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Campinas-SP, v.39, n.2, pp. 1056-1061, jul./dez.

2019

CÁMARA, Mario; KLINGER, Diana; PEDROSA Célia & WOLFF,


Jorge (Orgs.). Indicionário do contemporâneo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2018.

Indicionário do Contemporâneo
Ana Cristina Joaquim1

Resumo: Resenha de Indicionário do contemporâneo, livro organizado por Célia Pedrosa,


Diana Klinger, Jorge Wolff e Mário Cámara, com artigos de: Antonio Andrade, Antonio
Carlos Santos, Ariadne Costa, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Florencia Garramuño,
Jorge Wolff, Luciana di Leoni, Mario Cámara, Paloma Vidal, Rafael Gutiérrez, Raúl
Antelo, Reinaldo Marques e Wander Melo Miranda, os quais se dedicam a pensar a
contemporaneidade.
Palavras-chave: crítica contemporânea; literatura; artes.

Abstract: Review of Indicionário do contemporâneo, book organized by Celia Pedrosa,


Diana Klinger, Jorge Wolff and Mario Camara and written by Antonio Andrade, Antonio
Carlos Santos, Ariadne Costa, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Florencia Garramuño,
Jorge Wolff, Luciana di Leoni, Mario Camara, Paloma Vidal, Rafael Gutiérrez, Raúl
Antelo, Reinaldo Marques and Wander Melo Miranda, that is dedicated to thinking
contemporaneity.
Keywords: Contemporary Criticism; Literature; Arts.

Acredito que não haja novidade alguma em dizer que um livro


de crítica literária ou artística (no sentido amplo) tem sua recepção
condicionada pelo(s) tema(s)/autor(es)/artista(s) a que se dedica e/

1 Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Departamento de Teoria e História


Literária (IEL) – Universidade Estadual de Campinas, com estágio na Faculdade de Letras
da Universidade do Porto. Bolsista Fapesp (Processo n. 2017/17843-1; Processo BEPE n.
2018/21750-1): <wiquen@gmail.com>.
DOI: 10.20396/remate.v39i2.8656625
ou pela linha de abordagem que seu(s) autor(es) – pelo desempenho
teórico, mas também pelo estilo – desenvolve(m). A proposta de reunir
num livro uma diversidade de autores que se propõem uma reflexão sobre
o contemporâneo, como é o caso de Indicionário do contemporâneo,
tampouco é, por si só, algo novo. A novidade – que me parece necessário
frisar – está no modo como a ideia de autoria coletiva compõe uma rede
de abrangências temáticas desenroladas sob o pressuposto de uma certa
impropriedade como marca da nossa contemporaneidade. O impróprio,
tal como eu gostaria que fosse entendido, não apenas como aquilo que nos
permite alcançar (em sinonímia) o erro pela errância, pelo nomadismo que
recusa a residência fixa, mas também como solução prefixal que coincide
com o neologismo Indicionário: a negação da posse, aquilo que a ninguém
pertence em particular. É, aliás, já no encaminhamento para o fim desse
livro aberto, de significações múltiplas, que encontrei a síntese mais precisa
que proponho ler como justificativa do neologismo que dá título ao livro:
“abandonar o desejo de um termo guarda-chuva que explicasse o presente
em favor da aceitação da complexidade que este mesmo estado do presente
nos faz reconhecer” (p. 192).
Em certo sentido, estamos no campo de uma discussão já tornada
clássica (se considerarmos os tempos históricos relativamente à medida
de intervalo de tempo de assimilação e propagação de uma ideia), uma
vez que desde Nietzsche a atualidade é uma exigência em termos de
intempestividade, como nos dá a ver Agamben (2009) na sua atualização
do contemporâneo – historicamente, mais próximo do nosso atual –, ao
situar o cerne dessa reflexão conforme uma não coincidência, conforme
um anacronismo ou, como sugeri há pouco, conforme uma impropriedade:

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo,


aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas
pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso,
exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz de
perceber e apreender o seu tempo (pp. 58-59).

