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Universidade do Estado de Santa Catarina

Série ANAIS

III Encuentro de la
Red de Estudios de
Historia de las Infancias
en America Latina | REHIAL
&
I Seminário do Grupo de Trabalho
História da Infância
e da Juventude | ANPUH/BR
Organização: Apoio: Patrocínio:

LAHIN
UNIVERSIDADE DO ESTADO CONSELHO EDITORIAL
DE SANTA CATARINA | UDESC Marcia Silveira Kroeff | Presidente
Samira Kauchakje | CESFI
Gilmar Moraes Santos | CEFID
Dilmar Baretta Giovanni Lemos de Mello | CERES
Reitor Avanilde Kemczinski | CCT
Luiz Antonio Ferreira Coelho Sandra Regina Rech | CEART
Vice-Reitor Delcio Pereira | CEPLAN
Marilha dos Santos Fabiano Maury Raupp | ESAG
Pró-Reitora de Administração Marilei Kroetz | CEAVI
William Campo Meschial | CEO
Alex Onacli Moreira Fabrin Jordan Paulesky Juliani | CEAD
Pró-Reitor de Planejamento Fernando Coelho | FAED
Nerio Amboni Roseli Lopes da Costa Bortoluzzi | CAV
Pró-Reitor de Ensino
EDITORA UDESC
Mayco Morais Nunes Marcia Silveira Kroeff | Coordenadora
Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Comunidade Fone: (48) 3664-8100
Letícia Sequinatto E-mail: editora@udesc.br
Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação http://www.udesc.br/editorauniversitaria

PROJETO GRÁFICO
Bruna Costa
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Regiane Cristina Bonilha / Chris Dalla Costa
CAPA
Mauro Tortato

E56 Encuentro de la Red de Estudios de Historia de Las Infancias en America Latina – REHIAL (3. :
2021 : [Virtual]); Seminário Nacional do Grupo de Trabalho de História da Infância e da
Juventude – ANPUHBR (1. : 2021 : Brasil) : Infâncias e juventudes nos (con)textos da
América Latina: desafios do passado para o presente. / Organizadores: Silvia Maria Fávero
Arend et al.

Anais [recurso eletrônico] / 3.º Encuentro de la Red de Estudios de Historia de Las Infancias
en America Latina – REHIAL e 1.º Seminário Nacional do Grupo de Trabalho de História da
Infância e da Juventude – ANPUHBR; 9 a 11 de junho de 2021, [Virtual]. – Florianópolis: Ed.
UDESC, 2021. (Série ANAIS).
292 p. : il.

Inclui referências
ISBN-e: 978-65-88565-39-1

1. Infância e juventude – História. 2. Infância e juventude – América Latina. 3. Educação.


I. Arend, Silvia Maria Fávero. II. Universidade do Estado de Santa Catarina.

DOI: 10.5965/9786588565391 CDD: 305.2309 - 20. ed.

Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Mariana O. S. Pfleger CRB 14/1243


Biblioteca Central da UDESC
ORGANIZADORES:

Silvia Maria Fávero Arend


Jade Liz Almeida dos Reis
Jorge Luiz Zaluski
Mário Emmanuel de Oliveira Ramos
Anderson Rafael Lima da Silva
SU M Á R IO
APRESENTAÇÃO | 10

SIMPÓSIO TEMÁTICO 1 • EDUCAÇÃO, INFÂNCIAS E


JUVENTUDES LATINO-AMERICANAS | 18
INFANCIA(S), EDUCACIÓN Y TRANSFORMACIONES SOCIALES
EN CLAVE TERRITORIAL EN ARGENTINA
Alcides D. Musín | 19
SÉRIE LEITURAS INFANTIS: ILUSTRAÇÕES PARA A MODELAÇÃO
DA INFÂNCIA (1911-1940)
Alessandra Secundo Paulino | 30
CONSERVADORISMO DE MANUAIS DIDÁTICOS ESCOLARES NO
CONTEXTO DA VULNERABILIDADE INFANTIL
Edmar Moreira Alves | 38
INSTRUMENTOS DA ESCRITA E A (CON) FORMAÇÃO DA INFÂNCIA
PAULISTANA (1870-1920)
Eduardo Bezerra de Souza | 45
AS PROPAGANDAS PARA A INFÂNCIA EM VIDA INFANTIL (1950)
Mariana Elena Pinheiro dos Santos de Souza, Michele Ribeiro de
Carvalho | 52
PAPÉIS DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA:
UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
Paulo Sérgio Moreira de Carvalho | 59

SIMPÓSIO TEMÁTICO 1.2 • EDUCAÇÃO, INFÂNCIAS E JUVENTUDES


LATINO-AMERICANAS | 69
INFÂNCIAS E ADOLESCÊNCIAS NA HISTÓRIA ESCOLAR:
INVESTIGANDO O ADULTOCENTRISMO
Emanuel Bernardo Tenório Cavalcante | 70
DISCIPLINA E DEVOÇÃO NA EDUCAÇÃO DAS MENINAS:
O RECOLHIMENTO DE NOSSA SENHORA DA ANUNCIAÇÃO
E REMÉDIOS NO MARANHÃO
Hellen Silva Carneiro Ferreira, Maria Inês Castro Nascimento, Isabela
de Cássia Costa Vieira | 78
AS OCUPAÇÕES SECUNDARISTAS NO RIO DE JANEIRO EM IMAGENS:
MEMÓRIAS AFETIVAS DE UM MOVIMENTO.
Julio Cesar Roitberg | 86
POLÍTICAS EDUCACIONAIS PARA A INFÂNCIA LATINO-AMERICANA -
PROMEDLAC (1984-2001)
Márcia Colber de Lima | 96
INFÂNCIA SUBMISSA: A EDUCAÇÃO FEMININA NO MARANHÃO
PROVINCIAL
Raylina Maila Coelho Silva, Helloyse Brandão Marques, Rosyane de
Moraes Martins Dutra | 104
SIMPÓSIO TEMÁTICO 2 • MÍDIAS E CULTURAS INFANTOJUVENIS
NOS CONTEXTOS DA AMÉRICA LATINA | 112
O SLAM INTERESCOLAR: EXPERIÊNCIA VIVIDA E
REPRESENTAÇÕES DO PASSADO
Sonia de Deus Rodrigues Bercito | 113

SIMPÓSIO TEMÁTICO 3 • INFÂNCIAS E JUVENTUDES EM REGIMES


AUTORITÁRIOS NA AMÉRICA LATINA | 119
OS GINÁSIOS NO AUTORITARISMO BRASILEIRO:
“DESENVOLVIMENTO”, CONTROLE E PROFISSIONALIZAÇÃO
(1969-1971)
Adriano Ricardo Ferreira da Silva, Humberto da Silva Miranda | 120
O COMANDO DE CAÇA AOS COMUNISTAS (CCC) E A POLÍTICA
UNIVERSITÁRIA DURANTE A DITADURA CIVIL-MILITAR
Danielle Barreto Lima | 128
NA FORMA DA LEI: A CONSTRUÇÃO JURÍDICA DA CATEGORIA DOS
MENORES INFRATORES NOTORIAMENTE PERIGOSOS – BRASIL
(1964-1984)
Otoniel Rodrigues Silva | 138

SIMPÓSIO TEMÁTICO 4 • POLÍTICAS SOCIAIS PARA INFÂNCIAS E


JUVENTUDES NA AMÉRICA LATINA (SÉCULOS XX E XXI | 147
DOCÊNCIA NAS CRECHES DO BRASIL: REFLEXÕES SOBRE
FORMAÇÃO INICIAL
Carla Santos Pinheiro, Débora da Cruz Santos | 148
RELATOS INFANTILES SOBRE LA VIDA COTIDIANA EN CONTEXTO
DE PANDEMIA
Evelyn Palma, María José Reyes | 157
GENTRIFICAÇÃO E JUVENICÍDIO: DIVISÃO CAPITALISTA DO
ESPAÇO E MORTALIDADE JUVENIL
Giovane Antonio Scherer, Laura Barcellos de Valls | 167
A CARIDADE E EDUCAÇÃO EM POUSO ALEGRE/MG (1900-1947)
GIOVANE SILVA BALBINO | 174
POLÍTICAS SOCIAIS FRENTE ÀS INFÂNCIAS “DESVALIDAS” DA
REGIÃO CARBONÍFERA CATARINENSE (1930-1960)
Patrick Dutra, Ismael Gonçalves Alves | 181
POLÍTICA ASISTENCIAL DE MENORES. PROVINCIA DE BUENOS
AIRES, AÑOS ’20
Yolanda de Paz Trueba | 189

SIMPÓSIO TEMÁTICO 5 • DIREITOS INFANTOJUVENIS NA


AMÉRICA LATINA (SÉCULOS XX E XXI) | 198
ECA: NOVOS OLHARES PARA AS CRIANÇAS E JOVENS
BRASILEIROS
Bárbara Birk de Mello, Norberto Kuhn Junior,
Margarete Fagundes Nunes | 199
AS MARCAS DOS DIZERES: TOMAR A PALAVRA COMO QUESTÃO
DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA
Beatriz Saks Hahne, Marília Rovaron | 207
DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS: ADOLESCENTES,
DIGNIDADE HUMANA E CÍRCULOS RESTAURATIVOS
Cristina Silveira Braga de Souza,
Elaine Cristina Francisco Volpato | 215
PÓS-ESTATUTO: O MOVIMENTO NACIONAL DE MENINOS E
MENINAS DE RUA CONTRA O EXTERMÍNIO (RECIFE, 1990-1991)
Elton Gleyson Oliveira da Silva | 223
MEMÓRIAS DE UM GRITO ESCRITO EM RECIFE: (1988-2000)
Heliwelton do Amaral Clemente, Humberto da Silva Miranda | 233
OS LUGARES DE EDUCAR A INFÂNCIA EM O MEU PÉ DE
LARANJA LIMA
Rodrigo da Paixão Pacheco, Ana Raquel Costa Dias | 240
SIMPÓSIO TEMÁTICO 6 • SAÚDE, TRABALHO E LAZER PARA
INFÂNCIAS E JUVENTUDES LATINO-AMERICANAS | 248
INFÂNCIAS E DIREITOS HUMANOS: A SAÚDE DAS CRIANÇAS EM
DEBATE (1978-1989)
Beatriz Martinelli Machado,
Daniel Kerpen de Moraes Chalegre | 249
TRABALHO INFANTIL E CRIMINALIZAÇÃO DA INFÂNCIA NO
BRASIL
Hannah Zuquim Aidar Prado | 257
A EXPERIÊNCIA MENSTRUAL DE MENINAS DA PERIFERIA DE
PORTO ALEGRE
Januária Monteiro Menegotto | 265
REPRESENTAÇÕES DE INFÂNCIAS SAUDÁVEIS EM REVISTA
(1948-1980)
Liana Pereira Borba dos Santos,
Mariana Elena Pinheiro dos Santos de Souza | 270
POLÍTICA, CONTROLE E FILANTROPIA: O INSTITUTO DE
ASSISTÊNCIA À INFÂNCIA NO MARANHÃO (1911-1939)
Rosyane de Moraes Martins Dutra,
Celia Maria Benedicto Giglio | 278
A PROMOÇĀO DA FORMAÇÃO BIOPSICOSSOCIAL DE INFANTES EM
ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL
Valéria Koch Barbosa, Rogers Alexander Boff | 286
APR ESEN TAÇ ÃO

Com grande satisfação, apresentamos a publicação dos Anais do


III Encuentro de la Red de Estudios de Historia de las Infancias en América La-
tina — REHIAL & I Seminário do Grupo de Trabalho História da Infância e da
Juventude — ANPUH/BR. Esta ação conjunta representa o resultado das
mobilizações produzidas em âmbito nacional e internacional, voltadas
para consolidação do campo de produção da História das Infâncias e Ju-
ventudes, no Brasil e na América Latina.
O evento foi realizado entre os dias 09 e 11 de junho de 2021
na modalidade virtual, contando com o número de participantes de
247 inscritos. Para sua viabilização, o Grupo de Trabalho História da
Infância e da Juventude, vinculado à Associação Nacional de História
— ANPUH/Brasil, realizou parcerias com a Universidade do Estado de
Santa Catarina, através do Laboratório de Relações de Gênero e Famí-
lia — Labgef e com a Universidade Federal Rural de Pernambuco, por
meio do Laboratório de História das Infâncias do Nordeste — LAHIN.
Registramos também, a fundamental articulação com a Red de Estudios
de Historia de las Infancias en América Latina — REHIAL, que possibili-
tou a abrangência internacional desta ação.
Com o tema central “Infâncias e juventudes nos (con)textos lati-
no-americanos: desafios do passado para o presente”, nosso evento buscou
reunir historiadoras e historiadores do Brasil e dos países latino-america-
nos, dialogando com pesquisadoras e pesquisadores da América do Norte
e da Europa. Esta articulação dialoga com o processo de internacionaliza-
ção das parcerias do Grupo de Trabalho História da Infância e da Juven-
tude —– ANPUH/BR e dos pesquisadores e pesquisadoras envolvidas.
Mesmo desafiadas e desafiados pelo cenário da Pandemia do Co-
ronavírus — Covid 19, a Comissão Organizadora celebra a publicação de
36 trabalhos, sendo 33 em português e 3 em espanhol, que foram apresen-
tados no decorrer dos sete simpósios realizados. Dessa forma, a publicação
também representa uma forma de resistência e resiliência ao produzir e
socializar ciência em contextos de crise sanitária e política.
Os trabalhos publicados narram histórias de meninos e meni-
nas em diferentes espaços e tempos, abordam a trajetória de diferentes
artes de governar as infâncias e destacam a relevância acadêmica de

10
desafiar o adultocentrismo da historiografia, colocando em tela o pro-
tagonismo de crianças, adolescentes e jovens.
Agradecemos a Fundação de Apoio à Pesquisa de Santa Catarina,
que por meio do seu apoio financeiro (Edital Chamada Pública FAPESC
nº 02/2020 — PROEVENTOS 2020/2021 — Fase II) contribuíram para efe-
tivação desta ação. Registramos também, nossos agradecimentos à Comis-
são Organizadora, aos coordenadores dos simpósios temáticos e dos orga-
nizadores dos Anais do III Encuentro de la Red de Estudios de Historia de las
Infancias en América Latina — REHIAL & I Seminário do Grupo de Trabalho
História da Infância e da Juventude — ANPUH/BR, que se somaram ao proje-
to coletivo de construir, para além do evento, uma articulação nacional e
internacional em defesa da História das infâncias e juventudes.

Professora doutora Silvia Maria Fávero Arend


Universidade do Estado de Santa Catarina

Professor doutor Humberto da Silva Miranda


Universidade Federal Rural de Pernambuco

11
PRES EN TAC IÓN

Con gran satisfacción, les presentamos la publicación de las po-


nencias del III Encuentro de la Red de Estudios de Historia de las Infancias en
América Latina — REHIAL & I Seminário do Grupo de Trabalho de História
da Infância e da Juventude — ANPUH/BR. Esta acción conjunta representa
el resultado de las movilizaciones producidas en ámbito nacional e in-
ternacional, dirigido para la consolidación del campo de producción de
la Historia de las Infancias y Juventudes, en Brasil y en América Latina.
El evento fue llevado a cabo entre los días 09 y 11 de junio de
2021 en formato virtual, y tuvo 247 participantes suscriptos. Para que
el evento fuera viable, el Grupo de Trabalho História da Infância e da Ju-
ventude, vinculado a la Associação Nacional de História — ANPUH/Brasil,
hizo una colaboración con la Universidade do Estado de Santa Catari-
na, a través del Laboratório de Relações de Gênero e Família — Labgef y con
la Universidade Federal Rural de Pernambuco, a través del Laboratório de
História das Infâncias do Nordeste — LAHIN. Se registró fundamental
articulación con la Red de Estudios de Historia de las Infancias em América
Latina — REHIAL, que permitió la extensión internacional de la acción.
Con el tema central “Infancias y juventudes en los (con)textos
latinoamericanos: desafío del pasado para el presente”, nuestro evento
tuvo la intención de reunir historiadoras e historiadores del Brasil y
de los países latinoamericanos, dialogando con investigadoras e inves-
tigadores de América del Norte y de Europa. Esta articulación dialoga
con el proceso de internacionalización de las asociaciones del Grupo
de Trabalho de História da Infância e da Juventude — ANPUH/BR y de los
investigadores e investigadoras involucradas.
Mismo con el desafío del escenario de la Pandemia del Coronaví-
rus — Covid-19, la Comisión Organizadora celebra la publicación de 36
trabajos, entre ellos, 33 en portugués y 3 en español, que fueron presen-
tados a lo largo de los siete simposios llevados a cabo. De esta manera, la
publicación también representa una forma de resistencia y resiliencia al
desarrollar y socializar ciencia en contextos de crisis sanitaria y política.
Los trabajos publicados relatan historias de niños y niñas en
distintos espacios y tiempos, abordan la trayectoria de distintas artes
de gobernar las infancias y enfatizan la relevancia académica en desa-

12
fiar el adultocentrismo de la historiografía, destacando el protagonis-
mo de los niños y niñas, adolescentes y jóvenes.
Les agradecemos a la Fundação de Apoio à Pesquisa de Santa Cata-
rina, que a través de su apoyo financiero (Pliego de condiciones llamada
pública FAPESC nº 02/2020 — PROEVENTOS 2020/2021 — Fase II) con-
tribuyeron para la materialización de esta acción. Registramos tambi-
én, agradecimiento a la Comisión Organizadora, a los coordinadores de
los simposios temáticos y de las ponencias del III Encuentro de la Red
de Estudios de Historia de las Infancias en América Latina — REHIAL
& I Seminário do Grupo de Trabalho História da Infância e da Juventude —
ANPUH/BR, que se unieron al proyecto colectivo de construir, para más
allá del evento, una articulación nacional e internacional en defensa de
la Historia de las infancias y juventudes.

Professora doutora Silvia Maria Fávero Arend


Universidade do Estado de Santa Catarina
Professor doutor Humberto da Silva Miranda
Universidade Federal Rural de Pernambuco

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“O tempo da História não é o nosso tempo. A História
é uma senhora lenta, caprichosa, às vezes louca. Muito
difícil, muito complicada, muito misteriosa, muito
mais misteriosa do que nós cremos que seja. Que não
nos dá a mínima bola. Que não nos obedece. Porque o
tempo dela é um tempo infinitamente maior do que o
tempo da nossa vida”.
Eduardo Galeano

Questões relativas às diversas experiências sociais das popula-


ções infantojuvenis têm sido, ao longo das últimas décadas do século
XX, alvo de investigações de historiadores/as e pesquisadores/as de ou-
tras áreas das Ciências Humanas da América Latina. Direitos, políticas
sociais, educação, lazer e trabalho, emergiram como temáticas para o
saber historiográfico, tendo vista que os considerados problemas destes
espaços e temas estão presentes no cotidiano de uma parcela significati-
va de crianças, adolescentes e jovens do continente.
O Grupo de Trabalho História da Infância e da Juventude, vin-
culado à Associação Nacional de História — ANPUH/Brasil e a Red
de Estudios de Historia de las Infancias en America Latina (REHIAL),
não mediram esforços para a realização do III Encuentro de la Red de
Estudios de Historia de las Infancias en America Latina — REHIAL & I
Seminário do Grupo de Trabalho História da Infância e da Juventude —
ANPUH/BR, evento financiado pelo Edital Chamada Pública FAPESC
nº 02/2020 — PROEVENTOS 2020/2021 — Fase II. O evento internacio-
nal foi realizado no formato virtual, entre os dias 09 e 11 de junho de
2021, pela Universidade do Estado de Santa Catarina, através do Labo-
ratório de Relações de Gênero e Família — LABGEF, em parceria com a
Universidade Federal Rural de Pernambuco — UFRPE, através do Labo-
ratório de História das Infâncias do Nordeste — LAHIN.
Com a temática “Infâncias e juventudes nos (con)textos latino-ame-
ricanos: desafios do passado para o presente”, o evento fomentou discussões
inovadoras e, quiçá inéditas, sobre as infâncias e juventudes no âmbito das
mídias, da conquista de direitos, das políticas sociais, da educação, da saúde,
do lazer e dos contextos autoritários. Tais estudos, cuja base estão os modos
de ser e viver de crianças, adolescentes e jovens da América Latina de hoje e
de outrora, proporcionaram subsídios de diferentes naturezas para o enfren-
tamento dos desafios colocados por um futuro incerto.

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Investigadores/as de diferentes áreas do conhecimento de oito
países latino-americanos apresentaram comunicações orais no intuito
de adensar as discussões sobre as infâncias e as juventudes. Os 36 textos
aqui reunidos são parte dos estudos apresentados nos sete Simpósios
Temáticos do evento, que foram coordenados pelos seguintes pesqui-
sadores/as: Agostina Gentili (UNC/Argentina), Antero Maximiliano
Dias dos Reis (UFSC/Brasil), Camila Serafim Daminelli (IFES/Brasil),
Claudia Freidenraij (UBA/Argentina), Daniel Alves Boeira (Acaps/
SC/Brasil), Denize Terezinha Leal Freitas (SEDUC/RS/Brasil), Eliane
Mimesse Prado (UEM/Brasil), Elisangela da Silva Machieski (UENP/
Brasil), Ismael Gonçalves Alves (UNESC/Brasil), Jonathan Fachini da
Silva (SESI/RS/Brasil), Jorge Luiz Zaluski (UDESC/Brasil), José dos
Santos Costa Júnior (UFRGS/Brasil), Leandro Stagno (UNLP/Argen-
tina) e Thiago Reisdorfer (UESPI/Brasil).
A leitura dos textos que compõe estes anais eletrônicos é um con-
vite a observar o tempo da História — como afirmou Eduardo Galeano —
sob a perspectiva das infâncias e juventudes latino-americanas.

Desejamos uma boa leitura!

Doutorando Jorge Luiz Zaluski


Universidade do Estado de Santa Catarina

Mestra Jade Liz Almeida dos Reis


Universidade do Estado de Santa Catarina

Mestrando Anderson Rafael Lima da Silva


Universidade Federal Rural de Pernambuco

Graduando Mário Emmanuel de Oliveira Ramos


Universidade Federal Rural de Pernambuco

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“El tiempo de la historia no es nuestro tiempo. La historia es
una señora lenta, caprichosa, a veces loca, muy difícil, muy
complicada, muy misteriosa. Mucho más misteriosa de lo
que nosotros creemos que es. Y que, nada más, no nos hace
mucho caso. Que no nos obedece. Porque el tiempo de ella es
un tiempo infinitamente más largo que el tiempo de la vida
de cada uno de nosotros.”

Eduardo Galeano

En las últimas décadas del siglo XX, los temas relacionados con
las diversas experiencias sociales de la población infantil y juvenil han
sido el objetivo de investigación por parte de historiadores e investi-
gadores de otras áreas de las Ciencias Humanas en América Latina.
Los derechos, las políticas sociales, la educación, el ocio y el trabajo
emergen como temas de conocimiento historiográfico, considerando
que los potenciales problemas de estos espacios y temas están presen-
tes en la vida no cotidiana de una porción significativa de niños, niñas,
adolescentes y jóvenes del continente.
El Grupo de Trabalho História da Infância e da Juventude, vinculado
a la Associação Nacional de História — ANPUH/Brasil y a la Red de Estudios
de Historia de las Infancias en América Latina (REHIAL), no midieron
esfuerzos para llevar a cabo el III Encuentro de la Red de Estudios de
Historia de las Infancias en América Latina — REHIAL & I Seminário do
Grupo de Trabalho História da Infância e da Juventude — ANPUH/BR, even-
to financiado por el pliego de condiciones llamada pública FAPESC nº
02/2020 — PROEVENTOS 2020/2021 — Fase II. El evento internacional
fue llevado a cabo en el formato virtual, entre los días 09 y 11 de junio
de 2021, por la Universidade do Estado de Santa Catarina, a través del La-
boratório de Relações de Gênero e Família — LABGEF, en colaboración con
la Universidade Federal Rural de Pernambuco — UFRPE, a través del
Laboratório de História das Infâncias do Nordeste — LAHIN.
Con el tema “Infâncias e juventudes nos (con)textos latino-america-
nos: desafíos do pasado para o presente”, el evento promovió discusiones
innovadoras y, quizás inéditas, sobre las infancias y juventudes en el
ámbito de los medios de comunicación, de las conquistas de derechos,
de las políticas sociales, de la educación, de la salud, del ocio y de los
contextos autoritarios. Los estudios, cuya base está los modos de ser y

16
vivir de los niños, adolescentes y jóvenes de la actual América Latina y
del pasado, proporcionaron subsidios de distintas naturalezas para el
enfrentamiento de los retos puestos por un futuro incierto.
Investigadores/as de distintas áreas de conocimiento de ocho
países latinoamericanos presentaron comunicaciones orales con el ob-
jetivo de adensar las discusiones sobre las infancias y juventudes. Los
37 textos reunidos aquí son parte de los estudios presentados en los sie-
te Simposios Temáticos del evento, que fueron coordinados por los si-
guientes investigadores/as: Agostina Gentili (UNC/Argentina), Antero
Maximiliano Dias dos Reis (UFSC/Brasil), Camila Serafim Daminelli
(IFES/Brasil), Claudia Freidenraij (UBA/Argentina), Daniel Alves Bo-
eira (Acaps/SC/Brasil), Denize Terezinha Leal Freitas (SEDUC/RS/Bra-
sil), Eliane Mimesse Prado (UEM/Brasil), Elisangela da Silva Machie-
ski (UENP/Brasil), Ismael Gonçalves Alves (UNESC/Brasil), Jonathan
Fachini da Silva (SESI/RS/Brasil), Jorge Luiz Zaluski (UDESC/Brasil),
José dos Santos Costa Júnior (UFRGS/Brasil), Leandro Stagno (UNLP /
Argentina) e Thiago Reisdorfer (UESPI/Brasil).
La lectura de los textos que componen esta ponencia electró-
nica es una invitación para observar el tempo de la Historia — como
ha afirmado Eduardo Galeano — bajo la perspectiva de las infancias y
juventudes latinoamericanas.

¡Les deseamos una buena lectura!

Doutorando Jorge Luiz Zaluski


Universidade do Estado de Santa Catarina

Mestra Jade Liz Almeida dos Reis


Universidade do Estado de Santa Catarina

Mestrando Anderson Rafael Lima da Silva


Universidade Federal Rural de Pernambuco

Graduando Mário Emmanuel de Oliveira


Ramos Universidade Federal Rural de Pernambuco

17
Simpósio Temático 1

Educação, infâncias
e juventudes
latino-americanas

Fonte: Arquivo Memorial da Irmandade do Divino Espírito Santo — IDES

18
INFANCIA(S), EDUCACIÓN Y
TRANSFORMACIONES SOCIALES EN
CLAVE TERRITORIAL EN ARGENTINA

Alcides D. Musín1 Resumen: La educación inicial, pri-


mer nivel de escolarización del sistema edu-
cativo argentino, posee en su haber una im-
portante trayectoria político-pedagógica. Sin
embargo, no siempre ocupa un lugar relevante
en el campo pedagógico o en la agenda públi-
ca de los gobiernos. Aunque constituye el pri-
mer tramo de las trayectorias escolares de las
infancias, su desarrollo es desigual a lo largo
de todo el país y al interior de cada provincia.
Su progresiva expansión, a partir de mediados
de los ’90 con la sanción de la Ley Federal de
Educación N° 24195 y posteriormente con la
de la Ley de Educación Nacional N° 26206 en
el 2006, y ligada a la cobertura de las necesida-
des educativas de la población urbana y subur-
bana, no ha recibido aún similar tratamiento
en zonas rurales, de islas u otros contextos
geográficos, sociales y culturales. Por lo cual,
son numerosas las diferencias y particulari-
dades en la organización de las instituciones,
especialmente en lo concerniente al tiempo,
el espacio y las modalidades en torno a su fun-
cionamiento. En el presente trabajo se busca
analizar las transformaciones acaecidas en la
educación inicial entre finales del siglo XX y
principios del siglo XXI, en contextos urba-
nos y suburbanos del norte de la provincia de
Santa Fe (Argentina). La experiencia de ser
niño/a en un momento de cambio de época y
de modificación de las relaciones familiares,
1
Maestrando en Ciencias Sociales de la Universidad Nacional del Nordeste — UNNE.

19
con nuevos y viejos modos de relación inter- un habitar el espacio en clave de exclusión,
generacional, en una sociedad atravesada por la temprana institucionalización de amplias
procesos de fragmentación y segregación so- franjas de la niñez, en modalidades institu-
cio-espacial, adquiere, para algunos sectores, cionales diversas y heterogéneas, resultado
configuraciones diferentes con consecuencias del fenómeno creciente de la inserción al mer-
diversas. Paralelamente, nuevas problemá- cado laboral de la mujer, como así también
ticas ligadas a la primera infancia emergen la extensión de las familias monoparentales,
como resultado de los numerosos cambios paternidades y maternidades adolescentes,
experimentados por los sujetos más desprote- que ubican el tema del cuidado y educación
gidos, entre los que se destacan los efectos de en una centralidad que requiere ser repensada
la pauperización de amplios sectores sociales desde la especificidad de la educación inicial.
y su consecuencia en las condiciones de vida
de los/las niños/as, su participación en las es- Palabras clave: Infancias Educación In-
trategias de sobrevivencia de las familias y en fantil. Transformaciones Sociales.

20
INFÂNCIA, EDUCAÇÃO E
TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS
DESDE UMA PERSPECTIVA
TERRITORIAL ARGENTINA

Resumo: O ensino fundamental, pri- rações diferentes com consequências diversas.


meiro nível de escolarização do sistema edu- Paralelamente, novas problemáticas ligadas a
cacional argentino, possui um importante primeira infância emergem como resultado das
crédito na trajetória político-pedagógica. En- numerosas mudanças experimentadas pelos su-
tretanto, nem sempre ocupa um lugar relevan- jeitos mais desprotegidos, em que se destacam
te no campo pedagógico ou na agenda pública os efeitos do empobrecimento de grandes se-
dos governos. Embora constitua a primeira se- tores sociais e suas consequências nas condi-
ção das trajetórias escolares das infâncias, o seu ções de vida das crianças, sua participação nas
desenvolvimento é desigual em todo país e no estratégias de sobrevivência das famílias e no
interior de cada província. Sua progressiva ex- habitar um espaço chave de exclusão, a insti-
pansão, a partir de meados dos anos 1990 com tucionalização precoce de faixas da infância,
a sanção da Lei de Educação Nacional Nº 26206 em modalidades institucionais diversas e hete-
de 2006, ligada a cobertura das necessidades rogêneas, resultado do fenômeno crescente da
educacionais da população urbana e suburba- inserção no mercado laboral da mulher, assim
na, não recebeu ainda um tratamento similar como a extensão das famílias monoparentais,
nas zonas rurais, de ilhas ou outros contextos paternidades e maternidades adolescentes, que
geográficos, sociais e culturais. Por essa razão, colocam a questão do cuidado e educação em
são numerosas as diferenças e particularidades centralidade que requer ser repensada a partir
na organização das instituições, especialmente da especificidade da educação inicial.
no que se refere ao tempo, espaço e as modali-
dades em torno de seu funcionamento. No pre- Palavras-chave: Infâncias, Educação
sente trabalho, se busca analisar as transforma- Infantil, Transformações Sociais.
ções ocorridas no ensino fundamental entre o
final do século XX e início do século XXI, em
contextos urbanos e suburbanos do norte da Introducción
província de Santa Fé (Argentina). A experiên-
cia de ser uma criança no momento de mudan- En la presente investigación se busca
ça de época e de modificação das relações fa- analizar las transformaciones en los planos
miliares, com novos e velhos modos de relação normativo-prescriptivos, pedagógico-cur-
intergeracional, em uma sociedade atravessada riculares y operativo-prácticos que tuvo la
por processos de fragmentação e segregação so- educación inicial entre finales del siglo XX
cioespacial, traz, para alguns setores, configu- y principios del siglo XXI en contextos ur-
banos y suburbanos del norte de la provincia

21
de Santa Fe2 (Argentina), como consecuencia guían la investigación son: ¿cuáles fueron los
de diversas transformaciones producidas en aspectos sobresalientes, en el plano nacional y
el tejido social. provincial, de la educación inicial entre fina-
El interés por esta temática radica en les del siglo XX y principios del XXI?, ¿cómo
la necesidad de explorar en un tema no aborda- incidieron en las instituciones de educación
do hasta el momento en el campo de las cien- infantil en general y en el jardín de infantes
cias sociales, pretendiendo de este modo con- en particular los procesos de fragmentación
tribuir al estudio de la educación inicial en la social y cultural durante el período?, ¿cómo la
provincia, aportando elementos de análisis que demanda por educación a edades cada vez más
posibiliten entender cómo esas transformacio- tempranas lo ha modificado y/o movilizado?,
nes incidieron en la configuración de una “nue- ¿qué relación guarda este fenómeno con la cre-
va institucionalidad” para la educación inicial, ciente incorporación de la mujer al mercado de
la cual adquirió características particulares en trabajo en el período abordado?, ¿qué factores
función del contexto. La relevancia y peculiari- influyeron en este hecho?, ¿de qué manera ello
dad que reviste el tratamiento de la temática a modificó la organización familiar?, ¿cómo esto
escala provincial, y especialmente en el contex- ha impactado en este nivel educativo?, ¿de qué
to del norte santafesino, asume rasgos inéditos manera estos factores han incidido en la con-
para el campo de la educación inicial. figuración de una nueva institucionalidad para
En primer lugar, reconocemos la va- la educación inicial?, ¿cómo ello ha permeado
cancia de estudios acerca de este tramo de los sentidos y las experiencias de las niñeces?
la escolaridad en la historia del sistema edu- ¿qué particularidades adquirió este proceso en
cativo argentino y provincial también (FI- los contextos urbanos y suburbanos del norte
NOCCHIO, 2015), y entendemos resulta re- de la provincia de Santa Fe?, ¿qué nuevas con-
levante comenzar a construir conocimientos figuraciones sobre el proceso de profesionali-
sobre el mismo para comprender y analizar zación de la educación inicial y sobre el jardín
sus orígenes y posterior desarrollo a la luz de de infantes como espacio educativo emergie-
las configuraciones sociales, políticas, eco- ron?, ¿cómo han incidido en lo prescriptivo-
nómicas y culturales. -normativo, pedagógico-curricular y lo opera-
En segundo lugar, queremos destacar tivo-práctico?, ¿qué ha cambiado y/o mutado
la singularidad que reviste su anclaje en con- respecto de sus sentidos primigenios?, ¿qué se
textos urbanos y suburbanos para aportar ele- ha mantenido inalterado durante este tiempo?
mentos de análisis que permitan comprender
y analizar las notas características y/o parti-
cularidades que adoptó el desarrollo de este Infancia(s), educación y
nivel del sistema educativo en esta geografía, cuidado. Transformaciones,
características y particularidades que no po-
cas veces “escapan” a las miradas hegemónicas experiencias y sentidos en
y centralistas de los discursos e investigacio- perspectiva regional
nes educativas producidas en otros contextos
sobre este nivel de educación. Los estudios sobre la educación ini-
Se espera que sus resultados consti- cial en nuestro país se han incrementado
tuyan un aporte relevante para generar cono- considerablemente en los últimos años. Sin
cimientos sobre la problemática de interés y embargo, y desde una perspectiva regional,
aporten a la comprensión de las nuevas de- no ha sido abordada aún la temática en el
mandas que se le presentan a la formación, contexto del norte provincial.
al trabajo docente y a las instituciones para Como primer nivel de escolarización
este nivel educativo. del sistema educativo, posee en su haber una
Algunos de los interrogantes que importante trayectoria político-pedagógica en

2
La provincia de Santa Fe es una de las 23 provincias que integran la República Argentina. A su vez, es uno de los 24
estados autogobernados o jurisdicciones de primer orden que conforman el país, y uno de los 24 distritos electorales
legislativos nacionales. Su capital es la ciudad de Santa Fe. Está ubicada en el oeste de la Región del Litoral y forma
parte de la región integrada Centro, limitando al norte con la provincia del Chaco, al este con el río Paraná que la se-
para de las provincias de Corrientes y Entre Ríos, al sur con la provincia de Buenos Aires y al oeste con las provincias
de Córdoba y Santiago del Estero. Con unos 3.195.000 habitantes en 2010, es la tercera jurisdicción de primer orden
más poblada -por detrás de la provincia de Buenos Aires y la provincia de Córdoba- y con 24 hab/km², la quinta juris-
dicción de primer orden más densamente poblada, por detrás de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, la provincia
de Tucumán, la provincia de Buenos Aires y la provincia de Misiones.

22
la historia de la educación argentina y latinoa- bajo otros enunciados y/o discursos. Pensar,
mericana. Sin embargo, no siempre ocupa un discutir y poner en tensión la relación entre el
lugar relevante en el campo pedagógico o en la cuidado y la educación posiciona a los sujetos
agenda pública de los gobiernos. frente a una encrucijada: elegir uno de los ca-
Aunque constituye el primer tramo minos que se abren y reeditar las diferencias
de las trayectorias escolares de la infancia, o -en la dirección de lo que se proponen Re-
su desarrollo es desigual a lo largo de todo el dondo y Antelo (2017) — insistir en explorar re-
país y al interior de cada provincia. Su expan- giones que posibiliten diferentes perspectivas,
sión, ligada a la cobertura de las necesidades nuevos puentes, intersecciones, matices que
educativas de la población urbana y subur- permitan ensanchar el horizonte de lo posible
bana/periurbana, no ha recibido aún similar y la invención de otras experiencias políticas y
tratamiento en zonas rurales, de islas u otros otras prácticas que verifiquen la igualdad.
contextos geográficos, sociales y culturales. En la misma dirección de Redondo
Por lo cual, son numerosas las diferencias y y Antelo, pero desde otra perspectiva, Faur
particularidades en la organización de las ins- (2014) parte de algunos interrogantes que
tituciones, especialmente en lo concerniente considera centrales para abordar la proble-
al tiempo, el espacio y las modalidades en tor- mática del cuidado infantil en Argentina:
no a su funcionamiento. Maestros itinerantes, ¿cómo se organiza el cuidado infantil en la
salas de inicial móviles, centros de cuidados sociedad argentina?, ¿lo asumen por igual las
infantiles, jardines de infantes comunitarios, madres y los padres?, ¿cómo hacen las mujeres
extensiones horarias nocturnas, escuelas in- para compatibilizar la atención de los hijos
fantiles, jardines maternales, jardines de in- pequeños y el trabajo remunerado fuera de
fantes, “comedores” y “merenderos”, expresan la casa sin caer en el vértigo de los malabares
una realidad compleja que instituye formas cotidianos?, ¿es un problema exclusivamente
escolares devaluadas o, por el contrario, cons- personal, familiar, que cada hogar debe resol-
tituyen experiencias alternativas. ver con sus propios recursos, o interpela tam-
La experiencia de ser niño/a en un bién al mercado y al Estado como posibles
momento de cambio de época y de modifica- proveedores de coberturas y opciones?
ción de las relaciones familiares, con nuevos y La autora propone desandar la natu-
viejos modos de relación intergeneracional, en ralización del maternalismo, que cristaliza a
una sociedad atravesada por procesos de frag- la mujer como la “cuidadora ideal”, y analizar
mentación y segregación socio-espacial, ad- las prácticas de cuidado con mirada sociológi-
quiere, para algunos sectores, configuraciones ca: en un mundo en que el modelo del hombre
diferentes con consecuencias diversas. Nuevas proveedor y el ama de casa de tiempo comple-
problemáticas ligadas a la primera infancia to han caducado, es preciso repensar la organi-
emergen como resultado de los numerosos zación social del cuidado infantil, incluyendo
cambios experimentados por los sujetos más las políticas públicas como corresponsables. En
desprotegidos, entre los que se destacan los la actualidad, esa organización revela desigual-
efectos de la pauperización de amplios secto- dades en cuanto al género, ya que son las muje-
res sociales y su consecuencia en las condicio- res las depositarias de la tarea. Y desigualdades
nes de vida de los niños/as, su participación en socioeconómicas notorias entre las mujeres de
las estrategias de sobrevivencia de las familias ingresos medios, que pueden “desfamiliarizar”
y en un habitar el espacio en clave de exclu- y delegar en otras personas o instituciones la
sión, la temprana institucionalización de am- atención de sus hijos, y las de sectores empo-
plias franjas de la niñez, en modalidades ins- brecidos, que encuentran serias dificultades
titucionales diversas y heterogéneas, resultado para cuidar de los suyos y acceder a un trabajo
del fenómeno creciente de la inserción al mer- remunerado. Las limitaciones en las opciones
cado laboral de la mujer, como así también la de cuidado para las niñeces obligan a pensar
extensión de las familias monoparentales, pa- en estrategias alternativas para su cuidado y
ternidades y maternidades adolescentes, que atención, como ser la dependencia de otros
ubican el tema del cuidado y educación en una miembros de la familia, amigos o vecinos o, en
centralidad que requiere ser repensada desde no pocos casos, aceptar un empleo de tiempo
la especificidad de la educación inicial. parcial y/o en el sector informal.
En Argentina, el campo de la primera El cuidado infantil en el siglo XXI
infancia está atravesado por diversas tensiones instala con maestría y compromiso una dis-
y definiciones político-pedagógicas que en cada cusión necesaria, y el desafío de construir una
período asumen un énfasis particular, debates política de cuidados integral, sustentada en
que no terminan de saldarse y se reactualizan los principios de derechos universales para

23
niños, niñas, hombres y mujeres. Y da el pun- vel educativo de las mujeres en el país no ha
tapié inicial para colocar el cuidado entre las tenido hasta ahora un correlato en el nivel de
prioridades de la agenda pública. empleo, probablemente por cuestiones econó-
En sintonía con esto, y respecto de micas, culturales e históricas.
la inserción de la mujer al mercado laboral, Si bien en los ‘80 son las mujeres de cla-
es necesario precisar cuáles son los factores se media y media-alta las que se insertan masi-
que inciden en el desempeño femenino en el vamente en el mercado de trabajo, en los ‘90 las
mercado de trabajo. Estos componentes po- capas medias y bajas de la población femenina
demos clasificarlos en endógenos y exógenos, son las que mayormente buscan emplearse. En
donde los primeros refieren a las capacidades, esto parece haber incidido no sólo el desem-
recursos, deseos y expectativas personales y pleo masculino sino también causas relativas a
familiares y los segundos a las condiciones del la mayor inserción de la mujer en términos de
mercado de trabajo y el marco económico y la importancia de su independencia económi-
social en determinado momento histórico. ca y su desarrollo personal, cuestiones de índo-
(RAMOS MARGARIDO, 2005) le cultural, así como la necesidad de obtener un
Entre las variables exógenas, encontra- ingreso extra para sumar al ingreso total fami-
mos que los diversos momentos que atraviesa liar. Es necesario no circunscribir el análisis del
la trayectoria laboral en general, y de las mu- mercado de trabajo femenino como una mera
jeres con hijos pequeños en particular, están consecuencia de lo que ocurre con la mano de
influidos directamente por la situación polí- obra masculina o las divisiones al interior de la
tica, económica y social de su entorno. Así, familia, sino que es imprescindible tomar en
promediando la década del ‘90, el aumento de cuenta tanto los condicionamientos estructu-
la participación femenina en el mercado labo- rales como los factores coyunturales así como
ral de nuestro país puede explicarse más por la incorporar en el análisis características socio-
necesidad de contribuir al decaído presupues- demográficas y familiares (Ibídem).
to familiar que a las expectativas de realiza- Es evidente que, a pesar de los avan-
ción o independencia económica. Dentro de ces culturales respecto del reparto de tareas
los factores externos, algunos como el tipo de y responsabilidades respecto de los hijos, son
mercado de trabajo, la demanda sobre especia- las mujeres las que han asumido en general
lizaciones, la profunda recesión de los últimos la doble tarea de trabajar afuera de sus casas
años del siglo XX, la dependencia de capitales y ocuparse del cuidado de los hijos –en gran
externos que se puso en evidencia a partir de parte porque la malla institucional lo pro-
mediados de la década, junto con las reformas mueve-, con las consecuencias de tal hecho:
estructurales de corte neoliberal llevadas a las más diversas estrategias familiares, pri-
cabo en los ‘90 que impactaron sobre el empleo vadas, públicas y las combinatorias de todas
y la calidad de vida de las familias de modo ellas para lograr responder a las demandas
crucial, puesto que la tasa de desempleo y la del mercado de trabajo.
pobreza han aumentado notablemente para Ahora bien, ¿cómo evaluar la cantidad
toda la población durante ese período. Recién y calidad de las prestaciones de cuidado infan-
en los últimos años comienza a vislumbrarse til en una economía en crisis que, además, no se
una recuperación del crecimiento económico plantea como objetivo primordial la igualdad
luego de la profunda recesión y posterior crisis en el acceso al mercado de trabajo entre hom-
que abarcó desde 1998 a 2002. bres y mujeres? Los patrones culturales pesan
Entre los factores endógenos, deben enormemente en la evaluación de la necesidad
considerarse el nivel educativo de las madres, de un adecuado servicio de cuidado infantil,
las trayectorias laborales y familiares previas a pero no puede soslayarse la incidencia que han
los nacimientos de sus hijos, los arreglos for- tenido las crisis socioeconómicas que atravesó
males o informales con sus parejas o los padres la Argentina durante varios años.
de los niños u otros familiares, la percepción La cuestión del cuidado, implícito en
de la capacidad de cuidado de sus hijos por toda crianza y educación, están puestos en
parte de otros (personal doméstico, familiares juego y la necesidad de su énfasis requiere
o instituciones), la relación costo-beneficio en- una discusión rigurosa para no minimizar el
tre el ingreso percibido por el trabajo y la carga vínculo constitutivo de toda relación educa-
económica del cuidado de los niños, factores tiva. Cuidar y/o enseñar se ha convertido en
psicológicos y culturales, etc. Estos elementos un dilema a ser desarmado, deconstruido, en
endógenos se relacionan directamente con la una operación que sitúe en el campo de la
oferta de mano de obra y con los factores ex- educación inicial responsabilidades diferen-
ternos, por ejemplo: es evidente que, el alto ni- ciadas. Como nunca antes, tal vez, el examen

24
minucioso de las nuevas configuraciones fa- dad de las salas de 5 años que sancionó por
miliares puede ofrecer claves para entender primera vez la Ley Federal de Educación N°
más e intervenir mejor en el terreno comple- 24.195 (LFE) en 1993. Esta última cuestión re-
jo de la educación infantil. presenta un punto sensible para los docentes
La historia y la política como “napas” de la educación inicial, que todavía produce
de un discurso educativo requiere alargar la efectos que tensionan la especificidad de sus
mirada, desde las escenas fundacionales de la propuestas educativas y profundizan debates
educación inicial hasta nuestros días, atendien- no saldados aún al interior del campo pedagó-
do la presencia de núcleos duros que dividen el gico de la educación infantil.
campo de la educación inicial en falsos dilemas, El término obligatoriedad, incluido
como el de jardines comunitarios versus jardi- por primera vez en la LFE, situó un primer
nes de infantes, entre otros, clausurando así un debate referido sobre el para quién se pres-
debate necesario sobre la educación de los más cribe la misma. Si era el Estado el que se ve
pequeños para el conjunto de la sociedad. obligado por ley a garantizar la prestación
educativa o, por el contrario, si son las fa-
milias las que están obligadas a enviar a los
¿De qué hablamos niños y niñas de 5 años al jardín de infantes.
Si se curva la vara para un lado u otro, el
cuando hablamos de carácter de las políticas educativas dirigidas
“Educación Inicial”? a la primera infancia asume sentidos incluso
opuestos. (REDONDO, 2012)
Llegados a este punto es imperioso Otro de los debates que provocó en su
aclarar de qué se habla cuando se menciona al momento la sanción de la obligatoriedad de la
nivel inicial. Durante mucho tiempo se acep- sala de 5 años se tradujo en el plano pedagógi-
tó con la denominación de “educación prees- co en una preocupación por sus efectos. El te-
colar” a los programas educativos formales mor se circunscribió a la posibilidad de que se
brindados por instituciones educativas cen- produjese una “primarización” del nivel inicial.
tradas en niños y niñas cercanos a su ingreso a Desde principios de los noventa se acentuó la
la escolaridad primaria. Toda oferta destina- distancia entre las políticas nacionales y las
da a niños y niñas menores de cuatro años no prácticas educativas instituidas en los jardines
era considerada dentro del ámbito educativo, de infantes que evidenciaron quiebres signifi-
sino que se la catalogaba dentro de ofertas so- cativos al interior del campo. Entre ellos, una
ciales denominadas “guarderías”. Es decir, que polarización entre quienes suscribían y adhe-
todos los esfuerzos no formales orientados a rían al cambio curricular llevado a cabo por la
proporcionar atención precoz al desarrollo reforma educativa de los noventa, y quienes se
social y cognitivo de los niños pequeños eran oponían apelando a las tradiciones pedagógi-
poco comunes y no se incluían dentro de las cas, entre estas las referidas al papel del juego,
estadísticas escolares. (MYERS, 2000) que se verían diluidas por los nuevos conteni-
En la actualidad esta visión estrecha de dos. Si bien no existe una corroboración em-
la educación de la primera infancia ha cambia- pírica es posible afirmar que, a partir de los
do. Ya no se habla de nivel preescolar sino de noventa, al mismo tiempo que se uniformaron
nivel inicial; esto implica la consideración de las prácticas educativas del nivel con el cambio
diversas modalidades de educación y aprendi- curricular, también se acentuó su heterogenei-
zaje destinadas a los niños desde las primeras dad. A las propias variaciones de toda cons-
semanas de vida hasta su ingreso en la escuela trucción curricular, se le sobreimprimieron las
primaria. En nuestro país el nivel inicial tie- tensiones propias del desarrollo desigual del
ne dos ciclos, el jardín maternal y el jardín de nivel inicial a lo largo de su historia.
infantes. El primero abarca desde los 45 días En la actualidad es probable que es-
hasta los dos años inclusive y el segundo ciclo temos frente a un proceso de hibridación de
atiende a niños y niñas entre tres y cinco años. saberes, normativas y prácticas educativas que
En el terreno educativo, un dato in- se diferencian y mezclan de acuerdo a un con-
soslayable se ha visto reflejado en el recono- junto de variables, entre ellas los desarrollos
cimiento del nivel inicial como una unidad curriculares singulares de las jurisdicciones, la
pedagógica en la Ley de Educación Nacional historia de la institucionalización de la educa-
N° 26.206 (LEN), sancionada en el 2006, resul- ción temprana, los niveles de formación, expe-
tando el primer escalón del sistema educativo. riencia y sindicalización de los docentes y las
Como así también, la inclusión de la categoría representaciones imaginarias sobre los contex-
universalización junto con la de obligatorie- tos en que se hallan las instituciones.

25
En el campo de la educación infan- constitución de una “nueva” institucionalidad
til pocas veces se estudia y problematiza la para el nivel inicial como objeto de estudio
cuestión social y su incidencia en la tarea de significa analizar el ser y el hacer de la edu-
la enseñanza. Con frecuencia, los problemas cación inicial en una perspectiva histórica,
sociales son nombrados bajo enunciados estig- pedagógica y cultural. Significa reconocer su
matizantes que no habilitan nuevas estrategias identidad y por lo tanto lo que la diferencia
institucionales o lecturas más ricas sobre la ex- de las otras educaciones, estudiar sus lógicas
periencia social de los niños y niñas, como así internas y la racionalidad que las fundamen-
también las de las familias y comunidades. Esta ta en sus relaciones múltiples con el conoci-
ausencia de una mayor criticidad simplifica la miento, con la economía, con la política, con
comprensión de los procesos actuales, redu- la sociedad, con el sistema educativo, con las
ciendo la respuesta a gestos de buena voluntad organizaciones, con la normatividad estatal y
individuales, más que a acciones colectivas. las estructuras y objetos que la configuran.
Las instituciones constituyen una cate-
goría intermediaria entre los territorios social
El jardín de infantes en la e individual. Parcelan a uno y al otro, de modo
que no pueden existir instituciones fuera del
actualidad. Entre múltiples campo social ni instituciones sin individuos
formatos, sentidos y ¿nuevas? que las conformen y les den cuerpo. Tampoco
institucionalidades pueden existir sujetos fuera de las institucio-
nes; en ese sentido, estamos “sujetados” a ellas.
En esta investigación nos proponemos Las instituciones educativas en parti-
entonces revisar algunas de las problemáticas cular se estructuran en torno a categorías que
que atravesaron el campo de la educación ini- permiten analizarlas: son las dimensiones del
cial en las últimas décadas del siglo XX y prin- campo institucional. Entendemos por campo
cipios del siglo XXI en nuestro país y, particu- como el conjunto de elementos coexistentes
larmente, en la región, entre ellas, la creciente e interactuantes en un momento dado. Un
incorporación de la mujer en momentos de campo es siempre dinámico, se reestructura
crisis económica al mundo del trabajo flexible y modifica permanentemente. A su vez pode-
y precarizado, la modificación en la conforma- mos diferenciar, dentro de un campo, distintas
ción de las estructuras familiares, la creciente sub-estructuras: las dimensiones. Para nuestro
marginalidad y fragmentación y sus efectos en estudio distinguiremos tres, destacando que
el tejido social (WACQUANT, 2001) junto con están estrechamente relacionadas entre sí,
las transformaciones acaecidas en los espacios puesto que cualquier acción que se tome en
urbanos y suburbanos, todo lo cual se tradujo una de ellas, tendrá impacto en las otras.
en una demanda por educación a edades cada La dimensión operativa-práctica con-
vez más tempranas producto, entre otros, de la cierne al conjunto de aspectos estructurales
extensión de la obligatoriedad del nivel (a par- que toman cuerpo en cada establecimiento
tir de la Ley Federal de Educación N° 24.195 y educativo, determinando un estilo de fun-
la Ley de Educación Nacional N° 26.206), ade- cionamiento. Pueden considerarse dentro de
más del número creciente de instituciones que esta dimensión las cuestiones relativas a la
se ocupan de la niñez y la complejización de las estructura formal: los organigramas, la distri-
funciones que éstas asumen. bución de tareas y la división del trabajo, los
Se ha ido configurando así una “nue- múltiples objetivos presentes, los canales de
va” institucionalidad para la educación inicial comunicación formal, el uso del tiempo y de
que debe ser leída en clave coyuntural. En un los espacios. También deben incluirse los as-
intento por delimitar conceptualmente la pectos relativos a la estructura “informal”, es
noción de institucionalidad, March y Olsen decir al modo en que los actores instituciona-
(1997) sostienen que el cambio institucional les “encarnan” las estructuras formales.
es el resultado de la interacción entre institu- Como instituciones del campo so-
ción y medio ambiente. El argumento central cial, los establecimientos educativos inte-
de estos autores es que el ritmo de las transfor- raccionan constantemente con el medio, ge-
maciones en el medio ambiente es mucho más nerando acciones que promueven (o no) la
rápido de lo que pueden ser las transforma- participación de los diferentes actores en la
ciones de las rutinas organizacionales de las toma de decisiones y en las actividades del
instituciones, lo que da lugar a una constante establecimiento. Cada institución considera
tensión entre institución y ambiente y obli- las demandas, las exigencias y los problemas
ga a un continuo proceso de adaptación. La que recibe de su entorno, de modo que debe-

26
rán diferenciarse aquellas cuestiones que se- nistrar lo necesario. Es decir que para toda con-
rán responsabilidad del establecimiento es- ducción la información es un aspecto relevante,
colar de otras que serán abordadas por otras debiendo ser la misma significativa y contribuir
instituciones de la comunidad. a la toma de decisiones, permitiendo procesar
Podríamos pensar, como nexo entre los conflictos y mediar continuamente en la ten-
organización y comunidad, el intercambio en- sión que provoca la adaptación y asimilación de
tre las instituciones en tanto formas organiza- los intereses individuales y los institucionales.
das y los sujetos sociales de una comunidad. Administrar es entonces prever las acciones que
Si entendemos a ésta, en un sentido amplio, hacen posible la gobernabilidad de la institu-
como un conjunto de sujetos que comparten ción o lo que es lo mismo, lo que permite que la
un espacio y una preocupación por encontrar institución transite por los caminos que le he-
soluciones a problemas sentidos como comu- mos trazado. A través de la tarea administrativa
nes, las distintas modalidades con las que los se procesan las demandas cotidianas.
sujetos establezcan sus vínculos de pertenen- Desde este ángulo, administrar está
cia darían matices a los lazos entre la comuni- lejos de constituir una “mala palabra”. Es
dad y cada establecimiento. cierto que muchos podrían objetar que lo
Por su carácter favorecedor u obsta- malo no se encuentra en la reconocida ne-
culizador, dos cuestiones claves se imponen cesidad de una administración sino en su
al abordar la articulación entre escuela y co- estado y procedimientos. Incluso algunos no
munidad: en primer lugar el carácter abierto dejarían de señalar que a veces la adminis-
o cerrado de las organizaciones y de la comu- tración puede establecer prácticas perversas
nidad y en segundo lugar el tratamiento del que desnaturalizan su sentido facilitador
concepto de participación. original hasta convertirla en un obstáculo.
Todas las instituciones prescriben ro- Por último, la dimensión pedagógi-
les para los sujetos que se desempeñan en ellas. co-curricular guarda relación con los fines y
A su vez, los roles son el resultado de una cons- objetivos específicos, o razón de ser de una
trucción histórica, en la cual la dinámica de la institución educativa en la sociedad. Hace
institución y los actores han dejado su huella. referencia a aquellas actividades que definen
En consecuencia, podemos afirmar que los ro- la institución educativa, diferenciándola de
les prescriptos desde la normativa que regula otras instituciones sociales. Su eje fundamen-
el sistema educativo se resignifican, además, tal lo constituyen los vínculos que los actores
en cada establecimiento en relación con hitos construyen con el conocimiento y los modelos
importantes de su historia. Y de la historia per- didácticos que denominaremos las prácticas
sonal y profesional de quienes los desempeñan. pedagógicas. Estas pueden entenderse como
La dimensión normativa-prescriptiva aquellas mediante las cuales los docentes faci-
comprende, en una acepción amplia, las cues- litan, organizan y aseguran un encuentro y un
tiones de gobierno. También los aspectos re- vínculo entre los alumnos y el conocimiento
feridos a los recursos necesarios, disponibles o en el marco de la transposición didáctica.
no, con vistas a su obtención, distribución, ar- Las prácticas pedagógicas son extre-
ticulación y optimización para la consecución madamente complejas, porque en ellas se ar-
de la gestión de la institución educativa. ticulan demandas sociales, políticas y deseos
La palabra administración remi- individuales; cuestiones relativas al saber y los
te, en el imaginario colectivo, a un mundo saberes; los vínculos con la institución; trayec-
sometido a los ritos formalistas de los pro- torias profesionales de los docentes; historias
cedimientos “burocráticos”, o a cuestiones de los alumnos; y un sin fin de otras cuestiones
relativas a engorrosos cálculos presupues- que están presentes en cada uno de nosotros y
tarios, adquiriendo así una representación en cada aula. Por ello ninguna es igual a otra.
sobredimensionada y devaluada. El término Entre los aspectos significativos a
debe entenderse como cuidar, regir, proveer señalar en esta dimensión se encuentran las
lo necesario, aplicar, suministrar, según su modalidades de enseñanza, las teorías de la
acepción latina. Todos estos sentidos hacen enseñanza y del aprendizaje que subyacen a
que el término administrar este estrecha e las prácticas docentes, el valor y significado
indisociablemente vinculado a gobernar, es otorgado a los saberes, los criterios de evalua-
decir, a conducir una pluralidad de personas. ción de los procesos y resultados, por señalar
Toda conducción requiere un aparato sólo algunos más relevantes. Además, incluye
que se encargue de procesar la información y los aprendizajes, ritos, rutinas, usos y costumbres,
contenidos de las decisiones, y de transformar- prácticas y procedimientos, como actividades
los en acciones concretas como proveer o sumi- necesarias a su mantenimiento.

27
Toda institución genera en su co- Referências
tidianeidad una serie de actividades de en-
señanza, a veces explícitas, otras implícitas. FAUR, E. El cuidado infantil en el siglo XXI:
Estas se vehiculizan a partir del diseño y de- mujeres malabaristas en una sociedad desigual.
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La Educación. Trayectoria, Formato, Temas
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28
SÉRIE LEITURAS INFANTIS:
ILUSTRAÇÕES PARA A MODELAÇÃO
DA INFÂNCIA (1911-1940)

Alessandra Secundo Paulino3 Resumo: No Brasil, no início do século


XX, para a construção de um ideal da criança
republicana, foi necessário criar diversos dis-
positivos educacionais que ensinassem pelo
deleite, diferenciando- se da repressão e do
castigo. Dessa forma, um dos principais ob-
jetos usados dentro do ambiente escolar para
consolidar o discurso nacional foi o livro didá-
tico, e o mais importante deles, o livro de leitu-
ra infantil. Para compreender esse discurso de
modelação da infância, o presente artigo tem
por objetivo analisar as ilustrações da série Lei-
turas Infantis de autoria de Francisco Furtado
Mendes Vianna. Tomou-se como fontes a 29ª
edição da Cartilha — Leituras Infantis (1931); a
36ª edição da obra Primeiros Passos na Leitura
(1940); a 66ª edição Leitura preparatória (1935);
a 9ª edição do Primeiro Livro de Leituras In-
fantis (1911); a 5ª edição do Segundo Livro de
Leituras Infantis (1911b) e a 21ª edição do livro
Terceiro Livro de Leituras Infantis (1917). A
justificativa para a escolha dos livros de leitura
dá-se pelo perfil formativo das obras, conside-
rando as categorias de livros didáticos elabo-
radas por Batista et al (2002). Além das obras
citadas foram utilizados escritos publicados na
revista educacional carioca A Escola Primaria
e as conferências de Francisco Furtado Men-
des Vianna presentes na obra Modernas di-
rectrizes no enzino primario escola activa do
trabalho ou nova (1930). Empregou- se nesta
3
Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo — UNIFESP.

29
pesquisa o conceito de “infância” apresentado Além da sua atuação como inspetor e
por Kuhlmann e Fernandes (2004); Faria Filho superintendente, Francisco Vianna foi autor
e Fernandes (2007); Gouvêa (2004, 2007) e Pa- de diversos artigos educacionais, publicou suas
nizzolo e Belo (2016) e a categoria analítica “re- palestras proferidas e ofertou cursos prepa-
presentação” proposta por Chartier (1990) em ratórios para a entrada nas Escolas Normais.
diálogo com a História Cultural, a História da Dentre diversos escritos que envolvem poemas,
Educação, a História da Infância e da Literatu- artigos educacionais e palestras destacam-se as
ra Infantil Escolar no Brasil. Como resultados suas obras didáticas: Elementos de trigonometria:
parciais foi possível identificar que, apesar de Comprehendendo a resolução dos triangulos esphe-
terem sido criadas por ilustradores europeus, ricos (1901); Leitura preparatória, 1º, 2º, 3º livros de
as ilustrações apresentam uma relação direta leitura (1908); Novo methodo de caligraphia ver-
com as tramas presentes nos livros de leitu- tical (1909?); Cartilha: Leituras Infantis (1911?);
ra, especificamente aquelas adaptadas ao uso Considerações geraes sobre a aprendizagem da lei-
da criança brasileira. Também, identificou- tura/cartilhas: leituras infantis (1912?); Primeiros
-se uma preocupação em especificar as fases passos na leitura (1915); Quarto Livro de leituras
da infância no decorrer das obras, sendo elas infantis: apanhados e factos historicos (1919); Pe-
inicialmente representadas por elementos da quena Historia do Brazil (1922); Modernas direc-
natureza e da pureza do imaginário infantil, trizes no enzino primario: escola activa do trabalho
passando assim para ambientes de maior con- ou nova (1930); Novo methodo de calligrafia ame-
centração de personagens e com característi- ricana (inclinada) (1890?); Cadernos illustrados
cas da urbe, envolvendo cenas escolares e de (s.d.); Novos cadernos de linguagem (s.d).
iniciação ao trabalho, bem como mudanças Dessa forma, considerando o per-
de cenários numa mesma trama, possibilitan- curso profissional de Francisco Furta-
do compreender a complexificação e o cresci- do Mendes Vianna e a sua posição no
mento da visão infantil sobre o mundo. campo educacional, o presente artigo4
tem por objetivo analisar as ilustrações da série
Palavras-chave: Série Leituras Infantis. Leituras Infantis. Os livros utilizados com suas res-
Ilustração. Infância. pectivas edições utilizadas na presente análise fo-
ram: a Série Leituras infantis (29ª edição da Cartilha
— Leituras Infantis (1931); a 36ª edição da obra Pri-
Introdução meiros Passos na Leitura (1940); a 66ª edição Leitura
preparatória (1935); a 9ª edição do Primeiro Livro
Francisco Furtado Mendes Vianna, de Leituras Infantis (1911); a 5ª edição do Segundo
nasceu em 1876, foi estudante da Escola Nor- Livro de Leituras Infantis (1911b) e a 21ª edição do
mal de São Paulo, um local profícuo para as livro Terceiro Livro de Leituras Infantis (1917))5.
discussões sobre percepções educacionais, polí- Para definir a função da cartilha, Boto
ticas, filosóficas do período. O mesmo ambien- (2004) analisa o contexto de sua origem, como
te era composto por professores defensores do uma das práticas culturais da Idade Moderna
ideal positivista, inclui-se, dessa forma, o seu utilizada para o ensino da escrita, da leitura
tio Godofredo José Furtado, um dos fundado- e de cálculos. Anteriormente definido como
res do Centro Positivista de São Paulo e tutor do “cartinha”, eram constituídos de abecedários,
Francisco Vianna desde os 12 anos, por conta construções de palavras, pequenos textos com
da morte de seus pais em sua tenra idade. Após conteúdo de ensino moral, com “excertos de
formar-se na Escola Normal, Francisco Vianna, orações ou de salmos, posto que a religiosida-
atuou em escolas do estado de São Paulo, tor- de era a marca daquele ensino primário que,
nou-se professor secundário concursado e dire- pouco a pouco, se constituía” (p. 495). Assim,
tor interino do Colégio Culto à Ciência, inspetor as “cartinhas” seriam os materiais anteriores ao
de ensino nos distritos do Distrito Federal e que atualmente conhecemos como cartilhas.
Superintendente Geral do Ensino Elementar e As escolhidas para a análise e que fazem parte
Particular do Departamento de Educação do da série de leituras do autor foram: Cartilha:
Distrito Federal nos anos finais de sua vida. leituras infantis e Primeiros passos na leitura.

4
A investigação proposta é uma derivação da dissertação de mestrado “Um mundo de pura manifestação dos senti-
mentos”: A trajetória de Francisco Vianna e a representação de infância em suas obras (1876-1935)”
5
As obras escolhidas para a presente pesquisa estão localizadas nos seguintes acervos: Centro de Referência em
Educação Mario Covas (CRE), acervo do Centro do Professorado Paulista (CPP) — sob a curadoria da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP) —, Biblioteca Nacional de Maestros (BNM) e a Biblioteca do Livro Didático da
Universidade de São Paulo (BLD).

30
No que concerne às séries de leitu- aparecem com maior regularidade (espa-
ra, Oliveira e Souza (2000) as definem pelo ços rurais ou urbanos, escolar ou domés-
conjunto de três até cinco livros, sequenciais tico; presença de crianças e adultos ou
(primeiro livro de leitura, segundo livro de somente crianças; gênero mais presente:
leitura, terceiro...). Os conteúdos são dividi- meninos ou meninas, ou ambos; animais
dos por meio de lições, além de apresentarem como personagens ou somente a presença
diferentes grafias e uma extensa quantidade de humanos). (PAULINO, 2019, p. 23)
de ilustrações e gravuras. Das obras seriadas,
foram escolhidas para o presente trabalho: Além dos indícios encontrados nas
Leitura preparatória, Primeiro livro de leituras figuras, é necessário fazer a análise de sua re-
infantis, Segundo livro de leituras infantis e Ter- presentação, ou seja, qual é a concepção de
ceiro livro de leituras infantis. infância defendida pelo autor Francisco Vian-
A escolha por analisar a representação na em suas obras. Sobre o conceito operacional
de infância a partir dos livros didáticos justifi- de representação, é possível destacar:
cou- se pelo seu alcance discursivo, atingindo
não somente aqueles que fazem parte da cultura [...] permite articular três modalidades
escolar, mas também a sociedade que a insere: da relação com o mundo social: em pri-
meiro lugar, o trabalho de classificação
O livro escolar, ao fazer parte da cul- e de delimitação que produz as configu-
tura da escola, não integra essa cultura rações intelectuais múltiplas, através das
arbitrariamente. É organizado, veicula- quais a realidade é contraditoriamente
do e utilizado com uma intencionalida- construída pelos diferentes grupos; se-
de, já que é portador de uma dimensão guidamente, as práticas que visam fazer
da cultura social mais ampla. Por isso, reconhecer uma identidade social, exibir
esse tipo de material serve como instru- uma maneira própria de estar no mun-
mento, por excelência, da análise sobre do, significar simbolicamente um esta-
a “mediação” que a escola realiza entre tuto e uma posição; por fim, as formas
a sociedade e os sujeitos em formação, institucionalizadas e objectivadas graças
o que significa interpretar parte de sua às quais uns <<representantes>> (instân-
função social (CORRÊA, 2000, p. 19). cias colectivas ou pessoas singulares)
marcam de forma visível e perpetuada
Portanto, considerando a característi- a existência do grupo, da classe ou da
ca ímpar das cartilhas e livros de leitura, além comunidade. (CHARTIER, 1990, p. 23)
da sua magnitude discursiva, foram adotados
os seguintes procedimentos metodológicos: o Dessa forma, identificar a posição so-
exame da bibliografia sobre o objeto investiga- cial e profissional do autor Francisco Vianna,
do, análise das figuras e gravuras (materialida- compreender sua visão acerca dos infantes, as
de), e a análise da representação que Francisco práticas que foram constituídas em suas obras
Furtado Mendes Vianna tem por infância. por meio da análise das gravuras, considerando
A análise da materialidade das obras que esses materiais estiveram em processo de
entra em conformidade com a concepção de mediação de diferentes práticas sociais e por
protocolos de leitura, pois indicam ou orientam determinadas instituições, como a escola, seus
determinadas leituras e concepções defendi- aparatos administrativos e burocráticos, além
das por quem elabora os livros; “a imagem no do contexto político da época.
frontispício, ou na página do título, na obra do A análise das fotografias e gravuras
texto, sugere uma leitura, constrói um signifi- presentes nas obras didáticas foram impor-
cado. Ela é um protocolo de leitura, um indício tantes para compreender o contexto social
identificador”. (CHARTIER, 1996, p.131) Vale e os papéis sociais de cada sujeito na socie-
ressaltar que todo o processo de formulação dade (crianças, pais, professores, escola, ves-
das obras e dos significados e objetivos discur- timentas, alimentação, profissões), além de
sivos e materiais estão além das mãos do autor, suas práticas culturais, considerando a per-
mas também das do editor, dos diagramadores, cepção do autor. Dessa forma, foi realizada
ilustradores e das instituições que regem a pu- uma análise crítica sobre os indícios presen-
blicação desses materiais. No que concerne os tes nas imagens, com a finalidade de captar
indícios presentes nas obras é possível afirmar: essas singularidades, por meio da percepção
dos elementos como: posição dos indivíduos/
Essa análise inicial também forneceu personagens nas imagens, vestimentas, am-
indícios de quais temáticas e ambientes bientação, posição em relação ao texto:

31
O uso de imagens, em diferentes perío- o primeiro, “Ilustrações para a modelação da
dos, como objetos de devoção ou meios infância: a representação dos infantes na sé-
de persuasão, de transmitir informação rie Leituras Infantis”; pretende apresentar a re-
ou de oferecer prazer, permite-lhes tes- presentação de infância defendida pelo autor,
temunhar antigas formas de religião, co- bem como mostrar as variações das figuras que
nhecimento crença, deleite, etc. Embora compõem a série de leituras do autor Francis-
os textos também ofereçam indícios va- co Vianna. Por fim, as considerações acerca do
liosos, imagens constituem-se no melhor que foi apresentado, levando em consideração
guia para o poder de representações vi- possibilidades de pesquisa no âmbito da histó-
suais nas vidas religiosa e política de cul- ria da literatura infantil brasileira.
turas passadas. (BURKE, 2017 p. 24)

Compreendeu-se por meio do prefácio Ilustrações para a


que essas gravuras foram elaboradas e inseridas modelação da infância: a
nas obras para alguma finalidade ideológica, de
cunho educativo, político ou religioso. Outro representação dos infantes
ponto é a origem dessas, logo que, na maioria na Série Leituras Infantis
das gravuras presentes em livros didáticos bra-
sileiros do final do século XIX e início do XX De acordo com a análise de Hunt (2010)
são de origem francesa. O próprio autor asse- sobre a obra de Nicholas Tucker What is a child?
gura no prefácio do Terceiro Livro de Leituras In- (O que é uma criança?), a ideia de criança está
fantis (1917) a utilização dessas representações intimamente ligada à cultura. Para o autor, exis-
imagéticas para composição final de sua série: tem elementos que definem a fase anterior à da
puberdade e a do adulto, como: receptividade
Procurando corresponder ao favorável cultural, brincadeiras, constrangimentos fisio-
acolhimento que esta serie tem mereci- lógicos, formar laços emocionais com pessoas
do, resolvi, de acordo com os seus dig- de maior idade, imaturidade sexual, dificulda-
nos e esforçados editores, com grande de de abstração, muita facilidade de percepção
sacrifício de parte a parte, ir illustral-a imediata e pouca concentração, apesar de se
na Europa, estereotypando-a também, adaptarem com maior facilidade em relação ao
afim de evitar os erros typographicos, adulto, vão agir de forma diferenciada em situa-
tão inconvenientes nos livros escolares ções medo, morte, perspectivas, egocentrismos
infantis. (VIANNA, 1917, p. VI) e causalidade, quando são relacionadas com os
“estágios de desenvolvimento cognitivo”7:
A escolha do autor e da editora Fran-
cisco Alves6 em realizarem a produção dos livros Sendo assim, considera-se a criança como
fora do Brasil era muito usual, pois de acordo uma fase específica da vida humana que é
Valdez (2006) “mesmo arcando com o preço definida por postulados gerais da “incom-
do frete transatlântico, o produto europeu era pletude” das capacidades, essas a serem
mais barato e de melhor qualidade” (p.209). ensinadas no seu percurso de amadureci-
Dessa maneira, a análise foi de forma caute- mento. Dessa maneira, a presente categoria
losa, considerando a escolha dos editores em criança especifica o período de vida que a
utilizá-las e a intencionalidade dos sujeitos na pesquisa toma como referência, conside-
utilização de imagens como complemento ou rando o processo de formação do indivíduo
parte principal das historietas. que envolve a escola e a família como esfe-
Dessa forma, com a finalidade de apre- ras principais. (PAULINO, 2019, p. 138)
sentar as ilustrações e compreender a repre-
sentação de infância presentes nos livros, o Dessa forma, compreender acerca do
presente artigo está estruturado em dois itens: “ser criança” está relacionada a lidar com uma

6
Para Razzini (2014), a Livraria Francisco Alves, anteriormente chamada de Livraria Clássica de Alves & Companhia,
foi fundada no ano de 1854 pelo Português Nicolau Alves, no Rio de Janeiro. Sempre voltada para produções de cunho
educacional, tornou-se mais presente no âmbito do ensino primário após o seu sobrinho, Francisco Alves de Oliveira,
ter assumido a direção da casa editora. De acordo com Abreu (2010, p. 112), a expansão da casa editora deu-se entre
1894 e 1917, com a inauguração de uma filial na cidade de São Paulo, “dos 264 títulos didáticos lançados nesse período,
72 obras eram de autores que atuavam no ensino público de São Paulo. Entre estes, destacam-se 44 livros de leitura [...]”
7
A análise de Hunt (2010) identifica referências aos postulados da psicologia infantil de Jean Piaget, voltadas para
hierarquização dos estágios do desenvolvimento cognitivo da criança.

32
fase específica da idade. Portanto, assuntos e citados, a história é importante para a com-
a sua forma de apresentação ao mundo deve- preensão sobre as infâncias:
rão “[...] ter um maior controle, ou seja, sofrer
maiores “censuras” temáticas e conter uma Não existe, a bem dizer, uma infância.
simplicidade no conteúdo com o qual os in- Existem várias experiências humanas que
divíduos nessa fase têm contato” (PAULINO, modelam a criança dentro de limites cro-
2019, p. 138). Portanto, nas obras de Francisco nológicos determinados. A esses períodos
Vianna observa-se um processo de simplifica- que desenham a pessoa da criança ou a
ção dos temas abordados nos primeiros livros criança como pessoa sobrepõem-se as alte-
(Leitura preparatória, Cartilha: Leituras Infantis; ridades dos tempos sociais que delimitam
Primeiros passos na leitura) ocorrendo, assim, o território onde cada um se faz. (FARIA
uma maior diversidade e complexidade de as- FILHO & FERNANDES, 2007, p. 8)
suntos decorrente do amadurecimento dessas
crianças leitoras, o que caracteriza a seriação Quanto à presença de materiais esco-
dos livros do autor. Sendo assim, consideran- lares específicos para a infância, a produção de
do a quantidade de anos do ensino primário livros didáticos no Brasil sofreu forte expansão
do período com as crianças representadas nas no decorrer da segunda metade do século XIX,
obras de Francisco Vianna, identifica-se que com livros seguindo os formatos europeus,
elas se enquadram na idade entre 7 e 13 anos de considerando a vinda de livreiros-editores aos
idade, caso seja considerado o último ano do países com suas maquinarias e estilos de produ-
ensino primário aos alunos entre 13 e 14 anos. ção (BITTENCOURT, 2016). Enquanto alguns
Compreender o conceito de crian- livreiros-editores investiram em suas lojas no
ça como uma fase psicológica e biológica Brasil, houve também um movimento de auto-
específica e de menor amadurecimento em res de obras didáticas em realizar a editoração
comparação à vida adulta, define-se, assim, diretamente em países europeus, dentre esses
o termo infância como um constructo social autores, insere-se Francisco Vianna que passou
e histórico do “ser criança”. Para Sarmento 6 meses na Europa para realizar a reedição e
(2005), são conferidos diferentes lugares so- a impressão de seus livros com fins de obter
ciais com bases normativas e ideológicas so- uma melhor qualidade de material. A escolha
bre o lugar da criança em determinadas so- de viajar à Europa para produzirem suas obras
ciedade e em momentos diversos: era algo muito comum, logo que, a melhor qua-
lidade da impressão possibilita a “[...] a inclusão
[...] está, por consequência, num processo das ilustrações, constituindo outra maneira de
contínuo de mudança, não apenas pela criar formas de leitura específicas e estas eram
entrada e saída dos seus actores concre- moldadas segundo padrão externo” (p. 121).
tos, mas por efeito conjugado das acções Um atributo presente em todas as
internas e externas dos factores que a obras do autor é a intima relação entre as fo-
constroem e das dimensões de que se tografias/gravuras com as narrativas propostas,
compõe. (SARMENTO, 2005, p. 366) pois estão preocupadas em retratar fielmente
ao que está escrito, ou seja, figuras que envol-
Essa definição nega a visão abstrata vem o cotidiano infantil, diferenciando-se de
de infância como universal e única, logo que, narrativas de cunho fantasioso. Na primeira
leva em consideração os fatores como gêne- figura, é possível identificar que, no Primeiro
ro, classe, raça, etnia, instituições e outros Livro há uma maior presença de fotografias,
estatutos que fornecem diferentes ideais de porém, no Segundo Livro e no Terceiro Livro há
infância. Portanto, assim como esses fatores uma maior quantidade gravuras.

33
Figura 1 | Fotografias da obra “Primeiro Livro de Leituras Infantis”

Fotografias da 9ª edição do Primeiro Livro de Leituras Infantis (1911a)


Fonte: Biblioteca Nacional de Maestros — BNM

Figura 2 | Gravuras da obra “Segundo Livro de Leituras Infantis”

Gravuras da 5ª edição do Segundo Livro de Leituras Infantis (1911b)


Fonte: Biblioteca Nacional de Maestros — BNM

Apesar da autoria das ilustrações casa-editora. Além de uma vestimenta mais


terem referências europeias, existem algu- característica a um país tropical, constata-se
mas que apresentam “indícios” de que foram que algumas delas possuem referências diretas
criadas (ou alteradas) especificamente para à língua portuguesa, enfatizando a necessida-
autores brasileiros, ou cridas a pedido da de de apresentar um caráter mais nacional.

34
Figura 3 - Gravuras do “Terceiro Livro de Leituras Infantis”
Figura 3 | Gravuras do “Terceiro Livro de Leituras Infantis”

Gravuras da obra Terceiro Livro de Leituras Infantis, 21ª edição publicada em 1917.
Gravuras da obra Terceiro Livro de Leituras Infantis, 21ª edição publicada em 1917.
Fonte: Biblioteca Nacional de Maestros – BNM.
Fonte: Biblioteca Nacional de Maestros — BNM

Quanto à ambientação das ilustrações/fotografias, há uma complexificação gradual


de lugares que ocorrem as tramas. Nas obras Cartilhas e Primeiros Passos na Leitura
Quanto à ambientação das ilustra- ções à escola, tanto a historieta quanto as
identifica-sehácom
ções/fotografias, umamaior regularidade
complexificação imagens
gra- de casas não
ilustrações ou áreas abertas ae rotina
mencionam campestres,
escolarcom
dual de lugares que ocorrem as tramas. Nas ou a inserção direta da criança na escola. No
obraspersonagens
Cartilhas e estritamente
Primeiros Passosdo âmbito familiar tocante
na Leitura e muito poucos personagens
ao trabalho, desconhecidos,
há algumas ilustraçõesnão
identifica-se com maior
há narrativas regularidade
na cidade, imagensescolar,
ou no ambiente queapesar
já indicam
de ter aamenção
presençanosdetextos
garotas reali-
das crianças
de casas ou áreas abertas e campestres, com zando trabalhos domésticos remunerados.
seguindo
personagens paraa escola.
estritamente do âmbito familiar A partir do Primeiro Livro de Leituras,
e muito poucos personagens desconhecidos, há uma maior diversificação dos personagens,
Na na
não há narrativas obra Leitura
cidade, ambiente hásendo
Preparatória
ou no uma quepequena
algumas diversificação
tramas possuem de aespaços
presençaem
escolar, apesar
relação às de ter a menção
cartilhas, nos textos edas
com narrativas imagensdosrepresentando
adultos como opersonagens principais,
ambiente familiar nasnão
ruas,
crianças seguindo para a escola. como antagonistas ou coadjuvantes das tramas
Na no
tanto obra Leitura
campo na cidade.háTambém
Preparatória
quanto uma há infantis. O ambiente da
uma diversificação escola e do trabalho
de personagens, saindo do
pequena diversificação de espaços em relação são incorporados diretamente nas tramas e nas
ambiente
às cartilhas, comfamiliar com eoimagens
narrativas surgimento de pessoas
repre- desconhecidas
ilustrações, aos personagens
comprovando principais.
a complexificação
sentando o ambiente familiar nas ruas, tanto das relações sociais que a criança faz parte, ou
Alémquanto
no campo das crianças, estão
na cidade. tambémhápresentes
Também uma como personagens
seja, entre 7 e 8 anos principais
há temasoscomanimais. Apesar
a presença
diversificação
de existirdeduas
personagens,
narrativassaindo do am- à escola,
com menções constante da família
tanto e ambientes
a historieta quantocalmos como a
as ilustrações
biente familiar com o surgimento de pessoas casa e o campo, passando a incorporar nas obras
não mencionam
desconhecidas a rotina escolar
aos personagens ou a inserção
principais. diretaosdatios,
seguintes criança na escola.
os vizinhos, No tocantee ao
desconhecidos
Além das crianças, estão também presentes espaços mais agitados como a escola, a cidade e
comotrabalho, há algumas
personagens ilustrações
principais que já indicam
os animais. a presença
o ambiente de garotas
de trabalho, para realizando
as obras quetrabalhos
aten-
Apesar de existir duas narrativas com men- dem as crianças entre 10 e 14 anos de idade.
domésticos remunerados.
A partir do Primeiro Livro de Leituras, há uma maior diversificação dos
personagens, sendo que algumas tramas possuem a presença dos adultos como personagens

39

35
como a escola, a cidade e o ambiente de trabalho, para as obras que atendem as crianças entre
10 e 14 anos de idade.

Figura 4 - Gravura do “Segundo Livro de Leituras Infantis”


Figura 4 | Gravura do “Segundo Livro de Leituras Infantis”

Gravuras da 5ª edição do Segundo Livro de Leituras Infantis (1911b)


Gravuras da 5ª edição do Segundo Livro de Leituras Infantis (1911b)
Fonte: Biblioteca Nacional de Maestros – BNM
Fonte: Biblioteca Nacional de Maestros — BNM

Apesar de existirem ambientes como a escola e o trabalho, que antecipadamente


Apesar de existirem ambientes como percepções sobre o social e sobre o controle
apromovem
escola e ouma preconcepção
trabalho, de diminuição das
que antecipadamente dosbrincadeiras, as tramas que envolvem o
instintos construtores.
promovem uma preconcepção
brincar perpassam sobre todos de diminuição
os livros Quanto
da série do autor, tanto à sua defesa
individuais sobre
quanto temáticas
em pares ou
das brincadeiras, as tramas que envolvem o voltadas para a infância, foi possível com-
grupos, perpassam
brincar ressaltandosobre
o ideal que os
todos o autor
livrostem sobre a preender
da sé- infância, que é uma fase
a tentativa específica
do autor em seque deve
destacar
rie do autor, tanto individuais quanto em pa- no campo de obras didáticas. Com gravuras e
ser ou
res explorada
grupos, entre as brincadeiras
ressaltando o ideal quee as suas rotinas
o autor familiares
tramas e escolares. o cotidiano infantil,
que representam
tem sobre a infância, que é uma fase específica com referências aos objetos, brincadeiras, rela-
que deve ser explorada entre as brincadeiras e ções com outros indivíduos e vestuários, com a
as suas rotinas familiares
CONSIDERAÇÕES e escolares.
FINAIS presença do campo ou da cidade.
A presença de gravuras com palavras
Considerações finais da língua portuguesa também indica a pro-
cura por parte dos editores (ou do autor) em
OOinício
iníciodo
doséculo
séculoXXXXfoifoiumum período profícuo
período para produção
trazer uma concepçãodedemateriais escolaresàs
cunho nacional
profícuo
voltadospara
paraprodução de materiais
a infância, escola- deobras,
com a finalidade criar em
umaum período das
percepção social e político em
necessidades a
res voltados para a infância, com a finalida- que a Pátria é valorizada.
dedeterminada
de criar umafase da vida.das
percepção Dentre diferentes
necessidades a obras didáticas publicadas, insere-se a série de
determinada fase da vida. Dentre diferentes
Leituras
obras Infantis,
didáticas do autor Francisco
publicadas, insere-se aFurtado
série Mendes Vianna. A série é composta por uma
de Leituras Infantis, do autor Francisco Fur- Referências
estrutura
tado Mendes deVianna.
pequenas narrativas,
A série é compostacompor a presença de imagens para ajudar o aluno na
uma estrutura de pequenas narrativas, com a ABREU, B. Impresso no Brasil: dois sécu-
presença de imagens para ajudar o aluno na los de livros brasileiros. São Paulo: Editora 40
“observação” dos acontecimentos. Retrata- Unesp, 2010.
das por meio de assuntos do cotidiano e re-
lacionadas aos assuntos da realidade infantil, BITTENCOURT. C. História dos livros esco-
as temáticas envolvem relações entre pares, lares no Brasil: produção e circulação. In: CAS-
com familiares, com as brincadeiras, com a TELLANOS, S. L. V; CASTRO, C. A (orgs.).
escola e com o trabalho, mas sempre tendo Livros, Leitura e Leitor: perspectiva histórica.
por base valores morais. São Luís: EDUFMA, 2016.
Identificou-se nessas obras que o pú-
blico-alvo foram crianças que cursavam o en- BOTO, C. Aprender a ler entre cartilhas: civili-
sino primário, ou seja, crianças entre 7 e 14 dade, civilização e civismo pelas lentes do livro
anos. Entretanto, observou-se nas tramas que didático. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30,
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37
CONSERVADORISMO DE MANUAIS
DIDÁTICOS ESCOLARES NO CONTEXTO
DA VULNERABILIDADE INFANTIL

Edmar Moreira Alves8 Resumo: Dentre os elementos que


constituem e explicam as formações social e
cultural da sociedade e do Estado brasileiros,
estão perspectivas conservadoras que orientam
a elaboração de finalidades educativas esco-
lares. Tais perspectivas entendem crianças e
adolescentes em vulnerabilidade como sujeitos
históricos marcados pelo estado de exceção e
incidem na elaboração de finalidades educati-
vas a partir desse ponto de vista. Nesse sentido,
este artigo tem como objetivo identificar con-
cepções historiográficas conservadoras de fina-
lidades educativas escolares e investigar como
elas são aplicadas no manual didático O ensino
prático de Aritmética, de Otto Bucle, de 1924. A
necessidade de atuar na superação de formas de
violência multifatoriais que atingem a infância
e a adolescência em estado de vulnerabilidade
justificam a relevância deste estudo. Para con-
textualizar esta pesquisa, recorreu-se ao apor-
te histórico e bibliográfico de autores como
Bitencourt (1993), Soares (1996), Mu Nakata
(1997) e Batista (1998), que abordam a história
inicial do livro didático no Brasil. O recorte
espaço-temporal escolhido foi: áreas coloniais
da região Sul do Brasil a partir da Nova Repú-
blica. As instituições estudadas: escolas teuto-
-brasileiras. A discussão realizada no artigo se
ampara também no resultado de um estudo de
caso realizado ao longo do 2º semestre de 2019
dentro do PPGE da PUC Goiás. O estudo con-
8
Mestrando em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás — PUC Goiás.

38
sistiu na aplicação de questionários a líderes com a formação social da qual emerge. Esse
comunitários religiosos, cujo tema foi a formu- sistema costuma associar-se também à ideolo-
lação de finalidades educativas escolares diante gia de mercado capitalista, que envolve desde
de interesses ideológicos, políticos e culturais a defesa da mercantilização até o combate ao
e sua relação com a elaboração de políticas avanço dos direitos humanos.
educacionais e com o uso do livro didático por A matriz ideológica do conservado-
crianças e adolescentes. Ao final da discussão, rismo tem, reconhecidamente, sua gênese no
foi possível concluir que: a) a narrativa de inte- pensamento de Edmund Burke (1729-1797) e na
gração à população local e aos processos sociais tradição fundada por ele, cujas ideias conferem
que perpassaram a escola teuto-brasileira sim- conteúdo às várias expressões do conservadoris-
bolizam representações coletivas da sociedade mo no cotidiano. Outros autores como Joseph
brasileira em suas diferentes mentalidades, de Maistre (1753-1821), Klemens Von Metterni-
valores, expressões, concretizações simbólicas, ch (1773-1859), Benjamim Disraeli (1804-1881)
práticas e representações; b) o manual didáti- e Alexis de Tocqueville (1805-1859) trataram
co O ensino prático de Aritmética (1924), de Otto igualmente dessa concepção. A propósito de seu
Büchler, não foi apenas um simples espelho da surgimento, Ferreira e Botelho (2010, p. 11-12) si-
realidade, mas proporcionou caminhos ao im- tuam o conservadorismo como um movimento
plementar finalidades educativas direcionadas de retomada de valores desencadeado por trans-
às novas gerações; c) essas finalidades refletem formações sociais do século XVIII:
interesses conservadores hegemônicos, sus-
tentados por organizações internacionais de O pensamento conservador surge e se
cunho neoliberal; d) existe uma forte relação desenvolve no contexto da moderna so-
entre as intencionalidades dessas organizações ciedade de classes, marcado por seu di-
e as confissões religiosas; e) as narrativas pre- namismo, por suas múltiplas e sucessivas
sentes nos manuais didáticos incidem sobre transições; como função dessa sociedade,
a conceituação das finalidades educativas do não é um sistema fechado e pronto, mas
sistema escolar e a formulação de valores em sim um modo de pensar em contínuo pro-
relação à educação religiosa nas escolas. cesso de desenvolvimento [...] Estruturado
como reação ao Iluminismo e às grandes
Palavras-chave: Conservadorismo. Fi- transformações impostas pela Revolução
nalidades Educativas. Manual Didático. Vulne- Francesa e pela Revolução Industrial, o
rabilidade Infantil. conservadorismo valoriza formas de vida
e de organização social passadas, cujas raí-
zes se situam na Idade Média.

Introdução Essa concepção reverbera na forma-


ção de finalidades educativas ao longo do sé-
A imprensa pedagógica, em espe- culo seguinte. Moll Neto (2010) apresenta uma
cial os manuais didáticos, foram longamen- corrente formada por neoconservadores, por
te usados como veículos de continuidades e ele chamada finalidades educativas neoconserva-
descontinuidades para circulação de ideias. doras religiosas e morais, que cresceu na década
Essas concepções, segundo aponta Chartier de 1970. O que esse autor denomina neoconser-
(1990), traduziram valores e comportamentos vador é tratado por Apple (2003) como fina-
morais, amparados por um viés religioso, que lidades educativas populistas autoritárias. Tais
o Estado Republicano e as escolas comunitá- concepções serão expostas a seguir.
rias teuto-brasileiras desejavam transmitir a As finalidades educativas, conforme o
partir da Nova República Brasileira. Sobre o pensamento de Lenoir et al. (2016), são defini-
assunto, Monarcha (2009, p. 16) afirma que as das como princípios que indicam a orientação
“vozes dos sujeitos da época pedem para se- geral da filosofia, das concepções e dos valores
rem ouvidas e meditadas”. que fundamentam a organização do sistema
Nas instituições de produção de co- educativo, expressando ideais sobre os quais
nhecimento, principalmente na educação uma sociedade é consolidada. Segundo os au-
pública, ora o neoliberalismo é considerado tores, as finalidades educativas orientam os
um amortizador do conservadorismo, ora os processos educacionais e condicionam as ações
dois termos são tomados como sinônimos. O do presente e futuro dos sistemas escolares. Os
conservadorismo tem uma trajetória históri- autores também distinguem as noções de ob-
ca de proposta teórico-política própria, que jetivos e funções escolares, referindo objetivos a
adquire características particulares de acordo resultados precisos e verificáveis, para os quais

39
ações programadas e coerentes são requeridas, A discussão sobre as políticas educacio-
e funções às finalidades atribuídas a institui- nais e curriculares é inseparável da ques-
ções sociais. No caso da instituição escolar, es- tão das finalidades e objetivos da educa-
sas funções dizem respeito a papéis de diversos ção escolar, uma vez que sua definição
tipos que lhes são atribuídos e pelos quais ela antecede e norteia decisões sobre objeti-
se responsabiliza, daí a relevância do estudo vos de formação dos alunos, orientações
das finalidades educativas escolares: curriculares, formas de organização e
gestão das escolas, ações de ensino-apren-
[...] as finalidades educativas são indicado- dizagem, diretrizes de formação de pro-
res poderosos para identificar as orienta- fessores, políticas de avaliação externa e
ções tanto explícitas quanto implícitas dos formas de avaliação das aprendizagens es-
sistemas escolares e as funções teóricas, de colares. A definição de finalidades e obje-
sentido e de valor que elas carregam, as- tivos estabelece, também, referências para
sim como as modalidades esperadas nos formulação de critérios de qualidade da
planos empíricos e operacionais dentro educação que, por sua vez, orientam po-
das práticas de ensino-aprendizagem. (LE- líticas educacionais e diretrizes curricula-
NOIR et al., 2016, p. 2) res, as quais incidem diretamente sobre o
trabalho das escolas e dos professores.
Evangelista e Shiroma (2006) sinali-
zam a significativa influência dos organismos É realçada, assim, a intencionalidade
internacionais na definição de finalidades edu- das políticas educacionais que, atualmente, fi-
cativas. Esses organismos privilegiam determi- liam-se a interesses econômicos e mercadológi-
nados propósitos (em detrimento de outros), cos de determinados grupos sociais (SAVIANI,
como justiça, equidade, coesão, inclusão e res- 1997) — posição afim a estudos recentes levados
ponsabilidade social, introduzindo nas políti- a efeito no Estado de Goiás, que mostraram
cas educativas e sociais um viés aparentemente como o poder público estabelece finalidades
humanitário, mas que, na verdade, expressa educativas para as escolas em correspondência
uma dimensão economicista. As autoras apon- com intenções institucionais.
tam, ainda, a lógica das políticas de alívio à po- O manual didático O Ensino Prático
breza instituídas por essas organizações, cuja de Aritmética9, de autoria de Otto Büchler10,
intencionalidade é minimizar os efeitos dele- foi escrito originalmente em língua alemã
térios da competição no mercado globalizado: para ser utilizado nas escolas teuto-brasilei-
ras. O primeiro caderno, de um total de qua-
A pobreza adquiriu uma nova centralida- tro, é o objeto deste estudo. Formado por 65
de no discurso quando o Banco Mundial páginas, aborda as quatro operações básicas,
difundiu seu informe em 1990, no qual se seriadas por numerais de 1 a 100. A editora
alertava para a necessidade de promover o Verlag Rotermund & Co tinha como pro-
uso produtivo do discurso mais abundante prietário o Sr. Rotermund, pastor da igreja
dos pobres, o trabalho. O melhor caminho luterana e editor geral da igreja reformada
aventado para aumentar tal recurso era o do sul do país no século XIX. De 1917 a 1938,
investimento em educação. (EVANGE- a editora providenciou a elaboração do livro
LISTA; SHIROMA, 2006, p. 5) didático em português, com distribuição
gratuita a todos os professores.
Libâneo (2019, p. 12) chama a aten- O estudo desse manual faz parte da
ção para a estreita relação entre finalidades linha de pesquisa História e Historiografia da
educativas escolares e políticas educacionais, Educação Brasileira e, como tal, rege-se pela
argumentando: ciência da História, que busca descobrir o
que do passado compõe o presente. Assim,
9
O Ensino Prático de Aritmética (no original: Praktische Rechenschule in vier Heften für deutsche Schulen in Brasiliens)
consiste em quatro cadernos elaborados para as escolas alemãs no Brasil. O manual foi doado pelo historiador do Con-
testado Nilson Thomé ao Museu Histórico e Antropológico do qual é diretor. Foi utilizado no final da década de 1920
em uma escola comunitária de Barro, Erechim, atualmente Gaurama (RS), pelo professor Nilo Henrique Thomé e, na
década de 1930, em Videira (SC), quando o professor se transferiu para o Vale do Rio do Peixe. Deixou de ser utilizado
quando ocorreu a nacionalização compulsória do ensino em 1938. O professor Nilo Henrique Thomé, natural de Mon-
tenegro (RS), nasceu em 1918, filho de pai e mãe alemães.
10
Otto Büchler foi um agente cultural germânico que fez circular, por meio dos livros didáticos editados no Brasil e de
artigos publicados na revista pedagógica intitulada Jornal Geral do Professor para o Rio Grande do Sul, ideias sobre o ensino
da matemática oriunda da Europa. Foi fomentador dos princípios do método intuitivo sobre o ensino da matemática.

40
procura-se compreender como podemos re- tantes, visando modelar comportamentos dos
lacionar o conteúdo e a forma do manual em pequenos leitores e de seus familiares. Segun-
questão a aspectos históricos e, especifica- do Chartier e Hébrad (1990), os professores
mente, ao ensino contemporâneo, sabendo anunciavam-se voluntários e porta-vozes de
mediá-los com os momentos diferenciados uma doutrina e as modificavam à sua maneira.
da produção da vida material. Os instrumentos ideológicos doutrinários que
Elegemos uma época: a Nova Repú- empregavam foram aplicados também ao livro
blica. Um lugar: áreas coloniais da região sul. didático utilizado em sala de aula na forma de
Uma instituição: escolas teuto-brasileiras11. A práticas escolares. Uma das muitas determina-
demarcação temporal de 1889 a 1933 não deve ções sociais significativas do manual tem sua
ser entendida com rigidez, uma vez que os an- origem na inspiração pedagógica exercida pe-
tecedentes editoriais e o uso dos manuais di- los professores teuto-brasileiros e professores
dáticos pelas escolas teuto-brasileiras precisam brasileiros quando foi feita a tradução do ma-
ser considerados inseridos em um processo len- terial para o português, reelaborando-o, espe-
to, que envolveu mais de trinta de anos. Inves- cificamente com as sugestões e críticas mani-
tigaremos vozes do passado, daqueles que nos festas nos encontros municipais e regionais das
ajudaram a entender melhor essa história. Assembleias de Professores Teuto-brasileiros.
Atendendo à orientação social das Nesse contexto, a questão escolar e cur-
famílias, o manual dispunha do ensino das ricular foi estruturada pelas igrejas como assun-
operações básicas em sintonia com as circuns- to de interesse comum. Essa dinâmica de inte-
tâncias concretas da vida das aldeias e vilas. A rações comunitárias tinha por objetivo a defesa
preocupação do ensino se centrava em partir da religião contra o liberalismo e nacionalismo
da realidade do aluno e formar um indivíduo dos Brummer e do influente jornalista Koseritz12
com capacidade de atuar diante das exigên- e, posteriormente, contra o Estado, que defen-
cias da sociedade. Assim, o aluno poderia, por dia o ensino público e laico.
exemplo, construir o significado do número Percebe-se que o manual pretendia se-
natural, com base em sua experiência e utilizar guir os progressos dos tempos novos e empe-
os dedos da mão, os minutos de caminhada de nhava-se em utilizar um método que fosse prá-
casa à escola, o número de colegas na sala etc, tico e prazeroso, a fim de ensinar as operações
para embasar seus estudos teóricos. de cálculo para o cidadão de forma simples e
Por vezes, os editores procuravam como devia ser (BÜCHLER, 1918, prefácio da
cumprir funções sociais ao fazer uso da cole- 1ª ed). O fim das escolas de língua alemã, decre-
ção do manual didático de aritmética da edi- tado em 1938, e o fim da vida do manual, mar-
tora mencionada. A escola teuto-brasileira, caram o início da volta do ensino tradicional
igualmente, fazia uso da coleção do manual nas escolas comunitárias, fundamentado no
didático com o propósito de manter as crian- método de perguntas e respostas.
ças inseridas na prática moral e religiosa, pro- Os embates que levaram ao fim das
movendo reflexões sobre atitudes simbólicas escolas refletem a configuração social bra-
e ideológicas. Em 1924, ao ser publicada a 6ª sileira do início do século XIX. Confor-
edição do manual com cinco mil unidades, me apontou o naturalista francês Auguste
havia 850 escolas comunitárias teuto-brasilei- Saint-Hilaire, ao tratar das diferentes de-
ras; delas, 348 eram católicas, 390 evangélicas marcações nacionalistas no Estado — tra-
e 112 mistas. Em 1933, ano da última edição, balhadores, partidos políticos, grupos revo-
havia 1.041 escolas. Em 1938, ao se iniciar o lucionários no Império, na República, no
processo de nacionalização compulsória do Estado Novo e na Ditadura —, nesse período,
ensino, existiam 1.580 escolas comunitárias. existia um país chamado Brasil, mas não era
Essas escolas quase sempre adotavam possível notar a presença de brasileiros.
personagens associados ao universo infantil Os atritos entre luso e teuto-brasilei-
e à imaginação das crianças, aliados a ensina- ros já vinham acontecendo há muito tempo,
mentos bíblicos transcritos e interpretados em disputas por território e hegemonia polí-
de acordo com os princípios morais protes- tica. Com a declaração de guerra entre o Bra-

11
A expressão escola teuto-brasileira é utilizada quando faz referência a instituições escolares, surgidas nas zonas de
colonização alemã onde o uso do idioma germânico era predominante. Comumente, essas escolas eram chamadas de
escolas alemãs. Nesta tese, ambos os termos serão utilizados indistintamente.
12
Carlos Von Koseritz (7 de junho de 1830 — Porto Alegre, 30 de maio de 1890) foi um professor, folclorista, empresário,
político, jornalista e escritor teuto-brasileiro. Considerado versátil, erudito e ativo jornalista do século XIX no estado
do Rio Grande do Sul, exerceu larga influência em sua época.

41
sil e a Alemanha, ocorreu uma intensa pro- início do século, chama de perigo alemão, isto
paganda ideológica na imprensa catarinense e é, a separação dos três estados do sul do Brasil
de lideranças políticas e intelectuais da época, com o apoio da Alemanha.
que concebiam a diversidade étnica, cultural A nacionalização do ensino foi um
e lingüística dos teuto-brasileiros como trai- fato marcante na educação brasileira, prin-
ção à pátria, além de os considerem quinta cipalmente para as escolas teuto-brasileiras;
coluna, estabelecendo uma relação imediata muitas escolas foram fechadas e outras preci-
entre eles e o partido nazista. saram se adaptar a uma nova legislação. Vá-
A análise da produção acadêmica rias disciplinas foram objeto de adaptações
que trata da vulnerabilidade infantil no Bra- da lei, as aulas não poderiam mais ser mi-
sil permite por um lado identificar lacunas nistradas no idioma nativo dos professores,
e desdobramentos de temas já consolidados assim como livros didáticos escritos em idio-
e, por outro, a tendência de desenvolvimen- ma estrangeiro não foram mais permitidos.
to de novos temas. Nos primeiros estudos de Dentre as diversas ações nacionalistas
Azevedo e Guerra (1987), Prado e Oliveira na história brasileira, destaca-se o aparelha-
(1981), Santos (2008) e Lorezi (1985), verifi- mento do sistema educacional, norteado por
ca-se forte teor de denúncia, em alguns casos princípios de renovação pedagógica, reestrutu-
vinculados ao movimento feminista na sua ração técnica e administrativa das Secretarias
vertente de luta contra a violência infantil, de Educação dos Estados, a expansão da rede
como em Bitencourt (1993), Soares (1996), escolar e a racionalização do trabalho pedagó-
Munakata (1997) e Batista (1998). gico. Nesse contexto, as finalidades educacio-
Em uma direção distinta, os traba- nais escolares nacionalistas foram mediadas
lhos de Campos (1984), abordam os desdo- por ações preventivas e repressivas.
bramentos da vulnerabilidade infantil na Schaden (1963) distingue três das múl-
força de trabalho entre famílias agricultoras. tiplas formas dessa instituição escolar. Em pri-
Já Ribeiro (1982) e Paulilo (1987) retratam meiro lugar, identifica escolas alemãs propria-
como a relação entre a escolarização e o tra- mente ditas, surgidas sobretudo em núcleos
balho infantil no meio rural alteram as con- urbanos e mantidas, em sua maioria, por socie-
cepções da criança/infância no âmbito da dades escolares; em segundo lugar, escolas co-
família e do trabalho familiar. munitárias ou coloniais, características das zo-
Em termos nacionais, os tempos novos nas de fraca densidade demográfica, e, por fim,
referem-se às inovações das práticas escolares escolas mantidas por congregações religiosas.
por meio de livros didáticos, que exigiam um A campanha de nacionalização das es-
ensino ativo e se tornavam instrumentos efi- colas étnicas do sul do país, sobretudo nos Es-
cientes para atender a muitos alunos em sala tados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul
unidocente. As escolas comunitárias confessio- é destacada por Kreutz (2011) como ferramenta
nais haviam avançado na produção de manuais, em disputa de afirmação identitária por meio
na capacitação docente e na expansão escolar. do ensino das línguas de origem dos imigran-
Na concepção de Magalhães (1993, p. tes e, ao mesmo tempo, como alvo privilegia-
132), a influência ideológica e sistemática viria do das políticas de nacionalização educacional
da Verein für das Deutschtum im Ausland — Liga por meio do ensino da língua portuguesa nas
da Germanidade no Exterior —, que: escolas coloniais comunitárias das comunida-
des étnicas alemã, italiana, polonesa, japonesa
auxiliava às (sic) escolas particulares de e judaica do Rio Grande do Sul.
língua alemã, preparava as crianças e os Para os nacionalistas, a consciência
jovens para o pangermanismo do futu- nacional foi exacerbada em alguns segmentos
ro. Financiava construções, doava equi- políticos, gerando ou conduzindo à pretensa
pamentos e livros didáticos e enviava pureza de raças inferiores, que necessitariam
professores formados na Alemanha para ser civilizadas. A visão etnocentrista de povos
se integrarem no quadro docente. Sob o civilizados, e, portanto, superiores, e povos
lema “Gedenke, dass du ein Deutscher bist” não-civilizados, inferiores, também vigorava
— “Lembra-te que és um alemão” — patro- na Alemanha, apesar da tardia unificação e da
cinava ainda os estudos de alguns teuto- impossibilidade de se ter lançado à coloniza-
-brasileiros no seu país. ção. Os negros e índios eram considerados ra-
ças inferiores e primitivas por não preservarem
A partir dessas publicações, surgiu sua cultura ou apresentarem uma cultura não
a preocupação brasileira quanto aos efeitos suficientemente desenvolvida quando conside-
simbólicos daquilo que Romero (1906), no rada sob uma perspectiva eurocêntrica.

42
A nacionalização do ensino foi, en- sua história, em sua conjuntura contemporâ-
tão, um marco e uma ruptura nas escolas dos nea, principalmente considerando as culturas
imigrantes alemães. Cada escola reagiu à sua religiosa, política e popular.
maneira, tanto que algumas foram fechadas e Já Pinto (2014) considera que a consti-
outras conseguiram se adaptar, mas não sem tuição de uma disciplina é permeada por mo-
resistência, colocando em ação um conjunto mentos de estabilidade e transformação, seja
de táticas que se opõem às estratégias de go- por impacto de reformas educacionais, de reor-
verno. (CERTEAU, 2014) ganização curricular, de alteração do público,
Ao analisar o manual de Otto Büchler, seja por mudanças de métodos e valores carre-
buscou-se destacar as funções socias de práticas gados de ideologias. Entende-se a partir desta
comuns baseadas não em hipóteses, em ideias que pesquisa que o manual didático O ensino prático
a história se repete. A produção da vida material, de Aritmética destaca-se como continuidade e
ao se alterar historicamente quanto aos modos de descontinuidade entre o nacionalismo e as esco-
produção, reorganiza também os métodos de en- las comunitárias teuto-brasileiras e aparece car-
sino. Com base nisso, buscou-se investigar o que regado de linguagens simbólicas e ideológicas.
do passado está contido no presente. Como produto de distintas negocia-
Ao final da discussão, foi possível con- ções entre os grupos que trabalharam em
cluir que: a) a narrativa de integração à po- sua reelaboração, o manual estudado não é
pulação local e aos processos sociais que per- resultado de um processo abstrato, a-histó-
passaram a escola teuto-brasileira simbolizam rico e objetivo, mas se originou a partir de
representações coletivas da sociedade brasilei- opiniões, alianças, conflitos e compromissos
ra em suas diferentes mentalidades, valores, que geraram efeitos individuais, escolares e
expressões, concretizações simbólicas, práticas sociais. Afirmamos com isso que o manual
e representações; b) manual didático O ensino é produto de distintas negociações entre os
prático de Aritmética (1924), de Otto Büchler, grupos intervenientes. Não é resultado de
não foi apenas um simples espelho da reali- um processo abstrato, a-histórico e objetivo,
dade, mas proporcionou caminhos ao imple- mas se originou a partir de opiniões, alian-
mentar finalidades educativas direcionadas às ças, conflitos e compromissos que geraram
novas gerações; c) essas finalidades refletem in- efeitos individuais, escolares e sociais.
teresses conservadores hegemônicos sustenta- O simbolismo moral, ético e piedoso,
dos por organizações internacionais de cunho por meio da linguagem, recai sobre fatos ro-
neoliberal; d) existe uma forte relação entre tineiros, orientando comportamentos cultu-
as intencionalidades dessas organizações e as rais, que norteiam ações sociais. Certo é que as
confissões religiosas; e) as narrativas presentes crenças e os desejos professos podem e devem
nos manuais didáticos incidem sobre a concei- ser vistos como discursos intencionais que se
tuação das finalidades educativas do sistema relacionam com o sociocultural.
escolar e a formulação de valores em relação à Conclui-se que a linguagem ideológica
educação religiosa nas escolas. moral, ética e piedosa não é falsa; ela carrega
Por fim, foi delineada a narrativa de significados com características das expressões
integração à população local e aos processos sagradas e tem direção dupla, ou seja, cami-
sociais que perpassaram a escola teuto-bra- nha do campo sociocultural para o enunciado,
sileira como um conjunto de representações e do enunciado para a cosmovisão pessoal. A
coletivas de uma sociedade em suas diferentes ciência constrói “modelos de”, já as finalidades
mentalidades, valores, expressões, concretiza- educativas religiosas constroem “modelos para”
ções simbólicas, práticas e representações. Para que são fornecidos através da linguagem coti-
isso, evocou-se o pensamento de Burke (2010) diana, favorecendo a cosmovisão, de modo que
a fim de discutir a adaptação, aculturação ou as esferas da vida pessoal, familiar, comunitá-
assimilação desses imigrantes ao novo ambien- ria, moral e política se entrelaçam.
te. Na concepção da abordagem histórica cul-
tural, estabelecendo a compressão das práticas
que constroem o mundo como representação,
recorremos a Chartier (1990).
Segundo Castanho (2006), a história
da educação seguirá sempre preocupada com
o estudo no tempo e no espaço do fenômeno
educativo. Percebemos que a cultura escolar
brasileira jamais poderá ser estudada sem a
análise precisa das relações de cada período de

43
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44
INSTRUMENTOS DA ESCRITA
E A (CON) FORMAÇÃO DA INFÂNCIA
PAULISTANA (1870-1920)

Eduardo Bezerra de Souza13 Resumo: A pesquisa tem como objeto


de estudo a cultura material escolar e o proces-
so de escolarização da infância em São Paulo,
no final do século XIX e início do século XX.
O recorte temporal compreende o período
de instalação dos grupos escolares que intro-
duz por meio da materialidade o projeto de
modernização da escola primária paulistana.
Neste contexto, a escola vai incorporando um
modelo de racionalização pedagógica, marca-
da pelo ensino seriado, classes homogêneas,
adoção do método de ensino intuitivo, distri-
buição do tempo e prescrições para o ensino
da leitura e da escrita. O objetivo é investigar
em que medida os instrumentos utilizados no
gesto de escrever como a caixa de areia, a pe-
dra de ardósia, a pena, a tinta, o lápis, entre
outros materiais contribuíram na (con)forma-
ção de uma concepção de infância paulista-
na no recorte adotado. O estudo, de caráter
explicativo e orientação analítico-descritiva,
sustenta-se nos procedimentos de localização,
recuperação, reunião, seleção e ordenação de
fontes sobre a história da cultura material es-
colar na cidade de São Paulo. As fontes com
base nas quais se pretende construir o objeto
de estudo compõem-se de acervo documental
do âmbito escolar, legislação, requerimentos,
pareceres do governo provincial, relatórios de
Inspetores gerais da Instrução Pública, inven-
tários escolares, notas fiscais de compra e im-
13
Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Paulo — UNIFESP.

