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CAPÍTULO 1.

Quando o Parlamento e Sua Majestade legitimaram o divórcio de Margaret com


Tony, ela já havia perdido o interesse em seu principal envolvimento amoroso.
Roddy Llewellyn retornou ao seu mundo de fantasias, enquanto a princesa optou
por seguir um caminho inesperadamente solitário. Após uma vida de agitados
encontros e um círculo social opulento, Margaret se retraiu para um quase
ostracismo, entregue ao uísque e ao jazz, contando apenas com pouco mais de três
confidentes constantes. Até mesmo de seus filhos, Sarah e David, a princesa havia
se distanciado. Apenas Lady Anne Glenconner, Stuart Pearland e Catherine Howard
sobreviveram àquele terremoto e continuaram compartilhando taças com
Margaret. No entanto, a Condessa de Snowdon ficou surpresa ao deparar-se com a
Srta. Bourbon - uma jovem aristocrata brasileira, herdeira de um trono de lugar
nenhum. "Veja só, o terceiro mundo revelando uma nobre tão convicta e segura de
si".

É possível que a última vez que um membro da realeza inglesa tenha contemplado
um monarca brasileiro em carne e osso tenha sido quando a Rainha Vitória ainda
caminhava com seus próprios pés. Diga-se de passagem, ela ficou impressionada
com a beleza de Dom Pedro II, o último imperador daquela nação, embora tenha
observado a precocidade de seus cabelos brancos. Bourbon perpetuava esse legado:
era tão fascinante, tão vibrante... Margaret atribuía o sucesso desse carisma ao
simples fato de Anitta Bourbon trabalhar como uma pessoa comum. Desde que o
princípio do Direito Divino foi questionado e praticamente abolido, as opções para
a maioria das monarquias ao redor do mundo eram escassas, levando à resignação.
Bourbon trazia o tempero que faltava à qualquer Corte vigente, uma característica
que, modéstia à parte, era a principal particularidade de Margaret --- embora
nunca tivesse trabalhado no sentido popular do termo. Poucos possuíam
naturalmente aquela nota de realidade; até porque, era algo a ser desenvolvido,
estimulado pelo ambiente concreto da vida real. Coisa que, na maioria das vezes,
era impossível para a aristocracia.

O fato era que a princesa tinha aversão àqueles que se orgulhavam da própria
poeira. Seus pajens e damas, os salões de Kensington, e tudo o que pertencia à
Coroa haviam perdido a validade séculos atrás. Por sorte, Margaret acompanhava o
curso do mundo, e isso era seu carma, uma faca de dois gumes que a machucava e a
tornava gloriosa ao mesmo tempo. Ela adorava fazer parte do espetáculo imperial,
estava na essência de sua identidade; no entanto, achava o roteiro e os demais
personagens profundamente insossos.

A Condessa jamais admitiria, mas a Srta. Bourbon havia despertado nela uma
sensação peculiar. Não exatamente inveja, mas uma espécie de identificação sutil,
uma lembrança carinhosa embora quase ranzinza da princesa que ela mesma fora
décadas atrás, com todo seu vigor e senso de oportunidade. Anitta, a brasileira sem
súditos, agora exercia esse fascínio, o mesmo que Margaret emanara outrora, mas
que se desgastara com o tempo. No entanto, pairava uma simpatia desinteressada
em relação à Srta. Bourbon... A situação estava longe de se configurar como alguma
forma de rivalidade. Até mesmo porque seria injusto - injusto com Anitta Bourbon.

- Ma'am, o Sr. Pearland está aqui - a camareira praticamente balbuciou, como se


temesse a reação de uma fera. Já eram duas da tarde e as cortinas do amplo e
suntuoso quarto de Margaret ainda estavam cerradas.

Margaret demorou alguns segundos para se mover na cama, sob o olhar e os


ombros contraídos de Jane, que ainda aguardava à porta.

- Deixe que entre - disse Margaret, a vibração grave de sua voz dando pistas da
bebedeira da noite anterior.

Jane assentiu e se apressou em direção às persianas; e, ligeiramente, as largas


cortinas foram abertas, liberando o sol frio para o interior do recinto. Margaret
permanecia imóvel, os braços desatados como os de um boneco de neve, a venda
sobre os olhos. Jane se retirou e, em poucos instantes, um homem alto adentrava o
quarto. Seu paletó vermelho, elegantemente circense, contrastava com a pele
negra, coroado por cabelos livres como os de Basquiat. Pearland caminhava para a
cama no centro do ambiente com um sorriso pendurado nos lábios.

- Alteza... - ele a saudou.

