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Se a cultura das aparências, nos séculos

XVII e XVIII, associada ao luxo e à frivoli¬


dade, aparecia como um privilégio das
elites, na sociedade contemporânea ela
se transformou numa prática inevitável,
que peqiassa os mais diferentes segmen¬
tos sociais. Somos todos vítimas da moda,
não por conta de algum mecanismo
coercitivo, mas porque ela nos assalta co¬
tidianamente, tornando-se parte inte¬
grante do nosso processo de construção
das identidades e do nosso modo de co¬
municação. “A necessidade de moda se
inscreve obviamente entre esses dois
pólos: a vontade de nos tornarmos nós
mesmos, o desejo de entrarmos em rela¬
ção com 0 outro.”

A originalidade do livro Vítimas da


moda? Como a criamos, por que a se¬
guimos, de Guillaume Emer, está justa¬
mente em deslocar a moda do foco da
discussão, do espaço da distinção social
e de classes, onde estava confinada, para
a esfera da inserção social e da expres¬
são pessoal. Do nascimento da alta cos¬
tura francesa, em meados do século XIX,
até a cultura das marcas dos nossos dias,
0 autor traça um percurso da popula¬
rização do mundo aristocrático da moda.

Doutor em sociologia e professor do


Institute dTtudes Politiques de Paris,
Emer trabalha simultaneamente com dois
temas que à primeira vista podem pare¬
cer contraditórios: o anti-semitismo e a
moda, mas que se fundem na trajetória
pessoal desse jovem intelectual. Neto de
Vítimas da moda?
Como a criamos, por que a seguimos
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Emer, Guillaume
Vítimas da moda? : como a criamos, por que a seguimos
/ Guillaume Emer ; tradução Eric Roland René Heneault. -
São Paulo : Editora Senac São Paulo, 2005.

Título original: Victimes de la mode? : comment on la


crée, pourquoi on la suit
Bibliografia.
ISBN 85-7359-454-3

1. Moda - Aspectos sociológicos 2. Moda - Criação


3. Moda - Estilo - Aspectos sociais 4. Moda - Estilo -
História 5. Moda - Indústria - Marcas comerciais
6. Vestuário - Psicologia I. Título.

05-7092 CDD-391

índice para catálogo sistemático:


1. Moda : Estilismo e tendências : Costumes 391
Guiliaume Erner

Vítimas da moda?
Como a criamos, por que a seguimos

Tradução
Eric Roland René Heneault
Administração Regional do Senac no Estado de São Paulo
Presidente do Conselho Regional: Abram Szajman
Diretor do Departamento Regional: Luiz Francisco de Assis Salgado
Superintendente Universitário: Luiz Carlos Dourado

EDITORA SENAC SÃO PAULO


Conselho Editorial: Luiz Francisco de Assis Salgado
Luiz Carlos Dourado
Darcio Sayad Maia
Clairton Martins
Marcus Vinicius Barili Alves

Editor: Marcus Vinicius Barili Alves (vinicius@sp.senac.br)

Coordenação de Prospecção Editorial: Isabel M. M. Alexandre (ialexand@sp.senac.br)


Coordenação de Produção Editorial: Antonio Roberto Bertelli (abertell@sp.senac.br)
Supervisão de Produção Editorial: Izilda de Oliveira Pereira (ipereira@sp.senac.br)

Preparação de Texto: Leticia Castello Branco


Revisão de Texto: Adalberto Luís de Oliveira, Denise de Almeida, Fátima Couto,
Ivone P. B. Groenitz, Jussara Rodrigues Gomes
Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Fabiana Fernandes
Capa: Moema Cavalcanti
Impressão e Acabamento: Cromosete Gráfica e Editora Ltda.

Gerência Comercial: Marcus Vinicius Barili Alves (vinicius@sp.senac.br)


Supervisão de Vendas: Rubens Gonçalves Folha (rfolha@sp.senac.br)
Coordenação Administrativa: Carlos Alberto Alves (calves@sp.senac.br)

Traduzido de:
Victimes de la mode? Comment on la crée, pourquoi on la suit
© Editions La Découverte, Paris, France, 2004

Proibida a reprodução sem autorização expressa.


Todos os direitos desta edição reservados à
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© Edição brasileira: Editora Senac São Paulo, 2005


Sumário

Nota da edição brasileira 7


Agradecimentos 11
Prefácio 15
Introdução 19

Primeira parte; A marca ãe fábrica 29


1. O nascimento do costureiro 31
2. O milagre da marca 63

Segunda parte: A fábrica das tendências 101


3. A moda está no arbitrário 103
4. As tendências são dirigidas? 131
5. As leis das tendências 161

Terceira parte: Por que é marcante? 189


6. O espírito da moda é irracional? 191
7. A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo 215

Conclusão 245
Bibliografia 249
índice geral 251
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Nota da edição brasileira

No mundo capitalista globalizado, a moda - em constante e


rápida expansão - influencia as pessoas, e em grande escala.
Seja como o principal produtor de exorbitância e ousadia, seja
como a expressão de estilos, seja como um "turbilhão de ten¬
dências que torna indispensável, e depois obsoleta, toda e qual¬
quer coisa”, a moda gera empregos e faz girar capital, dita com¬
portamentos, define costumes, transforma práticas sociais.

A moda, ela própria, é alvo das influências que exerce. Por


tudo isso, chama a atenção de cientistas sociais. Como objeto de
estudo, por ironia, a moda está "na moda". Nada mais in do que
falar de roupas, sapatos, bolsas, perfumes, relógios, ou interes¬
sar-se pelas empresas que os produzem ou, ainda, pelas marcas
que os destacam e por quê. Estes não são mais assuntos fúteis,
coisa para "dondocas"; são temas relevantes para estudiosos.

É por isso que o Senac São Paulo traz a público Vítimas da


moda? Como a criamos, por que a seguimos, do sociólogo fran¬
cês Guillaume Erner. O autor, neto de alfaiate e filho de dono de
confecção, por meio de sua vivência, assinala os caminhos da
moda no cotidiano das sociedades, revela como tendências e
estilos são definidos, como marcas são criadas, e questiona por
que a tudo isso seguimos. Espera-se, assim, incentivar alunos e
profissionais da área - também as pessoas em geral - a se
aprofundarem neste complexo e fascinante tema.
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Para Marie
Agradecimentos

Quero, em primeiro lugar, agradecer a todos aqueles que aceita¬


ram responder às minhas perguntas: Laurence Benaim, Alber
Elbaz, Marie-Pierre Lanelongue, Christian Larger, Pierre-François
Le Louèt, Serge Liminana, Marie-Christiane Marek, Florence
Müller, Ariel Ohana, Laurence Perez, Loic Prigent, Jean-Paul
Leroy e Guillaume Salmon, com um agradecimento especial
para Didier Grumbach e Janie Samet.

Meu trabalho se inspira em grande parte no pensamento


de Raymond Boudon, de quem tive a sorte de ser aluno e a
quem quero expressar aqui minha gratidão. Além disso, vários
colegas e amigos me ajudaram durante a redação deste livro.
Sou particularmente agradecido a Renny Aupetit, Lionel Avot,
Esther Benamou, Ariel Colonomos, Aline Duriez, Mathias
Echenay, François Frner, Fsther Flath, Gabriel Gaultier, Ivan
Jablonka, Nicolas Herpin, Henri Kaufman, Christophe Lichtenstein,
Glaudia Lichtenstein, Frédéric Lordon, Luca Marchetti, Erwan
Martin, André Orléan, Bruno Remaury, Philippe Sambé, Pascal
Sanchez, Guy Sitbon, Sarah Stern, Paul Zawadzki, sem esquecer
os bibliotecários do Institute Français de la Mode (IFM).

Por fim, gostaria de agradecer aos meus editores e interlo¬


cutores na Editora La Découverte - Emmanuelle Bagneris,
François Gèze, Pascale Iltis, Marie-Soline Royer e Pascal
Vandenberghe -, cuja confiança e paciência possibilitaram a exis¬
tência deste livro.
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Estejam certos de que quando um homem crê
poder decidir sozinho a forma de um vestuário
ou as convenções da linguagem, não hesita em
julgar todas as coisas por si mesmo, e quando as
pequenas convenções sociais são assim mal ob¬
servadas, contem que uma grande revolução teve
lugar nas grandes.

Alexis de Tocqueville,
A democracia na América

Descobriram as roupas de lã, as blusas de seda,


as camisas de Doucet, as gravatas de voíle, os
lenços de seda [...], a magistral hierarquia dos
calçados, enfim, que leva dos Churchs aos Weston,
dos Weston aos Bunting e dos Bunting aos Lobb.

Georges Perec, Les choses


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X»'
Prefácio

Os sociólogos são pessoas sérias; não têm tempo para seguir a


moda. Fora algumas exceções, os universitários desprezam as
tendências. Por sua vez, o mundo da moda ignora a sociologia.
Para que se incomodar com uma literatura que tem seu próprio
jargão? Os dias são curtos demais, as noites não tão longas,
para que eles se entreguem a esse tipo de vício.

Portanto, o universo de Zara e de Chanel raramente é ex¬


plorado pelos sociólogos. Tbdavia, a moda é um objeto perfeita¬
mente legítimo para a disciplina que tem por tarefa entender o
social. Os pensamentos coletivos não lógicos são objetos fami¬
liares para a sociologia. Se "até as mais estranhas crenças po¬
dem [...] ser submetidas a uma análise de tipo científico",^ como
afirma Raymond Boudon, então é totalmente legítimo que a
sociologia se interesse pela moda. De fato, existe algo mais es¬
tranho que uma tendência? Por que querer mudar o compri¬
mento das saias a cada estação? Como justificar um sistema
que estimula indivíduos adultos ao desperdício? As crenças que
motivam esses comportamentos são tão ilógicas quanto as dan¬
ças para chamar a chuva ou o temor de uma invasão de extra¬
terrestres.

1
Raymond Boudon, Lart de se persuader des idées douteuses, fragiles ou fausses
(Paris: Fayard, 1990), p. 7.
16 Vítimas da moda? Como a criamos, por que a seguimos

Contudo, na sociologia, a moda não é um assunto nobre.


Para estudar esse fenômeno, as formas que hoje ele adota, é
necessário observar temas considerados vulgares; não apenas
"falar de roupas”, mas também se interessar pelas empresas que
as produzem ou, ainda mais, pelas marcas que as destacam. Em
relação à moda, as marcas preenchem um papel semelhante ao
da gravitação universal em relação à queda dos corpos. Pode¬
mos deplorar sua existência ou importância, porém não é pos¬
sível ignorá-las. Dessa maneira, precisamos nos preocupar com
temas superficiais, abandonar por um instante os questiona¬
mentos comuns da sociologia - o capitalismo e outras seculari-
zações - para dedicar tempo a Prada e Gucci, às cores e formas
dos vestidos.

Derradeira precaução: na sociologia, é tradição explicitar a


"relação com o objeto”, explicar que relação se criou com o
objeto estudado. Por isso, acho melhor confessar de antemão:
o vínculo que une o autor destas linhas ao setor do vestuário é
tudo, menos teórico. Neto de alfaiate, filho de donos de confec¬
ção, ele mesmo trabalhando nesse setor há mais de doze anos,
o mundo do vestuário é um universo que ele conhece por den¬
tro. Portanto, a pesquisa começou há 35 anos, o que ao mesmo
tempo representa uma sorte e um limite. Nessas condições, é
impossível que ele permaneça neutro em relação ao mundo
que conhece tão bem, um conhecimento íntimo e quase car¬
nal. O perigo não reside na possibilidade de ser parcial; contra
esses eventuais desvios, a consciência vigia. Ao contrário, ele
deve se mostrar mais compreensível em relação a esse univer¬
so que qualquer outro sociólogo, para quem esse mundo é es¬
tranho. Porque hoje como ontem o universo do vestuário, do
schmates, como diziam os judeus em ídiche, permanece incri¬
velmente emocionante. Nele convivem o bom-dia dos simples '
Prefácio 17

e o comércio dos astutos. * Fala-se a mesma língua de Tóquio a


Tfel-Aviv, passando por Hong Kong; as fortunas surgem ou de¬
saparecem na velocidade de um zíper; as moças são lindas, os
rapazes fáceis e vice-versa. Esse mundo é governado pelo grego
e pelo hebraico. Duas palavras essenciais, que os nova-iorquinos
utilizam na linguagem cotidiana: hyhris, ou seja, a exorbitância,
o orgulho arrogante, segundo Aristóteles; e chutzpah, termo
hebraico que designa algo como a ousadia. O universo da moda
não tem o monopólio da chutzpah e da hybris, mas é um de
seus principais produtores. Sem chutzpah, Ralph Lauren, filho
de imigrantes judeus nascido no Brooklyn, nunca teria ousado
ensinar a gentry americana a se vestir. Somente a hyhris pôde
inspirar Giorgio Armani a erguer a incrível sede que sua em¬
presa tem em Milão. Mas a exorbitância não amedronta esse
criador: ele não legou seu nome a um império, Empório Armani?

Tódavia, para quem sabe observar, o mundo da moda não


é aquele leviano e fútil que freqüentemente vem sendo descri¬
to. Desde Jean Cocteau, sabemos que "a moda morre jovem", e
é por isso que ela tem um ar de gravidade. Quando passeamos
pelo Carreau du Temple, coração histórico do mundo têxtil
parisiense, onde acontecem os novos desfiles do prêt-ã-porter,
percebemos o alcance - infelizmente - profético dessa afirma¬
ção. A doce melancolia que envolve essas ruas vem da imagem
dos judeus salvos dos campos de concentração que, nesse lu¬
gar, venderam suas primeiras roupas, cortadas em panos mili¬
tares, logo depois da Segunda Guerra. Vem também daqueles
que morreram de aids e que fazem com que hoje a moda seja
um mundo em luto.

* Essa frase faz referência a um verso de René Char em "Tli as bien fait de
partir, Arthur Rimbaud!”, em Fureur et mystère (Paris: Gallimard, 1962). (Nota
do tradutor.)
181 Vítimas da moda? Como a criamos, por que a seguimos

A sociologia não pode tudo. Especialmente, não pode res¬


suscitar o passado nem devolver a vida aos mortos. Mas, ao nos
ajudar a entender o presente, ela pode homenageá-los.
Introdução

Ela mudava de vestido várias vezes por dia; um para cada oca¬
sião. Mas seu assunto predileto eram os penteados. Obviamen¬
te, ela não deixava qualquer um cuidar de seus cabelos: para um
assunto tão sério, entregava-se aos cuidados de um inglês, um
verdadeiro esnobe, pelo que se comentava. Ele se permitia
selecionar seus clientes, e às vezes recusava mulheres da mais
alta sociedade. O dia inteiro ela pensava nisso, procurando o
melhor creme, caçando as novas tendências, que suas amigas
traziam de fora. Sim, mas um belo dia essa cabeça tão bem
cuidada caiu. Ela não era Gwyneth Paltrow, mas Maria Antonieta.

Portanto, a moda está na moda há muito tempo. Hoje, as


tendências não são mais aristocráticas; democratizaram-se. Pou¬
cas pessoas têm força ou vontade de escapar ao seu domínio.
Contudo, a novidade radical deve ser procurada em outro lugar;
nos costureiros e nas marcas que criaram. Maria Antonieta, au¬
têntica fashionista, apaixonava-se pelas formas e cores. Com cer¬
teza, ela se preocupava com o artesão que as realizava, tendo
preferência pelo savoir-faire de alguns. Tbdavia, o que importava
era o vestido. Ninguém considerava os criadores de roupas como
artistas. Várias outras profissões tinham um estatuto mais dese¬
jável; era melhor ser arquiteto ou cozinheiro do que costureiro.
Aliás, essa palavra não existia ainda; apareceu mais tarde na lín¬
gua francesa, por volta de 1870, abrindo as portas a belas-carrei-
201 Vítimas da moda? Como a criamos, por que a seguimos

ras. Doravante, é o costureiro que dá às roupas sua assinatura ou


sua marca de fábrica; assim, o fenômeno social que a moda re¬
presenta foi consideravelmente transformado.

O século XX foi o dos costureiros. Já nos anos 1930, Coco


Chanel era uma personalidade. Alguns anos depois, ao sair da
guerra, os Estados Unidos receberam Christian Dior como um
chefe de Estado. E hoje, Jean-Paul Gaultier ou Karl Lagerfeld são
estrelas incontestáveis. O mundo saúda cada uma de suas cria¬
ções, suas roupas, claro, mas também os cosméticos do primeiro
e a dieta do segundo. Quanto caminho percorrido! Em algumas
décadas, o personagem do costureiro conquistou o papel princi¬
pal no palco. Uma evidência dessa transformação: às 11:30 h de
29 de junho de 1959, Brigitte Bardot se casa com Jacques Charrier.
Ela usa então um dos vestidos mais conhecidos na história da
humanidade. Pergunta: quem criou esse vestido? Resposta: na
época ninguém se preocupava com isso, e a reportagem que a
revista Elle dedicou ao evento menciona a estampa vichy, mas
não seu criador. Dessa maneira, o vestido deu menos fama ao
criador, Jacques Estérel, que ao grupo Boussac, que então produ¬
zia essa estampa. Hoje, tal esquecimento seria inimaginável: o
estilista é freqüentemente mais célebre que a noiva. Cada um
deles criou uma marca, como uma extensão de seu poder cria¬
dor. A grife ocupa lugar central no sistema da moda; parece até
estar à frente de tudo. Assim, perguntaram recentemente a algu¬
mas novas estrelas de que maneira gostariam de ir vestidas para
o Festival de Cannes. Como elas descreveram a roupa de seus
sonhos? Evocando determinado padrão, um modelo famoso? De
jeito nenhum: citaram uma lista de marcas prediletas.

Os costureiros venceram uma batalha: suas marcas estão


em todo lugar. Aparentemente, o sucesso deles é total. Nada
parece resistir a essa aliança inédita do artista com o husiness- '
Introdução

man. Suas criações são compradas em lojas, mas expostas em


museus. Tüdo o que tem a marca deles faz sucesso; sua assina¬
tura dá imediato destaque aos mais diversos objetos, dos perfu¬
mes às mesas de jantar. No final das contas, um único fenôme¬
no resiste a eles: a moda, esse turbilhão de tendências que tor¬
na indispensável, e depois obsoleta, qualquer coisa. Publicamen¬
te, os estilistas se recusam a confessar seus limites. Com a mes¬
ma firmeza, continuam ditando as cores e formas da próxima
estação. É impossível, para eles, agir de outra maneira. Se reco¬
nhecessem sua impotência, as poucas pessoas para as quais seus
desejos são ordens os abandonariam.

Para os costureiros, como para nós, as tendências são um


mistério. Mas, diferentemente dos neófitos, os costureiros de¬
vem fingir, imperativamente, que são seus inspiradores. Os mais
hábeis conseguem fazê-lo perfeitamente. Esses sábios compre¬
endem que não adianta ir contra a sociedade. Ela é o verdadei¬
ro árbitro das elegâncias, e ainda o verdadeiro responsável por
essa insegurança tão temida por Dior e Chanel. “A rua é perigo¬
samente criadora", reconhecia humildemente Christian
Lacroix.^ As verdadeiras fashion victims não são aquelas que
pensamos: os costureiros estão provavelmente entre as primei¬
ras vítimas da moda.

A moda martiriza menos os sociólogos que os costureiros.


Tãlvez seja por esse motivo que alguns especialistas do social per¬
sistem em lhe guardar respeito. Para eles, as tendências são o
fruto de uma caixa-preta que a decência impede de abrir. Mos-
tram-se, ao contrário, muito menos piedosos com os fashionistas,
abandonados à sua própria sorte. Sem nenhuma consideração,
negam-lhes toda racionalidade. Está na hora de corrigir essa in-

1 Christian Lacroix, Repères, modes et textiles (Paris: Institut Français de la Mode


- IFM, 1996), p. 55.
Vítimas da moda? Como a criamos, por que a seguimos

justiça, de explorar a fabricação da moda, restituindo suas razões


aos atores e suas origens às tendências.

A cada ano, aparecem profetas que proclamam a volta da


minissaia. Mas a minissaia deve estar ocupada: há algumas es¬
tações, ela manda os jeans no seu lugar. Assim é a moda: capri¬
chosa, até colérica. Firmes e dominadores, os primeiros
costureiros pensavam que poderiam domesticá-la. Charles Worth
e Paul Poiret, dois grandes pioneiros da moda contemporânea,
ignoravam que sua vida seria obrigatoriamente trágica; ao se
tornarem costureiros da moda, condenavam-se a qualquer dia
deixar de sê-lo. Com eles, começou a grande valsa dos talentos:
Poiret eclipsou Worth antes de entregar seu magistério a Chanel.
Desde esse glorioso início, os nomes mudaram, mas o roteiro
continua o mesmo. As estações reservam aos estilistas o mes¬
mo destino que às cores e formas. Um ano, é necessário vestir
azul, o ano seguinte passa a ser do vermelho; da mesma manei¬
ra Gucci sucede a Cerruti.

Claro, o guarda-roupa não é o único lugar regido por fenô¬


menos cíclicos. Contudo, de todas as modas, a do vestuário é a
mais enigmática. A nova culinária, como a antiga, obedece a
certas regras. Um exemplo: a preocupação em manter a linha
não tem nada que ver com o desenvolvimento da culinária ja¬
ponesa e o declínio do cassoulet. Da mesma maneira,
freqüentemente é possível entender por que um nome se tor¬
na popular ou deixa de sê-lo. A multiplicação dos El vis, nos
anos 1960, nos Estados Unidos, não constitui um enigma. Mui¬
to mais inexplicáveis são as lógicas que levam milhares de pés a
usar os mesmos sapatos. Por exemplo, como explicar o surpre¬
endente destino da sandália de dedo? Durante muito tempo,
esse calçado foi meramente limitado ao uso caseiro ou à praia:
desde o verão de 2000 sabemos que é bastante utilizado na cida- '
Introdução ( 23

de. Contudo, a providência não tirou da areia todos os calça¬


dos. As engraçadas sandálias de plástico translúcido ainda não
têm o direito de se afastar da água. Seria necessário manifestar-
se contra tanta injustiça. O destino da sandália de dedo, po¬
rém, já parece definido: ao que parece, o verão de 2004 foi fatal.
Ela foi demasiadamente comercializada. Tbdavia, em 2002 ela
incomodava as autênticas fashion victims, que a usavam na ponta
dos pés. Portanto, as sandálias de dedo estão, por assim dizer,
em vias de pashminização - nome originário da pashmina, pre¬
ciosa estola que classicamente passou do estatuto do must have
ao de símbolo do mau gosto.

Essas duas epopéias - a da sandália de dedo e a da pashmina


- reúnem os três ingredientes necessários à transformação de
um objeto banal em produto de grande sucesso: a arbitrarieda¬
de, a distinção e a imitação. Arbitrariedade porque a sandália de
dedo fez sucesso onde muitos outros calçados que mostram os
pés fracassaram. O tamanco para homem não conseguiu ultra¬
passar as fronteiras de um pequeno núcleo gay e ligado à moda.
Vários fatores podem esclarecer o sucesso da sandália de dedo:
seu preço ou, ainda, a nostalgia da praia. Mas essas tímidas con¬
jecturas não dissipam o mistério. Com certeza, seria possível
formular algumas hipóteses audaciosas. Contudo, é melhor se
poupar do ridículo que consistiria em justificar essa moda pelo
fato de que o homem hipermoderno teria uma propensão a
mostrar o dedão do pé. Tbdavia, e certamente, o primeiro indi¬
víduo que colocou os pés desnudos na rue Étienne-Marcel, em
Paris, fez isso para se distinguir de todos os caretas que usam
sapatos fechados. Esses indivíduos de vanguarda foram imita¬
dos, como o foi, em seu tempo, Gwyneth Paltrow, quando par¬
ticipou da cerimônia do Oscar com uma pashmina nos om¬
bros. Segundo a lenda - a moda se deleita com pequenas histó¬
rias -, a estola teria sido trazida de uma improvável viagem ao
21 Vítimas da moda? Como a criamos, por que a seguimos

Tibete. As fotos da beldade deram a volta ao mundo, e os pro¬


fissionais procuraram febrilmente o Tibete em um mapa-múndi,
antecipando a próxima moda.

A posteriori, a pashmina ou a sandália de dedo podem pa¬


recer casos simples. Para prever o sucesso desses dois artigos,
existem apenas duas possibilidades. Primeira: consultar tantos
videntes quantos forem os consumidores potenciais para co¬
nhecer seus gostos e desejos. Segunda, mais aceitável em socio¬
logia: utilizar modelos que permitam entender as escolhas
coletivas a partir das decisões individuais. Optaremos por este
último método, deixando a astrologia para os pseudo-sociólo¬
gos - Elizabeth Tfessier’ se formou em sociologia em circuns¬
tâncias muito controversas - e para os verdadeiros costureiros
- Paco Rabanne, como sabemos, fez algumas predições.

A moda não se aplica somente às roupas; diz respeito tam¬


bém às marcas. Para fabricar a moda, estas tiveram de se subme¬
ter às suas regras; em outras palavras, tornar-se tendência e de¬
pois deixar de sê-lo. A crueldade desse destino não foi imediata¬
mente percebida: as expectativas depositadas no sistema da mar¬
ca eram imensas. A excitação dos pioneiros permitia imaginar a
dos alquimistas se tivessem conseguido transfonnar o chumbo
em ouro. Seu poder parecia enorme: bastava, por exemplo, colo¬
car um crocodilo em uma simples camiseta pólo para transformá-
la em uma autêntica Lacoste.

Chanel e Dior foram provavelmente os primeiros a tomar


consciência dos poderes da marca. Coco percebeu que a men¬
ção de seu nome era suficiente para vender os mais diversos
produtos. Um exemplo: ela não tinha muito conhecimento de
perfumes. Contudo, seu “N“ 5" imediatamente fez muito suces-

• Astróloga muito famosa na França. (Nota do tradutor.)


Introdução Í25

so. Hoje, esse número é a única de suas criações que chegou


intacta até nós. Diante disso, Dior se atreveu e decidiu "alugar"
seu nome. A cobaia foi um fabricante de gravatas americano,
que se apressou em produzir e comercializar uma coleção com¬
pleta batizada com o nome do costureiro. Todavia, Dior não
tinha criado nenhum desses acessórios. Pior ainda, essas grava¬
tas eram tão diferentes de seu gosto que ele preferia se proteger
ignorando a existência delas.

A descoberta de Dior deu nascimento ao sistema de licen¬


ças, que permite batizar tudo - e às vezes não importa o quê -
com o auxílio dos nomes mais prestigiosos. Em economia, essa
possibilidade se chama renda; em outras palavras, um capital
suscetível de se valorizar. A renda fundiária é bem antiga, mas
é baseada na terra, que se herda ou se adquire. Com a marca,
entramos no imaterial: um jovem um tanto perdido, um pouco
boêmio, como Christian Dior, pode se achar subitamente de
posse de um precioso capital. O interesse de tal invenção não
podia escapar aos financistas. Subitamente, austeros gerentes
que nunca sonharam em mudar a cor de seus ternos cinzentos
passaram a se interessar pela moda. Grandes empresas como a
Moèt Hennessy Louis Vuitton (LVMH) ou a Pinault-Printemps-
Redoute (PPR) colecionaram marcas a fim de aumentar suas
rendas. Infelizmente, a renda obtida com uma marca tende a
variar rapidamente; nos anos 1980, nada valia tanto quanto
Cerruti, enquanto hoje... As marcas de moda estão à mercê da
moda. Embora invistam muito em publicidade, invoquem a
grande tradição do luxo, elas precisam conciliar a parte mais
variável de nossas sociedades: as tendências. O mundo é hostil
a elas. Cada maison de alta-costura é cercada de concorrentes
que a espreitam e procuram inspirar-se em seus modelos assim
que fazem sucesso. E entre esses concorrentes se encontram
também as empresas de “baixa-costura", Zara e outras H&M,
Vítimas da moda? Como a criamos, por que a seguimos

atentas ao mínimo sucesso das grifes de prestígio para oferecer


adaptações a menor preço.

Como se não bastassem as tendências e a concorrência, as


marcas de moda foram também atacadas pelos adversários do
capitalismo, tornando-se na ocasião símbolos da sociedade de
consumo. O livro No logo, de Naomi Klein,^ denuncia nota-
damente a invasão do espaço público pelo swoosh, essa vírgula
estilizada que representa a marca Nike. De forma mais geral,
essas marcas foram incriminadas por contribuírem para um
mundo injusto. Não apenas foram apontados seus métodos de
produção como também as técnicas de comercialização desen¬
volvidas por essas empresas. A divulgação das condições de
trabalho em certas fábricas de países do terceiro mundo que
produzem roupas de marcas de prestígio chocou profundamente
a opinião pública. Esses protestos parecem ter dado resultado,
já que várias empresas, na ocasião, fizeram seu mea-culpa, co¬
meçando pela Nike.

Mas os militantes anticapitalistas escolheram enfrentar um


adversário forte demais. Claro, nenhuma empresa pode resistir
a eles: até as mais teimosas tiveram de se render diante das
ameaças de boicote. Contudo, as tendências e o sistema que
elas alimentam nunca estiveram tão fortes. A moda não é uma
criação dos comerciantes. Mesmo que estes estejam se aprovei¬
tando de seu sucesso, ela existiria de qualquer maneira, inde¬
pendentemente deles. Surgida na sua forma atual no começo
dos tempos modernos, ela.parece ser indispensável para o indi¬
víduo contemporâneo. A moda pode ser uma servidão, mas é
uma servidão voluntária. Nenhuma marca, nenhum costureiro
pode nos obrigar a viver na obediência e no respeito às tendên-

^ Naomi Klein, No Logo: la tyrannie des marques [Aries: Actes Sud), 2001.
Introdução (27

cias. Existe apenas uma pessoa suficientemente forte para nos


levar a seguir a moda; nós mesmos. Finalmente a moda seria
uma mentira banal se não fosse, antes de tudo, uma mentira na
qual queremos e até gostamos de acreditar.
Primeira parte
A marca de fábrica
1
0 nascimento do costureiro

Costureiro: talvez uma das profissões mais recentes do mundo.


Surgida no fim do século XIX, é uma profissão problemática,
difícil de classificar. Os comediantes vão para o inferno, os aris¬
tocratas para o cadafalso, mas e os gênios da agulha, para onde
vão? Hoje, eles vão e estão em todos os lugares. Não são apenas
artistas, são também estrelas, businessmen. As revistas os dis¬
putam, e quando não estão em seus ateliês nem em aviões, é
porque estão respondendo ao convite que um patrocinador fez
para homenageá-los. Quando iniciou a carreira, Worth não es¬
perava tanta coisa. Simplesmente queria vestir as mulheres.
Ignorava que, um século depois, pessoas como ele usariam o
próprio nome para vender perfumes ou criar impérios. Os
costureiros não inventaram a moda, que apareceu no Ocidente
no século XIV, mas tentaram domesticá-la. Aparentemente,
venceram essa luta contra as tendências: atualmente, são eles
que impõem seu estilo às roupas que usamos. Sua identidade
peculiar, entre artista e estrela, confere a eles o poder de colo¬
car um pouco de sua aura em cada uma de suas criações.
A marca de fábrica

Do primeiro costureiro à primeira marca de moda

As roupas eram, geralmente, negócio de comerciantes ou


artesãos. Mas Charles Frédéric Worth (1825-1895) não queria ser
nem uma coisa nem outra. Ele se considerava um criador! E
sua teimosia foi recompensada: no meio do século XIX, ele
moldou o personagem do costureiro. Certamente, não era o
primeiro homem que oferecia seus serviços a alguns privilegia¬
dos para confeccionar suas roupas. Antes dele, um certo Leroy
teve seu momento de glória quando criou os trajes que Napoleão
usou na sua sagração. Mas o fim do imperador também foi o de
Leroy. Worth lhe sucedeu, introduzindo uma idéia-chave: a ino¬
vação. Foi ele quem pensou em reunir em um único lugar um
estilo e uma promessa de novidades. Em 1858, ele inaugurou
sua maison, escolhendo um slogan que poderia ter sido consi¬
derado um manifesto: "Altas novidades". Até esse momento, a
mudança nunca tinha sido pensada e reivindicada por si. Aí,
nessa butique, estranhamente localizada em um novo bairro de
Paris cujo destino parecia promissor, a rue de la Paix, ele garan¬
tia o inédito a cada estação.

À maneira de um retratista, Worth não escolhia seu tema.


Tbdavia, impunha um tratamento. Seu trabalho, como explica¬
va, não consistia "somente em executar, mas, sobretudo, em in¬
ventar. A criação é o segredo de meu sucesso", acrescentava.
"Não quero que as pessoas encomendem suas roupas. Se o fizes¬
sem, eu perderia metade de meu comércio."^ Seus clientes, mes¬
mo que prestigiosos, não ditavam as leis. Em matéria de elegân¬
cia, ele se precavia para permanecer o único árbitro. A impera¬
triz Eugênia não gostava de brocados? Contudo, seguindo a or¬
dem de seu marido, Napoleão III, ela usou o vestido de brocado

1
Didier Grumbach, Histoires de mode (Paris: Seuil, 1993), p. 19.
0 nascimento do costureiro

florido que lhe propôs - desculpe; lhe impôs - Worth. Como não
era rancorosa, Eugênia - como outra lendária aristocrata, Sissi
(Elizabeth da Áustria) - imortalizou essas criações no retrato fei¬
to pelo pintor Winterhalter, para o qual serviu de modelo usando
um vestido de tule de seda adornado de bordados de ouro. Worth
não se considerava um fornecedor dessas damas; ele queria ser
igual a elas, seu amigo, seu confidente. Explicava que, como per¬
tencia ao mundo delas, podia entender as expectativas da rainha
Vitória ou da mulher do czar. E para convencê-las a comprar
suas criações, ele teve a idéia de apresentá-las sendo usadas por
mulheres verdadeiras: assim, inventou os manequins, que origi¬
nalmente eram chamados “sósias”.

As criações de Worth eram singulares, assim como sua po¬


sição social. Ele não era um tipo dominante, nem também um
dominado entre os dominantes. Nas altas esferas, ele gozava de
um lugar especial, como, em outros tempos, o bobo da corte ou
o artista. Certamente, o esnobismo era seu ganha-pão, mas ele
conseguia manter, nesse universo aristocrático, um lugar para
a fantasia e a excentricidade. O símbolo dessa surpreendente
mistura: as moças, apelidadas de jockeys, encarregadas de
encarnar a maison junto à alta sociedade, de representar a
quintessência da elegância, segundo o mestre. A primeira des¬
sas ninfas foi Pauline de Metternich, esposa do embaixador da
Áustria, de personalidade viva, que conjugava de forma mara¬
vilhosa a distinção e a zombaria. Poucas souberam retomar esse
papel; Betty Catroux para Yves Saint Laurent; Inès de la
Fressange para Chanel; ou ainda Farida para Jean-Paul Gaultier
foram das poucas que conseguiram encarnar o espírito boêmio
como o imagina o high society.

Embora Worth tenha tido uma posição social ambígua, seu


estilo era determinado; ele associava a seu nome uma silhueta
34 A marca de fábrica

e certa concepção da elegância. Todas as suas criações refletem


uma maneira de ver as roupas. Os anglo-saxões chamam aque¬
les cuja habilidade se mostra sempre constante de one-trick
poneys, em referência aos pôneis de circo ensinados a fazer
uma única volta. Worth era a perfeita encarnação desse tipo de
animal; suas roupas eram reconhecíveis entre todas, particu¬
larmente porque não usavam crinolina. Antes dele, todos os
artesãos utilizavam essas estruturas, às vezes realizadas em te¬
cido, às vezes em metal, cuja finalidade era dar volume à saia.
Worth decidiu substituir esses apetrechos por uma meia-arma-
ção, a tournure, que dava volume atrás: foi sua revolução. Essa
idéia por si poderia bastar. Mas, sendo um comerciante eficien¬
te, ou um historiador de sua própria lenda, acrescentou uma
anedota útil. Contava que havia tido essa idéia enquanto olha¬
va uma lavadeira que levantara a saia até a cintura. Worth não
somente tinha o senso da elegância: também sabia contar fábu¬
las, fábulas que ajudavam a vender.^

Obrigando-se a assegurar a novidade por meio de coleções


anuais, Worth inventou o mecanismo que foi seu sucesso e sua
perdição. Somos sempre traídos por nossos próximos: foi um
de seus aprendizes. Paul Poiret (1879-1944), que apressou sua
aposentadoria no começo do século XX. Nessa época, o
costureiro não se parecia com a imagem que podemos ter dele
hoje. Worth era parecido com Flaubert, um tipo encorpado, de
bigode. Poiret, por sua vez, era mais parecido com Raimu.* * Con¬
tudo, é a esse perfil "ã maneira da III República" que devemos
não somente a silhueta mais moderna, mas também, provavel¬
mente, a primeira marca de moda.

^ Charlotte Seeling, La moãe au siècle des créateurs (Paris: Kõnemann, 2000),


p. 15.
* Jules Raimu, ator francês (1883-1946). (Nota do tradutor.)
0 nascimento do costureiro 35

Assim como Worth, Poiret não pertencia às classes superi¬


ores. Ainda que tenha sido admitido na alta sociedade antes de
se tornar uma de suas figuras mais destacadas, vinha de uma
familia de modestos comerciantes. A exemplo de Chanel, que
mais tarde se tornaria sua grande rival, ele encarnava o espíri¬
to popular, mostrando-se o mais vivo, o mais fantasioso, o mais
guloso, o mais parisiense. Quando não estava escolhendo um
tecido, devorava uma andouillette* ou pescava. Precisou de muita
habilidade e um pouco de paciência para encontrar seu lugar
na cidade, e depois para se tornar um dos seus centros, em
torno do qual girava a alegria.

Poiret não costumava ser ignorado. Parecia-lhe natural ser


querido pelas mulheres. Suas três irmãs o admiravam, sua mãe
o mimava. Foi ela quem lhe deu os recursos necessários para
ele abrir seu primeiro negócio. Seus primeiros passos entre os
grandes costureiros, em que é tradição vacinar os aprendizes
contra a eventual inflação precoce do ego, contrastam com a
doçura maternal. “Você chama isso de vestido? Mais parece um
tatu-bola",^ dizia-lhe o filho de Worth, que desejava proteger o
^ nome paterno de eventuais desvios comerciais. Mas essa mal¬
dade erudita, ainda hoje cultivada, não derrubou Paul Poiret.
Seguro de si mesmo, ele persistia em sua estratégia e em sua
ambição, como expôs mais tarde em suas memórias:

A moda hoje precisa de um novo mestre. Precisa de um tirano que a


fustigue e que a libere de seus escrúpulos. Quem lhe prestar esse
serviço será amado e se tornará rico. [...] não será seguido durante o
primeiro ano, mas será copiado no segundo."*

* Pequena lingüiça de vitela. (Nota do tradutor.)


^ Paul Poiret, En habillant Vépoque (Paris: Grasset, 1986), p. 47.
^ Ibid., p. 65.
A marca de fábrica

Em nenhum momento teve dúvida disso; ninguém a não


ser ele poderia aspirar ao título de novo mestre.

Como Worth tinha substituído a crinolina pela tournure,


Poiret logicamente resolveu eliminar a tournure. Sua marca
registrada era a silhueta fluida, em "ondas", como se dizia na
época. Nada de armaduras, de estruturas artificiais, de
espartilhos e outros artifícios. Ele dizia que não queria mais ver
essas "mulheres divididas em dois lóbulos, [que] pareciam pu¬
xar um reboque”.^ Não tinha nada que ver com nenhuma ideo¬
logia. Poiret nunca quis libertar ninguém, muito menos as mu¬
lheres. Se liberou os bustos, foi para melhor amarrar as pernas
graças à saia estreita, que, aliás, teve a maior dificuldade para
impor. Contudo, foi responsável por uma linha infínitamente
mais natural, mais próxima das que conhecemos. O abandono
da silhueta mais pesada - mais de três quilos de ajustes! - demo¬
rou de dois a três anos. Mas esse lapso de tempo pôs fim a uma
moda que durava havia quatro séculos, desde os espartilhos com
hastes. As más línguas diziam que essa nova vestimenta favo¬
recia as mulheres tanto quanto uma luva gigante. Poiret não se
importava, estava triunfando. Em seguida, esse grande apreci¬
ador das mulheres decidiu vesti-las como rapazes. Venceu igual¬
mente uma batalha na questão das cores. Na época de seu in¬
gresso na moda, os camaieux eram tímidos: lilás, malva, hortênsia
azul-clara, ou ainda tons de milho ou de palha. Ele devolveu a
palavra ao vermelho, ao verde e ao violeta.

Poiret sabia criar e divulgar. Grande comerciante, determi¬


nava com muita perspicácia se era necessário desenrolar o tape¬
te vermelho ou, ao contrário, se era melhor esnobar. Isso porque
soube muito hem utilizar a distinção. Assim, quando se recusou

® Ibid., p. 52.
0 nascimento do costureiro

a vender a uma Rothschild que tinha se atrevido a fazer comen¬


tários indelicados sobre sua coleção, fez questão que todo mun¬
do soubesse. Além disso, não ignorava que, para vestir a alta
sociedade, era necessário fazer parte dela. Firme nos seus princí¬
pios, não hesitava em criticar seus colaboradores se não saíssem
tanto quanto ele queria ou não tivessem amantes. Nessa profis¬
são, ter uma existência pacata não facilitava o comércio. Assim,
quando era acusado de fumar ópio, desmentia sem muita con¬
vicção. Tbdas as oportunidades de se destacar eram bem-vindas.
A exemplo de Worth, considerava que o melhor lugar para se
instalar era aquele em que os outros não estavam... ainda. Seu
predecessor tinha se perdido na me de la Paix, Poiret se perdeu
no Faubourg Saint-Honoré, como mais tarde Yves Saint Laurent
na Rive Gaúche, ou Kenzo na Place des Victoires.

Em 1911, no apogeu de sua glória, organizou uma festa ines¬


quecível, à qual deu o nome de Milésima Segunda Noite. De
fato, o Oriente estava na moda, acabavam de ser traduzidas As
mil e uma noites. Todo mundo se rendeu ao seu convite. Esta¬
vam presentes a princesa Murat, Boni de Castellane, os
Rothschild, alguns artistas... Poiret freqüentava muitos artistas.
Támbém pediu a Paul Iribe e em seguida a Georges Lepape que
ilustrassem seus catálogos; assim, foi o primeiro que mesclou
conscientemente as fronteiras entre a arte e a moda. Aprovei¬
tando seu prestígio, esquecendo seu prenome - Paul, discreto
demais Poiret transformou seu sobrenome em marca. Até
pensou em vender sob seu nome outras coisas além de roupas:
perfumes, acessórios, móveis ou velas.

Mas o mundo de Poiret não sobreviveu à Primeira Guerra


Mundial. Os anos 1920 o encontraram vivendo em magnífica
desorganização, com dez anos de atraso em relação à
modernidade que se anunciava. Sua maior inimiga, Gabrielle
38 A marca de fábrica

Chanel, "a inventora da miséria”, como a chamava, aquela que


ousava vestir as mulheres como "pequenos telegrafistas sub¬
nutridos", tomou seu lugar. "Você está de luto! Mas de quem?,
perguntava Poiret quando encontrava Chanel vestida de ma¬
lha preta. - De você, meu caro".® Ferido no seu orgulho, ele
replicava com manifestações cada vez mais megalómanas. Con¬
tinuava a convidar estrelas para suas festas, mas elas começa¬
vam a recusar. Não importava; não hesitou em pagar Isadora
Duncan, Pierre Brasseur ou Yvette Guilbert para que aceitas¬
sem seus convites. Sem fôlego para tanto, regava a cidade com
champanhe, oferecia ostras com serviço e pérolas incluídos.
Em 1925, durante a Exposição Internacional de Art Déco, em
Paris, ele se superou. Para expor suas criações, requisitou três
balsas, Amours, Délices e Orgues: uma era um restaurante, a
segunda um salão de cabeleireiros e a terceira vendia seus per¬
fumes, acessórios e móveis. Enquanto suas balsas flutuavam,
seu negócio afundava. Ainda aí, Poiret inovou: foi a primeira
marca de moda a desaparecer.

Na fonte da criação, um desejo de revanche

Worth e Poiret inauguraram a lista dos grandes costureiros.


Cada um de seus sucessores trouxe sua personalidade a essa
profissão. Nessa grande variedade de indivíduos, é difícil dis¬
tinguir traços comuns. Claro, não se trata de descobrir recei¬
tas, nem mesmo de evidenciar determinismos, mas de tentar
entender o que pode unir criadores singulares que - seja qual
for o lugar a eles reservado na ordem das artes - utilizam sua
imaginação produtiva.

Laurence Benaim, Yves Saint Laurent (Paris: Grasset, 1993), p, 37.


0 nascimento do costureiro

Se os inquirirmos sobre sua singularidade, aprenderemos


pouca coisa. Uma roupa não se cria com palavras; é por isso
que os criadores não se sentem à vontade com a palavra. Con¬
tudo, se tivéssemos de escolher, com risco de parecermos
esquemáticos, um elemento biográfico comum aos grandes
costureiros, deveria certamente ser procurado primeiramente
entre as dificuldades que encontraram durante a infância. As¬
sim, Madeleine Vionnet, Gabrielle Chanel ou Jeanne Lanvin,
além de terem nascido em famílias modestas, foram garotas
infelizes e, depois, jovens de existência muito sofrida. É a infe¬
licidade que constitui o fundamento comum a essas três mu¬
lheres. Para se salvar, tiveram que (se) contar histórias, e talvez
prolongar os contos que imaginavam quando eram crianças,
projetando-os nos tecidos. Nesse sentido, seu destino lembra o
de Mozart, analisado pelo sociólogo Norbert Elias. Interrogan¬
do-se sobre essa difícil pergunta, "como nasce o gênio?”, Elias
destacou o talento de alguns indivíduos de "submeterem sua
capacidade de imaginação [...] às próprias leis de seus mate¬
riais”.’' As roupas que essas mulheres criavam - seu estilo - cons¬
tituíam, de certa forma, o prolongamento dessas fantasias que
lhes tinham permitido manter-se vivas, desses sonhos diurnos
ou noturnos que as haviam ajudado a suportar a aspereza da
existência.

Madeleine Vionnet, órfa de mãe, começara a trabalhar


muito cedo na loja de um comerciante de tecidos. Na época em
que começava a ganhar a vida em duas grandes maisons
parisienses, sua filha faleceu, e em seguida ela se divorciou; ain¬
da não tinha 20 anos. Essa trajetória provavelmente a incitou a
se preocupar com a condição de seus empregados, a grande

7 Norbert Elias, Mozart, sociologie d'un génie, La Librairie du XX® Siècle (Paris:
Seuil, 1991), p. 95.
40 A marca de fábrica

maioria, mulheres. Elas tinham direito a refeição gratuita, co¬


bertura social e também a férias remuneradas. A alta-costura
conservou por muito tempo a fama de ser um setor socialmen¬
te protetor. Madeleine Vionnet, nos anos 1920, empregava 1.200
operárias em vinte ateliês, todos localizados em belos bairros
de Paris; na época, 30 mil operárias trabalhavam nesse setor, e a
costura era a principal atividade na capital.