45
portação, catálogos e almanaques de fábricas de papel de côr, lustroso para tecer sobre os
de materiais escolares, propagandas de jornais, cartões, como nos tapetes dos índios america-
em especial, o impresso “A Província de São nos e nos ornatos mouros e egípcios. Quando
Paulo”, listas de almoxarifados e objetos foto- dava o cansaço, dez minutos de cântico em
grafados, documentos localizados no acervo aula. Novos estudos. Novo cansaço, os meni-
do APESP- Arquivo Público do Estado de São nos faziam marcha ritmada, em torno da sala,
Paulo e nos arquivos digitais da Biblioteca Di- ao som de palmas da professora, ou com mú-
gital Nacional e do Centro de Referência em sica de piano. No próximo descanso, ginástica
Educação Mario Covas. Utilizam-se três cate- ritmada, dos braços (Jorge AMERICANO,
gorias para o exercício analítico destas fontes: São Paulo naquele tempo I, p. 21-22).
a primeira é a categoria de infância. De acor-
do com Kuhlmann Jr. (1998) a infância é um O trecho acima, extraído da obra do
discurso histórico cuja significação está con- advogado e promotor público, Jorge Ameri-
signada ao seu contexto e as variáveis de con- cano, São Paulo naquele tempo (1895-1915), refe-
texto que o definem. Como segunda categoria re-se a aspectos de uma escola em São Paulo
utiliza-se instrumentos da escrita. Segundo no final do século XIX. Nesta obra, o autor re-
Frade (2014) os instrumentos da escrita são os gistra lembranças de sua infância em crônicas
objetos que constituem gestos e modos de es- que fazem recordar a São Paulo no tempo de
crever de cada tempo, dispositivos que deixam quem viveu a atmosfera de um dia qualquer
marcas inscritas em determinados materiais entre os anos de 1895 e 1915. O relato resgata
ou suportes. Como terceira categoria utiliza- a história de uma infância, em meio a tantas
-se cultura escolar, entendida na concepção de outras infâncias que configuraram o cenário
Julia (2001), como um conjunto de normas que paulista no limiar do século XIX.
definem conhecimentos a ensinar e condutas Conforme sinaliza, Demartini (2001),
a inculcar. Como conclusão preliminar foi ao considerar o contexto da cidade de São Pau-
possível identificar que a materialidade para lo no século XIX, não se pode, pois, falar de
o ensino da escrita configurou importante uma infância genérica, pois
elemento de conformação do campo discipli-
nar da escola a partir da homogeneização dos [..] as infâncias foram muitas: as das crian-
processos para o ensino da escrita nas escolas ças de famílias ricas, filhas de fazendeiros,
primárias paulistanas nos anos finais do século as das crianças filhas de funcionários,
XIX e anos iniciais do século XX. profissionais liberais, comerciantes das
cidades; as das crianças filhas de imigran-
Palavras-chave: Cultura Material Es- tes, operários ou trabalhadores rurais; as
colar. Escolarização. Instrumentos da Escrita. das crianças filhas de famílias negras re-
São Paulo. cém-saídas da escravidão; as das crianças
filhas de pequenos produtores rurais: os
caipiras, caboclos, sitiantes etc. Origens
diversas, experiencias distintas, histórias
Introdução que remetem a questões também diferen-
tes, especialmente no tocante à educação
A escola era bem organizada. Césario Motta, (DEMARTINI, 2001, p. 124).
Caetano de Campos, Miss Brown, norte ame-
ricana que vivera alguns anos no Rio Janeiro, Este estudo se situa no contexto apre-
tinham modernizado o ensino. Os professores sentado pela autora, palco das profundas trans-
amavam a tarefa. Ensinava-se bem. “Carti- formações das primeiras décadas da República e
lhas das mães”, de Arnaldo Barreto, o qual privilegia o espaço social, econômico e político
dirigia, com título de inspetor, a sessão mas- da província de São Paulo, polo industrial em
culina. As sílabas da cartilha eram impressas crescente expansão e desenvolvimento. Neste es-
a vermelho e preto, para destacar: O I-vo, a paço em que se inaugura a fábrica, vemos entrar
a-ve vo-ou? Vo-ou. Vo-vó viu? Viu. Vo-vô viu? em cena, outra história, “a história da infância,
E-va viu. Vi-va vo-vô. Pauzinhos do tamanho percebida através de três discursos: industrial,
de meios-palitos, para aprendizado de somas e operário e médico”. (OSTETTO, 1990, p. 93)
subtrações. Cartões em cores variadas, de for- É a partir deste contexto socioespa-
mas triangulares, poligonais para geometria. cial que este trabalho busca discutir o lugar
Pequenos cubos, cones, pirâmides, cilindros de da infância, considerando a concepção de
madeira para geometria no espaço. Cartões de criança e infância como noções historicamen-
cortes longitudinais paralelos e fitas estreitas te construídas e que vem mudando ao longo

46
do tempo. Neste trabalho nos interessa, mais contribuíram para delinear diferentes visões
especificamente, refletir sobre a infância pau- do que é a infância e qual foi o lugar ocupado
lista no final do século XIX, período em que pela criança ao longo dos diferentes perío-
se dá a difusão mundial da escola moderna, dos e contextos históricos.
a obrigatoriedade e expansão da escola pri- Uma das principais referências que
mária, bem como a visibilidade das primeiras temos sobre este tema é o historiador francês
práticas escolares de ensino e em consequên- Philippe Ariès (1986), cuja produção História
cia, a necessidade de um olhar diferenciado social da criança e da família, considerada uma
para a criança. O artigo persegue o objetivo obra seminal na história da infância, reinou
de refletir em que medida as práticas do en- como referência solitária para a história da
sino da escrita e os utensílios usados no gesto infância ocidental. Nesta obra Ariès (1986),
de escrever contribuíram na (con)formação procura através de uma pesquisa iconográfica
de uma concepção de infância paulistana. traçar um percurso da história social da crian-
Interligadas ao objetivo apresenta- ça no continente europeu e sustenta que até a
do, algumas questões norteiam este trabalho: Idade Média, haveria uma ausência da repre-
Como se desenvolveu a trajetória histórica sentação da vida das crianças em documentos
para a concepção de infância na modernidade? e fontes de registros oficiais.
Em que se constituía o modelo escolar repre- Em sua análise, Ariès (1986, p. 10)
sentado pela escola primária em São Paulo no constata a fragilidade da criança e sua comple-
final do século XIX e início do século XX? Que ta desvalorização, afirmando que “a passagem
relações podemos estabelecer entre o ensino da da criança pela família e pela sociedade era
escrita e a infância no período adotado? muito breve e muito insignificante para que ti-
Para responder a esses questionamen- vesse tempo ou razão de forçar a memória e to-
tos, partiu-se do debate intelectual e acadêmi- car a sensibilidade”. Ao esboçar um perfil das
co sobre a infância; optou-se por vistoriar um características da infância a partir do século
conjunto de fontes primárias como legislação, XII, o autor aponta que a transmissão dos va-
inventários escolares e o periódico “A Provín- lores e os modos de socialização da criança não
cia de São Paulo”, documentos localizados no eram asseguradas nem controladas pela família.
acervo do APESP- Arquivo Público do Estado A educação da criança foi durante séculos rele-
de São Paulo e nos arquivos digitais da Biblio- gada à simples observação, ela aprendia graças
teca Digital Nacional e do Centro de Referên- à sua convivência com os adultos, aprendia as
cia em Educação Mario Covas. coisas que devia saber fazendo junto com os
Para o exercício analítico das fon- adultos, tão logo atingisse sua independência
tes, utilizou-se a categoria de infância, que era inserida no mundo do trabalho.
para Kuhlmann Jr. (1998) corresponde a um Por consequência, a criança não pas-
discurso histórico cuja significação está con- sava pelos estágios da juventude que diferen-
signada ao seu contexto e as variáveis que o ciavam as etapas da vida, era considerada um
definem. Como segunda categoria utilizou-se ser frágil e instável, quando não precisava
instrumentos da escrita que para Frade (2014) mais do apoio interino da mãe ou da ama,
se definem como os objetos que constituem era lançada ao mundo, muitas vezes ficando
gestos e modos de escrever de cada tempo, à própria sorte, em caso de morte, logo seria
dispositivos que deixam marcas inscritas em substituída por outra criança.
determinados materiais ou suportes. Na ter- Esse panorama leva o autor a afirmar
ceira categoria utilizou-se cultura escolar, en- que ao longo da Idade Média a infância não
tendida na concepção de Julia (2001), como existiu, sendo uma invenção da Modernidade.
um conjunto de normas que definem conheci- Para Ariès (1986) as transformações econômi-
mentos a ensinar e condutas a inculcar. cas, sociais e culturais da época moderna mo-
dificaram as relações sociais impondo novos
A construção do costumes, um novo modelo de civilidade, o
que teria propiciado o surgimento de um sen-
conceito de infância: uma timento de infância, uma preocupação com a
abordagem histórica educação moral, social e pedagógica da criança.
Segundo Kuhlmann Jr. (1998, p.
as percepções sociais sobre criança 21), a construção da infância proposta
e infância sofreram modificações conside- por Ariès (1986), não considerava as fontes
ráveis ao longo da História. No mundo oci- históricas das camadas mais populares. Por
dental, este percurso nos permite verificar isso, para o autor, o conceito de infância pro-
uma série de divergências conceituais que posto por Ariès (1986), tratou-se de uma infân-

47
cia de “percepção generalizante e linear”. Sua se a partir do Império, a infância assume re-
pesquisa teria centrado esforços em analisar a levância, através de cuidados dirigidos aos
iconografia e objetos de uma classe média alta infantes das elites, a partir da República, o
francesa, apoiando-se em fontes de famílias fenômeno se generaliza através da preocupa-
abastadas, burguesas e aristocráticas. ção com as classes desfavorecidas,
Os estudos de Kuhlmann Jr. (1998),
nos revelam que é impossível precisar um Assistimos, assim, uma inversão: no Im-
tempo e espaço para a construção de um pério a atenção era voltada para a prole
conceito de infância. Contudo, assevera que da elite — futuros dirigentes; na Repúbli-
a história da infância é construída pelos ca, que brota, ao romper-se a escravidão e
adultos e este processo vai sendo construí- se vislumbrar o trabalho livre, a atenção
do e modificado pari passu às transformações é voltada para a prole dos trabalhadores,
políticas, sociais, econômicas e culturais das súditos das novas relações sociais de pro-
diferentes sociedades. Desta forma, depreen- dução. (OSTETTO, 1990, p. 94)
de-se que a história da infância é percebida
em épocas e contextos diferentes, com per- Neste cenário, a instrução popular
cepções diversas do que é a infância. Com o passou a ser condição necessária para a for-
surgimento da idade moderna, proliferam-se mação de um cidadão que correspondesse aos
as discussões sobre a infância evidenciando anseios dos governantes. A educação foi consi-
um discurso preocupado com a formação derada instrumento de capacitação, responsá-
ofertada às crianças e pautado nos princípios vel pelas transformações sociais que levariam
da modernidade, civilização e progresso. o país ao progresso. Diante deste contexto,
Segundo Gouvêa (2007), “a relação en- parafraseando (Schueler, 1999, p. 34), a escola
tre a escola e a criança é fruto de um longo surge como estratégia de uma elite republica-
processo histórico, no decorrer do qual esta na, que viu na instituição educativa o “lugar
foi sendo apreendida como sujeito preferen- social de educação da infância” e na instrução
cial da ação escolar e a escola como espaço popular o dispositivo responsável pela “mis-
natural da infância”. Para a autora, é na Mo- são-cívico-patriótica de formação das novas
dernidade que a escola se evidencia como es- gerações”. (SOUZA, 2009, p. 15)
paço privilegiado de formação de um indiví- Para discutir a história da infância em
duo civilizado, “ambos elementos (criança e São Paulo do século XIX e anos iniciais do sé-
escola) redefiniram-se a partir de tal relação. culo XX é preciso considerar as transformações
A escola moderna (re)inventa a criança e vice- sociais, econômicas, políticas e culturais que
-versa”. (GOUVÊA, 2007, p. 122) afetaram o campo educacional e deflagaram a
Sob esta ótica, a civilização escolariza- preocupação dos republicanos em promover
da só foi possível à medida que a escola criou a educação popular. O texto apresentado no
práticas educativas diferenciadas, objetivando, início deste trabalho em que Jorge Americano
conforme ressaltam Vidal e Gvirtz (1998), um (1957) rememora sua infância, contribui para
distanciamento das práticas domésticas, ou evidenciar os aspectos de uma cultura escolar,
seja, gestando um próprio do escolar não en- a configuração do espaço, a distribuição do
contrável na esfera familiar ou religiosa. Para tempo, os programas de ensino, as disciplinas
as autoras algumas estratégias foram mobiliza- e as atividades de rotina que eram realizadas
das na produção desse próprio: a constituição na escola. Para além disso, o conjunto de ativi-
de um corpo de especialistas, a dissociação do dades e ordenamentos explicitados pelo autor,
tempo escolar do tempo comunal, a constru- nos convida a refletir sobre a representação da
ção de espaços específicos à prática educativa, infância, bem como quais foram as permanên-
a proliferação de materiais escolares e a produ- cias, rupturas e transformações ocorridas no
ção de disciplinas escolares. processo de constituição e consolidação da in-
Seguindo os rastros desses autores é fância em São Paulo.
a partir do século XIX, em consonância ao Por ocasião dos debates do projeto de
crescimento urbano e industrial, que sur- lei em torna da instrução pública, em 1892, Ga-
gem alguns aspectos determinantes para a briel Prestes, fez publicar no jornal O Estado de
construção da infância no Brasil, entre eles São Paulo, uma série de artigos sobre o ensino
a apropriação dos conceitos de civilidade e público, destacando os pressupostos da refor-
progresso e principalmente o processo de es- ma e a concepção sobre o ensino primário. Se-
colarização, consubstanciado na difusão de gundo o representante do magistério:
uma escola que correspondesse ao ideal de
modernidade da época. Para Ostetto (1990), Não há dúvida que precisamos de promo-

48
ver o rápido povoamento do Estado, mas Assim, emerge uma nova configuração
se não quizermos perde completamente de infância, alicerçada na racionalidade cienti-
todos os estímulos do patriotismo, tor- fica e em saberes teóricos- metodológicos mo-
nando-nos em um agrupamento sem aspi- dernos. Nessa perspectiva, a escola republicana
rações, amorpho, é, indispensável, darmos no Estado de São Paulo, nasceu como
um impulso vigoroso ao ensino primário,
fazendo-o ganhar todo o terreno perdido o emblema da instauração da nova ordem,
e preparando-nos para a realização do o sinal da diferença que se pretendia ins-
destino que as nossas condições materiais tituir entre um passado de trevas, obscu-
nos garantem; é preciso que, como Gar- rantismo e opressão e um futuro luminoso
field, vejamos a escola como único meio em que o saber e a cidadania se entrela-
de evitar a ruína da República, e que çariam trazendo o progresso segundo.
baseados nesse pensamento sigamos os (CARVALHO, 2003, p. 23)
exemplos dos povos que melhor souberam
compreender essa verdade (PRESTES, G. Posteriormente, resultado da reunião
O ESTADO DE SÃO PAULO, 12.5.1892). de algumas escolas isoladas, os grupos escolares
implantados em 1893, no estado de São Paulo,
Sob esta ótica, os republicanos paulis- consolidaram uma nova organização adminis-
tas intencionaram absorver os elementos de trativa e pedagógica da escola primária. A esse
modernização educacional em circulação em respeito Souza (1998, p. 16), lembra que a im-
diversos países da Europa e dos Estados Uni- plantação desses grupos na província se deu em
dos. Neste contexto, o Estado de São Paulo um contexto de divulgação dos valores republi-
assumiu o pioneirismo de um sistema de ensi- canos, em que “os grupos escolares se tornaram
no, graduado, compreendendo múltiplas salas símbolos”, verdadeiros templos que deveriam
de aula e professores, reforma de métodos de representar novas concepções alicerçadas nas
ensino e formação de seu corpo docente. A ideias de modernidade, progresso e cientificis-
Escola Normal da Praça e seu jardim de in- mo. Para a autora os educadores do final do sé-
fância tornaram-se cenários da concretização culo XIX reatualizaram no Brasil, a valorização
de uma educação inovadora. Calcada nos pi- mítica da escola celebrada na Revolução Fran-
lares da formação de professores e na ado- cesa. Tratou-se de uma infância institucionali-
ção do método de ensino intuitivo, a Escola zada, onde a criança passou a ter contato com
Normal instaurou uma série de práticas sim- um novo contexto social e cultural, sendo prota-
bólicas que, “no universo escolar, tornaram-se gonista de um novo padrão de infância almeja-
uma expressão do imaginário sociopolítico da do para prepará-la ao exercício do trabalho, ao
República” (SOUZA, 1998, p. 241). Além de amor à pátria e à construção da nação brasileira.
ritos e rituais, conferências pedagógicas, ensi-
no seriado, graduado, laico e intuitivo, a ins-
tituição equipou-se com um profuso material O ensino da escrita
didático adequado às exigências da “moderna e a (con)formação da
pedagogia” que se queria disseminar.
A excelência do aparelho escolar pau- infância paulistana
lista era atribuída à organização dos serviços
de instrução prestados. Monarcha (2018) cita Percebe-se que na modernidade hou-
que parte da inovação escolar foi atribuída aos ve um grande investimento nos estudos sobre
princípios que configuravam um ensino que: como melhor formar a criança, essas preocu-
pações expandiram-se na sociedade e aden-
Deveria ser intuitivo, para desenvolver traram os ambientes educativos. Em face
na criança a faculdade de observação, desta contingência, a educação primária em
habituando-a a pensar por si; incitar o São Paulo, alicerçada na pedagogia científica
desenvolvimento gradual e harmônico moderna, foi delimitando um espaço pró-
das faculdades infantis, em harmonia prio, um modelo de ensino, dotando-se de
com a “marcha do espírito humano”, uma identidade diferenciada no conjunto de
isto é, da síncrese à síntese; relevar na outras instituições sociais.
aprendizagem, as dimensões biológicas, A escola, paulatinamente, foi confi-
fisiológicas e psicológicas do sujeito gurando uma estrutura própria e começou
escolar; formar professores de acordo a emergir do seio desta instituição uma cul-
com modelos cognitivísticos científicos. tura escolar, tal como propõe Julia (2001, p.
(MONARCHA, 1999, p. 123) 10) “um conjunto de normas que definem co-

49
nhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, Em relação a esses utensilios, Barra
e um conjunto de práticas que permitem a (2016, p. 176), indica que nas escolas paulis-
transmissão desses conhecimentos e a incor- tas nas décadas de 50, 60, 70 do século XIX,
poração desses comportamentos”. “nota-se a permanência de “penas de ave”, o
Objetivada na organização dos currícu- aparecimento de “pena de aço”, a permanên-
los e programas, na distribuição e planejamento cia de “lápis de pedra” e o aparecimento de
do tempo e do espaço, na seleção dos conteúdos “lápis de pau”. No que se refere ao ato de es-
a serem ministrados e na preocupação da for- crever, o uso desses instrumentos pressupôs
mação moral da criança, a cultura escolar da uma série de regras quanto à posição corre-
escola primária em São Paulo no século XIX, ta do aluno, da ardósia e posteriormente do
nos permite inferir uma série de variantes que papel, a como segurar o lápis, ao tamanho
contribuíram para traçar o perfil de infância e correto das mesas, bancos e carteiras etc.
educação que se queria para as crianças. Não Observou-se que as prescrições para
menos importante foi o processo de racionali- o ensino da escrita, fundamentavam-se na
zação das práticas escolares, dentre eles, desta- incorporação dos avanços no campo da Hi-
cam-se as prescrições para o ensino da escrita, giene e relacionavam-se com a a nova ordem
condizentes com os preceitos higienistas intro- social emergente. Segundo Faria Filho (1998),
duzidos no final do século XIX. o novo modelo caligráfico, ao ser apresentado
Além de orientar a reorganização do como “rápido, econômico e higiênico”, tor-
espaço da escola, o discurso higienista pres- nava a letra mais homogênea e adaptada aos
crevia um reordenamento das práticas peda- padrões da modernidade. O modelo de letra
gógicas, isto incluía a caligrafia norte ameri- vertical era o único capaz de preparar o aluno
cana ou inclinada como a mais adequada no para o exercício da escrita eficiente e legível,
ensino das primeiras letras. tão necessário ao trabalho no comércio e na
indústria. (FARIA FILHO, 1998, p. 54)
Os exercícios de caligrafia acompanham No conjunto de prescrições para o en-
as lições de leitura; assim, os alunos co- sino da escrita, observou-se a intenção de pro-
meçarão, desde o primeiro dia de aula, duzir um corpo escolarizado, trabalhado e mo-
a copiar letras, palavras e pequenas sen- delado pelas práticas escolares. Neste cenário,
tenças. Ao professor incumbe observar e o campo da higiene emergiu como mecanismo
corrigir a posição dos dedos e do corpo. na formação do novo cidadão na perspectiva
No primeiro ano os exercícios serão fei- da civilidade e modernidade rumo ao discur-
tos, no primeiro semestre, nas ardósias so de ordem e progresso. Ainda segundo Fa-
e, no segundo, no papel, com lápis. Do ria Filho (2001), o ensino da escrita contribuiu
segundo ano em diante, serão usados os para educar e transformar a “corporeidade da
cadernos, cujo tipo principal de letra criança” em “corporeidade do aluno”, o que im-
seja a norte-americana, completando-se plicava educar a postura, demarcar e controlar
este ano com o ensino de letras de fanta- claramente os gestos, criar condições para um
sia. (DECRETO 1217, de 19/04/1904) escrever saudável e higiênico. Enquanto pres-
crevia-se sobre a forma ideal de posicionar-se
Entretanto, “apesar de “elegante, gra- diante do papel e de movimentar mãos e dedos,
ciosa e pessoal”, este tipo de letra, era criticada, produzia-se um corpo escolarizado. O discurso
porque percebida como a causa para os proble- médico higienista fazia alusão a organização
mas de miopia e escoliose encontrados nos/as das escolas e dos corpos e a orientava a seguir
escolares”. (VIDAL, 1998, 126) os preceitos higiênicos no espaço escolar.
Com a reforma da Instrução Primá-
ria em Minas Gerais indicava-se a “caligrafia Considerações finais
vertical”, ou “redonda”, por considerá-la não
somente mais higiênica, como também mais As discussões tecidas neste trabalho
adequada aos “tempos modernos”. (VIDAL e reforçam a compreensão de que as infâncias
GVIRTZ, 1998) são socialmente percebidas, concebidas de
As prescrições para a escrita esten- diversas formas e historicamente construí-
diam-se também aos instrumentos de escrita das em conformidade aos períodos históri-
que segundo Frade (2014, p. 1) são “aqueles ob- cos em que se estabelecem.
jetos que constituem gestos e modos de escre- No contexto de implantação da escola
ver de cada tempo — ou seja, dispositivos que primária em São Paulo entre o final do século
deixam marcas inscritas em determinados ma- XIX e anos iniciais do século XX foram difun-
teriais ou suportes”. didas estratégias de intervenção por meio das

50
quais procurou-se definir um modelo de escola Graça Costa Val; Maria das Graças de Castro
primária, calcado nos cânones da racionalidade Bregunci. (org.). Glossário Ceale: Termos de al-
científica e alicerçado sobre os propósitos de fabetização, leitura e escrita para educadores.
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po infantil. O ensino da escrita assumiu impor- UFMG, 2014, v. 1, p. 151-152.
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indicar a postura correta para os exercícios de GOUVÊA, M. C. S. de. (2007). A escolarização
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Isabel Cristina Alves da Silva Frade; Maria da

51
AS PROPAGANDAS
PARA A INFÂNCIA EM
VIDA INFANTIL (1950)

Mariana Elena Pinheiro Resumo: Este estudo tem por objetivo


dos Santos de Souza14 identificar e analisar propagandas que circu-
laram, no ano de 1950, nas páginas da revista
Michele Ribeiro de Carvalho15 Vida Infantil, destacando as potências obser-
váveis neste ano de publicação. Neste senti-
do, parece potente focalizar a propaganda dos
brinquedos ingleses MOBO, anunciados pela
extinta loja de departamentos Mesbla, sob o
sugestivo título “Para jardim de infância”. Tra-
ta-se de uma expansão de análise anterior, cuja
pesquisa recaiu nas propagandas da revista nos
anos de 1947, 1948 e 1949. A relevância deste
trabalho consiste no fato de se observar o teor
das propagandas presentes em uma revista
voltada para o público infantil, de meados do
século XX, cujas principais perguntas motiva-
doras são: qual(is) tipo(s) de propaganda cir-
culou(aram) em Vida Infantil, em 1950? Qual
a relação entre a revista e o produto/serviço
anunciado? Como eram o formato, as cores e
as letras utilizadas nas propagandas? Por qual
motivo os editores da revista consideraram
adequado incluir uma propaganda de mobiliá-
rio infantil em uma revista destinada às crian-
ças? Para além destas perguntas, também cabe
problematizar o tipo de público leitor espe-
rado pela equipe editorial da revista, uma vez
que ao se descobrir os anúncios, se pode reve-
lar, igualmente, o público esperado para con-
sumir, não só a revista, como também o(s) pro-
14
Doutoranda em Educação pelo Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ.
15
Doutoranda em Educação pelo Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ.

52
duto(s)/serviço(s) propagandeado(s). Assim, ção de indícios (GINZBURG, 1976) do público
entende-se que as propagandas são elementos consumidor e do período analisado, o que jus-
potentes no que concerne à apresentação de tifica o recorte desta pesquisa.
indícios (GINZBURG, 1976) do público con- Dentre as variadas propagandas lo-
sumidor e do período analisado, o que justifica calizadas na revista Vida Infantil, parece po-
o recorte desta pesquisa. Do mesmo modo, o tente focalizar a propaganda dos brinquedos
mobiliário destinado às crianças é entendido ingleses MOBO, anunciados pela extinta loja
não apenas como um produto da atividade in- de departamentos Mesbla, sob o sugestivo tí-
dustrial, mas também como um artefato cons- tulo “Para jardim de infância”. Novos ques-
truído socialmente por meio de diferentes sa- tionamentos surgem frente a essa propagan-
beres (ALCÂNTARA, 2014) com finalidades da tão peculiar em uma revista destinada ao
específicas. No que concerne à metodologia, público-leitor infantil: por qual motivo mo-
salienta-se a pesquisa e a composição de um biliários para jardins de infância são divulga-
acervo pessoal das autoras, cuja Seção de Pe- dos em uma revista voltada para as crianças?
riódicos, da Fundação Biblioteca Nacional Por que os editores da revista consideraram
(FBN), se constituiu como o principal espa- adequado incluir uma propaganda de mobi-
ço de pesquisa. Por fim, importa destacar que liário infantil em uma revista destinada às
as contribuições de Bakhtin (2014), Chartier crianças? Seria essa uma pista sobre possíveis
(2011), Ginzburg (1976) e Khulmann Jr. (2015) intenções escolares de seus editores?
compõem o arcabouço teórico deste estudo. Neste estudo, o mobiliário destinado
às crianças é entendido não apenas como um
Palavras-chave: Propagandas. Revistas. produto da atividade industrial, mas também
Vida Infantil. como um artefato construído socialmente
por meio de diferentes saberes (ALCÂN-
TARA, 2014), com finalidades específicas. A
partir das questões apresentadas, propomos
Introdução a organização deste trabalho em duas seções:
a primeira intitulada “A revista Vida Infan-
Este estudo consiste em uma expan- til e suas propagandas”, cujo objetivo é o de
são de análise anterior cuja pesquisa recaiu analisar a revista Vida Infantil e parte das
nas propagandas da revista Vida Infantil nos propagandas por ela veiculadas, com especial
anos de 1947, 1948 e 1949. Agora, nosso obje- enfoque no ano de 1950; e a segunda, intitu-
tivo é identificar e analisar propagandas que lada “Os mobiliários para jardim de infância
circularam, no ano de 1950, nas páginas da em Vida Infantil (1950)”, por meio da qual
revista, destacando as potências observáveis buscamos refletir sobre a propaganda dos
neste ano de publicação. No que concerne à brinquedos MOBO, utilizados em jardins de
metodologia, salienta-se a pesquisa e a com- infância, e o motivo que levou aos editores da
posição de um acervo pessoal das autoras, revista a publicizar tais brinquedos no perió-
cuja Seção de Periódicos, da Fundação Bi- dico, inicialmente destinado às crianças.
blioteca Nacional (FBN), se constituiu como Por fim, destacamos as contribuições
o principal espaço de pesquisa, por ter sob de Bakhtin (2014), Chartier (2011) e Ginzburg
sua guarda quase todos os números de Vida (1976) no processo de análise e escrita desse ar-
Infantil desde 1947 a, pelo menos, 1951. tigo. Ademais, a pesquisa de Santos (2018) cola-
Para o alcance de nosso objetivo, al- bora no que concerne à análise de propagandas
guns questionamentos emergem, tais como: para crianças em revista, assim como Brites e
qual(is) tipo(s) de propaganda circulou(aram) Nunes (2012). Espera-se, assim, contribuir com
em Vida Infantil, em 1950? Qual a relação entre o campo da História da Educação, da Infância
a revista e o produto/serviço anunciado? Como e das propagandas para o público infantil.
eram o formato, as cores e as letras utilizadas
nas propagandas? Para além destas perguntas, A revista Vida Infantil e
também cabe problematizar o tipo de público suas propagandas
leitor esperado pela equipe editorial da revis-
ta, uma vez que ao se descobrir os anúncios,
se pode revelar, igualmente, o público esperado Vida Infantil foi uma revista publica-
para consumir, não só a revista, como também da pela Sociedade Gráfica Vida Doméstica
o(s) produto(s)/serviço(s) propagandeado(s). Ltda, no âmbito do Distrito Federal, à época,
Assim, entende-se que as propagandas são ele- durante os anos de 1947 a 1960. A Sociedade
mentos potentes no que concerne à apresenta- Gráfica Vida Doméstica foi fundada em 1920,

53
por Jesus Gonçalves Fidalgo, e ficava respon- uma nota da editora que foi publicada em 2 de
sável, também, pela edição de outras duas janeiro de 1948, a qual já apresentava o lema da
revistas: Vida Doméstica16 (1920-1963) e Vida revista de modo bastante claro: o de divertir,
Juvenil17 (1949-1959). Nota-se, assim, o esforço educar e instruir a petizada consumidora.
da editora de segmentar seus públicos (HAL- Como se nota, os objetivos dos edito-
LEWELL, 1985) e, portanto, estar presente na res da revista se fazem bastante claros, o que fa-
vida de, pelo menos, três grupos sociais: o in- cilita o consumo por parte do público, uma vez
fantil, o juvenil e o feminino. que se trata de uma revista que circulava nas
Souza (2019) indica que o periódico bancas e o usuário deveria despender de certa
em análise seguia um padrão discursivo e edi- quantia para consumir o produto. Ainda nesse
torial em relação ao seu público ao focalizar as sentido, salienta-se que a revista tinha o preço
variadas seções voltadas para o exercício e o inicial de Cr$2,00 (dois cruzeiros), aumentan-
reforço de conteúdos escolares, com vistas ao do para Cr$3,00 (três cruzeiros) em janeiro de
aprimoramento da instrução da criança. Por 1951, que, de acordo com os editores, se devia à
isso, as representações observáveis na revista “grande alta sofrida pelo papel”.
podem não abarcar a totalidade de seu público, Segundo Souza (2019), é impossí-
mas representam parte do grupo que se busca- vel fazer a conversão desses Cr$2,00 para a
va atingir, o que indicia (GINZBURG, 1976), moeda atual, mas é possível comparar com
também, a razão das propagandas veiculadas. o valor do salário mínimo na localidade de
O investimento que se fazia em tor- produção: em 1947, o salário mínimo no Dis-
no do público infantil, ilustrado pelo cresci- trito Federal era 4 de Cr$380,0018. Assim, não
mento de produções direcionadas às crianças, se pode afirmar que o consumo de Vida In-
de modo específico, pode ser explicado pelas fantil era possível a toda as camadas sociais,
“mudanças sociais em curso na passagem do uma vez que não se pode ter certeza que um
século XIX para o XX”, as quais apontavam trabalhador que recebia um salário mínimo
“para uma modernização da sociedade que, investiria parte do seu salário para consumir
entre outras consequências, iria conferir posi- a revista. Contudo, o preço dela nos ajuda a
ção de maior relevo às crianças” (ROSA, 2002, pensar o tipo de propaganda que poderia ser
p. 46). Nesse sentido, Vida Infantil se mostra veiculada. Seriam propagandas para famílias
como uma das produções sociais fruto desse de maior ou menor poder aquisitivo? De que
olhar generoso, mas não livre de interesses, maneira é possível associar o nível econômico
em relação às crianças, vistas, já desde o início e social do público leitor com as propagandas
do século, como “o futuro da nação” e que, por encontradas no periódico? É a partir destas e
isso, deveriam ser bem orientados no período outras perguntas que buscamos compreender
da vida de maior relevância: a infância. algumas das propagandas da revista.
Desde os primeiros números de Vida De maneira geral, Vida Infantil pos-
Infantil, o projeto ideológico da revista já se suía entre 50 e 70 folhas e apresentava muitas
faz presente, seja explícita ou implicitamente. regularidades: no verso da capa localizava-se
Segundo Bakhtin (2014), “a palavra é o fenôme- a coluna História do Brasil para Crianças19; em
no ideológico por excelência [, de modo que] seguida, havia o expediente da revista, cons-
(...) a palavra é o modo mais puro e sensível de tando o nome dos editores e dos profissio-
relação social” (p. 36). Assim, a relação estabe- nais envolvidos na publicação e, em geral,
lecida entre autor-leitor se dava estritamente apresentava, também, algumas informações
entre a palavra e pelas imagens, referenciadas de conteúdo escolar para os leitores, sob a
por Chartier (2011) como os elementos tipoló- forma da seção As crianças precisam saber20.
gicos, os quais também possuem intencionali- Ao longo da revista eram apresentados con-
dades. Uma das evidências do projeto forma- tos, histórias em quadrinhos e outras seções
dor de Vida Infantil pode ser identificada em recreativas e educativas.
16
Vida Doméstica foi uma revista brasileira que circulou mensalmente (posteriormente, quinzenal e semanalmente),
cuja sede se localizava no Rio de Janeiro e era voltada para o público feminino. Circulou no país entre 1920 e 1963. Mais
informações, conferir em Santos (2011).
17
As pesquisas acerca de Vida Juvenil se encontram em fase inicial. Trata-se da pesquisa desenvolvida por Souza em seu
curso de doutoramento. É possível afirmar, contudo, que era editada pela Sociedade Gráfica Vida Doméstica, circulou
mensalmente entre 1949 e 1959, e era voltada para adolescentes e jovens de ambos os sexos.
18
Fonte dos dados: Anuário Estatístico do Brasil — 1950. Ano XI. Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, 1951.
19
A respeito da coluna em destaque, conferir Souza (2019), Carvalho & Souza (2019) e Pacheco & Souza (2020).
20
A respeito dessa coluna, conferir Souza (2020).

54
Para além das regularidades em relação Assim, a variedade de propagandas em
à composição da revista, era possível localizar, Vida Infantil pode ser justificada pelo desejo de
também, propagandas em todas as edições exa- atingir a um público diverso, inclusive os adultos
minadas. Em pesquisa anterior, foi possível ob- capazes de comprar, efetivamente, os produtos
servar propagandas diversas no periódico, como anunciados na revista para a criança. É a partir
anúncio de Vida Doméstica, voltada ao público deste olhar que buscamos compreender as pro-
feminino, produtos de papelaria e associação de pagandas no material, com especial ênfase em
clubes de leitura para crianças e jovens. Nesse uma: a de brinquedos ingleses, anunciada pela
sentido, cabe pensarmos a presença de tantas MOBO, na edição de julho de 1950. Passemos,
propagandas no âmbito de uma revista infantil, assim, ao próximo tópico deste artigo.
propagandas que, como visto, não se direciona-
vam especificamente a este público. Destarte, Os mobiliários para jardim de
Brites e Nunes (2012) defendem que: infância em Vida Infantil (1950)
Por publicidade infantil entendemos não
apenas aquela destinada exclusivamente à As propagandas possuíam diferentes
criança-consumidora, mas também àquela objetivos em Vida Infantil, a de não só fomentar
dirigida à adultos-pais, ou tutores, ou res- o desejo por parte da criança, como também a
ponsáveis, aos profissionais e técnicos envol- de atingir o público adulto, consumidor dire-
vidos com a atenção à infância. Todos estes, to e indireto do material. Outrossim, podemos
consumidores e “difusores” dos produtos e compreender a propaganda a seguir como uma
serviços direta ou indiretamente indicados forma de ratificar os objetivos propostos pela
ou relacionados à suprir ou criar necessida- revista: a de educar e instruir seu público de
des infantis ou dos adultos em suas relações maneira integral, isto é, desde as colunas até as
e trabalho com crianças (p. 87). propagandas. Observe:

FIG. 1 · Propaganda de Vida Doméstica. Ano III, no 33, jul/1950. Depositário: FBN

55
A propaganda dos brinquedos ingle- e de outro é uma mesa para refeições, feita em
ses MOBO21, anunciados pela extinta loja “esmaltado de fácil lavagem”. O outro brin-
de departamentos Mesbla22, nas páginas da quedo/mobiliário indicado é um carrossel, um
revista Vida Infantil, sob o sugestivo título “divertido brinquedo, para 2 crianças… fabri-
“Para jardim de infância”, chama a atenção cado de aço esmaltado que lhe assegura uma
para os mobiliários escolares pensados para enorme resistência”. O último brinquedo/
crianças pequenas, público-alvo desses espa- mobiliário é o balanço, na propaganda utili-
ços de educação. Salienta-se, ainda, que as zado por uma menina, que seria “novo modelo
propagandas relativas à Mesbla eram uma empolgante e seguro para crianças mais cres-
permanência no âmbito da revista — com cidas”. De acordo com o fabricante, sua “cons-
frequência podia se encontrar anúncios de trução é sólida em aço tubular esmaltado”, que
produtos e serviços da referida empresa. conferiria maior durabilidade e resistência.
A década de 1950, em destaque nes- Considerando os textos da propa-
se estudo, vivenciou uma busca da sociedade ganda, a preocupação com a durabilidade do
pelo desenvolvimento e pela “modernidade”, produto parecia ser grande, assim como nos
que se reflete também no campo educacional, parece ser grande a intenção de mostrar os
que, por sua vez, procurou incorporar meto- mesmos como peças que iriam interessar a me-
dologias de ensino que se ligam a uma pers- ninos e meninas, que seriam os usuários finais
pectiva pedagógica de formação do sujeito. O dos produtos, mas que não possuíam poder de
mobiliário escolar não fica de fora dessa “mo- compra. Dessa forma, o anúncio era endere-
dernização” e é nesse nicho que a propaganda çado aos adultos, responsáveis pelas crianças
dos brinquedos MOBO parece se incluir. leitoras do periódico Vida Infantil e, no caso da
Uma visada sobre a propaganda dos propaganda dos brinquedos MOBO, também
brinquedos nos revela um carrossel que pode aos responsáveis pelas instituições escolares
ser utilizado por duas crianças, um balanço que poderiam adquirir tais equipamentos para
para crianças maiores e mesas cujo tampo são a configuração do espaço destinado à educação
também quadros-negros, em que as crianças po- das crianças pequenas, fossem esses espaços
dem desenhar à vontade com giz. Não haveria públicos, privados ou mantidos por empre-
obstáculos para a aquisição de tais brinquedos sas, caso em que atenderiam os filhos de suas
por famílias que desejassem oferecer opções de trabalhadoras. Este endereçamento pode ser
brincadeiras e passatempos para suas crianças, ratificado, ainda, ao observar o canto inferior
mas a propaganda indica logo no topo da pá- esquerdo da imagem. Nota-se o desenho de
gina, dentro de uma fita ladeada pelo rosto de uma mulher, representada com o cabelo preso
um menino à direita e uma menina à esquerda, e óculos, segurando uma revista ou jornal, que
que se tratava de brinquedos “Para jardim de destaca a seguinte mensagem: “UM CREDI-
infância”. Somente na linha abaixo é informa- -MESBLA RESOLVE SEU PROBLEMA”. Tal
do que são os “Brinquedos ingleses MOBO”, in- mensagem é claramente direcionada aos adul-
clusive transformando as letras “O” da palavra tos, aqueles que possuem poder de compra,
MOBO em carinhas felizes e risonhas, em um mesmo que seja recorrendo ao sistema de cre-
apelo para demonstrar a felicidade das crianças diário. Este elemento se torna mais uma pista
que pudessem brincar em tais equipamentos. acerca do direcionamento da propaganda dos
O espaço da página reservado à propa- “brinquedos ingleses MOBO” para os adultos
ganda é repleto de representações de instru- e responsáveis por crianças e por espaços de
mentos musicais, e entre eles os brinquedos, educação pré-escolar. Brites e Nunes (2012)
ou mobiliários, visto que a mesa com tampo de ampliam a discussão relativa ao endereçamen-
quadro-negro, uma “interessante mesinha de to das propagandas em materiais infantis:
dupla finalidade”, de um lado é para a criança
se divertir desenhando com giz enquanto vê O destinatário da mensagem publicitária
as letras do nosso “alfabeto e números até 10”, na maioria das vezes não é exatamente a

21
Os brinquedos ingleses MOBO foram fabricados por uma empresa inglesa, o que faz deles objetos de colecionador
atualmente.
22
Trata-se de uma das maiores organizações atacadistas e importadoras em geral do país, tendo sido fundada em 1912,
como filial da companhia francesa Établissements Mestre et Blatgé S.A. Somente em 1939 assumiu o nome de Mesbla
S.A., uma abreviatura de Mestre et Blatgé. Atuava, principalmente, nas vendas no atacado, mas também manteve lojas
varejistas. Ademais, a Magazine Mesbla foi uma loja de departamentos que vendia de roupas a utensílios para a casa e
jardinagem, de equipamento fotográfico a armas e munições. [Fonte: FGV. Mesbla S.A. — Análise de suas ações. Revista
Conjuntura Econômica, v. 15 n. 9, 1961.]

56
criança, mas sim o adulto que “decide” Do mesmo modo, foi possível tecer ob-
por ela, ou em favor dela, ou pensan- servações acerca de propagandas diversas no
do nela. Ou seja, o destinatário predo- âmbito de uma revista infantil, entendendo que
minante da propaganda (imediato) é o elas serviam a diferentes finalidades: fomentar
adulto responsável ou o envolvido com o desejo de consumo na criança, alcançar o pú-
as crianças (médicos, educadores, etc.); blico adulto, isto é, aquele que poderia, efetiva-
o destinatário final da propaganda (me- mente, comprar a revista, e, ainda, dialogar com
diato) é a criança, pois seria a beneficia- as propostas levantadas pelo periódico. Assim,
da pelos novos produtos ou serviços ofe- oferecer produtos considerados adequados para
recidos à venda. Há o desenvolvimento, os públicos ideais vislumbrados pelos editores
por outro lado, de propaganda cujo des- parecia convergir com os ideários de Vida In-
tinatário imediato é a criança — ativan- fantil. Não à toa uma das propagandas veicula-
do sua compulsão por adquirir este ou das no material é voltado para a utilização em
aquele produto ou serviço — e o mediato jardins de infância — instituição criada para
são os pais aquele que poderá satisfazer, a educação formal da criança pequena, assim
em última instância, a compulsão consu- como para os cuidados com a mesma.
midora da criança. (p. 91) Espera-se, enfim, que as discussões
empreendidas nos limites deste trabalho te-
Assim, oferecer produtos conside- nham podido colaborar com os debates em
rados adequados para os jardins de infância torno da propaganda voltada à criança à luz
parece ser a tônica da propaganda veiculada de uma revista infantil. Igualmente, buscou-
pela revista Vida Infantil, visando uma ins- -se iluminar discussões de diferentes campos
tituição criada para a educação formal da para pensar essa produção, a saber a História
criança pequena, assim como para os cuida- da Educação e a História da Infância.
dos com a mesma. Essas crianças atendidas
pela pré-escola, onde se inseriam os jardins
de infância, seriam formadas para um modelo Referências
de sociedade pretendida na década de 1950,
década denominada por historiadores como ALCÂNTARA, W. Por uma história econômica
“Era de Ouro”, e que deveria ser moderna. Os da escola: a carteira escolar como vetor de rela-
brinquedos, mobiliários e demais produtos ções (São Paulo, 1874-1914). 2014. 339 f. Tese (Dou-
utilizados pelas instituições deveriam, tam- torado em Educação) — Faculdade de Educação,
bém, refletir essa modernidade almejada. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
Por fim, Santos (2018) nos ajuda a
examiná-la ao alegar que “a propaganda ilus- BAKHTIN, M. M. Marxismo e Filosofia da
tra o modo pelo qual a indústria do consu- Linguagem: problemas fundamentais do méto-
mo visa transferir para um produto (...) um do sociológico da linguagem. 16a Ed. São Paulo:
conjunto de ações sociais e educativas então Hucitec, 2014.
empreendidas pelos sujeitos” (p. 181). Destar-
te, pensar a propaganda de mesinha, quadro BRITES, O; NUNES, E. S. N. Infâncias e pro-
negro e balanço para a criança, cuja menção pagandas em revistas: anos 1920 — 1950. Tem-
ao ambiente formal de educação se mostra pos Históricos, Volume 16, p. 87 — 118, 2012.
latente, é considerar, igualmente, as perspec-
tivas sociais e educativas em voga, uma vez CARVALHO, M. R.; SOUZA, M. A Constru-
que a publicidade não só acompanha, como ção da Narrativa Nacionalista Para Crianças:
também dita modos de apropriação e de Apontamentos Sobre “As Aventuras de Tibi-
consumo, de acordo com o período. cuera” (1937) e a Coluna “História do Brasil
Para Crianças” (1948). X Congresso Brasileiro
Considerações finais de História da Educação: História da Educa-
ção: Democracia e Diversidade Cultural, Uni-
Este artigo buscou examinar uma pro- versidade Federal do Pará, Brasil, 2019.
paganda veiculada na revista Vida Infantil, em
julho de 1950. A partir da análise, foi possível CHARTIER, R; (org). Práticas da Leitura. 5a
observar que a propaganda destacada se mos- Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.
trava condizente com o modo de operação da
revista, uma vez que o teor escolar presente no FERREIRA, L; Poder e Moda: A Mesbla e o
anúncio pode ser observado, também, ao longo consumo das mulheres da elite capixaba. Anais
de toda a revista, conforme análise anterior. do XXIX Simpósio de História Nacional, 2017.

57
FGV. Mesbla S.A. — Análise de suas ações. Re- ROSA, Z. O Tico-Tico: meio século de ação
vista Conjuntura Econômica, v. 15 n. 9, 1961. recreativa e pedagógica. Bragança Paulista:
EDUSF, 2002.
GINZBURG, C. O queijo e os vermes. O co-
tidiano e as idéias de um moleiro perseguido SANTOS, L. Mulheres e revistas: a dimen-
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58
PAPÉIS DE GÊNERO NA
EDUCAÇÃO BRASILEIRA:
UMA PERSPECTIVA
HISTÓRICA

Paulo Sérgio Moreira Resumo: Nos últimos anos, a discussão


de Carvalho23 sobre questões de gênero nas escolas tem to-
mado grande relevância na mídia e na política
brasileira. Em fóruns de redes sociais e dispu-
tas jurídicas, professores e pesquisadores são
acusados de impor uma “ideologia de gênero”
nas escolas, desviando condutas e contradi-
zendo normas estabelecidas. A partir de uma
perspectiva feminista e de estudos de gênero,
pode-se afirmar que, de fato, a escola é tam-
bém responsável pela construção de papéis de
gênero na sociedade. Todavia, sua função tradi-
cional não é contradizê-los, e sim reforçá-los. A
produção e reprodução de papéis de gênero no
espaço escolar não é uma invenção da educa-
ção do século XXI, marcando uma presença de
longa data. Neste sentido, o presente trabalho
se propõe a demonstrar como papéis de gênero
heteronormativos e binários foram produzi-
dos discursivamente pela educação brasileira.
Para a fundamentação teórica desta proposta,
são utilizados os trabalhos de Judith Butler e
Thomas Laqueur. Para a defesa desta proposta,
elenca-se como estudo de caso algumas imagens
de um livro escolar datado do período da cha-
mada Era Vargas (1930-1945) do Brasil. Aliado à
formação da identidade nacional brasileira, se
apresentará como papéis de gênero foram pro-
duzidos e consolidados na sociedade da época
através da educação pública estatal. Ao realizar
este remonte histórico, espera-se poder contri-
23
Mestrando em História pela Universidade de São Paulo — USP.

59
buir com o debate das questões de gênero na pertencentes ao mundo da cultura e não da
educação brasileira através de uma perspectiva natureza. Tal afirmação contraria a linha de
histórica, demonstrando como sua presença na pesquisa que assume pressupostos biologizan-
educação básica é marcada profundamente pe- tes sobre o sexo como forma de contraposi-
los interesses e demandas da sociedade. ção ao gênero, este sim assumido enquanto
uma construção social. Reafirma-se: sexo deve
Palavras-Chave: Papéis de Gênero. Ge- ser entendido como uma categoria histórica
túlio Vargas. Educação Brasileira. construída assim como gênero. Thomas La-
queur (2001), por exemplo, descontrói a ideia
corrente que se tem sobre a qual os homens
naturalmente buscam em relacionamentos
Introdução afetivos pelo prazer enquanto as mulheres
buscam pelo relacionamento em si; o autor
Em outubro de 2020, foi apresenta- demonstra que no período pré-iluminista era
da à Câmara dos Deputados um Projeto de o oposto, com laços de amizade sendo mais
Lei que visa criminalizar atividades educa- comuns entre os homens e o atributo da sen-
tivas voltadas para a chamada “ideologia de sualidade sendo colocado na figura da mulher
gênero” em estabelecimentos educativos do — ambos atributos sendo descritos à época
setor público (HAJE, 2020). A lei represen- como características naturais advindas do
ta um episódio crítico da história que tem sexo de homens e mulheres.
se desenrolado no cenário político brasileiro O autor vai mais além ao demonstrar
na última década, evidenciando o avanço de que a própria diferenciação das genitálias
discursos conservadores e sua luta ativa con- atribuídas a homens e mulheres é algo muito
tra movimentos e debates da sociedade civil recente na história do ocidente, não havendo
que lutam a favor da igualdade de gênero e tal dicotomia antes dos séculos XVIII e XIX.
aprofundamento dos conhecimentos sobre Em suas palavras, “Ser homem ou mulher era
gênero e sexualidade na educação básica. manter uma posição social, um lugar na so-
Sobre esta tentativa de proibição uma ciedade, assumir um papel cultural, não ser
“ideologia de gênero” na escola, se levanta duas organicamente um ou outro de dois sexos in-
perguntas fundamentais que irão pautar as dis- comensuráveis. Em outras palavras, o sexo até
cussões do presente trabalho: já não há discur- o século XVII era ainda uma categoria socio-
sos de gênero sendo produzidos e reproduzidos lógica e não ontológica.” (LAQUEUR, 2001,
pela escola? Existe algo sobre o gênero que é p. 19). É a partir dos séculos XVIII e XIX que
essencial e natural, para além das ideologias? se começa a pensar em um dimorfismo bio-
Para avançar neste debate, o presente lógico, em criar explicações que diferenciem
trabalho se propõe a fazer uma reflexão sobre homens e mulheres a fim de justificar seus
a dessencialização de sexo e gênero, pensando comportamentos e posições hierárquicas.
a performatividade como um caminho para Dessa forma, é possível considerar que
entender sua construção dialética e binária, o corpo humano e o sexo são aspectos situacio-
tanto de sexo e gênero quanto das figuras de nais, sendo necessário conectá-los aos seus con-
homem e mulher. A partir desta reflexão, se- textos de produção. Neste sentido que Laqueur
rão aplicadas tais discussões no caso da esco- atesta que a ciência iluminista do ocidente não
la brasileira em uma perspectiva histórica, apenas investigou a diferença sexual como se
evidenciando como discursos normativos de quis pensar, mas a criou neste processo.
performance de gênero estavam presentes em Assim como o corpo é algo situacio-
um livro infantil produzido durante a perío- nal, assim também é o gênero. Judith Butler
do ditatorial do presidente Getúlio Vargas (2019), retomando as reflexões de Simone
(1937-1945). Dessa forma, se espera apontar os de Beauvoir, aponta que o gênero não é uma
caminhos pelo qual gênero pode ser construí- identidade estável, assim como tampouco são
do em um discurso e normatizado como prá- estáveis as ações dos indivíduos ou seus luga-
tica performática no espaço escolar. res de agência. Ao contrário, tais identidades
são construídas ao longo do tempo, “por meio
Revisão bibliográfica de uma repetição estilizada de certos atos”
(BUTLER, 2019, p. 214). Esta estilização é um
Para dar início à discussão deste tra- processo caro para o pensamento de Butler
balho é importante o reconhecimento que sobre gênero e sexo, pois, para ela, é através
aqui se faz de que tanto sexo quanto gênero da estilização do corpo, de seus gestos e ações
são categorias historicamente constituídas, que o Eu do gênero é construído.

60
Nesta proposta, é estabelecida uma re- reproduzirem e manterem os sistemas de opres-
lação dialética: o gênero é um significante cul- são, estes não são consequência direta de seus
tural assumido pelo corpo atribuído de sexo, atos, pois “(...) esses atos são uma experiência
sendo este sexo por si significado a partir de compartilhada e ação coletiva.” (BULTLER,
percepções sociais. Dessa forma, para Butler, 2019, p. 222). Como dito anteriormente, os cor-
não há diferença em termos analíticos entre pos que performam gênero o fazem a partir de
sexo e gênero, proposta seguida neste trabalho. diretrizes já existentes, de discursos colocados
Ambos os elementos constitutivos do sujeito antes mesmo de seu nascimento.
passam pela estilização de seus corpos e mentes Se utilizando de uma terminologia
a partir de normas estabelecidas em sociedade. foucaultiana, Butler aponta a necessidade de se
Em comparação, pode-se observar que fazer um estudo crítico da genealogia em busca
tanto Laqueur quanto Butler entendem que dos fundamentos do sexo, do gênero e do de-
sexo e gênero foram elementos dados por natu- sejo. Tal estudo “investiga as apostas políticas,
rais do ser humano por estarem profundamen- designando como origem e causa categorias
te entranhados em sua identidade, ancorados de identidade que, na verdade, são efeitos de
por discursos tidos por científicos e normati- instituições, práticas e discursos cujos pontos
zados por instituições sociais como a família, a de origem são múltiplos e difusos.” (BULTER,
religião e o Estado. Todavia, tanto sexo quanto 2009, pg. 9). A linguagem seria um exemplo
gênero são constructos sociais, fazem parte do destes pontos de produção de identidades, ins-
mundo da cultura e devem ser estudados e pro- talando normas, regras e convenções.
blematizados como tal, se afastando de ideias Neste ponto, proponho a condução
biologizantes e estáticas sobre eles. do debate para a produção específica dos pa-
Através do resgate de um autor clássico péis de gênero e do sexo de homens e mulhe-
do campo da fenomenologia, a saber, Merleau res a partir da linguagem.
de Ponty, Judith Butler apresenta a proposta de A partir do pensamento iluminista, se
compreender o corpo e o sexo como um conjun- cria um sujeito universal que é essencialmente
to de possibilidades, uma potência a ser perce- masculino, cheio de atributos e direitos ligados
bida e se apresentar no mundo. Nessa chave, “as ao masculino. Butler afirma que é apenas na
pessoas não são seus corpos, mas fazem seus cor- corporificação deste sujeito universal abstrato
pos (...)” (BUTLER, 2019, p. 216). Neste ponto masculino que ele pode vir a se tornar femini-
que um outro conceito central ao pensamento no. Tendo por base o corpo e o gênero mascu-
de Butler entra em cena: a performance. É atra- lino, a mulher, seu corpo e sua representação
vés da estilização do corpo, de uma performan- acabam por ser invisibilizados ou tomados
ce do sujeito no mundo, a partir de seu corpo, como “o outro”, uma deturpação do masculino.
que o gênero se manifesta e existe no mundo. Laqueur contribui neste campo ao
Os estilos possíveis para performance apontar que antes da diferenciação sexual dos
e construção do gênero e sexo são colocados séculos XVIII e XIX não se tinha nem mesmo
antes mesmo do nascimento do indivíduo, re- um nome específico para a genitália atribuí-
forçados pelas interações sociais com a famí- da ao corpo da mulher, sendo a vagina con-
lia, Estado e a linguagem, tudo contribuindo siderada um tipo de pênis interno, uma ou-
para a criação de uma ilusão de que tal iden- tra disposição do sistema masculino. O autor
tidade seria algo dado, natural. Para contes- afirma que “(...) só houve interesse em buscar
tar essa reificação, Butler propõe entender evidências de dois sexos distintos, diferen-
gênero enquanto uma performance ancorada ças anatômicas e fisiológicas concretas entre
em tabus e sanções sociais, algo que precisa o homem e a mulher, quando essas diferen-
constantemente ser reproduzido e praticado ças se tornaram politicamente importantes.”
pelos indivíduos em sociedade para que seu (LAQUEUR, 2001, pg. 21). Essa importância
significado seja reafirmado no mundo. política seria, segundo o autor, parte do con-
A agência do sujeito em sua perfor- texto de competição entre os sexos, nas lutas
mance e interiorização dos estilos e símbolos gendradas pelo poder na sociedade.
de gênero são, portanto, vitais para o manti- Nessa disputa, o corpo feminino foi
mento das normatizações do próprio gênero. posto como o problemático e o imperfeito, en-
A impossibilidade de uma identidade estáti- quanto o corpo masculino era a norma estável.
ca e universal se justifica justamente por isso, “Só a mulher parece ter “gênero”, pois a próxima
afinal, os indivíduos estão alinhados com seus categoria definida como o aspecto de relações
diversos contextos históricos e são perpassados sociais baseado na diferença entre os sexos, onde
por diferentes recortes de classe, raça e etnia. o padrão sempre foi o homem.” (LAQUEUR,
Todavia, apesar destes atos individuais 2001, p. 32). Esta visão de problema de Laqueur

61
pode ser enriquecida pela proposta de Butler de reforço, pois aceitar e reproduzir esta máxima
não tratar problemas como algo sempre negati- seria pressuposto para que os indivíduos se-
vo, afinal o problema pode ser visto como ape- jam bem aceitos na sociedade.
nas as ameaças e contestações à lei dominante, Desta forma, são os discursos de gê-
algo inevitável na luta por direitos e igualdade. nero que violentam corpos e mentes ao nor-
Para Butler, o melhor seria saber a matizarem as possibilidades de os corpos
melhor forma de se criar e administrar estes existirem e se relacionarem no mundo social,
problemas. Para isto, se volta a uma questão já ancorados em instituições sociais presentes
apresentada neste escrito que diz respeito às na vida dos indivíduos, como a escola, a pri-
possibilidades que os indivíduos têm de per- são, a igreja e a família. Destarte, pode-se
formar seu gênero. Já foi apontado que não é afirmar que a escola, apesar de não ser a úni-
uma escolha individual, apesar de ser na agên- ca, é uma agente de grande potência na pro-
cia de cada um e de sua performance que o gê- dução e veiculação dos discursos de gênero
nero se apresenta na sociedade. que se tornaram hegemônicos na sociedade.
Uma pista para compreender melhor Na seção seguinte deste trabalho pro-
este problema se encontra em um ponto cen- ponho a aplicação destes pressupostos sobre a
tral que Butler apontou ao evidenciar as con- produção de papéis de gênero pela escola. A
tradições que o feminismo precisa reconhecer partir da materialidade de um livro infantil
enquanto movimento, na busca de uma coa- produzido durante o governo de Getúlio de
lizão para lutas políticas: “Em primeiro lugar, Vargas, serão explorados quais eram os papéis
devemos questionar as relações de poder que de gênero normatizados e disponíveis para
condicionam e limitam as possibilidades dialó- crianças que frequentavam o espaço escolar
gicas. De outro modo, o modelo dialógico corre nesta época e tinham acesso a este livro.
o risco de degenerar num liberalismo que pres-
supõe que os diversos agentes do discurso ocu- Análise de documento
pam posições de poder iguais (...)” (BUTLER,
2003, pg. 35). Nesta passagem, a autora eviden- O documento selecionado para análise
cia a existência de mecanismos de poder que li- neste trabalho é o intitulado “A Juventude e o
mitam as possibilidades de performance de gê- Estado Novo” (DIP, 1937-1945). Enquanto ma-
nero pelas pessoas, algo centrado nas posições terial produzido pelo departamento oficial de
desiguais hierarquicamente de poder. Nesse propaganda do governo, este documento pode
esquema, alguns atores e centros produtores de ser considerado como um veículo de discursos
discurso teriam privilégio em ter suas ideias e potentes do Estado, uma fonte de onde, de
propostas sobre gênero tornando-se a norma, forma ativa e consciente, foi propagandeado o
às custas da invisibilização de outros. que se esperava das atitudes e comportamentos
Tal situação acaba por ocasionar em para homens e mulheres nacionais.
uma violência simbólica que leva as pessoas O livro é um compilado de trechos de
a acreditar que, na constituição de suas iden- discursos, manifestos e entrevistas do presi-
tidades, só podem se fazer inteligíveis entre dente Getúlio Vargas sobre assuntos diversos
si caso performem um gênero que esteja em (como trabalho, educação e nacionalismo),
conformidade com os padrões correntes. O sempre acompanhados de imagens grandes e
binarismo imposto de homens e mulheres coloridas correlacionadas com a mensagem
como entidades estáticas e opostas teria aí seu do texto escrito.

62
Figura 1

Capa do livro “A Juventude no Estado Novo”, com título da obra em


letras maiúsculas no canto superior direito da imagem. No canto inferior
esquerdo é representado um menino de cabeça baixa com um livro à sua
frente; o menino se veste com camisa branca e gravata

Já na capa se têm uma ideia da “juven- Butler já apresentada neste escrito, o sujeito
tude” a quem se direciona a obra e suas men- abstrato que é a “criança brasileira” neste docu-
sagens: apenas um menino está representado mento é essencialmente masculino. Apesar do
nesta imagem, algo que pode ser inferido pelo foco ser este sujeito universal, existe a represen-
seu corte de cabelo e roupas. É recorrente nes- tação do feminino enquanto dualidade e contra-
te livreto, já desde a capa, privilegiar a figura ponto, como será apontado posteriormente.
masculina no discurso ao se tratar das crian- Logo de partida, na primeira página
ças e jovens no coletivo, sendo os meninos re- escrita deste documento, os autores24 afirmam
presentados como os executores das ações e seu compromisso com uma educação com
comportamentos exemplificados, os alvos das objetivo específico: “Educar não é, somente,
instruções educativas do livro. instruir, mas desenvolver a moralidade e o
Dessa forma, aplicando uma ideia de caráter, preparando o homem para a comu-
24
Livro sem autoria, prática comum do DIP em comprar títulos de escritos e distribuí-los como produção pró-
pria. Existe a possibilidade também de ter sido o corpo técnico do próprio departamento a organizar a produção,
escrita e ilustração da obra.

63
nhão (...)” (DIP, 1937-1945, s./pg.). Incutir uma mais atrativo para as crianças, para direcionar
moral e valores propagandeados pelo Estado, o olhar e a interpretação das palavras do presi-
portanto, era um dos objetivos centrais da dente ou ainda para que a mensagem fosse aces-
educação na visão varguista. sível às pessoas que não soubessem ler e escre-
Como supracitado, junto à coletânea ver. Desse modo se justifica a importância de
de trechos de discursos e falas do presidente levar em consideração tanto as imagens quanto
do país foram colocadas diversas imagens, o o texto escrito para compreender e analisar as
que pode ser explicado para que o escrito fosse mensagens contidas neste documento.

Figura 2

Três personagens se encontram em evidência, uma mulher e um


homem adultos, e uma criança. Todos são brancos e aparentam usar
vestimentas de luxo (o homem de paletó e gravata, a mulher com
alguma pele envolvendo seu torço e vestido longo e a criança à moda
de marinheiro, com uma camisa branca com gola azul e lenço preto
amarrado sob a gola da camisa). À mesa, itens como um abajur, um
vaso com flores e um livro aberto com ilustrações

64
Chamo a atenção para a interação en- Figura 3
tre os personagens, uma relação que pode ser
correlacionada com os pensamentos do cam-
po de gênero considerados neste trabalho. Na
imagem, a criança segura a mão da mulher e a
aproxima de seu rosto, como se fosse beijá-la
ou prestes a isso, com a mulher olhando pas-
sivamente para o menino enquanto o homem
observa a tudo com um sorriso no rosto, o que
pode se supor num gesto de aprovação.
O texto que se encontra no canto es-
querdo inferior da imagem, escrito em letra
cursiva, versa sobre a importância da famí-
lia e associa a prosperidade da pátria com a
prosperidade do lar, evidenciando que é entre
os entes queridos que pode se encontrar a fe-
licidade25. Logo, com a comparação do texto
com a imagem, pode-se inferir que a imagem
representa uma família, com pai, mãe e filho
interagindo dentro de sua casa.
Levando em conta os objetivos edu-
cativos que este livro assume em sua própria
introdução, de instruir no desenvolvimento
da moral e costumes específicos, é preciso
pensar qual tipo de instrução a mensagem
desta página se propõe a dar. A atitude ca-
valheiresca de beijar a mão de uma mulher
parece ser encorajada ao homem desde a in- Dois personagens em destaque, uma mulher idosa e uma
fância, com ele tendo a atitude ativa do ato criança. As vestes de ambos indicam certa deferência, com
enquanto a mulher assiste a tal de forma pas- a criança de gravata, camisa e suspensórios, enquanto a
siva, ancorada por outro homem ao seu lado, mulher se veste com vestido longo e um lenço ao redor do
o marido e pai — que aprova o movimento pescoço, tendo pelo chão ao seu lado um guarda-chuva e o
com um sorriso no rosto. Tudo se dá no âm- que parece ser uma bolsa
bito familiar, da casa — o que simboliza que,
apesar da instrução sobre tal comportamen-
to ser veiculada pelo livro infantil, se investe
na instituição familiar como forma de legiti- Novamente, evidencio a interação en-
midade da mensagem que se quer passar. tre os personagens nesta ilustração: a mulher
A mesma atitude passiva da mulher se encontra caída no chão, com o semblante
em relação ao posicionamento ativo do me- demonstrando alguma forma de agonia ou des-
nino pode ser vista algumas páginas à frente, conforto; enquanto isso, o menino assume uma
como representado a seguir. posição ativa, segura uma das mãos da mulher
caída e parece tentar ajudá-la a erguer-se, apre-
sentando um semblante sério neste ato.
O texto no canto inferior esquerdo
da imagem apresenta a visão da escola não ser
um lugar apenas de alfabetização, mas tam-
bém um espaço para “(...) difundir princípios
uniformes de disciplina cívica e moral (...) for-
mação do caráter das novas gerações, impri-
mindo-lhes rumos de nacionalismo sadio.”26

25
“Brasileiros! Como vós, creio nos altos destinos da Pátria e, como vós, trabalho para realizá-los. / De coração
confiante e ânimo alevantado, consagrai-vos ao labor cotidiano e aos cuidados do lar, onde haveis guardado as
esperanças de felicidade e encontrais aconchego confortador dos entes queridos.”
26
“Não se cogitará apenas de alfabetizar o maior número possível, mas também de difundir princípios uniformes
de disciplina cívica e moral, de sorte a transformar a escola primária em fator eficiente da formação do caráter
das novas gerações, imprimindo-lhes rumos de nacionalismo sadio.”

65
A lição nesta imagem, aliada à mensagem por quanto os homens são protagonistas das ações.
escrito, se dirige a um comportamento a ser As mensagens presentes nas páginas (tanto por
seguido pelo menino que tanto concorreria escrito quanto nas imagens) parecem concor-
para seu desenvolvimento moral quanto sig- rer para incentivar o comportamento protetor
nificaria seu dever para com a pátria. e ativo do homem (materializado na figura do
Este dever, nesta situação, pode ser in- menino), enquanto as mulheres aparecem como
terpretado como o papel do homem de respon- o sujeito que precisa de auxílio, que está ali para
sabilidade por seu bem-estar, de tomar as rédeas a interação com a figura masculina.
da situação e cuidar da figura da mulher que Há uma passagem no livro, entretan-
precisa ser amparada por algum motivo. Tal re- to, que atribui uma agência maior da mulher e
lação entre homem e mulher é algo recorrente ao que não está ligada a uma ação com uma figura
longo das ilustrações deste livreto infantil, com masculina. Tal situação diz respeito ao mundo
a mulher sendo colocada na posição passiva en- do trabalho, representada nas figuras abaixo.

Figura 4

Representação de duas páginas do livro “A Juventude no Estado Novo”. Na primeira página, duas
personagens são retratadas, uma menina e uma mulher adulta. A menina está sentada em uma cadeira
florida, segurando uma agulha, um pedaço de linha e um pano nas mãos, vestindo uma roupa de cor
clara com gola branca que lhe cobre o pescoço. A mulher traja um vestido longo e dourado que lhe cobre
todo o corpo; está curvada sobre a criança, segurando o mesmo pano que a menina. Na segunda página
estão representados dois personagens, um menino e um homem adulto. Suas roupas são idênticas: uma
camisa branca com a manga dobrada, gravata azul escura e um avental verde por cima. O menino segura
uma folha de papel e a olha de frente, com grande sorriso no rosto; o homem têm olhar sério, segura uma
folha de papel na mão, tomando notas a partir das informações da folha que o menino está a segurar. Na
mesa à frente dos personagens estão dispostos alguns itens: um pote contendo algum líquido e um tipo de
pincel ou lápis; dois mapas do Brasil, sendo um deles disposto em um suporte com um rolo acoplado

66
A descrição das imagens é longa, mas Como evidenciado nos trechos elen-
importante para sua análise de forma comple- cados neste trabalho, as estilizações do corpo
ta, pois as comparações que podem ser feitas a para performance dos gêneros para homens e
partir de como os personagens estão dispostos mulheres é algo que pode ser observado nas
em cada página dizem muito a respeito sobre representações deste livreto. A mulher em di-
os papéis de gênero para homens e mulheres da versas situações assume uma posição passiva, à
época. Antes de se debruçar sobre as imagens, espera da ação da figura masculina (represen-
é importante dar destaque aos textos contidos tada pelo menino recorrente nas ilustrações);
em cada uma, ambos versando sobre o trabalho seus movimentos e expressões são comedidos
e sua importância para a nação. em comparação aos gestos dos homens. Todos
Na primeira, com as duas mulheres estes atributos podem ser pensados na chave
sendo retratadas, a passagem é curta, sendo da performance proposta por Butler, das possi-
apenas uma exclamação sobre a importância bilidades e normatizações disponíveis para os
do trabalho para a elevação da humanidade27. indivíduos performarem seus gêneros.
Já na segunda página, a mensagem se torna um
pouco mais complexa, versando sobre o erro de Considerações finais
se ter menos técnicos que doutores no Brasil
e que o governo central promoveu a moderni- Se o corpo é como propôs Merleau de
zação de diversos estabelecimentos ao mesmo Ponty “um conjunto de possibilidades”, quais são
tempo que construiu escolas para educar e ins- as possibilidades discursivas que homens e mu-
truir os jovens pelo país em suas profissões.28 lheres têm acesso/conhecimento durante seu de-
A disposição das mensagens em rela- senvolvimento? Este trabalho buscou demonstrar
ção às imagens apresentadas por si só já carrega como a violência simbólica de alguns discursos
muitos significados, com a discussão sobre os pode limitar as possibilidades discursivas para a
tipos de trabalho diversos sendo representada performance de gênero de homens e mulheres.
pela figura dos homens, enquanto às mulheres Como apontado nos pensamentos
se direciona apenas a máxima genérica de que o teóricos da primeira seção deste trabalho,
trabalho tem sua importância. Os tipos de tra- gênero é um discurso produzido em diversos
balho que cada um exerce igualmente precisam espaços da sociedade, performado pelos indi-
ser apontados, com as mulheres assumindo a víduos a todo momento de sua vida a partir
tradicional função da costura, enquanto os ho- da reprodução de discursos que precedem seu
mens se ocupam de trabalhos mais técnicos. próprio nascimento. Toda essa complexifica-
A estilização do corpo dos perso- ção da estilização do corpo, sexo e gênero dos
nagens retratados necessita igualmente de indivíduos decorre em uma reificação destes
atenção de análise. Tanto a menina quanto a aspectos na vida dos sujeitos, como se fossem
mulher adulta são retratadas de forma curva- naturais de suas identidades enquanto ho-
da, com o olhar baixo, enquanto os homens, mens ou mulheres. O olhar baixo das mulhe-
principalmente o menino, mantém o olhar res e a imponência dos homens representados
erguido em posição altiva. n’A Juventude no Estado Novo ajuda a des-
Os gestos e comportamento com que vendar o problema de pensar como tais per-
são retratadas as figuras masculinas e femini- formances são construídas e transmitidas, e
nas nesta obra dizem muito respeito aos papéis não dados naturais da identidade de cada um.
de gênero produzidos e normatizados para se- A perseguição e proibição das discus-
rem seguidos pelas crianças que tinham acesso sões atuais que se quer fazer não é sobre o gê-
a este documento. Com a constante afirma- nero em si, mas sim sobre as possibilidades de
ção em várias páginas de que o livreto tinha a transformação de pensamento e cultura que sur-
pretensão de educar e instruir civicamente os gem a partir do momento que se entende que a
jovens para seu bom desenvolvimento e con- realidade que se apresenta hoje foi construída
tribuição com a pátria, é plausível apontar que socialmente, sendo possível se forjar outra. É
eram estes também papéis de gênero que se es- este debate que se quer suprimir ao proibir os
perava que meninos e meninas seguissem. debates e estudos sobre ideologias de gênero.

27
“O trabalho é o maior fator da elevação da dignidade humana!”
28
“Havia abundância de doutores e falta de técnicos qualificados; o homem competente no seu ofício era raro;
o artesanato decaiu diante da máquina, sem que pudéssemos dispor de trabalhadores industriais. / O Governo
Nacional resolveu empreender, a esse respeito, obra decisiva. Além de modernizar os estabelecimentos existen-
tes, ampliando-lhes a capacidade e eficiência, iniciou a construção de grandes escolas profissionais que deverão
constituir uma vasta rede de ensino popular, com irradiações por todo o país.”

67
Referências bibliográficas Fontes

BUTLER, J. Atos performáticos e a formação A Juventude no Estado Novo. DIP, 1937-1945.


dos gêneros: um ensaio sobre fenomenologia
e teoria feminista. In: HOLLANDA, H. B. de HAJE, L. Projeto criminaliza promoção de
(org.). Pensamento feminista: conceitos funda- “ideologia de gênero” nas escolas. Agência Câ-
mentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. mara de Notícias, 2020. Disponível em: <https://
www.camara.leg.br/noticias/699563-projeto-
______________. Problemas de Gênero: feminis- -criminaliza-promocao-de-ideologia-de-genero-
mo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: -nas-escolas/>. Acesso em 11 de abr. de 2021.
Civilização Brasileira, 2003.

LAQUEUR, T. Inventando o Sexo: corpo e


gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Re-
lume Dumará, 2001.

68
Simpósio Temático 1.2

Educação, infâncias
e juventudes
latino-americanas

Fonte: Arquivo Memorial da Irmandade do Divino Espírito Santo — IDES

69
INFÂNCIAS E ADOLESCÊNCIAS
NA HISTÓRIA ESCOLAR:
INVESTIGANDO O ADULTOCENTRISMO

Emanuel Bernardo Resumo: O campo do Ensino de His-


Tenório Cavalcante29 tória vem ganhando mais espaço, à medida
que se consolida como recorte importante nos
grupos de pesquisa e programas de pós-gradua-
ção espalhados pelo país. Os questionamentos
levantados no âmbito das investigações, além
de pedagogicamente pertinentes, também são
organizados de modo a edificar as bases de um
campo que se situa na fronteira entre a His-
tória (ciência de referência), a Pedagogia e a
História escolar, com características e espaço
de mobilidade próprios. Por que a vivência de
conteúdos atitudinais e procedimentais ain-
da é tão incipiente? (ZABALA,1998). Qual o
sentido da permanência de perspectivas con-
trárias aos direitos humanos e refratárias a de-
mocracia, mesmo em crianças e adolescentes
expostas com certa intensidade a aulas de his-
tória, que trazem, em seus currículos a propos-
ta de preparar para o exercício da cidadania? O
fio condutor dessas interrogações é a pergun-
ta acerca do lugar que crianças e adolescentes
ocupam na História Escolar, e de como esse
lugar ou não lugar impacta na aprendizagem
dos conteúdos históricos e na formação de
identidades ricas e complexas. Nossa hipótese
é que crianças e adolescentes são colocados à
margem das narrativas escolares, tanto nas au-
las expositivas dos professores como na escrita
dos livros didáticos de história. Em (CAVAL-
CANTE, 2018), analisamos dois livros didáti-
29
Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Pernambuco — UFPE.

70
cos do terceiro ano do ensino médio: História quanto ciência de referência), a Pedagogia e
das cavernas ao terceiro Milênio volume 3- Do a História escolar, entendida como elemento
avanço do imperialismo no século XIX aos dias da cultura escolar, com características e espa-
atuais. Autores: Patrícia Ramos Braick e My- ço de mobilidade próprios.
riam Becho Mota e História: Sociedade e Ci- Em meio aos intercâmbios entre
dadania, volume 3 de autoria de Alfredo Bou- áreas do conhecimento, observamos que os
los Júnior. A análise recaiu sobre as categorias: principais temas pesquisados pelo campo
movimentos sociais, crianças e adolescentes a partir de uma análise da produção da re-
como sujeitos históricos e Direitos Humanos, vista História e Educação da UFPR foram:
o recorte temporal foi o período da redemo- aprendizado histórico, construção de sabe-
cratização entre os anos finais da ditadura ci- res histórico escolares, história da disciplina
vil-militar e a consolidação da constituição de de História (escolar), currículo de História
1988. A constatação provisória que verificamos escolar, cognição histórica e história das in-
a partir da análise, aponta para um apagamen- fâncias e adolescências. (RAMOS, 2012)
to do protagonismo das crianças e adolescen- Operando um confronto dialógico en-
tes das narrativas histórico escolares, mas resta tre essas temáticas, e colocando frente a frente
ainda o questionamento: por que isso se dá des- preocupações com a cognição histórica, apren-
sa forma? O que explica essa operação de tor- dizagem histórica, currículo de história e His-
nar invisíveis meninos e meninas? Ao encontro tória das infâncias e adolescências chegamos à
dessas indagações vem a Sociologia da Infância percepção de inadequações, silêncios e omis-
(CORSARO,2011) que através do conceito de sões que emergem da prática e da teoria cir-
adultocentrismo, fornece uma categoria teóri- cundante às vivências do Ensino de História.
ca para abarcar as estruturas de uma sociedade Por que a aprendizagem de conteúdos
que opera a partir de um paradigma adulto- factuais é tão incipiente? Por que a vivência
centrado. Por adultocentrismo, entendemos de conteúdos atitudinais e procedimentais
um conjunto de práticas e um modo de olhar ainda deixam a desejar? (ZABALA, 1998).
que invisibiliza crianças e adolescentes, negan- Qual o sentido da permanência de perspec-
do-lhes a condição de sujeitos de suas histórias, tivas contrárias aos direitos humanos e re-
caracterizando-se pela construção de um modo fratárias a democracia mesmo em crianças e
de ser que toma o adulto como única referên- adolescentes expostas com certa intensidade
cia. A constituição de uma sociedade baseada a aulas de história que trazem inclusive em
em hierarquias referenciadas na idade explica seus currículos guias a proposta de preparar
muitos dos aspectos ligados a marginalização para o exercício da cidadania? (LDB, 1996)
de meninos e meninas, inclusive com repercus- Nesse borbulhar de interrogações o
são no campo da cultura escolar e invertendo fio condutor é a pergunta acerca do lugar que
papéis e prioridades, o que consideramos pro- crianças e adolescentes vêm ocupando na His-
blemático para a construção de um Ensino de tória Escolar, e de como esse lugar ou não lugar
História mais significativo. impacta na aprendizagem histórica dos con-
teúdos escolares e no consequente deslocamen-
Palavras chave: Ensino de História. In- to da consciência histórica dos meninos e me-
fâncias. Adultocentrismo. ninas para o âmbito genético. (RUSEN, 2015)
A pergunta sobre o protagonismo das
crianças e adolescentes ganha força, a medida
Introdução em que tomamos contato com um significativo
avanço da produção historiográfica a cerca das
O campo de pesquisa do Ensino de infâncias e adolescências. Para além dos já clás-
História que começou a se estabelecer no Bra- sicos (ARIES, 1981) e Colin Heywood, (2004),
sil, a partir do início dos anos 2000, vem atual- que consolidaram um repertório de sentidos
mente ganhando mais espaço, à medida que se históricos a partir da investigação da socieda-
consolida como recorte importante nos grupos de e da cultura; encontramos novos espaços de
de pesquisa e programas de pós graduação es- produção como o Laboratório de História das
palhados pelo país. (RAMOS, 2012) Infâncias do Nordeste da UFRPE, que investi-
Os questionamentos levantados no ga atualmente as infâncias e adolescências com
âmbito das investigações do Ensino de his- um olhar especialmente voltado para as condi-
tória, além de pedagogicamente pertinentes, ções identitárias de gênero e raça sem perder
também são organizados de modo a edificar de vista o importante recorte de classe, tão evi-
as bases de um campo específico de pesquisas dente quando os sujeitos da pesquisa são meni-
que se situa na fronteira entre a História (en- nos e meninas que vivem em situação de rua.

71
O resultado dessa confluência de da agência cidadã das crianças e adolescentes,
pontos de vista, que começam pelas preocu- acompanhar possíveis citações ou referências
pações do Ensino de História e se deparam que venham a colocar meninos e meninas no
com a realidade de uma historiografia das foco dos movimentos de transformação histó-
infâncias bem estabelecida é a pergunta cen- rica, ou evidenciar deslocamentos negativos
tral sobre o lugar que as crianças e adoles- que apagam ou ignoram crianças e adolescen-
centes ocupam no Ensino de História, esse tes como sujeitos históricos.
lugar é de destaque? Em caso negativo quais Achamos conveniente iniciar a descri-
os motivos desse apagamento? ção da análise empreendida nos livros supraci-
tados pela obra de (BOULOS,2013), especial-
Crianças e adolescentes nas mente por um trecho sintomático do modo
como se opera a invisibilização dos adolescen-
narrativas histórico escolares tes nas narrativas histórico escolares presentes
nos livros didáticos, para isso precisaremos co-
Nossa hipótese é que as crianças e tejar duas referencias uma iconográfica e outra
adolescentes são postas à margem da narra- escrita. Atentem para a seguinte citação:
tiva histórico escolar presente tanto nas aulas
expositivas dos professores como na escri- Mas além de praticar a intimidação, os
ta dos livros didáticos de história. Em (CA- fascistas recorriam também ao convenci-
VALCANTE, 2018), tivemos a oportunidade mento; exemplo disso são os programas
de analisar dois livros didáticos do terceiro específicos para a juventude que mostra-
ano do ensino médio: História das cavernas ao vam sua eficiência conseguindo arrastar
terceiro Milênio volume 3 — Do avanço do impe- para as fileiras do movimento um grande
rialismo no século XIX aos dias atuais. Editora: número de jovens. (BOULOS, 2013, p. 87)
Moderna. Autores: Patrícia Ramos Braick e
Myriam Becho Mota e História: Sociedade e Ci- Nela as palavras juventude e jovens
dadania, volume 3 da editora FTD e de autoria aparecem como marcadores etários, como
de Alfredo Boulos Júnior. Ambos os livros são signos de uma classificação baseada na ida-
muito bem avaliados pelo PNLD 2015 e são de, entretanto o termo jovem e juventude é
bastante adotados nas escolas públicas e par- muito amplo, e não contempla nem as espe-
ticulares do estado de Pernambuco. cificações do Estatuto da Criança e do Ado-
O foco da análise recaiu sobre as lescente (ECA), que define como adolescen-
seguintes categorias: movimentos sociais, te meninos e meninas dos doze aos dezoito
crianças e adolescentes como sujeitos histó- anos, nem a percepção da própria cultura
ricos e Direitos Humanos, o recorte tempo- escolar que sedimenta a auto referência dos
ral definido para a análise foi o do período estudantes do ensino médio em torno do ter-
da redemocratização entre os anos finais da mo adolescente.
ditadura civil-militar e a consolidação da A ausência do termo “adolescente” se tor-
constituição de 1988. na mais evidente quando comparamos a citação
O objetivo desse movimento de análi- acima com a imagem que vem logo em seguida
se é perceber como o material didático trata no corpo do texto didático a título de ilustração:

72
torno do termo adolescente.
A ausência do termo “adolescente” se torna mais evidente quando comparamos a citação
acima com a imagem que vem logo em seguida no corpo do texto didático a título de ilustração:
: Figura 1

Adolescentes fascistas. Fonte: História: Sociedade e cidadania - 3. Ano. (BOULOS, 2013, p. 87.)
Imagem 1: adolescentes fascistas. Fonte: História: Sociedade e cidadania- 3. Ano. (BOULOS, 2013, p. 87.)

Poderia as pessoas que aparecem nes- Eis o trecho:


Poderia
sa foto as pessoas
ser designadas queadolescentes?
como aparecem nessaSe foto ser designadas como adolescentes? Se não,
e onão, e o argumento
argumento utilizado
utilizado é que:tanto
é que: tantofaz
faz jovem ou adolescente,
O governo de Mussolini usou intensa-
tal posicionamento só
jovem ou adolescente, tal posicionamento mente a educação para divulgar suas
só demarcaria
demarcaria ignorância
ignorância sobre sobre a questão.
a questão. Por que não tornar visível
ideias. Asa escolas
identidade dofascista
da Itália adolescente
ensi-
Por que não tornar visível a identidade do navam, além das matérias tradicionais,
nomeando-o
adolescentenonomeando-o
corpo do texto, mesmo
no corpo que entre outros personagens?
do texto, temas da vida de Mussolini, com foco nas
mesmo que entre outros personagens? suas “grandes” realizações. Para aprender
Tal movimento de identificação seria a ler as crianças eram obrigadas a copiar 92
um reforço para a implementação da empatia dezenas de vezes lemas fascistas, como:
histórica como estratégia didática da aprendi- “Melhor viver um dia como leão do que
zagem histórica, favorecendo o deslocamento e cem anos como cordeiro”. Toda criança
a orientação dos estudantes ao se perceberem entre 8 e 14 anos tinha que decorar uma
no desenrolar dos processos de mudança. oração que em vez de dizer “Creio em
Com referência às crianças observa- Deus”, dizia “Creio no gênio de Mus-
mos um trecho específico que serve de exem- solini”. Os professores que se negavam
plo do modo “cosmético” de inserir as crian- a ensinar tais coisas eram perseguidos.
ças nas narrativas histórico escolares. Por (BOULOS, 2013, p. 88)
modo cosmético entendemos aquele no qual
os autores até escrevem palavras como crian- Nota-se que no trecho acima, a palavra
ças, meninos, meninas...., mas fazem de modo criança aparece duas vezes, uma no singular e
a incluí-las numa narrativa da qual elas não outra no plural, entretanto fazendo eco a nossa
são o fio condutor da argumentação. Nesses reflexão anterior o contexto do aparecimento
casos, normalmente elas são citadas apenas é o de ilustrar a intensidade do alcance da pro-
para reforçar uma ideia já presente no texto paganda ideológica do fascismo através da edu-
e que normalmente faz referência ao mundo cação. As crianças eram forçadas a ler e copiar
adulto e que pode ser compreendida no con- dezenas de vezes lemas fascistas. Fica patente o
texto do paradigma adultocêntrico. uso “cosmético” da referência às crianças.

73
Na seção “Para saber mais”, encon- período da Revolução cultural, marcado pelo
tramos uma outra referência às crianças, es- culto à personalidade de Mao Tsé Tung. O au-
pecialmente localizada numa citação à Revo- tor reproduz um trecho das memórias de uma
lução Chinesa de 1949, o autor discorre sobre estudante chinesa. Ainda compõe o contexto,
a expansão do pensamento maoísta entre as da referida seção, uma foto que ao lado do tex-
camadas mais jovens da população, durante o to traz na legenda uma referência aos “jovens”:

Figura
Imagem 2: Depoimento 2 estudante chinesa.
de uma

Depoimento de uma estudante chinesa. Fonte: História: Sociedade e cidadania - 3 Ano. (BOULLOS, 2013, p. 173)
Fonte: História: Sociedade e cidadania-3Ano. (BOULLOS, 2013, p. 173)

Podemos considerar que essa referência feita pela imagem, que mostra alguns jovens
Podemos considerar que essa referên- imagens de crianças pobres, subnutridas, ou ex-
(poderiam serimagem,
cia feita pela chamados que adolescentes), se manifestando,
mostra alguns jovens postas asseria uma demonstração
intempéries, de como ima-
crianças imigrantes, eles
(poderiam ser chamados adolescentes), se ma- gens de crianças mortas ou feridas.
eram ativamente
nifestando, envolvidos
seria uma em protestos
demonstração de como e mobilizações. NãoMas basta a leitura
consideramos que do
umtexto
textopara
di-
eles eram que
perceber ativamente
o objetivoenvolvidos
da seçãoemnão protestos
era destacardático deve passardos
o protagonismo ao largo das violações
adolescentes, dos
mas sim
e mobilizações. Mas basta a leitura do texto direitos humanos praticadas contra crianças
pontuar como que
para perceber eles oeram alvosdadaseção
objetivo manipulação
não era do eEstado autoritário.
adolescentes, ao contrário a denúncia des-
destacar o protagonismo dos adolescentes, mas sas violações, principalmente quando feitas
Outrocomo
sim pontuar modo elesde
eramtratar
alvos as crianças e adolescentes
da manipu- nos materiais
de modo diacrônico auxiliam didáticos
a problemati-que
lação do Estadonão
consideramos autoritário.
totalmente voltado para visibilizar zar a osituação contemporânea
protagonismo dos mesmos em enquanto
que me-
Outro modo de tratar as crianças e ado- ninos e meninas são submetidos a situações
lescentesda
sujeitos noshistória
materiaisé odidáticos que considera-
que chamamos deploráveis.
de:” modo expositivo daEntretanto
vítima”. Empara o quenarrativas
algumas concerne
mos não totalmente voltado para visibilizar o a nossa análise, entendemos que não se pode
histórico escolares
protagonismo podemos
dos mesmos encontrar
enquanto textos
sujeitos da iconográficos
tratar dessequetema
trazem imagens
apenas com de crianças
o olhar paranaa
história é o que chamamos de:” modo expositivo criança sofredora e vítima, que numa função
posição
da vítima”.deEm vítimas
algumas danarrativas
sociedade, não ées-raro encontrarmos
histórico retórica pode imagens de crianças
ter suas imagens pobres,
mobilizadas
colares podemos
subnutridas, ou encontrar
expostas as textos iconográficos
intempéries, criançasapenas para causar
imigrantes, imagensimpacto emocional.
de crianças mortas ou
que trazem imagens de crianças na posição de Para ilustrar um uso dessa prática
vítimas da sociedade, não é raro encontrarmos
feridas. apresentamos a imagem a seguir:
Não consideramos que um texto didático deve passar ao largo das violações dos direitos
humanos praticadas contra crianças e adolescentes, ao contrário a denúncia dessas violações,
principalmente quando feitas de modo diacrônico auxiliam a problematizar a situação
contemporânea em que meninos e meninas são submetidos a situações deploráveis. Entretanto
para o que concerne a nossa análise, entendemos que não se pode tratar desse tema apenas com
74
94
o olhar para a criança sofredora e vítima, que numa função retórica pode ter suas imagens
mobilizadas apenas para causar impacto emocional.
Para ilustrar um uso dessa prática apresentamos a imagem a seguir:
Figura 3

Fonte: História: das cavernas ao terceiro milênio - 3 Ano. (BRAICK, MOTA, 2013, p. 120)
Imagem 3. Fonte: História: das cavernas ao terceiro milênio-3Ano. (BRAICK, MOTA, 2013, p. 120)

Essa imagem faz parte do livro: “Das Cavernas ao terceiro Milênio” (BRAICK, MOTA,
Essa imagem faz parte do livro: “Das didático, aponta para um apagamento do
2013),
Cavernase nela
ao asterceiro
autoras Milênio”
fazem uma(BRAICK,
referência a Guerra do Vietnã,
protagonismo dase de como esse
crianças conflito foi
e adolescentes
MOTA, 2013), e nela as autoras fazem uma das narrativas histórico escolares, mas resta
palco das disputas
referência a Guerradedopoder características
Vietnã, e de como da guerra
ainda fria (1945-1991). Dispõem
o questionamento: de algum
por que isso se dá
esse conflito foi palco das disputas de po- dessa forma? O que explica essa
espaço para relatar a fase final do confronto, falam sobre como os americanos usaram de vários operação de
der características da guerra fria (1945-1991). tornar invisível meninos e meninas?
recursos
Dispõem bélicos,
de algumextremamente questionáveis,
espaço para relatar a fase como armas químicas:dessas
Ao encontro o “agente laranja”
indagações veme
final do confronto, falam sobre como os a contribuição da sociologia da infância que
Napalm.
americanos usaram de vários recursos béli- através do conceito de adultocentrismo, for-
cos, extremamente questionáveis, como ar- nece uma categoria teórica capaz de abarcar
As autoras
mas químicas: apresentam
o “agente laranja”uma foto que mostra
e Napalm. crianças vietnamitas
as estruturas sendo atingidas
de uma sociedade que opera pora
napalm As autoras apresentam
e correndo desesperadasuma comfoto
a dorqueque sentem.
partir deA um paradigma
legenda da fotoadultocentrado.
usa textualmente Pora
mostra crianças vietnamitas sendo atingidas adultocentrismo, entendemos um conjunto
expressão
por napalm“crianças”.
e correndo Repetimos que com
desesperadas o problema
a decom essa eforma
práticas um modode sedereferir a crianças
olhar que invisibi-e
dor que sentem. A legenda da foto usa tex- liza crianças e adolescentes, negando-lhes a
adolescentes nas narrativas
tualmente a expressão histórico
“crianças”. escolares,condição
Repetimos se dá quando,
de sujeitosno decorpo do livro carac-
suas histórias, essas
que o problemasecom
apresentações essa forma
tornam de se referir
dominantes a
e não permitemterizando-se pela construção
aos estudantes ver outrasde um modo de
representações
crianças e adolescentes nas narrativas históri- ser que toma o adulto como única referência.
co escolares,
de infâncias se dá quando, noque
e adolescentes, corpo doalém
para livro do padrão
(FARIA, SANTIAGO,
sofredor 2021) agentes de sua
são também
essas apresentações se tornam dominantes e A constituição de uma sociedade ba-
própria história.aos estudantes ver outras re-
não permitem seada em hierarquias referenciadas na idade
presentações de infâncias e adolescentes, que explica muito dos aspectos ligados a margi-
para além do padrão sofredor são também nalização de meninos e meninas, inclusive
agentes de sua própria história.
CONTRIBUIÇÃO DA SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA com repercussão no campo da cultura esco-
lar e invertendo papéis e prioridades. Pen-
Contribuição da sar que um ambiente de aprendizagem, onde
crianças e adolescentes passam boa parte 95 do
sociologia da infância seu tempo diário seja organizado a partir de
uma perspectiva onde o adulto é o referen-
A constatação provisória que ve- cial estruturante é um contra senso evidente.
rificamos a partir da análise do material (FARIA, SANTIAGO, 2015)

75
Aspectos dessa inversão de valores brecido sobre as crianças e os adolescentes,
que empobrece a vivência escolar podem ser por isso consideramos ser importante abrir a
entendidos num quadro mais amplo configu- compreensão para clivagens outras. Perceber
rado como uma relação de colonialidade. A que as crianças mais atingidas pelo adulto-
desqualificação de elementos que compõem as centrismo são meninos e meninas pobres, e
culturas infantis e juvenis como a produção de que o sistema capitalista na medida em que
saberes específicos, de uma língua e de símbo- enfraquece o Estado produz uma desistên-
los próprios passa pela negação do reconheci- cia das instituições em relação aos meninos
mento das crianças e adolescentes como pro- e meninas mais fragilizados financeiramen-
dutores de cultura, uma noção que a Sociologia te, é o ponto inicial para demarcar a ligação
da infância aponta com propriedade (COR- entre capital e o paradigma adultocêntrico.
SARO, 2011) e que consideramos como ponto (POGGI, SERRA, CARRERAS, 2011)
fundamento para o entendimento e elaboração
de um Ensino de História mais significativo. Considerações finais
Essa posição de menoridade da criança
e do adolescente é historicamente construída e O Ensino de História que se cons-
se identifica com a forma de produção de cul- titui no campo dos nossos movimentos de
tura Ocidental, a sociedade estruturada dentro investigação, se configura atualmente como
de um ponto de vista ocidental olha através da um espaço propício para análises que se ate-
criança para um modelo de adulto idealistica- nham no modo como crianças e adolescentes
mente construído e pautado a partir de teorias lidam com o tempo no sentido de orientação
biológicas ou psicologizantes que servem de re- prática para suas vidas.
ferência para a constituição de um paradigma Essa orientação não se resume a ati-
de infância único. (FARIA, SANTIAGO, 2021) tudes cotidianas ou de construção de proje-
Os marcadores utilizados por esse sis- tos de vida que se relacionam com a escolha
tema de classificação são identificados com as de profissões ou itinerários formativos, me-
ideias de imaturidade psicológica, dependên- ninos e meninas que estudam história são de-
cia das crianças e adolescentes em relação aos mandados a se orientar no contexto de uma
adultos, inocência e alheiamento diante do sociedade pós moderna, operando num regi-
mundo social em que crianças e adolescentes me de historicidade presentista (HARTOG,
vivem. O objetivo de da classificação a partir 2020) e que os impele a construir identida-
desses marcadores é destacar uma condição de des pessoais e coletivas que sejam ao mesmo
déficit e incompletude, que clama por orien- tempo flexíveis e seguras de si.
tação e tutela. (ATEM, ROCHA, 2019). Perce- Apesar do pequeno espaço para a
bemos a partir dessas reflexões que o Adulto- análise dos materiais didáticos que dispomos
centrismo se estabelece como um movimento nesse artigo, confiamos na representatividade
de construção de um discurso verdade no qual dos exemplos destacados, o que nos habilita a
elementos vindos de posições científicas como pensar que parte significativa das narrativas
a psicologia, e medicina, inseridas num quadro histórico escolares opera sob um paradigma
epistemológico típico da racionalidade ociden- adultocentrado, já que não visibilizam como
tal define um lugar de esquecimento e subal- deveriam a agência cidadã de crianças e adoles-
ternidade para as crianças e adolescentes. centes como atores de suas próprias histórias e
Por outro lado, não é possível minimi- das comunidades onde vivem.
zar o impacto do capitalismo na forma de es- Nossa hipótese é que essa realidade in-
truturação do Adultocentrismo, o deslocamen- flui negativamente na potencialidade da His-
to de meninos e meninas para uma posição de tória como elemento gestor da experiência de
inferioridade e de ausência de protagonismo orientação no tempo, apesar de reconhecer que
não é um evento acessório dentro de uma so- a história escolar não é a única dimensão da
ciedade dominada pelo capital. Podemos afir- cultura histórica a formar a consciência histó-
mar que Adultocentrismo e capital atuam em rica das pessoas, acreditamos junto com Paulo
simbiose uma vez que a educação é encarada Freire que sem a educação não se muda o mun-
como uma necessidade básica para prover sub- do, apesar de ela sozinha não ser suficiente
sídios a uma realidade marcada pela explora- para tal. (FREIRE,2000)
ção. (FARIA, SANTIAGO, 2021) Por isso, concluímos após estas inves-
A infância produzida pela perspecti- tigações iniciais que mais pesquisas são neces-
va adultocêntrica é universal, padronizada, sárias, inclusive pesquisas que atuem em duas
deficitária e carente de tutela. Essa ecologia direções, a primeira que aprofunde o conheci-
de saber produz um conhecimento empo- mento sobre o conceito de Adultocentrismo

76
e outra que amplie o leque de espaços inves- CORSARO, W. A. Sociologia da infância. Por-
tigados para além do material didático, alcan- to Alegre, RS: Artmed, 2011.
çando uma escuta das vozes dos professores e
dos meninos e meninas que estudam História FARIA, A. L. G. SANTIAGO, F. Adultocen-
cotidianamente em nossas escolas. trismo e conflito social no cotidiano das crian-
ças. III International Conference Strikes and
Social Conflicts: Combined historical approa-
Referências ches to conflict. Proceedings, Barcelona, CEFI-
D-UAB, 2016, p. 850-863.
ARIÈS, P. História social da criança e da famí-
lia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. FREIRE, P. Cartas pedagógicas e outros escri-
tos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
BOULOS JÚNIOR, A. História sociedade e
cidadania: 3° ano. São Paulo: FTD, 2013. HEYWOOD, C. Uma história da infância: da
idade média à época contemporânea no oci-
BRAICK, P. MOTA. História: das cavernas ao dente. Porto Alegre: Artmed, 2004.
terceiro milênio. São Paulo: Moderna, 2013.
POGGI, C. SERRA, G. CARRERAS, R. Subje-
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescen- tividades Juveniles: entre el adultocentrismo y
te. Lei Federal n. 8069, de 13 de julho de 1990. el patriarcado, Revista Tesis, 2011, N° 1, p. 59-73

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educa- RAMOS, M. A constituição do campo de pes-


ção Nacional. Lei número 9394, 20 de dezem- quisa em ensino/aprendizagem histórica pela
bro de 1996. revista História e Ensino, História & Ensino,
Londrina, v. 18, n. 2, p. 77-102, jul./dez. 2012.
CAVALCANTE, E. B. T. Das Ruas para as au-
las de história: infâncias, cidadania e direitos RÜSEN, J. Teoria da História. Uma Teoria
humanos. Dissertação (Mestrado em Ensino de da História como ciência. Curitiba: Editora
História), Universidade Federal de Pernambu- UFPR, 2015.
co, Recife, 2018
ZABALA, A. A prática educativa: Como ensi-
nar. Porto Alegre: Artmed, 1998.

77
DISCIPLINA E DEVOÇÃO NA
EDUCAÇÃO DAS MENINAS: O
RECOLHIMENTO DE NOSSA
SENHORA DA ANUNCIAÇÃO E
REMÉDIOS NO MARANHÃO

Hellen Silva Carneiro Ferreira30 Resumo: O estudo em questão objetiva


a investigação de uma instituição de reclusão e
Maria Inês Castro Nascimento31 educação das meninas maranhenses, no século
XIX, que as formava para serem futuras mães,
Isabela de Cássia Costa Vieira32 donas de casa através da devoção católica. O
Recolhimento de Nossa Senhora da Anuncia-
ção e Remédios foi criado desde meados do
século XVIII pelo Padre Jesuíta Gabriel Ma-
lagrida para recolhimento de mulheres mara-
nhenses sob o discurso da defesa de uma hon-
ra familiar e da moral feminina. As meninas
expostas em instituições de caridade ou ado-
tadas em casas de famílias privilegiadas eram
internadas no Recolhimento para receberem
a educação religiosa que disciplinava os seus
corpos em uma rotina de orações e oficinas
profissionalizantes. A análise documental de
leis e decretos provinciais, dos estatutos do Re-
colhimento e de fontes bibliográficas do oito-
centos maranhense nos permitiram compreen-
der o funcionamento, a proposta educativa e
o encaminhamento dados às meninas quando
atingiam a fase adulta. As contribuições dos
estudos de Del Priore (2004), Abrantes (2003)
e Perrot (2007) sinalizaram para as reflexões
sobre a história da educação das mulheres no
Maranhão, desde a criação dos primeiros reco-
lhimentos femininos. Com os resultados dessa
análise, pretende-se contribuir com os estudos
30
Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Maranhão — UFMA.
31
Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Maranhão — UFMA.
32
Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Infância e Brincadeiras — GEPIB.

78
sobre a educação das crianças maranhenses, no ções de educação feminina no Brasil Colonial,
século XIX, com destaque para as meninas, que de facilitar a condução das donzelas à vida re-
eram mantidas sob vigilância masculina e mol- ligiosa e regenerar as jovens meninas perdidas
dadas conforme educação europeia. pela prostituição. (ABRANTES, 2003)
Por meio da análise nos estatutos do
Palavras-chave: Meninas. Educação. Recolhimento, das leis e decretos da Província
Recolhimento. Maranhão. do Maranhão e de artigos de obras escritas por
sujeitos considerados os letrados maranhenses
e que eram mantidos pela Igreja, pretende-se
Introdução identificar os discursos e as práticas de edu-
cação das mulheres maranhenses no Império,
A história da educação das mulheres que justificavam a proposta política de uma
sempre esteve marcada pela submissão, pela educação feminina de sujeição do corpo aos
devoção e controle dos corpos. Esses princí- ditames religiosos e moralistas. As meninas
pios, próprios de instituições sob a custódia da perdiam suas infâncias em rotinas de traba-
Igreja católica, moralizavam as condutas das lho doméstico e de vigílias devocionais, que as
meninas desvalidas na capital da província do calavam e as mantinham nos padrões de vida
Maranhão. O recolhimento do corpo, marca religiosa. Questões como: o que aprendiam, as
da sociedade patriarcal e provincial, revelava meninas, quando institucionalizadas no Reco-
a preocupação dos governos em preservar a lhimento de Nossa Senhora da Anunciação e
honra das mulheres, confinando-as em espa- Remédios? Quais acordos eram mantidos en-
ços referenciados como educativos, mas que tre Estado e Igreja para o funcionamento des-
disciplinavam as condutas femininas. A rotina ses espaços? De onde vinham as meninas reco-
de orações e de oficinas profissionalizantes, lhidas e qual a rotina proposta a elas para que
demarcavam o cotidiano institucional e con- pudessem voltar à convivência social?
trolavam o tempo das crianças, no sentido de Com essa pesquisa, suscitada no âm-
prepará-las para assumir funções domésticas. bito do Grupo de Estudos e Pesquisas In-
Numa sociedade escravista e patriar- fância e Brincadeiras (GEPIB/UFMA), ten-
cal, a mulher moralmente correta controla ciona-se os arquivos silenciados para que a
seus impulsos e desejos. Assim, a mulher que história da educação das meninas seja reve-
era casada e se relacionava com outros, ou não lada e que aos poucos, uma história da infân-
vivesse a fidelidade conjugal, era considerada cia maranhenses seja construída, agora sob
desonrada, e marginalizada socialmente (DEL as vozes dos sujeitos esquecidos.
PRIORE, 2004). As instituições de recolhi-
mento feminino, entendidas como lugares de
abrigamento para pessoas que não se enqua- A educação feminina no século
dravam aos padrões sociais da vida provincia- XIX: ritos, normas e a formação
na, se reservavam ao papel de retenção desde
a infância, das mulheres que rompiam com a de meninas submissas
decisão de serem boas mães e donas do lar. Esse
tipo de assistência social era parte da política O Brasil passou por muitas mudan-
higienista que norteava o Império, e que visava ças no período colonial, em que a sociedade
retirar do convívio social os sujeitos perigosos, se estabelecia nos moldes europeus com di-
indisciplinados e imorais. Um poder disciplinar ferenciação em todas as esferas, por um pa-
que controlava minuciosamente o corpo dito triarcalismo estruturante em que o homem
doente, sujeitando-o a situações conformado- era livre e a mulher somente um instrumento
ras e alienantes da sua própria condição social. de satisfação masculina. Esse modelo de socie-
Faz-se então necessário, por meio des- dade dava ao homem a liberdade do convívio
sa investigação, adentrar o interior desses es- social, para estar à frente de oportunidades e
paços institucionalizados e controlados pelo iniciativas, enquanto para a mulher restava-
Estado e pela Igreja, para historiar a educação -lhe os afazeres domésticos, exclusão da vida
das meninas desvalidas no Maranhão do século social, cuidado do marido e educação dos fi-
XIX, analisando o contexto da Província e a lhos para serem cidadãos de bem.
organização de recolhimentos femininos para Abordar a história das mulheres é ir
manutenção da ordem social. Assim, o Reco- de encontro com a ausência de relatos ou re-
lhimento de Nossa Senhora da Anunciação e gistros como se não fizessem parte do contex-
Remédios, edificado no Maranhão em 1752, to da vida cotidiana da sociedade no período
possuía a finalidade, como todos as institui- colonial e imperial. No decorrer da história

79
por muito tempo não se tem relato das mulhe- a visualização da rua e vice-versa. Os quartos
res por escassez ou inexistência, havendo um eram pequenos e reservados ao descanso e ati-
profundo silêncio sobre acontecimentos que vidades individuais das recolhidas, além de
envolvem a figura feminina, como se estives- possuírem um local próprio para as atividades
sem designadas ao obscurantismo. A educação coletivas (ALGRANTI, 1993). Esse modelo de
feminina acompanhava o desenvolvimento de instituição foi trazido ao Brasil através do pro-
uma sociedade cuja herança portuguesa era a cesso de colonização portuguesa. Apesar de
patriarcal, em que a mulher devia ser submis- preservarem as ideias moralizantes, os Reco-
sa e recolhida, recatada, servindo primeira- lhimentos aqui fundados sofreram mudanças
mente aos pais, esposos e filhos, sua educação em seus objetivos em relação à metrópole.
baseava-se primordialmente na construção de No Maranhão, o contexto educacional
valores morais e religiosos, no disciplinamen- e social vivido pelas mulheres não se diferen-
to do corpo, na maneira como deveria portar- ciava em nada do restante do país. De acordo
-se, cobrir-se e desenvolver as habilidades de com Rodrigues (2010, p. 97) “a visão social so-
uma boa filha, esposa e mãe. bre a educação que predominou na época foi
Mencionar a educação feminina no a de que os homens deveriam ser instruídos e
contexto histórico do século XVIII e XIX as mulheres educadas, recaindo sobre estas a
é trazer à baila as instituições de Recolhi- ênfase na formação moral e sobre aqueles, a
mento, onde se inicia todo esse processo de formação intelectual.” Até mesmo na capital
conceder às meninas e moças instruções que da Província do Maranhão prevalecia o con-
estavam intimamente ligadas às suas obriga- servadorismo na educação feminina, em que se
ções como mulher. acreditava que a mulher precisava ser prepara-
da para cuidar do marido, filhos e da casa.
No século XVIII, portanto, a educação fe- Em 1838, surge o curso secundário
minina na Colônia estava longe de ser uma oferecido pelo Liceu Maranhense, com o ob-
ideia generalizada ou uma prática corri- jetivo de favorecer o ingresso dos filhos da
queira mesmo entre a elite da Colônia, elite nos cursos superiores. Mais uma vez as
que lançava mão dos recolhimentos para mulheres são excluídas, inclusive as ricas,
fins educativos. Nem totalmente conven- pois não tinham direito ao acesso a esse nível
tos, nem escolas, as instituições femininas de ensino. Finalmente em 1840, são fundadas
de reclusão situavam-se a meio caminho as primeiras escolas particulares femininas
dos dois modelos de estabelecimentos e em São Luís, destinadas a atender as filhas
serviam a vários propósitos no que toca à da elite maranhense (RODRIGUES,2010).
vida das mulheres. A parcela de educandas Segundo Nunes (2006),
era muito reduzida e pouco representa-
tiva no conjunto da população reclusa e De 1840 a 1890, São Luís do Maranhão
menor ainda quando se pensa no total de viveu um período de “franca florescên-
habitantes da região Sudeste. Não se pode cia escolar”, na expressão de PACHECO
negligenciar, entretanto, que apesar de (1968, p. 310), pois existiam para as jo-
todo o quadro desfavorável os conventos e vens da sociedade ludovicense, os Colé-
recolhimentos eram os únicos espaços ins- gios: Nossa Senhora da Glória, das irmãs
titucionais onde as mulheres da Colônia Abranches; Nossa Senhora da Soledade,
poderiam receber alguma instrução sem da Sr.ª Maria Emília Carmini; e de San-
terem necessariamente que optar pela vida tana, sob a direção da Sr.ª Raimunda da
religiosa. (ALGRANTIN, 1996, p. 266) Silva Miranda; Colégio Nossa Senhora do
Amparo, de propriedade da senhora Filo-
Com o intuito de oferecer um espaço mena Tavares Pedreira e Aula Santa Bár-
para resguardar a virtude e a honra familiar, bara da senhora Isabel Ignês dos Santos,
surge no final do século XV em Portugal, os constituindo-se ( que se tem notícia até
Recolhimentos, com a intenção de educar as hoje) as primeiras mulheres professoras
mulheres até que adotassem o estado de ca- responsáveis pela educação da elite mara-
sadas. Inicialmente foram idealizados para nhense. (NUNES, 2006, p. 189)
sustentar e amparar órfãs pobres, mulheres
desamparadas e até aquelas que apresentavam No currículo dessas escolas além de in-
comportamento sexual diferente daqueles cluir os afazeres domésticos, continha o ensino
aceitos pela sociedade da época. Suas estrutu- da leitura e escrita, noções de aritméticas, aula
ras foram construídas com o propósito de uma de dança, de piano e Francês, percebesse nes-
vida reclusa, com muros que não permitiam te momento algumas mudanças na educação

80
feminina e finalmente as atividades domésti- Em meio a esse contexto surge na se-
cas deixam de ser o principal foco da aprendi- gunda metade do século XIX, em São Luís, ins-
zagem feminina, apesar disso e educação das tituições para a educação de meninas carentes,
mulheres continua sendo pensada para prepa- sendo uma estudada neste trabalho: o Recolhi-
rá-las para o casamento. (RODRIGUES, 2010) mento de Nossa Senhora da Anunciação e Re-
Durante 20 anos, o único espaço es- médios, que apesar de ter sido projetado para
colar particular para as meninas foi o Colégio atender as meninas desvalidas, também era fre-
Nossa Senhora da Glória, e só apenas em 1874 quentado pelas meninas das famílias da elite.
surgem novas escolas. Para as mulheres letra-
das e ricas essa foi a oportunidade para exer-
cerem uma função longe do ambiente domés- O recolhimento de
tico, pois as escolas de meninas só permitiam Nossa Senhora da
professoras. Para as meninas pobres restavam
as aulas de primeiras letras, o currículo des- Anunciação e Remédios e
sas instituições priorizava os ensinamentos a institucionalização das
religiosos, além das atividades domésticas, os mulheres maranhenses
conhecimentos básicos de leitura, escrita e das
quatros operações (RODRIGUES, 2010). Para Fundado em 1751 pelo missionário je-
Abrantes (2003, pág. 02) “às prendas domésti- suíta Frei Malagrida, o Recolhimento de Nossa
cas justificadas em nome das funções maternas Senhora da Anunciação e Remédios, voltava-se
das mulheres, a isenção do ensino da geometria à educação civil, moral e religiosa das meninas
e a limitação do ensino da aritmética apenas recolhidas. A rigidez era uma característica
as quatro operações, estabeleciam a diferença marcante em relação à religiosidade pela or-
na educação escolar entre meninos e meninas.” dem de Santa Mônica e nos aspectos econô-
Outra desigualdade evidente entre a micos e administrativos pelos Estatutos orga-
educação feminina e masculina, era a quanti- nizados em 1840. A educação era destinada às
dade de escolas para ambos os sexos e o baixo lições de primeiras letras e das capacidades do-
número de matrículas das meninas. Segundo mésticas. Segundo Abrantes (2003, p. 03) “uma
Abrantes (2003): mestra ensinava a ler, escrever, as quatro ope-
rações aritméticas e a doutrina cristã, e uma
Em 1867, o relatório do Presidente da outra mestra ensinava a coser e bordar”.
Província, Dr. Antônio Alves de Sousa O advogado maranhense Antônio
Carvalho, informava que existiam na Almeida Oliveira também argumentava uma
Província 100 cadeiras primárias do 1º maior instrução para as mulheres, não para
grau, sendo 60 do sexo masculino e 40 terem liberdade política e econômica, mas
do feminino. No 2º grau do ensino pri- para fortalecer suas funções de esposa e mãe,
mário existiam somente cadeiras de permanecendo em suas casas como “rainhas
meninos, sendo três na capital e cinco do lar”. “Em sua obra ‘O Ensino Público’, pu-
no interior. As cadeiras do ensino pri- blicada em 1874, apresentou uma série de
mário no interior foram frequentadas idéias para reformar a educação feminina,
por 2.874 alunos, sendo 2.113 meninos incluindo mais instrução intelectual para as
e 661 meninas, as da capital tiveram mulheres e também a co-educação dos sexos”
uma frequência de 658 alunos, sendo (ABRANTES, 2003, p.04). Contudo, a situa-
449 meninos e 209 meninas. A frequên- ção não era favorável às meninas abastadas,
cia total nas escolas públicas neste ano pobres, que quando não eram acolhidas pelas
foi de 3.532 alunos. No ensino primário instituições recolhedoras, cresciam na insi-
particular foram registradas 16 cadeiras, piência. As meninas que faziam parte dos
sendo 11 para meninos e 5 para meninas, Recolhimentos ficavam na responsabilidade
com uma frequência total de 953 alunos, de mestras que não dominavam as letras.
564 do sexo masculino e 399 do femini- Segundo Rodrigues (2010), acredita-
no. Na instrução secundária particular -se que as primeiras meninas a fazerem parte
eram 9 colégios, sendo 1 para o sexo mas- da instituição recolhedora foram as filhas das
culino na vila de S. Bento e 8 na capital, famílias que contribuíram com doações para
4 para os rapazes e 4 para as moças, com a construção do espaço físico do local. Tal in-
uma frequência total de 842 alunos. O formação divergia com o objetivo inicial, que
ensino público secundário ministrado era abrigar meretrizes, prostitutas e jovens sem
no Liceu foi frequentado por 156 alunos. recursos das camadas marginalizadas da socie-
(ABRANTES, 2003, p. 03) dade, dentre elas as órfãs. Como houve doações

81
das famílias de classe privilegiadas, Malagrida curtou sua proximidade com a Instituição,
deve ter, inicialmente, aprovado que as primei- relacionando-se de forma mais direta, in-
ras recolhidas fossem herdeiras das famílias po- fluenciando sua sistematização e clientela.
derosas da Capitania e objetivando dar estado O Estado passou a auxiliar o Recolhimento
de religiosas às suas filhas. através dos recursos públicos, possibilitando
O Alvará Régio, de 2 de março de 1751 o custeio da Instituição. Com isso, conseguia
para criar, no Estado do Maranhão e Grão-Pa- atender as demandas em relação ao acolhi-
rá, Seminários e Recolhimentos para conver- mento e instrução das mulheres que se encon-
tidas e não convertidas, determinava que Ga- travam à margem da sociedade maranhense.
briel Malagrida poderia fundar Recolhimentos O Presidente da Província, João An-
de convertidas e meninas. Após essa resolução, tônio de Miranda, similarmente com a Lei
Rodrigues (2010) nos confirma que: Provincial no 95, concedeu em 11 de julho de
1841, o Estatuto do Recolhimento idealizado
A primeira regente, Maria Josefa de Jesus, pelo Bispo Diocesano, Dom Marcos Antônio
ao se referir à Instituição, em 1779, em de Sousa. “Na mesma Lei ficou estabelecida
documento encaminhado à rainha D. Ma- uma dotação de dois contos de réis anuais, a
ria I, nomeia-a “Casa Recolhimento reli- isenção da décima dos prédios urbanos e lega-
gioso” e que ali viviam com regularidade dos, bem como parte dos recursos provenien-
religiosa, dando-nos a entender que era tes das loterias da Província destinar-se-ia
um ambiente de reclusão que abrigava al- aquele estabelecimento”. (ESTATUTO DO
gumas freiras e donzelas devotas sem vo- RECOLHIMENTO, 2009, p. 352)
tos solenes. Por sua vez, a documentação As bases definidas no Estatuto por
consultada nos mostra que a população e, João Antônio Miranda, aprovado pela Assem-
por vezes, os membros do próprio clero bleia provincial, destaca definições dos seguin-
referissem a Casa como um convento fe- tes pontos, segundo Rodrigues (2010):
minino apesar de oficialmente não sê-lo.
(RODRIGUES, 2010, p. 41) - O recolhimento passou a admitir me-
ninas enjeitadas da Santa Casa da Mise-
Em relação à forma de como o Recolhi- ricórdia, órfãs necessitadas, ou filhas de
mento se mantinha, segundo o Alvará de 2 de pais reconhecidamente pobres, para se-
março de 1751, com uma quantia de duzentos rem educadas, procedendo a licença do
mil réis (200$000) anuais, determinação que ordinário e sendo este número regulado
Pacheco (1969), ainda que não mostre os mo- segundo as posses do Recolhimento.
tivos, declara que não foi efetuada pelas forças
da Capitania. Salienta-se que o auxílio finan- - A admissão de meninas, filhas de pais
ceiro se compunha de certa forma contraditó- abastados, para serem educadas, contan-
rio, a julgar que o citado Alvará instituía que to que satisfizessem pontualmente a me-
para ser criada uma organização desta proprie- sada mensal;
dade, deveria ter como manter-se e, como era
de conhecimento público, a Coroa Metropo- - A criação de uma cadeira de primeiras
litana não apresentava disposição a subsidiar letras, paga pelo cofre público, para as
esse tipo de instituição. educandas do recolhimento. (RODRI-
Acerca da estabilidade financeira do GUES, 2010, p. 52)
Recolhimento, cabe mostrar que Dom Pedro I,
com a introdução do Brasil Imperial, definiu, Acredita-se que as autoridades consi-
no mês de outubro do ano de 1825, a impor- deravam que essas orientações fizessem par-
tância de seiscentos mil réis de aporte por ano. te da rotina do Recolhimento e “deste abrigo
Segundo a Lei nº 80, de 27 de julho de 1838, de jovens educadas sairão mães de famílias
entre os anos de 1835 e 1838, o montante so- que darão cidadãos úteis ao Estado, defenso-
freu alterações, alcançando o valor de dois con- res da pátria, ministros zelosos e edificantes
tos de réis anuais. Entretanto, Pacheco (1969) do altíssimo, e farão a felicidade das gera-
evidencia que a Província auxiliará através de ções futuras”. (ESTATUTO DO RECOLHI-
contribuições com a Instituição a partir de MENTO, 2009, p. 353)
1841. Contudo, cabe ressaltar que o incentivo Em julho de 1854, através da Lei nº
doado pelo Estado ao Recolhimento, represen- 365, foi autorizada e concedida duas loterias
tava importante ajuda para a sua manutenção, anuais ao Recolhimento. Esse recurso deve-
mesmo sendo feita não regularmente. ria ser utilizado tão somente para alimenta-
Em meados de 1840, o Estado en- ção das meninas pertencentes ao local. Ao

82
bispo pertencia a responsabilidade de assen- va o governo provisório do Regulamento e o
tir a entrada de novas recolhidas para serem Capítulo III e último tratava sobre a gestão
alimentadas por esse recurso liberado. Este externa do espaço. A escritura era iniciada,
deveria ser proporcional ao número de me- a partir da Lei de Instrução Pública de 1827,
ninas assistidas. Contudo, devido a demanda que recomendava que a mulher teria a missão
de pedidos para ingresso ao Recolhimento, o de educar novas gerações, e com isso, necessi-
Bispo acabara liberando a entrada das jovens taria ser preparada em bases firmes de moral e
entrando em desacordo com as decisões das bons costumes. Ou seja, “regime e direção das
autoridades. Com isso, a Assembleia sentiu-se jovens maranhenses que retiradas do bulício
pressionada a aumentar os recursos combina- do século e abrigadas debaixo do favor insig-
dos anteriormente, e “ o Tesouro Provincial ne da providência serão educadas com pudor,
aumentou o recurso para um conto e du- modéstia e virtude cristã”. (ESTATUTO DO
zentos mil réis, entre os anos de 1861 e 1862” RECOLHIMENTO, 2009, p. 353)
(MARANHÃO, 1860-1863). Nesse contexto, O Estatuto do Recolhimento de N.
nos anos de 1850 o Recolhimento expandiu a Sra. da Anunciação e Remédios expõe or-
admissão de jovens pobres, recolhendo então dem disciplinar que se destina à política de
educandas, órfãs ou não, mulheres casadas, padronização de comportamento, segundo
meninas indisciplinadas, viúvas e professas. Foucault (2008). Sob métodos que consentem
Os estatutos criados para os Recolhi- a manipulação das ações do corpo conduzin-
mentos serviram de base para a criação das do atitudes dóceis e úteis, além do controle
regras de conventos, apesar de haver uma cer- do tempo nas atividades rotineiras. A partir
ta semelhança em sua ordem paradigmática desse fato, observa-se como o poder se legiti-
(ALGRANTI, 1993). Os estatutos garantiam ma entre os sujeitos para chegar aos objetivos
a ordem desse espaço, a rotina das mulheres e disciplinares da Instituição. “Caso algo fos-
principalmente a obediência e cuidados com se feito fora dos padrões do Recolhimento,
seu corpo e seu comportamento. Eram obriga- punições eram aplicadas pelas mestras. Essas
das a seguirem os modelos impostos. Porém, tinham o poder de repreender as educandas,
no Maranhão, o estatuto criado com a funda- contudo estavam sujeitas aos castigos prati-
ção do Recolhimento, não foi mantido na do- cados pela regente.” (ESTATUTO DO RE-
cumentação da Igreja católica. Dom Marcos COLHIMENTO, 2009, P. 361). Entretanto,
Antônio de Sousa reestruturou o estatuto de “quando as repreensões não surtissem o efei-
forma condescendente. O novo Estatuto foi to desejado, as reclusas deviam ser obrigadas
reformulado de acordo com o Bispo Diocesa- a fazer estações no coro e outras penitências,
no e o Governo da província. Este pretendia o conforme gravidade do ato” (Id. ibid. p. 356)”.
resgate na formação da clientela, ou seja, cogi- Diante de toda ação penitenciária e
tava que o Recolhimento abrigasse as órfãs da corretiva, havia casos em que as reclusas não
Santa Casa da Misericórdia e filhas de famí- aceitavam determinado tipo de tratamento.
lias pobres para serem educadas (MARQUES, A ocasião era levada para o Bispo. Caso per-
1970). O Estatuto registrava que: sistisse, a educanda era convidada a se retirar
do Recolhimento. Essa ocorrência geralmen-
Havendo algumas que não podem ter te era feita pela regente ao Bispo por meio
ao seu favor os cuidados do amor pater- de correspondências administrativas. Sobre
no nem gozar as carícias de uma terna essas correspondências, Foucault (1979, p.
mãe, e por outra parte persuadido que as 174), nos diz ser “um registro contínuo de
impressões de primeira idade dirigem a conhecimento, que ao mesmo tempo em que
criatura humana em todos os seus passos, exerce o poder, produz um saber”, uma vez
e acompanham em todos os sucessos da que pelo exercício do olhar “anota e transfe-
vida, e que os hábitos virtuosos dos anos re as informações para os pontos mais altos
da inocência, triunfam das paixões é que da hierarquia do poder”. Através destas que
compendiamos os estatutos que há mais o ordinário mantinha informações sobre a
de oitenta anos regem esta casa de edu- casa, com o intuito de construir afirmações
cação, em conformidade do sobredito al- de “como era” ou “deveria ser” tal instituição.
vará de 2 de março de 1751. (ESTATUTO A entrada no Recolhimento reque-
DO RECOLHIMENTO, 2009, p. 353) ria uma dedicação pessoal em um ambiente
de normas específicas orientadas por disci-
A organização do Estatuto se dispôs plina. (ALGRANTI, 1993). Após a chegada
da seguinte forma: o capítulo I determinava da moça no Recolhimento, era conduzida “à
as atividades religiosas, o capítulo II designa- presença da vigária do coro que, consequen-

83
temente, a encaminharia à cela, que já estava mentos de gramática portuguesa, dou-
preparada para recebê-la” (ESTATUTO DO trina cristã e música vocal; No segundo
RECOLHIMENTO, 2009, p. 361), lugar re- ano, era desenvolvido o ensino da gramá-
servado ao descanso, às orações individuais tica portuguesa, leitura de livros clássi-
e comportava apenas uma pessoa. Contudo, cos, caligrafia complementar, aritmética
com o aumento da demanda de meninas, já até proporções, sistema métrico decimal,
descrito neste trabalho, identificamos em doutrina cristã e música vocal; No tercei-
nossos estudos que havia mais de uma pessoa ro ano, era dada continuidade ao ensino
em celas, devido à estrutura física do local. desenvolvido da gramática portuguesa,
Porém, a interação entre as meninas, com caligrafia complementar, desenho
quando acontecia, era no ambiente de apren- linear, rudimentos de História Pátria e
dizagem. Ali aprendiam as primeiras letras, Geografia, elementos de História Sagra-
canto, corte e costura. As aulas só não acon- da, análise gramatical. No quarto ano,
teciam aos domingos e feriados. Esses dias era ministrado o ensino de Gramática
eram destinados às atividades religiosas, francesa, com versão de prosa, compo-
como por exemplo, oração do ofício divino e sição, continuação da análise gramatical
leitura espiritual. (ESTATUTO DO RECO- dos clássicos, Geografia, Desenho, cate-
LHIMENTO, 2009, p. 361) cismo, música vocal e piano; No quinto
O Recolhimento de N. Sra. da Anun- ano era estudada a versão dos clássicos
ciação e Remédios sofreu transformações que franceses prosadores e poetas, compo-
modificariam sua representação institucional sição, Geografia, Desenho, catecismo,
em meados de 1863. A reestruturação foi em música vocal e piano. (ESTATUTO DO
decorrência às ações do Bispo Dom Luís da COLÉGIO N. SRA. DA ANUNCIA-
Conceição Saraiva, que assumiu a Diocese do ÇÃO E REMÉDIOS. 1872, p. 9)
Maranhão a partir de 1862. Dando importância
às adversidades disciplinares e financeiras que Pode-se inferir que a proposta do
o Recolhimento enfrentava, o ordinário consi- Bispo em educar mulheres mostrava-se pro-
derou medidas para reorganizá-lo. Em meio às gressista, pois oferecia aulas de piano, estudo
determinações tomadas, foi criado o Colégio dos clássicos franceses e música vocal para
de N. Sra. da Anunciação e Remédios, em 7 de as meninas. Contudo, vale ressaltar que era
janeiro de 1865, este funcionava dentro do Re- oferecido apenas o ensino primário. O ensi-
colhimento, promovendo a educação feminina no secundário e superior ainda era oferecido
por meio de pagamento de mensalidades. apenas para os meninos.
De acordo com o Estatuto do Colégio No primeiro ano de funcionamento da
(1872), o prédio físico dispunha de primeiro Escola, as professoras do recolhimento foram
andar, nesse estavam instaladas as dependên- aproveitadas para lecionar na instituição, por
cias do Colégio de N. Sra. da Anunciação e possuírem experiência em lecionar. Contudo,
Remédios que era formado por salas de aula, nos anos anteriores, professores externos e co-
refeitório, enfermaria, três dormitórios e nhecidos pela sociedade foram contratados,
duas galerias, onde era respirado um ar puro como forma de dar confiabilidade ao público
e tinha capacidade para acomodar 100 (cem) maranhense, como por exemplo, o Dr. Gentil
meninas. Na parte térrea ficavam as acomo- Homem de Almeida Braga, que ensinava as
dações do Recolhimento. disciplinas de gramática geral, geografia e fran-
Segundo Rodrigues (2010) o Colégio, cês. (ESTATUTO DO COLÉGIO N. SRA. DA
por funcionar dentro do Prédio do Recolhi- ANUNCIAÇÃO E REMÉDIOS, 1872, p.6)
mento, foi administrado nos primeiros anos Diante do exposto podemos refletir
pela regente deste Estabelecimento. Entretan- que mesmo com a escolarização da mulher, o
to, sua clientela não era considerada na cate- discurso, a valorização e seu papel na sociedade
goria de reclusas, mas de educandas, visto es- não tiveram mudanças tão aparentes. Ela ainda
tarem na instituição por tempo previamente continuava sendo vista como uma pessoa pre-
determinado, para receberem educação escola- parada com excelência para ser mãe, esposa e
rizada. O programa de ensino do Colégio de dona de casa. A instrução veio para que além
N. Sra. da Anunciação e Remédios abrangia ao desses adjetivos, ela pudesse se apresentar bem
todo cinco anos de estudo: perante o meio social. Educação esta que lhe
preparava para aparecer publicamente com seu
No primeiro ano, ensinavam a ler e es- marido diante dos anseios e necessidades que a
crever, contar até as quatro operações sociedade lhe determinava.
aritméticas por números inteiros, rudi-

84
Considerações finais Referências

Os estudos sobre a infância no Brasil ABRANTES, E. S. A Educação Feminina em São


permitem a visualização das formas escolares Luís no Século XIX. XXII Simpósio Nacional de
e institucionais de abrigamento e condicio- História. João Pessoa — PB: ANPUH, 2003.
namento do ensino às crianças. Com distin-
ta diferenciação às origens das meninas e dos ALGRANTI, L. M. Honradas e devotas: mu-
meninos, a criação dos espaços de educação da lheres da colônia: condição feminina nos con-
infância brasileira intencionalmente visava a ventos e recolhimento do Sudeste do Brasil,
formação de um povo moldado culturalmente. 1750-1882. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
Às meninas, especificamente, as instituições
atendiam ao desejo de uma sociedade em as- ______________________. Educação feminina: vo-
censão política e que precisaria da maquinaria zes dissonantes no século XVIII e prática colo-
do ensino seletivo para conduzi-las aos propó- nial. In: MONTEIRO, John Manuel & BLAJ,
sitos da modernidade anunciada. Ilana (orgs). História & Utopias. São Paulo:
O Maranhão Imperial, como Provín- ANPUH, 1996.
cia desejosa em seguir a aurora da civilização
imposta, condicionava os sujeitos considerados ARQUIVO DA ARQUIDIOCESE DE SÃO
inadequados a espaços como os recolhimentos, LUÍS. Papéis diversos nº 19: Estatuto do Colé-
criados no Brasil Colonial para a contenção dos gio N. Sra. da Anunciação e Remédios. Capa
corpos femininos que tentavam ser livres. Na 2983, doc. 14355, 1872, p. 6.
pesquisa sobre o Recolhimento de Nossa Se-
nhora da Anunciação e Remédios, a interven- DEL PRIORE, M. (org.). História das mulheres
ção da Igreja na organização da educação das no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
meninas clarifica uma formação moralizante
e que junto ao Estado, prepara a mulher para ESTATUTO do Recolhimento. In: CASTRO,
assumir papéis pré-estabelecidos pelos homens. C. A. (org.). Leis e Regulamentos da Instrução
A submissão feminina deveria ser mantida para Pública no Maranhão no Império (1835-1889).
que o poder e controle masculino fossem majo- Coleção Memória da Educação Maranhense.
ritários nas decisões sobre elas, desde crianças. São Luís, Maranhão: EDUFMA, 2009.
Os resultados desse estudo também
possibilitam analisar os fundamentos da edu- FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da
cação infantil brasileira que tem se reserva- prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
do aos discursos e práticas assistencialistas e
enquadradoras das crianças às instituições e MARANHÃO. Coleção de Leis Decretos e Re-
suas regras e rotinas pedagógicas. A história soluções da Província do Maranhão: 1860-1863.
das meninas e dos meninos escondidas nos
arquivos são reveladores de um projeto de re- MARQUES, C. Dicionário histórico e geográ-
invenção da infância, que institui formas de fico da Província do Maranhão. Rio de Janeiro:
contenção das liberdades, das culturas e das Fon Fon, 1970.
ideias e que se prolongam pelos séculos.
NUNES, I. M. L. IDEAL MARIANO E DOCÊN-
CIA: a identidade feminina da proposta educativa
marista. Tese (Doutorado em Educação) — Uni-
versidade Federal do Rio Grande, 2006.

PACHECO, F. C. História Eclesiástica do Ma-


ranhão. Maranhão: Departamento de Cultura,
1969. Coleção César Marques, vol. I.

PERROT, M. Minha história das mulheres. São


Paulo: Contexto, 2007.

RODRIGUES, M. K. L. Educação feminina


no Recolhimento do Maranhão: o redefinir
de uma instituição. Dissertação (Mestrado em
Educação), Universidade Federal do Mara-
nhão, São Luis, 2010.