É justamente da positivação desse anacronismo – em perspectiva


histórica e, portanto, temporal –, somada à positivação de certo
nomadismo – em perspectiva geográfica e, portanto, espacial –, que
Indicionário do contemporâneo se compõe. Às três dimensões espaciais
mais à dimensão temporal, soma-se ainda uma quinta dimensão: o
sujeito coletivo, ou o sujeito multidimensional que dá os contornos dessa
atualização, dessa “contemporaneização” da autoria. São muitos os que
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escrevem esse livro: Antonio Andrade, Antonio Carlos Santos, Ariadne
Costa, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Florencia Garramuño, Jorge Wolff,
Luciana di Leoni, Mario Cámara, Paloma Vidal, Rafael Gutiérrez, Raúl
Antelo, Reinaldo Marques e Wander Melo Miranda; mas também o
escrevem alguns contemporâneos (vivos ou não) que, de modo heterodoxo,
já o haviam escrito, pintado, fotografado ou performado, antes de os
autores listados na capa o terem feito: Ana Cristina César, Bruno Latour,
Georges Didi-Huberman, Gilles Deleuze, Giorgio Agamben, Hélio
Oiticica, Jacques Derrida, Jacques Rancière, Jean-Luc Nancy, João Gilberto
Noll, Josefina Ludmer, Lygia Clark, Lygia Pape, Marcos Siscar (em ao
menos duas dimensões: o poeta e o crítico), Mario Bellatin, Nuno Ramos,
Rosângela Rennó, Silviano Santiago, entre tantos outros nomes não tão
recorrentemente evocados no livro (não por isso menos importantes na
ecologia dessas reflexões) que uma listagem exaustiva permitiria entrever.
A proposta de tornar híbrida a autoria desse livro lança uma questão
acerca dos percursos possíveis de uma comunidade que não se deixa
capturar (ao menos não completamente) pelas instituições que dão
nome e sobrenome às ideias correntes e se mantém em “semianonimato”,
conforme a não indicação de autoria em cada ensaio ou verbete indicial
(Cf. p. 12), lançando para todo o sempre a questão que nos cabe a todos
responder (ou ao menos questionar conjuntamente):

[...] como viver junto e como escrever em colaboração, como escrever, em suma,
coletivamente e a partir de diferentes perspectivas críticas e diferentes geografias
da América do Sul [em atenção aos encontros que motivaram e alimentaram a
escrita do livro, ocorridos em Cali/Colômbia, Campina Grande-PB, São Paulo,
Rio de Janeiro, Florianópolis/Brasil e Buenos Aires/Argentina] (pp. 7-8).

Por isso é híbrida essa escrita também no que se refere às fronteiras


nacionais. E, uma vez que contemporânea, híbrida ainda no que se refere
às fronteiras que delimitam passado e futuro:

[...] o efeito de anacronismo significa um agenciamento do passado e do futuro,


de ideais utópicos e míticos, fragmentados em sua coerência totalizada,
mobilizados agora enquanto restos, resíduos que, justo nessa condição,
produzem uma dinâmica desafiadora (p. 139).

E híbrida sobretudo porque performa, em grande medida, a


qualidade de transformar em elásticos os limites a partir dos quais somos
mentalmente regidos, tornando de algum modo indistintas a forma
crítica e a forma artística. Um exemplo bastante evidente da atualização

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dessa indistinção se refere à autoria: já mencionada a propósito do que
chamei de semianonimato, ela é textualmente evocada a propósito de
uma performance crítica organizada por Mario Bellatin:

Em novembro de 2003, Bellatin idealizou e organizou um particular Congresso


de Literatura Mexicana em Paris, que tinha como objetivo não declarado
provar se o texto literário poderia ou não ter um autor. Para explorar a questão,
convidou quatro escritores mexicanos [...]. No entanto, não foram esses
escritores os que assistiram fisicamente ao evento programado em Paris, mas
seus duplos, previamente treinados pelos autores [...]. Quando o espectador
chegava ao Congresso podia aceder à recitação do texto que tinha selecionado
por meio a um catálogo temático: “Arte e modernidade”, “A morte na obra”,
“Vida e escritura”, entre outros (p. 193).

Além da problematização autoral enunciada, esse catálogo temático


proposto por Bellatin em muito se assemelha aos ensaios ou verbetes
indiciais de Indicionário do contemporâneo. Mais do que semelhança,
trata-se de um gesto crítico de acolhimento e diálogo para com o gesto
artístico a partir da própria arte no curso do seu gesto fundamentalmente
crítico – que lhe é característico. No limite, trata-se de lembrar o espectador
e/ou o leitor das impropriedades que dão forma aos gestos humanos em
sua variedade rizomática:

[A] separação entre o conhecimento objetivo (da ciência, da natureza) e o


conhecimento subjetivo (da política, da natureza) está na base das divisões
disciplinares, e é essa base que, segundo Latour, está se desmoronando hoje
pela pressão do que ele chama de híbridos ou quase-objetos ou monstros (p.
186).

A propósito dos verbetes indiciais, há um dado de composição que


me parece importante ressaltar: a despeito de cada um deles estar em
conformidade com os guias motivadores de reflexão (estes também
em trânsito nômade, conforme indicado na apresentação: de “Formas
do não pertencimento” a “Arquivo”; de “Intimidade” a “Comunidade”;
de “Materialidades” a “Endereçamento”; de “Intempestividade” a “O
contemporâneo”; de “Sobrevivências” a “Pós-autonomia”; e de “Afeto”
a “Práticas inespecíficas”), há um reenvio constante de um a outro
verbete, de maneira que poderíamos caracterizá-los eles próprios
como operadores de analogias comunitárias em constante movimento
de remissão. A despeito ainda das diferenças de perspectivas críticas
que eventualmente saltam à vista do leitor, quase todos os verbetes
privilegiam a abertura como proposta de uma cena de convívio reflexivo,