Gabrielle Chanel, por sua vez, certamente não tinha o gê¬


nio de Vionnet para entender um tecido, mas tinha um talento
incrível para contar a suas contemporâneas as histórias que
elas queriam ouvir, histórias de tecidos. A vida é que a obrigou
a mentir, e primeiramente a mentir a si mesma. Sua juventude
foi um naufrágio: perdeu a mãe que adorava com apenas 12
anos; seu pai a abandonou, e ela teve de ir para um pensionato,
onde aprendeu sua futura profissão; a agulha, acreditava-se, fa¬
ria com que ela encontrasse um rumo na vida. Esse começo de
existência foi provavelmente triste demais para uma menina.
Então ela começou a romancear todos os fatos e a narrar o
imaginário. Contava que seu pai tinha juntado uma fortuna na
América. Até disfarçava o suicídio de sua irmã, explicando que
esta havia deslizado na neve e morrido de frio. Criou o sobri¬
nho, André Palasse, sem nunca ninguém ter sabido se era ou
não seu próprio filho.® Arriscou-se a escrever sua própria bio¬
grafia, ajudada nessa tarefa por Louise de Vilmorin, mas ne¬
nhum editor quis publicá-la: carecia de credibilidade. Mas Chanel
teria outras ocasiões de escrever a fim de assegurar a mais am¬
pla audiência para seus julgamentos peremptórios. No fim dos
anos 1930, publicaria seus pensamentos em forma de crônica
regular na revista Vogue. A exemplo de parte da alta-costura fran-

8
Isabelle Fiemeyer, Coco Chanel, un parfum de mystère (Paris: Payot, 1999),«
p. 37.
0 nascimento do costureiro 41

cesa, seu comportamento durante a Guerra não parecia ser dos


mais irreprocháveis. Mas, ainda aí, é muito difícil separar o
verdadeiro do falso. O que é certo, em compensação, é que sua
vida parece um romance. Ela conviveu com os mais importan¬
tes artistas: Cocteau, Morand, Picasso, Satie, Max Jacob... Tteve
como amantes Boy Capei - o maior sedutor da época -, o gran¬
de duque Dmítri Pávlovitch e o admirável poeta Reverdy. Chanel
era singular; suas mentiras falavam da época mais do que algu¬
mas verdades. Uma noite de maio de 1917, ela pôs em dúvida o
futuro de seu relacionamento com Boy Capei. Enfurecida, cor¬
tou seus longos cabelos castanhos. Chegando à Ópera, e para
justificar esse corte, inventou a improvável história de um aque¬
cedor de água que teria explodido. Pouco importa a fábula; era a
moda dos cabelos que explodia. Coco inteira se resume nessa
anedota.

Chanel, como suas colegas Madeleine Vionnet e Jeanne


Lanvin, não precisava de homem para seguir seu rumo. Ela se
assumiu, preferindo, na vida amorosa como na existência profis¬
sional, a autonomia ao repouso. Deixou um marido apaixonado,
que financiara sua primeira instalação como modista e que a
aborrecia. Desde 1914, a modista se afirmou como costureira e
passou a preocupar Poiret. Sua vingança social estava em anda¬
mento. Suas criações seduziam, estavam de acordo com a época.
Em 1916, ela já empregava trezentas operárias, e a Harper's Bazaar
reproduzia em suas páginas seu audacioso vestido-camisa. Em
1926 foi a glória, que para Chanel tomou a forma de um "peque¬
no vestido preto”, simples fourreau de crepe preto, dotado de
mangas longas e ajustado acima do joelho. “Um Ford assinado
Chanel", ironizou a Vogue americana. A comparação não era tão
irreverente quanto parece. Com essa roupa, Chanel subjugou sete
séculos de adornos; compreendeu a derrota do formal, a
modernidade das formas apuradas. Gabrielle Chanel se revelou
A marca de fábrica

uma excelente comerciante, sabia vender; assim, teve a idéia ge¬


nial de abrir filiais, em Deauville e depois em Biarritz. Mas, aci¬
ma de tudo, ela soube se vender. Em 1930, Sam Goldwyn lhe
propôs meio milhão de dólares por ano para vestir Gloria
Swanson, Greta Garbo, Marlene Dietrich, Glaudette Colbert e Ina
Claire. Qualquer um teria aceitado de imediato, e errado. Coco
dominava a estratégia da distinção; ela esperava que lhe supli¬
cassem para aceitar. Primeira mulher a poder colocar nos objetos
sua grife, marca com uma aura tão forte, chegaria a organizar sua
volta com mais de 70 anos de idade. Preocupada em nunca dizer
a verdade, pretendia ter apenas 60. Sua idade foi a única coisa
que ela sempre se esforçou em minimizar. Iferminaria sua exis¬
tência como nos contos, má e tirânica em uma suíte do Ritz.

Para ser um grande costureiro, então, é necessário saber


contar histórias. Mas o que era preciso ser, no começo do sécu¬
lo XX, para abraçar essa carreira? Para a geração de Chanel e
Lanvin, a costura como atividade profissional era reservada às
moças pobres. Jeanne Lanvin dedicou todas as suas forças a
uma aprendizagem difícil, como se fosse sua última chance de
escapar a um destino miserável. Um rapaz, em contrapartida,
era menos freqüentemente destinado a essa profissão. Dior se
tornou estilista mais tarde, quando já ultrapassava os 30 anos.
Sabia desenhar, mas provavelmente nunca havia pensado an¬
tes em viver desse talento. Se aceitou o trabalho que lhe foi
proposto, é porque precisava de dinheiro. Afinal das contas,
sua única experiência nessa área tinham sido as fantasias que
confeccionava quando criança. Um gosto, aliás, que conservou
até a idade adulta, pois não hesitou em comparecer a um baile
a fantasia, nos anos 1950, como um cupido gigante, vestido de
rosa, com uma aljava, flechas e, claro, asas.®

® Marie-France Pochna, Christian Dior (Paris: Flammarion, 1994), p. 191.


0 nascimento do costureiro 43

Outro ponto em comum, além da infância infeliz, que en¬


contramos em inúmeros grandes costureiros: a importância da
figura materna. Nada mais lógico, já que era a mulher que natu¬
ralmente exibia uma primeira versão da elegância. É por isso
que em Yves Saint Laurent ou Dior a figura da mãe é essencial.
Madeleine Dior certamente não foi uma mãe doce e próxima.
Parece que era elegante e severa, até dura, e muito contida.
Christian a venerava; aliás, ele confessou nunca ter superado
seu falecimento.Claro, seria absurdo generalizar demais,
mergulhar em uma psicanálise de botequim. Todavia, freqüen-
temente os costureiros evocam a mãe como sua primeira fonte
de inspiração, e a relação que eles têm com ela é fator determi¬
nante de sua vocação. Isso se observa nas criações de indivíduos
tão diferentes quanto Yamamoto ou Julien Macdonald, atual
diretor artístico de Givenchy.^^

Enfim, último tema comum aos costureiros: o desejo de


revanche social. Isso se observa em vários criadores, ainda que
seja preciso um consenso sobre essa necessidade de reconheci¬
mento. Para alguns, trata-se simplesmente de se desvencilhar
' de uma condição modesta. O caso de Ralph Lauren, nesse as¬
pecto, é esclarecedor. É impossível não relacionar a fascinação
desse homem pela América patrícia às suas origens de judeu
pobre, do Brooklyn. Calvin Klein provinha do mesmo meio.

Ibid., p. 70.
" Ele explica: "Era uma mulher muito bonita. Hoje ela tem 68 anos, é a geração
dos anos 1960. Quando tinha 20 anos, foi modelo de maiôs; existem fotos
dela com biquínis de leopardo. [...] Ela era, e ainda é, uma mulher de muito
glamour, com muitas jóias, um guarda-roupa que cintilava; ela adorava tudo
que brilhasse. [...] Sobretudo, era fascinada por Hollywood, pelos filmes em
preto-e-branco de Hollywood, especialmente os de Fred Astaire e Ginger
Rogers. Ela assistia aos filmes deles na tevê, sabia tudo sobre eles. Thmbém
eu gostava desses filmes, desse lado de glamour, romance, mistério, brilho,
dessas histórias que sempre acabam bem. Fui criado de maneira engraçada,
sobretudo para um rapaz”. Cf Mixt(e), primavera-verão de 2002.
44 A marca de fábrica

mas a necessidade de respeitabilidade era certamente menos


forte para ele. Entre os criadores, os “dominantes” são muito
raros, como podemos constatar. Jean-Paul Gaultier, John
Galliano ou Pierre Cardin vêm de meios modestos. Mas, ainda
maior que o desejo de se assumir socialmente é provavelmen¬
te, para alguns deles, o desejo de poder assumir suas escolhas
amorosas. A homossexualidade, para a maior parte desses cria¬
dores, significava a clandestinidade e a vergonha. Adolescente
em Oran, na Argélia, Yves Saint Laurent viveu essa identidade
como um terrível segredo. Instalar-se em Paris, em um meio
tal em que esse traço de personalidade não era mais considera¬
do um vício, foi para ele uma liberação. Dior conheceu a mes¬
ma reprovação no seu meio familiar. Para esses dois filhos da
burguesia, tratava-se de conseguir uma revanche contra um
meio que não os aceitava como eram. Ao tomar lugar em meio
ao café society parisiense, mistura de dândis, artistas e aristocra¬
tas famosos no período entre as duas Guerras Mundiais, Dior
enfim encontrava, apesar de sua homossexualidade - mas tam¬
bém em parte por causa dela - uma legitimidade. A abertura de
sua maison de costura e o sucesso lhe permitiram finalmente
usufruir do respeito e do reconhecimento de um mundo ainda
mais privilegiado que o da burguesia de sua infância.

Assim, a costura foi, tanto para essas mocinhas pobres e


órfãs quanto para esses rapazes diferentes dos outros, uma
maneira de se realizar por meio de histórias. Tbdos, por uma ou
outra razão, tinham necessidade desse sonho diurno que era a
criação de roupas, para conseguir superar as infelicidades da
existência. Para muitos deles, a moda foi uma permanente bus¬
ca de afeto. Quando era jovem, e mesmo depois, Dior experi¬
mentou o sentimento de que não era muito amável. O amor
que sentia por outros homens não era sempre tão recíproco q
sincero quanto ele poderia desejar. Encontrou nessa atividade
0 nascimento do costureiro

de criação uma verdadeira fonte de consolo. Para Yves Saint


Laurent, também, a moda foi durante longos anos uma manei¬
ra de escapar de seus fantasmas. Os vestidos provavelmente
lhe permitiram tornar menos agudas algumas de suas depen¬
dências, como ele mesmo explicou no admirável discurso que
fez na sua noite de despedida da alta-costura:

TbcJo homem, para viver, precisa de fantasmas estéticos. Eu os perse¬


gui, procurei, encurralei. Passei por muitas angústias, muitos infernos.
Conheci o medo e a terrível solidão. Os falsos amigos, que são os
sedativos e os estupefacientes. A prisão da depressão e das clínicas.
Um belo dia, consegui sair de tudo isso, deslumbrado, porém sereno.
Marcei Proust havia me ensinado que "a magnífica e lamentável famí¬
lia dos nervosos é o sal da terra". Sem saber, fiz parte dessa família.'^

Por que essa família ofereceu à moda tantos filhos? A sabe¬


doria nos incita a nos tornarmos humildes diante da verdade
de um homem e de uma prática. Contudo, as histórias que po¬
demos contar com tecidos se situam em um lugar particular.
Elas ocupam precisamente o cruzamento entre o corpo, o di¬
nheiro e o outro. Essa situação fornece uma trama para várias
narrativas.

Criadores de diferenças
o criador de moda é um especialista da diferença, suscetí¬
vel de transcrevê-la com o tecido. Entre os criadores, vários
são os indivíduos dotados de uma identidade minoritária: ju¬
deus, homossexuais, mulheres solteiras em uma época em que
deviam ser esposas, e hoje jovens dos subúrbios. Como explicar
essa situação?

12 Laurence Benaim, “Yves Saint Laurent quitte la scène de la mode dans


Pémotion”, Verbaãm, em Le Monde, 9-1-2002.
A marca de fábrica

Vamos nos desembaraçar imediatamente de explicações


simplórias. Assim, freqüentemente, atribui-se o gosto dos ho¬
mossexuais pela moda ao seu suposto narcisismo. Às vezes, tam¬
bém, sua inspiração vem da imagem da mulher que gostariam
de ter sido. Contudo, é difícil considerar sérias essas duas hipó¬
teses: o método que consiste em atribuir uma essência a qual¬
quer grupo que seja deve suscitar a maior desconfíança. Na ori¬
gem do racismo encontramos idéias segundo as quais seres di¬
ferentes na aparência são na realidade determinados pelo fato
de pertencerem a grupos raciais ou religiosos. Considerar que
os homossexuais são narcisistas é tão absurdo e repugnante
quanto atribuir aos negros o senso do ritmo ou aos judeus, o do
dinheiro.

Os judeus e os homossexuais, muito presentes no universo


da moda, compartilham um destino comum: foram estigmati¬
zados por causa de sua diferença. Quando não eram persegui¬
dos, eram objeto de segregação: o olhar social que os julgava
era bastante duro. Aliás, lembram algumas das pioneiras
evocadas nas páginas anteriores - Chanel, Vionnet e Lanvin -,
que tiveram de pagar caro essa autonomia recusada às mulhe¬
res da época. Para todos esses indivíduos colocados em situa¬
ção precária, e todos os seus semelhantes - armênios, chineses,
iugoslavos, etc. -, o meio da moda tradicionalmente tem repre¬
sentado a última solução.

Na época nem tão longínqua em que a homossexualidade


era considerada uma doença para a maioria das pessoas, a cos¬
tura era uma das raras profissões em que esse tipo de precon¬
ceito não prevalecia. Na França, e igualmente nos Estados Uni¬
dos, o universo do vestuário se constituiu, no fím do século
XIX, como um tipo de legião estrangeira, suscetível de servir de
refúgio a indivíduos vítimas da hostilidade de seus semelham,
tes. Essa atividade urbana, em que os mais sórdidos sweatshops
0 nascimento do costureiro 47

(ateliês clandestinos) conviviam com ateliês de alta-costura si¬


tuados nos bairros nobres, sempre foi protegida da intolerân¬
cia por seu esnobismo. As mais diversas origens e os mais di¬
versos costumes sempre coexistiram nela. O mundo da moda é
tão seguro de sua superioridade que se torna democrático com
seus empregados. Como não é impressionado pelos poderosos,
não tem conseqüentemente motivo para impressionar os pe¬
quenos. Entre os estilistas e todos aqueles que reinam nesse
setor pode acontecer uma luta feroz, feita de humilhação e hie¬
rarquia; ela não diz respeito aos que não têm poder. Uma gran¬
de figura desse universo a quem se perguntou que regra tinha
regido seu comportamento respondeu com estas palavras: “Sou
extraordinariamente esnobe". Um personagem proustiano pode
trabalhar ao lado de um imigrante recém-chegado, e não lhe
fará sombra. Nesse meio, as festas são numerosas, e permitem
que os grupos mais heteróclitos comunguem em uma celebra¬
ção comum. O costume quer, notadamente, que todos se jun¬
tem a quem comemora uma data especial, desde a Catherinette
(festa dos solteiros, mas também das costureiras, em que todas
usam chapéu) até o Ramadã ou o Yom Kippur.

Nesse universo à parte, não ser como os outros constitui


um trunfo. "Os elementos sociais convergem às vezes da me¬
lhor forma, como os eixos do olho, em direção a um ponto
suficientemente afastado”, notava Simmel para explicar o pa¬
pel que tinham os "estrangeiros" na moda. Se a maior parte dos
criadores não teme sacudir os códigos do conveniente, é por¬
que chega a ignorá-los. Antes de tornar-se pouco freqüentado,
o bairro do Sentier, em Paris, o coração da confecção têxtil, foi
escarnecido por seu mau gosto, sua paixão pela aparência. Nes-

13 Georg Simmel, Philosophie de Vargent (Paris: Presses Universitaires de France


- PUF, 1987), p. 263.
48 A marca de fábrica

se universo enfeitado, havia toda a energia desordenada que os


estrangeiros podem empregar para se apropriar dos símbolos
do sucesso de uma sociedade hospedeira. Nos Estados Unidos,
essa falta de jeito se tornou um estilo, o ghetto fabulous, em que
a vulgaridade não é mais sofrida, mas assumida, levada ao seu
paroxismo. E essa tendência se difundiu: o camp, esse kitsch
homossexual louvado pela escritora Susan Sontag, tornou-se
amplamente popular fora da comunidade gay. Marcas de pres¬
tígio se inspiraram nessa tendência, como, por exemplo, Versace
e Dolce & Gabbana, ou ainda Galliano na sua coleção pessoal.
Hoje, essa tendência é largamente assumida, como explica Jean-
Paul Gaultier:

Adoro o louro, mas sobretudo o falso louro oxigenado. Basicamente,


meu cabelo é mais castanho, Madonna é morena, Steevy é moreno
e Loana e Sylvie são castanho-escuras...* O louro deles não é um
acaso, transforma-os em personagens. Em conclusão, sou a favor de
tudo o que é falso ou exagerado. Por exemplo, nos meus desfiles, há
morenas muito morenas, louras muito louras e gordas muito gordas.
Não gosto do que está no meio-termo.

À semelhança de Jean-Paul Gaultier, um criador de moda é


um especialista da diferença, suscetível de transcrever com o
tecido. É por esse motivo, nesse mundo, que a alteridade faz
sucesso.

Hoje, a atitude da sociedade em relação à alteridade evo¬


luiu. A intolerância relativamente às diferenças certamente
subsiste, mas tende a se mostrar discreta; a homofobia se ate¬
nua, até mesmo nos discursos mais reacionários. Aliás, a
alteridade do costureiro doravante tem outros rostos, como o
de Mohamed Dia, jovem estilista de Sarcelles que, em poucos

* steevy, Loana e Sylvie são modelos célebres na França. (Nota do tradutor.) ^


Entrevista a Titel von Kappauf, em Citizen K, n“ 21, inverno de 2001-2002.
0 nascimento do costureiro 49

anos, conheceu um sucesso planetário. Em 2001, com 27 anos,


ele conseguiu assinar uma parceria com a National Basketball
Association (NBA), apesar da concorrência de marcas de espor¬
te muito mais poderosas que a sua. Essa conquista o erigiu como
símbolo do “orgulho rap": seu nome hoje goza de uma grande
notoriedade entre os jovens. O êxito de suas roupas nos Esta¬
dos Unidos consagrou definitivamente seu sucesso. Aconteça o
que acontecer, Mohamed Dia encarna um novo tipo de criador.
Aliás, juntamente com o cantor Wyclef, do grupo Fugees, ele
acaba de lançar uma linha chamada Dia Refugee, como para
significar que a moda continua sendo um refugio.

0 criador superstar
Se para muitos franceses Mohamed Dia já é um nome co¬
nhecido, talvez logo se torne um people, uma celebridade, como
seus pares Tbm Ford (que em pouco tempo se tornou diretor
artístico de Gucci, função que já não exerce mais) ou John Galliano
(que arquitetou a volta de Dior ao palco). Com certeza, cada um
desses três indivíduos tem seu estilo próprio; as respectivas mar¬
cas para as quais eles criam têm pouca relação entre si. Mas,
como no mundo do cinema, a moda tem seu Olimpo, onde se
reúnem criadores que vieram de todos os horizontes. Para ser
admitido nesse clube, basta ser uma estrela no sentido que Edgar
Morin^^ dava a esse termo: ao mesmo tempo próxima e distante,
a estrela vive no mesmo planeta que nós, mas nele tem uma
outra existência. O criador de moda se tornou um personagem
irreal, a meia distância entre a realidade e a ficção.

A cada semana, as revistas põem em cena esses persona¬


gens, que nos são mais familiares, pelo menos mais caros, que

15
Edgar Morin, Les stars (Paris: Seuil, 1972).
A marca de fábrica

nossos vizinhos mais próximos. Entre todos esses privilegia¬


dos, cada um tem sua personalidade: John Galliano usa ternos
surpreendentes; Karl Lagerfeld emagreceu; Stella McCartney é
uma verdadeira filha de popstar; Tom Ford passeia com suas
camisas pretas abertas, os olhos em brasa. No final de algumas
revistas, mostra-se o que imaginamos ser o cotidiano deles, sur¬
preendidos na sua intimidade em notas chamadas, devido ao
gosto por lítotes, "Gente". Porque esses indivíduos não são gen¬
te, pelo menos gente como nós, e é por esse motivo que os
contemplamos. A vida deles é feita de amizades fantásticas -
"Madonna adora Stella, cujo sentimento é recíproco” -, de fes¬
tas inacreditáveis - "se dançamos, é pela noite afora" -, em que
uns e outros fazem poses de amigos-amantes, se abraçam, se
beijam, quando nós estaríamos felizes de poder lhes dar um
aperto de mão. A dolce vita é o cotidiano deles, uma existência
repleta de festas míticas oferecidas em homenagem a um per¬
fume ou ao aniversário de um deles.

O criador pega o avião sem motivo nenhum, ou, para ser


mais exato, por qualquer motivo. À semelhança de John Galliano,
vai procurar inspiração na índia ou na China; a exemplo de Alber
Elbaz, diretor artístico de Lanvin, é americano-israelense; como
Tbm Ford, mora com seu amigo em Paris, mas vai freqüentemente
a Londres e tem uma casa no Tfexas. Uma vida sem fronteiras,
lúdica. Os criadores não produzem apesar da festa: seu trabalho
também é fazer a festa. Duas vezes por ano, esse star system vive
sua apoteose, no momento dos desfiles, mas isso também não se
parece com trabalho. Durante essas manifestações, eles põem
seu nome em jogo, e, junto com eles, assistimos a esse momento
dramático em que saberemos se o costureiro deu ou não o me¬
lhor de si: "Um Gaultier muito bom”, "um Galliano surpreenden¬
te”, ou nada, o silêncio, a pior das críticas, que freqüentemente
toma a forma da ausência de comentários.
0 nascimento do costureiro 51

Para o mundo da moda, os desfiles são o que as estufas


tropicais são para as plantas raras. É recriada, em tamanho re¬
duzido, uma verdadeira atmosfera, em que há apenas atores e
pouquíssimos espectadores. Em primeiro lugar, jornalistas, de
todas as nacionalidades, em seguida profissionais, os compra¬
dores das grandes lojas americanas ou inglesas, famosos atores
de filmes, um nababo e alguns magnatas, uns oligarcas, uns
sobrenomes aristocráticos, umas boas clientes. Ibdas essas dis¬
tintas pessoas estão sentadas de acordo com um plano sutil.
Embora reine a maior confusão, e os desfiles comecem com
mais de uma hora de atraso, cada convidado é colocado con¬
forme seu mérito. Assim, cada um se lembra de sua condição, já
que lá fora, na sociedade democrática, não há mais categorias.
O desfile é uma das últimas ocasiões que nos permitem saber
se 0 merecemos. Nada mais normal, não? Nessa indústria em
que se vende distinção, é compreensível que cada um procure
primeiramente se destacar.

O sucesso de um desfile se decide no pódio, no catwalk, * e


também ao seu redor. Vinte e cinco, cinqüenta conjuntos de
roupas andam, os "números", usados por modelos pagos para
não sorrir aos fotógrafos que os metralham. Em cima do pódio,
a aparência aceitável é a hlasée. Ao redor também. Imagina-se
Begum, ou qualquer outra princesa indiana, feliz, com aparên¬
cia de alegria? E talvez seja desagradável perambular, às vezes
seminua, embaixo de um sol permanente e diante de uma flo¬
resta marmorizada de câmeras que observam sem que nunca
se percebam seus olhos, sem que em nenhum momento saiba¬
mos o que olham. O desfile termina, o criador aparece, acom¬
panhando o último número, o vestido de noiva, ou seguindo-o
em passo ágil, como para recuperar o tempo perdido. Aplau-

* “Passarela.” Em inglês no original. (Nota do tradutor.)


A marca de fábrica

SOS, OS olhares se dirigem para as estrelas presentes na primei¬


ra fila, obrigatoriamente na primeira fila. No tempo de Yves
Saint Laurent, havia Catherine Deneuve, “Bela da Thrde”. Qual
dos dois honrava o outro com sua presença? O poder das estre¬
las não se compartilha, adiciona-se. A mídia, televisões e revis¬
tas, relatará esse evento para nós. Apenas os ranzinzas o des¬
prezarão, vítimas da "síndrome de Saint-Tropez” - essa tendên¬
cia que os apartados têm de denegrir os eventos aos quais não
foram convidados.

Toda essa cerimônia é oferecida pelo criador-estrela a um


ídolo de granito, que o ultrapassa, mas ao qual ele dá a vida: a
marca. A dupla formada pelo criador e a marca era apenas uma
possibilidade da moda, entre outras; não era necessariamente
inscrita na própria natureza da indústria das tendências. Pode¬
riam ter tido anônimos trabalhando para marcas, honestos
artesãos distribuindo suas roupas junto aos confeccionistas. O
destino decidiu de outra maneira: o criador e a marca doravante
participam da mesma aventura. São, segundo as palavras de
Edgar Morin, "raros como o ouro e indispensáveis como o pão".^®
Conferimos a suas criações - roupas, acessórios ou perfumes -
um "valor mágico ou místico [é por isso que eles podem ser]
vendidos por preços que ultrapassam de longe seu custo de pro-
dução”.^^ O criador, assim como a marca, são invenções moder¬
nas, mantidas pelo sistema produtivo, máquina de fabricar,
manter e exaltar as estrelas. Hoje, o artesão, a estrela, o artista e
o businessman convivem às vezes dentro de uma única pessoa:
a do costureiro.

16
Ihid, p. 102.
17
Ibidem.
0 nascimento do costureiro

A fascinação pelo artista

Qualificar o costureiro como artista e a moda como forma


de arte suscita quase infalivelmente uma polêmica. Conhece¬
mos o argumento: fazer de uma roupa algo equivalente a um
quadro procederia de uma tentação demagógica para a qual
qualquer tipo de expressão popular se tornaria arte. No melhor
dos casos, concede-se à criação têxtil o estatuto de arte menor.

Problema: essa arte menor vem sendo homenageada nos


maiores museus. Socialmente, ela se torna igual às mais legíti¬
mas formas artísticas. Foi assim que o Museu Guggenheim de
Nova York, e depois o Guggenheim Bilbao, na Espanha, recebe¬
ram no ano 2000 uma exposição consagrada aos 25 anos de cri¬
ação de Giorgio Armani. Caso provavelmente único de um ar¬
tista - ou supostamente tal -, mecenas de si mesmo, que não
hesita em financiar uma manifestação consagrada a si mesmo.
Obviamente, controvérsias respingaram sobre a recepção des¬
se costureiro, que doou seu nome a uma marca, dentro de uma
instituição cultural prestigiosa. E, enquanto se deplorava ou se
aplaudia essa iniciativa, o público, por sua vez, votava com os
pés: com 300 mil visitantes, a exposição de Nova York bateu
todos os recordes de afluência.^®

Parte da controvérsia vem da mistura dos gêneros. De fato,


é impossível negar a vocação comercial da criação de roupas.
Hoje, porém, a opinião comum aceita muito bem essa associa¬
ção. Como notou de forma convincente Pierre-Michel Menger,
a arte e o artista não se opõem mais ao capitalismo. Ao contrá¬
rio: encarnam para a sociedade um "continente modelo” pelo
princípio de inovação, e, para o indivíduo encarregado de tare-

Louise Roque, "Armani, déjà au musée, toujours conquérant", em Le Monde,


19-5-2001.
54 A marca de fábrica

fas repetitivas, uma alternativa a um trabalho freqüentemente


percebido como alienanted^ Assim, o trabalho do criador de
moda encarna um ideal, representando uma excelente maneira
de aproveitar as contradições do capitalismo. Seu personagem
se diferencia do do artista amaldiçoado, gênio precário, sem¬
pre à espera do reconhecimento de sua arte. Jovens costureiros
- Yves Saint Laurent ontem, Alexander McQueen e John
Galliano hoje - vêem seu talento ser celebrado, recebendo re¬
munerações equivalentes às de grandes empresários. Como
qualquer dirigente da Microsoft, Tom Ford recebe stocTc-options.
Mas sua profissão, sua agenda, em uma palavra, sua vida, faz
sonhar muito mais do que a de um responsável por uma gran¬
de empresa. Esses jovens são pagos para inovar; recebem, tan¬
to no sentido próprio como no figurado, a bonificação de sua
originalidade. Aprenderam a conjugar os imperativos da renta¬
bilidade com sua própria inventividade, não para se redimir
deles, mas, ao contrário, para satisfazê-los da melhor maneira.
O marketing e o comércio não são um freio ou uma obrigação
para Galliano, mas, ao contrário, como várias vezes ele repetiu,
trata-se de part ofthejoh, parte de seu trabalho. A seu ver, como
de seus colegas, o mercado representa um tribunal legítimo.
Saint Laurent era um costureiro, um criador, um estilista. Tbm
Ford recusa essas qualificações e se apresenta como um diretor
artístico. Ele assume sem nenhum constrangimento seu senso
comercial: "Sou cínico. Não sou artista. [...] me pergunto se algo
vai vender. [...] Posso e quero vender. Sou um tipo de artista
comercial, não um criador".Sua profissão consiste em preser-

Pierre-Michel Menger, Portrait de Vartiste en tmvailleur: métamorphoses du


capitalism (Paris: Seuil, 2002) [edição em português: Retrato do artista enquanto
trabalhador: metamorfoses do capitalismo (Lisboa; Roma Editora, 2005), coord. e
rev. cient. Vera Borges].
Colombe Pringle, "Je ne suis pas un artiste", em LExpress, 1-3-2001, p. 20.
0 nascimento do costureiro 55

var o ativo que representa a marca. Está sendo qualificado de


control freak (ditador)? Ele confirma: "Nasci velho, ambicioso,
tirânico”.^^ Contudo, embora esteja vigiando tudo, ninguém o
considera um contramestre: todos os descrevem como sendo
um criador exigente.

Tbdos esses criadores recebem uma remuneração substan¬


cial. Mas, acrescente-se para justificar esse trato, “play hard,
pay hard" é o lema que rege a existência deles; trabalhar muito,
receber muito. Antigamente, insistia-se bastante na imagina¬
ção e na criatividade deles. Doravante, destaca-se seu profissio¬
nalismo. Antes de tudo, os costureiros são grandes profissio¬
nais; nesse contexto, esse vocábulo nem parece mais exótico.
Quantas vezes se ouviu a respeito das estrelas do showbiz que
se doam a si próprias para nos divertir... Mas, à diferença dos
trabalhadores comuns, essas estrelas escapam, como profetiza¬
ra Marx, ao trabalho alienado; quanto mais trabalham, mas se
tornam livres. À medida que criam sua coleção, esses criadores
se tornam cada vez mais eles mesmos, desenvolvendo no espa¬
ço de sua liberdade as forças que os constituem como seres
humanos. "Faço aquilo em que creio, e vivo isso como uma
realização”, explica John Galliano.^^

Ibdavia, a maior parte desses criadores tem patrões, os


acionistas. Mas se um dirigente pode dirigir tudo, controlar mil
raciocínios, não saberia dirigir o gênio criador de um estilista.
A cada coleção, esses criadores mostram que permanecem se¬
res livres. Por meio de provocações hoje familiares - desfile de
sem-teto de Galliano para Dior, pornô chique para Gucci -, eles
dão a impressão de subverter o capitalismo de dentro. Se a al-

21
Elle, 5 de julho de 1999.
22 Colombe Pringle, "On devient ce que Ton crée", em LExpress, 2-1-2003.
56 A marca de fábrica

guns executivos impõe-se o uso da gravata, não se pode pedir a


Alexander McQueen que acabe com suas brigas e bebedeiras,
mesmo quando se torna diretor artístico da maison emblemática
do chique francês, Givenchy. Quando alguém se espanta junto
a Galliano com sua coleção "mendigo”, ele responde que nada
disso é político: "Sou um desenhista de vestidos, ãarling! [...]
Minha coleção mendigo [...] é a mais linda que já fiz. E não
entendi o escândalo que provocou".Nenhum conflito pode
separar o acionista de seu estilista. Porque nesse setor a provo¬
cação é um dom e não um teste dos limites. Uma prova, se
necessário: Moèt Hennessy Louis Vuitton (LVMH) fez de tudo
para segurar Alexander McQueen quando ele foi trabalhar para
um grupo concorrente. Por esse motivo, os exageros de John
Galliano, longe de enfraquecer o vínculo que ele tem com seu
diretor-geral, Bernard Arnault, ao contrário, contribuem para
reforçá-lo. Por meio desses happenings da alta-costura, a priori
desconectados de qualquer ambição comercial imediata, os cri¬
adores devolvem seu sentido à noção da arte pela arte. Um des¬
file não pretende vender: cada um sabe que a alta-costura tem
no déficit sua única expectativa. Esses desfiles espetaculares,
em que nenhum modelo poderia ser usado no mundo real, que
nem mesmo serão vendidos, lembram as festas de Luís XIV,
em que o nível das despesas ostentatórias determinava em últi¬
ma instância a qualidade do espetáculo. Porque essa arte sabe
divertir. Esses ritos agnósticos que são os desfiles, em que os
principais números são não somente comunicados, mas às ve¬
zes até martelados, distraem os espíritos mais indiferentes.

Contudo, um desfile serve para vender. Se a moda é uma


arte, então ela é, assim como a fotografia ou o cinema, uma
arte reprodutível. A multiplicação das obras não prejudica o

23
Ihidem.
0 nascimento do costureiro

valor de cada uma delas. Como no milagre da transubstanciação,


todas as roupas contêm a aura de seu criador. Nessas condi¬
ções, podemos comparar o costureiro a um artista, se obser¬
varmos algumas precauções oratórias, como o presidente da
Hermès, Jean-Louis Dumas: “Se não temesse parecer pretensi¬
oso, eu nos compararia a um pintor. Não se diz que Picasso
marcou um quadro, mas que o assinou. Compartilhamos essa
noção de dignidade da obra'’.^'^

Mesmo assim, não é evidente qualificar de obra de arte um


objeto reprodutível. Essa interrogação, formulada por Walter
Benjamin^^ a respeito da fotografia e do cinema, se aplica perfei¬
tamente à moda. Segundo Benjamin, as evoluções sociais e as
técnicas modificam necessariamente nossa concepção da arte.
Doravante, escreve, qualquer som ou imagem são suscetíveis de
ser reproduzidos e difundidos no mundo inteiro. Essa possibili¬
dade corresponde, aliás, a uma expectativa de “possuir o objeto
de maneira tão próxima quanto possível [...] na sua reprodução".^®
Uma civilização de massa é naturalmente revel ao elitismo do
objeto único. Nessas condições, a aura da obra de arte enfraque¬
ce. Um quadro que consiste em um único exemplar será menos
acessível, em todos os sentidos, que uma fotografia ou um filme.

O diagnóstico de Benjamin é pessimista. Segundo ele, as


obras de arte contemporâneas são dotadas de uma aura muito

Jean-Louis Dumas, entrevista, em Analyse Financière, n“ 110, março de 1997,


p. 10.
Walter Benjamin, "Loeuvre d’art à Tépoque de sa reproduction mécanique”
[1935], em CEuvre III [Paris; Folio Gallimard, 2000) [edição em português: “A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", em Obras escolhidas.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, vol. 1
[São Paulo: Brasiliense, 1985)]. Ver igualmente a esse respeito Yves Michaud,
La crise de Vart contemporain [Paris: PUF, 1997).
Walter Benjamin, "Loeuvre d'art à Pépoque de sa reproduction mécanique",
cit., p. 75.
58 A marca de fábrica

pálida em relação àquelas que as precederam. A arte mudou


de função: ela traz para os homens uma estética da distração,
admiravelmente resumida pela obra de Andy Warhol, tão po¬
pular nos meios da moda. Nesse contexto, a distância que se¬
para uma obra moderna de uma criação têxtil diminui. A rela¬
ção com um filme não é mais religiosa que aquela que pode¬
mos manter com um vestido: ambos oferecem certo lazer, não
precisamos prestar tanta atenção para poder apreciá-los. Além
disso, esses dois objetos são concebidos da mesma maneira.
Os meios mobilizados para fabricá-los não são acessíveis a
qualquer um, mesmo rico. Raros são os indivíduos que pensa¬
ram em comprar um filme para uso próprio; da mesma for¬
ma, a aquisição de um perfume inédito requer investimentos
impossíveis de ser suportados por uma pessoa. Respondendo
a novas necessidades vinculadas à sociedade de massa, a moda
se organizou para satisfazer os desejos do indivíduo. Portan¬
to, ela proporciona um pouco dessa aura enfraquecida em cada
uma de suas criações. É nesse mecanismo que se apóia a no¬
ção de licença: um costureiro aproveita sua celebridade para
grifar um produto que não criou, ou ainda para alugar seu
nome. E a descoberta dessa operação mágica pela qual um
produto banal pode adquirir valor graças a um ato de batismo
transformou o mundo da moda.

Alugar 0 nome, a invenção da licença

A idéia de associar a pessoa a uma marca e, depois, de pôr


essa marca nos mais diversos produtos transformou profunda¬
mente as maisons de costura. Foi Gabrielle Chanel a primeira a
ter plena consciência das possibilidades que sua notoriedade
oferecia. Assim, ela foi pioneira ao impor um perfume oriundo
da costura.
0 nascimento do costureiro 59

Diferentemente de seus predecessores, Chanel encarou o


perfume com seriedade, como um verdadeiro produto. Poiret já
havia lançado seus Parfums de Rosine, mas eles nunca atingiram
as vendas de produtos de autênticos perfumistas como Coty ou
Guerlain. O 5 de Chanel, ao contrário, é um caso inédito por¬
que, até hoje, permanece líder das vendas mundiais.^^ Para criar
esse perfume, Chanel encomendou cinco amostras a um especia¬
lista - sua mania por números -, pedindo a cada um deles "um
perfume de mulher com odor de mulher”. O resultado foi pro¬
fundamente inovador: N- 5, assim o chamaria no lançamento de
1921, é 0 primeiro perfume muito aldeídico e ao mesmo tempo
muito frutado. Os aldeídos são componentes de síntese, desco¬
bertos no começo do século XX, que permitem exalar notas flo¬
rais e obter sensações olfativas inéditas. A fragrância do N- 5 é,
portanto, ao mesmo tempo poderosa e dissonante, e esse perfu¬
me lançou a moda dos aldeídos gordurosos em uma linha Chipre.
Lanvin seguiria o mesmo caminho com Arpège, e depois seria a
vez de Chamade, de Cuerlain; Calandre, de Paco Rabanne; e Rive
Cauche, de Yves Saint Laurent. Para valorizar o produto, Chanel
decidiu colocá-lo em um frasco de formato simples e evocatório:
a tampa, vista de cima, tem a forma da Place Vendôme.

Contudo, o verdadeiro vendedor de aura será Christian Dior.


Ele aparece como aquele que revolucionou a maneira de lucrar
com uma marca de moda. Com seu bom senso, pressentiu a
formidável renda que poderia ser obtida com um nome tão
famoso quanto o seu. Tferrivelmente ansioso, achava que se tra¬
tava de uma precaução indispensável, já que não acreditava
que alguém pudesse depender apenas das tendências para ga¬
rantir sua subsistência. Aliás, confessava isso sem rodeios:

27 No primeiro semestre de 2002, o N“ 5 era o segundo perfume feminino na


França (atrás apenas de Angel, de Thierry Mugler).
60 A marca de fábrica

A moda é como você sabe: um dia o sucesso, no dia seguinte a


descida ao inferno! [...] Você sabe que me interesso por tudo que diga
respeito a comida! Conheço várias receitas, e um dia, nunca se sabe,
talvez eu possa precisar disso. Quem sabe? Presunto Dior, rosbife
Dior?^

Não teve necessidade de se lançar no comércio alimentí¬


cio; a moda e os acessórios lhe forneceram um campo de ex¬
pressão suficientemente amplo. Tüdo começou em 1948, quan¬
do o fabricante de meias Prestige pediu seu nome para produzir
e distribuir seus artigos no mercado americano. Propunha en¬
tão 10 mil dólares, valor considerável logo depois da Guerra.
Dior teve a audácia de recusar; pediu e obteve uma porcenta¬
gem sobre a renda. Nascia o sistema das licenças. No fim dos
anos 1980, Dior tinha mais de duzentas licenças. Mais uma vez,
a natureza dos produtos dizia mais respeito ao grande bazar.
Existia até uma licença para os chinelos Dior, desenvolvidos
por Aris Isotoner. Algumas dessas licenças cresciam mais de
25% ao ano, da forma mais surpreendente... Na verdade, na
Maison Dior, ninguém conseguia explicar esse fato.

Essa invenção decisiva para a economia da moda não era


unicamente obra de Christian Dior. Seu diretor-geral, Jacques
Rouèt, trabalhou muito para implementá-la, e contribuiu igual¬
mente para a multiplicação dos acordos dessa natureza. Além
do mais, essa invenção também foi elaborada por Henri Fayol,
principal colaborador de Marcei Boussac, que, na época, enca¬
beçava um gigantesco império têxtil. Fayol tinha um pai famo¬
so por suas teorias audaciosas, destinadas a racionalizar os mo¬
dos de gestão das empresas francesas. Tüdo leva a crer que Henri
Fayol havia percebido, muito mais que seu patrão, as fontes de
lucro que existiam em uma marca como Dior; aliás, esse ho-

28
Apud Marie-France Pochna, Chrisãan Dior, cit., p. 264.
0 nascimento do costureiro

mem, engajado na luta contra os arcaísmos do império Boussac,


alcançou sua meta.

Depois de Dior, todos os grandes nomes da moda utiliza¬


ram o sistema das licenças. Os objetos mais improváveis se
beneficiaram do prestígio dos grandes costureiros. Pierre
Cardin, que levou o sistema ao paroxismo, “assinou” chocola¬
tes, bidês, isqueiros publicitários, etc. Hoje, como veremos, a
gestão racional de uma marca de moda exige que as licenças
sejam revertidas para que haja uma melhor utilização do nome.
Mas o princípio permanece o mesmo: beneficiar os mais diver¬
sos produtos com uma aura transformada em renda. Nesse sen¬
tido, as marcas de moda representam um caso único e extre¬
mo. As empresas podem grifar com seu nome produtos distan¬
tes de sua linha de produção de origem; nenhuma poderá riva¬
lizar nessa atividade com uma marca de moda. É porque pou¬
cos nomes estimulam mais a imaginação das pessoas que os
nomes dos costureiros. Dior podia ser desajeitado e tímido, mas
tornou-se, desde o estilo new look que impôs, uma verdadeira
estrela. Fugia dos microfones e das câmeras, mas, na imprensa
americana, seu nome foi mencionado entre 1.200 e 1.400 vezes
por mês, entre 1947 e 1949. Quando chegou a Nova York, teve
uma recepção digna de Churchill. Cocteau, seu velho amigo,
acabou por se irritar diante de tão surpreendente popularidade.
Os empresários americanos, por sua vez, esperavam Dior fir¬
memente: eles já tinham entendido que essa notoriedade não
tinha preço.
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2
0 milagre da marca

Primeiro era o criador, em seguida o criador inventou a marca.


Na aparência, as marcas triunfaram sobre as modas. Há mais
de meio século, são as mesmas: Dior, Gucci, Chanel e outros
Lanvin. Tüdo passa, tudo cansa, exceto as marcas, pensam os
mais otimistas. Contudo, há muitas marcas que foram arranca¬
das de nosso afeto: Jacques Estérel, Christine Bailly, Poiret...
pertencem doravante à história do vestuário. Como todos os
anos, alguns estão prestes a se juntar a eles... Por terem se tor¬
nado moda e até o motor da moda, as marcas se expuseram à
sorte das tendências. Um dia elas são in, no dia seguinte são
out: quase nenhuma delas escapa desse ciclo. Essa situação de
incerteza necessita muita habilidade, tanto na criação como na
gestão. Depois da época gloriosa das pioneiras, de Dior e das
primeiras licenças, chegou o tempo dos profissionais e do siste¬
ma da marca. A meta deles é simples: sobreviver às modas.

Um capitalismo ostensivo

Os businessmen logo entenderam o interesse que podiam


extrair do universo das tendências. É por esse motivo que hoje
A marca de fábrica

O costureiro não está mais sozinho: ao seu lado, sempre encon¬


tramos um ou vários administradores para assisti-lo na direção
de seus negócios.

A descoberta do eldorado da moda pelos financiadores é


muito recente. Antes, para os capitães da indústria, no melhor
dos casos esse setor representava um passatempo. Marcei
Boussac conhecia o setor, produzia tecido, mas aborrecia-se. As¬
sim, decidiu lançar Christian Dior, e financeiramente foi um
sucesso. Contudo, a atividade não o apaixonava. Aliás, Boussac
e Dior se encontraram uma única vez. Foi o bastante para que
se associassem e também para ver que não pertenciam ao mes¬
mo mundo, e que nenhum deles estava a fim de visitar o do
outro. Boussac, que nessa época era o homem mais poderoso
da França, pensava que sua reputação e seriedade ficariam du¬
ramente abaladas se ele fosse visto assistindo a um desfile; por¬
tanto, enviava sua mulher. Hoje, poucas coisas parecem mais
sérias que uma apresentação de coleções. Podemos imaginar
um evento Dior na ausência de Bernard Arnault, proprietário
da marca? Para o mundo dos negócios, exibir-se com um cria¬
dor de moda, sobretudo quando se trata de um maluco de hábi¬
tos estranhos, é mais que uma honra: é uma oportunidade rara.
As marcas de moda triunfam; o império Boussac, com suas
dezenas de fábricas e seus milhares de empregados, é apenas
uma lembrança. Hoje, não há mais confecções, há grifes. Em
outras palavras, a produção é terceirizada.

Boussac produzia e vendia tecidos: os novos magnatas da


moda limitam-se a possuir marcas. Homens como Luciano
Benetton, Armancio Ortega (Zara) ou François Pinault (propri¬
etário da Gucci) construiram uma fortuna graças às suas mar¬
cas; as bolsas de valores do mundo inteiro aplaudiram suas pro¬
ezas. Nossa época também acolheu personalidades duplas, si-
multaneamente costureiros e homens de negócios, a exemplo
de Ralph Lauren ou Giorgio Armani. A este último não falta
ironia: não hesitou em batizar uma de suas linhas de prêt-à-
porter como Emporio Armani. O império vai bem: em Milão, o
costureiro mandou construir para sua companhia - que, aliás, é
ele - uma sede inacreditável, num fabuloso teatro reformado
pelo arquiteto Tádao Ando. Hoje septuagenário, Giorgio Armani
se parece com Adriano, o lendário imperador caro a Margueritte
Yourcenar. “Eu me sentia responsável pela beleza do mundo",
confiava Adriano... Nesses 3.400 metros quadrados em que se
uniram a água, o vidro, o concreto e o mármore do século XXI,
Armani medita provavelmente sobre o caráter único de seu
destino. Jamais um monarca reinara sobre um reino de panos.
Em 2002, Armani foi, mais uma vez, o contribuinte n- 1 do
fisco italiano.

Mas dinheiro não é tudo. A geração que hoje preside o des¬


tino das marcas de moda se destaca da precedente mais por sua
mentalidade e suas técnicas que por seu patrimônio. A passa¬
gem de uma geração a outra resume a transição do pré-capita-
lismo ao capitalismo, descrita pelo sociólogo Max Weber. Em
uma tese célebre, ele sublinhou as afinidades eletivas do espíri¬
to do capitalismo, obstinado pelo trabalho e ávido pelo ganho,
e da ética protestante, puritana e ascética. Para Weber, os capi¬
talistas manipulam a racionalidade em seus negócios porque
nela encontram a prova de sua eleição, entre os bem-afortuna¬
dos, no mundo futuro. Pouco importa que os homens de Moét
Hennessy Louis Vuitton (LVMH) ou de Pinault-Printemps-
Redoute (PPR) sejam crentes ou não; para eles, o trabalho e as
marcas que gerenciam confinam com o sagrado. As manobras
são calculadas: tendem a maximizar o valor das empresas que
as empregam, não a sustentar níveis de vida espetaculares.
66 A marca de fábrica

Ao contrário desse modelo, Maurizio Gucci, nos anos 1960,


entendia sobretudo a palavra "despesa". Para que ganhar dinheiro,
ter-se-ia perguntado, se não fosse para logo gastá-lo de forma
ostentatória? O prazer, segundo ele, devia ser procurado aqui
na terra. Assim, Maurizio era um pré-capitalista, um aventurei¬
ro dotado de senso comercial conquistador, animado pelo seu
gosto pelos prazeres. Os grandes grupos, como LVMH e PPR,
não gostam desse tipo de homem, e, aliás, empenham-se em
substituí-los. Bernard Arnault, ao contrário, lembra Benjamin
Franklin, fundador do capitalismo moderno, símbolo do asce¬
tismo puritano. As narrações da vida de Bernard Arnault, críti¬
cas ou hagiográficas, insistem na concepção do trabalho como
se fosse um dever. Imagina-se facilmente que para ele a profis¬
são represente "a mais alta forma que possa vestir a atividade
moral”, segundo a expressão de Weber.^ Tbdo dia, o dirigente da
LVMH se submete à "obrigação de ganhar dinheiro, sempre mais
dinheiro, proscrevendo com a maior severidade qualquer pra¬
zer imediato".^ Bernard Arnault deita cedo, fala pouco, gosta de
música clássica e de esporte. Sua educação lhe deu, como expli¬
ca, "princípios de vida equilibrada, arrumada, na qual existe
espaço para tudo, mas em que procura ver o essencial”.^ Essa
confidência é suficiente para medir a distância que separa um
Gucci de um Arnault.

