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O assassinato de João Batista

Sobre os tetos dos míseros tugúrios,


Dos palácios reais sobre os eirados,
Estende a noite escura a sombra imensa,
Que nem sempre derrama a paz e o sono.
Aves de Deus, as virgens e as crianças,
Adormecem risonhas, ocultando
Nas asas da inocência as frontes santas.
Voltam os velhos ao passado, em sonhos,
Em sonhos o futuro os moços galgam.
Mas os ímpios não dormem! Fulgurantes
Ardam embora perfumados círios
Junto dos leitos de ouro: embora brilhem
Dos estucados tetos penduradas
Alâmpadas riquíssimas! Embora!
Não há luz que afugente as trevas d’alma!
Nos vapores do vinho e nos banquetes,
Nas orgias febris, nos jogos loucos,
Um momento se abranda e se entorpece
O verme dos remorsos... – Mais faminto
Acordará nas horas do silêncio.

Os primores da Europa, os luxos d’Ásia,


O fausto desta, a profusão daquela
De Herodes o palácio aformoseiam.
Mil candeeiros, transparentes tochas,
Argênteos lampadários, iluminam
As vastas arcarias, marchetadas
Dos mais lindos mosaicos do Oriente.
E as colunas de mármore, as pilastras,
Cobertos de lavores, e as paredes
Ornamentadas de brasões pomposos.
[...]
Celebra o rei vaidoso e dissoluto
Seu dia natalício. As salas todas
Estão cheias de amigos e convivas:
Ricos hebreus, latinos cavaleiros,
Senhores do Ocidente e do Levante.
As mais belas romanas da soberba,
Mas depravada corte do tirano,
As mais airosas filhas da Circássia,
E as ninfas mais gentis das ilhas gregas,
À lauta mesa reclinadas ouvem
Os torpes, desonestos galanteios
Dos escravos de César. Petulante,
De louro coroado, e verde mirto,
Do amor emblema, e símbolo da glória,
Em macia camilha repimpado,
Excita à ebriedade o rei da festa
Seus libertinos, cínicos parceiros.
Bela, apesar do vício, a fronte esbelta
Aos joelhos do amante repousando,
Herodias sorri. De espaço a espaço,
Gracioso escanção, ágil, travesso,
Demônio de malícia em tenra idade,
As taças de ouro que a seus pés reluzem,
De excitante falerne enche, dizendo
Imodestos gracejos. Nenhum pajem
Do mais devasso camarim do império
O vencera em audácia e desvergonha!
Entretanto, meu Deus! É uma menina,
No albor da adolescência, rósea, loira,
Olhos azuis brilhantes, lábios de anjo!
E esta menina é filha de Herodias!...

Mas, pouco e pouco, se entibia e passa


O ardor da saturnal. Ébrios e fartos,
Estiram-se e bocejam sonolentos,
Os heróis do festim: a vil preguiça
Vence a voraz e crassa intemperança...
Então, como entendendo os pensamentos
Que da mãe tediosa a fronte nublam,
Corre a menina astuta, a sala deixa,
Deixa os vestidos leves que trajava,
Cinge de rosas a gentil cabeça,
Desnuda os seios, a cintura enfeita
De perfumadas e vistosas faixas,
Toma um ebúrneo tamboril, coberto
Dos mais finos e artísticos lavores.
E do espelho fiel se despedindo,
Volta faceira à sala do banquete.

Os tangedores, avisados, rompem


Nas mais doces e ternas harmonias;
Os convivas levantam-se surpresos:
Derramam servos nos braseiros ricos
Perfumes sem iguais. Senta-se Herodes,
Estremece Herodias. Entretanto,
Escrava da cadência, mas senhora
Das requebrados, lânguidos meneios,
Sobre as flores dos séricos tapetes,
Mais ligeira que a leve borboleta,
Mais bela que os espíritos errantes
Que à noite brincam nos rosais cheirosos,
Ela volteia – a doida bailadeira!
Às vezes para do salão no centro,
Suspira e cerra os olhos... vai, quem sabe,
Sucumbir de cansaço! Mas engano!
Reanima-se, ri, levanta os braços,
Flexível como a serpe encurva o corpo,
E num rápido giro se aproxima
Do fascinado Herodes, sacudindo
Sobre seus pés as rosas da grinalda,
Entre os aplausos mil dos assistentes.
Depois, qual passarinho caprichoso,
Que das nuvens descendo, em tarde estiva,
Modera o voo, quando a terra avista,
Ela os passos afrouxa, e segue a medo,
O mais lento tanger dos instrumentos.
Imita a corça, quando alegre salta,
Quando corre veloz; é viva abelha
Sobre os lírios dos vales adejando;
Mimoso colibri, quando descansa,
Tão leve, que não dobra das alfombras
A mais delgada flor! Por largo tempo,
Assim deleita a vista dos convivas;
Ofegante por fim, extenuada,
Faz um último esforço, e mansamente
Cai, pétala de rosa, aos pés de Herodes.