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em detrimento do fechamento como consequência de uma certeza
apriorística (com exceção do verbete “Comunidade”) que tende a insistir
na disputa entre uma visão ali considerada menos filosófica e por isso
mais eficiente e uma visão ali considerada mais filosófica e por isso menos
eficiente (Negri e Hardt versus Agamben e Jean-Luc Nancy), que me parece
mais a construção de uma fronteira do que a sua destruição em direção aos
híbridos contemporâneos, construção na qual o projeto de Indicionário se
empenha declaradamente. Mas até mesmo esse corpo estranho vem selar
de alguma forma o intempestivo na sua circunstância mais atual.
É, sem dúvida, um livro político, sem que seja possível estabilizá-
lo num eixo central que preveja uma concordância dos significados e
das variadas orientações que o conduzem. É um livro que investe seus
múltiplos olhares na ética da responsabilidade, e o faz de modo bastante
evidente, enfatizando a seriedade do comprometimento em questão ao
evocar estas palavras de Latour (apud pp. 190-191):

A condição pós-moderna acabou de tentar justapor, sem conectá-los, esses


três grandes repertórios da crítica: a natureza, a sociedade e o discurso. Caso
sejam mantidos distintos e separados do trabalho de hibridação, eles geram
uma imagem terrível do mundo moderno: uma natureza e uma técnica
absolutamente homogêneas, uma sociedade feita apenas de reflexos, de falsas
aparências e de ilusões, um discurso constituído somente por efeitos de sentido
separados de tudo. Motivo suficiente para levar alguém ao suicídio.

A política do agora tem sobretudo um desafio que me parece crucial


e que este livro contempla mediante a grande abrangência rizomática de
que, de algum modo, compõe-se a nossa forma de tatear no escuro da
contemporaneidade: trata-se do desafio de lidar com as fronteiras, sejam
elas hierárquicas (em destaque no ensaio “Arquivo”); sejam elas erigidas
no campo das disputas teóricas (em destaque no ensaio “Comunidade”);
sejam elas intersubjetivas (em destaque no ensaio “Endereçamento”);
sejam elas temporais (em destaque no ensaio “O contemporâneo”);
sejam elas de percepção acerca das metamorfoses do real (em destaque
no ensaio “Pós-autonomia”); ou sejam elas condicionadas às ordenações
dos espaços de fala (em destaque no ensaio “Práticas inespecíficas”). É,
aliás, coincidentemente, num verbete de um outro possível indicionário
virtual, veiculado na internet, que Sofia Mariutti vai pensar a definição de
fronteira no cerne da ambiguidade ou elasticidade que a caracteriza como
potência:

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A fronteira pode ser natural, seguindo um acidente geográfico como um rio
ou uma montanha. Às vezes é abstrata, como a margem entre a sanidade e a
loucura, às vezes tem a concretude da muralha da China [...]. Ironicamente,
chamamos de “fronteiras vivas” aquelas que estão sujeitas a conflitos e se
alteram, diferentemente das “fronteiras mortas”, que são sólidas. Para o líder
indígena Ailton Krenak, no Brasil há fronteiras fluidas entre mundos em
guerras, mas essas fronteiras não são feitas apenas de conflito. São também
“possibilidade de interpenetração de mundo”. A fronteira é o que separa,
mas também o que une: ponto de contato entre territórios, povos e línguas
(MARIUTTI, 2018, [s.p.]).

Das diversas fronteiras naturais, abstratas ou concretamente


construídas que Indicionário do contemporâneo convoca, aquela que
pretende circundar a noção de realidade em previsão estática é a mais
premente, e é a propósito desse condicionamento limítrofe que Alain
Badiou (2017, p. 8) – embora não seja mencionado textualmente no livro
– levanta essa questão confluente: “Será preciso aceitar como uma lei da
razão que o real exige em toda e qualquer circunstância uma submissão
mais do que uma invenção?”.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o Contemporâneo? e Outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro


Honesko. Chapecó: Argos, 2009.

BADIOU, Alain. Em busca do real perdido. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte:
Autêntica, 2017.

MARIUTTI, Sofia. Fronteira. Nexo Jornal [on-line], 2019. Disponível em: <https://
www.nexojornal.com.br/lexico/2019/08/04/Ela-%C3%A9-o-que-separa-mas-
tamb%C3%A9m-o-que-une-%E2%80%93-ponto-de-contato?utm_medium=Social&utm_
campaign=Echobox&utm_source=Facebook&fbclid=IwAR31tSHvBSWr8mF1lF_8tmzD0crj
UKXxNSCto5cvwTBk_v4z9MxD51CdfUw#Echobox=1564973008>. Acesso em: 9 ago. 2019.

Recebido: 12/09/2019
Aceito: 21/11/2019
Publicado: 13/12/2019
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