85
AS OCUPAÇÕES SECUNDARISTAS
NO RIO DE JANEIRO EM
IMAGENS: MEMÓRIAS AFETIVAS
DE UM MOVIMENTO

Julio Cesar Roitberg33 Resumo: A partir das ocupações se-


cundaristas, enquanto objeto de pesquisa e
seus significados para os sujeitos, as escolas
públicas do Rio de Janeiro ocupadas surgem
como espaços de transformação, reinvenção
e ressignificação para ambos. Destarte, a
complexidade do movimento transcende as
representações, além das fronteiras da mo-
dernidade entre sujeito e objeto, assim como
as noções de espaço e de tempo, numa Poéti-
ca dos espaços. Da constelação de materiais
empíricos emersos do campo como objetos,
fotografias, documentos, conversas, num es-
tudo das subjetividades, a escola transparece
como espaço heterotópico, transformada em
casa pelos jovens ocupantes. Através da es-
cuta sensível e da observação participante,
as narrativas dos cotidianos escolares refle-
tiram as escolas ocupadas como um labora-
tório de reinvenção, tendo em vista o con-
traponto à instabilidade do ser promovido
pelo ambiente transformado, como lugar
de tensões, de atritos, diante dos desafios
representados pelas necessárias e intensas
negociações. Além dos estudantes do ensino
médio, buscou-se analisar suas percepções
sobre o movimento, assim como o seu pro-
tagonismo, relacionando-as às dos professo-
res, membros da equipe pedagógica, funcio-
nários, sindicalistas, militantes, integrantes
de entidades estudantis. Participaram da
33
Doutor em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro — UFRRJ

86
pesquisa voluntários de 02 escolas do ensi- Introdução
no regular e médio integral, da zona oeste e
da região suburbana carioca. A um grupo de O registro destas memórias das ocu-
protagonistas, apoiadores e críticos contrá- pações secundaristas, cujo texto tem origem
rios ao movimento couberam os comentários em uma investigação sobre as representações
esclarecedores e lembranças de episódios sig- daquele movimento no Rio de Janeiro, parte
nificativos, recolhidos através do Paradigma da pesquisa de tese de doutoramento do autor,
Indiciário. Através das lembranças e na di- inaugura-se no ano de 2016, quando o magisté-
reta participação do pesquisador e sua per- rio público fluminense se encontra em meio a
manência nas escolas, desponta o esforço e a uma de suas greves mais intensas, lutando pela
possibilidade dos sujeitos de elaborar a sua recuperação salarial de 30%, pelo cumprimen-
vida, de se reinventar, exercendo o direito to do calendário de pagamento, além de uma
de escolhas, levando-os a uma autêntica au- pauta pedagógica extensa. Naquele tabuleiro,
tonomia. Entendendo a recuperação das me- o Congresso já avançava na imposição de uma
mórias afetivas como um trabalho transgres- Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
sor, como o foram as ocupações, surge outra o Movimento Escola sem Partido, dentro do
perspectiva de pesquisa, a ‘cartografia topoa- projeto neoliberal meritocrático competitivo,
nalítica’, associada às mudanças no processo traduzidos pelo currículo mínimo, “uma base
de escritura, do objeto e dos sujeitos como mínima de conteúdos, habilidades e compe-
aporte para a apresentação de resultados nas tências comuns, com as quais os professores de
pesquisas em educação. cada disciplina devem seguir em seus planos de
curso e em suas aulas” (LAPA, 2006, p. 6), um
seguir em seus planos de
Palavras-chave: curso e em
Memórias. suas aulas”rígido
Imagens. (LAPA, 2006,
sistema de p. 6), um homogeneizador
avaliação rígido sistema dee
Ocupações Secundaristas. e a bonificação por desempenho.
avaliação homogeneizador a bonificação por desempenho.

Figura 1

Alunos dos colégios estaduais em greve. Fonte: Real Notícias, março de 2016

Neste cenário,
Neste cenário, os
os estudantes
estudantes surpreen- Assim, paradas
surpreendem com o movimento enfrentar
ocupaçõesalgumas ques-
das escolas
dem com o movimento das ocupações das esco- tões que surgiram diante do ineditismo da-
públicas
las dodo
públicas estado
estado(imagem
(imagem1),1), somando forças contra
somando for- quele os diversos mecanismos
movimento de governo,pro-
que me permitiriam no
ças contra os diversos mecanismos de governo, duzir uma narração a partir do meu lugar de
controle
no ao trabalho
controle docente,
ao trabalho que que
docente, vinham “sendo implantados
vinham com o Planoe de
professor, pesquisador Metas, cerceando
estudante, percebi,
“sendo implantados com o Plano de Metas, cer- na leitura das imagens e
a autonomia docente e diminuindo os espaços de elaboração intelectual, transformando nas narrativas foto-o
ceando a autonomia docente e diminuindo os gráficas (LOBATO, 2006), enquanto repre-
espaços
docentede elaboração intelectual,
crescentemente em merotransforman- sentação,
executor e reprodutor ocultações e revelações
de conhecimentos” na7).
(Idem, p. vida co-
do o docente crescentemente em mero executor tidiana, potenciais estratégias a proporcionar
Assim,
e reprodutor para enfrentar (Idem,
de conhecimentos” algumas questões eque
p. 7). surgiram
facilitar diantenos
a imersão do cotidianos
ineditismodas
daquele
esco-
movimento que me permitiriam produzir uma narração a partir do meu lugar de professor,
pesquisador e estudante, percebi, na leitura87das imagens e nas narrativas fotográficas
(LOBATO, 2006), enquanto representação, ocultações e revelações na vida cotidiana,
las ocupadas, ultrapassando a sua misteriosa co quando a intensidade de nossas memórias.
temporalidade, alterada em sua substância. A decisão pelos cortes, pela seleção se dá em
Produto de diversas manifestações virtude de lembramos o que nos é caro, o que
discursivas e de sentido, sua utilização na pes- nos é prazeroso, e isto, claro, do ponto de vista
quisa não seria diferente, na medida em que de quem ‘olha’ aquelas cenas levando em conta
não se restringem apenas a ilustrar: acom- o que será narrado que, certamente, receberá
panhadas por suas legendas e indicadas no uma interpretação diferente, já que traduzida e
texto, a foto torna-se argumento e suporte compreendida por um filtro diferente do meu.
relevante, ou seja, numa narrativa fotográfica Independente da janela, do lugar, do
(LOBATO, 2006), reforçando o dado de que a objeto, o olhar do outro não é o meu olhar.
imagem é uma representação. E isto tanto para textos escritos, histórias
Tomando o senso comum como o sa- contadas, fotografias. Desta forma é que me
ber popular, alheio às ciências, aos processos esforcei para que os próprios e as próprias
de escolarização, ao conhecimento que acon- pessoas que participaram do movimento
tece nos cotidianos, na solução imediata de de ocupação secundarista não só o contasse
problemas, quase sempre através de estratégias como, também, apresentassem dados biográ-
e improvisos que se perpetua geração após ge- ficos para sua apresentação.
ração, alimentando, inclusive, as ciências, a re- Conforme as Teses benjaminianas
cuperação da memória através das narrativas, (1989), é o presente que determina a existên-
entendidas como “a organização dos aconteci- cia do passado e, não, o contrário. Através das
mentos de acordo com determinado sentido narrativas, escolhemos e selecionamos fatias
que lhes é conferido” (ALBERTI, 2004, p. 92), da história pelo sentido que fazem para a nos-
das lembranças, das histórias dos e das estu- sa existência no tempo presente: assim aque-
dantes, professoras e professoras referentes às las experiências, vivenciadas em outras épo-
ocupações, atos, manifestações, greves, enfim, cas são eternizadas, através das lembranças,
os eventos críticos elencados para a tese, exigiu enriquecendo, a partir do indivíduo, a me-
os estudos das história oral em função de que mória coletiva. Para Benjamin (1989), “onde
ela “pode contribuir para uma história objetiva há experiência no sentido estrito do termo,
da subjetividade” (Idem, p. 92). entram em conjunção a memória, certos con-
Além de que, teúdos do passado individual com outros do
passado coletivo”. (1989, p. 107)
Aplicada à memória coletiva, essa abor-
dagem irá se interessar, portanto, pelos A oportunidade de
processos e atores que intervêm no tra-
habitar uma ocupação
balho de constituição e de formalização
das memorias. Ao privilegiar a análise
dos excluídos, dos marginalizados e das A arquitetura do movimento, o pla-
minorias, a história oral ressaltou a im- nejamento de suas ações e estratégias deu-se,
portância de memórias subterrâneas que, principalmente, através do “ciberativismo”
como parte integrante das culturas mino- (CASTELLS, 2013, p. 23), nas redes sociais,
ritárias e dominadas, se opõem à “memó- co-partícipe e protagonista de movimentos
ria oficial” [...]. (POLLAK, 1989, p. 4) reivindicatórios de demandas populares e so-
ciais, desde os anos 1980. Nelas, as fotografias,
O autor considera tanto a seletividade as selfies, explodem como documento material
da memória coletiva, como, também, proces- a dialogar com as possibilidades da represen-
sos de negociação a fim de conciliar memória tação e construção da realidade através das
coletiva e memórias individuais, ponderando câmeras de celulares, imagens superexpostas,
com Maurice Halbwachs (cf. Pollak, 1989) o em busca de likes (ZACARIOTTI, 2015). A
fato de que a nossa memória se beneficiar da educação não só ultrapassa os muros escola-
memória dos outros, para tal não é suficiente res, assim como a invade e impregna todo o
o testemunho alheio, mas, sim, que haja con- espaço de socialização, incluindo “o novo es-
cordância entre as memórias e que existam paço público” (LEMOS; LEVY, 2010), cons-
suficientes pontos de contato entre elas e as truído pelas redes sociais.
demais a fim de que as lembranças trazidas pe- E, acompanhando as juventudes nes-
los outros possam “ser reconstruídas sobre uma tes outros espaços, noutras janelas de visuali-
base comum.” (p. 4). dades, foi que cheguei ao Twitter de uma das
O movimento das lembranças, entre participantes da ocupação do Colégio Esta-
os objetos, as cenas, as pessoas, é tão dinâmi- dual Visconde de Cairu. Uma de suas fotos

88
A gente ficava tão focado no dia que esquecia das coisas básicas. Era um
vezes nem banho (gelados no banheiro da escola) tomávamos, estáva
focados em manter tudo certo. No final do dia, o mais gratificante er
nossas salas pra dormir e comer o que nós mesmos fazíamos. Todos dor
lado, se cuidando e prontos pra começar tudo de novo outro dia.

sobressai e me chama à atenção não só pelas Imagem 2: A realidade


Imagem 2de uma ocupação
cores, disposição dos elementos, do ângulo
e perspectiva (Imagem 2). Mas, há algo além
que me diz mais. Ele me impactua pela sin-
ceridade, despojamento, cotidianidade. Mais
pelo texto que o acompanha do que pelos co-
mentários e ‘curtidas’.

BORGES, F. A realidade de uma ocupação


não é tão bonita assim. É estar doente, can-
sada, sobrecarregada mas dar bom dia pra
aluno. É ser atacada e ter que continuar
dando exemplo. Deixar suas necessida-
des básicas de lado em prol de algo. Ficar
24hrs por dia sem privacidade. É querer
desistir, mas ter muito caminho pela fren-
te ainda. Já dizia o Crioulo, não baixa a
guarda a luta não acabou. (Rio de Janeiro,
22/04/2016 Facebook: Fran_Borges)34

Eu havia conhecido pessoalmente


aquela moça logo no primeiro dia em que che-
guei no Cairu, quando ela, estendendo a sua e
apertando a minha mão, disse que era “a Fran”.
Na ocasião em que a conheci, ela tinha 19 anos
e participava ativamente dos movimentos es- Fonte: Fran A realidade
Borges, de gentilmente
uma ocupação. cedida.
tudantis pela AMES-Rio. Fonte: Fran Borges, gentilmente cedida
Militante das causas feministas não
raro havia uma postagem da “musa das ocupa-
ções” — como disse um de seus seguidores Tão logo comecei a conhecer a rotina daquela ocupação, notei o zelo na organ
— nas
redes sociais convocando os e as demais com- Tão logo comecei a conhecer a roti-
panheiros e companheiras sistematização,
para algum ato na oupreocupação
na daquelapedagógica
ocupação, o que
noteimeoimpressionou
zelo na orga-de tal forma qu
manifestação. Saíra de casa,ser noaquela
Rio Grande do parte
realidade nização, na sistematização,
do decidira estudar, tantonapelo preocupação
acesso àquele colégio, c
Sul aos 17 anos vindo colaborar com o movi- pedagógica o que me impressionou de tal
mento e ocupação das escolas facilitações
no Rio dedeJanei-
obtençãoforma
de dados,
que incluindo
constateio ser principal:
aquelaa generosidade
realidade da recepçã
ro permanecendo no C.E. Visconde de Cairu parte do decidira estudar, tanto pelo aces-
do começo ao final da ocupação. contar a alegria, entusiasmo e força
so àquele daquele
colégio, como coletivo representadodepor estudantes,
pelas facilitações
Três anos depois, professores
em novembro de obtenção
e colaboradores, dentredeeles,
dados, incluindo
a partir daqueleo principal:
momento, aeu mesmo.
2019, tendo tido a experiência da maternidade, generosidade da recepção, isto sem contar a
diante desta fotografia, Fran me conta que convicção
A minha alegria, entusiasmo
surgiu e forçadois
quando, quase daquele
mesescoletivo
após o início de minh
representado por estudantes, ex-alunos, pro-
A gente ficava tãoaofocado
transcrever entrevistas
no dia que es- e assistir
fessores a vídeos, atentei
e colaboradores, para eles,
dentre os motivos
a partirda ocupação, po
quecia das coisas básicas. Era uma correria, daquele momento, eu mesmo.
as vezes nem banho escola o movimento
(gelados no banheiro era diferenciado
A minha e seconvicção
mantinha apesar
surgiu de todas as adversidade
quando,
da escola) tomávamos, estávamos sempre quase dois meses após o início de minha
focados em manter tudo certo. No final imersão, ao transcrever entrevistas e assistir
do dia, o mais gratificante era voltar pras a vídeos, atentei para os motivos da ocupa-
nossas salas pra dormir e comer o que nós ção, pois, naquela escola o movimento era
mesmos fazíamos. Todos dormindo lado a diferenciado e se mantinha apesar de todas
lado, se cuidando e prontos pra começar as adversidades, devido a um trabalho polí-
tudo de novo outro dia. tico e pedagógico que a comunidade havia
desenvolvido, durante um bom tempo, pre-
parando-se para a ocupação.
Na segunda semana após a ocupação
do Cairu, eu não me via na condição de vi-

34
Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=293335384331317&se-
t=pb.100009645724674.-2207520000..&type=3&theater. Acesso em: 01/05/2021.

89
Na segunda semana após a ocupação do Cairu, eu não me via na condição de visitante,
pois passava grande parte da semana com aquela comunidade, participando das tarefas diárias,
ajudando, organizando, limpando, cozinhando. Durante a ocupação, foram realizados pequenos
reparos,sitante,
inclusive pintura, reforma e pequenas obras
pois passava grande parte da semana
de manutenção, contando, inclusive, com
ra, reforma e pequenas obras de manutenção,
com aquela comunidade, participando das ta- contando, inclusive, com o voluntariado e a
o voluntariado e a ajudando,
refas diárias, ajuda de organizando,
pais, mães elimpan-
responsáveis
ajudaque aderiram
de pais, mães e àresponsáveis
causa do movimento
que aderi- e se
do, cozinhando. Durante a ocupação, foram ram à causa do movimento e se solidarizaram
solidarizaram com
realizados os e asreparos,
pequenos ocupantes.
inclusive pintu- com os e as ocupantes.

Imagem 3: “Quero contar pra minha filha!"


Imagem 3

"Quero contar
Fonte: Fran Borges, pra minha filha!".
gentilmente cedida. Fonte: Fran Borges, gentilmente cedida.

Ao se Aoversenaverfotografia
na fotografia
com comsua suacompanheira,
com- Eloísa,a ajuda
no mutirão do Cairu
de um menino que era(Imagem
detes- 2),
panheira, Eloísa, no mutirão do Cairu (Ima- tado pela direção, por sempre pichar
gemme
orgulhosa 2), orgulhosa
diz querer mecontar
diz querer
todacontar
aquela toda
história para a sua filha. velhas e descascadas de lá.
as paredes
aquela história para a sua filha. Quando minha filha começar a enten-
FRAN BORGES - O Cairu, como a maioria der, quero das
contarescolas no estado,
com orgulho de cada estava
completamente largado. No final da ocupação, buraquinho que eu
queríamos ao fechei
máximocomdeixar
minhasas coisas
FRAN BORGES — O Cairu, como a próprias mãos.
melhores do que quando ocupamos. Em uma sala escondida, tinha vários materiais de
maioria das escolas no estado, estava
construção que nunca tinham sido usados. Quando adolescente, trabalhava com meu
completamente largado. No final da
ocupação,vôqueríamos
de servente de pedreiro.
ao máximo dei- Logo quisOrebocar todo janelas
Cairu, cujas pátio dalaterais,
escola.seme-
Junto com o
professor Igor e a aluna
xar as coisas melhores do que quando Eloísa, pintamos
lhante às do prédio onde eu morara na mi- a ajuda
cada coluna e cantinho. Teve também
de um menino que era
ocupamos. Em uma sala escondida, ti- detestado pela
nha direção, por chamou
adolescência, sempre pichar
a minha as paredes
atenção velhas e
nha váriosdescascadas
materiais de de lá. Quando
construção que minha(Imagem 4), logoa entender,
filha começar no primeiro diacontar
quero de visita.
com orgulho
Aquele colégio
de cada buraquinho que eu fechei com minhas próprias mãos.
nunca tinham sido usados. Quando cuja arquitetura priorizou
adolescente, trabalhava com meu vô de não só os aspectos estéticos, como, também,
servente de pedreiro. Logo quis rebocar a utilização máxima de cada um de seus vá-
todo pátio da escola. Junto com o pro- rios espaços, assim permitia uma multiplici-
O Cairu, fessor
cujasIgorjanelas
e a alunalaterais, semelhante
Eloísa, pintamos dadeàsdedo prédio
ações, onde
durante eu morara
a ocupação, na minha
ao mes-
cada coluna e cantinho. Teve também mo tempo. 35
adolescência, chamou a minha atenção (Imagem 4), logo no primeiro dia de visita. Aquele
35
Para o estudo da arquitetura escolar no Brasil, ler CARVALHO, 2011. Disponível em: https://germinai.wordpress.
com/textos-classicos-sobre-educacao/linha-historica-da-arquitetura-escolar-do-brasil/. Acesso em: 01/05/2021. 116

90
uja arquitetura priorizou não só os aspectos estéticos, como, também, a utilização
de cada um de seus vários espaços, assim permitia uma multiplicidade de ações,
ocupação, ao mesmo tempo.3

Imagem 4 havia também serviço militar que, sem


Imagem 4: Roupas no varal dúvida, desempenhavam esse papel: era
preciso que as primeiras manifestações da
sexualidade viril ocorressem em outro lu-
gar”. (FOUCAULT, 2013, p. 21-22)

O fato é que, ocupada ou não, as esco-


las sempre se depararam com o dilema da proi-
bição: estudantes sempre encontram maneiras
de transgredir. Não seria o fato de a escola estar
sem adultos responsáveis, ‘tomando conta’, com
um inspetor vigiando, ela se mostraria vulnerável
facilitando oportunidades para o que se deve ou
não ser feito dentro de uma escola. E não é que
não houvesse as regras, inclusive, definidas pelo
próprio comando, em assembleia. E isto, todos os
que ocuparam aquela escola sabiam muito bem.
Minha percepção desta boa utilização,
conservação e gestão do colégio, com raros e
pequenos atritos, pelo menos, durante a minha
permanência, ocorreu nas minhas reflexões ao
me deslocar da minha casa até o colégio. No
colégio estudavam, na ocasião, cerca de 1.600
estudantes o ensino médio regular da rede pú-
blica de ensino do Rio de Janeiro (Seeduc-RJ).
Sua ata de criação exposta na bi-
blioteca do colégio data de 12 de setembro e
Fonte: Acervo 1918 tendo funcionado provisoriamente em
Roupasdono autor
varal. Fonte: Acervo do autor dois endereços no Meier, antes de se fixar
em definitivo naquele prédio, na rua Soares,
ssim como a biblioteca, o teatro, a cozinha e outros espaços 95. daquele
De minha casa até o colégio, eu levava
colégio
duas horas e meia para chegar no Meier, já
do outras utilizações eAssim como a biblioteca,
funcionalidades durante oa teatro,
ocupação,a o que era o único
laboratório tambémcolégio em que eu não ia de
cozinha e outros espaços daquele colégio co- carro, preferindo ir de trem o que, por mais
a função de umnhecendo
espaço heterotópico. “Na verdade,
outras utilizações porém, essas estranho
e funcionalidades heterotopias
que podem
eu soube aproveitar como um
durante a ocupação, o laboratório também dos momentos para a pesquisa, estudando,
e assumem sempre, formas
exerceria extraordinariamente
a função variadas”, conforme
de um espaço heterotópico. anotando o filósofo
no diário,ao escutando as gravações.
r os rudimentos“Na daverdade, porém, essas
heterotopologia heterotopias
(Idem, podem
p. 21). Classificando as sociedades de
assumir, e assumem sempre, formas extraordi- Sobre as janelas da ocupação
om as heterotopias,
nariamenteFoucault apresenta
variadas”, conforme os “lugares
o filósofoprivilegiados
ao ou sagrados”
apresentar os rudimentos da heterotopologia E foram as janelas do Cairu que me
ULT, 2013, p. 21) das sociedades
(Idem, primitivas,asousociedades
p. 21). Classificando ‘proibidos’, decomolevaram
na nossaà sociedade.
reflexão que, através delas, ocorrem
acordo
Mas estes com as privilegiados
lugares heterotopias, ouFoucault apresen-
sagrados são, os deslocamentos
em geral, reservados espaço temporais que propi-
aos indivíduos
ta oscrise
“em “lugares privilegiados
biológica”. Há casasouespeciais
sagrados” (FOU-
para ciam momentos
os adolescentes no momentodedarecuperação de memórias
CAULT, há
puberdade; 2013, p.especiais
casas 21) das sociedades
reservadas àsprimitivas,
mulheres na épocaacionadas
das regras;tanto pelo deslocamento do olhar
outras para
asoumulheres
‘proibidos’, como nadenossa
em trabalho parto.sociedade.
Em nossa sociedade, as como pelas lembranças
heterotopias para os em si mesmas. E quanto
indivíduos em crise biológica pouco a pouco despareceram.mais diferentes
Observemos que as paisagens, tanto mais inten-
ainda
Mas estes lugares privilegiados ou sagrados sas são estas lembranças: elas nos tiram do lu-
são, em geral, reservados aos indivíduos gar comum, da rotina, dos cotidianos, da coisa
estudo da arquitetura escolar no Brasil,
“em crise biológica”.lerHá CARVALHO,
casas especiais 2011.
repetidaDisponível em: chama a nossa atenção.
que não mais
minai.wordpress.com/textos-classicos-sobre-educacao/linha-historica-da-arquitetura-escolar-do-brasil/.
para os adolescentes no momento da pu- Foi nisto que pensei ao ver a fotogra-
01/05/2021. berdade; há casas especiais reservadas às fia, registro do primeiro dia de ocupação na
mulheres na época das regras; outras para ETESC, feita por 117um estudante: uma jane-
as mulheres em trabalho de parto. Em nos- la para o sonho, a utopia. Além de imaginar,
sa sociedade, as heterotopias para os indi- algumas das janelas daquela escola, também
víduos em crise biológica pouco a pouco serviam não só para entrada de luz: poderiam
despareceram. Observemos que ainda no funcionar como saída de emergência no caso
século XIX havia colégios para os rapazes, de uma eventual necessidade.

91
Em uma bonita manhã de uma clarida- O próprio grafite que chamou a aten-
de suave entrando pelas grandes janelas da bi- ção do repórter que noticia o “Viradão”, no
blioteca do Cairu, notei o contraste promovido Cairu, integra um grande esforço de recupe-
pela falta de iluminação característica dos outros ração da pintura do colégio, com donativos
espaços fechados do colégio a cujas salas de aula e trabalho voluntário, convocado através das
tinha acesso pelos corredores dos dois andares redes virtuais. Mas, ainda bem que ele viu e
Mas, havia outras janelas pelas quais registrou o problema crônico na educação
não só a iluminação, como, também, as lem- pública do Rio de Janeiro: o assumido desca-
branças poderiam ter penetrado. Numa casa so para com ela.
como aquela, não são só as portas que dão
acesso a outros ambientes: as janelas também — A escola resiste heroicamente. E, ape-
se prestam para isto, claro, não o acesso físi- sar de todas as dificuldades do Estado,
co, mas o das lembranças. Tanto na ida quanto nunca houve tanto investimento nela —
na volta procurava sempre um lugar no trem garante o diretor Jorge Correa, há37 cerca
em que eu ficasse na janela. Da mesma forma, de quatro anos à frente da unidade. Com
quando se viaja de avião, no esforço para ir e esse dinheiro, segundo ele, já foi possível
voltar na janela. Os ângulos, as paisagens, as pintar janelas, trocar lâmpada, colocar
cores estimulam as lembranças fazendo com dois portões eletrônicos e instalar 16
que o tempo fique paralisado pelas memórias. câmeras de segurança. O diretor explica
que os resultados demoram a aparecer
Mídias, memórias e lembranças porque, além dos recursos chegarem em
parcelas — são dez de R$ 15 mil e uma
Dia e noite, os ocupantes do Cairu circu- de R$ 7 mil — é necessário todo um pla-
lavam com os seus celulares não só para ouvir mú- nejamento, que inclui avaliar as priori-
sicas, como, também, para a intercomunicação: dades junto a professores e alunos, além
era através de mensagens trocadas pelo Facebook de submeter o serviço aos critérios de
e pelo Whatsapp que eram informados e atualiza- licitação no serviço público, que exigem
dos sobre as ocupações, as ações do #desocupa, as entre outras coisas apresentação de pelo
convocações para assembleias internas, reuniões menos três orçamentos.
do Comando Geral de Ocupações36, para muti-
rões para obras de conserto e reparo no colégio Resistência estampada no grafite.
ocupado. E não só no Cairu, afinal, Resistência forjada na ocupação, nas lutas e
movimentos estudantis. Em atos, manifesta-
[...] cada escola ocupada não tinha apenas ções, protestos.
uma realidade física e presencial; a maio- A constatação de um dos professores
ria das ocupações se prolongou virtual- apoiadores do movimento, que permanecera
mente em páginas de Facebook mantidas durante toda a ocupação do Cairu, de “uma
pelos secundaristas — adolescentes cuja espécie de depósito de livro”, verificada, tam-
sociabilidade é em grande parte media- bém, por mim, em uma das salas do Cairu,
da digitalmente. As escolas ocupadas no não transparece o descaso com a coisa pública
estado do Rio de Janeiro foram inclusive denunciada pelos estudantes que ocuparam o
renomeadas a partir de sua realidade digi- colégio: não só livros, como, também, objetos
tal: “OcupaMendes” (#OcupaIEPIC” etc), e utensílios vinham sendo deteriorados pelo
comprovando e explicitando o hibridismo acondicionamento inadequado. A pilha de li-
online/offline característico dos movimen- vros não utilizados e guardados no “depósito”
tos sociais contemporâneos [...]Todas estas em que Fran se deixa fotografar, postada em
páginas e canais nas redes sociais online seu Facebook percebo ser maior do que a mi-
formaram contrapúblicos digitais que fo- nha altura. Maior que ela é a “tradição de luta”
ram fundamentais pra combater as nar- e, isto sim, retrata a consideração e reconhe-
rativas oficiais dos governos e da grande cimento do colégio não só contado por quem
imprensa tradicional. (MEDEIROS; Ja- era daquela escola, como, também, por outros
nuário; Melo, 2019, p. 23) colegas, de outras escolas no Rio de Janeiro.

36
“Esse fórum também foi nomeado “Comando Ocupa Tudo”. Entretanto, essa nomenclatura é encontrada apenas nos
materiais ligados a ANEL (Assembleia Nacional dos Estudantes — Livre). Nas páginas das “Ocupas”, tanto nos mate-
riais divulgados, quanto nos textos escritos por estudantes, se referem majoritariamente ao fórum como “Comando
Geral” (BARRETO, 2019, p. 134).
37
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/caminhosdecascadura/13863482415/ Acesso em: 01/05/2021.

92
No dia em que eu, minhas e meus co- a sua lembrança, “como os celeiros, o fundo do
legas retornamos à ETESC, após a desocupa- jardim a tenda de índios ou a cama dos pais, ver-
ção, me emocionei diante daqueles estudantes dadeiras utopias localizadas”. O filósofo, então,
sentados na sala dos professores, o que sabia sonha com a possibilidade de “uma ciência que
que não mais iria acontecer. Perguntei se po- teria por objeto estes espaços diferentes que são
deria registrar aquele momento e todos con- a contestação dos espaços onde vivemos, não
cordaram (Imagem 5). Ali, eles permaneceram uma ciência das utopias, mas das heterotopias,
por três meses e, tão logo iniciei o resgate de ciência dos espaços absolutamente outros.”.
suas lembranças, soube que, como espaço he- (FOUCAULT, 2013, p. 34-35)
terotópico, conforme Foucault (2013), aquela Prontamente, dei continuidade à pesqui-
sala, o quartel general da ocupação — Q.G. sa principalmente, porque, logo naquele primeiro
— , serviu tanto de cozinha, sala de reuniões, dia de retorno, a direção, sabendo do meu direto
dormitório, e, até mesmo, de banco, pois um interesse, me pediu acompanhar uma professora
dos armários ficara reservado para guardar o em uma ‘auditoria da desocupação’. Entretanto,
vivemos,
dinheiro não
que uma ciência dasrecebiam
os estudantes utopias, de masdoa-
das heterotopias, ciência era
o que se pretendia doscontabilizar
espaços absolutamente
os itens patri-
ções, principalmente, no ‘sinal’:
outros.”. (FOUCAULT, 2013, p. 34-35) semáforo lo- moniais da escola. Soube, através de uma colega,
calizado em um cruzamento de ruas, de inten- a Carlinha da enfermagem, que haveria uma re-
so movimento, a aproximadamente,
Prontamente, dei continuidade 2 kmà da união
pesquisa na parte da tardeporque,
principalmente, e que, às logo
13hs:30naquele
min. ela
escola, cujo trajeto faziam a pé. estaria lá com o diretor para a vistoria.
primeiroDefert
dia de retorno, a direção,
(FOUCAULT, sabendo
2013), do meu direto interesse,
no pos- No dia 15me de pediu
julho acompanhar
daquele ano,uma uma
fácio ao texto foucaultiano, registra que, para sexta-feira, finalmente retornei à ETESC já
professora em uma ‘auditoria
o desenvolvimento da noção de da heterotopias,
desocupação’. Entretanto,
para dar oaulas,
que se
bempretendia era contabilizar
a contragosto devido à
Foucault, no ano de 1966, em uma série de con- arbitrariedade do sindicato
os itens patrimoniais da escola. Soube, através de uma colega, a Carlinha da enfermagem, queda FAETEC, que,
ferências radiofônicas sobre Utopia e Literatu- passando por cima da vontade da maioria dos
haveria uma reunião
ra, na França, na parte
para a qual da tarde e que,
fora convidado, parteàs 13hs:30 min. ela
professores, estaria
assim comolá com
da eodosdiretor para a
estudantes
de uma evocação bachelardiana (1978) dos espa- que ocupavam as escolas, em deliberar pelo
vistoria.
ços infantis e o encantamento que nos promove encerramento da greve.
Imagem 5: Imagem
Último dia
5 no Q.G.

Último dia no Q.G. Fonte: Acervo do autor


Fonte: Acervo do autor.

No dia 15 de julho daquele ano, uma sexta-feira, finalmente retornei à ETESC já para
dar aulas, bem a contragosto devido à arbitrariedade do sindicato da FAETEC, que, passando
por cima da vontade da maioria dos professores, assim como da e dos estudantes que ocupavam
as escolas, em deliberar pelo encerramento da greve.
93
Aquela foi uma semana de intenso mergulho nas lembranças, memórias, registros e
Aquela foi uma semana de intenso mer- Referências
gulho nas lembranças, memórias, registros e
histórias sobre a ocupação da ETESC — Esco- ALBERTI, V. O que documenta a fonte oral?
la Técnica de Santa Cruz, ainda mais porque, Possibilidades para além da construção do pas-
ali eu permanecia boa parte da semana. Uma sado. II Seminário de História Oral. Centro de
das unidades da Fundação de Apoio às Escolas Estudos Mineiros da Faculdade de Filosofia e
Técnicas do Rio de Janeiro (FAETEC), no ano Ciências Humanas da Universidade Federal de
se 2016, contava com 1.500 alunos estudando de Minas Gerais. Belo Horizonte, 19-20 set. 1996.
segunda a sábado, das 7hs às 21hs em período in- Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao_
tegral divididos entre diversos cursos técnicos. intelectual/arq/869.pdf. Acesso em: 01/05/2021
Rodeada por grandes árvores, em uma
extensão considerável do bairro de Santa Cruz, ______. Ouvir contar: textos em história oral.
— vizinha do bairro mais populoso do Brasil, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
Campo Grande — em uma antiga fazenda, em
meio a um laranjal, do período do Brasil-Colô- BACHELARD, G. A poética do espaço. In: A
nia, hoje é um dos atrativos turísticos da região filosofia do não; O novo espírito científico; A
onde se localiza, a zona oeste do Rio de Janeiro. poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural,
Diante daquele outro coletivo, trazer 1978, p. 180-354.
aquela experiência enquanto ato pedagógico
passou a ser um desafio, na medida em que, os BARRETO, B. A. L. Ocupações secundaristas
meus e minhas colegas continuamos isolados e no Rio de Janeiro em 2016. In: Ocupar e resis-
isoladas, desenvolvendo nossas disciplinas em tir: movimentos de ocupações de escolas pelo
compartimentos estanques, no máximo, den- Brasil (2015-2016). Organização de Jonas Me-
tro de projetos que se dizem multidisciplina- deiros, Adriano Januário e Rúrion Melo; São
res, mas continuam sendo ‘disciplinares’. Paulo: Editora 34, PAPESP, 2019. P. 124-148.
Além disto, a experiência das ocupações
expõe outras dificuldades para a educação dentro BARTHES, R. A câmara clara: notas sobre a
dos espaços escolares, pois ratificam a impossibi- fotografia. Rio de Janeiro: Editora Nova Fron-
lidade em revelar como se dá a conscientização, teira, 2017.
como incitar um indivíduo a participar da cons-
trução de sua própria formação, numa sociedade CARVALHO, I. C. Projeto Arquitetônico Es-
em que todos estão completamente alienados da colar: uma proposta voltada à Educação Am-
produção dos objetos necessários à sua própria biental. Trabalho Final de Graduação (Arqui-
vida, alienando-nos da consciência em produzir, tetura e Urbanismo), Universidade Federal do
consumir ou utilizar: tudo já está completamente Pará, Belém, 2009.
pronto para o consumo imediato.
Entretanto, tanto aqueles que partici- CASTELLS, M. Redes de esperança e indigna-
param de uma ocupação assim como os que ção. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2013.
não o fizeram, diante do acervo e do patrimô-
nio daquele movimento, fotografias e depoi- FOUCAULT, M. O corpo utópico, as hetero-
mentos, explicações, vídeos, há a possibilida- topias. São Paulo: n.1 Edições, 2013.
de em se entender o caráter de emancipação
que ela representou, o que reputo como uma LAPA, C. M. F. A reação do Sepe-RJ aos novos
das principais contribuições destes estudo so- modelões de gestão do trabalho escolar: hege-
bre as ocupações secundaristas. monia e contra-hegemonia no Rio de Janeiro.
Reforço o urgente e necessário fomen- Encontro Internacional e XVIII Encontro de
to à produção de material referente às ocupa- História da ANPUH-RJ. Anais eletrônicos.
ções secundaristas, — em qualidade e quanti- Niterói, 2018. p. 2-9. Disponível em: https://
dade —, sua preservação e patrimonialização; www.encontro2018.rj.anpuh.org/resources/
as mostras, exposições de fotografias, a produ- anais/8/1529879940_ARQUIVO_AREACAO-
ção de documentários, eventos culturais, in- DOSEPEANPUH2018CARLOSMAURICIO-
tervenções estéticas, festivais, publicação de FRANKLINLAPA.pdf. Acesso em: 01/05/2021.
livros, as rodas de conversa, enfim, tudo o que
reforce as ocupações, como movimento, ato LEMOS, A.; LEVY, P. O novo espaço público.
pedagógico, estratégia de luta e resistência a In: __. O futuro da internet. São Paulo: Paulus,
se evitar o apagamento desta memória coleti- 2010, p. 56-57.
va, a que se juntam as minhas, do movimento
estudantil, das ocupações secundaristas. LOBATO, R. Navalha do olhar: o processo de

94
construção do Outro olhar. In: Vaz, P. B. (org.). ______. Memória, esquecimento, silêncio. Estu-
Narrativas fotográficas. São Paulo: Autêntica dos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989,
Editora, 2006, p. 111-134. p. 3015. Disponível em: http://www.uel.br/cch/
cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.
Medeiros, J.; Januário, A.; Melo, R. (orgs.) Ocu- pdf.Acesso em: 01/05/2021.
par e resistir: movimentos de ocupações de es-
colas pelo Brasil (2015-2016). São Paulo: Edito- ZACARIOTTI, M. (In) visibilidades das ju-
ra 34, FAPESP, 2019. ventudes pós-modernas [manuscrito]: tri-
POLLAK, M. Memória e identidade social. Estu- lhas estéticas na cibercultura. Goiânia, 2015.
dos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, Disponível em: https://repositorio.uft.edu.
p. 200-212. Disponível em: http://www.pgedf.ufpr. br/bitstream/11612/474/1/Marluce%20Zaca-
br/memoria%20e%20identidadesocial%20A%20 riotti%20-%20Disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf.
capraro%202.pdf. Acesso em: 01/05/2021. Acesso em: 19/06/2021.

95
POLÍTICAS EDUCACIONAIS
PARA A INFÂNCIA
LATINO-AMERICANA —
PROMEDLAC (1984-2001)

Márcia Colber de Lima38


Resumo: A proposição das políticas
de atendimento à primeira infância na pers-
pectiva do Projeto Principal de Educação
(PPE) coordenado pela UNESCO é o foco
deste trabalho. Para a compreensão de como a
educação das crianças pequenas é considerada
nestes encontros entre os países da América
Latina e Caribe, coordenados pela ONU, fo-
ram analisados os documentos resultantes dos
sete encontros do Comitê Intergovernamental
do Projeto Principal de Educação (PROME-
DLAC), ocorridos nos períodos compreendi-
dos entre 1984 e 2001. A análise de tais rela-
tórios teve como categorias os conceitos de
capital humano de Rossi (1980) e as conside-
rações de Frigotto (1993; 1996) sobre politicas
educacionais na perspectiva econômica. Fo-
ram destacadas para tal análise as recomen-
dações para as políticas educacionais para a
infância, prescritas pelo PROMEDLAC aos
países participantes nos referidos encontros.
Tais recomendações se pautam na perspectiva
da teoria do capital humano (Rossi, 1980) e in-
dicam a educação das crianças pequenas como
uma das principais formas de afastamento das
populações vulneráveis da linha da pobreza e
de prevenção dos problemas de aprendizagem
do Ensino Fundamental. As informações cons-
tantes nos relatórios do PROMEDLAC permi-
tiram a identificação dos principais programas
destinados à infância provenientes de tais re-
38
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de São Paulo — UNIFESP.

96
comendações da UNESCO, especialmente no PROMEDLAC e as perspectivas da teoria do
último quartil do século XX e que vêm se con- capital humano, fomentadas pelos organismos
solidando no início do século XXI. Como re- internacionais de financiamento, pela UNES-
sultados, constata-se que os investimentos na CO e pelos governos dos países da região.
educação da primeira infância vêm obedecen- A forte tendência econômica revela-
do a lógica de que a criança é pensada como in- da pelas recomendações encontradas nos do-
vestimento visando a possibilidade de aumen- cumentos do PROMEDLAC, quando se trata
to do capital humano de uma sociedade, em especificamente da organização da Educação
detrimento da questão da educação como di- Infantil, é verificada no crescente discurso
reito humano de todas as crianças. Os impac- de aumento no investimento em educação de
tos dessa visão têm-se consubstanciado, desde crianças pequenas e que, nas que nas últimas
as duas últimas décadas do século passado, no quatro décadas vêm se dando por meio de im-
aumento do uso de espaços alternativos para a provisos e modelos alternativos, delegando o
implementação de escolas para a primeira in- atendimento às parcerias do poder público
fância, bem como a terceirização dos serviços com as instituições vinculadas às Organiza-
por meio do conveniamento e estabelecimento ções Sociais. O improviso aqui tratado é ve-
de parcerias com as organizações da sociedade rificado principalmente no aproveitamento
civil, os quais nem sempre podem ser conside- dos espaços adaptados e/ou comunitários
rados atendimentos em condições satisfatórias para atendimento à primeira infância, na
para esta faixa etária e que têm por objetivo crescente política de terceirização deste aten-
principal diminuir custos desta modalidade dimento e na precariedade da formação dos
de educação para os governos. Entretanto, não profissionais que atuam nestes espaços, des-
há como se negar que tais políticas ampliaram considerando a complexidade do atendimen-
o atendimento educacional às crianças peque- to das crianças na educação infantil.
nas, mas se se faz necessária ampla discussão Tomando por fontes os documentos do
da sociedade desses países sobre a perspectiva PROMEDLAC, este trabalho tem por estru-
de educação infantil que se deseja implemen- tura primeiramente o destaque das recomen-
tar de modo a garantir o direito inalienável dações prescritas para a educação pré-escolar
das crianças pequenas à educação, articulado e, posteriormente, a análise da relação destas
com a melhoria das condições de vida das po- recomendações de políticas públicas com a
pulações latino americanas e caribenhas, que teoria do capital humano aplicada à educação
possam decorrer deste atendimento. infantil, com apoio nas contribuições de Rossi
(1980) e Frigotto. (1993; 1996)
Palavras chave: PROMEDLAC. Edu- Nas considerações finais, aponta-se
cação para a infância. Politicas Educacionais para a necessidade de envolvimento de toda
Latino-americanas. a sociedade na elaboração de políticas públi-
cas para atendimento das crianças, pois em-
bora as recomendações traçadas nos PRO-
MEDLAC tenham ampliado o atendimento
Introdução educacional às crianças pequenas, ainda se
faz necessária ampla discussão da sociedade
Este trabalho tem como tema as re- desses países sobre a perspectiva de educação
comendações constantes nos documentos do infantil que se deseja implementar de modo
Projeto Principal de Educação para a Amé- a garantir o direito inalienável das crianças
rica Latina e Caribe (PROMEDLAC) para a pequenas à educação, articulado com a me-
educação da primeira infância. Propostos pela lhoria das condições de vida das populações
UNESCO e pelos organismos internacionais latino americanas e caribenhas, que possam
de financiamento e envolvendo os planejado- decorrer deste atendimento.
res regionais da economia e da educação de
cada um dos países da América Latina e do
Caribe, os encontros do PROMEDLAC, ocor- PROMEDLAC — o que
ridos nos períodos compreendidos entre 1984 recomendam os relatórios
e 2001, traduzem como, sob a ótica da econo-
mia, a política pública de educação deve ser dos encontros de 1984 a 2001
planejada e desenvolvida nos países latino-a-
mericanos e caribenhos. Procura-se estabelecer As reuniões do Comitê Regional Inter-
um intercâmbio entre as políticas educacionais governamental do Projeto Principal de Educa-
para a primeira infância recomendadas pelo ção para América Latina e Caribe (PROME-

97
DLAC), que aconteceram entre os anos de Se estima que é chegado o tempo de
1984 e 2001 tiveram como pauta principal a passar a uma etapa em que se conceba
educação na América Latina e Caribe. a educação inicial como um nível edu-
Estas reuniões, organizadas pela cacional ao qual se apliquem princípios
UNESCO, objetivavam estabelecer um de igualdade de oportunidades similares
Projeto Principal de Educação (PPE) para aos que se promulgam para a educação
a América Latina e Caribe nas décadas de primária. (PPE, 1984, p. 14)
1980 até o início dos anos 2000, a partir das
orientações da Declaração do México (1979), Também ressalta que as políticas e pla-
documento que deu origem ao PPE e que foi nos nacionais devem incorporar sistematica-
referendado pela reunião intergovernamen- mente previsões e programas de ação, podendo
tal de Quito (1981) e Santa Lúcia (1982), na acelerar o ritmo de expansão do atendimento
perspectiva de superar os desafios da educa- nesta modalidade de educação, em sua forma
ção frente às demandas de desenvolvimento tradicional, se fizesse uso das instituições, in-
econômico e social dos países membros. fraestrutura e recursos da educação primária
Tendo como principais representan- em detrimento de construção de estabeleci-
tes destes países nas referidas reuniões os mentos específicos para a educação infantil.
ministros das áreas de educação e aqueles en- Esta medida diminuiria os custos com a am-
carregados do planejamento econômico, as pliação do atendimento e asseguraria a conti-
deliberações destes encontros estabeleceram nuidade do processo educativo, contribuindo
de forma bastante direta as recomendações a para a solução do problema da transição das
serem encampadas pelos países latino-ame- crianças da educação pré-escolar para a educa-
ricanos e caribenhos no campo educacional, ção primária. No que tange as formas não tradi-
com vistas à superação das desigualdades so- cionais de atendimento, recomenda a extensão
ciais e econômicas que marcam fortemente a e integração com programas intersetoriais de
maneira como estes estão organizados políti- atenção familiar e o incentivo às iniciativas co-
ca, econômica e socialmente. munitárias, bem como desenvolver programas
A partir do primeiro documento pro- de capacitação de pais, líderes comunitários e
duzido no encontro de 1984 (PROMEDLAC I) voluntários acerca da concepção, organização e
até o último ocorrido em 2001 (PROMEDLAC desenvolvimento de formas de educação infan-
VII), há destaque para três aspectos prioritá- til não convencionais de comprovada eficácia.
rios a serem considerados na região: a garantia Apresentando a situação de expansão
de acesso universal à educação básica, amplian- no atendimento da educação pré-escolar na
do gradativamente os anos de escolaridade região na última década o PROMEDLAC II,
obrigatória; a erradicação do analfabetismo ocorrido em Bogotá/Colômbia em 1987, desta-
na população jovem e adulta, articulando esta ca que tal extensão de atendimento teria favo-
educação às demandas dos processos produti- recido principalmente as crianças das camadas
vos da sociedade e, a melhoria da qualidade e sociais mais privilegiados e das áreas urbanas.
a eficiência da educação por meio da reestru- Embora seja evidente o surgimento de movi-
turação dos currículos, formação e aperfeiçoa- mentos inovadores e experiências de atendi-
mento de pessoal docente, diversificação de mento integral às crianças mais necessitadas
materiais e instrumentos didáticos e planifica- com menos de seis anos de idade, estas expe-
ção regional das ações educacionais. riências se baseiam na estratégia de:
Como o foco tratado neste trabalho é
a educação infantil, destacamos dos relatórios Articular os processos educativos com
destes encontros as recomendações para a edu- ações de nutrição, de atenção preventiva
cação das crianças de zero a seis anos, com des- da saúde, de atenção materno infantil e
taque para os objetivos que aparecem em cada de educação familiar, que têm demons-
um dos sete documentos no que tange ao papel trado uma decisiva influência no desen-
desta modalidade de educação. volvimento posterior das crianças, tanto
O primeiro encontro — PROME- do ponto de vista psicofísico quanto pro-
DLAC I — ocorreu em 1984 na cidade do Mé- priamente educativo. (PPE, 1987, p. 9-10)
xico. O relatório produzido a partir das dis-
cussões deste encontro traz as considerações Destaca que a existência na região de
acerca da educação infantil no contexto das cerca de 35 milhões de crianças com menos de
prioridades para ações futuras, vinculadas seis anos pertencentes a famílias em situação
com o objetivo de escolarização. Recomenda de pobreza constitui um sério problema tan-
que sobre a educação pré-escolar: to de justiça social quanto de possibilidade de

98
desenvolvimento futuro da região, já que a des- vendo estratégias de ação comunitária, parti-
vantagem inicial destas crianças para aprovei- cipação dos pais na educação dos filhos e na
tarem as oportunidades da educação formal é capacitação de monitores da própria comuni-
real. Recomenda então, aos estados membros, dade para garantia deste atendimento. O do-
a elaboração de programas específicos de ex- cumento, pela primeira vez, destaca três fases
tensão da educação pré-escolar, identificando da educação pré-escolar. A primeira destinada
as ações de atenção às crianças desenvolvidas às crianças de zero a dois anos recomendada
por instituições tanto públicas quanto priva- como responsabilidade da família com ações
das, incorporando a estas o componente edu- articuladas e vinculadas aos Ministérios da
cativo e assegurando a complementação e arti- Saúde e, havendo necessidade de atendimento
culação dos esforços, de maneira a se expandir institucional para esta faixa etária, recomenda-
a pré-escolaridade às crianças pertencentes aos -se o fortalecimento de iniciativas não gover-
setores sociais urbanos marginais e rurais. namentais como as das igrejas e organismos de
Na Guatemala em 1989 aconteceu a beneficência. A segunda fase, que compreende
reunião do PROMEDLAC III que retoma os as crianças de dois a quatro anos, aponta para
aspectos chave apontados na reunião anterior uma duplicidade de oferta educativa: para as
uma vez que há uma constatação do fracasso crianças das camadas sociais médias e altas o
escolar das crianças na educação básica, apesar atendimento se dá de maneira similar àquele
dos esforços empregados pelos países membros. destinado às crianças de quatro a seis anos,
Para a solução deste problema, recomenda-se: ou seja, estruturado em instituições escolares;
já nas camadas sociais mais pobres esta edu-
Ampliar os esforços já iniciados de articu- cação é assumida com uma forte participação
lação mais efetiva do nível pré-escolar com comunitária e forçada por uma demanda das
o nível básico primário desde o ponto de mulheres trabalhadoras pelo atendimento às
vista da infraestrutura, do currículo e dos crianças em instituições. A importância da
serviços de apoio [...] incorporar ao menos forte participação comunitária na educação de
um ano da pré-escola ao ciclo básico ou crianças de dois a quatro anos é revelada quan-
conceber a primeira fase da vida escolar do o documento afirma que “a incorporação de
da criança como um ‘ciclo inicial’ que inte- agentes comunitários na atenção das crianças
gre a pré-escola com os primeiros anos da de 2 a 4 anos tem sido exitosa para a atenção
educação básica. (PPE, 1989, p. 17) das crianças e, numa mesma ordem de impor-
tância, para a educação e inserção laboral dos
A recomendação de se apoiar progra- adultos, especialmente mulheres” (PPE,1991, p.
mas de educação pré-escolar que envolvam 14). A terceira fase — crianças de quatro a seis
especialmente as mães, de modo a garantir a anos — cujo atendimento obteve uma expansão
atenção integral à criança, também está pre- considerável, aponta para os debates sobre as
sente no documento deste encontro. formas de articulação desta fase da pré-escola
Já o PROMEDLAC IV com reunião com a escolaridade primária, destacando que os
sediada em Quito/Equador em 1991 traz um eixos de discussão devem considerar aspectos
novo jeito de tratar a educação na região, pois pedagógicos, administrativos e financeiros. As
a considera como elemento chave para o desen- preocupações relatadas circulam pela escassez
volvimento econômico. A partir desta reunião, de recursos financeiros frente obrigatoriedade
passam a ser efetivadas e fazer parte dos pla- para um ou dois anos de educação pré-escolar e
nos regionais de educação na América Latina pelo estabelecimento de um ciclo que abarque
e Caribe e dos discursos no campo educacional os anos da educação pré-escolar articulado aos
o triplo desafio da eficácia, eficiência e equidade. primeiros anos da escola básica, com foco nas
Assim, o documento analisa amiúde a situação necessidades básicas de aprendizagem de leitu-
do atendimento pré-escolar na região, sendo o ra e escrita. Para tal, ainda aponta se há neces-
primeiro a citar a recomendação da educação sidade de formação especializada dos docentes
das crianças de zero a quatro anos. Destaca que da pré-escola ou se os profissionais do nível
embora haja aumento na cobertura de atendi- primário podem assumir o trabalho também
mento da educação pré-escolar, esta permane- nesta modalidade de educação.
ce concentrada nas zonas urbanas, ainda favo- Em 1993, a reunião do PROMEDLAC
recendo os setores médios e altos da sociedade, V em Santiago/Chile reitera o tom dado pela
tanto no que diz respeito ao acesso quanto à reunião anterior para o papel da educação no
qualidade. Revela a heterogeneidade nos mo- desenvolvimento econômico da região, e par-
delos de atendimento, especialmente naqueles ticularmente para a educação infantil, reitera
destinados às populações mais pobres, envol- a problemática do alto custo para o atendi-

99
mento na educação pré-escolar, indicando que reunião de 2001 em Cochabamba/Bolívia é
cada criança atendida chega a custar mais que o último documento desta série. Apresenta
o dobro da educação primária. Para minimizar a preocupação crescente com o não alcance
este problema, destaca que muitos países da re- das metas estabelecidas para a educação dos
gião têm investido em programas destinados a países da região e destaca, como espelho das
capacitar as famílias e a comunidade para ofe- decisões do Fórum Mundial de Dacar, ocor-
recer atenção integral ao menor, especialmen- rido em 2000, a necessidade de apressamen-
te aqueles com menos de quatro anos, pois os to do ritmo das mudanças educacionais para
programas não formais têm custos similares ou viabilizar o desenvolvimento humano a fim
inferiores aos da educação primária e, se bem de garantir a educação como direito funda-
implementados, apresentam bons resultados. mental de todos. Nestes termos, recomenda
Entre as agências de cooperação e financiado- que para a educação infantil se
ras destes projetos destacam-se o UNICEF e
o Banco Mundial. No que tange ao papel da Incremente o investimento social na edu-
educação pré-escolar, o documento indica que: cação, no cuidado e na proteção da primei-
ra infância, especialmente das populações
Esta educação facilita o trânsito da crian- mais vulneráveis [...] do mesmo modo se
ça desde o seio de sua família à escola, deve impulsionar a educação da primeira
posto que encontra um ambiente acolhe- infância em estreita articulação com as da
dor e um estabelecimento diferente do educação básica, sem perder de vista sua
seu lar e constitui uma base muito positi- identidade. (PPE,2001, recomendação 29)
va, especialmente tratando-se de lugares
em situação de pobreza para seu êxito Ainda aponta como importante a for-
escolar. Produz incrementos no rendi- mação dos pais e mães como primeiros edu-
mento acadêmico e na habilidade cogni- cadores, constituindo estratégia fundamental
tiva e diminui a probabilidade de que as nos programas de atendimento a primeira
crianças que a recebem repitam séries no infância, juntando esforços com as Organiza-
primário. (PPE,1993, p. 14) ções Sociais, governos locais e outros atores
sociais. Como meta de equidade no atendi-
Em Kingston/Jamaica aconteceu o mento da educação infantil se recomenda a
PROMEDLAC VI em 1996. Este encontro não universalização do acesso das crianças de três
trouxe modificações nos encaminhamentos em a seis anos à educação pré-escolar com pro-
relação aos dois documentos anteriores. Res- gressivo aumento da oferta de serviços educa-
salta que embora a cobertura no atendimen- cionais àquelas com menos de três anos.
to da educação básica tenha conquistado um Feitos os destaques sobre as recomen-
notável incremento no início da década, ain- dações para a educação infantil no contexto do
da existiam grupos importantes da população PROMEDLAC é importante destacar a relação
que viviam em zonas rurais e urbanas margina- que se estabelece com os aspectos econômicos
lizadas que não estavam incluídas no sistema de desenvolvimento dos países da região. Em-
educativo, com destaque, no que concerne à bora a educação infantil seja a modalidade de
educação infantil, às crianças de zero a quatro educação tratada com menor intensidade nos
anos. Com indicação clara de que relatórios de cada encontro, não se pode deixar
de considerar o papel reparativo e preventivo
A educação inicial tem que ampliar-se que a ela são imputados no conjunto das reco-
nas zonas urbano-marginais e rurais [...] e mendações presentes nos Projetos Principais
a expansão do nível pré-escolar constitui de Educação de 1984 a 2001.
estratégia significativa para compensar as
limitações e desvantagens iniciais e para A educação infantil nos
prevenir futuras dificuldades de aprendi-
documentos do PPE — a
zagem. (PPE,1996, p. 39)
perspectiva de mercado
A preocupação que persiste é a que se
refere ao problema de equidade na oferta de A recomendação das políticas públi-
educação para todos, em se tratando da pri- cas para a educação infantil nos documentos
meira infância, e no acesso as aprendizagens analisados traz duas funções primordiais que
básicas necessárias, em se tratando das demais são atribuídas à educação pré-escolar: a pri-
etapas da escolarização. meira de ordem preventiva e a segunda de
O PROMEDLAC VII, produzido na ordem reparativa.

100
Na ordem das questões que atribuem pré-escolares, potencializando o uso de espaços
à educação infantil uma função preventiva, são e barateando o custo da pré-escola.
encontrados argumentos que se apegam nos Outra solução para ampliação do
problemas detectados na educação básica (ou atendimento com baixo custo é o incentivo
primária) e, especialmente, no papel que a às iniciativas comunitárias e não formais de
educação pré-escolar pode desempenhar na atendimento às crianças, geralmente ofereci-
prevenção do fracasso escolar das crianças, das pelas igrejas ou associações comunitárias,
quando alunos, a partir dos sete anos. As ale- igualmente improvisados e desprovidos de
gações são de que as crianças que frequentam uma perspectiva de educação formal. Como
a pré-escola têm menor possibilidade de eva- alternativa a este atendimento — que embora
são e retenção na educação básica, além de precário ainda demanda algum tipo de finan-
terem aproximação com o ambiente escolar, ciamento público — se propõe que as famílias
facilitando a transição entre a pré-escola e a sejam educadas para atenderem eficientemen-
escola primária. Argumenta-se ainda que o te seus filhos, especialmente aqueles com me-
investimento em cuidados com a primeira nos de quatro anos, cujo atendimento formal
infância, especialmente em populações eco- em escolas é infinitamente mais caro, por
nômica e socialmente mais vulneráveis, pre- meio de programas articulados com os ser-
vine dificuldades de aprendizagens e facilita viços de saúde e assistência social e, se ne-
o trânsito das crianças do seio da família ao cessário, com apoio dos serviços públicos de
ambiente escolar, evitando-se problemas de educação. Todas estas alternativas improvi-
adaptação com a escola primária. sadas estão longe de considerar as crianças,
No que tange a função reparativa da especialmente aquelas muito pequenas, como
educação infantil são fortes os argumentos de sujeitos de um direito pleno à educação.
que o acesso das crianças à escolarização des- Diante deste cenário, construído a
de a primeira infância pode afastá-las, quan- partir das recomendações das reuniões que ge-
do adultas, da linha de pobreza, bem como raram os relatórios do PROMEDLAC para a
favorece a inserção de suas famílias, especial- educação infantil na América Latina e Caribe,
mente as mães, no mercado de trabalho. As pode-se apreender o conceito de que as crianças
recomendações se apoiam nas questões estru- são vistas, nesta perspectiva, como pequenos
turais do atendimento pré-escolar que vêm depositários de um capital que precisa ser in-
beneficiando os estratos sociais médios e al- vestido para dirimir problemas de desenvolvi-
tos da população da região, sendo necessário mento econômico e social dos países da região.
um investimento para que se garanta o acesso Não se pode negar que as funções aqui
também das crianças mais pobres. Tal acesso, classificadas como preventivas ou reparativas
articulado a programas de atendimento à saú- não tenham seu valor na vida das crianças e de
de, nutrição e educação familiar, afastariam suas famílias, especialmente quando se analisam
as crianças da situação de pobreza, garantin- os impactos do papel da educação pré-escolar
do os benefícios tanto de diminuição da mor- num período mais longo de escolaridade de
talidade infantil e da desnutrição, quanto da cada criança. O que se destaca como problema é
permanência em um ambiente institucional a concepção de criança presente nos documen-
de educação que pudesse garantir às crianças tos, como um ser humano que somente pode vir
aquilo que as famílias pobres não têm possibi- a ser alguém do ponto de vista do capital, sendo
lidade material e cultural de oferecer. analisada a partir dos custos e do retorno finan-
O atendimento a estes dois blocos de ceiro que pode gerar para a sociedade.
demanda para a educação infantil encontra
especial empecilho nas questões vinculadas à A educação da criança como
ausência de prioridade política quanto ao fi- pressuposto de garantia de
nanciamento e a escassez de recursos destina-
dos a esta modalidade de educação nos países valorização do capital humano
da região. Como alternativa a esta deficiência,
as propostas de solução são o que estamos aqui A educação da primeira infância é
classificando como improvisos ou atendimentos apontada como uma das principais formas de
educacionais de modelos alternativos. Devido ao afastamento das populações vulneráveis da
alto custo para construção e manutenção de linha da pobreza nos documentos pesquisa-
equipamentos próprios para a educação infan- dos. Nessa perspectiva, assume um papel fun-
til, recomenda-se o aproveitamento da infraes- damental na melhoria da condição social e
trutura de outros prédios e materiais destina- econômica dos sujeitos no futuro. O problema
dos à educação básica para atender as crianças que se estabelece aqui é que a criança é colo-

101
cada na lógica do investimento em educação de da educação infantil. No entanto, não se deve
como possibilidade de aumento do capital desconsiderar que no conjunto destes docu-
humano de uma sociedade. Nas palavras de mentos, em nenhuma recomendação, se discu-
Frigotto (1993, p. 67), ao criticar a teoria do te efetivamente as condições de produção e de
capital humano aplicada à educação, “o que manutenção da pobreza e, consequentemente,
interessa, do ponto de vista educativo não é o das mazelas da educação na América Latina. A
que seja do interesse dos que se educam, mas partir das considerações de Frigotto (1996, p.
do mercado” e, aos interesses do mercado, 55) é possível destacar que esta é apenas uma
nem sempre coincidem aqueles referentes à nova roupa para o conceito de capital humano,
educação das crianças em idade pré-escolar. pois “trata-se de uma metamorfose de concei-
A ideia presente nos documentos é tos sem, todavia, alterar-se fundamentalmente
referendada pelo Banco Mundial (2002) em as relações sociais que mascaram”. Ainda que
seu relatório sobre o desenvolvimento da com uma nova abordagem, o humano é visto
primeira infância no Brasil ao afirmar que simplesmente como uma ferramenta útil para
“os serviços de desenvolvimento da primei- a potencialização do capital.
ra infância pode ser uma forte arma contra
a pobreza ao construir o capital humano, Considerações finais
um dos melhores investimentos que um país
pode fazer em seu desenvolvimento”. Os documentos analisados nos apon-
Considerar que todos podem ter acesso tam para uma opção direta dos países da
a melhores condições de vida, saindo da linha América Latina e Caribe que a educação in-
de pobreza e aspirando ascensão social, bastan- fantil, como modalidade educacional, não
do apenas se esforçar para tal, especialmente tem uma especificidade própria, mas que
através do que a escola pode oferecer, é o que deve estar a serviço de outros interesses.
está por trás do discurso dos documentos anali- Questões de ordem preventiva ou repa-
sados. As afirmações do Banco Mundial (2002) rativa da educação infantil apontam para uma
apontam para esta direção ao segmentar a edu- ausência, nas duas décadas em que os docu-
cação dos demais determinantes da situação de mentos do PROMEDLAC foram produzidos,
desigualdade social presente nos países da re- de interesse nos países da região em construção
gião e imputando a ela a responsabilidade pela de políticas públicas comprometidas social-
diminuição da situação de pobreza. Segundo mente com a educação da primeira infância.
Rossi (1980, p. 25) esta perspectiva revela cer- A evidência de propostas governamentais que
to messianismo pedagógico, pois “há uma crença se basearam apenas no aumento na quantidade
generalizada no valor da educação em todos de crianças atendidas, objetivando exclusiva-
os graus, [sendo esta] um antídoto a quase to- mente a diminuição da distância de famílias
dos os problemas individuais e sociais”. A visão mais vulneráveis da linha da pobreza, oblite-
messiânica é uma das estratégias do capital para rou a importância social da Educação Infantil
fragmentar a análise crítica dos fatores funda- como primeira etapa da Educação Básica.
mentais na determinação da pobreza. Comple- Embora seja inegável o aumento da
mentarmente, Frigotto (1996, p. 32) afirma que oferta da educação infantil às crianças nos
a educação está “no plano dos direitos que não países da região a partir do último quartil do
podem ser mercantilizados e, quando isso ocor- século XX, provavelmente fiada nas possibili-
re, agride-se elementarmente a própria condi- dades de financiamento destes projetos pelos
ção humana”. Os países latino americanos, ao organismos internacionais, não se efetiva um
proporem suas políticas de educação para a interesse real em elaborar políticas educacio-
primeira infância na perspectiva econômica, nais responsáveis para a infância. O discurso
negam a educação das crianças como direito que predominou à época é o de que, diante da
humano, mas reafirmam o paradigma do ca- situação de crise econômica e dos altos custos
pital humano defendido nos documentos do da educação infantil, os improvisos e os mo-
PROMEDLAC e do Banco Mundial. delos alternativos não formais de educação
Apenas nos dois últimos documentos devem ser incentivados. Assim, do ponto de
do PROMEDLAC percebe-se um discurso vista do discurso a educação das crianças é im-
educacional moderadamente renovado acer- portante porque diminui a pobreza e o fracasso
ca do papel da educação, aparentemente mais escolar, mas na prática não há necessidade de
humanístico e menos econômico. No PRO- investimento formal dos países nesta modali-
MEDLAC VII, por exemplo, recomenda-se dade. Para as crianças pequenas, orçamentos
que a articulação da pré-escola com o ensino reduzidos e propostas educacionais alternati-
fundamental não pode perder de vista a identida- vas foram tidos como suficientes.

102
A reversão do quadro de que a educa- Referências
ção das crianças pequenas não pode ser rele-
gada às situações de precariedade à qual foi BANCO MUNDIAL. Brasil — Desenvolvi-
submetida nos últimos anos, seja do ponto mento da Primeira Infância: Foco sobre o
de vista do financiamento ou da elaboração impacto das pré-escolas. Departamento de De-
de uma proposta educacional séria, deve ser senvolvimento Humano. Tradução: abril 2002.
objeto de discussão de toda a sociedade, a
fim de que não esteja esta modalidade de FRIGOTTO, G. Educação como capital huma-
educação a serviço da ordem econômica de- no: uma teoria mantenedora do senso comum.
terminada pelos interesses dos organismos In. FRIGOTTO, G. A produtividade da escola
internacionais e da economia, mas acima de improdutiva. São Paulo: Cortez, 1993.
tudo de uma proposta de construção social
de uma educação infantil que considere o FRIGOTTO, G. Educação como campo social
homem — e a criança — para além de quanto de disputa hegemônica. In. FRIGOTTO, G.
valem diante dos interesses do capital. Educação e a crise do capitalismo real. São
Paulo: Cortez, 1996.

OREALC — Oficina Regional de Educación


de la Unesco para America Latina y El Caribe.
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y el Caribe — PROMEDLAC IV. Quito, 1991.

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la Unesco para America Latina y El Caribe. Pro-
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y el Caribe — PROMEDLAC V. Santiago, 1993.

OREALC — Oficina Regional de Educación


de la Unesco para America Latina y El Caribe.
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de la Unesco para America Latina y El Caribe.
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ROSSI, W. G. Capitalismo e Educação. 2. ed.


São Paulo: Ed. Moraes, 1980.

103
INFÂNCIA SUBMISSA:
A EDUCAÇÃO FEMININA NO
MARANHÃO PROVINCIAL

Raylina Maila Coelho Silva39 Resumo: O estudo em questão pro-


põe analisar uma instituição de recolhimento
Helloyse Brandão Marques 40
e educação de meninas no Maranhão, século
Rosyane de Moraes XIX, denominada Asilo de Santa Tereza, cria-
Martins Dutra41 da em 1855 para manutenção do padrão femi-
nino desejado pela sociedade patriarcal e escra-
vista: a mulher como dona do lar. Para a criação
do Asilo de Santa Tereza, Olympio Machado,
presidente da Província, alegava que o Reco-
lhimento de Anunciação e Remédios não cor-
respondia às necessidades dos provincianos,
pois não formava moças para os encargos da
vida civil, o que tornava a sua formação inde-
finida para aquelas que não desejasse uma vida
religiosa. O então Asilo poderia oferecer meios
para que as meninas se tornassem futuras mães
de família, garantindo seu lugar na sociedade.
Para isso, a educação doméstica, de primeiras
letras e a religiosa eram imprescindíveis. Parte-
-se da análise documental de leis e decretos de
fundação do Asilo de Santa Tereza e aprovação
do seu estatuto, de fontes bibliográficas, como
os registros de Marques (1870) e da imprensa
periódica, que subsidiava o trabalho proposto
pela instituição. As contribuições dos estudos
de Del Priore (2004), Abrantes (2003) e Perrot
(2007) sinalizaram para as reflexões sobre a his-
tória da educação das mulheres no Maranhão,
desde a criação dos primeiros recolhimentos
39
Graduada em Pedagogia Universidade Federal do Maranhão — UFMA.
40
Graduada em Pedagogia Universidade Federal do Maranhão — UFMA.
41
Doutoranda em Educação. Universidade Federal do Maranhão — UFMA.

104
femininos. Com os resultados dessa análise, o pensamento da época sobre os recolhimentos
pretende-se contribuir com os estudos sobre a femininos, propiciaram a compreensão do fun-
história da educação das crianças, especifica- cionamento e concepções da instituição acerca
mente, das meninas, e pelas discussões sobre das crianças. Pretende-se com essa investigação,
gênero e infância, voltando-se para o contro- feita no âmbito do Grupo de Estudos e Pesqui-
le governamental sobre a população feminina, sas Infância e Brincadeiras — GEPIB/UFMA,
que definia sua formação e sua atuação social. elucidar sobre as intenções políticas e religiosas
presentes na História do Maranhão, e que foram
Palavras-chave: Meninas. Educação. vitais para a criação de inúmeras instituições as-
Maranhão. Império. sistencialistas durante o Império.
No encontro com o Arquivo Público do
Estado do Maranhão (APEM), a pesquisa tenta
dar voz às histórias silenciadas das crianças, das
Introdução mulheres, das meninas, que em seus aprisiona-
mentos, foram esquecidas e tiveram seus nomes
As instituições de recolhimento de apagados. “Logo cedo se estabelece um vínculo
crianças pobres e desvalidas no Maranhão entre meninas e religião… Elas são educadas nos
apresentavam uma imagem clara das diferen- joelhos da Igreja (...) A piedade, para elas, não é
ças sociais presentes na educação maranhense somente um dever; é o seu habitus” (PERROT,
do século XIX, destacando uma dualidade: um 2007, p. 41). Alguns questionamentos delinea-
ensino voltado às massas populares, com uma ram as buscas pelas fontes históricas: como foi
educação elementar que sustentasse o emprego fundado o Asilo de Santa Tereza e qual a sua re-
e a manutenção do corpo dócil, e que objetivava lação com a religião católica? Como era a rotina
a formação de uma elite, contendo a classe su- de educação feminina nessa instituição?
balterna nos abrigos. A instrução dessas crian- O interesse pela escrita de uma histó-
ças era arrolada na questão do trabalho, de uma ria da infância maranhense favoreceu a análise
formação profissional. Por essa razão, o ensino dos documentos que possibilitam a investiga-
primário era obrigatório para crianças e jovens, ção de uma instituição para uma educação pe-
como garantia da transformação da sociedade culiar: recolher meninas pobres e desvalidas e
em busca de um progresso e de uma civilização, formá-las para a civilização.
além de ser usado como reprodução de hierar-
quia e ordem do Império. (ABRANTES, 2003)
As meninas, em específico, recebiam O Maranhão e o
maior atenção do governo provincial, que se aparecimento das instituições
respaldava na institucionalização dessa infân-
cia para a disciplinarização das mulheres, no educativas no século XIX:
controle do pudor. Sob uma rotina que envolvia recolher para salvar
rezas e oficinas de costura, as crianças mara-
nhenses ficavam tuteladas pelas irmãs, pelos O interesse do Brasil em instituciona-
padres e demais interessados em submeter a lizar a educação feminina acontece quando os
infância às concepções conservadoras, patriar- primeiros conventos começam a surgir, logo
cais e moralizadoras do corpo feminino. O Asi- na segunda metade do século XVII nos quais
lo de Santa Tereza, instituição de recolhimento as mulheres aprendiam: prendas domésticas,
de crianças desvalidas no século XIX, foi cria- leitura, escrita e música. Durante o século
do como espaço para que as meninas se tornas- XIX, a entrada de meninas no espaço escolar
sem futuras mães de família, estabelecendo um aconteceu em decorrência da maior dissemi-
lugar junto a dita sociedade maranhense, que nação do ideal civilizatório almejado pelo
pautava suas condutas nos moldes europeus. Brasil. Sendo que a educação feminina objeti-
O objetivo, portanto, deste artigo, é vava alcançar de forma diferenciada, aquelas
analisar a instituição do Asilo de Santa Tereza, de classe menos favorecida, mais abastadas,
como proposta política para a institucionali- das que pertenciam ao segmento mais pobre
zação das mulheres maranhenses no Império, da sociedade. Visava-se formar a elite dentro
e que possuía regulamentos que determinavam dos padrões culturais europeus e as criadas
práticas de educação e profissionalização das que dentro das residências da elite, não des-
meninas, para garantir-lhes o futuro. Para alcance virtuassem os bons costumes ali empregados.
do objetivo, a análise documental de regulamen-
tos da instituição, de leis e decretos da província A educação feminina no Brasil desde os
e textos da imprensa periódica que retratavam tempos coloniais objetivou a desempenhar

105
uma função conservadora de reproduzir a O braço escravo ergueu, reformou,
sociedade paternalista e legitimar a sub- restaurou as Igrejas de São Luís, espaços com
missão feminina, restringindo a mulher grande valor para sociedade e que se tornaram
ao espaço privado do lar e sua educação às locais para revoltas, motins, abrigos, refúgios e
prendas domésticas. A educação religiosa o pioneirismo no ensino. Contudo, até meados
procurava moldar o caráter das mulheres, de 1855, ainda era vetado o direito de educação
cultivando as virtudes cristãs, para serem ao escravo, mesmo sendo eles os alicerces nesse
boas esposas e mães. A mentalidade da processo. Em 1838, a Igreja de Nossa Senhora
época colonial sobre a educação feminina do Carmo abrigou o Liceu Maranhense e cedeu
de que à mulher bastava o aprendizado da uma sala para a primeira Biblioteca Pública da
costura e dos trabalhos domésticos, uma capital, após persistência do Barão de Pindaré;
vez que se aprendesse a ler e escrever teria o Convento da Mercês abrigou o seminário e
os meios para estabelecerem correspon- uma escola de primeiras letras; a Igreja de Nossa
dências amorosas, o que era visto como Senhora do Rosário dos Pretos, em 1821, cedeu
um grande perigo para a honra feminina. espaço para aulas de primeiras letras ofereci-
Essa mentalidade ficava expressa em pro- das pelo padre Veloso; em 1753 o Recolhimento
vérbios como este que dizia que “à mulher de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios
basta a ciência de arrumar bem um baú”. passa para as Irmãs Ursulinas, posteriormente
(ABRANTES, 2003, p. 152) passando a designar Colégio de Santa Teresa,
em 1871, um pensionato para meninas pobres o
As concepções herdadas do período qual as famílias custeavam; a Capela de Nossa
colonial estabeleciam um modelo único de Senhora do Recolhimento designada para as-
comportamentos para todas as mulheres le- sistir as alunas. Abranches (2002), afirma que
gitimando a ordem social que alicerçava a o ensino jesuítico, além de favorecer os pobres
hierarquia de gênero com fundamentos mo- livres, também era utilizado como base da edu-
rais específicos, como: recato, castidade, vir- cação das elites. Pontuando como ensino com
tude e honra como atributos próprios para a disciplinas rígidas e morais.
conduta do sexo feminino. Enfim, o Maranhão demonstrou o de-
A província do Maranhão no século sejo de proporcionar uma educação que alcan-
XIX, encontrava-se em um momento de ascensão çasse meninas pobres e desvalidas, bem como
econômica, pois era tida como uma das grandes meninas que fossem de famílias mais abasta-
exportadoras de algodão. Consequentemente a das com o objetivo do desempenho das “fun-
capital, São Luís, acompanhou esse avanço com ções” atribuídas ao sexo feminino, a saber, as
construções urbanísticas de pedra e cal, funda- de mães, esposas e filhas, e visando restringir
ções de fábricas, criações de espaços artísticos e as mulheres ao espaço privado do lar e sua edu-
públicos, gerando um aumento populacional e cação às prendas domésticas. “A educação fe-
despertando interesse de jovens portugueses para minina pautada no ideal de preparar a mulher
futuros comércios na cidade. Apesar desses avan- para o casamento e a maternidade” (ABRAN-
ços na capital, o poder público oferecia serviços TES, 2003, p. 2). O ensino público oferecido
escassos que não atendiam satisfatoriamente a primava a instrução de doutrinas religiosas e
população, principalmente a elite ludovicense. morais, conhecimento básico da leitura, escri-
Existiam constantes denúncias feitas pelos jor- ta, as quatro operações, ensinamentos domés-
nais da época, contudo insuficientes para possí- ticos, este com finalidade materna. Existia uma
veis soluções por parte do governo. desigualdade educacional marcante, tanto nos
Em meio a esses avanços urbanos, o conceitos de ensino, quanto na presença de
trabalho escravo aumentou consideravelmente, meninas matriculadas em instituições e até na
sendo possível verificar no crescimento de expor- quantidade de escolas. Como nos aponta o re-
tação de negros entre 1801 e 1820, chegando em latório do Presidente da Província, Dr. Antô-
solo maranhense mais de trinta e seis mil. Lacroix nio Alves de Sousa Carvalho (1867).
(2020, p. 106) descreve que, “ O escravo fazia o
papel do esgoto, do abastecimento d’água quen- Existiam na província 100 cadeiras primá-
te ou fria no quarto de banho, do ventilador […] rias do 1° grau, sendo 60 do sexo masculino
O negro, em relação direta com a arquitetura e e 40 do feminino. No 2° grau do ensino pri-
fazendo parte da paisagem”. Seu papel era deter- mário existiam somente cadeiras de meni-
minante tanto no aspecto de construção física da nos, sendo três na capital e cinco no inte-
Província, como pelas lutas, revoltas, manifesta- rior. As cadeiras do ensino primário foram
ções artísticas e religiosas; significando sua resis- frequentadas por 2.874 alunos, sendo 2.113
tência e mantendo suas heranças vivas. meninos e 661 meninas, as da capital tive-

106
ram uma frequência de 658 alunos, sendo as classes populares, oportunizando uma edu-
449 meninos e 209 meninas. A frequência cação profissionalizante para meninos e para
total nas escolas públicas nesse ano foi de meninas, tarefas do lar. Na metade do século
3.532 alunos. No ensino primário particu- XIX, São Luís contava com dois lugares para
lar foram registrados 16 cadeiras, sendo 11 educação de meninas desvalidas: era o Reco-
para meninos e 5 para meninas, com uma lhimento de Nossa Senhora da Anunciação e
frequência total de 953 alunos, 564 do sexo Remédios e o Asylo de Santa Tereza.
masculino e 399 do feminino. Na instru- Em 1855, foi fundado o Asilo de Santa
ção secundária particular eram 9 colégios, Teresa, situado na Rua dos Remédios e após
sendo 1 para o sexo masculino na vila de um ano realocadas em um prédio na Rua For-
S. Bento e 8 na capital, 4 para rapazes e 4 mosa, um espaço para meninas pobres e des-
para moças, com frequência total de 842 validas, com a finalidade de acolher e ensinar.
alunos. O ensino público secundário mi- Recebiam uma educação baseada na religião;
nistrado no Liceu foi frequentado por 156 este para conduzir ao exercício social do pa-
alunos. (ABRANCHES, 2003, p. 2) pel da mulher, moral, civil e doméstica. Essa
educação propiciada pela província segurava
Na metade do século XIX, houve a ações que mantinham essas crianças afastadas
abertura de novas escolas de ensino primário e de condutas nocivas, vislumbrando sempre
secundário feminino, ocorrendo mudanças na o favorecimento à sociedade e não deixando
visão da sociedade maranhense quanto a impor- de lado os ensinamentos da educação moral.
tância da instrução para as mulheres. Apesar “Mesmo com o processo de laicização do ensi-
dessas novas instituições, os ensinamentos ofe- no, o conteúdo voltado para a moralidade não
recidos ainda seguiam a mesma linha anterior- perde sua força, assim como também a moral
mente adotada, uma educação com viés fami- religiosa”. (TAVARES, 2009, p. 57)
liar. Essas escolas mantinham professoras nesse O asilo foi muito requisitado durante
processo de ensino, contudo, existia uma defasa- seu período de funcionamento, isso se dava por
gem quanto às aulas de conhecimentos gramati- motivos, como: a credibilidade do Asilo perante
cais, português e matemática. Inúmeras críticas a sociedade do Maranhão, o aumento das filhas
por parte de jornais, escritores, pessoas da nata ilegítimas, órfãs ou abandonadas na Roda dos
social defendiam uma maior formação escolar Expostos; devido ao crescente número de pes-
feminina, pois o que aprendiam era pouco esti- soas da zona rural para cidade durante a revolta
mado visando o papel que viria a desenvolver; da balaiada e meninas de vitimados da Guerra.
adjetivos relacionados ao papel da mulher são
descritos no decorrer do século, todos carre- O asilo de Santa Tereza e
gados com objetivos patriarcais, ou seja, mãe, a educação das meninas
esposa, dona do lar. Abranches (2003, p. 4) re-
lata que, “o ensino recebido pelas maranhenses, maranhenses
tanto pobres quanto ricas, era inadequado para
a missão que a sociedade lhe confiava”. As me- Em São Luís, capital e principal cen-
ninas pobres, ou não recebiam qualquer instru- tro urbano da Província do Maranhão, a con-
ção ou eram assistidas por algum recolhimento dição feminina não era diferente do restante
ou asilo, sendo oferecido um ensino precário do país, prevalecendo a mentalidade conser-
em decorrência da ignorância por parte das se- vadora que destinava às mulheres uma edu-
nhoras cuidadoras. Já as meninas ricas, não se cação meramente doméstica. A educação era
distinguiam das pobres em relação à educação, vista como um pré-requisito para o bem estar
exceto na incrementação de ofícios como a mú- nacional, uma vez que a partir dela surgiria
sica, dança, teatro e ao nível secundário. Porém, o desejado progresso econômico e social, de
com o mesmo objetivo de formação. grande relevância no discurso republicano
O Brasil carrega uma extensa tradição (CARVALHO, 1998). A mulher ganhou noto-
de internação de crianças em instituições asi- riedade em meio à sociedade, pois recaiu so-
lares. “Desde o período colonial, foram sendo bre ela a responsabilidade de manter a família,
criados no país colégios internos, seminários, operacionalizando uma boa educação aos seus
asilos, escolas de aprendizes artífices, educan- filhos (BESSE, 1999). Apesar de respaldados
dários, reformatórios, dentre outras moda- pelo ideal republicano, os objetivos da estru-
lidades institucionais surgidas ao sabor das tura educacional permaneceram praticamente
tendências educacionais e assistenciais de cada inalterados, ou seja, tinham a proposta de pre-
época”. RIZZINI (2004, p. 22). O Maranhão se- parar a mulher para o exercício da sua missão
guia essa linha institucional, buscando atender maior: a de ser mãe, esposa e dona de casa.

107
A partir da década de 1840 foram O ensino das educandas era dividido
fundadas em São Luís várias escolas femini- em quatro classes: a primeira tratava da doutrina
nas de caráter particular, destinadas a filhas cristã, dos deveres religiosos e morais, dos prin-
da elite. Para essas moças, além de prendas cípios da leitura e da escrita e a aritmética até
domésticas, eram ensinadas a ler e escrever, as frações e as noções da gramática nacional de
noções de aritmética, dançar, tocar piano e geografia, de história e de desenho. A segunda e
falar Francês. Mas, tal realização não se in- terceira tratavam da economia doméstica divi-
cluíam as filhas das camadas menos favore- didas entre os exercícios de agulha, que incluía
cidas do Maranhão, para as meninas pobres diferentes estilos e gêneros de bordados, lavar e
restavam as aulas públicas de primeiras letras engomar tecidos finos e confeitar bolos para ani-
ou ficavam à mercê da iniciativa da Igreja que versários e casamentos. A quarta e última consis-
apresentava um discurso que se casava muito tia na aprendizagem da música, principalmente o
bem com o caráter do Governo, bem como piano e o canto. (REGULAMENTO, 1856)
a ação educacional religiosa era uma forma Com relação à doutrina cristã, as práti-
de domesticação das consciências. Pois, toda cas religiosas deveriam ser a primeira e a última
essa preocupação com a educação feminina atividade diária e consistiam em rezar o terço
estava ligada a uma estratégia que Manoel dedicado ao Imperador e toda a sua família, ao
(1996, p. 49) denominou de “Teoria dos Ciclos Presidente da Província e ao criador do Asilo.
Concêntricos”: da mãe cristã para filhos cris- À noite, uma oração de agradecimento pelas
tãos; de filhos cristãos para famílias cristãs; tarefas realizadas, aos mestres e a todo o corpo
das famílias para a sociedade cristã. Com isso, funcional, sob a proteção da imagem do Senhor
esperava-se, em breve tempo, recristianizar Jesus Cristo importado do Rio de Janeiro para
toda a sociedade moderna. Do mesmo modo ornamentar a pequena capela da instituição.
vincula-se a noção de cidadão-católico, sem- O Asilo contava para o serviço diário
pre com vistas de a Igreja Católica recuperar e administrativo de um diretor e vice-diretor,
sua hegemonia na sociedade e a capacidade de três mestras, um almoxarife, um capelão, um
influenciar as elites dominantes. médico, três serventes e uma regente supe-
Para atender a demanda das camadas riora. Era regra que a direção fosse confiada a
menos favorecidas do Maranhão, foi criado o um homem, pois ele deveria inspirar a auto-
Asilo de Santa Tereza, através da portaria do ridade de pai e impor o respeito às regras da
presidente Eduardo Olympio Machado, de 16 casa. Suas atribuições estavam mais ligadas ao
de janeiro de 1855, com objetivo de amparar serviço administrativos e burocráticos, ficando
e educar as meninas desvalidas, e por fim se- a cargo da regente zelar pelo bom andamento
cundário, educá-las de maneira que possam ser da rotina dentro do Asilo. A instituição tinha
com vantagens a serviço domésticos (MARA- um esquema de disciplinamento dos gestos, dos
NHÃO, 1858). O Inspetor da Instrução Públi- trabalhos, dos conteúdos escolares e da lingua-
ca, Luiz Antonio e Silva, afirma que a instrução gem que funcionava com a finalidade de “es-
para o sexo feminino “[...] deve ser harmoniosa quadrinhar o tempo, o espaço e o movimento”
com o lugar, que lhes está reservado na vida do- (FOUCAULT, 2004, p. 118), estabelecendo re-
méstica, quer como esposas, quer como mães lações de “docilidade-utilidade” para o trabalho
de famílias ou donas de casa”. (RELATÓRIO doméstico, para as aulas de primeiras letras e,
DA INSPETORIA DA INSTRUÇÃO PÚBLI- principalmente, nas relações com os seus supe-
CA DO MARANHÃO, 1853) riores. Esses mecanismos de poder eram empre-
O Asilo atendia três tipos de educan- gados pelos diretores e pela superiora respon-
das: a) as numerárias, as mantidas pelos cofres sável pelos atos de vigilância e de punição das
provinciais, de acordo com o disposto no Re- contravenções, respaldados pelos regulamen-
gulamento e autorizadas pelo Presidente da tos, criados com a finalidade de controlar as
Província, geralmente as oriundas da Casa dos atividades e o ritmo do aparelho disciplinador.
Expostos ou aquelas que comprovasse o nível Para que o aparelho disciplinador fun-
de pobreza e orfandade; b) as pensionistas que cionasse, era necessário que a ocupação tempo-
pagavam (pais, tutores, benfeitores) pela sua ral das atividades das meninas fosse distribuí-
educação, manutenção e tratamento das en- da de modo a anular “tudo que possa perturbar
fermidades a quantia de doze mil réis mensais e distrair, trata-se de constituir um tempo in-
em prestações trimestrais; c) as supranumerá- tegralmente útil” (FOUCAULT, 2004, p. 118),
rias que eram mantidas pelo tesouro público mesmo para aquelas de menor idade. Regula-
esperando a vacância de um lugar com a saí- ção do tempo que começava nas primeiras ho-
da de uma numerária. (REGULAMENTO do ras da manhã e terminava à noite, como evi-
Asilo de Santa Teresa, 1855, p. 320) dencia a tabela que segue.

108
Tabela 1 | Distribuição das atividades das educandas

DISTRIBUIÇÃO DO TEMPO ATIVIDADES DESENVOLVIDAS

5:30 Asseio das meninas

6:00 Oração do matutina

7:00 Aulas de primeiras letras

8:00 Primeira refeição do dia

9:00 Atividades de estudo

11:00 Aulas de costura

12:30 Descanso

13:00 Almoço

14:30 Aulas de Costura

17:00 Merenda

18:00 Doutrina Cristã

20:00 Última refeição

21:00 Recolhimento para os dormitórios


Fonte: Regulamento do Asilo de Santa Teresa, 1856

A disciplina imposta garantia uma or- serem advertidas, repreendidas ou punidas por
ganização racional das ações vista à qualidade desrespeitarem as normas de comportamentos.
do tempo, dividi-lo para especificar cada ativi- A vigilância contribuiu para generalizar a dis-
dade com tempo de duração tornando-o total- ciplina, tendo em vista que sabiam que eram
mente útil. Percebe-se uma rigidez na rotina e objeto de observação tanto por parte dos fun-
o contato com o mundo exterior restrito, po- cionários como por parte das próprias colegas.
rém tal modelo era considerado o ideal para a Para assegurar o controle e garantir que
efetivação do projeto de moralização. a rotina diária fosse inculcada às meninas, eram
Em muitas situações as meninas se necessárias algumas medidas como: sanção nor-
viam obrigadas a deixarem para trás hábitos malizadora, estabelecida através da penalidade
familiares e absorverem outros, sob pena de disciplinar como podemos observar a seguir:

109
Tabela 2 | Métodos punitivos segundo escala gradual de faltas
cometidas pelas educandas do Asilo de Santa Teresa

ESCALA DE GRAVIDADE NATUREZA DAS PENAS (SÉRIE ESCALA GRADUAL DE PENAS


DAS FALTAS DE PROCESSOS SUTIS)

Faltas de menor Repreensão em particular Nível baixo


gravidade Repreensão severa em presença Censuras e repreendas

das outras educandas

Assento em lugar isolado das


outras educandas

Privação da merenda
nas horas deste

Posição de joelhos de cinco a


Faltas de maior Nível alto
quinze minutos
gravidade Isolamento e castigos físicos
Reclusa em aposento fechado

Fonte: Regulamento do Asilo Santa Teresa, 1856

O Asilo de Santa Teresa não esclarece Neste mister, pensava-se em formar


a tipologia das faltas cometidas pelas meni- uma sociedade com alicerce na família cristã.
nas, estas poderiam relacionar-se a gravidades A preocupação com a educação feminina era,
diferenciadas, ou a certo tipo de gravidade então, de grande importância, pois a mulher
que se repetia mais de uma vez. Tal inexistên- virtuosa e prendada era vista como esteio mo-
cia de um rol explícito de faltas cometidas, ral desta família. O Asilo de Santa Teresa teve,
que deveriam levar a punições, torna esclare- assim, um papel estratégico na política de go-
cedor como essas meninas ficavam totalmente verno. A concessão da administração desta ins-
expostas aos excessos dos adultos. tituição a uma ordem religiosa nos faz pensar
A educação oferecida às asiladas não era de que modo a Igreja Católica conseguiu ins-
diferente das garotas frequentadoras das escolas titucionalizar as meninas desvalidas na busca
particulares, tanto a educação das asiladas quanto por uma moral apreciada por toda a sociedade.
as das instituições particulares eram preparadas
para a arte do bem servir a uma sociedade que, no Considerações finais
século XIX, exigia o cumprimento das regras de
civilidade. Porém, o aprendizado das asiladas das A criação de instituições femininas ti-
prendas domésticas servia como reforço para ar- nha um objetivo determinado: formar mão de
ranjarem matrimônio ou sobreviverem com seu obra para atender as necessidades da província.
trabalho ao saírem do estabelecimento. No caso específico do Asilo de Santa Teresa,
No âmbito das relações entre o poder a sua finalidade era recolher meninas pobres e
político e a Igreja Católica, foram internaliza- desvalidas e oferecer-lhes uma educação para o
dos na brasileira, durante muito tempo, os pa- lar, de modo que, quando adultas, se tornassem
péis de mãe e de esposa, desempenhados num boas mães de família ou, em alguns casos, edu-
universo de submissão para muitos entendido cadoras dos filhos das famílias abastadas ma-
como necessário e benéfico. Frequentar as Es- ranhenses. A escola se preocupava em formar
colas Normais deve ser entendido como uma futuras ‘donas de casa’, mesmo quando muitas
das únicas fontes de instrução feminina, ade- delas se tornaram professoras primárias, pois
quada ao trabalho das moças com as crianças. eram oferecidas as instruções básicas e o co-

110
nhecimento dos dotes de uma boa esposa. To- BESSE, S. Modernizando a desigualdade: rees-
das as atividades eram seguidas com horários truturação da ideologia de gênero no Brasil
rigorosos e punições dolorosas, corresponden- (1914-1940). São Paulo: EDUSP, 1999.
do à quantidade e ao limite da infração cometi-
da pela educanda. Os relatórios da instituição CARVALHO, J. M. A formação das almas: o
são bem claros ao tratar dos deveres das edu- imaginário da república no Brasil. São Paulo:
candas, e os relatórios da Província nos fizeram Companhia das Letras, 1998.
enxergar a realidade da instituição.
Apesar de objetivos claros e finalida- CASTRO, C. A. (org.). Leis e Regulamentos
des educativas relevantes, mesmo se conside- da Instrução Pública no Maranhão Império
rarmos a permanência das diferenças de classes (1835-1889). São Luís: EDUFMA, 2009.
sociais, o Asilo sempre foi objeto de críticas dos
governos que não viam com bom grado os cus- DEL PRIORE, M. (org.). História das mulhe-
tos significativos dos cofres provinciais com a res no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
manutenção das internas (alimentação, vestuá-
rio e outras necessidades fundamentais para a FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de
sobrevivência das meninas e da instituição). Janeiro: Forense, 2004
Outro fato que contribuiu para o seu fim foi a
promessa de dotes às moças, após contraírem LACROIX, M. L. L. São Luís do Maranhão, Cor-
matrimônio, e as despesas com os enxovais. po e Alma. 2ª edição ampliada /São Luís: Edição
Portanto, durante o seu ciclo de vida, da autora, 2020. Vol I. Edição em recurso digital.
esse estabelecimento exerceu suas atividades
educacionais e contribuiu para o desenvol- MANOEL, I. A. Igreja e educação feminina
vimento da província do Maranhão, mesmo (1859-1919): uma face do conservadorismo. São
levando em consideração os problemas estru- Paulo: UNESP, 1996.
turais e organizacionais ocorridos ali. Tal situa-
ção não difere das demais instituições de re- MARANHÃO. Regulamento do Asylo de Santa
colhimento da infância pobre e dos órfãos no Teresa de 14 de janeiro de 1856. Collecção dos re-
Maranhão oitocentista (Casa dos Educandos gulamentos expedidos pelo governo da Província
Artífices, Escola Agrícola do Cutim e Escola do Maranhão. São Luís: Typ. Temperança, 1858.
de Aprendizes Marinheiros), que, com finali- MARANHÃO. Relatório da Inspetoria da
dades e natureza de formação divergente, há instrução pública. [Luis Antonio e Silva] para
similaridades nas formas de educação, no con- digníssimo presidente da província Senr. Dr.
trole e regulação do tempo e nas estratégias de Eduardo Olímpio Machado, 25. abril. 1853.
ordenar e regular os corpos e a alma.
O Asilo formou uma série de meni- MARANHÃO. Relatório com que o Excelen-
nas para diversas atividades, notadamente tíssimo Senhor Presidente da Província, Dr.
professoras que contribuíram para a abertu- Antonio Alves de Sousa Carvalho passou a ad-
ra de escolas em várias localidades da pro- ministração ao Senhor 1º Vice-Presidente, Dr.
víncia do Maranhão. Essa pesquisa também Manuel Jansen Ferreira, no dia 04.04.1867.
tem possibilitado trazer à tona a informa-
ção sobre a presença de mulheres negras em MARANHÃO. Estatuto do Recolhimento de
instituições escolares, pois, até certo tempo, N. S. da Anunciação e Remédios. Leis e Regu-
acreditava-se que a raça negra não havia fre- lamentos (1835-1840).
quentado instituições educacionais.
PERROT, M. Minha história das mulheres.
São Paulo: Contexto, 2007.
Referências
RIZZINI, I; RIZZINI, I. A institucionalização
ABRANTES, E. S. A Educação Feminina em de crianças no Brasil: percurso histórico e de-
São Luís no Século XIX. XXII Simpósio Na- safios do presente. Rio de Janeiro: Ed. PUC-
cional de História. João Pessoa: ANPUH 2003. -Rio; São Paulo: Loyola, 2004.

________________________. A Educação do “Bel- TAVARES, R. S. A infância no Maranhão


lo Sexo” em São Luís da Segunda Metade do imperial: a escolarização primária pública da
Século XIX. Dissertação (Mestrado em His- criança pobre e livre no período de 855-1889.
tória), Universidade Federal do Pernambuco, Dissertação (Mestrado em Educação), Univer-
Recife, 2002. sidade Federal do Maranhão, São Luís, 2009.

111
Simpósio Temático 2

Mídias e Culturas
infantojuvenis nos contextos
da América Latina

Fonte: Arquivo Memorial da Irmandade do Divino Espírito Santo — IDES

112
O SLAM INTERESCOLAR:
EXPERIÊNCIA VIVIDA E
REPRESENTAÇÕES DO PASSADO

Sonia de Deus Resumo: Os campeonatos de poesia


Rodrigues Bercito42 conhecidos como slams — “batida” em inglês
— são movimentos poéticos, culturais e sociais
que se fazem presentes no país há duas déca-
das. O Slam Interescolar SP, com sexta edição
em 2020, é realizado com a participação so-
bretudo de estudantes de escolas públicas da
capital paulista sendo uma potente expressão
cultural de jovens das periferias da cidade.
O objetivo deste trabalho é refletir acerca da
presença da história nos poemas criados pelos
estudantes participantes da última edição do
evento. Como ocorre em outras batalhas de
poetry slams há ali um expressivo conteúdo de
crítica política e social ao lado de depoimentos
pessoais que focalizam as questões que atra-
vessam a experiência de vida desses auto refe-
ridos “jovens das quebradas”. A partir de um
inventário dos temas tratados, observa-se uma
frequente referência ao racismo, a desigualda-
des econômicas e sociais, a questões de gênero,
violência e intolerância. São tópicos que dizem
respeito à inserção desses jovens na sociedade
e se referem a representações de suas subjetivi-
dades no campo da diversidade de gênero e ra-
cial. Essas questões identitárias assumem espe-
cial importância na medida em que se trata de
período singular da vida desses jovens. Pela via
da expressão literária e poética, nesses poemas
autorais afirmam sua identidade e promovem
o reconhecimento de sua existência. Afirmam
42
Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo — USP.

113
seus direitos e ultrapassam a invisibilidade so- coletivo Slam da Guilhermina, responsável
cial a que se sentem submetidos. Nesse movi- por um dos mais relevantes poetry slam’s da
mento, recorrem ao conhecimento histórico cidade de São Paulo, formado por Emerson
obtido a partir dos conteúdos escolares. Dessa Alcalde, Uilian Chapéu, Cristina Assunção
forma estabelecem uma conexão entre escola e Rodrigo Mota. Esse evento passou a contar
e seu contexto assumindo uma postura críti- a partir de 2019 com o apoio da Secretaria
ca. Mobilizando temas amplos como escravi- Municipal de Cultura de São Paulo por meio
dão, exploração colonial e ditadura, com seus de edital de fomento à cultura das periferias
desdobramentos e suas implicações, exploram que contemplou o projeto “Das ruas para as
as condições históricas que deram origem às escolas, das escolas para as ruas”.
questões que afligem sua existência. Recorrem A participação dos escolares nesse
à história em busca do direito à memória que evento abres diversos caminhos para análise
lhes foi negado em meio a lacunas, silêncios no âmbito dos trabalhos sobre juventude. O
e apagamentos dos vestígios do passado das foco aqui será dirigido, sobretudo, para dois
gerações que os antecederam. Nos poemas aspectos. De um lado, sublinhar o seu signifi-
analisados a história exerce uma função ope- cado como expressão cultural na construção
rativa como recurso para produzir significado das identidades juvenis. Por outro, mas arti-
à existência social desses jovens, às suas subje- culado ao anterior, verificar de que modo os
tividades, estabelecendo uma ponte com a sua conhecimentos escolares se articulam às re-
vida no presente. Mas, a produção de sentido presentações do passado que revelam.
não parece ser suficiente para a construção de O evento se destina a alunos do ensi-
um projeto de futuro contaminado por um no básico das séries finais do Ensino Funda-
presentismo desconcertante. mental e do Ensino Médio em faixa etária que
se situa, em condições ideais, dos 11 anos aos
Palavras-chave: Identidade. Cultura. 17 anos. Ao se situarem entre o 12 e 18 anos
Juventudes. são considerados adolescentes pelo Estatuto
da criança e do adolescente (ECA). Já pelo Es-
tatuto da Juventude de 2013 são considerados
Introdução jovens os sujeitos com idade compreendida
entre os 15 e os 29 anos. De acordo com esses
O objetivo deste trabalho é apresentar documentos, é no limiar entre a adolescência
reflexões acerca do VI Slam de Poesias Inte- e a juventude que se encontram os protago-
rescolar como expressão cultural de jovens de nistas das batalhas do Slam Interescolar.
escolas públicas das periferias de São Paulo. O Embora este seja aberto a todas as es-
evento foi realizado no ano de 2020, em plena colas, os jovens participantes do certame são
pandemia do Coronavírus, o que trouxe ele- basicamente de escolas públicas localizadas
mentos singulares a um evento habitualmen- em regiões periféricas com graus diferentes
te realizado em espaços abertos ao público. O de carência material ou de dificuldades de
objetivo deste trabalho é refletir acerca do sig- acesso a bens culturais. A isso se soma uma
nificado desse evento para os jovens que dele grande exposição à violência, seja indireta ou
participam, assim como discutir a presença diretamente. Os números de jovens mortos
do conhecimento histórico nos poemas cria- no país, em especial negros, são escandalosos
dos pelos estudantes. Como ocorre em outras em especial nas regiões periféricas dos gran-
batalhas de poetry slams há ali um expressivo des centros urbanos e isso tudo tem grande
conteúdo de crítica política e social. Os depoi- importância para compreender a abordagem
mentos pessoais que são ali apresentados foca- frequente de questões identitárias e de críti-
lizam as questões que atravessam a experiência ca social nos poemas do Slam Interescolar. A
de vida desses auto referidos “jovens das que- relação estreita entre essa expressão cultural e
bradas”. Analisaremos os certames finais desse artística com questões sociais é intensa.
evento realizados on-line e transmitidos pelo Como ressaltam os autores do estudo
YouTube e pelo Facebook. Cultura como vetor de proteção, se referindo
Os campeonatos de poesia conhe- a contextos não institucionais: “as expressões
cidos como slams — “batida” em inglês — culturais de crianças e adolescentes têm sido
surgiram em Chicago na década de 1980 e importantes instrumentos de vocalização de
chegaram ao Brasil vinte anos depois. Cons- suas demandas, de livre expressão de suas sub-
tituem-se como movimentos poéticos, cultu- jetividades e de afirmação das suas identida-
rais e sociais. O Slam Interescolar foi criado des, socioterritoriais, de idade, de gênero e ét-
como um desdobramento da experiência do nico-raciais”. (CARBAJAL et ali, p. 23)

114
As batalhas do Slam Interescolar re- Apesar de aberto a escolas de todo o es-
velam isso. Manifestando-se com voz própria, tado, a maioria das participantes localizam-se
amparados pela “palavra” que transforma, os em regiões periféricas da cidade de São Paulo.
jovens estudantes e adolescentes das periferias Das 130 escolas inscritas em 2020 apenas 5 eram
afirmam seus direitos e produzem sentido e re- de fora da cidade. O evento depende muito do
conhecimento para sua existência social. envolvimento dos professores que são os res-
ponsáveis pelas inscrições das escolas e dos alu-
“Das ruas para as escolas nos e pela realização local do evento. A rede
informal de relacionamentos faz com que haja
das escolas para as ruas” grande participação de escolas da Zona Leste,
base do próprio Slam da Guilhermina. Seguem
A ideia de criar um evento de Slam em número as regiões Sul e Central, com pouca
Poetry dedicado exclusivamente a estudan- presença da Zona Norte.
tes, de acordo com Emerson Alcalde, ocor- A finalização do VI Slam Interescolar
reu a ele quando foi participar como slam- foi dividida em duas partes: uma para os estu-
mer de uma final internacional em Paris. dantes das séries finais do Ensino Fundamen-
Ali teria sabido da existência de um certame tal e outra para o Ensino Médio. Os apresenta-
para escolares, trazendo a ideia para cá. Em dores do evento final, que também estiveram
2015 realizou-se o primeiro interescolar de na mesma posição nas seletivas, são também
São Paulo como contrapartida a edital ganho seus organizadores sendo que Emerson Alcalde
pelo Slam da Guilhermina. Em 2019 o grupo é poeta formado em Artes Cênicas, Cristina é
venceu um edital da prefeitura de São Paulo professora de História e Chapéu pantógrafo.
para realizar a sexta edição em 2021 o que A competição final se realizou em três
permitiu transferi-la para formato on-line etapas. Na primeira apresentaram-se todos que
em razão do fechamento das escolas com o vieram das seletivas; na segunda os que conse-
advento da pandemia do coronavírus. Desde guiram melhores notas apresentaram-se nova-
2017 o grupo passou a organizar também o mente e os três finalistas (no caso do Ensino
Slam Interescolar Nacional, antes sob o co- Médio houve empate e foram quatro meninas)
mando de grupo de Minas Gerais. apresentaram-se mais uma vez para serem defi-
Se o Slam Interescolar foi concebido nidos o vencedor e os outros dois lugares. Em to-
para acontecer em espaços escolares sob a su- das as etapas os poemas deveriam ser de autoria
pervisão de professores e coordenadores, isso própria e inéditos. Cada apresentação deveria
não significa que sua vocação fosse se restringir durar apenas três minutos, rigorosamente.
a esses espaços. O seu lema anunciado a cada Os prêmios foram para o primeiro lu-
início de “batalha”, nome das competições — gar um notebook e para os dois outros lugares
“Das ruas para as escolas das escolas para as um leitor de e-books para cada um. Troféus fo-
ruas” — deixa claro que o que se pretendia não ram destinados aos três vencedores e suas esco-
se limitava aos temas escolares visando criar las e todos os participantes foram agraciados
pontes entre as escolas e a realidade vivida pe- com livros representativos do mundo literário
los jovens além de seus muros. periférico, com temáticas de crítica social e re-
As finais dos eventos anteriores ha- lacionadas à diversidade racial e de gênero.
viam sido realizadas em espaços abertos ao
público em regiões centrais da cidade tais A presença do
como o como Centro Cultural Vergueiro, o
Teatro Flavio Império e a Galeria Olido. Em slam na educação
2020, a veiculação das “batalhas” que decidi-
ram os “slampeões” do certame por meio das A importância do slam como recurso
mídias sociais trouxe dificuldades técnicas e pedagógico foi reconhecida na Base Nacional
limitou o alcance performático das apresen- Comum Curricular (BNCC) documento nor-
tações, mas potencializou o alcance do evento mativo que passou a orientar a construção dos
permitindo maior participação de competi- currículos escolares do ensino básico em todo
dores e ampliando sua audiência. território brasileiro a partir de 2020. Nesse do-
O esquema de preparação também cumento, ressalta-se a importância de se favore-
trouxe mudanças. As oficinas oferecidas por cer o protagonismo do aluno e sua centralidade
dez poetas formadores a professores e alunos no processo de ensino e aprendizagem. O foco
para familiarizá-los com essa modalidade de está no desenvolvimento de habilidades que o
apresentação, assim como as seletivas, tiveram preparem para vida reconhecendo-se a multipli-
que ser realizados com uso de recursos on-line. cidade das suas experiências sociais e culturais

115
com necessidades e interesses singulares. A par- dente e se dirige a múltiplas facetas das condi-
ticipação em slams é incentivada no âmbito do ções adversas em que vivem esses jovens foca-
campo artístico-literário como diversificação da lizando diferentes aspectos da sua existência.
produção das culturas juvenis contemporâneas. Seus poemas permitem considerar que são
A experiência do Slam Interescolar leva adolescentes e jovens que experimentam graus
adiante os propósitos curriculares acima expos- diferentes de carência material e de oportu-
tos e os aprofunda. O slam inserido nas práticas nidades, atravessados por questões de identi-
pedagógicas das escolas como ferramenta peda- dade em sua fase de formação pessoal em que
gógica para aprendizagem no campo literário, condições de classe, gênero e raça têm relevo.
no exercício da escrita e na expressão oral e cor- Os temas de crítica social são recor-
poral, nesse certame vai além. Concorre para a rentes em praticamente todos os poemas. O
formação global dos jovens ao promover o exer- contexto de onde vêm os poetas é de regiões
cício do pensamento crítico e da cidadania con- periféricas e pobres fazendo com que se reco-
figurando-se como um território educativo. Os nheçam como “jovens das quebradas”.
jovens das periferias encontram nesses eventos O racismo ocupa papel de destaque e
um espaço democrático para veicular seus an- é denunciado na violência contra negros, em
seios e a oportunidade de discutir questões que especial jovens, e na desigualdade de tratamen-
atingem suas vidas cuja possibilidade de trans- to conferido a eles pela justiça e pela polícia.
formação é assim anunciada. O medo da morte é anunciado e as imagens
poéticas de luto e tristeza são intensas. Em
O que os poemas revelam alguns casos remete-se ao passado, seja para
estabelecer uma ligação com a ancestralidade
As batalhas de slam costumam se ca- numa afro-descendência ou para denunciar a
racterizar por sua performatividade. Isso foi exploração colonial dos corpos pela escravidão.
bastante prejudicado na edição de 2020 do As desigualdades sociais e de oportu-
Slam Interescolar ao ser realizado com media- nidades são citadas muitas vezes associadas ao
ção tecnológica em evento transmitido on-li- preconceito racial ou à origem de classe, em pa-
ne. Apesar do esforço dos slammasters que o ralelo aos privilégios dos brancos ricos. A escola
apresentaram, a falta do calor do público e o como solução é ora enaltecida, ora relativizada,
posicionamento fixo dos slammers em fren- e a meritocracia considerada uma falácia. A vio-
te às câmeras restringiram as possibilidades lência a que estão sujeitos os pobres e em espe-
expressivas. Entretanto, a força poética dos cial negros é sempre citada em meio a expres-
textos, a vivacidade dos jovens na apresenta- sões como “perder a infância” e alusões a armas.
ção e a dramaticidade dos temas tratados nos Em contraponto a essas denúncias
poemas mantiveram sua potência como depoi- há manifestações de necessidade de luta e
mento pessoal e de crítica social. resistência, sendo que o próprio slam é cita-
A partir de um inventário dos temas do como possibilidade. A pauta da defesa da
tratados, observa-se uma referência frequen- negritude recorre às matrizes africanas, mas
te ao racismo, a desigualdades econômicas e revela também referências do movimento
sociais, a questões de gênero, violência e in- norte-americano na citação de músicas e per-
tolerância. São tópicos que dizem respeito à sonagens a ele relacionados tais como Martin
inserção desses jovens na sociedade e se refe- Luther King. O assassinato de George Floyd,
rem a representações de suas subjetividades acontecimento àquela altura recente, é mais
no campo da diversidade de gênero e racial. do que uma vez citado assim como o lema de
Essas questões identitárias assumem especial que “vidas negras importam”.
importância na medida em que se trata de pe- As questões identitárias formam outro
ríodo singular da vida desses jovens. Pela via núcleo importante de assuntos tratados e nesse
da expressão literária e poética, nesses poemas ponto ressaltam-se as referências à intolerân-
autorais afirmam sua identidade e promovem cia aos LGBTs, em especial à homofobia, sem
o reconhecimento de sua existência. Afirmam alusão explícita a outros componentes desse
seus direitos e ultrapassam a invisibilidade so- grupo tais como os transsexuais. Aqui também
cial a que se sentem submetidos. as denúncias de violência se fazem presentes e
Cada um dos poemas apresentados frequentemente são mencionados sentimentos
mereceria uma análise independente tal a como medo e sofrimento. As críticas ao ma-
densidade dos significados que oferecem. Até chismo, a ameaças de estupro e uma alusão iso-
por serem finalistas de um processo seletivo, lada à sororidade fazem entrever um feminis-
alguns deles revelam tratamento poético de mo ainda pouco elaborado, baseado na ideia de
qualidade elevada. A crítica social é contun- sermos todos iguais e merecedores de respeito.

116
As críticas ao governo e questões polí- bancos escolares, estabelecem uma conexão
ticas formam outro conjunto de temas. Nessa entre escola e seu contexto, assumindo uma
linha encontramos alusões à existência de um postura crítica. Mobilizando temas amplos
golpe em 2013 com o impeachment de Dilma como escravidão, exploração colonial e dita-
Rousseff¸ às mentiras do presidente Jair Bolso- dura, com seus desdobramentos e suas impli-
naro, à ameaça de privatizações, inclusive do cações, exploram as condições históricas que
SUS (Sistema Único de Saúde), à má condu- deram origem às questões que afligem sua
ção do combate à pandemia do coronavirus, ao existência. Não se trata de memória, mas de
desmatamento da Amazônia, às milícias e ao história. Isso nos encaminha para questões
assassinato de Marielle Franco. Há declamação que envolvem esses dois conceitos.
de trechos do Hino Nacional de forma irônica A partir dos anos oitenta do século XX
apontando a hipocrisia que tem marcado seu as relações entre memória e história na produ-
uso pelos grupos direitistas no país. A perse- ção do passado figuram no rol das preocupa-
guição às religiões de matriz africana é men- ções dos historiadores. A produção do passado
cionada como expressão de racismo e intole- executada pela historiografia até há não muito
rância e a monetarização de algumas igrejas tempo excluía da memória social a experiência
evangélicas é citada. Também a mídia, tratada das camadas mais desfavorecidas da popula-
genericamente, é criticada embora a liberdade ção, sobretudo as originárias da escravidão.
de expressão seja valorizada. Ainda que haja um descompasso entre a
Como esse inventário revela, as prin- produção acadêmica e a história ensinada nas es-
cipais questões enfrentadas pela sociedade colas, esta tem se renovado nas últimas décadas
brasileira estão presentes nos poemas desses sob o impacto daquela. Isso pode ser observado
jovens. Com palavras fortes e versos cortantes, nas referências feitas nos poemas a temas como
em suas apresentações vibrantes e energéticas, ditadura militar e escravidão. Com efeito, esses
sentimentos de desalento, medo, dor, tristeza, jovens poetas recorrem à história em busca do
angústia e indignação estão presentes. Pode-se direito à memória que lhes foi negado em meio
pensar em certo efeito catártico decorrente a lacunas, silêncios e apagamentos dos vestígios
na própria revolta que se expressa, um trans- do passado das gerações que os antecederam.
bordamento. Por meio de recursos literários e Nos poemas analisados a história exerce
poéticos, o Slam Interescolar traz, sobretudo, uma função operativa como recurso para pro-
depoimentos pessoais. Nos poemas, os jovens duzir significado à existência social desses jo-
expressam representações de si (GOFFMAN, vens, às suas subjetividades, estabelecendo uma
1985) e o seu caráter performativo é, por si só, ponte com a sua vida no presente. Mas, nesses
ação e possibilidade de criar outras realidades poemas o devir está ausente e em seu lugar há
que as decorrentes da condição de subalter- um certo tom de desesperança. A produção de
nidade. Entre performance e performativida- sentido que operam não parece ser suficiente
de (OPAZO, 2018), esses jovens, por meio do para a construção de um projeto de futuro. Per-
slam, afirmam sua existência, produzem novas cebe-se um presentismo desconcertante o que
realidades e projetam a superação dos entra- nos dá a sensação de girar em círculos.
ves sociais que vivem. Ser um slammer passa François Hartog colocou em questão a
a conferir um propósito para alguns, vindo a existência de regimes de historicidade através
constituir uma carreira. Mas, no conjunto dos do tempo como formas específicas de articu-
poemas, percebe-se pouco otimismo. O amar- lação entre passado, presente e futuro, da An-
gor revelado não é acompanhado de um proje- tiguidade aos nossos dias. Levantou a questão
to de futuro, e isso é desconcertante. se estaríamos vivendo no momento atual uma
nova experiência do tempo e a emergência de
Presente, passado e futuro: um regime de historicidade marcado pelo pre-
sentismo. A sociedade ocidental que durante
as articulações percebidas dois séculos havia se orientado para o futuro, na
esteira de um progresso contínuo, agora estaria
As referências ao passado e à ancestrali- vivendo em um presente onipresente marcado
dade nos poemas vêm dos conhecimentos histó- pelo imediato. Ressalta ainda que haveria dife-
ricos escolares. Figuram sobretudo nos conteúdos rentes formas de se viver esse “presente presen-
relativos à escravidão, colonização portuguesa e tista” conforme o lugar social ocupado. Este po-
ditadura militar, temas que são sempre relaciona- deria ser tanto um horizonte aberto — marcado
dos à situação vivida no presente. pelos fluxos, aceleração e mobilidade — quanto
Cumore notar que, ao recorrerem ao por um presente em desaceleração, sem passado
conhecimento histórico obtido a partir dos e sem futuro, em especial para grupos precari-

117
zados. E mais, o futuro seria vislumbrado como Referências
ameaça — pleno de catástrofes, causadas por nós
mesmos em se tratando de meio ambiente — e VI Slam Interescolar — Final Ensino Funda-
não mais como uma promessa. O desemprego mental. https://www.youtube.com/watch?v=z-
aparece aqui como um fator também a compro- ZxGXxZ8gkk&t=1312s
meter uma visão de futuro.
Identifica uma ampla dificuldade co- VI Slam Interescolar — Final Ensino Médio.
letiva para “enxergar além” e escapar do presen- https://www.youtube.com/watch?v=zZxGXx-
tismo, ali definido como um “presente único: o Z8gkk&t=1312s
da tirania do instante e da estagnação de um
presente perpétuo”. (HARTOG, 2014, p. 11-15) BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacio-
Essas ideias nos ajudam a compreen- nal Comum Curricular. Brasília, 2018.
der a “desesperança” que se manifesta nos
poemas que analisamos. Nestes poemas, não KANAS, G. O.; PAIVA, M. C.S. Cultura como
há futuro vislumbrado. Apenas uma sensação vetor de proteção. São Paulo: EDUC, 2019.
de revolta quanto ao presente, apresentado
como resultante do passado. Passado e pre- GOFFMAN, E. A representação do eu na vida
sente se articulam, há um movimento de um cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.
para o outro. Mas não se vai além. Como se
não se pudesse dar o passo seguinte, e o andar HARTOG, F. Regimes de historicidade: pre-
patinasse sempre no mesmo lugar. sentismo e experiências do tempo. Belo Hori-
zonte: Autêntica Editora, 2014.
Considerações finais
OPAZO, Ú. P. S. C.¿Acción, puesta en escena,
O Slam Interescolar, ao construir uma evento o construcción audiovisual? Una breve
ponte entre as escolas e seu entorno, se insere introducción al concepto de performance en
em um contexto econômico, político e social humanidades y en música. Cuadernos de Mu-
mais amplo. Conjuga objetivos educacionais sica, Artes Visuales y Artes Escenicas, 13(1),
escolares com a crítica social e a construção 207–231. (2018). https://doi.org/10.11144/jave-
da cidadania. O evento se constitui como ter- riana.mavae13-1.apee
ritório educativo e se insere no conjunto das
manifestações culturais das regiões periféricas PEREIRA, S. L.; CAPOMACCIO, G. Trajetos,
da cidade de São Paulo. Nas poesias autorais temporalidades, relatos de vida: propostas para
que criam, os jovens estudantes expressam seus um debate sobre narrativas juvenis. Anais do
modos de existir e reivindicam direitos e es- XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da
paços culturais próprios utilizando seu corpo Comunicação, Foz do Iguaçu, 2014.
e sua voz, ultrapassando sua invisibilidade so-
cial. Afirmam sua identidade no campo da di- ROCHA, R. M. e PEREIRA, S. L. “O que con-
versidade de gênero e racial. Em sua poética se somem os que não consomem? Ativistas, alter-
inserem o vocabulário da juventude das perife- nativos, engajados”. Intercom — RBCC. São
rias e os temas que atravessam sua existência. Paulo, v.41, n.2, p.107-120, maio/ago, 2018.
O passado adquire sentido para esses jovens
poetas a partir dos conhecimentos escolares ______________. Politizando a episteme comuni-
que estabelecem os vínculos entre passado e cacional: práticas ativistas e narrativas autobio-
presente, mas, infelizmente, não parece servir gráficas nas metodologias de estudo das culturas
como alavanca para o futuro. juvenis”. São Paulo. COMUNICON, 2018.

118
Simpósio Temático 3

Infâncias e juventudes
em regimes autoritários na
América Latina

Fonte: Arquivo Memorial da Irmandade do Divino Espírito Santo — IDES

119
OS GINÁSIOS NO
AUTORITARISMO BRASILEIRO:
“DESENVOLVIMENTO”, CONTROLE E
PROFISSIONALIZAÇÃO (1969-1971)

Adriano Ricardo Resumo: Este trabalho apresenta uma


Ferreira da Silva43 etapa da pesquisa que analisa a história dos
Ginásios Orientados para o Trabalho (GOT’s)
Humberto da Silva Miranda44 em Pernambuco (estado situado no Nordeste
brasileiro), entre os anos de 1969 e 1971. Os
GOT’s foram criados com o objetivo de subs-
tituir os chamados Ginásios acadêmicos, e ti-
nham como intuito a sondagem de aptidões e
a orientação para o mundo do trabalho. Nes-
te texto, procuramos discutir sobre o papel
exercido pelos GOT’s no processo de moder-
nização do Ensino Secundário brasileiro, em
um cenário em que a Educação foi duramente
golpeada pelo projeto de “desenvolvimento”
autoritário liderado pelo presidente Emílio
Garrastazu Médici (1969-1974). Nesse cenário,
o ideário do civismo foi difundido nas escolas
brasileira, reproduzindo um discurso de que os
interesses da nação estavam acima das próprias
liberdades individuais. A análise dos documen-
tos do período evidencia como governo Médici
procurou se apropriar da Educação, priorizan-
do investimentos na formação de mão de obra
e no ideário do civismo. Os resultados prelimi-
nares da pesquisa indicam que o regime procu-
rou exercer uma relação de hegemonia baseada
nas noções de “direção” e “controle”, tendo a
Educação como lugar estratégico de exercício
de poder. O projeto de modernização dos Gi-
násios, baseado no discurso do desenvolvimen-
43
Mestrando em História na Universidade Federal Rural de Pernambuco — UFRPE.
44
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco — UFPE.

120
to e na virtude do trabalho, fracassou em sua em que agradava aos setores produtivos que
proposta profissionalizante e sofisticou o dua- cobravam ao governo as políticas de formação
lismo entre o ensino acadêmico e o técnico, re- de mão de obra, que possibilitasse uma maior
velando as inúmeras distorções de um projeto reprodução das forças de trabalho.
autoritário e desigual. Por outro lado, ao subtrair os conteú-
Palavras-chave: Ginásios. Desenvolvi- dos gerais nos Ginásios, em detrimento do en-
mento. Controle. sino técnico, o então Ministério da Educação e
Cultura (MEC) desqualificou a formação esco-
Introdução lar crítica e questionadora no interior das esco-
las de Educação Média brasileiras. A noção de
Este texto tem como finalidade apre- cidadania passou a ser baseada no ideário do
sentar uma etapa do trabalho de dissertação civismo, no qual não se considerava os interes-
que será apresentado ao Programa de Pós-gra- ses políticos conflitantes e muito menos a or-
duação em História da Universidade Fede- ganização coletiva que fosse na contramão de
ral Rural de Pernambuco (UFRPE), no qual qualquer projeto do governo (MAIA, 2013). O
analisamos a história dos Ginásios Orienta- cidadão ideal era, portanto, aquele mais com-
dos para o Trabalho (GOT’s) em Pernambuco prometido com os valores “nacionais”, com o
(estado situado no Nordeste brasileiro), entre desenvolvimento da nação e menos preocupa-
os anos de 1969 e 1971. Neste momento da do com sua própria liberdade individual.
pesquisa, discutimos sobre qual o papel des-
ses Ginásios no projeto de desenvolvimento O Brasil nos tempos de
empreendido pelo governo da ditadura civil- Médici: entre o “milagre”,
-militar45 brasileira iniciada em 1964, especial-
mente no período do general-presidente Emí- o autoritarismo e o
lio Garrastazu Médici (1969-1974). discurso do civismo
Esses novos Ginásios emergem no
Brasil em um cenário de grande tensão polí-
tica, em virtude das medidas autoritárias que Na passagem da década de 1960 para
começaram a ser gestadas durante o governo a de 1970, o Brasil vivia um momento de for-
Costa e Silva (1967-1969) e que se intensifi- tes tensões e de profundas ambiguidades em
cam no governo Médici. Porém, era também termos políticos, sociais e econômicos. Com
o início do período do chamado “milagre a doença do então presidente Costa e Sil-
brasileiro”, que ajudou a conferir uma certa va,46 em 1969, o nome de Médici, até então
aparência de normalidade em meio à crise um mero desconhecido no meio civil, emerge
política e social em que mergulhava o país. O por indicação de oficiais das Forças Armadas
discurso em torno do desenvolvimento, que para ser o novo presidente da República. Em
acompanhou os agentes do regime no perío- uma eleição de “faz de conta”, que o historia-
do, foi um dos principais motores da cha- dor Daniel Aarão Reis Filho chamou de “novo
mada “modernização” do Ensino Secundário, golpe”, “Médici estava eleito antes de ser vota-
que motivou a criação dos GOT’s. do”. (REIS FILHO, 2014. p. 83)
Esses equipamentos tinham como fina- Entretanto, a tentativa frustrada de
lidade substituir a perspectiva propedêutica ou conferir um ar democrático à eleição de Mé-
acadêmica pela perspectiva profissionalizante dici, parece não ter sido um grande problema
e, partir da sondagem de aptidões, promover para o regime. Segundo a historiadora Janaina
a orientação de crianças e adolescentes para o Martins Cordeiro, “Médici foi visto por seus
mundo do trabalho (CUNHA, 1989). A pro- pares como alguém capaz de contornar a situa-
posta dos GOT’s atendia aos interesses desen- ção de crise que a ditadura vivia desde 1968”
volvimentistas do regime, ao mesmo tempo (CORDEIRO, 2014, p. 208). Se os idealizado-

45
A complexa relação entre civis e militares nos anos que se seguem ao golpe de 1964 ainda suscita bons debates no
campo da historiografia brasileira. A historiadora Tatyana Maia chama a atenção para a participação civil no golpe, na
montagem e na consolidação do Estado ditatorial brasileiro entre 1964 e 1985. Embora esse debate esteja longe de ser
dado por acabado, neste estudo adotaremos o temo “ditadura civil-militar”.
46
Costa e Silva foi acometido por graves problemas circulatórios que teriam sido identificados entre julho e agosto de
1969, acarretando em seu afastamento, em 14 de outubro. O agravamento dos problemas de saúde o levou a morte, em
17 de dezembro de 1969. Ver: LEMOS, Renato. Verbete biográfico: Artur da Costa e Silva. Centro de Pesquisa e Documen-
tação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC)/FGV. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/
verbete-biografico/artur-da-costa-e-silva. Acesso em 20 jun. 2021.

