Idejas Sobre Linguagem 31
abordagem (por exemplo, Pacherie 1993), e porque este
uso é paradoxalmente revelador das idéias em questâo
no debate sobre o pr6prio estatuto de uma ciência do ser
humano. Como acabamos de mostrar, as significaçôes sâo
entidades cuja criaçâo/exploraçâo estâ na raiz da pr6pria
emergência do ser humano; portanto, estas significaçôes
sâo tâo "naturais" quanto os elementos processuais
subjacentes à matéria inerte ou ao ser vivo nâo humano,
nâo existindo a necessidade de "re-naturalizâ-los,, . O que
o uso deste termo revela, no fundo, é que as correntes em
questâo nâo podem admitir que os signos constitutivos
da significância humana nâo sejam apenas o resultado de
acordos sociais aleat6rios, e que, portanto, elas tentam
identificar os fundamentos do linguageiro em um ,,outro
lugar" que nâo nesses acordos sociais.
Essa resistência em admitir o carâter social dos signos
(e, consequentemente, o carâter social do pensamento),
manifestou-se permanentemente na filosofia ocidental, do
Crâtilo de Platâo às três Criticas de Kant, e manifestou-se
de novo nas correntes dominantes da psicologia cientifica:
- as diversas formas de behaviorismo se esforçaram para
encontrar os fundamentos da linguagem nas propried.ades
fisicas dos objetos ou dos eventos que elas designam
(confira sobre este assunto, a teoria espetacular de Skinner
em Verbal Behavior (1957), que nâo hesitou em mobilizar
nesse intuito os sofismas de Horne Tooke e Fabre d'Olivet);
-
as correntes cognitivas consideraram que as propriedades
da linguagem resultavam das propriedades de um
pensamento pré verbal (Fodor L986), este sendo o resultado
de uma mutaçâo do equipamento cerebral (Changeux
1983; Eccles 1992): - por fim, as correntes construtivistas
buscaram os fundamentos do pensamento nos modos de
interaçâo organismo ambiente (Piaget 1946) como fontes de
uma semiose propriamente cognitiva (aquela pressuposta
por Pierce 1,978), na qual as linguas humanas s6 seriam
manifestaçôes secundârias e imperfeitas.
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interna constitui o aparelho de base da gnosiologia
singular, ou ainda, é a forma inicial do pensamento
individual, enquanto a lingua externa constitui o aparelho
de base da gnosiologia coletiva, ou ainda a forma inicial
do pensamento coletivo. Contudo, essas formas sô sâo
chamadas de iniciais porque Piaget, em particular,
demonstrou que elas sâo progressivamente retrabalhadas
durante o desenvolvimento pelos processos psiquicos
herdados, isto é, a assimilaçâo/acomodaçâo, a abstraçâo,
a generalizaçâo e o equilibrio. Enquanto que, em seu
estatuto primeiro de entidades da linguagem ordinâria
os signos sâo portadores de significados que constituem
valores de uso de extensâo variâvel, com fronteiras frâgeis,
e que eles se transmutam graças aos processos, evocados
mais cedo, em conceitos ou seja, entidades que tendem
à estabilizaçâo na extensâo e na compreensâo. E é este
trabalho de distanciamento em relaçâo aos determinismos
sociolinguisticos particulares que constitui, no plano
individual, um pensamento potencialmente formal, e, no
plano coletivo, as representaçôes coletivas propriamente
ditas (Durkheim 1898) ou também os rnundos formais de
conhecimento teorizados por Habermas (1987).
De acordo com essa anâlise, a ciência psicol6gica se
dirige a uma gnosiologia individual que procede de uma
organizaçâo tendencialmente l6gica de significaçôes (de
origem linguistica apurada, ou "lapidada"), ou seja, atrela-
se a um aparelho psiquico que funciona e desenvolve-se na
interaçâo com as significaçôes organizadas na gnosiologia
coletiva, com as significaçôes veiculadas na linguagem
comum, com as dimensôes fisicas dos organismos humanos
e das entidades mundanas externas. Uma psicologia
materialista, tendo como foco a realidade do funcionamento
humano, d.eve concentrar-se, portanto, sobre essas três
redes de significaçâo, nas suas interaçôes reciprocas e nas
suas interaçôes com as entidades propriamente fisicas.
Assim, uma psicologia mat'erialista se jnteressa
por um objeto no qual as significaçôes sâo preeminentes.
Essa preeminência parece relativamente 6bvia quando a
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global, independente das técnicas de coleta de seus dados
empiricos, trabalha pela dedugâo de relaçôes gerais, ou
seja, a reatribuiçâo de significaçôes que caracteriza a
generalizaçâo.
Consequentemente, nâo existe diferença fu ndamental
entre a metodologia das ciências chamadas naturais e as
ciências humanas. Em ambos os casos, podemos trabalhar
com processos experimentais com o intuito de estabelecer
relaçôes causais, mas assim que levamos em consideraçâo
as dimensôes processuais, sejam forças fisicas, psiguismo
animal ou o pensamento humano, esses dados experimentais
nâo podem constituir mais que um apoio servindo o método
anaJitico, da forma que Vygotski defendia.
Contudo, um problema essencial, o problema da
intervençâo, educativa, formativa e/ou reparadora, nâo
deixa de existir. Sem poder analisâ-lo corretamente nesta
contribuiçâo, nos limitaremos a comentâ-lo em três pontos
conclusivos.
Primeiramente, afirmaremos que é nessa ârea que
se manifesta a verdadeira especificidade d.e uma ciência
do ser humano: o ser humano pensa no seu pr6prio futuro
e a ciência da qual ele é o foco s6 pode apoiâ-lo neste
processo; isto nâo tem equivalente nas outras ciências.
Em segundo lugar, na nossa visâo, é nesta ârea também
que a abordagem vygotskiana das relaçôes ontologia/
gnosiologia é a mais criticâvel: o psic6logo guase sempre
intervém sobre a vivência fenomenal das pessoas, e nâo
sobre o ser do psiquismo delas (argumento adicional para
considerar que essa vivência faz realmente parte do objeto
de sua disciplina). Por fim, frisaremos que as intervençôes
psicol6gicas ou educativas sempre se desenvolvem em
um contexto mobilizando as significaçôes vivenciadas dos
destinatârios, as significaçôes coletivas do ambiente e as
significaçôes vindo dos corpus cientificos; e defenderemos
que é o reestudo das modalidades de relaçôes entre esses
três tipos de significaçâo que deveria permitir reanimar e
aprofundar a problemâticâ lancinante das relaçôes ,,teoria-
prâtica".