Hoje, os Maurizio Gucci são raros; poucos deles continuam


dirigindo no mundo da moda. Philip Green, décima terceira for¬
tuna inglesa, é um dos últimos aventureiros em exercício. Em

’ Max Weber, üéthique protestante et Vesprit du capitalisme (Paris: Flammarion,


2000), p. 34 [edição em português: A ética protestante e o espírito do capitalismo,
trad. José Marcos Mariani de Macedo (São Paulo: Companhia das Letras,
2004)].
^ Ibid, p. 92.
^ Bernard Arnault, apud Airy Routier, Lange exterminateur: la vraie vie de Bernard
Arnault (Paris: Albin Michel, 2003), p. 29.
2003, ainda dirigia o Arcadia PLC, um dos primeiros grupos de
moda britânicos, proprietário de alguns dos nomes mais popu¬
lares do reino: Principies, Evans, Miss Selfridge, Topshop, etc.
Ao contrário dos financiadores que povoam o universo do pano,
esse pequeno homem rechonchudo, que acusa o peso das apos¬
tas e da ansiedade, nunca procurou ser respeitável. Como para
outros criadores que já evocamos, a moda para ele foi a manei¬
ra de conseguir uma vingança social sobre uma infância modes¬
ta. Ao contrário de Bernard Arnault, não deseja construir um
império, mas uma fortuna. Sua vida é uma sucessão de idas e
voltas, como se diz no jargão da bolsa de valores, de empresas
de que ele se apropria para revendê-las alguns meses depois.
Seu cotidiano é também constituído de idas e voltas, entre Lon¬
dres (onde trabalha) e Mônaco (onde mora). No ano passado,
ele comemorou seus 50 anos no principado, gastando para isso,
na ocasião, 7,5 milhões de dólares, convidando para a festa Tbm
Jones, Earth, Wind & Fire e Rod Stewart, procurando evitar a
qualquer preço que o evento passasse despercebido.

Na grande época dos aventureiros do têxtil, Philip Green


teria sido considerado um homem como os outros. Gerenciar
uma empresa de moda geralmente significava ter uma perso¬
nalidade pitoresca, instrumentalizar uma suposta incapacidade
de permanecer calmo. Os Gucci, como dizia um de seus antigos
empregados, eram assim, “pessoas simples, inacreditavelmente
humanas, mas dotadas de um terrível caráter toscano"."^ Com a
chegada dos financiadores, a violência se tornou muito mais
policiada. O episódio da bolsa de valores em que os grupos PPR
e LVMH se enfrentaram, no ano 2000, para o controle da Gucci,
propiciou vários tipos de manobras mais ou menos regulares.

^ Sara Gay Forden, La saga Gucci: du luxe au meurtre, de la création à la guerre


boursière (Paris: J.-C. Lattès, 2001), p. 19.
68 A marca de fábrica

Mas tratava-se de golpes sujos inventados por advogados e con¬


sultores, com lógicas muito diferentes daquelas geralmente de¬
senvolvidas pela famosa família de marroquineiros* florentinos.
Aliás, Gucci é um caso emblemático. A empresa ilustra essa
ruptura provocada pela chegada dos financiadores ao mundo
da moda. Simultaneamente, o renascimento dessa marca, mo¬
ribunda nos anos 1980, revelou as possibilidades abertas por
esse tipo de operação.

Gucci e a segunda vida das marcas de moda

o rebascimento da Gucci marca uma reviravolta na exis¬


tência das empresas da moda. Jamais uma empresa desse setor
tinha declinado tanto para, em seguida, se reerguer de tal for¬
ma. Assim, a história do duplo G, emblema da grife, simboliza
as mudanças que aconteceram nesse setor.

A saga Gucci não começou nos anos 1980, mas em 1922,


quando Guccio Gucci (1881-1953) abriu uma marroquinaria em
Florença. Existe uma lenda segundo a qual Guccio teria tido
uma formação de seleiro, e os Gucci, na Idade Média, teriam
sido fornecedores exclusivos do príncipe dessa cidade. A reali¬
dade é mais prosaica. Depois da falência de seu pai, o jovem
Guccio deixou a Itália para encontrar trabalho na Inglaterra.
Empregado no Hotel Savoy, ele descobriu o mundo dos que
viajam e decidiu, depois de regressar ao seu país de origem,
lançar-se no negócio e depois na fabricação de artigos de via¬
gem. Após ter tido algumas dificuldades no início, Guccio Gucci
conseguiu transformar seu nome em um próspero empreendi¬
mento, que se desenvolveu segundo dois princípios represen-

* Fabricantes de artigos de couro de cabra tingidos. (Nota do tradutor.)


0 milagre da marca

tativos do "modelo italiano", também utilizado por Prada e


Benetton: uma gestão familiar, qualquer que seja o tamanho da
empresa, e uma estreita colaboração com a rede de terceirizados
localizados na Itália, nos arredores da sede. Assim, antes de ser
comprada, a firma Gucci foi gerenciada por três gerações desse
nome, a mais ampla comunidade familiar - irmãos, irmãs, pri¬
mos - participante do negócio.

Imitando uma prática que começava a se difundir, Guccio


Gucci abriu filiais, primeiramente em Roma e depois em Milão.
Logo depois da Segunda Guerra, nos anos 1950, Aldo, um de seus
filhos, abriu uma loja em Nova York, em seguida em Londres, Tó¬
quio, Hong Kong e, por fim. Paris. A giifé agradava às celebrida¬
des. Um dos modelos emblemáticos da marca, o "0063”, apareceu
em 1957; essa bolsa com alça de bambu, feita de couro preto, lem¬
brava a sela de um cavalo. Liz Táylor e Jackie Kennedy fortalece¬
ram sua notoriedade ao usá-la. Aldo não poupou esforços para
que o nome Gucci fosse sempre associado ao de celebridades. Sem¬
pre muito cuidadoso, ele se certificou de que seus sapatos eram
usados por John Wayne ou Jack Nicholson. Achado astucioso: em
1964, a maison criou uma echarpe para homenagear Grace Kelly,
que não teve alternativa senão aceitá-la de presente... diante dos
fotógrafos. Os outros exemplares foram disputados.

No fim dos anos 1970, Gucci encarnava o luxo italiano.


Porém, durante a década seguinte, a marca perdeu boa parte de
seu brilho. Pessoas otimistas poderiam dizer que a grife se tor¬
nava banal. Na verdade, a situação era muito pior. Nada menos
que 22 mil produtos utilizavam o símbolo do duplo G, constitu¬
indo uma lista muito heterogênea: uma garrafa de scotch, uma
linha de objetos de couro concorrente, camisetas, chaveiros...^

® Stéphane Marchand, Les guerres du luxe (Paris: Fayard, 2001), p. 21.


70 A marca de fábrica

De fato, cada primo que possuía uma parte do capital - Roberto,


Paolo ou Maurizio - havia criado uma pequena marca Gucci à
sua maneira, lançando artigos e assinando licenças. Até que
um dia houve necessidade de arrumar a casa. A empresa aban¬
donou a comunicação habitual para rodar um fascinante melo¬
drama familiar divulgado no mundo inteiro. Os jornais sabore¬
avam o espetáculo, sutil mistura de tragédia grega e westem-
spaghetti. Como escrevia então o Daily Express, "Gucci é uma
empresa que gera bilhões e na qual reina um caos maior do que
em uma pizzaria romana". Um divertimento inesperado.

As confrontações estavam à altura do desafio. Paolo se


destacou quando denunciou seu pai, Aldo, e depois seus dois
irmãos ao fisco. Aldo, 81 anos, ficou um ano encarcerado. Em
junho de 1987, Maurizio (primo de Paolo), que dirigia a empre¬
sa, preferiu deixar de repente a Itália, por medo de ser preso.
Atravessou a fronteira com a Suíça, de moto, à noite. Nessa
época, havia dezoito casos relativos à família em tribunais do
mundo inteiro. Enfim, último ato quase sublime, Maurizio foi
assassinado em 1995 por matadores de aluguel, por ordem de
sua ex-mulher Patrizia, que, desesperada por não conseguir tra¬
zer o marido ao lar, encontrou assim pelo menos uma maneira
de recuperar sua fortuna.®

No momento em que Maurizio foi assassinado, a marca já


havia sido vendida, seis anos antes, à Investcorp. Com a chega¬
da desse grupo ao capital, as regras mudaram. Até então, a fir¬
ma Gucci tinha sido dirigida por pessoas mais intuitivas que
administradoras. Pensando a curto prazo, elas grifavam qual¬
quer produto, agindo como falsificadores cuja vigilância enfra¬
quecia nas épocas de vacas magras. Assim, Maurizio Gucci usa-

® Sara Gay Forden, La saga Gucci: du luxe au meurtre, de la création à la guerre


boursière, cit.
ra sua intuição. Mais discreto que os outros membros da famí¬
lia, ele sabia usar seu charme. Conseguiu convencer a Investcorp
a deixá-lo dirigir a empresa depois da entrada desse grupo, e
não houve nenhuma dificuldade para que eles entendessem que
haviam feito uma péssima escolha. Maurizio tomava decisões
de maneira brutal e impulsiva, desconcertando administrado¬
res acostumados a elaborar e consolidar planos estratégicos.
Durante vários anos, o bom senso do comerciante foi suficien¬
te para que a firma funcionasse. Mas, nesse contexto, Maurizio
se revelou incapaz de enfrentar a crise. A marca estava desa¬
creditada? Ele decidiu de repente interromper a linha de bolsa
de lona, a mais distante do espírito de marroquineiro de Gucci,
porém a mais lucrativa. Na mesma ordem de idéias, decidiu
parar a venda por atacado para concentrar a distribuição nas
próprias lojas da marca. Essas escolhas, que poderiam ter trazi¬
do lucros, acabaram por trazer um custo exorbitante à empre¬
sa, que, por outro lado, perdia muito dinheiro por causa do au¬
mento considerável da publicidade. Maurizio Gucci precisou
utilizar todo o seu poder de sedução para obter a confiança da
Investcorp. Mas, como todos os homens iguais a ele, vinha sem¬
pre acompanhado de lendas que mostram como ele sabia ser
persuasivo. Embora parecesse rico, estava arruinado. Gontu-
do, conseguiu um empréstimo de quase 5 milhões de dólares
do diretor-geral da Investcorp, Domenico de Sole.

Gom a chegada ao poder desse homem calmo e pondera¬


do, os métodos de gestão foram radicalmente revisados. Os
financiadores da Investcorp mudaram totalmente a estratégia
da firma, convencendo a família Gucci a vigiar a qualidade dos
produtos para justificar os preços. Gomo Guccio gostava de di¬
zer, “a qualidade dura muito tempo após esquecermos o preço".
Os financiadores não haviam comprado uma ferramenta in¬
dustrial: não lhes importava que a firma dominasse uma rede
72 A marca de fábrica

de terceirizados de Florença, e, em matéria de estilo, não tinham


idéias preestabelecidas. Por outro lado, queriam rentabilizar seu
investimento, aproveitar o ativo que a marca representava.
Assim, prestaram mais atenção que a família Gucci à coerência
dos objetos estampados pelo duplo G. Como não estavam em
apuros, preferiram, de forma muito racional, poupar a grife em
vez de enfraquecê-la e deteriorar sua imagem. Seu desejo era
conciliar imperativos estratégicos diferentes; a curto prazo,
controlar as perdas; a médio prazo, fazer com que a marca vol¬
tasse a ser um trunfo comercial eficiente para poderem reven¬
der o conjunto a um industrial ou ao mercado. Quando toma¬
ram o poder, eles desejavam reproduzir a operação que haviam
realizado, entre 1984 e 1987, quando assumiram o controle da
joalheria americana Tiffany: ao comprar a empresa para reerguê-
la e em seguida revendê-la, haviam realizado um lucro de 174%
por ano sobre o investimento. Isso os levou a empreender uma
operação de tumaround (recuperação) com uma grife de moda.
O projeto era original; havia poucos precedentes em que o prin¬
cipal interesse residia no potencial de uma marca.

Portanto, Domenico de Sole, doravante ex-presidente do


Gucci Group, contribuiu amplamente para a renovação da marca
Gucci. Porém, maior que sua administração da firma foi a par¬
ceria que constituiu com o criador Tom Ford, que hoje é
emblemática, encarnando o modelo ideal de uma época que
sonha com artistas administradores e estrelas criativas. O
renascimento da marca do duplo G é de fato indissociável da
chegada de Ibm Ford à direção artística da grife. Esse texano
transformou o estilo da marca; antes, tudo que carregava o nome
Gucci era marrom, suave e redondo; com ele, os produtos se
tornaram pretos, duros e quadrados.

Aliás, se fosse necessária uma única prova do sucesso que


teve o "modelo" Tbm Ford, seria a história da Bally. A sapataria
suíça, passando por severas dificuldades financeiras, foi com¬
prada em 2001 pelo Tfexas Pacific Group (TPG), um fundo de in¬
vestimentos que esperava fazer dela a Gucci dos pobres. Impos¬
sível ter êxito nessa estratégia sem um Tbm Ford. Contudo, a
nova direção fez milagre ao conseguir contratar um clone do
diretor artístico da Gucci. Scott Fellows, contratado em abril de
2001, não se parecia com Tbm Ford: era Tbm Ford. Fisicamente,
podiam ser confundidos. Além disso, ambos tinham a mesma
idade, vinham do Texas, haviam iniciado a carreira com um
marroquineiro italiano e combinavam prática de criação com
um bom conhecimento de marketing. Perspicaz, o novo presi¬
dente da Bally comentou a chegada de Scott Fellows nestes ter¬
mos: "É o novo Tbm Ford”.^ Tbdavia, havia uma diferença: a am¬
bição do TPG era reconstruir uma marca menos cara que a Gucci.
Por esse motivo, surpreendentemente, Scott Fellows adaptou para
um público de executivos de 30-40 anos o discurso que Tbm Ford
reservava ao jet set. Obviamente, a versão Bally era menos onírica:

Não somos artistas, mas criativos realistas. Levamos uma vida agra¬
dável, viajamos na classe husiness, freqüentamos determinados ho-
téis, usamos roupas apropriadas, mais chiques que elegantes, muito
bem cortadas, com alguns detalhes notáveis, mas que não nos fa¬
zem parecer trendy demais ou estupidamente na moda.®

Tãnta sinceridade podia comover; contudo, não parecia


poder seduzir. Melhor era gastar muito para poder viajar na pri¬
meira classe com Tbm do que parecer sensato na husiness com
Scott. Ainda mais que este repetia a mesma opinião em cada
entrevista:

Aqui ninguém reivindica "moda”, mas tendência. [...] isso quer dizer que
queremos proporcionar um toque antenado à moda dos executivos

^ Vogue Homme, maio dc 2001, p. 105.


® Le Figaro, 17-4-2001.
A marca de fábrica

boêmios chiques de 30-40 anos. E os sapatos, as bolsas e o prêt-à-porter


Bally, embora de uma qualidade perfeita, têm preços acessíveis.®

A tentativa de salvação da marca fracassou; Scott Fellows


foi demitido em julho de 2002. Enquanto isso, o Tbxas Pacific
Group contratara um presidente que vinha de Gucci. O que
não se faria para preservar esse ativo precioso entre todos: a
marca?

A marca, sonho de capitalista

Para o capitalismo, a marca representa um objeto inédito.


Ela apareceu durante o século XIX e se metamorfoseou ao lon¬
go do século XX. Na época, alguns artesãos assinavam suas
obras; certos comerciantes tinham um estabelecimento repu¬
tado. Mas todos presidiam pessoalmente à produção dos objetos
aos quais davam seu nome. Se aceitassem arriscar sua reputa¬
ção, é porque eram especialistas nos produtos que comercia¬
lizavam. Rompendo com esse sistema tradicional, o mundo da
moda radicalizou o sistema da marca, edificando “o sonho da
renda”. A economia inclui diferentes formas de ativos suscetí¬
veis de enriquecer os proprietários enquanto estão dormindo:
a terra, as ações, o ouro, etc. Da mesma forma, existem dife¬
rentes tipos de riquezas imateriais: um roteiro ou uma patente
podem oferecer rendas muito depois de sua criação. Entre es¬
ses vários exemplos, a idéia da marca constitui o ativo imaterial
mais poderoso; poucas ficções ou criações da imaginação po¬
dem rivalizar com essa renda criada, quase sem que eles o sai¬
bam, por Goco Chanel e Ghristian Dior. Sem essa invenção,
maisons tão prestigiosas quanto Dior ou Saint Laurent nunca

9
íloiàem.
poderiam ter financiado sua alta-costura. Em 1993, Saint Laurent
perdia nessa atividade mais de 5 milhões de dólares por ano;
subsistia apenas graças à renda dos perfumes.

Além disso, esse sistema parecia quase ideal, ao mesmo


tempo sem riscos e infinitamente reprodutível. Sem riscos,
porque a empresa não sofria nenhuma das conseqüências gera¬
das pela má venda de suas licenças. Exigia de fato a garantia de
renda mínima que recebia independentemente do resultado
comercial. Infinito, porque qualquer bem de consumo parecia
poder ser grifado. Como se sabe, Pierre Cardin foi o aventurei¬
ro que explorou os limites dessa galáxia. Esse assistente de Dior
possuía um verdadeiro talento de costureiro; assim, é respon¬
sável por algumas das criações mais originais da era "espacial",
desde a roupa "cosmo corpo" até sua delirante casa da Côte d'Azur,
chamada "Palácio das Bolhas". Contudo, o que contribuiu para
sua notoriedade foram as oitocentas licenças nas quais aceitou
ver suas iniciais. Atribui-se a esse homem raramente modesto
uma frase que resume seu destino: "Meu nome é mais impor¬
tante que eu mesmo". De fato, a sigla "PC" ornou os objetos
mais inesperados: móveis, relógios, bijuteria, chocolate, bidês,
relógios de parede, etc. Pierre Cardin permanecerá para sem¬
pre o homem que levou às últimas conseqüências a exploração
racional de uma marca. Nossos contemporâneos podem des¬
prezar esse octogenário, mas os produtos derivados grifados
com seu nome continuam prosperando nos mais improváveis
lugares do mundo, na Ásia central ou na índia.

Cardin não é um teórico. Contudo, rapidamente percebeu


as vantagens que poderia tirar de sua notoriedade como marca
de moda. Logo se tornou um industrial da licença, aplicando
no restaurante Maxim's as receitas que havia experimentado
no setor têxtil. Apesar de seu conhecimento, teve dificuldades
76 A marca de fábrica

para rentabilizar a aquisição dessa cantina de luxo, famosa no


mundo inteiro. Foi necessário que multiplicasse o número de
bares e restaurantes com esse nome e, sobretudo, que grifasse
produtos para essa operação se tornar rentável. É que o têxtil
não tem o monopólio da licença, como testemunham os perfu¬
mes Harley Davidson. Contudo, a moda parece fornecer, mais
do que qualquer outro universo, o imaginário necessário para
transfigurar um produto.

O sistema das licenças já provou sua eficiência. Assim, a


maior parte das marcas de moda decidiu conceber e comercializar
a quase totalidade dos produtos que usam seu nome, inclusive os
que são muito distantes da profissão de origem. Os marroqui-
neiros propuseram um prêt-à-porter, as maisons de alta-costura
comercializam acessórios, muitas entre elas negociaram parce¬
rias para vender perfumes, bijuterias, relógios ou louças com seu
nome. Obviamente, cada um invoca Cardin como o exemplo que
não deve ser seguido. Mas sempre somos o Cardin de alguém; o
hranã stretching (a diversificação) se tornou um objetivo comum
a todas as marcas de moda. Tánto as grifes mais prestigiosas como
as mais modestas o praticam.^°

De fato, as grifes costumam multiplicar os tipos de produ¬


tos nos quais põem seu nome. Assim, a variedade dos objetos
grifados pelas mais prestigiosas maisons não deixa nada a dese-

Assim, um estudo mostra que a receita auferida pelas maisons de costura


fora de seu setor de origem não permite distinguir as marcas fortes das
outras. Em 1994, marcas como Givenchy produziam 4,25 vezes mais receita
fora da costura do que dentro. Para Dior, o coeficiente, recorde absoluto,
alcançava 6,25 (contra 5,7 para Yves Saint Laurent). Marcas de menos pres¬
tígio realizavam números comparáveis: Montana obtinha 5,6 e Lapidus 4,1.
De fato, as receitas das primeiras marcas citadas são sensivelmente mais
elevadas que as das segundas. Mas, além dessas disparidades, esses núme¬
ros próximos significam que é possível tirar de uma marca, qualquer que seja
sua natureza, uma renda proporcionalmente idêntica. Estimativas de Alain
Petitjean, em Le luxe ou Vécho du ãésir (Paris: Eurostaf, 1998), p. 53.
0 milagre da marca

jar à praticada por Cardin, que, portanto, foi objeto de certa


ironia. O logotipo da Gucci acabou ornando uma cama portátil
para massagens, algemas, etc. Aparentemente, esses objetos são
heterogêneos; contudo, têm um ponto em comum: não têm a
menor utilidade, são caríssimos e podem ser apreciados por
indivíduos que desejam ter despesas ostentatórias. Para a Maison
Gucci, esses artigos são puramente anedóticos; existem como
brincadeiras coniventes e são geralmente apresentados assim
pelas revistas. A maior parte da receita da grife vem das exten¬
sões doravante tradicionais de uma marca de moda, desde a
perfumaria até a bijuteria. Para a marca do duplo G, assim como
para vários concorrentes, a renda dos perfumes importa mais
que a do prêt-à-porter. Nesse contexto, Armani é uma exceção,
já que se trata da marca têxtil que em 2002 realizou ainda mais
de 50% de sua receita - 51%, para ser exato - com as roupas.

Hoje, Armani é um dos mais sofisticados exemplos de ex¬


tensão de marca: as diferentes linhas lançadas com esse nome
formam um leque muito amplo, dentro do qual é quase impos¬
sível achar-se. Mesmo assim, vamos tentar. Thdo começou em
-1975, com a linha condutora, Giorgio Armani, colocada tanto
em roupas íntimas quanto em óculos (1987) ou acessórios (2000).
Em 1981, uma linha mais abordável foi lançada: Emporio
Armani, com seu próprio prêt-ã-porter, seus relógios e perfu¬
mes. No mesmo ano, a marca decidiu também atacar os merca¬
dos dos jeans e da moda infantil: logicamente, criou sucessiva¬
mente Armani Jeans e Armani Junior. Um ano depois, em 1982,
foi criada a Armani Perfume, visando a clientela feminina, e
depois, em 1984, a clientela masculina. Até aí, a situação, em¬
bora complexa, pode ser entendida. Jbrnou-se mais difícil em

“ Para o resto, os cosméticos e os perfumes representam 25% da receita da


grife, os óculos 14% e os relógios e as jóias 5%. Em Journal du Jkxtile, 21-4-
2003.
78 A marca de fábrica

1991, com o lançamento da Armani Exchange, uma linha de


prêt-à-porter sportswear com preços médios. Logo depois, duas
linhas - Mani e Le Collezioni - propuseram roupas de alto pa¬
drão. As gamas de perfumes e cosméticos se multiplicaram,
notadamente Acqua di Giò (1995) e Mania (2000). Por fim, últi¬
mo acréscimo, Armani Casa utiliza o nome do costureiro em
móveis e artigos para a casa.

Armani foi quem levou mais adiante a lógica da marca: uma


verdadeira bênção para os sócios, um nome único e uma multi¬
dão de artigos para as mais diversas clientelas. Contudo, esse
sonho industrial - o da empresa imaterial sem fábrica nem assa¬
lariados; não precisa mais demitir, já que não emprega -, para
alguns por vezes acabou se transformando em pesadelo: as en¬
comendas são encaminhadas às fábricas sem preocupação com
as condições de trabalho da mão-de-obra. Uma pressão constan¬
te está sendo praticada sobre os preços: troca de terceirizados,
até de país, assim que uma oferta melhor aparece. Nessas condi¬
ções, a matriz se limita a alguns executivos encarregados de con¬
ceber os produtos, de acompanhá-los comercialmente e de
gerenciar os terceirizados. Um tipo de "aperfeiçoamento" do sis¬
tema inventado por Cardin ou Lacoste, em que a empresa
otimizava uma carteira de licenças. Hoje, o modelo ampliador,
ilustração dos desvios desse capitalismo imaterial, é representa¬
do pela Nike. Essa firma, criada em 1971, é a n-1 dos equipamen¬
tos esportivos no mundo, com uma receita de mais de 10 bilhões
de dólares (10,7 bilhões de dólares em 2002), sem possuir uma só
fábrica. A empresa não fábrica nada, ela pilota.

A diferença que separa uma marca esportiva de uma mar¬


ca de moda é tênue. A Nike e semelhantes se aproveitaram da
tendência que consiste em desviar os tênis de seu uso inicial;
dois terços desses pares nunca serão usados para nenhuma prá-
0 milagre da marca

tica esportiva. Assim como as grifes prestigiosas, a presença


de um desses nomes em um produto é suficiente para justificar
preços e, portanto, lucros elevados. Sapatos esportivos vendi¬
dos por 100 euros são produzidos por 8 ou 10 euros. Criadores
trabalham para essas marcas, diminuindo ainda mais a frontei¬
ra que as separam de uma grife tradicional. Em 2002, Yamamoto
assinou pelo quinto ano consecutivo uma coleção exclusiva para
a Adidas. Uma vez que entraram na moda, essas marcas podem
ficar fora de moda^^ e, em seguida, voltar a ficar na moda: a
Puma se beneficiou de uma estratégia de tumaround compará¬
vel à da Gucci. Controlada por Arnn Milchan, produtor do fil¬
me Uma linda mulher, a empresa emprega setenta estilistas. O
relançamento da marca utilizou técnicas clássicas: calçar os pés
do people (Madonna, Cameron Diaz), tornar os produtos mais
raros mediante a opção por uma distribuição seletiva, entrar
na loja Colette, a concept store mais em moda no momento.

Diferentemente das modas que passam e desaparecem, as


marcas nunca morrem completamente. As experiências de
Gucci e Burberry ainda estão em todas as mentes. Dior, sob a
direção da LVMH, recentemente deu uma versão menos dra¬
mática daquela que havia permitido que a Investcorp compras¬
se a Gucci. Essa estratégia, hoje clássica, tem três atos. O pri¬
meiro, de acordo com um roteiro bem conhecido, é um one
man show, que coloca em cena o criador escolhido para desper¬
tar a bela adormecida. Assim, em 1996 apareceu John Galliano,
com a missão de fazer com Dior o que Karl Lagerfeld havia
feito antes para Chanel: revolucionar uma maison - por de¬
mais - respeitável. Para tal finalidade, a direção artística se en-

Estatísticas válidas para o ano 2002. Em LSA, 3-4-2003, p. 23.


13
Assim, a receita da Nike não pára de oscilar desde 1996, de 8,78 bilhões de
dólares (no nível mais baixo) em 1998-1999 para 10,7 bilhões de dólares hoje.
Les Échos, 1-7-2002, p. 14.
80 A marca de fábrica

carrega da marca como um todo, desde a criação dos produtos


até sua promoção: John Galliano cuida da mulher Dior, Hedi
Slimane do homem Dior. O objetivo desses criadores procede
do tríptico tradicional: rejuvenescer, provocar, focalizar.

Segundo ato: menos glamour, reaver as licenças. No come¬


ço dos anos 1990, Dior tinha perto de quatrocentas licenças. A
finalidade é dupla: voltar a controlar a imagem da marca e re¬
cuperar a margem previamente realizada pelas firmas detento¬
ras de licenças. É o fim dos produtos que podem, em razão de
alguns royalties, denegrir a imagem da marca (como os famo¬
sos chinelos Dior). Retomar as licenças permite por fim esco¬
lher a distribuição: as lojas em que os produtos estão à venda
constituem para essas marcas um desafio de prestígio.

Portanto, a terceira ação estratégica consiste em ter suas


próprias lojas. Trata-se de um grande desrespeito à estratégia
puramente imaterial. Os pontos-de-venda, particularmente para
uma marca de luxo, representam investimentos muito pesa¬
dos. Nada é bonito demais para uma marca como Dior: cada
butique deve se parecer com um templo, obrigatoriamente si¬
tuada no melhor lugar: 5- Avenida em Nova York, Peking Road
em Hong Kong ou o bairro de Omotesando em Tóquio. É im¬
possível estar em outro lugar, impossível estar lá humildemen¬
te. Assim, essa economia da grife exige um certo investimento,
primeiras despesas^'^ realizadas por essas marcas. Se for bem-
sucedida, essa estratégia traz resultados impressionantes.
Objetos oferecidos mediante altas quantias são vendidos como

Os investimentos necessários para o sucesso dessa estratégia estão à altura


da finalidade planejada; em 2001, 80 milhões de euros investidos na rede dos
pontos-de-venda; em 2002, 20 milhões de euros para o único ponto-de-venda
de Omotesando (que também inclui um instituto de estética), 5 milhões de
euros investidos em cada coleção de alta-costura, 1 milhão por desfile. Em
Capital, outubro de 2002.
se fossem produtos de grande consumo; 100 mil exemplares da
bolsa Lady Dior no ano de seu lançamento, 14 mil vendas por
mês de sua sucessora, a “bolsa-sela", centenas de milhares de
camisetas J'adore Dior vendidas pelo preço unitário de 150
euros. Os resultados obtidos são excelentes,mas os investi¬
mentos necessários precisam tranqüilizar os acionistas ou os
banqueiros, que devem financiar o desenvolvimento de um
ativo imaterial. Por esse motivo, acima de tudo é imprescindí¬
vel assegurar o valor da marca.

Marcas de valor e valor das marcas

Muito logicamente, a descoberta dos possíveis lucros gera¬


dos por uma grife provocou um grande aumento do preço das
marcas. Assim, a Louis Vuitton valeria 8 bilhões de euros, ou
seja, o Produto Nacional Bruto (PNB) anual da Bolívia! Chanel e
Hermès são igualmente bem avaliadas: perto de 5 bilhões de
euros a primeira, um pouco mais de 3 bilhões de euros a segun¬
da, ou seja, um pouco menos que a marca Peugeot. As perspec¬
tivas de ganhos que podem ser obtidos graças a uma marca de
moda explicam por que, em 2002, três empresas têxteis encon-
travam-se entre as dez primeiras marcas francesas. Outras
marcas de moda, embora mais discretas, valem fortunas: a
Lacoste está no 19° lugar; Pierre Cardin, apesar do desprezo que

A receita da moda Dior aumentou 75% de 1998 a 2001. Hoje, ela representa
um terço da receita do perfume, 1 bilhão de euros em 2001, que progrediu
30% em três anos. Alguns itens, a preço de luxo, são vendidos como produtos
de grande consumo. A grife, deficitária em 2001, teve um resultado positivo
em 2002. Mais impressionante ainda é a receita, que aumentou 41% entre
2001 e 2002, para 492 milhões de euros. Em Journal du Textile, 26-5-2003.
Segundo uma avaliação da consultora Interbrand, hoje referência internacio¬
nal nesse setor.
A marca de fábrica

freqüentemente vem sofrendo, está na 24- posição. Esses valo¬


res podem parecer elevados; contudo, são razoáveis em rela¬
ção aos números apresentados durante a "bolha da internet”.

As avaliações das marcas têm um papel essencial: permi¬


tem medir os consideráveis desafios que essas questões repre¬
sentam para as empresas de moda. É a razão pela qual os atores
do setor lhes prestam uma atenção especial. Essas altas quantias
justificam os investimentos realizados para construir e manter
esses nomes. A maior parte das marcas que se encontram nes¬
sa classificação, com a exceção significativa de Pierre Cardin,
tem muitas despesas de caráter imaterial - publicidade,
marketing, etc. -, mas também material. Seguindo a idéia de
uma economia livre dos imperativos de produção, essas em¬
presas utilizam principalmente a terceirização. Mesmo assim,
elas devem dispor de uma rede de butiques à altura da reputa¬
ção de suas marcas. Os sinais e mensagens necessários para
manter vivo o desejo por uma marca talvez custem caro; geral¬
mente são menos onerosos que os pontos-de-venda indispen¬
sáveis para essas empresas.

Poucas empresas podem financiar essas despesas com fun¬


dos próprios. A maior parte do tempo, elas devem procurar o
mercado ou recorrer a empréstimos para conseguir um desen¬
volvimento de acordo com suas ambições. Assim, é indispen¬
sável tranqüilizar o acionista ou o banqueiro, provar-lhe que
esse sistema, embora imaterial, contribui para a construção de

Nessa época, como podemos lembrar, a conjunção de um material de


informática, de alguns adolescentes e de uma "marca" com final em “.com"
era mais valorizada que a British Airways. Caso típico, em 1999, uma empre¬
sa chamada “Boo.com” pretendia se tornar uma Colette planetária. Infeliz-
mente, a equipe de jovens que animava essa loja mundial apenas conseguiu
desperdiçar o dinheiro dos acionistas, e o valor da marca foi reavaliado em
alguns trocados. Sobre a “nova economia", ver Frédéric Lordon, Fonds de
pension, piège à cons? (Paris; Raisons d’Agir, 2000).
ativos substanciais. Nesse contexto, o valor agregado ao nome
é essencial. As cotações da bolsa de valores flutuam, os resulta¬
dos também; mas, de fato, isso não importa quando a marca
conserva seu valor. Parte da economia do imaterial é baseada
nessa ficção; uma marca seria um elemento ativo distinto da
empresa que a possui, e suscetível, como tal, de ser revendida
como qualquer outro objeto.

Principal dificuldade encontrada por essa representação:


como estimar o preço de uma marca? Os publicitários gosta¬
riam que ele se baseasse nas despesas geradas pelos investimen¬
tos, mas nenhuma fórmula permite garantir que os fundos se¬
jam bem utilizados. Algumas marcas nunca se valem da publici¬
dade - Agnes B, Zara -, e mesmo assim são famosas. Enfim, não
parece possível determinar como um investimento publicitário
valoriza uma marca. A lógica contábil exigiria que ele se fundas¬
se em transações similares; mas as cessões de marcas de prestí¬
gio são raras, e cada caso é específico; é impossível utilizá-los
para construir uma cotação. Assim, resta apenas um método
que cada um utiliza adaptando-o à suas necessidades: a atualiza¬
rão dos fluxos futuros. Cada marca é avaliada em função do que
pode dar de lucro no futuro. Para os produtos comercializados
em um mercado estável, o cálculo é fácil. Mas no setor da moda,
como proceder? Os ganhos futuros são muito difíceis de prever:
não existe uma única maneira de lucrar com a renda constituí¬
da pela marca. Um exemplo: em 2003, a Prada não possuía ne¬
nhum perfume. Na hipótese de a marca decidir lançar um perfu¬
me, quais seriam suas receitas? A resposta pode ser apenas arbi¬
trária. É a razão pela qual todas essas avaliações chegam a resul¬
tados às vezes estranhos e sempre discutíveis.

Essas avaliações são baseadas em postulados discutíveis,


particularmente no seguinte: uma marca teria um valor inde-
A marca de fábrica

pendentemente dos homens que a desenvolvem, da empresa


que a possui, etc. Contudo, a história recente da moda tenderia
a provar mais o contrário: uma marca não tem a essência que
lhe daria um valor no céu estrelado do capital e dos ativos. Seu
potencial não está inscrito nela mesma como um código gené¬
tico que apenas pedisse para se expressar. Hoje, a Gucci aparece
como uma jóia que pede para brilhar como antigamente. A
posteriori, essa constatação parece sensata. É fazer pouco-caso
das conseqüências desastrosas que suscitava a evocação do fa¬
bricante de couro, antes de seu renascimento, nos meios da
moda: uma grife velha para o cliente que também o era, essa
era a reputação do duplo G. Todavia, alguns dos produtos que
hoje constituem a riqueza da marca, como a "bolsa-bambu”, já
eram comercializados, mas ninguém queria olhar para eles...
Conseqüência lógica da avaliação da marca como um ativo in¬
dependente, empresta-se a cada marca uma substância que de¬
cide seu potencial. Mesmo assim, Galliano fez mais do que
modificar os códigos de Dior para que a marca voltasse a agra¬
dar ao público; o estilo Givenchy foi praticamente brutalizado
por Alexander McQueen... Se outros homens tivessem sido en¬
carregados de relançar as duas maisons, haveriam de redescobri-
las de outra maneira, prova de que a identidade de uma marca
não é facilmente determinável.

O renascimento de algumas grifes contribuiu amplamente


para realçar o valor das marcas de maneira geral. Quando a
bolsa de valores estava em alta, e algumas aquisições eram no¬
tícias de jornais, os proprietários dos mais modestos nomes
acreditavam serem donos de uma fortuna. Hoje, a exuberância
irracional não tem mais lugar. Contudo, é interesse de cada
empresa clamar, como Bernard Arnault, que detém grifes “ex¬
traterrestres" que precisariam de mais de trinta anos para ser
construídas.
0 luxo, sempre na moda

Na aparência, está tudo bem; a idéia da marca continua


fazendo muito sucesso. As extensões que podemos edificar em
volta de um nome que agrada não parecem ter limites. Tiido
acontece como se os criadores têxteis se beneficiassem de uma
renda que os mais espertos soubessem fazer frutificar. É a razão
pela qual as marcas doravante valem fortunas.

Em um universo em que a infidelidade é a regra, em que a


oferta sempre parece superior à demanda, um nome conheci¬
do parece ser um verdadeiro trunfo. Constitui especialmente
uma excelente proteção contra a crise do setor têxtil, evidente
nos últimos vinte anos. Essa crise tem múltiplas causas. Na Fran¬
ça, como na maior parte dos países ocidentais, baseia-se notada-
mente no fato de que a parte do orçamento das famílias reser¬
vada às roupas está em declínio.^® É por esse motivo que as
numerosas marcas que propõem artigos de moda com bons
preços conhecem um grande sucesso. Nessas condições, a me¬
lhor e talvez única maneira de resistir às crises é beneficiar
uma marca forte, suscetível de atravessar várias tempestades.
Hoje, essa expressão se tornou quase sinônima de marca de
luxo. Bernard Arnault resume a opinião comum quando estima

Na França, se o consumo nacional aumentou 40% entre 1980 e 1996, as


despesas com as roupas aumentaram apenas de 10% a 15%, de acordo com
o tipo de artigo de vestuário. Em 2001, as compras têxteis anuais representa¬
vam 541 euros por mulher, 363 euros por homem, 337 euros por criança e 548
euros por bebê, tendo progredido somente estas duas últimas categorias de
despesas. Mas o mais inquietante no setor é provavelmente o fato de que os
preços das roupas estão diminuindo no mesmo período. O preço médio de um
taiUeur para mulher passou do equivalente a 219 euros em 1999 para 179
euros em 2001. Uma roupa masculina vendida por 100 FF em 1990 hoje é
vendida por um valor equivalente a 85 FF. Cf. Nicolas Herpin & Daniel Verger,
La Consommation des Français, tomo I, Alimentation, habillement, logement (Pa¬
ris: La Découverte, 2000), p. 71.
86 A marca de fábrica

que "trinta anos são necessários para construir uma verdadeira


marca de luxo; porém, uma vez construída, ela pode resistir a
qualquer crise’'d® Tál crença é de natureza a tranqüilizar os
acionistas. Ainda mais que os lucros desse setor são geralmen¬
te muito altos. Assim, embora a Prada tente ser discreta em
relação a seus custos de fabricação, cogita-se que os coeficien¬
tes aplicados em alguns artigos de náilon estejam por volta de
10. É por esse motivo que, finalmente, a Louis Vuitton, a Cartier
ou a Gucci dispõem de margens brutas de cerca de 70% e de
margens operacionais de quase 20%; apenas a indústria farma¬
cêutica consegue melhores resultados.

Todavia, falar de luxo enquanto o sistema contemporâneo


conjuga consumo e produção de massa não é muito fácil. Tradi¬
cionalmente, como o destaca Jack Goody,^^ as culturas do luxo
se encontram sobretudo em sociedades hierárquicas. Nosso
mundo tem várias estratificações sociais. Contudo, todas são
baseadas na igualdade formal dos indivíduos. Assim, as marcas
de roupas exclusivas na realidade são dirigidas ao grande públi¬
co. Como profetizara Alexis de Tbcqueville, não foi o luxo que
se democratizou: é a democracia que oferece a todos a possibi¬
lidade formal de adquirir todos os bens. Ele escrevia:

Na confusão de todas as classes, cada um espera poder parecer o que


não é e faz muitos esforços para conseguir isso. [...] Para satisfazer
essas novas necessidades da vaidade humana, não há impostura
que as artes não utilizem; a indústria às vezes vai tão longe nesse
sentido que acaba por prejudicar a si mesma.

Apud The Economist, 23-3-2002.


Ibid.
Jack Goody, La peur des représentations (Paris: La Découverte, 2003), p. 31.
“ Alexis de Tbcqueville, De la démocratie en Amérique, vol. II (Paris: Flammarion,
1981), p. 64 [edição em português: A democracia na América, Livro II: Senti¬
mentos e opiniões (São Paulo: Martins Fontes, 2002)].
Então, o luxo é uma etiqueta que distingue alguns produ¬
tos, supostamente mais exclusivos que outros. Nossos contem¬
porâneos adoram esse qualificativo; em 2001, esse tema provo¬
cou na imprensa mais artigos que a proteção do meio ambiente
ou a sexualidade.^^ Simultaneamente, mais de 60% dos america¬
nos, dos europeus e dos japoneses são compradores pelo me¬
nos ocasionais de uma marca de luxo.^^ Portanto, a clientela-
alvo dessas empresas não se limita à hiperburguesia.^^

Criar sua lenda

Algumas marcas, embora recém-nascidas, parecem hoje


verdadeiramente sólidas e agora pertencem, graças à habilida¬
de de seus dirigentes, ao clube dos nomes desejados. Sua pre¬
sença é suficiente para vender caro um objeto que talvez ficas¬
se despercebido se tivesse sido apresentado sob outro nome.

A Tbd’s é a ilustração ideal desse princípio: muitas pessoas


acreditam conhecer a marca há um século, quando na verdade
a empresa que explora essa grife não existia há trinta anos. Quan¬
to à sua penetração junto a um grande público, isso verdadeira¬
mente começou há dez anos. O bom senso gostaria que esse
sucesso se baseasse em um produto excepcional. Mas, aqui, o
bom senso não tem vez: essa grife consegue notoriedade gra¬
ças a um mocassim tão feio que deve sua existência apenas às
tendências da moda. Impossível, sem o socorro da moda, pre-

Respectivamente: 1.500, 1.200 e 300 artigos. Estudo realizado por Edelman,


em Journal du Tèxtile, 14-10-2002.
Pesquisa Risc 2000, apuã Elyette Roux, Le luxe éternel: de Vâge du sacré au
temps des marques (Paris: Gallimard, 2003), p. 154.
A classe de indivíduos assim chamada possui ativos líquidos disponíveis de
pelo menos 1 milhão de euros, e o número desses privilegiados deve aumen¬
tar 50% até 2005. Cf. Estimativa Gap Gemini, apud The Economist, 23-3-2002.
88 A marca de fábrica

tender vender - caro - esse sapato feio, cheio de travas na sola,


modelo inspirado nos sapatos dos pilotos de corridas de auto¬
móvel... Certamente, os Tod’s são confortáveis. Tál argumento
pode ser decisivo para vender chinelos, mas é inútil ou até
embaraçoso para calçar os pés mais distintos do planeta. Para
construir sua marca, e depois um grupo, em volta desses sapa¬
tos, Diego Delia Valle, fundador e atual presidente da Tbd's, deve
ter mostrado uma sólida chutzpah.

Em se tratando da Tod’s, tudo é bonito, mas nada é verda¬


deiro; a história desse sapato está cheia de mentiras. Em 1979,
diz a lenda, o jovem Delia Valle descobriu esse mocassim em
um brechó nos Estados Unidos e o achou terrivelmente con¬
fortável. Muito impressionado, ele resolveu produzir e comer¬
cializar esse estranho sapato sob o nome totalmente imaginá¬
rio de JP Tbd’s. Vinte anos depois, como a marca se tornara
suficientemente famosa, JP foi abandonado. Um par de sapa¬
tos oferecido a Gianni Agnelli teria despertado o interesse do
patrão da Fiat, árbitro das elegâncias transalpinas. Fotógrafos
se encarregaram de imortalizá-lo com esses sapatos estranhos...
Outras criaturas ainda mais míticas os usaram, unicamente com
finalidade publicitária. Foi particularmente o caso de Cary Grant,
que se encarregou, postumamente, de transformar esse recém-
nascido mocassim em um clássico, à maneira da bolsa Kelly ou
do lenço Hermès.

As outras publicidades foram realizadas gratuitamente pelo


tradicional people, que se apressou a utilizar esses sapatos, fabri¬
cados em todas as cores e todos os materiais, desde o mais clás¬
sico couro até o ostentatório crocodilo. A lenda - mais uma! -
quer que essas peles sejam tão preciosas que são conservadas
em cofres... Por isso, certamente esse sapato é tão caro. Em
meados dos anos 1990, no auge do sucesso dos Ibd’s, as lojas
que os distribuíam ficavam com falta de mercadoria: sinal de
sucesso ou resultado de um cálculo? Chegou-se a suspeitar que
Diego Delia Valle tenha "organizado" a raridade do produto,
esnobando a demanda antes mesmo que ela tivesse se expressa¬
do completamente. Delia Valle conseguiu criar hoje um verda¬
deiro falso clássico, talvez até uma forma, um mocassim que vai
envelhecer sem parecer, por meio de algumas cirurgias plásti¬
cas. Em volta do nome Tbd's, outros produtos foram lançados
com sucesso, notadamente uma bolsa muito procurada, a D Bag,
lançada em 1997, utilizando as famosas travas do sapato. Enfim,
outras marcas foram desenvolvidas pelo grupo, uma das quais,
Hogan, narra dessa vez desde 1986 a fábula de um sapato de
críquete dos anos 1930. Tálvez por ser menos feio que o Tbd's,
seu irmão mais velho, ele não representa mais que 30% dos 320
milhões de euros de receita que o grupo alcançou em 2001.

Criada há apenas trinta anos, a 'Thd's é considerada uma


"grande marca”; inegavelmente, esse nome fala ao público. Mas
não há idade ou tamanho mínimos para contar histórias. É a
lição que nos ensina o sucesso de Gérard Darei, uma marca que
não goza do prestígio da Thd's, mas que conseguiu se destacar
também de forma astuciosa.

Criada em 1971, Gérard Darei é uma marca de prêt-à-porter


feminino de médio porte que tomou como meta vestir as mu¬
lheres de 40 anos. Griada no bairro do Sentier, essa empresa
prosperou de forma satisfatória até 1996, sem, contudo, conse¬
guir verdadeiramente se distinguir de suas concorrentes. Ne¬
nhum mito era suscetível de fazer com que essa marca se des¬
tacasse do grupo ao qual pertencia. Foi provavelmente nesse
momento que Danielle Darei teve a idéia de explorar "sua pai¬
xão": Jackie Kennedy. Decidiu então realçar os vínculos que
aproximavam sua empresa dessa imagem lendária - associação.
A marca de fábrica

é claro, completamente arbitrária. Nada predestinava essas duas


protagonistas a se aproximarem. Para que o imaginário associ¬
asse esses dois nomes, uma idéia astuciosa foi desenvolvida.
Em vez de utilizar a imagem de Jackie na publicidade - opera¬
ção pouco cômoda e provavelmente grosseira demais -, Danielle
Darei teve a idéia de comprar em um leilão da Sotheby’s, em
Nova York, o colar que a sra. Kennedy usou quando acompa¬
nhou seu marido em uma visita oficial à França, em 1961.^® Pelo
preço de 500 mil francos, o colar se tornou propriedade dos
Darei, que de imediato tiveram a idéia de utilizá-lo em sua es¬
tratégia publicitária. Uma boa compra que lembra outra: a que
Ralph Lauren realizou, também em um leilão, quando adquiriu,
por 13 milhões de dólares, a mais antiga bandeira americana
até hoje conhecida. Por um lado, ele se tornou proprietário de
seu mais antigo logotipo, porque são igualmente as stars and
stripes que encontramos em suas malhas.