Margaret pigarreou, o restante do corpo inoperante.


- Pelo visto você conseguiu, não é, Pearland? - ela fez uma pausa, e então retornou
de seu abismo: Sente-se.

Stuart obedeceu enquanto relatava:


- Foi mais fácil do que eu imaginei, Margot. Os salões de Liverpool não estão
resistentes a propostas um tanto desleais. Afinal, para o bem ou para o mal, receber
um membro da realeza ainda é considerado um privilégio.

- Ah... Nada como a vulgaridade de um americano utilizada como uma arma -


Margaret achou graça de forma presunçosa, removendo o tecido dos olhos - E
então? - ela indagou, mirando o teto.

- Swan's ou No Man's Land?

- Oh, céus, a No Man's Land ainda existe? - ela fitou Stuart pela primeira vez, ele
reagiu com gestos amplos:
- E estará fechado para a corte de Sua Alteza - ele afirmou teatralmente.

- Desta vez não quero ninguém além de você e Catherine... Não estou disposta a
ouvir as murmurações de Anne hoje - Margaret esfregou os olhos - Jane! - ela
gritou, procurando algo ao redor de si mesma - Onde está... onde está? - até que sua
mão alcançou um pequeno sino, no criado bem ao lado de Stuart. O barulho daquilo
era infernal e Stuart se compadecia pela sanidade de quem tinha a obrigação de
ouvi-lo. - Jane!

- Milady? - a camareira entrou no quarto ofegante, quase cambaleando.

- Meu banho está pronto? - ela se arrastava para fora da cama.

- Sim, milady.

Margaret galgou a próxima inquisição:

- O Sr. Stuart almoçará conosco. Então não deixe de incluir mais um prato e
talheres quando o almoço for servido - ela já cruzara o arco para a suíte. Lá de
dentro arrematou: E, Stuart, vamos ao Swan's!

***

Quando os três Escorts pretos se alinharam, Catherine Howard já aguardava de pé


diante do Swan's. A noite era chuvosa e, para sua grata surpresa, Liverpool parecia
mais deserta do que nunca. Dos dois primeiros veículos, emergiram cinco homens
elegantemente vestidos com ternos escuros, posicionando-se rapidamente ao lado
do último carro. O motorista, equipado com um guarda-chuva, desceu
apressadamente, contornou o automóvel e abriu a porta traseira. Sua Alteza Real, a
Princesa Margaret, desceu com um semblante fechado, acompanhada por Stuart.
Uma luminosidade surgiu no rosto de Catherine, que se aproximou rapidamente do
cortejo de Margaret: uma breve reverência precedeu uma seca troca de beijos. O trio
real passou sob o gigantesco letreiro neon, enquanto os guardas se transformavam
em estátuas com olhares austeros para a rua após a passagem de todos pelo portal.
Quando Margaret lançou um olhar para o salão, deparou-se com uma festa em
pleno andamento: uma banda, luzes vibrantes, vários garçons atentos, uma
plataforma que mais se assemelhava a um palco e... uma única mesa no centro, com
três lugares, para onde se dirigiram.

- Isso é tão anti-Margaret, não? - a princesa questionou para si mesma, embora


Stuart e Catherine se sentissem condicionados a interagir com a indagação.

- O que quer dizer? - Catherine disse primeiro, logo às costas de Margaret.

- Uma festa, mas uma festa sem pessoas. Temo que a nova Margaret se torne
patética em breve... - ela respondeu ao que um garçom afastou a cadeira para que se
sentasse. E assim o fez.

- Fique tranquila, nós não admitiremos sequer sombra de marasmo - Catherine


retrucou em uma cordialidade bem humorada, acomodando-se também.

- Talvez a saída seja se tornar tão excêntrica quanto Cayetana... - Stuart disse em
tom sarcástico. Margaret o fitou como se não soubesse do que ele estava falando -
A Duquesa de Alba... - ele complementou.

A Condessa explodiu em uma risada, assim como os outros, escondendo o rosto no


dorso das mãos.

- A Duquesa parece estar feliz à sua maneira... Temos quase a mesma idade.
Lembro que se casou novamente quando Tony saiu de casa e me tornei a primeira
desquitada da história de minha família - Margaret suspirou - Ninguém pode
negar que sou uma mulher à frente do meu tempo... - e voltou a gargalhar.
Cerca de duas horas havia se passado, e todos já estavam embalados por doses dos
mais caros e resolutivos uísques e vinhos europeus. Estavam felizes, rediscutindo
assuntos, como os sentimentos dúbios de Margaret em relação aos filhos, o ódio na
espiral de ressentimento que nutria por Antony - Eles amam o pai, e eu quase os
odeio por isso! - ou como o quanto o Príncipe de Gales se asfixiava nas cordas de
fogo da tradição.