121
res do plano não conseguiram criar a fachada locava como postulante a grande potência
perfeita, ao menos poderiam dizer que “os fins mundial, não admitia o contraditório e esta-
justificaram os meios”. Embora o processo te- va disposto a golpear seu próprio povo, caso
nha sido visto sob desconfiança, Médici, que fosse necessário. Como escreveu Daniel Aa-
tinha a simpatia das grandes lideranças da ca- rão, “para os que ainda discordavam, restava a
serna, não demorou para encontrar, também, porta de saída, segundo o plágio de conhecida
quem o aprovasse no meio civil. campanha estadunidense: Brasil, ame-o ou dei-
Costa e Silva havia preparado o am- xe-o”. (REIS FILHO, 2014, p. 81)
biente institucional perfeito para que Médi- Por outro lado, o governo Médici tam-
ci pudesse governar entre o arbítrio e a pre- bém procurou atuar no sentido de criar bases
tensão de legitimidade. Com o advento do de apoio no âmbito civil, sem as quais, prova-
AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968, velmente, teria sucumbido, mesmo nos tempos
o regime atacou duramente as ondas de ma- de exceção. A ditadura assumia, portanto, um
nifestações contra a ditadura. Como explica projeto de hegemonia baseado na “direção” e
Daniel Aarão Reis Filho: no “controle”, uma vez que, nunca abriu mão
totalmente da pretensão de legitimidade. Es-
Costa e Silva relançou a dinâmica do ar- tratégia que contava com a boa vontade dos
bítrio [...] fechando o parlamento por grupos de poder que ziguezagueavam entre
tempo indeterminado, recobrando amplo “legitimidade” e “oposição” ao regime, os que
poderes discricionários e reinstaurando, ocupavam a “zona cinzenta”47.
de modo inaudito, o estado de exceção, a Paradoxalmente, como coloca Janaína
ditadura. Um golpe dentro do golpe. A di- Cordeiro, mesmo nos tempos de exceção e de
tadura sem disfarces, escancarada. (REIS maior terror da ditadura, Médici conseguiu
FILHO, 2014, p. 73) aumentar sua popularidade (CORDEIRO,
2008). A aparência de normalidade gerada
Estava instalado o chamado “anos de pelo suposto “milagre” e a habilidade em ar-
chumbo”. Era o momento de maior repressão ticular as mais diversas estratégias discursivas
desde o golpe de 1964. A ditadura assumia um para a propagação de uma boa imagem do
status de autoritarismo sem precedentes até governo, conferiram ao regime certo grau de
então. Nas palavras de Maria Araújo, Desirree consenso. Médici tinha a incrível habilidade
Santos e Izabel Silva: de capitalizar qualquer evento em favor da
imagem do governo e tinha o apoio de signifi-
A ditadura havia silenciado o movimento cativa parcela da imprensa.
sindical, os partidos e movimentos de opo- No entanto, havia problemas sociais
sição, estudantes, intelectuais e artistas. tão evidentes que, em determinado momen-
Com o campo de ação reduzido e vigiado, to, nem o próprio Médici conseguia escon-
uma parte da esquerda buscou referência der totalmente do seu discurso. Isso fica bas-
nos movimentos de guerrilha dos anos tante evidenciado em uma fala proferida em
1950 e 1960 (como as lutas anticoloniais, a 1970, na qual, seja por um descuido momen-
guerrilha vietnamita e a Revolução Cuba- tâneo, seja por uma sinceridade inesperada,
na) e optou pela luta armada para enfren- o então presidente reconhecia que o cresci-
tar o regime. (ARAUJO, 2013, p. 20) mento numérico da economia não se refle-
tia em solução para os problemas sociais dos
Silenciados, sem possibilidades de brasileiros. Nas palavras do próprio Médici:
trânsito nos meios políticos oficiais, parte dos
grupos de oposição ingressaram na luta arma- [...] apesar desse esforço revolucionário
da e, como vimos na fala das autoras, foram de seis anos, quando nos voltamos para à
duramente reprimidos. “[...] Em poucos anos realidade das condições de vida da gran-
as organizações foram destruídas pela repres- de maioria do povo brasileiro, chegamos
são, deixando um saldo de inúmeros mortos, à pungente conclusão de que a economia
desaparecidos, presos, exilados e banidos” pode ir bem, mas a maioria do povo ainda
(ARAUJO, 2013, p. 20). O Brasil, que se co- vai mal. (BRASIL, 1973, p. 70)

47
Expressão utilizada pelas historiadoras Denise Rollemberg e Samantha Quadrat Vaz na coleção A construção Social
dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX, Brasil e América Latina, publicada em
2010, fazendo referência a Pierre Laborie. Ver: MAIA, Tatyana Amaral. Civismo e cidadania num regime de exceção:
as políticas de formação do cidadão na ditadura civil-militar (1964-1985). Revista Tempo e Argumento, Florianópolis,
v. 5, n.10, jul./dez. 2013. p. 182-206.

122
De qualquer maneira, o discurso em Não é difícil imaginar o porquê de o
torno do desenvolvimento seguiu sendo uma Estado autoritário ter investido tantos esfor-
das “tábuas de salvação” do regime. Este era um ços para propagar esse discurso no interior das
fim, mas também um discurso atraente e, por escolas brasileiras, principalmente nas insti-
isso, usado como meio, uma estratégia de legi- tuições de Grau Médio. Tatyana Maia resume
timação de um projeto de poder que se perce- bem essa preocupação por parte do regime:
beria bastante controverso. “Enquanto elemen-
to importante de busca de legitimidade pelo Sendo superior e absoluto, o civismo era
regime, o crescimento econômico era constan- incontestável. A relação dos cidadãos
temente divulgado como algo que se projetava com o Estado encontrava nos valores cí-
para a hipotética forma de democracia social” vicos seu mediador. Mas a personagem
(REZENDE, 2013, p. 115). Era um projeto de po- principal na defesa dos valores nacio-
der “de alguns”, “para alguns”, mas apresentado nais era o cidadão. Ele era considerado
apoteoticamente como sendo “para todos”. o principal agente da propagação dos
O fato é que, ao mesmo tempo em que valores cívicos. Assim, o investimento
conseguiu manter certa base de popularidade, o em políticas que lhe ensinassem os seus
governo federal criava programas, aprovava re- deveres diante da nação, promovendo a
formas e instrumentalizava o arbítrio, sem que “consciência cívica nacional”, era tarefa
grande parte da população brasileira dessa con- urgente da área educacional. (MAIA,
ta de que, nas palavras de Daniel Aarão, “nesse 2013, p. 203-204)
jardim de rosas, nem tudo era flores, como diz a
canção, havia espinhos também” (REIS FILHO,
2014, p. 82). A legitimação do regime naquele No que se refere à Educação, o pre-
momento passava substancialmente pela apa- sidente Médici, não propôs, necessariamente,
rência de normalidade que se procurava eviden- uma revolução em relação aos seus anteces-
ciar pelas mais diversas estratégias discursivas. sores. Porém, é inegável que o investimento
Uma dessas estratégias foi justamente de energia nos valores ligados ao trabalho, ao
a propaganda em torno do ideário do civismo, desenvolvimento e ao civismo, tornou-se, em
difundido tanto no meio escolar, a partir de seu governo, uma ordem do dia. Como coloca
disciplinas específicas (“Educação Moral e Cí- Michel Foucault sobre os projetos de poder
vica”, na Educação Média e “Estudos de Proble- que se materializam na Educação, era preciso
mas Brasileiros”, no Ensino Superior), quanto aumentar as forças daquelas crianças, adoles-
na sociedade como um todo, através dos dis- centes e jovens em termos de utilidade pro-
cursos dos agentes da caserna, que encontra- dutiva e diminuí-las em termos políticos de
va respaldo, também, em alguns segmentos do obediência. (FOUCAULT, p. 164-165)
meio civil. Este ideário, como dissemos, pre-
tendia difundir uma noção de cidadania que O lugar dos ginásios no
colocava os interesses da nação acima de qual- discurso do “desenvolvimento”:
quer aspiração individual, inclusive em termos
de liberdade ou dos próprios direitos civis. a orientação para o trabalho e a
Com isso, qualquer interesse divergente em sofisticação do dualismo
relação ao regime, era considerado subversão.
Ora, não era uma atribuição do cidadão A ideia de um Ginásio orientado para
de consciência cívica questionar o Estado, ainda o trabalho não era uma invenção nova no iní-
que se observasse que as políticas públicas em- cio da década de 1970 e encontrava respaldo na
preendidas não trouxessem qualquer benefício própria LDB de 1961. Em suas primeiras expe-
para a maioria da população. Afinal de contas, riências, ainda na década de 1960, esses Giná-
era preciso acreditar no planejamento que levaria sios tinham como finalidade oferecer alguma
a pátria ao futuro e, portanto, não havia espaço alternativa ao problema da limitação do aces-
para subjetivismos. Era o tempo do pragmatismo so que a lógica secundária implicava naquele
concreto. Isso fica evidenciado na fala de Médi- momento. Entretanto, é com a política de de-
ci, em seu discurso de posse, em 30 de outubro senvolvimento nacional que os GOT’s vão se
de 1969, em que evoca todo o seu ufanismo oti- espalhar pelo território brasileiro de forma
mista. “Homem da caserna, creio nas virtudes da contundente, tanto na forma de equipamento
disciplina, da ordem, da unidade de comando. E novos, quanto a partir da assimilação de anti-
creio nas messes do planejamento sistematizado, gos Ginásios tradicionais acadêmicos.
na convergência de ações, no estabelecimento Criados com financiamento de capi-
das prioridades”. (BRASIL, 1969, p, 14) tal norte-americano, os GOT’s integravam o

123
“Programa de Expansão e Melhoria do Ensi- Não é por acaso que em seus discursos,
no Médio”. Segundo o documento do MEC e Médici reforçava a intenção em relação ao em-
da Equipe de Planejamento do Ensino Médio preendimento dos GOT’s em todo Brasil. Sem
(EPEM), em publicação chamada de Subsí- disfarçar a nomenclatura, como fizera duran-
dios para o Estudo do Ginásio Polivalente, te anos os tecnocratas do MEC, ao preferirem
de maio de 1969: o “orientar para o trabalho”, Médici preferia
mesmo usar o termo “voltado para o trabalho”,
De acordo com esse programa, deverão deixando claro a sua real finalidade.
ser construídos em todo o país cerca
de 300 ginásios, aos quais se procurará Dentro em breve estaremos realizando
dar uma organização moderna, dotados uma grande campanha de alfabetização e
como serão eles de instalações específi- iniciando as obras de construção, em di-
cas para o ensino de Artes Industriais, ferentes partes do território nacional, de
Técnicas Comerciais, Educação para o mais de duas dezenas de ginásios voltados
Lar e, em alguns casos, Técnicas Agríco- para o trabalho. (BRASIL, 1973, p. 77)
las. (BRASIL, 1969, p. 05)
A tarefa dos técnicos do MEC, bem
Luiz Antônio Cunha explica a dinâmica como da EPEM, em relação aos Ginásios, era
desses Ginásios chamando a atenção para fato tão audaciosa quanto paradoxal. Era preciso
das disciplinas vocacionais, destinadas a sondar ampliar a oferta de vagas no primeiro ciclo
aptidões48 e a orientar para o trabalho, permea- da Escola Média com urgência, dada as exi-
rem toda a duração do curso. Segundo ele: gências do setor produtivo e as cobranças da
sociedade civil por maiores oportunidades de
Nas duas primeiras séries do antigo gi- escolarização. Era preciso extinguir um dua-
nasial predominavam as disciplinas de lismo de raízes históricas. Era preciso atender,
caráter geral, ao lado de disciplinas vo- ainda, ao famigerado projeto de desenvolvi-
cacionais, destinadas a sondar aptidões: mento acelerado e reforçar o controle político
artes industriais ou técnicas agrícolas, e social por via da Educação.
conforme a economia da região onde O discurso do fim da perspectiva dua-
o ginásio se localizasse. Nas duas últi- lista entre a o Ensino Secundário acadêmico e
mas séries, aumentava a carga horária o Ensino Técnico foi uma bandeira dos técnicos
destinada às disciplinas vocacionais. do MEC e da EPEM, que defenderam, pelo me-
(CUNHA, 1989, p. 82) nos em teoria, que não havia mais sentido em
se ofertar uma Educação para as elites (acadê-
Esses equipamentos deveriam se con- mica) e uma para as classes populares (técnica),
trapor a lógica secundarista, tida como de encontrando respaldo entre educadores, preo-
natureza exclusivamente acadêmica e deveria cupados com uma Educação mais democrática e
não apenas superar a perspectiva dualista dos mesmo entre os setores produtivos, interessados
Ginásios tradicionais, mas também alcançar o na maior força de trabalho que a expansão da
maior número possível de pessoas capazes de escolarização mínima possibilitaria.
serem orientadas para o trabalho e aptas às Por outro lado, era preciso convencer
pretensões dos setores produtivos. Era o mo- as elites de que a transformação da perspectiva
mento de modernizar os Ginásios e manter a secundária em orientação para o trabalho nos
ordem. Nas palavras de Suzeley Mathias: Ginásios não impactaria em suas estratégias
históricas de reprodução social. Tratava-se da
Se a ideia-chave do ensino sob Castelo “[...] luta pela efetivação da idéia de educar
Branco é a ordem, e sob Costa e Silva, o para o trabalho num tipo de escola destinada,
desenvolvimento, poder-se-ia afirmar que desde o período colonial, à formação da elite”
a união de ambas terá seu ponto alto no (NUNES, 1979. p. 4). A modernização, nesse
governo do general Médici — o objetivo do sentido, passaria pela reorganização da estru-
governo é o ‘desenvolvimento acelerado tura física e, também, das concepções pedagó-
e sustentado’, o que significa, no campo gicas em relação ao Ensino.
psicossocial, prioridade para educação de Segundo Zilda Nunes, o projeto de
mão-de-obra. (MATHIAS, 2004. p. 171) orientação para o trabalho nos Ginásios era
48
É importante destacar que o resultado da sondagem de aptidões não necessariamente atendia aos interesses dos meninos
e das meninas ingressantes naqueles Ginásios. Muitas vezes, o direcionamento a uma iniciação técnica (ou ao ensino geral)
atendia, prioritariamente, a uma necessidade da região ou mesmo a uma estratégia de reprodução social viável às famílias.

124
legitimado pelo discurso do trabalho como [...] o trabalho aparece como o requisito in-
virtude, sem o qual o indivíduo não atingiria dispensável para a construção de uma so-
níveis satisfatórios de bom comportamento so- ciedade mais livre e mais justa. [...] o traba-
cial (NUNES, 1979). O trabalho, neste sentido, lho parece, também, como integrante da
era visto como um redentor para os problemas natureza humana, como condição natural
sociais históricos do país, ao mesmo tempo de aperfeiçoamento da personalidade e da
que era o motor para o tão esperado desenvol- sociedade, como atividade criadora que
vimento nacional. Segundo a autora: pode ser realizada dentro de ajustamento
psicológico e adequação vocacional [...].
A aptidão para o trabalho assume gran- (NUNES, 1979. p. 191)
de importância no processo de orienta-
ção vocacional dos GPEs [Ginásios Po- Esse discurso, que ajudaria a sustentar o
livalentes], uma vez que um indivíduo projeto de desenvolvimentista empreendido pelo
desajustado profissionalmente favorece regime, foi exaustivamente proferido pelo gover-
o subdesenvolvimento da sociedade, e no Médici. Imaginava-se que a formação para o
desperdiça seu talento e vocação. (NU- mundo do trabalho, enquanto condição necessá-
NES, 1979. p. 189) ria ao tão propagado desenvolvimento, era tam-
bém, o caminho para que se alcançasse o bem-
Era preciso atender a certos requisitos -estar coletivo. Como em certo momento disse o
ou níveis de exigência para transitar no terre- próprio Médici, “a prosperidade ou crescimento
no das virtudes do progresso. A não adequa- econômico se converte, pois, em nossos dias, em
ção individual aos novos tempos pressupunha elemento essencial para que se possa alcançar o
a exclusão de todo processo. Se pensarmos a bem-estar coletivo”. (BRASIL, 1973. p. 48)
ordem do discurso como uma hegemonia dis- Tratava-se, portanto, como afirma
cursiva, como pressupõe Norman Fairclough, John Thompson, da “universalização” como
poderíamos afirmar que era agora a adequa- estratégia de construção simbólica, que con-
ção aos novos rumos do mundo do trabalho siste em tornar justo e digno de aprovação
uma condição para se obter algum trânsito no um projeto de poder de interesses específicos,
interior da nova ordem do discurso em trans- mas que era intencionalmente apresentado
formação, em virtude da ideia de progresso como de interesses de todos (THOMPSON,
(FAIRCLOUGH, 2016). Neste sentido, as or- 2011). Assim, foram propagados, com certo
dens do discurso não são de livre trânsito e alinhamento, os discursos do presidente Mé-
pressupõem certas exigências: dici, dos técnicos do MEC e das elites civis
interessadas nos rumos políticos, sociais e
Desta vez [...] trata-se de determinar as econômicos que o referido projeto traria.
condições de seu funcionamento, de im-
por aos indivíduos que os pronunciam Considerações finais
certo número de regras e assim de não
permitir que todo mundo tenha acesso a O empreendimento dos novos Giná-
eles. Rarefação, desta vez, dos sujeitos que sios integrava um projeto de governo que pro-
falam; ninguém entrará na ordem do dis- curava impor, através da Educação, um modelo
curso se não satisfazer a certas exigências hegemônico de desenvolvimento baseado na di-
ou se não for, de início, qualificado para reção e no controle (sustentado pelo ideário do
fazê-lo. (FOUCAULT, 1996, p. 36-37) civismo) e no utilitarismo econômico. A partir
de um tipo de pragmatismo conveniente, a cha-
O discurso do trabalho como tábua mada educação por resultados, baseada na pers-
de salvação foi utilizado como estratégia de pectiva tecnicista, aproximou Educação e mun-
legitimação para um projeto de orientação do do trabalho de uma forma nunca vista. Por
para o trabalho nos Ginásio que, curiosa- outro lado, essa mesma educação enfraqueceu a
mente, o MEC, o EPEM e mesmo a Diretoria sua perspectiva crítica e questionadora.
do Ensino Secundário procuravam minimi- O ideário do civismo esteve sempre
zar. A categoria trabalho era apresentada presente na noção de cidadania que o Esta-
como promotora da liberdade e da justiça, do autoritário procurou estabelecer, tendo
da saúde psicológica e do senso coletivo. Sem a Educação como um campo estratégico que
a qual não haveria condições mínimas de ajudou a sustentar, pelo menos por um mo-
vida social democrática e, principalmente, mento, a perspectiva utilitarista dos Ginásios,
de desenvolvimento. Isso pode ser observado profundamente modificado naquele período.
na leitura de Zilda Nunes: Como nos lembra Tatyana Maia, a Educação

125
deveria formar o maior número de “patriotas” Na prática, além de não surtir efeitos
possível, para que o tão estimado desenvol- de equidade na oferta de Educação para os dife-
vimento acelerado acontecesse. Pretendia-se rentes púbicos envolvidos no processo, acabou
formar, o cidadão moral, cívico e orientado por acentuar as disparidades. Os tecnocratas
para o trabalho. (MAIA, 2013) do MEC, que mais tarde assumiriam o fracasso
Entretanto, o projeto GOT’s não ape- total da sua proposta de modernização da Edu-
nas fracassou em eliminar o dualismo em sua cação Média quase que como um todo, de início
estrutura, como tornou as distorções sociais pareciam ter simplesmente “fingido demência”
decorrentes desse fracasso ainda mais sofistica- para o persistente problema do dualismo e a
das, uma vez que potencializou as disparidades própria ineficiência da profissionalização.
entre as escolas oficiais e as escolas privadas. A proposta de modernização dos Giná-
Agora não era mais preciso que houvesses uma sios acabou atendendo mais a um projeto eco-
estrutura educacional com diferentes tipos de nômico e mesmo político, do que propriamente
Ginásios para que se encontrasse uma Educa- uma demanda social. A ampliação da oferta de
ção dual. Mas, era o mesmo tipo de Ginásio, escolarização básica era muito mais uma forma
dentro de uma mesma estrutura, ofertado de de reafirmação hegemônica do que um projeto
formas diferentes, em virtude de sua clientela. de superação das desigualdades. Em consequên-
As escolas para as elites não encon- cia, acabou potencializando as distorções sociais
traram qualquer dificuldade em burlar a pro- já existentes naquele cenário, uma vez que tal
posta dos GOT’s e continuaram a priorizar o política acarretou em um distanciamento gi-
ensino acadêmico. Dito de outra forma, não gantesco, até hoje não resolvido, entre o ensino
deram a mínima para a orientação para o tra- público e o ensino privado no Brasil.
balho. Se as elites defenderam a chamada re-
denção pelo trabalho, estas não fizeram ques-
tão de se redimirem ou de redimirem os seus Referências
filhos por via desse modelo de Ginásio. Coube
às escolas oficiais espalharem a tal virtude aos ARAUJO, M. P.; SILVIA, I. P.; SANTOS, D.
estudantes menos favorecidos, enquanto as R. (orgs.). Ditadura Militar e Democracia no
escolas privadas, sem muito disfarce, intensi- Brasil: História, imagem e testemunha. Rio de
ficaram o conteúdo acadêmico, criando uma Janeiro: Ponteio, 2013.
distância de consequências históricas entre as
duas redes de ensino naquele cenário. CORDEIRO, J. M. A derrota após a vitória:
a memória militar sobre Médici e a ditadura.
As escolas particulares, ciosas dos in- In: Velhas e novas direitas: a atualidade de
teresses imediatos de sua clientela, in- uma polêmica. LAPSKY, I.; SCHURSTER, K.;
ventaram a profissionalização do faz- SILVA, F. C. T.; SILVA, G. B. (orgs.). Recife:
-de-conta: já que seus alunos estavam EDUPE, Editora Universidade de Pernambu-
interessados mesmo era no curso supe- co, 2014, p. 208-215.
rior, [...] Muitas escolas particulares nem
se preocupavam com o disfarce, tamanha CUNHA, L. A. Roda-viva. In: CUNHA, L. A.;
era a certeza de que tal farsa impediria GÓES, M. de. O golpe na educação. 6. ed. Rio
os fiscais das secretarias de educação de de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.
agirem contra elas, ainda mais quando a
rede pública enfrentava problemas bem FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança so-
maiores na adaptação dos currículos. cial. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de
(CUNHA, 1989, p. 63-64) Brasília, 2016.

Por outro lado, o insucesso do proje- FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula


to dos GOT’s se deu não apenas pela flagrante inaugural no Collège de France, pronunciada
derrota em relação à superação do dualismo em 2 de dezembro de 1970. 3 ed. São Paulo:
no Ensino Secundário, mas pela sua própria Edições Loyola, 1996.
incapacidade de se tornar, como os técnicos
do MEC gostavam de dizer, “modernos”. Na ______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.
leitura de Antônio Cunha, esses Ginásios não Tradução de Raquel Ramalhete. 20 ed. Petró-
tinham razão de ser na sociedade brasileira polis: Vozes, 1987.
também pela forma inadequada a que se pro-
pôs a sondar aptidões e orientar para o mundo MAIA, T. A. Civismo e cidadania num regime
do trabalho. (CUNHA, 1989, p. 63) de exceção: as políticas de formação do cida-

126
dão na ditadura civil-militar (1964 — 1985). Re- Fontes
vista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 5,
n.10, jul./dez. 2013. p. 182 — 206. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura
MATHIAS, S. K. A militarização da Burocra- (MEC)/ Equipe de Planejamento do Ensino
cia: a participação militar na administração Médio (EPEM). Subsídios para o estudo do Gi-
federal das comunicações e da Educação 1963- násio Polivalente. Rio de Janeiro: Diretoria do
1990. São Paulo: Editora da UNESP, 2004. ensino secundário, 1969.

NUNES, Z. C. R. A modernização do ginásio ______. Presidente (1969-1974: Emílio Garras-


secundário e a manutenção da ordem. Disser- tazu Médici). Discurso de Posse. Biblioteca da
tação (Mestrado em Educação). Fundação Ge- Presidência da República. Brasília, 30 out. 1969.
túlio Vargas, Rio de Janeiro, 1979.
______. Presidente (1969-1974 — Emílio Garras-
REIS FILHO, D. A. Ditadura e democracia tazu Médici). Discurso proferido em no Palá-
no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de cio Piratini. Porto Alegre, 5 mar. 1969. In: MÉ-
1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. DICI, Emílio Garrastazu. Nova consciência de
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1984. Londrina: Eduel, 2013. ______. Presidente (1969-1974 — Emílio Garras-
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THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: Aula inaugural da Escola Superior de Guerra.
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cação de massa. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. Garrastazu. Nova consciência de Brasil. 3. ed.
Brasília: Secretaria de Imprensa da Presidência
da República, 1973.

127
O COMANDO DE CAÇA AOS
COMUNISTAS (CCC) E A POLÍTICA
UNIVERSITÁRIA DURANTE A
DITADURA CIVIL-MILITAR

Danielle Barreto Lima49 Resumo: No período que antecedeu o


golpe de 1º de abril de 1964 e durante a ditadu-
ra civil-militar (1964-1985), a formação de asso-
ciações juvenis era uma prática não adstrita aos
estudantes de esquerda, tendo sido uma prática
também dos “estudantes conservadores” que se
organizaram em movimentos estudantis. Os “es-
tudantes conservadores” ou “estudantes demo-
cráticos” tinham suas organizações, disputavam
eleições, se uniam em partidos acadêmicos. Na
década de 1960, o discurso anticomunista rever-
berava na sociedade e, obviamente, nos meios
estudantis: os estudantes “democráticos”, preo-
cupados com a “ameaça comunista”, atuavam na
defesa da pátria contra o que entendiam como
manifestações subversivas, inclusive se colocan-
do contra as greves universitárias, se opondo ao
que eles denunciavam como caráter comunista
da União Nacional dos Estudantes (UNE). Por
meio de partidos acadêmicos e organizações,
almejavam disputar a direção de instituições
como a União Nacional dos Estudantes (UNE)
e a União Estadual dos Estudantes (UEE). Foi
nesse contexto de exploração do “perigo verme-
lho” que, em 1963, o Comando de Caça aos Co-
munistas (CCC) foi formado pelos estudantes
da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo e da Universidade Presbiteriana Macken-
zie. Essa comunicação tem como objetivo apre-
sentar as origens do CCC e como se ele orga-
nizou e atuou dentro das universidades indo
49
Mestra em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo — PUC/SP.

128
contra as pautas da esquerda e como os sujeitos Introdução
relacionados ao grupo se movimentaram dentro
da política universitária. Trata-se de um recorte No período que antecedeu o golpe de
de uma dissertação de mestrado que analisou, a 1º de abril de 1964 e durante a ditadura ci-
partir de diversos tipos de documentação pro- vil-militar50 (1964-1985), a formação de asso-
duzida à época, tais como aqueles oriundos dos ciações juvenis era uma prática não adstrita
aparelhos repressivos, da imprensa e do movi- aos estudantes de esquerda, tendo sido uma
mento estudantil, a história do grupo, desde prática também dos “estudantes conservado-
sua fundação, em 1963, até a fase de reabertu- res” que se organizaram em movimentos es-
ra democrática, passando pela participação de tudantis. Os “estudantes conservadores” ou
membros do grupo nos aparelhos repressivos. “estudantes democráticos” tinham suas orga-
O CCC fez parte da política universitária da nizações, disputavam eleições, se uniam em
Faculdade de Direito da Universidade de São partidos acadêmicos. Na década de 1960, o
Paulo e da Universidade Presbiteriana Macken- discurso anticomunista reverberava na socie-
zie. Surgindo em meio aos partidos acadêmicos, dade e, obviamente, nos meios estudantis: os
congregou os estudantes anticomunistas em estudantes “democráticos”, preocupados com
um movimento estudantil suprapartidário que a “ameaça comunista”, atuavam na defesa da
atuava de forma violenta contra estudantes e até pátria contra o que entendiam como mani-
contra professores. Por meio de seus integran- festações subversivas, inclusive se colocando
tes, buscava atuar como censor da livre mani- contra as greves universitárias, se opondo ao
festação do pensamento e ação de indivíduos e que eles denunciavam como caráter comunis-
grupos que não compactuavam expressamente ta da União Nacional dos Estudantes (UNE).
com seus ideais de democracia e nacionalismo, Por meio de partidos acadêmicos e or-
ou que ocupavam espaços almejados por seus ganizações, almejavam disputar a direção de
integrantes. Se não conseguiam impedir as dis- instituições como a União Nacional dos Estu-
cussões e eventos e ocupar os cargos diretivos dantes (UNE) e a União Estadual dos Estudan-
por meio dos partidos acadêmicos dos quais tes (UEE). Foi nesse contexto de exploração do
seus integrantes faziam parte, agiam por meio “perigo vermelho”51 que, em 1963, o Comando
da intimidação. O CCC, a partir do golpe de 1º de Caça aos Comunistas (CCC) foi formado
de abril de 1964, passa a atuar como braço da pelos estudantes52 da Faculdade de Direito da
repressão a serviço do regime na perseguição Universidade de São Paulo (FDUSP) e da Uni-
aos “subversivos” dentro do ambiente univer- versidade Presbiteriana Mackenzie.
sitário, em um duplo que mistura a atuação A data de formação do grupo é con-
de membros do grupo por meio dos partidos, troversa. Há relatos, de um dos integrantes e
influenciando em demandas que se alinhariam da imprensa, de que o CCC foi formado em
a interesses do grupo, e atos assinados pelo 1964. A maioria dos relatos aponta o ano de
CCC, tumultuando assembleias, distribuindo 1963. Para além da prática de atos, o CCC
panfletos, agredindo alunos e professores. surge inicialmente como uma ideia antico-
munista, patriótica e violenta. Essa perspec-
Palavras-chave: Comando de Caça aos tiva, levando em conta que a sua formação
Comunistas. Movimento Estudantil. Ditadura depende da atuação de estudantes em frentes
Civil-militar universitárias políticas, toma-se o ano de 1963
como data de formação, quando João Marcos
50
Há divergência envolvendo os termos “ditadura civil-militar” e “ditadura militar”. O criador do conceito de ditadura ci-
vil-militar, o historiador Daniel Aarão Reis Filho, embora sinalize para uma posição destacada dos militares na condução
do governo ditatorial, aponta a “participação civil e a ‘responsabilidade ampliada’ na construção da ditadura brasileira”
(REIS FILHO, 2014, p. 13). Para esta comunicação, parte-se do pressuposto de que houve apoio de parcela da sociedade
civil na legitimação e perpetuação do golpe, evidenciada, inclusive, com a atuação de grupos como o apresentado neste
trabalho, formado, em sua maioria, por estudantes, ainda que tenha tido em seus quadros policiais e militares.
51
Para esta pesquisa, entende-se o “anticomunismo” como um fenômeno que gerou um imaginário e uma manipulação
oportunista do mesmo, o que Motta (2000) chama de “indústria do anticomunismo”.
52
Conforme apontado na pesquisa que originou esta comunicação, também havia acusados de pertencer ao grupo que não
eram estudantes, pelo que se pôde apreender da documentação. Todavia, considerando se tratar de um recorte que busca
analisar o surgimento e atuação do grupo dentro do ambiente universitário, a participação de estudantes é evidenciada.
Importante ressaltar que, no decorrer do texto, serão mencionados nomes de estudantes que, mesmo não tendo relação
com o CCC, atuaram no movimento estudantil, de apoio ou resistência ao regime, e cuja atuação foi relevante para
compreender o contexto em que o CCC surgiu e agiu. O mesmo com relação à indivíduos que, mesmo não tendo ligação
efetiva com o grupo, estavam inseridos na rede de relações em que o CCC atuou.

129
Flaquer53, aluno da FDUSP e membro do Par- sio Scatena57, um dos fundadores do grupo (LO-
tido do Kaos54, um dos partidos acadêmicos PES, 2014, p. 88) e atuante na vida acadêmica da
da faculdade, manifesta as intenções de criar FDUSP, menciona que o grupo foi fundado:
o CCC. (LOPES, 2014, p. 102)
Essa comunicação tem como objetivo [...] como autodefesa contra estudantes
apresentar as origens do CCC e como se ele esquerdistas que levavam agentes sindi-
organizou e atuou dentro das universidades cais e outros — Central Geral dos Traba-
indo contra as pautas da esquerda e como os lhadores (CGT), Confederação Nacional
sujeitos relacionados ao grupo se movimenta- dos Trabalhadores da Indústria (CNTI).
ram dentro da política universitária. Trata-se Esse pessoal era violento, e o CCC foi
de um recorte de uma dissertação de mestra- uma autodefesa daqueles a favor da “Re-
do que analisou, a partir de diversos tipos de volução de Março”58.
documentação produzida à época, tais como
aqueles oriundos dos aparelhos repressivos, Em uma das primeiras ações do grupo,
da imprensa e do movimento estudantil, a em 1964, o Ministro da Superintendência da
história do grupo, desde sua fundação, em Reforma Agrária, João Pinheiro Neto, foi im-
1963, até a fase de reabertura democrática, pedido de discursar no Salão Nobre da FDUSP
passando pela participação de membros do (LOPES, 2014, p. 104). Dias depois, um dos par-
grupo nos aparelhos repressivos55. tidos da FDUSP, o Partido de Representação
O CCC fez parte da política universi- Acadêmica (PRA) se manifestou59, justifican-
tária da Faculdade de Direito da Universidade do, de forma velada, o ocorrido. Primeiro, ale-
de São Paulo e da Universidade Presbiteriana gando o fato de que o partido não tinha parti-
Mackenzie. Surgindo em meio aos partidos aca- cipado da organização do evento; em segundo
dêmicos, congregou estudantes anticomunistas lugar, mencionando que a intenção dos então
em uma entidade terrorista com faceta estudan- dirigentes do Centro Acadêmico XI de Agos-
til56, suprapartidária, que atuava de forma vio- to (C.A.) era, “dividir os alunos [...] e criar um
lenta contra estudantes e até contra professores. ambiente de agitação e de tumulto”. Destaca-
-se que, meses depois do ocorrido, João Mar-
O CCC na Faculdade de Direito cos Flaquer, integrante do CCC, se filiaria ao
PRA. Em 1964, na primeira vez em que o CCC
da Universidade de São Paulo é mencionado na imprensa, seus membros são
relacionados a este partido acadêmico60.
Na Faculdade de Direito da Universida- Com o golpe civil-militar de 1964, a
de de São Paulo estavam os alunos que formavam gestão do C.A., que havia tomado posse em
a liderança do CCC (LOPES, 2014, p. 120). Cas- 12 de março de 1964, foi desmontada. Devi-

53
“João Marcos Flaquer”, também acusado pela revista O Cruzeiro (RJ), de 09 de novembro de 1968, de ser integrante do
CCC (O Cruzeiro (RJ), Ano XL, Edição 45, CCC ou o Comando do Terror, 9/11/1968, p. 19-23).
54
O Kaos surgiu em 1963 e se propunha a criticar de forma violenta a “ordem vigente”, para indicar o que se entendia como
o autêntico caminho para a libertação e progresso da nação, livre dos extremismos de esquerda e direita. Seu fundador foi
Paulo Azevedo Gonçalves dos Santos, aluno da FDUSP e colega de João Marcos Flaquer. (Aliança do Kaos para o Progres-
so, 13/05/1963; pasta OP 1271, Arquivo Público do Estado de São Paulo).
55
Além de elementos que eram agentes públicos e integrantes do CCC e que atuavam dentro do aparelho, havia elemen-
tos do CCC que não eram agentes estatais, mas que atuaram a serviço do regime, conforme se discute na pesquisa que
originou esta comunicação.
56
A violência, característica das ações do CCC, parece ser um indício das razões pelas quais seus integrantes tenham op-
tado por manter o grupo na clandestinidade. Não obstante, Cassio Scatena, em seu relato ao pesquisador Gustavo Lopes,
aponta a realização de assembleias pelo CCC (LOPES, 2014, p. 139). A propósito, no que se refere à organização do grupo,
a reportagem de O Cruzeiro (RJ), de 9 de novembro de 1968, aponta o encontro em bares como uma prática quando
menciona as reuniões do CCC (O Cruzeiro (RJ), Ano XL, Edição 45, CCC ou o Comando do Terror, 9/11/1968, p. 19-23).
57
Cassio Scatena também é indicado pela revista O Cruzeiro (RJ) como integrante do CCC (O Cruzeiro (RJ), Ano XL,
Edição 45, CCC ou o Comando do Terror, 9/11/1968, p. 19-23).
58
LOPES, 2014, p. 137, relato fornecido por Cassio Scatena.
59
O Estado de São Paulo (SP), Reagem alunos da ala democrático da Fac. de Direito, p. 27, 29/03/1964.
60
Jornal do Brasil (RJ), Ano 1964, Edição 00219, A agressão, p. 13, 16/09/1964. De acordo com a notícia, João Marcos Fla-
quer agrediu uma estudante que entregava manifestos do partido que concorria com o PRA na eleição para a presidência
do C.A A notícia transcreve o nome de João Marcos Flaquer como João Marques Flaquer, todavia, não há registro de aluno
da FDUSP com esse nome, nem nenhum estudante acusado de pertencer ao grupo chamado João Marques Flaquer, o que
leva a crer se tratar de erro de grafia.

130
do à ausência do então presidente João Mi- o Elício Decreci (sic), que era secretário,
guel61 da FDUSP, Elício de Cresci Sobrinho, ex-socialista, em nome da “Revolução de
que havia sido eleito como primeiro secretá- Março” no “XI de Agosto”. Fomos lá e to-
rio para a gestão de 1964 na mesma chapa de mamos o “XI”’ dele, não como CCC, mas
João Miguel, toma posse em assembleia feita como Renovador. E no fim, puseram o
na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Anhaia Melo como interventor. E foi
Elício de Cresci Sobrinho, em 15 de abril de com esse pessoal do Mackenzie e do Lar-
1964, comunicou62 que os recém-nomeados go que começou a surgir o nome CCC68.
assessores da Presidência do C.A., Caio Pom-
peu de Toledo63 e Roberto de Ulhoa Cintra,64 Scatena, que foi membro do Partido
ambos acusados65 de integrar o CCC, teriam Acadêmico Renovador (PAR), faz questão
feito uma viagem a Brasília para receber uma de destacar que a tomada do C.A. foi feita
verba destinada a saldar as dívidas do centro via PAR e não via CCC. O que se observa
acadêmico66. Dias antes, nomeia seis estudan- é que o processo de tomada do C.A. envol-
tes, dentre eles Caio Pompeu de Toledo, para veu elementos acusados de fazer parte do
“abrir e vasculhar” os arquivos do C.A. CCC, oriundos de dois partidos acadêmicos
Todavia, Elicio não foi reconhecido diferentes: Caio Pompeu de Toledo (PRA),
pelos colegas como presidente do C.A. Ao Roberto de Ulhoa Cintra (PRA), Cícero Gu-
final, o Professor José Luiz de Anhaia Mello beissi (PAR)69 e Cassio Scatena (PAR).
é nomeado como interventor do C.A. Com Em seguida a estes eventos, o Prof.
a intervenção, Elício de Cresci Sobrinho e o Anhaia Mello, como interventor do C.A., con-
estudante Cícero Gubeissi, este acusado de vocou novas eleições para 20 de outubro de
fazer parte do CCC67, são nomeados como 1964. O PRA, por meio de seu então presiden-
primeiro-secretário e segundo-tesoureiro, res- te, Caio Pompeu de Toledo, apresenta a chapa
pectivamente, por Anhaia Mello, e seguem para concorrer às eleições. Na chapa, estavam
atuando na gestão do C.A. Pompeu de Toledo, concorrendo ao cargo de 2º
Cassio Scatena, menciona este movi- secretário e Roberto Ulhôa Cintra ao cargo de
mento de tomada do C.A. durante o golpe de 64. 2º tesoureiro70. Todavia, o Partido Acadêmico
Renovador (PAR) vence as eleições.
Em 1964, o João Miguel fugiu. E assumiu Em 1965, o PAR ganha novamente a elei-

61
Após o golpe em 1º de abril, João Miguel fica preso, por um mês, no DEOPS. Ao retornar à FDUSP, a Congregação da
Faculdade de Direito da Universidade suspende João Miguel por dois anos. (O Estado de S. Paulo (SP), Congregação apro-
va a suspensão, 18/11/1964, item 43 Hélio Navarro 1965, arquivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.)
62
S/N, 08/04/1964 (pasta 43 João Miguel 1964, arquivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo).
63
Caio Pompeu de Toledo foi acusado de ser membro do Comando de Caça aos Comunistas pela imprensa do início dos
anos 1980, acusações negadas por ele. Em uma das reportagens, é mencionado que Caio Pompeu de Toledo teria sido um dos
fundadores do CCC, o que ele nega na entrevista (Jornal do Brasil (RJ), Ano 1978, Edição 00225, Pompeu acha que Pelé tem
razão, p. 8, 19/11/1978); na segunda, Caio Pompeu de Toledo foi acusado de integrar o grupo no passado, o que é novamente
negado por ele (Jornal do Brasil (RJ), Ano 1983, Edição 00322, Montoro tem secretariado de conciliação, p.3, 28/02/1983).
64
“Roberto Ulhôa Cintra” foi acusado pela revista O Cruzeiro (RJ) de ser membro do Comando de Caça aos Comunistas
(O Cruzeiro (RJ), Ano XL, Edição 45, CCC ou o Comando do Terror, 9/11/1968, p. 19-23)
65
Utilizou-se o termo “acusado” ou “acusados” quando a documentação localizada durante a pesquisa acusava o indivíduo de
integrar o CCC, conforme o caso. Não houve comprovação de que os acusados tenham participado do CCC, exceto quando
alguns de seus integrantes, mais tarde, confirmaram a sua participação no grupo. Com relação a este ponto, destaca-se que
não foram localizados processos investigativos contra o CCC, aspecto analisado na pesquisa que originou esta comunicação.
66
Ofício nº 534, 15/04/1964 (pasta 43 João Miguel 1964, arquivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo).
67
A revista acusa “Cícero A. J. Gubeissi” de integrar o grupo (O Cruzeiro (RJ), Ano XL, Edição 45, CCC ou o Comando
do Terror, 9/11/1968, p. 19-23).
68
LOPES, 2014, pag. 138, relato fornecido por Cassio Scatena.
69
O manifesto “Aos Renovadores”, de 14/10/1963, menciona o nome Cícero que se supõe se tratar de Cícero Gubeissi,
recém-inserido na frente organizada pelo Partido Acadêmico Renovador (PAR) (pasta Oscarlino 1963, arquivo da Facul-
dade de Direito da Universidade de São Paulo).
70
Chapa do Partido da Representação Acadêmica, 06/10/1964 (pasta 43 João Miguel 1964, arquivo da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo).

131
ção para o C.A. Panfletos em que se lia: “C.C.C (FAN), que tinha em seus quadros Francisco Antô-
vai voltar” foram lançados71 na solenidade de pos- nio Fraga, acusado pela revista O Cruzeiro (RJ) de
se, em março de 1966. O presidente eleito do C.A. integrar o CCC76, desponta nas eleições prometen-
era Sérgio Lazarini, sucessor de Hélio Navarro, do “limpar” o C.A. da corrupção.
presidente no ano anterior, e que havia apresen- Após as críticas ao C.A., a FAN é de-
tado uma postura de combate ao regime. nunciada por ter como presidente um ex-in-
Nas eleições para a gestão de 1967, o tegrante do CCC. O partido, por sua vez, se
PRA fica em segundo lugar nas eleições para defende das acusações, que dizem ser falsas. Ao
a Diretoria do C.A., com a chapa encabeçada final, esta eleição foi marcada por tumulto por
por Caio Pompeu de Toledo72. Em meados de parte de apoiadores da FAN, que ameaçaram
1967, elementos do CCC ligados ao PRA inter- fisicamente os alunos, tentaram roubar as ur-
rompem73 a realização de ato público em favor nas e efetuaram disparos de armas de fogo.
da reestruturação do ensino e contra o acordo Em 1º de setembro de 1971, o então Mi-
MEC-USAID74. O objetivo do grupo foi im- nistro da Educação, Jarbas Passarinho, visita a
pedir o prosseguimento do ato e a utilização FDUSP. O C.A. preparou um protesto para a
de faixas com os dizeres “XV Congresso da chegada do Ministro, com faixas e cartazes em
UPES”; “Rasguemos o Acordo MEC-USAID”; defesa do “Exame da Ordem”. Elementos do
“Lutemos pelo ensino gratuito”. CCC queimaram os cartazes e iniciaram uma
A violência do grupo também vitima- briga com a Diretoria do XI de Agosto. Na
va o corpo docente. Um exemplo disso foi o mesma época, integrantes do CCC agrediram
ocorrido com o professor da FDUSP, Alberto José Roberto Leal de Carvalho, o presidente
Moniz da Rocha Barros, covardemente agredi- recém-eleito para o C.A. Relatório do Depar-
do por estudantes acusados de serem membros tamento Estadual de Ordem Política e Social
do grupo em 16 de outubro de 1968, vindo a (DEOPS) afirma que o estudante se elegeu,
morrer, de infarto, dois meses depois (SAN- pois era “simpático a todos aqueles que desgos-
SÃO, 2013). Dias antes do ataque ao Professor tavam da atuação do CCC e do PRA”77.
Rocha Barros, integrantes do CCC atacaram Paulo de Lara, acusado de ser integran-
um estudante, com “socos, pontapés e coro- te do CCC78, concorre às eleições para a ges-
nhadas de revólver”. O C.A. denuncia esta e tão do C.A. em 1972 pelo PRA. A FAN critica
uma outra agressão que havia ocorrido no dia o candidato do PRA, acusando-o de não fre-
anterior: o grupo esbofeteou um estudante que quentar a faculdade, exceto nos períodos elei-
havia protestado contra um professor. O C.A. torais. Essa candidatura é rechaçada também
qualifica o CCC como “grupo de choque das pelo CCC em um manifesto intitulado “O Ju-
elites econômicas e reacionárias”75. das”. Sem mencionar expressamente o nome de
A eleição para a gestão de 1971 foi marcada Paulo de Lara, mas fazendo referência ao pro-
por conflitos em que o CCC e seus integrantes esta- cesso eleitoral em curso, o manifesto afirma
vam envolvidos. A Frente Acadêmica Nacionalista que o candidato do PRA fez parte do CCC.

71
Solenidade de Posse da nova diretoria do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, 31/03/65
(pasta 20-C-11832, Arquivo Público do Estado de São Paulo). No documento, o relator menciona que o C.C.C. seria a sigla
para “Comando contra Comando”. Todavia, entendemos se tratar do C.C.C., até mesmo pois essa outra organização nunca
apareceu nas documentações e por conta da relação com o PRA. Importante assinalar também que o documento mencio-
na a data de 1965, mas a menção a Sérgio Lazarini como novo presidente do C.A., a Hélio Navarro como “ex-presidente” e
ao comparecimento de Amaury Kruel na solenidade, permite dizer que o evento ocorreu em março de 1966.
72
Eleições para escolha da nova diretoria do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco, 24/10/1966 (pasta 20 C 11 727, Arquivo Público do Estado de São Paulo).
73
Estudantil, 06/06/1967 (pasta OP1271, Arquivo Público do Estado de São Paulo).
74
Acordos celebrados entre os governos do Brasil, por meio do Ministério da Educação e Cultura (MEC) e dos Esta-
dos Unidos da América (EUA), por meio da Agency for International Development (USAID) com vistas à reforma
educacional do país.
75
C.C.C. ataca, 11/10/1968 (pasta 20-C-11786, Arquivo Público do Estado de São Paulo).
76
A revista aponta “Francisco Antônio Fraga” como integrante do grupo (O Cruzeiro (RJ), Ano XL, Edição 45, CCC ou
o Comando do Terror, 9/11/1968, p. 19-23).
77
Informe ref. Faculdade de Direito São Paulo, 22/09/1971 (pasta OP1273, Arquivo Público do Estado de São Paulo).
78
A revista aponta “Paulo Roberto Chaves de Lara” como integrante do CCC (O Cruzeiro (RJ), Ano XL, Edição 45, CCC
ou o Comando do Terror, 9/11/1968, p. 19-23).

132
No manifesto79, o CCC menciona a fa- Este manifesto ilustra como os ideais
lência do PRA e afirma que seu candidato, mes- do CCC, criado em 1963, perpetuaram-se den-
mo tendo feito parte do CCC, teve a militância tro da FDUSP. Em 1975, os integrantes que o
“comprometida pela ausência de um mínimo compuseram quando de sua criação já não fre-
de conteúdo ideológico, e por indigência inte- quentavam a faculdade, mas os princípios do
lectual”. Neste ocorrido, há dois partidos aca- grupo ainda ecoavam naquele espaço.
dêmicos, PRA e FAN, se contrapondo em um
processo eleitoral para o C.A., com a participa- O CCC na Universidade
ção do CCC. Os dois partidos tinham, em sua Presbiteriana Mackenzie
composição, acusados de pertencerem ao CCC:
Paulo de Lara (PRA) e Francisco Fraga (FAN).
Nos idos de 1975, um outro partido Em seguida a sua criação na FDUSP, o
acadêmico, o Movimento Acadêmico Reno- CCC passou a contar com membros oriundos
vador (MAR) vence a eleição para a gestão de da Universidade Presbiteriana Mackenzie que
1976 do C.A. Em seu “Grito de Vitória”80, o se torna, então, uma das “bases de operação”
MAR ressalta a “luta” dos “democratas” men- do CCC, conforme apontado em relatório en-
cionando que a “guerra (...) foi transmitida pe- viado para o DEOPS83 e o Serviço Nacional de
los nossos colegas mais velhos”, pelos “vetera- Informações (SNI)84, datado de 1971.
nos que formaram frentes de luta liberal contra Na Universidade Presbiteriana Mac-
a ‘panelinha’ dos vermelhos”. Além de aludir à kenzie, além dos partidos acadêmicos da Fa-
colaboração dos veteranos, o manifesto cita culdade de Direito, havia os centros ou dire-
os “movimentos gloriosos” que antecederam tórios acadêmicos: O Diretório Acadêmico
o MAR, mencionando o PRA81 e a FAN. O Eugênio Gudin (DAEG), da Faculdade de
MAR dedica sua vitória, “um sabor de vingan- Ciências Econômicas que, em 1967, tinha como
ça à morte de um de nossos velhos líderes, o líder Rafi Kathlian. e, em 1968, Flavio Caviglia;
tão querido Otavinho” que, de acordo com o ambos acusados, pela revista O Cruzeiro (RJ),
manifesto, foi “assassinado covardemente em de 9 de novembro de 1968, de serem integran-
Copacabana pelos amigos dos ratos, facínoras tes do CCC85; e o Centro Acadêmico Horácio
foragidos da Justiça”. Otavinho era o apelido de Lane (C.A.H.L.), da Faculdade de Engenharia
Octávio Gonçalves Moreira Júnior, delegado da Universidade Presbiteriana Mackenzie que
de polícia formado pela FDUSP, apontado por “sempre teve como dirigente pessoal da centro-
Raul Nogueira de Lima (o “Raul Careca”), um -direita”86 e, no final dos anos 1970, tinha como
dos integrantes mais famosos do grupo, como aluno Fábio Fleming, acusado de ser ligado ao
membro do CCC (SOUZA, 2000, p. 380)82. Comando de Caça aos Comunistas (CCC)87.
79
O Judas, s/d (pasta OP1273, Arquivo Público do Estado de São Paulo). O documento não tem data, porém, devido
ao arquivamento, logo na sequência, do relatório do DEOPS mencionando a candidatura de Paulo de Lara, pode-se
dizer que tenha sido elaborado em 1971 e que faça menção ao candidato do PRA em questão.
80
Grito de Vitória, 1975 (pasta OP1275, Arquivo Público do Estado de São Paulo).
81
O partido menciona a sigla conhecida do Partido de Representação Acadêmica, muito embora, entre parênteses,
o explique como “Partido Renovador Acadêmico”.
82
“Raul Nogueira Lima” também é acusado pela revista O Cruzeiro (RJ) de integrar o CCC (O Cruzeiro (RJ), Ano
XL, Edição 45, CCC ou o Comando do Terror, 9/11/1968, p. 19-23).
83
Instituto Mackenzie — S. Paulo, 12/10/1971 (pasta OP1398, Arquivo Público do Estado de São Paulo).
84
Na documentação que compõe o dossiê com o relatório, consigna-se que: “O Documento, cuja cópia é remetida em anexo,
foi recebido na Chefia do SNI em outubro de 1971, desconhecendo-se a autoria. O remetente encaminhou cópia ‘xerox’.”
Segundo consta neste documento, o chefe do SNI acatou o recebimento do documento e determinou que se investigassem
as denúncias sobre subversão, não tecendo nenhum comentário sobre a questão relacionada ao CCC. (BR_DFANBSB_V8_
MIC_GNC_AAA_72058764_d0001de0001, Fundo do Serviço Nacional de Informações, Arquivo Nacional).
85
A revista menciona “Raffi Kathlian” e “Flavio Caviglia” como membros do grupo (O Cruzeiro (RJ), Ano XL, Edi-
ção 45, CCC ou o Comando do Terror, 9/11/1968, p. 19-23).
86
Observações Durante Eleições Estudantis Mackenzie, 30/10/1980 (pasta OP1234, Arquivo Público do Estado de
São Paulo).
87
Na ficha de Fábio Fleming, consta, com data de 27 de outubro de 1983, a menção a um recorte de jornal em que alguns
integrantes da chapa “Nossa Voz” o acusam de ser ligado a “grupos de extrema-direita, tais como o Comando de Caça aos
Comunistas (CCC)”. (FLEMING, Fábio Eduardo Branca E/OU Fábio Fleming; Ficha Departamento de Comunicação
Social nº DCSF01827, Arquivo Público do Estado de São Paulo). Na parte interna na ficha, no nome de Fábio Fleming,
há uma rasura na primeira letra do sobrenome “França”, o que explicaria a razão de a ficha constar como “Branca” e não
França”. Todavia, as outras informações constantes na ficha, como o restante do nome e a indicação de que estudante de
Engenharia e a ligação com a Mackenzie, permitem dizer que se trata de Fábio Fleming, aluno da Mackenzie.

133
Na Faculdade de Direito, dois partidos aos demais estudantes da escola de Economia
se destacaram por apresentar elementos que os durante uma assembleia estudantil95.
relacionavam ao CCC: O Partido Acadêmico Pela documentação encontrada, no-
Realizador (PAR), que teve em seus quadros tou-se que, com a decretação do AI-5, em
José Roberto Batochio88 e Octávio Cesar Ra- dezembro de 1968, os atos do CCC e de seus
mos, acusados de serem integrantes do CCC e integrantes arrefecem dentro da Universidade
o Partido Acadêmico Democrático (PAD), que Presbiteriana Mackenzie. Considerando que o
teve como presidente Boris Casoy, também CCC se colocava como opositor de qualquer
acusado de pertencer ao grupo pela revista O prática que pudesse ser enquadrada como sub-
Cruzeiro (RJ), de 9 de novembro de 196889. versiva pelo grupo e que a extrema direita,
Boris Casoy “teve papel destacado na ainda que minoritária na Universidade Pres-
Revolução de 31 de Março”, quando, atuando biteriana Mackenzie, contava com o “apoio no-
na Rádio Eldorado, “comandou vibrantemente tório da direção da Universidade” (RIDENTI,
a cadeia de emissoras que compunham a Rede 1993, p. 142, em nota de rodapé), pode-se in-
da Liberdade. No momento crítico da Revo- ferir que as manifestações dos estudantes liga-
lução Democrática, sua voz ecoava nos quatro dos a movimentos de esquerda, se ocorressem,
cantos do país levando a todos os brasileiros já sofressem um certo controle da instituição.
a mensagem revolucionária”90. Cassio Scatena Além disso, havia a repressão estatal.
relata que Boris Casoy “não era um membro No contexto da reabertura demo-
efetivo do CCC, mas era um homem de direita, crática e com a reorganização estudantil em
em ‘concepção ideológica de universo’”91. 1977, o movimento estudantil começa a se
Em 1966, José Roberto Batochio, acu- reorganizar também na Universidade Pres-
sado92 de ser integrante do CCC, concorre às biteriana Mackenzie e, como consequência,
eleições para a gestão de 1967 do Diretório os atos do CCC recomeçam96.
Acadêmico da Faculdade de Direito. Confor- Em maio de 1978, o Diretório Acadê-
me Lopes (2014), José Roberto Batochio fazia mico da Faculdade de Arquitetura (DAFAM)
parte da “direita acadêmica” da Mackenzie. Em foi invadido pelo CCC97. Para os membros do
relato cedido a Lopes (2014), Batochio nega93 DAFAM, o ataque teria relação com o fato
qualquer envolvimento com o CCC. de o Diretório estar envolvido nas mobili-
Rafi Kathlian, aluno da Faculdade de zações para as eleições da UEE, que foram
Economia e ligado ao DAEG, foi acusado de posteriormente proibidas pela Universidade
ser um dos líderes do CCC na Mackenzie94. Presbiteriana Mackenzie. Em agosto de 1978,
Em 1967, quando exercia a presidência do relatório do DEOPS destaca que o Edifício
DAEG, chegou a propor o cancelamento de da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
uma greve, se posicionando contrariamente foi alvo de mais vandalismo, com a pichação

88
Em seu relato, José Roberto Batochio menciona ter feito parte do “Partido Acadêmico Renovador”. Todavia, não
foi localizado nenhum partido com este nome na documentação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o que
permite inferir que se trata do Partido Acadêmico Realizador (PAR) que atuava dentro da Faculdade de Direito da
Mackenzie (LOPES, 2014, p. 179).
89
A revista acusa “Boris Cazoy ou Kassoy” de integrar o CCC (O Cruzeiro (RJ), Ano XL, Edição 45, CCC ou o Co-
mando do Terror, 9/11/1968, p. 19-23).
90
O Democrata (SP), P.A.D tem novo Presidente: Boris Casoy, p. 8, 10/64 (pasta E41P08, Arquivo da Universidade
Presbiteriana Mackenzie).
91
LOPES, 2014, p. 143, relato fornecido por Cassio Scatena.
92
A revista acusa “José Roberto Batochio” de ser integrante do grupo (O Cruzeiro (RJ), Ano XL, Edição 45, CCC ou
o Comando do Terror, 9/11/1968, p. 19-23).
93
Cassio Scatena também afirma que Batochio não fez parte do CCC (LOPES, 2014, p. 143).
94
O Cruzeiro (RJ), Ano XL, Edição 45, CCC ou o Comando do Terror, 9/11/1968, p. 19-23.
95
Assembleia de todos os alunos da Universidade Mackenzie, 18/05/67 (pasta OP 1230, Arquivo Público do Estado
de São Paulo).
96
Lembrando que não se tratava mais do mesmo CCC formado em 1963. Nesse momento, a sigla havia sido utilizada
em diferentes locais do país por diversos grupos que, por uma aproximação ideológica, organizavam-se e praticavam
seus atos sob o signo do CCC. A partir de 1968 o grupo que surgiu nas Arcadas inspirou a criação de outros homôni-
mos espalhados pelo país. O grupo tinha, então, se tornado uma sigla, capaz de agregar outros sujeitos dispostos a
praticar atos violentos em nome da manutenção do quadro ditatorial, acionados por uma luta contra o comunismo.
97
O Estado de S. Paulo (SP), Diretório do Mackenzie é invadido e depredado; 04/05/1978 (pasta E42P06, Arquivo
da Faculdade Presbiteriana Mackenzie).

134
dos dizeres “CCC ALA 233”98, não tendo sido CCC: “‘a arma de ataque
descoberto os autores do ato99. aos avanços que a
No mês de outubro de 1979, foi a vez esquerda tenta fazer’”106
do Diretório Acadêmico da Faculdade de Tec-
nologia (DATEM) ser invadido pelo CCC100.
De acordo com o jornal101 que noticiou o ocor- Por meio de seus integrantes, busca-
rido, os estudantes foram avisados pelo CCC, va atuar como censor da livre manifestação
que o grupo iria realizar a “operação ‘Furacão do pensamento e ação de indivíduos e grupos
Branco’”, uma “’limpeza’” na universidade, em que não compactuavam expressamente com
virtude da venda, pelo diretório, de livros que seus ideais de democracia e nacionalismo, ou
o grupo considerava subversivo. No mesmo que ocupavam espaços almejados por seus
ano, Octávio Cesar Ramos, acusado pelos integrantes. Se não conseguiam impedir as
seus colegas102 de fazer parte do CCC arreben- discussões e eventos e ocupar os cargos dire-
ta urnas da eleição da UNE e tumultua as elei- tivos por meio dos partidos acadêmicos dos
ções para o Diretório Central dos Estudantes quais seus integrantes faziam parte, agiam
(DCE) da Mackenzie ao se manifestar a favor por meio da intimidação.
da chapa em que concorria Fábio Fleming. Para combater o que eles entendiam
Octávio Cesar Ramos, dois anos antes, atua- como influência das ideias comunistas na uni-
va como 1º tesoureiro do Partido Acadêmico versidade e por acreditar na necessidade de
Realizador (PAR)103. eliminação dos líderes de esquerda do movi-
Em 1981, nas eleições para o DCE, a mento estudantil, os integrantes do CCC não
chapa “Todo mundo no DCE” foi acusada pela se intimidavam em andar armados107.
chapa concorrente de representar o CCC nas O CCC, a partir do golpe de 1º de abril
eleições104. A chapa “Todo mundo no DCE” foi de 1964, passa a atuar como braço da repressão
a vencedora nas eleições e foi presidida pelo es- a serviço do regime na perseguição aos “sub-
tudante Fábio de Castro Ferreira e tinha como versivos” dentro do ambiente universitário, em
vice-presidente Fábio Fleming105. um duplo que mistura a atuação de membros
De forma muito semelhante ao que do grupo por meio de partidos, influenciando
ocorria na FDUSP, era em meio à dinâmica em demandas que se alinhariam a interesses do
partidária dentro do movimento estudantil da grupo, e atos assinados pelo CCC, tumultuan-
Universidade Presbiteriana Mackenzie que o do assembleias, distribuindo panfletos, agre-
CCC e seus integrantes agiam. Assim como na dindo alunos e professores.
FDUSP, as ideias que basearam o grupo — anti- O elemento unificador dos eventos
comunismo, conservadorismo, autoritarismo, é a atuação do grupo em nome do que eles
violência — continuaram a circular na Macken- chamavam de rumos da “revolução”, atuando
zie, com seus adeptos e defensores. como censor no meio acadêmico, combaten-
do o movimento estudantil com o objetivo
de extirpar da Academia o “perigo vermelho”
com ações que iam desde a disputa por cargos
no centro acadêmico até agressões e denún-
cias ao aparelho repressivo.

98
Tal pichação faz referência a uma lista de 233 (duzentos e trinta e três) torturadores, então recém-divulgada por
um semanário, em que figuravam alguns elementos acusados de serem integrantes do CCC.
99
Observações no Campus da Universidade Mackenzie — Período Matinal, 05/08/1978 (pasta OP1344, Arquivo
Público do Estado de São Paulo).
100
Denúncia, 26/10/1979 (pasta E54P04, Arquivo da Universidade Presbiteriana Mackenzie).
101
O Estado de S. Paulo (SP), No Mackenzie, o protesto contra invasão de diretório, 27/10/1979 (pasta E42P06, Ar-
quivo da Universidade Presbiteriana Mackenzie).
102
Jornal da República (SP), Até ovos podres na disputa do DCE-Mack, p. 12, 30/10/1979 (pasta OP1234, Arquivo
Público do Estado de São Paulo). A reportagem menciona Otávio Cesar Ramos.
103
O Gatom (SP), Ordem é Progresso, 1977 (pasta E54 P04, Arquivo da Universidade Presbiteriana Mackenzie).
104
Eleições para Diretórios/Centros Acadêmicos e DCE — Universidade Mackenzie, 29/10/1981 (pasta OP1345, Ar-
quivo Público do Estado de São Paulo).
105
Folha de S. Paulo (SP), Na Mackenzie, a situação mantém direção do DCE; 30/10/1981 (pasta OP1345, Arquivo
Público do Estado de São Paulo).
106
Jornal da Tarde (SP), Um jovem conta como começou e como funciona o CCC, 08/10/1968 (pasta E42 P06, Ar-
quivo da Universidade Presbiteriana Mackenzie).
107
Jornal do Brasil (RJ), Ano 1968, Edição 00154, Oitocentos Paulistas não saem das trincheiras, 06/10/1968, p. 4.)

135
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Centro Acadêmico XI de Agosto, da Fa-
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Denúncia, 26/10/1979 (pasta E54P04, Arquivo Jornal do Brasil (RJ), Ano 1983, Edição 00322,
da Universidade Presbiteriana Mackenzie). Montoro tem secretariado de conciliação, p.3,
28/02/1983
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micos e DCE — Universidade Mackenzie, O Cruzeiro (RJ), Ano XL, Edição 45, CCC ou o
29/10/1981 (pasta OP1345, Arquivo Público Comando do Terror, 9/11/1968, p. 19-23.
do Estado de São Paulo).

136
O Democrata (SP), P.A.D tem novo Presidente: Observações Durante Eleições Estudantis
Boris Casoy, p. 8, 10/64 (pasta E41P08, Arquivo Mackenzie, 30/10/1980 (pasta OP1234, Arquivo
da Universidade Presbiteriana Mackenzie). Público do Estado de São Paulo).

O Estado de S. Paulo (SP), Congregação apro- Observações no Campus da Universidade


va a suspensão, 18/11/1964, item 43 Hélio Na- Mackenzie — Período Matinal, 05/08/1978
varro 1965, arquivo da Faculdade de Direito da (pasta OP1344, Arquivo Público do Estado de
Universidade de São Paulo. São Paulo).

O Estado de S. Paulo (SP), Diretório do Mac- Ofício nº 534, 15/04/1964 (pasta 43 João Miguel
kenzie é invadido e depredado; 04/05/1978 1964, arquivo da Faculdade de Direito da Uni-
(pasta E42P06, Arquivo da Faculdade Presbi- versidade de São Paulo).
teriana Mackenzie).
SANSÃO, Luiza. Ameaças e Agressão do CCC
O Estado de S. Paulo (SP), No Mackenzie, o a Rocha Barros causaram a sua morte. Revista
protesto contra invasão de diretório, 27/10/1979 Adusp, São Paulo: Maio, n. 23, 2013.
(pasta E42P06, Arquivo da Universidade Pres-
biteriana Mackenzie). S/N, 08/04/1964 (pasta 43 João Miguel 1964,
arquivo da Faculdade de Direito da Universi-
O Estado de São Paulo (SP), Reagem alunos dade de São Paulo).
da ala democrático da Fac. de Direito, p. 27,
29/03/1964. Solenidade de Posse da nova diretoria do Cen-
tro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de
O Judas, s/d (pasta OP1273, Arquivo Público Direito da USP, 31/03/65 (pasta 20-C-11832, Ar-
do Estado de São Paulo). quivo Público do Estado de São Paulo).

137
NA FORMA DA LEI:
A CONSTRUÇÃO JURÍDICA
DA CATEGORIA DOS MENORES
INFRATORES NOTORIAMENTE
PERIGOSOS
BRASIL (1964–1984)

Otoniel Rodrigues Silva108 Resumo: Desde que, por meio de um


golpe de Estado em 1964 os generais-presiden-
tes assumiram o governo do Brasil, da coalizão
entre as elites econômicas e os militares, foi
idealizado um novo projeto de País. Afiançado
pelo redirecionamento das políticas econômi-
cas e sociais, dentre as estratégias de consolida-
ção e manutenção do poder, incluía-se o gover-
no das infâncias. Com vistas ao controle, tutela
e eventual contenção deste estrato social, a
caserna de imediato instituiu a Política Na-
cional do Bem-Estar do Menor (PNBEM). Da
análise de documentos que tramitaram em si-
gilo durante a Ditadura Militar, busca-se com-
preender de que forma a legislação nacional
foi conformada, possibilitando o governo das
infâncias pelas vias judiciais. O estudo ocorre
à luz das abordagens foucaultianas sobre peri-
culosidade e governamentalidade. Aventa-se
que do recrudescimento da legislação durante
a Ditadura Militar, os “menores delinquentes”
foram alçados à condição de “perigosos”.

Palavras-chaves: Ditadura Militar. In-


fâncias. Periculosidade.

108
Doutorando em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina — UDESC.

138
Introdução mitiam intimidações, perseguições e a prisão
dos opositores do regime. Tais medidas rever-
Restaria sempre o perigo de se ter subver- beraram sobre amplos espectros da sociedade
sivos e terroristas menores de idade, ten- civil. (RICHTER; FARIAS, 2019)
do em vista o maior desenvolvimento dos O presente artigo tem por objetivo ana-
adolescentes, no mundo moderno (BR lisar de que forma a Ditadura Militar operou no
DFANBSB N8.0.PSN, EST.365, p. 75)109. intuído de amoldar e aplicar a legislação penal
aos menores de dezoito anos conforme os inte-
O presente excerto de texto data de resses políticos do regime ditatorial.113 Assim,
novembro de 1978 e consta de uma observação ao passo que atuava policialescamente na solu-
anotada no Parecer nº 010/la.SC/78, documento ção do “problema do menor”, também buscava
elaborado pela Secretaria-Geral do Conselho de revestir de legalidade as incursões contra opo-
Segurança Nacional (SG/CSN), órgão do apara- sitores do regime, inclusive contra os que eram
to de controle e repressão da Ditadura Militar.110 considerados inimputáveis pelo Código Penal.
Quando de sua elaboração, o citado parecer foi
classificado integralmente como documento A lei como dispositivo de
sigiloso. No entanto, especificamente sobre o governamentalidade
trecho ora reproduzido, a classificação foi mais
rigorosa, impondo-se o grau de secreto111.
O documento cujo trânsito limitou-se Pensando, a partir de Foucault (2008),
ao círculo dos militares de alta patente, tinha a lei em si não garante poder, tampouco a gover-
por objetivo apresentar sugestões do Consultor namentalidade da população. Porém, o orde-
Jurídico do Ministério do Exército, vetando ou namento jurídico é engrenagem indispensável
aprovando propostas de emendas parlamen- na complexa maquinaria do poder. Articulada
tares referentes à Lei de Segurança Nacional112 à economia política e as demais instituições do
aprovada em dezembro daquele ano. Ao consi- Estado, ao ser operacionalizada pelos aparatos
derar “o perigo de se ter subversivos e terroristas de segurança, a lei funciona como mecanismo
menores de idade”, a cúpula militar opunha-se de disciplina e correção, atuando no imaginá-
à manutenção da imputabilidade penal para os rio da população, a lei determina o que pode e
menores de dezoito anos, em relação às infra- o que não pode ser feito.
ções penais contra a Lei de Segurança Nacional. No sentido de ampliar a margem de
No decorrer de aproximadamente manobra, possibilitando ao governo pleno
duas décadas, período de sustentação da Di- controle sobre as infâncias e juventudes brasi-
tadura Militar, as elites econômicas se uniram leiras, valendo-se das críticas que pesavam so-
aos burocratas civis e militares, permitindo bre o antigo Serviço de Assistência ao Menor
amplo controle político e econômico da socie- (SAM), o então general-presidente Humberto
dade brasileira (BRESSER-PEREIRA, 1978). de Alencar Castelo Branco, em primeiro de de-
Neste período, sob o discurso da solução do zembro de 1964, promulgou a Lei nº 4513. Por
“problema do menor”, dissimulando interesses meio deste dispositivo legal, foi instituída a
próprios, a coalizão que governava o país, os Fundação do Bem-Estar do Menor (Funabem),
generais-presidentes promoveram substanciais órgão da Ditadura Militar responsável por for-
alterações na legislação nacional, inclusive na mular e implantar a Política Nacional do Bem-
legislação destinada à infância e juventude. -Estar do Menor. (MIRANDA, 2015)
Editando a lei, os governantes positivaram um Estando a Funabem constituída, a Po-
ordenamento jurídico, cujos dispositivos per- lítica Nacional do Bem-Estar do Menor foi
109
Nesta e em outras citações do trabalho, a referência bibliográfica apresenta o código de referência para localiza-
ção do documento no acervo do Arquivo Nacional.
110
A opção pelo termo Ditadura Militar, não exclui a participação de setores da sociedade civil no golpe de Estado.
Contudo, conforme defende o historiador Carlos Fico (2013), após o golpe de Estado os civis foram afastados dos
postos de comando. Deste modo, o autor designa o período compreendido entre 1964 e 1985 como Ditadura Militar.
111
Conforme o Decreto nº 60.417, de março de 1967, que regulamentava a classificação quanto ao sigilo dos documen-
tos estatais, os mesmos poderiam ser classificados como reservados, confidenciais, secretos e ultrassecretos.
112
Aprovada em de 17 de dezembro de 1978, sob número 6.620, a Lei de Segurança Nacional definia os crimes contra
a segurança nacional e estabelecia os ritos processuais.
113
O presente estudo é parte de minha pesquisa de doutoramento, na qual analiso sob perspectiva da História da
Educação, como tem ocorrido a formação dos agentes socioeducativos no Estado de Santa Catarina. Compreender
de que modo foi construída a categoria do “menor infrator notoriamente perigoso” se constitui em chave de leitura
para análise das políticas públicas destinada a esta parcela da população infantojuvenil.

139
posta em curso a partir da emissão de dire- (PT), o Estado brasileiro iniciou a abertura dos
trizes técnico-políticas e substanciais aportes arquivos da Ditadura Militar. Naquele ano, por
financeiros. Além da manutenção de estru- meio do Decreto nº 5.584, foi determinado que
tura própria, composta por unidades educa- os arquivos que se encontravam na Agência
cionais e unidades terapêuticas, buscando ca- Brasileira de Inteligência (ABIN), no Conselho
pilaridade nacional, por meio das fundações de Segurança Nacional (CSN) e na Comissão
estaduais do bem-estar do menor (FEBEMs), Geral de Investigações (CGI) fossem transfe-
a Funabem transferiu uma miríade de recur- ridos para o Arquivo Nacional. (ISHAQ, 2015)
sos a estados e municípios. Todavia, apesar No entanto, apesar dos documentos
do expressivo volume de recursos alocados na terem sido transferidos para o Arquivo Na-
frente assistencial a demanda era muito alta, cional, em vista dos sigilos legais, persistiam
cabe ressaltar que no fim da década de 1960, as limitações de acesso. Em nova investida no
aproximadamente 42% da população brasilei- sentido de abrir os arquivos da Ditadura Mi-
ra possuía menos de 15 anos de idade.114 litar, permitindo a qualquer cidadão amplo
No contexto do golpe de Estado, con- acesso aos dados públicos, em 18 de novembro
siderando a possibilidade de resistência em de 2011, a então presidenta Dilma Rousseff san-
diversos espectros sociais, para garantir a go- cionou sob o número 12.527, a Lei de Acesso à
vernamentalidade, além das políticas públicas, Informação. Em ato contínuo Dilma sancionou
outros dispositivos de poder precisaram ser mo- a Lei nº 2.528, que instituiu a Comissão Nacio-
bilizados. Nos primeiros dez anos da Ditadura nal da Verdade, cujo objetivo era investigar e
Militar, militares e juristas atuaram conjunta- esclarecer as violações de Direitos Humanos
mente arquitetando uma larga estrutura jurídi- ocorridas entre 1946 e 1988. (ISHAQ, 2015)
ca para legalizar as ações do governo e permitir A partir da edição dessas leis, ocor-
o controle sobre os setores político, econômico reram mudanças fundamentais em relação ao
e social do país (RICHTER; FARIAS, 2019). direito à informação. Com a extinção da clas-
Neste período, por meio da Lei nº 5.258 de 10 sificação de sigilo eterno116 em documentos pú-
de abril de 1967, a legislação penal aplicada aos blicos e a permissão para acesso aos arquivos da
menores de 18 anos foi alterada e a maioridade Ditadura Militar, que se encontram sob guarda
penal reduzida para 14 anos de idade. do Arquivo Nacional, mais de vinte milhões de
Para compreender como a Ditadura páginas de documentos foram desengavetadas.
Militar operou a lei, possibilitando o recru- Com a liberação desses acervos, o Brasil se tor-
descimento das intervenções estatais sobre nou o maior detentor de documentos sobre o
crianças e adolescentes, foram analisados período ditatorial na América Latina. O acesso
os seguintes documentos: o Parecer nº 010/ a tais documentos, além de possibilitar que as
la.SC/78, a proposta originária da Lei nº vítimas ou suas famílias pudessem comprovar
5.258/1967 e o documento intitulado de In- as violações de direitos humanos perpetradas
formação n° 102/16/74. Sendo que o último pelo Estado brasileiro, também tem possibili-
documento foi elaborado pelo Serviço Na- tado o aprofundamento das pesquisas históri-
cional de Informações (SNI) em 1974 e tinha cas sobre o período. (ISHAQ, 2015)
por objetivo relatar a situação processual de Retomando a questão da edição e apli-
um preso político, acusado de atos subversi- cação da lei durante a Ditadura Militar, obser-
vos quando ainda era menor de idade. vemos que circunstâncias permitiram, ainda
Devido a legislação115 que regulamen- que por um breve período, a redução da impu-
tava o grau de sigilo imposto aos documentos tabilidade penal de 18 para os 14 anos. Como
produzidos pelos os órgão estatais durante a assinalado, por meio da Funabem e suas “su-
Ditadura Militar, os documentos que subsi- cursais” estaduais, a Ditadura Militar pôs em
diam esta discussão só se tornaram públicos dé- curso um eficiente mecanismo de controle e
cadas depois de terem produzido os efeitos aos tutela dos filhos da pobreza urbana. No entan-
quais se destinavam. Somente em 2005, portan- to, frente ao enorme contingente da população
to, 20 anos após o início da redemocratização infantojuvenil, também era necessário criar
do país, sob o governo do presidente Luiz Iná- dispositivos para o controle dos filhos da clas-
cio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores se média. Pois, era neste extrato social que se

114
Conforme dados do IBGE: Séries Econômicas, Demográficas e Sociais de 1550 a 1985.
115
Decreto nº 60.417 de março de 1967.
116
Por meio da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, o Governo da Presidenta Dilma Rousseff estabeleceu o fim
do sigilo eterno nos documentos públicos. De acordo com a legislação anterior, os documentos classificados com
ultrassecretos poderiam ficar em sigilo por 30 anos. Todavia, esse prazo podia ser prorrogado sucessivamente.

140
concentravam os jovens mais politizados, por- indeterminado; medida que as circuns-
tanto, potenciais subversivos. tâncias do nosso meio e do momento tor-
De autoria do militar e deputado ude- nam praticamente insignificantes. (DOS-
nista Menezes Côrtes, no início da década de SIÊ PL 1926/1960, p. 13)
1960, o Projeto de Lei n° 1926 de 07 de junho
de 1960, que visava a redução da idade penal, Portanto, para garantir a ordem pública
começou a tramitar no parlamento brasileiro. e efetivamente reeducar os “imaturos transvia-
Quando de sua proposição inicial, o referido dos” era necessário introduzir o pressuposto da
projeto de lei ressoava a comoção gerada pelo periculosidade no ordenamento jurídico. Con-
estupro coletivo, seguido do assassinato da es- forme o proposto por Menezes Côrtes, a atri-
tudante Aída Curi em 1958. O caso repercutiu buição de periculosidade deixaria de ser indivi-
nacionalmente e o fato de um dos acusados dualizada. Ao invés de ser analisada e atribuída
pelo crime ser um adolescente de 17 anos, in- caso a caso, o pressuposto de periculosidade se-
tensificou os debates sobre a redução da maio- ria atribuído indiscriminadamente sobre todos
ridade penal no país. (SANTOS, 2013) os adolescentes maiores de 14 e menores de 18
Ao justificar sua proposta, reduzindo a anos acusados da prática de infração penal.
maioridade penal de 18 para 14 anos, Menezes Após transitar inicialmente sem cele-
Côrtes valeu-se de argumentos contraditórios. ridade pelas comissões da Câmara dos Depu-
Conforme o deputado, em oposição à “juven- tados, após o golpe de Estado, o Projeto de
tude transviada” (DOSSIÊ PL 1926/1960, p. 12), Lei n° 1926/1960 ganhou novo fôlego. Como
a grande maioria da juventude era ordeira e o pressuposto de periculosidade e a redução
educada. No entanto, em detrimento da gran- da idade penal corroboravam perfeitamente
de maioria, pautando-se em casos específicos, os interesses autoritários do regime, a Ditadu-
o parlamentar propôs que em relação aos “ima- ra Militar se apropriou da proposta de Mene-
turos” a presunção de inocência fosse substituí- zes Côrtes, transformando-a na Lei nº 5.258,
da pelo pressuposto de periculosidade: sancionada pelo general-presidente Artur
da Costa e Silva em abril de 1967. Em termos
Tratou, pois, o projeto de eleger um siste- objetivos, a edição da lei reduziu a imputabi-
ma de medidas de segurança, partindo do lidade penal de 18 para 14 anos de idade, am-
pressuposto da periculosidade do imatu- pliando ainda mais o controle, a tutela e even-
ro pela só prática de fato penalmente tual contenção da população infantojuvenil.
punível; e um critério de aplicação das Em que pese a Lei n° 5.258/1967 decor-
medidas que preencha as essenciais de (1) rer de um projeto de lei apresentado em 1960,
emendar o imaturo pela reeducação apro- portanto, anos antes do golpe de Estado, a re-
priada, (2) constituir elemento de intimi- dução da imputabilidade penal convergia dire-
dação, para que ele não repita a ação e tamente aos interesses do regime ditatorial. Por
para que os demais não venham a prati- meio deste dispositivo, ao mesmo tempo em que
cá-la e (3) afastar o agente do meio social, atendia setores da opinião pública que clama-
pelo menos por um tempo mínimo neces- vam pela punição dos “menores delinquentes”,
sário a sua presumida emenda. (DOSSIÊ o governo ampliava o alcance do estado policial,
PL 1926/1960, p. 13-14, grifo do autor) abarcando os antes considerados inimputáveis.
No entanto, apenas dez meses após ter
Desde o Código de Menores de 1927117, sido sancionada, em fevereiro de 1968, Costa e
a periculosidade atribuída ao “menor” fazia Silva solicitou que o parlamento restabelecesse
parte das condicionantes observadas pelo juiz a imputabilidade penal aos 18 anos de idade. Ao
para a aplicação de medidas sancionatórias. justificar o passo atrás, o governo informou aten-
No entanto, para Menezes Côrtes, ao estipular der pedido dos “Juízes de Menores dos Estados
a maioridade penal em 18 anos, o Código Penal da Guanabara, de São Paulo, do Rio de Janeiro
de 1940118 havia “afrouxado” a lei: e do Distrito Federal, assim como do Movimen-
to de Arregimentação Feminino, da Fundação
Assim, um menor em estado de sanida- do Bem-estar Social e de professores universi-
de mental de quase 18 anos de idade, que tários” (DOSSIÊ PL 1042/1968, p. 28). Contudo,
praticar um latrocínio ou um homicídio depreende-se que a motivação principal para a
nas piores circunstâncias, sujeita-se, ape- reforma da lei era de caráter “logístico”. Con-
nas, no máximo, a internação por prazo forme exposto na justificativa encaminhada à
117
Decreto nº 17.943-A de 12 de outubro de 1927.
118
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

141
Câmara dos Deputados, os juízes de menores crudescimento da lei penal para a população
haviam alertado o governo sobre a inexistên- infantojuvenil. Em 1978, o período de maior
cia de instituições para custodiar a quantidade repressão da Ditadura Militar havia ficado
de infantojuvenis passíveis de ser enquadrados para trás. Ao assumir a Presidência da Repú-
pelo pressuposto da periculosidade. blica em março de 1974, o general-presidente
Ernesto Geisel prometeu dar início a um len-
Justificaram os magistrados, com a expe- to e gradual processo de redemocratização do
riência que lhes proporcionaram o trato País. Ainda assim, o Projeto de Lei n° 35 de 17
diuturno dos problemas de menores que de outubro de 1978, que visava atenuar o rigor
o Brasil não conta com estabelecimentos da Lei de Segurança Nacional que vigorava no
bastantes para receber os que, em decor- Brasil desde 1967, em sua proposição originária
rência dessa lei, neles devam ser interna- voltou a postular pela redução da maioridade
dos. Ressaltaram, também, e nesse passo penal. De acordo com o Artigo 4º, no caso de
em consonância a Fundação Nacional do crimes contra a segurança nacional, os infra-
Bem Estar do Menor e o Movimento de tores seriam processados com base no Código
Arregimentação Feminino do Estado de Penal Militar. Dessa forma, a imputabilidade
São Paulo, que o internamento de me- penal dos menores de 18 que estava prevista no
nores deve constituir medida extrema. Código Penal não seria considerada.
(DOSSIÊ PL 1042/1968, p.13-14) Todavia, assim como havia ocorrido,
quando da redução da imputabilidade penal
No entanto, o recuo do governo não em 1967, setores da sociedade civil, como por
foi no sentido de revogar completamente a exemplo a Ordem dos Advogados do Brasil
lei. Pois, no entendimento dos militares, havia (OAB) se manifestaram contra a adoção de tal
aspectos positivos na lei, de modo que ela não medida. Durante a tramitação do projeto de
deveria ser totalmente revogada, mas apenas re- lei no Congresso Nacional, o senador Orestes
formada. Após célere tramitação, em maio de Quércia e o deputado federal Israel Dias No-
1968, Costa e Silva sancionou a Lei nº 5.439, que vaes, ambos do Movimento Democrático Na-
emendava a Lei nº 5.258/1967 restabelecendo a cional (MDB), partido que fazia oposição ao
maioridade penal em 18 anos de idade. Con- governo, apresentaram emendas ao projeto, no
tudo, o instituto da periculosidade enquanto sentido da manutenção da imputabilidade pe-
elemento para classificação dos infantojuvenis nal para os menores de 18 anos.
seguiu inalterado, possibilitando excessiva dis- As manifestações contrárias à redu-
cricionariedade pelos juízes de menores. ção da maioridade penal ocorriam publi-
Mesmo antes da abertura dos arqui- camente nas tribunas do parlamento. No
vos da Ditadura Militar, entre os (as) pesqui- entanto, conforme observado no Parecer nº
sadores (as) que investigaram a Política Na- 010/1a.SC/78, de forma sigilosa os militares
cional do Bem-Estar do Menor, era corrente submetiam ao Consultor Jurídico do Minis-
a tese que esta política pública se alinhava de tério do Exército, a prerrogativa de aprovar
forma indissociável à Doutrina de Segurança ou vetar as emendas parlamentares, confor-
Nacional. Sob viés assistencialista, o gover- me os interesses da corporação119. Como as
no intervia institucionalizando milhares de emendas parlamentares que explicitavam no
crianças e adolescentes considerados antis- texto da lei, a manutenção da imputabilida-
sociais. No entanto, em termos políticos, a de penal, mesmo no caso de infrações contra
institucionalização destes infantojuvenis vi- segurança nacional não foram aprovadas pelo
sava livrar a população da sensação de inse- Consultor Jurídico do Ministério do Exérci-
gurança, ao passo que prevenia que crianças to, é legítimo inferir que a legislação nacional
e adolescentes fossem cooptados pela sub- era tutelada pelo Ministério do Exército.
versão (RIZZINI & RIZZINI, 2004). Da mesma forma, também é possível
Com a abertura dos arquivos da Di- inferir, que quando da aprovação da redução
tadura Militar e o acesso a documentos que da imputabilidade penal em 1967, em detri-
permaneceram em sigilo por até três décadas, mento de preocupações com a suposta peri-
além da confirmação dos vínculos entre o PN- culosidade da “delinquência juvenil” comum,
BEM e a Doutrina de Segurança Nacional, o governo buscava mecanismos para atuar
também foi possível conhecer o modus operan- frente a periculosidade dos infantojuvenis
di e os interesses escusos que motivaram o re- considerados subversivos.

Aprovada em de 17 de dezembro de 1978, sob número 6.620, a lei definia os crimes contra a Segurança Nacional,
119

estabelecendo os ritos processuais.

142
O uso político da divíduo que representasse oposição ao regime.
periculosidade infantojuvenil No decorrer de sua vigência, utilizan-
do-se dos aparatos típicos do estado policial,
a Ditadura Militar amplificou o discurso da
Para a Seção Sueca da Anistia Interna- periculosidade, classificando como perigosos
cional os criminosos comuns e, sobretudo, os consi-
Caros senhores, é uma mãe que escreve derados criminosos políticos. Ao disseminar o
para vocês. A mãe de um homem ou, discurso da periculosidade o governo fomen-
melhor dizendo, um menino. Um me- tava o medo, transformando-o em dispositivo
nino de 17 anos que precisa muito de de manutenção do sistema de controle social.
sua ajuda. Meu filho, César de Queiroz Ao problematizar a questão da periculosidade,
Benjamin, desde os 15 anos de idade Foucault (2013), explica que a passividade social
foi um militante revolucionário con- está assentada sobre o discurso do medo. Do bi-
tra o atual governo do meu país, Bra- nômio medo versus periculosidade, amplia-se a
sil. Por causa de sua “periculosidade”, força da coerção estatal (FOUCAULT, 2013).
“menininho” foi mantido sozinho em Assim, foi valendo-se do discurso da
sua cela até hoje, quinze meses depois. periculosidade e da discricionariedade da lei
(FICO TE DEVENDO UMA CAR- para classificar como perigosos os menores de
TA SOBRE O BRASIL, 2019) idade acusados de infração penal, que a Dita-
dura Militar manteve César de Queiroz preso
No campo democrático é consenso que entre agosto de 1971 e setembro de 1976. Ocor-
o golpe militar de 1964 estabeleceu uma rup- re que, quando de sua prisão, César de Quei-
tura institucional, sobrestando o estado de di- roz ainda tinha 17 anos e as acusações de atos
reito. Tal situação possibilitou que os agentes subversivos que pesavam contra ele — assaltos a
do estado atuassem à revelia do ordenamen- mão armada –, datavam de 1970. Portanto, pe-
to jurídico em vigência. Assim, grande parte ríodo no qual ele era penalmente inimputável.
das intervenções policiais perpetradas contra De acordo com a lei em vigor, aquela
os considerados inimigos do regime ocorre- que havia sido reformada por Costa e Silva em
ram de forma clandestina, desconsiderando o 1968, César de Queiroz deveria ser internado
devido processo legal e os direitos humanos em estabelecimento adequado até que o juiz de
(RICHTER; FARIAS, 2019). Neste sentido, a menores declarasse a cessação de sua periculo-
prisão e o rito processual relativo ao caso de sidade. No entanto, a lei também prescrevia
César de Queiroz Benjamin, conhecido pela al- que, “Em caso de particular periculosidade, ou
cunha de “menininho”, é emblemático. quando não houver estabelecimento adequado,
Conforme assinalado, desde que o gol- a internação será feita em seção especial de es-
pe de estado foi consumado, a coalizão golpis- tabelecimento destinado a adultos” (BRASIL,
ta valeu-se de uma série de mecanismos para a 1968). Assim, devido a alta periculosidade que
manutenção do poder. Além da imposição bé- lhe fora atribuída, César de Queiroz não foi
lica, a governamentalidade do país demandou a encaminhado para uma unidade de internação
implementação de políticas públicas em diver- gerida pela Funabem, permanecendo sob cus-
sos setores, haja vista os índices de desenvolvi- tódia do Exército, isolado em prisão militar.
mento econômico registrados entre os anos de O processo criminal que sustentou a
1969 e 1974, período conhecido como o “milagre prisão de César entre 1971 e 1976, funciona
econômico”. Entretanto, além de implementar como verdadeira chave de leitura para a com-
políticas públicas, visando legitimar o regime preensão de como a Ditadura Militar editou
político, a Ditadura Militar estrategicamente e aplicou a lei penal para os menores de 18
criou e difundiu discursos, por meio dos quais anos. Apesar da grande repercussão alcança-
buscava apresentar a sua própria versão do país. da pelo caso, inclusive no âmbito internacio-
No sentido de sustentar um ideal de so- nal, da análise dos autos é possível observar
ciedade, a Ditadura Militar utilizou-se em larga que sob o verniz da legalidade, a Ditadura
escala dos discursos que lhe eram oportunos, Militar interpretava a lei conforme lhe era
produzindo suas próprias verdades no campo oportuno. Para que César de Queiroz fosse
econômico, educacional e político, entre outros. mantido isolado em uma unidade militar du-
Nesta quadra, ressalta-se a vasta utilização do rante três anos e depois permanecesse mais
discurso da periculosidade, convenientemente dois anos em uma prisão civil, tanto o concei-
atribuído aos comunistas, aos subversivos, aos to de imputabilidade penal quanto o de peri-
terroristas e a qualquer segmento social ou in- culosidade precisaram ser ressignificados.

143
Devido sua atuação junto a Organiza- César de Queiroz ter sido posto em liberdade,
ção MR-8120, César de Queiroz foi acusado de a decisão do STM apenas transferiu o processo
assalto, roubo e propaganda subversiva, sen- criminal dos tribunais militares para o Juizado
do enquadrado respectivamente nos artigos 26 de Menores do Estado da Guanabara.
e 45 da Lei de Segurança Nacional. Assim, ao Findada a discussão sobre a corte com-
invés de ser processado nos termos da Lei nº petente para julgar o caso, ainda pesava sobre
5.258/1967, que tratava das medidas aplicáveis César de Queiroz a sua condição de alta pe-
aos menores de 18 anos, César de Queiroz foi riculosidade. Ocorre que a Lei nº 5.439/1968,
processado de acordo com o Código Militar, no que tratava das medidas aplicáveis aos menores
qual a imputabilidade penal reduzia-se a 16 anos de 18 anos, não especificava o conceito de pe-
de idade. Ademais, além do entendimento que riculosidade, deixando ao arbítrio do juiz de
César de Queiroz deveria ser enquadrado na Lei menores o encargo de atribuir o grau de peri-
de Segurança Nacional, foi apensado ao proces- culosidade do indivíduo, conforme as circuns-
so um laudo psiquiátrico atestando que a idade tâncias e a infração penal praticada. Ou seja,
cronológica do acusado não correspondia à sua na ausência de definições claras e objetivas, o
idade mental. Ou seja, ainda que César de Quei- magistrado dispunha de ampla margem de dis-
roz não tivesse 18 anos de idade, por conta do cricionariedade para emitir seus veredictos.
seu nível cultural e desenvolvimento cognitivo, Apesar da Lei nº 5.258/1967 não definir
foi atestada sua “maioridade mental”: o conceito de periculosidade, a partir do contex-
to social na qual a lei foi editada, é possível de-
Explicando a finalidade de nossa entre- preender que o legislador correlacionou pericu-
vista, passo logo a seguir a discorrer sobre losidade, sobretudo, à capacidade do indivíduo
os fatos relacionados com a sua identi- praticar violência física contra o outro. Todavia,
ficação, está perfeitamente orientado em relação a César de Queiroz, que era acusa-
e halo psiquicamente. Procura sempre do de cometer roubos a mão armada, observa-se
manter a conversa em alto nível. Fala que a periculosidade a ele atribuída não consis-
sobre sua ideologia política e discorre so- tia na prática de atos violentos. Diferente disso,
bre atividades da Organização conhecida ele era considerado perigoso principalmente em
como MR-8, mostrando-se perfeitamente razão de seus posicionamentos políticos:
identificado com suas ideias e princípios.
O juízo e o raciocínio acima do ade- Recentemente, o Juiz de Menores da
quado ao seu nível cultural o raciocínio GUANABARA, DR ALYRIO CAVAL-
muito acima do adequado ao seu nível LIERI, realizou entrevista com o nomi-
cultural e idade. (BR DFANBSB V8. nado, para julgar sobre a possibilidade
MIC, GNC.AAA.72046784, p. 3) de conceder a custódia do nominado a
seus genitores. Entretanto, o alto grau
Levado a presença de um Tribunal Mi- de doutrinação revelado pelo mesmo
litar, em setembro de 1973, César de Queiroz foi que realizou um verdadeiro comício
condenado a 13 anos de prisão. No entanto, em durante a citada entrevista, demoveu
razão das condições sociais de sua família, cujo aquele Juiz quanto a concessão da custó-
pai era coronel do Exército e a mãe servidora do dia pretendida, determinando o retorno
Ministério da Fazenda, o processo seguiu com do nominado à prisão em que se encon-
recurso ao Superior Tribunal Militar (STM). trava. (BR DFANBSB V8.MIC, GNC.
Na mais alta corte militar, a defesa de César de AAA.74079471, p. 19, grifo do autor)
Queiroz prosseguiu na tese da imputabilidade
penal na ocasião das infrações penais. Neste mo- Frente a insustentabilidade das ma-
mento, a família de César de Queiroz já havia nobras adotadas para desconsiderar que Cé-
denunciado as violações de direitos, as quais ele sar de Queiroz era penalmente inimputável,
estava sendo submetido, à Anistia Internacio- restou ao estado ditatorial, valer-se de extre-
nal, fazendo com que o caso ganhasse repercus- ma subjetividade, para qualificar César de
são internacional, principalmente na Europa. Queiroz como terrorista da mais alta pericu-
Em junho de 1974, por 12 votos a 1, o losidade, em virtude do seu alto grau de dou-
STM reconheceu que, quando da prática das trinação política. Assim, baseando-se na Lei
infrações a ele atribuídas, César de Queiroz era nº 5.258/1967, o magistrado decidiu pela ma-
penalmente inimputável. Todavia, ao invés de nutenção da prisão. Pois, apesar de naquele

A sigla MR-8 fazia alusão ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Organização política que participou
120

da luta armada contra a Ditadura Militar brasileira.

144
momento César de Queiroz já ter alcançado a Referências
maioridade, no entendimento do magistrado
ainda não havia ocorrido a cessação da peri- BRESSER-PEREIRA, L. C. A construção po-
culosidade. Após permanecer preso por mais lítica do Brasil: sociedade, economia e estado
dois anos, possivelmente em razão dos apelos desde a Independência. 1ª ed. São Paulo, Edi-
internacionais, principalmente da Seção Sue- tora 34, 2014.
ca da Anistia Internacional, em setembro de
1976 César de Queiroz Benjamim foi liberta- “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil”.
do e partiu para o exílio na Suécia. Direção: Carol Benjamin. Daza Filmes Brasil,
2019. Internet (88 mim).
Considerações finais
FICO, C. Ditadura Militar: mais do que algozes
No final da década de 1970, quando a e vítimas. A perspectiva de Carlos Fico. [En-
Ditadura Militar começava a ensaiar sua re- trevista realizada em 24 de julho, 2013]. Entre-
tirada do poder, por meio da Lei nº 6.667 de vistadores: Silvia Maria Fávero Arend, Rafael
10 de outubro de 1979, que ficou conhecida Rosa Hagemeyer e Reinaldo Lindolfo Lohn.
como o Código de Menores de 1979, o Esta- Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.
do brasileiro positivou em seu ordenamento 5, n.10, jul./dez., p. 464-483, 2013.
jurídico a Doutrina da Situação Irregular do
Menor. Por meio deste dispositivo, no pla- FOUCAULT, M. Segurança, território, popu-
no legal, a Ditadura Militar consolidava seu lação: curso dado no Collège de France (1977-
ideário para as infâncias e juventudes. Qual 1978). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo:
seja, ampliar seu escopo de intervenção, Martins Fontes, 2008.
pondo em situação irregular, portanto, sob
tutela do governo, todas as crianças e adoles- FOUCAULT, M. Microfísica do poder. São
centes considerados em situação de abando- Paulo: Graal, 2013.
no material ou moral.
Apesar de todas as intervenções as- IBGE. Séries Econômicas, Demográficas e So-
sistenciais, políticas e legais levadas a cabo ciais de 1550 a 1985. (Séries estatísticas retros-
pelos militares no período em que governa- pectivas). Rio de Janeiro: IBGE, 1987. v. 3.
ram o país, a quantidade de crianças e ado-
lescentes que se encontravam institucionali- MIRANDA, H. S. A FEBEM e a assistência
zadas no ano de 1985, indica que, longe de social em Pernambuco no contexto da Dita-
ter solucionado o dito “problema do menor”, dura. Revista Angelus Novos — USP — Ano
a Ditadura Militar havia somente transferi- VI, n. 10, p. 159-176, 2015. Disponível em:
do a questão do campo social para o policial. <http://www.revistas.usp.br/ran/article/do-
Ao recrudescer a lei penal para infância e a wnload/124479/120966/235257+&cd=1&hl=p-
juventude, atribuindo periculosidade indis- t-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: abr. 2021.
tintamente aos considerados inimigos polí-
ticos ou aos infratores comuns, a Ditadura SANTOS, L. N. S. A invenção da juventude
Militar contribuiu para a construção de uma transviada no Brasil (1950-1970). Tese (Douto-
nova categoria social, a do menor infrator rado em História), Pontifícia Universidade Ca-
notoriamente perigoso. tólica de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível
em: <https://sapientia.pucsp.br/handle/han-
dle/12810#preview-link0>. Acesso em: mar. 2021.

RICHTER, D; FARIAS, T. S. Ditadura Militar


no Brasil: dos instrumentos jurídicos ditatoriais
para a democracia outorgada. Passagens. Revis-
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ra Jurídica. Rio de Janeiro: v. 11, n 3, p. 381-405,
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tps://www.historia.uff.br/revistapassagens/arti-
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RIZZINI, I; RIZZINI, I. A institucionalização de


crianças no Brasil: percurso histórico e desafios
do presente. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2004.

145
VERONESE, J. R. P. Os direitos da criança e Legislação
do adolescente. São Paulo: LTr, 1999.
decreto nº 17.943-A de 12 de outubro de 1927.

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ARQUIVO NACIONAL. Fundo Conselho de Projeto de Lei n° 1926 de 07 de junho de 1960.


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Nacional. BR DFANBSB N8.0.PSN, EST.365. Lei nº 4.513, de 1º de dezembro de 1964.

ARQUIVO NACIONAL. Fundo Serviço Na- Decreto nº 60.417 de março de 1967.


cional de Informações: Dossiê Atividades de
César Queiroz Benjamim. BR DFANBSB V8. Lei nº 5.258 de 10 de abril de 1967.
MIC, GNC.AAA.72046784.
Lei nº 5.439, de 22 de maio de 1968.
ARQUIVO NACIONAL. Fundo Serviço Na-
cional de Informações: Dossiê Atividades de Projeto de Lei n° 35 de 17 de outubro de 1978.
César Queiroz Benjamim. BR DFANBSB V8.
MIC, GNC.AAA.74079471. Lei nº 6.620, de 17 de dezembro de 1978.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Dossiê digitali- Decreto nº 5.584, de 18 de novembro de 2005.


zado referente ao Projeto de Lei n° 1926 de 1960.
Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Dossiê digi-
talizado referente ao Projeto de Lei n° 1042 de Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011.
14 de fevereiro de 1960.

146
Simpósio Temático 4

Políticas Sociais
para infâncias e juventudes
na América Latina
(séculos XX e XXI)

Fonte: Arquivo Memorial da Irmandade do Divino Espírito Santo — IDES

147
DOCÊNCIA NAS CRECHES
DO BRASIL: REFLEXÕES
SOBRE FORMAÇÃO INICIAL

Carla Santos Pinheiro121 Resumo: A Lei Federal No 9.394/96, Lei


de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a
Débora da Cruz Santos122 LDBEN/96, incorporou a Educação Infantil ao
sistema de ensino brasileiro definindo-a como
primeira etapa da Educação Básica cuja incum-
bência primaz é o desenvolvimento íntegro e
integral de crianças de 0 (zero) a 6 (seis) anos
de idade em creche e pré-escolas e cuja faixa etá-
ria passou a ser critério de ingresso. Esta medi-
da condicionou a construção da identidade da
Educação Infantil a partir de parâmetros edu-
cacionais de forma a superar o cunho higienista
e assistencialista que compunha a representação
dos espaços de atendimentos da primeira in-
fância — imagem construído, sobretudo, devido
aos processos sócio-históricos que demarcam a
criação das instituições em território nacional
de atendimento a bebês, crianças bem pequenas
e crianças pequenas. Dentre os paradigmas pre-
sentes na LDBEN/96 que evidenciam a diferen-
ça entre a Educação Infantil e as outras etapas
da Educação Básica há a equivalência de forma-
ção mínima para o exercício da docência — neste
caso, com o Ensino Fundamental, a fase de ensi-
no subsequente. Apesar de o Parecer CNE/CEB
no 03/03 recomendar que após 10 (dez) anos de
promulgação da LDBEN/96 o Estado garantisse
que todos/as professores/as da Educação Bási-
ca tivessem formação superior, tal prerrogativa
não é cumprida na contemporaneidade na Edu-
121
Mestranda em História pela Universidade Federal da Bahia — UFBA.
122
Pós-graduanda em Educação Infantil pela Faculdade Cruzeiro do Sul.

148
cação Infantil. O tratamento desigual entre as Introdução
etapas da Educação Básica brasileira não se resu-
me somente na formação inicial docente, mas, A constituição da Educação Infantil
em âmbito estrutural, econômico entre outras pela incorporação de creches e pré-escolas ao
por meio de condição inferior quando se trata sistema de ensino legitimada pela Lei Federal no
de salário, vínculo empregatícios e outras di- 9.394/96 transcendeu a relação de sua natureza
mensões que integram a qualidade educacional ao cunho assistencialista e higienista — aspec-
— contexto que se agrava quando as lentes são tos que remontam aos processos sócio-históri-
voltadas para a creche. Com base no exposto, cos de sua criação — e motivou a sociedade a
este artigo, de natureza qualitativa que tem por agir em prol de um novo parâmetro cuja função
arcabouço teórico e metodológico dispositivos desses espaços de atendimentos se relacionasse
legais e produções acadêmicas (KISHIMOTO, com a vertente educativa. Neste percurso, cabe
1999; ABUCHAIM 2018) que abarcam sobre a à creche o atendimento educacional de crian-
interface entre formação inicial da docente tem ças de 0 (zero) a 3 (três) anos e 11 (onze) meses
por objetivo analisar dados estatísticos educa- e a pré-escola o de crianças de 4 (quatro) anos
cionais acerca do número de docentes de creche de idade a 5 (cinco) anos de 11 (onze) meses de
por nível de formação tanto do Brasil de forma idade123 — cuja finalidade é “o desenvolvimento
geral quanto à região geográfica (Nordeste), à integral da criança até seis anos de idade, em
unidade da federação (Bahia) e ao município seus aspectos físico, psicológico, intelectual e
(Lauro de Freitas). O Censo Escolar da Educa- social, complementando a ação da família e da
ção Básica de 2017 é a fonte principal dos dados comunidade”. (BRASIL, 1996)
analisados, todavia, o percurso discursivo ave- Apesar da integração da Educação
rigua informações de outros anos como forma Infantil ao sistema de ensino brasileiro há
de comprovar que o poder público não tem por quase 25 (vinte e cinco) anos, existem lacunas
prioridade orquestrar políticas públicas empe- que destoam a realidade da primeira etapa da
nhadas em superar a disparidade entre as etapas Educação Básica (EB) se comparada ao Ensino
educacionais, ao contrário, impõe à primeira Fundamental e Ensino Médio (segunda e ter-
etapa da Educação Básica condição de inferio- ceira etapas da EB), tais como estrutura físi-
ridade — das quais focamos nesta análise na ga- ca, universalização do acesso e, dentre eles, a
rantia de formação mínima exigida por lei às formação acadêmica das profissionais respon-
professoras da creche. Consideramos com isto sáveis pelo ser e fazer pedagógico, a saber: as
que as políticas públicas educacionais confe- professoras, a profissional docente.
rem à Educação Infantil, sobretudo às creches, Como forma de alertar sobre as defi-
um lugar periférico Apontamos que o respeito ciências que impedem o cumprimento da fun-
e equiparação das normativas entre as etapas ção primaz da Educação Básica, em especial,
da Educação Básica é direcionamento para va- no que tange à formação para a cidadania, este
lidar a cidadania dos atores e atrizes educacio- trabalho de natureza qualitativa e de tipo bi-
nais da Educação Infantil de forma a atender bliográfico e documental tem por finalidade
as fundamentações contemporâneas sobre o central analisar dados estatísticos educacionais
reconhecimento das crianças como sujeito só- acerca do número de docentes de creche em in-
cio-histórico e de direitos — aspecto que dia- terface com sua formação inicial.
loga com o objetivo principal da Educação na- A fim de dar conta do objetivo expos-
cional preconizado pela LDBEN/96. to, essa produção reflete sobre as informações
do Censo Escolar124 2017 (na dimensão fede-
Palavras-chave: Formação Docente. ral, regional e municipal) acerca do nível aca-
Dados Estatísticos. Creche. dêmico das professoras125 de bebês e crianças

123
Houve modificação neste dispositivo legal acerca da redução da idade de ingresso da criança na última fase Edu-
cação Infantil. Entretanto, por o egresso da criança na pré-escola para inserção no Ensino Fundamental — segunda
etapa da Educação Básica — ocorre após a criança ter 6 (anos) de idade, por decisão político-ideológica este será o
marcador temporal quando se aborda sobre a faixa etária final das crianças atendidas na Educação Infantil.
124
Referente aos dados do ensino superior, o INEP (2018) adverte que somente um curso de graduação é contabili-
zado mesmo que a docente tenha mais de um curso. Porém, não há informação que testifique que obrigatoriamente
o curso precisa ser o de Pedagogia.
125
Referência no sexo feminino por o Censo Escolar da Educação Básica, em processo histórico, demonstrar que
mais de 90% das profissionais em Educação Infantil do Brasil ser mulheres.

149
bem pequenas126 em diálogo com diretrizes e dos quanto ao tema deixando, desta forma,
conceitos presentes em regulamentações que brechas para fundamentações equivocadas
discorrem sobre o lugar educativo da Educa- quanto o nível de escolaridade de aqueles/as
ção Infantil brasileira — de forma mais abran- que podem atuar como professores/as, princi-
gente à realidade da creche. palmente de Educação Infantil.
No confronto de dados sobre os atra- Sobre as divergências nas normativas
vessamentos entre formação acadêmica e do- do campo da Educação, assim como anunciado
cência da Educação Infantil, analisaremos na Resolução CNE/CEB no 01/06, elucidamos
ainda os dados do Censo Escolar da Educação que a LDBEN/96 estabelece por pré-requisito
Básica de 2005 devido ser marco temporal para inicial a habilitação em curso de nível médio
que profissionais tivessem nível superior como em modalidade Normal para atuar como pro-
critério mínimo de exercício do magistério. fissional da Educação Básica (que abarca a Edu-
cação Infantil). Entretanto, existia um prazo es-
Docência em creche: alguns tipulado de 10 (dez) anos para que, em sistema
de adequação, o nível superior fosse o exigido
elementos regulamentadores como elementar para o exercício da docência.
Ou seja, prazo que se encerraria em 2006, há 15
Na proposição de articulação de con- (quinze) anos atrás — pressuposto referendado
cepções que estabelecem o exercício do cargo pelo Parecer CNE/CEB no 03/03 e que, por sua
de professor/a evidenciamos que a definição vez, não é cumprido quando as lentes de análise
de docência adotada neste trabalho tem por se voltam para a Educação Infantil.
amparo a Resolução CNE/CEB no 01/06, que Conforme Tizuko Morchida Kishi-
Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para o moto (1999), a LDBEN/96 ainda se encarrega
Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura. de propor a criação do Curso Normal Supe-
Assim, entendemos por docência a rior nos Institutos Superiores de Educação
(IES), para dar conta da formação do docen-
ação educativa e processo pedagógico te de Educação Infantil e dos Anos Iniciais
metódico e intencional, construído em do Ensino Fundamental. A autora informa
relações sociais, étnico-raciais e produ- que tendo o Conselho Nacional de Educação
tivas, as quais influenciam conceitos, (CNE) por entidade responsável por esta ação
princípios e objetivos da Pedagogia, houve a regulamentação do supracitado Cur-
desenvolvendo-se na articulação entre so em agosto de 1999 enquanto a homologa-
conhecimentos científicos e culturais, ção aconteceu no mês seguinte.
valores éticos e estéticos inerentes a pro- Na perspectiva de informar sobre a
cessos de aprendizagem, de socialização e qualificação dos/as profissionais em Educação
de construção do conhecimento, no âm- para realização de práticas pedagógicas nas
bito do diálogo entre diferentes visões de duas primeiras etapas da EB em dinâmica que
mundo. (BRASIL, 2006, p. 1) perpassa pelas incumbências das IES, no ano
de 1999, além do Parecer CNE/CP Nº 115 de
Apesar da Resolução CNE/CEB no 10 de agosto e da Resolução CNE/CP n.º 1 de
01/06 ser o paradigma adotado na discussão so- 30 de setembro, foram elaborados outros docu-
bre a categoria conceitual “docência”, reconhe- mentos pelo CNE, tais como: Resolução CNE/
cemos a necessidade de aprimoramento desta CEB nº 02, de 19 de abril — que Institui Dire-
concepção tendo em vista que ter os elencados trizes Curriculares Nacionais para a Formação de
princípios da Pedagogia como primordiais Docentes da Educação Infantil e dos anos iniciais
para o exercício do magistério não consiste em do Ensino Fundamental, em nível médio, na mo-
afirmar que o/a profissional em Educação é pe- dalidade Normal; o Parecer CNE/CP nº 53 de
dagogo (graduado em Pedagogia). Alertamos 20 de janeiro — as Diretrizes Gerais para os Insti-
que a concepção generalista na articulação en- tutos Superiores de Educação; entre outros.
tre docência e Pedagogia presente na supraci- Sobre a formação profissional das do-
tada Resolução ao não definir que o/a docente, centes da Educação Infantil e do Ensino Funda-
neste caso, deveria também ser o/a concluinte mental, o Parecer CNE/CP nº 53/99 destacava
de Pedagogia não incorre em redundância, ao que as preocupações fundamentais dos/as legis-
contrário, dá margem para olhares equivoca- ladores/as deveriam residir em dois problemas

De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017), compreende-se por bebês — de 0 (zero) a 1
126

(um) ano e 6 (seis) meses e por de crianças bem pequenas — de 1 (um) ano e 7 (sete) meses a 3 (três) anos e 11 (onze)
meses — faixa etária dos sujeitos sócio-históricos atendidos em creche.

150
fundamentais: primeiro — a elevação da qualifi- A indiferença do Estado quanto a
cação profissional dos/as professores e; segundo promoção de políticas públicas na prática co-
— a relevância entre dissociação da teoria e da tidiana que integrem a Educação Infantil ao
prática. Assim, o documento expõe que sistema de ensino é aqui entendido como ne-
gligência quanto a garantia de direitos funda-
Tradicionalmente formados em cursos de mentais da primeira infância127 — elemento que
nível médio, coloca-se hoje a necessidade se traduz em prejuízos à qualidade das práti-
de oferecer-lhes uma formação de nível cas pedagógicas tendo em vista que “Por não
superior. A proposta de Curso Normal adquirir conhecimentos sobre como trabalhar
Superior dentro do Instituto Superior de com crianças dessa faixa etária, os professores
Educação tem exatamente o objetivo de em formação acabam por adotar modelos “es-
prover esta formação profissional, prepa- colarizantes”, que tendem a não respeitar os
rando docentes para ministrar um ensino tempos e as demandas das crianças pequenas.”
de qualidade, dentro da nova visão de seu (ABUCHAIM, 2018, p. 68-69)
papel na sala de aula, na escola e na socie- O descumprimento das normativas
dade. (BRASIL, 1999, p. 2) quanto ao nível acadêmico para docência em
creche cujo atravessamento reflete nos resul-
A destacada qualidade educacional es- tados das práticas pedagógicas tem implica-
boçada no Parecer CNE/CP nº 53/99 é refleti- ções na garantia dos direitos fundamentais
da por Kishimoto (1999) no debate ancorado das crianças atendidas nestes espaços educa-
no pressuposto de que as impressões que com- cionais tendo em vista que “Pensar em polí-
põem as determinações sobre a educação brasi- tica de formação profissional para a educa-
leira nem sempre se traduzem nas políticas em- ção infantil requer antes de tudo questionar
penhadas neste campo. Assim, quanto à análise concepções sobre criança e educação infan-
da formação e as condições de trabalho das do- til.” (KISHIMOTO, 1999, p. 74) Entretanto, a
centes de creche no Brasil, alicerçada nos pen- partir de conhecimento empírico, de estudos
samentos de Gatti & Barreto (2009), Beatriz de acadêmicos e de dados estatísticos notamos
Oliveira Abuchaim (2018) de explana que: que o tratamento desigual entre as etapas da
Educação Básica brasileira não se resume so-
comparativamente aos professores de mente na formação inicial docente, mas, em
outros níveis, os docentes da educação âmbito estrutural, econômico entre outras
infantil, além de possuírem menor es- por meio de condição inferior quando se tra-
colaridade, são os profissionais mais jo- ta de salário, vínculo empregatícios e outras
vens, em número maior de não brancos dimensões que integram a qualidade educa-
e recebem os menores salários, apesar de cional — contexto que novamente se agrava
realizarem jornadas de trabalho mais ex- quando as lentes são voltadas para a creche.
tensas. (GATTI & BARRETO, 2009 apud Ciente de que a integração da Educação
ABUCHAIM 2018, p. 61) Infantil na LDBEN/96 é medida condicionou a
construção da identidade da creches e pré-es-
Na advertência de que não é recente colas a partir de parâmetros educacionais que
o tratamento inferior dado à educação para a prestigiassem práticas didáticas qualificadas e
primeira infância no sistema de ensino brasi- de forma a superar o cunho higienista e assis-
leiro e que, por consequência, inclui a profis- tencialista que compunha a representação dos
sionalização docente dentre os quesitos a ser espaços de atendimentos da primeira infância,
avaliados, Kishimoto (1999) expõe que: discorreremos sobre a formação docente em
creche em viés que alerta sobre como este tema
O tradicional abandono e descaso, fruto vem sendo historicamente e estruturalmente
de uma política de exclusão desses profis- negligenciado pelo estado brasileiro com im-
sionais no campo da educação, reflete-se plicações sobre a garantia de direitos tanto das
no contingente de leigos que não se pode profissionais da Educação Infantil quanto das
precisar pela falta de estatísticas. Mesmo crianças por elas atendidas.
nos grandes centros urbanos, a qualifica-
ção requerida é, ainda, de ensino funda-
mental. (KISHIMOTO, 1999, p. 63)

127
Crianças de 0 (zero) a 6 (seis) anos de idade conforme redação do Marco Legal da Primeira Infância — a Lei Fede-
ral nº 13.257, de 8 de março de 2016. (BRASIL, 2016)

151
Nível de escolaridade das os 29,06 (vinte e nove inteiros e seis centésimos
docentes de creche: arranjos por cento) de profissionais docentes em creche
naquele período tinham a graduação em Peda-
que legitimam o retrocesso gogia como o curso de formação acadêmica.
Ademais, apesar de o ProInfantil ter
A discrepância presente no discurso como proposta o fornecimento de subsídios
entre teoria, aqui representado pela legislação, e para a formação da docente em Educação Infan-
prática nas creches revela que a docência nestas til com vista à capacitação de “professor capaz
instituições de ensino, geralmente, é realizada de dar continuidade a seu próprio processo de
por pessoas com menor capacitação acadêmica aprendizagem, um cidadão responsável e parti-
cujas atribuições são exercidas por funcionárias cipativo, integrado ao projeto da sociedade em
consideradas inaptas a fazer parte do quadro de que vive e, ao mesmo tempo, crítico e transfor-
profissionais do magistério das outras etapas de mador”, (BRASIL, 2005, p.26) esta proposta for-
ensino. Com efeito, um ano antes de expirar o mativa não equivalia a formação acadêmica em
prazo determinado pela LDBEN/96, em 2005, Pedagogia. Ao contrário, buscava reparar o fos-
referente à adequação do nível acadêmico como so entre a regulamentação e a realidade vigente
o mínimo para docência em ambientes educa- em decorrência do número expressivo de pro-
tivos do território nacional, teve o início como fissionais nas turmas de creche e pré-escola da
plano piloto em quatro estados brasileiros do O zona urbana e rural do Brasil que sequer tinha o
Programa de Formação Inicial para Professores em Ensino Médio — antigo Segundo Grau.
Exercício na Educação Infantil (ProInfantil). Na apresentação de dados sobre as
Integrante do rol de políticas públicas profissionais docentes em creche em exercício
que pretendem a qualificação da docente de da função no Brasil de acordo com o Censo Es-
creche e pré-escola, da rede pública e de insti- colar da Educação Básica de 2005 que nem o
tuições privadas sem fins lucrativo, o ProInfan- Ensino Médio havia concluído, temos um to-
til visou o cumprimento da legislação em vigor tal de 5.088 respondentes — que corresponde
à época, dentre eles: o artigo 62 da LDBEN; dos a 5,88% (cinco inteiros e oitenta e oito centé-
artigos 1º e 2º da Resolução CNE/CEB 01/2003 simos por cento). Destas informantes, 4,27%
e; da quinta meta, letra b, do Plano Nacional (quatro inteiros e vinte e sete centésimos por
de Educação (PNE/2001). (BRASIL, 2005) Tra- cento) tinham apenas o Ensino Fundamen-
tava-se de um curso semipresencial que pleitea- tal — completo. E, ampliando a gravidade do
va a formação tanto pessoal quanto profissio- problema exposto, havia um indicativo de 1,61
nal da discente de forma que os fundamentos (um inteiro e cento e sessenta e um centésimo
de sua proposta pedagógica eram ancorados de inteiro) cujo Fundamental incompleto era o
na apropriação das seguintes concepções: Edu- nível de escolaridade — correspondente a 5.088
cação, de Aprendizagem, de Instituição de (cinco mil e oitenta e oito) professoras.
Educação Infantil, de Conhecimento Escolar, Evidenciados os dados sobre o nível de
de Prática Pedagógica, de Interdisciplinarida- escolaridade e acadêmico das docentes de cre-
de e de Identidade Profissional. Decerto, que che do Brasil de acordo com o Censo Escolar
a alternativa buscava corrigir o alto índice de da Educação Básica de 2005, declaramos que
profissionais com o nível acadêmico inferior os engendramentos do Estado como forma de
ao estabelecido pela legislação vigente. dissimular o lugar periférico que a Educação
Como forma de articular a emergên- Infantil, em especial a creche, ocupa no siste-
cia de implantação do ProInfantil às vésperas ma de ensino direciona à argumentação de que
do final da previsão para habilitação mínima não há interesse de superação das mazelas refe-
em Pedagogia para o exercício da docência, em rentes a esta etapa educacional.
análise aos dados do Censo Escolar de 2005, em A realização do ProInfantil foi estendida
especial, da intitulada como Número de Funções com a vinculação de parceria com universidades
Docentes em Creche, por Localização e Nível de For- federais em 2008 de forma que as instituições de
mação, segundo a Região Geográfica e a Unidade ensino superior “passaram a fazer o acompanha-
da Federação, cujo última atualização de acordo mento e a formação de formadores do Progra-
com a planilha do INEP foi em 30 de maio de ma.” (ABUCHAIM, 2018, p.73) Referente aos da-
2005, conferimos que das 86.332 (oitenta e seis dos quantitativos nos anos subsequentes, a autora
mil, trezentos e trinta e duas) docente de cre- evidencia que “Até 2009, o curso registrou a parti-
che em território brasileiro, 70,94% (setenta in- cipação de 16.646 cursistas. Com o envolvimento
teiros e noventa e quatro centésimos por cento) das universidades federais foi possível ampliar a
não tinha nível Superior Completo. Vale lem- oferta: em 2011 já havia 23.200 professores habili-
brar que, não há indício na fonte analisada se tados pelo programa.” (Ibidem, p.73)

152
Apesar da continuidade ao ProInfan- Nível de escolaridade das
til, entendemos que tal ação é pontual — de docentes de creche no Brasil em
exceção — diante da gama de retrocessos que a 2017: retrato de uma identidade
Educação Infantil enfrenta enquanto na socie- educacional fragilizada
dade brasileira na busca de se consolidar como
dimensão educativa potente. Amparado nas
análises dispostas além de validar o pensamen- Independente da omissão do Estado
to de que atuações do Estado voltadas para a diante da garantia de direitos educacionais
creche são de cunho emergenciais (referente a da primeira infância que se concretiza pela
ter a realização condicionada a evento crítico carência de políticas públicas que garantam
que é obedecido somente em última instân- a formação mínima de nível superior em Pe-
cia) defendemos que essas tem a parcialidade dagogia às docentes de creche, parafraseando
como elemento agregador, pois, quando há Abuchaim (2018) defendemos que “É funda-
inclinação para se cumprir ao disposto nas re- mental destacar que todas as instituições de
gulamentações sobre a qualidade da Educação educação infantil, de qualquer dependência
Infantil as ações geralmente são revestidas pela administrativa, estão inseridas no respectivo
pretensão de amenizar, e, não necessariamente sistema de ensino e devem contar com docen-
de eximir as mazelas expostas — assim como tes com formação requerida por lei.” (ABU-
aconteceu com a execução do ProInfantil. CHAIM, 2018, p.21) Assim, fundamentadas
Na expectativa de ampliar o debate so- neste entendimento, analisamos abaixo dados
bre formação inicial da docente de creche no de docentes da creche por nível de formação
Brasil e a política do retrocesso empregada pelo tanto do Brasil de forma geral quanto à região
Estado no tratamento sobre o tema, apresenta- geográfica (Nordeste), à unidade da federação
mos a seguir dados sobre o nível de escolaridade e (Bahia) e ao município (Lauro de Freitas128) na
formação acadêmica de docente de bebês e crian- composição de retrato sobre o perfil da esco-
ças bem pequenas no território nacional tendo o laridade de tais profissionais na contempora-
Censo Escolar da Educação Básica do ano de 2017 neidade conforme disposto na tabela a seguir.
como fonte das informações estatísticas.