Desde o caso do colar, Gérard Darei não parou mais de


utilizar a imagem de Jackie na sua comunicação, que não se
resume à publicidade: uma empresa de tamanho modesto como
essa obviamente não dispõe dos orçamentos das gigantes desse
setor. Dessa maneira, a marca vende a réplica do colar de Jackie
nas suas lojas, utiliza Stéphanie Seymour (modelo supostamen¬
te parecida com Jackie) em seus anúncios, patrocina uma ex¬
posição fotográfica na Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) consagrada ao casal
Kennedy, ou ainda a exposição de vestidos de Jackie no
Metropolitan Museum, etc. Desde 1996 e do famoso leilão, a
receita bruta de Gérard Darei mais que dobrou. Prova de que as
mais arbitrárias associações podem funcionar, de que não é
necessário ter sido durante trinta anos o fornecedor da rainha

26
Cf. Managment, setembro de 2001, p. 29.
para evocar sua imagem. Uma incógnita ainda permanece: du¬
rante um leilão em 2003, Gérard Darei adquiriu o famoso ques¬
tionário de Proust. Será que a marca quer se lançar no prêt-à-
porter masculino?

Para conseguir se impor, como o fizeram Tod's e Gérard


Darei, uma marca deve encontrar sua clientela, o que está lon¬
ge de ser simples. De fato, o alvo é móvel, e não é sempre o que
foi visado no início.

Marcas desejadas e clientela indesejável

Todas as marcas aspiram a encontrar uma clientela espe¬


cífica. Para essa finalidade, elas trabalham seu alvo. Contudo, o
marketing não consegue tudo. A distinção entre o in e o out
afeta as marcas a cada estação, evolui em função dos grupos e
dos meios. Com certeza, a inércia dos consumidores permite
que algumas grifes mantenham sua renda; mas nenhuma delas
está verdadeiramente fixa. Como se sabe, os consumidores são
cada vez menos fiéis. Finalmente, os indivíduos desenvolvem
em relação às marcas uma atitude similar à que adotam em
relação às instituições em geral: nenhuma marca, luxuosa ou
não, está livre de uma reviravolta da opinião pública. Ela deve
estar prestes a se justificar, pode ser confrontada a uma ameaça
de boicote ou, simplesmente, ser esquecida.

De fato, as grifes tém em nossa sociedade um papel extra¬


ordinariamente complexo. O público da obra de Naomi Klein,
No logo,^^ deve ser relacionado às multidões que correm às lo¬
jas durante os saldos. Aliás, as reações de rejeição em relação a
elas são tão impressionantes quanto algumas manifestações de

27
Naomi Klein, Lo logo: la tyrannie des marques, cit.
92 A marca de fábrica

adoração. Cada marca escapa parcialmente de seus promoto¬


res. Nike, Gap ou Christian Dior (sem falar de McDonald's ou
de Coca-Cola) são exemplos marcantes. Nunca se procurou
deliberadamente dotá-las desde o início dos símbolos que ago¬
ra evocam; nenhuma marca pode ter certeza de seu destino.
Qualquer grife pode ter a desagradável surpresa de ver seu
logotipo estampado por um serial killer e reproduzido em toda
a mídia, como Guy Georges imortalizado com uma camiseta
Umbro verde. Da mesma forma, Doc Martins provavelmente
não escolheu se tornar o sapato predileto dos nazistas. Mas o
que fazer? O recente exemplo de Lacoste ilustra os limites do
controle que essas entidades podem exercitar sobre si mesmas.

O caso do crocodilo é bem conhecido. Contrariamente ao


que se esperava, os artigos dessa marca, usualmente aprecia¬
dos por uma clientela burguesa, tornaram-se de repente popu¬
lares por volta de 1995 entre os jovens dos subúrbios menos
favorecidos. Essa mania dizia respeito à totalidade das roupas
da grife, ou ainda, de forma mais sutil, a alguns tipos de artigos,
agasalhos ou bonés, utilizados como sinal de reconhecimento
por um grupo ou um bairro.^® O fenômeno se baseava em uma
lógica clara, reivindicada pelos atores: tomar posse de alguns
dos símbolos distintos das categorias mais privilegiadas da po¬
pulação. Segundo o sociólogo Serge Liminana, a marca do cro¬
codilo e seu fundador, o jogador de tênis René Lacoste, ocupa¬
vam um lugar inesperado no imaginário desses jovens. Eles
conheciam as proezas do jogador, os diferentes artigos da linha,
mas, sobretudo, interpretavam cada artigo grifado como um
sinal ambivalente de integração. Ao se apropriarem dessas rou-

28
Agradeço a Serge Liminana por ter permitido que eu tomasse conhecimento
do estudo Sorgem que realizou, por conta da Régie Autonome des TLansports
Parisiens (RATP), sobre os jovens dos subúrbios.
0 milagre da marca (93

pas, eles mostravam que também eram capazes de exibir sinais


externos de riqueza. Simultaneamente, apropriando-se por sua
vez da estratégia da distinção, eles utilizavam essa marca desti¬
nada à burguesia com perfeita consciência de que esta não acei¬
taria tão obviamente essa coabitação.

A Lacoste não é a única marca que integrou a sutil hierar¬


quia instaurada por esses jovens. Ao lado do crocodilo, em 2002,
encontravam-se marcas como Hugo Boss, por exemplo, que su¬
postamente permitem aos que as usam entrar nos lugares em
que eram tradicionalmente rejeitados, como as discotecas. Ao
contrário, existem também marcas sinônimas de uma reivindi¬
cação de fazer parte de um grupo, como a grife Dia, por sua vez
inspirada na marca Fubu, que significa "For us, by us”. Tbdavia,
o destino da Lacoste foi especialmente midiatizado, em parte
por razões bem francesas. Muitos comentários irônicos ou con¬
descendentes descreveram esses jovens sem dinheiro que rou¬
bavam da burguesia seus sinais de reconhecimento. Alguns pre¬
gavam a fuga da clientela mais tradicional; outros já a perce¬
biam. Diante de tudo isso, a empresa mostrou muita discrição:
punca falou da presença de jovens dos subúrbios entre seus com¬
pradores. Com certeza, também não divulgou os números, difí¬
ceis de serem conhecidos por causa de sua estrutura. Nada indi¬
ca que os compradores tradicionais tenham se afastado da mar¬
ca, que, aliás, desde 1998, não está na sua melhor fase; em outros
tempos, foi muito mais atrativa, e desde então procura fazer uma
cirurgia plástica, operação para a qual notadamente contratou
um jovem estilista, Christophe Lemaire. Um passo tímido, até
talvez inconsciente, foi dado em direção aos aficionados indese¬
jáveis: um modelo negro em um folheto, bolsa masculina (usada
com cinto) vendida por um preço módico. Mas não há nenhuma
estratégia deliberada em relação a esse assunto.
A marca de fábrica

Da mesma maneira que os comentários ouvidos a respeito


desse fenômeno, a reação da Lacoste é reveladora de uma posi¬
ção específica da França em relação às minorias: trai uma con¬
cepção peculiar da integração. Tlido acontece como se um
universalismo formal se sobrepusesse a um esnobismo real. Nos
Estados Unidos, observa-se obviamente a atitude oposta: o
marketing étnico se tornou, desde os anos 1990, uma unanimida¬
de. Algumas marcas populares entre as minorias étnicas trans¬
formaram o acaso em oportunidade, instrumentalizaram-no para
se destacar de suas concorrentes. O logotipo de Tbmmy Hilfiger,
originalmente uma simples cópia de Ralph Lauren, aproveitou-se
dessa situação para tomar uma verdadeira identidade. A tolerân¬
cia em relação à alteridade não é o único motivo desse comporta¬
mento. Os afro-americanos aparentemente gastam mais que a
média dos americanos para se vestir: 46% de dinheiro a mais nas
roupas femininas, 86% a mais nos sapatos masculinos, e a rela¬
ção é de um para quatro nos ternos.^® Esse contraste geralmente
é interpretado como uma maneira de provar sua igualdade por
meio de uma plena participação na sociedade de consumo; trata-
se, assim, da negação do estereótipo do negro pobre e marginali¬
zado. Tál sentimento existe entre os compradores da Lacoste que
vêm dos bairros mais pobres. Mas esse entusiasmo repentino não
parece ter sido percebido na França como uma oportunidade, e
sim como uma desventura. Contudo, o sistema das marcas não é
um sistema de castas; nenhuma é proprietária de sua clientela ou
pode se garantir contra a compra por "intocáveis" de alguns de
seus produtos. Portanto, as marcas estão aprendendo a humilda¬
de: percebem que seu poder nas decisões coletivas é muito mais
frágil do que se acredita geralmente. Alguns fracassos testemu¬
nham sua precariedade diante dos fenômenos de moda.

29
Michèle Lamont e Virag Moinar, "How Blacks Use Consumption to Shape
Collective Identity", em Journal of Consumer Culture, 1(1), pp. 31-45.
A moda não é dominada

A moda não se deixa dominar facilmente, como o atestam


as desventuras de Hussein Chalayan, jovem estilista de origem
cipriota. Não somente nunca conseguiu transformar seu nome
em uma grife, como, em dezembro de 2000, no momento em
que seu amigo de formatura Alexander McQueen era despedido
pelo Gucci Group, teve de encerrar suas atividades. "Por que
ele?”, perguntavam-se alguns, já que o talento de Chalayan não
deixava resquício algum de dúvida, e nenhum profissional ou¬
saria contestá-lo. Desde que terminara os estudos, em 1994, foi
qualificado como um génio conceituai: dois anos seguidos foi
eleito o British Designer of the Year.

Claro, o conceituai poderia não vender bem: as primeiras


criações de Chalayan - roupas realizadas com limalhas de ferro
ou papel, ou confeccionadas com casca de fibra de vidro - não
pareceram atrair muito o público. Como em outros universos
artísticos, o gosto dos profissionais às vezes fica defasado em
relação ao do público. No setor da moda, o abstrato e o concei¬
tuai nunca permitiram que um criador tivesse sucesso. Da mes¬
ma forma, as provocações de conotação política, como a que
levou Chalayan a fazer um desfile de mulheres nuas, vestidas
apenas com um xador, são sobretudo apreciadas pela mídia. Como
veremos, são outros tipos de provocação que fazem vender.

Hoje, Chalayan tenta dar a volta por cima. Para isso, mar¬
tela uma mensagem cuja quinta-essência é resumida por sua
porta-voz: “O que Hussein faz para o homem não é de forma
alguma conceituai”.^ Ele se contenta timidamente em seguir

‘Hussein Didn’t Want to Do Anything Conceptual for Men”, em Fashion Wire


Daily, 9-7-2002.
96 A marca de fábrica

algumas de suas pesquisas sobre a "roupa resgatada", usando


denim e veludos desbotados, jérseis fervidos, cores apagadas,
silhuetas deformadas e costuras rasgadas. Como antes, ele re¬
flete sobre a roupa que se usa, como a camiseta Air Mail, envi¬
ada em um envelope fechado e que, antes mesmo de ser usada,
já terá vivido. Mas ele sabe que tudo isso não poderá fazê-lo
viver. Ao lado das peças originais, propõe hoje uma moda dis¬
creta, quase clássica; demais, talvez, para fazer a diferença. Além
disso, até hoje tem se recusado a se produzir. Mesmo as fotogra¬
fias dele são raras... Como criar uma marca quando seu criador
mostra tanta má vontade?

Ao contrário, vontade de promover seu nome, sua marca


e sua pessoa não faltou a Isaac Mizrahi. Aliás, os meios também
não faltaram: Chanel aceitou financiá-lo em 1992. Contudo, em
menos de dez anos, de 1988 a 1997, esse criador nova-iorquino
conheceu a glória e as lágrimas, passando do estatuto de coque¬
luche da cidade ao de celebridade esquecida entre os estilistas.
Miz, apelido que lhe foi dado pelos jornalistas, entendera per¬
feitamente as regras do jogo, e aceitara, sem reclamar, subme-
ter-se a elas. Sua moda era ultracolorida, sexy, feminina; em
resumo, tudo menos cerebral. Aliás, o homem tinha tudo para
agradar: show ojf (cintilante), cheio de chutzpah, totalmente em
harmonia com Nova York, dispunha ainda de um currículo en¬
cantador. Nascido no meio dos confeccionadores nova-iorqui¬
nos, saiu da Parsons School of Design e se tornou assistente de
Calvin Klein. Foi em um loft do Soho que apresentou sua pri¬
meira coleção, em 1988: a cidade o aclamou. No começo dos
anos 1990, ele era o jovem criador americano que a imprensa
observava. Suas invenções se difundiam muito rapidamente,
como seu tartan kilt ou suas boxy jackets. Contribuiu para o
relançamento da moda do blaxploitation (contração de black e
exploitation), colou-se à tendência Jacky Brown lançada pelo
filme de mesmo nome de Quentin Tdrantino. Em 1992, quando
Chanel o ajudou, alguns murmuraram que ele era o sucessor de
Karl Lagerfeld. Era uma estrela, estava na televisão. Então, onde
está o problema? Onde não se esperava; suas roupas eram ado¬
radas pela crítica, que estimulava sua ruptura com a monocro-
mia, mas não eram vendidas. Numerosos peritos estudaram o
caso de Miz. Falta de talento, diziam alguns. Para outros, Isaac
Mizrahi foi em parte vítima do sistema que o concebeu. O con¬
junto dos jornalistas que ficava à sua volta provavelmente o
convenceu apressadamente de que a cor poderia vender, en¬
quanto exista apenas talvez uma minúscula salvação fora dos
clássicos preto-branco-cinza-bege. Hoje, a situação de Mizrahi
parece problemática. Nenhuma marca parece pronta a associar
seu nome ao desse falido... Miz está em liquidação: desenha
roupas para a rede discount Tãrget, e a peça mais cara de sua
coleção custa 69,99 dólares...

Esses dois exemplos mostram que a criação de uma marca


não tem nada de automático. Aliás, um sucesso tão rápido quan¬
to intenso não protege de quedas também brutais. Sob esse
ponto de vista, a história da Uniqlo parece um filme de terror
para os profissionais. O caso da marca japonesa é edificante:
nunca uma marca conheceu um sucesso tão repentino quanto
temporário. A Uniqlo (contração de "Unique Clothing Ware-
house”) foi criada por Tádashi Yanai. Em menos de quinze anos,
a empresa que explorava a marca se tornou a terceira empresa
de distribuição têxtil japonesa, cotada na Bolsa de Tóquio. No
topo da sua glória, em 2000, a Uniqlo tinha um sucesso estron¬
doso: cinqüentas lojas, um crescimento de 100% da receita bru¬
ta entre 1999 e 2000. Uma empresa excessivamente lucrativa, já
que tinha em 2000 um resultado líquido de 350 milhões de euros,
perto de 15% da receita bruta, quando a maioria de seus con¬
correntes conseguia apenas um terço disso. Em julho de 2001, a
A marca de fábrica

rede, apertada no Japão, decidiu iniciar uma ofensiva interna¬


cional, e começou pelo Reino Unido, onde projetava abrir
cinqüenta pontos-de-venda. Um mês depois, em agosto de 2001,
pela primeira vez em sua história, a receita da Uniqlo caiu em
1,9%; foi o começo de seu declínio. A empresa perdeu parte de
seus clientes e, em abril de 2002, seu presidente. As perspecti¬
vas de desenvolvimento no Reino Unido foram interrompidas;
não permitiram obter os resultados esperados. Tbntativas iné¬
ditas de diversificação foram realizadas, notadamente na dis¬
tribuição de... frutas e legumes. Em 2003, o futuro da Uniqlo
não parecia assegurado.

Como explicar esse sucesso seguido por tamanha queda?


Esquematicamente, o conceito da Uniqlo era o que os especia¬
listas chamavam de "me too" da Gap, um modelo estreitamente
inspirado, para não dizer mais, na famosa rede americana. Em
amplas lojas, de 500 a 800 metros quadrados, encontrava-se uma
larga gama de sportswear - camisetas, calças jeans, moletons -
do tipo básico. No topo de seu sucesso, a Uniqlo vendia 300
milhões de artigos por ano, comunicando a honestidade de seus
produtos, a excelente relação entre qualidade e preço (dando a
entender que, ao contrário de seu famoso inspirador e concor¬
rente americano, a Uniqlo não fazia pagar a marca). Em um
mercado dominado por preços altos, a Uniqlo exerceu uma ver¬
dadeira pressão sobre seus correntes. Essa política se baseava
em dois eixos. Por um lado, Yanai desenvolveu para o setor têx¬
til japonês o método do circuito curto, formulado no bairro do
Sentier e popularizado por H&M e Zara; sua ambição, dizia ele,
era tornar-se a primeira empresa de circuito curto do mundo.
Esse sistema de produção se baseava em uma excepcional rede
de terceirizados chineses. Raciocinando em termo de linhas de

31
JTN Monthly, fevereiro de 2001, p. 14.
0 milagre da marca

produtos - jaquetas jeans, camisetas, etc. a Uniqlo supervisio¬


nava o conjunto das operações desde a produção do fio até a
entrega nas lojas, passando pela montagem das roupas. Essa
organização permitia controlar os preços e a qualidade.

Mas a Uniqlo tinha um ponto fraco: sua grife. Identificada


como uma marca de basics, seus produtos, inspirados nos da
Gap, sofreram quando seu estilo ficou fora de moda. A "propos¬
ta honesta"^^ do início agora se voltava contra a Uniqlo: esse
nome não propiciava renda para seus donos, mas uma garantia
de qualidade para o público. Quando os concorrentes da Uniqlo
adotaram o mesmo sistema de circuito curto, a posição da em¬
presa se tornou precária. E a resposta veio rapidamente: em
três anos, a Itochu - grande empresa de comércio japonesa
muito focada no setor da distribuição têxtil - abriu 137 filiais na
China. O alinhamento no sistema de produção da Uniqlo levou
conseqüentemente à queda dos preços de 40% a 50% para algu¬
mas marcas.^^ Estava provado que uma marca conhecida podia
ter sucesso em determinado momento de sua história, sem,
contudo, deixar seus promotores a salvo dos acasos da moda, a
curto prazo.

Entrevista concedida por T^dashi Yanai, em Drapersrecord, 20-10-2001, p. 32.


Principalmente Michel íQein, Comme ça du Mode e ISM. Em Le Figaro, 28-1-
2002.
Segunda parte
A fábrica das tendências
3
A moda está no arbitrário

Supõe-se que as marcas estejam governando as tendências. Na


verdade, são submetidas a elas. Poucos sabem disso, porque a
moda é um universo tão familiar quanto desconhecido. A com¬
plexidade das tendências transparece até em simples questões
de vocabulário. Na aparência, cada um acredita que sabe o que
é uma roupa na moda. Mas, na realidade, o termo é profunda¬
mente equívoco. De fato, agrega duas noções distintas: um jul¬
gamento de fato e um julgamento de valores. O julgamento de
fato diz respeito a uma simples constatação estatística: em de¬
terminado momento, a freqüência com que alguns objetos apa¬
recem é mais elevada que em outros. Quase sempre, essas incli¬
nações são maciças e repentinas. Representadas em um gráfi¬
co, em que o tempo está na abscissa e sua freqüência na orde¬
nada, esses fenômenos adotam a forma característica de uma
“curva em forma de sino".^ A essa concepção "objetiva” de moda
deve ser acrescida outra, em que o julgamento de valores do¬
mina. Segundo essa representação das coisas, apenas um objeto
raro pode se tornar tendência. Esse tipo de debate pode levar a

1
Ver adiante, em "A moda é o que sai de moda".
104 A fábrica das tendências

discussões intermináveis, porque, nesse contexto, a moda de


um não é a do outro. É o que destaca um dos peritos nessa
matéria, Jean-Paul Gaultier: "Quando digo que algo está na moda,
não quer dizer que 100% das pessoas vão segui-la. Hoje, as mo¬
das coexistem. Há os grunges, os neopunks, os velhos punks, os
hippies, os technos... existem outros que misturam tudo”.^ Esse
ecumenismo não nos isenta da interrogação sobre o que está
na moda ou fora dela.

Misteriosas tendências

Para os industriais, o sistema das tendências representaria


o sonho absoluto se fosse fácil de ser decifrado. De fato, como
imaginar um mecanismo mais perfeito que aquele que obriga a
cada ano os indivíduos a abandonar objetos, antes mesmo que
se tornem usados, porque de repente estão ultrapassados? Infe-
lizmente, nunca é fácil prever quando um impulso vai parar.
Pior ainda, parece muito difícil adivinhar o que o substituirá.
Assim, as tendências constituem um tipo de circo moderno,
uma organização sem organizador. Claro, muitos fíngem que
estão manipulando esses fenômenos como se fossem marione-
tistas; outros pretendem igualmente ler o futuro da moda como
se fosse um livro aberto. Contudo, os verdadeiros sábios, nesse
setor, permanecem humildes; sabem que nessa matéria não é
fácil entender e menos ainda influenciar as tendências.

Usualmente, designa-se sob o nome de tendência qualquer


fenômeno de polarização pelo qual um mesmo objeto - no sen¬
tido mais amplo da palavra - seduz simultaneamente um gran¬
de número de pessoas. Nosso cotidiano está repleto de casos de

^ Jean-Paul Gaultier, em Citizen K, n“ 21, inverno de 2001-2002.


A moda está no arbitrário

polarização. Quando os olhamos como espectadores, eles nos


parecem intrigantes e divertidos. Os industriais, tributários de
alguns desses mecanismos, os observam com certo receio. Às
vezes, o nervosismo se torna obsessão: assim, algumas empre¬
sas exigem um levantamento a cada três semanas sobre as ten¬
dências do momento. A cada três semanas, e por que não to¬
dos os dias, já que nossas sociedades vivem sob a lei do movi¬
mento perpétuo? Pierre-André Tãguieff chama isso de bougisme*
tendo a mudança, segundo ele, se tornado um "substituto do
Ser supremo”^ em nossas sociedades. Tãl agitação torna plausí¬
veis quase todas as previsões; para tanto basta não se preocu¬
par com muitas precisões e lembrar que o ridículo não mata as
empresas. A agência de comunicação Euro RSCG Worldwide
provou isso, quando profetizou, em 2001: “Trends are out".'^ As
tendências acabaram!

As tendências simbolizam a futilidade, mas o fútil não ex¬


clui o mistério; as razões de um comportamento frívolo não são
mais fáceis de explicar do que as que presidem a uma conduta
séria. Nenhuma regra trivial permite entender por que, em um
nível elementar, indivíduos que não se conhecem e às vezes
vivem a milhares de quilômetros de distância uns dos outros
decidem se vestir da mesma maneira. Tbdavia, nenhuma obri¬
gação está sendo imposta a eles. Nenhum grande timoneiro os
obriga, como outrora na China, a usar a mesma roupa. Se fos¬
sem obrigados a vestir o mesmo uniforme, nossos contemporâ¬
neos se revoltariam. Nessas condições, por que alguns entre eles
decidem de bom grado usá-lo? As tendências não respeitam nada:

* De bouger, "mexer/mexer-se". (Nota do tradutor.)


^ Pierre-André Tdguieff, Résister au bougisme: démocratie forte contre monãialisation
techno-marchanãe (Paris: Mille et Une Nuits), 2001, p. 16.
■' Em inglês no original. Michelle Lee, Fashion Victim (Nova York: Broadway,
2003), p. 36.
A fábrica das tendências

hoje, elas aspiram a colonizar as roupas infantis. Na França, dois


novos jornais pretendem se carregar disso: Extra Small, que
anuncia na capa de seu primeiro número: "Tfendências - 60 pági¬
nas de moda de 0 a 12 anos”, enquanto seu concorrente Milk
(que também está publicando seu primeiro número) tem como
título: "Moda infantil: é a sua vez!”, e reserva oitenta páginas a
esse assunto para a coleção outono-inverno 2003.

Portanto, as tendências se aplicam a todas as roupas, mas


não existem apenas no setor têxtil. Alguns pensam que o con¬
junto do que se “consome” - desde os bens até os lugares, pas¬
sando pelas idéias - está doravante submetido a períodos de
predileção seguidos por outros de abandono. Contudo, esse
conjunto heteróclito de um lugar, uma roupa e uma teoria não
está sendo regido por uma lei única.

A vida nos oferece o espetáculo de múltiplos comporta¬


mentos gregários, ou de "coortes”. Alguns deles obedecem a cau¬
sas evidentes: é o caso dos engarrafamentos. Outras predileções
obedecem a explicações simples. A panela wok seduz porque
convida ao exotismo à mesa e exclui as gorduras. Existem tam¬
bém os fenômenos de massa, que às vezes parecem ser regidos
por ciclos passionais. É o caso da atração que provoca a
Birkenstock. Como explicar que essa sandália, outrora aprecia¬
da pelos ecologistas da ex-comunista República Democrática
Alemã (RDA), hoje está calçando os pés dos mais cobiçados
modelos do planeta? Alguns podem apreciar o conforto dessa
filha ilegítima do chinelo e do tamanco. Outros são até capazes
de achá-la bonita. Mas o que justifica tais decisões? A injustiça
cometida contra outras marcas de sapatos ortopédicos tem
motivos ou razões?

O sucesso da sandália Birkenstock obedece a uma máxima


prezada pela sabedoria popular: a vida é injusta. Aliás, é o que
A moda está no arbitrário 107

singulariza as modas do vestuário; nenhum outro fenômeno


gregário dá tanto lugar ao arbitrário. Na origem de qualquer
moda, encontramos o acaso. Antes de entendermos como se
governa uma eventualidade, devemos procurar entender o que
distingue as verdadeiras modas dos outros fenômenos flutuan¬
tes da vida social.

“A moda é o que sai de moda”

Devemos voltar ao bom senso, isto é, a Chanel. "A moda é


o que sai de moda", proclamava ela. O antropólogo Alfred
Kroeber verificou esse princípio.^ Nos anos 1920, ele se lançou
em um enorme estudo, analisando três séculos de gravuras e
esboços para medir as oscilações às quais a moda tinha sido
submetida nesse intervalo. Segundo suas conclusões, o vestuá¬
rio feminino teria seguido durante trezentos anos variações
periódicas, ciclos de mais ou menos cinqüenta anos. Assim, as
saias se alongavam durante cinqüenta anos e diminuíam nos
cinqüenta anos seguintes. Kroeber evidenciou relações entre o
comprimento da saia e o tamanho do decote da blusa.

Apesar de suas imperfeições, os estudos de Kroeber têm


um imenso mérito: evidenciar a existência de uma "curva em
forma de sino", descrevendo a temporalidade dos fenômenos
da moda. A silhueta dessa curva hoje é familiar para nós: traduz
as diferentes fases, desde o entusiasmo até o desinteresse, às
quais um produto que é "tendência" está submetido. Graças a
essas curvas em forma de sino, sabemos que os ciclos do vestu¬
ário contemporâneo não duram cinqüenta anos: para a maior
parte deles, ficam entre três e sete anos. Tratando-se de uma

® Sobre Alfred Kroeber, pode-se consultar, por exemplo, Roland Barthes, Le


Meu est à la mode cette année (Paris: IFM, 2001), pp. 106-107.
108 A fábrica das tendências

indústria, seria grande a tentação de supor que os industriais


da moda tenham trabalhado para diminuir o tamanho dos ci¬
clos, Eles fizeram provavelmente tudo o que era possível para
aumentar nossa necessidade de novidades, e alguns índices de¬
monstram que as modas hoje são mais breves, até mesmo nos
setores não mercantis.

Porque as tendências não regem somente os bens que se


vendem e se compram. Os nomes, obviamente muito distantes
do mundo das mercadorias - certamente, um nome não se com¬
pra! também estão submetidos à moda. A maneira como os
ocidentais batizam seus filhos evoluiu.® Nas sociedades tradicio¬
nais, os nomes e os costumes pouco evoluíam. Assim, na Fran¬
ça, de 1600 a 1850, os dez nomes mais comuns se renovaram no
ritmo de 0,25% por ano. Hoje, esse ritmo é dez vezes superior, já
que alcança 2,5% em média. Claro, o caso não diz respeito ape¬
nas à França. A ruptura observada na França por volta de 1850
ocorreu em outros países europeus aproximadamente na mes¬
ma época. Na Dinamarca, o fenômeno aconteceu um pouco mais
cedo, na Escócia sensivelmente mais tarde, por volta de 1925. Na
Islândia, a mudança aconteceu a partir de 1875; antes, os nomes
se renovaram no mesmo ritmo desde... 1075! O fenômeno não
tem nada de misterioso, é intimamente vinculado à desagrega¬
ção das sociedades tradicionais. Por isso geralmente é contem¬
porâneo da urbanização e do desenvolvimento da instrução. Mas
tem o mérito de mostrar que as sociedades ocidentais experi¬
mentam agora espontaneamente um forte gosto pela novidade,
não necessariamente ligado à incitação. Dessa forma, tudo o que
muda não está obrigatoriamente na moda.

® Sobre os nomes, consulte-se Philippe Besnard & Guy Desplanques, La cote


des prénoms 2004: connaítre la mode pour hien choisir un prénom (Paris: Balland,
2003), e Stanley Lieberson, A Matter of Taste (New Haven: Yale University
Press, 2000).
A moda está no arbitrário 109

O exemplo dos nomes mostra que o desejo de novidade,


em nossas sociedades, pode se expressar até na ausência de
qualquer solicitação comercial. As modas investem em setores
em que o efêmero não tem vez: um nome é para toda a vida!
Esse mesmo apetite de renovação pode ser observado em ou¬
tros setores, mesmo que pouco frívolos e distantes de qualquer
lógica mercantil. É notadamente o caso do setor público, em
que os eleitores mostraram nas últimas consultas uma propen¬
são em não reeleger os candidatos que se apresentavam de novo
aos mesmos cargos. A cena intelectual também está submetida
a movimentos que a inflamam antes de desaparecerem, como
o maoísmo ou o lacanismo. Em uma finalidade às vezes
polêmica, esses movimentos foram qualificados de moda. Con¬
tudo, não há certeza de que o termo seja adequado.

Quando escasseiam os motivos para preferir um objeto a


um outro, podemos ter certeza de que se trata de uma tendên¬
cia. Um desejo de sapatos tipo bailarina cor-de-rosa ou de calça
boca-de-sino não se argumenta, a menos que seja para mani¬
festar certa má-fé. Mesmo a idéia segundo a qual um artigo torna
nossa silhueta mais favorecida é freqüentemente instrumen¬
talizada em prol da compra. Com certeza, existem freios “racio¬
nais” à aquisição de minishorts. Se tivéssemos de hierarquizar
nossas ações, começando pelas mais fáceis de argumentar até
as mais difíceis de sustentar, a moda do vestuário viria em últi¬
mo lugar. "Cor e gosto não se discutem", diz o ditado. Ora, cada
uma de nossas compras tem uma parte de arbitrário. 0 4x4
não é o veículo mais adaptado ao trânsito em meio urbano,
embora esteja proliferando nas cidades. Contudo, podemos
evocar vários argumentos, aceitáveis ou não, pouco importa,
que justifiquem essa compra: a aspiração à segurança, a prefe¬
rência por um espaço amplo... Em matéria artística, nossos
gostos são certamente mais difíceis de ser justificados, e uma
110 A fábrica das tendências

pletora de pensadores, desde Immanuel Kant até Pierre


Bourdieu, refletiram sobre esse assunto. Tbdavia, existe uma
tradição e alguns clássicos que permitem distinguir entre um
sucesso do verão e uma ópera de Mozart. No setor da moda,
essas equivalências parecem inencontráveis.

A moda do vestuário ignora quase completamente as justi¬


ficações. Encarna uma das formas mais acabadas de domina¬
ção do arbitrário. Uma vez descartadas as mais banais explica¬
ções - o conveniente, o bom gosto, etc. -, o que sobra? Não
somente as causas não devem pertencer ao racional, mas este,
nesse caso, parece ser uma injúria. Quem comentaria a escolha
de um vestido Dior explicando que é confortável, prático ou
útil? Claro, o modelo Corolle do New Look, apresentado por
Christian Dior em 1947, era sublime. Mas se por um lado essa
roupa continua tão bonita, não está mais na moda. Como as
baggy pants ou as malhas-rede atestam, a moda tem a ver com
a beleza apenas de forma acidental; somente o arbitrário a
domina. Quando perguntamos ao criador dos sapatos Tod's
por que a sola deles tem 133 travas, ele responde sorrindo: "E
por que não?" A moda constitui por si sua própria explicação.
Por que ela se torna muda em matéria de escolha? Porque ape¬
nas um indivíduo pode explicar os motivos de suas ações. Ora,
a moda, por construção, não procede de uma escolha pessoal,
mas da agregação de uma soma de decisões individuais. A moda
aceita somente uma lei: a sua.

O arbitrário reina absoluto sobre a moda; decide a forma


das roupas, o sucesso das marcas. Assim, as grifes doravante
são as últimas fashion victims. As camisetas estampadas de
logotipos traem esses últimos caprichos: em determinada esta¬
ção é necessário aparecer com o nome Cerruti no peito, na
estação seguinte será a vez de Dior, e não há dúvida de que isso
mudará com o decorrer do tempo. As marcas têm grande difi-
A moda está no arbitrário lil

culdade em se prevenir contra essas mudanças de humor. As


únicas conspirações que podem ser articuladas para influen¬
ciar a fabricação da moda são as imaginárias.

A conspiração imaginária

A existência de uma "comissão das modas” que decidiria as


tendências da próxima estação fez muitas pessoas fantasiarem.
O setor têxtil é uma indústria; poderia pagar - caro - para ori¬
entar a demanda. Essa constatação freqüentemente alimentou
a fábula de uma conspiração cuja finalidade seria impor ten¬
dências ao público.

O roteiro mais desgastado coloca em cena os "profissionais


da profissão”. Um tipo de organismo central agregaria industriais
do setor têxtil, estilistas, marcas de prestígio e lojas famosas. Em
um contexto similar, um rumor pouco mais sofisticado oferece
um papel particular, especialmente aos fabricantes de lã italia¬
nos. Segundo uma lenda, organizariam reuniões secretas à beira
do lago de Como. Tbdavia, esses profissionais concordam sobre
tão poucas coisas que nem conseguiriam escolher o restaurante.
E se porventura entrassem em acordo, ninguém acreditaria que
o concorrente tivesse realmente vontade de colaborar. Conse-
qüentemente, é impossível selecionar as tendências dessa ma¬
neira. Mesmo que isso ocorresse, seria necessário difundi-las na
sociedade, o que parece ser ainda mais complexo.

Uma outra versão da conspiração considera que as ten¬


dências do vestuário teriam sua fonte nas descobertas, ou em
adivinhos, que seriam os escritórios de tendências. Essas ofici¬
nas especializadas^ editam a cada estação cadernos de tendên-

^ Li Edelkoort, Nelly Rodi e Peclers estão entre as mais conhecidas.


112 A fábrica das tendências

cias que apresentam de maneira mais ou menos precisa sua


visão das próximas coleções. Tradicionalmente, existia um des¬
ses cadernos para cada família de produtos. Mas o império das
tendências cresce: assim, atualmente, esses cadernos tratam
do não têxtil, desde o universo do banheiro até o reino dos
cosméticos. Para redigi-los, peritos qualificados procuram, como
pesquisadores de nascentes, as futuras manias. Baseiam-se na
sua perspicácia, nos seus dons ou na experiência? Os métodos
utilizados permanecem bem misteriosos: pouco importa, essa
magia contribui amplamente para a fascinação exercida pela
profissão de elaborador de tendências.

Nunca avarentos em prognósticos, esses futurólogos estão


sempre prestes a aceitar o papel de pitonisas para nos explicar
como será o amanhã. E amanhã freqüentemente é hoje:

Saímos definitivamente da clonagem e da loucura higiênica [...] Na


Coréia, fiquei "fascinado" pelas novas águas ditas energizantes, com
uma porção de coisas flutuando dentro delas - ervas, etc. - (a água
Chi logo estará à venda na Colette). Isso me lembra os discursos de
Amélie Nothomb sobre as frutas em decomposição. Isso é tendência,®

profetizava em outubro de 2001 Vincent Grégoire, um dos mais


célebres “elaboradores de tendências” franceses. A lembrança
das outras "predições” de seus colegas também é cruel. Igual¬
mente em 2001, Faith Popcorn, famosa visionária americana,
previa que os consumidores, assim como os esportistas, pode¬
riam ser contratados por uma marca e se beneficiar de descon¬
tos durante toda a vida. Um concorrente, The Intelligent Factory,
anunciava a possibilidade de todos negociarem o preço de suas
roupas.® Conforme sabemos, nenhuma dessas previsões se rea¬
lizou. Em vez de revelar sua miopia publicamente, esses "profe-

Vincent Grégoire, em Le Figaro, 6/7-10-2001.


9
Stmtegieseurope, janeiro de 2001.
A moda está no arbitrário

tas” poderiam ter encontrado a inspiração no método de Li


Edelkoort, que, "já há algumas estações" (!), prevê o desapareci¬
mento das "mulheres perfeitas, estereotipadas, agressivas, que
deixarão lugar a um arquétipo feminino mais agressivo ainda: a
amazona conquistadoraCom predições tão audaciosas, o fu¬
turo não corre o risco de desmenti-la!

Contudo, não deveríamos ser injustos demais com as ofici¬


nas de tendências. Se as profecias evocadas anteriormente trans¬
formassem qualquer mago em um possível candidato ao prêmio
Nobel de Física, essas empresas também produziriam um traba¬
lho mais rigoroso e confiável. Vários de seus clientes não se en¬
contram no setor da moda; assim, elas divulgam junto a eles
algumas tendências do momento. Além do mais, os cadernos de
tendências que vendem não contêm verborréia sobre as futuras
tendências. São principalmente constituídos de modelos e ga¬
mas de cores com as quais é impossível enganar. Se os cadernos
fossem inúteis, as marcas não os comprariam mais. Ora, eles
conhecem um sucesso constante, e a maior parte das marcas de
grande difusão os compram. Todavia, não participam de uma
conspiração: a quase totalidade das marcas mais conceituadas
não utiliza seus serviços. Não porque não precisem se submeter
ãs tendências, claro. Mas devem ser mais criativas, prova de que
existem tendências mais na moda do que outras. Freqüentemente,
as idéias propostas pelos cadernos de tendências são vendidas
para a estação n-t-2, mas são utilizadas desde a estação n +1.

Se a conspiração não condiz com a realidade, funciona, con¬


tudo, como um sintoma; não conseguimos imaginar que um

Em LOfJiciel, maio de 2003, p. 27. Li Edelkoort se manifesta freqüentemente


por meio de profecias audaciosas. Assim, em 1990, ela não hesitou em dizer:
"É necessário reencontrar atitudes de outrora (encerar o chão, ler livros...)
para reaprender a ser moderno”. Cf. Li Edelkoort, em Glamour, setembro de
1990. Ler livros: uma sugestão audaciosa! É melhor encerar o chão.
114 A fábrica das tendências

mecanismo tão poderoso quanto o turbilhão das tendências seja


desprovido de um instigador. A idéia segundo a qual a moda não
possui nenhum poder central está sendo recebida com increduli¬
dade. A crença na conspiração das tendências revela a incapaci¬
dade de imaginar um poder cuja influência estaria em todos os
lugares, e cuja sede seria em lugar nenhum. No setor da moda,
como em uma democracia, todos votam. Mas, como no sufrágio
censitário, nem todos têm o mesmo número de votos. É por esse
motivo que os costureiros exercem uma influencia evidente. Con¬
tudo, em última instância, é a opinião da rua que prevalece.

A rua é o laboratório da moda

Houve um tempo em que a alta-costura era um verdadeiro


laboratório para as tendências. Em ateliês de sonhos, dedos de
fadas concebiam modelos deslumbrantes que a rua tentava re¬
produzir de maneira mais ou menos fiel. Essa época pertence
ao passado. Como sabemos, as poucas maisons de alta-costura
que ainda existem não pretendem um só instante realizar qual¬
quer lucro com essa atividade. Apesar do apoio de algumas
mulheres que aceitam pagar dezenas de milhares de euros por
um vestido, a atividade desse setor permanece amplamente de¬
ficitária. Túdo está sendo feito para que a alta-costura não lu¬
cre. Os estatutos da Federação Francesa de Costura, embora
amenizados, são ainda muito exigentes. Assim, é necessário ter
um pessoal altamente qualificado, que a maior parte do tempo
trabalha manualmente e passa centenas de horas fabricando
uma roupa. Os materiais utilizados podem ser apenas louca¬
mente luxuosos - avestruz, galuchat,* píton chocolate,** seda

* Galuchat: pele de arraia do mar Vermelho. (Nota do tradutor.)


** Píton: couro da cobra píton, originária da Ásia. (Nota do tradutor.)
A moda está no arbitrário 115

pura ou ainda enriquecidos com cristais Swarovski ou borda¬


dos de Lesage. O exercício traz notoriedade certa às maisons
que a ele se submetem; os desfiles são muito midiatizados e
cuidadosamente acompanhados. Apenas algumas maisons fa¬
zem desfiles de alta-costura, enquanto existem milhares para o
prêt-à-porter.

Mesmo assim, esse mundo é tão distante das tendências uti¬


lizadas quanto Jennifer Lopez da imperatriz Sissi. Hoje não ape¬
nas é praticamente impossível inspirar-se na alta-costura para
desenhar a "barxa-costura", como ffeqüentemente assistimos ao
fenômeno inverso. Karl Lagerfeld, para Chanel, foi um dos pri¬
meiros a introduzir os jeans em uma coleção de alta-costura. No
mesmo espírito, John Galliano, para Dior, apresentou em julho
de 2003 um modelo composto por uma anágua GG de alta-costu¬
ra, que acompanhava uma jaqueta com zíper que estava longe de
ser de alta-costura. Esses empréstimos não são anedóticos; teste¬
munham doravante que há outra circulação das tendências. Como
notou Helmut Lang, “costura, prêt-ã-porter, Street fashion - esse
sistema de classificação não é mais válido hoje. Não existem mais
demarcações, as categorias na sua forma pura não existem mais”.^^
O modelo piramidal - aquele em que uma minoria está investida
do papel de criador para a maioria - é um engodo.

O mundo da moda vive sob o domínio de uma fábula co¬


mum a vários meios artísticos: a da difusão vertical dos gostos.
Segundo essa fábula, a vanguarda teria por missão descobrir, ã
maneira de vigias, as tendências de amanhã. Essa visão, desen¬
volvida notadamente por Kandinsky, apresenta o universo do
gosto na forma de um triângulo. Nessa perspectiva.

11 Entrevista com Helmut Lang em Charlotte Seeling, La mode au siècle des


créateurs, 1900-1999, cit., p. 607.
116 A fábrica das tendências

[...] o que ainda hoje é, para o resto do triângulo, apenas uma tolice
incompreensível que tem sentido somente para a ponta extrema,
amanhã parecerá, para a parte que dela está mais próxima, carrega¬
da de emoções e de novos significados.^^

A idéia segundo a qual existiria uma vangjiarda das tendên¬


cias explica várias ações conduzidas no setor da moda. Um exem¬
plo: algumas agências escolheram fotografar, durante os desfiles,
não os modelos, mas o público, certas de que nele se encontra¬
vam os anunciantes da moda de amanhã. Os profissionais do
marketing de moda vivem com o mito dos influentials, como são
chamados nos Estados Unidos esses indivíduos supostamente
encarregados de ditar seus gostos aos outros. Um best-seller^^
descreveu assim detalhadamente a influência dessas misteriosas
pessoas. Seus autores, celebrados pela imprensa especializada,
desejam chamar nossa atenção para esses 10% de americanos
que, segundo eles, constituiriam os famosos líderes de opinião,
que estariam de “dois a cinco anos na frente dos outros” em
relação às tendências de amanhã. Para sustentar sua tese, os au¬
tores do livro evocam uma pesquisa segundo a qual 93% dos
consumidores americanos foram influenciados nas suas esco¬
lhas de consumo pela propaganda de boca em boca, contra 67%
em 1977. Contudo, a existência desses influentials parece perten¬
cer à lenda urbana. Efetivamente, o ser humano se preocupa
com a opinião de seus semelhantes quando tem de tomar certas
decisões, freqüentemente para segui-la, às vezes para seguir o
rumo contrário. Enfim, não é certamente a mesma porção da
população - esses 10% exatamente, nem 1 % a mais ou a menos -
que está sendo consultada sobre todos os assuntos.

Wassily Kandinsky, Du spirituel dans Vart et dans la peinture en particulier (Paris:


Denoèl, 1969), p. 43.
13
Edward B. Keller & Jon Berry, The Influentials (Nova York: Simon and
Schuster), 2003, apuã Women's Wear Daily, 23-5-2003.
A moda está no arbitrário 117

Mas pouco importam as provas da existência dos influenãals;


os profissionais da moda adoram as histórias dessa natureza.
Eles desfrutam, graças a essas histórias, um prazer que Michel
Foucault chamou de “beneficio do locutor”. Agrada-lhes imagi¬
nar a multidão influenciada em suas escolhas de roupas por
alguns happy few, simplesmente porque se consideram ser es¬
ses happy few... De forma lógica, algumas oficinas pensaram
que era suficiente despertar o interesse desses indivíduos para
lançar uma nova tendência. Mas todas estão confrontadas com
um dilema: como influenciar os influentials? Por esse motivo,
algumas delas não têm outra opção a não ser distribuir calças
jeans na saída dos colégios. Um método que, se não é eficiente,
não pode prejudicar seus comanditários: raramente os presen¬
tes tornam alguém impopular.

Apesar dessa representação da difusão das modas, várias


tendências permanecem limitadas a círculos (muito) pequenos.
Ninguém serve - oficialmente - de topo do triângulo para os
BCBG,* e, contudo, eles se vestem! As modas mais arbitrárias
ou mais irônicas, como a arte contemporânea, raramente são
grandes sucessos públicos. Apenas um pequeno círculo ultrapa-
risiense se divertiu quando se vestiu de Deschiens durante uma
estação, associando, como essa trupe de teatro, camisas com
golas largas e calças de poliéster. O agasalho, usado como roupa
urbana, ao contrário, seguiu um percurso inesperado. Populari¬
zado entre os jovens dos subúrbios, os criadores de moda o
reaproveitaram três anos depois de sua aparição. Essa história
mostra que doravante é difícil distinguir de antemão o
manipulador do manipulado.

Bon chic, bon genre, termo mais ou menos equivalente a "patricinhas e


mauricinhos". (Nota do tradutor.)
118 A fábrica das tendências

O "manipulacionismo" - a idéia segundo a qual seríamos obri¬


gados, sem o sabermos, a seg;uir as tendências - pode ser devasta¬
dor. Essa idéia foi popularizada nos anos 1960 por Vance Packard,^^
autor de um best-seller em que os publicitários eram suspeitos de
inserir mensagens subliminares em seus anúncios. A publicidade,
na área da moda, obviamente orienta o consumidor. Contudo,
promove geralmente uma marca, não uma tendência particular.
A imprensa especializada, com vários títulos, tem um papel im¬
portante na difusão e promoção da moda. Tbdavia, ela acerta um
alvo sensibüizado por esses temas, e que procura nessa leitura
uma informação a respeito desse assunto. Essa população não tem,
em relação ãs tendências, um comportamento uniforme. Aliás,
um estudo^^ infelizmente antigo procurava analisar as reações das
mulheres em relação às tendências tomando como critério o com¬
primento das saias. Os resultados mostram nitidamente que a
maioria das mulheres não seguia servilmente as tendências. Quan¬
do as saias ficam mais curtas ou mais compridas, essas mulheres
acompanham o movimento atenuando-o. Assim, uma mulher de
1,70 m de altura costurava a barra a 45 centímetros do chão em
média, enquanto uma mulher de 1,60 m optava por uma barra a
40 centímetros do chão. Esse vaivém entre alguns modelos e sua
adaptação pelos indivíduos, essa negociação sem palavras, é que
fabrica as tendências. E é esse processo perpétuo que permite que
a moda escape a qualquer lógica trivial.