- Eu me compadeço por Charles, pobre Charles... Mas o dever será sempre o dever -
comentou ela, forçadamente conformada, suspirando outra vez e, logo em seguida,
bebericou sua taça.

A música estava a todo vapor, a banda passeava entre o Jazz e o Rock - o vocalista
estava tão entusiasmado quanto um performer do Glastonbury. Então Stuart se
levantou sem sobreaviso e foi em direção ao balcão. Cochichou algo inaudível ao
gerente da casa que lhe devolveu um sorriso, desaparecendo por uma das portas
atrás dele. Stuart voltou à mesa, Margaret pareceu não ter notado sua ausência. Ele
trocou olhares com Catherine, que também tremelicou e fixou os olhos no palco. As
luzes ficaram repentinamente mais baixas, para o sobressalto de Margaret, à
medida que um feixe poderoso iluminou a plataforma acima do palco. A banda
parou de tocar por alguns segundos, e retomou em um estrondo

- Voilà! - vociferou Stuart - Showtime, Margot!

Uma fila de homens fortes e seminus surgiu na plataforma. Pareciam turcos? Sem
dúvida eram semelhantes aos homens que tanto entreteram Margaret anos atrás
numa viagem sigilosa à Istambul. Eles dançavam desordenados com suas sungas
fluorescentes, tão cafonas quanto irresistíveis às memórias felizes da princesa.
Margaret não se permitia parar de rir. Da suposta desorganização, os rapazes se
alinharam e a banda diminuiu o ritmo - Oh, eles ensaiaram para isso?! -,
introduzindo uma nova e lenta melodia.

- Isso é Rolling Stones... Beast of Burden! - Margaret enfatizou alto, fixando a


plataforma.

Enquanto os dançarinos coreografavam, Margaret mostrava que sabia a letra da


música e, eventualmente, estendia sua taça para que os serventes pudessem
abastecê-la enquanto cantava junto da banda. Quando a música acabou, os
nudistas de Istambul se retiraram do palco, e as luzes voltaram ao tom original,
assim como a banda regressou ao repertório comum.

- Eu preciso me recompor de tamanha... De tamanha... Eu não ousaria nomear o que


foi isso... - ela disse radiante, as mãos sobre o colar de pérolas.

Margaret se levantou em direção ao toalete e todos se ergueram em cortesia.


Quando voltou, ainda parecia contente. Novamente, o protocolo cortês, e estavam
todos acomodados ao lado da condessa.
- De quem foi a ideia? - ela perguntou, enquanto uma nova dose de vinho fora
servida - É, claro, de Stuart? - ela cuspiu em uma afetação lépida.

- É tão óbvio? - Catherine disse, propondo um brinde. Os três brindaram.


- Catherine...- Margaret finalizou um gole profundo - Catherine, não pense você
que não considero suas... contribuições. Você consegue traduzir e filtrar muito bem
o que espero do mundo real. Stuart me traz experiências, você me traz... repertório,
digamos.

Howard pareceu honestamente lisonjeada.

- A brasileira, por exemplo, adoraria vê-la de novo - Margaret afirmou, quase


como uma ordem.

- A Bourbon? Mesmo? - Catherine estava surpresa - Pensei que a houvesse


detestado...

- Falo sério. Adoraria vê-la outra vez, quero sugar sua juventude - ela gracejou,
incentivando os demais.

- Quem diria, Margot. Sua Alteza, em todo seu esplendor, baixando as guardas para
uma quase desconhecida, uma infanta - Stuart realmente quis tecer um elogio.

Margaret o fitou seriamente.


- Eu me casei com um fotógrafo, Pearland. Um plebeu... - disse com um didatismo
sombrio.

Stuart chacoalhou os ombros. Catherine saltitou como se lembrasse de algo:


- Anitta está em Liverpool!
- Oh, sim? Então veja se a Srta. Bourbon quer se juntar a nós esta noite - Margaret
inquiriu em um tom casualmente despreocupado. - Não estamos indo embora
mesmo...

***

A porta principal do salão se abriu, revelando um dos guardas. O homem de rosto


comprido mirou o horizonte, retesado, como em postura militar: "A Srta. Anitta
Bourbon", anunciou ele com exagero. Deu meia volta , concedendo passagem para
uma jovem esguia, de cabelos escuros e um vestido cor-de-mel que lhe cobria até
os joelhos. Ela caminhou com certa excitação em direção à mesa em que estavam
Margaret, Stuart e Catherine - estes dois últimos se levantando para recebê-la. Ao
chegar perto de Margaret, Anitta dobrou ligeiramente os joelhos: "Alteza...",
cortejou ela. A princesa assentiu e levou mais um gole de vinho à boca, observando
a garota finalizar as mesuras.