Tabela 1 | Percentual de funções docentes na creche por nível


de escolaridade, segundo a região geográfica,
a unidade da federação e o município — 2017

Ensino Ensino Ensino


Fundamental Médio Superior

Brasil 0,57% 33,04% 66,39%

Nordeste 0,77% 49,91% 49,32%

Bahia 1,13% 51,62% 47,25%

Lauro de Freitas 1,43% 24,29% 74,29%


Fonte: Adaptado Censo Escolar 2017 (INEP, 2018)

128
Município de moradia e de atuação profissional das autoras do artigo.

153
Salientamos que o tratamento dos do a que se atrela, é interessante destacar que
dados é apresentado de forma percentual de- ao passo que há a interiorização do território
vido os dados totais de cada ente federado, e (da unidade federativa ao município) este va-
consequentemente dos níveis escolares cor- lor aumenta. Em contrapartida, o município
relatos não terem o mesmo valor real — ele- de Lauro de Freitas é a categoria da federação
mento que resulta em divergências quando que apresenta o maior percentual de profis-
se propõe a realizar confronto de dados. Mas, sionais de creche com nível superior comple-
quando se fizer necessário para fortalecer a to — fator que pode analisado em interface
proposição defendida, em especial, quando com a entidade de administração devido o in-
ao expoente numérico revelar ser significa- gresso como docente de Educação Infantil da
tivo de observação pela consideração de sua rede pública municipal ter a Pedagogia como
deficiência concernente à qualificação exigi- critério determinante.
da, seu valor real fará parte da averiguação. Os entes federativos regional (Nor-
A análise dos dados numéricos da Ta- deste) e estadual (Bahia) tem números per-
bela 1 demonstra que, apesar de regulamenta- centuais atinentes à escolaridade das docen-
ções quanto o nível de escolaridade mínima tes de creche não muito discrepantes. Estes,
exigida para o exercício da função do magisté- sobretudo o Nordeste, tem o número per-
rio em creche, há ainda em cada instância fe- centual de professoras “sem o nível superior”
derativa observada a presença de profissionais e “com o nível superior” quase equivalentes.
que sequer completaram o Ensino Médio. Des- Os dados numéricos de professoras de bebês
ta forma, a adequação quanto a este assunto e crianças bem pequenas que tem apenas o
proposta na LDBEN/96 e que cujo ProInfantil Ensino Fundamental e o Ensino Médio no
se configurou como intervenção do Estado não Nordeste é de 26.779 (vinte e seis mil, sete-
resultou na efetivação de nível superior como centos e setenta e sete) docentes.
requisito para exercício do magistério nas cre- A Bahia, por seu turno, tem um to-
ches brasileiras. Decerto, entre 2005 até 2017 tal de 6.647 (seis mil, seiscentos e quarenta
houve diminuição do número de docentes de e sete) professoras de crianças de 0 (zero) a
creche no Brasil sem formação superior de for- 3 (três) anos e 11 (onze) meses que não con-
ma que os 70,94% (setenta inteiros e noventa cluíram o Ensino Superior. Destas, 142 (cento
e quatro centésimos por cento) anteriormen- e quarenta e duas) tem formação apenas em
te apresentamos forma convertidos em 33,61 Ensino Fundamental. Apesar dos dados esta-
(trinta e três inteiros e sessenta e um centé- tísticos sobre a formação inicial das docentes
simos por cento). Porém, não podemos des- de creche no Brasil demonstrarem a fragili-
considerar que neste itinerário 12 (doze) anos dade deste tema diante das regulamentações
se passaram e, com isto, impulsionado pelas educacionais, o Estado, por sua vez, atua
crescentes abordagens, sobretudo acadêmicas, como se este problema não fizesse parte do
que destacam a importância do atendimento panorama da Educação nacional. Como ilus-
educacional qualificado em creche, o Estado, tração a tal premissa, trazemos uma notifica-
caso priorizasse a garantia dos direitos funda- ção de Abuchaim (2018) quanto aos 3 (três)
mentais da primeira infância e as prerrogativas tipos de cursos referendados como essenciais
de superação das desigualdades sociais poderia para o exercício do magistério na Educação
ter reduzido este número a 0% (zero por cento). Infantil pelo link “Seja um professor” ancora-
Na perspectiva de alertar quanto a in- da no site do Ministério da Educação (MEC),
diferença do Estado quanto à indução de polí- a saber: “normal superior (curso superior de
ticas públicas em creche no Brasil declaramos graduação, na modalidade licenciatura); ma-
que o número de professoras que não concluí- gistério normal (curso em nível médio para
ram o Ensino Superior de acordo com o Cen- formação de professores de educação in-
so Escolar da Educação Básica de 2017 corres- fantil) e licenciatura em pedagogia.” (ABU-
ponde ao total de 91.971 (noventa e um mil, CHAIM, 2018, p. 65) Entretanto, os dados
novecentos e setenta e uma) docentes. Enfim, elucidam que a descrição referenciada pelo
uma quantidade significativa de profissionais MEC quanto a formação inicial mínima para
em Educação bem provavelmente desconhece a docência em creches brasileiras não faz par-
concepções elementares sobre práticas pedagó- te do retrato da Educação Infantil do Brasil.
gicas qualificadas que garantam o desenvolvi- Sobre as discrepâncias quanto a for-
mento das crianças por elas atendidas. mação mínima para a docência em creches
Na associação entre o número das no Brasil, denunciamos que tais inconformi-
profissionais de creche da Tabela 1 que tem dades e indiferenças à superação das maze-
apenas o Ensino Fundamental e o ente federa- las expostas resultam em retrocesso e fragi-

154
lidade quanto a identidade educacional das Considerações finais
instituições de atendimento de crianças de 0
(zero) a 3 (três) anos e 11 (onze) meses — as Os resultados do processo de forma-
creches. Todavia, alertamos que a Educação ção de professores/as, seja de forma inicial
Infantil brasileira e o sistema educacional ou continuada, em serviço, têm interferência
como um todo — de forma direta ou indireta, direta na vida dos/as alunos/as, ou crianças
em curta ou longa escala e/ou prazo — sofre (quando se trata de Educação Infantil), e,
as interferências desta mazela traz prejuízos consequentemente, na sociedade. Assim, o
ao projeto de sociedade alicerçado no pres- Censo Escolar da Educação Básica de 2017 é
suposto de equidade e justiça social. a fonte principal dos dados analisados, to-
Sem pretensão de esgotar a aborda- davia, o percurso discursivo averigua infor-
gem sobre o tema, mas, na perspectiva de mações de outros anos como forma de com-
subsidiar a investigação sobre este objeto de provar que o poder público apesar de ciente
estudo, elencamos outras determinações que quanto a disparidade entre as etapas educa-
abarcam sobre a interface entre formação do- cionais impõe à primeira etapa condição de
cente inicial e Educação Infantil, tais como: o inferioridade, não orquestra políticas públi-
Parecer CNE/CP no 09/01 — as Diretrizes Cur- cas empenhadas em superar as mazelas de-
riculares Nacionais para a Formação de Professo- correntes do não cumprimento de sua atri-
res da Educação Básica, em nível superior, curso buição quanto a garantir formação mínima
de licenciatura, de graduação plena; Resolução às professoras da creche.
nº 01/05 — que altera a Resolução CNE/CP Consideramos que as etapas da Educa-
nº 1/2002, que institui Diretrizes Curriculares ção Básica são diferentes e, por isto, precisam
Nacionais para a Formação de Professores da ser compreendidas socialmente e institucional-
Educação Básica, em nível superior, curso de mente com vistas à garantia de igualdades de
Licenciatura de graduação plena; o Decreto direito e não em abordagem hierarquizante ali-
no 6.75/09 — que institui a Política Nacional cerçada na desigualdade assim como averigua-
de Formação de Profissionais do Magistério da da nas análises das normatizações da Educação
Educação Básica, disciplina a atuação da Coor- brasileira e, que, neste sentido, é comprovada
denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível por meio do tratamento de dados sobre o ní-
Superior — CAPES no fomento a programas de for- vel de escolaridade e acadêmico das docentes
mação inicial e continuada, e dá outras providên- de creche nos diferentes entes federados deste
cias; a Lei Federal no 12.796/13 — Altera a que es- país no ano de 2017 — também de 2005 e que
tabelece as diretrizes e bases da educação nacional, faz parte de um retrato crônico.
para dispor sobre a formação dos profissionais da Apontamos, desta forma, que o res-
educação e dar outras providências; a Resolução peito e equiparação das normativas entre as
CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019 — que etapas da Educação Básica é direcionamen-
define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a to para validar a cidadania dos atores e das
Formação Inicial de Professores para a Educação atrizes educacionais da Educação Infantil de
Básica e institui a Base Nacional Comum para a forma a atender as fundamentações contem-
Formação Inicial de Professores da Educação Bási- porâneas sobre o reconhecimento das crian-
ca (BNC-Formação) — entre outras. ças como sujeito sócio-histórico e de direitos
— aspecto que dialoga com o objetivo prin-
cipal da Educação nacional preconizado pela
LDBEN. Ademais, as políticas públicas preci-
sam seguir a mesma trajetória requerida — de
integração cotidiana e nas mais diversas di-
mensões da Educação Infantil, com destaque
às creches, ao sistema de ensino brasileiro.

155
Referências ______. Resolução CNE/CEB nº 01/2006. Ins-
titui Diretrizes Curriculares Nacionais para os
ABUCHAIM, B. O. Formação continuada dos Cursos de graduação em Pedagogia, licenciatu-
docentes. In.: ______. Panorama das políticas ra. Brasília: MEC, 2006.
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gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/guiageral. ciedade. vol.20 n.68 Campinas Dec. 1999. Dispo-
pdf>. Acesso em: 20 jun. 2015. nível em: http://www.scielo.br/scielo.php?scrip-
t=sci_arttext&pid=S0101-73301999000300004
Acesso em: 01 de novembro de 2018.

156
RELATOS INFANTILES SOBRE
LA VIDA COTIDIANA EN
CONTEXTO DE PANDEMIA

Evelyn Palma129 Resumo: El trabajo presenta un análi-


sis de las construcciones narrativas de niños y
María José Reyes130 niñas escolarizadas sobre la vida cotidiana en
el contexto de la pandemia del COVID-19. Se
realizó una experiencia de escritura de textos
con 18 estudiantes entre 12 y 14 años en una
escuela municipal de la zona sur de Santiago.
Los resultados permiten indicar que los/las
estudiantes se posicionan como narradores/
as activos/as de este acontecimiento histórico
que transgredió su cotidianidad. Reconocen las
dificultades que este hito produjo en sus espa-
cios vitales como familia y barrio, relevando el
cuidado a la vida, la solidaridad y el valor de la
comunidad. El texto aporta a las investigacio-
nes sobre la experiencia infantil en contextos
de crisis social y al valor de las producciones
narrativas para su elaboración.

Palabras claves: Vida cotidiana, pro-


ducciones narrativas infantiles, Pandemia.

129
Doctora en Ciencias Sociales en la Universidad de Chile — U. de CHILE.
130
Doctora en Psicología Social en la Universidad Autónoma de Barcelona — UAB.

157
RELATOS INFANTIS SOBRE
A VIDA COTIDIANA NO
CONTEXTO DE PANDEMIA

Resumo: O trabalho apresenta uma


análise das construções narrativas de crianças
escolarizadas sobre a vida cotidiana no contex-
to de pandemia do COVID-19. Foi feita uma
experiência de escrita de textos com 18 estu-
dantes entre 12 e 14 anos em uma escola mu-
nicipal da zona sul de Santiago. Os resultados
permitem indicar que os estudantes se posicio-
nam como narradores ativos deste aconteci-
mento histórico que transgrediu seu cotidiano.
Reconhecem as dificuldades que este marco
produziu em seus espaços vitais como família
e bairro, destacando o cuidado com a vida, a
solidariedade e o valor de comunidade. O tex-
to aporta as investigações sobre a experiência
infantil nos contextos de crise social e o valor
das produções narrativas para sua elaboração.

Palavras-chave: Vida Cotidiana. Pro-


duções Narrativas Infantis. Pandemia.

Introducción

Las condiciones en que se despliega la


existencia material y subjetiva de niños, niñas
y adolescentes (en adelante NNA) son temas
de interés para las ciencias sociales y en parti-
cular en contextos históricos como catástrofes
sociales y económicas. En específico, durante la
pandemia del COVID-19, las posibilidades de
desarrollo vital y de habitar el espacio público
de NNA se han visto interrumpidas por las me-

158
didas de aislamiento físico y crisis económica jados/as a un mundo ya existente, dejándonos
afectando sus contextos cotidianos. (BENNER llevar por rutinas que operan en base a certezas
& MISTRY, 2020; COWIE & MYERS, 2021) que posibilitan distinguir nuevos escenarios y
Los efectos de la pandemia se estiman decidir nuestras acciones. (LECHNER, 1990)
como una “crisis global de los derechos de la Sin embargo, hay situaciones donde
niñez” (The Alliance for Child Protection in las certezas dejan de serlo. Un acontecimien-
Humanitarian Action, citado en Morales, 2020). to disruptivo cuestiona la plausibilidad de las
Variados organismos han alertado sobre las con- estructuras y su funcionamiento (REGUILLO,
diciones de cuidado a NNA, los efectos en salud 2005), requiriendo dotar al mundo nuevamente
mental y desescolarización por la falta de acce- de sentido. Este acontecimiento exige explicitar
so a atención médica y programas de apoyo, así lo que sucede (REYES, 2016) siendo el uso del
como la cesantía de sus progenitores (UNICEF, lenguaje una forma de poner en orden, objeti-
2020). Respecto de estos/as últimos/as, también var, e incluso generar nuevos incuestionables
se han visto atravesados/as por la incertidum- que favorezcan la generación de cotidianidad.
bre, lo que afectaría a la crianza provocando Relatarnos a nosotros/as mismos/as y a los/las
un importante costo psicológico en los grupos otros/as la experiencia disruptiva, permite con-
familiares (Orgilés et al., 2020). Por su parte, la figurar marcas en el tiempo, generar una trama
mortalidad y el desempleo pueden ser particu- de lo acontecido, y con ello elaborarla (Ricouer,
larmente complejos en contextos de vulnerabi- 2008). Contar la experiencia implica estar si-
lidad pre pandémica, así como la ampliación de tuados/as en el tiempo y por lo tanto con ca-
las desigualdades educativas según etnia y estra- pacidad de historizar lo que nos ocurre y lo que
to económico. (MARTÍNEZ, 2000) vivenciamos en el contacto con los/las otros/as.
En Chile, el primer caso detectado del Narrar supone estructurar una historia, cono-
virus se conoció a inicios de marzo de 2020, im- cer sus elementos y tener la habilidad de trans-
plicando a la fecha casi un millón de contagia- mitirla a otros/as. (WHITERELL, 1998)
dos/as y más de treinta mil fallecidos/as. Tras Si las experiencias son extrañas, la
los primeros contagios, las clases presenciales narración ayuda a mediar el sufrimiento que
fueron suspendidas debido a estrictas medidas provoca tal novedad, articulando aspectos
de confinamiento en gran parte del territorio racionales y emocionales, historiográficos e
nacional. Esto ha provocado que al menos el imaginativos, lo social y lo privado (García,
35% de los/las cuidadores/as, en su mayoría 2015). En el caso de NNA la narración per-
mujeres, han detectado un deterioro del bie- mite abordar temas difíciles (DAMICO &
nestar psicológico en NNA, en particular en AMOL, 2008), tramitar lo desconcertante u
sectores de menores recursos. (PALMA, 2021) ominoso, habilitando la apropiación de la ex-
Frente a este panorama nos pregunta- periencia, “abrir los ojos”, como un atajo ante
mos cómo NNA elaboran este acontecimien- temas conflictivos e imaginar y construir un
to. Así, la pregunta que guía este texto, es mundo en otro lugar. (KAIRUZ, 2020)
cómo estudiantes de sexto año básico de una Apropiaciones de lo desconcertan-
escuela municipal narran a través de textos te han sido documentadas gracias a diversas
escritos la compleja experiencia de la pande- narraciones que NNA nos han legado en con-
mia y cómo gracias a la construcción de un diciones de emergencia social. Diarios de vida
dispositivo de escritura logran registrar e his- escritos por NNA han agregado complejidad
torizar un evento que ha modificado diversos a las descripciones de la historia oficial prota-
aspectos de su existencia cotidiana. gonizadas por el mundo adulto (SOSENSKI,
2018). En estas producciones apreciamos pro-
Vida cotidiana, irrupción de cesos de historización personal, de construc-
ción de posiciones identitarias y de produc-
lo desconocido y narración ción de la misma experiencia de lo infantil,
configurándose como ejercicios políticos por
La vida cotidiana alude al “mundo pró- parte de NNA a propósito de su exploración
ximo” (Heller, 1970) donde concretamente se del mundo social. (LLOBET, 2018)
configura la forma y modo de vida. La cotidia- Relativo a los cuentos, gracias a su
nidad se va estableciendo desde las acciones y invención NNA gestionan la adversidad, pro-
relaciones con otros/as, produciendo y repro- mueven poder sobre ella y la posibilidad de ser
duciendo objetivaciones que se comprenden escuchados/as (KERRY & AERILA, 2019). En
como incuestionables y que posibilitan movi- la competencia narrativa, NNA usan tramas
lizarse en el espacio inmediato (BERGER Y tradicionales sobre héroes/inas y villanos/as,
LUCKMANN, 2005). Así, somos sujetos arro- así como la incongruencia, la reivindicación, el

159
humor y la ironía (EGAN, 1999), cuestionan- Tras ello, se propuso que las niñas y los niños
do formas de ser y hacer del mundo cotidiano. narraran su experiencia durante la cuarentena a
(HOHTI & KARLSSON, 2014) través de Cuentos o Diarios de vida.
Para ello sugerimos a la docente ejem-
La experiencia de plificar el proceso de producción de relatos a
través de la lectura de la poesía rimada “¿Quién
producción narrativa online tiene coronita?” (DAMARCO & RAVECCA,
2020). Tras ello, los/las niños/as escribieron di-
La experiencia que realizamos fue la versas narraciones en un período de dos sema-
escritura de narraciones sobre la pandemia en nas lectivas y los enviaron a la docente con ayu-
una escuela primaria de la zona sur de San- da de las progenitoras con mensajes escritos de
tiago de Chile. La escuela atiende a alrededor whatsapp con sus correspondientes emojis y fo-
de 500 estudiantes, sus familias realizan tra- tografías de sus cuadernos con manuscritos y di-
bajos informales con ingresos promedio que bujos. Luego de nuestra lectura, transcripción y
no superan el salario mínimo. El territorio en edición, diseñamos un blog con estos productos
el que está ubicada fue inaugurado en los años para su socialización al interior del curso. Tanto
80’ como parte de las políticas habitacionales en las clases como en la escritura de narraciones
de la dictadura cívico militar, mas su origen participaron 18 estudiantes entre 12 y 14 años.
fue producto de una toma de terrenos a ini- Para efectos de este escrito, conside-
cios de la década del 70. ramos las transcripciones de las producciones
Esta comunidad educativa caracteri- escritas. La sistematización se apoyó con el
za su barrio como un sector inseguro como software Atlas Ti 8. El análisis nos permitió
consecuencia del microtráfico de drogas. El conocer la elaboración que NNA escolarizades
abandono del control policial ha permitido realizan de esta experiencia a través de cuatro
que en ocasiones se vivencien enfrentamien- ejes que se desarrollarán a continuación: posi-
tos entre pandillas rivales, las cuales admi- ción de habla de les niñes; el COVID-19 como
nistran la circulación de la población en sus acontecimiento; vida cotidiana en pandemia;
calles. La permanencia de integrantes de las formas de enfrentar el virus.
familias de los/las niños/as en prisión, las ba-
laceras con resultado de muerte, se constitu- Resultados
yen como condiciones de vida cotidiana para
sus habitantes. (PALMA, 2017) Entre la crónica y la ficción.
En esta escuela desde 2013 a la fecha Posición de habla e invención
hemos realizado investigaciones sobre cómo
directivos y docentes abordan el pasado con-
flictivo de nuestro país y en particular sobre Niños y niñas usan distintas posicio-
la memoria que elaboran los/las estudiantes de nes de habla para contar sus experiencias de
enseñanza básica sobre este período. En mar- pandemia. Lo hacen desde la primera persona
zo de 2020 las actividades pedagógicas fueron como cronistas de lo que ocurre a nivel país,
suspendidas por las medidas de confinamien- en sus barrios o espacios del hogar, permi-
to decretadas por la autoridad gubernamental tiéndoles comunicar lo observado y viven-
producto de la pandemia, siendo retomadas a ciado: “Un día estaba en la casa con mi fa-
mediados de mayo tras ajustes a las planifica- milia y…” (Mariana). En esta trasmisión de la
ciones didácticas. En esta planificación fue im- experiencia incorporan a los/las lectores/as
perioso que la comunidad docente evaluara las ya que narran explícitamente para ser leídos:
condiciones materiales de sustento económico ”Hola mi nombre es Ana y les contaré cómo
de las familias y la conectividad en los hogares he pasado esta cuarentena” (Marisol).
para la realización de clases en línea. También se aprecia el uso de la tercera
Cuando las actividades didácticas fue- persona con personajes infantiles imaginados/as
ron retomadas a través de plataformas, la do- que coinciden con sus propios géneros, edades
cente a cargo del curso nos invitó a participar e intereses- “Josefa era una niña de 10 años y le
en la clase de bienvenida y en las de Historia y encantaba ir al colegio y juntarse con sus ami-
Ciencias Sociales. Para tal encuentro inicial di- gos” (Daniela). Los varones suelen utilizar sus
señamos un taller para indagar las condiciones propios nombres situándose como protagonis-
en las que estaban los/las estudiantes, las activi- tas de la historia en tanto héroes que enfrentan
dades realizadas durante los meses de confina- el virus y enseñan a otros/as sobre los cuidados
miento y sus expectativas sobre el regreso a las para evitar contraerlo: “Un examen dio posi-
clases presenciales al término de la cuarentena. tivo a todos con Covid 19, menos a Bernardo.

160
Ante eso él festejaba” (Bernardo). También En estos relatos los/las niños/as utilizan
personifican la voz de los adultos para narrar la el conflicto, la moraleja y el humor para imaginar
pandemia, describiendo la vivencia de los pa- situaciones y actuar sobre ellas. Incorporan el
dres y los esfuerzos por cuidar a sus familias: discurso oficial, la cotidianeidad familiar y la
realidad de sus barrios y los conflictos que con
Me llamo Mario, tengo 35 años, mi esposa la autoridad policial se presentan: “Cuando iba
se llama Ema tenemos tres hijos y un per- al supermercado la pararon los milicos y le pi-
rito (...) Estoy asustado porque no quiero dieron el salvoconducto. Martina no lo tenía y
que a nadie se le pegue este virus a nadie entonces los milicos se la llevaron presa y estuvo
de mi familia (Ramón). una noche en la comisaría” (Yessenia). En cuanto
al uso de la moraleja más propio de las fábulas,
Cuando los/las estudiantes son invita- posibilita describir las peripecias del niño pro-
dos/as a crear ficciones sobre esta nueva rea- tagonista “que no creía en nada” (Kevin) para
lidad, emplean distintos formatos gracias a la prodigar enseñanzas a la población y prevenir
instrucción dada en la escuela, así como por los contagios siguiendo las medidas sanitarias, pero
videojuegos y películas de ficción que consu- por sobre todo para apoyar la verdad oficial, que
men en sus propios hogares. Construyen ficcio- el virus si existe. En cuanto al uso del humor, este
nes sobre la pandemia desde la crónica descri- permite describir los efectos de la cuarentena en
biendo eventos entre la aparición del virus en el actuar de sus referentes cotidianos:
el mundo y su llegada a nuestro país. Este uso
podría parecer objetivo y distanciado de la ex- En mi casa mi mamá está rara porque lo
periencia subjetiva, pero es un modo de señalar único que quiere es limpiar, ordenar, lim-
la necesidad del uso de fuentes históricas como piar, ordenar, parece que tiene la fiebre
los documentos de prensa para anoticiar este de la limpieza, es algo muy raro, empezó
acontecimiento y contextualizarlo. a bañar al perro día por medio (Marisol).
Otros/as agregan a esta cronología sus
propias percepciones y vivencias usando el gé- Niños y niñas describen situaciones de
nero “Diario de vida”. Tales producciones escri- alta tensión emocional para los/las protagonis-
tas de corte más intimista se caracterizan por tas de sus relatos vinculadas a la incertidumbre
su tono introspectivo y permiten que los/las del contagio: enterarse de ellos, recibir falsas
estudiantes expresen situaciones muy dilemá- alarmas (“falsos positivos”) o bien verse expues-
ticas que debieron atravesar y que se asocian tos al virus por descuidos personales o falta de
casi siempre a la incertidumbre del contagio insumos para el cuidado como las mascarillas.
respecto de quienes les cuidan: Los desenlaces en gran parte de los relatos son
“felices”, de aprendizajes respecto a los cuidados
En la mañana mi madre nos despertó y o bien del triunfo de los/las protagonistas ante
nos dijo que estaba muy enferma y que la adversidad que ha implicado la pandemia: “y
iba a ir al doctor y mi hermano la acom- comió y fue muy feliz y FIN DEL CUENTO”
pañó. Se fue a hacer la prueba del Covid (Yessenia). Para ello, esta experiencia vivida de-
19 para ver si estaba infectada y el doctor biese transformarse en una enseñanza y como
le dijo que teníamos que esperar hasta el tal podría ser relatada como un legado al futuro:
viernes para ver el resultado y ese es mi “esperando que al final de esto no tengamos que
cuento (Mariana). escribir cuentos tristes sino de no haber apren-
dido de este enemigo” (Rebeca).
Ahora bien, los/las participantes
usan directamente el Cuento. Así entonces El Covid-19 como
inician con la fórmula tradicional de contar acontecimiento disruptivo
historias de una generación a otra: “había una
vez”: “Había una vez una familia en que se
comenzó a presentar la incertidumbre por el Un común denominador en las escri-
nuevo virus que acechaba al planeta llama- turas es la emergencia del COVID-19 como
do COVID-19” (Diego). En este “había una acontecimiento extraño y desconocido para
vez” relatan experiencias de sus familias, de el conjunto de la sociedad: “se descubrió una
sus vivencias infantiles y de lo que imaginan enfermedad que nunca se había visto” (Ali-
ocurre en otros espacios, como por ejemplo ne)-, lo que se potencia al caracterizarse como
en los hospitales: “Había una vez un doctor “un virus muy peligroso” (Felipe), “contagioso
que estaba en un hospital y de pronto llegó y mortal” (Romina). Por tanto, es un acon-
alguien muy mal” (Aline). tecimiento que requiere de esfuerzo para su

161
comprensión, más aún al haber implicado una de elaboración y reflexión. Niños y niñas nar-
ruptura en las cotidianidades. Para esta com- ran los efectos que la pandemia ha tenido en las
prensión usan la sorpresa y el evento exógeno personas y en ellos/as mismos/as, provocando
para introducir lo inesperado: temor por lo que pudiese ocurrir en sus espacios
cercanos: “En las noticias estaban diciendo que
Un niño llamado Bernardo jugaba con había llegado a Chile y yo me asusté porque se
sus dos amigos en casa (...) sus amigos podía morir alguien de mi familia” (Mariana).
debían irse a su casa cuando de pron- Para ello caracterizan el virus como un objeto
to una bola de fuego se acercaba a los que ha arruinado la existencia vital.
niños. Los niños asustados corrieron a Esta ruina es muy sentida por los y
casa. Cayó la bola de fuego y afectó a la las participantes y señalan la presencia de la
mitad de Santiago (Bernardo). muerte de la que se han enterado a través de
la prensa. Sitúan como hito a los primeros/as
Este evento interrumpe un modo de fallecidos/as (“comunicó la primera muerte
hacer, genera asombro e interviene en los vín- provocada”, (Matías)), y relatan el incremen-
culos más cercanos impactando en los modos to de estas cifras y la consiguiente propaga-
de reaccionar: “Nunca como familia imagi- ción del virus en el mundo: “Pasando los días
naron que el tema de esta pandemia llegaría fue aumentando la población con personas
a su hogar de forma inesperada con un solo infectadas y de a poco empezó a morir gente
llamado telefónico repentino” (Diego). Fren- y fueron aumentando las muertes️ llegando a
te a esta nueva situación vital que “acecha al todos los países” (Francisco).
planeta” (Diego) se aprecia la apropiación de Frente a la presencia masiva de la
un nuevo lenguaje como “cuarentena”, “casos muerte, las personas han quedado impotentes
positivos de contagio”, “salvoconducto” de los y resignadas: ““mamá, están llamando de la casa
que se valen para dar explicaciones a sus lec- del abuelo”, la madre contesta y queda quieta y
tores/as: “para evitar el contagio la gente debe dijo una palabra, “su abuelo murió” (Joaquín),
estar en su casa para no tener contacto con lo que genera sentimientos de miedo, triste-
nadie (esto se llama cuarentena)” (Gonzalo). za y cansancio: “ya no quiero oír que la gente
Optan por distintas estrategias para muere porque no hay una cura, que termine
dilucidar este acontecimiento. Por una par- porque muchas personas están sufriendo y me
te, se le describe a partir de las consecuencias da mucha tristeza” (Flavio). Otros/as han reac-
que va generando en las distintas dimensiones cionado con resignación esperando que pase el
de la vida- “Eso desconocido ha generado que tiempo a través del conteo de días, estrategia
las familias se queden sin trabajo y no ten- elaborativa muy propia de las narraciones aso-
gan comida” (Francisco). Por otra parte, se le ciadas a la espera y el sacrificio: “Josefa lleva ya
historiza, enfatizando su origen y devenir- “31 81 días en cuarentena y extraña mucho a sus
de diciembre del 2019: se registran los pri- compañeros y amigos” (Daniela).
meros casos de Coronavirus en la ciudad de
Wuhan, China. Durante ese período el virus Vida cotidiana y pandemia
era desconocido” (Matías). En esta historiza-
ción se “cuenta” enumerando los días que han Las experiencias que niños/as narran
estado confinados/as e incluso el número de sobre esta novedad en sus vidas son de diver-
contagiados/as y fallecidos/as producto de la sas características y valoran las experiencias de
pandemia: “aún con todas las precauciones cuidado que los/las integrantes de sus familias
nuestro país tiene 138.846 contagiados y 2.264 despliegan entre sí. Sobre tal esfera íntima de
fallecidos” (Daniela). Por último, se le aborda los vínculos, la cuarentena ha sido una vivencia
a través de metáforas que apelan al peligro a la positiva ya que han podido compartir y disfru-
vida que implica el virus y a la necesidad de tar de espacios de cuidados y juegos con sus
protegerse ante él -“Es un enemigo que está padres, hermanos/as y familia ampliada.
atacando a todo el mundo” (Rebeca). La experiencia escolar como modo de
El impacto emocional y subjetivo, así habitar vínculos por fuera del hogar, es descri-
como el estado de alerta constante son las posi- ta muy marginalmente por niños/as. En parti-
ciones que atraviesan la diversidad de relatos. Si cular refieren a cómo la suspensión de clases
bien la descripción, la historización, y las metá- transgredió la forma habitual de socialización
foras dan cuenta de procesos de comprensión, con otros/as, cuestión que provoca temor ante
denotan el impacto ante el COVID-19 como la posibilidad que la escuela sea clausurada:
acontecimiento que pone en peligro la vida y “con miedo le pregunta a sus padres si cerrarán
las formas de vivirla, y del que aún se requiere la escuela. Ellos les dicen que sí, que vieron en

162
las noticias que todas las comunas de Santiago podido salir para la calle, pero nos ha servido
entraban a cuarentena obligatoria” (Daniela). para pasar más tiempo en familia. Hemos po-
Frente a esta interrupción, niños y dido jugar, cocinar, ver películas, etc” (Rebeca).
niñas se manifiestan agradecidos por el es- En estos vínculos de la nueva vida co-
fuerzo de la escuela en retomar las clases, asu- tidiana destacan la figura de las madres. Ellas
miendo que extrañan este espacio y su formato adquieren juegos para pasar el tiempo, expli-
tradicional, con la expectativa que les reciban can las características de la pandemia y el ries-
afectuosamente: “Cuando vuelva al colegio me go de los contagios a los abuelos si les niñes no
gustaría que los profesores y todas las personas se cuidan, insisten con las acciones y formas de
que trabajan ahí me recibieran con mucho ca- cuidado sanitario y ejercen incluso funciones
riño y que nos den mucho ánimo para poder pedagógicas para que NNA puedan continuar
terminar bien nuestro año escolar” (Flavio). con el aprendizaje escolar:
A los/as niños/as la pandemia como
hito les permite comparar las costumbres y Lo que no me gusta mucho, es que mi
relaciones anteriores en sus barrios y las que mamá nos levanta temprano para hacer-
con la nueva normalidad se habilitan: “A mi nos clase y como profesora es buena, pero
en realidad no me afectó mucho esto como tiene muy poca paciencia. Creo que debe-
a compañeros míos, porque yo comunmente ría ser solo mi mamá para que no me rete
no salgo a la calle” (Ismael). Reconocen sen- tanto, claro que ahora ya no está pasando
timientos de tristeza y nostalgia por las acti- tanta rabia conmigo porque comencé con
vidades que antes realizaban como salir a la clases online” (Flavio).
calle a jugar con sus amigo/as, ir a la escuela y
visitar familiares: “No podemos ver a familia- A pesar de esta valoración positiva de
res porque no se puede salir a la calle y eso me la nueva normalidad familiar, NNA manifies-
pone triste, no poder verlos” (Ismael). tan bastante preocupación por la dimensión
Muestran en sus narraciones que la co- material del sustento cotidiano afectado por las
tidianeidad al interior del hogar se ha modifi- medidas sanitarias, en particular, con la cuaren-
cado para las diversas generaciones y que han tena. Para contextualizar estas inquietudes a les
debido gestionar de forma novedosa algunas lectores, describen las ocupaciones laborales de
prácticas. Esta modificación ha tenido conse- sus familias y el valor de ellas para su barrio:
cuencias positivas ya que reconocen que sus
progenitores dedican mayor tiempo que antes Un día esta madre con su esposo y sus hijas
para estar con ello/as e incluso para recrearse estaba preparando como de costumbre la
mercadería que había adquirido en la ma-
Hemos jugado “Monopoli” un juego que drugada en la Vega (...) padres muy trabaja-
nos ha llevado horas de diversión fami- dores que deben sustentar un hogar con su
liar, mi mamá compró paletas y pelotas trabajo de sacrificio que cubre insumos de
de ping pong y como no tenemos patio, primera necesidad a la comunidad (Diego).
ella sacó las sillas y puso la mesa del co-
medor como mesa de ping pong para po- Este sustento económico se precariza
der jugar, ¡es muy ingeniosa! (Flavio). de manera muy dramática cuando les adultes
no pueden concurrir a sus empleos. Tal aspec-
Esta dimensión del cuidado y la com- to en esta escuela fue muy complejo ya que al
pañía familiar es muy valorada y la reconocen primer mes de cuarentena la mayoría de los
como un beneficio para sus propias vidas ya progenitores quedaron cesantes: “No trabajo
que al estar en condiciones de encierro obli- hace un mes ya casi no me quedan monedas de
gatorio pueden compartir más tiempo con mi sueldo” (Ramón). Frente a tal realidad, par-
sus padres y hermanes: “ha estado haciendo ticularmente los narradores varones, lamentan
las tareas y jugando en línea con sus amigos, que las medidas de cuidado y restricción en la
hermanas y también ha visto películas con su movilidad perjudiquen a quienes proveen ma-
familia” (Isabel). Así, aun cuando están muy terialmente en el hogar. Son conscientes y soli-
conscientes de las dificultades de diverso or- daries con la posible cesantía asociada a cum-
den que acarrea la cuarentena, valoran esta plir las medidas de desplazamiento y el efecto
novedad en tanto ha permitido estrechar lazos de ello en la realidad familiar: “debe trabajar
en la familia y disfrutar de actividades cotidia- al igual que muchas personas, porque si no lo
nas que posiblemente en la vida prepandémica hacen pueden perder su trabajo y si no trabaja
eran escasas por las extensas jornadas laborales no tendremos para comer” (Flavio).
de sus progenitores: “por el Covid-19 no hemos A pesar del carácter doloroso de esta

163
realidad material, NNA refieren a los recur- médico de este virus: “era contagiosa, el paciente
sos de les adultes para gestionar la subsis- tuvo que estar aislado y no podía ver a su fami-
tencia: “La cuarentena (...) le afecta a mi tía lia y tenía que cuidarse para no enfermar más y
porque no puede salir a trabajar y no tene- tuvo que tomar precauciones para no contagiar
mos tanto dinero, pero mi tía es precavida y a los demás” (Aline). Al respecto, la posible en-
guardó mercadería” (Ismael). fermedad de las madres es una posibilidad preo-
cupante: son las figuras femeninas de quienes
Cuidar(nos) para más se teme puedan contagiarse
combatir el virus Aparece en el celular una llamada en-
trante de un número desconocido. El
El acontecimiento desconcertante re- padre contesta y trataban de ubicar a la
quiere ser comprendido para accionar ante él, señora Rosita (la madre) (...) un señor
siendo la acción central en los relatos el cuidado. de salud le indicaba que era portadora
Cuidar implica atención y ocupación para pro- de esta enfermedad que ha estado afec-
curar un bienestar. Lo que se cuida es la vida de tando a miles y miles de millones de
los/as otros/as así como la propia: “Si queremos personas en el mundo (Diego).
que esto pare hay que poner de nuestra parte,
cuidarse y cuidarnos entre todos” (Flavio). Esta Los/las estudiantes manifiestan es-
acción se circunscribe principalmente a las peranza ante el futuro frente a los efectos de
medidas que han sido socializadas por diversas la pandemia en la economía familiar y ello es
autoridades y medios: “respetar la cuarentena posible gracias a la esperanza y la unión. Así el
no saliendo de la casa, y mantener distancia de cuidar les permite imaginar el futuro, acción en
un metro con otras personas” (Romina); “vayan la que prima el restablecimiento de una “vida
a lavarse las manitos cada cinco minutos y si normal” que se traduce en jugar con amigos/as,
salen a jugar cuando entren saquense la ropa y salir de casa, ir al colegio, abrazar, pasear. En ese
tiene que bañarse” (Joaquín). restablecimiento de la vida normal se espera ha-
El uso de las mascarillas y el lavado ber aprendido de esta experiencia, en particular,
de manos es un aspecto muy relevante en respecto al cuidado, que trasciende al autocui-
esta nueva normalidad y los/las estudiantes dado. Así aluden constantemente a la responsa-
han adscrito a tal prescripción: usar o no la bilidad consigo mismos/as y con la comunidad:
mascarilla es parte de los cuidados así mis- Sabe que habrá mucho tiempo para
mos/as y a los/las otras/as, pero también es ir al colegio, jugar con sus amigos y que ah-
la manera que se puede circular en la ciudad ora lo vital es cuidarse y cuidar el entorno
que habitan. Esta adscripción se ha incorpo- y que cuando todo esto finalice volverá a su
rado a tal punto que su transgresión implica- vida normal y se podrán juntar y abrazar con
rá lo indeseable: contagiarse sus amigos (Daniela).
En tal acción se pone en juego la em-
El niño le dijo a la mamá: “oh mamá, ese patía con quienes no tienen los medios para
virus es mentira” y la mamá le levantó la protegerse, con quienes sustentan sus hogares
voz enojada, le dijo: “es verdad, ponte la o ante las comunidades en las que viven. Acá
mascarilla y anda a comprar”. El niño eno- advertimos una clave ética: la responsabilidad
jado se puso la mascarilla, salió a comprar es “entre” todos/as y para todos/as, por ello es
y en el camino se la sacó y la botó al piso, necesario cuidar a quienes trabajan y se expo-
la pateó y la pisó enojado (…) El niño se nen porque no pueden evitarlo.
sentía mal, la mamá lo llevó al médico, al
niño le confirmaron Covid-19, se puso a Conclusiones
llorar y le dijo a la mamá: “tenías razón
mamá, el virus era verdad, debí haberte Los hallazgos de esta experiencia de
creído en todo mamá” (Kevin). producción de narraciones nos permiten in-
dicar que niños y niñas se posicionan como
La experiencia del contagio la han vivi- narradores activos/as de este acontecimiento
do con temor y mucha angustia. Niños y niñas histórico que alteró su experiencia cotidiana
comprenden que la enfermedad tiene caracte- en diversos espacios. Frente a ello no se para-
rísticas muy singulares en su abordaje y empati- lizan ni lo viven pasivamente. Reconociendo
zan cuando las familias se ven afectadas o se han el impacto subjetivo y material del COVID-19
contactado con el contagiado. Se conmueven como acontecimiento disruptivo, lo enfrentan
ante el aislamiento que supone el tratamiento a través de diversas posiciones de habla, for-

164
mas y estrategias narrativas (primera y tercera estrategias de acompañamiento desde las po-
persona, descripción literal, historización, me- líticas públicas a sus necesidades en espacios
táfora, humor, moraleja y resolución de con- públicos como la escuela, centros de salud y
flictos) que contribuyen a contar y elaborar la espacios comunitarios frente a las consecuen-
novedad a la que se han visto expuestos/as en cias psicosociales de la pandemia.
el transcurso de la pandemia. Para finalizar, un extracto de los rela-
Los y las participantes sitúan cronoló- tos a través de los cuales estos/as creadores nos
gicamente los eventos de emergencia de la pan- transmitieron el valor de los vínculos y la espe-
demia en el mundo y en Chile, identifican las ranza ante el porvenir:
características del virus COVID-19 en la salud
física y las consecuencias de la pandemia en la “Al fin esta familia pudo tener tranquilidad, espe-
economía nacional, local y familiar. La perma- rando que en un tiempo no muy lejano se pueda ir
nencia y cuidados en el espacio íntimo son muy este virus, pudiendo tener una vida normal y se
valorados en tanto en los tiempos de normali- haya aprendido del auto cuidado en la vida es muy
dad la experiencia de crianza se caracteriza por importante, ya sea en la vida cotidiana con virus
las extensas jornadas laborales de sus familiares. o sin virus. Debemos tener conciencia, respeto, em-
Niños y niñas leen el acontecimiento con bas- patía, tolerancia, deberes y obligaciones para no se-
tante complejidad, señalando su preocupación guir aumentando los casos, ya que nadie está libre
por las consecuencias económicas de las medi- de contagio. En donde llamamos a todos y todas a
das de confinamiento en sus espacios familiares cuidarnos ¡QuedateEnCasa!” (Diego)131
y el temor al contagio de sus cuidadores en los
traslados a sus actividades laborales. A pesar
del temor, niños y niñas albergan esperanza en Referências
el futuro y en la solución de la pandemia gracias
a los avances científicos y por sobre todo al cui- BENNER, A.; RASHMITA, S. M. Child de-
dado a realizar entre todos/as. velopment during the Covid-19 Pandemic
Estos y estas narradoras adscriben y through a life course theory lens. Child Deve-
valoran positivamente las medidas de confina- lopment Perspectives, 14, 236- 243. 2020.
miento decretadas por la autoridad, replican-
do sus indicaciones en sus escritos. Expresan BERGER, P.; LUCKMANN, T. La construc-
actitudes de cuidado por la vida personal y ción social de la realidad. Santiago: Amorror-
solidaridad con sus comunidades, con inte- tu. 2005.
grantes de sus grupos familiares y con quienes
arriesgan la vida. Esta adscripción activa no es COWIE, H.; MEYER, K.A. The impact of the
desde la obediencia basada en la elección mo- COVID-19 pandemic on the mental health and
ral sino más bien desde el cuidado a la vida, de well-being of children and young people. Child
la propia y de los/las otros/as, constituyéndose Society, 35, 62-74. 2020.
tal ética como un referente para la acción ante
las tensiones presentadas en sus relatos. DAMICO, J.: APOL, L. Using testimonial res-
Gracias a estos hallazgos podemos ponse to frame the challenges and possibilities
apreciar el valor del dispositivo de produc- of risky historical texts. Children’s Literature
ción de relatos configurado desde el espacio in Education, 39, 141–158. 2008.
escolar como espacio público de escucha de la
subjetividad infantil. Éste habilitó la tramita- DAMARCO, M. & R. V. ¿Quién tiene coroni-
ción de las representaciones que niños y niñas ta? 2020. https://www.encuentos.com/poemas/
construyen sobre la realidad, sus dilemas y te- quien-tiene-coronita-video/.
mores, pero también imaginaciones y esperan-
zas. Así es de vital relevancia para las ciencias GARCIA, L. Memoria e imaginación: Colec-
sociales la investigación con NNA situada en ciones de lectura para contar la violencia po-
sus territorios para comprender las nociones lítica en la literatura infantil argentina (1970-
y prácticas que ellos/as despliegan a propósito 1990). El Taco en la Brea, 1(2), 80-118. 2015.
de las situaciones de crisis. Estas narraciones
y lo que en ellas se enuncia podrían iluminar EGAN, K. Características de la vida imagina-
131
Este trabajo contó con el financiamiento de la Agencia Nacional de Investigación y Desarrollo, FONDECYT
Postdoctorado Nº 3190569 (“Elaboraciones memoriales de estudiantes chilenos de educación básica sobre el pasado
reciente), al Núcleo “Vidas cotidianas en emergencia: territorio, habitantes y prácticas” y a los fondos FINP 2020 de
la Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Chile.

165
tiva del estudiante de ocho a quince años. En: PALMA, E. Construcciones memoriales del
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166
GENTRIFICAÇÃO E JUVENICÍDIO:
DIVISÃO CAPITALISTA DO ESPAÇO
E MORTALIDADE JUVENIL

Giovane Antonio Scherer132 Resumo: Gentrificação e juvenicídio: di-


visão capitalista do espaço e mortalidade juvenil
Laura Barcellos de Valls 133
é resultado parcial do projeto de pesquisa A
Mortalidade Juvenil no Rio Grande do Sul: Uma
Análise dos Índices de Violência Letal Juvenil e
suas Possibilidades de Enfrentamento, desenvol-
vido pelo Grupo de Estudos em Juventudes
e Políticas Públicas (GEJUP) da Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
em parceria com a Frente de Enfrentamento
a Mortalidade Juvenil (FEMJUV), recebendo
financiamento à partir do edital ARD 2019,
da Fundação de Amparo à Pesquisa no Rio
Grande do Sul — FAPERGS — e do Conse-
lho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico — CNPq —, por meio da bol-
sa produtividade do pesquisador responsável
pelo estudo. Nessa, evidenciou-se que a mor-
talidade juvenil na cidade de Porto Alegre
apresenta-se hegemonicamente em bairros
considerados Zonas Periféricas: Restinga, Sa-
randi e Lomba do Pinheiro. Alcançando ápi-
ce na Restinga, onde 17,68% da violência letal
contra a juventude foi praticada no período.
Considerando que tais índices estão dimen-
sionados na periferia urbana da capital gaú-
cha, espaços caracterizados pela desproteção
social e pelo estigma, habitados pela popula-
ção negra, membros da classe trabalhadora,
e que a historicidade demonstra que estes
132
Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUC-RS.
133
Bolsista de Iniciação Científica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS.

167
territórios são fruto de processos incessantes Espaços de segregação:
de rediferenciação e reconfiguração espacial, territórios violentados
o conceito gentrificação desponta como ele-
mento analítico privilegiado na apreensão da Considera-se que na atualidade, vem
dinâmica da violência letal contra a juventu- se vivenciando os desdobramentos oriundos do
de. Assim, importa desvendar as mediações desmonte da proteção social, cujo complexo de
político-ideológicas que atravessam a histori- mecanismos visa a segurança e garantia de direi-
cidade, chegando ao presente. tos dos distintos sujeitos. Acompanhado deste
processo observa-se o aprofundamento da con-
Palavras chave: Juvenicídio. Juventude. cepção neoconservadora, que oculta às raízes
Gentrificação. Território. do processo de valorização do capital, esfuma-
çando a percepção da realidade vivenciada no
contexto contemporâneo. Para Casara (2018), os
Introdução movimentos neoconservadores aparecem como
fundamentais ao projeto neoliberal, pois bus-
A precariedade existencial (ALVES, cam compensar os efeitos deletérios do neolibe-
2008) figura em dimensão universal no capi- ralismo por meio de uma retórica excludente e
talismo brasileiro, sendo expressa de múltiplas aporofóbica, manifestada por meio do controle
formas: por meio do desemprego e subempre- de “populações indesejadas”. Um dos resultados
go, do trabalho infantil, repressão policial, da deste processo é a ampliação da criminalização
situação de rua vivenciada por grande parte da pobreza, que vivencia, intensamente, um
da população brasileira, da dinâmica do tráfi- processo de violações de direitos.
co de drogas ilícitas em espaços onde o esta- Essa dinâmica pode ser percebida de di-
do está ausente, dentre outras manifestações. versas formas, dentre elas, na maneira pela qual
Ao mesmo tempo em que tais elementos são são criados espaços de segregação e valorização
visíveis e vivenciados no cotidiano da maioria dentro das cidades. A categoria território, dian-
da população, essa visibilidade é oculta pela te deste contexto, emerge como uma importante
racionalidade neoliberal que, ao radicalizar a chave de leitura para compreender a dinâmica do
análise individual, camufla as contradições de capital e sua manifestação espacial. O território
um sistema econômico que vivencia uma das não é um conceito em si, uma vez que mostra to-
suas maiores crises estruturais. Mais do nunca dos os movimentos da sociedade, e que em si não
é necessária a análise do movimento do real, é um conceito, sendo que ele só se torna um con-
em uma perspectiva totalizante, desnudando ceito utilizável para a análise social quando con-
contradições presentes nesse incessante pro- siderado a partir de seu uso, a partir do momen-
cesso de construção histórica. to em que é pensado justamente com aqueles que
A expressão mais trágica do contexto dele se utilizam (SANTOS, 1990). A forma pela
de violação de direitos é a violação do direito qual o modo de produção capitalista impacta
à vida. A morte, particularmente nos territó- nas relações sociais contemporâneas se expressa,
rios violentados (SCHERER, 2018), permea- inclusive, no espaço físico: criando locais de valo-
dos pela desigualdade social, se demonstra rização e de segregação, em uma dinâmica onde
como uma tendência historicamente presen- as contradições do sistema capitalista tornaram-
te, tendo o Brasil sido erigido sob a violência -se visíveis através das paisagens geográficas.
exercida nos mais diversos níveis. O racismo Conforme Scherer (2018), a divisão
estrutural (Almeida, 2018), enquanto compo- capitalista do espaço em tempos de crise es-
nente essencial do desenvolvimento do capi- trutural do capital tende a agudizar os proces-
talismo brasileiro se evidencia em todos os sos de segregação territorial de determinadas
índices de violação de direitos, sendo expres- populações, afetando diretamente o direito à
so de forma nítida nos dados acerca da mor- cidade de segmentos populacionais sem aces-
talidade. Jovens, pobres e negros, moradores so aos bens e serviços públicos — incluindo as
de territórios com precário acesso às políticas políticas sociais que materializam os direitos
públicas e sociais, são as principais vítimas da sociais -. A forma mais trágica das sistemáti-
violência letal na realidade brasileira. cas violações de direito se torna visível através
Essa dinâmica que resulta na violação dos índices de mortalidade concentrados nos
de direitos pode ser percebida, também, na territórios violentados, uma vez que os espaços
análise dos territórios das grandes cidades; com menor acesso — ou acesso precário — às
territórios compreendidos como resultantes políticas sociais concentram os mais altos índi-
de relações sociais produzidas e mediadas ces de violência letal; evidenciando a violência
pelo capital. estrutural vivenciada por essas populações.

168
Residir em um barraco feito de tábuas de ções de projetos de vida, diante da conjuntura
caixotes de feira, é sofrer violência. Ser al- de precaridade existencial que alguns segmentos
fabetizado em pocilgas, para posteriormen- sociais estão expostos. Para o dimensionamento
te ocupar subempregos, é sofrer violência. dos indicadores relativos ao juvenicídio e sua di-
Não ter acessibilidade à uma rede de saúde nâmica na cidade de Porto Alegre/RS, a presente
que ofereça tratamento digno as pessoas en- investigação realizou uma análise documental e
fermas oriundas das classes mais carentes, tratamento estatístico do banco de dados do SIM
é sofrer violência. (TADDEO, 2012, p. 539) — Sistema de Informação sobre Mortalidade —,
intencionando identificar as características dos
A mortalidade por causas externas, por jovens vitimados pela violência letal. Nesse sen-
homicídio, é uma das principais causas do exter- tido, foram analisados os microdados deste sis-
mínio da juventude brasileira. Entre 2006 a 2016 tema, no que refere ao registro das causas mortis
houve um crescimento de 58% nas taxas de ho- ocorridas na cidade, buscando identificar o per-
micídio, sendo que 2006 essa taxa estava em 18% fil dos jovens que são assassinados, bem como os
no Rio Grande do Sul, sendo que tal indicador territórios onde ocorreram as mortes na cidade
em 2016 subiu para 28,6%, o que em números de Porto Alegre. Analisou-se dados específicos
absolutos refere-se a 1983 homicídios em 2006 e relacionados à mortalidade juvenil, incluindo na
3225 homicídios praticados em 2016 (IPEA/FBSP, análise a morte de jovens134 de 12 até 29 anos vi-
2018). Em relação ao segmento juvenil, aponta-se timados pela violência letal na cidade de Porto
específicos relacionados à mortalidade juvenil, incluindo na análise a morte de jovens3 de 12
um crescimento que chega à 64%, sendo que em Alegre, no período de 2015 a 2019. Esses dados
2006 foram assassinados
até 29 anos vitimados908pela
jovens, ao passo
violência letal que
na cidade revelam que asno
de Porto Alegre, taxas de juvenicídio
período são maiores
de 2015 a 2019.
em 2016 Esses
elevou-se para 1608 (IPEA/FBSP, 2018). em localidades conhecidas como
dados revelam que as taxas de juvenicídio são maiores em localidades conhecidas como Periféri-
Zonas
Ilustrando a onda de mortes violentas que atin- cas, onde o acesso às políticas públicas e sociais
Zonas Periféricas,
gem os principais países daonde o acesso
América às políticas
Latina, o épúblicas e sociais
caracterizado pelaé precariedade,
caracterizado pela
revelando o
pesquisador mexicano
precariedade, José Manuel
revelando o impactoValenzuela impactonada
da dinâmica territorial dinâmica
trajetória territorial
de vida na das
e de morte trajetória de
cunha o termo juvenicídio para designar o fenô- vida e de morte das juventudes.
meno dajuventudes.
mortalidade juvenil por meio dos homi- A sistematização de dados contida no
cídios. O termoAindica que o contexto
sistematização de dadosde mortes
contida gráfico
no gráfico 1 demonstra
1 demonstra a articulação
a articulação entre dinâmi-
entre dinâmica
violentasterritorial
resulta da impossibilidade de constru-
e violência letal na capital gaúcha:
ca territorial e violência letal na capital gaúcha:

Gráfico 1

(Fonte:
Fonte: SIM/Secretaria
SIM/Secretaria dede SaúdededePorto
Saúde PortoAlegre;
Alegre;IGBE,
IGBE, 2010;
2010; Elaboração
Elaboração própria)
própria

Os índices de mortalidade juvenil alcançam seu ápice nos bairros Restinga (17,68%),
134
Considera-se juventude, conforme a Lei 12.852, de 5 de agosto de 2013, que institui o Estatuto da Juventude, em
Lomba do Pinheiro
que são consideradas (11,17%),
jovens as Sarandi
pessoas com (10,41%),
idade Santa Tereza
entre 15 (quinze) e 29 (9,87%) e Rubem
(vinte e nove) anosBerta (8,99%);
de idade. A pluralização
do termo indica, conforme Scherer (2017), a necessidade de entender esta categoria por elementos que transcendem
sendo que, segundo o IBGE (2010), tais bairros apresentam concentração da população negra
as marcações etárias, compreendendo as juventudes como uma construção social, na qual se conjugam, entre outros
na cidade demomentos
fatores, estereótipos, Porto Alegre. A composição
históricos, múltiplasétnico-racial
referências, da capital
além gaúcha apresenta
de diversificadas 20,24%
situações de gênero,
de classe,
etnia, grupo, etc. No âmbito desta pesquisa, optou-se em analisar, também, dados de mortalidade de adolescentes,
pessoas
uma vez que negras,uma
observa-se sendo que todos
tendência os territórios
nacional supramencionados
de vitimização superam
cada vez mais essa média,
prematura desse atingindo
segmento social.

3 169
Considera-se juventude, conforme a Lei 12.852, de 5 de agosto de 2013, que institui o Estatuto da Juventude, em que são
consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade. A pluralização do termo indica,
conforme Scherer (2017), a necessidade de entender esta categoria por elementos que transcendem as marcações etárias,
compreendendo as juventudes como uma construção social, na qual se conjugam, entre outros fatores, estereótipos, momentos
Os índices de mortalidade juvenil al- um fator fundamental na análise da violência
cançam seu ápice nos bairros Restinga (17,68%), contra a juventude no Brasil, atravessando o
Lomba do Pinheiro (11,17%), Sarandi (10,41%), mito da democracia racial. Se coloca sob análise
Santa Tereza (9,87%) e Rubem Berta (8,99%); o próprio funcionamento do capitalismo, uma
sendo que, segundo o IBGE (2010), tais bairros vez que esse modelo econômico realiza a sua
apresentam concentração da população negra regulação e perpetuação através da produção
na cidade de Porto Alegre. A composição étni- de desigualdades sociais, onde a violência e a
co-racial da capital gaúcha apresenta 20,24% de subjugação da população negra encontram-se
pessoas negras, sendo que todos os territórios constantemente renovadas (ALMEIDA, 2018).
supramencionados superam essa média, atin- Nesse sentido, aponta-se o racismo estrutural
gindo ápice de concentração no bairro Santa enquanto um antigo e atual paradigma da so-
Tereza (34,42%). Em contraponto, os bairros ciedade brasileira; um elemento que localiza
que apresentam menor concentração de popu- a própria fundação do país e que, no entanto,
lação negra são aqueles que apresentam os mais segue em constante reatualização no ocidente.
baixos índices de violência letal contra a juven- Para Barros (2020, p. 234), jovens negros do sexo
tude no período analisado, sendo: Moinhos masculino continuam sendo assassinados todos os
de Vento (0%), Chácara das Pedras (0%), Três anos como se vivessem em situação de guerra. Para
Figueiras (0%), Higienópolis (0%) e Boa Vista Cerqueira e Coelho (2017), aos 21 anos de ida-
(0,1%), sendo que nas quatro primeiras locali- de, negros possuem 147% a mais de chances de
dades referidas, não foi praticado nenhum ho- serem vitimados por homicídios.
micídio contra jovens no período analisado.
Os dados contidos no Gráfico 1 indi- O Bairro Restinga: um caso
cam também alarmante indicador de analfabe- exemplar de gentrificação
tismo nos territórios onde se concentra a po-
pulação negra e os altos índices de mortalidade
juvenil, considerando que a cidade de Porto O conceito gentrificação coaduna com
Alegre apresenta indicador geral de 2,27% em o que Harvey (2005, p. 53) caracteriza enquan-
relação ao analfabetismo; no mesmo sentido, to produção capitalista do espaço, uma vez que
foi aferido que o analfabetismo entre os negros a produção do espaço se assemelha à paisagem
era de 4,43% (IBGE, 2010). Em contraponto, os do capital e passa a ser representado na forma
territórios onde a população negra apresenta- de uma paisagem física, criada à sua própria
-se em número diminuto, tais dados chegam imagem. Para além da expressão territorial,
no máximo à 0,44%, número consideravel- as violações de direitos que as populações,
mente inferior à média estabelecida no mu- moradoras de territórios excluídos das zonas
nicípio. A desigualdade socioeconômica entre centrais vivenciam fazem parte da dinâmica
populações de diferentes territórios também é de incessantes processos de reconfiguração e
evidente, sendo que no bairro Três Figueiras, rediferenciação territorial impulsionados pelo
território onde a população negra está ausente, modo de produção capitalista.
o rendimento médio dos responsáveis por do- A Restinga apresenta-se como terri-
micílio possui média de 17,67 salários mínimos tório concentrador das taxas mais elevadas no
(IBGE, 2010), ao passo que no bairro Lomba que concerne o juvenicídio no período inves-
do Pinheiro, o rendimento médio dos respon- tigado, sendo que o bairro localizado na pe-
sáveis por domicílio possui média de 1,96 salá- riferia de Porto Alegre é fruto de processo de
rios mínimos, um indicador nove vezes menor gentrificação na capital do RS. A constituição
do que o apontado no bairro Três Figueiras. do bairro Restinga está articulada ao processo
No mesmo sentido, foi apontado que no ano de gentrificação de Porto Alegre; gentrificação
de 2015 a taxa de desemprego entre os negros que foi aprofundada pela industrialização da
na cidade de Porto Alegre era de 12,3%, sendo capital gaúcha, especialmente na década de
que a taxa de desemprego entre os não-negros 1940. Para Gamalho (2010), na realidade por-
era de 6,5% (IGBE, 2015). toalegrense, a partir da década de 40
Através da análise dos indicadores de
letalidade juvenil, concentração de renda e As vilas de malocas não harmonizavam
analfabetismo nos territórios, afere-se não tão com o ideal de modernidade e progresso
somente a desigualdade social, como também e ocupavam setores estratégicos para o
a desigual distribuição da violência. Conside- desenvolvimento urbano, mas consis-
rando a disparidade de tais indicadores em es- tiam no modo pelo qual um segmento
paços onde a população negra está ausente ou social produzia a própria existência e
presente, a desigualdade racial desponta como seu lugar. Paralelamente ao crescimento

170
das vilas, a cidade passava por um pro- A melhoria das cidades, acompanhando
cesso de intensas transformações, e a o crescimento da riqueza, através da de-
esse crescimento populacional era atri- molição de quarteirões mal construídos,
buído o caráter de desorganizado, neces- a construção de palácios para bancos,
sitando, portanto, de ordenamento. A grandes depósitos, etc., o alargamento de
pobreza tornava-se visível no modo de ruas para o tráfego comercial, para luxuo-
habitar, de ocupar a cidade, e a maloca sas carruagens e para a introdução dos
era a materialização do processo. (p. 65) bondes, etc., erradicam os pobres para
lugares escondidos ainda piores e mais
A década de 40 é marcada pelo acelera- densamente ocupados. (MARX, 1967, v.
mento da industrialização nacional sob à égide 1, p. 657 apud FURTADO, 2011, p. 342)
do capital monopolista, bem como pelo acele-
ramento da mudança das paisagens urbanas. A nova configuração territorial emerge
Acelerações do tempo e do espaço que não ces- como uma forma de urbanização no intuito de
sam em tal década e que promovem a divisão gerar as condições para a reprodução do capital
capitalista do espaço (Harvey, 2005). É através (GAMALHO, 2010). Nesse sentido, a cidade é
do projeto Remover para Promover que se pro- consumida intencionalmente: a criação da Res-
duz o bairro Restinga: nova periferia produzi- tinga, em 1967 — em área atualmente reconheci-
da a partir da gentrificação da Zona Central da como Zona Periférica — a cerca de 26 km da
da capital gaúcha em determinado momento Zona Central da capital gaúcha, fez parte desse
histórico. Gamalho (2010) refere que o surgi- processo envolvendo múltiplos planos e incidin-
mento da Restinga materializa o projeto de do no lugar, alterando não somente o espaço,
urbanização da capital gaúcha vigente à época: mas gerando profundas alterações nas relações
o projeto que incidiu sob as décadas de 60 e sociais presentes nos territórios. Evidencia-se
70 no território foi apresentado sob discurso assim, o papel do estado burguês, intimamente
modernizante, muito embora a dinâmica do vinculado à iniciativa privada na reprodução da
processo revele seu caráter higienista, vincula- desigualdade social e de uma sociedade vertical-
do também ao desejo político-ideológico pelo mente hierarquizada: a sociedade de classes.
branqueamento do perímetro urbano — em
especial, da Zona Central — de Porto Alegre. As remoções de populações pobres para
Vinculado também, portanto, à tendência his- áreas periféricas e seu alicerce na consti-
tórica do racismo científico, constructo cultu- tuição de valores morais, paisagísticos e
ral que erige o imaginário gaúcho e nacional. assépticos que legitimassem as remoções
Importa situar o conceito gentrificação foram recorrentes na história de Porto
na análise tanto da historicidade da Restinga Alegre. Exemplo disso foram as remoções
e da capital gaúcha, quanto os seus efeitos de- realizadas no final do século XIX e início
letérios presentes na atualidade. O programa do século XX, quando os becos e cortiços
Remover para Promover, política pública de Es- que ocupavam o centro da cidade foram
tado, se apresenta como elemento concreto de removidos para os então arrabaldes, luga-
um processo de gentrificação, através do qual res destinados aos pobres. (...) Verdadei-
se efetivou a remoção da população marcada- ros “lugares de enclave”, eles ameaçavam a
mente negra e pertencente à classe trabalha- ordem, pois expunham, pela contiguida-
dora da Zona Central da capital gaúcha, desti- de inevitável e indesejável, o mau lado da
nando-os a um território até então, inexistente urbe. Para os cidadãos da Porto Alegre
no contexto da urbanização. ordenada e disciplinada que viviam no
A Restinga surge, portanto, impul- centro, o “pecado” morava ao lado. (PE-
sionada pelo desejo de imagem do plano ges- SAVENTO, 2001, p. 98)
tor: imagem e reflexo do modo de produção
hegemônico de determinado período histó- Muito embora as remoções apontadas
rico e, consequentemente, de seu ethos do- por Sandra Pesavento não estejam circunscri-
minante. Tais processos de rediferenciação e tas ao processo de gentrificação materializado
reconfiguração do espaço urbano destroem e na produção da Restinga pelos desmandos es-
recriam formas, diligenciando novas funções tatais, estas ilustram o desejo estatal e de uma
aos territórios, sendo este novo bairro exem- elite local em relação ao território; sendo esse
plo desta criação de novas formas territo- desejo carregado de valores burgueses, que car-
riais; constituindo, dessa maneira uma nova regam consigo um anseio pelo branqueamento
e velha espacialidade marcada e erigida pela da sociedade brasileira. Negando não tão so-
desigualdade social na capital do RS. mente a presença da população negra em áreas

171
centrais, como negando também o protagonis- taxas de mortalidade juvenil. Os mesmos terri-
mo dessa na edificação da capital gaúcha e do tórios indicam os piores índices de desenvolvi-
próprio Brasil. Para Bittencourt mento humano, no que diz respeito às taxas de
pobreza, analfabetismo e desemprego.
A área do centro, na opinião dos adminis- Importante considerar que a divisão ca-
tradores, governantes e da elite de ascen- pitalista do espaço na cidade de Porto Alegre/
dência europeia, estava tomada de uma RS é fruto de um processo histórico, marcado
promiscuidade indesejada entre os ricos pela dinâmica da gentrificação, em uma pers-
e pobres, vivendo face a face. A cidade se pectiva da segregação de “populações indeseja-
revela suja, malcheirosa, desordenada. Por das”, consideradas hoje como “vidas matáveis”.
detrás de um preconceito social, sob os Tendo em vista que os mais elevados índices de
argumentos da necessidade de higienizar violência letal contra a juventude na cidade de
e urbanizar a cidade, os segmentos negros Porto Alegre estão dimensionados no bairro
empobrecidos e excluídos dos direitos de Restinga, que a formação do bairro foi erigida
cidadania sofriam uma profunda discri- por paradigmas higienistas, classistas e, parti-
minação racial. (2010, p.) (grifos nossos) cularmente racistas, através de um processo de
gentrificação da Zona Central da capital gaúcha,
Na virada do século, especificamente afere-se a reatualização do velho através do novo.
no território gaúcho, incorporou-se privilegia- A inserção dos países “periféricos” na divisão in-
damente a força de trabalho de imigrantes do ternacional do trabalho carrega as marcas histó-
continente europeu, em sua maioria italianos e ricas e persistentes que presidiram sua formação
alemães. Estes substituíram a força de trabalho e desenvolvimento (IAMAMOTO, 2010). Tanto
de negros que anteriormente possuíam condi- a formação sócio-histórica da cidade de Porto
ção de escravizados pela elite branca local, sen- Alegre quanto o juvenicídio em curso ratifi-
do os próprios ou seus antepassados tendo sido cam que os elementos históricos que presidiram
arrancados à força do seu território de origem a formação do Brasil não foram superados: ao
e destinados ao trabalho compulsório no sul do contrário, se demonstram presentes, com nova
Brasil (Bittencourt, 2010). aparência; muito embora, o núcleo duro do fe-
Localiza-se na produção da Restinga nômeno reste como simulacro de um passado
a reatualização de um passado histórico não que segue reatualizado no presente.
superado, ainda presidido pelo paradigma do A análise da dinâmica territorial da
racismo e das lutas de classes; paradigmas que mortalidade juvenil em Porto Alegre/RS é fruto
nas sociedades de capitalismo periférico tem se do movimento histórico de construção da cida-
demonstrado como elementos ontológicos. de, que, por meio dos discursos neoliberais de
cunho neoconservador, reatualiza as mesmas
Considerações finais concepções higienistas, classistas e racistas, ocul-
tando a importância de dar visibilidade para os
O juvenicídio se constitui como a ex- alarmantes índices de mortalidade juvenil nes-
pressão mais trágica de um processo de precari- sas regiões. Nesse sentido, é imperativo ao de-
zação existencial, que afeta grandes contingentes senvolvimento de políticas públicas que efetiva-
populacionais juvenis em tempos de radicaliza- mente materializem o direito à proteção social
ção neoliberal. Constitui-se como resultante da para segmentos que vivenciam em sua vida e sua
impossibilidade de materialização de direitos, o morte os processos de violação de direitos.
que incide na inviabilidade de concretização de
projetos de vida e futuro para uma juventude que
vivencia, desde início de sua vida, os impactos da
desproteção social. A análise de dados acerca do
fenômeno do juvenicídio em Porto Alegre/RS é
reveladora, não somente, do perfil desses sujeitos;
mas, dão pistas importantes para compreender a
lógica da divisão capitalista do espaço, e seus efei-
tos deletérios na cidade de Porto Alegre.
A análise dos territórios onde ocorrem
a mortalidade juvenil atinge seu ápice dá visibi-
lidade para a transversalidade do racismo estru-
tural, uma vez que são os territórios com maior
concentração da população negra na cidade de
Porto Alegre/RS em que se localizam as maiores

172
Referências

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173
A CARIDADE E EDUCAÇÃO
EM POUSO ALEGRE/MG
(1900-1947)

Giovane Silva Balbino135 Resumo: A presente pesquisa busca


analisar a atuação das elites religiosas e polí-
ticas, na criação de instituições de caridade e
educacionais, no atendimento das crianças das
classes populares. As instituições que estuda-
remos eram “propriedades” da Igreja Católica
e mantidas pela elite política local e são os se-
guintes estabelecimentos: Associação de Cari-
dade (funcionou na primeira década do século
XX); Sociedade São Vicente de Paulo; Escola
Profissional Delfim Moreira; Orfanato Nossa
Senhora de Lourdes e a Escola Doméstica San-
ta Terezinha. Nessa pesquisa trabalharemos
com as seguintes fontes históricas: jornais, fo-
tografias e obras memorialistas.

Palavras-chave: Caridade. Educação.


Igreja Católica. Estado.

Introdução

Abordar a questão da caridade e edu-


cação nesse período histórico é possibilitar a
compreensão do papel da infância nesse con-
texto. Abordaremos as instituições educa-
cionais e caritativas que foram fundadas, por
intermédio da Igreja Católica e do poder pú-
blico. Essas instituições eram vistas com gran-
de prestígio devido a sua ação social, discipli-
nar, educativa e trabalho.
135 Mestrando em Educação na Universidade Estadual de Campinas — UNICAMP.

174
Nesta pesquisa abordaremos as seguin- famílias pobres, oferecendo cuidados médi-
tes indagações: Qual o papel da caridade ofe- cos, além de cestas básicas, também buscavam
recida pelas elites pouso alegrenses? Quais as inibir a circulação dos mendigos pelas ruas
relações sociais e de poder exercidas? Qual o centrais. Em Pouso Alegre, nos anos de 1904
projeto estabelecido? Qual é o papel da criança a 1905, ocorrem as reuniões da Associação de
nesse contexto histórico? Diante dessas proble- Caridade no jornal Correio Sul Mineiro.
máticas levantadas, a presente pesquisa preten-
de preencher as lacunas teóricas referente ao Sr. Bispo tomou a palavra convidando
tema na região do Sul de Minas Gerais. para tomar posse da mesa provisória di-
rectoria dos trabalhos, os Srs Octavio
Questão da caridade Meyer e Eduardo Amaral, ao qual convi-
em Pouso Alegre dou para secretario. Em seguida, expoz os
fins da reunião, salientando bem que se
tratava de constituir uma associação pu-
A cidade de Pouso Alegre está lo- ramente de caridade (Jornal Correio Sul
calizada na região do Sul de Minas Gerais, Mineiro, Pouso Alegre, Sabbado 10 de
nesse período estava em constantes trans- Dezembro de 1905, Anno II, no. 56, p. 1).
formações sociais, políticas e econômicas,
certamente vivenciadas pela “euforia” do A Casa de Caridade era um sonho das
progresso no início da República em 1889. elites locais, os debates no jornal Correio Sul
A chegada da ferrovia em 1894 contagiou os Mineiro demonstram que a “ideia da fundação
citadinos e virou uma alternativa de contato de uma casa de caridade atingiu esse período.
com os principais centros urbanos do Brasil, É chegada o momento de torna-a uma realida-
tais como São Paulo e Rio de Janeiro. de” (Jornal Correio Sul Mineiro, Pouso Alegre,
A criação da Diocese de Pouso Ale- Sabbado 10 de Dezembro de 1905, Anno II, no:
gre em 1900, teve um impacto considerado 56 p. 1). O uso da caridade pode ser considera-
na região, pois o lugarejo é tradicionalmente do um sinônimo de poder, pois a “Igreja apre-
assentado nos costumes católicos. Segundo o sentava a caridade com os pobres como uma
memorialista Gouvêa (1998, p. 75): “um fa- ação dos pecadores que buscavam a salvação”
tor de fundamental importância para o pro- (PINTO, 2014, p. 2). O sentimento cristão nas
gresso de Pouso Alegre e desenvolvimento de obras de caridades, “que a verdadeira caridade
toda a região sul-mineira foi, sem dúvida a não póde existir sem o influxo do Christianis-
criação da Diocese de Pouso Alegre”. O pa- mo que nol-a trouxe”. (Jornal Correio Sul Mi-
pel do 1o Bispo da Diocese, que foi Dom João neiro, Pouso Alegre, Sabbado 18 de Dezembro
Nery é exaltada pelas elites locais: “a atuação de 1905, Anno II, no: 57 p. 1)
do bispo diocesano foi mais profícua, tra- A iniciativa do 1o Bispo Diocesano de
zendo novo alento e um surto de progresso Pouso Alegre, D. João Nery com a Sociedade
para Pouso Alegre”. (Ibidem, p. 77) São Vicente de Paulo136 na Associação de
Durante a primeira década do século Caridade, na cidade de Pouso Alegre, entre
XX, as elites religiosas e políticas vão pro- os períodos de 1904 e 1905, “não haja treguas
por medidas relacionadas a questão social, ao sympathico alvoroço com que repercutiu
tais ações como as criações de instituições nos ambitos desta cidade a nova tão grata do
de caridades e educacionais neste período, ressurgimento de uma ideia que jazia ador-
portanto, analisaremos a Escola Profissional mecida” (Jornal Correio Sul Mineiro, Pouso
Delfim Moreira, a Escola Doméstica San- Alegre, Sabbado 10 de Dezembro de 1905,
ta Terezinha, o Orfanato Nossa Senhora de Anno II, No: 56, p. 2).
Lourdes, a Sociedade São Vicente de Paulo e A Sociedade São Vicente de Paulo teve
a Associação de Caridade. uma enorme importância no contexto da cari-
Focaremos nesse tópico, na Sociedade dade no Brasil e em Pouso Alegre, possuindo
São Vicente de Paulo e na Associação de Cari- representatividade e apoio das autoridades po-
dade, foram responsáveis no atendimento das líticas. “As instituições devocionais foram res-

136
“São Vicente de Paulo (1581-1660) foi um sacerdote católico francês filho de camponeses católicos, canonizado
em 1737. Um dos protagonistas da Contrarreforma, a atuação de Vicente de Paulo como sacerdote foi caracterizada
pela dedicação aos pobres, pela defesa da catequese e do hábito da “confissão” do povo, pelos retiros espirituais para
leigos e sacerdotes e pela fundação das conferências semanais nas confrarias criadas por ele” Ver PINTO, Ana Paula
Magno. Assistência, Saúde e Sociedade na Zona da Mata mineira (1895-1939). Anais do XVI Encontro Regional de
História da Anpuh-Rio: Saberes e práticas científicas. 2014, p. 3.

175
políticas. “As instituições devocionais foram responsáveis pela organização da assistência aos
pobres e doentes no Brasil desde o período colonial e o hospital representava a caridade cristã,
para abrigar doentes ou peregrinos” (PINTO, 2014, p. 6). O papel dessas instituições na
ordenação social na cidade é perceber que “as elites realizaram as ‘obras unidas’, instituições
ponsáveis pela organização da assistência aos Em 1905, acontece “a sessão solemne
de apoio
pobres aos pobres
e doentes ‘indigentes’
no Brasil desde oeperíodo
incapazes co- (crianças, idosos
de posse e doentes)mesa
da primeira ” (Ibidem, p. p. 6-7).
administrativa da
lonial e o hospital representava a caridade cris- Associação de Caridade, recentemente funda-
tã, paraEm 1905,
abrigar acontece
doentes “a sessão solemne
ou peregrinos” (PIN- dedapossecom oda fimprimeira mesa
de instalar administrativa
e manter um hospitalda
TO, 2014, p. de
Associação 6).Caridade,
O papel dessas instituições
recentemente na com
fundada para os enfermos
o fim pobres
de instalar e manterdestaum
cidade” (Jornal
hospital para
ordenação social na cidade é perceber que “as Correio Sul Mineiro, Pouso Alegre, Sabbado
elites realizaram
os enfermos as ‘obras
pobres destaunidas’,
cidade”instituições
(Jornal Correio18Sul de Dezembro de 1905,
Mineiro, Pouso AnnoSabbado
Alegre, II, no: 57,18
p. de
1).
de apoio aos pobres ‘indigentes’ e incapazes Na fotografia a seguir, temos um panorama da
Dezembroidosos
(crianças, de 1905, Anno II,
e doentes) no: 57, p.p.1).
” (Ibidem, Na fotografia
p. 6-7). a seguir,
fachada temos São
do Hospital um panorama
Vicente deda fachada
Paula.
do Hospital São Vicente de Paula.

Figura Figura
1 | Hospital de São
1 - Hospital de SãoVicente dePaula
Vicente de Paula — Pouso
- Pouso Alegre –Alegre/1918
1918

Fonte: Acervo do Museu Municipal Tuany Toledo de Pouso Alegre.


Fonte: Acervo do Museu Municipal Tuany Toledo de Pouso Alegre

O Hospital São Vicente de Paula, estava localizada na Rua Adolfo Olinto, na região
central O Hospital cuidados
e fornecia São Vicente de Paula,
médicos dasesta-
pessoas Caridade
de classese mais
o Hospital
baixasSão Vicente para
da cidade, de Paulo
esse
va localizada na Rua Adolfo Olinto, na região são reflexos de um momento
feito, ase autoridades,
central nessa médicos
fornecia cuidados festa de das
caridade,
pes- “percorre o salão angariando esmolas para as
soas de classes mais baixas da cidade, para esse
primeiras
feito, despesas a se
as autoridades, fazerem
nessa festa com a instalação Questão
de caridade,
da educação
do futuro hospital de S. Vicente de Paulo. As
em Pouso Alegre
“percorre o salão angariando esmolas para as
primeiras despesas a se fazerem com a insta-
lação do futuro
Ana Paula Magno.hospital de Saúde
Assistência, S. Vicente de Pau-
e Sociedade Neste tópico,
na Zona da Mata mineira veremos
(1895-1939). Anaisa do
questão educa-
XVI Encontro
lo. As tres
Regional de listas renderam
História cercaSaberes
da Anpuh-Rio: de 1:200$000” cional 2014,
e práticas científicas. criadap.pelas
3. elites religiosas e políticas,
(Jornal Correio Sul Mineiro, Pouso Alegre, Sa- no atendimento dos meninos e meninas pobres 237
bbado 18 de Dezembro de 1905, Anno II, no: 57, e órfãos da sociedade pouso-alegrense, tam-
p. 1), portanto, exploravam o sentimento cris- bém focaremos na concepção da criança nesse
tão para angariar fundos para as despesas do contexto. Analisaremos a Escola Profissional
Hospital São Vicente de Paulo. Delfim Moreira; Orfanato Nossa Senhora de
Com tudo compreendemos que o Bra- Lourdes e a Escola Doméstica Santa Terezinha.
sil estava num processo industrial lento, mas Ocorrem mudanças na administração
a euforia do progresso contagiou, durante o da Diocese de Pouso Alegre, durante as primei-
“processo de industrialização, na ordenação da ras décadas, como afirma Gouvêa (1998, p. 80).
pobreza e da vida social, formulou toda uma
tecnologia disciplinar de cadastramento e con- Decorridos 8 anos de seu fecundo epis-
trole dos atendidos” (PAULA, 2005, p. 242). É copado, dom Nery foi transferido para
nesse sentido que se insere as instituições de Campinas, sua terra natal, em 30 de Ou-
caridades possuíam apoio das elites pouso ale- tubro de 1908, sendo substituído por dom
grenses, partindo nesse princípio, a Casa de Antônio Augusto de Assis, que foi auxiliar

176
valioso de dom Nery, sendo eleito Bispo ridade e também na promoção de uma mão de
Diocesano de Pouso Alegre em 29 de Abril obra especializada, foi enorme para a sociedade
de 1907, tomando posse em 17 de Novem- daquela época, se tratando de uma instituição
bro do mesmo ano. Em 21 de Novembro puramente “nobre” nos sentidos cristãos, res-
de 1913 dom Assis transferiu a residência ponsável pela capacitação profissional das pes-
episcopal para Guaxupé, para onde foi soas carentes em Pouso Alegre, pois “respondia
também o Seminário e todas repartições aos sentimentos morais e religiosos da época e,
da diocese. Em 3 de Fevereiro de 1916, foi depois, às necessidades “nacionais” da indústria
criada a Diocese de Guaxupé, desmembra- nascente”. (CIAVATTA, 2009, p. 175)
Moreira, sua importância
da da Diocese neste
de Pousocontexto dedom
Alegre, sendo caridade e também na Profissional
A Escola promoção de umaMoreira,
Delfim mão de
Assis nomeado bispo diocesano, ficando,
obra especializada, foi enorme para a sociedade daquela simbolizou
época,para época umde“progresso”
se tratando para a
uma instituição
portanto, vaga a direção da nossa diocese. história de Pouso Alegre:
puramente “nobre” nos sentidos cristãos, responsável pela capacitação profissional das pessoas
Após a vaga da Diocese de Pouso Ale- 19 de março é o dia de São José, conside-
carentes em Pouso
gre, ficar vacante,Alegre, pois
tomou-se “respondia
a posse, aos sentimentos morais
D. Octávio e religiosos
rado o santo padroeiro dosda época e,
trabalhadores
Chagas de Miranda, “tomando posse em 29 de e da família. “Curiosamente” objetivo da
depois, às necessidades
Junho, “nacionais”
iniciava-se para a Diocese deda indústria
Pouso Ale- nascente”. (CIAVATTA, 2009,
Escola Profissional p. 175)
estava na formação de
gre e para a própria cidade uma fase de gran- trabalhadores para os ofícios manuais de
desArealizações,
Escola Profissional DelfimdeMoreira,
que veio contribuir maneira simbolizou parameninos épocapobres
um “progresso”
e órfãos, com uma para
faixaa
notável para o seu progresso e prosperidade” etária de 10 a 17 anos. Em seu currículo
história de Pouso
(Ibidem, p. 81).Alegre:
No período episcopal, as ações oferecia as seguintes oficinas manuais:
do 3o Bispo Diocesano 19 de
de Pouso
março éAlegre, Octá-
o dia de São José, considerado sapataria, carpintaria,
o santo padroeiro dosmarcenaria, tipo-e
trabalhadores
vio Chagas de Miranda, cresceram
da família. uma maior objetivo da Escolagrafia,
“Curiosamente” artes e uma
Profissional seçãona
estava agrícola, de for-
formação de
preocupação na ordenação socialpara
trabalhadores e educativa ma geral,
os ofícios manuais de meninos estava
pobres inseridacom
e órfãos, na proposta
uma faixade
em Pouso Alegre. etária de 10 a 17 anos. Em seu currículo oferecia industrialização e urbanização
as seguintes do país.
oficinas manuais:
“Percebendo sapataria,
a criança como corpo (BALBINO, 2020, p. 71)
carpintaria, marcenaria, tipografia, artes e uma seção agrícola, de forma
produtivo, futura riqueza
geral, das nações”
estava (RAGO,
inserida na proposta de industrialização e urbanização do país.
1997, p. 121), em um período de intensas
(BALBINO, 2020, p. mudan-
71) Na fotografia abaixo, demonstram a
ças econômicas no país, ou seja, a industrializa- sua “dedicação”, com os meninos pobres e ór-
ção é pauta das elites locais. Com esse objetivo fãos, dando-lhe o uma capacitação profissio-
é fundada em 1917, a Escola Profissional Delfim
Na fotografia abaixo, demonstram a sua “dedicação”, nal, atravéscom
das os
suasmeninos
oficinas pobres
e uma educação
e órfãos,
Moreira, sua importância neste contexto de ca- primária, pautada nos valores cristãos.
dando-lhe o uma capacitação profissional, através das suas oficinas e uma educação primária,
pautada nos valores cristãos.
Figura 2 | Escola Profissional Delfim Moreira,
curso de Escultura datada em 1935
Figura 2 - Escola Profissional Delfim Moreira, curso de Escultura datada em 1935.

Fonte: Acervo do Museu Municipal Tuany Toledo de Pouso Alegre.


Fonte: Acervo do Museu Municipal Tuany Toledo de Pouso Alegre.

Essas oficinas estabeleciam, claramente uma “base de toda divisão do trabalho


177 é a separação entre cidade e campo”
desenvolvida e mediada pela troca de mercadorias
(MARX, 2013, p. 426). A separação do campo e da cidade podem ser observadas nas oficinas
Essas oficinas estabeleciam, clara- autoridades, foi inaugurado solenemen-
mente uma “base de toda divisão do trabalho te o novo edifício da Escola Profissional
desenvolvida e mediada pela troca de merca- a que, por decisão do Bispo, foi dado o
dorias é a separação entre cidade e campo” nome de Delfim Moreira, então Presi-
(MARX, 2013, p. 426). A separação do campo dente da República (TOLEDO, 1997, p.
e da cidade podem ser observadas nas oficinas 79) (grifo nosso).
da Escola Profissional, que possuem as seguin-
tes: tipografia, sapataria, carpintaria, marce- Nas décadas seguintes, a Escola Profis-
naria, oficinas de artes e uma seção agrícola, sional Delfim Moreira se manteve atuante no
pois “a educação dos operários desde a infân- seu objetivo de formar trabalhadores especia-
cia reflete a intenção disciplinadora de for- lizados, mas como também de propiciar uma
mar “cidadãos” adaptados que internalizem a educação religiosa para esses meninos.
ética puritana do trabalho comportando-se de “O dia 19 do corrente, consagrado ao
modo a não ameaçar a ordem social” (RAGO, grande Santo protector dos operários, foi de
1997, p. 120). Formar bons cidadãos era a lógi- grata alegrias para este estabelecimento pro-
ca das oficinas nessas instituições. fissional de educação” (Jornal Semana Reli-
O jornal Gazeta de Pouso Alegre trouxe giosa, Anno V, Pouso Alegre (Minas), 24 de
a seguinte matéria: “A Escola profissional, offi- Março de 1921, no. 229, p. 1), na concepção
cina onde se fazem cidadãos, aptos em futuro cristão este dia é marcado pela comemora-
a serem uteis á sociedade, e, ao progresso de ção do dia de São José, considerado o santo
nossa pátria, é também para bem alto render do protetor da família, do trabalhador e do
agradecimento ao Sr. Bispo D. Octavio” (Jornal operário. Este dia foi comemorado na Esco-
Gazeta de Pouso Alegre, Anno IV, 10 de Agosto la Profissional Delfim Moreira, que além de
de 1919, no. 100, p. 2). A notícia reforça e enal- profissionalizar os meninos pobres e órfãos,
tece o Bispo D. Octávio Chagas de Miranda que também fornecia uma educação religiosa.
foi fundamental no desenvolvimento da Escola Em 1947, a Escola Profissional proprie-
Profissional Delfim Moreira, considerada como dade da Diocese passou a ser administrada pela
essencial para a efetivação do “progresso”. “Congregação dos Filhos de Maria Imaculada ou
Durante o processo de organização e ma- Irmãos Pavonianos”. (BALBINO, 2020, p. 100).
nutenção da Escola Profissional, é notório a pre- A fundação do Orfanato Nossa Senhora
sença das elites eclesiásticas e políticas em torno de Lourdes ocorreu em 1920 e possuí como seu
desse projeto educacional. A instalação da escola objetivo, o “ensino primário e formação para as
se dá através de uma doação do senador Eduardo atividades domésticas” (Ibidem, p. 103), além do
Amaral, do Partido Republicano Mineiro, sendo acolhimento das meninas órfãs da cidade.
noticiada pelo Jornal Gazeta de Pouso Alegre. Segundo Gouvêa (1998, p. 185):

O Sr. Senador Eduardo Amaral n’um no- Em 3 de junho de 1920 foram inaugurados
bre impulso que muito honra a magna- o Orfanato N.S. de Lourdes para meni-
nimidade do seu bem formado coração, nas e uma capela, anexos ao Hospital São
acaba de fazer donativo á Escola Profis- Vicente de Paulo, na Rua Adolfo Olin-
sional ‘Delfim Moreira’ da chácara e pré- to, por iniciativa e pelo esforço da Irmã
dio onde se vae installar esse novel [sic] André, Superiora do Hospital, o qual
e útil estabelecimento de ensino, para os funcionou precariamente até 1931, quan-
que adquira há dias aquella propriedade do então foi demolido. Em substituição,
(Jornal Gazeta de Pouso Alegre, Anno II, dom Octavio fez erguer no local um novo
7 de Outubro de 1917, no. 18, p. 2). edifício de dois andares, construído pela
Associação de Caridade São Vicente de
O feito do senador, personificam as ações Paulo, da qual era presidente, para aco-
institucionais que resultaram na construção das lher as meninas órfãs da cidade. Orfana-
instituições educacionais, no entanto, o próprio to, ao qual foi dado o nome de Nossa Se-
nome da Escola Profissional é uma evidência des- nhora de Lourdes, passou então a abrigar
sas relações, entre Estado e a Igreja Católica. 30 órfãs, onde recebiam ensino primário
e trabalhos domésticos (grifos nossos).
No dia 4 de agosto de 1919, com a presen-
ça do Exmo. Sr. Dom Joaquim Mamede A lógica do Orfanato poder ser en-
da Silva Leite, do Revmo. Sr. Bispo Dio- tendida, após a fundação da Escola Doméstica
cesano, Dom Otávio Chagas de Miranda, Santa Terezinha em 1929, “começou a funcio-
do Senador Eduardo Amaral e demais nar em Pouso Alegre a Escola Doméstica Santa

178
Terezinha, propriedade da Diocese, destinada Considerações finais
ao ensino de misteres e prendas domésticas às
mocinhas pobres” (Ibidem, p. 184). Ambas ins- A pesquisa apresentada buscou tratar
tituições atendiam um público especifico, ou as ações do poder público e da Igreja Católi-
seja, as mulheres das classes populares, perce- ca, na fundação, organização e manutenção
be-se um projeto claro das elites pouso alegren- das instituições de caridade e educacionais na
ses em relação a educação feminina. primeira metade do século XX, na sociedade
“Na Escola Domestica Sta. Terezinha, pouso-alegrense. Tendo como a sua principal
ótimo educandário que tantos e tão abnega- preocupação as crianças das classes populares e
dos serviços presta á nossa cidade, realisou- a sua educação profissional e doméstica.
-se, a 29 do mez p. p., ás 14 hs., a entrega dos Podemos concluir, que o projeto edu-
diplomas ás alunas que terminaram o curso” cacional estava colocado como uns dos mais
(Jornal A Razão, Pouso Alegre, Ano I, 3 de importantes, apesar que as instituições de cari-
Dezembro de 1936, no. 33, p. 2). Compreende- dade possuíam apelo popular. Ambas institui-
mos a visão do jornal A Razão, sua estratégia ções possuíam o mesmo objetivo, de controlar
é de engrandecer o papel da instituição, pois as massas populares e promover as diretrizes
era responsável pela formação das moças da industrialização pouso-alegrense. “O sen-
pobres e órfãs em Pouso Alegre. A inserção timento da família, o sentimento de classe e
produtiva das mulheres no mundo do tra- talvez, em outra área, o sentimento de raça
balho também teve algo relacionado com a surgem, portanto como as manifestações da
reprodução de filhos sadios e obedientes. Na mesma intolerância diante da diversidade, de
qual a Escola Doméstica Santa Terezinha e o uma mesma preocupação de uniformidade”
Orfanato Nossa Senhora de Lourdes busca- (ARIÈS, 1986, p. 279), são essas relações pre-
vam ensinar para essas jovens, como serem sentes em Pouso Alegre.
boas mães e boas esposas. (BALBINO, 2020)
Ao atender o gênero feminino das
classes desfavorecidas, a Escola Doméstica Referências
Santa Terezinha e o Orfanato Nossa Senho-
ra de Lourdes reproduzem em sua essência o ARIÈS, P. História social da criança e da famí-
modus operandis na sua estrutura pedagógica lia. 2ª edição; Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
e formativa. O papel das mulheres na indus-
trialização estava sobretudo na estruturação BALBINO, G. S. A Igreja Católica e o Estado
da família, pois o “[...] trabalho doméstico se- na educação profissional em Pouso Alegre —
parado da produção de mercadorias, divisão MG (1917-1947). Campinas: Editora Unicamp:
sexual do trabalho doméstico e familiar é no- SP, 2020.
tável”. (HIRATA, 2002, p. 285)
CIAVATTA, M. Mediações históricas de tra-
balho e educação: gênese e disputas na for-
mação dos trabalhadores (Rio de Janeiro,
1930-60). Rio de Janeiro: Editora Lamparina,
CNPq, Faperj, 2009.

HIRATA, H. Nova divisão sexual do trabalho?


Um olhar voltado para a empresa e a socieda-
de. São Paulo: Boitempo, 2002.

MARX, K. O Capital: crítica da economia po-


lítica: Livro I: O Processo de Produção do Ca-
pital. São Paulo: Boitempo, 2013.

PAULA, F. Concepções de Atendimento à


Criança Pequena: Caridade, Filantropia, Assis-
tência e Educação Infantil. Estudos em Educa-
ção, Vol. 6, nº 11, 2º sem. 2005 p. p. 235-250.

PINTO, A. P. M. Assistência, Saúde e Socie-


dade na Zona da Mata mineira (1895-1939).
Anais do XVI Encontro Regional de Histó-

179
ria da ANPUH-Rio: Saberes e práticas cien- GOUVÊA, O. M. A História de Pouso Alegre.
tíficas, 2014. Borda da Mata — MG: Art’s Gráficas e Editora
Imagem, 1998.
RAGO, M. Do Cabaré Ao Lar: A Utopia da
Cidade Disciplinar Brasil 1890-1930. Rio de Ja- Jornal A Razão, Pouso Alegre, Ano I, 3 de De-
neiro: Editora Paz e Terra, 1997. zembro de 1936, no. 33.

Jornal Correio Sul Mineiro, Pouso Alegre, Sab-


Fontes bado 10 de Dezembro de 1905, Anno II, no. 56.

Figura 1 — Hospital de São Vicente de Paula — Jornal Correio Sul Mineiro, Pouso Alegre, Sab-
Pouso Alegre — 1918 bado 18 de Dezembro de 1905, Anno II, no: 57.

Figura 2 — Escola Profissional Delfim Moreira, Jornal Gazeta de Pouso Alegre, Anno II, 7 de
curso de Escultura datada em 1935. Outubro de 1917, no. 18.

TOLEDO, A. A. de O. Uma História Que Já


Vai Longe. Niterói, Gráfica Falcão, 1997.

180
POLÍTICAS SOCIAIS FRENTE
ÀS INFÂNCIAS “DESVALIDAS”
DA REGIÃO CARBONÍFERA
CATARINENSE (1930-1960)137

137
Patrick Dutra138 Resumo: Esta pesquisa tem como obje-
tivo analisar e inventariar as principais políti-
Ismael Gonçalves Alves 139
cas sociais destinadas às infâncias consideradas
“desvalidas” das camadas populares na região
Sul Catarinense entre as décadas de 1930 à 1960.
Neste período diversos segmentos sociais — Es-
tado, entidades filantrópicas, empresariado lo-
cal — passaram a se organizar com o intuito de
criar uma rede de proteção materno-infantil a
fim de enfrentar os problemas sociais e médi-
co-sanitários desencadeados pela acelerada in-
dustrialização e urbanização da região. Nossa
metodologia se constitui em pesquisas biblio-
gráficas e documentais realizadas no acervo
Memória e Cultura do Carvão (MCC) salva-
guardado pelo Centro de Documentação e Me-
mória (CEDOC) da Universidade do Extremo
Sul Catarinense (UNESC). As principais fontes
elencadas para este trabalho foram o relatório
do médico sanitarista Francisco de Paula Boa
Nova Junior, enviado a Criciúma pelo Depar-
tamento Nacional de Produção Mineral e o Ál-
bum Relatório das Pequenas Irmãs da Divina
Providência, congregação religiosa contratada
pelo SESI para atuarem nas vilas operárias da
região. Como resultados parciais é possível des-
tacar que as crianças das famílias operárias após

137
Este trabalho foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Cha-
mada Universal MCTIC/CNPq n. 28/2018 e pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)
da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC).
138
Graduando do curso de História da Universidade do Extremo Sul Catarinense — UNESC.
139
Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná — UFPR.

181
um longo período de descaso tornaram-se alvo buscaram intervir nas Vilas Operárias e, con-
de uma série de políticas assistenciais que visa- sequentemente, nas famílias mineiras.
vam garantir o seu desenvolvimento até a fase As décadas de 1930 a 1960 remontam
adulta, quando se tornavam operários. Para as a um processo de desenvolvimento de uma sé-
autoridades o abandono e o elevado número rie de políticas sociais voltadas às mulheres e
de mortalidade se tornaram um perigo social às crianças desta região. Nosso trabalho tem
que futuramente impactaria na formação mo- como objetivo pesquisar e analisar as prin-
ral dos futuros operários da indústria carvoei- cipais políticas sociais desenvolvidas neste
ra, que se tornava a cada ano mais importante período através da participação de diversos
como matriz energética para o desenvolvimen- segmentos sociais — Estado, entidades filan-
to seguro da indústria nacional. trópicas, empresariado local.

Palavras-chave: Políticas Sociais. In- Metodologia


fâncias. Maternidade. Discursos Médicos. Re-
gião Carbonífera de Santa Catarina/Brasil. Esta pesquisa partiu de uma aborda-
gem qualitativa, na medida em que buscou
analisar as principais políticas sociais destina-
Introdução das às infâncias consideradas “desvalidas” das
camadas populares na região Sul Catarinense,
A partir da década de 1930, o governo estudando o contexto no qual estas estavam in-
brasileiro, buscando minorar as pressões so- seridas e se desenvolveram. Para compreender
fridas por membros das mais diversas classes este contexto, buscamos trabalhar com a análi-
sociais, como empresários, médico e filantro- se das fontes documentais dos diversos agentes
pos, e se equiparar as potências mundiais de- sociais que ocuparam os espaços assistenciais
senvolvidas, passou a se posicionar frente às regionais. O acesso a estes documentos foi
questões de assistência social, elegendo como possível a partir das pesquisas bibliográficas e
principais sujeitos a serem protegidos as mães documentais realizadas no acervo Memória e
e as crianças. Neste período, a Região Carboní- Cultura do Carvão (MCC) salvaguardado pelo
fera Catarinense, adentrou na economia nacio- Centro de Documentação e Memória (CE-
nal a partir de seu desenvolvimento industrial DOC) da Universidade do Extremo Sul Ca-
carvoeiro, impulsionado especialmente pela tarinense (UNESC). Esta fase do trabalho foi
Segunda Grande Guerra (ALVES, 2014). As realizada e concluída durante o ano de 2019,
cidades de Criciúma, Lauro Müller e Tubarão permitindo a catalogação dos documentos uti-
destacaram-se na participação deste avanço lizados nesta pesquisa como fontes.
econômico, mas também sofreram consequên- As principais fontes elencadas para
cias decorrentes da mineração, especialmente este trabalho foram o relatório do médico sani-
na infraestrutura, saúde e educação. tarista Francisco de Paula Boa Nova Junior, en-
Segundo a historiadora Marli de Oli- viado a Criciúma pelo Departamento Nacional
veira Costa (1999) o avanço das atividades mi- de Produção Mineral, o Álbum Relatório das
neradoras precisou do deslocamento de uma Pequenas Irmãs da Divina Providência, con-
grande quantidade de trabalhadores das mais gregação religiosa contratada pelo SESI para
diversas regiões do estado de Santa Catarina, atuarem nas vilas operárias da região, projetos
que trouxeram consigo hábitos e costumes de de lei da década de 1950 voltados ao carvão na-
uma realidade rural. Para abrigar os trabalha- cional e o relatório final da CPI do Carvão.
dores e suas famílias, as empresas mineradoras Entendemos que os documentos não
se utilizaram de um artifício muito comum em transmitem por si uma verdade, pois os mesmos
outros centros industriais: as Vilas Operárias. são construídos para atender determinadas fi-
Construídos de maneira rudimentar, nalidades históricas, bem como aos interesses de
sem observar as mínimas normas de higiene sa- determinados grupos. Nesta perspectiva, cabe
nitária necessárias à vida humana, estes locais ao historiador constituir um diálogo entre múl-
de habitação rapidamente foram levados à es- tiplas fontes a fim de que elas estabeleçam entre
tafa, tornando-se um problema médico-sanitá- si uma relação complementaridade e permitam
rio de difícil solução, tanto para as autoridades uma análise ampla do objeto da pesquisa e sua
estatais quanto para as próprias carboníferas relação com o contexto no qual está inserida,
que os implantaram. Foi a partir deste quadro possibilitando que esta análise se dê a partir de
que autoridades locais — empresários, médicos, problemas históricos reais. Por se tratar de uma
filantropos — idealizaram uma série de políti- pesquisa exploratória de caráter bibliográfico e
cas sanitárias de caráter público-privado que documental, a constituição de um referencial bi-

182
bliográfico foi outro importante ponto da nos- sociais. Ações de fato efetivas como legislações
sa pesquisa, envolvendo o estudo de um amplo regulamentadoras e investimentos financeiros
conjunto historiográfico sobre a Região Carbo- condizentes aos problemas enfrentados passa-
nífera Catarinense neste recorte temporal. ram a ser visíveis após a década de 1940, quando
o governo de Getúlio Vargas institui políticas so-
Fundamentação teórica ciais destinadas às classes trabalhadoras, visan-
do atender as reivindicações sociais ao mesmo
O conceito de infância no ocidente vem tempo em que buscava aumentar sua populari-
sendo construído desde o século XVII, período dade. Estas políticas sociais possuíam um cunho
em que grandes filósofos passaram a se debruçar patriarcal com fundamentação na família como
sobre o tema da educação e repudiar os severos base da nação, sendo a figura do homem prove-
castigos físicos comumente aplicados nesta fase dor exaltada, ao passo que as mulheres seriam
da vida. A partir do século XIX esses pensamen- transformadas em apêndices de seus maridos.
tos passaram a ser apropriados pelos espaços edu- Apoiado pelos médicos especialistas, o
cacionais e pelos pais, que começaram a olhar os estado buscou transformar as mães em princi-
pequenos com mais afetividade, na medida em pais aliadas deste projeto de nação, cabendo a
que as crianças passavam a ser entendidas como elas a responsabilidade de seguir os ensinamen-
futuro da nação. A historiadora Ana Paula Vos- tos dos médicos para a construção de uma in-
ne Martins (2008) destaca que é nesta fase que fância saudável conduzida dentro da moral ca-
a família e a criança passam a ser vistos como tólica, imprescindível para o projeto futuro de
agentes políticos, promessas do futuro da nação nação industrializada e poderosa. Estas políticas
e da raça. Neste contexto ideológico, os médicos não foram capazes de alcançar as mulheres de
e as organizações femininas passaram a defender todas as camadas sociais, sendo que muitas fica-
maior atuação do estado no tocante à proteção ram à mercê das formas de assistência conduzi-
social das famílias, espaço que até este momento, das pelas entidades de caridade, benemerência e
era ocupado em sua maior parte, pela caridade filantropia, entidades que ocupavam os espaços
e beneficência prestadas por entidades religiosas deixados pelo Estado. (MARTINS, 2008)
e sustentadas pelas ações filantrópicas. Com a Esta série de legislações conduzidas
maior participação estatal, os médicos puericul- pela corporação médica faz parte de uma mu-
tores e higienistas passam a idealizar um mode- dança secular na arte de governar, onde frente
lo protecional focando nas mulheres mães como a necessidades governamentais mais comple-
principais responsáveis por uma criação saudável xas, o estado desenvolve um biopoder, definido
de seus filhos, principais aliadas dos médicos, na por Foucault (2010) como uma tecnologia mas-
medida em que seriam orientadas por estes espe- sificante e de controle populacional possibili-
cialistas, detentores de um verdadeiro conheci- tada pela união entre medicina e estado, que
mento capaz de orientar o Estado frente às polí- garantiu aos governantes o poder de controlar
ticas de saúde e bem-estar a serem adotadas. a vida e a morte de seus governados, buscando
Foucault (2010) escreve que para a me- prolongar ao máximo a utilidade dos sujeitos,
dicina sanitarista, a família deixa de ser apenas prolongando sua vida em favor do capital.
uma teia de relações de parentesco, para tornar- Nosso trabalho se propõe a analisar
-se um meio físico denso que continuamente en- esta rede assistencial formada na Região Car-
volvia, mantinha e favorecia o corpo da criança bonífera Catarinense a partir da década de
em sua totalidade. Segundo este filósofo, esta 1930 e as principais políticas sociais produzidas
realidade se torna necessária na medida em que por estes agentes para enfrentar os problemas
a população passou a ser vista como a maior me- do abandono destas mulheres, a mortalidade
dida de riqueza das nações modernas e as crian- infantil e principalmente a infância desvalida
ças passaram a receber mais importância dentro até a década de 1960, quando o modelo assis-
das sociedades. A partir deste entendimento, tencial existente na Região Carbonífera Ca-
sua moral e saúde viraram alvo de ações dos go- tarinense passa por mudanças e recebe maior
vernos, que apoiados pela corporação médica, financiamento frente a crescente população e
deram início a uma série de legislações visando organização operária e industrial.
proteger esta fase da vida, idealizando um mo-
delo de infância a ser desenvolvido. Resultados e discussões
Segundo o historiador Ismael Gon-
çalves Alves (2012) na realidade brasileira, essa A partir do final da década de 1930,
preocupação assistencial por parte do governo o Estado brasileiro passou a dar maior aten-
estatal teve início após décadas de lutas políti- ção às questões de assistência social, elegendo
cas de homens e mulheres de distintos grupos como principais sujeitos a serem protegidos as

183
mães e as crianças. Para atingir seus objetivos Foi partindo destas preocupações e
de alinhar o Brasil às potências desenvolvi- novas sensibilidades nacionais que os médicos
das e industrializadas, assim como minorar as que atuavam na Região Carbonífera Catari-
pressões que vinha sofrendo de membros das nense passaram a denunciar as a calamitosa
mais diversas classes sociais, o governo de Ge- situação em que estavam inseridos os minei-
túlio Vargas passou a se posicionar de manei- ros e suas famílias. A cidade de Criciúma,
ra clara sobre quais seriam as políticas sociais principal polo extrator do carvão catarinense,
destinadas à proteção à infância e à materni- era lembra nacionalmente por dois elemen-
dade em todo país. Tais políticas possuíam o tos, segundo o médico Manif Zacharias (1957
objetivo de normatizar os grupos familiares a p.01) “a terra, por suas particularidades: uma,
partir da assistência prestada diretamente aos o carvão, expressão de sua riqueza no subsolo;
homens devidamente inseridos no mercado de outra a elevada mortalidade infantil, tradu-
trabalho, entendidos como provedores de suas zindo a miséria de seu povo”.
famílias e esposas, que se dedicariam exclusi- A situação calamitosa em que a Re-
vamente aos cuidados do marido e filhos, se- gião Carbonífera Catarinense estava inserida
gundo os preceitos médicos do período. neste período está atrelada ao seu processo de
Para a historiadora Ana Paula Vosne industrialização acelerado, datado das primei-
Martins (2008) a assistência materno infantil ras décadas do século XX e impulsionado pelo
deste período está fundamentada nas ações advento das duas grandes guerras mundiais.
de médicos puericultores e higienistas que in- Neste período, o mercado internacional se en-
seridos em altos cargos estatais e assumindo contrava desarticulado, forçando as crescentes
um compromisso com o desenvolvimento na- indústrias brasileiras e o governo federal a se
cional, difundiam seus conhecimentos com o voltarem ao Estado catarinense para garantir o
objetivo de educar as mães e qualificá-las para contínuo fornecimento do carvão mineral.
uma gestação e maternidade saudável. Esta Segundo a historiadora Marli de Oli-
normatização da maternidade e idealização veira Costa (1999), para conseguir manter suas
de uma infância ideal através da reeducação operações na região, as carboníferas passaram
das mulheres por médicos foi definida pela a atrair uma imensa quantidade de pessoas que
autora como pedagogia materna. na busca de melhores condições de trabalho,
deixavam seus lares, principalmente na região
[...] os especialistas construíram não só o litorânea onde dedicavam-se à agricultura e à
saber puericultor, mas estabeleceram as pesca, para rumarem a Criciúma, visando uma
bases para a educação das mães ao afir- vida melhor para si e seus familiares. É im-
mar que elas nada ou pouco sabiam a res- portante destacar que os hábitos trazidos por
peito dos seus filhos e de como criá-los, essa população foram os principais focos das
desqualificando qualquer saber que não ações dos médicos sanitaristas no século XX,
fosse o médico. (MARTINS, 2008, p. 137) que apoiados por órgãos governamentais, bus-
caram modificar os valores e práticas destas
Nesta perspectiva, segundo o historia- pessoas, lhes ensinando valores e normas fami-
dor Ismael Gonçalves Alves (2017) as décadas liares burguesas. (RABELO, 2007)
de 1930 e 1940 marcam uma mudança de pen- Para abrigar os trabalhadores e suas
samento quanto as crianças e as mães brasi- famílias, as indústrias mineradoras cons-
leiras. Buscando o desenvolvimento nacional, truíram uma série de vilas operárias. Com
o governo de Getúlio Vargas passa a entender algumas poucas exceções, as vilas operárias
esta parcela da população como futuro do país, da Região Carbonífera Catarinense foram
desencadeando-se a partir deste ideal um es- construídas em torno das indústrias, nas pe-
forço para proteger as mães e as crianças desde riferias da cidade e nas imediações dos poços
os níveis federais até os locais. Segundo Alves das minas, sob o solo piritoso, desprovidas
(2017, p.124) “A preocupação com a criança e de saneamento básico, água tratada ou qual-
a mãe, particularmente com a mortalidade in- quer infraestrutura mínima. Estas condições
fantil, o menor abandonado, a delinquência, a podem ser percebidas no relatório final da
desnutrição, a mortalidade materna e a gesta- CPI do Carvão140, instaurada para investigar
ção saudável, foram o principal tema que pau- as condições de trabalho e vida dos mineiros
tou o sistema assistencial brasileiro”. e suas famílias, e concluído em 1959

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI do Carvão), foi instaurada em 1957 com a finalidade examinar as
140

condições de vida e trabalho dos mineiros catarinenses, a fim de propor mudanças e maior fiscalização sobre as
operações envolvendo a extração do minério.

184
[...] é seguinte o aspecto das habitações: Após apontar as mães como principais
construída de madeira, sujas, mal con- culpadas pela morte de seus filhos, que teriam
servadas e cheias de frinchas por onde os sido causadas pelas péssimas condições de
ventos reinantes rodopiam e pelas quais vida das crianças, consequência das tradicio-
podemos divisar o interior [...] se no verão nais práticas de cuidados com a infância, as
tais casas têm condições de habitabilida- ações do referido médico para enfrentar este
de, como suportá-las assim esburacadas quadro foi buscar reeducar as mães segundo
no rigoroso inverno de Santa Catarina seus preceitos. “[...] empreendemos uma ár-
quando muitas vezes é mister aquecimen- dua tarefa de educar as mães, de orientá-las e
to artificial? Não possuem serviços sani- aconselhá-las no sentido de mostrar-lhes o ca-
tários, água encanada e esgoto. [...] Só o minho certo que deveriam seguir [...]”. (BOA
fato de as casas não possuírem água e es- NOVA JUNIOR, 1953, p. 23)
goto, marca o grau de pauperismo dêsses Ciente das limitações da estrutura
operários sujeitos êles e suas famílias, em assistencial existente no Brasil neste período,
falta de água potável e esgoto, [...] desen- principalmente nas cidades afastadas das ca-
terias, tifo e verminoses [sic]. (Diários do pitais, exemplo de Criciúma, Boa Nova Júnior
Congresso Nacional, 1959, p. 946) (1953, p.27) elaborou um “plano de proteção
à infância” de fácil realização, que deveria ser
executado pelas “autoridades federais, esta-
Anos de abandono e negligência des- duais e municipais em parceria com os mine-
ta população por parte das autoridades que radores de Criciúma, a fim de que se reduza,
legalmente deveriam ser responsáveis por nesta cidade [...] o elevado índice de mortali-
lhes prestar assistência, somadas as precárias dade infantil [sic][...]”. Dentre as principais
condições de salubridade das habitações dos medidas apontadas pelo médico, destacamos:
mineiros, levaram a uma situação sócio-sani- Ampliação e instalação de postos de puericul-
tária de difícil solução, marcada por um ele- tura; construção de uma ala infantil no hospi-
vado coeficiente de mortalidade infantil que tal S. José, em Criciúma; Ampliação do posto
passou a ganhar destaque no cenário nacional. de abastecimento do SESI local.
Nas palavras do médico Francisco de Paula O médico Boa Nova Junior foi um
Boa Nova Junior, funcionário do DNPM en- dos agentes assistenciais que atuou na cidade
viado a sua autarquia de Criciúma em 1944 de Criciúma a partir de um complexo assis-
para exercer os trabalhos de cunho sanitário tencial erigido na Região Carbonífera Cata-
do departamento visando proporcionar à me- rinense com a participação de autoridades
lhoria da qualidade de vida dos mineiros: locais — empresários, médicos, filantropos —
que idealizaram uma série de políticas sani-
A mortalidade [...] despertou nossa aten- tárias de caráter público-privado buscando
ção em 1944, quando chegamos a Cri- intervir nas Vilas Operárias e, consequente-
ciúma, pelo elevado número de enterros mente, nas famílias mineiras.
de crianças que eram vistos diariamente Para superar as atitudes de resistência
pelas ruas da cidade (8 a 10, em média). desencadeada pelos trabalhadores e suas famí-
Buscámos inicialmente as principais lias e adentrar seu cotidiano, as autoridades
causas dêste elevado e encontrâ-mo-las passaram a idealizar acordos com congregações
[...] nas doenças gastro intestinais [...] religiosas, visto os bons resultados alcançados
doenças do aparelho respiratório [...] em outras vilas operárias por estas congrega-
doenças infecto-contagiosas em geral, ções e os pequenos investimentos financeiros
e, principalmente subnutrição! É su- que seriam necessários para esta parceria.
mamente desagradável e doloroso rela- Segundo a historiadora Giani Rabelo
tarmos aqui que muitas criancinhas em (2007) as religiosas passaram a atuar dentro das
Criciúma, pereciam em grande número vilas operárias e prestar assistência às famílias
[...] em virtude, principalmente do des- operárias, focando na educação das mães e no
caso de seus próprios pais, da ignorância cuidado com a formação moral das crianças, de
de suas mães, que sob a infundada alega- modo que os trabalhadores seriam beneficia-
ção de que <<seu leite era fraco>> desma- dos através de suas famílias, tornando-se mais
mavam-nas logo as primeiras semanas de produtivos e ajustados à vida social e ao mun-
vida, substituindo o preciosíssimo leite do do trabalho. Para exercer está atuação, as
materno pelo pirão de farinha de man- religiosas passaram por formações proporcio-
dioca, feito simplismente com água [sic]. nadas pelo serviço social do SESI, que as trei-
(BOA NOVA JUNIOR, 1953, p. 22) nava visando que repetissem estes ensinamen-

185
tos para as mulheres e proporcionassem desta roubei torradinha lá na praça e laranja
forma uma reeducação das famílias. cravo numa carroça!” E os despropósi-
Para analisar políticas sociais desti- tos continuavam [...]. Na tarde seguinte,
nadas às infâncias desenvolvidas pelas con- a visita se repetiu com maior número de
gregações religiosas, faremos a análise do crianças e o assunto ventilado ainda foi o
Álbum Relatório das Pequenas Irmãs da Di- mesmo, intercalado somente com alguns
vina Providência, congregação religiosa que conselhos e orientações nossas, cuidado-
atuou dentro da Vila Operária Próspera em samente dosados, para não tolher a en-
parceria com o SESI. Segundo o documento, cantadora espontaneidade dos meninos.
as religiosas realizavam visitas domiciliares Os encontros se repetiam diariamente
periódicas sob os preceitos do higienismo e ao cabo de dois meses estava firmada
e da puericultura. Além das visitas, cursos uma sólida amizade entre os 50 moleques
populares eram oferecidos na tentativa de [...]. Nossa casa era vista por eles como
minorar os principais problemas presen- um parque infantil. Chegavam a qualquer
tes no cotidiano das famílias, que no geral hora, trepavam nas árvores, jogavam bola
eram causados pela sua condição de pobreza. etc. Iniciamos então o movimento de fu-
Dentre os cursos populares que as religiosas tebol. Foi um alvoroço! Todos queriam
ofereciam, o Álbum/Relatório destaca: En- jogar e para satisfazê-los criamos vários
fermagem Caseira, Enfermagem a Domicilio, times [...]. Mais tarde, se fez necessário
Arte Culinária e Serviço Prático de Costura. arranjar um técnico, o que foi possível
A fim de qualificá-las para uma gerên- com uma cooperação de um operário [...]
cia ideal do lar, esperava-se que fossem capazes Salientamos o trabalho dos técnicos, que
de prover o ambiente e alimentação adequados desenvolveram nas crianças o espírito de
para a boa produção de seus maridos nas mi- ética esportiva. Atualmente os meninos
nas, bem como um crescimento saudável para têm outro modo de viver. São amigos, de-
seus filhos, futuros trabalhadores. Este progra- sempenham, com espírito de cooperação,
ma buscava instrumentalizar as mulheres para os cargos que a eles confiamos [sic].
orientá-las e circunscrevê-las na esfera do lar,
em conformidade com as normas de gênero É possível perceber que a preocupa-
requeridas para a docilização dos empregados ção das religiosas estava voltada a uma edu-
das empresas carboníferas. Para chegar às in- cação moral das crianças. Para enfrentar este
fâncias, as religiosas buscaram atuar na reedu- problema de forma sutil, as irmãs passaram a
cação das mães e prepará-las de acordo com os organizar momentos de recreação a partir de
ideais propostos pelos médicos especialistas, brincadeiras, cursos, campeonatos, formação
que buscam transformá-las em suas aliadas de bandas musicais e de coral e, até mesmo,
contra a mortalidade infantil. passeios de Jeep. O intuito das religiosas era
Um outro ponto que causou preocu- de ocupar o tempo das crianças com ativida-
pação às Pequenas Irmãs da Divina Providên- des que ajudassem a desenvolver nelas um es-
cia, eram as crianças das famílias operárias pírito ético e de companheirismo, baseado na
que passavam seus dias fora de casa. Segundo honestidade e no esforço. Ao ocupar o tempo
relatado pelas irmãs em seu Álbum/relatório das crianças com atividades recreativas, as
(1955-1957, p.22): religiosas praticavam uma imposição dos va-
lores necessários à formação dos futuros cida-
Aos primeiros dias de nossa chegada à dãos e operários. (RABELO, 2007)
Próspera, veio visitar-nos tomados de A práticas das religiosas estavam ba-
curiosidade, uma turma de mais ou me- seadas em perceptíveis normas de gênero, na
nos 50 meninos, sujos e maltrapilhos. medida em que as atividades eram divididas de
Em conversa animada, contaram-nos as acordo com o sexo das crianças. Enquanto os
suas “façanhas”, com tôda desenvoltura, meninos desenvolviam atividades físicas, cam-
empregando uma linguagem baixa, dei- peonatos e brincadeiras voltadas à convivência
xando-nos entrever o estado deprimente social nos espaços públicos, para as meninas as
de suas pequenas almas. Formou-se uma atividades eram voltadas ao espaço privado do
seqüência de denúncias: — “Sabe, Irmã, lar, como os trabalhos manuais. Um exemplo
o Fulano rouba tanto peixe no cami- desta distinção de gênero foi a formação do
nhão![...]” — “E você, rouba dinheiro de grupo das violetas, que reunia meninas entre
seu pai para comprar cachaça!” — “Isto 8 e 11 anos. Segundo o registrado no Álbum/
não sou eu sozinho, o fulano e o sicrano relatório (1955-1957, p.22), o curso era voltado a
também fazem.” — “É mentira Irmã, eu só atividades de confecção e costura:

186
Os primeiros que ensinamos foram: Rotary Club local com o objetivo de
ponto de haste, de margarida, sococó, prestar assistência às crianças pobres
ponto cruz, meio ponto e caseado. No do município. Esta entidade tinha como
decorrer da reunião, as meninas con- objetivo inicial a construção das chama-
versam alegremente, contam histórias e das “casas lares”, nas quais cerca de dez
por último rezam o terço. Para “tirar o crianças seriam entregues a um casal
terço” fazemos um sorteio uma vez que responsável por criá-las, preparando-as
tôdas o querem tirar e fazem para isso para o convívio saudável em sociedade.
uma grande torcida [sic]. (ALVES, 2012 p. 242)

É importante destacar que as atividades O historiador Ismael Gonçalves Alves


desta congregação religiosa estiveram limitadas (2012) destaca que Visando a complexidade
à vila operária próspera, até a década de 1960, desta situação e entendendo que somente as
quando passaram a atuar em parceria com a ações filantrópicas não estavam sendo sufi-
Sociedade de Assistência aos Trabalhadores do cientes para solucionar o abandono infantil
Carvão (SATC), fundada um ano antes. Nesta da importante cidade carbonífera, a Comis-
perspectiva, a situação de abandono infantil na são do Plano de Carvão Nacional (CPCAN)141
Região Carbonífera continuava existindo fora destina parte das verbas voltadas à assistência
da vila operária e contribuindo para as angús- social local para a construção do Bairro da Ju-
tias presentes nos habitantes da industrializada ventude, inaugurado em 1954. Esta entidade
Criciúma. Notícias alarmantes sobre esta situa- foi construída partir das fundações da SCAN
ção circulavam os jornais da cidade: e entregue à direção dos Irmãos Rogacionistas
do Sagrado Coração de Jesus, visando o obje-
O aumento espantoso da criminalida- tivo de abrigar os menores abandonados da ci-
de infantil, e o número incalculável e dade e fornecer a eles cursos profissionalizan-
alarmante de menores abandonados, tes com o apoio do SENAI (Serviço Nacional
social e economicamente desajustados de Aprendizagem Industrial).
sem nenhuma [...] assistência [...] cons-
tituem, hoje, um dos problemas a exigir Considerações finais
imediata solução, em face à gravidade
e perigo que oferecem [...] Serão êles Este trabalho proporcionou a pesqui-
os homens de amanhã [...] cuja vida sa e análise das principais políticas sociais
miserável e as precaríssimas condições desenvolvidas na Região Carbonífera Cata-
sociais e econômicas [...], poderão ofe- rinense empregadas pelo Estado, entidades
recer dificuldades inquietantes à har- filantrópicas, empresariado local e demais
monia e à ordem social [sic]. (TRIBU- segmentos sociais, na formação de uma rede
NA CRICIUMENSE, 1955, p. 07) de proteção materno-infantil local que visava
a assistência às mães pobres e o combate da
Foucault (2010) destaca que o Bio- mortalidade infantil, considerados graves en-
poder se constitui a partir de uma tecnolo- traves para o desenvolvimento regional, entre
gia massificante e de controle populacional as décadas de 1930 a 1960. Sustentando seus
que busca prolongar ao máximo a utilidade ideais em preceitos médicos que vigoravam
dos sujeitos em favor do capital. Dentro des- como verdades neste período, as autoridades
ta perspectiva, o Estado passa a agir nas mi- investigaram o cotidiano das famílias operá-
núcias e nos eventos aleatórios que colocam rias da indústria carbonífera e apontaram as
em risco a população ou seu projeto para ela. mulheres das camadas populares como princi-
Longe do alcance das entidades disciplinares pais culpadas pelo elevado índice de mortali-
tradicionais do Estado e sem uma formação dade infantil da Região, ao tempo que relati-
moral familiar, estas crianças representavam vizaram o abandono material destas famílias.
um perigo para a sociedade de controle do Visando alcançar um ideal de infância
amanhã. Visando enfrentar esta situação saudável, as ações sociais regionais estiveram
voltadas à reeducação das famílias operárias,
[...] foi criada em Criciúma a Sociedade principalmente das mães, acarretando a im-
Criciumense de Assistência aos Neces- posição de um preconceituoso discurso médi-
sitados (SCAN), fundada em 1949 pelo co que serviu de álibi a um processo minucio-

A comissão do Plano de Carvão Nacional foi regulamentada pela Lei nº 3.860, de 24 de dezembro de 1960, com o
141

objetivo de ser responsável pela supervisão do setor industrial carvoeiro.

