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É possível que a última vez que um membro da realeza inglesa tenha contemplado
um monarca brasileiro em carne e osso tenha sido quando a Rainha Vitória ainda
caminhava com seus próprios pés. Diga-se de passagem, ela ficou impressionada
com a beleza de Dom Pedro II, o último imperador daquela nação, embora tenha
observado a precocidade de seus cabelos brancos. Bourbon perpetuava esse legado:
era tão fascinante, tão vibrante... Margaret atribuía o sucesso desse carisma ao
simples fato de Anitta Bourbon trabalhar como uma pessoa comum. Desde que o
princípio do Direito Divino foi questionado e praticamente abolido, as opções para
a maioria das monarquias ao redor do mundo eram escassas, levando à resignação.
Bourbon trazia o tempero que faltava à qualquer Corte vigente, uma característica
que, modéstia à parte, era a principal particularidade de Margaret --- embora
nunca tivesse trabalhado no sentido popular do termo. Poucos possuíam
naturalmente aquela nota de realidade; até porque, era algo a ser desenvolvido,
estimulado pelo ambiente concreto da vida real. Coisa que, na maioria das vezes,
era impossível para a aristocracia.
O fato era que a princesa tinha aversão àqueles que se orgulhavam da própria
poeira. Seus pajens e damas, os salões de Kensington, e tudo o que pertencia à
Coroa haviam perdido a validade séculos atrás. Por sorte, Margaret acompanhava o
curso do mundo, e isso era seu carma, uma faca de dois gumes que a machucava e a
tornava gloriosa ao mesmo tempo. Ela adorava fazer parte do espetáculo imperial,
estava na essência de sua identidade; no entanto, achava o roteiro e os demais
personagens profundamente insossos.
A Condessa jamais admitiria, mas a Srta. Bourbon havia despertado nela uma
sensação peculiar. Não exatamente inveja, mas uma espécie de identificação sutil,
uma lembrança carinhosa embora quase ranzinza da princesa que ela mesma fora
décadas atrás, com todo seu vigor e senso de oportunidade. Anitta, a brasileira sem
súditos, agora exercia esse fascínio, o mesmo que Margaret emanara outrora, mas
que se desgastara com o tempo. No entanto, pairava uma simpatia desinteressada
em relação à Srta. Bourbon... A situação estava longe de se configurar como alguma
forma de rivalidade. Até mesmo porque seria injusto - injusto com Anitta Bourbon.
- Deixe que entre - disse Margaret, a vibração grave de sua voz dando pistas da
bebedeira da noite anterior.
- Oh, céus, a No Man's Land ainda existe? - ela fitou Stuart pela primeira vez, ele
reagiu com gestos amplos:
- E estará fechado para a corte de Sua Alteza - ele afirmou teatralmente.
- Desta vez não quero ninguém além de você e Catherine... Não estou disposta a
ouvir as murmurações de Anne hoje - Margaret esfregou os olhos - Jane! - ela
gritou, procurando algo ao redor de si mesma - Onde está... onde está? - até que sua
mão alcançou um pequeno sino, no criado bem ao lado de Stuart. O barulho daquilo
era infernal e Stuart se compadecia pela sanidade de quem tinha a obrigação de
ouvi-lo. - Jane!
- Sim, milady.
- O Sr. Stuart almoçará conosco. Então não deixe de incluir mais um prato e
talheres quando o almoço for servido - ela já cruzara o arco para a suíte. Lá de
dentro arrematou: E, Stuart, vamos ao Swan's!
***
- Uma festa, mas uma festa sem pessoas. Temo que a nova Margaret se torne
patética em breve... - ela respondeu ao que um garçom afastou a cadeira para que se
sentasse. E assim o fez.
- Talvez a saída seja se tornar tão excêntrica quanto Cayetana... - Stuart disse em
tom sarcástico. Margaret o fitou como se não soubesse do que ele estava falando -
A Duquesa de Alba... - ele complementou.
- A Duquesa parece estar feliz à sua maneira... Temos quase a mesma idade.
Lembro que se casou novamente quando Tony saiu de casa e me tornei a primeira
desquitada da história de minha família - Margaret suspirou - Ninguém pode
negar que sou uma mulher à frente do meu tempo... - e voltou a gargalhar.
Cerca de duas horas havia se passado, e todos já estavam embalados por doses dos
mais caros e resolutivos uísques e vinhos europeus. Estavam felizes, rediscutindo
assuntos, como os sentimentos dúbios de Margaret em relação aos filhos, o ódio na
espiral de ressentimento que nutria por Antony - Eles amam o pai, e eu quase os
odeio por isso! - ou como o quanto o Príncipe de Gales se asfixiava nas cordas de
fogo da tradição.