— Oh!... Pede o que quiseres, não vaciles!


Inda que sejam meu governo e erário,
Juro que tos darei! — grita enlevado
O romano senhor, — eia, responde! —.
Então do ódio escuro o escuro gênio
Aos ouvidos murmura de Herodias:
— Lembra-te do Batista! — Estranho lume
Da régia libertina inflama os olhos,
Vivo rubor lhe sobe ao lindo rosto;
Chama a filha imprudente, ao colo a estreita,
E um conselho cruel lhe dá baixinho.

— Oh rei! diz a volúvel dançarina,


Se a promessa que parte de teus lábios
Um gracejo não fosse... — Pelos deuses,
E deusas imortais! — Herodes brada,
Seja eu ludíbrio do plebeu mais rude
Se alguma cousa te negar! — Desculpa,
Se duvidei de ti, — pois bem, atende:
Sabes quantas afrontas recebemos
Do protervo Batista, — diz a moça, —
Que punição lhe deste? Descuidoso
Nos terrados de vasta fortaleza,
Em risonha colina levantada,
Escarnece de ti!... Agora escuta,
E cumpre como um rei o que juraste:
— Dá-me a cabeça do Batista! — Herodes
Treme, os olhos abaixa, e não responde.
— Hesitas?... E da mesa do banquete
A filha de Herodias se aproxima,
Lança mão de uma salva primorosa
Que ao tirano apresenta: — Nesta salva
Quero a cabeça do Batista — O bárbaro
Chama o chefe da guarda que o servia:
— Escutaste? — Escutei. — Parte, e obedece!
Eis meu anel, te servirá de senha. —
O sinistro emissário a sala deixa.

Carregado de ferros, junto às grades,


Amortecido o olhar, lívido o rosto,
João contempla uma estrela solitária,
Que pouco a pouco apaga-se e se afunda
Nos véus caliginosos do Ocidente.
Nem um amigo, um sócio de infortúnio,
Nem uma voz humana, as longas horas
Amenizam do pobre encarcerado!...
Do teto escuro e baixo, gota a gota,
Ressuma, estala e cai no chão lodoso
Condensada humidade; nos recantos
Da cripta tenebrosa, livremente
Passeia o escorpião, a osga brinca,
Arrasta-se tranquila a treda víbora.
Que pungentes lembranças, que saudades
Amargas e cruéis, que pensamentos
Sinistros e aflitivos não torturam
Do filho de Isabel a mente e o peito!
Quem pudera saber o que se passa
Naquela fronte heroica? — Porventura,
À luz da bela estrela que cintila,
Qual uma gota de amoroso pranto,
No triste véu da noite, ao longe avista
As montanhas natais, frescas e umbrosas,
O vale do Jordão, e os verdes bosques
Das encostas do Hermon? Os lindos campos
Dos terrenos de Dan, cheios de flores,
Cobertos de rebanhos? — Porventura,
Lembra-se de Jesus e seus amigos?
Das santas penitências do deserto?
Dos primeiros milagres do batismo?
Chora os tempos felizes que passaram?
Ou, tomado de horror, mede o futuro,
E só vê dissabores e amarguras,
E talvez o suplício?... — Oh! não! a morte
Não amedronta o rígido profeta!
O martírio... não teme, antes o aspira
E aguarda, como a prova gloriosa
De seu zelo e fervor; o mais... que importa!...

Qual, entre os nevoeiros do Oceano


Some-se a vela que a remotas praias
Leva nossos amores e esperanças,
Tal, entre a cerração desaparece
A solitária estrela, a casta amiga
Das noites do profeta. Quebrantado
Pela longa vigília, João descansa
Sobre a gélida mão a fronte ardente,
E cerra, suspirando, os turvos olhos....
Mas, uma luz esplêndida, divina,
Da sombria prisão clareia os muros,
E um anjo do Senhor pousa tranquilo
Entre os grilhões do pálido cativo.
João estremece; a imagem do verdugo
Ao pensamento acode-lhe. — Estou pronto,
São horas de partir? — severo indaga
Sem levantar o rosto. — Sim! — responde
O celeste enviado, ergue-te, e vamos
Para o seio de Deus! João abre os braços....
O anjo do Senhor desaparece.

Um profundo rumor, triste, confuso,


Pelas negras abóbadas retumba;
Rangem as chaves e as pesadas portas
Movem-se sobre os quícios, vagarosas;
Surdo tropel e vozes misturadas
Espalham-se nos longos corredores;
Vivo clarão derrama-se nos cantos
E esverdeados, úmidos pilares,
De sanguinosa cor tingindo as lájeas;
Um magote de esquálidos esbirros
E sequazes de Herodes se aproxima,
E rodeia o profeta. — Ilustre mestre,
Grita um ébrio soldado, motejando,
Rende graças à amásia de teu amo,
Está findo o teu triste cativeiro!
Ai! O que então seguiu-se, a língua humana
Não pôde descrever! Meus lábios tremem,
E minha voz não passa da garganta!...

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