187
so de intervenção no cotidiano destas famílias Referências
através das visitações e dos cursos oferecidos
pela já citada congregação religiosa. Essa in- ÁLBUM/Relatório das atividades das peque-
tervenção esteve pautada em ideologias de gê- nas Irmãs da Divina Providência. (1955-1957)
nero, que buscavam atrelar os cuidados do lar — SESI — Criciúma/SC. [S. L.: s. n.].
e da família às mulheres.
Para atuar frente às infâncias “desvali- ALVES, I. G. Aproximações e perspectivas: um
das” que escapavam do controle familiar e das breve inventário sobre a produção de políticas
instituições de estado, as entidades filantró- públicas materno-infantis no sul de Santa Ca-
picas e congregações religiosas buscaram ocu- tarina. In: Revista Opsis. Vol 12. Goiás: UFG,
pá-las com atividades voltadas a sua educação 2012. p. 226-248.
e formação moral, garantindo uma vigilância
constante e desencadeando um processo de ALVES, I. G. Infância e morte na região carbo-
docilização, necessário para a sua futura atua- nífera: os discursos médicos sanitários sobre a
ção nas indústrias nacionais. mortalidade infantil no sul de Santa Catarina.
Estas políticas sociais possibilitadas História: Questões & Debates, Curitiba, v. 65,
frente às parcerias público-privadas que se for- n. 1, p. 119-143, 01 jun. 2017.
maram na Região, foram as bases de um pro-
cesso de reeducação familiar encabeçada por BOA NOVA JUNIOR. F. P. Problemas médi-
médicos que atuaram na região e estiveram co-sanitários da indústria carvoeira. Ministé-
à frente dos esforços para a formação de um rio da Agricultura: DNPM, 1953.
amplo complexo assistencial erigido na Região
Carbonífera Catarinense, modelo assistencial BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. 31
Regional que se estendeu por anos. de janeiro de 1959.

COSTA, M. O. Artes de Viver: Recriando e


reinventando espaços, memórias das famílias
operárias mineiras da vila operária próspera,
Criciúma (1945/1961). Dissertação (Mestrado
em História) Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis,1999.

COSTA, R. A ação do poder público e a defesa


do menor abandonado. Tribuna Criciumense.
Criciúma, 07 de novembro de 1955.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 15.ed.


Rio de Janeiro: Graal, 2010.

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6ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universi-
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médicos puericultores e a pedagogia materna
no século XX. Revista História, ciências, saú-
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RABELO, G. Entre o hábito e o carvão: peda-


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na segunda metade do século XX. Tese (Douto-
rado em Educação), Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.

ZACHARIAS, M. Mortalidade infantil em


Criciúma. Tribuna Criciumense. Criciúma, 20
de maio de 1957. p. 01.

188
POLÍTICA ASISTENCIAL
DE MENORES.
PROVINCIA DE BUENOS
AIRES, AÑOS ’20142

142
Yolanda de Paz Trueba143 Resumen: Una mayor sensibilidad
hacia los problemas que representaban cier-
tos sectores de la infancia, sumado a una cri-
sis económica que acentuaba desigualdades
en el contexto de la Primera Guerra Mundial,
repercutieron en una mayor demanda al Esta-
do Argentino para que tomara algunas resolu-
ciones al respecto, tanto de la opinión pública
como del arco político.
Si bien en materia de infancia y asisten-
cia social en general las instituciones de índole
privada y muchas veces de raigambre católica,
siguieron desempeñando roles protagónicos,
hacia la década del 20 es posible observar cierta
voluntad del Estado provincial por profundizar
su intervención sobre ciertos menores de edad
a través de la institución analizada. Esta pro-
puesta busca indagar en los factores que habrían
influido en esos años ‘20 para que el Patronato
Provincial de Menores, que se había instalado
en 1917, se reorganizara buscando además, mo-
dernizar sus formas de asistencia de la mano del
sistema de granjas familiares.

Palabras clave: Menores, Estado, Pa-


tronato.

142
Esta ponencia es una versión preliminar de un trabajo en progreso.
143
Doctora en Historia por la Universidad Nacional del Centro — UNCP.

189
Política assistencial de
menores. Província de
Buenos Aires, anos 1920

Resumo: Uma maior sensibilidade até a década de 1920 é possível observar certa
para os problemas que representavam cer- vontade do Estado provincial em aprofundar
tos setores da infância, somados a uma crise sua intervenção sobre determinados menores
econômica que acentuava desigualdades no de idade através da instituição analisada. Esta
contexto da Primeira Guerra Mundial, reper- proposta busca investigar os fatores que te-
cutiram em uma maior demanda no Estado riam influenciado nos anos 1920 para que o
Argentino para que fossem tomadas algumas Patronato Provincial de Menores, instalada
resoluções a respeito, tanto com relação a opi- em 1917, fosse reorganizada, buscando tam-
nião pública como no âmbito político. Ain- bém modernizar suas formas de atendimento
da que nas questões relacionadas a infância nas mãos do sistema de agricultura familiar.
e assistência social, em geral, as instituições
privadas e, muitas vezes, de raízes católicas Palavras-chave: Menores. Estado. Pa-
desempenhassem papéis de protagonistas, tronato. Buenos Aires.

190
Introdução continuidad entre el periodo peronista y las
décadas previas (ORTIZ BERGIA, 2009), así
Aun entradas las primeras décadas de como los trabajos preocupados por la infancia
siglo XX, un entramado institucional muchas que han mostrado las limitaciones de la Ley
veces privado y de carácter religioso hacía fren- Agote sancionada en 1919, a la hora de concre-
te a las necesidades crecientes y diversificadas tar las instituciones que debían llevar adelante
de los niños, niñas y jóvenes de las clases tra- la forma de tutela que postulaba (STAGNO,
bajadoras (DE PAZ TRUEBA, 2020a). Recién 2010; ZAPIOLA, 2014). Las investigaciones de
la década del ‘30 habría marcado una inflexión esta autora han mostrado cómo ésta influyó
en el rol del Estado tanto en la órbita nacional durante los años 20 para introducir cambios
como en diversas provincias en la provisión de en materia de intervención, especialmente en
bienestar, y especialmente en materia de in- una institución considerada modelo como fue
fancia y maternidade. (COSSE, 2005; ORTIZ la Colonia Hogar Ricardo Gutiérrez.
BERGIA, 2009; GIMÉNEZ, 2009) Las páginas siguientes, buscan mostrar
Sin embargo, estas certezas han opa- cómo la provincia de Buenos Aires a través del
cado en cierto modo el abordaje de las políti- Patronato Provincial de Menores acompañó
cas estatales sobre la infancia durante los años ese movimiento de renovación propiciado por
previos, especialmente fuera de la ciudad de la Ley Agote e incluso se anticipó (más allá
Buenos Aires, desatendiendo la implementa- de sus falencias y dificultades) en términos de
ción de algunos proyectos como el que encar- prácticas estatales de intervencionismo.
nó el Patronato Provincial de Menores de la Partiendo desde los orígenes y prime-
provincia de Buenos Aires. Instituido por ley ros avances del Patronato previos a los años
en 1910, en la práctica implicó una temprana 20, en las páginas que siguen se muestra de
(aunque dificultosa y a veces errática) inter- qué modo las críticas a su implementación y
vención estatal sobre determinados sectores sobre todo algunos sucesos particulares inci-
de menores de edad bonaerenses144. dieron en la toma de medidas para mejorar la
Pero a pesar de las limitaciones con vida de los internos y la reorganización de la
las que se implementó en 1917, se asume aquí institución hacia 1923. En síntesis, si bien el
que la provincia de Buenos Aires puso de Patronato configuró una presencia estatal que
manifiesto de manera temprana cierta voca- se combinó con las obras asistenciales priva-
ción intervencionista en materia de minori- das y/o religiosas, a través de la institución
dad abandonada, que como buscamos mos- analizada buscamos mostrar cómo durante el
trar en las páginas siguientes, avanzó sobre periodo abordado en este trabajo se profundi-
pasos más seguros en la década del 20145. zó la política de asistencia de gestión estatal
La pregunta que guía este trabajo se sobre ciertos menores de edad.
inspira en pistas que han brindado las inves-
tigaciones que abordan las acciones del Es- Orígenes del patronato
tado liberal argentino de fines del siglo XIX provincial de menores
y comienzos del siglo XX y los particulares
sobre pobres, obreros, prostitutas, enfermos,
escolares, huérfanos, mendigos y un variado Desde las décadas finales del siglo
abanico de otros sujetos sociales (SURIANO, XIX, se hicieron presentes las críticas hacia las
2000; LVOVICH Y SURIANO, 2006; MO- maneras de intervenir sobre algunos sectores
REYRA, 2009; BONAUDO, 2006; ERASO, de la infancia, especialmente los hijos de las
2009; DE PAZ TRUEBA, 2010; BILLOROU, clases trabajadoras que ingresaban a tempra-
2010; GUY, 2011; PITA, 2012; BRACAMON- nas edades al mercado laboral, permanecían
TE, 2012, REMEDI, 2017, entre otros). Tam- escaso tiempo en la escuela (cuando lo hacían)
bién los que sostienen que los años 30 del siglo y con suerte crecían con su familia de origen.
XX vieron acrecentarse los intentos de regula- Las instituciones encargadas de ocuparse de
ción estatal de la asistencia, marcando así una estas situaciones eran generalmente de la ór-

144
Así se desprende tanto de fuentes oficiales como de medios de prensa utilizados en este trabajo: Diario El Día de
La Plata, Memorias del Ministerio de Gobierno y Registro Oficial de la Provincia y en menor medida los Diarios de
Sesiones de la Legislatura de la Provincia de Buenos Aires.
145
Cabe aclarar que este intervencionismo de todos modos no dejaba de estar pensado desde una institución que se
sumaba a las acciones y al entramado existente (tanto privado como público). La novedad de su modalidad radica
en la manera de pensar la tutela desde esa institución y no en un cambio más general. Será recién en 1937 a través de
la Ley 4537 que se creó la Dirección General de Protección a la Infancia en la provincia cuando se intente

191
bita privada y religiosa que, aunque recibían depósito del patronato, a través de su reglamen-
subsidios del Estado, no estaban dentro de su tación.147 Finalmente, entre 1918 y 1920 se de-
estructura burocrática. Tempranamente algu- cidió el traslado de los menores varones a un
nas voces criticaron este sistema y empezaron lugar más amplio148 dejando libre el de la calle
a reclamar una mayor regulación estatal de 6 para alojamiento de menores mujeres que la
este entramado institucional que, en la prácti- ley preveía pero que hasta entonces no se ha-
ca suplía al Estado. Estas preocupaciones, ex- bía puesto en práctica y149, lo más importan-
cedían a la Argentina y formaron parte de una te, parecía ser que se iba camino de concre-
matriz de ideas e inquietudes que configuró tar el anhelo del edificio cuando a mediados
un movimiento internacional. de 1920, pocos meses antes de renunciar a su
La provincia de Buenos Aires, no había cargo, el gobernador Crotto colocó la piedra
permanecido ajena a esas preocupaciones por fundamental del que sería el local definitivo
la infancia y la minoridad, que se habían visto del Patronato de Menores de la provincia150.
acentuadas desde mediados de la década ante- Mientras se aguardada aquella cons-
rior, cuando una feroz crisis económica había trucción, la Ley 3293 de 1910 se llevaba a la
puesto fin a una época de crecimiento y desar- práctica en un edificio provisorio. La prensa
rollo sin precedentes. Esto repercutió en una provincial era dura en relación al diagnóstico
mayor demanda al Estado desde diversos sec- que hacía de su funcionamiento, ya que según
tores tanto de la opinión pública como del arco se afirmaba lejos estaba de cumplir con las ex-
político, para que se hiciera cargo del problema pectativas que había generado151. Sin embargo,
que representaba la cuestión de la minoridad y visto en perspectiva, los años 20 fueron testi-
vagabunda, mendicante y/o abandonada. Con gos de avances muy significativos.
frecuencia se subrayaba la necesidad de hacer Tras la renuncia del primer gobernador
realidad de manera definitiva la Ley de Patro- radical electo en 1920, comenzó a observarse
nato de 1910 que como señalamos, temprana- una aceleración en las resoluciones en este sen-
mente había pensado en una manera estatal de tido: se buscó perfeccionar la puesta en marcha
intervención y tutela sobre ciertos sectores de de la sección mujeres del Patronato, una de las
la infância. (DE PAZ TRUEBA, 2020b) últimas medidas tomadas por el mandatario
Los primeros avances en relación al anterior y que fue instalado el 20 de mayo de
tema se habían dado hacia 1916, durante la 1921152. Así, se destinaron $6000 para la cons-
segunda gobernación de Ugarte. Fue durante trucción de baños y obras sanitaras y se pensó
esta gestión que se había reservado una casa en ampliarlo alquilando propiedades linderas.
ubicada en la calle 6 número 1274 de la ciudad Además, el año 1922, se abrió de manera aus-
de La Plata para refugio de niños, que se deno- piciosa con un nuevo traslado del internado
minó depósito del patronato y debía funcionar de varones (que hasta entonces había fun-
de manera provisoria hasta tanto se organizara cionado en dos ubicaciones diferentes pero
el Instituto definitivo. También en esta etapa siempre en el centro de la ciudad), al edificio
se propuso instalar el Patronato en una frac- ubicado en la zona de Villa Elisa. Este era un
ción de tierra fiscal que se destinó para ello y lugar más amplio que contaba con tres hec-
estaba ubicada en la sección Abasto de la ciu- táreas de tierra con frutales y espacio en el
dad.146 Más tarde, se tomaron algunas medidas que se planeaba criar aves finas, colmenas y
tendientes a mejorar la dinámica interna del gallinero; se instalarían también allí los talle-

146
Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, Año 1916, Tomo 1, enero a junio, La Plata, Taller de Impresiones
Oficiales, 1916, p.264 a 266 y Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, Año 1917, Tomo 1, enero a junio, La
Plata, Taller de Impresiones Oficiales, 1919, Departamento de Gobierno, Decreto N° 77, 25 de enero de 1917.
147
Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, Año 1917, Tomo 2, julio a diciembre, La Plata, Taller de Impre-
siones Oficiales, 1919, p. 634 a 640.
148
El nuevo local estaba ubicado en la calle 14. Memoria presentada a la Honorable Legislatura por el Ministro de
Gobierno Dr. José Osvaldo Casas, Mayo de 1924, La Plata, Taller de Impresiones oficiales, 1924, p. 513.
149
Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, Año 1918, Tomo 1, enero a junio, La Plata, Taller de Impresiones
Oficiales, 1919, p. 819.
150
El Día, “Patronato de menores. Primera piedra del futuro edificio”, 21-6-1920.
151
El Día, “El Refugio de Menores”, 22-8-1919 y “Patronato de Menores. Cumplimiento de la ley de 1910”, 13-5-1920,
entre otros.
152
Memoria de 1924, cit., p. 513. Si bien el Patronato fue una obra de entera gestión y sostenimiento estatal, la ad-
ministración interna de la sección mujeres quedó a cargo de la Congregación de Nuestra Señora de la Misericordia,
amalgamando así un modo tradicional de atender a las niñas con uno más vanguardista destinado a varones.

192
res donde se confeccionarían, entre otros pro- practicadas por un celador y un estudiante de
ductos, ropas y zapatos153. Pero al poco tiempo medicina de las inmediaciones al que habían
la decepción volvería a ser la regla. recurrido, por no contar el establecimiento
El traslado encerraba la intención de con médico propio. En esta oportunidad, la si-
modificar la dinámica interna de acuerdo a tuación tuvo otras consecuencias ya que con el
los preceptos de tutela estipulados en la Ley correr de las horas la situación de Fontana no
3293. El alojamiento en un lugar de mayores mejoraba y dos días más tarde debió ser tras-
dimensiones permitiría además de salir del ladado al Hospital de Niños, donde diagnos-
hacinamiento, desarrollar una oferta forma- ticaron que “…las lesiones recibidas por el
tiva más completa como la detallada antes.154 menor son de suma gravedad hasta el punto
Pero poco tiempo después El Día que antes que posiblemente será indispensable proce-
había sido elogioso, sostenía que el lugar del der a la amputación de los dedos de la mano
Patronato resultaba insuficiente para la can- izquierda”.157Pero el desenlace fue aún peor,
tidad de niños internados, que pasaban los porque el chico falleció días después.
100 y estaban en espera de unos 40 chicos más Este suceso, desencadenó una inves-
“… de distintos puntos de la provincia.”155 La tigación encargada por el Poder Ejecutivo
cuestión del espacio, volvía a ponerse sobre que no hizo más que oficializar las deficien-
la mesa como un gran problema a resolver, en cias estructurales de la marcha del Patronato
un contexto de fuerte presión de la demanda que venían siendo denunciadas por la pren-
para ingresar más menores. sa y que iban más allá de una cuestión de
En mayo de 1922, en ocasión de asumir carencia de espacio. El hecho y la posterior
la primera magistratura de la provincia, el Go- investigación, hicieron que el foco debiera
bernador Cantilo156 se hizo eco del problema ponerse en otro lado: la urgencia de tomar
y en su primer mensaje a la Legislatura mani- medidas para mejorar el funcionamiento y la
festaba su intención de ponerse a trabajar de administración e incluso la alimentación y
inmediato para levantar el edificio definitivo vestido de los chicos internados.
así como a encauzar el existente. El informe producto de la investiga-
Pocos días después, estas intencio- ción revelaba que si bien el local era efec-
nes se transformaron en urgentes, cuando un tivamente amplio, era inadecuado dado que
hecho sucedido en el Patronato, trascendió a no se había construido con la finalidad de
los medios dejando más expuestas que nunca albergar menores (había sido la sede de un
las falencias internas y haciendo que las críti- molino harinero). A la cuestión del edificio,
cas virasen desde la necesidad de contar con se sumaba la de los escasos recursos que se
un edificio propio (que de todos modos no se le otorgaban para la manutención de los in-
abandonó) a la premura de introducir refor- ternos y el poco personal con que contaban
mas al funcionamiento interno del existente. para el cuidado e instrucción de una pobla-
ción asilar abultada y en crecimiento158.
Los orígenes de Así, si las preocupaciones por el edi-
fico y la necesidad de disponer de más es-
mayores cambios pacio no desaparecieron, el centro de las
mismas se desplazó a otras cuestiones más
El 20 de junio de ese año, un menor de perentorias: no se podía esperar para que los
nombre José Fontana fue víctima de quemadu- asilados estuvieran bien alimentados o vesti-
ras en una mano, por las cuales recibió una se- dos, lo que por otro lado nada tenía que ver
rie de curaciones dentro del mismo internado, con la construcción de un nuevo edificio.
153
El Día, “Patronato de Menores. El local de Villa Elisa”, 20-1-1922.
154
Desde finales del siglo XIX se había extendido la idea de que el taller y los oficios eran herramientas regeneradoras para
aquellos menores de edad que habían delinquido y preventiva para los que por su condición de pobreza se consideraban
niños /as en peligro. Un amplio espectro de intelectuales, médicos, pedagogos, juristas, etc., entendían al trabajo como
agente de moralización en algunos casos, y como regenerador en otros (Stagno, 2008; Sosenski, 2008; Aversa, 2015).
155
El Día, “Patronato de Menores. El local de Villa Elisa carece de lugar suficiente”, 26-6-1922.
156
Recordemos que entre el 24-4-1917 y el 1-5-1918, ya había estado a cargo de la provincia, designado como Interven-
tor Nacional por el presidente Yrigoyen. Fue gobernador electo desde el 1-5-1922 al 1-5-1926.
157
Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, Año 1922, Tomo 2, julio a diciembre, La Plata, Taller de Impre-
siones Oficiales, 1925, p. 41 a 43.
158
La cuestión de asignar mayores recursos para poder modificar la dinámica interna había sido señalada por El Día
en múltiples ocasiones. Ver entre otros “El Patronato de Menores”, 19-7-1922, cit.; “La investigación en el Patronato
de Menores”, 4-8-1922 y “El Patronato de Menores”, 10-8-1922.

193
Desde mediados de 1922, las acciones Sin embargo, un nuevo acontecimiento
estatales que hasta entonces habían sido más que involucraba el cuidado de los menores asila-
bien pocas, se vieron incrementadas. En este dos por parte de sus encargados, corrió una vez
año, se tomaron una serie de resoluciones que más el foco de interés: del alimento y la forma-
permiten pensar en una intención política más ción, al personal, la disciplina y el ordenamiento
decidida a mejorar la marcha del Patronato que internos163. En febrero de 1923, el Poder Ejecuti-
a pesar de todas las dificultades mencionadas, vo resolvió exonerar a un empleado del Patrona-
funcionaba en Villa Elisa. Por ello, y en gran to “… con motivo de una denuncia presentada a
parte (aunque no exclusivamente) estimulada la Defensoría General de Menores, acerca de los
por la muerte de un asilado y su repercusión malos tratos propinados por el empleado del Pa-
pública, la actividad se reorientó de manera in- tronato don Gabino Fuentes respecto del menor
mediata a mejorar la dinámica interna. llamado Eustaquio Rodríguez…”164. La denuncia
La provisión de alimentos, toallas y que había sido presentada por otro empleado,
ropa de cama, ropa para el personal y elemen- Eduardo Cerri, motivó una investigación de la
tos de botiquín, que no solo cambiaron en la que resultaron comprobados esos hechos. De
cantidad sino en la variedad, dan cuenta de esa esta se desprendieron cargos graves contra otro
voluntad reflejada en un gran número de lici- empleado de nombre Antonio Garófalo que
taciones que se incrementaron desde mediados también resultó exonerado. El Ministro decía
de 1922159. También la sección mujeres del Pa- que “…las averiguaciones practicadas demos-
tronato, de dimensiones más reducidas, reci- traron que en el Patronato se resentían algunos
bió nueva atención, al aprobar la designación resortes administrativos y que no se efectuaba
de más personal y con miras a ampliarlo, se con estrictez el debido control a causa, en par-
buscó arrendar más propiedades vecinas para te principal, de una deficiente sistematización
poder alojar un mayor número de niñas160. El de las funciones del personal”165.
refuerzo de la presencia de adultos en cantidad En consecuencia, se adoptaron una
y calidad fue marcado en la sección varones, serie de decisiones. La primera (además de la
con el nombramiento de maestras y técnicos exoneración de los empleados involucrados),
para los talleres así como la provisión de ele- fue la sanción en abril de 1923 de un decreto,
mentos y materia prima para su funcionamien- por medio del cual se buscaba establecer una
to161. También en los meses posteriores mejo- reorganización interna para “…estabilizar el
raron las insdtalaciones para estos, ya que “se funcionamiento, afianzar la disciplina y ase-
hizo construir un galpón con divisiones para gurar la salubridad del establecimiento; hacer
la instalación de los talleres que se crearon, de él un verdadero hogar de los menores con
de zapatería, corte y aparado, carpintería, la selección del personal; reducir el número
sastrería y de fabricación de felpudos…”, y se de internados a lo que indica la capacidad ra-
contrataron tres celadores más, un cochero y cional del establecimiento…”166. Buscaban así
un sereno. Finalmente, se habían construido a un tiempo subsanar dificultades de funcio-
baños con divisiones y casilleros e instalado namiento y disciplina, para lo cual designaron
cañerías y un nuevo espacio para comedor, y una comisión administradora167.
se contaría con un médico estable en un con- Las fuentes indican que esta se tomó
texto de aumento de la población asilar162. muy en serio su trabajo y pocos meses después,

159
Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, Año 1922, Tomo 2, cit., p. 100, 144, 360, 368, 922 y 930, entre otros.
160
Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, Año 1923, Tomo 1, enero a junio, La Plata, Taller de Impresiones
Oficiales, 1926, p.606 y 607; Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, Año 1923, Tomo 2, julio a diciembre,
La Plata, Taller de Impresiones Oficiales, 1927, p.648 y Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, Año 1922,
Tomo 2, cit., p. 4, entre otros.
161
Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, Año 1922, Tomo 2, cit., p. 245 y 636; Registro Oficial de la Pro-
vincia de Buenos Aires, Año 1923, Tomo 2, cit., p. 217; Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, Año 1924,
Tomo 2, julio a diciembre, La Plata, Taller de Impresiones Oficiales, 1927, p. 124; Registro Oficial de la Provincia de
Buenos Aires, Año 1924, Tomo 2, cit., p. 366, entre otros.
162
Memoria presentada a la Honorable Legislatura por el Ministro de Gobierno Dr. José Osvaldo Casas,
Mayo de 1923, La Plata, 1924, p. 362.
163
En relación a las cuestiones del personal específicamente y mirado desde una perspectiva diferente que combina lo
sucedido también en la provincia de Mendoza, nos hemos referido en Cerdá J. M y de Paz Trueba, Y. 2021, en prensa.
164
Memoria de 1924, cit., p. 522.
165
Memoria de 1924, cit., p. 522, 523.
166
Memoria de 1924, cit., 524.
167
Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, Año 1923, Tomo 1, cit., p. 457 a 460.

194
El Día daba cuenta de las mejoras introducidas. Ese aumento de fondos se dio además
Así mencionaba la disponibilidad de ropa de en un momento en que la economía de la
cama y vestir, y describía como “…abundante provincia no pasaba por su mejor momento,
y buena la comida que se suministra a los me- en el marco de “…una política fiscal tensio-
nores”. Además, se había instalado una enfer- nada por el gasto creciente, la lucha política
mería, y no solo se contaba con un médico y y el desorden administrativo”. (REGALSKY
un espacio habilitado para casos urgentes, sino Y DA ORDEN, 2013, P. 279)
que estaba “…dotada con mesa de operaciones,
instrumentos de cirugía y abundante botiquín, Conclusiones
a lo que se ha anexado una pequeña sala con
dos camas…”. Sumaba a los elogios el “…estado Los años 20 fueron testigos de un
sanitario inmejorable”, de los menores a cargo incremento de la voluntad intervencionista
del Dr. Eusebio Martínez168. Según detallaba sobre la infancia en la provincia de Buenos
la Memoria del Ministerio, también se habían Aires. Ella se dio sobre la base de la reorga-
tomado una serie de medidas a fin de elimi- nización de una institución preexistente: el
nar epidemias como el tifus y la escarlatina y Patronato Provincial de Menores.
se cuidaba la higiene por medio del blanqueo Es cierto que a diferencia de su prede-
del edificio, el arreglo de baños y lavaderos y cesor en la primera magistratura provincial,
la construcción de otros nuevos, además de en la agenda de Cantilo los menores parecen
proveer agua de calidad con un nuevo pozo. La ocupar otro lugar. En su breve estancia como
educación tantas veces reclamada había sido Interventor había reglamentando el Patrona-
también atendida ya que “…Por gestiones de la to existente. Desde 1922 ya como gobernador,
Comisión, la Dirección General de Escuelas ha y secundando un impulso que pareció comen-
creado inmediatamente una escuela en el Pa- zar en épocas de Monteverde, se tomaron una
tronato. Funciona con cinco maestros y tiene serie de medidas que, como las señaladas, per-
todos los elementos necesarios”. Los talleres miten sugerir un mayor compromiso hacia
finalmente, a los que asistían los alumnos al- los menores pero también del inicio de una
ternadamente con las clases, estaban en cons- nueva etapa en la que sin dudas el destino de
tante mejora y según se decía, “Se propone la más cantidad de fondos fue imprescindible,
Comisión ampliar los elementos de los talle- a pesar de que financieramente la provincia
res actuales y organizar secciones de huerta y también debió lidiar con problemas serios.
jardinería, criadero de cerdos y aves, taller de Sin embargo, esto no alcanza sostengo
zapatillas, escobería, etc.”169. para explicar el cambio de rumbo que impli-
En síntesis, la prensa y las fuentes ofi- có no solo la profundización de la interven-
ciales refieren a un mejoramiento sensible en ción sino también un cambio en la manera de
varios de los puntos para los que la Comisión llevarlo adelante. Así, los avances deben ser
Administradora había sido formada en 1923 de puestos en relación muy estrecha con el incre-
manera efectiva. Si bien las falencias del edifi- mento de las preocupaciones por la infancia
co seguían siendo las que imponían el mayor y el lugar que tuvieron en las agendas de in-
número de dificultades y restricciones, era telectuales y profesionales nacional e interna-
evidente la búsqueda de un mejoramiento del cionales (STAGNO, 2010; GUY, 2011; ROJAS
funcionamiento interno estrechamente rela- NOVOA, 2019). Además, coincidimos con Za-
cionado con una mayor dotación de recursos. piola en la importancia que tuvo en los años
Dada la premura con que debieron in- 20 la sanción de la Ley Agote que pese a sus
troducirse las modificaciones, y que el presu- limitaciones “…se convirtió en el plafón legal
puesto vigente no preveía mayores sumas para desde el que destacados especialistas y funcio-
el Patronato, esa asignación de fondos se hizo narios, convencidos de que era el Estado quien
a través de dos decretos de agosto de 1922 y debía ocuparse de los menores, generaron pro-
febrero de 1923. Se otorgaron así sumas extras puestas que desembocaron en la creación de
de $12.500 y $8000 respectivamente, hasta tan- nuevas instituciones oficiales para menores y
to se incorporara esa mejora en el presupues- sobre todo en la refundación y reorganización
to para el año 1923.170 A partir de ese año, los de la Colonia de menores varones de Marcos
incrementos fueron importantes171. Paz” (ZAPIOLA, 2019: 197).
168
El Día, “Patronato de Menores”, 26-2-1924.
169
Memoria de 1924, cit., p. 528.
170
Memoria de 1923, cit., p. 360, 363 y 364.
171
Leyes de presupuesto 3681 para 1919 y 3799 para 1924 y Registro Oficial Tomo I para 1923, p. 798.

195
Si bien la primera presentación del Aires y Mendoza en los años 20”, Estudios So-
proyecto de Ley de Patronato de Menores al ciales del Estado. 2021.
Congreso Nacional por parte del diputado Luis
Agote y su discusión se realizó también en 1910, COSSE, I. “La infancia en los años treinta”. En
de manera contemporánea a la sanción de la ley Todo es Historia, Vol. 37 núm. 457, p. 48-57. 2005.
provincial, durante la discusión en la legislatura
bonaerense, no se hicieron menciones específi- DE PAZ TRUEBA, Y. Mujeres y esfera públi-
cas al proyecto de Agote. Pero en los años 20 ca: la campaña bonaerense entre 1880 y 1910.
la relación entre ambos cuerpos legales cambió. Rosario: Prohistoria, 2010.
Dos sucesos importantes y puntuales
nos obligan a pensar en la determinación que DE PAZ TRUEBA, Y. “Mujeres católicas y Es-
para esa nueva orientación provincial tuvo la tado en torno a la pobreza y la infancia: viejas
temporalidad propia de la institución: la muer- y nuevas intervenciones en la provincia de Bue-
te del menor José Fontana y los malos tratos nos Aires, 1913-1926”, Anuario Digital UNR,
sobre Eustaquio Rodríguez dotaron a los cam- N° 33, pp. 1-22. 2020a.
bios de una premura que hasta entonces no
habían tenido las políticas hacia los menores. DE PAZ TRUEBA, Y. El Patronato Provincial
Estos hechos pusieron sobre la mesa y acica- de Menores: iniciativas por la infancia pobre
tearon las sensibilidades sobre las deficiencias en la Provincia de Buenos Aires (1917-1921), Se-
en el funcionamiento interno del Patronato y, cuencia (106). 2020b.
más allá del viejo reclamo del local propio so-
bre el que descasaban gran parte de las falen- ERASO, Y. Maternalismo, religión y asistencia:
cias del momento, se impuso la necesidad de la Sociedad de Señoras de San Vicente de Paul
reorganizar el existente, no solo con el sumi- en Córdoba, Argentina. En Y. Eraso (comp.);
nistro de alimentos o ropa, sino en el personal Mujeres y asistencia social en Latinoamérica,
y la formación brindada. Los resultados de la siglos XIX y XX. Argentina, Colombia, México,
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197
Simpósio Temático 5

Direitos infantojuvenis
na América Latina
(séculos XX e XXI)

Fonte: Arquivo Memorial da Irmandade do Divino Espírito Santo — IDES

198
ECA: NOVOS OLHARES
PARA AS CRIANÇAS E
JOVENS BRASILEIROS

Bárbara Birk de Mello172 Resumo: Com o fim da ditadura civil-


-militar no Brasil e com processo de redemo-
Norberto Kuhn Junior 173
cratização, a legislação do país sofreu diversas
Margarete Fagundes Nunes174 mudanças, principalmente para as chamadas
minorias, incluindo crianças e jovens. O ano
de 1990 trouxe a promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) e na lei se co-
loca a proteção integral a estes sujeitos, dando
lugar à nomenclatura de crianças e adolescentes
se afastando da noção anterior de “menores”.
Neste contexto, o presente estudo tem como
temática o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente e a municipalização do atendimento às
crianças e jovens, tendo como município de
referência Novo Hamburgo (RS). O municí-
pio faz parte da região metropolitana de Porto
Alegre e foi um dos primeiros da área a ter um
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e
do Adolescente (CMDCA) e um Conselho Tu-
telar em funcionamento. A questão norteadora
é: como ocorreu a municipalização do atendi-
mento prevista pelo ECA nos primeiros anos
da década de 1990 em Novo Hamburgo (1990-
1993)? Para tanto, tem-se como objetivos: refle-
tir acerca das noções de infância, adolescência,
infâncias e juventudes; abordar o processo de
criação do ECA e o que este propõe, principal-
mente no que tange a municipalização do aten-
dimento; e discutir como se deu o processo de
172
Graduada em História pela Universidade Feevale.
173
Mestre Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS.
174
Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina — UFSC.

199
municipalização em Novo Hamburgo a partir fletir acerca das noções de infância, adolescên-
da criação do Conselho Municipal dos Direi- cia, infâncias e juventudes; abordar o processo
tos da Criança e do Adolescente e do Conselho de criação do ECA e o que este propõe, prin-
Tutelar da cidade. Tem-se como metodologia cipalmente no que tange a municipalização do
uma revisão narrativa da literatura acerca das atendimento; e discutir como se deu o proces-
temáticas de direitos, infâncias e juventudes, so de municipalização em Novo Hamburgo a
ECA, processo de redemocratização brasileiro, partir da criação do Conselho Municipal dos
CMDCAs e Conselhos Tutelares, município Direitos da Criança e do Adolescente e do
de Novo Hamburgo, dentre outras. Ademais, o Conselho Tutelar da cidade.
presente estudo é resultado, em parte, da mo- Tem-se como metodologia uma revisão
nografia da autora e de estudos que vem reali- narrativa da literatura acerca das temáticas de
zando no mestrado. Na monografia, utilizou-se direitos, infâncias, juventudes, ECA, CMDCAs
de análise do Arquivo dos Conselhos de Novo e Conselhos Tutelares, dentre outras. Ademais,
Hamburgo, entrevistas semi-estruturadas e o presente estudo é resultado, em parte, da mo-
análise do principal jornal local, Jornal NH. nografia da autora e de estudos que vem reali-
Na dissertação, tem-se trabalhado questões de zando no mestrado. Na monografia, utilizou-se
cunho teórico, realizadas entrevistas com con- de análise de documentos do Arquivo dos Con-
selheiros tutelares das primeiras gestões e aná- selhos de Novo Hamburgo, entrevistas semi-es-
lise do Arquivo do Conselho Tutelar. Ao fim truturadas com sujeitos que fizeram parte do
do presente estudo, acredita-se que o Estatu- processo de criação do CMDCA e análise do
to da Criança e do Adolescente é base funda- principal jornal local, Jornal NH. Na disserta-
mental para buscar a garantia dos direitos das ção, tem-se trabalhado questões de cunho teó-
crianças e jovens brasileiros e para a formula- rico, realização de entrevistas não-diretivas com
ção de políticas públicas infanto-juvenis. conselheiros tutelares de 1992 até os dias de hoje
e análise do Arquivo do Conselho Tutelar.
Palavras-chave: Estatuto da Criança e
do Adolescente. Infâncias. Juventudes. Infância e adolescência
x infâncias e juventudes
Introdução
O Estatuto da Criança e do Adoles-
Os direitos infanto-juvenis não são algo cente traz um grande avanço ao substituir o
dado e pronto em nossa sociedade, eles passam termo “menor” por infância e adolescência,
por longos e contínuos processos de formula- mas hoje é importante fazermos considera-
ção. No Brasil, quando falamos destes direitos, ções sobre estas noções, as quais não utiliza-
temos como marco legal o Estatuto da Criança mos na dissertação, pois são substituídas pe-
e do Adolescente (ECA) promulgado em 1990. los termos infâncias e juventudes.
Esta lei surge após o fim da ditadura civil-mili- Sabemos que a construção dos direitos
tar no Brasil e a promulgação da Constituição infanto-juvenis tem, ao longo de sua história,
da República Federativa do Brasil de 1988. os momentos marcos na promulgação das leis,
Neste contexto, o presente estudo tem as quais são produtos de discussões internas de
como temática o Estatuto da Criança e do cada país, mas também do patrimônio inter-
Adolescente e a municipalização do atendi- nacional dos direitos das crianças e jovens que
mento às crianças e jovens, tendo como mu- é liderado por duas instituições: Organização
nicípio de referência Novo Hamburgo (RS). O das Nações Unidas (ONU) e Fundo das Nações
município faz parte da região metropolitana Unidas para a Infância (UNICEF). As conven-
de Porto Alegre e foi um dos primeiros da área ções e declarações de ambas, desde 1948 com a
a ter um Conselho Municipal dos Direitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Criança e do Adolescente (CMDCAs) em 1991 (DUDH), têm grande importância na formula-
e um Conselho Tutelar em funcionamento em ção das leis de diversos outros países, principal-
1992. A questão norteadora é: como ocorreu a mente os ditos ocidentais como o Brasil.
municipalização do atendimento prevista pelo Os termos infância, adolescência,
ECA nos primeiros anos da década de 1990 em criança e adolescente também estão ligados
Novo Hamburgo? Pelos primeiros anos, temos às orientações advindas da Europa desde o
em consideração desde a promulgação do ECA início da colonização europeia na América
em 1990 até o fim da primeira gestão do CMD- Latina, quando os sujeitos latino-americanos
CA em novembro de 1993. tiveram que se submeter aos moldes do pa-
Para tanto, tem-se como objetivos: re- drão europeu do homem branco.

200
Ao abordar a questão da infância e na medida em que, no Brasil, há múltiplas in-
adolescência, Ariès (1981) é um dos principais fâncias e juventudes que não estão de acordo
autores da perspectiva europeia. Segundo ele, a com o padrão europeu. Para Gil (2011):
infância é uma construção que passou por três
fases: a primeira foi a “paparicação” a partir do A juventude encerra uma enorme diversi-
século XVII nas famílias de elite e após, nas po- dade de variáveis biológicas, psicológicas,
bres; a segunda foi a partir dos eclesiásticos e sociais, culturais, políticas e ideológicas.
do Estado, que começaram campanhas para o Isso significa dizer que não existe “a ju-
cuidado da infância e, por último, os moralis- ventude”, mas juventudes que expressam
tas, que buscavam disciplinar as crianças. situações plurais, diversas e também de-
Já Müller (2007), aponta que a mudança siguais na vivência da condição juvenil.
na forma de se ver a criança partiu do Estado, (GIL, 2011, p. 26)
da Igreja e da família desde o século XVI, mas
foi somente a partir do século XIX que se criou Além dos termos juventudes e infân-
a noção de que a criança é responsabilidade da cias expressar o entendimento da pluralidade,
família, Igreja e Estado, médicos e acadêmicos. eles questionam seus caráteres universais e de
Heywood (2004), aponta a noção de historicidade. Para Müller e Redin (2007):
criança como: “[...] um constructo social que
se transforma com o passar do tempo e, não [...] a infância ou as infâncias estão situadas
menos importante, varia entre grupos sociais e nos lugares que as diferentes sociedades
étnicos dentro de qualquer sociedade.” (HEY- reservam para elas: infâncias múltiplas,
WOOD, 2004, p. 21). Assim como a infância, a diversificadas, constituídas em diferentes
adolescência é uma construção, que se deu no culturas, contextos sociais, tempos e espa-
Ocidente a partir do século XIX e consolidou- ços de vida. [...]Então, não pode ser vista
-se no século XX. (GROSSMAN, 2010) como uma infância do passado e nem mes-
A noção de infância e adolescência mo uma infância do futuro. Só pode ser
também se alterou ao longo dos séculos no vista a partir de um outro lugar, de um ou-
Brasil. Até o século XX, o termo “menor” era tro olhar. (MÜLLER; REDIN, 2007, p. 14)
usado para nomear crianças e jovens pobres
e/ou órfãos e era carregado de conotação pe- A partir destas autoras, considera-se
jorativa, pois os “menores” eram vistos como que a visão de infância como una é ultrapassada
delinquentes e marginais. Já a pessoa de ida- e deve-se pensar a partir de novas perspectivas,
de inferior a cerca de 12 anos vinda de famí- perspectivas que apontem para a pluralidade
lias da elite era tratada com a palavra crian- de vozes, de práticas e de saberes, saindo da
ça (MARTINS, 2016) e acima de cerca de 12, visão monocultural herdada da colonialidade
como adolescente. Esta concepção de “meno- de poder, para uma noção pluricultural ligada
res” será utilizada na própria elaboração de a vertente decolonial. Seguindo nesta linha de
leis no Brasil, como o Código de Menores de raciocínio, não se utiliza da noção de infância
1927 e reafirmada durante a ditadura civil-mi- e adolescência e sim, infâncias e juventudes,
litar com o Código de Menores de 1979. mesmo que o ECA ainda tenha em seu próprio
Como já dito, as visões de infância e nome criança e adolescente.
adolescência chegam à América Latina através É importante destacar que um dos ob-
de navios e são mantidas pela colonialidade jetivos da dissertação em andamento é analisar
de poder (QUIJANO, 2005). Foi apenas com quais visões dos conselheiros tutelares acerca
a necessidade de desenvolvimento capitalista da infância, adolescência e juventude que aten-
da América Latina, que as crianças e jovens diam ao longo dos anos no Conselho Tutelar de
passaram a receber mais atenção do Estado e a Novo Hamburgo. As entrevistas ainda estão em
base das instituições de atendimento para estes andamento, mas alguns pontos que já podería-
sujeitos foi advinda da Europa. mos elencar em relação ao que os ex-conselhei-
Nesse contexto, a perspectiva ros apontam são a consideração da infância e
decolonial busca novos olhares para refletir adolescência como fases da vida que necessitam
criticamente acerca de como a própria inven- de uma atenção especial e de uma forte rede de
ção da América Latina deu-se pelos coloniza- proteção com centralidade da família, sendo vi-
dores e mantém-se através da colonialidade. sões mais ligadas àquilo que o ECA propunha,
Logo, apontamos para o tempo oficial que mas com entendimento de que a infância e ado-
coloca as noções de infância e adolescência lescência proposta por esse documento não era
a partir de uma visão ocidental burguesa e a realidade da maioria das famílias brasileiras.
o tempo do mundo que contrapõe essa visão Assim, o termo infâncias, juventude e juventu-

201
des não é presente na fala direta dos ex-conse- do que quem defini isso são os municípios.
lheiros, mas o entendimento da pluralidade de (FUNDAÇÃO ABRINQ, 2015)
crianças e jovens já estava ali presente. O Conselho de Direitos é responsá-
vel por definir e colocar em prática a política
Estatuto da criança e do de atendimentos às crianças e jovens. Segun-
do a Fundação ABRINQ (2015), o CMDCA
adolescente e a municipalização possui quatro funções principais: função de-
do atendimento liberativa; função consultiva; função fiscal; e
função mobilizadora.
O ECA é resultado de um processo Os CMDCAs também realizam o
de redemocratização brasileiro, mas também processo eleitoral dos membros do Conselho
de pressões internacionais para uma maior Tutelar. O artigo 131º do Estatuto da Criança
atenção para as infâncias e juventudes. A e do Adolescente definiu o Conselho Tutelar
nova lei, conforme Amin (2017), é resultado como um “[...] órgão permanente e autônomo,
da ação de três frentes: “[...] o movimento so- não jurisdicional, encarregado pela sociedade
cial, os agentes do campo jurídico e as políti- de zelar pelo cumprimento dos direitos da
cas públicas.”. (AMIN, 2017, p. 56) criança e do adolescente, definidos nesta Lei.”
Mas, o processo de redemocratização, (BRASIL, 1990, p. 32). Logo, mesmo que os
formulação da Constituição de 1988, do ECA Conselhos Tutelares sejam ligados às prefei-
e da instituição dos conselhos pelo Brasil foi turas, não há nenhum órgão superior a eles,
movido por conflitos e tensões entre o que a sendo que apenas o Judiciário pode rever de-
lei propõe e o que parte da sociedade acredita, cisões dos conselheiros tutelares. Cada muni-
como ocorre na formulação de todas as legis- cípio deve ter, no mínimo, um Conselho Tu-
lações. Quando tratamos do ECA, até hoje a telar e cada órgão deve ter cinco conselheiros.
questão da maioridade penal ainda levanta dis- As atribuições do Conselho Tutelar
cussões. Também, parte da sociedade não con- podem ser agrupadas em sete categorias, de
corda com o Estatuto por achar que ele “passa acordo com o art. 136 do ECA de 1990, aqui,
a mão” na cabeça dos jovens e tira a autoridade apresentam-se algumas:
dos pais devido a proibição da violência física.
O Estatuto firmou os deveres e direitos I — atender as crianças e adolescentes nas
fundamentais e básicos das crianças e jovens hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, apli-
brasileiros, dentro eles o direito à convivência cando as medidas previstas no art. 101, I a
familiar, a não trabalhar, à alimentação, à pro- VII; II — atender e aconselhar os pais ou
fissionalização, à educação, direito à liberdade responsável, aplicando as medidas previstas
(BRASIL, 1990). A nova lei definiu a proteção no art. 129, I a VII; III — promover a execu-
integral à criança e ao jovem seguindo os pas- ção de suas decisões, podendo para tanto:
sos da Constituição de 1988, sendo que esta a) requisitar serviços públicos nas áreas de
proteção visa garantir a efetivação de todos os saúde, educação, serviço social, previdência,
direitos, que são interligados e indivisíveis. trabalho e segurança; b) representar junto à
Um ponto central do ECA é o prin- autoridade judiciária nos casos de descum-
cípio da participação popular na defesa dos primento injustificado de suas delibera-
direitos das crianças e dos jovens e a munici- ções. (BRASIL, 1990, p. 32)
palização do atendimento. Estes dois pontos
dão-se, principalmente, a partir do Conselho Como informa o art. 95 do ECA
Municipal dos Direitos da Criança e do Ado- (BRASIL, 1990), cabe ao Conselho Tutelar, ao
lescente e do Conselho Tutelar, os quais o Ministério Público e ao Poder Judiciário fisca-
ECA estipula que sejam criados em cada mu- lizar instituições e entidades de atendimento
nicípio do país. (BRASIL, 1990) a crianças e jovens e os programas executados
A seguir, pontua-se brevemente so- por elas. Assim, os Conselhos Tutelares devem
bre o que são, legalmente os CMDCAs e os estabelecer interfaces entre saúde, assistência,
Conselhos Tutelares: os primeiros são órgãos educação, justiça e todas as outras áreas que
formados metade por representantes de en- abarcam as infâncias e as juventudes.
tidades civis e metades do poder público As principais funções dos conselhei-
municipal. Não há na lei nacional um núme- ros tutelares são atender denúncias e fazer
ro total de conselheiros para cada órgão, sen- os encaminhamentos das crianças, jovens e

202
famílias envolvidas na situação. Para tanto, 1990 foi promulgada a lei municipal de criação
é necessário ter uma rede de cuidado175 das dos Conselhos, dia nove de julho de 1991 foi
crianças e jovens que seja fortalecida por po- realizada a eleição das entidades civis com ati-
líticas públicas. Esta rede é formada por di- vidades diretas e indiretas de defesa das crian-
versas instituições das mais diversas áreas de ças e dos jovens que comporiam o CMDCA de
atendimento, como escolas, postos de saúde, Novo Hamburgo e apenas em 10 de outubro
ONGs municipais, Centros de Referência em foi eleita a primeira diretoria deste órgão. Já
Assistência Social (CRAS), entre outros. em 5 de abril de 1992 foi realizada a primeira
eleição dos conselheiros tutelares da cidade,
Novo Hamburgo, conselho sendo este o segundo Conselho Tutelar a ser
instaurado no Rio Grande do Sul.
municipal de direitos da criança As tensões e negociações em torno do
e do adolescente e conselho ECA também ocorreram a nível municipal
tutelar: novas perspectivas quando da criação do CMDCA e do Conselho
Tutelar da cidade. O processo de formulação
da lei começou a ser pensado por algumas ins-
Novo Hamburgo fica localizado a 43,4 tituições, pessoas ligadas às infâncias e juven-
km de Porto Alegre, capital do Rio Grande tudes novo-hamburguenses e vereadores do
do Sul, e faz parte da região metropolitana do Partido dos Trabalhadores. Foram meses dis-
estado. O município é banhado pelo Rio dos cutindo como formular a lei até ser apresen-
Sinos, possui área de 223 km² e população, con- tada junto da Câmara de Vereadores e ela ser
forme estimativas do IBGE (2019), de 246.748 aprovada por todos176 os vereadores, mas já se
habitantes. No início de 1990, Novo Hambur- sabia que a lei tinha vício de origem e teria que
go ainda se destacava nacionalmente devido partir do Executivo e não do Legislativo.
à produção coureiro-calçadista, que teve seu Logo, o projeto de lei foi analisado
boom nos anos de 1970 e 1980. Porém, o iní- pelo prefeito e, conforme Wendling (2019),
cio da década já anunciava uma queda brusca primeiro presidente do CMDCA, sabia-se
nesse setor da economia devido a abertura do da dificuldade da gestão aceitar, pois era do
mercado ao sapato chines, principalmente. PMDB e o projeto fora feito pelos vereadores
O cenário das crianças e jovens no- da oposição. E foi o que aconteceu, sendo que
vo-hamburguenses no período de criação do apenas em 27 de dezembro de 1990, o prefei-
ECA era problemático se fosse observado a to assinou e promulgou a Lei N.° 130/90 sem
partir da perspectiva do que o Estatuto pro- muitas mudanças do projeto anterior.
punha: o trabalho infantil era muito presente, A ata de eleição de entidades civis liga-
pois havia muita oferta de mão de obra no se- das diretas e indiretamente de defesa das crian-
tor calçadista, as crianças e jovens auxiliavam ças e dos jovens que compuseram a primeira
na renda da família e o trabalho era conside- gestão do CMDCA de Novo Hamburgo (1991-
rado, pela maioria das famílias, dignificador e 1993) foi a primeira deste Conselho de que se
uma forma de disciplinar os mais novos. Tam- tem registro e está no Arquivo dos Conselhos de
bém, havia falta de vagas em escolas e nas cha- Novo Hamburgo. No dia nove de julho de 1991,
madas creches, grande presença de meninos reuniram-se representantes de entidades civis,
e meninas em situação de rua e a drogadição, direta ou indiretamente ligadas à defesa dos su-
principalmente através de cola de sapateiro e jeitos em questão, para assembleia e houve uma
loló, era frequente. (MELLO, 2019) chapa que foi eleita. (CMDCA NH, 1991)
Nesse contexto que, quando o ECA foi Foi na reunião do dia dois de outubro
promulgado, que se começou a pensar sobre de 1991 que ficou definido e aprovado o Regi-
uma lei municipal para a criação do CDMCA mento Interno do CMDCA, que seria composto
e do Conselho Tutelar. Em 27 de dezembro de por 18 membros (CMDCA NH, 1991). Já a elei-

175
A partir de leituras que vem sendo realizadas no mestrado, não se utiliza da expressão rede de atendimento, mas
sim rede de cuidado. De Bourdieu e Wacquant (1992), aponta-se para o campo como uma rede com configuração de
relações objetivas entre os agentes, ou seja, a rede é formada por vários microcosmos, várias instituições. Já a noção
de cuidado parte da percepção de que todos são dependentes e que o cuidado é condição essencial para a manuten-
ção da vida biológica e desenvolvimento social (ZIRBEL, 2016).
176
Em publicação do Jornal NH, principal periódico local, do dia 1 e 2 de dezembro, foi escrita a reportagem “Câ-
mara cria o Conselho de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente” que fala do processo de apresentação da
lei à Câmara que foi aprovada, mas que teria que passar pelo Prefeito para poder entrar em vigor. Além disso, uma
imagem de crianças segurando cartazes (REICHOW, 1991).

203
ção da primeira diretoria foi oito dias depois e conflitos continuaram de forma interna. A pri-
contou com três chapas concorrendo (CMDCA meira gestão do órgão teve sua atuação muito
NH, 1991). Segundo o tesoureiro da primeira voltada para a divulgação do ECA e do que era
gestão do CMDCA este processo de municipali- o Conselho. Segundo o primeiro presidente, o
zação do atendimento foi central para: que se conseguiu fazer foi “[...] chamar a atenção
da sociedade como um todo, para esta realidade
[...] abrir esse espaço para abrir a caixa social em que viviam muitas crianças e adoles-
preta do Poder Público, da administração centes. O que chamamos a atenção também, foi
pública. O fato de a administração públi- de muitas crianças que estavam fora da escola e
ca ter que dividir com algumas pessoas para o abandono que estavam as periferias na
ou ter que dividir com um Conselho uma época” (WENDLING, 2019). Mas, fora a isso, o
discussão sobre sua política de governo, ponto central desta primeira gestão foi a orga-
isso é uma coisa que eu acho que é impor- nização da primeira eleição para conselheiros
tante porque ela desacomoda, ela tira da tutelares de Novo Hamburgo, que ocorreu em
zona de conforto. (SELISTRE, 2019) cinco de abril de 1992. A eleição era facultativa
e apenas 1.514 novo-hamburguenses votaram177.
E não foi fácil abrir esse espaço. Segun- Sobre o processo de eleição desse Con-
do o primeiro presidente do CMDCA “[...] a selho, Selistre (2019) explica que “foi uma luta
Prefeitura não tinha muito interesse e nem o muito difícil porque não tinha uma compreen-
Legislativo, pois criança não dá voto.” (WEN- são, nem nós sabíamos direito fazer.” Bock (2019),
DLING, 2019). Para ele, a demora na formula- que ingressou no CMDCA em 1998, colocou a
ção da Lei até iniciar o CMDCA, em 1991, foi importância da primeira diretoria desse Conse-
devido a questões burocráticas, mas também à lho: “[...] essas primeiras pessoas que se dedicaram,
vontade da Prefeitura. “Foram mais questões que entenderam o processo que tinha que fazer e
de picuinhas políticas do que propriamen- implantaram o Conselho”. (BOCK, 2019)
te preocupações em levar adiante a causa da Os cinco conselheiros tutelares eleitos
criança e do adolescente”. (WENDLING, 2019) em 1992 elegeram a primeira presidente, Neidi
Todos os cinco entrevistados na mo- Regina Friedrich e a partir daí começaram a
nografia da autora destacaram a dificuldade de trabalhar em uma casa na Rua Cinco de Abril
criação da lei do CMDCA e do Conselho Tute- no centro de Novo Hamburgo. Os conselheiros
lar, pois era tudo muito novo. A maioria deles do CMDCA e do Conselho Tutelar tinham boas
coloca uma dificuldade no processo devido à relações na primeira gestão, pois todos partici-
demora da Prefeitura, mas uma conselheira mu- param ali juntos do processo, sendo que o CM-
nicipal da primeira gestão que era representante DCA até teve a sua sede junto do Conselho Tu-
da Assistência Social da Prefeitura destacou que telar na primeira metade da década de 1990.
a demora se deu por questões mais burocráticas Friedrich (2019), cita que o trabalho no
do que falta de vontade. (TORMANN, 2019) Conselho Tutelar foi muito difícil e enfrenta-
Sobre o processo de escolha dos conse- vam situações delicadas envolvendo crianças e
lheiros do CMDCA e das chapas para a direto- jovens todos os dias, 24 horas por dia, sendo
ria, afirma-se que: que a comunidade ainda não tinha o conheci-
mento do que verdadeiramente era o órgão e
[...] muitas vezes a presidência do Con- que não concordavam com todas as proposi-
selho não era alguém da Prefeitura, se ções do ECA, gerando conflitos e levando os
buscava sempre isso: não ser alguém da conselheiros a sempre terem ao seu lado o Es-
gestão que tem essa visão diferente, por- tatuto e usar de seu poder para tentar garantir
que quem é da gestão e está no Conselho que o que estava nele fosse efetivado.
é amarrado, pode ser muito bom, mas Na primeira gestão do Conselho Tutelar,
chega um ponto que tiram ou esvaziam o as instituições que mais se relacionavam com o
Conselho. (FRIEDRICH, 2019) órgão eram as escolas, casas lar e abrigos, pois ha-
via muitas crianças e jovens em situação de rua
Ou seja, mesmo depois da criação e sem comparecer as escolas por falta de vaga e/
do CMDCA, as disputas por poder, tensões e ou por estarem vinculadas ao trabalho infantil. E

177
O Jornal NH do dia seis de abril de 1992 publicou duas reportagens sobre as eleições, sendo uma na capa do Jornal
intitulada “Escolhidos os representantes do Conselho Tutelar” e a segunda tratou de aprofundar como se deram as
eleições onde foram escolhidos os cinco primeiros conselheiros tutelares (JORNAL NH, 1992). Acredita-se que esse
baixo número de votantes se deve a eleição ser facultativa e a novidade e ainda falta de conhecimento da sociedade
acerca do ECA, CMDCA e o que seriam conselhos tutelares.

204
esse ponto é um dos exemplos de tensão e confli- Referências
tos que surgem entre aquilo que os conselheiros
propunham de fim do trabalho infantil e o que AMIN, A. R. Evolução histórica do direito da
parte da sociedade não concordava, uma vez que criança e do adolescente. In: MACIEL, Kátia
esse trabalho era visto como disciplinador, tirava Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direi-
as crianças da rua e trazia dinheiro para casa. to da criança e do adolescente: aspectos teóri-
Além disso, os pais, em sua maioria, cos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2017.
não concordavam com o fato de não poderem
mais bater nos seus filhos e alguns chegavam ARIÈS, P. História social da criança e da famí-
inclusive a entregar as crianças para o Conse- lia. Rio de Janeiro, RJ: LTC, 1981.
lho Tutelar: “Já que eu não posso mais educar
meu filho, você que fique com ele” é um exem- BOCK, C. Entrevista semiestruturada com
plo de frase que os conselheiros ouviam segui- Carlos Bock. Entrevista concedida a Bárbara
damente nos anos 1992, 1993 e até hoje ocorre, Birk de Mello. Novo Hamburgo, 9 set. 2019.
mas com menos frequência.
BOURDIEU, P; WACQUANT Loïc J. D. An in-
Considerações finais vitation to reflexive sociology. Chicago, Cambrid-
ge: University of Chicago Press-Polity Press, 1992.

A municipalização do atendimento BRASIL. Lei Nº 8.069, de 13 de julho de


com o ECA e a exclusão do termo “menores” 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e
carregado de significado pejorativo foram pas- do Adolescente e dá outras providências. Diá-
sos importantes no início da década de 1990, rio Oficial [da] República Federativa do Bra-
mas ainda há um trajeto tortuoso em busca da sil, Brasília, DF, 13 jul. 1990. Disponível em:
efetivação dos direitos apontados pelo Estatu- <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/
to e reconhecimento das infâncias e juventudes L8069Compilado.htm>. Acesso em: 8 fev. 2021.
brasileiras de forma plural e não singular.
Buscando responder à pergunta central CMDCA NH. Ata dez de outubro de 1991.
de como ocorreu a municipalização do atendi- Disponível no Arquivo dos Conselhos, Novo
mento prevista pelo ECA nos primeiros anos Hamburgo, 1991.
da década de 1990 em Novo Hamburgo (1990-
1993), destacamos que não ocorreu de forma CMDCA NH. Ata dois de outubro de 1991.
linear e logo após a promulgação do Estatuto, Disponível no Arquivo dos Conselhos, Novo
mas sim de forma tensa e, em alguns momen- Hamburgo, 1991.
tos, conflituosa entre pessoas e instituições
ligadas ao atendimento as crianças e jovens e CMDCA NH. Ata nove de julho de 1991.
Prefeitura da cidade. E após a instauração des- Disponível no Arquivo dos Conselhos, Novo
tes dois Conselhos, as tensões e conflitos conti- Hamburgo, 1991.
nuaram entre conselheiros tutelares e parte da
sociedade novo-hamburguense que não aceita- FRIEDRICH, N. R. Entrevista semiestrutura-
va algumas definições do ECA. da Neidi Regina Friedrich. Entrevista concedi-
Havia, segundo as duas conselheiras tu- da a Bárbara Birk de Mello. Novo Hamburgo,
telares que atuaram de 1992 a 1995, muita falta 13 set. 2019.
de entendimento do real papel dos conselheiros
de proteção e garantia dos direitos das crianças FUNDAÇÃO ABRINQ. Conselhos Munici-
e jovens por parte da comunidade, mas tam- pais dos Direitos da Criança e do Adolescente:
bém uma falta de entendimento do trabalho Apoio a execução de suas funções. São Paulo:
das conselheiras por elas próprias, pois era um Hawaii Gráfica, 2015. Disponível em: <http://
processo totalmente novo que ninguém tinha www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/
feito antes e que foi aos poucos que definiram abrinq/caderno_cmdca_apoio_a_execucao_
o que realmente competia ao Conselho Tute- abrinq_2015.pdf>. Acesso em 7 fev. 2021.
lar. Ainda hoje, há novo-hamburguenses que
não conhecem o ECA, o CMDCA e o Conse- GIL, Carmem Zeli de Vargas. Jovens e juven-
lho Tutelar, ou quando conhecem o último, não tudes: consensos e desafios. Revista Educação
compreendem as ações que este é responsável UFSM, Santa Maria, v. 36, n. 1, p. 25-42, jan./
na cidade, como já foi possível analisar nas en- abr. 2011. Disponível em: <https://periodicos.
trevistas iniciais da dissertação. ufsm.br/reveducacao/article/view/2909/1647>.
Acesso em: 15 fev. 2021.

205
GROSSMAN, E. A construção do conceito de MÜLLER, V. R. Histórias de crianças e infân-
adolescência no Ocidente. Revista Adolescên- cias: registros, narrativas e vida privada. Rio de
cia e Saúde, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 3, p. 47-51, Janeiro: Vozes, 2007.
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Acesso em: 30 fev. 2021. a infância e as práticas escolares. In: REDIN, E;
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so de História) — Universidade Feevale, Novo
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206
AS MARCAS DOS DIZERES:
TOMAR A PALAVRA COMO QUESTÃO
DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

Beatriz Saks Hahne178 Resumo: Parte da política brasileira


de atendimento a adolescentes, as medidas so-
Marília Rovaron 179
cioeducativas são determinações judiciais im-
postas àqueles a quem tenha sido atribuída a
prática de ato infracional. Ao Sistema Socioe-
ducativo chegam, sobretudo, adolescentes de
classes sociais materialmente desprivilegiadas,
fato que reitera certa judicialização de suas
histórias, além de práticas reprodutoras de de-
sigualdades. No contexto social brasileiro de
precarização da vida, a execução das medidas
socioeducativas é desafiada a considerar tanto
os direitos que deveriam ser garantidos a todos
quanto a vida singularmente significada. No
desencontro entre direitos sociais e trajetórias
de vida, é frequente que fiquem de fora as ne-
cessidades de cada adolescente para que realize
ações cidadãs e as escolhas que pautarão sua
trajetória. Duas dimensões nem sempre expli-
citadas, que exigem um trabalho sobre o pen-
samento e a palavra. Este trabalho coloca em
questão palavras frequentemente adotadas no
universo socioeducativo, tal como educação,
direitos e cidadania, para que possam ser to-
madas para além de um significado genérico, a
partir da singularidade e dos sentidos atribuí-
dos pelos próprios adolescentes. Para tal, trare-
mos narrativas e cenas colhidas no atendimen-
to prestado a adolescentes e jovens na cidade
de São Paulo e em pesquisa de doutoramento
178
Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo — PUC-SP.
179
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Paulista Júlio de Mesquita — UNESP.

207
em curso de uma das autoras. Ensaiaremos à sua vida: tal como as bordas de uma quadra
umama escrita que desafie a reiteração do im- (ou dos centros de internação, ou daquilo que
possível que impede dizer e imaginar qualquer se pode ou não fazer e dizer no contexto da
outro horizonte para essas biografias que não o sanção), há limites. Limitações, regras.
contínuo de um cenário problemático tomado Perseguimos nesse trabalho as palavras,
como determinante nas relações. A centrali- cuja importância atribuída é uma posição po-
dade da discussão será a aliança estabelecida lítica, pois aquilo a que damos relevância diz
com esses adolescentes em diferentes âmbitos respeito a uma forma de olhar, ao valor atri-
do atendimento, onde torções são possíveis na buído dentro de um tempo histórico e em dada
contramão de um território em que, dentre ou- sociedade (PERLBART, 2019). Aquilo que con-
tros aspectos, a falta de recursos materiais tem sideramos problema — falamos em produção
sido justificativa para o impedimento de novos de problemas, portanto (MACHADO, 2008)
fazeres e pensares, limitando, sobremaneira, o — é do campo do político. Há implicações no
exercício de alargamento de repertórios exis- uso das palavras: “[...] em cada signo dorme este
tenciais — princípio da ação socioeducativa. monstro: um estereótipo: nunca posso falar se-
não recolhendo aquilo que se arrasta na língua”.
Palavras-chave: Adolescências. Medidas (BARTHES, 2013, p. 15-16, destaque do original).
Socioeducativas. Direitos Sociais. Narrativas. O contexto dentro do qual formulamos
essas questões é o do cumprimento das medidas
socioeducativas, discriminadas na lei federal
Apresentação 8.069/90 — Estatuto da Criança e do Adolescen-
te — atribuídas àqueles/as entre doze e dezoito
“A medida é uma coisa que você faz... as- anos de idade incompletos, que tenham come-
sim... tem sempre uma medida. Tipo um espaço, uma tido ação considerada ilícita. São seis medidas
quadra; tem sempre uma medida”. Essa foi a res- atribuíveis: advertência; reparação de danos,
posta dada por um adolescente no término do prestação de serviços à comunidade, liberdade
cumprimento da medida socioeducativa de Li- assistida, semiliberdade e internação. O Estatu-
berdade Assistida quando questionado por uma to da Criança e do Adolescente possui relevância
das autoras deste texto sobre o que compreen- simbólica ao findar, no papel, a diferenciação,
dia por medida socioeducativa. Ele, naquele mo- antes dominante, entre a infância e adolescência
mento, estava com dezoito anos de idade. Desde empobrecida — os menores — a e rica. A relevância
os doze passara por diferentes centros de inter- principal dessa passagem é a de que o/a adoles-
nação, além de outras medidas socioeducativas, cente não mais poderia ser tão obviamente re-
e a resposta que deu, ainda que nos fizesse rir provado por aquilo que é — sujeito pobre —, mas
juntos naquele momento, também informava por aquilo que fez — a ação ilícita:
dúvidas que pairam sobre outros adolescentes
e muitos profissionais do socioeducativo: a que Há uma direção diferente em relação à
serve a medida atribuída ao adolescente que co- legislação prévia: se, antes, a condução do
mete ato infracional? O que pode o adulto no trabalho com o/a adolescente apreendi-
acompanhamento desses meninos e meninas?180 do/a por “situação irregular” ou por prá-
A pergunta que pareceria simples tica ilícita era determinada, fundamen-
quando uns diriam em resposta que a medida talmente, por suas condições materiais
socioeducativa serve à responsabilização do de vida, a partir do Estatuto da Criança
adolescente desperta curiosidade quando um e do Adolescente, as possibilidades de
passo além nos leva a questionar o que seria cumprimento passaram a ser considera-
responsabilizar alguém. Ou o que indicaria das relevantes no processo e as unidades
que alguém passou a se ver responsável por administrativas (Estados e Municípios) fo-
algo que fez? Ou, ainda, de que forma ver-se ram responsabilizadas pela ressocialização
responsável mudaria o curso das coisas produ- do/a autor/a da infração. Outro marco do
zindo, por exemplo, uma comunidade mais se- ECA foi a retirada do poder judiciário da
gura? As palavras não são jamais destituídas de encomenda de exercer a proteção social,
importância, e é dentro de um contexto que se devendo ela ser promovida pelas políticas
fazem significar. A medida da qual fala o ado- sociais, com maior abertura à participação
lescente que inaugura esse texto talvez fosse a e ao controle exercido pela sociedade civil.
moldura que a medida socioeducativa coloca (HAHNE; MACHADO, p. 131, 2020)

Ainda que tanto meninos quanto meninas cumpram medidas socioeducativas, manteremos a escrita sobre os
180

adolescentes no gênero masculino, uma vez que as experiências das autoras têm sido realizadas, sobretudo, com eles.

208
Ocorre que, na ponta da vida, ali onde humanos. São termos repetidos — porque estão
a ação educativa acontece, tem sido bastante mais à mão, talvez —, mas que parecem pouco
desafiador exercer uma prática cuja tônica ou nada dizer daquilo que efetivamente aconte-
não é a da criação identitária desses meninos ce na vida cotidiana e, em nada dizendo, pouco
e meninas, dizendo aquilo que são, querem e produzem de alteração nas relações efetivamen-
deverão realizar, pensamento que restringe, te estabelecidas e nos desafios experimentados
como efeito, aquilo que poderiam mostrar de no contexto do trabalho educativo. A reprodu-
si e experimentar na vida social. Essa posição ção de lugares aprendidos é o oposto do pensa-
naturalizada que se relaciona com uma ideia mento que, para acontecer, há que ser forçado
de adolescência mais do que com esse/a ado- (DELEUZE, 2013); há que se viver certo descon-
lescente/a à nossa frente “[...] nada tem a ver forto em nome da conquista de uma outra coisa,
com a vida pensada na sua virtualidade, apta, de um outro pensar. O presente texto tem algo
portanto, a atualizar-se em formas diversas, desse desconforto em operação.
justamente por não estar presa a uma forma-
-de-vida. O que nos importa é esticar tal fio
em direções muitos distintas”. (PELBART, A precariedade na vida
2019, p. 19, destaques do original)
Vimos participando nos últimos dez Adolescentes e jovens em cumprimento
anos do contexto socioeducativo por diversas de medida socioeducativa compõem um grupo
entradas: na execução direta, acompanhando social atravessado, de forma geral, pela pobreza
adolescentes no cumprimento da sanção; na e ausência de garantia de direitos sociais, cultu-
coordenação pedagógica de cursos de qualifi- rais e econômicos. Advêm, na maioria dos ca-
cação profissional e de arte e cultura ocorridos sos, de famílias empobrecidas que residem nas
em centros de internação para adolescentes na periferias182 das cidades, têm baixa escolarida-
cidade de São Paulo e em municípios da região de e são predominantemente negras (SINASE,
metropolitana; em processos de formação de 2017). Essa “maioria minorizada”183 (SANTOS,
educadores/as desses/as adolescentes. Falamos 2020) é parte de um contingente populacional
de meninas e meninos, mas, sobretudo, dos herdeiro de um passado colonial e escravocrata,
últimos, que dominam como público atendi- marcado por negligências de direitos e trucu-
do por essa entrada da política brasileira de lências promovidas por um Estado que não ga-
atendimento a adolescentes181. Esses anos de rante condições mínimas de dignidade à popu-
trabalho têm contribuído, sobretudo, para a lação empobrecida materialmente.
produção de perguntas, e consideramos esse Comumente, filhos e netos de famílias
um importante ganho para a realização de um migrantes, os sujeitos empobrecidos e despro-
trabalho não ensimesmado. tegidos têm suas vidas marcadas pela preca-
Uma das questões que tem dominado riedade, experimentando privações que, em
em nossos estudos, trabalhos e formações nas alguns casos, os conduzem à prática de atos
quais nos debruçamos para profissionais que se infracionais como resposta às múltiplas vio-
relacionam diretamente com esses/as adolescen- lências sofridas. A pobreza não é a marca da
tes se refere ao uso de palavras, seja no atendi- infração, mas as condições de vida que acom-
mento direto seja quando se referem a eles/as, panham a existência do sujeito socialmente
que parecem pouco dizer quando tomadas como vulnerável, de maneira geral, não permitem
óbvias, tais como: educação, cidadania e diretos que viva um cotidiano no qual direitos sociais
181
De acordo com o mais recente levantamento anual do SINASE, lançado em 2019, com dados de 2017, havia no país
143.316 adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, 82% estavam cumprindo medidas socioeducativas
em restrição de liberdade (meio aberto). Deste contingente, as adolescentes do sexo feminino representam apro-
ximadamente 4% do público atendido. Dados disponíveis em https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/
crianca-e-adolescente/LevantamentoAnualdoSINASE2017.pdf. Acesso em abr/21.
182
É importante destacar que “periferia” é um conceito polissêmico e multifacetado. Inicialmente pensado como espaço
urbano marcado pela falta, pela carência, na década de 1980 passa a ter novas leituras, com casas em diferentes níveis de
consolidação e bairros mistos, no ponto de vista dos residentes — onde há a presença de casas estruturadas e “barracos”,
por exemplo. Algumas regiões periféricas foram valorizadas e podemos observar a expulsão de uma população que não
mais podia arcar com o aumento do custo de vida local, migrando para outras regiões ainda mais afastadas do centro.
183
O termo, cunhado por Richard Santos, diz respeito ao contingente de pretos e pardos, que compõem a categoria
“negros” do IBGE, que é, no país, maioria demográfica da população e é minoria em termos de acesso a direitos,
serviços públicos, representação política etc. Tidos como inferiores, sofrem, segundo o autor, um processo de apaga-
mento identitário. Ao cunhar o termo, o autor aponta a Maioria Minorizada como um “[…] signo de representação
unificador do discurso e proposta de emancipação negra” (SANTOS, 2020, p. 22).

209
sejam experimentados e trajetórias biográficas sando as estatísticas nacionais de apreensão e
alargadas em possibilidades criativas, variadas mortalidade muito mais como vítimas do que
e protegidas de viver o mundo ganhem corpo, como algozes (ROVARON, 2020), ainda que
terreno fértil para a aproximação de ofertas de pareçam ser eternizados no papel de sujeitos
inserção no campo do ilícito. que apenas perpetram a violência:
Alvos de controle social repressor e
violento (TEIXEIRA, 2015), esses meninos e A todos é dado o direito de competir em
meninas superlotam os centros de atendimen- uma arena construída por e para as clas-
to socioeducativos país afora, experenciando ses médias. É um acordo perfeitamente
processos de institucionalização que, por vezes, adequado para transformar desigualda-
parecem ser o “destino certo” dos/as adolescen- des estruturais na experiência de fracas-
tes pobres, insubmissos às normativas que não so individual e da culpa. A maioria dos
fazem sentido para vidas privadas de direitos perdedores são bons perdedores. Eles
e, consequentemente, de cidadania. Rotulados aceitam a sentença, eles não são melhores
como ameaças à paz social, expõem abertamen- do que as suas notas e também aceitam
te o que Marcelo Semer (2019) afirma ser, ao a posição (dentro ou fora) da força de
pesquisar sobre as sentenças dadas aos casos de trabalho compatível com as suas notas.
apreensão por tráfico de drogas, a opção prefe- Porém, alguns não aceitam. Eles preferem
rencial do sistema judiciário pelo pobre. mostrar que estão fora, vagando pelo par-
A pobreza não gera criminalidade que. (CHRISTIE, 2016, p. 82)
(PERLMAN, 1977), mas é um fator importan-
te a ser considerado, pois o sofrimento social As medidas socioeducativas compõem
ao qual famílias são marcadas durante gerações o processo de judicialização da vida desses/as
produzem nos sujeitos reações que ultrapassam adolescentes e jovens. Configuram-se, em mui-
a norma e a lei. Quando não se garante condi- tos casos, como um marcador que os estigmati-
ções mínimas de sobrevivência e dignidade, há zam, indicando perspectivas de um horizonte
grandes possibilidades de que os sujeitos des- marcado por possíveis desvios e punições.
protegidos busquem alternativas às ausências, Para garantirmos o exercício do prin-
dada a inconstância de suas trajetórias, as in- cípio educativo das medidas socioeducativas
certezas e as baixas expectativas de futuro: há que se ter atenção (e produzir perguntas)
acerca do que esperamos — e antecipamos
A posição precária no mercado de tra- — a esses/as adolescentes. Experiências têm
balho, defeitos de socialização familiar, mostrado que a sanção tutelada em uma prá-
o baixo nível de escolaridade, presentes tica universalizada (desvinculada da trajetó-
nas classes subalternizadas, não consti- ria de cada atendido/a), em que resoluções
tuem causas da criminalidade, mas sim, às questões sociais participam apenas à mar-
características com influência determi- gem do problema, pouco produzem mudan-
nante na distribuição do status de cri- ças significativas nas vidas daqueles/as que a
minoso. (KARAM, 2005, p. 160) vivenciam. (MPSP, 2018)
Deserdados do Capital, meninos e
A pobreza e a violência configuram meninas pobres passam suas vidas em um mo-
modos de vida e, na ausência de um Estado de vimento dentro-fora da lei, estando à margem
Bem-Estar Social atuante, alternativas pare- quando seus direitos não são assegurados, e
cem ganhar corpo e centralidade nas trajetó- dentro quando infracionam e são capturados.
rias desses/as adolescentes, apresentando pos- A esses, é atribuída uma cidadania negativa
sibilidades de se enxergarem como potentes, (BATISTA, 1996). Nesse movimento de cap-
ainda que para isso coloquem suas existências tura, passam por um processo de visibilidade
em risco (FEFFERMAN, 2006). O campo dos que os retiram das margens e os centralizam
ilegalismos184 constitui uma alternativa real e na racionalidade punitiva do Estado Penal
muito próxima das juventudes e a juventude (WACQUANT, 2003), engrenagem funda-
pobre, neste campo tensionado entre o legal e mental na sustentação da agenda neoliberal,
o ilegal, representa o alvo principal das socie- que tem como marca a produção do grande
dades de controle (DELEUZE 1992), engros- encarceramento. (SOUZA, 2018)
184
Conceito elaborado por Michael Foucault, em seu livro Vigiar e Punir (1987), se diferencia do conceito de crime,
que classifica as práticas a partir da lógica da transgressão, representando um modelo de gestão dessas práticas. Essa
gestão produz, a partir das normativas, uma administração que não é acidental, mas sim seletiva, do que é tolerado
e do que deve ser repreendido.

210
As marcas dos dizeres e a ou o que os fará sair. Seria esse não saber, em
produção de outras linguagens uma etapa da vida, a adolescência, caracteriza-
no socioeducativo da já por tantos questionamentos e angústias,
questão para os atores dos direitos humanos?
A questão que deveríamos priorizar é
O adolescente em cumprimento de me- aquela que pergunta sobre os processos: o que,
dida socioeducativa deve realizar certas tarefas para cada adolescente, é vivido como um direi-
a fim de que sua sanção seja extinta. Adolescen- to realizado? Como conquistá-lo? Em relação à
te e adulto viram cumpridores de atividades, escolarização, por exemplo, quais seriam os pas-
percorrendo aquilo que vão vislumbrando como sos necessários à conquista da aprendizagem, ao
impedimentos à conquista delas (MUNHOZ, invés de avaliarmos que houve educação somen-
2017). Desta feita, fica aparente que na letra da te quando atestada pela matrícula e frequência
lei não aparecem os esforços necessários a cada escolares? Como se dão os processos que podem
adolescente diante de processos que conduzi- ser associados à condição cidadã, para além da
riam à efetivação de seus direitos sociais. Sem retirada de documentos que atestam sua exis-
considerarmos o que cada um/a exige de si e ne- tência? Esses adolescentes experimentam, no
cessita do campo social para alcançar uma vida dia a dia, os diretos humanos? Como?
cidadã, produzimos, no máximo, uma cidadania A medida socioeducativa, como apre-
nominal (MBEMBE, 2018), em que a democracia sentado no tópico anterior, acessa, sobretudo,
não se realiza Não há processo gradual quando adolescentes negros/as e de camadas sociais
o adolescente que não teve seus direitos sociais desprivilegiadas e ameaçadas (fundamental-
garantidos passa a tê-los porque está em cum- mente, pelo mesmo Estado que deveria prote-
primento de medida socioeducativa; ele salta gê-los). São meninos e meninas que se desco-
de um lugar preenchido por ausências para ou- brem adolescentes experimentando diferenças
tro em que as coisas acontecem em função de no próprio corpo e nas relações interpessoais
sua identidade infratora, produzindo um vá- (com muitos desafios que tais novidades po-
cuo onde a gradação, inexistente, contribuiria dem implicar) enquanto precisam se haver
para que houvesse a construção de sentido no com histórias e experiências bastante comple-
acesso ao status de cidadania. xas. Ocorre que tais experiências frequente-
Ocorre que a medida socioeducativa é mente ficam de fora do processo socioeducati-
um tempo que passará em sua biografia de for- vo, como se dissessem respeito a uma questão
ma que resta nos perguntarmos acerca dos efei- individual, e o que diz respeito a uma proble-
tos desse tempo que passou quando dele faze- mática social tende a deixar de fora. Se essas
mos parte — e o que fica de como ele se passou: experiências aparecem como um elemento a
mais (passageiro), perdemos a possibilidade
Dentre aquilo que não se sabe está o tem- de acessar e refletir sobre como cada menino
po da internação; dele, só se sabe quando e menina é afetado/a em suas experiências sin-
começa, porque é quando a gente chega gulares, e como essa afetação participa tanto
no centro [de internação]. É difícil não do percurso infracional quanto do processo
saber quando a liberdade vai voltar, prin- educativo Um dos adolescentes com os quais
cipalmente, porque não dá pra saber o trabalhamos conta uma dessas experiências,
que vão levar em conta pra que a medida bastante recorrente em seu cotidiano:
acabe. Se tiver a ver com o comportamen-
to do menino, é muito difícil, porque até À noite, na praça em que muitos traficam,
um menino bom, lá dentro, demora pra mas não ele, se aproxima um carro de polí-
sair. A liberdade dele também tem a ver cia. De dentro dele, mandam que levante a
a história do Centro e de como os outros camiseta para provar o que ele já sabe: não
meninos se comportam lá dentro185. levava consigo arma alguma. Na ausência
do objeto que mata, alguém grita: “sai fora,
O que será para um/a adolescente en- não vou nem descer do carro pra não su-
trar em uma unidade de internação e não saber jar a mão com você, seu macaco, preto.
por quanto tempo ali ficará? Esses/as meninos/ Sai fora!”. De fora do carro, pôde ver que,
as sabem o tempo máximo de estadia (três dentro dele, havia apenas homens brancos.
anos, conforme o Estatuto da Criança e do Seus olhos buscavam alguém que fosse da
Adolescente), mas não sabem quando sairão mesma cor de sua pele para nele encontrar

Narrativa construída com um adolescente que cumpria liberdade assistida e havia cumprido medida de interna-
185

ção anteriormente.

211
a conivência com a cena que o humilhava. Os meninos se prejudicam por serem le-
“São sempre brancos os que fazem isso”; vados por um momento de estresse e por
fosse negro, poderia ir embora sem essa186. verem que não têm apoio de ninguém.
A maior parte deles nem sabe o que é a
Seria uma experiência como essa ques- medida [socioeducativa] e que tem direi-
tão para a medida socioeducativa? Milton to. Na internação, nem sabem o que é o
Santos (1996/1997) chama de cidadania mu- ECA [Estatuto da Criança e do Adoles-
tilada aquela que não pode ser exercida, em cente] porque é proibido saber, senão,
que a vivência dos direitos sociais é impedida. vão querer brigar pelos direitos. Eles nun-
Precisamos nos perguntar se é possível pensar ca podem ler os relatórios que as técnicas
um processo educativo no qual as experiências fazem e o que escrevem deles. O PIA [Pla-
efetivamente vividas — para esses/as meninos/ no Individual de Atendimento]187 é só o
as, as vivências cotidianas são violentadoras, res- lugar onde lavam as mãos.
tritoras — não sejam incluídas no pensamento
sobre o que diz respeito à vida cidadã. Qualquer Em uma proposta de assunção coletiva
encaminhamento que não se enlace ao reconhe- das responsabilidades (que não são as mesmas
cimento daquilo que vivem é mera burocracia entre aqueles que participam do processo so-
que não contribui para o processo reflexivo en- cioeducativo e, por isso, podem ser divididas),
quanto exercício político do pensamento. em que não separamos as experiências sociais
Invocamos Milton Santos em um tem- daquilo que uma pessoa vive (pelo contrário,
po histórico em que seu pensamento é urgente, essas dimensões, que não se separam, são afir-
pois, para o autor, “[...] o indivíduo completo madas como articuladas), não há antecipação
é aquele que tem a capacidade de entender o possível para um destino. Divergência em re-
mundo, a sua situação no mundo e que, se ainda lação à insistência de certo discurso social que
não é cidadão, sabe o que poderiam ser os seus vislumbra às adolescências determinado cami-
direitos” (SANTOS, 1996/1997, p. 133). Há nele nho, como se todos/as quisessem o mesmo e
um aceno à possibilidade de a medida socioe- tivessem as mesmas ferramentas para concre-
ducativa ser um tempo de construção coletiva tizar expectativas que, em grande parte, nem
de saberes, de metas e de proposições. Essa não são por eles desejadas. Divergir desse discurso
é uma defesa da sanção, mas um apontamen- implica em exercitar uma escuta efetiva das
to para o que realizamos de assujeitamento do narrativas e da realidade social vivida pelos/
outro quando, ao olharmos, procurando outra as meninos/as: toda intervenção só faz sentido
coisa, deixamos de ver (FOUCAULT, 2016). dentro de cada realidade singular:
Tal construção participativa, na pro-
posição de Santos (1996/1997), faz ver que não No longo prazo, será uma questão aqui,
é cidadão apenas aquele que acessa seus direi- como em outras áreas centrais na socieda-
tos, mas, fundamentalmente, aquele que sabe, de, de organizar as coisas de tal forma que
quando não o faz, que deveria fazê-lo. Desde as pessoas comuns se tornem participan-
esse ponto de vista, a medida socioeducativa tes nessas matérias que são de importância
não se pauta na realização de metas, mas na para eles ao invés de apenas espectadores;
construção compartilhada de uma participa- ou que se tornem os produtores de solu-
ção política dentro da qual os saberes, os dize- ções e não meros consumidores. Será im-
res e as vivências dos adolescentes não são um portante para nós procurar o nosso cami-
a mais, mas o ponto central do trabalho. Com nho em direção a soluções que obrigam os
outro adolescente escutado na pesquisa em envolvidos a ouvir, em vez de usar a força,
andamento, acessamos sua entrada na medida para procurar o compromisso, no lugar
socioeducativa de internação como sendo ele de exigir soluções, que promovam a com-
mero coadjuvante — quando ela diz respeito a pensação, ao invés de represálias e que, em
ele mais do que a qualquer outro alguém: termos antiquados, encorajam os homens

186
Narrativa construída em colaboração com um jovem que havia cumprido medida socioeducativa de Liberdade
Assistida meses antes no processo de elaboração da pesquisa de doutorado de uma das autores deste trabalho.
187
Lei federal 12.594/12, Art. 1º: § 2º Entendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art. 112 da Lei nº 8.069,
de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), as quais têm por objetivos: I — a responsabilização do
adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação; II —
a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu
plano individual de atendimento; e III — a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença
como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei.

212
para fazer o bem, em vez de, como agora, que fica sendo individual (e não político). Nes-
fazer o mal. (CHRISTIE, 2016, p. 128) se contexto, direitos humanos fica sendo um
termo bonito e pouco efetivo.
Boaventura de Sousa Santos (2011), O que se coloca em pauta é a constru-
ao propor uma advocacia popular cuja centra- ção compartilhada e contínua do que pode-
lidade é a aliança entre profissional e comu- rá vir a ser significado, pois assim percebido,
nidade, aventa algumas pistas no sentido do como um direito pelos/as meninos/as que atra-
que poderia ser um processo socioeducativo vessa, a medida socioeducativa. A responsabi-
articulado à experiência vivida de cada meni- lização como valorização da própria vida e, por
no e menina atendido/a em um “[...] modelo isso, a do outro, dentro de um processo em que
baseado na politização e na coletivização do
direito.” (p. 65). O que propõe essa ideia é o A função da prática e do pensamento
processo socioeducativo como projeto político emancipadores consiste em ampliar o es-
que passa por alguns vetores: i) compromisso pectro do possível através da experimen-
com as questões populares; formação política a tação e da reflexão acerca de alternativas
todo tempo (tomando as questões sociais que que representem formas de sociedades
atravessam as vidas como tema de reflexão, por mais justas. A luta democrática é, antes de
exemplo, sendo historicizadas e conversadas); mais, a luta pela construção de alternativa
iii) solidariedade social, em que o adulto se democráticas. (SANTOS, 2011, p. 69)
aproxima (toma como pauta para si) das in-
justiças vividas pelos/as meninos/as, sendo Necessária e urgente uma discussão a
elas consideradas para pensar as intervenções respeito do socioeducativo que não se restrinja
que vão sendo criadas com os/as educandos/ a afirmar a precariedade das condições mate-
as. Por fim, Santos (2011) ressalta a importân- riais e sociais de vida desses/as adolescentes.
cia de relações horizontais e não hierarquiza- As palavras, mais que junção de letras em re-
das, em que há (e se exerça) a valorização das latórios e sentenças, produzem vida, violência,
trocas de saberes. O/A adolescente que duvi- emancipação, rejeição e, no limite, morte. Elas
da e que produz dúvidas dentro do percurso dignificam a existência à medida em que to-
socioeducativo diz mais de nós, que com ele/a cam, fazem aproximar e compreender a si, o
pouco ou nada falamos, do que dele/a, que outro e o mundo. Adolescentes inseridos/as no
não tem obrigação de saber quando o/a priva- campo do ilícito frequentemente têm suas tra-
mos da possibilidade de saber. jetórias marcadas por múltiplas violências; ao
compreendermos que, onde sobra violência, se
Considerações finais cala a palavra e inviabiliza o diálogo, andamos
em direção à processual produção de sentidos
Dentre outras especificações, o aten- outros nessas trajetórias tão afetadas pela au-
dimento socioeducativo serve ao acompanha- sência de interlocuções que escapam à brutali-
mento do adolescente no enfrentamento de dade. Não deveria o atendimento socioeduca-
adversidades e desafios institucionais com os tivo, investido em construir ressignificações na
quais se depara e à facilitação de seu acesso vida desses sujeitos, ser o lócus privilegiado de
às políticas sociais que, em grande medida, fomento à dignificação da existência, da pala-
passam a existir na vida deles a partir de sua vra e da reflexão que anuncia novos mundos?
apreensão. Quando as precariedades domi-
nam, o perigo é desconsiderarmos o que cada
vida pede para persistir como existência. Mais
do que afirmar o que disputa contra suas vidas
— o trabalho precarizado, o ensino sem senti-
do e a ameaça constante da finitude da vida
–, parece necessário insistir pelo direito desses
adolescentes de opinarem sobre o próprio pro-
cesso socioeducativo. Há um salto necessário a
ser dado a partir da constatação das desigual-
dades sociais e das múltiplas violências; esses/
as meninos/as quase nada sabem do processo
ao qual são inseridos. Passam por revistas poli-
ciais quase diariamente mesmo quando fora da
cena ilícita e, ainda que falem sobre, pouco se
veem acompanhados dentro deste problema,

213
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214
DIREITOS HUMANOS
FUNDAMENTAIS: ADOLESCENTES,
DIGNIDADE HUMANA E
CÍRCULOS RESTAURATIVOS

Cristina Silveira Resumo: O presente trabalho visa ini-


Braga de Souza188 cialmente resgatar a história dos direitos das
crianças e dos adolescentes no Brasil desde
Elaine Cristina 1927, quando a legislação era pautada no Có-
Francisco Volpato189 digo de Menores, até o Estatuto da Criança e
do Adolescente, criado em 1990 e considerado
um avanço no campo jurídico e social do Bra-
sil, pois estabeleceu e consolidou os direitos e
deveres da criança no adolescente no país. En-
foque especial é dado ao Direito Fundamental
à dignidade humana elencado nas disposições
preliminares do Estatuto, apontando a Justiça
Restaurativa, através dos Círculos Restaurati-
vos, como uma prática, intrinsecamente liga-
da a dignidade humana, que pode contribuir
com a socioeducação e com a superação da
ineficácia de ações meramente retributivas,
ainda muito vigentes. A mudança deste para-
digma, espera-se que seja a maior contribuição
científica da pesquisa, de natureza qualitativa
e bibliográfica, desenvolvida pelo método de
análise explicativa da práxis dos círculos res-
taurativos junto aos adolescentes autores de
ato infracional que cumprem medida socioe-
ducativa de internação no Centro de Socioe-
ducação de Foz do Iguaçu-PR. O estudo tem
como foco a interpretação, compreensão e
dedução das repercussões positivas que favo-
recem a prática dos círculos restaurativos na
188
Pós-Graduada em Políticas de Atendimento a Crianças e Adolescentes em situação de risco — Faculdade de En-
sino Superior de Marechal Cândido Rondon — ISEPE Rondon.
189
Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná — UFPR.

215
socioeducação, garantindo dignidade humana Crianças e adolescentes
nas ações junto a adolescentes em conflito com têm direitos? Um pouco
a lei, causa da importância do estudo. dessa história no Brasil...
Palavras Chave: Dignidade Humana. Durante o período que antecedeu o
Círculos Restaurativos. Adolescentes em Con- século XX, não há registro da existência de
flito com a lei. políticas sociais voltadas para o atendimento
à criança e ao adolescente. Durante o Período
Imperial Brasileiro que teve início em 1822 e se
Introdução estendeu até 1889, com a Proclamação da Re-
pública, a infância no Brasil também não teve
A dignidade da pessoa humana tor- seus direitos formulados (FILHO, 2013).
nou-se, nas últimas décadas, um dos grandes Nos períodos da história denomina-
consensos éticos do mundo. Na área da infân- do Brasil Colônia, 1500 a 1822, e Brasil Império,
cia e juventude ela é mencionada em diversos início em 1822 até 1889 com a Proclamação da
documentos internacionais e nacionais, embo- República, ainda não se preocupava com for-
ra ainda assim, muitas violações ainda sejam mulação de direitos à criança e ao adolescente.
cometidas dentro e fora do país, o que denota Vigorava no período Imperial uma legislação
a deficiência de políticas públicas substantivas Penal conhecida como Código Penal Imperial,
que contribuam com sua efetividade. legislação aplicada para os adultos que prati-
Os direitos humanos, o que engloba a cassem atos contrários a lei. Por não haver le-
dignidade humana, possuem carácter universal gislação própria, a mesma também era aplica-
ao homem, isto é, todos são iguais perante a lei, da às crianças e adolescentes.
incluindo crianças e adolescentes. Assim, a lei A primeira legislação específica para
estabelece como direito do adolescente priva- menores de idade fora promulgada no Brasil
do de liberdade, ser tratado com respeito e dig- no ano de 1927. Nesta época não havia dis-
nidade, sendo que o propósito deste trabalho é tinção entre crianças e adolescentes e todo
apontar, através de um estudo bibliográfico e individuo com idade inferior a 18 anos era
explicativo, como a Justiça Restaurativa, atra- considerado como “menor” e, portanto, sujei-
vés dos Círculos Restaurativos pode contribuir to ao Código de Menores. O grande objeti-
para a garantia desses direitos. vo do Código era dar assistência e proteção
Para tanto, inicialmente a proposta é ao menor que se via em “situação irregular”,
fazer um resgate histórico da legislação, até o isto é, os abandonados, delinquentes, e filhos
giro do Código de Menores para o Estatuto da de famílias de classes desprivilegiadas. A lei
Criança e do Adolescente, o qual reconhece determinava que era de responsabilidade do
a necessidade de Proteção Social da Infância Estado a situação do “menor”, termo que na
pela condição peculiar de desenvolvimento. linguagem comum, segundo Guirado, 2012:
No segundo momento, trabalha-se a dig-
nidade humana como um valor fundamental nas se particulariza, referindo-se à pobreza,
politicas de proteção e direitos fundamentais de ao abandono, ao cuidado assistencial e à
crianças e adolescentes, possibilitando crianças e infração. Representa a criança que, prove-
adolescentes serem tratados com respeito e valor, niente de família de nível socioeconômico
o que lhes favorece condições de dignidade. baixo, vive em situação de abandono, mar-
O terceiro capítulo descreve porque ginalidade e/ou sob cuidado dos serviços
a metodologia dos círculos restaurativos vem públicos. Uma faixa etária, uma condição
de encontro ao princípio da dignidade hu- econômica e social e uma conduta delin-
mana e como ela pode contribuir no âmbito quente atribuem sentido a esta palavra.
da socioeducação. Não é qualquer criança que é referida
Acima de tudo, o trabalho foca que a como menor: “É uma determinada crian-
nota característica de voluntariedade, do espa- ça que recebe este cognome, que veste esta
ço digno e das relações horizontais dos Círcu- identidade. Parece que, no interior das re-
los Restaurativos, assim como sua metodologia lações entre os diferentes grupos e classes
pautada no diálogo, características subjetiva- de uma sociedade, faz-se num acordo sur-
mente ligadas ao princípio da dignidade hu- do, a circunscrição de uma “infância me-
mana, favorece que o adolescente em conflito nor”, que, em última instância, é percebi-
com a lei, além de refletir sobre seu ato, pense da — e acaba por se constituir -como uma
de modo privilegiado sobre sua realidade, sua ameaça à sobrevivência física e simbólica
história e suas motivações. dos que não são Menores. (p. 35)

216
Assim, para resolver problemas refe- Sucessor do Código de Menores de
rentes aos dos entendidos “menores” aplicava- 1927, foi criado pela ditadura militar o Código
-se os corretivos necessários, que envolvia assis- de 1979, com poucas mudanças e a mesma pers-
tência, proteção e vigilância. (MICALI, 2009) pectiva de situação irregular permaneceu vi-
As crianças e adolescentes eram tra- gente, sendo mantida a abordagem higienista e
tados pela legislação do Código de Menores correcional nas questões ligadas a área da infân-
de 1927 como seres “inferiores”, objetos tu- cia e adolescência. Com a instituição do novo
telados pela Lei e pela Justiça. O bem-estar Código de Menores, em 1979, consagra, em solo
das crianças era reduzido aos serviços sociais pátrio, a Doutrina da Situação Irregular.
prestados por entidades públicas ou priva- O Brasil começou a apresentar legis-
das. O poder Judiciário era a única instância lações que tinham como orientação a Prote-
que controlava as omissões e abusos, sendo ção Integral da criança e do adolescente, com
que cabia ao Juiz de Menores atuar nos seg- um giro paradigmático expressivo somente em
mentos da sociedade caso houvesse a exis- 1988, quando foi promulgada a Constituição da
tência de alguma irregularidade que pudesse República Federativa do Brasil, sendo que den-
causar “prejuízo” ao menor. (FILHO, 2013) tre inúmeros avanços legislativos, investiu-se no
A assistência religiosa era o único di- princípio da prioridade absoluta para acesso de
reito estabelecido no Código de Menores e crianças e adolescentes a direitos sociais.
não havia medidas específicas aplicáveis a pais A Constituição dedica seu título
ou responsáveis em situação de maus tratos, primeiro exclusivamente aos princípios fun-
opressão e abuso sexual, como hoje vemos damentais, dentre os quais resta elencado o
no Estatuto da Criança e do Adolescente. É princípio da dignidade da pessoa (BRASIL,
oportuno recordar que, até o surgimento do 1988). O texto do artigo 227º da Constitui-
Código de Menores, crianças e adolescentes ção, resume em seu corpo o elenco de direi-
“delinquentes” recebiam o mesmo tratamento tos que configura a Doutrina da Proteção
dispensado a criminosos, vadios e mendigos, os Integral à criança e ao adolescente, alinhan-
quais quando capturados eram encaminhados do o ordenamento jurídico brasileiro com as
indiscriminadamente para a cadeia e ficavam perspectivas dos Direitos Humanos interna-
presos junto com os adultos. cionais quando explicita em seu texto:
Em 1948, por intermédio da Assembleia
Geral das Nações Unidas, o Brasil torna-se sig- É dever da família, da sociedade e do Esta-
natário da Declaração Universal dos Direitos do assegurar à criança, ao adolescente, com
Humanos de 1948, cujo conjunto de princípios absoluta prioridade, o direito à vida, à saú-
e valores morais, elaborados sob o impacto da de, à alimentação, à educação, ao lazer, à
2ª Guerra Mundial, pautado nos direitos funda- profissionalização, à cultura, à dignidade,
mentais, na dignidade e igualdade humana aca- ao respeito, à liberdade e à convivência fa-
bou por impactar decisivamente o tratamento miliar e comunitária, além de colocá-los a
de crianças e adolescentes no país e no mundo. salvo de toda forma de negligência, discri-
Na década seguinte advém a Declara- minação, exploração, violência, crueldade
ção Universal dos Direitos Humano, referên- e opressão. (BRASIL, 1988)
cia para a elaboração da Declaração Universal
dos Direitos da Criança em 1959, a qual se trata Muito embora expresso na Constitui-
de um conjunto de princípios que têm como ção deveres da família, da sociedade e do Es-
formulação da Doutrina da Proteção Integral tado para com a criança e adolescente, foi ne-
das Nações Unidas para a Infância. Neste do- cessário criar uma legislação especial destinada
cumento ratifica-se o reconhecimento da dig- à criança e ao adolescente, desdobrando um
nidade e dos direitos iguais e inalienáveis para olhar detalhado sobre a proteção integral em
todos os membros da família humana, incluin- razão de sua condição específica de pessoas em
do as crianças e adolescentes. desenvolvimento. Assim, tornou-se necessária
De 1964 a 1985, período da história de- a existência de uma proteção especializada, di-
nominado Ditadura Civil-Militar, pertencente ferenciada, integral, para evitar que os precei-
a segunda metade do século XX, predominou tos constitucionais fossem reduzidos a meras
a visão por parte dos governantes brasileiros, intenções. (VERONESE, 2008)
que a situação da criança ou do adolescente Surge então em 1990, através da lei nº
abandonado ou infrator era uma questão de 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adoles-
segurança nacional (FILHO 2013). Portanto, cente, que traz em si uma profunda distinção
caberia somente ao Estado buscar formas de dos demais e antigos Códigos de Menores,
discipliná-lo, reprimi-lo e reeducá-lo. que pretendiam apenas ser apenas um lenitivo

217
dos males sociais, na medida em que concede fundamental que informa o conteúdo de di-
direitos às crianças e adolescentes, indepen- versas normas escritas, ao mesmo tempo em
dentemente de sua condição social, familiar e que condiciona a interpretação constitucional
econômica. (BRASIL, 1990) como um todo, principalmente quando os di-
Assim a ordem constitucional esta- reitos fundamentais estão envolvidos.
belecida conferiu a igualmente formal no tra- O princípio da dignidade da pessoa
tamento jurídico de crianças e adolescentes, humana, dito de outra maneira, “representa
posto que a doutrina da situação irregular não a superação da intolerância, da discrimina-
atingia a totalidade de crianças e adolescentes, ção, da exclusão social, da violência, da inca-
já que se destinava apenas àqueles que repre- pacidade de aceitar o outro, o diferente, na
sentavam um obstáculo à ordem, os abandona- plenitude de sua liberdade de ser, pensar e
dos, expostos, delinquentes, infratores, pobres, criar”.(BARROSO, 2010, p. 252)
que recebiam todos do Estado ações repressi- Nos direitos das crianças e adolescentes,
vas, higienistas, assistencialistas. o princípio da dignidade humana é o que guar-
Na infância e adolescência, a criação da uma relação mais íntima com o princípio da
do ECA chega então como fonte de um novo absoluta prioridade. Exerce um caráter basilar
modelo social, traz princípios inovadores, am- tanto na fundamentação quanto na orienta-
plia e divide as responsabilidades na Proteção ção da interpretação do princípio da absoluta
Integral, deslocando também para seu centro prioridade da criança e do adolescente. O arti-
o Princípio da Dignidade Humana como valor go 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente
fundamental dos direitos humanos. determina que criança e adolescente gozam de
A chamada Doutrina de Proteção Inte- todos os direitos fundamentais inerentes à pes-
gral, concepção sustentadora do Estatuto, con- soa humana e que deve ser assegurado facilida-
firma o valor intrínseco da criança e do ado- des e oportunidades para que lhes seja possível
lescente como ser humano, a necessidade do o desenvolvimento em condições de liberdade e
respeito à sua condição de pessoa em desenvol- de dignidade. (BRASIL, 1990)
vimento e seu o valor prospectivo da infância e Na lei consta como dever da família,
da juventude como portadoras da continuida- da comunidade, da sociedade e do poder públi-
de da espécie e do seu povo. O reconhecimento co, assegurar direitos referentes a vida, a saúde,
da sua vulnerabilidade torna as crianças e ado- a alimentação, a educação, ao esporte, ao lazer,
lescentes merecedores de respeito, dignidade a profissionalização, a cultura, a dignidade, ao
humana e proteção integral. (CIRÍACO, 2014) respeito, a liberdade e a convivência comunitá-
ria, sendo que nenhuma criança ou adolescen-
Ainda é preciso falar te será objeto de qualquer tipo de negligência,
discriminação, exploração, violências, cruelda-
e reconhecer o direito de e opressão. (BRASIL, 1990)
fundamental à dignidade na Assim, para tornar positivado para
infância e adolescência? crianças e adolescentes esses direitos funda-
mentais190, o Estatuto fomentou a criação de
Segundo Barroso, 2010, a dignidade um Sistema de Garantia de Direitos, de cará-
humana se constitui um valor, ligado à ideia de ter publico, moldado na perspectiva de eixos
bom, justo, virtuoso. Situa-se ao lado de outros de Promoção, Defesa e Controle, o qual se arti-
valores centrais para o Direito, como justiça, cula em rede para que se efetive a promessa da
segurança e solidariedade, o que a torna, para normativa jurídica, do compromisso de tornar
muitos autores, a justificação moral dos direi- alcançável para esses “sujeitos” e a efetividade
tos humanos e dos direitos fundamentais. A social dos direitos fundamentais de cidadania.
compreensão atual da dignidade humana toma Em proximidade de completar-se 31
como o pressuposto de que cada ser humano anos de todo um aparato jurídico destinado
possui um valor intrínseco e desfruta de uma especificamente aos direitos das crianças e
posição especial no universo, trazendo em seu adolescentes, não tem sido simples efetivar o
conteúdo elementos de individualismo, igual- reconhecimento social e estatal de que crian-
dade e solidariedade, bem como a centralidade ças e adolescentes possuem o direito a receber
do homem. A dignidade humana é um valor atendimento e atenção comprometida com sua

A lei não muda a cultura, ela auxilia a mudança da dinâmica social na medida em que dá as instituições condições
190

de implementar políticas especificas de amparo as suas disposições legais. A prática social fundada em fronteiras
políticas e sociológicas complexas potencializam o legado da lei e viabilizam a transformação de estruturas comple-
xas no tempo e espaço.

218
condição de desenvolvimento e formação, o A justiça restaurativa é prática ex-
que lhes confere condições de dignidade. pressamente formalizada desde 2012, através
O relatório Cenário Nacional da In- do Sistema Nacional de Socioeducação (SI-
fância e Adolescência 2019, concluiu que 47,8% NASE), Lei Federal n° 12.599/12, o qual prevê
das crianças e adolescentes (20 milhões), de 0 a em seu artigo 35º que se deve priorizar prá-
14 anos, vivem em situação de pobreza. O estu- ticas restaurativas na execução das medidas
do divulgado demonstra que 32 crianças e ado- socioeducativas, as quais destinam-se a res-
lescentes com idades, principalmente, entre 10 ponsabilização do adolescente autor de ato
e 17 anos, são assassinados por dia no país. infracional. (BRASIL, 2012)
No Brasil, em 2019, 16,4% das adoles- No Paraná, desde então, o Depar-
centes foram mães antes dos 19 anos; 2,5 mi- tamento de Atendimento Socioeducativo
lhões de crianças e adolescentes até 17 anos busca fomentar iniciativas e, dentre estas, às
trabalham; 11,7 mil crianças e adolescentes práticas o debate, com capacitações perma-
foram vítimas de homicídios em 2017. O rela- nentes e a utilização de técnicas restaurativas
tório ainda aponta que o Disque 100 recebeu nas Unidades sob sua gestão, buscando cada
86,8 mil denúncias de violações dos direitos de vez mais aprimorar práticas adequadas a efe-
crianças e adolescentes e aproximadamente 2,4 tivação de direitos e a superação da cultura
milhões de crianças e adolescentes são explora- sancionatória tradicional. (DEASE, 2015)
dos com trabalho infantil, conforme dados do Na Justiça Restaurativa, segundo
Fórum Nacional de Erradicação do Trabalho Achutti, 2014, o Círculo Restaurativo está entre
Infantil. (ABRINQ, 2019) as práticas mais comuns e a técnica que pode
Os índices revelam uma realidade que ser realizada em diversos âmbitos, pois são os
alerta para a vulnerabilidade e condições que próprios participantes os atores que detêm a
crianças e adolescentes brasileiros estão ex- autonomia e a responsabilidade de argumen-
postos. O agravante é que não faltam leis com tar e dialogar uma solução para determinado
ligação e interdependência com a dignidade problema. O processo conta com facilitador,
humana, mas sim falta políticas públicas de exe- capacitado, não necessariamente um jurista,
cução das mesmas e o reconhecimento que sua que atua como guardião da qualidade da co-
efetivação é imprescindível para a formação ci- municação, que deve se aproximar ao máximo
dadã. Sem dúvidas, essas lacunas, negligências e das condições ideais (HABERMAS, 2010).
violações da lei, repercutem em pequeno, médio A condução e metodologia dos Círculos,
e longo prazo na vida, na formação, na socializa- que envolve pré-circulos, círculos e pós círculos,
ção, autonomia e na forma das crianças e adoles- possibilita que as pessoas, no decorrer da prática,
centes se relacionarem com o mundo. se compreendam a si mesmas e aos outros pela
interface do próprio conflito, visando à repara-
Como os círculos ção dos danos e ao atendimento das necessidades
daqueles mais diretamente envolvidos.
restaurativos funcionam? Após a implantação da prática dos
Círculos com adolescentes que cumprem me-
Muito se tem argumentado sobe a dida socioeducativa de internação no Centro
importância da valorização dos direitos fun- de Socieducação de Foz do Iguaçu-PR, perce-
damentais das crianças e adolescentes me- beu-se muito comum nos apontamentos e na
diante o reconhecimento que é imperativo avaliação realizada por facilitadores, o registro
condições de dignidade para um desenvolvi- de relatos, feitos pelos adolescentes, de episó-
mento sadio. Também já, de longa data, se dios de violações da dignidade humana e vio-
tem asseverado que apesar desse reconheci- lências recorrentes, dos mais diversos tipos,
mento, nem sempre a lei positivada tem im- apresentadas como memórias da infância.
pedido novos casos de violação. Violências sofridas na infância, segundo
Ações de diversos seguimentos diferen- o Ministério da Saúde, 2010, podem gerar pro-
tes — família, comunidade, sociedade e, muito blemas emocionais, sociais, psicológicos e cog-
surpreendentemente, até do poder público — nitivos. As manifestações podem ser variadas,
oras são práticas que geram prejuízos às crianças incluindo uso de substâncias psicoativas, envol-
e adolescentes, comprometendo sua condição vimento em atos infracionais, comportamentos
social e seu desenvolvimento em vários âmbitos. de risco e vulnerabilidade, violência, iniciação
É na restauração desses prejuízos, subjetivamen- sexual precoce, gravidez e prostituição.
te, mas diretamente ligados a Dignidade Hu- No âmbito da saúde mental e social,
mana, que Justiça Restaurativa ousa trabalhar e a violência traz consequências como ansieda-
pode ter papel e repercussão relevante. de, abandono ou baixo desempenho escolar,

219
sintomas depressivos, alterações de memó- Onde não houver respeito pela vida e pela
ria, agressividade, automutilação e suicídio, integridade física e moral do ser humano,
o que pode comprometer a vida, a saúde e o onde as condições mínimas para uma exis-
desenvolvimento sadio e harmonioso, direi- tência digna não forem asseguradas, onde
tos garantidos na lei, conforme artigo 7º do não houver limitação do poder, enfim,
Estatuto. (BRASIL, 1990) onde a liberdade e autonomia, a igualdade
Nessa ótica e considerando os registros e os direitos fundamentais não forem reco-
realizados, é possível se pensar numa correlação nhecidos e minimamente assegurados, não
entre violação da dignidade e violências sofri- haverá espaço para a dignidade da pessoa
das na infância e atos infracionais. Para Zehr, humana, por sua vez, poderá não passar de
2008, muitos crimes (entendo também que atos mero objeto de arbítrio e injustiças. (p. 65)
infracionais) nascem de violações, pois muitos
ofensores foram vítimas de abusos na infância Assim, não há como exigir respeito
e consequentemente carecem de habilidades e ao outro, sem inicialmente o respeito à dig-
formações que lhe possibilitem uma vida sig- nidade humana. E, por isso, os círculos possi-
nificativa. O autor pondera que há indivíduos bilitam a liberdade para expressar a verdade
que prejudicam os outros porque também fo- pessoal, deixando de lado as máscaras e defe-
ram prejudicados, isto é, fazem uma reprodução sas para estar presente como um ser humano
da violência vivida, a qual tende a perpetuar de inteiro, para revelar nossas aspirações mais
forma cíclica se não interrompida. O autor con- profundas, para conseguir reconhecer erros
sidera que o crime é uma forma de pedir socorro e temores e para agir segundo nossos valo-
e afirmar sua condição de pessoa. res mais fundamentais. Isso ocorre na medi-
Muito embora a inegável necessidades da que os participantes revelam nos círculos
das vítimas, ZEHR, 2010, pondera que não se aspectos desconhecidos ou ignorados sobre
deve negligenciar as necessidades do ofensor. si mesmo através de uma orientação positiva
Para o autor, o ofensor precisa de tratamen- dos facilitadores, aquilo que de negativo havia
to, apoio emocional, questionamentos frente sido presumido pelos outros, começa a ruir e
a seus estereótipos, racionalizações, falas e em perder a força. (PRANIS, 2010)
relação ao seu pensamento sobre a vítima e A mesma autora fundamenta que jus-
atos. Na esfera do adolescente autor de ato in- tiça restaurativa utiliza as funções emotivas e
fracional, percebe-se nos Círculos que muitas poéticas da linguagem, baseando-se num dis-
vezes este adolescente teve seus direitos fun- curso narrativo, o que pode ser interpretado
damentais e sua dignidade violada, sendo que como um momento de “contar histórias”. Cada
antes de ser autor de violência foi vítima de pessoa tem uma história, e cada história ofe-
algum tipo de violência, sendo imprescindível rece uma lição. No círculo as pessoas se apro-
também para o ofensor ações restaurativas. ximam das vidas umas das outras através da
Atendendo a essas necessidades expos- partilha de histórias significativas, para elas as
tas por Zehr e as demandas expostas pelos ado- histórias unem as pessoas pela sua humanidade
lescentes, os Círculos Restaurativos, através de comum e as ajudam a apreciar a profundidade
sua dinâmica e metodologia, podem contribuir da experiência humana (PRANIS, 2010).
de forma singular para reflexões do ofensor e Assim, é na preparação cuidadosa de
mudanças de comportamento, possibilitando a perguntas norteadoras, na provocação do diá-
descoberta de valores, a significação e a ressigni- logo e da comunicação e nas bases do processo
ficação da realidade, a superação de traumas e o circular que vão havendo manifestações, com-
aprendizado de uma convivência social pautada promissos, reflexões e elucidações pessoais e
no respeito ao seu semelhante, o que também coletivas, que direcionam e contribuem para
alicerça os princípios da dignidade humana. um processo de ressocialização pautado em
Tal afirmação pauta-se que a técnica, direitos, respeito e condições de dignidade, a
na prática, a partir do momento que oportu- qual, mesmo sendo algo intrínseca e não apal-
niza ao ofensor, um espaço seguro e orientado pável, mutável está diretamente ligada a expe-
pelo facilitador para o manifesto de sentimen- riências e ações humanas que valorizam os di-
to, emoções, violações, violências praticadas e reitos fundamentais e o respeito ao outro.
vivenciadas, determinações e necessidades, as
quais acabam por favorecer o despertar de re- Considerações finais
flexões e de conexões ligadas à sua história de
vida, o que potencializa o princípio de um pro- Ao recuperar a história dos direitos
cesso de restauração e de rompimento do ciclo das crianças e adolescentes no Brasil, o Esta-
da violência. Como bem aponta Sarlet (2009): tuto da Criança e do Adolescente, norteado

220
sempre em bojo pelo princípio da Dignidade Referências
Humana, vem a ser a expressão da tentativa de
integrar à infância e a juventude à cidadania ABRINQ. F. Cenário da Infância e adolescên-
através de direitos fundamentais, possibilitan- cia no Brasil, 2019. Disponível em: https://fadc.
do condições e políticas para um desenvolvi- org.br/sites/default/files/2019-05/cenário-bra-
mento sadio e em condições de dignidade. sil-2019. Acesso em 19-12-2020
Em aproximados 31 anos de vigência, não
se pode negar que o Estatuto gerou muitos avan- ACHUTTI, D. Justiça Restaurativa e Aboli-
ços na Garantia dos Direitos Fundamentais das cionismo Penal: contribuições para um novo
crianças e adolescentes, mais ainda há uma dis- modelo de administração de conflitos no Bra-
tância considerável entre a Lei e a consolidação sil. São Paulo: Saraiva. 2014.
da prática, pois entre a previsão legal e sua exe-
cução, pesquisas apontam que no Brasil ainda en- BARROSO, L. R. Curso de Direito Constitu-
contram milhares de crianças e adolescentes vio- cional Contemporâneo: os conceitos funda-
lados diariamente em seus direitos e dignidade. mentais e a construção do novo modelo. 2 ed.,
Estas violações experienciadas incidem São Paulo: Saraiva, 2010.
em repercussões e consequências multifaceta-
das e em diversos âmbitos, entre elas a possi- _______, L. R. A dignidade da pessoa humana
bilidade do envolvimento de adolescentes em no direito constitucional contemporâneo: a
prática de atos infracionais, o que para alguns construção de um conceito jurídico à luz da
autores, vem a ser a reprodução de violências jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Edi-
sofridas em fases importantes de formação. tora Fórum, 2012.
A Justiça Restaurativa, através dos
círculos restaurativos, no trabalho com ado- BRASIL. Constituição Federativa da República
lescentes autores de ato infracional, tem apon- Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
tado com resultados bastante exitoso, pois a
prática, pautada pelo diálogo e escuta em es- _______Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Es-
paço seguro, ético e dirigido, pode fomentar tatuto da Criança e do Adolescente. Brasília —
reflexões que contribuam com a significação DF: Presidência da República. 1990
e ressignificação dos atos de violências prati-
cados e vivenciados, o que consequentemente _______ Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012.
repercute na restauração de valores, sentido de Institui o Sistema Nacional de Atendimento
vida e determinações individuo. Socioeducativo: Brasília, DF. Presidência da
Deste modo, aponta-se a Justiça Res- República, 2012.
taurativa como um dos caminhos a serem ex-
plorados na área da Socioeducação, pois ela CIRÍACO, H. C. Os profissionais educado-
pode ser entendida como uma possibilidade res nos Centros de Socioeducação: as me-
de ação, cujo objetivo engloba a superação de didas socioeducativas no contexto do ECA
violências cometidas e experienciadas por ado- e do SINASE. UTPPR, 2014.Disponívelem:
lescentes em conflito com a lei. http://repositorio.roca.utfpr.edu.br/jspui/bits-
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222
PÓS-ESTATUTO: O MOVIMENTO
NACIONAL DE MENINOS E
MENINAS DE RUA CONTRA O
EXTERMÍNIO (RECIFE, 1990-1991)

Elton Gleyson Resumo: O artigo pretende historici-


Oliveira da Silva191 zar as ações do Movimento Nacional de Me-
ninos e Meninas de Rua (MNMMR) contra a
persistência da violação do direito à vida de
crianças e adolescentes em situação de rua
após a promulgação do Estatuto da Criança e
Adolescente (1990). Nosso recorte espacial é a
cidade do Recife, capital do estado brasileiro
de Pernambuco, e o nosso recorte temporal é
entre outubro de 1990, mês onde o Estatuto
entrou em vigor, e setembro de 1991, período
onde a Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) que investigava o extermínio de crianças
e adolescentes no Brasil veio ao Recife.

Palavras chave: Infâncias. Violência.


Movimento Social.

Movimento pela lei e pela vida

Os meninos fizeram a Lei [Estatuto da


Criança e do Adolescente]. A gente pe-
gava, discutia nos fóruns, depois íamos à
base com os meninos, para os núcleos, sa-
ber se era daquele jeito mesmo, ou não. Foi
muito bem discutido aqui [Pernambuco].
O Movimento Nacional de Meninos e Me-
ninas de Rua, nesse sentido, se destacou
na luta da aprovação do Estatuto (Helena
Janssen, do Movimento Nacional de Meni-

191
Mestrando em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco — UFRPE.

223
nos e Meninas de Rua, ao “Projeto 25 anos uma vida “pior do que um animal”. Cerca de
do Estatuto da Criança e do Adolescente: um ano após a promulgação do Estatuto, o Mo-
conquistas e desafios” (2015)). vimento Nacional de Meninos e Meninas de
Gostaríamos de dizer que esta denún- Rua continuava as mobilizações, dessa vez não
cia que não é do Movimento [Nacional para a aprovação, mas para que o ECA fosse
de Meninos e Meninas de Rua] só, ela posto em prática e respeitado.
é a representação de um grupo que está É sobre esses assassinatos sem investi-
bastante preocupado com a situação gação, que estavam se configurando em quadros
das crianças e adolescentes neste Estado de extermínio, que iremos nos debruçar. Sendo
[Pernambuco], que está lutando para que assim, nosso trabalho buscará historicizar as
o Estatuto da Criança do Adolescente ações do Movimento Nacional de Meninos e
seja de fato posto em prática e respeita- Meninas de Rua (MNMMR) contra a persis-
do, porque não adianta o Brasil ter leis tência da violação do direito à vida de crianças
tão boas e bonitas e na prática elas não e adolescentes em situação de rua após a pro-
acontecem, se os brasileiros são mortos e mulgação do Estatuto da Criança e Adolescen-
assassinados e nem os criminosos são jul- te (1990). Como fontes utilizaremos o “Jornal
gados, se os filhos dos trabalhadores são do Commercio”, ligado à chamada “grande im-
forçados a viver na miséria, na fome, pior prensa”, destinado aos setores mais abastados
do que um animal (Helena Janssen, do da sociedade pernambucana e com grande cir-
Movimento Nacional de Meninos e Me- culação em Recife e Região Metropolitana, e o
ninas de Rua, à CPI do Extermínio, que Relatório Final da CPI do Extermínio, aprova-
visitou o Recife em setembro de 1991)). do em fevereiro de 1992 e publicado em maio
do mesmo ano. Nosso recorte espacial é a ci-
O depoimento de Helena Janssen, con- dade do Recife, capital do estado brasileiro de
cedido aos pesquisadores do “Projeto 25 anos Pernambuco. Nosso recorte temporal é entre
do Estatuto da Crianças e do Adolescente: os meses de outubro de 1990, início da vigência
conquistas e desafios192”, enfatiza a importân- do Estatuto, e setembro de 1991, quando a CPI
cia das mobilizações do Movimento Nacional do Extermínio veio ao Recife.
de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), Com historicizar queremos indicar
do qual foi uma das articuladoras no estado que submeteremos essas ações do Movimen-
de Pernambuco, para a aprovação do Estatuto to à “operação historiográfica”, ou seja, à ““in-
da Criança e do Adolescente (ECA). Essas mo- dústria” historiográfica, que articula um lugar
vimentações, iniciadas em meados da década socioeconômico de produção, as regras cientí-
de 1980, promoveram importantes discussões ficas de um domínio e a construção de um re-
entre os educadores sociais e os meninos e me- lato ou texto”, assim como postulou Michel de
ninas em situação de rua. Esses debates foram Certeau (2017, p. XII). Segundo o historiador
fundamentais para a construção do Estatuto: brasileiro Durval Muniz Albuquerque Júnior
após a escuta das crianças e dos adolescentes (2019), Certeau quer com isso dizer “que a his-
em situação de vulnerabilidade social, que se- toriografia é produto de uma operação, de uma
gundo Janssen “fizeram a lei”, foi possível uma atividade de atribuição de sentido aos even-
legislação que tornasse factível “um novo ca- tos” (p. 27). O autor concorda com o francês
minho”, como estava estampado em uma das quanto ao trabalho de historicização realizado
muitas faixas que as cerca de oito mil crianças pelo historiador, entretanto, discorda quanto
e adolescentes levavam pelas ruas históricas do ao caráter fabril do fazer historiográfico: “o
Recife celebrando a vigência do Estatuto193. historiador me parece habitar mais um atelier
Já no seu discurso à Comissão Parla- do que um espaço fabril” (p. 28). Assim, consi-
mentar de Inquérito (CPI) destinada a investi- dera “que a atividade historiadora tem maior
gar o extermínio de crianças e adolescentes no proximidade com a paciente e meticulosa ati-
Brasil, inaugurada em maio de 1991 e que veio vidade manual exercida por tecelões, borda-
ao Recife em setembro do mesmo ano, Helena deiras, rendeiras, tricoteiras, chuliadeiras” (p.
Janssen denuncia a situação dos meninos e me- 28). O historiador, para Albuquerque Júnior,
ninas em situação de rua no Recife: assassina- seria um “tecelão dos tempos”, que articularia
tos sem investigação, “miséria”, “fome”, levando na narrativa historiográfica o que chamamos
192
“O Projeto 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente: conquistas e desafios, patrocinado pela Petrobras,
objetivou construir um trabalho de coleta de documentos e produção de entrevistas sobre a trajetória histórica da
Lei 8.069/1990, contemplando as nove capitais do Nordeste do Brasil” (MIRANDA et al., 2015, p. 11).
193
ESTATUTO leva menor às ruas. Jornal do Commercio, Recife, 12 out. 1990. Cidades, p. 03.