- Eu me compadeço por Charles, pobre Charles... Mas o dever será sempre o dever -
comentou ela, forçadamente conformada, suspirando outra vez e, logo em seguida,
bebericou sua taça.
A música estava a todo vapor, a banda passeava entre o Jazz e o Rock - o vocalista
estava tão entusiasmado quanto um performer do Glastonbury. Então Stuart se
levantou sem sobreaviso e foi em direção ao balcão. Cochichou algo inaudível ao
gerente da casa que lhe devolveu um sorriso, desaparecendo por uma das portas
atrás dele. Stuart voltou à mesa, Margaret pareceu não ter notado sua ausência. Ele
trocou olhares com Catherine, que também tremelicou e fixou os olhos no palco. As
luzes ficaram repentinamente mais baixas, para o sobressalto de Margaret, à
medida que um feixe poderoso iluminou a plataforma acima do palco. A banda
parou de tocar por alguns segundos, e retomou em um estrondo
Uma fila de homens fortes e seminus surgiu na plataforma. Pareciam turcos? Sem
dúvida eram semelhantes aos homens que tanto entreteram Margaret anos atrás
numa viagem sigilosa à Istambul. Eles dançavam desordenados com suas sungas
fluorescentes, tão cafonas quanto irresistíveis às memórias felizes da princesa.
Margaret não se permitia parar de rir. Da suposta desorganização, os rapazes se
alinharam e a banda diminuiu o ritmo - Oh, eles ensaiaram para isso?! -,
introduzindo uma nova e lenta melodia.
- Falo sério. Adoraria vê-la outra vez, quero sugar sua juventude - ela gracejou,
incentivando os demais.
- Quem diria, Margot. Sua Alteza, em todo seu esplendor, baixando as guardas para
uma quase desconhecida, uma infanta - Stuart realmente quis tecer um elogio.
***
- Você chegou mais rápido do que imaginei - comentou Margaret, quando Anitta já
havia se instalado junto de Catherine. A jovem a olhou com decisão, a Condessa de
Snowdon também lhe provocara certa reação desde o último encontro.
- Estou hospedada no St. George Hotel, fica razoavelmente perto daqui - ela
respondeu, ajeitando os cabelos atrás da orelha - Estava quase dormindo quando a
recepção me transferiu a ligação de Lady Catherine... Bom, na verdade, eu
começaria a tentar dormir...
- O artigo que estou escrevendo... Está dominando meu cérebro. Aquietar a mente
nessas ocasiões é um pouco complicado. Eu estava escrevendo até quase agora.
- E onde vai publicá-lo? - Margaret falava rápido, tornando a sentença mais aguda.
- Em um jornal brasileiro... Chama-se O Globo...
- Exatamente.
- E do que se trata...?
- Sem dúvidas um grande feito - Margaret ponderou. Uma piada pareceu surgir em
sua cabeça: - O Globo não se importa com uma monarquista fazendo parte do seu
editorial?
- Pra ser sincera, eu mesma já me perguntei sobre isso. Digo, em relação a você...
- Que se esta fosse de fato a questão, nós já saberíamos há pelo menos vinte anos.
A sinceridade da resposta fez com que os três caíssem outra vez no riso.
- Bom... Meu pai, Dom Pedro Henrique, o chefe de nossa Casa Imperial,
infelizmente não está em um bom estado de saúde. Acredito que não viva mais do
que um ano... - Anitta disse com impessoalidade - Mas passou grande parte de sua
vida como agricultor.
- Sim?
- Dom Luiz Gastão, seu filho e meu irmão mais velho, é cientista político e fornece
consultorias especializadas. E, eu, como você sabe, sou jornalista e historiadora...
- Oh, pelo visto, meu mau exemplo chegou do outro lado do Atlântico - disse
Margaret, sem sorrir. Estava falando sério - Você está em que ponto da linha
sucessória mesmo?
- Então se seu pai falecer e se seu irmão não puder assumir a chefia da Casa
Imperial, teremos uma imperatriz?
- Céus, que título maravilhoso! - Catherine levou as mãos à boca - Stuart, de onde
você tira essas coisas?
- Ele opera com a mente fértil de um dramaturgo. Não é, Stuart? - Margaret mais
afirmou do que perguntara algo - Temos entre nós a Rainha dos Trópicos... - ela
disse, virando sua taça de uma vez. Todos a imitaram, inclusive Anitta.