A moda, reflexo da moda


Em determinado ano, por acaso, a moda pode ser bonita ou,
por que não, útil e confortável, e no ano seguinte se tornar abstrata

14
Vance Packard, The Hiãden Persuaãers (Londres: Longmans, 1957).
15
N. K. Jack & B. Schiffer, “The Limits of the Fashion ControT, em American
Sociological Review, 13(6), dezembro de 1948, pp. 730-739.
A moda está no arbitrário 119

e afetada. O que isso prova? Nada, a não ser “a completa indife¬


rença da moda em relação às normas objetivas da vida’V® como
o destacou o sociólogo Georg Simmel. A forma moda não se pre¬
ocupa em nada com a significação inerente a seus conteúdos pe¬
culiares. Com certeza, ela pode receber ocasionalmente conteú¬
dos objetivamente fundados, contudo, como diz Simmel, "ela age
como moda, a partir do momento em que faz sentir positivamen¬
te sua autonomia em relação a qualquer outra motivação".^^

Essa constatação, geralmente evidente, aceita algumas


exceções. Particularmente quando as comunidades nacionais
atravessam eventos traumáticos - guerra, luto, etc. -, uma cer¬
ta sobriedade em geral se impõe. Ao contrário, os que tentam
vincular as tendências aos grandes fenômenos da sociedade se
expõem a sérios desmentidos. Hoje, ninguém ousaria sustentar,
com o historiador James Laver, que

[...] o desaparecimento do espartilho está sempre acompanhado de


dois fenômenos, a condescendência moral e a inflação monetária. À
ausência de espartilho correspondem uma moeda fraca e costumes
relaxados; ao uso do espartilho, uma moeda forte e o prestígio da
grande cortesã, essa parece ser a regra.'®

O abandono do espartilho é, obviamente, uma conseqúên-


cia da equiparação das condições entre homens e mulheres, de
um estilo de vestuário menos formal. Mas não se pode elevar
essa roupa a um sintoma de crise na sociedade. No mesmo regis¬
tro, a idéia segundo a qual as saias diminuíam durante os perío¬
dos de depressão e ficavam mais compridas nas épocas próspe¬
ras hoje parece estar completamente abandonada. Contudo, não

Georg Simmel, La tragédie de la culture et autres essais (Paris: Rivages, 1988), p. 94.
Tbid., p. 95.
James Laver, apud Quentin Bell, Mode et société (Paris: Presses Universitaires
de France, 1992), p. 103.
120 A fábrica das tendências

é fácil acabar com a idéia segundo a qual as tendências seriam


eventos sociais metabolizados. Até um criador como Helmut
Lang afirma que “a moda sempre é um espelho de processos
sociais. Para que haja transformações do vestuário, é preciso
que isso se torne necessário por elementos exteriores”.^® Tbda-
via, ainda que um criador possa se inspirar no mundo à sua
volta, uma tendência geral, maciça, raramente encontra sua
fonte no clima social.

O exemplo mais marcante, abusivamente repetido, é o que


aproxima a onda "estilo militar” do belicismo ambiente desde
setembro de 2001. A idéia é astuciosa, mas essa tendência havia
começado antes do desabamento das torres gêmeas. Em mar¬
ço de 2001, os criadores já haviam iniciado a guerra. Rei
Kawabuko saturava sua coleção de marcas de "camuflagem" e
de calças militares. Na mesma época, Miguel Androver fazia
desfilar em Nova York turbantes, xadores e conjuntos em que
se justapunham uniformes ocidentais inteiramente brancos com
túnicas tradicionais confeccionadas nas principais cores das ban¬
deiras das nações ocidentais: vermelho, branco, azul. A guerra
está igualmente presente nas coleções de Raf Simons, que apre¬
senta cenas de guerrilha urbana em sua coleção outono-inver¬
no de 2001-2002 (portanto apresentada antes do "11 de Setem¬
bro"), assim como Balenciaga e, depois, Céline.

Da mesma maneira, a farda não foi lançada no outono de


2001. Sua aparição na alta-costura se deve a John Galliano, que
incluiu um modelo em sua coleção Dior do verão de 1999. Uma
versão evidentemente inédita, em musselina transparente com¬
binada com lurex.^® Nessa época, aliás, alguns observadores es-

Entrevista com Helmut Lang em Charlotte Seeling, La mode au siècle des


créateurs, 1900-1999, cit.,p. 614.
20
Um fio brilhante, freqüentemente associado à malha.
A moda está no arbitrário 121

tranharam que as vitrines da loja Dior da avenue Montaigne se


pareciam mais com um brechó militar do que com uma loja de
luxo. Essa onda da roupa em estilo militar, lançada por Galliano,
foi reutilizada com mais ou menos talento nas coleções das
maisons de costura. Nicolas Ghesquière, por Balenciaga, apre¬
sentou uma versão marcante, em cor-de-rosa-drágea e verde-
hortelã. Mas, de fato, a roupa militar não esperou ser (re)inven-
tada por esses costureiros para se tornar um fenômeno de moda:
em 1999, já estava nas ruas há muito tempo. Já nos anos 1970,
uma postura consistia em usar os símbolos de uma instituição
reprovada para poder zombar dela. Essa mania fez a fortuna
dos brechós militares. No começo dos anos 1990, não existiam
mais muitos hippies, mas a farda era cada vez mais usada pelos
ravers. O fotógrafo de moda Wolfgang Tillmans lhe deu legiti¬
midade quando consagrou a ela uma reportagem para uma re¬
vista de opiniões respeitadas; I.D. Desde então, a farda obteve
sua consagração; parou de estar banalmente na moda para se
tornar uma roupa basic. Tfadução: qualquer guarda-roupa que
se respeite, de meninas ou rapazes, deve ter uma. Portanto, não
é mais o artigo em si que está submetido à moda, mas a manei-
ía como está sendo usado. No verão de 2003, as mulheres po¬
diam associá-la com saltos altos, ou ainda adotá-la na sua ver¬
são de cetim, franzida por um cadarço na barriga da perna. Em
2004, era inútil esperar pelo ruído das botas; a farda sempre
será tendência.

Afinal de contas, a moàa. está submetida ao mecanismo


evidenciado pelo barão de Münchhausen - lembrando que Sua
Excelência teve a boa idéia, para sair de um charco em que
caíra, de se puxar pelos cabelos. À maneira do barão, a moda é
regida por sua própria arbitrariedade. Essa arbitrariedade, so¬
mos nós que a identificamos a cada dia por meio de milhares
de decisões. Nem todas têm a mesma importância, mas cada
122 A fábrica das tendências

uma tem seu lugar no processo de fabricação das tendências.


Por construção, a moda é a ação recíproca por excelência: ba¬
seia-se no fato, como disse Simmel, de que "a coexistência de
indivíduos com relações recíprocas gera em cada um deles o
que não poderíamos explicar a partir de um só".^^ Toda a dificul¬
dade de entender a moda ou, mais ainda, de participar dela,
notadamente procurando prever as tendências, reside nessa
natureza peculiar que a fundamenta. Assim, o criador se en¬
contra na delicada situação do artista descrita por Wolfgang
Goethe: é ao mesmo tempo escravo e mestre. Escravo porque
os únicos meios a seu alcance são de natureza terrestre, mestre
porque deve dominar a coletividade por meio de artifícios su¬
periores e pessoais. Nessas condições, entendemos que a moda
seja angustiante para os que a elaboram. Como o destacou
Simmel, os movimentos do mercado são bem mais vigiados
que antes. De antemão, podemos prever as necessidades, regu¬
lar a produção para protegê-la dos acasos da conjuntura e das
flutuações desordenadas da oferta e da demanda. Única exceção:
o que Simmel chama de “puros artigos de moda'Ú^ objetos que
seriam desprovidos de qualquer função objetiva e utilitária para
serem apenas criações do momento, que podem fazer muito
sucesso ou ser desprezados. É o caso das gravatas ou dos sapa¬
tos com sola de borracha...

Nessa dura profíssão, os fracassos são às vezes tão difíceis


de entender quanto alguns sucessos. Seguem dois exemplos que
permitem dar uma idéia do enigma que representam as ten¬
dências.

21
Georg Simmel, “La mode", em La tragédie de la culture, cit., p. 90.
A moda está no arbitrário 123

0 enigma do sucesso e do fracasso

As vezes, há algo mais surpreendente que o fracasso: o su¬


cesso. A marca Aigle conheceu a experiência da atração repenti¬
na com seu casaco Copeland, cujas vendas aumentaram de for¬
ma estrondosa sem que ninguém tivesse previsto. A surpresa não
traz somente vantagens. Particularmente quando se propõe ao
consumidor uma gama completa e ele se identifica com um úni¬
co produto. Ainda mais que um sucesso desse tamanho é, por
essência, impossível de se repetir. Agnès B conseguiu sobreviver
ao sucesso de seu cardigã. Barbour, que produzia igualmente um
casaco três-quartos, não conseguiu verdadeiramente substituir o
produto que durante um tempo lhe assegurou o crescimento.

Contudo, não é examinando o casaco Copeland que enten¬


deremos o sucesso que fez esse artigo. Tfata-se de fato de um
banal casaco comprido, inspirado nos dos marinheiros, cuja
manga reproduz as bandeirolas da marinha e a data de constitui¬
ção da empresa, 1853. Tõdavia, esse casaco vendeu na França
mais de 500 mil exemplares, entre 1996 e 2002, enquanto 20 mil
peças vendidas representam um resultado bastante honorável
nesse mercado. Essa roupa inocente foi mais uma vítima da moda,
como testemunha a evolução de suas vendas, que, em cinco anos,
desenhou uma curva em forma de sino. Embora ela esteja erra¬
da: durante os primeiros anos, a demanda por esse artigo era
superior à sua produção. Como freqüentemente ocorre quando
um produto se beneficia de uma atração repentina, são as capa¬
cidades das fábricas que limitam as vendas. Sendo assim, cada
lançamento de produção obriga a compromissos sob o risco de
perder vendas ou produzir demais.

Para explicar o sucesso do Copeland, podemos apresentar


três tipos de explicação. O primeiro tipo é de ordem irracional
124 A fábrica das tendências

e considera que o homem está submetido à moda como um


zumbi, sem poder verdadeiramente manifestar vontade pró¬
pria. O indivíduo, submetido à moda, seria o brinquedo de
mecanismos que o superam. Nesse contexto, as tendências são
os gostos das classes superiores imitadas no limite do possível
pelas outras. Essa teoria serviria, aparentemente, ao casaco
Copeland, já que ele constituiu, durante um período, o acessó¬
rio incontornável do alto executivo de estilo chique e descon-
traido. Segundo a empresa, esse casaco começou a vender bem
nas lojas náuticas bretãs de Vannes, Saint-Brieuc e Brest, que
logo apressaram suas encomendas, para, em seguida, espalhar-
se pelos grandes centros urbanos do oeste da França, como
Nantes e Rennes. Assim, esse artigo conquistou a França de
leste a oeste, dos portos às outras cidades.As circunstâncias
são claras: os velejadores, que pertencem obrigatoriamente às
classes dominantes, é que levaram o Copeland até a cidade.
Segunda hipótese: os indivíduos são alienados na sociedade de
consumo, e a moda é o reflexo mais visivel dessa alienação.
Assim, o sucesso do casaco Copeland é o sucesso do inútil: ves¬
tir esse casaco destinado ao rigor do alto-mar para enfrentar o
metrô não tem sentido. Então, trata-se de uma ilustração do
“consumo ostentatório" teorizado por Thorstein Veblen, segun¬
do o qual a moda teria por vocação permitir que os indivíduos
gastassem sob o olhar alheio.^"* Ou ainda, no mesmo registro
"crítico", trata-se de uma astúcia suplementar do capitalismo
que nos leva a consumir simulacros, aqui um simulacro de na¬
tureza. Enfim, terceira hipótese, principalmente promovida por
alguns profissionais do marketing: haveria tendências que ex¬
plicariam o sucesso desse casaco. É a opinião de um deles, Jean-
Noèl Kapferer, que explica em relação ao Copeland: "O esporte

Le Figaro, l“-7-2002.
Ver a terceira parte, "A beleza do preço".
A moda está no arbitrário 125

faz parte da ideologia ambiente, mas a verdadeira prática é muito


reduzida. Daí o sucesso das marcas esportivas, que permitem
ao consumidor resolver esse dilema”.Como veremos, nenhu¬
ma dessas três opções é totalmente satisfatória. Mas, antes de
verificar isso, devemos analisar o fracasso, às vezes tão enig¬
mático quanto o sucesso.

Enterrado depressa demais, o chapéu formal para homem


- panamá, coco ou outros modelos - se tornou raro. Como ex¬
plicar o desaparecimento desse acessório? Vários estudos ana¬
lisaram esse fenômeno e apresentaram as seguintes causas:^®

• a utilização do cabelo como meio de expressão;

• a moda do cabelo comprido para homens, dificilmente


conciliável com o uso do chapéu;

• a idéia segundo a qual a juventude anda de cabeça nua;

• uma tendência geral à diminuição do formalismo no


vestuário;

• uma preferência crescente pelo natural;

• a popularização do carro, pouco compatível com o uso


do chapéu;

• a desconfiança cada vez maior em relação à autoridade


e o amálgama que associa chapéu e poder;

• o abandono do chapéu por parte das pessoas carismá¬


ticas, de Kennedy a James Dean ou Marlon Brando.

Por mais pertinentes que sejam, nenhum desses argumen¬


tos parece ser, por si, suscetível de esclarecer defmitivamente

Le Figaro, P-7-2002.
Em relação a esse tema, consultar Stanley Lieberson, A Matter of Tàste, cit.,
pp. 81-83, e Edward Tfenner, "Tãlking through Our Hats", em Harvard Magazi¬
ne, n“ 91, 1989, pp. 21-26.
126 A fábrica das tendências

as razões do desaparecimento do chapéu. Cada um deles pode


ser discutido. Assim:

• o fim da moda do cabelo comprido não ressuscitou o


chapéu;

• a juventude continua na moda: contudo, o terno não


teve o mesmo destino que o chapéu;

• o chapéu havia começando a entrar em desuso antes


mesmo da popularização do carro;

• os exemplos de James Dean ou Marlon Brando não es¬


clarecem nada; limitam-se a esclarecer um declínio.

Enfim, detalhe que não deve ser desprezado, a cabeça está


voltando a ser coberta! Com certeza, não se trata do chapéu-
panamá, mas muitos jovens utilizam agora outro tipo de cha¬
péu, bonés em geral e gorros. Aliás, esse fenômeno não é exclu¬
sivo de determinado grupo: os ravers gostam particularmente
dos gorros de lã; os grupos de rap, dos bonés de lona. Os sábios
estudos visando demonstrar que o desaparecimento do chapéu
seria necessário por causa da evolução da sociedade hoje pare¬
cem tão inúteis quanto incertos. A sociedade governa as ten¬
dências por si. Não existe nenhuma lei geral suscetível de expli¬
car uma variedade de fenômenos de moda.

Um universo em que tudo é possível

A moda não tem fundo, motivo pelo qual pode utilizar to¬
das as formas. Mesmo que dissequemos as tendências, não en¬
contraremos em seu âmago a essência que permitiria apresen¬
tar, para dada época ou de maneira mais geral, as suas escolhas.
A única lógica que a moda aceita é uma lógica interna.
A moda está no arbitrário 127

Como nenhuma autoridade consegue dominá-la, a moda


se permite tudo: um dia nos faz adorar uma bolsa com forma
de porta de Cadillac (Dior), uma bolsa rabiscada (Vuitton) ou
até uma bolsa esportiva, improvável fruto do amor ilegítimo
de uma capa de chuva e de uma sacola de plástico. Claro, a
moda é igualmente regida por regras de bom senso; mas a maior
parte dessas regras comportam exceções.

Ouve-se dizer que algumas modas devem seu sucesso ao


fato de serem fáceis de usar, e de modelar o corpo dissimulan¬
do alguns defeitos. Essa regra explicaria, por exemplo, o suces¬
so das calças jeans, conhecidas por esculpirem belas silhuetas.
De fato, as mesmas razões explicam que o minishort sempre
tenha tido dificuldades para se impor, exceto junto a adolescen¬
tes. Ao contrário, as calças compridas ou as blusas que mos¬
tram a barriga não foram freadas em seu sucesso, apesar de
desenharem as formas de maneira impiedosa.

Outro argumento freqüentemente evocado: o conforto que


supostamente governa nossa maneira de vestir. Para os homens,
os fabricantes dão uma atenção muito especial. Os materiais
utilizados são cada vez mais amigáveis, de textura suave; uma
calça pode ter um cós^^ bem ajustado, etc. No vestuário femini¬
no também essas preocupações existem. Mas elas não gover¬
nam o conjunto das tendências: nessas condições, como expli¬
car o sucesso do fio dental?

Ainda existe a ética, que talvez pudesse dominar. Precisa¬


mos traduzir: a "ética", no setor da moda, designa freqüente¬
mente a luta obstinada contra o uso da pele animal. Stella
McCartney, ex-estilista da Chloé, afirmava claramente seu gos-

27 O cós é a parte alta da calça, aquela que se ajusta à cintura. Conforme a


regulagem/altura do cós, uma calça mostra ou não a roupa de baixo.
128 A fábrica das tendências

to pela raposa viva e seu desprezo pelos peleteiros. Realizar uma


série de fotografias com casacos de pele acabou se tornando
um verdadeiro quebra-cabeça, porque essa luta sensibilizou a
maior parte dos modelos. Assim, os peleteiros acharam que
estavam vivendo seus últimos momentos. Mas é necessário
saber encerrar uma batalha; o inverno de 2003-2004 marcou o
armistício, com a volta da pele às coleções.

Como os exemplos acima ilustram, as tendências não têm


preconceitos. “Nunca" é uma palavra que a moda ignora. "Nun¬
ca roxo”, explicava o historiador de moda Michel Pastoureau na
revista Elle, durante a primavera de 2003. Muitas conotações
negativas - o luto, o sagrado - impedem que essa cor conheça o
sucesso, ao contrário do azul. Porém, sim, as tendências exis¬
tem para serem invertidas. O verão de 2003 foi do roxo. Do
ponto de vista do vestuário, mas não somente: o ketchup Heinz,
embora tivesse mantido sua receita, foi tingido de roxo e
rebatizado de violine-, o estoque esgotou na loja Colette. O fenô¬
meno atinge também os logotipos, os carros, os celulares, as
camisetas dos jogadores de futebol, etc. A tendência se inverte
também para os que criam as tendências; eles explicam sabia¬
mente e a posteriori que o roxo está em harmonia com a época.
Alguns exemplos variados: essa cor “sugere a procura de um
certo distanciamento”; ela se torna “um novo preto” (esse qua¬
lificativo já foi dado ao cinza e ao bege; em resumo, a todas as
cores que funcionam); o lilás traz um “suplemento de alma,
relaxante e talvez um pouco mágico”,^® etc.

A moral dessa história é que o roxo não tem substância


nem essência que pudesse coincidir com o espírito do tempo.
A moda ridiculariza esses Hegels sem grandeza que regularmente

28
Le Monde, 7-5-2003.
A moda está no arbitrário 129

anunciam o início de uma nova arte de viver ou o fim da prece¬


dente. A tendência está na magreza, explicam eles, a anorexia
ronda as top models, Kate Moss e outras Evas Herzigovas. Tánto
faz! As fisionomias volumosas e os quadris largos estão de vol¬
ta. Monica Belluci mostra suas formas, o número da revista
Elle com Emmanuelle Béart na capa,^® nua de costas e de três
quartos, como se sabe, pulverizou as vendas e provocou co¬
mentários no mundo afora. Coroação da deusa calipígia,
Jennifer Lopez se tornou a ninfa mundial da Vuitton. Desde
então, ao que parece, alguns cirurgiões receberam pedidos para
aumentar o tamanho das nádegas. Isso fará refletir os que pen¬
sam que uma tendência nunca perdurará, e poderá preocupar
aqueles cuja profissão é viver da moda.

29
Elle, Especial Beleza, 5-5-2003.
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4
As tendências são dirigidas?

É porque é sempre arriscado prever a próxima moda que os


criadores acreditam em superstições. Assim, em certa maison
de alta-CDStura, o verde é uma cor non grata: sua aparição se¬
ria suficiente para comprometer a estação. Chanel salpicava o
cotidiano de seus números prediletos: o 2, o 19 e, claro, o 5.
Dior, embora fosse um homem muito materialista, vivia pro¬
tegido por uma série de práticas mágicas. Segundo a lenda,
certos dias, seu motorista devia dar sete vezes a volta no quar¬
teirão antes de deixá-lo na avenue Montaigne. Ele podia criar
sua coleção apenas se estivesse utilizando sua vara, seu bastão
da sorte. Enfim, para as decisões importantes, ele escutava
somente os conselhos de sua vidente. Algumas décadas de¬
pois, os adivinhos ainda têm muito trabalho e uma clientela
variada, de Maurizio Gucci a Tbm Ford. Contudo, os tarôs não
são suficientes. Uma vez conhecido o futuro das tendências,
falta apenas influenciá-las. E, para tanto, nada equivale a al¬
guns métodos: assim, o conjunto parece menos mágico, mas
certamente mais eficiente.
132 A fábrica das tendências

üm mundo muito pequeno

Tüdo começa por um efeito de focalização. Há um certo


tempo, as redatoras de moda e outros especialistas vêm anun¬
ciando a volta dos anos 1980 baseando-se em algumas peças
entrevistas nas coleções. Como essa volta - ainda - não se tra¬
duziu em um sucesso público, pode-se dizer que se tratava de
um caso de wishful thinking (desejo ou expectativa de sucesso),
tipo de sessões de nostalgia que jornalistas quarentonas ofere¬
ciam a si mesmas. Ainda mais que o tamanho da oferta propos¬
ta pelas marcas permite hoje apresentar quase qualquer vonta¬
de como se fosse uma onda do momento. Assim, para o inver¬
no de 2003-2004 foram anunciados simultaneamente o rosa, o
prata, o brilhante, o cintilante, o roxo, o preto, etc. Me;lhor ain¬
da: nenhum costureiro se recusa a criar uma roupa especial¬
mente para a página dupla central se uma redatora lhe pedir. Se
o tema do artigo é o vinil e ele não estiver sendo utilizado na
coleção, basta criar uma peça nesse material para que seja cita¬
da pela revista.

Continuamos com o exemplo do estilo dos anos 1980. Essa


época sempre teve seus defensores, como - embora eles
rechacem isso - a dupla Alexandre Matthieu-Marc Jacobs, ou
ainda Hedi Slimane, que, à pergunta "O que sobrou dos anos
1980?", davam esta resposta concisa: "Nós".^ O sucesso desses
três costureiros era freqüentemente interpretado como um si¬
nal anunciador da volta dos eighties. Contudo, até agora, essa
tendência havia permanecido confidencial; ouvia-se que os anos
1980 ainda estavam muito próximos. O senso comum os apre¬
sentava como a encarnação da feiúra, "de grandes vulgarida¬
des, pretensões sem nome, proporções absurdas, sapatos hor-

1
Anne Boulay, em Vogue, agosto de 2003.
As tendências são dirigidas? (133

ríveis", segundo Karl Lagerfeld.^ De forma mais prosaica, essa


tendência não coincidia bem com as evoluções do momento.
Hoje suas chances de se impor são bem reais. O possível declínio
da calça e a eventual volta da saia devem obrigatoriamente ser
acompanhados de novos tops, por exemplo, os dotados das pro¬
porções características dos eighties. Ainda mais: para substituir
a calça sem enfrentar a saia, a volta das calças colantes para
mulheres, rebatizadas para a circunstância de leggins, foi até
planejada. Permanece um enigma: como criadores tão distan¬
tes entre si podem chegar a tendências tão idênticas? Ifês expli¬
cações podem esclarecer esse enigma..

Primeira hipótese: não se trata de uma tendência, nem será


considerada uma onda repentina. Assim, essas duas páginas
em que se encontram quinze matérias de inspiração eighties
existem apenas pela vontade de uma redatora de moda, e sua
popularidade não ultrapassará as páginas dessa revista.

Segunda hipótese: a tendência responde a uma lógica que


todo criador de moda pressente. Como se sabe, vários cientis¬
tas podem resolver ao mesmo tempo um problema por méto¬
dos idênticos sem terem copiado uns aos outros; da mesma
maneira, os costureiros conhecem perfeitamente os mecanis¬
mos de sua profissão. Assim, sabem, por exemplo, que as mi¬
nissaias são difíceis de vender; a maior parte deles, portanto,
acrescentará alguns acessórios (botas, botas de cano longo, cal¬
ças colantes, etc.).

Térceira hipótese, a mais ousada, o zeitgeist ou espírito do


tempo: o mundo da moda é - muito - pequeno. O batimento das
asas de uma borboleta na Dior freqüentemente cria um furacão
na Prada. Um exemplo? Uma frase ingenuamente lançada no

^ Karl Lagerfeld, em Liberation, 8-10-2001.


134 A fábrica das tendências

Figaro dizendo “Tom decide[iu] que o inverno será pantera”. O


Tbm de que se trata se chama Ford, e a autora dessa frase é Carine
Roitfeld, ex-ninfa de Tbm Ford na Maison Gucci, que, em 2001, se
tornou redatora principal da revista Vogue. Ao fazer essa declara¬
ção, em agosto de 2002, ela deu um duplo sinal: parece que essa
especialista muito ouvida estaria afiançando uma futura tendên¬
cia, lançada por uma marca incontornável. Moral da história?
Um ano depois, em agosto de 2003, os “desejos do outono”, nú¬
mero particularmente esperado da Vogue, composto por 46 pági¬
nas (fora os anúncios), têm quatro páginas de artigos sohre a
estampa de leopardo! Essa profusão não se explica pela proximi¬
dade de Carine Roitfeld com a marca Gucci: as impressões leo¬
pardo de Gucci eram do ano de 2002. Em 2003, é a vez de Marc
Jacobs, DKNY, Moschino, Lanvin, Prada, Loewe, Vuitton, Versace
e Alexander Mac Queen utilizarem esse felino. Questão subsidiá¬
ria: como as opiniões, mesmo precoces, de Carine Roitfeld po¬
dem influenciar a mulher de menos de 50 anos de idade? Respos¬
ta: de duas maneiras. Diretamente, despertando nela uma von¬
tade de leopardo diante da superabundância de artigos consagra¬
dos a essa estampa propostos pelas revistas. Mas essas declara¬
ções sobretudo têm conseqúências indiretas. Se os não iniciados
prestam uma atenção mais que distraída às entrevistas de Carine
Roitfeld, cujas funções e influências ignoram, os profissionais da
moda, pelo contrário, sabem decifrá-las. Ao tomarem conheci¬
mento delas, é provável que parte deles passe a integrá-las nas
diferentes informações que deverão ser consideradas para a pró¬
xima estação. É, por exemplo, o caso dos compradores - particu¬
larmente estratégicos - das lojas importantes de Nova York, Tó¬
quio, Londres, Paris ou Milão, que não se esquecerão de se abas¬
tecer da estampa de leopardo.

Mas vamos continuar seguindo a pista da fera. Imagine¬


mos, por exemplo, que as vendas de artigos com estampa de
As tendências são dirigidas? 135

leopardo sejam boas para as grandes lojas. Obviamente, a notí¬


cia vai se difundir: qualquer funcionário do setor comercial, da
moda como de outra área, tem acesso aos resultados de um ou
vários pontos-de-venda que servem de teste tanto para seus
artigos como para os da concorrência. Se as vendas foram
satisfatórias, o filão da estampa de leopardo será explorado pe¬
las marcas populares, notadamente as sucursais, os catálogos
de venda por correspondência, etc. E é assim que uma vontade
de Tom Ford, elaborada em 2001 e divulgada em 2002 por Carine
Roitfeld, tem a possibilidade de se tornar um verdadeiro suces¬
so popular até 2005...

Claro, o felino é apenas um exemplo. A cada ano, a tribo


da moda formiga de ruídos e rumores sobre as futuras tendên¬
cias, alguns dos quais vão efetivamente se verificar na realida¬
de. O universo têxtil é um mundo muito pequeno; é composto
por indivíduos que, embora se defendam disso, sempre aca¬
bam por freqüentar os mesmos lugares. Apesar de todos os seus
esforços, essa pequena tropa sempre acaba por adotar os mes¬
mos gostos, isto é, os mesmos sinais de semelhança. Para os
móveis, era o estilo dos anos 1930 nos anos 1980, Jean-Michel
Frank nos anos 1990, Prouvé hoje. Os iniciados adoram de for¬
ma consensual e sucessiva a estética dos grafistas do grupo
Bazooka, os quadros de Basquiat, as obras de Gilbert e Georges
e de Vanessa Beecroft. Claro, cada um defenderá suas idiossin¬
crasias, preferirá Nolita ao Soho, o bairro das Abbesses ao Marais
e a Córsega à Sardenha. Mas, além dessas singularidades, a tri¬
bo cultiva os mesmos gostos; é até uma condição sine qua non
para fazer parte dela. Sendo assim, o público dos desfiles dá a
impressão de uniformidade. Nesse meio, desprezar o gregarismo
seria um pouco como cuspir no prato em que se come. Então,
todo mundo dá um jeito de jantar no Costes, de dormir no
hotel Mercer, em Nova York, em resumo, de respeitar os man-
136 A fábrica das tendências

damentos do Cityguide Vuitton, o primeiro guia interno do meio,


ao mesmo tempo lido e escrito pelas pessoas da moda.

Apesar das origens diversas, das diferenças de renda geral¬


mente importantes e das responsabilidades na verdade muito
distantes umas das outras, o mundo da moda é bastante homo¬
gêneo. Como se surpreender com o fato de que aqueles que
fazem a moda querem as mesmas coisas no mesmo momento,
já que vivem e freqüentam os mesmos lugares, e se inspiram
nas mesmas fontes? A profissão dos contadores tem sua revis¬
ta e seu sindicato; contudo, eles não vivem juntos, vão excepci¬
onalmente às mesmas festas, não se distinguem pela sua
endogamia. No mundo da moda, ao contrário, existem milha¬
res de ocasiões de jantar, viajar, festejar juntos. Como no meio
do cinema, ou em algumas profissões artísticas, a fronteira do
privado e do profissional é às vezes difícil de distinguir. Assim,
as pessoas da moda recebem vários convites a que devem com¬
parecer, a menos que o destino as castigue com a desonra de
não terem sido convidadas.

Esses múltiplos momentos vividos juntos constituem mui¬


tas circunstâncias para construírem uma doxa, uma opinião
comum. Durante esses encontros, trocam-se rumores e infor¬
mações, fofocas e zombarias, acompanhados por algumas cer¬
tezas sobre a volta dos anos 1920 ou da verdadeira pele. Para os
ausentes, alguns cursos de nivelamento podem ser feitos por
meio das pessoas do meio que não pertencem a uma maison
determinada, mas não param de circular entre elas. Alguns fo¬
tógrafos, estilistas, jornalistas ou assessores de imprensa têm o
privilégio de ser permanentemente consultados pelas marcas,
de maneira formal ou informal, sobre as tendências a seguir:
eles têm um papel essencial na constituição do gosto e da evo¬
lução de cada coleção. Um exemplo? A diretora artística londri-
As tendências são dirigidas?

na Katies Grand aconselha simultaneamente Prada, Louis


Vuitton e Calvin Klein para seus anúncios.^ A moda vive formi¬
gando desse tipo de profissionais que percorrem o meio em
todos os sentidos como pequenos telegrafistas. É notadamente
o caso das redatoras-conselheiras, que geralmente exercem a
profissão de estilistas fotográficas para a imprensa e a publici¬
dade. Um estilista fotográfico escolhe as roupas, às vezes os
modelos, determina os temas das séries com o fotógrafo. Tfata-
se de verdadeiros desconhecidos, que, contudo, são indispen¬
sáveis para o sistema. Algumas maisons os empregam desde a
escolha dos tecidos até a preparação do desfile.^ Sua presença é
lógica: sabem melhor do que qualquer outra pessoa o que pode
funcionar para uma estação, já que são eles que fabricam a moda
na imprensa. Nessas condições, sua intervenção deve ditar a
moda. A musa, sempre presente em torno de cada costureiro,
pode igualmente ter esse papel. Nesse delicado exercício, os for¬
necedores também têm um papel: para muitos artigos ou ope¬
rações, existem poucas escolhas possíveis. Portanto, os mais
procurados são prioritariamente Lesage para os bordados,
Swarovski para os cristais de bijuteria, alguns fornecedores de
tecidos, etc. Esses poucos nomes constituem outros tantos cru¬
zamentos - as pessoas chiques os chamam de hubs: fazem cir¬
cular a informação, freqüentemente de forma involuntária, ori¬
entando seus clientes na escolha de uma gama de cores ou de
uma realização. Cada um desses hubs contribui para a conver¬
gência do meio da moda em direção a algumas tendências. Mas,
diante de certas circunstâncias, essa convergência às vezes se
dá de forma espontânea.

^ Cf. Women's Wear Daily, 23-5-2003.


Marie-Pierre Lannelongue, em Elle, 24-2-2003, p. 236.
A fábrica das tendências

Sentir o que está na onda

Na teoria, os criadores e as marcas não são iguais diante


das tendências. Uns criam, outros os seguem. As marcas mais
importantes são obrigadas a ser originais: suas roupas nem po¬
dem se situar adiante em relação às tendências. Elas devem
estar em um outro lugar. Os conjuntos de peças propostos por
A Piece of Cloth (Apoc), uma das linhas de Issey Miyake, não
criaram uma onda: eles vão permanecer, para sempre prova¬
velmente, reservados a um pequeno círculo de iniciados.

Essa procura da originalidade às vezes leva a criações sur¬


preendentes, como as de Olivier Theyskens, jovem criador bel¬
ga que trabalha também sobre a coleção Rochas. No seu registro
específico, as mais inesperadas justificativas dadas a certas cri¬
ações são bem-vindas. Assim, quando se pergunta a ele por que
decidiu associar o preto ao amarelo, uma combinação definiti¬
vamente fora de tendência, ele responde que decidiu cobrir
seu "pódio de mexilhões, [...] para ampliar o espírito marinhei¬
ro vinculado às capas de chuva de sua coleção. [...] O amarelo e
o preto”, acrescenta, nunca ousei confessar na época! - era a
associação dos mexilhões com as batatas fritas. Essa private joke
nos fazia morrer de rir, a mim e a meus assistentes. Obviamen¬
te, é necessário ser belga para entender isso!”^

Não são todos os costureiros que podem se oferecer esse


tipo de private joke. Os que trabalham para as grifes de prestígio
devem habilmente conjugar o respeito às tendências com a
criatividade. Para tanto, a maior parte deles adotou métodos
para abastecer a imaginação. Assim, John Galliano adota a cada
estação, para Dior, uma abordagem muito elaborada que lhe

^ olivier Theyskens, em Numéro, fevereiro de 2002.


As tendências são dirigidas? (139

permite desenhar sua coleção. A cada seis meses, ele leva sua
equipe até um país longínquo - para o verão de 2003, a índia -,
de onde traz roupas, idéias, esboços, objetos, fotografias, peda¬
ços de tecido, etc. O conjunto é agrupado dentro de uma "bíblia"
em que cada um vai procurar sua inspiração.® Esse agiupanien-
to não constitui uma coleção acabada, longe disso. É difícil tra¬
çar o vínculo entre elementos escolhidos na índia e uma coleção
finalmente articulada em torno da dança, com saias de bailari¬
nas, roupas de flamenco e chinelos. Trata-se mais de “snacks
criativos”, conforme o termo consagrado, que permitem a to¬
dos inspirar-se na mesma fonte de idéias.

Cada costureiro desenvolve um método em função de seu


temperamento. Se hoje Galliano percorre o mundo para en¬
contrar suas idéias, Dior, por sua vez, se fechava. "Eu vago [...]
durante algumas semanas", contava ele.

Em seguida, retiro-me para a casa de campo. Essa ínfima movimen¬


tação se assemelha, por sua precisão e seu automatismo, à longa
viagem das enguias até o mar dos Sargassos. [...] Ao iniciar minha
viagem, sei de antemão que entre o dia e o dia 15 do mês começa¬
rei a desenhar figurinos minúsculos, verdadeiros hieróglifos que sou
o único a poder decifrar.^

Em seguida, esses desenhos dão lugar a esboços, que se tornam


telas e, por fim, "fazem modelos”, segundo a expressão de Dior,
para as que os merecem.

O processo criativo observado por esses costureiros não


pode obedecer a um único modelo, já que cada um tem sua
competência e seus métodos. Alguns, como Jeanne Lanvin, não
sabem desenhar: portanto, ditam seus desejos. Assim, o traba-

® John Galliano, em Elle, 14-7-2003.


^ Christian Dior, Dior et moi (Paris: Bibliothèque Amiot Dumont, 1956), p. 81,
140 A fábrica das tendências

lho de Miuccia Prada consiste em dirigir uma equipe. Único ponto


em comum à quase totalidade dos estilistas, além de suas dife¬
rentes abordagens: o recurso ao quadro de tendências. O alfa¬
beto da criação em matéria de moda freqüentemente se escreve
com esses grandes painéis sobre os quais se desenham não mo¬
delos ou produtos acabados, mas um ambiente. Geralmente, tra¬
ta-se de grandes misturas em que se encontram fotografias, de¬
senhos, palavras, pedaços de tecido. Podem ser abstratos - o ar
e a água -, evocar uma região do mundo - Bali - ou ainda um
filme - A princesa e o plebeu. O percurso intelectual pelo qual o
painel de tendências se torna uma criação é geralmente muito
sinuoso. Freqüentemente, ele serve para definir o tipo de uma
criação, para orientá-la em uma direção, mas, sobretudo, para
suscitar o pensamento. O método se baseia, como já entende¬
mos, nas associações livres: tudo é permitido. Nesse nível da
criação, as obrigações do marketing e as previsões em matéria
de tendências ainda não apareceram. A etapa seguinte consiste
então em refletir sobre as tendências. Nenhum costureiro, nem
mesmo o mais famoso, pode se abster completamente disso.
Poucos o confessam, mas basta observar suas coleções durante
determinada estação: surpreendentes convergências existem
entre as criações das diferentes maisons.

A moda está separada da sociedade por uma membrana


cujo funcionamento é dificilmente previsível. Alguns eventos
encontram sua transcrição imediata nas tendências, enquanto
outros parecem não ter nenhuma influência sobre elas. Os
costureiros não ignoram o mundo externo; simplesmente, são
mais atentos a alguns tipos de informações do que a outros.
Geralmente, não costumam prestar atenção às notícias. Para
que um evento os marque e transpareça nas suas criações, ele
deve ter as dimensões de um cataclismo. Mesmo assim, não
chega a homogeneizar as tendências. Se o 11 de Setembro de
As tendências são dirigidas? (141

2001 provocou várias reações entre os criadores de moda, não


gerou, como vimos, sua moda. Durante as semanas que se se¬
guiram ao drama, as revistas de moda mantiveram uma certa
sobriedade, utilizando, por exemplo, capas monocromáticas.

A cena cultural, por sua vez, é seguida de maneira muito


mais atenta pelos criadores de moda. Agnès B, como sabemos,
interessa-se pela arte contemporânea, mas também patrocina
o jovem cinema e ouve rap há muito tempo; Karl Lagerfeld tem
uma cultura artística muito ampla, assim como uma galeria e
uma livraria de arte. Essas propensões incitam os costureiros,
de forma quase natural, a se nutrir de influências estéticas ex¬
ternas à moda, que freqüentemente se encontram nas tendên¬
cias do momento. Poucas inovações estéticas ou musicais lhes
escapam; sua ideologia profissional os incita a pensar que tudo
que é novo faz parte de seu mundo. Muitos têm uma sólida
cultura visual e musical; eles perscrutam naturalmente as novi¬
dades na área da cena rock, da fotografia ou do cinema. Assim,
a moda grunge é indissociável do sucesso do grupo Nirvana. E,
antes dela, podemos considerar que a estética punk havia sido
quase coproduzida pelo manager dos Sex Pistols, Malcolm
McLaren, e pela estilista Vivienne Westwood. McLaren, perso¬
nagem cínico e brilhante, pensava que esse movimento devia
se impor tanto por meio de sua música quanto de suas roupas;
tentou se aproveitar da melhor maneira possível desse business.
Os filmes ocupam muito os espíritos no universo da moda,
porque fazem parte do imaginário moderno. Para se tornar fonte
de inspiração, um filme deve mostrar uma estética singular, à
maneira de Bonnie & Clyde - Uma rajada de balas, Amor, sublime
amor ou Os guarda-chuvas do amor, três títulos freqüentemente
revisitados pela moda. Assim, alguns filmes provocam verda¬
deiros fenômenos de focalização.
142 A fábrica das tendências

Exemplo mais recente, o filme de Wong Kar-Wai, Amor à


flor da pele, apresentado na França em novembro de 2000 e que
juntava todas as características suscetíveis de torná-lo popular
no meio da moda. O cineasta, confidencial, de fato apresenta¬
va um universo completo: uma Hong Kong onírica, uma estéti¬
ca particularmente caprichada, uma trilha sonora trabalhada,
uma história - o amor, sempre o amor - que não podia deixar
de sensibilizar... Se Amor à flor da pele encontrou o sucesso po¬
pular (as críticas eram boas, a trilha sonora era um sucesso),
tornou-se igualmente uma verdadeira fonte de inspiração no
setor da imprensa feminina. Assim, várias revistas realizaram
"temas de moda" a partir desse filme, escolhendo apresentar
roupas que tinham uma estética que lembrava a do referido
filme. Portanto, esse filme é bastante responsável pela influên¬
cia de uma Ásia mítica no trabalho de vários criadores: Gaultier
introduziu temas chineses em seus desfiles; Gucci igualmente;
Galliano sentiu a mesma "vontade de Ásia" e levou sua equipe
inteira a essa região do mundo:

Estamos voltando (em novembro de 2002) de um grande passeio


pela Ásia, de Hong Kong até Tóquio, passando por Pequim, Xan¬
gai, o interior da China e Osaka. Quando dou início às minhas
pesquisas, impregno-me totalmente do assunto. Devo respirar o ar
de minha intuição, daí essas "viagens de estudos" que organiza¬
mos com minha equipe. Observamos, compramos, fotografamos,
esboçamos. Um objeto, um saquinho de açúcar em pó, a música,
um quadro, uma roupa ou até um estúpido botão, tudo pode ter um
poder de evocação! [...] Dizer que o look futuro será chinês me pare¬
ce um pouco literal demais. Fiquei emocionado, animado, excita¬
do, provocado, estimulado pela China. Vi lá coisas de grande bele¬
za, outras que me chocaram, mas o conjunto é, ao mesmo tempo,
incrivelmente requintado e incrivelmente selvagem, uma mistura
very Galliano, não?®

8
Entrevista de John Galliano, em LExpress, 2-1-2003.
As tendências são dirigidas? 1143

Mas o modismo não é tudo: acontece também que uma


tendência já plebiscitada seja conscientemente recuperada. Um
exemplo: a jaqueta de motoqueiro Gucci, de couro, que apare¬
ceu no outono de 1999. Era a época da guccimania, e todo mun¬
do queria essa jaqueta. Tbdas as marcas a fabricaram, das me¬
nores às mais prestigiadas, algumas com couro, outras com
materiais muito menos nobres. Obviamente, essa simultanei¬
dade não devia nada ao zeitgeist: tratava-se de uma "inspiração”
comum, mas posterior, no caso de outras marcas que não a
Gucci, a menos que se fale simplesmente de cópia. A fronteira
entre a criação e a cópia é mais tênue do que se pensa. De fato,
acontece ãs vezes que as mais influentes maisons se impreg¬
nem de certas criações de seus concorrentes. Assim, até Yves
Saint Laurent foi vítima de sua sensibilidade ao modismo: em
1985, foi condenado por ter tomado emprestado um modelo de
Jacques Estérel. “A vitória de um homem sem pernas sobre
Nureiev”, comentou Pierre Bergé...® Gontudo, esses casos são
raros. De fato, podem ser desastrosos para os criadores reputa¬
dos por criatividade. Além do mais, inspirar-se nas tendências
sem ir até a contrafação gera sérios problemas técnicos. Para as
marcas amplamente difundidas, não há problema. Mas para as
outras, as de maior prestígio, como proceder?

A criação de uma coleção inclui várias obrigações. Come¬


ça pela escolha dos tecidos e pelo desenho dos modelos, depois
vem o desfile. Em setembro, desfila-se para a coleção do verão
seguinte; na primavera, para a do próximo inverno. Assim, essa
obrigação de antecipar deixa pouco espaço para o erro. Feliz¬
mente, existem as “maravilhas" que podem ser realizadas no
último minuto, isto é, depois dos desfiles dos outros, sem ser
visto ou reconhecido. Há alguns momentos em que, sem que

® Apuã Laurence Benaim, Yves Saint Laurent, cit., p. 360.


144 A fábrica das tendências

ninguém saiba, podem-se acrescentar modelos que, acredita-


se, estão na tendência. Dois exemplos: as pré-coleções e a coleção
de cruzeiro. Claro, trata-se de uma deturpação do processo. Na
origem - e ainda hoje na maior parte dos casos -, a pré-coleção
consistia em roupas que não faziam obrigatoriamente parte do
desfile, mas que eram apresentadas aos compradores, porque
são roupas básicas ou porque não encontravam lugar no desfi¬
le geral. Como essas roupas, por definição, não foram vistas no
desfile, podem muito bem ser acrescentadas depois... A mesma
coisa para a coleção de cruzeiro, que na origem era destinada a
vestir as elegantes que durante o inverno viajavam em transa¬
tlânticos... Pequena clientela hoje? Obviamente, mas aqui tam¬
bém o princípio foi deturpado e permite que, durante as coleções
de inverno, sejam injetadas algumas novidades. Cada maison,
por esse meio, obtém assim uma segunda chance. Dessa ma¬
neira, pode acontecer que, nas mais respeitadas maisons da
avenue Montaigne, na troca de vitrine, a cada quatro ou seis
semanas, apareçam roupas que não existiam antes, no começo
da estação.

Uma maison de costura deve defender o que faz a sua ri¬


queza, em outras palavras, a propriedade intelectual. Essa luta
requer certa combatividade em relação a outras maisons, mas
também em relação a alguns industriais, freqüentemente chi¬
neses, que durante muito tempo acharam essa noção muito
abstrata. Qual é o prejuízo causado à profissão pela falsifica¬
ção? É difícil dizer; geralmente esses artigos não são vendidos
nos mesmos circuitos, a clientela não ignora que está adquirin¬
do uma cópia. Além do mais, alguns falsificadores mostram
uma real inventividade, atribuindo a Chanel ou Gucci objetos
que essas maisons nunca criaram e menos ainda comercializaram.
Um dia talvez essas cópias originais acabem se tornando peças
de collectors... Por enquanto, algumas empresas decidiram que
As tendências são dirigidas? 145

esses objetos contribuem para sua notoriedade. A Nike quase


não persegue mais aqueles que utilizam seu logotipo. E as más
línguas murmuram que alguns costureiros são muito virulen¬
tos contra uma falsificação da qual nunca foram vítimas. Mas a
infelicidade pode se transformar em sorte: descobrir sua mar¬
ca em um mercado exótico é um índice mais seguro de notori¬
edade que numerosos estudos.

Tãnto para as pequenas como para as grandes maisons, a


solução para o problema das tendências é poder lançar atuali¬
zações durante a estação. A maior parte do tempo, isso passa
despercebido; é realizado com o tato suficiente para se diferen¬
ciar dos modelos que servem de inspiração. Enfim, caso a reação
seja tardia, sempre é possível tentar de novo no ano seguinte.
As modas mais especiais, as ondas, nunca ultrapassam uma es¬
tação. Ao contrário, as outras demoram mais para se tornar
sucesso: isso permite, às vezes, corrigir o tiro no ano seguinte.
Um exemplo? A bolsa Vanessa Bruno: hoje, todas as parisienses
conhecem e às vezes possuem essa bolsa com paetês. Todavia,
foram necessários dois anos para que esse artigo fosse conheci¬
do: lançado em 1999, ele se tornou popular apenas em 2000-
2001 e continuava seduzindo em 2003. Uma prova a mais de
que a moda também pode durar às vezes muito tempo; um pra¬
zo que o mundo da “baixa-costura” sabe aproveitar, já que sua
profissão consiste ern ampliar as tendências que já estão firme¬
mente estabelecidas.