224
de “fio condutor, de fio da meada, o problema, to, essa política de atendimento “levava sempre
a questão, o objetivo, que deve ser perseguido para a internação, o castigo, a violência física e,
e deve estar presente durante toda a narrativa” consequentemente, a manutenção da desigual-
(p. 30), como no bordado, onde existe “aquelas dade social”. (MNMMR-PE, 2002, p. 27)
laçadas, aqueles pontos, aquelas amarrações, Assim, já no início da década de 1980,
que serão fundamentais para que o desenho se a FUNABEM, a Secretaria de Assistência So-
sustente e se faça” (Ibidem). cial (SAS) e o Fundo das Nações Unidas para
a Infância (UNICEF) financiam o “Projeto
O movimento Alternativas Comunitárias” que tinha por ob-
jetivo reestruturar, a partir de iniciativas da
O Brasil na década de 1980 vivia o seu sociedade civil organizada, a política de aten-
processo de redemocratização. Eram as mobi- dimento às crianças e aos adolescentes que es-
lizações contra uma Ditadura civil-militar, tavam em situação de vulnerabilidade social.
iniciada com um golpe de Estado articulado Em junho de 1985, durante encontro realizado
por setores das forças armadas, setores empre- pela FUNABEM/SAS/UNICEF, ainda nos de-
sariais, setores da “grande imprensa”, setores bates provocados pelo “Projeto Alternativas”,
das classes médias urbanas e setores da Igreja militantes das mais diversas regiões do Bra-
Católica. A partir de finais da década de 1970, sil sentiram a necessidade de “dar um caráter
uma grande crise econômica, a publicitação mais político a esta articulação, por entender
de casos de torturas, desaparecimentos e as- que se fazia necessário provocar de fato uma
sassinatos e as pressões de uma sociedade civil mudança na política de atendimento às crian-
que voltava a se articular fizeram com que a ças e adolescentes”. (Ibidem, p. 28)
Ditadura entrasse em crise e o Estado Demo- Surge assim o Movimento Nacional de
crático de Direito fosse instaurado. Esse pe- Meninos e Meninas de Rua, na capital Brasí-
ríodo de retomada da democracia, marcado lia, para “resgatar a cidadania da Infância e da
por forte mobilização política, possibilitou Juventude, considerando meninos e meninas
debates sobre “a ampliação da noção de cida- como como sujeitos de direitos e promotores
dania” (AARÃO REIS, 2014, p. 110), além de de sua própria história, de uma nova visão de
ter sido o palco da expansão dos movimentos sociedade, com consciência plena de suas po-
sociais urbanos. (CARVALHO, 2012) tencialidades enquanto pessoas em fase de de-
A realidade daqueles e daquelas, entre senvolvimento” (Ibidem). O Movimento seria
eles crianças e adolescentes, em situação de o “primeiro interlocutor de âmbito nacional”
vulnerabilidade social não seria fácil durante dos direitos das crianças e adolescentes em si-
o regime ditatorial. Optando pelo que o his- tuação de rua (MNMMR; IBASE; NEV-USP,
toriador Daniel Aarão Reis (2014) chamou de 1991, p. 14). Assim, o Movimento passa a se
modernização “conservadora” e o sociólogo mobilizar pelos direitos de todas as crianças e
Edson Passetti (1998) classificou como “autori- adolescentes, mas especialmente daquelas e da-
tária”, a ditadura intensificou as desigualdades quelas que “moram nas ruas, habitam favelas,
socioeconômicas já existentes no Brasil. Essa morros, bairros populares e que são vítimas de
modernização foi responsável pela marginali- injustiça. (MNMMR-PE, 2002, p. 28)
zação e perseguição de parte de uma população A militância que participou da fun-
já estigmatizada como “perigosa” desde finais dação e construiu os primeiros anos do Movi-
do século XIX e inicios do século XX. Assim, mento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
no período da redemocratização, o Brasil era era constituída por não religiosos e por leigos
um país extremamente desigual, o que se re- engajados e religiosos engajados. Esses militan-
fletia nas ruas das grandes cidades brasileiras, tes eram chamados de “educadores sociais de
onde encontrávamos meninos e meninas dor- rua”, nomenclatura que, segundo o historia-
mindo nas ruas e praças, além de exercerem a dor Humberto Miranda (2021), surge a partir
mendicância nos semáforos, que perseguia o do “Projeto Alternativas”. Os leigos engajados
“inimigo interno”, seja ela o “comunista”, seja e religiosos engajados eram ligados a setores
ele o “delinquente”, seja ela o “menor”. progressistas da Igreja Católica: se reuniam
Para as crianças e os adolescentes em nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e
situação de vulnerabilidade social, a Ditadura viviam uma experiência religiosa marcada por
instituiu, na década de 1960, a Política Nacio- uma práxis “libertadora”, possibilitada pelo
nal do Bem-Estar do Menor (PNBEM), enca- “Cristianismo da Libertação” (LÖWY, 2016).
beçada pela FUNABEM/FEBEM (Fundação Tiveram papel de destaque nos primeiros anos
Nacional do Bem-Estar do Menor/ Fundação do Movimento. No entanto, com o passar dos
Estadual do Bem-Estar do Menor). No entan- anos, os militantes não religiosos passaram a

225
representar o maior segmento na construção entra em vigor em outubro de 1990, práticas
do Movimento Nacional de Meninos e Meni- de violações de direitos continuariam a fazer
nas de Rua. (MIRANDA, 2021) parte do cotidiano desses meninos e meninas,
Também não podemos deixar de men- como o extermínio de crianças e adolescentes
cionar que os meninos e as meninas também em situação de rua. As primeiras denúncias
construíam o Movimento. O MNMMR reco- contra o extermínio desses meninos e meninas
nhecia essas crianças e adolescentes como “su- foram feitas pelo Movimento e pela Pastoral
jeitos de direitos e com capacidade de parti- do Menor. (DIMENSTEIN, 1990)
cipar nas decisões que dizem respeito às suas
vidas” (MNMMR-PE, 2002, p. 29). O Movi- Movimento contra o extermínio
mento possibilitava para esses meninos e me-
ninas apoio para seguirem no difícil cotidiano De acordo com o Movimento Nacio-
das ruas dos grandes centros urbanos brasilei- nal de Meninos e Meninas de Rua, o Institu-
ros através de espaços para debates sobre a sua to Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
situação e para a organização política de suas (IBASE) e o Núcleo de Estudos da Violência da
ações (os chamados “núcleos de base”). Universidade São Paulo (NEV-USP), em pes-
Desde meados da década de 1980, que quisa divulgada em setembro de 1990, o assassi-
coincide com o a eleição de um presidente ci- nato de crianças e adolescentes era um fenôme-
vil, considerada por grande parte dos histo- no que acontecia em todo território nacional,
riadores como o marco temporal para o fim “ainda que não se tenha condições de precisar
da Ditadura, e com a Assembleia Constituin- exatamente quando ele assumiu as caracterís-
te e a promulgação da atual Constituição bra- ticas de extermínio” (1991, p. 13). No entanto,
sileira, vasta bibliografia descortina “histórias apontam que, para o Movimento, especialmen-
de vida e de rua” dos meninos e meninas em te a partir do final da década de 1980, a luta
situação de rua (GREGORI, 2000). Esse pe- contra o extermínio tornou-se prioridade. O
ríodo também é marcado por debates sobre MNMMR passa a denunciar o extermínio e a
quem são e o que caracteriza os “meninos de organizar encontros, projetos, “tribunais” (com
rua”, nomenclatura que, segundo a antropó- o objetivo de julgar simbolicamente os crimes
loga Maria Filomena Gregori (Ibidem), foi cometidos contra crianças e adolescentes), vi-
popularizada no Brasil a partir da publicação gílias, pesquisas, protestos e publicações, além
dos resultados da pesquisa “Meninos de Rua: de ações junto aos poderes executivo, judiciá-
valores e expectativas de menores marginaliza- rio e legislativo, buscando reverter esse cenário
dos em São Paulo” (1979), coordenada por Rosa de violação de direitos (Ibidem).
Maria Fischer a pedido da Comissão Justiça e O jornalista Gilberto Dimenstein
Paz de São Paulo e do Centro de Estudos da (1990) reconhece a importância das ações do
Cultura Contemporânea. Essa preocupação em Movimento (o qual dedica o seu livro), no en-
definir e caracterizar esses meninos e meninas tanto, delimita a segunda metade da década de
também foi uma preocupação do “Projeto Al- 1980 como o início do extermínio de crianças
ternativas”, segundo Miranda (2021). e adolescentes em situação de rua no Brasil,
Partindo da necessidade urgente de principalmente pelos chamados “grupos de ex-
apresentar alternativas para a superação do termínio”. Dimenstein sugere esse marco tem-
sistema FUNABEM/FEBEM e tudo o que ele poral baseado em dados divulgados pelo Minis-
representava, o Movimento expande suas rei- tério da Saúde que apontavam o aumento das
vindicações para “as políticas sociais voltadas causas externas (acidentes, envenenamentos,
para as crianças mais vulneráveis, [para] as homicídios, suicídios) para as mortes de crian-
violências praticadas pelo aparato policial e ças e adolescentes, a partir do ano de 1979,
[para] a precariedade vivida em relação aos di- além de dados que indicavam o aumento das
reitos fundamentais básicos” (Ibidem, p. 218). crianças e dos adolescentes em situação de rua
Gregori (2000) chama a atenção para o papel envolvidos em atos infracionais. O jornalista
exercido pelo Movimento Nacional de Meni- defende que esse cenário de extermínio era
nos e Meninas de Rua e pela Pastoral do Menor uma “guerra”. Ainda segundo o autor: “é possí-
(ligada aos setores progressistas da Igreja Ca- vel dizer e provar que hoje no Brasil existe um
tólica) para a aprovação dos artigos 227 e 228 processo fragmentado e em crescimento de ex-
da Constituição Federal (1988), que tratam dos termínio de menores infratores ou supostos in-
direitos de crianças e adolescentes, e, como já fratores” (Ibidem, p. 14). Dimenstein também
vimos, do Estatuto da criança e do Adolescen- pontua que essa “política de extermínio”, como
te (1990). No entanto, como também já vimos, considera na obra, acontecia com o apoio e/ou
mesmo após a promulgação do Estatuto, que conveniência de amplos setores da sociedade,

226
além de contar com o mesmo apoio e/ou con- As crianças e adolescentes negras do
veniência da polícia (Ibidem). sexo masculino eram as principais vítimas do
No Brasil, segundo o também jorna- extermínio, conforme dados do Instituto de
lista Bruno Paes Manso (2019), os grupos de Medicina Legal de Pernambuco (IML-PE) vin-
extermínio, também chamados de justiceiros, culados na Revista Veja, em maio de 1991197. O
matadores e esquadrões da morte, são grupos número de meninas exterminadas era menor,
armados formados a partir do final da déca- mas não significam que não existissem casos.
da de 1950, mas que se tornaram mais comuns Esse padrão, mais meninos mortos, parece se
nas décadas seguintes. Majoritariamente com- repetir em todo Brasil. Gilberto Dimenstein
postos por policiais e ex-policiais, esses grupos (1990) atribui esse quadro à outra grave viola-
buscavam defender a população das grandes ção de direitos: a exploração e abuso sexual das
cidades brasileiras eliminando os “bandidos” crianças e adolescentes do sexo feminino, que
através do sequestro, da tortura e do assassina- eram por isso “poupadas” do extermínio.
to. Ainda de acordo com Manso, os grupos de Segundo os sociólogos Otávio Cruz
extermínio contavam com o apoio de parte da Neto e Maria Cecília Minayo (1994), diferen-
sociedade e da imprensa. Durante a Ditadura temente do homicídio, onde o autor e a víti-
civil-militar passam a atuar nos centros de tor- ma são sujeitos individuais, no extermínio o
turas e mortes ligados à chamada “comunidade exterminador e o exterminado são grupos.
de segurança”. Além de seu objetivo principal Os mesmos autores também defendem que o
ser criminoso, eliminação sumária de pessoas, extermínio é “um ato político revestido de in-
passam a se envolver em outras atividades ile- tencionalidade, seja ela declarada ou não pelos
gais, como o jogo do bicho, no Rio de Janeiro. executores (p. 199), além de ser baseado, ainda
Em Pernambuco esses grupos tinham segundo os sociólogos, na ideia de limpeza so-
um modus operandi mais violento: “os corpos cial, que busca eliminar e classificar determi-
são encontrados queimados, sem olhos, ór- nadas camadas sociais como “extermináveis”.
gãos genitais arrancados, retalhados a facadas” No entanto, mesmo que os grupos de
(DIMENSTEIN, 1990, p. 93). O uso que esses extermínio sejam os executores e detenham
grupos faziam da espingarda calibre 12 tinha o de forma mais imediata o “poder soberano”,
objetivo de “desfigurar sem muito tiros o ros- “o poder e a capacidade de ditar quem pode
to de um indivíduo” (Ibidem). Nossas analises viver e quem deve morrer” (MBEMBE, 2018,
do “Jornal do Commercio” indicam que, no es- p. 05), grande parte da sociedade e de seto-
tado, a “grande imprensa” e a sociedade civil res do Estado chancelam e apoiam as mor-
organizada e seus movimentos sociais denun- tes, partilhando com esses grupos a “sobera-
ciavam a maciça presença de policiais e ex-po- nia”, por entenderem que os grupos elegíveis
liciais nesses grupos. Se tinha o entendimento como “extermináveis” representam um peri-
que era necessário a revisão do plano de direi- go para a saúde do corpo social que deve ser
tos humanos das instituições policiais e que a protegido. (FOUCAULT, 2014)
participação de policiais em empresas privadas
de segurança era um dos fatores para o cres- Recife: capital das
cente número de crianças e adolescentes assas- desigualdades e das violências
sinados194. Além disso, a fiscalização dos carros
apreendidos e recuperados pela Delegacia de
Furtos de Veículos era uma das medidas apon- Recife e sua Região Metropolitana
tadas para a redução do número de mortes, eram a terceira região onde mais se extermina-
uma vez que policiais e ex-policiais, que inte- vam crianças e adolescentes no Brasil, antecedi-
gravam os grupos de extermínio, se utilizavam da por São Paulo e Região Metropolitana e pelo
desses automóveis para sequestrar os meninos Rio de Janeiro e Região Metropolitana, confor-
e meninas195. No período estudado, segundo me a pesquisa mencionada anteriormente, que
informações vinculadas no periódico, existiam foi coordenada pelo MNMMR e pelo IBASE,
em Pernambuco trinta grupos de extermínio com assessoria do NEV-USP. De fato, quando
só para eliminar crianças e adolescentes196. levamos em consideração os homicídios come-

194
ENTIDADES protestam em Brasília contra a matança de menores. Jornal do Commercio, Recife, 22 jan. 1991.
Cidades, p. 04.
195
CPI já tem nome de exterminadores. Jornal do Commercio, Recife, 21 set. 1991. Cidades, p. 01.
196
Ibidem.
197
AZEVEDO, Eliane; FILHO, Mario Simas; PINTO, Lula Costa. Infância de raiva, de dor e sangue. Revista Veja,
São Paulo, n. 1184, pp. 34 -44, 29 mai. 1991.

227
tidos por armas de fogo, no início da década de nos) jogam com os mecanismos da disciplina
1990, Recife era a capital mais violenta do Nor- e não se conformam com ela a não ser para
te-Nordeste e a terceira mais violenta do Brasil. alterá-los” (Ibidem, p. 40). São o que o filóso-
Já se levarmos em consideração a porcentagem, fo Michel de Certeau denominou de “táticas”:
permanece como a mais violenta do Norte- “as maneiras de fazer” [que] constituem as mil
-Nordeste e se torna a segunda mais violenta do práticas pelas quais os usuários se reapropriam
Brasil (PERES & SANTOS, 2005). Também no do espaço organizado pelas técnicas de produ-
período, mais da metade da população da Ca- ção sociocultural” (Ibidem).
pital era considerada pobre ou extremamente Essas desigualdades e violências, prin-
pobre (50,21%). (RECIFE, 2020) cipalmente as cometidas pelas armas de fogo,
Nessa Cidade de muitos (a população “subjugavam a vida ao poder da morte (necro-
do Recife, no ano de 1991, era de 1.310.259 habi- política)” (MBEMBE, 2018, p. 71). Para o his-
tantes (Ibidem)), mas com espaço para poucos, toriador camaronês Achille Mbembe (2018), a
a sociedade não via com olhos esses meninos e noção foucaultiana de “biopoder” não é sufi-
meninas em situação de rua que comiam restos ciente para explicar essa subjugação da vida ao
de comidas em latas de lixos198; que pulavam do poder da morte, assim propõe os conceitos de
alto de suas famosas e históricas pontes, que “necropolítica’” e “necropoder”, “para dar conta
deram ao Recife o título de “Veneza Brasilei- das várias maneiras pelas quais, no nosso mun-
ra”, em direção ao rio Capibaribe199 (que corta do contemporâneo, as armas de fogo são dis-
os bairros centrais da Cidade); que dormiam postas com o objetivo de provocar a destruição
nas calçadas às margens do mesmo Rio200; que máxima das pessoas e criar “mundos de mor-
faziam o uso de entorpecentes201; que se reu- te”” (Ibidem). Sobre esses “mundos de morte”,
niam em grupos para furtarem e conseguirem comenta: “formas únicas e novas de existência
dinheiro para a alimentação e para compra social, nas quais vastas populações são subme-
de entorpecentes202; que eram exploradas se- tidas a condições de vida que lhes conferem o
xualmente203; que exerciam a mendicância nos estatuto de “mortos-vivos”” (Ibidem).
semáforos e nas praças204; que eram presença Assim, a vida desses meninos e meni-
constante em frente aos principais pontos tu- nas em situação de rua, legadas a esses “mundos
rísticos da Cidade205. Nessas ruas, onde eram de morte”, são diminuídas e não são conside-
forçados a entrarem no mundo do trabalho radas vivíveis (são “mortos-vivos”). A filósofa
adulto206, também se organizavam e reivindica- estadunidense Judith Butler (2015) propõe o
vam os seus direitos, especialmente o direito conceito de “vida precária” para explicar as
à vida207, já que os índices de assassinatos de categorias de vidas que não são “enquadradas”
crianças e adolescentes não paravam se subir. como vivas, sendo assim consideradas sem im-
Esses meninos e meninas em situação portância, não sendo por isso preservadas por
de rua, “que foram tomados como uma espécie nenhum testemunho ou consideração e nem
de emblema que ilustra, de forma vergonhosa consideradas passíveis do sentimento de luto.
e trágica, os dilemas sociais, políticos e morais Ainda segundo Butler, que insiste que o luto
da sociedade brasileira” (GREGORI, 2000, p. por uma vida é a condição fundamental para a
15), no entanto, não eram agentes passivos nes- sua existência e manutenção: “afirmar que uma
se cotidiano: sempre jogavam “com os aconte- vida é precária é afirmar que a possibilidade de
cimentos para os transformar em “ocasiões”” sua manutenção depende, fundamentalmente,
(CERTEAU, 2014, p. 45). Esses “procedimen- das condições sociais e políticas, e não somen-
tos populares (também “minúsculos” e cotidia- te de um impulso interno para viver” (p. 40).
198
FOTONOTÍCIA. Jornal do Commercio, Recife, 05 mai. 1991. Cidades, p. 04.
199
FOTONOTÍCIA. Jornal do Commercio, Recife, 20 ago. 1991. Cidades, p. 04.
200
MENINOS de rua vão retornar às famílias (fotografia). Jornal do Commercio, Recife, 19 mai. 1991. Capa
201
LINS, Ana Lúcia. Cheirar cola vai ficar mais difícil. Jornal do Commercio, Recife, 23 jun. 1991. Cidades, p. 02.
202
Ibidem.
203
MELLO, Patrícia Bandeira de. Meninas só podem sobreviver nas ruas: violência, miséria e prostituição. Jornal do
Commercio, Recife, 01 set. 1991. Cidades, p. 01.
204
PORTARIA que proíbe menor de pedir esmolas será julgada hoje. Jornal do Commercio, Recife, 04 set. 1991.
Cidades, p. 03.
205
MENDIGOS acampados em frente à Capela Dourada ganham apoio internacional. Jornal do Commercio, Recife,
20 jul. 1991. Cidades, p. 04.
206
MELO, Patrícia Bandeira de. É a chance para os meninos de rua. Jornal do Commercio, Recife, 19 mai. 1991.
Cidades, p. 01.
207
MENOR protesta contra a violência. Jornal do Commercio, Recife, 23 fev. 1991. Cidades, p. 04.

228
As vidas desses meninos e meninas passam por va que a cidade do Recife seria visitada pela
um processo de exclusão que suspende o seu CPI nos dias 19 e 20 de setembro211. A partir
estatuto jurídico, tornando-as mais suscetíveis desse momento o “Jornal do Commercio” passa
às violências arbitrárias. (BUTLER, 2019) a dar mais espaço para a situação daqueles e
O Movimento Nacional de Meninos e daquelas que denominou de “meninos de rua”,
Meninas de Rua teve papel fundamental para a “crianças de rua”, “meninos marginalizados”,
denúncia e mobilização contra esses “mundos de “pivetes”, “cheira cola” e de “menores”, adjeti-
morte” onde a vida das crianças e dos adolescen- vos carregados de estereótipos e preconceitos.
tes em situação de rua eram “precariazadas”. É Em 04 de setembro de 1991212, uma quar-
isso que veremos de forma mais específica agora. ta-feira, o “Jornal do Commercio” argumentava
Três meses após o início da vigência que a CPI do Extermínio viria ao Recife para
do Estatuto da Criança e do Adolescente, em entender “porque, segundo as estatísticas, Per-
janeiro de 1991, o Movimento Nacional de Me- nambuco é um dos estados da federação onde
ninos e Meninas de Rua e outras entidades es- mais se mata criança”, além de denunciar que
tariam em Brasília denunciando os altos índi- “está diariamente nos jornais as chacinas em
ces de assassinatos de crianças e adolescentes plena rua, as execuções sumárias e os espanca-
em situação de rua no Brasil, como foi noti- mentos pelos mais diversos motivos”.
ciado pelo “Jornal do Commercio” (JC), em 22 Um dia antes da vinda da CPI ao Reci-
de janeiro de 1991208. Classificando a situação fe, no dia 18 de setembro, o “JC” trazia números
como a “matança dos menores”, a notícia do sobre o quantitativo de assassinatos de crianças
“JC” informa que grande parte desses assassi- e adolescentes em Pernambuco, a partir de da-
natos eram cometido pelos chamados “grupos dos do Instituto de Medicina Legal. Esses dados
de exterminadores” e que as entidades entrega- indicavam que oitenta e um meninos foram
ram ao então Ministro da Justiça, Jarbas Passa- mortos, entre janeiro e junho de 1991. Ainda se-
rinho, relatórios com sugestões para combater gunda a notícia, Helena Janssen, do Movimento
o extermínio, além de uma “sinopse” com sete Nacional de Meninos e Meninas de Rua, preten-
casos de extermínio de crianças e adolescen- dia “mostrar aos 11 deputados da CPI a realida-
tes ocorridos nos estados de Pernambuco, São de dos menores em termos de violência e do que
Paulo, Sergipe, Amazonas e Rio de Janeiro. vem sendo feito ao seu favor”213.
No mês de maio de 1991, o “Jornal do No dia da vinda da CPI ao Recife, em
Commercio” noticiava os altos índices de vio- 19 de setembro, quinta-feira, o “Jornal do Com-
lência no estado de Pernambuco, chamando a mercio” noticiava: “CPI inicia investigação so-
atenção para o assassinato de crianças e ado- bre matança de menores”214. Durante a notícia
lescentes, que o Jornal mais uma vez classifica o “JC” lista algumas entidades que participa-
como “menores”, pelos “grupos de extermínio”. riam da audiência pública, que seria realizada
Entre as entidades que trabalham para a rever- no Centro de Convenções de Pernambuco, a
são desse cenário de violência, que para o “JC” partir das 09h: Centro Dom Helder Camara,
atingiu “índices alarmantes”, a notícia lista o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organiza-
Movimento Nacional de Meninos de Rua209. ções Populares, Casa de Passagem, Comunida-
Durante o mês de setembro de 1991 de dos Pequenos Profetas, Conselho Estadual
as crianças e adolescentes em situação de rua de Promoção dos Direitos da Criança e o Mo-
ganhariam mais destaque no Periódico per- vimento Nacional de Meninos de Rua.
nambucano. Em 03 de setembro de 1991 a re- Já na sexta-feira, 20 de setembro, o “JC”
latora da Comissão Parlamentar de Inquérito noticiava o primeiro dia de atividades da CPI
(CPI) destinada a Investigar o Extermínio de no Recife215. A notícia informa que as entidades
Crianças e Adolescentes no Brasil210 anuncia- listadas anteriormente, entre elas o Movimen-
208
ENTIDADES protestam em Brasília contra a matança de menores. Jornal do Commercio, Recife, 22 jan. 1991.
Cidades, p. 04.
209
VIOLÊNCIA atinge índices alarmantes. Jornal do Commercio, Recife 05 mai. 1991. Cidades, p. 01.
210
A CPI do Extermínio, como ficou conhecida, surgiu a partir do Projeto de Resolução nº 14, de 21 de março de
1991, transformado na Resolução nº 02, de 02 de abril de 1991. Foi instalada em 29 de maio de 1991 e esteve em Recife
no mês de setembro de 1991. Tinha o objetivo de investigar o extermínio de crianças e adolescentes no Brasil. Seu
Relatório Final foi aprovado em fevereiro de 1992 e publicado em maio do mesmo ano.
211
CPI dos menores vem a Pernambuco dia 19. Jornal do Commercio, Recife, 04 set. 1991. Cidades, p. 04.
212
DEPUTADOS investigarão assassinatos de crianças. Jornal do Commercio, Recife, 04 set. 1991. Cidades, p. 04
213
CPI debate portaria que proíbe mendicância. Jornal do Commercio, Recife, 18 set. 1991. Cidades, p. 06.
214
CPI inicia investigação sobre matança de menores. Jornal do Commercio, Recife, 19 set. 1991. Cidades, p. 04.
215
CPI já tem nome de exterminadores. Jornal do Commercio, Recife, 21 set. 1991. Cidades, p. 01.

229
to Nacional de Meninos e Meninas de Rua, pu- de direitos e protagonistas de suas histórias.
deram expor aos deputados suas mobilizações No entanto, como também vimos, a
e denúncias contra o extermínio de crianças e vidas dessas crianças e adolescentes continua-
adolescentes. Ainda segundo a notícia, o Movi- ram “enquadradas” como “precárias” e expostas
mento Nacional de Meninos e Meninas de Rua a verdadeiros “mundos de morte”. Esse cenário,
apresentou dados sobre os assassinatos de me- onde o direito à vida era banalizado, nos leva
ninos e meninas em situação de rua. para uma questão: a recente democracia brasi-
Segundo informações do Relatório leira não era para todos. Alguns setores conti-
Final da CPI do Extermínio (1992), Helena nuaram, mesmo na chamada Nova República,
Janssen falou em nome do Movimento. Na sua sem o resguardo da democracia (CARVALHO,
fala, de aproximadamente 20 minutos, ainda 2012). Some-se a isso a latente desigualdade so-
de acordo com o Relatório, ela relembrou as cioeconômica e os altos índices de violência
mobilizações do Movimento para a constru- presentes na cidade do Recife.
ção do Estatuto da Criança e do Adolescente O Relatório Final da CPI do Extermí-
e para a sua aprovação. No seu discurso, que nio e as notícias vinculadas no “Jornal do Com-
foi o primeiro a ser preferido, Janssen também mercio” indicam que o MNMMR acompanhou
comentou a situação degradante, que envolve de perto a situação de extermínio de crianças e
desigualdades e violências (entre elas o exter- adolescentes em situação de rua, especialmente
mínio), que os meninos e as meninas em situa- no Recife. As ações do Movimento estavam li-
ção de rua estão expostos no Recife. gadas à produção de pesquisas e relatórios com
Ainda de acordo com o Relatório, dados, acompanhamento dos casos de extermí-
a militante traz dados, oitenta e um casos, nio e proteção aos meninos e meninas. Além
como também faz denúncias sobre casos re- disso, o Movimento Nacional de Meninos e
centes de extermínio, além de indicar que o Meninas de Rua era reconhecido como uma re-
Movimento acompanha de perto a situação ferência na luta contra esse cenário de violação
dessas crianças e adolescentes. Entre os casos de direitos, sendo por isso listado e consultado
de extermínio, aponta a morte do adolescente pela “grande imprensa” pernambucana e pelo
Fabiano, de 12 anos, que foi assassinado com Estado brasileiro, quando essa noticiava os ca-
um tiro nos olhos e dois no peito, em fren- sos de extermínio e quando o último buscava
te à uma grande rede de supermercados, no investigar e solucionar o problema.
Recife. Ainda no seu depoimento, Janssen Assim, mesmo após o Estatuto e a
também denuncia a impunidade: “o que nos redemocratização do Brasil, grande parte da
apavora nesse momento é a impunidade des- sociedade brasileira e de setores do Estado
ses casos, o que nos apavora é a forma como é continuaram a violar e a negar os direitos de
tratado o povo, povo que resiste” (Ibidem, p. atores sociais que historicamente já vinham
189). Segundo a historiadora Luisa Rita Car- sendo excluídos. O Estatuto da Criança e do
doso (2020), o fim desse ciclo de impunidade Adolescente (ECA), de fato, foi um marco,
vai ser um dos motores da CPI do Extermínio. mas foi uma legislação que não foi acompa-
nhada de uma nova mentalidade de grande
Considerações finais parte da sociedade brasileira, uma mentalida-
de da universalização de direitos.
Como pudemos acompanhar, o Movi-
mento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
teve papel fundamental para a aprovação da Referências
Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA). A história AARÃO REIS, D. A vida política. In: AA-
dessas crianças e adolescentes, especialmente RÃO REIS, D. (coord.). Modernização, dita-
daqueles em situação de rua, foi marcada por dura e democracia: 1964-2010. Rio de Janeiro:
violências e desigualdades, um processo que Objetiva, 2014.
tem suas origens no final do século XIX, com a
dita modernização e higienização das grandes AARÃO REIS, D. Introdução: As marcas
cidades brasileiras. Nesse sentido, o ECA, que de um período. In.: AARÃO REIS, Daniel
foi construído pela sociedade civil organizada, (coord.). Modernização, ditadura e democra-
pela classe política, pela classe jurídica e pelos cia: 1964-2010. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
meninos e meninas em situação de vulnerabili-
dade social, representava “um novo caminho”, ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. O tecelão dos
um caminho que tornava possível o reconheci- tempos: novos ensaios de teoria da história.
mento desses meninos e meninas como sujeitos São Paulo: Intermeios, 2019.

230
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tivo, Brasília, DF, 12 maio 1992. Seção 1.

232
MEMÓRIAS DE UM
GRITO ESCRITO EM
RECIFE: (1988-2000)

Heliwelton do Resumo: O jornal O Grito dos Meni-


Amaral Clemente216 nos e Meninas de Rua, comumente chamado
Humberto da Silva Miranda217 de “O Grito”, foi um periódico construído e
publicado pelos meninos e meninas junto com
os educadores da comissão do Movimento
Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MN-
MMR) do Recife, capital de Pernambuco, es-
tado brasileiro localizado na região Nordeste.
A sua primeira edição foi publicada em agos-
to de 1988, a partir de então, o periódico re-
presentou um espaço para que os meninos e
meninas trouxessem suas notícias, denúncias,
críticas, reivindicações e registrassem aconte-
cimentos marcantes sobre suas vidas e sobre
as atividades do MNMMR. O objetivo do pre-
sente trabalho é tratar de questões referentes
ao periódico, sobretudo, à elaboração e dis-
tribuição dos exemplares de O Grito, através
do entrecruzamento entre as publicações de
divulgação do MNMMR e relatos de memória
de três pessoas que participaram da construção
de edições dos jornais na época de sua circula-
ção. Do ponto de vista da metodologia, traba-
lhamos com entrevistas temáticas e os três en-
trevistados desempenharam papéis diferentes
dentro do jornal. A entidade responsável por
tal publicação, o MNMMR é uma organização

216
Mestrando em História Social pela UFRPE.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior —
Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001. Este trabajo se llevó a cabo con el apoyo de la Coordinación de
Perfeccionamiento del Personal de Educación Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamiento 001.
217
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco — UFPE.

233
não governamental formada por educadores, litar, como afirma o historiador Carlos Fico
militantes, crianças e adolescentes. Nasceu em (FICO, 2015), tal cenário é descrito, pela so-
1985, com o intuito de representar uma arti- cióloga Maria Glória Gohn, como terreno
culação na luta pelos direitos da infância e da fértil para a expansão da atuação de diversos
adolescência marginalizada no Brasil. Analisar movimentos sociais que representaram a luta
o jornal O Grito é também investigar a partici- por direitos civis e mudanças no cenário polí-
pação de crianças e adolescentes no MNMMR tico brasileiro. (GOHN, 1997)
de Recife entre os últimos anos da década de Em relação às políticas públicas para a
1980 até o ano 2000, o estudo envolve também, infância e adolescência, em tal período, exis-
elementos que permearam a dinâmica de fun- tia por parte do Estado, uma concepção as-
cionamento da entidade nas comunidades da sistencialista, e repressora no tratamento das
capital pernambucana. crianças e adolescentes. A Política Nacional
do Bem-Estar do Menor (PNBEM), de acor-
Palavras-chave: Infância. Movimento do com o historiador Humberto Miranda, era
Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Jornal. fundamentada no Código de Menores de 1979
e desempenhada através do modelo FUNA-
BEM/FEBEM218, implantado em 1964 e extinto
Introdução em 1990. (MIRANDA, 2014, p. 18)
A repressão no tratamento das crianças
A partir de uma análise da trajetória e adolescentes em situação de vulnerabilidade
da assistência às crianças e adolescentes em si- fez com que surgissem grupos opositores a tal
tuação de vulnerabilidade no Brasil ao longo atuação do Estado. A reunião de tais grupos em
dos séculos, a historiadora Maria Luiza Mar- torno do Projeto Alternativas de Atendimento aos
cílio afirma que tratar da marginalidade social Meninos e Meninas de Rua219 implantado em 1982 e
da criança é um elemento vital no fazer histo- a atuação de grupos progressistas ligados à Igre-
riográfico de uma História Social da América ja Católica (MIRANDA, 2021), desdobraram-se
Latina. (MARCÍLIO, 1998, p. 127) na criação do Movimento Nacional de Meninos
Na década de 1970, o escritor e jor- e Meninas de Rua (MNMMR), em 1985.
nalista uruguaio Eduardo Galeano documen- O MNMMR surge como uma organi-
tava a pobreza e a desigualdade presentes na zação popular não governamental autônoma
América Latina e trazia à tona a problemáti- composta, sobretudo, por meninos, meninas,
ca das doenças e da fome que atingiam meni- educadores sociais e voluntários, iniciando seus
nos e meninas de tal vasto território, naquele trabalhos com a intenção de representar, em
momento. Ao falar de como “120 milhões de âmbito nacional, a articulação pela causa da in-
crianças se agitam no centro dessa tormenta” fância e adolescência marginalizada. De acordo
(GALEANO, 2010, p. 20), o autor afirma que com a historiadora Alessandra Nicodemos:
apesar do enfrentamento de tantos problemas
“Teimosamente, as crianças latino-americanas O MNMMR estruturou-se em oposição
continuam nascendo, reivindicando seu direi- ao modelo de natureza assistencialista e
to natural de ter um lugar ao sol nessas terras repressor da política oficial do período
esplêndidas, que poderiam dar a todos o que a anterior. Sua concepção político-pedagó-
quase todos negam.”. (GALEANO, 2010, p. 21) gica pretendia que a criança e o adoles-
São desses meninos e meninas que rei- cente se constituíssem como protagonis-
vindicaram seu lugar ao sol, nesse território tas, sujeitos históricos do seu processo de
de vasta extensão, exuberância e variedade crescimento e elementos ativos na defesa
geográfica, marcado por tantas problemáti- dos seus direitos de cidadania. (NICO-
cas, que iremos tratar, possuindo como recor- DEMOS, 2020, p. 218)
te temporal o período de 1988 até o ano 2000
e Recife, uma das maiores cidades do Nordes- Tratando do fazer historiográfico uti-
te brasileiro como recorte espacial. lizando jornais como fontes históricas, a his-
Nos fins da década de 1970 e no de- toriadora Tânia de Luca ressalta a importância
correr da década de 1980 o cenário político e em se identificar o grupo responsável pela pu-
social brasileiro foi profundamente marcado blicação para a realização de uma análise críti-
pelo término do regime ditatorial civil-mi- ca (LUCA, 2008). Nesse sentido, apontamos a

Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM); Fundação Estado do Bem-Estar do Menor (FEBEM).
218

Tal projeto também chamado pela sua abreviatura, Projeto Alternativas, foi criado em 1981 e implantado em 1982, sen-
219

do cofinanciado pelo Fundo das Nações Unidas Pela Infância (UNICEF), pela Secretaria de Ação Social e FUNABEM.

234
pertinência de trazer para o debate os aspectos O “jornalzinho” dos meninos
históricos e as linhas de atuação do MNMMR e meninas do MNMMR
que mencionamos e que permeiam a investiga-
ção do periódico em questão.
O Grito dos Meninos e Meninas de Rua, Grito e choro são reações espontâneas que
mais conhecido pelo seu nome abreviado, “O vêm de dentro do peito, sempre provocadas
Grito”, foi um jornal elaborado pelos educado- pela dor ou pela alegria. No caso dos nossos
res, meninos e meninas participantes do Mo- meninos, constatamos mais dor do que ale-
vimento Nacional de Meninos e Meninas de gria. No entanto, ter um espaço onde eles
Rua. Publicado por membros do MNMMR em pudessem gritar sua dor era por demais im-
Recife, o periódico trazia notícias não apenas portante. (JANSSEN, 2013, p. 42)
da capital pernambucana, mas de cidades vi-
zinhas e, por vezes, de outros municípios do O trecho supracitado foi escrito pelo
estado de Pernambuco. A sua primeira edição principal educador responsável pela equipe de
foi publicada em agosto de 1988, a partir dis- meninos e meninas do jornal O Grito, Adria-
so, o periódico representou um espaço para no Janssen220 revela-nos o motivo do nome do
que os meninos e as meninas trouxessem suas jornal. O espaço para gritar, mencionado pelo
notícias, denúncias, críticas, reivindicações e educador social, remete às inúmeras reclama-
registrassem acontecimentos marcantes para o ções e questionamentos que aparecem com
Movimento, além de suas vivências. O jornal frequência nas notícias do periódico. Carinho-
também se constituiu de estratégia do MN- samente chamado por vezes de “nosso jornalzi-
MMR para lutar por uma mudança no panora- nho” (O GRITO, outubro de 1988, ed. extra, p.
ma legal no âmbito da infância e adolescência, 1) a publicação era distribuída gratuitamente e
materializada na promulgação do Estatuto da a publicidade em suas páginas era praticamen-
Criança e do Adolescente (ECA) em 1990. te inexistente221. Sua periodicidade era dema-
O objetivo do presente trabalho é siadamente irregular, elemento que traremos
investigar o papel dos meninos e meninas para o debate nas próximas páginas.
integrantes do MNMMR nas atividades re- Destacando a materialidade do perió-
ferentes ao jornal, sobretudo no âmbito da dico, aspecto que, de acordo com o trabalho de
elaboração das edições e distribuição dos Luca, é essencial para a análise de tal tipo de fonte
exemplares. Em prol de atingir tal objetivo, (LUCA, 2005), evidenciamos que cada edição do
o nosso fazer historiográfico foi pautado na jornal era composta por uma folha papel sulfite
análise de relatos de memórias resultantes de do tamanho A4 (Altura: 29, 7 cm e largura 21,0
três entrevistas temáticas. Nesse sentido, con- cm.) colocada na posição horizontal (paisagem) e
sideramos o registro de testemunhos como dobrada ao meio, cada face tornava-se uma pági-
um elemento de ampliação das possibilidades na totalizando assim quatro páginas222.
de interpretação do passado, como afirma a Uma publicação que fala sobre as for-
historiadora Verena Alberti (ALBERTI, 2005, mas de organização e trabalho do Movimento
p. 155) e entendemos que o que a memória de Pernambuco, define o jornal como “um ins-
individual grava, exclui, relembra e mobiliza trumento de denúncias e protestos da menina-
é o resultado de um trabalho de organização da, levando às ruas e periferias o grito escrito
no presente como afirma o sociólogo Michael dos meninos e meninas, alertando a sociedade
Pollak (POLLAK, 1992). Ainda em termos sobre situações e injustiças sociais.” (MNMMR,
metodológicos, buscamos o entrecruzamento 2002, p. 48). Dessa forma, buscamos respostas
entre os relatos, as publicações de divulgação sobre esse instrumento de denúncias através de
do MNMMR e sua documentação. relatos de memórias de pessoas que participa-
ram de sua construção.
O conhecimento prévio acerca da tra-
jetória do MNMMR na capital pernambucana
derivada de pesquisas e produções acadêmicas

220
Adriano Janssen foi um holandês-brasileiro que atuou na Juventude Operária Católica (JOC) na década de 1960 e
tornou-se educador do MNMMR em Pernambuco em meados da década de 1980. Sobre a vida do autor, ver: JANS-
SEN, Adriano. Porque tem meninos e meninas de rua. Olinda: CCS Gráfica e Editora, 2013.
221
Das 56 edições de O Grito que constam no acervo do LAHIN, apenas duas possuem algum anúncio publicitário.
222
Quase todas as edições do jornal possuem 4 páginas. As exceções são significativamente raras.

235
acerca do tema realizadas anteriormente223 e a tes no trabalho de Alberti (ALBERTI, 2005, p.
ajuda de educadores e militantes da organiza- 175). Nesse sentido, consideramos também que
ção224 trouxeram dados e informações prévias a mobilização de memórias no presente resulta
sobre os entrevistados, elementos que segundo em múltiplas leituras que inferem nos significa-
a arquivista francesa Tourtier-Bonazzi, são de dos que os indivíduos dão a determinado passa-
extrema importância no trabalho com entre- do, como afirma o trabalho do historiador An-
vistas. (TOURTIER-BONAZZI, 2006, p. 263) tônio Montenegro. (MONTENEGRO, 2006)
Dessa forma, chegamos em João, Tiago e Ao tratar sobre o processo de produ-
Paulo, pessoas que possuem em comum a trajetó- ção das edições de O Grito, João revela-nos que
ria com o MNMMR e o envolvimento com o jor- o conteúdo e os desenhos eram produzidos
nal O Grito. João morava em um bairro pobre da pela equipe de elaboração, da qual fazia parte,
Região Metropolitana do Recife e era um adoles- nas reuniões ocorridas na sede227 do MNMMR
cente que trabalhava para ajudar no sustento de em Recife, que aconteciam todas as quartas-
sua casa. Entrou no Movimento em 1997, quando -feiras (BATISTA JUNIOR, 2020, informação
tinha 15 anos de idade e logo passou a fazer parte verbal). Tiago afirma ter levado informações
da equipe de elaboração do “jornalzinho”. para tal equipe de elaboração, a partir de suas
Tiago morava em um bairro periféri- experiências nos núcleos de base e nos eventos
co do Recife e entrou no Movimento a partir do MNMMR: “os meninos produziam com in-
de 1999, tinha por volta de 12 anos. Era repre- formações trazidas da comunidade, era assim
sentante de Pernambuco na Comissão Sub- que funcionava” (SANTOS, 2021, informação
-regional225 do MNMMR e levava informa- verbal). Os dois entrevistados afirmaram que
ções para o jornal. Tanto João quanto Tiago a equipe responsável pela confecção do pe-
entraram no Movimento a partir dos núcleos riódico possuía de 5 a 8 membros no período
de base, espaços pedagógicos onde os educa- que entraram para o jornal, entre 1997 e 1999.
dores realizam atividades (MNMMR, 2002). Paulo nos revelou que não participava de tais
De acordo com as fontes analisadas: reuniões, seu envolvimento era voltado para os
aspectos técnicos do jornal. (GONÇALVES,
Os núcleos de base são grupos de crianças 2020, informação escrita). Dessa forma, João
e adolescentes de rua ou de bairros popu- trouxe à tona elementos da dinâmica de pro-
lares, eles podem funcionar na própria rua dução do jornal, dinâmica essa que era permea-
quanto em casas na comunidade e se encon- da pela participação desses meninos e meninas.
trar uma vez por semana. Nesses encontros
semanais os meninos e meninas escolhem As notícias que a gente trazia como ado-
assuntos para discussão e fazem atividades lescentes, eram as notícias que a gente
recreativas. (MNMMR, 1996, p. 30) tinha contato [...]. As notícias da rua,
Adriano sempre trazia antes de se reunir
Foi o trabalho do MNMMR nos men- com a equipe do jornal... ele um dia antes
cionados bairros populares que representaram ou no mesmo dia chegava de manhã e ia
a porta de entrada para a organização nos casos no [Grupo] Ruas e Praças conversar com
de João e Tiago. Diferente deles, Paulo conhece os educadores, conversar com os meninos
o jornal na idade adulta226 através de um con- e saber as coisas que tavam acontecendo
vite de Adriano Janssen — seu cunhado — para na rua. Se aconteceu alguma coisa na rua
trabalhar com a diagramação e arte-final logo e tal... E acabava virando matéria também
no início do periódico, no ano de 1988. Dessa das coisas que aconteceram na rua. E aí a
forma, ressaltamos que cada um dos entrevis- gente da equipe do jornal discutia sobre
tados se envolveu com o jornal a partir de um o que ia escrever, quem ia escrever o quê,
ponto de vista diferente, elemento menciona- se precisava de informações de terceiros
do como possibilidade de ampliação dos deba- [... ] ia ver a Lista Telefônica, ia ligar pra

223
Ver: CLEMENTE, Heliwelton do Amaral. Trajetória do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua no Recife
na década de 1980. 2018. 49 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em História) — Departamento de His-
tória, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2018.
224
A educadora “Dudui” e o educador “Tonho das Olindas” nos ajudaram imensamente.
225
A Comissão Sub-regional da qual Pernambuco faz parte envolve também os estados da Paraíba e do Rio Grande
do Norte. A região Nordeste possuía três comissões Sub-regionais. Mais informações sobre o papel dessa comissão
serão debatidas ao longo do capítulo.
226
No ano de surgimento do jornal, 1988, Paulo tinha 32 anos de idade.
227
A sede ficava no bairro de Santo Amaro, localidade próxima do Centro do Recife.

236
alguém e tal, pra pedir mais detalhes so- onde esses exemplares chegam: “vão para os co-
bre as coisas que aconteceram e sempre legas na rua, nos bairros, nas ocupações e nas
íamos emitindo a nossa opinião, né. Con- escolas noturnas.” (O GRITO, agosto de 1991,
tando os fatos e dizendo como a gente p. 1). Quando trata desse aspecto, Janssen afir-
se sentia diante daquilo. (BATISTA JÚ- ma que a maior parte dos jornais era distribuí-
NIOR, 2020, informação verbal) da pelos próprios meninos e meninas, sobretu-
do, em lojas, repartições e escolas (JANSSEN,
É importante ressaltar que a fala de 2013, p. 41), nesse sentido, percebemos o espaço
João aponta que existiam as notícias que par- escolar aparecendo mais uma vez. Paulo não
tiam dos meninos e as que vinham “da rua”. participava da distribuição, mas ressaltou a
Estas últimas demandavam um trabalho de participação dos meninos e meninas envolvi-
articulação do educador Adriano Janssen. A dos com o MNMMR no processo de distribui-
opinião que era deixada nas matérias é marca ção (GONÇALVES, 2020, informação escrita).
da identidade do periódico e aparece nas no- Ao sintetizar o habitual destino dos
tícias e nos desenhos de tal jornal. exemplares do “jornalzinho”, João nos revela:
Ao tratar sobre esse processo de pro- “Nos bairros, a partir do núcleo de base, na rua
dução do “jornalzinho”, Janssen traz elementos com o foco na meninada da rua, com o [Gru-
que dialogam que a informações levantadas po] Ruas e Praças e abertamente à população,
por nossas entrevistas. Nos ditos do educador normalmente atrelado com os atos públicos.”
do Movimento: “Tudo que acontecia nas ruas (BATISTA JÚNIOR, 2020, informação ver-
a turma trazia para ser publicado. A dinâmi- bal). A distribuição em atos públicos também
ca era muito interessante, todos os fatos eram é mencionada por Tiago, que também trata so-
colocados e juntos fazíamos a seleção.” (JANS- bre a distribuição nos próprios núcleos de base
SEN, 2013, p. 41). Essa relação entre o educa- (SANTOS, 2021, informação verbal).
dor e os meninos nesse processo de produção Por conseguinte, percebemos que
descortina questões sobre irregularidade nos para os entrevistados que eram adolescentes
períodos entre as edições, elemento que pode na época que participaram da construção do
ser percebido facilmente por quem analisa as jornal, a dinâmica de distribuição dos exem-
edições em série. De acordo com Paulo, “O jor- plares estava atrelada aos atos públicos do
nal saía ao sabor dos acontecimentos. Quando Movimento e os núcleos de base, espaços do
Adriano reunia um volume de informações a trabalho pedagógico da organização, que tam-
partir dos relatos dos meninos e meninas [...]” bém eram vetores dessa distribuição.
(GONGALVES, 2020, informação escrita).
Nesse sentido, destacamos a participa- Considerações finais
ção dos meninos e meninas no ato de seleção
dos fatos e construção das notícias. Os exem- Estabelecer diálogos entre a documenta-
plares do jornal eram impressos em gráficas de ção, as publicações de divulgação do Movimento
instituições que possuíam parceria com o MN- e os relatos de memória de pessoas que se envol-
MMR. Buscando informações sobre a quanti- veram com o jornal O Grito permitiu investigar
dade impressa, a edição do próprio jornal de elementos essenciais ao trabalho historiográfico
agosto de 1991 afirma que 1.500 exemplares com jornais, que de acordo com a historiadora
eram impressos naquele período (O GRITO, Maria Helena Capelato, são periódicos que ex-
agosto de 1991, p. 1). Tratando do fim da dé- pressam as lutas, ideias, compromissos e inte-
cada de 1990, João afirma que normalmente resses de um determinado grupo (CAPELATO,
1.000 exemplares eram impressos (BATISTA 1988, p. 13), em nosso caso, os do MNMMR.
JÚNIOR, 2020, informação verbal). Dessa for- As evidências que apontam para a par-
ma, percebemos uma notável diminuição na ticipação dos meninos e meninas integrantes
quantidade de exemplares ao longo da década. do Movimento nos processos de elaboração das
Não encontramos explicação para a acentuada edições e de distribuição dos exemplares dialo-
redução em tal quantidade, através de nossa gam com a proposta pedagógica da organização
investigação, pontuamos que também houve de considerar crianças e adolescentes como pro-
uma redução no número de núcleos de base do tagonistas e sujeitos de suas próprias histórias,
MNMMR em Pernambuco, que entre 1992 e mesclando-se ao trabalho comunitário materia-
2000 passou de 28 para 21. lizado na atuação dos núcleos de base, espaços
A mesma edição que trata sobre a que possuíam o objetivo de organizar os meni-
quantidade dos exemplares, afirma que os nos em meninas, junto com educadores e educa-
meninos e meninas integrantes do MNMMR doras, em torno do debate sobre seus direitos e
distribuíam os jornais e aponta os espaços até suas condições de vida (MNMMR, 2002).

237
Percebemos que o periódico represen- Referências
tou os interesses do Movimento em criar um
espaço de organização e expressão na militân- ALBERTI, V. Histórias dentro da Histó-
cia por suas demandas diante de muitas difi- ria. In: PINSKY, C. B. (org.). Fontes históri-
culdades. Por conseguinte, apontamos que O cas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008.
Grito representou o elemento da astúcia no
sentido afirmado pelo historiador francês CAPELATO, M H. R. A imprensa na histó-
Michel de Certeau: “a fraqueza em meios de ria do Brasil. São Paulo: Editora Contexto;
informação, em bens financeiros e em ‘segu- EDUSP, 1988.
ranças’ de todo o tipo exige um acréscimo
de astúcia, de sonho ou de senso de humor.”. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1.
(CERTEAU, 2014, p. 43) Artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

CLEMENTE, H. A. Trajetória do Movimen-


to Nacional de Meninos e Meninas de Rua
no Recife na década de 1980. Trabalho de
Conclusão de Curso (Licenciatura em Histó-
ria), Universidade Federal Rural de Pernam-
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FICO, C. História do Brasil contemporâneo.


São Paulo: Contexto, 2015.

GALEANO, E. H. As veias abertas da Améri-


ca Latina. Porto Alegre: L&PM, 2010.

GOHN, M. Teoria dos Movimentos Sociais:


paradigmas clássicos e contemporâneos. São
Paulo: Edições Loyola, 1997.

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de rua. Olinda: CCS Gráfica e Editora, 2013.

LUCA, T. R. História dos, nos e por meio de


periódicos. In: PINSKY, C. B. (org.). Fontes
históricas. São Paulo: Contexto, 2008.

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abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.

MIRANDA, H. S. Nos tempos das Febems:


memórias de infâncias perdidas (Pernambu-
co / 1964-1985). Tese (Doutorado em Histó-
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do Projeto Alternativas ao Movimento Nacio-
nal de Meninos e Meninas de Rua (Brasil, dé-
cada de 1980). Revista Brasileira de História
& Ciências Sociais, v. 13, n. 25, p. 200-222, 2021.

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ou uma história a contrapelo. Estudos Ibero-
-Americanos. PUCRS, v. XXXII, n. 1, p. 37-
62, junho, 2006.

238
NICODEMOS, A. Movimento Nacional de Fontes
Meninos e Meninas de Rua: aspectos histó-
ricos e conceituais na defesa dos Direitos da BATISTA JÚNIOR, J. Depoimento [agosto de
Criança e do Adolescente no Brasil. Revista 2020]. Entrevistador: Heliwelton do Amaral
Brasileira de História & Ciências Sociais — Clemente. Recife: UFRPE. Realizada através
RBHCS, [s. l.], v. 12, n. 24, p. 170-197, julho de videochamada. 1 arquivo .mp4 (94 minutos).
— dezembro 2020. p. 183. Entrevista concedida para a pesquisa sobre o
jornal O Grito dos Meninos e Meninas de Rua.
TOURTIER-BONAZZI, C. Arquivos: pro-
posta metodológicas. In: FERREIRA, M.M.; GONÇALVES, P. Depoimento [agosto de
AMADO, J. (orgs.). Usos e abusos da histó- 2020]. Entrevistador: Heliwelton do Ama-
ria oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio ral Clemente. Recife: UFRPE. Questionário
Vargas, 2006. eletrônico (9 questões). Entrevista concedida
para a pesquisa sobre o jornal O Grito dos Meni-
nos e Meninas de Rua.

MNMMR. Diga aí menino! Fale aí, menina! Re-


cife: MNMMR-PE/Save the Children (UK/
BRASIL), 1996. Acervo: LAHIN.

MNMMR. Organização de meninos e meninas de


rua: a arte de educar para a vida. Recife: Comis-
são Estadual do MNMMR de Pernambuco, 2002.

O GRITO. MNMMR-PE. Capa. Recife, ano I,


ed. extra, outubro de 1988. Acervo: LAHIN.

O GRITO. MNMMR-PE. Seis anos de muita


vida. Recife, Ano IV, n.16, agosto de 1991. Acer-
vo: LAHIN.

SANTOS, T. Depoimento [janeiro de 2021].


Entrevistador: Heliwelton do Amaral Clemen-
te. Recife: UFRPE. Realizada através de video-
chamada. 1 arquivo .mp4 (24 minutos). Entre-
vista concedida para a pesquisa sobre o jornal
O Grito dos Meninos e Meninas de Rua.

239
OS LUGARES DE EDUCAR
A INFÂNCIA EM O MEU PÉ
DE LARANJA LIMA

Rodrigo da Paixão Pacheco228 Resumo: Nesta proposta, a aborda-


gem circunda entre os aspectos históricos
Ana Raquel Costa Dias 229
e sociais da infância no Brasil, desvelados a
partir da análise do romance O Meu pé de
laranja lima, escrito por José Mauro de Vas-
concelos, publicado em 1968. Trata-se de uma
autobiografia, na qual o autor por meio de um
personagem infantil — Zezé, protagonista da
história — discorre sobre a memória da sua
infância, tecendo um desabafo sobre a pobre-
za e a falta de compreensão dos adultos com
a infância. Através desta literatura, que nos
permite uma viagem pelo tempo, é possível
conhecer um pouco da história da infância e
sua relação com a educação. Na obra em ques-
tão, é possível atestar para uma infinidade de
possibilidades investigativas, no que compete
aos lugares de educar uma infância. O nosso
personagem principal, encontra-se inserido
em um contexto de vulnerabilidade social,
desemprego e trabalho infantil. Em meio a
esse cenário, Zezé, é aluno de grupo escolar,
lugar de educar e ambiente de luta e resistên-
cia. Zezé é filho de uma família muito pobre
e cria um universo fantasioso, para se refu-
giar de uma realidade exterior áspera. Desta
feita, dialoga e até ouve conselhos de um pé
de laranja lima que batiza carinhosamente de
Minguinho. É uma criança travessa e incom-
preendida que apanha muito, sendo chamado
228
Doutorando em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás — PUC-GOIÁS.
229
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Goiás — UFG.

240
de diabinho. A violência física é um tipo de Mão nenhuma te valeu na derrapada.
violência intrafamiliar, que por seu turno é Ao acaso das ruas — nosso encontro.
expressão da violência estrutural, fenômeno És tão pequeno… e eu tenho medo.
complexo que envolve causas sociais, cultu- Medo de você crescer, ser homem.
rais, ambientais, econômicas e políticas, apre- Medo da espada de teus olhos…
sentando-se com maior frequência em famí- Medo da tua rebeldia antecipada.
lias pobres, devido as condições precárias de Nego a esmola que me pedes.
sobrevivência, causadas pela má distribuição Culpa-me tua indigência inconsciente.
da renda, exclusão social, desemprego, drogas, Revolta-me tua infância desvalida
ineficiência de aplicação das leis pelo poder (CORALINA, p. 164, 1987)
público, desproteção das famílias como resul-
tado da reduzida proteção social conferida
pela precariedade das políticas sociais, fican- A explanação aqui exposta apresenta
do assim possivelmente expostas a fragiliza- uma abordagem que circunda aspectos edu-
ção dos vínculos familiares. Do ponto de vista cacionais, históricos e sociais da infância no
sociojurídico à época que passa a história de Brasil, desvelados a partir da análise do ro-
Zezé precede a instituição do Código de Me- mance O Meu pé de laranja lima, escrito por
nores de 1927, decreto nº 17.943-A, apreendido José Mauro de Vasconcelos e publicado 1968.
correntemente pela alcunha de Código Mello O livro é uma autobiografia na qual o autor
Mattos. O Código não era destinado a todas por meio de um personagem infantil — Zezé,
as crianças e adolescentes brasileiros, mas tão protagonista da história — discorre sobre a
somente àquelas consideradas problemáticas memória da sua infância, tecendo um desa-
ou perigosas devido às suas condições de clas- bafo sobre a pobreza e a falta de compreensão
se social — menores em situação irregular. Um dos adultos com a infância.
Código consubstanciado em punição, segre- Através desta literatura, que nos
gação e não em medidas protetivas de apoio permite uma viagem pelo tempo, é possível
e fortalecimento dos vínculos familiares. Na conhecer um pouco da história da infância
realidade, em situação irregular, estava o Esta- e sua relação com a educação. Barros (2010)
do para com a sociedade, que não cumpria as assevera que há muito para a história apren-
suas políticas sociais básicas. Nesse momen- der com a literatura, mesmo quando se refere
to, a assistência à criança e ao adolescente aos gêneros mais audaciosos de escrita. Nessa
ocorria de modo repressivo, sendo alvos de perspectiva, para Lopes (2005, p. 165) “[...] a
violências com o intuito de discipliná-los e literatura é uma fonte potencialmente rica
corrigi-los. Não foram respeitados, mas sim para a história e sobretudo para a história da
marginalizados, sendo percebidos como en- educação” considerando que se põe como al-
tes de riscos à ordem social. A proposta, por- ternativa às fontes oficiais da historiografia.
tanto, se baseia em explanar sobre os tempos Ao considerar nova possibilidades e
vividos e lugares ocupados por Zezé e elen- perspectivas teóricas, com seus pertences e
car uma reflexão literária que se impõe como aspectos fulcrais na construção da pesquisa
fonte histórica. Se faz presente uma infância histórica, consideramos a literatura como
que expõe imensuráveis olhares e questiona- fonte enriquecedora para a construção histo-
mentos, assim como o valor do caráter trans- riográfica, levando em consideração a neces-
formador do afeto e o risco do abandono sidade de uma precaução metodológica ideal
para o desenvolvimento infantil e educativo. e essencial na interpretação de qualquer
fonte histórica, visto a presença de discur-
Palavras-chave: Infância. Educação. “O sos imagináveis e inimagináveis, assim como
meu pé de laranja lima”. as intencionalidades, demandas e contextos,
bem como atesta Chartier (1990):

Todo documento de qualquer espécie,


incluindo o literário é representação do
De onde vens, criança? real que se apreende e não se pode desli-
Que mensagem trazes de futuro? gar de sua realidade de texto construído
Por que tão cedo esse batismo impuro pautado em regras próprias de produção
que mudou teu nome? inerente a cada gênero de escrita de tes-
[...] temunho que cria “um real” na própria
Criança periférica rejeitada… historicidade de sua produção e na inten-
Teu mundo é um submundo. cionalidade da escrita. (p. 62-63)

241
Importante salientar a importância Estamos falando de um menino, filho
para a escrita científica, de diversas evidên- de uma família muito pobre, que constrói um
cias, pistas e indícios que a literatura elenca mundo de fantasia, para se refugiar de uma
e que devem ser vistas com confiabilidade, realidade exterior áspera. Desta feita, dialoga
por intermédio do olhar crítico do/a pesqui- e até ouve conselhos de um pé de laranja lima,
sador/a. Ademais, a literatura por sua vez, que batiza carinhosamente de “Minguinho”. É
necessita ser caracterizada, para além do con- uma criança dita como travessa, e que, ao ser
teúdo fictício, mas como instrumento de de- bastante incompreendida, apanha muito, sen-
núncia e na capacidade de desvelar e descor- do muitas vezes chamado de diabinho.
tinar tempos, pessoas e espaços.
Granja (2012) atesta que José Mauro [...] — Só essa semana já levei um punhado
de Vasconcelos nasceu em 26 de fevereiro de de surras. Umas até bem doídas. Também
1920 em Bangu, bairro do Rio de Janeiro. Vi- apanho pelo que não faço. Levo culpa de
veu sua infância ao lado de alguns parentes, tudo. Já se acostumaram a me bater.
em Natal — Rio Grande do Norte e, faleceu — Mas o que tu fazes de tão mal assim?
aos 64 anos, em 25 de julho de 1984 em São — Deve ser o diabo mesmo. Vem uma
Paulo. Vasconcelos recebeu diversas premia- vontade de fazer, e... eu faço. Essa semana
ções em sua trajetória intelectual e além de eu toquei fogo na cerca da Nega Efigênia.
escritor, foi artista plástico, atuou no teatro e Chamei Dona Cordélia, de PataChoca e
estrelou filmes. O escritor brasileiro, autor de ela virou fera. Chutei uma bola de pano
Banana Brava (1942); Longe da Terra (1949); Ro- e a burra entrou pela janela e quebrou o
sinha, Minha Canoa (1962); Doidão (1963); O Ga- espelho grande de Dona Narcisa. Quebrei
ranhão da praia (1964); Coração de Vidro (1964); com a baladeira três lâmpadas. Dei uma
Meu Pé de Laranja Lima (1968); O Veleiro de pedrada na cabeça do filho de seu Abel.
Cristal (1973); O Menino Invisível (1978), dentre — Chega, chega. Ele punha a mão na boca
outras valiosas obras, explanou em seus escri- para esconder o sorriso.
tos algumas de suas atividades laborais prefe- — Mas ainda tem mais. Arranquei todas
ridas, bem como esclarecem Corrêa & Olivei- as mudas que Dona Tentena tinha acaba-
ra (2019). “Sonhava em ser nadador, porém a do de plantar. Fiz o gato de Dona Rosena
vida lhe direcionou para outros caminhos: foi engolir uma bola de gude.
treinador de peso-pluma no boxe, carregador — Ah! Isso não. Não gosto de ver maltra-
de bananas, pescador, professor primário, ga- tar os animais.
rimpeiro, ator de cinema, jornalista, locutor — Mas não era das grandes não. Era uma
de rádio e, para nossa sorte, escritor.” (p. 7). bem pequeninha. Deram um purgante
O Meu Pé de Laranja Lima se impõe, sem no bicho e ela saiu. Em vez de me de-
dúvidas, como uma das obras de maior visibili- ram a bola de novo, me deram foi uma
dade e importância, dentre as diversas produ- surra danada. Pior foi quando eu estava
zidas por José Mauro de Vasconcelos. Batista dormindo e Papai pegou o tamanco e me
(2018) elucida que a obra se faz, na exposição sapecou. Eu nem sabia por que apanhava.
da infância do menino Zezé, que “Imerso em (VASCONCELOS, 1975, p. 77)
um contexto de privações material e afetiva, o
menino traça estratégias para burlar as dificul- Nesse ponto é válido destacar que, a
dades vividas cotidianamente, reinventando história perpassa a questão da violência intra-
sua realidade com ideias e imagens presentes familiar, o que significa considerar a família
no mundo imaginado por si”. (p. 22) como um espaço contraditório e de conflitos,
e, nesse caso, podendo ser lócus da violência
De sua imaginação brotam morcegos, contra crianças e adolescentes. Essa percepção
cavalos, paisagens do futuro, artistas é antagônica à concepção habitual e romanti-
de cinema, desejos de morte, índios e zada de família, presente na sociedade, que a
cowboys em bang bang, personalidade apreende como lócus de proteção, amor e cari-
para coisas e objetos, ou seja, uma infini- nho. Todavia, é inequívoco que no seio familiar
dade de personagens e contextos. É com também se materializam violências contra as
tudo isso que um dia Zezé se encontra crianças e os adolescentes. A seguir, destaca-
com um pé de laranja lima, dando início -se passagem que retrata a violência vivida por
a uma amizade que deu ânimo ao me- Zezé no ambiente familiar, um local que deve-
nino — tendo em vista o cenário de po- ria ser de educar, de zelar e proteger. Mesmo
breza afetiva e material desfrutado pelo na ciência, de sua pouca idade, a família ainda
protagonista. (Ibid., p. 24) lhe ofende e lhe violenta, como se tais ações

242
fossem sobretudo, necessárias e fundantes na bel-prazer dos adultos. Essa violência acontece
convivência com a criança. pelo abuso do poder dos pais sobre os filhos.
Antoni & Koller (2010) afirmam que,
Quando todos tinham chegado para o os pais por serem considerados a autoridade
jantar, Mamãe deu falta de mim. do lar, os responsáveis pelos filhos/as, abusam
— Cadê Zezé? do poder que detêm e, por essa lógica, trans-
— Está deitado. Desde cedo que ele queixa formam crianças e adolescentes em vítimas de
de dor de cabeça. Eu escutava embeveci- toda espécie de violência, além de estabelecer
do esquecendo até o ardor do ferimen- uma cultura que acaba sendo repassada de pais
to. Gostava de estar sendo o assunto. Foi para filhos/as como algo natural, e dessa forma,
quando Glória resolveu tomar a minha ganha um contorno transgeracional.
defesa. Fez uma voz queixosa e ao mesmo Assim, a dialética da violência na fa-
tempo acusativa. mília, está imbricada com o poder, que Saffioti
— Acho que todo mundo anda batendo (2007) denominou de “Síndrome do Pequeno
nele. Ele hoje estava todo moído. Três Poder”. A violência pode ser caracterizada como
surras é demais. o domínio do mais forte sobre o mais fraco,
— Mas é uma pestezinha. Só fica quieto em situações específicas, apenas pela obtenção
quando apanha! do prazer decorrente do exercício do poder em
— Vai dizer que você também não bate nele? si, fazendo-se presente nos casos de dominação
— Muito difícil. Quando muito, puxo as do homem sobre a mulher ou do adulto sobre
suas orelhas. Fizeram um silêncio e Gló- a criança. O uso ou a possibilidade de uso da
ria ainda continuou a me defender. violência tem a ver com o poder de grupos ou
— Afinal, minha gente, ele ainda não indivíduos sobre outros. Na citação seguinte,
tem seis anos. É levado mas ainda é uma Zezé expõe um dolorido sentimento, a despei-
criancinha. Aquela conversa foi uma fe- to da violência que sofre em casa, muitas vezes
licidade para mim (VASCONCELOS, ocorrida sem motivo aparente ou justificado, o
1975, p. 71, grifo nosso) que lhe trás a certeza do desprazer familiar.

Trata-se de um fenômeno que, ocor- [...] — Que é, Zezé?


re no mundo todo e que não faz distinção de — Nada, Godóia... Por que ninguém gosta
classe social, etnia, religião, porquanto, é uma de mim?
prática social que remonta os tempos antigos — Você é muito arteiro.
da história. Todavia, atualmente o segmento — Hoje já levei três surras, Godóia.
conta com um aparato legal de defesa que os — E não mereceu?
posiciona com status de sujeitos de direitos. — Não é isso. É que como ninguém gosta de
Do ponto de vista macro, a violência mim, aproveitam para me bater por qual-
intrafamiliar é uma expressão da violência quer coisa. (VASCONCELOS, 1975, p. 70)
estrutural, que são “[...] relacionadas às desi-
gualdades sociais, promovidas pelo sistema A violência física é um tipo de violên-
social injusto e gerador de exclusão social e cia intrafamiliar, que por seu turno é expressão
de discriminações de classe, gênero, etnia e da violência estrutural, fenômeno complexo
geração”, bem como atesta Libório (2003, p. que envolve causas sociais, culturais, ambien-
17). Em outras palavras, o sistema econômico tais, econômicas e políticas, apresentando-se
mundial fundado no modo de produção capi- com maior frequência em famílias pobres,
talista contribui para que essas violências exis- devido as condições precárias de sobrevivên-
tam. Minayo (2007) acrescenta que a violência cia, causadas pela má distribuição da renda,
estrutural se apresenta naturalizada na socie- pobreza, exclusão social, desemprego, drogas,
dade e, por isso mesmo, se torna campo fértil desigualdade social, ineficiência de aplicação
para as principais formas de violência. das leis pelo poder público, desproteção das
Não raras vezes, os atos de violência famílias como resultado da reduzida proteção
são justificados como métodos de disciplina. social conferida pela precariedade das políticas
A naturalização da violência, torna as crian- sociais, ficando assim possivelmente expostas a
ças e os adolescentes objetos de manuseio ao fragilização dos vínculos familiares230.
230
É essencial e inevitável reiterar que, no contexto pandêmico do novo Coronavírus (SARS-CoV-2), causador da
doença COVID-19, crianças e adolescentes estão ainda mais expostos/as à violência intrafamiliar, uma vez que se
fazem necessárias medidas de isolamento social e confinamento domiciliar impostos pela pandemia, como medida
para evitar a propagação do vírus e, consequentemente, dos óbitos.

243
Ademais, o escopo supracitado se faz num papel e embaixo uma oração para
na vivência violenta, que o personagem Zezé proteger a casa.
se encontra inserido, no escrito de Vasconce- — Jandira me pegue no colo que eu vou
los. Ao lado de sua família, dentro de casa, um ler ali.
espaço que poderia ser de educar, o livro abor- — Deixe de invenções, Zezé. Estou muito
da que “[...] cada irmão mais velho criava um ocupada.
mais moço” (VASCONCELOS, 1975, p. 13). As — Pois me pegue e veja se eu não sei ler.
irmãs mais velhas, Glória e Jandira tinham o — Olhe, Zezé, se você estiver me apron-
dever de cuidar e educar os três irmãos mais tando alguma, você vai ver. Me colocou
novos, Totoca, Zezé e Luís. Nesse sentido evi- no colo e me levou bem atrás da porta.
dencia-se uma “[...] educação familiar respon- — Então, leia. Quero ver.
sabilizada por etapas, onde a irmã ou irmão Aí eu li mesmo. Li a oração que pedia aos
que antecede educa o ‘mais moço’ e, sobretudo céus, bênção e proteção para a casa e afu-
uma educação que sobrevinha abalizada pela gentasse os maus espíritos. Jandira me de-
violência física do poder de adultos sobre as positou no chão. Estava de queixo caído.
crianças[...]” (VALDEZ, 2020, p. 11). — Zezé, você decorou aquilo. Você está
A mãe, analfabeta, está sempre ausente me enganando.
em razão do trabalho em uma fábrica, ativida- — Juro, Jandira. Eu sei ler tudo.
de exercida desde a infância, o que seguramen- — Ninguém pode ler sem ter aprendido.
te comprometeu seus estudos. Foi Tio Edmundo? Dindinha?
— Ninguém.
Mamãe nasceu trabalhando. Desde os seis Ela pegou um pedaço de jornal e eu li. Li
anos de idade quando fizeram a Fábrica direitinho. Ela deu um grito e chamou
que puseram ela trabalhando. Sentavam Glória. Glória ficou nervosa e foi chamar
Mamãe bem em cima de uma mesa e ela Alaíde. Em dez minutos uma porção de
tinha que ficar limpando e enxugando gente da vizinhança veio ver o fenômeno.
ferros. Era tão pequenininha que fazia (Ibid., p. 10-11)
molhado em cima da mesa porque não
podia descer sozinha... Por isso ela nunca Na rotina do Grupo Escolar, outro lu-
foi à Escola e nem aprendeu a ler. Quan- gar de educar, cantam-se hinos nacionais, os
do eu escutei essa história dela fiquei tão quais Zezé sabe todos de cor. No hostil mun-
triste que prometi que quando fosse poe- do dos adultos ele encontra amparo e afeto em
ta e sábio eu ia ler minhas poesias para ela profissionais da educação que o veem, exata-
[...]. (VASCONCELOS, 1975, p. 18) mente, como é, somente uma criança.

Em um contexto de vulnerabilidade A coisa comovente era a minha profes-


social da família, desemprego, drogadição por sora, D. Cecília Paim. Podiam contar a
parte do pai, trabalho infantil, etc. Zezé é res- ela que eu era o menino mais endiabra-
ponsável e maduro para sua parca idade e se do da minha rua, que ela não acreditava.
mostra curioso, inquieto, interessado e quer Como também não acreditaria que nin-
aprender a ler o quanto antes. Faz questiona- guém conseguia dizer mais palavrões do
mentos ao Tio Edmundo sobre aposentadoria. que eu. Que nenhum moleque me igua-
Concernente a leitura se mostrou um verdadei- lava em travessuras. Isso, ela não acredi-
ro fenômeno, aprendendo a ler aos cinco anos. tava nunca. Na Escola eu era um anjo.
Nunca tivera uma repreensão e tornava-
(...) Vou ler. -me querido das professoras por ser um
— Você sabe ler, Zezé? Que história é dos menores garotinhos que aparecera
essa? Quem foi que lhe ensinou? até então. D. Cecília Paim, conhecia de
— Ninguém. longe a nossa pobreza e na hora do lan-
— Você está com lorotas. Me afastei e da che, quando via todo mundo comendo
porta comentei: sua merenda, ficava emocionada, me
— Traga meu cavalinho sexta-feira pra ver chamava sempre à parte e me mandava
se eu não leio!... comprar o sonho recheado no doceiro.
Depois quando foi de noite e Jandira Ela tinha tamanha ternura por mim que
acendeu a luz do lampião porque a Light eu acho que ficava bonzinho só para ela
cortara a luz por falta de pagamento, eu não se decepcionar comigo. (Ibid., p. 68)
fiquei na ponta dos pés para ver a “es-
trela”. Tinha um desenho de uma estrela Do ponto de vista sociojurídico à épo-

244
ca que passa a história de Zezé precede a insti- aos direitos das crianças e dos adolescentes.
tuição do Código de Menores de 1927, decreto Somente com a edição, em 1990, do Estatuto
nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, que coin- da Criança e do Adolescente (ECA), que ao
cide com o dia das crianças, e foi promulgado menos do ponto de vista formal, abandonou a
pelo então Presidente da República Washin- visão discriminatória e unilateral, e as crianças
gton Luiz e, apreendido correntemente pela e adolescentes passaram a ser compreendidos/
alcunha de Código Mello Mattos. O Código as em sua totalidade, como sujeitos em fase de
não era destinado a todas as crianças e adoles- desenvolvimento, passando de objetos a sujei-
centes brasileiros/as, mas tão somente àquelas tos de direitos. Lamentavelmente, as primeiras
consideradas problemáticas ou perigosas devi- iniciativas de atenção à infância no Brasil não
do às suas condições de classe social — meno- eram exatamente provenientes da preocupação
res em situação irregular —, muitos dos quais do Estado com a infância e a adolescência.
“(...) precocemente inseridos no mundo do É importante destacar que o Estado,
trabalho, intitulados de delinquentes e margi- na maioria das vezes, toma decisões que, em
nais, afastados da escola com poucas chances última instância, estão de acordo com os
de retornar” (VALDEZ, 2020, p. 12). Um Códi- interesses das classes dominantes. Desta fei-
go consubstanciado em punição, segregação e ta, articulam-se as relações de produção via
não em medidas protetivas de apoio e fortale- repressão e coerção. As normatizações ins-
cimento dos vínculos familiares. titucionais de punição são mecanismos de
O Código de Menores de 1927 repre- controle social e sinônimo de poder exercido
senta um instrumento de controle social, pois pelo Estado sobre as massas.
a partir do momento em que meninos e me- Pensar esses aspectos, ajuda a tecer di-
ninas pobres se tornavam preocupação para versas reflexões acerca do universo vivenciado
a ordem da sociedade, tornou-se necessário pelo personagem Zezé, na obra O Meu Pé de
um reordenamento destes. Isso levou o Esta- Laranja Lima, como a ausência de lugares que
do a atuar de forma coercitiva com as clas- deveriam ser de educar, especialmente o am-
ses menos favorecidas e marginalizadas, por biente familiar e assim como, explanar acerca
meio de políticas compensatórias, buscando da estrutura do Estado. Identifica-se, portanto,
moldá-las à sociedade, uma vez que eram vis- um duplo abandono, em torno de uma família
tos/as como ameaça à mesma. Para Pilotti e e de um estado que pune ao invés de cuidar e
Rizzini (1995), a infância foi claramente “ju- educar. Nosso personagem encontra-se inserido
dicializada”, e o termo menor foi apreendido na conjuntura descrita, e, portanto, se faz em
como sinônimo de “[...] abandonado, delin- meio a todas incongruências elencadas. Pon-
quente, desvalido, vicioso etc.” (p. 115). tuamos como a organicidade do Estado afeta a
Era, pois, um tratamento conservador vida de crianças e adolescentes. Evidentemen-
e discriminatório. Crianças e adolescentes não te, a qualidade dos serviços prestados através
eram vistos/as em sua totalidade, como sujei- das políticas sociais fica comprometida, sem
tos em fase de desenvolvimento. Desta feita, os investimentos necessários. Assim, o Estado
“[...] incorporava tanto à visão higienista de transfere para a sociedade civil — a exemplo
proteção do meio e do indivíduo como a visão de ONGs — a responsabilidade de atender às
jurídica repressiva e moralista [...]”, como asse- demandas sociais da população, constituindo
veram Pilotti e Rizzini (1995, p. 63). um agravamento das expressões da questão so-
Na realidade, em situação irregular, cial, a exemplo da desigualdade e, uma total
estava o Estado para com a sociedade, que não negação de direitos fundamentais duramente
cumpria as suas políticas sociais basilares. Nes- conquistados historicamente pelas lutas sociais
se momento, a assistência à criança e ao adoles- empreendidas pela classe trabalhadora.
cente ocorria de modo repressivo, sendo alvos
de violências com o intuito de discipliná-los/as As políticas sociais entram neste cená-
e corrigi-los/as. Não foram respeitados/as, mas rio [neoliberal] caracterizadas por meio
sim marginalizados/as, e percebidos/as como de um discurso nitidamente ideológico.
entes de risco à ordem social. Elas são: paternalistas, geradoras de dese-
Já em 1979 foi instituído um novo quilíbrio, custo excessivo do trabalho, e
Código de Menores considerado um total devem ser acessadas via mercado. Eviden-
retrocesso para a sua época, em razão de ser temente, nessa perspectiva deixam de ser
um continuum do Código de Mello Mattos, direito social. (BEHRING, 2003, p. 64).
além de que, nesse mesmo ano, foi proclama-
do pelas Nações Unidas o Ano Internacional Neste sentido, Netto (1993) assevera
da Criança que se pautava na atenção especial que daí emergem as tendências de desrespon-

245
sabilização e desfinanciamento da proteção Referências
social pelo Estado, que paulatinamente expres-
sa um Estado mínimo para os trabalhadores e, ANTONI, C. KOLLER, S. H. Uma famí-
por outro lado, máximo para o capital. Deste lia fisicamente violenta: uma visão pela teo-
modo, as políticas sociais se apresentam dis- ria bioecológica do desenvolvimento huma-
tantes dos princípios de universalidade e igual- no. Temas psicol., Ribeirão Preto, v. 18, n.
dade de acesso, imprimindo caráter conserva- 1, p. 17-30, 2010. Disponível em <http://pepsic.
dor direcionadas à seletividade e à focalização. bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
Deste modo, os programas sociais, a exemplo d=S1413389X2010000100003&lng=pt&nrm=i-
daqueles advindos das políticas sociais de edu- so>. Acesso em: 13 abr. 2021.
cação, saúde e assistência social, deixam de ser
direitos sociais e passam a ser um negócio, dis- BARROS, J. História e literatura: novas rela-
ponível para compra no mercado. ções para os novos tempos. Contemporâneos
Naturalmente que esse cenário de re- Revista de Artes e Humanidades, n.6, mai/out
dução de investimento em políticas públicas 2010. Disponível em: <https://www.revistacon-
por parte do Estado, caracterizado pelo neo- temporaneos.com.br/n6/dossie2_historia.pdf>.
liberalismo, agrava as expressões da questão Acesso em: jan. 2021.
social, tendo em vista que as famílias mais
vulneráveis passam a ter dificuldade de aces- BATISTA, O. A. Sonhos entre as páginas do
so a serviços essenciais como educação, saú- Meu Pé de Laranja Lima: imaginação e deva-
de, transporte, cultura etc. neio poético voltado à infância. 2018. 188p. Tese
Em meio a essa conjuntura, a escola é (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade
a gênese da resistência. Estudar é uma forma Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018.
de luta, de enfretamento. Ser professor/a em
um contexto de precarização da escola, de fi- CHARTIER, R. A História Cultural: entre
nanceirização da educação é ser protagonista práticas e representações. Lisboa, Difel: 1990.
de discussões que conduzirão a uma socieda-
de mais justa, igualitária e dar esperança de CORALINA, C. Poemas dos becos de Goiás e
que dias melhores virão. estórias mais. Global Editora — 14ª edição, 1987.
E que sejamos curiosos/as, assim como
Zezé, que possamos assim desvelar o mundo, CORRÊA, J. & OLIVEIRA, N. A. O meu pé
lê-lo, interpretá-lo, questioná-lo para desen- de laranja-lima: uma auto biografia de forma-
volver uma consciência de nós e dos outros/ ção (Bildungsromane)em descoberta. Linhas
as, e que isso nos conduza a construção de um Críticas, Brasília, DF, v.25 (2019) — A head of
grau de consciência da realidade e do porvir. print, p.1-18. Disponível em: <https://periodi-
Que outras crianças e adolescentes como Zezé, cos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/
possam encontrar lugares de educar e vivenciar view/19956/23315>. Acesso em: 13 abr. 2021.
tempos, em que a proteção, o zelo e o cuidado
sobressaiam a punição e a segregação. GRANJA, C. S. Cacos da seca e restos do sal:
Influências estéticas e ideológicas do regiona-
lismo nordestino de 30 em Barro Blanco, de
José Mauro de Vasconcelos. Dissertação (Mes-
trado em Literatura e Práticas Sociais), Uni-
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247
Simpósio Temático 6

Saúde, trabalho e lazer


para infâncias e juventudes
latino-americanas

Fonte: Arquivo Memorial da Irmandade do Divino Espírito Santo — IDES

248
INFÂNCIAS E DIREITOS HUMANOS:
A SAÚDE DAS CRIANÇAS EM
DEBATE (1978-1989)231

Beatriz Martinelli Machado232


231
Resumo: Neste projeto de pesquisa in-
vestiga-se o documento produzido pela Orga-
Daniel Kerpen de nização Não Governamental Save the Children
Moraes Chalegre233 acerca da Convenção sobre os Direitos da Crian-
ça, denominado Legislative History of the Conven-
tion on the Rights of the Child. O documento apre-
senta os debates ocorridos, entre os anos de 1978
e 1989, por meio dos corpos diplomáticos das
nações que compunham o Conselho de Direitos
Humanos da Organização das Nações Unidas,
organizações não governamentais e organizações
internacionais, que deram origem à normativa
internacional. O Artigo 24 da Convenção sobre
os Direitos da Criança aborda os temas da saúde
e das políticas sociais direcionadas especialmente
para o bem-estar das crianças, adolescentes e jo-
vens, categorias disputadas e construídas através
dos debates entre os corpos diplomáticos parti-
cipantes. Nesta comunicação busca-se compreen-
der este processo em duas direções: descrever os
debates em torno do tema da saúde nas diferen-
tes infâncias, com ênfase nas disputas entre os
países considerados desenvolvidos e em desen-
volvimento; e como estas discussões reverberam
na legislação brasileira instituída no processo da
redemocratização ocorrido depois de 1990, espe-
cificamente referindo o Estatuto da Criança e
do Adolescente, pensando-o como o trabalho de
incorporação das propostas ratificadas no docu-
mento internacional à realidade brasileira.

Palavras-chave: Infâncias. Conven-


ção sobre os Direitos da Criança. Estatuto da
Criança e do Adolescente. Saúde.

231
O texto apresenta os resultados parciais do projeto de pesquisa intitulado “Do “menor” à criança: Direitos Hu-
manos e infância pobre (Brasil, 1976-1990)”, coordenado por Silvia Maria Fávero Arend, docente da Universidade
do Estado de Santa Catarina — UDESC. O projeto de pesquisa é financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvi-
mento Científico e Tecnológico-CNPq-MCT-Brasil.
232
Graduanda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina — UDESC, Bolsista de Inicição Cientí-
fica PIBIC-CNPq-MCT-Brasil.
233
Graduando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina — UDESC, Bolsista de Inicição Cientí-
fica PIBIC-CNPq-MCT-Brasil.

249
Introdução Unidos da Améica (EUA), bem como nos dis-
cursos contra o colonialismo e em prol da auto-
Durante os anos que sucederam o final determinação nos processos de independência
da Segunda Guerra Mundial, a sociedade oci- nas Áfricas, da década de 1940 em diante. Este
dental presenciou a ascensão do que hoje cha- discurso era utilizado tanto nas manifestações
mamos de Direitos Humanos. Após estes con- contra o apartheid e na crítica aos regimes auto-
flitos das duas guerras mundiais e o advento da ritários e ao “imperialismo” estadunidense na
Guerra Fria, que marcaria a política mundial até América Latina, como também nos movimen-
a dissolução da União Soviética em 1991, uma tos feminista e pacifista antinuclear. Estes são
concepção de Direitos Humanos começou a se alguns exemplos que podem nos fazer perceber
formar, com foco na sociedade e nos indivíduos. que os Direitos Humanos eram à época mais
Ao longo de seu desenvolvimento, prin- ligados aos direitos civis do que qualquer outra
cipalmente a partir dos anos de 1970, o ideário coisa e estavam conectados à ideia de sobera-
dos Direitos Humanos extrapolou as fronteiras nia e participação política em um Estado de-
do Estado-nação e buscou encontrar novos ho- mocraticamente construído. A questão é que
rizontes de aplicação. O legado de movimentos estes movimentos estavam voltados primeiro
transnacionais determinou no discurso sobre os para questões relativas aos direitos políticos
Direitos Humanos a sua internacionalidade, e e civis e, depois, sobre sociais e econômicos e
esta foi manifestada em documentos legislati- não sobre Direitos Humanos como os conhece-
vos normatizadores produzidos no Conselho de mos atualmente (HOFFMANN, 2019).
Direitos Humanos da Organização das Nações A linguagem sobre estes Direitos Hu-
Unidas (ONU), encabeçados pelos Estados-na- manos no período era de caráter legal, diplomá-
ção e por organizações internacionais, sendo tico e voltado à comunidade e às organizações
estas ligadas aos Estados ou não. As discussões internacionais. Entretanto seu desenvolvimen-
sobre o tema ampliaram-se durante todo este to e expansão durante as décadas final do sécu-
período, atingindo novos campos como por lo XX fizeram com que o Ocidente, principal-
exemplo o Direito da criança. mente a partir da década de 1970, começasse a
O documento intitulado Legislative His- perceber os Direitos Humanos como uma for-
tory of the Convention on the Rights of the Child ma de governança global, para além dos limites
produzido pela Organização Não Governa- do Estado-nação, sendo necessária a produção
mental (ONG) sueca Save The Children Sweden/ de um discurso com a fundamental finalidade
Rädda Barnen contém o compilado dos debates da cooperação transnacional. (AREND, 2020)
travados entre 1978 e 1989, que conduziram A noção de Direitos Humanos difun-
ao texto da Convenção sobre os Direitos da dida a partir do final da década de 1940 alar-
Criança (CDC). Contendo mais de 900 pági- gou-se muito com o tempo e se tornou social-
nas, o documento publicado em 2007 apresenta mente mais aceita entre população ocidental.
os debates legislativos entre os diplomatas dos Sua aceitação é sentida em seus usos, como a
países participantes do Conselho Direitos Hu- justificativa para muitas intervenções, até mes-
manos na ONU, dos órgãos internacionais e mo militares, da comunidade internacional
das ONGs, que resultaram nos artigos da CDC. em assuntos locais, como em vários episódios
O texto, ratificado por mais de 190 países, tem ocorridos desde o século XX até os duas atuais.
por objetivo estabelecer as noções de Direitos
Humanos para as crianças, realizar as aplicações [...] os direitos humanos ainda são algo
necessárias à garantia destes direitos e propiciar como a doxa da nossa época: aquelas ideias
um direcionamento para a produção de legisla- e sentimentos que se pressupõe tacitamen-
ções nacionais referentes ao tema. Este artigo te que sejam verdades autoevidentes e sem
tem por objetivo analisar os debates realizados necessidade de qualquer justificativa [...].
na CDC sobre o campo da saúde da criança e a Pelo menos no mundo euro-atlântico atual
sua repercussão na legislação nacional. a ressonância dos direitos humanos é tão
universal e inatacável que, em princípio,
Direitos humanos e a única coisa que ainda se debate é como
eles podem ser melhor efetivados em esca-
direitos da criança la global. (HOFFMANN, 2019, p. 526)

Após a Segunda Guerra Mundial, a Além disso, os Direitos Humanos se


concepção individual acerca dos Direitos Hu- aprofundam em questões específicas, como
manos foi muito evocada nos movimentos con- os Direitos da criança, focando nas demandas
tra o racismo e pelos direitos civis nos Estados particulares desta população, sendo necessá-

250
ria a produção de um discurso que pudesse Participação da América Latina
abarcá-las de maneira mais coerente. Segundo
Fúlvia Rosemberg e Carmen Mariano (2010), Ao analisar as discussões em torno
o caminho das discussões das instituições so- dos artigos da CDC é impossível não levar em
ciais, jurídicas e acadêmicas, tem sido longo consideração o contexto histórico de sua pro-
até o reconhecimento da criança como sujeito dução. Em cada parte do documento pode-se
portador de direitos. A Declaração Universal perceber as “vozes” que se sobressaem e que
dos Direitos da Criança de 1959 e a difusão da agem de acordo com determinadas diretrizes.
visão da infância como uma construção social Em geral percebe-se a predominância e maior
e da criança como um ator social fundam, a relevância dada aos comentários de países ri-
partir dos escritos de Philippe Ariès, as bases cos situados na Europa, América do Norte e
que possibilitaram o reconhecimento da infân- Oceania, que se orientavam a partir de seus
cia enquanto campo de estudos das Ciências próprios parâmetros de sociedade ou a partir
Humanas. Esta transformação chama atenção do que idealizavam para os países considerados
para as infâncias como instituição social e para em desenvolvimento e/ou pobres.
a configuração das relações de dominação ne- Apesar de haver a participação latino-
las inscritas, sendo uma questão que envolve -americana de 3 a 16 países, entre os anos de
âmbitos políticos, econômicos e sociais em de- 1981 e 1988, nas sessões do Grupo de Trabalho
bates acirrados, devido às diversas realidades designado para a redação da CDC, a partici-
locais e aos delicados tópicos discutidos, como pação europeia, norte-americana e de outros
família, violência, exploração, gênero e religião. países ocidentais “desenvolvidos”, tais como, a
A CDC foi formulada para procurar Austrália e a Nova Zelândia, era sempre mas-
garantir, com o apoio e concordância inter- siva (PILLOTI, 2001). Esta não ocorria apenas
nacional, a proteção, o apoio e a fiscalização no quesito numérico, sendo sempre superior à
no que diz respeito à vida plena das crianças e de outras partes do mundo, mas também no
adolescentes sendo o instrumento de Direitos âmbito de influências políticas e econômicas.
Humanos mais ratificado da ONU. Aprovada A Guerra Fria proporcionava um ambiente
em 1989 no Conselho de Direitos Humanos fértil para a defesa de orientações políticas no
da ONU a normativa internacional: que dizia respeito aos Direitos Humanos e Di-
reitos fundamentais da criança.
[...] em relação às declarações internacionais O Artigo 24, relacionado à saúde e
anteriores, inovou não só por sua extensão, aos serviços de saúde, analisado neste tex-
mas porque reconhece à criança (até os 18 to, demonstra uma escassa participação da
anos) todos os direitos e todas as liberdades América Latina em sua redação, que se li-
inscritas na Declaração dos Direitos Hu- mita basicamente à atuação da delegação da
manos. Ou seja, pela primeira vez, outorga- Venezuela na apresentação e apoio de pro-
ram-se a crianças e adolescentes direitos de postas. Esta situação pode evidenciar alguns
liberdade, até então reservados aos adultos. problemas relativos à formulação da CDC e
Porém, a Convenção de 1989 reconhece, que são fontes de críticas feitas ao documen-
também, a especificidade da criança, ado- to e às inconsistências de suas intenções.
tando concepção próxima à do preâmbulo Partir da sociedade ocidental desen-
da Declaração dos Direitos da Criança de volvida para pensar os Direitos da criança já
1959: “a criança, em razão de sua falta de constitui, por si só, uma impossibilidade da
maturidade física e intelectual, precisa de construção de um arcabouço jurídico de cará-
uma proteção especial e de cuidados espe- ter universal, já que não leva em conta os dife-
ciais, especialmente de proteção jurídica rentes contextos, nem as diversas lutas a serem
apropriada antes e depois do nascimento”. travadas para a garantia de uma vida plena. O
(ROSEMBERG; MARIANO, 2010) próprio conceito de “criança” difere dependen-
do do contexto geográfico e histórico, oscilan-
Sendo assim, o texto da CDC foi, evi- do em relação à faixa etária, ao idioma, ou à
dentemente, dado a sua importância, palco de interpretação do termo. O padrão de infância
disputas não só da ordem política, mas tam- pensada no ocidente acaba por não compreen-
bém de ordem discursiva. A oposição entre der, nem abranger infâncias outras, como co-
duas diferentes perspectivas para o direito da locam Marchi e Sarmento (2017, p. 956). Se-
criança — protecionista e autonomista, tendo a gundos os autores, “uma concepção normativa
primeira prevalecido — marcou das discussões ocidental cêntrica da intervenção política cen-
ocorridas no processo para construção do do- trada nos direitos tende a exprimir-se sob uma
cumento jurídico. forma que ignora a diversidade de infâncias e a

251
reproduzir a visão da criança “europeia de clas- A CDC e a repercussão
se média” da qual parte”, sendo uma maneira na legislação brasileira
de reproduzir esta visão excludente, além de
socialmente hierárquica. Percebe-se, desta ma-
neira, que a participação diminuída de países O contexto brasileiro no início dos
latino-americanos talvez se dê pelas perspecti- anos de 1990 inaugurava um período de gran-
vas de infância e criança que foram utilizadas des mudanças sociais. Após duas longas déca-
como ponto de partida para as discussões. das imersa em uma ditadura militar a realidade
Esta diferenciação entre situação glo- brasileira se deparava com novas possibilidades
bal e local acarretava na (não) responsabiliza- e, principalmente, uma nova Constituição,
ção de países que podem estar interferindo no chamada Cidadã, promulgada em 1988. Esta
desenvolvimento dos direitos de outros, prin- determinou uma nova fase na política do Bra-
cipalmente quando levamos em consideração sil, que procurava estar mais comprometida
a situação de exploração econômica de países com as demandas sociais e participação popu-
pobres. O comprometimento com a CDC, lar, afirmando a redemocratização do país.
quando considerado apenas uma responsabili- Embora o documento esteja longe de
dade local, ignora seus preceitos de colabora- representar uma mudança estrutural, comple-
ção transnacional, assim como as diferenças ta e absoluta, a Constituição Cidadã, foi con-
de possibilidades políticas, sociais e econômi- sequência dos traumas da ditadura, e manteve-
cas com que os governos nacionais lidam para -se abrindo caminho para um ambiente mais
garantir direitos materialmente concretos propício à superação dos mesmos, e à adoção
a seus cidadãos. “O elemento paradoxal que de medidas que enfatizassem o comprometi-
a CDC introduz é o da proclamação dos di- mento do governo com os Direitos Humanos.
reitos da criança em um momento em que as Neste sentido, é importante destacar a ratifi-
condições estruturais de sua aplicação, para cação da CDC no Brasil, assim como a criação
uma importante parcela das crianças de todo e adoção do Estatuto da Criança e Adolescen-
o mundo, apareciam fortemente afetadas pelo te (ECA), ambos projetos aprovados em 1990,
processo histórico” (MARCHI, SARMENTO, que punham a infância e a juventude em foco,
2017, p. 966), situação que continua presente buscando pensar os direitos destes sujeitos de
nas diferentes realidades do globo. acordo com suas demandas específicas:
A produção de uma normativa inter-
nacional que abrangesse a criança forneceu um Considerado o maior símbolo dessa nova
terreno fértil para o choque relacionado às di- forma de se tratar a infância e a adoles-
vergências entre os países membros da ONU. cência no país, o ECA inovou ao trazer
Pontos gerais da CDC, tais como, a violência, a proteção integral, na qual crianças e
a gratuidade e a responsabilidade dos pais fo- adolescentes são vistos como sujeitos de
ram fortemente disputadas na discussão sobre direitos, em condição peculiar de desen-
a Saúde da Criança do Artigo 24, que também volvimento e com prioridade absoluta.
abordou tópicos mais específicos da área como Também reafirmou a responsabilidade da
o aborto, a mutilação e a amamentação. família, sociedade e Estado de garantir as
Estas discussões compreendem pontos condições para o pleno desenvolvimento
sensíveis, com diretas consequências políticas, dessa população, além de colocá-la a salvo
sobretudo levando em consideração o contexto de toda forma de discriminação, explora-
histórico de Estados não ocidentais no momen- ção e violência. (BRASIL, 2019, p. 9)
to dos debates para a produção do documento.
Pode-se citar novamente a situação de diversos O ECA foi aprovado antes mesmo de
países africanos, fortemente influenciados por o Brasil se tornar signatário da CDC, trazen-
discursos socialistas e decoloniais, e também o do “o caminho para se concretizar o Artigo
fim das ditaduras latino-americanas, que for- 227 da Constituição Federal de 1988, que de-
neceram um contexto possível para a ratifica- terminou direitos e garantias fundamentais a
ção da Convenção, mas que ao mesmo tempo crianças e adolescentes” (BRASIL, 2019, p. 9).
refletiam desgastes políticos e traumas sociais, Com as mudanças constitucionais, e a guinada
que demandavam ações específicas. em busca de um desenvolvimento social mais
progressista, as leis que determinavam as me-
didas legais em relação específica às crianças
e adolescentes no Código de Menores de 1979
não estavam mais de acordo, nem abarcavam
as propostas da nova legislação. Nesse sentido,

252
o ECA foi pontual para a criação de políticas bre a criação e aplicação de certas legislações.
públicas, em conjunto com a sociedade civil, Uma das discussões gerais presentes na CDC,
procurando validar a criança como sujeito de que volta a destaque no Artigo 24, é a gratui-
Direitos, protagonismo e prioridade. dade de serviços prestados por parte dos Es-
A defesa dos Direitos da criança passa tados. Destaca-se, por exemplo, a sugestão dos
por diversas frentes de trabalho, tanto na norma- representantes da Bulgária para que houvesse
tiva internacional quanto na nacional, agregando uma adição ao Artigo para promover a transi-
temas como liberdade, lazer, educação, proteção ção gradual para a prestação de assistência mé-
e tantos outros. A saúde entra como um tema dica gratuita, igualmente proposto por parte
de disputas, pois requeria grande necessidade da URSS e da República Democrática Alemã.
de acordos globais para garantir sua plenitude e Como contraponto pode-se apreender as con-
acesso. Debatida no Artigo 24 da CDC, configura siderações do Malawi, que se opunha ao forne-
uma discussão complexa, pois envolve demandas cimento de moradia e alimentos por parte do
gerais e específicas, assim como exige uma reci- governo, alegando que esta seria uma questão
procidade em termos políticos, econômicos e so- individual, além de questionar como seria
ciais entre os países participantes. realizada a fiscalização e; também, a frente de
O Artigo 24 afirma o seguinte: Bangladesh, que sugeri\ que este Artigo, além
de outros, deveria estar sujeito a uma cláusula
1. Reconhecimento do direito ao mais de viabilidade econômica, já que o país não
alto padrão de saúde possível, garantindo teria condições de atingir os objetivos ex-
o acesso para tratamentos, além do esfor- pressos com a gratuidade de serviços, assim
ço dos Estados parte para que nenhuma como reforça que esta seria uma boa maneira
criança seja privada deste direito. de garantir apoio à Convenção de um número
2. Busca pela plena implementação do di- maior de países em desenvolvimento, incluin-
reito, com foco na diminuição da mortali- do os menos desenvolvidos.
dade infantil, combate a doenças e à des- Este é um ponto em que a análise da
nutrição, garantia de assistência médica, situação brasileira se torna bastante singu-
de cuidados pré-natais para a mãe, orien- lar, já que com a Constituição de 1988, a saú-
tação e educação tanto à criança quanto de é reconhecida como um direito universal
aos pais sobre cuidados preventivos, além brasileiro, o que, aliás constava no Relatório
da aplicação de novas tecnologias disponí- do Brasil à ONU sobre a implementação dos
veis para assegurar esse direito. Direitos da criança (2003),
3. Adoção de medidas eficazes para a abo-
lição de práticas tradicionais prejudiciais [...] se establecieron los principios y di-
à saúde da Criança. rectrices en materia de atención sanitaria
4. Promoção e incentivo da cooperação en el paÌs, que se presta por conducto del
internacional em prol da plena realização Sistema Único de Salud (SUS). El princi-
deste direito, levando em consideração pio rector de este sistema, reglamentado
principalmente as necessidades de países en 1990, es el acceso gratuito, universal y
em desenvolvimento. (UN; Rädda Bar- en condiciones de igualdad a las activi-
nen, 2007, tradução nossa) dades de promoción y protección de la
salud, así como a los servicios de rehabili-
Como já citado, a participação lati- tación. (BRASIL, 2003, p. 67)
no-americana na formulação deste Artigo
não conforma uma grande representação de Embora a CDC não tenha acatado ao
suas necessidades locais, apesar da tentati- uso de algum termo que sugerisse gratuidade,
va de abrangência global da normativa. As mas sim que se dava por implícito o sforço dos
perspectivas e carências da sociedade brasi- Estados parte para a garantia de que nenhuma
leira diferiam muito do que era vivenciado criança seja privada do direito ao acesso ao di-
em países europeus, por exemplo, que eram reito à saúde (Legislative history..., 2007, tradu-
fortes “vozes” na produção do documento. A ção nossa), sendo o SUS um sistema gratuito, a
história de colonização, exploração e o pró- discussão não se aplica da mesma forma à rea-
prio espaço geográfico definiam dificuldades lidade brasileira, em que a defesa da saúde da
distintas; as doenças, possibilidades de ali- Criança possui este meio “facilitador”.
mentação e realidade social e econômica. Mesmo sendo um “país ainda em de-
Apesar disso, há uma boa parcela de senvolvimento”, o Brasil pretendia, através do
participação de outros “países em desenvolvi- expresso na Carta constitucional, abranger o
mento”, que trazem diferentes perspectivas so- direito à saúde de maneira universal, de acordo

253
com suas possibilidades e necessidades, tendo falta de saneamiento y una atención pri-
em vista sua realidade econômica, espacial, so- maria deficiente. [...] (2003, p.70)
cial e seu contexto histórico que tornou isto
possível. Além disso se propõe a agir “de mane- Los estudios antropométricos realizados a
ra que no esté restringida a la esfera de la asis- niños menores de 5 años en el período com-
tencia, sino que abarque también el concepto prendido entre 1974 y 1996 revelan una re-
general de la promoción de la salud, la calidad ducción gradual de la desnutrición crónica
de vida y la protección concreta de la salud en en el país. En términos absolutos, se calcula
situaciones de riesgo”. (BRASIL, 2003, p. 68) que el número de niños afectados dismi-
Outro problema discutido com ênfase nuyó de 3.865.815 a 1.640.493. (2003, p. 71)
no Artigo 24 diz respeito à nutrição da criança
e da mãe durante e após a gestação. Sendo este Apesar deste avanço, algumas ques-
um problema diretamente ligado à capacidade tões ainda são pontuais para a reflexão sobre
econômica governamental e familiar, é possível as normativas internacionais. Esta mudança
observar que o destaque dado à questão pro- se sustenta em termos absolutos; porém, tam-
vém sobretudo de países em desenvolvimento. bém se salientam no Relatório as discrepân-
É o caso da Índia, em que o seu representante cias entre as macrorregiões brasileiras, sendo
sugeria, mais de uma vez, que fosse adicionado a redução da mortalidade mais baixa na Re-
ao Artigo um texto que visasse garantir a apli- gião Nordeste do Brasil. Esta situação se ex-
cação de tecnologias disponíveis, e tratamen- plica no documento em função dos diferentes
tos a baixo custo para frear e reverter doenças processos de desenvolvimento e da disponi-
relacionadas à desnutrição e ao saneamento, bilidade de recursos que mudam de acordo
além do fornecimento de alimentos nutritivos. com a região, da mesma maneira em que há
O representante da Argélia também fez men- grandes discrepâncias em relação a estes da-
ções vigorosas à proteção da amamentação e dos entre as zonas rurais e urbanas no Brasil.
da produção de alimentos adequados, visando Estes dados se relacionam com as
o fim das práticas de multinacionais na pro- ideias de Marchi e Sarmento (2017), no que
moção de substitutos ao aleitamento materno, toca a diferenciação e tentativa de resolução de
com foco nos países em desenvolvimento. problemas globais e locais. Enquanto o nordes-
É possível perceber neste contexto e nas te brasileiro sofria com uma carência material
propostas dos países, um agravante à nutrição para a superação do problema da mortalidade
adequada da Criança, principalmente no início infantil, que dependia não só de ações regio-
da vida, o que também foi mencionado como nais, mas também nacionais. Pode-se compa-
uma causa direta e indireta da mortalidade infan- rar esta situação com a de países que, devido às
til. Na legislação brasileira, o ECA (2019) assegura condições econômicas e processos históricos,
já no Artigo 4 o dever da família, da sociedade e necessitariam do comprometimento transna-
do poder público de assegurar saúde e alimenta- cional para a garantia do desenvolvimento e da
ção à Criança, além de tratar nos Artigos 7 e 8 plena segurança dos direitos da criança, tanto
da nutrição adequada da gestante, da educação no que toca a alimentação e nutrição, quanto
e do acompanhamento em relação à prática da outros tópicos. Atingir os objetivos da CDC,
amamentação. O estímulo desta atividade, além novamente, se trataria de maneira direta de
do cuidado pré e pós-natal através do SUS, deu uma questão de viabilidade econômica para
origem em 2007 a política nacional de incentivo uma parcela significativa de países.
ao aleitamento materno na rede de atenção bási- É importante perceber alguns outros
ca, chamada Rede Amamenta Brasil. pontos particulares ao caso brasileiro. A imuni-
As ações realizadas nacionalmente zação e o saneamento básico são discussões de
sobre este tema, podem ser observadas no grande interesse ao Brasil, já que estão interli-
Relatório enviado à ONU (2003) em que é gados, no sentido de que muitas doenças tro-
relatada uma grande melhoria nos dados so- picais seriam evitadas com a devida profilaxia,
bre a mortalidade infantil: baseada no saneamento. Este é um tema tratado
no segundo ponto do Artigo 24 da Convenção,
Un indicador importante de que el esta- mas que não encontra correspondente direto no
do de salud de los niños ha mejorado en ECA. A palavra “saneamento” não é encontra-
el Brasil ha sido la reducción de la tasa da neste último documento, apesar de haja fre-
de mortalidad causada por enfermedades quentes referências a um ambiente “adequado”,
diarreicas, neumonÌa y malnutrición en “que garanta o desenvolvimento integral” e “de
todas las regiones geográficas, que es un dignidade”. Levando em consideração a realida-
fenómeno vinculado a la malnutricion, la de da transmissão de doenças nas regiões mais

254
carentes do Brasil e sua interferência direta na Considerações finais
saúde infantil de populações vulneráveis, talvez
fosse interessante que houvesse uma especifica- A dinâmica entre as realidades globais
ção contundente nos artigos do ECA. e locais é uma constante demanda por ajustes
Há ainda no documento dos debates e comprometimento nacional e transnacional,
que orientaram a produção do Artigo 24 outros principalmente no que toca o pleno gozo de
pontos de grande importância. Um exemplo é Direitos Humanos nos países em desenvolvi-
a erradicação de práticas tradicionais prejudi- mento. A construção da CDC representou um
ciais à saúde da Criança, que foi defendida por movimento moderno em prol da proteção das
vários países, principalmente em relação à mu- infâncias, que não deixou de se pronunciar sobre
tilação genital feminina. Isto gerou repercussões o quanto do contexto histórico está materializa-
principalmente da em relação aos representan- do nas condições socioeconômicas e culturais
tes do Senegal e do Movimento Internacional dos países signatários e até mesmo nos discursos
para a União Fraterna entre Raças e Povos. de seus representantes durante a formulação do
Estes intervieram na defesa de que o tema não documento. A produção de uma normativa com
fosse utilizado apenas para rechaçar práticas pretensões globais procurou abranger temas di-
tradicionais africanas, mas que também levas- versos, e além disso, induzir a uma mudança efe-
se em consideração outras circunstâncias, tanto tiva para a garantia destes Direitos.
sociais quanto físicas. Este não foi um debate Para tanto, o questionamento das visões
que entrou no ECA, nem através das palavras e pretensões ocidentais, constituintes do Dis-
“práticas tradicionais”, nem “mutilação”. curso dos Direitos Humanos, assim como dos
Há ainda diferenças socioculturais Direito da Criança, foi imprescindível, visando
expressivas entre a CDC e a realidade bra- abarcar realidades concretas e delas partir para
sileira, no que toca a saúde dos adolescen- pensar possibilidades outras. O Estado brasilei-
tes de forma mais exclusiva. No Relatório à ro buscou implementar o que fora ratificado no
ONU de 2003 (p. 9) é declarado que Artigo 24 em duas instâncias principais: garan-
tir no Estatuto da Criança e do Adolescente que
en el informe se analizan dos aspectos a saúde das crianças e dos adolescentes consti-
graves: la creciente incidencia del em- tuísse uma prioridade social; através da criação
barazo precoz entre las muchachas y el do SUS, e de outras políticas sociais implemen-
aumento de los casos de muerte violenta tadas nas décadas precedentes, garantir este
entre los muchachos. Se trata de proble- direito. Porém, os enormes problemas a serem
mas de la mayor complejidad, cuya solu- enfrentados pela sociedade brasileira demanda-
ción requiere los esfuerzos conjuntos del vam vultuosos recursos econômicos e vontade
Gobierno y la sociedad. política. Na atualidade, observa-se que há muito
ainda por fazer para que todas as realidades e
Sendo estas questões de grande preo- infâncias sejam contempladas.
cupação local, e além disso, talvez uma questão
sensível no que toca a sexualidade e as legis-
lações sobre sexualidade nos diferentes países,
estes não são assuntos que não entraram no
Artigo sobre saúde da CDC. Sendo tratadas
como consequências de fatores econômicos e
educacionais que afetam a realidade brasileira,
a mortalidade entre adolescentes do sexo mas-
culino e a gravidez entre adolescentes do sexo
feminino, se tornam problemas discutidos
particularmente no ECA. Este segundo caso
ganhou especial atenção com um adendo de
2019 ao ECA que institui a Semana Nacional
de Prevenção à Gravidez na Adolescência.

255
Referências

AREND, S. M. F. Direitos humanos e infância: MARCHI, R. C; SARMENTO, M. J. Infância,


construindo a Convenção sobre os Direitos da Normatividade e Direitos da Crianças: Transi-
Criança (1978-1989). Tempo [online]. 2020, v. ções Contemporâneas. Educ. Soc., Campinas,
26, n. 3, p. 605-623. Disponível em: <https://doi. v. 38, no. 141, p.951-964, out.-dez., 2017.
org/10.1590/TEM-1980-542X2020v260305>.
PILOTTI, F. Globalización y Convención so-
BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dis- bre los Derechos del Niño: el contexto del tex-
põe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescen- to. Santiago de Chile: Naciones Unidas, 2001.
te e dá outras providências. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 2019. ROSEMBERG, F.; MARIANO, C. L. A Conven-
ção Internacional Sobre os Direitos da Criança:
BRASIL. Examen de los informes prestados Debates e Tensões. Cadernos de Pesquisa (São
por los Estados Partes con arreglo al Artículo Paulo), v.40, n.141, p.693-728, set./dez. 2010.
44 de la Convención: Informes iniciales que los
Estados Partes debÌan presentar en 1992. Na- UN OFFICE OF THE UNITED NATIONS
ciones Unidas, 27 de octubre de 2003. HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN
RIGHTS; Rädda barnen (Society: Sweden).
HOFFMANN, S. L. Os Direitos Humanos e a Legislative history of the Convention on the
História. Revista Tempo e Argumento, Floria- Rights of the Child. New York and Geneva:
nópolis, v. 11, n. 27, p. 525 — 560. maio./ago. 2019. UN, v. 1, 2007.

256
TRABALHO INFANTIL
E CRIMINALIZAÇÃO DA
INFÂNCIA NO BRASIL

Hannah Zuquim Resumo: O tema do presente artigo


Aidar Prado234 faz parte da pesquisa de doutorado sobre o tra-
balho dos adolescentes no mercado das drogas.
Desta forma, iniciamos abordando as condi-
ções de vida e trabalho da infância da classe
trabalhadora no Brasil desde a Velha Repúbli-
ca, o que possibilita apreender a concepção e
funcionamento das políticas públicas para a
criança e o adolescente no Brasil, estas tiveram,
e tem como foco o controle social da infância,
principalmente a criança entendida como
“abandonada” e “delinquente”, com o entendi-
mento de que o trabalho é central para a salva-
ção destes. O Estado se organizava, e segue se
organizando, em torno dos valores do embran-
quecimento e do trabalho, de forma a contro-
lar as crianças e adolescentes que representa-
vam uma ameaça ao projeto de modernização
brasileiro. A partir deste panorama histórico
sobre a questão do trabalho infantil no Bra-
sil é possível compreender melhor a situação
dos jovens brasileiros pobres hoje com relação
ao mercado de trabalho, se aprofundando nas
experiências dos adolescentes no mercado das
drogas. A perspectiva que entende e considera
os jovens das periferias como potenciais crimi-
nosos esconde a dimensão de vulnerabilidade e
violência que estes e suas famílias vivem, tanto
sob a perspectiva do trabalho, quanto de ou-
tras. Redimensionar isso nos coloca o desafio
de pensar em como incidir sobre questões es-
234
Doutoranda em Política Social pela Universidade de Brasília — UnB.

257
truturais, principalmente com relação ao tra- muito abordado em estudos historiográficos, e
balho, atividade essencial para sobreviver no é o momento que há um esforço da burguesia
sistema capitalista, ou seja, ao invés de seguir brasileira em renovar o discurso, com o supos-
criminalizando trabalhadores extremamente to objetivo de alcançar um patamar de desen-
explorados, apontemos alternativas à realida- volvimento da sociedade e também do Estado,
de posta. Faz parte deste debate o fato de que entendido por eles como modernização. Desta
a situação do trabalho só tende a piorar, pois forma, este é um momento em que os “homens
os ganhos do capital são baseados nas perdas de ciência” (juristas, médicos, políticos235) de di-
para o trabalho, o que é possível de ser obser- versas regiões brasileiras estão empenhados em
vado no mundo e no Brasil, com suas particu- resolver algumas questões postas para o Estado
laridades em cada local. A trajetória de vida e sociedade, inclusive sob quem eles julgavam
dos adolescentes das periferias do Brasil tem a representar uma ameaça ao projeto de moder-
presença massiva do trabalho infantil, desde a nização do Estado brasileiro, e constroem teo-
época de seus pais, avós, e bisavós, incluindo a rias e práticas que são institucionalizadas no
sua, e no caso de adolescentes criminalizados Estado e difundidas na sociedade.
pelo tráfico de drogas, do trabalho no merca-
do das drogas. Desta forma, este artigo busca Palavras-chave: Trabalho. Tráfico de
compreender de maneira mais aprofundada as Drogas. Juventude.
questões que se referem as relações de trabalho
no tráfico de drogas, a entrada no “mundo do
crime”, a dinâmica do mesmo e a alternância
entre trabalhos não criminalizados e o tráfico. Introdução
Partindo do entendimento de que a
narcoeconomia faz parte da economia, ou seja, A política pública que se formava co-
não funciona de maneira independente ou mar- locava a pobreza e a questão racial como um
ginal por ser ilegal, podemos inferir que o tráfi- problema central na agenda e trazia respostas
co de drogas é um trabalho, e que os adolescen- de matriz assistencialista e criminalizante. Isso
tes estão em uma posição muito desfavorável no já ocorria anteriormente, mas é neste período
mercado de trabalho, e também no mercado das que há a institucionalização de algumas prá-
drogas. Autores nos alertam para o fato de que o ticas, é um momento que traz consigo a pers-
narcotráfico vem se apropriando da juventude, pectiva colonizadora, mas com a visão mor-
seja ela onde estiver, como operadores da lógica denizadora e “civilizatória” na ordem do dia,
no território, o que envolve domínio e violência. construída com base em discursos eugenistas e
Ou seja, parte da juventude das periferias está teorias racistas da biologia.
sendo cooptada por esse mercado, em parte por A ideia de modernidade como símbolo
não ter outras opções, sob a perspectiva do mer- do avanço ganha força neste momento, e, neste
cado de trabalho. O presente artigo faz parte da sentido, a escravidão é vista como ultrapassada,
tese de doutoramento sobre os adolescentes cri- e o atraso é personificado no corpo negro, o que
minalizados pelo tráfico de drogas hoje, e trata mantém as estruturas como eram, mas com uma
de algumas determinações históricas acerca do roupagem diferente. Este é um período abun-
tema do trabalho infantil e da criminalização dante de produção teórica que objetiva com-
da infância no Brasil. Desta forma, o presente provar a inferioridade do negro, transformando
artigo versa sobre as condições de vida, traba- diferenças em desigualdades, são teorias euge-
lho e criminalização para a infância da classe nistas que: “priorizavam o tema racial na análise
trabalhadora no Brasil no período histórico dos problemas locais”. (SCHWARZ, 1993, p.14)
entre a Velha República e a Ditadura Militar: As questões sociais seguem sendo res-
entre os anos de 1889 e 1985. Com esta aborda- pondidas por meio da culpabilização dos indi-
gem é possível compreender sobre a concepção víduos mais atingidos pela conjuntura estrutu-
e funcionamento das políticas públicas para a ral, e exigem outro tipo de atuação agora na
criança e o adolescente no Brasil, estas que ti- República por parte da burguesia, mesmo que
veram, e, ainda tem como foco o controle social estas situações já existissem desde a época da
da infância, principalmente a entendida como Colônia. De acordo com o historiador Daniel
“abandonada” e/ou “delinquente”. O período Alves Boeira, que tem como tema de sua dis-
entendido como República Velha (1889-1930) é sertação as Colônias Agrícolas no período de
235
Entre esses “homens de ciência” estão Silvio Romero (1851-1914), intelectual brasileiro fundados da academia de
Letras, Tobias Barreto (1839-1889), jurista e professor da Faculdade de Direito de Recife, Raimundo Nina Rodrigues
(1862-1906), medico e professor da faculdade de medicina da Bahia, entre muitos outros.