- Você chegou mais rápido do que imaginei - comentou Margaret, quando Anitta já
havia se instalado junto de Catherine. A jovem a olhou com decisão, a Condessa de
Snowdon também lhe provocara certa reação desde o último encontro.

- Estou hospedada no St. George Hotel, fica razoavelmente perto daqui - ela
respondeu, ajeitando os cabelos atrás da orelha - Estava quase dormindo quando a
recepção me transferiu a ligação de Lady Catherine... Bom, na verdade, eu
começaria a tentar dormir...

Margaret a cravou como se esperasse que Anitta dissesse mais.

- O artigo que estou escrevendo... Está dominando meu cérebro. Aquietar a mente
nessas ocasiões é um pouco complicado. Eu estava escrevendo até quase agora.

Catherine e Stuart observavam o diálogo com a nítida sensação de que aquele


circuito pertencia somente àquelas duas mulheres. Era do feitio de Margaret -
quando Sua Alteza Real iniciava uma conversa seja com o bispo, Marilyn Monroe ou
qualquer outro ser vivo, este era um assunto dela, até que ela convidasse um novo
interlocutor.

- E onde vai publicá-lo? - Margaret falava rápido, tornando a sentença mais aguda.
- Em um jornal brasileiro... Chama-se O Globo...

- Ah, então você está escrevendo em português, presumo?

- Exatamente.

- E do que se trata...?

- Do apreço dos ingleses por sua monarquia... - um garçom se aproximou e serviu


sua taça - Ou melhor, sobre o quanto a monarquia inglesa lateja junto do coração
do país e o quanto essa relação é indissociável no momento... - ela concluiu com um
gole vitorioso.

- Sem dúvidas um grande feito - Margaret ponderou. Uma piada pareceu surgir em
sua cabeça: - O Globo não se importa com uma monarquista fazendo parte do seu
editorial?

- Assumo um tom moderado em determinadas ocasiões...

- Gostaria de ter o direito de fazer o mesmo - Margaret disse à sua plateia - Às


vezes colocam em cheque até mesmo minha lealdade à Coroa...

- Pra ser sincera, eu mesma já me perguntei sobre isso. Digo, em relação a você...

Desta vez, Margaret a encarou com intensidade.

- E a qual conclusão chegou?

- Que se esta fosse de fato a questão, nós já saberíamos há pelo menos vinte anos.

A sinceridade da resposta fez com que os três caíssem outra vez no riso.

- Srta. Bourbon... O que exatamente os herdeiros aparentes ao trono brasileiro


fazem da vida?

- Bom... Meu pai, Dom Pedro Henrique, o chefe de nossa Casa Imperial,
infelizmente não está em um bom estado de saúde. Acredito que não viva mais do
que um ano... - Anitta disse com impessoalidade - Mas passou grande parte de sua
vida como agricultor.

- Sim?

Anitta respondeu com um gesto.

- Dom Luiz Gastão, seu filho e meu irmão mais velho, é cientista político e fornece
consultorias especializadas. E, eu, como você sabe, sou jornalista e historiadora...

- Você também é historiadora, não é, Catherine?

A dama de companhia fez que sim.

- Bourbon também é modelo - Catherine papeou bem humorada, fazendo Anitta


corar.

- Oh, pelo visto, meu mau exemplo chegou do outro lado do Atlântico - disse
Margaret, sem sorrir. Estava falando sério - Você está em que ponto da linha
sucessória mesmo?

- Abaixo de Dom Luiz...

- Então se seu pai falecer e se seu irmão não puder assumir a chefia da Casa
Imperial, teremos uma imperatriz?

- Deus queira que não.

- Uma imperatriz manequim...

Stuart sentiu que já poderia se envolver na conversa:

- Uma literal rainha dos trópicos.

Anitta ampliou o sorriso, sem modéstia.

- Céus, que título maravilhoso! - Catherine levou as mãos à boca - Stuart, de onde
você tira essas coisas?
- Ele opera com a mente fértil de um dramaturgo. Não é, Stuart? - Margaret mais
afirmou do que perguntara algo - Temos entre nós a Rainha dos Trópicos... - ela
disse, virando sua taça de uma vez. Todos a imitaram, inclusive Anitta.

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