0 circuito curto das tendências ou o modelo do Sentier

A moda não respeita os ancestrais. Assim, é na indiferen¬


ça geral que o Sentier está desaparecendo, no exato momento
em que seus métodos estão triunfando. Mas a reencarnação
146 A fábrica das tendências

existe: o sistema inventado de maneira empírica por esses pe¬


quenos comerciantes instalados no coração de Paris hoje é ex¬
plorado de forma industrial por redes como a Zara e a H&M.
Porque o Sentier não é somente um lugar folclórico que evoca
seja o trabalho clandestino, seja o sotaquepied-noir* também é
o inventor de uma maneira original de produzir roupas: o cir¬
cuito curto, anglicizado como Quick Response System.

O Sentier é a versão parisiense do bairro especializado na


atividade têxtil, como existe há séculos em cada grande cidade.
Infelizmente, essas poucas ruas estreitas correm o risco de se
juntar a outros lugares de lembrança da indústria francesa, de
se tornar um ecomuseu. O Sentier está morrendo pela falta de
distribuição. A rede das multimarcas, que antigamente conta¬
va com uma loja nas menores cidades, está desaparecendo. Trin¬
ta anos atrás, 35 mil pontos-de-venda independentes vestiam a
França. Hoje, as redes especializadas representam 40% das ven¬
das, os hipermercados 15%, a venda por correspondência 10%,
e os independentes realizam somente 22% da receita bruta des¬
se mercado. Ironia da situação: o Sentier morreu devido às con-
seqüências da adoção de seus métodos por concorrentes mais
poderosos do que ele. Algumas grandes marcas que nasceram
nesse lugar - Kookai, Morgan, Naf Naf, etc. - perpetuam sua
memória. Para o restante, o mercado é dominado por dois no¬
mes familiares: Zara e H&M. O sucesso dessas duas empresas
se baseia na conjugação entre o circuito curto e uma rede de
distribuição diretamente controlada.

O circuito curto é uma maneira heterodoxa de pensar a


moda que privilegia as tendências em prejuízo da criatividade.

* Designação dada aos franceses e descendentes que haviam colonizado a


África do Norte francesa e que retornaram à pátria logo após a independência
desses países, entre os anos 1950 e 1960. (Nota do tradutor.)
As tendências são dirigidas? 147

Tradicionalmente, uma marca de moda trabalha com planeja¬


mentos retroativos de doze a dezoito meses; é o tempo que se
passa, em média, entre a escolha dos tecidos e a entrega das
roupas nas lojas. Se a primeira preocupação das grandes maisons
de costura é criar uma moda original, suscetível de chamar a
atenção, o circuito curto se singulariza, ao contrário, pela ob¬
sessão oposta: produzir o mais tarde possível para fazê-lo como
os demais e não errar a tendência. Portanto, o conjunto desse
sistema se baseia na reatividade: a maior parte de suas caracte¬
rísticas são decorrentes desse imperativo. Assim, para respon¬
der de maneira ótima à demanda, a produção é repartida entre
pequenos ateliês, que nem sempre respeitam todas as obriga¬
ções legais. Como seu ativo, o Sentier representa um lugar sus¬
cetível de fornecer um trabalho a novos imigrantes. Antes
mesmo da Segunda Guerra Mundial, o setor têxtil constituía
para esses imigrantes recém-chegados, mesmo que eles não ti¬
vessem a documentação em ordem, uma possível fonte de ren¬
da. Essa característica permanece válida: as mais diversas co¬
munidades coexistem dentro da atividade têxtil, desde os ju¬
deus até os paquistaneses, passando pelos iugoslavos e pelos
turcos. No passivo desse sistema, destacam-se freqüentemente
as liberdades tomadas em relação à legislação trabalhista. Os
prazos muito curtos exigidos por esse método de produção inci¬
tam a contratar uma mão-de-obra demasiadamente explorada,
freqüentemente paga por peça, às vezes em desrespeito às leis
em vigor.

A Zara ou a H&M apenas aprimoraram esse sistema, ven¬


dendo em suas próprias lojas roupas produzidas segundo o sis¬
tema do circuito curto. Como antigamente no Sentier, mas de
maneira industrial e sistemática, as tendências e as marcas que
fazem sucesso são sinalizadas e copiadas de maneira mais ou
menos literal. Para tanto, nem é preciso ter o dom da vidência:
148 A fábrica das tendências

esse método permite produzir a posteriori roupas que corres¬


pondem às tendências do momento. Misturando cerca de dois
terços de básicos e um terço de produtos de "moda", essas em¬
presas podem se permitir lançar sua produção um trimestre an¬
tes do começo da estação. Nessa época, qualquer profissional
saberá determinar as tendências do momento. Além do mais,
essas empresas minimizam os riscos em que incorrem restrin¬
gindo-se a pequenas séries; nessas condições, os produtos não
vendidos se encontram em pequenas quantidades. O recurso a
uma rede de terceirizados, que fabricam no Sul da Europa ou
em países ainda mais distantes, permite propor roupas com pre¬
ços muito competitivos. Essas tarifas são ainda mais baixas pelo
fato de nenhum royalty ser pago aos criadores dos modelos ori¬
ginais ou ao Sentier por ter inventado esse método. Substancial¬
mente, esse sistema dispensa a criação de uma marca ou uma
moda; em compensação, permite ir atrás do sucesso.

Provocar o sucesso

As tendências contribuem para uniformizar o mercado têx¬


til. Nessas condições, não é fácil para uma marca ser notada. É
por esse motivo que, mais do que qualquer outra indústria, a
moda recorreu à provocação. Hoje, ter jogo de cintura, utilizar
o lícito e o ilícito, são regras obrigatórias do universo têxtil.

A provocação utilizada como maneira de atrair a atenção


sobre si deve-se consideravelmente a um estilista chamado Rudi
Gernreich. Se o grande público ignora totalmente quem era esse
homem, seu trabalho, em compensação, é bem conhecido dos
profissionais; Tbm Ford insistiu várias vezes quanto à dívida
que existe em relação a ele. Efetivamente, Gernreich apresenta
essa mistura, própria do universo da moda, de oportunismo
As tendências são dirigidas? 149

comercial, senso artístico e militância em prol da liberação dos


costumes; resume por si só as complexas relações que existem
entre a moda e o escândalo. Esse criador teve uma sorte que
talvez nenhum outro costureiro conheça: a de promover seu
nome aproveitando-se de um clamor mundial. Ao criar, em 1964,
o monoquíni, ele deslanchou uma polêmica que seria difícil de
imaginar atualmente. Mesmo procurando bem, não se encon¬
tra nenhuma criação atual de roupas suscetível de comover a
opinião pública. Mas esse criador não legou apenas o monoquíni:
também fez da provocação uma fígura de estilo indispensável
às marcas de moda.

Como muitos outros costureiros, Gernreich teve um desti¬


no atípico. Sua existência acompanhou as convulsões do século.
Aquele que foi chamado de mais americano dos criadores nasceu
em Viena, em uma família judia, nos anos 1920. Muito jovem,
deparou com a dor e o sofrimento: seu pai se suicidou quando ele
tinha 8 anos; depois ele teve de fugir com a mãe - que adora -,
para escapar da morte, quando Hitler chegou ao poder. Durante
toda a sua vida, Gernreich lutou contra suas obsessões mórbidas.
Seu primeiro trabalho nos Estados Unidos é em um necrotério, o
que lhe permite estudar melhor o corpo humano, como explicou
com seu humor sarcástico: “Acostumei-me com os cadáveres. Mas
às vezes sorrio quando as pessoas me dizem [...] que devo ter
estudado anatomia!Ele aprofundou seus conhecimentos em
anatomia ao se tornar bailarino e aumentou sua renda mensal
desenhando roupas. Seu estilo rompeu com o dos costureiros fran¬
ceses da época, que até então ditavam a moda. Foi Diana Vreeland,
grande crítica de moda de Harpefs Bazaar, que descobriu seu
trabalho e contribuiu para o seu reconhecimento.

10 Peggy Moffit & William Claxton, The Ruãi Gernreich Boók (Colônia: làschen,
1991), p. 241.
150 A fábrica das tendências

Gernreich sabia se promover; aliás, um de seus sócios o


descrevia como uma "fera da publicidade". Efetivamente, a cada
ano, ele conseguia chamar a atenção narrando histórias ines¬
peradas, encenando em seus desfiles caubóis, palhaços, perso¬
nagens do teatro cabúqui, freiras e gângsteres. Em 1971, agre¬
gou às suas roupas alguns acessórios, como revólveres e placas
de identidade semelhantes às utilizadas pelos soldados. Contu¬
do, essas encenações faziam sentido para esse homem conven¬
cido da necessidade de fazer evoluir os costumes, e membro de
uma associação gay clandestina, a Mattachine Society.

Foi refletindo sobre as últimas transgressões possíveis em


matéria de vestuário que Gernreich evocou pela primeira vez a
idéia do monoquíni. Em setembro de 1962, ele declara ao diá¬
rio Women’s Wear Daily (WWD) que os seios iam se exibir dali a
cinco anos. A idéia estava no ar? Outro costureiro, Pucci, na
véspera da apresentação de sua coleção de outono-inverno,
declara que as mulheres abandonariam a parte de cima do maiô
dali a dez anos. Gernreich teve medo: temia que a idéia fosse
roubada. Devia ser sua a responsabilidade de suprimir essa nova
fronteira. Existe uma lógica, pensava ele: no começo dos anos
1960, ele havia ido tão longe no decote de seus maiôs que não
podia mais acentuar esse movimento sem descobrir os seios.

A previsão de Gernreich sobre a abolição da peça de cima


não havia ficado despercebida. No fim de 1963, Susanne Kirtland,
da revista Look, lhe informou que iria consagrar uma matéria
ao monoquíni. Difícil escrever um artigo sobre um objeto que
ainda não existia... ela suplicou a Rudi para criá-lo! Gernreich
mediu os riscos:

Eu sabia que essa tentativa poderia destruir minha carreira, me


deixar defmitivamente fora do jogo, mas minha convicção de que se
tratava de um conceito justo e meu medo de ser ultrapassado por
As tendências são dirigidas? í 151

outra pessoa me levaram a aceitar. Eu achava isso um pouco prema¬


turo, mas como de qualquer modo ia acontecer nos dois próximos
anos, eu já havia integrado e racionalizado o prazo.''

Gernreich então propôs um sarongue balinês que acabava


logo abaixo dos seios. Susanne Kirtland o recusou: não era for¬
te o suficiente, era pouco provocador. Finalmente, ele criou um
maiô com alças que mostrava inteiramente os seios. Essa rou¬
pa foi fotografada nas Bahamas, e, dessa vez, foi a Loók que teve
medo e mostrou a foto da modelo vista apenas de costas.
Gernreich se vingou: o modelo era uma prostituta local, e ele se
encarregou de divulgar essa informação. Aliás, ele não ficou
satisfeito com a série de fotos. Uma nova sessão foi organizada
com sua modelo favorita: Peggy Moffit. O costureiro estava de¬
cidido a difundir essas fotografias em várias revistas do país,
evitando a Playboy e publicações especializadas no nu. Ora, sur¬
preendentemente, ninguém ousou publicá-las: a Life e a Harpefs
Bazaar se recusaram; a Newsweek, após discussões, decidiu-se a
publicar a silhueta de costas; o WWD foi o único que finalmen¬
te aceitou publicar uma fotografia de frente de Peggy.

A partir daí, Gernreich iria lutar para lançar aquele maiô,


clamando que nunca pensou em fabricá-lo, que se tratava de
um protótipo que permaneceria nos seus esboços. Assim, ele
foi, junto com Peggy Moffit, vestida com um quimono embaixo
do qual usava o famoso monoquíni, a um encontro com Diana
Vreeland. Gomo a jornalista da Harpefs Bazaar lhe fazia per¬
guntas sobre o maiô, Peggy tirou o quimono. Gernreich foi ques¬
tionado sobre as razões pelas quais concebera essa roupa. No
seu desejo de ir até o fim, a liberdade parecia ser uma de suas
preocupações centrais. A sinceridade e a procura do erotismo
eram, ambas, suas duas outras motivações. Gernreich sentia-se

11 íbid., p. 243.
152 A fábrica das tendências

intrigado pela atração da cultura americana por seios grandes.


Parecia-lhe hipócrita manter essa fascinação sem mostrá-los!

O monoquíni provocou um escândalo sem precedentes.


Gernreich conseguiu vender 3 mil maiôs. O número era modes¬
to, mas o modelo agora era universalmente conhecido. Gran¬
des lojas o encomendaram, porém seus diretores, desconsi¬
derando a decisão dos compradores, decidiram recusar a entre¬
ga. Algumas lojas que aceitaram vender o maiô tiveram de en¬
frentar manifestações, e um dos pontos-de-venda, situado em
Detroit, foi até ameaçado. Em Moscou, outro periódico, Izvésüa^^
especulava sobre eventuais saias longas topless. O modo de vida
americano, escreveu ele, favorecia tudo o que "desrespeita a mo¬
ral e os interesses da sociedade para a maior satisfação do ego. A
decadência da sociedade do porta-moedas continua”. O papa
proibiu o uso desse artigo, mas a atitude mais indignada foi a do
prefeito de Saint-Túopez, que declarou que, em caso de ameaça
constatada à ordem pública, utilizaria helicópteros para patru¬
lhar as praias.Uma discoteca de São Francisco ficou famosa
por declarar que uma de suas garçonetes não hesitaria em usar
o famoso maiô. Uma jovem de Ghicago tentou tomar banho de
praia com ele; foi interpelada e inculpada de "uso de roupa im¬
própria para o banho”. Depois da leitura da acusação, pediu que
o júri fosse composto somente por homens.

Em seguida, Gernreich se especializou, se perdeu até, na


provocação. Sempre atraído pelos seios, lançou em 1965 o No
Bras, o anti-sutiã, um sutiã confeccionado com um material
transparente. Enquanto o monoquíni havia sido um grande
sucesso de estima, o No Bras foi um grande sucesso comercial.
Gernreich desenhou uma linha de roupas para a rede de lojas

12
Izvéstia, 15-7-1964.
As tendências são dirigidas? 153

Montgomery Ward e se tornou, assim, o primeiro estilista a


distribuir roupas com seu nome em uma grande loja popular.
Em dezembro de 1967, Gernreich era capa da Time, apresenta¬
do como o “o mais excêntrico e vanguardista estilista dos Esta¬
dos Unidos”. Esse reconhecimento público lhe foi fatal: ele se
fechou na provocação, parodiando a si mesmo. Sua necrofilia
tomou conta de tudo; com amargura, ele proclamou o fim da
moda, do pudor, das obsessões, da distinção entre masculino e
feminino... Em 1968, o WWD escreveu que era ele quem deve¬
ria se retirar. Depois de um ano sabático, ele voltou e propôs,
em 1974, um - outro - novo maiô: o string (fio-dental). Antes de
morrer, em 1985, na indiferença geral, ele criou o pubikini, que
deixava o púbis meio descoberto, sugerindo que os pêlos
pubianos fossem tingidos de uma cor semelhante à do maiô.

Além dessas roupas anedóticas, Gernreich havia demarca¬


do a utilização da provocação no setor da moda. Outras marcas
investiram nesse território, utilizando dessa vez a publicidade,
mas mostrando sempre a mesma duplicidade. Em 1971, Yves
Saint Laurent posava nu para promover o perfúme que utilizava
suas iniciais. Na mesma época, o fotógrafo Guy Bourdin realiza¬
va uma série de fotografias de nus eróticos, que ficaram míticos,
para promover a marca de sapatos Charles Jourdan. Alguns anos
depois, Calvin Klein ia um pouco além, utilizando Brooke Shields,
de 16 anos, que murmurava: "Não há nada entre mim e meu
Calvin”. Mas é com Gucci, em 1998, que a provocação faz uma
virada que marca o início da era do pornô-chique.

A onda do pornô-chique

A onda do pornô-chique, que começou em 1998 e acabou


em 2002, chamou a atenção porque representava o auge da uti-
154 A fábrica das tendências

lização da provocação de caráter sexual para vender roupas.


Nunca antes as marcas haviam utilizado simultaneamente fo¬
tografias de conotação sexual para chamar a atenção sobre si.

Em 1998, uma fotografia ilustrando uma campanha Gucci


sugeria uma felação. No outono de 1998, Calvin Klein apostou
mais alto no seu território. Acostumado com campanhas pro¬
vocadoras, ele investiu na androginia, insistindo na escolha de
modelos obviamente jovens demais. Uns visuais apresentavam
adolescentes em um subsolo, com poses sugestivas. Nova York
ficou indignada: a campanha foi retirada dos pontos de ônibus.
Depois de duas séries, a onda estava lançada; as outras marcas
deviam cobrir o lance. Na primavera de 2000, Dior promoveu o
lesbianismo chique, que logo parecia um safismo trash com ma¬
ravilhosas criaturas brincando de mecânicas, o corpo coberto
de graxa. Alguns meses depois, o grupo Gucci comprou a grife
Yves Saint Laurent e decidiu aplicar nela as receitas que permi¬
tiram relançar o marroquineiro italiano. Resultado: a nova cam¬
panha para o perfume Opium mostrava uma jovem sugerindo
o onanismo, e a seguinte, uma jovem despida cercada por ho¬
mens nus, talvez um time de futebol, em um vestiário. A partir
dessa data, o pornô-chique foi percebido pelos anunciantes como
um recurso obrigatório. TUdo se passava como se fosse impos¬
sível propor um visual publicitário para uma marca de moda
fora desse registro. Então, tudo valia: o estupro, a morte, a
zoofilia, etc. O fabricante de sapatos Cesare Paciotti apresentou
mulheres mostrando a calcinha, sentadas sobre túmulos.
Emanuel Ungaro preferiu mulheres fingindo que faziam amor
com estátuas e, em seguida, eram apresentadas em situações
equívocas com cachorros. As marcas mais clássicas queriam se
desinibir, considerando que sua discrição, com o tempo, podia
lhes dar prejuízo. Sendo assim, Weston, no começo de 2001,
mostrava um homem do qual se via apenas o sapato, dominan-
As tendências são dirigidas? 1155

do uma mulher semidespida; La City, por sua vez, escolheu uma


mulher seminua, de calcinha, agachada diante de um rebanho
de carneiros. Diante dos protestos, essas duas marcas tiveram
de corrigir sua imagem. Em 2003, a tendência já tinha acabado,
os anúncios de moda procuravam algo diferente. Uma das foto¬
grafias utilizadas por Gucci em sua campanha mostrava um bebê
nu, carinhosamente abraçado pela mãe, que, por sua vez, usava
uma calça: a criança escondia pudicamente os seios da mãe.
Contudo, o "bebê chique", mesmo sendo sucesso, não desven¬
dou em nada o mistério da onda que o precedeu.

Todavia, o erro consistiria em reduzir o pornô-chique a


uma tentativa de chamar a atenção. Obviamente, essa lógica
existe. Tbdo consumidor se tornou um tipo de commercial veteran
exposto a 1.500 mensagens por dia. Para se destacar, as empre¬
sas deviam continuar a se exceder. Nesse esquema, as marcas
de moda tinham uma séria desvantagem: seu orçamento publi¬
citário era ridículo se comparado aos utilizados por outros seto¬
res. Segundo um estudo inglês, nenhum produtor ou distri¬
buidor têxtil aparece na lista dos cem primeiros anunciantes de
1998.^^ A primeira marca têxtil nesse setor é a Levi Strauss, que
gastou o equivalente a 1,3% do orçamento publicitário do pri¬
meiro anunciante.^® Dessa maneira, para ganhar visibilidade,
as marcas de moda foram levadas a optar por estratégias de
comunicações radicais. Nesse contexto, a sexualidade constitui

A legislação francesa impede que os distribuidores em geral e, portanto, as


marcas têxteis façam anúncios na televisão.
'"Ibp 50 Brands of the Decade”, em Marketing, 12-8-1999.
Um estudo inglês de 1999 mostra que a British Telecom investiu mais em
anúncios, em 1997, que todo o setor têxtil, e que a maior parte dos grupos
têxteis têm uma porcentagem de publicidade em sua receita bruta na faixa
de 0,1% a 0,2%. Esse resultado é fraco; a título de comparação, setores de
forte concentração publicitária, como os brinquedos ou os laboratórios farma¬
cêuticos, atingem resultados de 8% ou até de 11%. Cf. M. J. Waterson,
Advertising Statistics Yearbook (Londres: Advertising Association, 1999).
156 A fábrica das tendências

para elas um prolongamento quase natural. Essa provocação é


ainda mais bem-vinda porque acompanhou a volta ao sucesso
de algumas grifes. Assim, a campanha de Dior para a primave¬
ra de 2000 contribuiu para o aumento de 41% nas vendas.
Esse tipo de comunicação chocante, até obscena, foi conscien¬
temente utilizado para promover a imagem de uma marca an¬
tes muito reservada.

Como no caso de Gernreich, a escolha de estratégias de


provocação utilizando a sexualidade não se explica totalmente
por uma lógica comercial. O pornô-chique nasceu em um mo¬
mento em que algumas marcas, como a Gucci, produziam suas
próprias imagens publicitárias sem recorrer a agências. O diretor
artístico se tornava o principal chefe da campanha, frente a
frente com o fotógrafo. Ora, dois dos principais promotores
dessa tendência, Tbm Ford (então diretor artístico da Gucci) e
o fotógrafo Terry Richardson, sempre reivindicaram publica¬
mente a importância do sexo em sua vida. Quando se pergun¬
tou a T. Richardson o porquê dessa onda, ele respondeu:

Porque gosto de sexo! E gosto daqueles que o fazem, homens e


mulheres. Nada me aborrece no sexo! A partir do momento em que
você olha o que está acontecendo ao seu redor, e que o sexo faz parte
disso, é absolutamente lógico que você comece a fotografá-lo. É
genial fazer imagens que excitam as pessoas. [...] As pessoas eram
muito travadas em relação a isso e me rotularam de fotógrafo pornô.
Mais uma vez, do meu ponto de vista, é apenas um aspecto do meu
trabalho. Mas não me aborrece que todo mundo esteja dizendo isso
agora, isso me deixa até mais seguro, de certa forma. E não vai me
impedir de continuar nessa área enquanto eu tiver vontade.'®

Tom Ford reage de maneira semelhante, e explica que es¬


colheu

17
Stéphane Marchand, Les guerres du luxe, cit., p. 159.
18
Tferry Richardson, em Max, 139, agosto de 2001.
As tendências são dirigidas? ( 157

[...] trabalhar com grandes fotógrafos para expressar uma visão que
supostamente atraia a atenção do público, incitando-o a empurrar as
portas das lojas, experimentar roupas e, idealmente, comprá-las. [...]
O sexo não é vulgar, nem mesmo quando evocamos as formas de
coitos assimiladas a atos perversos, desde que praticados consensual¬
mente entre adultos. [...] Sabemos por que as imagens que dizem
respeito ao sexo são assim classificadas. Túdo está ligado à religião,
que o sataniza. [...] É por isso que escolhi viver na Europa [em vez de
nos Estados Unidos].'®

Essa forma de hedonismo libertário existe tanto na moda


como em outros meios artísticos. Aliás, a fascinação pela por¬
nografia se desenvolveu quase ao mesmo tempo na arte con¬
temporânea. Até manifestações em comum aconteceram: as¬
sim, o artista francês Édouard Levé organizou a cenografia do
desfile de Gaspard Yurkievich do verão de 2003, em Paris, que
encenava homens reproduzindo quadros de filmes pornográfi¬
cos. Esses acontecimentos são marcados por certa ironia; dis-
tinguem-se das provocações sérias promovidas pela Benetton.

Benetton ou os limites de uma estratégia de provocação

Apesar de toda a boa vontade do mundo, e da ousadia que


a acompanha, os resultados dessas estratégias de focalização
não estão sempre assegurados. Várias marcas recorreram ao
pornô-chique sem que ele voltasse a ser tendência. É assim tam¬
bém com uma outra forma de provocação, de caráter social,
utilizada pela marca Benetton.

O fotógrafo Oliviero Tbscani fez junto à Benetton o papel


de Terry Richardson na promoção do pornô-chique. Seu desejo
era utilizar o poder da mídia publicitária para alertar a opinião

19
Tbm Ford, em Vogue, Paris, abril de 2003.
158 A fábrica das tendências

sobre as grandes causas, como a fome no mundo ou a pena de


morte. Essas campanhas suscitaram importantes protestos; a
marca era suspeita de querer promover seus produtos por meio
de uma comunicação radical. Além do mais, existia uma gran¬
de defasagem entre a discrição das roupas comercializadas pela
grife e o caráter provocador dos anúncios visuais. Poucos estu¬
dos foram consagrados às conseqüências dessa comunicação
sobre as vendas da marca Benetton, mas um deles tentou me¬
dir os efeitos da publicidade visual lançada em 1991, em que se
via um padre católico beijando uma freira na boca.^°

Geralmente, um anúncio é testado com base em quatro


critérios:

• o reconhecimento (assegurar-se de que o anúncio visual


foi notado);

• a atribuição (verificar se a pessoa sondada está associ¬


ando a propaganda visual à miarca que a pagou);

• a aceitação (a pessoa sondada deve dizer se gosta ou não


do anúncio visual);

• a intenção de comprar (a pessoa sondada deve se pro¬


nunciar sobre o fato de o anúncio visual "dar vontade
ou não de comprar”).

As empresas dão muita importância a esses testes; geral¬


mente, eles representam os únicos dados cifrados que permi¬
tem avaliar as conseqüências de um anúncio. Os resultados
obtidos pelo anúncio da Benetton de 1991 foram contrastados.
Para uma campanha provocadora, ela obteve ótimos resulta-

20
Estudo de Christian Pinson & Vikas Tibrewala, United Colors of Benetton
(Fontainebleau: Insead, 1996), apud Michel Chevalier & Gérard Mazzalovo,
Pro logo (Paris; D'Organisation), 2003.
As tendências são dirigidas? 159

dos de reconhecimento e atribuição, indicadores especialmen¬


te observados: o anúncio visual dos "religiosos” obteve um re¬
sultado de reconhecimento quase 50% acima da média; sua atri¬
buição era 3,28 vezes superior àquela de um anúncio normal.
Portanto, o visual marcava bem a memória, e o público o atri¬
buía efetivamente à marca Benetton. Em seguida vêm os resul¬
tados de aceitação, que, por incrível que pareça, são totalmen¬
te conformes aos padrões: 59% das pessoas interrogadas gos¬
tam desse anúncio visual, 38% (ou seja, apenas 3% mais que os
padrões Ipsos*) o rejeitaram. Sendo assim, é provável que as
indignações provocadas por essa campanha tenham se limita¬
do a um pequeno grupo. Poucos indivíduos parecem prestes
hoje a desaprovar uma fotografia, além do mais plasticamente
notável, em que dois membros do clero se beijam. A mesma
coisa acontece com os outros temas das campanhas da Benetton,
que talvez sejam mais consensuais do que parecem. Enfim, úl¬
timo critério, as intenções de compra são superiores aos pa¬
drões (na ordem de 13% de intenções e 4,5% de recusa em
média): 21% dos pesquisados de fato declararam que tinham
vontade de comprar roupas da Benetton, e 36% afirmaram que
não pretendiam fazê-lo. Dessa forma, esse gênero de anúncio
parece criar uma clivagem: ele exacerba as reações de adesão
ou de rejeição.

Diante desses números, a estratégia da Benetton durante


os anos 1990 consistiu em continuar. Contudo, essa decisão se¬
ria fonte de problemas. Primeiramente, é difícil imaginar o cli¬
ma que reina em uma empresa cujo nome está sendo conspur¬
cado externamente. Apesar das dificuldades e dos protestos dos
vendedores preocupados com as reações do público, a estraté¬
gia foi mantida. Uma escolha estratégica dessa natureza não

* Ipsos, um dos líderes no fornecimento de pesquisas de marketing.


160 A fábrica das tendências

parece obrigatoriamente racional. Mas a Benetton se diversifi¬


cou muito, e o setor têxtil constitui apenas uma parte menor
do que hoje representa o quarto grupo industrial italiano, com
uma receita bruta de 7 bilhões de euros. Finalmente, a cessação
desse tipo de anúncios foi decidida em 2000, após uma campa¬
nha mostrando condenados no corredor da morte nos Estados
Unidos, que provocou um dilúvio de críticas denunciando o
cinismo da marca. As 450 lojas da rede Sears pararam imediata¬
mente de distribuir a marca Benetton, que foi obrigada a pedir
desculpas às famílias dos prisioneiros e se separou de Oliviero
Tbscani alguns meses depois. Quanto aos outros vendedores,
2 mil das 7 mil lojas saíram do grupo entre 2000 e 2003.^^

Hoje, esse tipo de comunicação parece estar em defasa-


gem com o espírito dos tempos. Algumas marcas, como a
Campers ou a Diesel, utilizam o discurso social. Mas, diferente¬
mente da Benetton, elas praticam a ironia; uma diferença que
muda radicalmente a percepção de suas mensagens. A ironia,
como veremos, condiz com a moda atual.

21
Management, janeiro de 2003, p. 16.
5
As leis das tendências

Às vezes, fazemos perguntas difíceis: bolsa de mão ou bolsa a


tiracolo? Botas de cano curto ou de cano longo? Vários con¬
temporâneos nossos tentam, com muita angústia, adivinhar a
moda de amanhã. É difícil acalmar essa ansiedade. Como vi¬
mos, as questões que se colocam com "por quê?" não são ade¬
quadas ao mundo das tendências; o "porque sim" parece ainda
ser a melhor resposta. Contudo, como as crianças costumam
dizer, "porque sim não é resposta”. De fato, a moda não obedece
ao acaso, mas a um processo ainda mais imprevisível: é fruto
de uma escolha coletiva. Para adivinhar do que ela será feita
amanhã, é necessário se colocar no lugar de milhares de indiví¬
duos que referendam uma forma ou uma cor em detrimento
de outra. Essa multidão ignora a maior parte das regras, mas
respeita pelo menos uma delas, sem perceber: a lei de Poiret.
Toda roupa parece estar submetida, na sua evolução, a essa re¬
gra descoberta pelo famoso criador.

A lei de Poiret

A moda é feita de uma soma de decisões singulares: aque¬


las dos diferentes indivíduos que decidem ou não seguir seus
162 A fábrica das tendências

decretos. Ora, a psicologia desses indivíduos é submetida a al¬


guns princípios. Poiret, no começo do século XX, pensou ter
descoberto um deles quando formulou uma lei que merece ter
seu nome.

A lei de Poiret poderia se resumir da forma seguinte: uma


vez ultrapassados os limites, não há mais fronteiras. De fato,
como sabemos, as modas nascem geralmente em pequenos
meios preocupados em se destacar, e depois se difundem rapi¬
damente pela população. A partir daí, existe uma alternativa:
ou a população inicial procura se distinguir ainda mais pela
radicalização do vestuário que usa, ou a moda, ao se difundir,
acaba por se caricaturar. Esse fenômeno simples, que pode ser
observado em inúmeros casos, era assim resumido por Poiret:
"Qualquer exagero em termos de moda é o sinal de seu fim".^
Aliás, ele apresenta uma ilustração concreta dessa regra ao
aplicá-la ao caso dos chapéus. Logo, profetizava, vão se tornar
todos iguais. Por que tal previsão? Porque havia percebido que
"estavam cobertos de folhas, de flores, de frutas, de plumas e de
fitas".^ O costureiro narra com humor ter recebido uma delega¬
ção de fabricantes desses adornos que lhe suplicou restabelecer
a moda anterior, graças ã qual eles vendiam muitos enfeites.
Poiret confessou sua impotência, explicando que se tratava de
um desejo da clientela contra o qual ele não podia fazer nada.

As modas do vestuário, assim como as modas corporais,


oferecem outras ocasiões de verificar a lei de Poiret. Nos anos
1970, o uso de um brinco era suficiente para que um rapaz se
destacasse. Dez anos depois, a prática se tornou algo comum;
portanto, era necessário se superar. Alguns músicos, notada-

1
Paul Poiret, En hàbülant Vépoque, cit., p. 212.
2 Ihidem.
As leis das tendências 163

mente no meio alternativo de Paris, começaram a multiplicar


os brincos, e foram ironizados como verdadeiros "trilhos de
cortina com argolas" ambulantes. Esse fenômeno tinha um li¬
mite físico obvio; assim, era necessário furar algo mais que a
orelha. No fím dos anos 1980, começaram a aparecer anéis no
nariz. Hoje, o fenômeno do piercing está generalizado: seus li¬
mites foram empurrados, já que ele pode se expressar em quase
todas as partes do corpo. Assim, a Gucci vendeu, algum tempo
atrás, um anel para enfeitar os seios. Mas a banalização dessa
prática obriga os mais preocupados com sua originalidade a
adotar outros artifícios. Como as tatuagens se tornaram muito
comuns, existem hoje duas técnicas que superaram amplamen¬
te as outras: a escarifícação e a colocação de próteses de silicone
sob a pele.

A “lei de Poiret" se aplica a qualquer fenômeno que possua


um limite físico preciso. Tánto a largura das gravatas como a
das calças boca-de-sino são submetidas a obrigações incontor-
náveis. Tbdavia, essas regras não são todas tão espetaculares
quanto as impostas à crinolina, que às vezes era tão espaçosa
que impedia de descer certas escadas. Contudo, quando os li¬
mites físicos são alcançados, a "neomania” leva a abandonar
essas modas para encontrar outras. Última ilustração dessa bar¬
reira intransponível: as calças jeans com cintura baixa. Para o
verão de 2003, alguns dos modelos mais populares chegaram ao
nível do osso ilíaco. Impossível ir abaixo disso, a menos que se
proponha algo que não seja uma calça... Portanto, podemos afir¬
mar, sem sermos adivinhos, que o fenômeno da cintura baixa
encontra aí seu limite. Aliás, alguns criadores devem ter prova¬
velmente pensado isso porque, para a coleção de inverno de
2004, cogitaram relançar a jardineira; em outros termos, a cin¬
tura alta máxima.
164 A fábrica das tendências

A maior parte dos criadores levam em consideração, sem


sequer conhecê-la, a "lei de Poiret". Assim, vejamos como Helmut
Lang "justifica” a escolha de alguns tecidos:

Em determinado momento passaram a existir imitações demais des¬


ses tecidos, baseadas em inovações técnicas - imitações de má qua¬
lidade, cheap. Foi aí, por volta de 1997, que voltei a utilizar materiais
naturais, muito luxuosos. Hoje, utilizamos, notadamente para os
casacos e paletós, muitos tecidos britânicos que, às vezes, foram
tramados à moda antiga. Eles são mais pesados, muito sólidos. An¬
tes mesmo de serem trabalhados, já se parecem com roupas sob
medida. [...] Mesmo o tule sintético que eu utilizava antes foi substi¬
tuído por um tule de seda stretch”.^

Uma coleção eficiente se baseia nas tendências existentes,


antes de propor novas para o futuro: nesse exercício, as dife¬
renças (muito) grandes são banidas. Impossível, por exemplo,
passar de uma grande tendência de sapatos de ponta arredon¬
dada para sapatos de ponta quadrada; vão se "injetando” pro¬
gressivamente alguns modelos do segundo tipo para medir a
atitude da clientela. Assim foi feito com as calças jeans. Desde
1998, vários costureiros têm vontade de trabalhar com jeans
seventies, calças que se destacam por dois aspectos: cintura bai¬
xa e pernas largas (bocas-de-sino ou bootlegs). Tbdavia, como
se sabe, a cada estação o movimento tem se acentuado, porém
apenas para a cintura baixa; as bocas-de-sino ainda não seduzi¬
ram, pelo menos na versão máxima.

A profecia auto-realizadora

Os sociólogos têm poucas certezas. Contudo, a self-fulfilling


prophecy, ou profecia auto-realizadora, faz parte de um peque-

^ Helmut Lang, Mixte, n“ 15, outono-inverno de 2001-2002.


As leis das tendências 165

no número de regras que parecem dotadas de uma validade


quase absoluta na área social. Esse mecanismo descreve perfei¬
tamente o entusiasmo suscitado por alguns objetos e certas ten¬
dências particulares.

Segundo a profecia auto-realizadora, quando os homens


consideram uma coisa como real, ela se torna real nas suas
conseqüências. Para Robert Merton - um dos primeiros soció¬
logos a ter dado um nome a esse mecanismo -, existe aí um
critério que permite distinguir o social do natural. De fato,

[...] as definições coletivas de uma situação (profecia e previsões)


fazem parte da situação e, assim, afetam seu futuro desenvolvimen¬
to. Esse fato é próprio do homem, não se encontrando de outro modo
na natureza. As previsões sobre a volta do cometa de Halley não
influenciam nossa órbita. Mas o rumor da insolvabilidade do banco
de Millingville teve conseqüências diretas sobre nosso futuro. Profe¬
tizar sua falência foi suficiente para provocá-la.^

Aplicada ao setor da moda, a profecia auto-realizadora suge¬


re que, para que um objeto se torne "tendência", basta que uma
pessoa habilitada assim o decrete. Obviamente, nem todos têm
esse dom, que procede de um mecanismo tão misterioso quanto
o carisma. São reconhecidos como profetas de moda os estilistas
e também algumas estrelas, atores, atrizes, cantores, cantoras e
outros. A seleção é tão injusta quanto a que preside à escolha das
tendências; mais precisamente, não considera de maneira algu¬
ma o talento ou as qualidades espirituais atribuídos a esses "guias
do vestuário”. Gwyneth Paltrow não deixou nenhuma lembrança
cinematográfica inesquecível, ninguém irá lutar para defender o
talento de Kylie Minogue... contudo, elas permanecem, em ter¬
mos de moda de roupas, como "profetisas" ouvidas.

^ Robert K. Merton, Éléments de théorie et de méthodes sociologiques, trad. Henri


Mendras (Paris; Armand Colin, 1997), p. 139.
166 A fábrica das tendências

O mecanismo da profecia auto-realizadora é bem conheci¬


do dos profissionais da moda, que o utilizam conscientemente.
O people se beneficia, assim, de uma atenção particular na im¬
prensa feminina. Uma bolsa da Fendi - a Biga Bag - será consi¬
derada indispensável por causa de uma aplicação escrupulosa
da regra de Merton:

Em matéria de moda, existem indicadores infalíveis: se Sarah Jessica


Parker, Sharon Stone ou a cantora de rap Eve exibem o mesmo
acessório, é porque esse objeto está prestes a se tomar cult. [...] Os
oráculos da moda lhe predizem um destino fabuloso!®

Tàl predição justifica que se emprestem ou se ofereçam artigos


ãs celebridades. Presentear com trezentas Biga Bags, mesmo
realizadas em uma versão collector de malha prateada, bronze e
ouro incrustadas de cristais Swarovski, continua sendo uma
boa maneira de popularizar a marca.

A profecia auto-realizadora pode desencadear fenômenos


miméticos de grande amplidão. É inútil fazer grandes estudos
para saber onde alguns rapazes encontraram a idéia do leque
para suportar o tempo abafado que habitualmente acompanha
os desfiles de alta-costura da estação outono-inverno, tradicio¬
nalmente programados para julho... a sombra de Karl Lagerfeld
e de seu famoso leque não devem estar muito longe. Claro, a
profecia auto-realizadora pode, com a mesma eficácia, fazer e
desfazer modas. Daí aparecem as conseqüências às vezes temí¬
veis da rubrica “out" de alguns jornais, tendo sido o WWD o
primeiro a fulminar excomunhões nesse setor. Esse mecanis¬
mo pode se aplicar a qualquer tendência. Assim, desde que Alber
Elbaz, diretor artístico de Lanvin, proclamou que não havia
nada mais vulgar do que uma mulher de jogador de futebol.

^ Robert K. Merton, em Elle, 24-3-2003, p. 26.


As leis das tendências 167

constatamos nestes últimos tempos que as aparições dessas


criaturas, antigamente mais olhadas que seus maridos, tornam-
se cada vez menos freqüentes.

Obviamente, o fenômeno da profecia auto-realizadora pode


se aplicar a qualquer objeto. O profeta importa mais que a men¬
sagem; é por esse motivo que funciona bem com as estrelas.
Mas, para a moda, a maior estrela do momento se chama Colette.

Colette, a profetisa

As concept Stores são lojas em que se vende a profecia auto-


realizadora: pretendem proporcionar, a uma clientela rigorosa¬
mente selecionada, produtos escolhidos com o mesmo rigor.
Esses pontos-de-venda constroem sua legitimidade na capaci¬
dade de prever o que será a moda de amanhã; eles têm um
papel de influenciadores infalíveis. Obviamente, os mais pode¬
rosos entre eles manipulam. Eles raramente erram em relação
ã moda de amanhã porque são eles que a concebem. E cada
uma dessas manipulações reforça seu poder.

Como vimos, a antecessora desse tipo de lojas foi criada, no


começo do século XX, pelo costureiro Poiret, com sua Boutique
de la Maison de Rosine, em que vendia essencialmente seus pró¬
prios produtos. A versão “multimarcas” apareceu nos anos 1970,
quando Didier Grumbach, atual presidente da Federação Fran¬
cesa da Costura, agregou ao grupo Créateur et Industriei um pon-
to-de-venda situado na rue de Rennes, em Paris. Nessa loja, esta¬
vam expostos móveis, design e roupas. Entre os criadores apre¬
sentados ao público, podemos citar principalmente Montana,
Mugler ou ainda Jean-Paul Gaultier. Mas esse grupo se desfez em
1976, depois de um desentendimento entre os acionistas. Outra
abordagem, em outro continente: a butique Joyce, fúndada em
168 A fábrica das tendências

1971, em Hong Kong, por Joyce Ma. Diferentemente do Créateur


et Industriei, essa butique não é a emanação de um grupo; limi-
ta-se a selecionar e distribuir roupas de alto padrão e de vanguar¬
da, para homens e mulheres; alguns de seus artigos são exclusi¬
vos. Enfim, última ilustração desse tipo de distribuição específi¬
ca: a rede Bon Génie-Grieder, que propõe nas suas lojas de Gene¬
bra e Zurique uma seleção de marcas respeitadas.

Gontudo, hoje, a mais conhecida das concept Stores do mun¬


do é parisiense e se chama Golette, nome de sua proprietária -
Colette (Rousseaux) -, que se tornou a grande sacerdotisa da
profecia auto-realizadora. Essa profissional, na casa dos 50 anos,
tão discreta quanto seu ponto-de-venda é célebre, teve a audá¬
cia de investir em 1997 em uma loja de 700 metros quadrados
situada na porção até então um pouco menosprezada da rue
Saint-Honoré. Nesse amplo espaço, a moda masculina e femi¬
nina ocupa o primeiro andar; no térreo fica uma seleção de
produtos de design e também um canto para a venda de tênis.
No subsolo há um ivater bar que oferece águas do mundo intei¬
ro e em que se encontra também uma seleção de livros e uma
galeria de arte. O ponto comum desse inventário digno de
Prévert? Túdo que se encontra nesse ponto-de-venda está na
moda ou pretende se tornar moda. Assim, essa loja é
diretamente responsável pelo sucesso de objetos tão úteis quanto
o patinete ou o renascimento de marcas de tênis como Conver¬
se ou New Balance. Uma gama de produtos para cabelo - John
Frieda - conseguiu se tornar referência nas grandes lojas e nas
redes de perfumaria depois de ter entrado nesse templo das
tendências. Porque o principal segredo da equipe da Colette é
tanto sua intuição quanto o papel que tem na produção de cren¬
ças em matéria de moda. Hoje, esse ponto-de-venda se tornou
um lugar inevitável para todos os profissionais da moda; pou¬
cos outros lugares se beneficiaram dessa aura.
As leis das tendências 169

A antiga profissão de Colette não é indiferente ao seu atual


sucesso. Antes, ela dirigia Polo, um dos mais famosos atacadis¬
tas do Sentier. O papel dos atacadistas é fazer uma pré-seleção
para os varejistas. Assim, eles podem realizar suas compras sem
temer cometer um erro. O papel da loja da rue Saint-Honoré é
idêntico, com um detalhe: ela descarta o intermediário. Aqui, a
Colette seleciona e propõe diretamente ao consumidor final.
Polo não evocava nada para as fashion victims, e pouco para os
profissionais fora do Sentier. Em contrapartida, a Colette se
tornou um ponto turístico procurado: encontra-se em todos os
guias, é assunto de programas de televisão, de reportagens.®
Qualquer pessoa que trabalhe em uma profissão mesmo que de
longe relacionada à moda vai lá regularmente: a loja funciona
como um tipo de salão de prêt-à-porter permanente.

Como a Colette se tornou a Colette? Na criação dessa concept


store, uma profissional acostumada a sentir as tendências, em
outras palavras, a conjugar perspicácia com o apelo comercial
do momento. Um endereço que não está nem muito perto nem
muito longe dos hot spots da moda. O lugar sabe misturar habil¬
mente shopping com fun; encontram-se produtos em todas as
faixas de preço, do elástico de 2 euros até o relógio que custa
dezenas de milhares de euros. A Colette inovou muito, tendo
até a audácia de contratar vendedores jovens e simpáticos, en¬
quanto a tendência eia dos rostos de mármore. Assim, os ven¬
dedores da Colette vendem bem; as outras lojas procuram
contratá-los, e um deles está até trabalhando na televisão.

A questão de saber como a Colette faz para adivinhar que


roupas serão tendência já foi apresentada; não é mais o caso. A
loja não está mais à espreita da moda: ela a fabrica, talvez com

® Cf. o desopilante documentário de Loic Prigent e, para aqueles que não têm
televisão, o artigo do mesmo autor publicado na Mixte, 1-2-2003.
170 A fábrica das tendências

a influência inédita da sua evolução. Hoje, por causa da profe¬


cia auto-realizadora, um artigo selecionado pela loja atrai ne¬
cessariamente a atenção dos outros compradores de moda.
Assim, o logotipo “Visto na Colette" adquiriu uma verdadeira
legitimidade. Os profissionais passam sistematicamente pela loja
para identificar as marcas, inspirar-se nas formas, comprar os
produtos para estudá-los ou ainda observar o look da clientela.
Com certeza, nem tudo que está na Colette se torna moda. As
mais improváveis roupas continuam difíceis de ser usadas, qual¬
quer que seja o lugar em que sejam vendidas; camisetas
superpostas e laceradas Imitation of Christ são condenadas a
permanecer à parte. Pouco importa para a loja... as compras de
roupas mais diferenciadas são feitas em pequenas quantidades.
Para as demais, as marcas desenvolvem tesouros de audácia
para obter o imprimatur. É assim que a Dior Homme midiatizou
amplamente sua presença na Colette, no momento em que era
necessário provar que a marca havia voltado a ser tendência.
Aliás, o sucesso da loja é tanto que exige hoje, se não a exclusivi¬
dade, pelo menos uma série especial unicamente distribuída
por ela. Peças únicas para uns poucos eleitos, objetos de série
para as lojas comuns. Assim, encontramos na Colette pares de
tênis Converse, prineipalmente modelos collectors, como o
inencontrável estrela-preta, a série limitada Fendi, um exem¬
plar pintado pelo grafista americano Kaws, ou ainda o par
customizado por Chrome Heart. Esse último provoca estranhas
manifestações: Colette conta que no Japão um iniciado come¬
çou a olhar fíxamente seus Chrome Heart e, quando ela confir¬
mou que se tratava de um modelo autêntico, "ele se agachou
para acariciá-los”.^

^ Colette Rousseaux, apud Marie-Pierre Lannelongue, em Elle, 25-3-2002, p. 98.