258
1918-1930, para as quais eram encaminhadas Era um contexto de intensa migração
crianças e adolescentes considerados ameaça europeia, principalmente na região sul e sudes-
a ordem, é possível observar em documentos te, proporcionada pelo governo e endossada
históricos estas questões: por intelectuais e “cientistas” da época, foram
estes trabalhadores que passam a ocupar os pos-
Os processos por contravenção, vagabun- tos de trabalho industriais, deixando os recém
dagem, ofícios expedidos e tantos outros ‘libertos’ negros à própria sorte, ou seja, se for-
documentos produzidos pelos órgãos go- ma uma classe trabalhadora desigual. Somado a
vernamentais constituem rico material isso, a condição de inferioridade atribuída aos
que nos permite observar como os meno- negros fazia com que permanecessem atitudes
res eram vistos sob ótica das autoridades de desprezo, marginalização e criminalização.
no período pesquisado. Através da docu- Um dos aspectos deste processo de desenvolvi-
mentação, vislumbra-se a atuação de “sa- mento e modernização do Brasil tem como ele-
beres específicos”, em que “juristas”, políti- mento central a ideologia do branqueamento
cos e médicos produziriam representações da sociedade brasileira, ou seja, a necessidade
sobre a pobreza [tendo nas] instituições de realizar o desaparecimento do negro em um
meios de intervenção direta e indireta so- processo de mestiçagem de múltiplas gerações
bre a situação. (BOEIRA, 2012, p. 32) que faria com que a sociedade “evoluísse”.
A classe trabalhadora se formou no
O início do século XX é um período Brasil de forma desigual e racializada, e este é
em que a urbanização e a industrialização se um aspecto central para a abordagem do tema
intensificaram e ocorre uma “miserabilização das políticas públicas para a infância no país:
da população urbana e uma intensa pressão na
competição por empregos” (RIBEIRO, 1995, p. a emergência recente do negro da condi-
198). Ao Brasil se impuseram as condições ne- ção escrava à de trabalhador livre; uma
cessárias para o desenvolvimento dos países do efetiva condição de inferioridade, produ-
capitalismo central, principalmente no que se zida pelo tratamento opressivo que o ne-
refere à industrialização, que incluía a inten- gro suportou por séculos sem nenhuma
sa exploração de crianças e adolescentes nas satisfação compensatória; a manutenção
fábricas, e também no campo. Neste período de critérios racialmente discriminató-
há um aumento da produção e das populações rios que, obstacularizando sua ascensão à
urbanas que se ampliam as desigualdades, pois simples condição de gente comum, igual
a riqueza é desigualmente apropriada, ou seja, a todos os demais, tornou mais difícil
se acirraram as contradições entre o capital e para ele obter educação e incorporar-se
o trabalho e a questão social se torna latente. na força de trabalho dos setores moder-
A pobreza, que no Brasil tem relação nizados”. (RIBEIRO, 1995, p. 235)
intrínseca com a questão racial, passa a ter des-
taque na construção de um projeto de nação O controle maior se dá sobre as famílias
dito modernizador — racializado, segregador e e crianças negras, pois são colocadas à margem
violento. As questões sociais se tornaram foco dos processos de cidadania que estavam ocorren-
de ações do Estado, iniciando a institucionali- do, sendo atingidas de forma mais violenta com
zação de práticas à semelhança de alguns paí- a ampliação da desigualdade social. Não houve
ses da Europa: é o momento de inauguração de uma reparação dos danos causados aos negros
museus, institutos penais, históricos e geográ- pela escravidão, pelo contrário, ficou mais com-
ficos, faculdades, políticas públicas, legislações. plicado ser negro na sociedade que se construía.
Os processos de urbanização e indus- Faz parte do processo de crescimento urbano e
trialização não permitiram que a população da expansão da produção o controle dos negros,
como um todo tivesse condições favoráveis de agora livres, dos imigrantes, entendendo ainda
bem-estar, como afirma o cientista social pau- que há uma desigualdade intrínseca no Brasil,
lista Passeti (1995, p.195), sobre este período na referente às crianças brancas e negras.
cidade de São Paulo: “baixos níveis de renda, Um exemplo de como ocorria o con-
habitação sub-humana, subalimentação, anal- trole sobre os corpos negros é via criminaliza-
fabetismo e baixo nível de escolaridade, baixos ção da cultura e costumes da população negra,
níveis sanitários e de higiene, falta de qualidade inclusive com relação a questão das “drogas”.
profissional e insegurança social”, o que resulta: De acordo com o historiador baiano Jorge
“à desorganização a estrutura do grupo familiar Emanuel Luz de Souza, a maconha, por exem-
em suas funções básicas — alimentação, prote- plo, foi uma das maneiras de criminação no
ção de saúde, recreação, amor e socialização”. início do Século XX. O discurso médico funda-

259
mentou a criminalização da maconha — ideias população negra é de estar às margens do mer-
difundidas inclusive para os Estados Unidos — cado de trabalho da época:
no Brasil: “o enquadramento do hábito na ca-
tegoria de ‘toxicomania’, a acusação das classes a criança branca livre e até mesmo a
subalternas como consumidoras exclusivas da criança de cor livre podem ter seu prazo
erva e a dimensão racial do uso de maconha no de ingresso na vida ativa do protelado,
Brasil”. (SOUZA, 2012, p.20) enquanto a criança escrava, que tenha
Estes homens de ciência relacionavam atingido certa idade, entra compulso-
“toxicomania” com “degeneração” e “loucura”, afir- riamente no mundo do trabalho. Há,
mando que a maconha era utilizada pelas classes pois, um certo momento em que o filho
mais baixas, e que isso era causa para violência. O da escrava deixa de ser a criança negra
Dr. Rodrigues Dória, de Salvador, foi o precursor ou mestiça irresponsável para tornar-se
nestes estudos, na primeira década de 1900: uma força de trabalho para seus donos.
(MATTOSSO, 1995, p. 78)
Para ele, indubitavelmente, era fruto de
‘importação africana’, era mesmo ‘vegetal Walter Fraga Filho amplia o entendi-
largamente usado pelos pretos africanos’ mento a respeito do nosso cenário, e faz um
no seu continente de origem. Como uma retrato das ruas de Salvador no século XIX,
forma de ‘vingança do vencido’ por ter relatando as vidas negras que ocupavam este
sido escravizado, o negro, que ele consi- espaço e perturbavam uma ordem que preten-
derava ‘a raça inferior’, teria introduzi- dia se estabelecer já antes da abolição. A elas
do a maconha, o ‘mal’, na sociedade dos era atribuído o peso da desordem social: “ao
brancos, para ele, ‘mais adiantados em lado das prostitutas e dos indivíduos sem eira
civilização’. (SOUZA, 2012, p. 23) nem beira, os moleques vadios eram vistos
com desprezo e hostilidade pelos bem nasci-
Este se torna um mecanismo potente dos”. (FILHO, 1994, p. 115)
de repressão a pobreza na Bahia, mas são di- Eram filhos de mulheres solteiras, em
versos os mecanismos de repressão pelo país, sua maioria negros, órfãos, abandonados, fu-
seja pela droga, pelo samba, pelo exercício da gidos. O objetivo das autoridades neste mo-
espiritualidade, ou até quando estavam desem- mento era retirar estas crianças das ruas, seja
pregados, que era enquadrados na lei penal recrutando para a Marinha, orfanatos, ofici-
como “vadios”. Na dissertação de Jorge Souza, nas, serviço militar (FILHO, 1994). As ações
são relatados diversos acontecimentos de cri- perante esta situação que causava pânico eram
minalização a pessoas negras no país, por meio assistencialistas e policialescas, com o objeti-
da análise dos procesos penais. vo de “enjeitar” estes sujeitos, principalmente
Além da criminalização direta sobre por meio do trabalho: “Os meninos com mais
elementos da cultura e das condições de vida de dez anos poderiam ser empregados como
da população negra, ela é colocada no degrau aprendizes em algum ofício, caixeiro de loja ou
mais baixo da classe trabalhadora, seguindo entrava, para o exército”. (FILHO, 1994, p. 136)
executando as atividades que já realizavam, O Estado, organizado em torno dos
mas agora na condição de assalariamente, uma valores do embranquecimento, tinha o discur-
condição de trabalho precário no mercado de so de “salvar” estas crianças e adolescentes que
trabalho: o trabalho doméstico, de vendedores representavam o futuro do país e também uma
ambulantes, carregadores, ou seja, o trabalho ameaça ao projeto de modernização brasileiro, e
braçal, cansativo, mal pago, sendo obrigados a educação e o trabalho eram entendidos como
a viver de uma renda intermitente, e sem di- elementos importantes neste processo. É neste
reitos. Este é um elemento relevante para en- período do final do século XIX e início do XX
tender o lugar que ocupava e que continua a que o termo “menor” começa a ser utilizado para
ocupar a infância negra na sociedade que se se referir a um critério que define a responsabi-
projeta na sombra da modernidade. lidade penal do individuo por seus atos.
A criança filha de escravos iniciava a Com a ampliação dos centros urbanos
vida no trabalho desde muito cedo, esta era e o aumento de uma situação de pauperização
uma condição de sua existência, como afirma da vida, a questão de crianças e adolescentes
a historiadora Katia Queirós Mattoso (1995). nas ruas se torna uma preocupação para as
A criança negra era submetida ao trabalho burguesias locais, pois era entendido que estas
quando completava seus 8 anos de idade, e isto ameaçavam a “ordem” e o “bem-estar social”.
não se modifica substantivamente quando da E o trabalho tem um papel central neste mo-
“abolição”, pois a condição a que é submetida a mento: “A construção de uma nova ideologia

260
do trabalho carregava a valoração positiva e concepção individualista desde a Carta Magna
articulada aos conceitos ‘ordem’ e ‘progresso’, (1891), que é fundada na livre negociação, ou
principalmente se os usos destas ideias fossem seja, sem a intervenção do Estado nas relações
direcionadas para o mundo infantil pobre” de produção. É só em 1934 que a Constituição
(BOEIRA, 2012, p. 36). É por meio do trabalho Federal adota diretrizes voltadas para a prote-
que seria possível regenerar a sociedade, tornar ção social do trabalhador: “seria o momento a
estes sujeitos em “cidadãos úteis”. partir do qual seria formalmente instituído o
É neste período que ocorre também Direito do Trabalho no Brasil” (p.583).
a regulamentação do trabalho do “menor”236, O Decreto Federal n 1.313 de janeiro de
que possibilitam que haja a venda livre da 1891, assinado por Deodoro da Fonseca, afir-
força de trabalho da criança e adolescente da mava que as condições dos menores nas fábri-
classe trabalhadora, como afirma Passeti: “A cas eram extremas e demandava que medidas
definição jurídica do menor, em linhas gerais, fossem tomadas para que crianças não mor-
deixa nítida a preocupação em criar limites ressem, e estabelecia a idade de 12 anos para
possíveis para a sua reprodução no mercado a possibilidade de admissão no trabalho, e, no
de trabalho”. (PASSETI, 1995, p. 149) caso da fabrica de tecidos, 8. As diretrizes in-
Em um artigo sobre a infância operária ternacionais produzidas em 1919 afirmavam da
e o acidente de trabalho na cidade de São Pau- idade mínima de 14 anos para trabalhar, e ain-
lo, podemos compreender como eram as con- da, a proibição do trabalho noturno antes de
dições a que eram submetidas crianças e ado- 18 anos, estas que foram firmadas no Decreto n
lescentes no início do século XX nas fábricas: 22.042 de novembro de 1932 e, posteriormente
incorporadas na Constituição de 34.
[...] o Centro Libertário de São Paulo, de De acordo com Esmeralda, o central dos
tendência anarquista, organiza o Comitê debates a respeito das legislações com relação ao
Popular de Agitação contra a Exploração trabalho infantil era a idade de admissão:
dos Menores nas Fábricas (...) expressa cla-
ramente a preocupação com os menores Assim, argumentos e contra-argumentos
mortos, feridos, mutilados em acidentes fizeram-se ouvir quanto a capacidade físi-
nos estabelecimentos industriais: Como, ca presumível para o trabalho em relação
humanamente, pode-se tolerar — indaga a idade, ao grau de escolaridade da crian-
então — que menores dos dois sexos sejam ça e possibilidades de que frequentasse
obrigados a trabalhar nas máquinas, con- a escola, as funções adequadas ou não a
sumindo seu débil organismo em pouco desempenhar no trabalho, a compatibili-
tempo e em permanente perigo de vida, dade ou não setor industrial e das espe-
proveniente dos contínuos acidentes de cificidades da produção com a idade da
trabalho? (MOURA, 1995, p. 112) criança”. (MOURA, 2015, p. 587)

Neste período o trabalho infantil nas E Esmeralda conclui: “É possível perce-


fábricas é expressivo; nas industrias têxteis, por ber o quanto, na prática, o ingresso das crianças
exemplo, as crianças representam 30% dos traba- no trabalho se dava de modo aleatório, ao sabor
lhadores. Algumas famílias operárias não encon- das necessidades econômicas da família operá-
tram outra opção a não ser inserir seus filhos nas ria, das oportunidades de emprego que surgiam,
fábricas, e estes são extremamente explorados. O dos interesses industriais.” (p. 587). Desta forma,
trabalho infantil da classe trabalhadora era consi- há um abismo entre as leis e a prática, que seguia
derado normal, e na maioria das vezes as crianças colocando crianças e adolescentes em situações
eram as culpabilizadas pelos acidentes: “a ênfase extremamente vulneráveis.
recai inevitavelmente sobre a brincadeira no local Além do expressivo número de crianças
de trabalho”. (MOURA, 1995, p. 122) no trabalho da indústria, grande parcela dos fi-
A historiadora Esmeralda Blanco de lhos da classe trabalhadora tinha de se submeter
Moura se dedica a compreender a legislação a trabalhos informais e esporádicos, nos espaços
brasileira com relação ao trabalho infantil no públicos. A rua se configurava, dessa maneira,
período de 1891-1934. Ela afirma que há uma como um espaço onde essa parcela da população

236
Menor faz parte do repertório jurídico do período: “A partir de 1920 até hoje em dia a palavra passou a referir e
indicar a criança em relação a situação de abandono e marginalidade, além de definir sua condição civil e jurídica e
os direitos que lhe correspondem” (LODOÑO, 1995, p. 129). De acordo com BATISTA (2003): “menor passa a se asso-
ciar definitivamente a crianças pobres, a serem tuteladas pelo Estado para a preservação da ordem e asseguramento
da modernização capitalista em curso” (BATISTA, 2003, p. 69).

261
tentava extrair recursos para sua sobrevivência com o objetivo de controle, mas também da
e/ou para complementação da renda familiar. tentativa da formação de uma juventude para
Ademais, a rua era um importante espaço de so- o trabalho, institucionalizados em abrigos (asi-
ciabilidade, no qual as crianças se encontravam, los), reformatórios, casas de trabalho e prisões.
se relacionavam e desenvolviam suas atividades Antes deste período já era uma preo-
— seja, como mencionado, de trabalho, ou de cupação colocar os “menores” no mercado de
diversão. Nesse contexto, como estavam muito trabalho, sempre no seu degrau mais baixo, e
presentes nas ruas, eram consideradas, por di- neste momento estas ações de controle sob as
versas vezes, perturbadoras da ordem do espaço crianças e adolescentes nas ruas se intensifica
público, produtoras da desordem urbana. e é marcado pelo discurso de que o trabalho
O Código Penal de 1890 já indica que seria o elemento que “possibilitaria a salvação”
menores de 14 anos poderiam ser punidos de dessa juventude pobre. Curiosamente, grande
acordo com seu discernimento, mas é em 1927 parcela já tinha a perspectiva do trabalho, e era
que é decretado o Código de Menores, que direcionada para o trabalho precário. Com a
consolida as leis de assistência e proteção de criação do Serviço de Assistência ao Menor,
menores, que regulamenta a maneira como in- em 1941, através do Decreto-Lei nº 3779, o tra-
divíduos abaixo de 18 anos devem ser tratados balho era considerado elemento central: “A
juridicamente, inclusive com relação ao traba- ‘orientação profissional’ faz parte do processo
lho. São divididos entre 3 categorias: menores de ‘recuperação’ dos adolescentes, e o ensino
abandonados, menores delinquentes e meno- profissionalizante parece ser a única alternati-
res trabalhadores. Já no Art. 1º define de quem va para a juventude pobre; aspirar à integração
está falando: “O menor, de um ou outro sexo, por baixo no mercado de trabalho é a única
abandonado ou delinquente, que tiver menos perspectiva possível». (BATISTA, 2003, p. 72)
de 18 annos de idade, será submettido pela au- A infância pobre é direcionada para o
toridade competente ás medidas de assistencia trabalho desde os primórdios do Estado bra-
e protecção contidas neste Codigo” sileiro, o trabalho, e a formação para o traba-
A sessão que trata dos menores aban- lho são colocados como única alternativa: “A
donados considera os menores de 18 anos que ‘orientação profissional› faz parte do processo
estão desassistidos pela família e os que causam de ‹recuperação› dos adolescentes, e o ensino
desordem das diversas formas como vadios, profissionalizante parece ser a única alternati-
mendigos, libertinos, capoeiras. Há uma ambi- va para a juventude pobre; aspirar à integração
guidade na maneira como são entendidos estes por baixo no mercado de trabalho é a única
menores: a necessidade de serem protegidos, perspectiva possível». (BATISTA, p. 72)
para não se tornarem um perigo, a proteção e a Nos diversos Estados brasileiros a po-
criminalização são separadas por uma linha tê- breza e a negritude eram, e ainda são, conside-
nue. A perda do pátrio poder está regulamenta- radas pelas autoridades como um perigo social,
da e há a possibilidade de encaminhamento dos não só ignorando, mas ampliando as estruturas
menores para instituições do Estado. No caso desiguais que sustentam esse fenômeno, asso-
dos menores delinquentes, não há processo pe- ciando diretamente a pobreza ao crime, cri-
nal, mas poderiam ser direcionados a asilo, casa minalizando-a. Ao mesmo tempo que é reco-
de educação e de preservação, e em casos con- nhecida a necessidade de proteger as crianças,
siderados mais graves, em estabelecimentos de entende-se que estas mesmas podem se tornar
condenados, inclusive prisões comuns. um perigo para a sociedade, quando por vezes
As políticas “sociais” para a infância se envolverem com situações de transgressões,
brasileira neste período tem como foco os aban- ou simplesmente por estarem nas ruas, deixan-
donados, trabalhadores e criminosos, os “me- do de lado a faceta protetiva e de garantidor
nores”. Estes últimos, mas todos em potencial, de direitos do Estado. Ou seja, há uma associa-
considerados “perigosos” para o estabelecimen- ção direta entre a pobreza e a criminalidade e
to de uma “ordem”, se trata da maneira como as políticas destinadas à este público, que tem
é tratada a infância pobre. Nas primeiras duas como foco o controle destes sujeitos inferiores,
décadas do século XX é quando há a institu- “potenciais” desordeiros, sendo formatadas em
cionalização do Estado brasileiro, e também a suas matrizes assistencialista e criminalizadora.
criação das instituições de controle de crianças Neste segundo momento histórico,
e adolescentes, principalmente por meio do sis- a partir da década de 40, a institucionaliza-
tema de justiça e assistencialismo (BASTISTA, ção dos serviços destinados ao controle das
2003). As crianças e os adolescentes da classe crianças e adolescentes, ainda denominados
trabalhadora considerada abandonada e delin- “menores”, segue se caracterizando por ins-
quente foram colocados sob a tutela do Estado tituições de controle, ampliando seu escopo

262
de atuação, criam-se reformatórios, casas de De maneira geral, as instituições cria-
correção, patronatos agrícolas, escolas de das para o tratamento dos denominados me-
aprendizagem, patronatos agrícolas, escolas nores são marcadas pela seletividade, violên-
de aprendizagem de ofícios. Como parte de cia, maus tratos, superlotação, sem condições
um processo de tecnificação desta política, mínimas de higiene e alimentação, e passam a
em 1941 cria-se o Serviço de Assistência a Me- ser cada vez mais alvo de denúncias. Além das
nores (SAM), citado logo acima, e em 1964, instituições citadas anteriormente, são criadas
mesmo ano do golpe militar, há uma centra- instituições que objetivavam proteger-contro-
lização do processo, com a criação da Funda- lar uma parte das crianças pobres, como a Le-
ção nacional do Bem-Estar do Menor (FU- gião Brasileira de Assistência (LBA), o Serviço
NABEM), que formula a Política Nacional do Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai),
Bem-Estar do Menor (PNBEM), para atender o Serviço Social do Comércio (Sesc): especial-
os considerados delinquentes e abandonados: mente no campo materno-infantil, bem como
a formar os ‘futuros cidadãos através do prepa-
Esse segundo período é marcado pela in- ro profissional’”. (BOEIRA, 2018, p. 48)
tervenção na questão da mudança de um Com o golpe de 64 há uma centraliza-
período para o outro. Muda-se, por sua ção dos recursos federais para o atendimento
vez, o foco de intervenção passando de dos menores, inclusive destinando recursos a
uma situação de intervenção de higiene entidades privadas, e, paulatinamente se afas-
e proteção contra a pobreza para a in- tam dos ideais de criação, reiterando uma prá-
tervenção evitando a violência praticada tica assistencialista e repressiva. A ampliação do
por menores. Prova disso é a mudança ensino público no país não ocorre de maneira
de foco para instituições de abrigo, en- democrática e os “menores” seguem de fora das
quanto na fase anterior o foco era nas escolas, estas que, apesar da ampliação ao acesso,
instituições de internação. Outro fato não são frequentadas pelas crianças pobres, que
que marca esse período é a centraliza- seguem expostas ao trabalho infantil precário:
ção da intervenção, ficando todas as
ações sob tutela do Estado — que dele- O trabalho informal absorvia parte des-
gava ações para outras instituições. (ZU- sas crianças e jovens nos centros urba-
QUIM; NASCIMENTO, 2010, p. 11) nos, executando, geralmente, através de
biscates, auxiliando nas barraquinhas de
Segue o discurso interventivo no senti- camelos e feirantes, guardando automó-
do do controle da criança e do adolescente con- veis nos estacionamentos, trabalhando
siderado potencial criminoso. A tônica deste pe- como babás, ou, então na prostituição,
ríodo é a da legitimação e institucionalização da etc. (BOEIRA, 2018, p. 53)
política que associa a pobreza à criminalidade:
“A FUNABEM teria por função exercer a vigi- O trabalho infantil faz parte da his-
lância sobre os menores, principalmente a partir tória das crianças e adolescentes pobres no
de sua condição, de carenciado, isto é, próximo a Brasil, e quando olhamos para trás podemos
uma situação de marginalização social” (PASSE- perceber que as formas de controle sobre este
TI, 1995, p. 151). Ou seja, é a consolidação de um público têm uma lógica que atravessa o tempo
projeto no interior do Estado da concepção de histórico e nos permite entender como ainda
que é necessária uma instituição de controle que hoje operam as políticas sociais para a infân-
associa diretamente a pobreza a criminalidade e cia da classe trabalhadora. Mesmo hoje com
ao perigo. Ainda, em 1979 é publicado o segundo a mudança de paradigma com relação ao que
Código de Menores, que segue afirmando a “si- chamamos hoje de direitos da criança e do
tuação irregular” em que se encontram os meno- adolescente no Brasil, que não considera mais
res “abandonados” e “delinquentes”. as crianças negras escravizadas como objetos,
Daniel Alves Boeira, em sua tese de que não utiliza mais os termos “menor abando-
doutorado que trata da CPI no Menor, que foi nado” e “menor delinquente”, há ainda perma-
realizada em 1975 para investigar o problema da nências. Permanências essas que podemos ob-
criança e do jovem no Brasil, explica a maneira servar no mercado de trabalho, nas estatísticas
como o Estado lidou historicamente com a ques- da segurança pública, no acesso desigual aos
tão da infância pobre: “o abrigamento em gran- serviços de saúde e educação, e, nas histórias de
des instituições foi a principal solução encontra- vida de adolescentes criminalizados no Brasil.
da para uma parcela significativa das crianças e A partir deste panorama histórico sobre
dos adolescentes jovens considerados abandona- a questão do trabalho infantil no Brasil é possí-
dos e infratores”. (BOEIRA, 2018, p. 47) vel compreender melhor a situação dos jovens

263
brasileiros pobres hoje com relação ao mercado BOEIRA, D. A. Uma “solução” para a menori-
de trabalho, inclusive quando nos aprofunda- dade na primeira república: o caso do patronato
mos nas experiências dos adolescentes que par- agrícola de Anitápolis/SC (1918 — 1930). Disser-
ticipam do mercado das drogas. A situação de tação (Mestrado em História), Universidade do
vulnerabilidade dos adolescentes está presente Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.
tanto no mercado ilegal quanto no mercado
legal, com a diferença de que eles correm mais FILHO, W. F. Mendigos e vadios na Bahia do sé-
risco de vida quando no mercado ilegal. As reais culo XIX. Dissertação (Mestrado em História),
possibilidades destes que vemos hoje no sistema Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1994.
socioeducativo, considerando sua posição na so-
ciedade, sob a perspectiva do trabalho e da edu- MATTOSO, K. Q. O filho da escrava. In:
cação (esta que tem relação direta com o traba- PRIORE, M. História da criança no Brasil.
lho) nos convoca a pensar em como protege-los, São Paulo: Contexto, 1995.
enquanto sociedade e Estado.
MOURA. E. B. B. M. Infâcia, trabalho e legis-
lação brasileira: o trabalho infantil entre es-
Referências boços legislativos, medidas dispersas e codi-
ficações (São Paulo, 1891-1934). 4tas Jornadas
BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis — Dro- de Estudios sobre la Infância, Buenos Aires.
gas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio p. 579-597. 2015
de Janeiro: Revan, 2003.
NASCIMENTO, A. R. ZUQUIM, J. Matrizes
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de 1890 — Promulga o Código Penal. Dispo- cia e Adolescência: Assistencialismo, tecnici-
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htm. Acesso em: 06 de maio de 2021 São Paulo: Contexto, 1995.

_____. Lei 8.069/1990. Dispõe sobre o Estatuto RIBEIRO, D. O povo brasileiro a formação e
da Criança e do Adolescente. Disponível em: o sentido do Brasil (falta algo). São Paulo: Cia
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L8069.htm. Acesso em: 06 de maio de 2021
SCHWARZ, L. M. O espetáculo das raças:
______. Lei 12.594/2012. Institui o Sistema Na- cientistas, instituições e questão racial no Bra-
cional de Atendimento Socioeducativo (Si- sil — 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993.
nase). Disponível em: < http://www.planalto.
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htm>. Acesso em: 10 ago 2020 do cotidiano: uma história da criminalização
do Brasil republicano. Dissertação (Mestrado
BOEIRA, D. A. CPI do menor: infância, dita- em História), Universidade Federal da Bahia,
dura e políticas públicas (Brasil, 1975 — 1976). Salvador, 2012.
Tese (Doutorado em Hstória), Universidade do
Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.

264
A EXPERIÊNCIA MENSTRUAL
DE MENINAS DA PERIFERIA
DE PORTO ALEGRE

Januária Monteiro Menegotto237 Resumo: Este texto articula questões


que movimentam minha pesquisa de mestrado,
na qual investigo a experiência menstrual de
meninas da periferia de Porto Alegre (RS). De-
bruço-me sobre esferas não-biológicas da mens-
truação, a partir de uma perspectiva feminista
e interseccional, que articula gênero, idade e
classe. E são dois os níveis constitutivos da mi-
nha observação sobre a experiência menstrual
das meninas: 1) O peso do discurso hegemôni-
co patriarcal, que posiciona meninas no lugar
de mulheres que menstruam, transformando a
menarca em um evento de marcação de gênero,
uma designação que aponta caminhos sociocul-
turais de existência, localizando os corpos em
um projeto histórico e contínuo de feminilida-
de normativa. Tudo isso carrega uma série de
dispositivos que se relacionam com sexualidade,
ocultação da menstruação e a agência dessas me-
ninas na esfera pública. 2) A menstruação como
um fator de desigualdade social, já que uma
considerável parte das pessoas que menstruam
não têm acesso a produtos menstruais, a água
potável, saneamento básico, tampouco a uma
educação apropriada para lidar com seu perío-
do menstrual. E, fazendo um recorte etário, os
impactos que a pobreza menstrual têm sobre a
vida de meninas vão além da saúde e da higiene.

Palavras chave: Menstruação. Infância


e adolescência. Feminismo interseccional
237
Graduada em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUC-RS.

265
Introdução talvez não sejam familiares para todo mundo.
Então pensei em fazer uma espécie de pequeno
Esta comunicação é fruto da minha glossário antes de prosseguir. Vamos a ele.
pesquisa de mestrado, em andamento, no
Programa de Pós-Graduação em Ciências So- Pessoas que menstruam
ciais da PUCRS. Portanto, minhas contribui-
ções ainda são parciais e dizem respeito, prin- Nem toda mulher menstrua, nem todo
cipalmente, a conteúdos e dados levantados mundo que menstrua é mulher. Explico: mulhe-
a partir da bibliografia com a qual venho tra- res trans não menstruam, e meninas, mulheres,
balhando e da pesquisa exploratória realizada homens trans e pessoas não binárias menstruam.
para o andamento da pesquisa. Embora meu trabalho foque em experiências e
O objetivo central do projeto é o de in- outras questões relacionadas a meninas, subli-
vestigar a experiência menstrual de um grupo nho a necessidade de percebermos que, além de-
de meninas com idade entre 11 e 14 anos, de las, outros grupos da população também mens-
regiões periféricas de Porto Alegre (RS). truam e devem ser incluídas nos debates em
O interesse surgiu quando eu nem sabia torno da menstruação, além de ter garantidas
que ele viraria um mestrado. Eu trabalhava dan- todas as condições para que a menstruação não
do oficinas de criatividade para um grupo de seja motivo de vergonha ou signifique algum
meninas de uma escola pública. Era um grupo tipo de ameaça aos seus direitos.
pequeno, com aproximadamente oito meninas,
e nós nos encontrávamos semanalmente. Os en- Pobreza menstrual
contros duraram quase quatro anos. Quando co-
meçamos, a média de idade das meninas era 10 Basicamente, é a falta de acesso a três
anos. Desde o início, tínhamos uma boa intimi- coisas: infraestrutura adequada para a admnis-
dade e cumplicidade: elas confiavam muito em tração do período menstrual (água, saneamento
mim e eu em cada uma delas. A gente sempre básico, banheiros limpos e seguros, sabonete,
começava as aulas com uma roda de conversa, papel higiênico), produtos menstruais (absor-
com tema livre, onde surgiam os mais diversos ventes internos ou externos, coletores, calcinhas
assuntos: do irmão traficante que tinha sido pre- menstruais), e à informação sobre menstruação.
so ao melhor sabor de sacolé que era vendido
no mercadinho do bairro. Até que um dia, sur- Educação menstrual
giu um “sora, a fulana ficou mocinha”. E eu olho
para a fulana, que está com o olhar baixo e com Diz respeito ao amplo acesso à informa-
um meio sorriso, sem saber muito bem como ção sobre o ciclo menstrual, incluindo aí as pers-
reagir à revelação das amigas. Lembro de me fa- pectivas biológica, emocional, social, cultural e
zer de desentendida e perguntar “Como assim, até as questões de sustentabilidade. A educação
virou mocinha?”. E vieram respostas impacien- menstrual deve ser oferecida a todas e todos e é
tes como “Ai, sora, tu sabe, aquilo que acontece muito importante que meninas sejam apresen-
com as mulheres”, “Ela tá naqueles dias”, “Maré tadas ao tema antes da primeira menstruação,
vermelha, sabe?”. Claro que depois eu disse que através de um diálogo sem estigmas e a partir de
tinha entendido, e tivemos uma conversa ain- informações baseadas em evidências.
da bastante tímida sobre menstruar. E lembro
de sair da aula intrigada com algo que talvez O que venho descobrindo
eu nunca tivesse parado, de fato, para pensar: sobre menstruação
o tanto de vergonha que esse assunto gera. E
pensando que não era só ali, entre as minhas
meninas, que isso acontecia. Acredito que com estas definições já
Por que não chamamos menstruação posso começar a adentrar conteúdos e infor-
pelo nome? mações que tenho descoberto e construído ao
Talvez tenha sido esta pergunta a pon- longo do mestrado.
ta do fio do grande novelo que estou desenro- Sabemos, ou deveríamos saber, que
lando até agora. a menstruação é um processo natural e vital.
Biologicamente falando, é o período do ciclo
Uma espécie de glossário menstrual em que o nosso endométrio, a cama-
da mais interna do útero, é eliminada pelo cor-
Antes de entrar no meu objeto de pes- po em forma de sangue. Em geral essa camada
quisa propriamente dito, quero pontuar alguns se constrói e se renova a cada mês, ou a cada
termos e conceitos que vou usar por aqui e que ciclo, quando não há gravidez. Em toda a nossa

266
vida, menstruamos cerca de 400 a 500 vezes, práticas de controle do corpo para encaixá-lo
sangrando de 30 a 80 mililitros por vez. no que se entende por feminino. Logo que
E isso acontece todos os meses para menstruam as meninas são advertidas sobre
todas as pessoas que menstruam hoje no pla- sexualidade e orientadas a agir como “moças”,
neta: aproximadamente 1,8 bilhão de meninas, o que, não raro, limita a liberdade de compor-
mulheres, homens transgênero e pessoas não tamento que desfrutavam até então. E nesse
binárias em idade reprodutiva.238 Significa que, pacote de práticas do “projeto disciplinar da
em média, 26% da população do mundo passa feminilidade” (Tarzibachi, 2017) também está
de três a sete dias por mês menstruada. Aqui a ocultação da menstruação, como mostra a
no Brasil, 60 milhões de pessoas menstruam, revisão de cartilhas educativas de companhias
ou seja, 30% do Brasil menstrua. (BAHIA, 2021) estadunidenses de Femcare, publicadas entre
Mas menstruar não é apenas um acon- 1959 e 1998, realizada por Dacia Charlesworth
tecimento biológico mensal, é também algo e relatada por Tarzibachi (2017). Segundo esse
que se relaciona com cultura, educação, saúde, levantamento, a menstruante ideal:
sociedade e economia. A menstruação une o
pessoal e o político, o privado e o público, o fi- 1. deveria usar nomes adequados, quan-
siológico e o cultural. E o significado discursivo do falasse sobre o ciclo menstrual;
atribuído aos corpos que menstruam e a forma 2. teria que discutir assuntos relaciona-
como vivenciam as experiências depende dos dos à menstruação unicamente com ou-
contextos socioculturais e históricos que eles tras mulheres ou adultos de confiança;
ocupam. Ao falar especificamente de infân- 3. poderia não se sentir muito bem du-
cias e juventudes, esse sistema multifacetado rante a menstruação, mas não usaria
também precisa ser levado em consideração. essa condição como desculpa para se
A heterogeneidade de experiências e represen- comportar inadequadamente;
tações infantis em diferentes cenários históri- 4. deveria manter a menstruação em
cos, sociais, econômicos e culturais confirma o segredo;
caráter social da infância, colocando-a como 5. preveniria uma crise higiênica, ante-
algo constituído por variáveis como gênero, cipando sua aparição e estando sempre
raça, classe, etnia, etc. (Szulc, 2015). Assim, é preparada;
preciso ter em mente que, embora globalmente 6. deveria confiar na medicina ociden-
haja semelhanças na forma como a menarca e a tal e compreender a importância dos
menstruação são vivenciadas, também existem médicos;
inúmeras diferenças culturais, que incluem 7. deveria entender a importância da
crenças, práticas e restrições específicas impos- aparência pessoal e dedicar muito tem-
tas às meninas e mulheres durante a menstrua- po a ela;
ção. (HAWKEY; PERZ; USSHER, 2020) 8. deveria ser ativa e magra;
Na cultura ocidental, em diversos 9. deveria usar todos os produtos de
contextos, a menarca é construída como uma proteção feminina mencionados no
transição simbólica da infância para a femini- material;
lidade, um período de crescimento e mudan- 10. seria mãe algum dia;
ça, muitas vezes ligado à maturação sexual. 11. praticaria o modo de usar esses pro-
Menstruar pela primeira vez, “virar mocinha”, dutos antes da primeira menstruação.
é um evento que cria uma nova realidade quan-
do acontece. E que talvez tenha a potência de “Virar mocinha” transforma-se, assim,
marcação de gênero, como coloca Eugênia em uma experiência da vergonha pelo sangue
Tarzibachi (2017), semelhante ao “é menino!” que sai do próprio corpo e em um assunto de
ou “é menina!” que o médico ou a médica pro- higiene. Não é coincidência que, nas campa-
clamam quando nascemos. Tornar-se uma me- nhas publicitárias de absorventes, a expres-
nina-mulher que menstrua marca fortemente são “sensação de frescor” seja exaustivamente
um caminho social de existência que será per- usada. (Strömquist, 2018). A primeira mens-
corrido a partir daí. A menina que menstrua truação também habilita para a construção
tem seu corpo automaticamente localizado da performance da feminilidade desejável, a
em um lugar da construção sociocultural cha- partir de um olhar masculino.
mada feminilidade. Isto é, a menarca é vista Com o material bibliográfico que
como uma transição “natural” de menina para percorri até aqui, já posso afirmar com con-
mulher e representa a necessidade de adotar vicção que o peso do discurso hegemônico pa-
238
Dados retirados do documento Guidance on menstrual health and hygiene, da UNICEF.

267
triarcal, que declara que meninas que mens- lever (2013), aponta que 1,25 bilhão de meninas
truam são mulheres, transforma a menarca e mulheres ao redor do mundo não têm acesso
em um evento de marcação de gênero, uma a banheiros privados e seguros e 526 milhões
designação que aponta caminhos sociocultu- sequer têm banheiros nos locais onde vivem.
rais de existência, localizando os corpos com Todos esses dados apontam para um problema
aparelho reprodutivo feminino dentro de um multiforme: a pobreza menstrual.
projeto histórico e contínuo de feminilidade No Brasil, os dados sobre o assunto ain-
normativa (Tarzibachi, 2017). E tudo isso car- da são escassos, mas sabe-se que 17% das meni-
rega uma série de dispositivos que têm a ver nas de até 19 anos não têm acesso à rede geral de
com sexualidade, ocultação da menstruação, distribuição de água (BRK Ambiental, 2018).
limitação da possibilidade de que essas me- Isso significa que essas meninas provavelmente
ninas se projetem na esfera pública. A mens- vão depender da infraestrutura oferecida nas
truação tem sido, desse modo, um evento que escolas para gerenciar seu período menstrual.
coloca em desvantagem os corpos que mens- O problema é que as escolas públicas brasileiras
truam, que registra meninas e mulheres como nem sempre estão preparadas para receber me-
diferentes do corpo masculino normativo e ninas que menstruam. Os banheiros de muitas
privilegiado. (YOUNG, 2005) delas refletem o sucateamento e o descaso com
Para além da questão de gênero, a a educação pública do Brasil: com frequência
menstruação produz outras inúmeras desigual- são locais sujos, sem privacidade para as meni-
dades. Quando trazemos os marcadores raça e nas e sem água, sabão e papel higiênico dispo-
classe para o debate, a experiência menstrual níveis. Segundo dados da Pesquisa Nacional da
torna-se ainda mais complexa, desenhando a Saúde do Escolar (PENSE) do IBGE (2015), 8%
menstruação como um fator de desigualda- das jovens relatam não haver papel higiênico. A
de social. Desigualdade esta que se manifesta pia não existe ou não funciona para 4%, e o sa-
concretamente quando falta acesso a água, a bonete é um luxo que não está disponível para
saneamento básico, a produtos menstruais, 37% delas. E, como podemos imaginar diante
a educação de qualidade. Essas dimensões da da realidade brasileira, as meninas negras são
menstruação e seus impactos em diferentes es- maioria nestes números, representando mais
feras da vida, sem dúvida, moldam as experiên- de 60% de cada um dos três grupos.
cias vividas por meninas de baixa renda. Tal como a falta de dinheiro para com-
Em 2014, a Organização das Nações prar produtos menstruais, as instalações inade-
Unidas (ONU) reconheceu que o direito de quadas podem afetar a experiência das meninas
meninas e mulheres à higiene menstrual é uma na escola, levando à baixa frequência, à diminui-
questão de saúde pública mundial e de direitos ção do rendimento ou até mesmo ao abandono
humanos. E, segundo a ONU Mulheres (2019), escolar, como aponta uma matéria do jornal The
no mundo todo 12,8% de meninas e mulheres Intercept Brasil (2020), que estima que as estu-
vivem na pobreza, o que muitas vezes as im- dantes perdem até 45 dias de aula a cada ano
pede de acessar meios adequados e seguros letivo por causa da menstruação.
para gerenciar seus períodos de menstruação. O sangue que segue envergonhando;
Em outras palavras, uma considerável parte o corpo “frente a um espelho que devolve
das pessoas que menstruam não têm acesso a um olhar masculino desejante” (Tarzibachi,
produtos menstruais — como absorventes ou 2017); a falta de dinheiro para comprar pro-
coletores —, a água potável, saneamento bási- dutos menstruais; a ausência de educação
co, tampouco a uma educação apropriada para menstrual; a infra-estrutura precária das es-
lidar com seu o período menstrual. Muitas aca- colas; o discurso que organiza corpos dentro
bam usando folhas de jornal, sacolas plásticas, de uma ficção chamada feminilidade: a mens-
meias, panos velhos e até miolo de pão para truação faz parte de uma série de políticas
absorver o sangue, aumentando os riscos de de saber-poder que afetam, desde a menarca,
infecção e colocando sua saúde em risco (UN as pessoas que menstruam. Saber-poder este
WOMEN, 2019). Fazendo um recorte etário, que, por muito tempo, permaneceu “nas som-
os impactos que a pobreza menstrual tem so- bras da investigação acadêmica, do ativismo
bre a vida das meninas vão além da saúde e da feminista e de gênero, das políticas públicas
higiene. Muitas adolescentes perdem aulas ou e da reflexão pessoal” (Tarzibachi, 2017, p. 4)
até abandonam os estudos por falta de dinhei- e que requer uma combinação de esforços de
ro para comprar absorventes. vários níveis para que se evolua.
A pesquisa We Can’t Wait: A Report on
Sanitation and Hygiene for Women and Girls, rea-
lizada em parceria pela Water Aid e pela Uni-

268
Considerações finais BRK AMBIENTAL. O Saneamento e a Vida
da Mulher Brasileira. 2018. Disponível em:
Se antes de saber que minha inquieta- http://www.tratabrasil.org.br/images/es-
ção se transformaria em um projeto de mes- tudos/itb/pesquisa-mulher/relatorio.pdf.
trado, a pergunta era Por que raramente cha- Acesso em 03.05.2021.
mamos menstruação pelo nome?, hoje, quando
estou parcialmente abastecida com uma série HAWKEY, A. J.; PERZ, J; USSHER, Jane M. “I
de dados e conteúdos teóricos, as perguntas se treat my daughters not like my mother treated
multiplicaram e me impulsionam para dar os me”: migrant and refugee women’s construc-
próximos passo da pesquisa. tions and experiences of menarche and mens-
A menstruação é um tabu para me- truation. The Palgrave Handbook of Critical
ninas da periferia que viveram há pouco a Menstruation Studies. Singapore: Palgrave Ma-
menarca? Que tipo de informação elas têm cmillan; 2020. Disponível em: https://link.sprin-
sobre menstruar? No contexto delas, o estig- ger.com/chapter/10.1007/978-981-15-0614-7_10.
ma da menstruação é um tipo de misoginia? Acesso em 02.05.2021.
Meninas negras e meninas brancas têm expe-
riências muito diferentes? STRÖMQUIST, L. A origem do mundo: uma
Estas questões, e muitas outras, estão história cultural da vagina ou a vulva vs. o pa-
neste momento me acompanhando no iní- triarcado. São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2015.
cio do trabalho de campo239, etapa que estou
começando agora, mirando uma experiência SZULC, A. La niñez mapuche: sentidos de per-
etnográfica imersiva, profunda e afetiva com tenencia en tensión. Buenos Aires: Biblos, 2015.
meninas da periferia de Porto Alegre. Acre-
dito que essa combinação de informações, TARZIBACHI, E. Cosa de mujeres: mens-
trocas e conteúdos é a base para que eu possa truación, género y poder. Buenos Aires: Suda-
refletir criticamente sobre essas perguntas e mericana, 2017.
também pensar novas narrativas sobre os cor-
pos das meninas que menstruam. UN WOMAN. Infograph: End the stigma.
Period. Nova Iorque, 2019. Disponível em: ht-
tps://www.unwomen.org/en/digital-library/
multimedia/2019/10/infographicperiods. Aces-
Referências so em 02.05.2021.

BAHIA, L. Relatório Livre para menstruar: WATER SUPPLY AND SANITATION COL-
pobreza menstrual e a educação de meninas. LABORATIVE COUNCIL; WATER AID;
Girl Up Brasil. São Paulo: 2021. UNILEVER. We Can’t Wait: A Report on Sa-
nitation and Hygiene for Women and Girls. Ge-
BOBEL, C. New Blood: Third-Wave Feminism nebra, 2013. Disponível em: https://washmatters.
and the Politics of Menstruation. New Bruns- wateraid.org/sites/g/files/jkxoof256/files/we%20
wick, Canada: Rutgers University Press, 2010. cant%20wait.pdf

BRAGA, N. Falta de dinheiro impede aces- YOUNG, I. M. On female body experience:


so a absorventes e o governo ignora o pro- “Throwing like a girl” and other essays. New
blema. Disponível em: https://theintercept. York: Oxford University Press, 2005.
com/2020/02/03/falta-dinheiro-menstruacao-
-acesso-absorventes. Acesso em 03.05.2021.

239
O trabalho de campo está sendo realizado virtualmente, devido à pandemia do novo Coronavírus.

269
REPRESENTAÇÕES DE
INFÂNCIAS SAUDÁVEIS EM
REVISTA (1948-1980)

Liana Pereira Borba Resumo: Este artigo busca apontar e


dos Santos240 analisar representações de infâncias observá-
veis em dois periódicos de produção e circu-
Mariana Elena Pinheiro lação brasileira, Vida Infantil (1947-1960) e Pais
dos Santos de Souza241 & Filhos (1968-1989), à luz das concepções de
saúde, higiene e civilização. Trata-se de duas
revistas de periodicidade mensal, cujo públi-
co-alvo diferia: Vida Infantil voltava-se ao pú-
blico infantil, de maneira especial, e Pais &
Filhos, às famílias de modo geral. Vida Infantil
apresentava caráter híbrido, posto suas inten-
cionalidades — divertir, educar e instruir. Tais
intencionalidades podem ser observáveis não
só no subtítulo adotado pela revista em 1948,
como também ao folheá-la. Nela, podia-se
encontrar desde exercícios de cunho escolar,
relativos à Língua Portuguesa, por exemplo, a
Histórias em Quadrinhos, também híbridos,
os quais buscavam divertir ao mesmo tempo
que educavam. Nas diversas colunas que com-
punham Vida Infantil é possível notar discursos
do campo da saúde, da higiene e da civilização
postos em cena. Do mesmo modo, observa-
mos Pais & Filhos, periódico lançado em 1968
pela Bloch Editores S.A., cujo conteúdo tam-
bém abordava aspectos relacionados à saúde,
educação e comportamento das crianças e de
suas respectivas famílias. Nesse contexto, Pais
& Filhos atuou como um espaço de educação
não formal, permeado pela diversidade de
240
Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ.
241
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ.

270
propósitos educativos dispostos em suas pá- são específicos desse recorte histórico (1948-
ginas. No exame da revista, higiene, saúde e 1980), em que se pese a recorrência histórica
civilização são categorias temáticas relevantes, da associação do conceito de higiene às práti-
veiculadas em todas as edições da revista por cas educativas empreendidas por instituições,
meio de artigos, cartas de leitores, suplemen- como a escola e a família, desde o século XIX.
tos destacáveis e propagandas de produtos Gondra (2004) examinou as teses escri-
diversos. A presença de representações que tas e defendidas por médicos da Faculdade de
relacionam a infância à aquisição de hábitos Medicina do Rio de Janeiro, entre 1850 e 1890,
de higiene, saúde e civilidade nas revistas exa- que tinham a infância como foco. Nos textos
minadas, assim como a necessidade de manu- investigados, a higiene foi caracterizada como
tenção desse discurso por meio de impressos o principal ramo da ciência médica e se verifi-
até momentos históricos mais recentes, sugere cou a vigência de uma dupla prática educativa.
a dimensão social e cultural desses princípios. A primeira podia ser observada nos códigos
Os impressos examinados circularam em uma retóricos e científicos aplicados pelos médicos
perspectiva de educação não institucionaliza- para inventar os discursos da profissão em uma
da, tendo como leitores crianças e adultos, e forma canônica, que reproduzia a autoridade
contribuíam para, via leitura, internalizar há- da instituição de formação. A segunda prática
bitos, condutas, valores que foram produtores se aplicava à educação higiênica da população
de regras sobre práticas de saúde e orientações carioca do século XIX, objeto de intervenção
para uma perfeita conduta individual e social. da ciência médica em uma perspectiva física e
Por fim, importa destacar que Chartier (2003), moral, visando combater sua “incivilidade”.
Elias (1993; 1994; 2012), Farias (2013), Gondra De modo semelhante, em sua disser-
(2004), Rosa (2002), Santos (2018) e Souza tação de mestrado, Paiva (2013) discute que,
(2019) compõem parte do arcabouço teórico historicamente, o campo da Higiene se confi-
lançado mão para este estudo. gurava como um dos mais importantes no âm-
bito dos estudos médicos, uma vez que ia ao
Palavras-chave: Infâncias. Periódicos. encontro da perspectiva civilizadora da nação
Educação. ainda vista como atrasada, débil e enferma. Ao
considerarmos as rupturas e as permanências
da História, observa-se que nas décadas com-
preendidas neste estudo, quando da veiculação
Introdução de Vida Infantil e Pais & Filhos, questões sobre
higiene e controle da população por essa via
Este artigo busca apontar e analisar re- ainda estavam postas. A autora faz uso dos
presentações de infâncias observáveis em dois argumentos do médico, higienista e autor do
periódicos de produção e circulação brasileira, livro Noções de Hygiene, Afrânio Peixoto (1879-
Vida Infantil (1947-1960) e Pais & Filhos (1968- 1947), por meio do qual defendia a prevenção,
1989), à luz das concepções de saúde, higiene e não apenas a cura ou o tratamento, de doen-
e civilização. Trata-se de duas revistas de pro- ças características de um país que negligencia-
dução nacional, cujo público-alvo diferia: Vida va o devido conhecimento de como cuidar de
Infantil voltava-se ao público infantil, de ma- seu corpo e da sua saúde física e mental.
neira especial, e Pais & Filhos, às famílias de No que tange aos aspectos que permea-
modo geral. A consulta ao periódico foi reali- vam a dimensão da saúde física e moral dos su-
zada na Fundação Biblioteca Nacional — FBN, jeitos, cabe ressalva que, no período posterior
localizada na cidade do Rio de Janeiro, com à Segunda Guerra Mundial, ocorreu a reinven-
exemplares no formato original. ção de formas de convivência, do sentimento
A justificativa deste estudo se centra de pertença e de distinção social. Não obstan-
na presença recorrente de discursos voltados à te, pautadas nas discussões empreendidas por
saúde pueril e a práticas higiênicas e civilizadas Norbert Elias (1994), verificou-se a incidência
por meio de diferentes dispositivos sociais. Os de um processo civilizatório de modo especial
discursos educativos com vistas à formação de sobre as crianças, com a finalidade de torná-las
sujeitos autônomos e capazes de manter hábi- adultas civilizadas242. Nas palavras do autor,
tos saudáveis e higiênicos ao longo da vida não “só então a dependência social da criança face

242
Na obra O processo civilizador: uma história dos costumes (ELIAS, 1994), o autor afirmou que a civilização inicialmente
foi imposta por elementos de alta categoria social aos seus inferiores ou, no máximo, aos seus socialmente iguais. Só
relativamente mais tarde, quando a classe burguesa, compreendendo um maior número de pares sociais, alcançou o
poder de governo, foi que a família se tornou a principal instituição com a função de instilar o controle de impulsos.

271
aos pais torna-se particularmente importante pueril. Por isso, salienta-se que as representa-
como alavanca para a regulação e moldagem ções observáveis na revista podem não abarcar
socialmente requeridas dos impulsos e das a totalidade de seu público, mas representam
emoções”. (ELIAS, 1994, p. 142) parte expressiva do nicho que se buscava atin-
Também na segunda metade do sécu- gir, o que nos dá indícios, também, da razão da
lo XX, se constatou a produção e a circula- veiculação de seções de caráter híbrido, isto é,
ção de impressos que divulgavam discursos de com vistas à diversão de seu público, mas sem
cunho civilizatório, nos mais variados supor- deixar de educá-los e instrui-los.
tes materiais e dispositivos textuais, visando a O investimento que se fazia em torno
internalização de regras para a construção das do público infantil pode ser explicado pelo
boas maneiras, dos bons modos, em suma, da crescente cuidado e olhar generoso adotado
boa educação, voltados para crianças e para em relação à criança, desde o início do sécu-
as famílias. Tratava-se, em grande medida, de lo XX, em decorrência das mudanças sociais
“dispositivos discursivos e institucionais que emergentes no entresséculos. Tais mudanças
visam a disciplinar o corpo e as práticas e mo- sociais apontavam “para uma modernização
delar os comportamentos e os pensamentos”. da sociedade que, entre outras consequências,
(Chartier, 2003, p. 155) iria conferir posição de maior relevo às crian-
Os periódicos Vida Infantil e Pais & ças”. (ROSA, 2002, p. 46)
Filhos são, então, tomados como objetos de Desde a criação da revista Vida Infantil,
análise por consistirem em impressos que cir- os editores já apresentavam, explícita ou impli-
cularam tanto no âmbito infantil, como entre citamente, o projeto ideológico da revista. Se-
mães e pais leitores, e por contribuírem para gundo Bakhtin (2014), “a palavra é o fenômeno
a internalização de hábitos, condutas, valores ideológico por excelência [, de modo que] (...) a
que foram produtores de regras de saúde e hi- palavra é o modo mais puro e sensível de rela-
giene e orientações de cunho civilizatório. ção social” (p. 36). Assim, a relação estabeleci-
da entre autor-leitor se constituída através do
Revista Vida Infantil: entre par texto-imagem, referenciadas por Chartier
(2011) como os elementos tipológicos, os quais
divertir, educar e instruir a também possuem intencionalidades.
criançada brasileira Uma das evidências do caráter híbri-
do de formação dos pequenos leitores de Vida
Vida Infantil foi uma das publicações Infantil pode ser identificada em uma nota da
a cargo da Sociedade Gráfica Vida Doméstica editora que foi publicada em 2 de janeiro de
Ltda., cuja circulação se deu de 1947 a 1960. 1948, a qual já apresentava o lema da revista: o
A Sociedade Gráfica Vida Doméstica foi fun- de divertir, educar e instruir a petizada consu-
dada em 1920, por Jesus Gonçalves Fidalgo, midora. Nesse sentido, cabe, ainda, focalizar a
no âmbito do Distrito Federal, e era também revista em relação aos conteúdos de veiculação,
responsável por outros dois periódicos: Vida de modo a perceber formas de corroborar ou
Doméstica (1920-1963) e Vida Juvenil (1949- refutar o caráter híbrido do periódico.
1959). Nota-se, assim, o esforço da editora de Desta maneira, nos limites deste es-
segmentar seus públicos e, portanto, de estar tudo, foi selecionada uma História em Qua-
presente na vida de, pelo menos, três grupos drinhos (HQs) de Vida Infantil. Outros ele-
sociais: o infantil, o juvenil e o feminino. Nes- mentos componentes da revista poderiam
se sentido, Hallewell (1985) já apontava para ter sido escolhidos para este estudo, porém
a segregação dos grupos de consumidores por as Histórias em Quadrinhos, no âmbito de
faixa etária, prática recorrente, à época, e que uma revista infantil, se mostraram potentes
podia ser observada pelo número crescente de na compreensão do projeto formador do ma-
revistas e coleções que se dividiam tanto pela terial e de seu hibridismo. O tom de leveza
idade quanto pelo sexo. e graciosidade atribuído às HQs pode ser
Souza (2019) indica que o periódico em compreendido como uma das suas principais
análise seguia um tipo de operação discursiva e potências no processo de formação do leitor;
editorial em relação ao seu público, haja vista soma-se a isso a presença de ilustrações, em
as variadas seções voltadas para o exercício e sua maioria, bem coloridas e divertidas. Ob-
o reforço de conteúdos escolares243, como uma servemos, assim, a seguinte HQ:
maneira de aprimorar a formação do sujeito

Neste sentido, merecem destaque as seguintes seções: “A Matemática sorri para você”, “Sua página de exercícios”,
243

“As crianças precisam saber”, “Álbum escolar”, “Álbum de História do Brasil” e “História do Brasil para crianças”.

272
Figura
Figura 1: 1HQ
| HQ “Porcolino”
“Porcolino”

Fonte:Fonte:
VidaVida Infantil.
Infantil. NºNº3,3,jan/1948,
jan/1948, contracapa.
contracapa.Depositário: FBN FBN
Depositário:

Como se nota ao ler a HQ, as noções de higiene e os modos de se comportar à mesa são
Como se nota ao ler a HQ, as noções interagindo como personagens das histó-
de higiene edeosdestaque
elementos modos denase história,
comportar desdeà mesao título até o conteúdo, rias, emsendo
espaçosreforçado
sociais como pelas
a escola, a
são elementos de destaque na história, desde casa e a rua, propiciaram aos colaborado-
oilustrações.
título até Chama atenção,
o conteúdo, sendoainda, a relação
reforçado apresentada entre os res
pelas personagens. Trata-se
e editores fixar de um e ati-
procedimentos
ilustrações. Chamaematenção,
ambiente familiar, que há aainda,
figura dea relação
uma mãe que tenta educartudes o seusocialmente
filho em aceitos
relaçãoouàcondenados.
sua
apresentada entre os personagens. Trata-se de (ROSA, 2002, p. 122; grifos nossos)
higiene
um e aos seus
ambiente modosem
familiar, – como
que há umaretrato
figura de deuma possível família brasileira consumidora de
uma mãe que tenta educar o seu filho em re-
Vida Infantil: camadas média e alta dos grandes centros urbanos.
O excerto indicado traduz, em certa
lação à sua higiene e aos seus modos — como medida, o modo como se constituiu “Porcoli-
um retrato
Rosade umanos
(2002) possível
ajuda afamília brasileira
compreender esse tipono”, no ano de no
de publicação 1948:
queoconcerne
de destacar aquilo “que
ao espaço
consumidora de Vida Infantil: camadas média e não era [socialmente] tolerado” para, assim,
de formação
alta reservado
dos grandes centrosàsurbanos.
HQs: “fixar procedimentos e atitudes socialmente
Rosa (2002) nosHistórias
ajuda ema compreender
quadrinhos e os contos aceitos ou condenados”.
se constituíram Como
nos canais mais se para
eficazes observa,
a os
esse tipo de publicaçãodifusão
no quedasconcerne
aspiraçõesao es- procedimentos
e expectativas dos editores em sociais
relação àem destaque
infância se referem
brasileira e
paço de formação reservado daquiloàsque
HQs: à higiene
não era tolerado em termos e àações
de suas civilidade noemambiente
e reações face do meiodomésti-
social. Crianças e adultos, agindo eco interagindo como personagens
— ambiente este que deveria das histórias, em
se ocupar do
espaços sociais como
Histórias em quadrinhos e os contos sea escola, a casa e a rua, propiciaram aos colaboradores
processo de educação e formação dos sujeitos e editores
constituíram fixar
nos procedimentos
canais mais eeficazes
atitudes socialmente aceitos“o
vistos como oufuturo
condenados. (ROSA, 2002, p.
da nação”.
122; grifos nossos)
para a difusão das aspirações e expecta- A análise da HQ apresentada permi-
tivas dos editores em relação à infância te observar as possibilidades e as limitações 376
brasileira e daquilo que não era tolerado em protagonizadas pelas HQs no âmbito de uma
termos de suas ações e reações em face do revista infantil híbrida. Observe-se, outrossim,
meio social. Crianças e adultos, agindo e o espaço reservado à HQ, que, além de estar

273
na contracapa da revista, ocupava uma página também da higiene. (Revista Pais & Filhos,
inteira, o que demonstra a relevância atribuída n. 2, out. 1976, p. 24, grifos nossos)
a ela, uma vez que, no que concerne ao mate-
rial da revista, a capa e a contracapa possuíam Na apresentação do artigo “A higiene
papel mais grosso e brilhoso, se comparado ao — saiba os primeiros cuidados”, Edna Maria dos
seu miolo. Além disso, é possível imaginar que, Santos, com consultoria dos pediatras Geraldo
por ser um local de fácil visualização de múlti- Leme e Gabriel Cunha, expôs determinada con-
plos olhares, sejam de crianças ou adultos, os cepção de higiene, como costume que favorece a
editores buscavam, assim, expor suas intencio- “boa saúde”. Nele, a criança é representada como
nalidades de modo mais nítido: a de educar de alguém capaz de se manter limpo e de aparência
todos os modos possíveis, em especial se sob bem cuidada. Inserido no âmbito de um proces-
um aspecto leve, colorido e divertido. so educativo que tinha origem no cuidado higiê-
nico dos pais, desde os “primeiros dias” de vida,
Revista Pais & Filhos: por tal ideário tinha como horizonte de expectativa
a formação de uma criança autônoma e capaz de
uma infância saudável manter tais hábitos ao longo da vida.
com pais informados A dimensão de apropriação da cultura
higiênica foi valorizada como algo importante
A revista Pais & Filhos, lançada em 1968 para a constituição do sujeito no decorrer do
pela Bloch Editores S.A., tem como proposta artigo, no qual se argumentou que esse tipo de
editorial discutir aspectos relacionados à saúde, saber não deveria ser imposto, mas adquirido
à educação e ao comportamento das crianças e de modo inconsciente e processual. A mãe as-
de suas respectivas famílias. Em circulação, Pais sumiria importante papel de mediadora dessas
& Filhos é atualmente produzida pela Editora ações, a partir do exemplo dado em momentos
Manchete, tratando-se de uma das publicações como troca de fraldas e banho, por exemplo.
de maior longevidade do mercado brasileiro. Na edição de maio de 1984, o artigo
No período investigado, que abrangeu “Entre para o batalhão da saúde” mereceu um
edições de 1968 a 1989, Pais & Filhos atuou como olhar específico244, devido ao modo com que
um espaço de educação não formal, permeado abordou a construção dos hábitos alimentares
pela diversidade de propósitos educativos dis- na infância e colaborou para a responsabilização
postos em suas páginas (SANTOS, 2018). No da família no âmbito da educação alimentar.
exame da revista, higiene, saúde e civilização
são categorias temáticas relevantes, veiculadas Talvez tenham sido os próprios pais que
em todas as edições da revista por meio de arti- apresentaram as hortaliças às crianças de
gos, cartas de leitores, suplementos destacáveis forma meio desajeitada. Pois é bem verda-
e propagandas de produtos diversos. de que elas preferem todo tipo de comi-
dinhas às tão bonitas verduras e aos colo-
Cuide, com carinho, da higiene de seu filho. ridos legumes. Mas as hortaliças também
Desde os primeiros dias. Mas cuide tam- podem se tornar atraentes para as crian-
bém para que ele próprio vá adquirindo ças. Se elas fizerem parte da alimentação
o hábito de manter-se limpo, banhando- de toda a família, se os adultos realmente
-se, escovando os dentes, lavando as mãos demonstrarem prazer em comê-las (e não
antes das refeições, penteando-se. Não apenas as empurrarem sobre os peque-
imponha nada. Faça com que assimile os ninos, ‘porque você precisa disso...’), as
novos costumes, progressivamente, en- crianças vão aceitá-las com a naturalidade
tendendo o que é importante e saudável. com que comem o arroz e feijão diários.
Não uma obrigação. A boa saúde depende Elas fazem bem a todo mundo, mas prin-
244
O emprego de termos como “batalhão de saúde” e “cruzada da higiene” são aspectos de permanência do projeto
médico-higiênico efetivado nas primeiras décadas do século XX, que teve a educação como seu principal veículo, a
“arte de dirigir” por excelência. As “cruzadas de higiene” assumiram um caráter regenerador, elegendo as camadas
populares, especificamente as crianças, como alvos privilegiados. Materializaram-se em intervenções e em práticas
disciplinares mais ostensivas, como aquelas empreendidas no ambiente escolar, a saber: a) inspeção individual das
crianças pelo professor; b) inspeção do espaço escolar pelo grupo de crianças que formavam os “pelotões de saúde”,
associações legalmente formadas e respaldadas pela legislação escolar (Decreto n. 3.735, de 17 de dezembro de 1946),
que auxiliavam na manutenção da higiene dentro das escolas; c) vigilância do professor sobre a conduta cotidiana
das crianças; d) registro dos índices de desenvolvimento físico, como peso e força; inquérito acerca da vida domésti-
ca da criança na família. O âmbito doméstico, por sua vez, era alvo de prescrições mais sutis, apresentadas em forma
de aconselhamento. Verificar, a esse respeito, estudos de Cunha (2013) e Rocha (2003).

274
cipalmente às crianças e, além disso, são Discursos como o expresso na matéria
muito mais gostosas. Quem ainda não des- anteriormente analisada colocavam a família
cobriu que descubra. (REVISTA PAIS & como responsável por uma série de problemas
FILHOS, n. 9, maio 1984, p. 77) sociais, como a alimentação inadequada das
crianças, por exemplo. Nota-se a valorização
Assinado por Elaine Sondermann, do trabalho de especialistas como nutricionis-
com consultoria de Maria Helena de Lacerda tas, pediatras e profissionais afins como chave
Nogueira, professora de nutrição Materno-In- para a educação e a reabilitação familiar.
fantil da Universidade Federal Fluminense, e A situação verificada no contexto de
Flávio Zanatta, especialista em alimentação circulação de Pais & Filhos tem fundamento his-
natural, o artigo indicava que as crianças não tórico, já que esta dependência para com agen-
costumariam apreciar verduras e legumes. A tes educativo-terapêuticos não é estranha à his-
despeito dessa representação, os pais foram tória da família burguesa, tida como termo que
culpabilizados pela “forma desajeitada” pela sintetiza a ideia da família nuclear e conjugal,
qual apresentavam os alimentos e foram orien- higienicamente tratada e regulada (COSTA,
tados a servir de exemplos aos filhos, incluindo 2004, p. 13). Segundo Jurandir Freire Costa, a
tais produtos no repertório da família e de- partir da terceira década do século XIX, a famí-
monstrando prazer em consumi-los. lia começou a ser mais incisivamente definida
O texto abordou a importância da ali- como incapaz de proteger a vida de crianças e
mentação saudável, especialmente no caso das adultos. Nesse contexto, sobressaiu a higiene,
crianças moradoras das áreas urbanas. Estas que teve importante papel de divulgação de
foram caracterizadas pelo gosto de comer “bife uma educação física, moral, intelectual e sexual,
com batata frita”, devido à proximidade de lan- inspirada nos preceitos sanitários da época.
chonetes. Nessa linha argumentativa, marcou-se No exame de edições veiculadas nos
o caráter explicativo dos benefícios do consumo anos de 1960 a 1980, verificou-se a articulação
de verduras e hortaliças para a saúde, especial- da revista ao contexto de mudanças sociais ex-
mente no caso do desenvolvimento infantil: perimentadas nas famílias do Brasil. No âmbito
das famílias de classes médias e altas, principal
Para as crianças, as hortaliças são vitais, público leitor almejado pela equipe de Pais &
pois são ricas em minerais, indispensá- Filhos, mais do que nunca os filhos ocupavam o
veis ao bom desenvolvimento e cresci- centro da família, sendo objeto de investimen-
mento infantil. O cálcio, que é um dos tos econômicos, educativos e, especialmente,
minerais, é imprescindível aos ossos e afetivos. A representação de infância criança re-
dentes das crianças, em fase de desen- mete, pois, à esperança de um adulto civilizado.
volvimento; o ferro, outro mineral, pre- As ações que colaboram para a cons-
vine contra a anemia e é bom para o san- trução práticas de regulação e uniformização
gue. As hortaliças verde-escuro, como a dos sujeitos podem ser verificadas no contexto
acelga, espinafre, bertalha, brócolis, são organização do espaço doméstico, na medida
ricas em cálcio, sódio, potássio e ferro. em que o movimento civilizatório sobre a fa-
Fora as vitaminas, como a e C, que estão mília tornou público modos de vida e hábitos
presentes em boas quantidades. Só para até então circunscritos à esfera privada. Visan-
citar as mais importantes. (REVISTA do à implantação de práticas sadias de cuida-
PAIS & FILHOS, n. 9, maio 1984, p. 78) do e educação das crianças, a organização mais
interna da família foi alvo do escrutínio cien-
Em seguida, a redatora também alertou tífico, como exemplificado pelos discursos a
para a necessidade da devida higienização dos respeito do momento de dormir.
alimentos e para o perigo do uso dos agrotóxi-
cos, incentivando o cuidado com a procedência O que fazer com este visitante noturno? É
dos produtos. Nesse contexto, a matéria infor- difícil dizer não àquele pequenino que se
mou a criação da Associação dos Engenheiros encontra ao lado da cama, quase imploran-
Agrônomos do Rio de Janeiro, instituição que do para ser aceito lá. Sem dúvida, permitir
teria divulgado na imprensa uma série de de- é o caminho mais fácil, embora não seja
núncias a respeito do uso de agrotóxicos em uma boa solução. Trata-se de um hábito
produtos como cenoura e tomate, que deveriam perigoso e que deve ser evitado. Afinal, há
ser evitados. Verifica-se, assim, a articulação de muitas outras formas de afastar a sensação
saberes do campo da Nutrição, da Higiene, da de solidão e o medo que ataca a criança no
Pediatria e da Agronomia em torno da família, meio da noite. E ela deve entender que seu
por meio do foco na alimentação e na saúde. lugar está reservado no coração dos pais,

275
mas não em sua cama. (REVISTA PAIS & educativa incidia principalmente na exposição
FILHOS, n. 2, out. 1987, p. 16) de estratégias para solucionar as situações nar-
radas, como foi o caso do medo noturno.
O trecho da matéria “Dormir na cama Ao invés de levar o filho para a cama
dos pais”, assinada por Cristina Dória e com do casal, recomendava-se aos pais que deixas-
consultoria da psicóloga clínica Márcia Spada, sem uma luz acesa no quarto da criança e, em
desde o início recrimina a prática familiar de último caso, caberia o “sacrifício” de levantar-
as crianças dormirem na mesma cama dos pais, -se para acalentá-la. Além disso, a questão do
caracterizando-a como “hábito perigoso que espaço para o “cantinho” da criança foi apon-
deve ser evitado”. Por outro lado, o acionamen- tada no texto, sugerindo-se a improvisação de
to da consultoria especializada em Psicologia uma divisória para separar a criança dos pais
revela o interesse da revista em orientar os pais naquelas famílias em que não havia condições
a respeito dos fundamentos psicológicos do financeiras de oferecer um quarto próprio.
comportamento demonstrado pela criança que Tal constatação reforça o caráter de
se recusa a dormir na própria cama. individualização tão marcante na sociedade
Na sequência da matéria, divulgou-se civilizada e a dimensão econômica que exercia
determinado papel a ser desempenhado pelos influência nessas práticas culturais. Sendo as-
adultos, considerando a importância da relação sim, a despeito do interesse da publicação em
afetiva, associada à imposição de limites sociais: associar a explicação psicológica a uma pers-
pectiva mais verdadeira ou naturalizada pos-
Além de se relacionar afetivamente com sível, fez-se necessário considerar os aspectos
as crianças, o papel dos pais é mostrar o históricos, sociais e culturais dessa questão.
mundo para elas. Até a fase pré-escolar, a O discurso que valoriza uma indepen-
realidade familiar é vivida como o único dência da criança capaz de dormir sozinha em
mundo existente. À medida que o peque- seu quarto é fruto de um processo civilizatório de
no vai se desenvolvendo, no entanto, irá longo prazo. No âmbito das relações pais-filhos,
enfrentando novas maneiras de viver, e, Norbert Elias (2012) demonstrou que na socie-
a partir do que lhe foi ensinado e até im- dade medieval, por exemplo, as crianças perten-
posto como regras, poderá discernir o me- ciam ao mundo cotidiano dos adultos e, por isso,
lhor para si mesmo. Antes dessa fase mais frequentemente dormiam na cama paternal.
madura, no entanto, cabe aos pais traçar Nesses termos, a recorrência do dis-
o caminho, impor limites, dizer não. Tam- curso em prol da individualização da infância
bém uma forma de mostrar carinho. As- remete à apropriação de uma cultura civilizada
sim, eles precisam saber, primeiro, como e burguesa. Esta frequentemente desconsidera
funcionam as coisas dentro de sua casa: as condições econômicas das famílias e valoriza
que cada um tem seu quarto, sua cama, seu um modelo de organização doméstico-familiar
espaço. Igual a comer e estudar, dormir em detrimento de outros arranjos familiares e
também tem sua hora e suas regras. Aos de formas diversas de ser criança. A ideia de
pouquinhos, vai sendo introduzido o prin- ser livre e independente em um espaço indivi-
cípio da realidade, onde nem tudo é per- dualizado não é natural, e sim construído no
mitido. O que se aprende com isso? Que âmbito de determinada cultura e propagada
até o prazer tem seus limites. (REVISTA por veículos educativos como Pais & Filhos.
PAIS & FILHOS, n. 2, out. 1987, p. 17)
Considerações finais
De acordo com o texto, o papel a ser
desempenhado pelos pais na educação das A presença de representações que re-
crianças deveria ser permeado por uma clara di- lacionam a infância à aquisição de hábitos de
mensão civilizatória de impor limites e mostrar higiene, saúde e civilidade nas revistas exami-
“como as coisas funcionam” no mundo. Chama a nadas, assim como a necessidade de manuten-
atenção a concepção de desenvolvimento infan- ção desse discurso por meio de impressos até
til marcado por um sentido progressivo e asso- momentos históricos mais recentes, sugere a
ciado à inserção escolar e à incorporação de um dimensão social e cultural desses princípios.
modelo de família cuja casa é caracterizada pela Os impressos examinados circularam em uma
individualização dos espaços. perspectiva de educação não institucionaliza-
Como de praxe na publicação, não da, tendo como leitores crianças e adultos, e
bastava apenas apontar o problema vivido pe- contribuíam para, via leitura, internalizar há-
las famílias, como era o caso de crianças que bitos, condutas, valores que foram produtores
queriam dormir na cama dos pais. Sua função de regras sobre práticas de saúde e orientações

276
para uma perfeita conduta individual e social.
A partir do estudo em pauta, foi pos- GONDRA, J. G. Artes de Civilizar. Medicina,
sível observar permanências em relação às no- Higiene e Educação Escolar na Corte Imperial.
ções de higiene, saúde e civilidade no âmbito Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004.
de duas revistas nacionais, ainda que sob mo-
dos de formação diferentes. Por um lado, lan- HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil:
çou-se mão de um material voltado ao públi- sua história. São Paulo: Edusp, 1985.
co infantil, observando a composição de uma
História em Quadrinho presente na revista e PAIVA, T. F. Noções para persuadir e educar:
seu potencial educativo e divertido. Por ou- os discursos médico-higiênicos na formação e
tro lado, observou-se formas de colocar luz à ofício do professorado primário (1914-1928).
necessidade de formação das crianças sob o Dissertação (Mestrado em Educação), Univer-
cunho da higiene e da civilidade, tendo como sidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Ja-
público-alvo os adultos, vistos como os sujei- neiro, 2013.
tos sociais, em potencial, responsáveis pela boa
formação das crianças brasileiras. REVISTA PAIS & FILHOS. Rio de Janeiro:
Bloch Editores, n. 2, out. 1976.

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______. O processo civilizador: Uma História jan, 1948.
dos Costumes. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zah-
ar Ed., 1994.

277
POLÍTICA, CONTROLE E
FILANTROPIA: O INSTITUTO
DE ASSISTÊNCIA À INFÂNCIA
NO MARANHÃO (1911-1939)

Rosyane de Moraes Resumo: A pesquisa propõe investi-


Martins Dutra245 gar as políticas para a infância pobre no Ma-
ranhão, no início do regime republicano, o
Celia Maria Benedicto Giglio246 qual ecoava pelo país os anseios nacionalistas
de proteção e amparo das crianças. A filantro-
pia e os discursos higienistas demarcaram esse
tempo de implantação de instituições assisten-
ciais nos estados que, pautados na experiência
do Rio de Janeiro em 1901, reproduzem o Ins-
tituto de Assistência à Infância, partindo dos
ideais propostos pelo Dr. Moncorvo Filho. Sob
os ideais da regeneração de crianças pobres e
desvalidas, o Instituto criado no Maranhão no
dia 07 de setembro de 1911, mobilizava políti-
cos, médicos e educadores para a manutenção
desse espaço de afirmação do Estado, agora
moderno: controlar e moldar os futuros cida-
dãos. A partir da análise documental de leis
e decretos, jornais e relatórios do Instituto,
objetiva-se compreender as práticas governa-
mentais e da elite local para consolidarem os
anseios republicanos e construírem espaços
de governo das pessoas que estão fora dos pa-
drões nacionalistas. Nos estudos de Gondra e
Schueler (2008), Rizzini (1993) e Lima (1951),
encontram-se as análises sobre as sociedades,
o poder, a educação das crianças por meio da
institucionalização e a assistência científica,
na fala de seus representantes. O Maranhão,
que transplantava as iniciativas da Capital da
245
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Maranhãe — UFMA.
246
Doutora em Educação formada pela Universidade de São Paulo — USP.

278
República, consegue por meio de decreto es- como um Estado dominado pela presença de
tadual, a concessão para o funcionamento do filantropos, médicos e aristocratas, construía
Instituto de Assistência do Maranhão. Com os uma história a partir dos discursos e práticas
resultados dessas análises, pretende-se ampliar implementadas pela elite local representada
os estudos sobre políticas assistenciais para as por intelectuais como o conhecido Fran Paxeco
crianças pobres maranhenses, evidenciando os (1874-1952), embaixador português que morava
propósitos filantrópicos de higiene e educação no Maranhão e que se envolveu com a proposta
infantil durante a Primeira república. assistencialista por notoriedade e lucratividade.
O modelo de assistência científica esta-
Palavras-chave: Política. Infância. Ma- va pautado na experiência da Capital republica-
ranhão. República. na, Rio de Janeiro, que em 1901 instala o Institu-
to de Assistência à Infância sob a coordenação
do Dr. Artur Moncorvo Filho e visava atender
crianças pobres, gestantes e amas de leite com
Introdução serviços de saúde e moralização das crianças.

Os estudos sobre a história da infân- O Maranhão republicano e os


cia no Brasil, revelam a forma de atuação do ecos da assistência científica
Estado sobre o controle das crianças: políticas
assistenciais, principalmente aos deserdados
da sorte. Com a presença da iniciativa privada A unidade federada maranhense, que
e seus representantes de áreas tais como medi- só após 3 dias da Proclamação da República se
cina e jurídica, a existência de manobras dos congregou à República do Brasil, encontrava-
governos para intervir nessas iniciativas são -se “abalada no mais fundo dos seus alicerces”,
evidenciadas nas fontes para parcela nos lu- com o fim da escravização (MEIRELES, 2015,
cros. Sob o discurso de uma nação em desen- p. 355). O comércio do algodão, arroz e cana-
volvimento, as políticas públicas se tornavam -de-açúcar foram impactados com a retirada
mecanismos de dominação dos sujeitos e de da mão de obra escravizada, que sustentava o
seus futuros, pela institucionalização. poderio da aristocracia política desde a inva-
No Maranhão, desde o Império, essas são dos estrangeiros às terras maranhenses. O
articulações públicas e institucionais eram panorama econômico de decadência somou-se
propostas como assistência e proteção da infân- ao quadro de crise política, entre os Partidos
cia pobre. Acompanhados dos discursos de re- Conservador e o Liberal, agora chamados de
generação social, a fundação e manutenção de Republicano e Federalista, que não concorda-
espaços para recolhimento, higiene e educação vam com a nova forma de governo, mas que
das crianças eram práticas fundamentais para deveriam reorganizar o Maranhão, conforme
a sociedade que se autoproclamava moderna legislação provisória republicana. Entre emba-
e civilizada. As instituições de educação, de tes e formação de juntas administrativas para
saúde e de segurança social em seu conjunto, o governo da novo Estado da federação, o Ma-
desenvolveram discursos que garantiram legi- ranhão enfim, respira os anseios de uma repú-
timidade às práticas de sequestro e controle blica, onde “os homens lutavam apenas pelas
de parcela da população em uma sociedade posições de mando. E assim seria, via de regra,
que queria se ver livre dos incômodos vin- no futuro”. (MEIRELES, 2015, p. 360)
dos da periferia das cidades e da zona rural Nessa conjuntura, entre as primeiras
do Estado. Institutos, casas, orfanatos e reco- iniciativas sobre a reorganização administra-
lhimentos foram sendo criados e o Estado via tiva e o crescimento industrial estava a cha-
um território promissor se erguendo sobre a mada assistência pública, vista aqui como um
unidade federativa e estas instituições se tor- conjunto de políticas públicas criadas pelos
naram espaços potencializadores da desigual- governos republicanos para a institucionaliza-
dade social. (GONDRA; SCHUELER, 2008) ção da ordem social e da vida dos maranhen-
Assim, esta pesquisa se deteve na in- ses tendo na educação mecanismo viabiliza-
vestigação de uma das instituições de caráter dor da ordem urbana. Assim, a fundação de
filantrópico, fundada no Maranhão, no início espaços de disciplinamento das condutas e de
da República, denominada Instituto de Assistên- formação profissionalizante foram iniciativas
cia à Infância no Maranhão (1911-1939), que sob emergenciais tomadas pelos representantes
os ideais republicanos projetava tomar parte da política local que influenciavam os gover-
do progresso da nação, resultado de uma po- nos e emanavam os ecos da modernidade e da
lítica higienista e civilizatória. O Maranhão, civilização vindos da Capital.

279
A defesa da filantropia como coadju- ser afirmado como modelo educativo ideal: as
vante na sistematização das políticas assistên- classes de idade, tidas como fundamento para
cias brasileiras influenciara as iniciativas nos uma homogeneidade pretendida”. (GONDRA;
estados federados, que com discursos científi- SCHUELER, 2008, p. 110)
cos e higienistas, implantavam práticas confor- Devido ao surgimento de grandes epi-
madoras dos corpos, considerados pelos médi- demias, era necessário ter preocupação com a
cos e filantropos, como incapazes, doentes e saúde, fundamentada no campo da higiene que
incivilizados. Crianças, mulheres, negros, po- buscava melhorar nas condições insalubres de
bres, estavam sempre nas listas dos alienados, vida da população. As práticas de filantropia
enjeitados e indisciplinados para os aclama- constituíram-se um dos campos mais impor-
dos mensageiros do progresso. Na fala de Olavo tantes da medicina social, marcando o apareci-
Correia Lima (1954), médico maranhense, em mento da preocupação sanitária no meio urba-
artigo da revista do Instituto Histórico e Geo- no, cuja finalidade era detectar os problemas,
gráfico do Maranhão, percebem-se construções elaborar propostas de intervenção. As crian-
discursivas que acenam para o uso da medicina ças, principalmente, que nasciam pobres e no
como dispositivo diferenciador das culturas: contexto de periferia e vulnerabilidade, eram
“Realmente somos nação jovem, vitalizada por incluídas em cadastros de programas ditos so-
miscigenação imprevista, a adaptar-se em meio ciais, mas que visavam a sujeição dos pequenos
desconhecido”. (LIMA, 1951, p. 90) corpos moribundos a dispositivos de controle
O Maranhão copiara as tendências po- governamental. (FOUCAULT, 2015)
líticas e institucionais da Capital para o con- A iniciativa privada pela associação
trole social a fim de garantir a manutenção da multiprofissional garantia o surgimento dessas
ordem e da nacionalização. Medidas presentes ações assistencialistas, que eram políticas de
nas leis e decretos criados na Primeira Repu- normatização do biológico, ou seja, a conten-
blica, apontavam, por exemplo, a instrução pú- ção dos desvios físicos e morais, vistos como
blica como política importante para o processo “naturais” de classe ou “sujeira” estética (RI-
de modernização do Estado do Maranhão. ZZINI, 1993, p. 20). Ações como a criação de
maternidades, de institutos de assistência, de
Ficam creadas uma escola para o sexo jardins de infância, creches, ambulatórios e
masculino na villa de Cajapio; outra mixta hospitais infantis foram determinantes para a
em S. Bento de Bacurituba, daquelle mu- inserção da sociedade nos discursos higienistas
nicipio; outra para o sexo masculino no de cuidado e proteção das crianças e suas mães.
povoado Axixá, municipio de Icatu: outra
mixta em Olinda, no districto do muni- A preocupação com a infância nos meios
cipio de S. Vicente Ferrer; outra mixta médico e jurídico do início do século
no logar Boqueirao, municipio de Burity; (XX) está intimamente relacionada ao
outra mixta no logar Itaipú, municipio do projeto de normalização da sociedade,
Rosario e outra para o sexo masculino na defendido por representantes das elites
sede do municipio de Morros [sic]. (COL- intelectuais, econômicas e por autorida-
LEÇÃO DAS LEIS E RESOLUÇÃO DO des do país. O que se pretendia era elimi-
CONGRESSO, DECRETOS E DECI- nar as desordens de cunho social, físico e
SÕES DO ESTADO DO MARANHÃO moral, principalmente, nos centros urba-
— LEI Nº 570, 1911, p. 18) nos. (RIZZINI, 1993, p. 19)

Pelo uso das formas educativas, que es- Nas páginas de jornais, como A Paco-
tavam representadas em espaços como asilos, tilha, encontravam-se artigos de médicos ou
internatos, reformatórios, casas, escolas, insti- sócios das instituições que demarcavam o pa-
tutos, recolhimentos, etc, buscava-se controlar pel da assistência científica aclamada no Mara-
a população em crescimento com regras, regu- nhão República. Os comentários nesses veícu-
lamentos, vigílias e programas educacionais. los de comunicação, assim como os periódicos,
A infância e a juventude como focos dessas eram importantes para a divulgação de resulta-
organizações institucionais precisavam estar dos e das ações realizadas para a infância des-
sob vigilância para que a sociedade mantivesse valida. “A estatística demógrafo-sanitaria de S.
o equilíbrio de uma nação republicana. Desse Luiz, em que se acuza uma compujente morti-
modo, ancorado no saber médico-higiênico, -natalidade, obrigará todas as pessoas bondo-
“encena-se a produção de uma instituição na zas, e até as indiferentes, a colaborar na mais
qual a promiscuidade das idades deveria ser que benemerita e prometedora tentativa. [sic]”
evitada, configurando os contornos do que vai (JORNAL A PACOTILHA, 1911, p. 03). Nesse

280
âmbito, investigar-se-á uma instituição deno- não ensinado na escola, poderá o Direc-
minada Instituto de Assistência à Infância no tor do Internato, mediante approvação.
Maranhão, que a partir da presença dos filan- Governador confiar o alumnno, que o
tropos por essas terras, materializava uma des- quiser e puder, a uma officina particular
sas políticas de assistência às crianças pobres. conceituada, onde seja elle ministrado.
Art. 3. Revogam-se as disposições em
O Instituto de Assistência contrario. Mando, portanto, a, todas as
auctoridades, a quem o conhecimento e
à Infância no Maranhão: execução da presente e pertencerem, que
uma política para a a cumpram e façam cumprir tão inteira-
regenereção das crianças mente como nella se contém.
O Director da Secretaria do Governo a
faça imprimir, publicar e correr.
O Instituto de Assistência à Infância, Palacio do Governo do Estado do Mara-
inicialmente, chamado de Internato de Edu- nhão, em 27 de Abril de 1911, 2° Republica.
candos Artífices, foi sediado na capital mara- Luiz A. Domingues da Silva.
nhense, São Luís, seguindo o exemplo do Rio Publicada na Secretaria do Governo do Es-
de Janeiro e outros Estados, que tiveram na tado do Maranhão, em 27 de Abril de 1911
iniciativa da elite o impulso para a instalação O Directòr, Thomaz da Silva Maya.
dessas instituições. O Internato com sede de- Juvilinno de Sonza Barreto a fez. (COL-
finitiva em 7 de setembro de 1911, é proposto LEÇÃO DAS LEIS E RESOLUÇÃO DO
por médicos, intelectuais e damas da elite, CONGRESSO, DECRETOS E DECI-
que responsabilizavam a sociedade pela causa SÕES DO ESTADO DO MARANHÃO
da infância desvalida, mas para manutenção — LEI Nº 585, 1911, p. 35)
da ordem da sociedade ludovicense. O pré-
dio doado pelo presidente Luís Domingues, Conforme estatuto e relatórios da ins-
Governador do Maranhão, sensibilizado pelo tituição, a influência do modelo filantrópico
discurso de Floripes de Carvalho, uma menina do Rio de Janeiro fora imprescindível para a
que anunciava “o suplício das criancinhas”, ini- organização desses espaços no estado do Ma-
cialmente serviria de escola profissionalizante, ranhão, que fomentou práticas sanitaristas e
conforme Lei nº 585, de 22 de abril de 1911. Po- organização dos representantes da corrente hi-
rém, logo após, em reunião na sede do Jornal gienista brasileira. A inauguração em 1901 do
Pacotilha, no dia 10 de agosto, os representan- Instituto de Assistência à infância do Rio de
tes desse movimento, tornaram-no Instituto Janeiro que atendia crianças pobres até a idade
de Assistência, com oferta de serviços de saúde dos 14 anos, incluindo mães gestantes e as amas
e educação. (LIMA, 1951, p. 93) de leite, fomentou a implantação da chamada
Medicina Social. Essa constituição normativa
LEI N. 585 — DE 22 DE ABRIL DE 1911. “propõe medidas específicas a fim de preservar
Auctoriza o Governo a crear na Capital a saúde da população, não só visando ao bem-
um Internato de Educandos Artífices. O -estar dos indivíduos, mas à prosperidade e a
Doutor Luiz Antonio Domingues da Sil- segurança do Estado.” (RIZZINI, 1993, p.23).
va, Governador do Estado do Maranhão. A criação de Diretorias e Departamentos na
Paço saber a todos os seus habitantes Capital Federal, que ordenavam as políticas
que o Congresso decretou e eu sanccio- de saúde pública e instrução no novo regime
nei a lei seguinte: republicano, institucionalizavam as ideias pro-
Art. 1. Fica o Governo auctorizado a pagadas pelos filantropos, com discursividades
crear, iVesta Apitai, um Internato de marcadas pelo medo e insegurança do aumento
Educandos Artífices, onde serão recolhi- populacional e consequentemente, dos desvios
dos os menores desvalidos, especialmente morais. Regenerar a infância era emergencial.
do interior e do Estado, que se destina-
rem ao aprendizado profissional, abrin- A hijiene é a baze fundamental da vida.
do, pata isso, os créditos necessários. A ciencia medica hodierna, nos seus ensi-
Art. 2. O ensino profissional, bem como namentos múltiplos, vivendo de par com
o de portuguez primário e de desenho, se- a hijiene, tem assentado suas bazes sobre
rão ministrados áos educandos pela Esco- as profilaxias defensiva e repulsiva, dela
la de Aprendizes Artífices mantida pelo não podendo prescindir, nem viver por
Governo Federal. que sua queda inevitável [sic]. (JORNAL
£ § Unico. Quando se tratar de officio A PACOTILHA, 1912)

281
ções e higiene, indispensáveis à criação e
Em reunião no dia 10 de agosto de 1911, educação das crianças pobres;
na sede do Jornal A Pacotilha, eram acordados c) Fazer, sobretudo, chegarem ao conhe-
o funcionamento do instituto sob a direção do cimento das mães às medidas higiênicas
Dr. Cesário Arruda, criador da instituição para que devem ser rigorosamente observadas
a infância desvalida maranhense. Com ele, algu- no regime alimentar infantil;
mas damas da sociedade, médicos e políticos lo- d) Premiar as crianças pobres que apre-
cais, que em 20 de agosto de 1911, tiveram lugar sentarem maior grau de robustez física;
de fala no Congresso Legislativo do Estado, em e) Vacinar e revacinar todas as crianças e
sessão solene, para fundação do Instituto. A di- mães que gozarem de seus benefícios;
retoria foi entregue ao Cal. Frederico Filgueiras, f) Livrar, na medida de suas forças, da
tendo instalado as ações no dia 7 de setembro, mendicidade, dos vícios e do crime, a in-
do mesmo ano (LIMA, 1951). Logo após, Cesá- fância abandonada;
rio Arruda cria a Associação das Damas de As- g) Auxiliar a inspeção médica das escolas
sistência à Infância para “auxiliar a diretoria do públicas e particulares;
instituto, na humanitária tarefa de proteção às h) Trabalhar para que sejam criadas, nas
crianças pobres” (LIMA, 1951, p. 106). O que é escolas e nos estabelecimentos públicos
nítido nas sociedades que utilizam esses dispo- de assistência a infância, classes especiais
sitivos de controle social é a disputa entre as destinadas a melhorar as condições men-
famílias dos aristocratas da região em assumi- tais dos retardados de espírito;
rem cargos e postos que lhes dessem status, e i) Animar e auxiliar a fundação de insti-
que lhes garantissem um lugar de destaque. tuições congêneres, dentro e fora do Es-
Além das senhoras da elite, alguns ho- tado; j) Criar e manter, no futuro, outros
mens prestigiados socialmente por sua atuação serviços clínicos (gota de leite creche, jar-
política no Estado estiveram a frente do Insti- dim de infância, etc.);
tuto, como o cônsul Fran Paxeco, que foi um l) Trabalhar finalmente em prol de todas
intelectual que assumiu por anos a divulgação as ideias oficiais e particulares que tenham
dos princípios da filantropia e dos serviços do por fim o bem estar da humanidade. (RE-
Instituto no Jornal A Pacotilha, escrevendo LATÓRIO DO INSTITUTO DE ASSIS-
uma coluna semanal sobre as crianças pobres TÊNCIA À INFÃNCIA, 1911, 1912)
atendidas nesse espaço. Enquanto presiden-
te do conselho administrativo, Fran Paxeco Conforme Meireles (1994, p. 241), “o
redigia relatórios para os sócios do Instituto, Instituto distribuiria suas atividades por um
doadores de grandes quantias de dinheiro para dispensário, uma creche, um gabinete den-
o funcionamento da instituição. “Sem ele, ser- tário, uma farmácia, uma maternidade, dita
-nos-ia bem difícil prosseguir a marcha, não Benedito Leite, e um hospital, a que se deu
obstante o poderoso amparo dos governos o nome de Moncorvo Filho”. A expansão dos
federal, estadual e municipal, cujos subsídios serviços em espaços diversificados garantia o
muitíssimo teem concorrido, também, para acesso e a permanência das crianças na ins-
valer a indescritíveis misérias, enxugando inú- tituição, pois era necessário ter a garantia
meras lagrimas [sic]”. (RELATÓRIO DO INS- de atendimentos para que as doações fossem
TITUTO DE ASSISTÊNCIA À INFÂNCIA depositadas e para consolidação do projeto
DO MARANHÃO, 1917, p. 01) higienista na capital. A filantropia “de elite”
O Instituto de Assistência à Infância no pretendia, assim, “preparar o homem higiêni-
Maranhão, que incluía, conforme registros dos co (capaz de viver bem nas grandes cidades,
relatórios, o cuidado e proteção da Infância po- em boa forma e com boa saúde) formar o bom
bre, com oferta dos serviços, alguns voluntários, trabalhador, estruturar o cidadão normatiza-
de médicos, dentistas, enfermeiros e educadores, do e disciplinado”. (MARCÍLIO, 2006, p. 207)
estabelecia objetivos para seu funcionamento: O Dispensário247, ou Ambulatório In-
fantil, atendia crianças até 14 anos com consul-
a) Dar consultas e fornecer gratuitamen- tas, injeções, curativos, ortopedias, atestados e
te, de acordo com as suas condições fi- cirurgias. Era um serviço que aumentava o nú-
nanceiras, medicamentos e até mesmo mero de crianças matriculadas no Instituto, por
roupas à infância desamparada; atender as emergências da saúde infantil, como
b) Difundir noções, preceitos e instru- moléstias comuns de cidades tropicais, como
247
Muitos médicos, que fundaram a instituição, participaram desse serviço voluntariamente. Porém, os lucros com
as doações eram divididos entre eles, a posteriori.

282
diarreia e vomito. “Desde que o Instituto se A presença restrita do Estado neste pro-
instalou, a 7 de setembro de 1911, (...) deram-se jeto denota a característica do tempo
13.199 consultas, fazendo-se 262 curativos, 123 in- onde a responsabilidade não era assu-
jeções hipodérmicas, 234 vacinações, 134 visitas mida de forma oficial. Cabia ao governo
domiciliárias e 121 incisões de abcéssos”. (RELA- demarcar subsídios para as políticas de
TÓRIO DO INSTITUTO DE ASSISTÊNCIA caridade e filantropia financiando ações
À INFÂNCIA DO MARANHÃO, 1917, p. 06) de cunho privado. A entrada do Estado
A Creche, que funcionou logo após a de forma direta dar-se-á mais fortemen-
inauguração do Instituto, recebia poucas crian- te a partir da década de 1930 quando que
ças, pois as mães, ainda deixavam-nas com vi- há uma penetração maciça das questões
zinhos ou parentes, por não terem como pa- sócio-assistenciais na plataforma oficial.
gar a diária de mil réis, requerida na matrícula (MARCÍLIO, 2006, p. 53)
(RELATÓRIO DO INSTITUTO DE ASSIS-
TÊNCIA À INFÂNCIA DO MARANHÃO, Com o tempo, os recursos financei-
1917). A diretoria chegou a pensar em torná-la ros vão sendo subsidiados pelos diversos
escola, mas havia um índice alto de desistência donativos oferecidos e organizados para o
nas matrículas. Em 1917, Fran Paxeco, então di- funcionamento do Instituto. “Presentes,
retor do Conselho Administrativo, reclamara sêlos caritativos, festivais, loterias federais,
na escrita do relatório sobre as desistências na impôsto de caridade federal, contribuição
Creche: “Ainda não compreenderam as altas de sócios, (...), renda de pensionistas partu-
vantagens dessa seção no Instituto.” (LIMA, rientes, da creche, da Escola de Enfermagem
1951, p. 113). O Gabinete Odontológico é fun- [sic]”. (LIMA, 1951, p. 114)
dado junto com a Creche, tendo o dentista Ao financiamento, incluem-se, as
Porciuncula de Morais como devoto do serviço contribuições que vinham do União, do Esta-
por anos. Depois de sua saída, o serviço apre- do e do Município, que impulsionaram o de-
sentou dificuldades, e em 1923, fechou. senvolvimento dos serviços no Instituto. “(...)
Com relação ao Hospital Moncorvo ser-nos-ia bem difícil prosseguir a marcha,
Filho, fundado em julho de 1913, o nível de não obstante o poderoso amparo dos gover-
mortalidade infantil era muito alto devido a nos federal, estadual e municipal, cujos sub-
gravidade com as quais as crianças chegavam sídios muitíssimo teem concorrido, também,
para internação. “O hospital poderia ser muito para valer as indescritíveis misérias, enxugan-
mais útil, se a população se compenetrasse de do inúmeras lágrimas”. (RELATÓRIO DO
que deve empenhar-se em garantir a saúde às INSTITUTO DE ASSISTÊNCIA À INFÂN-
crianças, por todos os meios legítimos.” (RE- CIA DO MARANHÃO, 1917, p. 05)
LATÓRIO DO INSTITUTO DE ASSISTÊN- A partir dos anos 1920, as contribui-
CIA À INFÂNCIA DO MARANHÃO, 1917, ções financeiras do Estado vão sendo retira-
p. 06). As crianças que precisavam de interna- das aos poucos, como em toda inciativa or-
ção, deveriam pagar diárias de três mil réis, o ganizada para atendimento da infância no
que motivava para a maioria das famílias a ne- Maranhão. Essa saída, compromete o funcio-
gligência ao atendimento de seus filhos. namento dos serviços do Instituto, e causa
A Maternidade Benedito Leite248, inau- reações dos administradores, como Lino Ma-
gurada em julho de 1913, é recordada no rela- cedo, que anuncia o desagravo, como forma
tório anual escrito por Fran Paxeco como um de alarme social. “Seria também, (oh, doloro-
grande serviço prestado às gestantes no Mara- so contraste!), acentuar, com traços negros, a
nhão, “convencendo-se as mais pobres de que, desorientação dos espíritos doentios, de pa-
nesta dependência do Instituto, se lhes asse- ranóicos governantes, que tentam fechar as
gura todo o conforto possível.” (RELATÓ- portas dessa divina instituição.” (LIMA, 1951,
RIO DO INSTITUTO DE ASSISTÊNCIA p. 115). Nos anos 1930, traços da decadência da
À INFÂNCIA DO MARANHÃO, 1917, p. instituição são manifestos pela saída do Esta-
07). O serviço era gratuito, o que aumentava do e transformação do Instituto em Associa-
a quantidade de atendimentos a gestantes po- ção de Assistência e Proteção da Infância, em
bres. A Farmácia, dava respaldo ao trabalho 1939. Anterior ao seu fechamento, os doado-
da Maternidade e do Hospital, possibilitando res e mantenedores privados que mantinham
aos enfermos o acesso a medicamentos neces- os serviços do Instituto, já eram em número
sários para o tratamento indicado. bem reduzido, e caíam no descrédito.
248
Até hoje, na capital São Luís, a maternidade existe e com os mesmos serviços: atender gestantes de forma gratuita
e pertencentes as classes populares.

283
e municipal, cujos subsídios muitíssimo teem concorrido, também, para valer as indescritíveis
misérias, enxugando inúmeras lágrimas”. (RELATÓRIO DO INSTITUTO DE ASSISTÊNCIA
À INFÂNCIA DO MARANHÃO, 1917, p. 05)

Figura 1 | Entrega de Leite para as famílias em Caxias – MA (1920)


Figura 1 – Entrega de Leite para as famílias em Caxias – MA (1920)

Fonte:
Fonte:SALAZAR; MELO,2018
SALAZAR; MELO, 2018.

A partir dos anos 1920, as contribuições financeiras do Estado vão sendo retiradas
aos poucos,
Com como
o fim em toda inciativa
do Instituto, outrasorganizada
ações para atendimento
tuições da infância para
de cunho filantrópico no Maranhão.
polarizar
nas margens dessa sociedade, agora militar, ainda mais as diferenças
Essa saída, compromete o funcionamento dos serviços do Instituto, e causa reações dosentre as classes so-
surgiam sob o slogan de um Estado Novo, que ciais. Os discursos e as parcerias com os meios
administradores,
passaria a ordenarcomo Lino Macedo,
a confusão que re-
deixada pelo anunciadeocomunicação
desagravo, como formalocais
e políticos de alarme social.
pretendiam
gime anterior. Com interesses voltados a disci- incluir as práticas higienistas como alternativa
“Seria também,
plinarização (oh, doloroso
das crianças, contraste!),
as novas instituiçõesacentuar,
paracom traços negros,
a moralização a desorientação
do povo, dos
do trabalhador,
denotariam práticas de vigilância e disciplina, dos seus filhos. As crianças, como alvo dos cui-
espíritos
pela doentios,
educação de paranóicos
do corpo governantes,
e dos costumes, tor- que tentam
dados médicosfechar as portas
e sanitários dessa divina
são também alvo
nando-os úteis a si e à sociedade. de uma nova economia do corpo, docilizadas
e silenciadas pelas próprias carências a que392 es-
Considerações finais tavam expostas tornavam-se também um aces-
so para a reforma de costumes das famílias ao
A partir dos estudos das instituições mesmo tempo em que justificavam a interven-
que se elevavam no Estado do Maranhão, na ção do estado e da “boa sociedade atuando por
Primeira República, é possível compreender a mio de um conjunto de instituições.
formação de uma nação para o povo. Políticas
públicas e iniciativas privadas acordavam as
maneiras de conterem os desvios dos corpos
que compunham aquela sociedade, ora vislum- Referências
brada pelas belezas naturais, ora atormentada
pelas pessoas que vivem na cidade. Civilizar FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento
era preciso, na emergência da oferta de espaços da prisão. Petrópolis: Vozes, 2015.
educadores dos homens, desde a infância. Uma
Educação que regenerasse os corpos em perigo, GONDRA, J. G. SCHUELER, A. Educação,
desvalidos, que não se adequavam às leis e pos- poder e sociedade no Império brasileiro. São
turas sociais. Eram imorais. Paulo: Cortez, 2008.
As crianças eram alvo do controle pela
assistência científica, que metodologicamente, LIMA, O. C. História da Assistência à Infân-
tentava reconstruir o sentimento civilizatório cia no Maranhão. Revista do Instituto Históri-
maranhense pela implementação de novas tec- co-Geográfico do Maranhão. nº3. Ano XXVIII.
nologias para o tratamento da saúde infantil. Agosto de 1951.
Acreditava-se que, pela infância, seria possí-
vel formar uma nação ideal, livre dos excessos, MARCILIO, M. L. História Social da Criança
condicionada aos ideais republicanos. Abandonada. São Paulo: Hucitec, 2006.
O Instituto de Assistência à Infância
no Maranhão, representou o pensamento da MEIRELES, M. M. Dez estudos históricos. São
elite maranhense, que empreendia nas insti- Luís: ALUMAR, 1994.

284
MEIRELES, M. Martins. História do Mara- Fontes
nhão. São Luís: Academia Maranhense de Le-
tras, 2015. COLLEÇÃO DAS LEIS E RESOLUÇÃO DO
CONGRESSO, DECRETOS E DECISÕES
RIZZINI, I. História da Assistência no Brasil: DO ESTADO DO MARANHÃO, 1911.
uma análise de sua construção. Rio de Janeiro:
Editora Universidade Santa Úrsula, 1993. Jornal A PACOTILHA, 1911-1920.

SALAZAR, D. C. C.; MELO, S. M. B. Cami- RELATÓRIO DO INSTITUTO DE ASSISTÊN-


nhos da Educação: Instituto de Assistência a CIA À INFÂNCIA DO MARANHÃO, 1911.
Infância no Maranhão. Anais XVII Congresso
de História da Educação do Ceará. V.1, 2018. RELATÓRIO DO INSTITUTO DE ASSISTÊN-
CIA À INFÂNCIA DO MARANHÃO, 1917.

285
A PROMOÇĀO DA FORMAÇÃO
BIOPSICOSSOCIAL DE
INFANTES EM ACOLHIMENTO
INSTITUCIONAL

Valéria Koch Barbosa249 Resumo: O ordenamento jurídico


brasileiro, com supedâneo na doutrina da pro-
Rogers Alexander Boff 250
teção integral e visando ao desenvolvimento
biopsicossocial de crianças e adolescentes, as-
segura-lhes os direitos ao lazer e à convivência
familiar e comunitária. Ocorre, porém, que a
destituição do poder familiar e o consequente
acolhimento institucional, não raras vezes, pri-
vam os infantes da convivência com a família e
a comunidade e tiram-lhes também a chance de
vivenciar momentos lúdicos, acarretando um
sentimento de isolamento em relação ao mun-
do que os cerca. É nessa perspectiva que este
trabalho trata do acolhimento institucional de
crianças e adolescentes e objetiva apresentar
algumas das implicações biopsicossociais de-
correntes da falta de convívio com a família e a
comunidade, realçando-se, sob tais lentes, a re-
levância do lazer tanto para o desenvolvimento
dos infantes quanto como forma de minimizar
as negativas consequências oriundas do afasta-
mento da família e da comunidade. O estudo,
que é exploratório e alicerçado no método de-
dutivo, tem como procedimento técnico a pes-
quisa bibliográfica, por meio da qual se aborda
a trajetória histórica do reconhecimento de
crianças e adolescentes como sujeitos de direi-
tos, os dispositivos legais que garantem a sua
proteção, em especial, no que tange ao lazer e à
convivência familiar e comunitária, bem como

249 Doutora em Qualidade Ambiental pela Universidade Feevale.


250 Mestrando em Psicologia pela Universidade Feevale.

286
são apresentadas as hipóteses autorizadoras do lentes, os infantes251 gozam de direitos fun-
acolhimento institucional consoante o ordena- damentais, entre eles, o lazer e a convivência
mento jurídico pátrio. Os resultados ratificam familiar e comunitária, essenciais para o seu
que a legislação aponta, de maneira cristalina, adequado desenvolvimento biopsicossocial.
a responsabilidade da família, da sociedade e Nem sempre, porém, aos infantes são ofere-
do Estado pela promoção do bem-estar e do cidas oportunidades de lazer e de convivência
desenvolvimento dos infantes. Nessa ótica, é familiar e comunitária, especialmente, levan-
essencial que sejam oferecidos momentos de do-se em conta as situações em que ocorrem a
lazer a crianças e adolescentes acolhidos insti- destituição do poder familiar e o consequente
tucionalmente, com atividades que envolvam acolhimento institucional.
tanto a família quanto a comunidade e que É sob esse prisma que este trabalho
contribuam positivamente para a formação aborda o acolhimento institucional de crian-
biopsicossocial desses sujeitos em processo ças e adolescentes e objetiva apontar algumas
de desenvolvimento, a exemplo de eventos es- das implicações biopsicossociais oriundas da
portivos, recreativos e culturais. Não havendo falta da convivência familiar e comunitária,
como evitar o acolhimento, que seria a me- enfatizando o quanto o lazer pode contribuir
dida ideal, a meta a ser perseguida deve ser a para o desenvolvimento dos infantes e para
oferta de amparo, afetividade e convivência amenizar as consequências negativas decor-
pautada por momentos lúdicos capazes de rentes do afastamento da família e da comuni-
desencadear o sentimento de pertencimento, dade. O estudo é exploratório e amparado no
e não de dor e exclusão, pois estas afrontam método dedutivo, cujo procedimento técnico
um dos direitos mais relevantes de todo ser é a pesquisa bibliográfica. Inicia-se a aborda-
humano: a sua dignidade. gem tratando do processo de reconhecimento
de crianças e adolescentes como sujeitos de
Palavras-chave: Acolhimento institu- direitos, das situações que acarretam a des-
cional. Crianças e adolescentes. Direito ao lazer. tituição do poder familiar e o acolhimento
institucional. Na sequência, apontam-se al-
guns dos dispositivos legais de proteção aos
infantes, com foco no lazer e na convivência
Introdução familiar e comunitária, bem como são apre-
sentadas algumas das implicações biopsicos-
No Brasil, o ordenamento jurídico sociais advindas da falta dessa convivência,
reconhece a vulnerabilidade de crianças e sublinhando-se a importância do lazer para
adolescentes, seres que estão em processo de o adequado desenvolvimento desses sujeitos.
desenvolvimento e, portanto, carecem de cui-
dados e de ampla proteção. Nesse sentido, a A destituição do poder
Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da familiar e o acolhimento
Criança e do Adolescente — ECA, além de ou-
tros diplomas, asseguram uma gama de direi- institucional de crianças e
tos, mas, principalmente, estabelecem várias adolescentes no Brasil
responsabilidades que incumbem aos pais, à
sociedade e ao Estado, com o intuito de via- Para se abordar a destituição do poder
bilizar o atendimento de todas as necessida- familiar e o consequente acolhimento insti-
des desses seres em formação. Nesse sentido, tucional de crianças e adolescentes, é mister
tanto o texto constitucional quanto o Código discorrer, sucintamente, sobre o percurso que
Civil 2002 fazem menção ao poder familiar na culminou com o reconhecimento de que os in-
perspectiva de um múnus atribuído aos geni- fantes são sujeitos de direitos. Nessa direção, o
tores visando a garantir a eficácia dos direitos Brasil, como outros países, enfrentou, ao longo
instituídos à criança e ao adolescente. dos anos, um cenário de abandono de crianças,
A proteção trazida pelo ordenamento em especial, os órfãos e pobres, que acabavam
jurídico é fruto de uma trajetória que partiu nas ruas e em condição de delinquência. Tal si-
de uma concepção segundo a qual crianças e tuação era encarada como ameaça à ordem pú-
adolescentes não tinham vez nem voz até se blica nacional e foi para minimizar os efeitos
chegar ao entendimento de que são sujeitos desse quadro que adveio, em 1927, o Código de
de direitos, concepção esta atrelada à adoção Menores (REIS, 2017). Esse Código considera-
da doutrina da proteção integral. Sob tais va tais crianças e adolescentes em situação ir-
251
Utiliza-se a palavra “infantes” para se referir a crianças e adolescentes.

287
regular, deixando em segundo plano sua efetiva Foi a partir desse novo paradigma
proteção (BRASIL, 1927). Mais adiante, adveio de proteção aos infantes que o Código Civil
um novo diploma que, em tese, se destinava a brasileiro de 2002 abandonou a ideia de pá-
proteger os infantes, o Código de Menores de trio poder e atribuiu aos genitores o poder
1979, o qual incumbia aos juízes de menores a familiar, com um feixe de responsabilidades
tarefa de evitar a marginalização de crianças no que diz respeitos aos cuidados dos filhos.
e adolescentes (PEREIRA, 2008). O referido O artigo 1.634 do referido diploma preceitua
diploma igualmente tinha seu foco na situação que os pais têm o dever de dirigir a criação
irregular dos menores e era destinado tanto e a educação dos filhos, assim como devem
àqueles que eram vítimas de maus-tratos ou exercer a guarda, a qual pressupõe convivên-
castigos imoderados quanto aos que não dis- cia, cuidado, enfim, o atendimento de todas
punham de condições básicas para sua subsis- as necessidades da prole. (ROSA, 2019)
tência, abarcando também os que cometiam Como nem sempre os genitores cum-
infrações penais. (BRASIL, 1979) prem todos os deveres inerentes ao poder fa-
Esses sujeitos eram desprezados e infe- miliar, muitas vezes, a intervenção do Estado
riorizados pelos integrantes da sociedade, car- torna-se necessária, impondo a suspensão do
regando consigo o estigma de representarem poder familiar ou, em casos mais graves, capazes
uma ameaça à harmonia social em consequên- de colocar em risco a segurança e a dignidade
cia da situação irregular e das infrações come- da criança e do adolescente, a destituição desse
tidas (VOLPI, 2015). Essa concepção, portanto, poder (LÔBO, 2019). A perda ou destituição
acabou constituindo a doutrina da situação ir- do poder familiar representa uma sanção im-
regular, a qual estava longe de representar uma posta por sentença judicial e está prevista no
proteção aos infantes. O Estado tirava de seus artigo 1.638 do Código Civil, o qual traz um rol
ombros a responsabilidade em relação a crian- exemplificativo das hipóteses que autorizam o
ças e adolescentes, a qual recaía na figura dos Estado a tomar medidas drásticas em prol dos
pais. Cabia ao Estado apenas a função de im- infantes (DIAS, 2016). Entre as hipóteses, estão
por sanções, desvencilhando-se da prevenção o abandono de filho, a prática de atos contrá-
e do amparo aos menores. (MARQUES, 2000) rios à moral e aos bons costumes, bem como a
Como vários países já consideravam prática reiterada das hipóteses de suspensão e
crianças e adolescentes como pessoas que me- a entrega irregular de filho para adoção. Com
recem proteção, o Brasil começou a alinhavar a Lei nº 13.715/2018, o artigo em comento teve
alguns avanços nesse sentido. Diplomas in- o acréscimo de outras situações ensejadores da
ternacionais serviram de inspiração para esse destituição: “[...] homicídio, feminicídio, lesão
processo, entre eles, a Declaração Universal corporal grave, menosprezo ou discriminação à
dos Direitos da Criança e a Convenção das condição de mulher, estupro, estupro de vulne-
Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças. rável ou outro crime contra a dignidade sexual
Todos esses diplomas, além de reconhecerem sujeito a pena de reclusão”. (BRASIL, 2018)
a vulnerabilidade dos sujeitos em formação, Uma das medidas de proteção a crian-
asseguraram-lhes uma série de direitos, passan- ças e adolescentes em face da destituição do
do vários países a incorporarem, em seus or- poder familiar é o acolhimento institucional, o
denamentos jurídicos, a doutrina da proteção qual tem previsão no ECA, em seu artigo 101,
integral (VANNUCHI; OLIVEIRA, 2010). No inciso VII, que preceitua que tal acolhimento na
Brasil, não foi diferente, já que a Carta Magna forma de abrigo deve ser uma medida tempo-
de 1988 trouxe direitos e garantias fundamen- rária e excepcional. Assim, a regra é a perma-
tais, estabelecendo o Princípio da Proteção nência da criança na sua família e, apenas em
Integral (REIS, 2017). Com o advento do Esta- situações excepcionais, será afastada, devendo
tuto da Criança e do Adolescente — ECA, em ser mantida a convivência familiar e comunitá-
1990, consolidou-se a proteção integral, com o ria nos termos do comando constitucional do
reconhecimento de que a criança e o adoles- artigo 227. É nesse sentido também o teor do ar-
cente “[...] são merecedores de direitos próprios tigo 19 do ECA, o qual prevê que “É direito da
e especiais que, em razão de sua condição espe- criança e do adolescente ser criado e educado
cífica de pessoas em desenvolvimento, estão a no seio de sua família e, excepcionalmente, em
necessitar de uma proteção especializada, di- família substituta, assegurada a convivência fa-
ferenciada, integral” (VERONESE, 1996, p. 92- miliar e comunitária, em ambiente que garanta
93), além de se instituir o princípio do Melhor seu desenvolvimento integral”. Todavia, a convi-
Interesse, segundo o qual sempre deve ser per- vência com os genitores depende da inexistência
seguido o que for mais benéfico para a criança de abusos sexuais ou maus-tratos, bem como da
e o adolescente. (REIS, 2017) falta de indício de coação. (BRASIL, 1990)

288
Quando crianças e adolescentes são re- pertencimento, de exclusão e, em alguns casos,
tirados do seio familiar em decorrência de fal- gera revolta, transtornos psicológicos e sociais
tas graves por conta de quem deveria lhes dar (SANTOS; OLIVEIRA, 2016). Tal situação
proteção e ocorre o acolhimento institucional, afronta os ditames legais, pois o acolhimento
os infantes ficam aos cuidados de profissionais institucional não deve privar crianças e ado-
à espera de colocação em famílias substitutas, lescentes do direito de convivência, o qual, di-
o que muitas vezes não se concretiza, culmi- ga-se de passagem, não se limita aos genitores,
nando com o alcance da maioridade nessas uma vez que abarca todos os familiares que têm
instituições (SANTOS; OLIVEIRA, 2016). vínculos de afinidade e afetividade com os in-
Na tentativa de minimizar as consequências fantes. Ademais, a legislação realça a preserva-
do acolhimento institucional, o Brasil conta ção da convivência comunitária, em reconheci-
com a Política Nacional de Assistência Social mento ao fato de que possibilita a formação de
(PNAS), com oferta de atendimento a crian- laços sociais e contribui para a formação dos
ças e adolescentes por meio dos serviços conti- futuros cidadãos. (CARVALHO, 2018)
nuados de Proteção Social Especial, cuja pres- Segundo Moreira (2014, p. 29), o aco-
tação está vinculada ao Centro de Referência lhimento institucional “[...] remete à constru-
Especializado de Assistência Social (CREAS). ção dos processos de significação vividos por
No caso de destituição do poder familiar, os todos aqueles envolvidos na rede de proteção
serviços prestados são considerados de alta das crianças e dos adolescentes”. A autora enfa-
complexidade, pois existe necessidade de pro- tiza, com base nos ensinamentos de Vygotsky,
teção especial aos infantes e manutenção dos que os significados abrangem valores, crenças,
vínculos familiares e comunitários, a qual está cultura, “[...] ideias e pensamentos acordados
alicerçada no Plano Nacional de Promoção, e decididos nas relações coletivas que se ins-
Proteção e Defesa do Direito de Crianças e titucionalizam”. Assim, o que a criança viven-
Adolescentes à Convivência Familiar e Comu- cia nas instituições de acolhimento trará a ela
nitária. (PRINCESWAL, 2013) inúmeros significados, os quais poderão ser
Nesse norte, as instituições de acolhi- tanto positivos quanto negativos e com reper-
mento devem obedecer às diretrizes preesta- cussões ao longo de sua vida.
belecidas pelo ordenamento jurídico pátrio, Convém lembrar que boa parte de
com atendimento personalizado aos infantes, crianças e adolescentes acolhidos estão em
em ambiente com características residenciais, condição de pobreza e exclusão, situação essa
em que estejam presentes tanto o atendimento que acarreta a fragilização emocional tanto
das necessidades materiais quanto os vínculos dos genitores quanto dos infantes, embora
afetivos, já que é necessário possibilitar a for- nem sempre seja possível “[...] associar a pobre-
mação e o desenvolvimento integral desses su- za à incompetência das famílias para exerce-
jeitos, permitindo que vislumbrem a sua futura rem suas funções [...]”. Existe uma fragilidade
inserção na sociedade. (ACIOLI, 2018) do ponto de vista simbólico. Ainda vigoram
práticas assistencialistas com as famílias po-
O lazer e a convivência bres, as quais são vistas como necessitadas e,
embora haja o desejo de convivência, a postu-
familiar e comunitária de ra dos genitores “[...] que têm seus filhos aco-
crianças e adolescentes em lhidos revela, muitas vezes, a introjeção dessa
acolhimento institucional desvalorização, os sentimentos de menos-valia
e passividade, manifestados em certa confor-
Consoante referido, um dos direitos mação com o destino de suas vidas, ocupando
assegurados aos infantes é o direito à vida pri- uma posição vitimada [...]” ou recusa no que
vada e familiar, e o abrigamento, nessa pers- tange a receber ajuda, somada à atitude de re-
pectiva, é medida a ser utilizada em última hi- volta. (MOREIRA, 2014, p. 32-33)
pótese e por curto tempo. Portanto, em caso Apesar de ser necessário levar em con-
de destituição do poder familiar, esgotadas as ta as idiossincrasias atreladas ao acolhimento
possibilidades de retorno da criança ou do ado- institucional, incumbe cumprir todos os pre-
lescente à família de origem, opta-se pela colo- ceitos legais atinentes aos direitos dos infan-
cação em família substituta, no entanto, há si- tes, entre eles, o direito à convivência familiar
tuações em que tais alternativas são inviáveis e, e comunitária e o direito ao lazer. Na Conven-
assim, os infantes permanecem em instituições ção sobre os Direitos da Criança, adotada pela
de acolhimento, privados, frequentemente, da Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro
convivência familiar e comunitária, o que lhes de 1989, em seu artigo 31, foi reconhecido o di-
impinge um sentimento de abandono, de não reito ao lazer e ficou instituído que “Os Esta-

289
dos Partes devem respeitar e promover o direi- mais integrantes da sociedade. Essas precárias
to da criança de participar plenamente da vida condições representam uma violação de direi-
cultural e artística e devem estimular a oferta tos fundamentais, pois ficam comprometidos
de oportunidades adequadas de atividades cul- o lazer e a convivência familiar e comunitária,
turais, artísticas, recreativas e de lazer, em con- deixando os acolhidos sem muitas perspecti-
dições de igualdade” (ORGANIZAÇÃO DAS vas, amargando os dissabores de um cotidiano
NACÕES UNIDAS, 1989). No Brasil, a Carta pautado por poucos momentos prazerosos e
Magna de 1988, em seu artigo 6º, ao tratar dos escassos vínculos afetivos (SOUZA, 2014). Nes-
direitos sociais, traz o lazer como um dos direi- se sentido, Carvalho et al (2015, p. 52) advertem
tos e garantias fundamentais (BRASIL, 1988). que os efeitos negativos da institucionalização
Por sua vez, o ECA reforça a necessidade dos não são decorrentes da separação dos pais, mas
infantes ao lazer, prevendo que compete ao Po- da qualidade da instituição de acolhimento,
der Público, às famílias, à comunidade e à so- a qual deve estabelecer vínculos afetivos com
ciedade em geral assegurar, com total priorida- os infantes, sem se mostrar indiferente ao sen-
de, a efetivação desse direito. (BRASIL, 1990) timento de abandono vivenciado por estes. É
Lopes e Berclaz (2019) ressaltam que o necessário que ofereça um ambiente acolhedor,
lazer não se trata de mero luxo que deve ser imprescindível “[...] para que o processo de re-
oferecido a crianças e adolescentes, mas sim inserção social destas crianças e adolescentes
de um direito fundamental que deve ser res- se dê da forma mais saudável”.
peitado e efetivado. Nesse sentido, o Ministé- Desse modo, as instituições de acolhi-
rio Público de Santa Catarina (2018) reforça a mento devem “[...] estabelecer uma forte e cons-
importância do direito ao lazer para o pleno tante vinculação afetiva com a criança, a fim de
desenvolvimento de crianças e adolescentes, lhe proporcionar um saudável desenvolvimento
o qual não deve ser considerado simples ato físico, psíquico e social”. Além disso, “É neces-
de diversão, mas algo sério e relevante para sário que o vínculo seja suficientemente forte
a formação dos infantes. É necessário que os para provocar nesse jovem o desejo de crescer e
pais destinem um tempo para o lazer com seus criar objetivos de vida”. Portanto, o acolhimen-
filhos, que os municípios propiciem espaços to institucional deve oferecer cuidado, con-
para o exercício desse direito e que as escolas vivência com a família e a comunidade, bem
e as instituições de acolhimento incentivem o como lazer a crianças e adolescentes, em um
lazer, por meio de brincadeiras pedagógicas e ambiente seguro, acolhedor e agradável, pauta-
atividades lúdicas. Segundo o promotor de jus- do pela valorização das relações interpessoais, a
tiça João Luiz de Carvalho Botega, não foi em fim de evitar que se potencialize o sofrimento
vão que o ECA trouxe o lazer como um dos di- psíquico vivenciado pelos infantes e visando a
reitos fundamentais. É preciso que os infantes contribuir para o seu amplo e sadio desenvolvi-
se divirtam, brinquem, ou seja, que se ocupem mento. (CARVALHO et al, 2015, p. 52 e 61)
com atividades que lhes tragam prazer, pois
é por intermédio do lazer que aprenderão a Considerações finais
conviver com as diferenças. E, mais do que
isso, o lazer serve como um meio de afastar No Brasil, levou tempo para que crian-
as crianças e os adolescentes de atividades ças e adolescentes passassem a ser reconheci-
não saudáveis (MINISTÉRIO PÚBLICO dos como sujeitos de direitos. Essa conquista
DE SANTA CATARINA, 2018). Portanto, é se sedimentou com a promulgação da Consti-
inquestionável que o lazer é um direito “[...] tuição da República Federativa de 1988, que
universal, é uma ferramenta que permite o al- instituiu a primazia da proteção aos infantes
cance da cidadania plena, destinado a todos como forma de possibilitar o seu adequado
sem distinção e sem preconceitos, atribuindo desenvolvimento. Mais adiante, em 1990, com
dignidade à vida”. (VIEIRA, 2020, p. 63) o ECA, emergiram dois Princípios basilares:
O que se constata, no entanto, é que, da Proteção Integral e do Melhor Interesse
apesar das políticas públicas e dos planos exis- da Criança e do Adolescente. Como corolá-
tentes, grande parte das instituições de aco- rio dessa proteção, tanto os genitores quanto
lhimento não são adequadas tanto no que diz a sociedade e o Estado foram incumbidos do
respeito à sua estrutura e ao seu espaço físico dever de garantir o atendimento de todas as
quanto no que tange ao número de funcioná- necessidades dos infantes, em especial, no que
rios e à sua capacitação, dificultando a oferta tange a direitos fundamentais, como o lazer
de momentos de lazer, em especial, aqueles em e a convivência familiar e comunitária, todos
que a tônica seja uma saudável convivência da eles estampados na Carta Magna.
criança com as pessoas que ama e com os de- Apesar de todo o arcabouço jurídico

290
brasileiro que sublinha o direito de crianças e de 10 de outubro de 1979. Instituir o Código de
adolescentes serem criados e educados no seio Menores. Disponível em: <http://www.planal-
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ções em decorrência da destituição do poder
familiar pelo descumprimento das obrigações _____. Presidência da República. Consti-
dos genitores. Essas instituições nem sempre tuição da República Federativa do Brasil.
possuem condições apropriadas, privando, Promulgada em 05 de outubro de 1988. Dis-
muitas vezes, as crianças e os adolescentes do ponível em: <http://www.planalto.gov.br/
lazer e da convivência familiar e comunitária, ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
violando-se, com isso, direitos fundamentais Acesso em: 10 mar. 2021.
que deveriam transcender a mera formalidade
e se consubstanciar na prática. _____. Presidência da República. Lei nº 8.069,
A falta de convivência familiar e co- de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Esta-
munitária pode trazer aos infantes várias con- tuto da Criança e do Adolescente e dá outras
sequências negativas, como isolamento social, providências. Disponível em: <http://www.
transtornos alimentares, sentimento de abando- planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>.
no, de menos-valia, entre outras. Minimizam-se, Acesso em: 21 mar. 2021.
com isso, as chances de se formar pessoas seguras
de si e aptas ao exercício da cidadania. Ademais, _____. Presidência da República. Lei nº 13.715,
a ausência de momentos de lazer também pode de 24 de setembro de 2018. Altera o Decreto-
contribuir para que vários sentimentos negativos -Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Códi-
sejam instaurados, já que ele é de suma impor- go Penal), a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990
tância para o pleno desenvolvimento biopsicos- (Estatuto da Criança e do Adolescente), e a Lei
social dos infantes. O lazer tem um papel trans- nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Ci-
formador no desenvolvimento social, cultural vil), para dispor sobre hipóteses de perda do
e político, além de ser um meio de promover a poder familiar pelo autor de determinados cri-
satisfação da condição humana, principalmente mes contra outrem igualmente titular do mes-
daqueles que muitas vezes são privados de inte- mo poder familiar ou contra filho, filha ou ou-
rações de qualidade e de convivência familiar e tro descendente. Disponível em: <http://www.
comunitária. Diante disso, urge que o Estado não planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/
apenas crie políticas públicas de lazer voltadas a lei/L13715.htm>. Acesso em: 21 mar. 2021.
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assegurar eficácia, garantindo, assim, o pleno e CARVALHO, D. M. Direitos das famílias. 6.
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