As leis das tendências 171

Enquanto a Colette permanecer legítima, a eficácia mági¬


ca de suas escolhas não será desmentida. A moda será feita, em
parte, por suas seleções. Mas o mistério do carisma quer que,
mesmo imitando seus gestos, ninguém consiga reproduzir seus
efeitos: transpostas para outro lugar, as preces não têm o mes¬
mo resultado. Uma pálida cópia da Colette (Beauty by Et Vous)
tentou deslanchar; fechou as portas alguns meses depois, em
meio ã indiferença geral. Contudo, as cópias da Colette conti¬
nuam se espalhando; até o lounge da Cathay Pacific de Hong
Kong parece ter se inspirado diretamente nela. Mas a prova
mais surpreendente do mistério do carisma é Milan Vukmirovic:
esse homem está na origem do conceito da loja da rue Saint-
Honoré, já que teria sugerido a idéia a Colette durante um jan¬
tar. Por três anos, ele foi uma das pessoas mais poderosas do
planeta moda: era ele que selecionava o prêt-à-porter para o
ponto-de-venda. Enquanto esteve nesse papel, não cometeu
nenhum erro: era o principal artesão da precisão das escolhas
colettianas. Depois foi trabalhar em outro lugar. Após uma rá¬
pida passagem pelo grupo Gucci, Milan Vukmirovic se tornou o
“diretor criativo” de Jil Sander, depois da saída da fundadora da
marca. Mas, fora do "templo", Milan V. não gozava dos mesmos
poderes. Se antes suas escolhas se impunham ao conjunto da
tribo da moda, na Jil Sander, ao contrário, seu poder mágico
parecia ter se volatilizado; assim, ele foi rapidamente desliga¬
do. O carisma, essa "qualidade extraordinária [...] de uma pes¬
soa [...] dotada de forças ou de características sobrenaturais ou
sobre-humanas",® não é um poder transmissível: não era Milan
Vukmirovic que o tinha, mas Colette em pessoa.

8 Max Weber, Économie et société: íes catégories de la sociólogie, vol. I (Paris: Plon,
1995), p. 231 [edição em português: Economia e sociedade: fundamentos da
sociologia compreensiva, vol. 1 (Brasília: UnB, 1991)].
172 A fábrica das tendências

0 people profeta

Poiret, verdadeiro conhecedor em matéria de profecia auto-


realizadora, não hesitava em utilizar um pouco do carisma de
algumas atrizes em prol de sua marca. Assim, ele sabia que con¬
vidar Isadora Duncan permitia que sua grife se beneficiasse
parcialmente da aura da grande dama. Claro, durante bons lon¬
gos anos, esse processo se tornou balbuciante. Assim, Hermès
teve a sorte de descobrir, em 1956, seu famoso lenço de seda
sendo utilizado por duas também famosas cabeças coroadas: a
rainha da Inglaterra em um selo de 6 pence e Grace Kelly na
capa da Life. Sem a ajuda certamente involuntária da princesa
Grace, o destino de Hermès provavelmente teria sido diferen¬
te, como mostra este outro objeto cult: a bolsa que tem seu
nome. Alguns anos depois, Hubert de Givenchy impôs seu nome
e sua grife associando seu estilo à mais célebre de suas clientes:
Audrey Hepburn. Contudo, a prática não era sistemática. Marie-
France Pochna lembra, em sua biografia de Dior,^ que em 1955
o costureiro recusou vestir para seu casamento uma nova es¬
trela do cinema, Brigitte Bardot.

Hoje, o mecanismo é acionado por profissionais: ninguém


ousaria deixar os retornos indiretos do Festival de Cannes ou da
entrega do Oscar em mãos inexperientes. Apenas nos Estados
Unidos, uma cerimônia como a entrega do Oscar é seguida por
33 milhões de telespectadores. Dessa forma, cada anúncio de 30
segundos divulgado durante a cerimônia custou 1,28 milhão de
euros.^” Em 2003, segundo a opinião geral, foi Gianni Versace
que melhor soube aproveitar o evento. Ao vestir Kate Hudson,
Jennifer Garner e Catherine Zeta-Jones, assediada e elogiada por

® Marie-France Pochna, Christian Dior, cit.


Estimativas Multivision, apud Journal du Jhxtile, n“ 1745, 14-4-2003.
As leis das tendências 173

seu papel em Chicago, a marca ganhou, segundo as estimativas,


237 segundos de publicidade, ou seja 2,8 milhões de euros; as
imagens dessas três mulheres foram de fato divulgadas no mun¬
do inteiro. As outras marcas não ficam muito longe: Dolce &'
Gabbana (117 segundos) e Carolina Herrera (79 segundos) soube¬
ram aproveitar o evento. Em relação a Valentino, ele teve prova¬
velmente razão de apostar em Jennifer Lopez, que, embora não
estivesse defendendo nenhum filme na competição, produziu
certo efeito usando, drapejado em um só ombro, o vestido verde
inicialmente criado para Jackie Kennedy. Esse vestido se tornou
um excelente negócio: cerca de 800 mil euros de publicidade pou¬
pados por ter vestido uma espectadora...

Dois bons motivos incitam a utilizar as celebridades como


modelo. Primeiramente, a visibilidade dessas pessoas. A técnica
se mostra eficiente quando se trata de ganhar espaço na mídia
ou na televisão no horário nobre. Assim, por ter utilizado Jennifer,
de Star Academy, * como modelo para seu desfile de alta-costura
de janeiro de 2003, a Tbrrente assegurou manchetes na maior
parte dos pilares da imprensa. Na ausência dessa popstar impro¬
visada de modelo, com certeza a coleção não teria se beneficiado
da mesma atenção. Outra vantagem: uma celebridade que adota
um objeto autoriza milhares de desconhecidos a imitá-la. Nin¬
guém está sendo enganado nesse jogo; todo mundo suspeita dos
acordos que dão uma bolsa a umas ou um vestido a outras. Mas
todos sabem que esses modelos temporários não aceitariam uti¬
lizar um objeto do qual não gostassem.

Obviamente, para tirar proveito desses dois efeitos - a vi¬


sibilidade e a aura de autoridade - é necessário saber acertar o
alvo. As estrelas ideais são aquelas cuja elegância está sendo

* Reàlity show da televisão francesa cuja finalidade é descobrir novos talentos


da música. (Nota do tradutor.)
174 A fábrica das tendências

permanentemente observada. Nesse sentido, Gwyneth Paltrow


dispõe atualmente de certa vantagem. Na seção Info Hebdo da
Elle, que dá conselhos e informações, as roupas da atriz são
mencionadas a cada quatro números. Cada uma de suas apa¬
rições resulta em comentários que, de maneira explícita, acon¬
selham as leitoras quanto à maneira de se vestir. Em maio de
2002, Gwyneth aparece com dois conjuntos esportivos, um, se¬
gundo a matéria, “não muito embelezador”, e outro "mais dife¬
renciado": ocasião para apresentar a marca Juicy Couture, co¬
nhecida nos Estados Unidos por seu sportswear de moda, já
mostrada “em cor-de-rosa com Madonna e em cinza com Puff
Daddy".^^ Em julho de 2002, as coisas não iam nada bem:
Gwyneth - podemos chamá-la pelo primeiro nome, já que sabe¬
mos tudo da vida dela - estava “em queda".^^ Primeiramente,
declarou em entrevistas que temia acabar sua vida sozinha. Mas
havia algo mais grave: foi flagrada “três vezes seguidas" com a
mesma saia jeans. Segue uma descrição da maneira como usa¬
va essa roupa: na sexta-feira com um bustiê, no domingo com
uma pequena camisa romântica e na quinta-feira seguinte com
a mesma camisa, mas usando botas. E não acaba por aí...
Gwyneth reapareceu no dia 26 de agosto com - sempre se pode
apostar no pior - a mesma saia jeans! Na ocasião, ela dividiu a
matéria com Julia Roberts,^'* que também estava usando uma
saia jeans... Ambas são apontadas como exemplos devido a suas
Birkenstock. Felizmente, na volta das férias de verão, em se¬
tembro de 2002, Gwyneth troca essa saia comum de denim por
um vestido longo Valentino.^^ Sua silhueta ilustra uma nova
tendência confirmada ou que deve acontecer: o tule. Para mos-

'' Por exemplo, 27-5-2002, 29-7-2002, 26-8-2002 e 9-9-2002, etc.


Elle, 27-5-2002.
Elle, 29-7-2002.
Elle, 26-8-2002.
15
Elle, 9-9-2002.
As leis das tendências

trar a eficiência da demonstração, duas outras mulheres estão


presentes com vestidos semelhantes: Gong Li e Salma Hayek.

Obviamente, cada marca tem a estrela que lhe convém


ou... que merece. Gwyneth Paltrow funciona muito bem na Elle
porque representa um compromisso com o perfil de uma jo¬
vem mulher discreta - falava-se da nova Grace Kelly quando
apareceu -, mas que presta atenção nas tendências. Aliás, tão
atenta que, segundo a jornalista Marie-Pierre Lannelongue, ela
teria se tornado "victim demais e não suficientemente fashion”,^®
por causa da falta de coerência de seu look. Cada uma tem seu
estilo e o costureiro que mais lhe convém: Chloé Sevigny agra¬
da aos mais diferenciados, como Tilda Swinton; Élodie Bouchez
ou Charlotte Gainsbourg têm seus admiradores, Madonna con¬
vém aos que podem pagar. Tbdavia, não há mais lugar nessa
área para o amadorismo. Antigamente, as estrelas se vestiam
por impulsos; hoje, tudo está sendo negociado. De um lado,
especialistas encarregados de recrutar people (as celebridades)
para as marcas; de outro, as estrelas, preocupadas com sua ima¬
gem, freqüentemente aconselhadas por personnal shoppers,
especialistas encarregados de vesti-las. Thdo está sendo feito
para que as estrelas se vistam com marcas; em Cannes, várias
grifes têm um mostruário que permite que as estrelas mais dis¬
traídas encontrem, a qualquer momento, algo para vestir.

O primeiro costureiro que procurou explorar industrialmente


o filão das celebridades foi provavelmente Giorgio Armani. A
associação formada pelo criador milanês e Hollywood começou
por acaso com - uma vez não é costume - um homem: Richard
Gere. A atuação dele, vestido com Armani em Gigolô americano
(1980), certamente contribuiu para impor o estilo ao mesmo tem-

16
Marie-Pierre Lannelongue, "Quand la mode griffe les stars", em Elle,
12-5-2003, p. 78.
176 A fábrica das tendências

po simples e sofisticado que caracteriza a grife, seus ternos


desconstruídos e sua elegância despreocupada. A cena em que
Richard Gere espalha na cama um arco-íris de camisas, mostran¬
do uma etiqueta da grife, sem dúvida ajudou muito a popularida¬
de dessa marca. O que era quase um acaso se tornou uma estra¬
tégia comercial consciente e deliberada. Apoteose dessa estraté¬
gia: a cerimônia do Oscar, em 1991, batizada “Armani Awards”
pelo WWD: Everyhody who was anyhody was wearing Armani,
"todos os que contam estavam usando Armani”, relata a jorna¬
lista Téri Agins.^^ As marcas italianas, Armani, claro, mas tam¬
bém Cerruti, Versace, Dolce 6/ Gabbana, sem esquecer Gucci e
Prada, habilmente investiram no guarda-roupa desse people. Es¬
sas celebridades disputam as matérias na revista In Style, mistura
tipicamente americana de moda e people, impressa em mais de 1
milhão de exemplares. Assim, uma fotografia de Liv lyler usan¬
do Gucci ou de Penélope Cruz vestindo Dior será necessariamen¬
te utilizada pelos jornais e terá um impacto mais importante que
se fosse um modelo desconhecido do grande público.

O alistamento do people na estratégia de difusão de uma moda


está prometendo um belo futuro. Porque as celebridades são me¬
lhores profetas que os modelos. Paradoxalmente, as estrelas nos
parecem mais próximas que rostos desconhecidos. Tfemos a im¬
pressão de conhecê-las, povoam nosso imaginário e são vincula¬
das a certos momentos de nossa existência. É por esse motivo
que constituem poderosos indicadores em matéria de vestuário.

0 concurso de beleza
Explicar a difusão de uma moda circunscrita pode ser coi¬
sa fácil. Mas todas as outras tendências não são tão simples de

17
Tteri Agins, The End of Fashion (Nova York: William Morrow, 1999), p. 137.
As leis das tendências 177

entender. Assim, entre 1995 e 1999, o jeans conheceu um eclip¬


se. Em 2000, quando havia sido quase enterrado no fundo dos
armários, voltou de repente a ser tendência. Evidentemente,
essa reviravolta de situação não obedece a uma única causa.
Ninguém ousaria pretender que uma estrela ou um costureiro,
por mais poderosos que sejam, seriam os únicos responsáveis
por essa volta. Sendo assim, a profecia auto-realizadora não
parece mais ser uma explicação plausível. Um movimento des¬
sa amplitude exige uma ação simultânea de diferentes protago¬
nistas, desde os produtores de denim até os consumidores, pas¬
sando pelos distribuidores. Que mecanismo social seria susce¬
tível de explicar uma ação conjunta, mas obviamente não con¬
certada, de tantos indivíduos? Esse mecanismo existe: foi des¬
crito por Keynes sob o nome de "concurso de beleza”.

Imaginemos, diz Keynes, um concurso de beleza. Como


sempre, nesse tipo de competição, vários candidatos concor¬
rem ao primeiro lugar diante de um público que irá desempatá-
los em uma votação. Contudo, essa competição se diferencia
das versões tradicionais porque os votantes não devem esco¬
lher o pretendente que julgam mais bonito, mas aquele que
consideram mais suscetível de obter a maioria dos votos. Por
meio dessa parábola, Keynes pretende descrever a situação em
que se encontram os especuladores que devem decidir em de¬
terminado mercado. O senso comum pensa que é suficiente
que esses homens adquiram os "melhores" títulos, em outros
termos, os das empresas de melhor desempenho. De jeito ne¬
nhum, responde o economista: diante das flutuações da bolsa

18
Essa parábola é descrita por John Maynard Keynes no capítulo XII da Théorie
générale (Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1971) [edição em português.: John
Maynard Keynes, Tboria geral do emprego, do juro e da moeda, trad. Mario
Ribeiro da Cruz (São Paulo, Atlas, 1992)].
A fábrica das tendências

de valores, tanto o sábio quanto o ignorante se encontram em


pé de igualdade: eles não sabem nada ou quase nada. Sendo
assim, a boa solução não se encontra neles mesmos, mas na
representação que fazem das opiniões alheias: “Sabendo que
nosso próprio julgamento individual não tem valor, esforça-
mos-nos em aceitar o julgamento do resto do mundo. [...] Tfen-
tamos então nos conformar com o comportamento da maioria
ou da méáia"}^ Nesse jogo, quem ganha é aquele que melhor
advinha "o que a multidão vai fazer”.Segundo Keynes, o con¬
curso de beleza nos ensina que é "melhor para sua reputação
fracassar com as convenções do que ter sucesso contra elas”.^^

Evidentemente, a parábola do "concurso de beleza" serve


perfeitamente para modelar o comportamento de diferentes
indivíduos procurando adivinhar qual será a tendência da pró¬
xima estação. Esses indivíduos podem ser profissionais da moda
ou simples consumidores, em outros termos, sábios ou igno¬
rantes. Mas nenhum deles tem real certeza sobre a moda futu¬
ra. O mais reconhecido dos estilistas, o mais influente redator
da imprensa de moda, o comprador da melhor rede de lojas de
moda... todos esses profissionais podem errar em sua maneira
de apreender as tendências. A mesma coisa acontece com o
cliente x, que, para ajudá-lo na sua escolha, tem apenas as infor¬
mações que conseguiu colher na mídia, os conselhos - interes¬
sados - do vendedor e seu gosto pessoal. Para descobrir de que
será feita a moda de amanhã, essas duas categorias vão, portan¬
to, especular, antecipando as tendências em matéria de silhue¬
ta, de cores ou de marcas.

John Maynard Keynes, “The General Theory of Employment", em Quarterly


Journal of Economics, vol. 51, 1937, pp. 209-223.
Ibid., p. 157.
21
Ibid., p. 158.
As leis das tendências 179

Contudo, em relação às tendências, o profissional não está


colocado exatamente na mesma situação que o neófito. Em pri¬
meiro lugar, e obviamente, essas duas categorias de indivíduos
não têm a mesma experiência, nem as mesmas redes de infor¬
mantes. Mas, sobretudo, seus horizontes temporais não são os
mesmos: se o consumidor quiser adquirir uma roupa para usá-la
durante o ano n, o profissional, por sua vez, precisará de muito
mais tempo para vender essa roupa; se considerarmos o maior
prazo, é necessário encomendar o tecido no ano n-1, apresentar
a coleção seis meses depois para poder estar presente nas lojas
no ano n. Sua competência de profissional, portanto, deve ser
aqui contrabalançada por antecipações suplementares. Mas, no
final, ambos estão sujeitos a um ambiente incerto.

A parábola do concurso de beleza destaca duas característi¬


cas paradoxais da organização das tendências. Em primeiro lugar
mostra que, nesse contexto, como notou André Orléan,^^ a imi¬
tação não é um comportamento estranho, próprio dos seguido¬
res. Ao contrário, em um estado de incerteza, essa atitude é até
totalmente racional; está perfeitamente adaptada para antecipar
as tendências. Segunda conseqüência: no setor da moda, especu¬
lar que dizer imitar. Por esse motivo, surpreendentemente, uma
tendência vencedora pode eclipsar todas as outras.

Assim, se tomarmos o exemplo enunciado no começo, é


possível decifrar a misteriosa volta da calça jeans - fenômeno
de moda em si complexo - graças ao mecanismo do concurso
de beleza. Essa volta do denim, no fim de 1999, foi necessaria¬
mente acompanhada por antecipações de uma maioria dos
atores do mercado. São algumas das razões pelas quais esses

André Orléan, "Mimétisme et anticipations rationnelles: une perspective


keynésienne", em Recherches Économiques de Louvain, 52(1), março de 1986,
pp. 45-66.
180 A fábrica das tendências

atores deram seu voto ao jeans. Havia duas estações, pelo me¬
nos, a moda do vintage^^ fazia muito sucesso, principalmente
em relação aos tênis; começava a crescer para algumas calças
jeans - tipo 501 - e alguns modelos raros de jaquetas jeans das
marcas Levi's, Wrangler, Fiorucci. Simultaneamente, o merca¬
do foi mantido por meio de várias inovações, que não permiti¬
ram que a tendência se esgotasse. Vários métodos de lavagem,
de desbotamento, de branqueamento se desenvolveram. A cal¬
ça de cintura baixa apareceu, enquanto em um outro segmento
do mercado foi lançada a baggy, calça que, por sua vez, é
extralarga. Em suma, tudo foi feito para dar crédito à idéia de
que estava acontecendo algo novo no setor dos jeans. Nasce¬
ram marcas cujo sucesso foi planejado para grupos específicos,
desde os homossexuais até os rappers, passando pelos skatistas,
as mulheres maduras, etc. Ao mesmo tempo, o leque de preços
se ampliou além do que antes era considerado possível. As gran¬
des marcas de criadores acompanharam o movimento e, em
certos casos, até o anteciparam, seguindo o exemplo de Helmut
Lang. O jeans tem um valor tão seguro do concurso de beleza
que Karl Lagerfeld não hesitou em unir seu nome à marca Die¬
sel para lançar sua própria coleção de denim. As pequenas
marcas, obviamente, seguiram a tendência. Essa volta foi igual¬
mente possível graças a uma renovação das silhuetas. Antes
usada de maneira sportswear, a calça jeans se tornou legítima,
tanto para os homens quanto para as mulheres, usada com pa¬
letó social. No concurso das tendências, a panóplia de Anna
Mouglalis, nova imagem de Chanel, teve certamente sua influ¬
ência, casando um jeans com um dos famosos paletós de
tweed.^^

23
o vintage designa roupas antigas, já usadas, que, pelo seu caráter de rarida¬
de, apresentam um interesse especial.
As leis das tendências 181

Duas outras categorias de "votantes” também tiveram uma


influência na volta da calça de denim. Primeiramente os distri¬
buidores. Raros são os artigos - fora os tênis - que ainda se
beneficiam de uma rede de multimarcas. Sendo assim, uma
"volta" do jeans não sofre a tradicional estrangulação vincula¬
da à insuficiência da distribuição. Além disso, a comercialização
do jeans para todos os bolsos abriu o leque das lojas que pode¬
riam estar interessadas na volta desse artigo. Em compensa¬
ção, poucos fabricantes podem abastecer o mercado com teci¬
do denim. Segundo eles, esses industriais foram confrontados
com um superaquecimento devido ao crescimento inesperado
das encomendas. Real ou artificial, essa situação os levou a pe¬
dir aos fabricantes que antecipassem a execução das encomen¬
das: assim, as do verão de 2003 foram, em certos casos, anteci¬
padas desde o outono de 2001.^^ Mas, já nessa época, as enco¬
mendas pareciam diminuir junto aos fabricantes. Isso leva os
profissionais a profetizar hoje o fim desse interesse pelo jeans:^®
os votantes do concurso atualmente procuram outro tipo de
beleza, considerando que a onda do jeans durou demais.

Um mundo sem piedade

o concurso de beleza é terrivelmente injusto. O princípio


que o regula é inspirado nesse "efeito Mateus”, assim batizado
pelo sociólogo Robert Merton em virtude do Evangelho segundo
São Mateus, que diz: "A quem tem, será dado mais, e terá em
abundância. Mas daquele que não tem, até o que tem lhe será
tirado”.O mundo das tendências é um universo sem piedade.

Fashion Daily News, 12-10-2001, p. 22.


Women's Wear Daily, 8-5-2003, p. 3.
Robert Merton, The Sociology of Science (Chicago: University of Chicago Press,
1988), p. 445.
182 A fábrica das tendências

em que a lógica do winner take alf'^ (o vencedor leva tudo) se


expressa sem reserva. Ninguém teria a idéia absurda de se desta¬
car adotando escolhas diferentes daquelas que a moda promove.
Assim, quando os profissionais antecipam uma moda de calça
com cintura baixa, as calças com cintura alta desaparecem do
mercado. Ifês mecanismos contribuem para que os decisores se
limitem às tendências e então ampliem as que foram escolhidas:
oferecendo, de certa maneira, um prêmio ao vencedor.

O primeiro deles é conhecido: é a conseqüência dos meios


de divulgação em massa, cinema ontem, televisão hoje. Como
destacaram alguns estudos, a generalização da televisão, em
detrimento de outra mídia, como os jornais ou o rádio, contri¬
buiu para a elaboração de um imaginário simbólico homogêneo
entre os indivíduos.^® É notadamente a razão pela qual os
estilistas que vestem as heroínas dos mais populares seriados -
Friends ou Sex and the City, por exemplo - beneficiam-se de uma
corte assídua. A associação, mesmo que furtiva, de uma calça
jeans da marca Earl Jean com Jennifer Aniston teve conse-
qüências nada desprezíveis para as vendas desse artigo.

Segundo mecanismo, mais sutil: a lógica de parada de su¬


cessos que agora prevalece nas empresas de moda. Como a época
requer uma racionalização dos custos, os produtores e os distri¬
buidores limitam suas coleções aos artigos que melhor vendem;
um estoque que gira será sempre preferido a um estoque exaus¬
tivo. Como permitem os sistemas informatizados, são geralmen¬
te os índices de giro dos estoques que determinam a recons¬
tituição dos lotes. Se uma roupa vender, será objeto de novas

Um livro muito interessante e objeto de controvérsia descreve as conseqüên-


cias do efeito Mateus na economia em geral: trata-se da obra de Robert Frank
& Philip J. Cook, The Winner-Thke-Alí-Sodety (Chicago: The Free Press), 2000.
James Beniger, "Does Tblevision Enhance the Shared Symbolic Environment?”,
em American Sociólogical Review, fevereiro de 1983, vol. 48, pp. 103-111.
As leis das tendências 183

encomendas; caso contrário, será abandonada. Esse processo


darwiniano de seleção das melhores vendas contribui para a
redução das escolhas propostas, e, portanto, para a articulação
da moda em torno de algumas tendências. Esse fenômeno é,
por exemplo, perceptível no setor da lingerie, em que é comum
a reconstituição dos estoques durante uma mesma estação. Pa¬
rece que existe uma onda do fio dental; essa crença provoca
numerosas encomendas desse artigo no começo da estação.
De fato, esse produto vende bem;^° mas vende tanto mais - e é
usado conseqüentemente ainda mais - quanto os outros mode¬
los são cada vez menos referenciados. O mecanismo da parada
de sucessos torna difícil qualquer tentativa de se subtrair às
tendências do momento. Além do mais, essas regras de gestão
são especialmente seguidas pelas redes têxteis, que no ano 2000
representavam 70% das compras realizadas na França. Esse
mecanismo se torna possível, e é levado até seu paroxismo,
pela gestão informatizada dos pedidos de encomendas e de fa¬
bricação. Mas, antes, já existia de forma simplificada, por meio
da lei do economista e sociólogo Viffedo Pareto. A maior parte
dos comerciantes ignora o nome desse homem, mas conhece
"esse princípio segundo o qual vários fenômenos sociais são
submetidos a um reparte na proporção 80-20. Transposto para
o setor da moda, esse cálculo contribui para privilegiar os 20%
de artigos que supostamente devem realizar 80% da receita.
Pouco importa que essa regra raramente seja verificada de ma¬
neira empírica; é considerada verdadeira a priori, e, portanto,
tem conseqüências tangíveis.

Última - e potente - alavanca do efeito Mateus: o esnobis-


mo, que, no mundo da moda, se sente em casa. Assim, as ten-

30 Em 2003, representava 20% das vendas de Sara Lee, líder do mercado das
roupas de baixo femininas, com 60% (JDD, 27-7-2003).
184 A fábrica das tendências

dências são alimentadas e amplificadas por milhares de classifi¬


cações, oficiais ou não, que determinam quem está in e quem
está out. Essas sutis hierarquias existem para qualquer bem ou
serviço que possa ser útil ao mundo da moda, desde os top
models até os maquiadores, passando pelos fotógrafos. Para um
iniciado, essas distinções existem da mesma maneira que as
castas na sociedade tradicional da índia; cada um tem consci¬
ência disso e faz questão de respeitá-las. Em razão dos agrupa¬
mentos seletivos, parece assim irracional, para não dizer im¬
possível, que um modelo seja obrigado a trabalhar com um fo¬
tógrafo que não seja do seu grupo; ninguém aceita romper essa
regra, por medo de ver assim sua avaliação cair. Assim, Inès de
la Fressange conta a maneira como Paolo Roversi, famoso fotó¬
grafo de moda, conseguiu que ela trabalhasse exclusivamente
com ele. Nessa época Roversi era muito mais procurado pelos
profissionais do que Inès de la Fressange. A cotação do fotógra¬
fo era tão alta que ele impôs essa modelo de que gostava a seus
principais clientes - na época, Cerruti -, assim como às revistas
com as quais ele trabalhava, essencialmente Marie Claire. Ele
conseguiu fazer com que Inès de la Fressange aceitasse realizar
sua série única de fotografias de nus para a revista Vogue Homme.
Um dia, descontente com uma série de fotos para a revista Vo¬
gue americana, ele mandou no lugar dos negativos uma fita
cassete de música. Difícil mostrar de forma mais direta onde se
situa o poder.^^ Ao contrário, quando Karl Lagerfeld repudiou
Inès de la Fressange, considerando-a indigna de continuar sen¬
do a imagem de Chanel, poucas maisons se arriscaram a em¬
pregar aquela que, havia pouco tempo, tinha sido a mais deseja¬
da das top models.

31
Inès de la Fressange, Profession mannequin (Paris: Hachette, 2002), pp. 79-81.
As leis das tendências 185

Agir apesar da incerteza

Para o homem da rua, o “concurso de beleza" da moda pode


constituir uma ocupação agradável, mas não decisiva. Não é a
mesma coisa para todos os profissionais que sobrevivem gra¬
ças a sua aptidão em saber antecipar com perspicácia os gostos
predominantes. Aliás, os jornalistas de moda representam uma
categoria particularmente exposta. Em seus comentários, é ex¬
tremamente raro encontrar críticas virulentas contra uma cole¬
ção. Essa ausência de comentários negativos é freqüentemente
interpretada como um sinal de dependência da imprensa de
moda em relação aos anunciantes. Para justificar essa interpre¬
tação, são feitas estranhas "polarizações". Assim, nessas seções
muito freqüentes na imprensa feminina em que são apresenta¬
dos os produtos da tendência do momento, os must have, é
comum encontrar em várias revistas as mesmas roupas. En¬
fim, quando uma coleção, por infelicidade, é criticada, uma es¬
tranha unanimidade geralmente acompanha essas diatribes. Foi,
por exemplo, o caso da coleção Balmain desenhada por Laurent
Mercier, embora representativa do talento desse estilista, lou¬
vado, por justos motivos, pouco tempo antes.

Mas o peso dos anunciantes não explica tudo. Os progra¬


mas de televisão consagrados à moda não demonstram um senso
crítico particularmente agudo; contudo, a dependência dessa
mídia em relação às marcas têxteis é fraca. Mas, geralmente,
tanto na televisão como na imprensa, quando se quer criticar
uma coleção, permanece-se silencioso a seu respeito. Um “es¬
quecimento" dessa natureza pode passar despercebido. Mas, de
qualquer maneira, os jornalistas de moda participam de um
“concurso de beleza"; eles devem antecipar as futuras tendên¬
cias, lisonjear as coleções bem-sucedidas e, a priori, estigmati¬
zar as outras. Um trabalho perigoso, dominado pela incerteza:
186 A fábrica das tendências

OS critérios que permitem distinguir uma boa coleção de uma


ruim são raros, precisamente porque mais uma vez se trata de
escolher não a melhor coleção, mas a que fará o maior sucesso.

Como nos mercados financeiros, essa situação de incerteza


provoca rumores. Um barulho "plausível” pode gerar polariza¬
ção: um consenso pode se criar em torno dele. Não é que a má
informação esteja substituindo a boa, é que qualquer informa¬
ção pode ser verdadeira. Há três anos, durante a guccimania,
uma redatora, para se divertir, lançou a idéia de que a época Tbm
Ford havia acabado. Pânico entre os interessados: na ausência
de qualquer sinal objetivo ao qual se referir, por que o concurso
de beleza não se concluiria com um resultado desconcertante?
Entre os profissionais da moda, fala-se muito, sobre tudo e sobre
nada. Secretamente, espera-se que o nada às vezes contenha o
tudo, dê uma indicação decisiva sobre as próximas tendências.
Por esse motivo ninguém despreza um rumor.

A sensibilidade aos mais diversos rumores anda a par com


a atenção dada à reputação. Sendo assim, uma mesma escolha
estilística pode ser apreciada ou desprezada conforme quem
tomou a decisão, da mesma maneira que alguns empresários
tranqüilizam os mercados. Em 2001, Clements e Ribero, dupla
de estilistas apreciados no meio, permitiu que Cacharei tivesse
um retorno, depois que eles assumiram a liderança estilística
dessa maison. Seu trabalho dava um amplo espaço ao famoso
estampado Cacharei, ao qual, uma estação antes, ninguém pres¬
tava atenção. A contratação deles foi suficiente para que a mar¬
ca ganhasse o concurso de beleza.

Obviamente, a longo prazo, a incerteza cansa e pode até se


revelar perigosa. Daí o desenvolvimento de certas estratégias
para enquadrar o resultado do concurso de beleza. No mercado
das tendências, os atores são, como na bolsa de valores, risk
As leis das tendências 187

adverse, hostis ao risco: eles tentam minimizar sua exposição.


Essa regra comporta apenas uma exceção: os recém-chegados
que tentam ser rapidamente conhecidos adotando posições ex¬
tremas. Se ganharem, vão receber a mais-valia de sua originali¬
dade. Ao contrário, se perderem, não vão receber de volta sua
aposta. É a razão pela qual numerosos “jovens criadores” são
levados a apresentar modelos extravagantes, para se distinguir
das posições majoritárias.

Aqueles que, ao contrário, têm uma posição estabelecida


no setor procuram minimizar os riscos. Nesse sentido, eles uti¬
lizam truques que lhes permitem diminuir suas eventuais per¬
das no concurso de beleza. A noção de “básicos" é a transposi¬
ção para o setor da moda dos “valores seguros" apreciados pe¬
los bolsistas. Como diz Christian Lacroix de maneira divertida,
o básico é "uma maneira de estar na moda sem fazer o esforço
da moda".^^ Com eles, o distribuidor está seguro de vender, e o
consumidor está confiante no fato de que não estará ridículo
com determinada roupa e que poderá utilizá-la durante várias
estações seguidas. É nesse ponto que se situa o trabalho dos
serviços de marketing: dar a impressão de tomar posições “ou¬
sadas” no mercado enquanto se comercializam produtos muito
mais comportados. A moda masculina é a encarnação dessa
duplicidade; as mais audaciosas coleções geralmente servem
para vender camisas brancas e azuis.

32
Christian Lacroix, Repères modes et textües, cit., p. 50.
Terceira parte
Por que é marcante?
6
0 espírito da moda é irracional?

Era uma vez um banco próspero. Surgiu o rumor de que estaria


quase à beira da falência. A multidão se precipitou para retirar
seu dinheiro. E o improvável aconteceu: esse estabelecimento,
embora sólido, foi levado à bancarrota devido ao conjunto de
tais retiradas. A moda é regida pelo mesmo mecanismo. Indiví¬
duos animados por crenças comuns influenciam o futuro das
tendências. Essa multidão parece ser irracional: ela adora um
dia o que desprezará em seguida; é capaz de ignorar um artigo
para depois melhor o celebrar. Tbdavia, analisado individual¬
mente, o comportamento de cada um desses protagonistas é
racional. Colocados em uma situação de incerteza em relação
às futuras tendências, eles seguem uma estratégia sem riscos
por medo de ser "ultrapassados”. Afinal de contas, procuram
conciliar um desejo de integração a um grupo com um desejo
de distinção.

Contudo, as “boas razões” desses atores são raramente per¬


cebidas; assim, eles são descritos como seres ilógicos ou
gregários. Tüdo se passa como se a fashion victim fosse dotada
dessa mentalidade pré-lógica que os antropólogos, no começo
do século XX, atribuíam aos bons selvagens. Nossos selvagens
1921 Por que é marcante?

comprariam qualquer coisa se pertencesse a uma marca, ou


ainda seriam felizes por pagar caro um objeto de luxo. Já que se
trata do setor da moda, seria normal que as aparências vences¬
sem a realidade. Sendo assim, o primeiro reflexo consiste em
atribuir aos indivíduos um comportamento irracional na sua
maneira de seguir a moda. Essa atitude é comum aos profissio¬
nais do marketing e a alguns teóricos; contudo, revela rapida¬
mente seus limites.

A marca reina sobre o produto? 0 exemplo do perfume


Antes de ceder seu nome à EOréal, os criadores Viktor e
Rolf haviam resolvido lançar "seu" próprio perfume. Tbdo esta¬
va pronto para que se tornasse um grande sucesso: o packaging
era caprichado, o frasco bonito, e a publicidade relativa ao pro¬
duto estava prestes a ser exibida nos pontos-de-venda, etc. Ape¬
nas um detalhe estava faltando: esse perfume não existia. Ne¬
nhum "extrato” havia sido criado para essa circunstância. Esse
happening incômodo destacava de maneira absurda a impor¬
tância concedida à forma em detrimento do conteúdo: a marca
permitiria, no setor da moda, vender tudo e qualquer coisa. Essa
convicção é particularmente forte no setor dos perfumes e cos¬
méticos. Da fato, dentro dos departamentos têxteis das marcas
de moda, os especialistas em marketing geralmente não têm
poder. Os diretores artísticos dominam a criação, e em geral
utilizam poucos estudos. Ao contrário, os perfumes e produtos
de beleza são geralmente explorados por grandes grupos -
Procter, EOréal, Unilever, etc. - acostumados aos mercados de
massa. A ideologia da marca domina esses profissionais; para
eles, é ela, e nada mais, que faz a distinção entre dois batons.
Esses utopistas, de tendência niilista, acreditam reinar em um
mundo em que o sonho imaterial teria se tornado uma realida-
0 espírito da moda é irracional? í 193

de, em que o produto não constituiria mais que um problema


secundário. Nesse contexto, o perfume constitui a encarnação
ideal do sonho do imaterial, uma tradução para o marketing da
poética baudelairiana. Para lançar um perfume, quantias consi¬
deráveis de dinheiro são investidas em tudo o que não é o pro¬
duto; em outros termos, no marketing, considerado no sentido
amplo. Se Angel, de Thierry Mugler, foi lançado em 1993 sem
muitos recursos, a maior parte dos perfumes são objeto de enor¬
mes despesas publicitárias. O grupo Kanebo pensa em lançar o
perfume Scent, da Costume National, com um investimento si¬
tuado entre 150% e 180% de sua receita provisional. A cada ano,
a LVMH Parflims investe 25% de sua receita em publicidade e
em sua presença nos pontos-de-venda. Quantias consideráveis,
justificadas pela importância dos desafios: J’adore, de Dior, um
sucesso, gerou em 2001 uma receita de 150 milhões de euros.^

O packaging é estudado com muita atenção; o frasco é


longamente pensado. Poucas fábricas podem produzi-lo; assim,
ele representa uma parte importante do custo final. O conteú¬
do do frasco representa uma pequena parte - menos de 10% -
do custo de produção do produto. Sua elaboração segue uma
abordagem particular, geralmente terceirizada. No começo, faz-
se em geral um brief, descrevendo o que o perfume deve ser.
Ele é enviado para algumas empresas que empregam os chama¬
dos "nez” (nariz), criadores encarregados de compor a mistura.
Às vezes, algumas marcas fazem a economia dessa fase; com¬
pram diretamente o produto acabado;^ dessa maneira, elas
mostram sua indiferença em relação ao conteúdo do frasco.

Antes do lançamento, a fragrância raramente é testada jun¬


to ao grande público. É senso comum que os consumidores

’ Le Figaro, 25-1-2002.
2 Elle, 24-3-2003.
seriam incapazes de falar do perfume, por falta de domínio do
vocabulário adequado. Ibdavia, no setor dos vinhos, em que a
verbalização também é árdua, as degustações são muito mais
freqüentes. Se esses procedimentos são raramente utilizados
para o perfume, é que se considera que a decisão de comprar se
baseia principalmente em outros fatores. Ao contrário, o marke¬
ting do perfume é objeto de estudos: são testados o nome, a
embalagem, a comunicação, etc. Nesse sentido, geralmente são
constituídos alguns focus groups, que juntam consumidores que
se encaixam no perfil-alvo, ou são fiéis à marca. Não se divulga
o nome de quem solicita o estudo. Essas investigações se ba¬
seiam em um postulado irracionalista, já que consideram que a
decisão de comprar é fundada, em última instância, em razões
inconscientes. A metodologia recorre a testes que supostamen¬
te contornam a racionalidade do indivíduo. Como explicaram
dois especialistas desse tipo de estudos em um artigo antológico,

[...] a maior parte das fantasias pertinentes e dos numerosos significa¬


dos simbólicos chaves sifuam-se logo abanco do nível da consciência
[...] e podem ser trazidos e relatados desde que métodos suficientemen¬
te indiretos sejam utilizados para ultrapassar as barreiras sensíveis.^

É por esse motivo que os autores preconizavam o uso de "técni¬


cas projetivas estruturadas”. A maior parte do tempo, trata-se
de pedir aos grupos que formulem associações de idéias, des¬
crevendo, por exemplo, o que aconteceria com a marca se fos¬
se uma cidade ou uma mulher. Essas associações de idéias
freqüentemente se materializam na forma de colagens; as "co¬
baias” justapõem imagens escolhidas em revistas.

^ Morris Holbrook & Elizabeth Hirschman, "The Experiential Aspects of


Consumption: Consumer Fantasies, Feelings, and Fun", em Journal ofConsumer
Research, n“ 9, set. 1982, pp, 132-140, apud Franck Cochoy, Une histoire du
marketing (Paris: La Découverte, 1999), p. 303.
0 espírito da moda é irracional? 195

É próprio do nosso imaginário poder se desenvolver sobre


qualquer tema; sujeitos de “boa vontade" sempre poderão asso¬
ciar imagens a um perfume ou a um outro produto. Aqui, a
técnica da colagem, com a utilização de várias revistas femini¬
nas, contribui para a automanutenção desse universo. Imagens
visuais inspiradas na publicidade ou em séries de moda vêm
ilustrar associações de idéias destinadas a essa esfera. Nesse con¬
texto, as novas idéias são raras; os testes, difíceis de interpre¬
tar; freqü ente mente, são instrumentalizados para resolver he¬
sitações internas. Assim, um estudo poderá servir para acomo¬
dar opções já decididas. É por esse motivo que esses testes são
tudo, menos infalíveis. Poucos entre os trezentos perfumes lan¬
çados a cada ano conseguem se impor. Além do mais, nota-se,
entre os que fazem sucesso, a presença de várias surpresas, para
as quais a marca não teve um papel decisivo; isso permite ques¬
tionar a representação do consumidor, que prevalece.

A-análise das vendas de perfume ressalta a presença de bom


senso; os primeiros lugares não são todos reservados a produtos
assinados por marcas de prestígio. Assim, o consumidor se reve¬
la menos labei conscious* e irracional do que se pensa. Como no
vinho, o rótulo nem sempre tem uma influência decisiva; alguns
gostos - ou odores, nesse caso - conquistam o favor do público.
O mercado do perfume também é submetido a tendências, em¬
bora os consumidores não sejam capazes de verbalizá-las.

Assim, entre os perfumes para homens e os destinados às


mulheres, algumas da melhores vendas são realizadas por mar¬
cas de moda pouco conhecidas, ou até que passam por dificulda¬
des. Para as mulheres, a presença no quarto lugar de Lolita
Lempicka,'^ marca têxtil discreta, pode surpreender; a presença

* Voltado para a marca de um produto.


‘‘ Esses números foram publicados no Guide de la Distribution Sélective -
Cosmétique Magazine, dezembro de 2002, p. 10.
196 1 Por que é marcante?

de Eau de Rochas, décimo terceiro das vendas, também é uma


surpresa. Enfim, existe obviamente "o” fenômeno Angel, de
Mugler, que permanece no topo da parada, enquanto essa mar¬
ca, por enquanto, encerrou sua existência têxtil.^ As mesmas
constatações podem ser feitas em relação aos perfumes masculi¬
nos. Marcas de prêt-à-porter um pouco esquecidas podem pro¬
por perfumes dinâmicos: Azzaro (terceiro), Cerruti 1881 (décimo
terceiro), Drakkar Noir, de Guy Laroche (vigésimo primeiro).

O consumidor é certamente sensível ao nome, ao frasco,


a tudo que pode contentar seu imaginário; mas ele sabe que
compra em primeiro lugar um cheiro. Prova do interesse por
certos tipos de perfumes, as tendências nesse setor são regidas
por ciclos bastante longos. Assim, alguns perfumes têm uma
existência muito longa, porque seu "cheiro” continua seduzin¬
do. É o caso, por exemplo, do N- 5 de Chanel; de Joy, de Patou;
ou de Arpège, de Lanvin. Como para o vinho, grandes famílias
existem, tendo cada uma seus partidários. Grande sucesso de
2002, Coco Mademoiselle é oriental, ligeiramente adocicado e
modernizado; essa família de perfumes sempre encontrou os
favores do público, já que reúne alguns grandes clássicos, uns,
dotados de uma nuança âmbar (Shalimar e Samsara), enquanto
outros se adornam de uma nota de noz-moscada ou de cravo
(Opium ou Nu, de Yves Saint Laurent). Contudo, são os florais
que representam o gosto médio em matéria de perfume.®

^ o grupo Clarins, proprietário da marca Thierry Mugler, decidiu interromper as


atividades de costura no começo de 2003. Em Journal ãu Jkxtile, 6-1-2003.
® Existem quatro grupos: os florais frescos, realçados por notas florais como o
muguet (N“ 19 de Chanel; Anais Anais); florais floridos, coração da perfuma¬
ria, que contêm flores naturais, rosas ou flores brancas (Joy, de Patou;
Contradiction, de Calvin Klein); florais aldeídicos, que contêm um composto
de síntese destacando algumas notas florais (N“ 5, de Chanel; Arpège, de
Lanvin); e florais suaves, fabricados a partir de flores capitosas, destacadas
por um toque de baunilha (Poison, de Dior; Noa, de Cacharei). E enfim, os
chipres, que compreendem a tangerina, divididos em três famílias: chipres
0 espírito da moda é irracional? 197

A idéia segundo a qual o "cheiro’’ do perfume importa não


parece audaciosa. Contudo, ela explica os sucessos e os fracassos
registrados nesse setor. A má venda do perfume C’Est la Vie, de
Lacroix, apresentado em um frasco estranho e cujo cheiro era
pouco sedutor, demonstra que a marca em si não faz vender.
Portanto, o consumidor tem um nariz e... uma racionalidade!

A beleza do preço

Outra concepção irracional do indivíduo; a que explica o


amor ao luxo pelo desejo secreto de consumir de maneira
ostentatória. Segundo essa representação, formulada no começo
do século XX pelo sociólogo Thorstein Veblen, os homens ado¬
ram provocar seus semelhantes exibindo sua capacidade de gas¬
tar. Tudo se passa como se as rivalidades entre os homens
doravante acontecessem por meio de objetos interpostos, ten¬
tando cada um gastar de maneira ainda mais inútil que o vizinho.

A moda se presta idealmente ao consumo ostentatório.


Portanto, ela é, segundo Veblen, a perfeita ilustração da "cultu¬
ra pecuniária’’, em que um objeto extrai sua beleza de seu pre¬
ço. Essa lógica explicaria facilmente nossa preferência pelas
marcas. Uma roupa de grife ofereceria assim uma preciosa al¬
ternativa ao bom preço: por que gastar pouco quando a moda
nos oferece tantas ocasiões de dilapidar nosso dinheiro à vista
de todo mundo. Sendo assim, o indivíduo seria uma criatura
absurda. Dessa maneira, a saia, segundo Veblen, teria três "qua¬
lidades": "Custa caro, impede sempre os movimentos e proíbe

frutados, que contêm notas de frutas amarelas (Mitsouko, de Guerlain;


Femme, de Rochas); chipres amadeirados, que associam a rosa com notas de
madeira (Miss Dior; Vol de Nuit, de Guerlain); e os chipres frescos, acompa¬
nhados de notas verdes ou hesperideas (Eau, de Rochas; Ô, de Lancôme).
Por que é marcante?

qualquer exercício útiV’7 Os ricos não têm o monopólio da in¬


sensatez. Nenhuma classe da sociedade, considera Veblen, "mes¬
mo que se encontre na mais abjeta pobreza",® proíbe a si mes¬
ma qualquer hábito de consumo ostentatório. É por esse moti¬
vo que o sistema mercantil oferece, a todas as rendas, boas
ocasiões de gastar inutilmente.

Muito distante das teorias de Veblen, Georg Simmel consi¬


dera, por sua vez, que o indivíduo é racional. Com certeza, ele
tem vontade de seguir a moda, mas não deseja, contudo, des¬
perdiçar seus recursos. Assim, Simmel se permite profetizar:
"Quanto mais depressa a moda muda, mais o preço das coisas
deve baixar; quanto mais o preço das coisas baixa, mais convi¬
da os consumidores e obriga os produtores a trocar rapidamen¬
te de moda”.® Essa regra descreve a realidade que conhecemos:
a aceleração dos ciclos da moda foi acompanhada por uma de¬
mocratização das tendências. Grandes marcas, como Zara ou
H£tM, simbolizam esse fenômeno de baixa tendencial dos pre¬
ços da moda: se o setor hoje tem esse sucesso, não é porque os
indivíduos adoram gastar, mas simplesmente porque ele se po¬
pularizou.

Um estudo elaborado por Caroline Müller^° pretende de¬


monstrar que Simmel tem mais razão que Veblen. Esse traba¬
lho recusa a idéia de uma "beleza pecuniária": os objetos de luxo
são submetidos aos mesmos princípios gerais da economia. Se
quiserem aumentar sua divulgação, precisam diminuir seu pre¬
ço. A operação não é cômoda para as marcas que construíram
sua reputação sobre o fato de serem altamente caras. É por

^ Thorstein Veblen, Théorie ãe la classe de loisir (Paris: Gallimard, 1970), p. 113.


® Ibid., p. 57.
® Georg Simmel, “La mode”, em La tragédie de la culture, cit., pp. 121-122.
Caroline Muller, em Le luxe en France: du Siècle des Lumières ã nosjours (Paris:
Association pour le Développement de 1'Histoire Économique, 1999).
0 espírito da moda é irracional? (199

esse motivo que o preço desses artigos obedece a uma dupla


obrigação: democratizar-se sem dar a impressão de liquidação.

Assim, em mais de meio século, de 1930 a 1997, o preço de


certos produtos de luxo não parou de diminuir. Exemplo: o pre¬
ço do frasco de Joy (Patou) passou do valor de 100 F em 1935 a
42 F em 1994, em francos constantes. Em compensação, o
preço de um frasco de N- 5 (Chanel) permaneceu estável du¬
rante esse período. O lenço Hermès, por sua vez, viu seu valor
oscilar, em francos constantes, de 100 F em 1958 a 130 F em
1993, com um mínimo de 75 F em 1974 e um máximo de 150 F
em 1963. Ainda mais surpreendente: as vendas do famoso len¬
ço parecem ser uma função crescente de seu preço de venda,^^
o que pareceria corroborar à primeira vista a regra de Veblen
segundo a qual os indivíduos, em seus gastos de luxo, se entre¬
gam a um verdadeiro consumo ostentatório.

O lenço Hermès, entretanto, não é unicamente um objeto


de luxo, é também um produto submetido às eventualidades da
moda. Ora, os períodos em que seu preço aumentou são aqueles
em que a demanda para esse modelo era particularmente alta;
com isso, ele suportava preços de venda elevados. Nos anos 1960,
considerado comum, ele foi abandonado pela clientela rica que
havia assegurado sua reputação, de Grace Kelly à rainha da Ingla¬
terra. As mulheres corajosas que ainda ousavam utilizá-lo o en¬
rolavam em volta do pescoço.O lenço se tornou out, com

" Jacques Marseille, “Le luxe est-il cher?”, em Le Luxe en France: du Siècle des
Lumières à nos jours, cit.
Caroline Müller (Le luxe en France: du Siècle des Lumières à nos jours, cit.)
distingue três períodos. Entre 1962 e 1974, o valor do lenço passou de 150 F
a 75 F, e as vendas se estabeleceram em cerca de 240 mil exemplares por ano.
Depois, de 1974 a 1989, o valor do lenço, sempre em francos constantes,
passou de 75 F a 130 F, e as vendas aumentaram 30% por ano até atingir o
número recorde de 1,123 milhão de exemplares por ano. Enfim, de 1990 a
1993, o preço do lenço “estagnou" em 130 F e as vendas caíram de 1,123
milhão a 640 mil exemplares por ano.
"La dynastie Hermès", em Elle, 26-1-1987, pp. 66-73.
Por que é marcante?

nomes de modelos um pouco defasados em relação ao período


que se seguiu aos acontecimentos de 1968: Brides de Gala, que
desde então se recuperou (o best-seller, com mais de 700 mil exem¬
plares vendidos até hoje), Les Clés, Voitures à Transformation ou
Éperon. Sua má venda da época não parece ser imputável a um
preço democrático demais.

Um produto de luxo deve defender sua categoria; um pre¬


ço de venda qualquer não lhe convém. É por esse motivo que a
essência do perfume N“ 5 é sempre oferecida por um preço
elevado, enquanto a eau de toilette é vendida ao mesmo preço
de outros perfumes da concorrência. Um estudo inglês corro¬
borou essa tendência à “democratização”: há quase um século,
o preço de uma mala Vuitton ou de um relógio Cartier aumen¬
tou menos que o caviar!

A tendência geral prevista por Simmel parece ter se verifi¬


cado; à medida que os artigos considerados de luxo se torna¬
ram moda, seu preço sempre diminuiu. Antigamente, a Vuitton
criava a cada ano um pequeno número de novos modelos; hoje,
a bolsa Vuitton Murakami - modelo tradicional personalizado
por um artista que se inspirou nos mangás - subsistirá apenas
durante algumas estações. Simultaneamente, várias marcas pre¬
tendem ser marcas de luxo. Assim, a Victoria Secret pôs à ven¬
da com seu nome uma coleção de jóias de 15 milhões de dóla¬
res. É pouco provável que essa marca, que habitualmente pro¬
põe lingeries comuns, consiga ser considerada uma marca de
luxo. Mas a anedota mostra que o efeito Veblen ainda tem seus
partidários, para os quais a perspectiva do desperdício é sufi-

Segundo esse estudo, o preço de uma mala Vuitton e de um relógio Cartier


aumentou 1,7% por ano desde 1912 e 1921. Essa alta é inferior à de outros
produtos de luxo, como o caviar, que aumentou 2,3% por ano desde 1912, ou
a caneta Parker, que aumentou 2,2% por ano desde 1927. Em The Economist,
26-12-1992.
0 espírito da moda é irracional? 201

ciente para atrair o cliente. Numerosos são os que se recusam a


aceitar a idéia segundo a qual a moda seria regida por compor¬
tamentos racionais.

0 marketing da moda e seus intelectuais prediletos

Nos meios da moda, Georges Perec observa, em Les choses:

[...] “geralmente situados, de maneira quase mitológica, à esquerda,


mas mais facilmente definíveis pelo [...] culto da eficiência, da
modernidade, [...] a tendência bastante demagógica à sociologia,
[uma opinião domina: aquela segundo a qual] nove décimos das
pessoas seriam burras, apenas capazes de louvar em conjunto qual¬
quer coisa [...].^^

Essa descrição com humor sarcástico, em que o sociólogo - a


outra profissão de Perec - aparece oculto atrás do romancista,
permanece atual. Vários profissionais de marketing, de pesqui¬
sas ou de publicidade vêem com condescendência essas “pesso¬
as que acreditam nas marcas”,^® essa humanidade crédula, pres¬
tes a encontrar um delicioso "cheiro de nozes" na gordura da
carne cortada em pedaços. Ao mesmo tempo, esses homens do
"meio" têm um sentimento curioso, quase preocupante, que os
torna muito sensíveis aos cartazes, aos slogans e... às marcas.

Os especialistas de marketing de moda evidentemente não


escapam desses sentimentos contraditórios. Por um lado, vêem
o consumidor como uma criatura irracional, obcecada pela for¬
ma e que despreza o fundo. É o que resume um dos gurus ameri¬
canos dessa disciplina quando incita as empresas a definir sua
irrational selling proposaV^ (proposição irracional de venda). Se-

15
Georges Perec, Les choses (Paris: J'ai Lu, 1955), p. 93.
16
Ibid., p. 110.
17
Al Ries & Jack Trut, Les 22 lois du marketing (Paris: Dunod, 2003).
Por que é marcante?

gundo eles, o sucesso de um produto depende do que eles conce¬


bem: o packaging, o logotipo, a publicidade e, claro, a marca; as
qualidades intrínsecas desse produto ficam em segundo plano.
Sua convicção é reforçada pela dificuldade que demonstram,
como qualquer não-especialista do setor têxtil, em entender a
diferença de preço que pode separar uma roupa de marca do
modelo que nela se inspira, mas que é vendido em uma rede
especializada. Diferentemente dos criadores de produtos, não
percebem as nuanças de matéria, de montagem ou de corte. Se¬
gundo eles, é o marketing, em outros termos o trabalho deles,
que justifica a diferença de preço. Essa convicção é tão presente
neles que, trabalhando com marcas o tempo inteiro, quase todos
se tornam profundamente labei conscious. Sua profissão consis¬
te em determinar o tipo de comprador procurado por uma mar¬
ca ou um produto; nessas condições, é difícil para eles romper
com os princípios que eles mesmos estabeleceram.

Essa representação do indivíduo diante da moda e das


marcas freqüentemente leva a aderir a uma concepção
determinista do ser humano. Parece retratar um homem mani¬
pulado, sem saber, por mecanismos que o ultrapassam e sobre
os quais ele não tem domínio. Sendo assim, a sociedade de con¬
sumo transformaria os indivíduos em sujeitos dóceis, conde¬
nados a reproduzir uma lógica de classe ou a alimentar o siste¬
ma. É por esse motivo que, em relação ao setor da moda, os
pensadores mais conhecidos são dois teóricos do irracionalismo:
Jean Baudrillard e Pierre Bourdieu. Esses autores são freqüente¬
mente evocados fora, mas também dentro do meio. Surpreen¬
dentemente, suas teses são freqüentemente citadas por jorna¬
listas, consultores ou marqueteiros que trabalham no setor da
moda. Assim, Citizen K, revista especializada lida pelos fashio-
nistas, consagrou um longo artigo elogioso a Jean Baudrillard,
entre uma reportagem sobre Laetitia Casta e um artigo sobre a
0 espírito da moda é irracional? 203

volta do New Age. As teorias de Pierre Bourdieu são freqüente-


mente evocadas nos Inrockuptibles ou Tbchnikart, dois títulos
lidos pela profissão. De maneira mais geral, todos os livros de
management que são endereçados aos profissionais da moda
apresentam as teorias dos dois autores. Esses livros, escritos a
maior parte do tempo por práticos que dividem o tempo entre
o conselho às empresas e o ensinamento, apreendem o "siste¬
ma dos objetos” de Jean Baudrillard ou a “estratégia da distin¬
ção" de Pierre Bourdieu como duas construções indispensáveis
para a compreensão da moda e do luxo. Assim, um dos manu¬
ais apresenta esses autores da forma seguinte; "Uma corrente
de pensamento muito rica se constituiu com base nessas análi¬
ses, essencialmente sustentada pelos estudos de Jean Baudrillard
e Pierre Bourdieu. Prolongou-se, para aplicações muito racio¬
nais, pelas definições de 'socioestílos'”.^®

Pierre Bourdieu e Jean Baudrillard eram particularmente


lidos quando a geração que boje está no comando no mundo
da moda ainda estudava. Por exemplo, esses nomes são familia¬
res para Miuccia Prada, criadora da marca do mesmo nome e
que tinha 20 anos no começo dos anos 1970. Hoje, ela não rene¬
gou suas convicções da juventude e financia colóquios, com a
participação de intelectuais, sobre temas como o isolamento
ou a globalização. Durante uma dessas reuniões, discursou Tbni
Negri, a cabeça pensante da ultra-esquerda, que se tornou teó¬
rico da antiglobalizacão, cuja leitura Miuccia Prada recomen-

Alain Petitjean, Le luxe ou Vécho du désir, cit., p. 19. Outros exemplos podem
ser escolhidos em um dos raros manuais consagrados ao marketing do luxo:
Luxe... stratégie, marketing (Paris: Economica, 1997), de Danièle Allérés, diretora
do Dess Gestion des Industries du Luxe et des Métiers de l'Art. Pode-se
igualmente consultar o livro de Marie-Claude Sicard, que ensina no Celsa
(École des Hautes Études en Sciences de Plnformation et de la
Communication) e aconselha empresas no setor da moda. Cf. Marie-Claude
Sicard, Luxe, mensonge et marketing (Paris: Village Mondial, 2003).
Por que é marcante?

da}^ Foi igualmente por esse motivo que a Prada organizou em


Paris, em outubro de 2000, um desfile muito controvertido na
sede do Partido Comunista Francês (PCF), na Place du Colonel
Fabien. "À espera de que o PCF volte a ser moda, viva a moda
no PCF”,^° ironizava então o Liberation. A duplicidade de Miuccia
Prada entre esquerdismo chique e pós-capitalismo se encontra
também na pessoa de seu arquiteto, Rem Koolhas. Esse holan¬
dês, professor em Harvard, recebeu em 2000 o Pritzker Prize,
considerado o Prêmio Nobel de arquitetura. Junto a Miuccia Prada,
ele tem um papel parecido com aquele que Oliviero Tbscani ha¬
via representado para Luciano Benetton, meio artista em domi¬
cílio, meio bobo da corte, suscetível de dizer em voz alta o que
seu mecenas pensa baixo. Esse criador talentoso concebeu
notadamente a última loja Prada em Nova York. Mas também é
autor de várias provocações inspiradas por Baudrillard, Marcuse
ou Houellebecq. Com o slogan federalista “Fuck context!”, Koolhas
pretende, em uma postura obviamente irônica, nivelar as
especificidades locais para transformá-las em uma ampla galeria
mercantil. Foi por esse motivo que se interessou pela comercia¬
lização do espaço público, patenteando o conceito de “shop-
ping™”,^^ que resume com o slogan “lene-Euro-Dólar".

Mas Miuccia Prada não é um exemplo isolado. Existe uma


geração de decisores no mundo da moda cuja ação é explicita¬
mente inspirada nos pensadores críticos do consumo: entre
eles, a Campers e a Diesel constituem as duas mais evidentes
ilustrações. Essas duas empresas se destacaram, com um suces¬
so muito mais marcante para a segunda, explorando a veia de
um "esquerdismo consensual”. Assim, os calçados Campers fo-

19
Liberation, 14-9-2002.
20
Líbération, 12-10-2000.
21
TM: Trade Mark (marca registrada).
0 espírito da moda é irracional? 205

ram na contramão dos da Nike, ao dar aos indivíduos o seguin¬


te conselho: "Walk, ãon't run!”. Em relação à Diesel, utilizou cam¬
panhas cheias de ironia em que um continente africano
superdesenvolvido viria a ajudar um Ocidente empobrecido. O
sociólogo Daniel Bell constatava, para deplorar, que a publici¬
dade e a alta-costura haviam se tornado formas experimentais
de rebelião.Sua profecia tomou igualmente a forma de uma
postura que serve para vender objetos.

O envolvimento de Bourdieu e Baudrillard em práticas si¬


tuadas nos antípodas de seus engajamentos políticos suscita
situações involuntariamente cômicas. Um manual consagrado
aos managers do luxo é provavelmente o último lugar em que
Bourdieu teria gostado de ver seu nome citado. No início, pou¬
cos universos eram tão estranhos quanto o da moda para esse
pensador, para quem a sociologia tinha a vocação de aliviar a
miséria do mundo. A estratégia da distinção tem como objetivo,
para Bourdieu, denunciar o caráter artificial dos julgamentos
de gostos. Contrariamente ao que pensam, os homens não ex¬
pressam suas preferências; na verdade, eles reivindicariam o
-fato de serem oriundos de determinada classe social. Portanto,
a sociologia de Bourdieu tem por finalidade revelar aos indiví¬
duos a verdade sobre suas predileções; uma vez desinibidos,
eles poderiam se tornar lúcidos e rejeitar essas lógicas de repro¬
dução de classe. É por esse motivo que há algo irônico no fato
de esse autor ser citado na literatura gerencial, cuja função é
melhorar a indústria da distinção... Para Baudrillard, o parado¬
xo é da mesma natureza. Seus livros denunciam o domínio do
consumo e dos objetos em nossa existência; a obediência às
tendências simboliza a alienação contra a qual ele se manifes-

22
Daniel Bell, Les contradictions culturelles du capitalisme (Paris: Presses
Universitaires de France, 1979), pp. 30-31.
Por que é marcante?

ta. Então, seria a moda um universo masoquista que adoraria


honrar os autores que a detestam? Claro que não. Mas ela en¬
contra nessas teorias a confirmação de certas convicções do
setor. Tildo se passa como se os livros de sociologia, aqui repre¬
sentados pelas obras de Bourdieu e Baudrillard, se prestassem a
ser manuais de civilidade para vários atores no meio do
marketing, da moda ou da publicidade. Essas citações não são
fruto do acaso: os mecanismos, cujos efeitos para a sociedade
como um todo são percebidos por esses dois autores, na reali¬
dade têm uma eficiência limitada em setores em que o esno-
bismo se tornou uma ideologia profissional, como é o caso des¬
sas pequenas tribos.

Para considerar que a estratégia da distinção rege o com¬


portamento dos indivíduos, para acreditar que o ser humano é
alienado pela marcas e pelos objetos, basta aos profissionais da
moda encarar a sociedade como se fosse uma reprodução, em
tamanho maior, do meio que conhecem. Finalmente, eles cons¬
tituem, junto com alguns críticos do capitalismo, os indivíduos
mais obcecados pelo domínio das marcas em nosso mundo.

O mundo da moda se destaca pela atenção que dá às dis¬


tinções. Desde o lugar ocupado em um desfile até a preocupa¬
ção de algumas maisons com a clientela aristocrática, esse uni¬
verso prolonga de forma artificial o mundo das castas. Nesse
contexto, qualquer pretexto pode servir para materializar a luta
pelos lugares. Pode se tratar de um acessório oferecido por uma
marca a alguns VIPs (yery important persons). Não importa o
objeto, claro, desde que seja distribuído com parcimônia. Com
base nesses princípios, algumas marcas chegaram a distribuir
certos objetos exclusivamente para seus desfiles. Apenas os
apparatchíks têm os olhos necessários para identificar esse reli¬
cário quando o vêem utilizado por um de seus congêneres; o
0 espírito da moda é irracional? ( 207

comum dos mortais geralmente ignora que, nesse caso preciso,


a posse equivale à propriedade.

Para esse universo onde a estratégia da distinção é uma


identidade comum, parece plausível que uma sociologia do es-
nobismo possa ser considerada a sociologia em si. Porque os
profissionais da moda têm, em relação ao esnobismo, a grati¬
dão que podemos ter em relação a uma mãe nutridora. Seu
erro é acreditar que o domínio do esnobismo se aplica à socie¬
dade inteira. Eles compartilham essa convicção com Baudrillard,
que aplica ao nosso mundo, em sua globalidade, mecanismos
que na realidade dominam apenas as fashion victims. São elas, e
não o conjunto dos indivíduos, que vivem sob a "ditadura total
da moda".^^ Da mesma maneira, quando avalia que

[...] a escolha fundamental, inconsciente, automática do consumi¬


dor consiste em aceitar o estilo de vida de determinada sociedade
(portanto, não é mais uma escolha! - a teoria da autonomia e da
soberania do consumidor está assim desmentida),^"*

mostra uma confiança ilimitada na capacidade do marketing e


-das tendências de manipular os indivíduos. Para sua maior in¬
felicidade, as marcas não têm o poder de impor um estilo de
vida aos consumidores; ao contrário, elas vivem sob a constan¬
te ameaça que representam para elas as decisões desses atores
autônomos.

Bourdieu, o modo de dominação da moda


A explicação que Pierre Bourdieu dá sobre a moda é famo¬
sa tanto junto a especialistas quanto junto a neófitos. Contudo,

Jean Baudrillard, La société de consommation (Paris: Denoèl, 1970), p. 87 [edi¬


ção em português: A sociedade de consumo (Rio de Janeiro: Elfos, 1995)].
Ibid., p. 95.
208 ) Por que é marcante?

ela não consegue retratar a propagação das tendências no seio


da sociedade. Segundo essa análise, os gostos obedecem, no seio
de uma sociedade, a uma "difusão vertical”. Assim, parte da po¬
pulação, privilegiada em matéria de capital cultural ou de capi¬
tal social, imporia suas escolhas, por meio do mimetismo, ao
resto da população. Sendo assim, a confecção das tendências
estaria submetida ao arbítrio de um habitas de classe. O habitas
constitui uma das noções-chave da sociologia de Bourdieu, e
designa as características que uma classe, sem que o saiba, se
condena a reproduzir. Assim, a fábrica das tendências refletiria
a divisão da sociedade em diferentes estratos sociais, cada um
dos quais possui suas maneiras de ser e seus estilos de vida.

A partir daí, segundo Bourdieu,os criadores de moda


pertencem necessariamente às classes dominantes: eles podem
provir delas ou aderir a elas. Essa teoria das tendências se ba¬
seia em um conceito "irracionalista” do costureiro. O criador
de moda, para Bourdieu, não é um calculador racional: não
cria aproximando uma demanda de uma suposta oferta. Por
um lado, ele cria o qae ele e; seu lápis segue seus gostos, trai de
certo modo a posição que ele ocupa no espaço de produção.
Essa teoria supõe situar precisamente cada um dos protagonis¬
tas do campo. É a razão pela qual Bourdieu freqüentemente
pensa com a ajuda de antagonismos. Assim, ele opõe Balmain,
costureiro de "direita”, que tem uma concepção conservadora
da moda, propondo roupas qualificadas de luxuosas, exclusivas,
prestigiosas ou tradicionais pela imprensa, a Scherrer, criador
de "esquerda”, "superchique, hitsch, humorístico”.^® Ou ainda
distingue Dior, em 1976, de Ungaro e Paco Rabanne (que Chanel

Pierre Bourdieu, "Le couturier et sa griffe: contribution à une théorie de la


magie", em Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n° 1, janeiro de 1975, p. 11.
26
Pierre Bourdieu, Questiona de sociologie (Paris: Minuit, 1983), p. 198 [edição em
português: Questões de sociologia (Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983)].
0 espírito da moda é irracional? 20

chamava "o metalúrgico”). Para ser moderno, ele explica,


Rabanne não precisa se esforçar; precisa apenas ser o que é,
criar segundo sua natureza. Assim, Bourdieu encontra no esti¬
lo de decoração interior das casas dos criadores a respectiva
posição deles dentro do campo. Na casa de Balmain, é o gosto
pelo antigo que predomina; Givenchy deixa um espaço para o
moderno, no seu classicismo; enquanto Cardin defende uma
concepção moderna do barroco. Na outra extremidade se en¬
contram a casa de Courrèges, resolutamente moderna, ou a de
Hechter, dominada por uma negligência estudada e um
despojamento calculado.

Segundo Bourdieu, um costureiro consegue traduzir em


roupas um capital social e cultural determinado. Ele transpõe
nas suas criações de roupas os gostos da classe social à qual
pertence, a preocupação com a distinção social dessa classe. É
por esse motivo que Bourdieu insiste no capital relacional do
qual usufrui a maior parte dos criadores, sempre apresentados
em função das influentes maisons em que trabalharam antes: o
que está em jogo são menos as competências técnicas do cria¬
dor do que sua competência simbólica em mobilizar seus seme¬
lhantes dentro e fora do campo. Dentro, porque ele deve ser
reconhecido por seus pares e pelos que contam (jornalistas,
críticos de moda, etc.); fora, já que o público que ocupa o mes¬
mo lugar que ele no espaço social o reconhece, graças a esse
artifício, como sendo um de seus membros.

O sistema elaborado por Bourdieu deve supostamente re¬


tratar tendências. Segundo esse sociólogo, pouco importa seu
conteúdo; ao contrário, o que conta é a posição social daquele
que as lança. E como o que as cria - o costureiro - apenas refle-

27
Pierre Bourdieu, "Le couturier et sa griffe: contribution à une théorie de la
magie”, cit., p. 11.
210 ) Por que é marcante?

te o gosto da classe social a que pertence... Essa concepção tem


o mérito de destacar o caráter absolutamente arbitrário das ten¬
dências. Nada predestina a camisa de manga curta a ser repre¬
sentante do comércio; durante dois verões, em 2000 e 2001, os
jovens dândis foram até aconselhados a usar uma. Contudo, é
difícil entender como a moda pode ao mesmo tempo distinguir
as classes sociais e se difundir dentro delas. Admitamos que a
roupa seja um dos componentes mais bem acabados dos "esti¬
los de vida [que] são os produtos sistemáticos do hahitus”}^ Um
exemplo: o tailleur Chanel pode ser apresentado como um dos
componentes do habitus da burguesia. Segundo essa represen¬
tação da realidade social, o mundo é o palco de vários fenôme¬
nos miméticos: dominantes que procuram se distinguir, domi¬
nados que tentam se parecer com eles. Nessa concepção verti¬
cal da difusão das modas, "um emblema da classe (em todos os
sentidos do termo) enfraquece quando perde seu poder distin¬
tivo. [...] Quando a minissaia chegou às casas dos operários de
Béthune, voltamos à estaca zero".^® Contudo, as tendências não
se propagam mais exatamente dessa maneira. Conscientemen¬
te ou não, os indivíduos não imitam mais as modas promovi¬
das pelas classes dominantes.

A roupa não faz a classe

Segundo Pierre Bourdieu, as tendências são então instru¬


mentos utilizados de maneira inconsciente pelas classes domi¬
nantes em sua estratégia de dominação. É igualmente sem per¬
ceber que as classes dominadas tentam recuperar essas ten¬
dências. Essa visão das coisas pôde ter uma certa popularidade

Pierre Bourdieu, La distinction (Paris: Minuit, 1969), p. 192.


Pierre Bourdieu, Questions de sociologie, cit., p. 201.
0 espírito da moda é irracional? 211

no mundo da moda porque se sabe que a "diferença" está no


coração da escolha das tendências.

Para Christian Lacroix, aí se encontra o coração de seu


trabalho. "Quero continuar a acreditar que a diferença perma¬
nece sendo a chave de tudo", ele escreve. "[...] Universalidade,
atemporalidade e eternidade são palavras que proíbo na paisa¬
gem da moda. O efêmero, o particular, o único é que são os
melhores sinais da identidade. Tbm Ford diz a mesma coisa
quando explica: "A novidade é meu trabalho. A cada estação, no
início da coleção, começo por listar o que não quero mais ver.
Em seguida me pergunto do que vou ter vontade".^^ Galliano
conclui: "A moda é antes de tudo uma arte da mudança".^^

Essa vontade de renovação é consubstanciai ao fenômeno


da moda. Hoje, ela não se expressa de maneira mais forte para
Tbm Ford ou Christian Lacroix do que antes para Paul Poiret.
Este confessava que a moda de amanhã sempre lhe parecia mais
bonita do que a de hoje, e acrescentava: "Assim que um governo
nasce, penso em derrubá-lo para formar outro".^^ Quando Poiret
foi aos Estados Unidos para lançar sua grife, começou a iniciar as
mulheres do Novo Mundo nas tendências, que, para seu gosto,
elas ignoravam demais. Com sua habitual misoginia, ele explicou
a elas que, se a fidelidade é, para o belo sexo, uma qualidade 'bas¬
tante rara", em compensação, em termos de moda, é uma roti¬
na... Ora, a "rotina é detestável; a moda requer mudança”.

Obviamente, acredita-se que esse tipo de estratégia de dis¬


tinção seja desprovido de qualquer significação social: nenhum

Christian Lacroix, "Faits de mode", em Repères modes et textiles, cit., p. 53.


LExpress, 1-3-2001, p. 24.
LExpress, 2-1-2003.
Paul Poiret, En habillant Vépoque, cit., p. 208.
34
Ibid., p. 209.
Por que é marcante?

costureiro considera a mesa sobre a qual desenha como o ins¬


trumento de dominação de uma classe por outra. Segundo
Bourdieu, essa denegação do caráter social da moda tem como
autores

[...] os que iludem [porque] são iludidos, e iludem tanto mais quanto
mais são iludidos; são ainda mais mistificadores quanto mais são
mistificados. Para entrar nesse jogo, é necessário acreditar na ideo¬
logia da criação, e, quando se é jornalista de moda, não é bom ter
uma visão sociológica da moda.^®

Contudo, a arbitráriedade da criação de roupas não escon¬


de um mecanismo de classe. Se a moda requer, para se tornar
plenamente legítima, uma sanção social, em compensação ela
não é produzida por um mecanismo de classe. Os antagonis¬
mos elaborados por Bourdieu em 1976 seriam particularmente
difíceis de ser encontrados hoje. A idéia segundo a qual os “do¬
minados” procurariam imitar os "dominantes” em seu estilo de
roupas parece particularmente datada. A moda parece mais ser
elaborada a partir de várias influências, algumas das quais não
provêm das porções mais favorecidas da sociedade. Da mesma
forma, seria possível dizer que Dior hoje é mais conservador
que Gucci ou Prada? Seria o contrário? Onde situar a direita e a
esquerda no mundo da moda? Em Lacoste, que veste os jovens
dos subúrbios, ou em APC, que seduz os publicitários parisienses?
A difusão vertical dos gostos, o fato de os estratos inferiores
copiarem as camadas sociais superiores, não descreve a reali¬
dade das modas.

Philippe Besnard e Cyril Grange^® destacaram que os no¬


mes escolhidos pelos “mundanos” - por exemplo, Sixtine ou

35
Pierre Bourdieu, Questions de sociologie, cit., p. 205.
36
Philippe Besnard & Cyril Grange, “La fin de la diffusion verticale des goúts?”,
em LÍAnnée Sociologique, n“ 43, 1993, pp. 269-294.
0 espírito da moda é irracional? 213

Quitterie, na época em que a pesquisa foi realizada - não anun¬


ciam os que serão depois escolhidos em escala nacional. No
setor do vestuário, Nicolas Herpin^^ mostrou que as disparidades
entre categorias sociais aumentaram entre 1956 e 1984. A idéia
segundo a qual as modas se difundiam por etapas desde os mais
ricos até os mais pobres era assim desmentida pelos fatos. Por
razões que ultrapassam o setor do vestuário, a tabela hierárqui¬
ca não parece mais ser adequada para descrever nossa socieda¬
de. Para a moda adolescente, a situação é praticamente inverti¬
da: todos os sinais de marginalidade são obviamente privilegia¬
dos. "Mauricinho e patricinha” é o estilo de uma ínfima mino¬
ria de teenagers, e, certamente, não são eles que todos os outros
procuram imitar. A maior parte dos jovens são fascinados por
aqueles que encarnam a cultura urbana, quer sejam skatistas,
ravers ou rappers. Essa atitude se reduz na maioria dos casos
com a entrada no mundo do trabalho. Contudo, o estilo de vida
da grande burguesia não faz mais sonhar: pode-se cobiçar sua
riqueza, mas certamente não suas roupas. Doravante, uma
marca deve, para voltar a ser desejável, vulgarizar-se.

Em matéria de roupas, o inconsciente tem um papel mui¬


to pequeno. Jovens e menos jovens seguem, na sua maneira de
se vestir, uma estratégia perfeitamente pensada de transfor¬
mação de si. De manhã, diante de seu guarda-roupa, cada um
sabe o que é ou o que quer ser. Sendo assim, a relação de nossos
contemporâneos com a moda pode se explicar sem que seja
necessário comparar as fashion victims a zumbis incapazes de
entender o sentido de seus atos.

37
Nicolas Herpin, "Uhabillement: une dépense sur le déclin", em Économie et
Statistique, n“ 192, 1986, pp. 65-74.
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7
A moda para o indivíduo
se tornar ele mesmo

Para evocar as “boas razões" pelas quais nossos contemporâ¬


neos seguem a moda, é necessário pôr entre parênteses nossos
julgamentos de valor. Qualificar os fashionistas de seres irracio¬
nais é uma maneira de condenar as tendências e os que as se¬
guem. Devemos ser a favor ou contra a moda? Dificil decidir.
Aliás, alguns não escolhem: eles se posicionam contra a moda,
muito contra. Ilustração caricatural: Madonna. Em seu disco
American Life, a cantora denuncia o império da moda, a ditadu¬
ra da beleza e das tendências. Infelizmente, o mundo no qual
vivemos não é o que cantamos: assim, Madonna pode criticar
um sistema do qual ela constitui uma peça essencial.

Para entender as razões que nos incitam a seguir a moda, é


necessário tentar entender antes de tentar julgar. Claro, em
certos aspectos, a relação com as roupas pode parecer absurda.
A confusão durante os saldos, a obsessão pelas tendências dão
uma representação gregária e narcísica de nossos contemporâ¬
neos. Às vezes, esses comportamentos não são apenas estra¬
nhos, mas se tornam totalmente patológicos, como no caso da
216 Por que é marcante?

síndrome da compra compulsiva. Contudo, essas doenças da


moda nos remetem à nossa própria normalidade. Elas nos assi¬
nalam de maneira brilhante que a paixão pelo tecido não pode
ser reduzida a uma paixão pelos objetos.

Doentes da moda
Koba S. tem uma grande responsabilidade: ele deve encar¬
nar a loucura consumista de seus contemporâneos. Esse japo¬
nês de 30 anos tem somente um ídolo, que é uma marca. Sua
existência se resume em colecionar metodicamente todas as
roupas do estilista belga Dries Van Noten. Para ter certeza de
não perder nenhuma peça, ele as encomenda com antecedên¬
cia e vai até Osaka, onde se encontra sua loja predileta. Uma
imagem o mostra em sua minúscula quitinete em Tóquio. Ele
está deitado na cama, e à sua volta, dispostos na forma de uma
corola, os artigos grifados por seu criador preferido. Koba é um
dos inúmeros japoneses fotografados por Kyoichi Tzusuki^ na
série que consagrou às "Happy Victims”, indivíduos que se tor¬
naram dependentes de uma marca.

Cada uma das fotografias de Tzusuki suscita o incômodo,


assim como a frase que as acompanha, "você é o que compra”.
Obviamente, o meio da moda adorou. Não se tratava de recupe¬
rar mais uma vez o pensamento crítico: na verdade, a moral
que serve de base ao trabalho de Tzusuki é doravante ampla¬
mente consensual. Consiste em denunciar um Ocidente doente
pelos objetos. De todas as profecias marxistas, a única que hoje
ainda tem sentido é a que evocava o fetichismo da mercadoria.
É igualmente a razão pela qual a síndrome da compra compulsi-

1
UOffíciel, maio de 2003, p. 178.
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo 217

va fascina. Essa patologia pertence a essas doenças mentais tran¬


sitórias descritas por lan Hacking, que aparecem em "um lugar
em determinada época”, ^ antes de desaparecer ou de “reapare¬
cer de vez em quando”. De certa forma, essa síndrome preen¬
che para nós o papel que cabia à histeria no século XIX. Embora
o número de casos de compradores compulsivos seja muito res¬
trito - contrariamente às histerias diagnosticadas no último sé¬
culo -, essa doença diz respeito à época.

A fascinação pelas vítimas da compra compulsiva é tão


forte que, quando a mídia conhece um caso engraçado, dá a ele
uma ampla cobertura. Assim, os americanos não ignoram nada
do "caso Elizabeth Roach”, acusada de ter roubado de seu em¬
pregador perto de 250 mil dólares para encher seu guarda-rou¬
pa. Se essa mulher tivesse sido uma jovem inconsciente, inca¬
paz de encontrar a roupa apropriada para um compromisso
com o namorado, esse fato talvez não tivesse tido tanta reper¬
cussão. Mas essa fashion victim era alta executiva de Anderson e
ganhava um salário anual de 150 mil dólares. A vida de Elizabeth
Roach era surpreendentemente simples: quando não trabalha¬
va, comprava. De vez em quando umas roupas, e mais freqüente-
mente sapatos. Setenta pares em uma só tarde. “Comprar” é um
verbo muito fraco para relatar o comportamento dessa mu¬
lher: na realidade, ela se submetia a uma exigência, como se
uma divindade superior a exortasse a encher o armário. Obvia¬
mente, ela não procurava "algo para pôr” no seu guarda-roupa;
ela o abarrotava. A maior parte das vítimas dessa síndrome
sofre somente algumas crises episódicas durante toda a vida.
Para Elizabeth Roach, esses episódios começaram a se suceder
com tal freqúência que seu cotidiano passou a se organizar em

^ lan Hacking, Les fous voyageurs (Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond,
2002), p. 9.
218 Por que é marcante?

função das sessões de shopping. Enquanto os outros viviam, ela


assaltava as lojas, solitária. Durante uma viagem de negócios
em Londres, ela preferiu continuar sua sessão de shopping a se
apresentar a uma reunião de trabalho. A tarde foi bem provei¬
tosa: 30 mil dólares de gastos, dos quais 7 mil em uma fivela.
Tãlvez o prazer oferecido por essas compras escondesse na rea¬
lidade um pedido de socorro, uma tentativa de romper essa
lógica infernal. A justiça ouviu a queixa e a pegou na saída do
avião.

Os compradores compulsivos simbolizam o sofrimento dos


ricos em sua mais pura obscenidade. Em relação a eles, a opi¬
nião hesita entre a compaixão e a condenação. O debate a esse
respeito foi, aliás, lançado nos Estados Unidos, em 2002, por
uma misteriosa Karyn. Esse mulher de 30 anos, do tipo de Bridget
Jones, lançava, via internet, um "pedido de socorro": seu ban¬
co ameaçava cortar seu cartão de crédito se não tapasse o bura¬
co provocado por suas sucessivas visitas às lojas Prada e Gucci.
Assim, ela pedia, à maneira de um doente e não de um culpado,
o envio de doações! E punha igualmente à venda pela web a
centena de roupas inúteis que eram responsáveis por seus pro¬
blemas bancários. Enganação? O site savekaryn.com dividiu a
opinião, e acabou por suscitar uma resposta logicamente batizada
de dontsavekaryn.com.

O exemplo de Karyn, como o dos outros compradores com¬


pulsivos, mostra a natureza singular de nossas relações com a
moda. Somente os objetos investidos podem suscitar comporta¬
mentos tão extremos. A experiência da falta ou do exagero se
fixa mais freqü ente mente em entidades altamente simbólicas,
como os alimentos e o sexo. Quer nossa relação com as roupas
seja normal ou patológica, ela sempre dissimula algo mais que
uma simples paixão por nosso guarda-roupa.
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo ( 219

Vestir 0 ser

A moda diz respeito a uma questão essencial para nossos


contemporâneos, talvez a mais essencial de todas: a de sua iden¬
tidade. Sendo assim, interpretar esse fenômeno como um sinal
suplementar do materialismo do Ocidente apenas leva a torná-
lo incompreensível.

Como vimos antes, as tendências não se aplicam somente


a objetos mercantis: o exemplo dos nomes é uma excelente de¬
monstração disso. Aliás, nossa época, como as anteriores, co¬
nhece formas de moda hostis à moda. O vigor dessas modas
alternativas está relacionado com a dimensão tomada pela eco¬
nomia da moda. As estratégias que visam a se vestir fora dos
circuitos tradicionais se multiplicaram nos últimos anos: não
são mais reservadas aos marginais. Parte da atração do vintage
vem desse cansaço: o excesso de marcas, de novidades, de pu¬
blicidades logicamente favoreceu estratégias de retruque. As¬
sim, parte da clientela abandonou as marcas tradicionais, pre¬
ferindo os brechós ou os mercados de pulgas. Desde então, as
regras do jogo mudaram: não consistem mais em caçar a últi¬
ma novidade, mas, ao contrário, em se vestir com velhos mo¬
delos de calça jeans ou de tênis. Aí, também, rapidamente fo¬
ram criadas distinções: não se trata mais simplesmente de en¬
contrar uma velha calça Levi's, mas uma determinada 501, pro¬
duzida durante pouco tempo. O vintage cresceu muito durante
os anos 1990, acompanhado em seu desenvolvimento por mo¬
vimentos que se singularizavam também por roupas de recupe¬
ração. A trilogia calça jeans (ou farda), camiseta e tênis foi igual¬
mente promovida pelos adeptos do techno ou de esportes urba¬
nos como os patins ou o skate. Claro, desde sua aparição, essas
tentativas de contornar o sistema mercantil fracassaram: as
marcas souberam habilmente utilizar esses movimentos.
220 Por que é marcante?

Entretanto, essas tendências, populares particularmente


entre os jovens, mostram mais uma vez que a moda é antes de
tudo uma maneira de elaborar a identidade. Pela aparência que
assume, um indivíduo se situa em relação aos outros, como
também em relação a si mesmo. Nessas condições, a moda é
um dos meios que ele utiliza para se tornar ele mesmo. Esse
meio talvez não tenha a mesma dignidade que a religião ou a
militância, mas preenche parcialmente a mesma função. Seja¬
mos mais precisos; comparar a moda com a religião obviamen¬
te não tem sentido. Em contrapartida, essas duas esferas in¬
fluem profundamente na maneira como se “fabrica” a identida¬
de hoje. Antigamente, a criança herdava ao nascer um lugar na
sociedade; a esse lugar correspondiam uma fé, uma profissão,
uma roupa. Fora algumas exceções, não era possível modificar
esses dados de origem. Passando da tradição à modernidade, a
sociedade adotou como princípio dominante a autonomia: cada
um é formalmente livre para levar a vida como bem entende.
Assim, possuímos o direito, mas também o dever, de nos esco¬
lher. Em matéria de religião, esse direito é às vezes submetido a
determinismos, embora a maior parte dos ocidentais tenha li¬
berdade de seguir ou não a lei de seus ancestrais, de abandoná-
la, de se converter, ou ainda de mudar as modalidades dessa
crença. Em matéria de roupa, a idéia segundo a qual cada um
decide sua maneira de se vestir é evidente: a Revolução France¬
sa marcou o fim do traje imperativo. E o indivíduo prolonga,
com a escolha das roupas, o trabalho sobre sua identidade. É a
razão pela qual a preocupação com a moda alcança seu mais
alto nível nos períodos em que cada um procura se definir. É
obviamente o caso dos adolescentes, momento da existência
em que a atenção dada às marcas é particularmente aguda. Nessa
época da vida, a integração a um grupo tem uma importância
especial. Contudo, esses jovens adotam, de maneira exacerba-
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo (221

da, uma atitude, mas não são os únicos a tê-la. Muito provavel¬
mente, a preocupação com a aparência se junta a vários mo¬
mentos de busca de identidade.

Em nossas sociedades, a preocupação com a aparência


obriga a entrar em acordo com a moda; em outros termos, com
escolhas coletivas que favorecem algumas tendências. Entre
essas diferentes propostas, o indivíduo faz uma escolha: esta
procede de uma estratégia perfeitamente racional. De forma
deliberada, ele procura conjugar distinção e imitação para se
tornar aquele que deseja ser. Essas preocupações conjuntas e às
vezes antagônicas explicam as atitudes paradoxais observadas
em relação à moda.

Vestir(-se) para distinguir(-se)

Distinguir-se não é uma operação banal no Ocidente. De


fato, a civilização cristã mantém, desde sua gênese, uma rela¬
ção ambivalente com a diferença. O lugar hoje ocupado pela
moda testemunha a vontade geral de se singularizar e escapar
" ao conformismo e à homogeneidade. Ainda mais: confirma,
como vimos, a vitória dos modelos minoritários que já inspira¬
ram várias tendências culturais, desde o rap até alguns com¬
portamentos que primeiramente nasceram dentro da comuni¬
dade homossexual. Entretanto, trata-se de um reconhecimento
tardio: durante longos séculos, nossa sociedade se construiu
contra a diferença, projetando, ao contrário, a construção de
uma coletividade homogênea. Nossa relação com a moda sim¬
boliza o apagamento do quadro tradicional em proveito da
modernidade. Como destacou Gilles Lipovetsky,^ a história da

^ Gilles Lipovetsky, Uempire de Véphémère (Paris, Gallimard, 1987).


2221 Por que é marcante?

moda e a da modernidade são indissociáveis. Aliás, ambos os


fenômenos são concomitantes: a moda ocidental aparece, em
sua forma atual, no século XIV, ou seja, no começo dos tempos
modernos. A aparição da moda marcou o início de uma revolu¬
ção silenciosa dominada pelo afastamento do cristianismo e
pela transformação da relação com a diferença. De fato, duran¬
te longos séculos - do Édito de Constantino (313 d.C.) até a
Revolução Francesa -, o mundo ocidental viveu sob o primado
do catolicismo. Durante esse período, essa religião procurou
construir uma sociedade homogênea, um cristianismo dos co¬
rações e dos corpos. O desenvolvimento da moda no Ocidente
é um dos sinais do fracasso dessa tentativa.

Para entender a revolução antropológica provocada pela


modernidade, é necessário voltar à base fundadora de nossa
civilização, ou seja, ao projeto cristão das origens. Durante
sua fundação, a Igreja supostamente construiu uma coletivi¬
dade conforme à mensagem universalista de São Paulo, para
quem a cristandade carregava um projeto singular: fazer com
que não houvesse mais "judeus e gregos”. Sendo assim, a reli¬
gião católica pensa a sociedade como se fosse uma totalidade
orgânica, uma construção harmoniosa que reunisse lado a lado
seres homogêneos, tendo cada um deles um lugar particular.
Neste mundo, a alteridade é uma aberração provisória; a cur¬
to prazo, todo mundo será cristão e terá seu lugar dentro do
corpo social simbolizado pelo corpo de Cristo, tendo a Igreja
como cabeça. As diferenças não perdurarão: os pagãos devem
ser evangelizados; os heréticos, convencidos. Apenas os ju¬
deus se beneficiam de um lugar ã parte; seu estatuto específi¬
co se justifica pelo fato de que testemunham, tanto pela sua
permanência como pelo seu sofrimento, a verdade da mensa¬
gem de Cristo.
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo 223

A esperança de transformar a humanidade em um gênero


homogêneo desapareceu durante a baixa Idade Média, entre o
século XIII e o século XV. No final de um processo cujas etapas
podemos discutir, mas não seu sentido geral, o Ocidente caiu
naquilo que o historiador Robert Moore chamou uma "socieda¬
de perseguidora”.Enquanto estava no apogeu de sua potência,
a Igreja contribuiu direta ou indiretamente para a adoção de
uma série de decisões hostis às minorias. O sonho de universa¬
lidade do cristianismo estava acabando; ao contrário, o Oci¬
dente se tornava lugar de uma intensa fabricação de outros. As
categorias dos diferentes se multiplicaram: aos judeus se junta¬
ram os homossexuais, os leprosos, as prostitutas, os albigenses,
etc. No melhor dos casos, essas minorias eram toleradas; no
pior, eram perseguidas ou expulsas.

Durante muito tempo, a Igreja alimentara o sonho de ves¬


tir seus fiéis com uma única roupa, a clâmide, tipo de túnica
longa, herdada da Antigüidade e depois ainda usada em Bizâncio.
Afinal de contas, apenas o clero secular usará essa roupa. Ao
contrário, a instituição eclesiástica procurava destacar a alteri-
dade por meio de distinções de roupas. O Concílio de Latrão IV
(1215) tomou disposições específicas para que os judeus e os
muçulmanos, então chamados de sarracenos, se distinguissem
dos cristãos pelas roupas. Essas minorias não seguiam uma
moda, elas se submetiam a uma; com elas, e à custa delas, a
inscrição das diferenças sociais por meio das roupas estava co¬
meçando. Ilustração dessa obrigação: a roupa imposta aos ju¬
deus, regra interpretada de várias maneiras, conforme os luga¬
res. Na França, a "roda dos judeus" se tornou obrigatória, ao
que parece, em 1269. Esse sinal distintivo, marca da infâmia,
prefigurava a sinistra estrela amarela.

“ Robert Moore, La société de persécution (Paris: Les Belles Lettres, 1991).


2241 Por que é marcante?

A virada da Idade Média é de crucial importância para a


história da moda. De fato, é impossível imaginar a moda sem
um indivíduo autônomo expressando desejos e vontades que
lhe são próprios. Ora, a gênese do indivíduo moderno começa
nessa época. A sociedade de tradição o dota desde o nascimen¬
to de uma identidade, de uma profissão e até de uma roupa.
Com a modernidade, a religião pesa cada vez menos sobre os
indivíduos; eles se tornam livres em suas escolhas e donos de
sua existência. É por esse motivo que as tendências - no senti¬
do contemporâneo do termo - nascem durante o século XIV. O
"Marignan” dos historiadores do vestuário aconteceu em 1340:
nessa data, a roupa masculina encurtou. Alguns começaram a
abandonar a roupa longa e ampla que era comum aos dois se¬
xos havia séculos. Curta para os homens, longa para as mulhe¬
res, a roupa foi a partir de então ajustada e até aberta, em parte
ou inteiramente. As túnicas foram substituídas por um tipo de
camisola chamada "jaque" - ancestral da jacket, jaqueta em in¬
glês -, que não ia até os joelhos. As meias, visíveis em quase
todo o seu comprimento, se amarravam aos calções no alto das
coxas. O nascimento de uma roupa diferenciada entre homens
e mulheres materializou o desmoronamento do projeto de so¬
ciedade homogênea.

Os grupos perseguidos (judeus, muçulmanos ou homosse¬


xuais) tinham apenas um ponto em comum; afastavam-se do
modo de vida promovido pela cristandade. Durante longos sé¬
culos, da Idade Média até a Idade Contemporânea, boa parte
dessas comunidades seriam enclausuradas em sua identidade
de seres diferentes. Hoje, nossa modernidade se singulariza por
uma atitude nova em relação à alteridade. A intolerância sub¬
siste, mas deve se mostrar discreta. Um exemplo: a homofobia
diminuiu, até nos mais reacionários discursos. As minorias se
tornaram, ao contrário, fontes de inspiração; o estilo de se ves-
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo

tir dos gays se difundiu amplamente entre os heterossexuais. A


onda das boys hands contribuiu para a promoção de uma estéti¬
ca homossexual junto a jovens na maioria heterossexuais. Rou¬
pas "comunitárias” fazem muito sucesso até na França rural;
muitos teenagers usam regatas; as cuecas hoxers, inventadas por
Calvin Klein, tornaram-se terrivelmente banais (antes, eram
chamadas por ironia de "Jean Genet boxer short”). Último exem¬
plo, mais recente: a adoção por muitos heterossexuais de calças
jeans cortadas como calças jeans de mulheres, acentuando as
formas masculinas de maneira inédita. Se as modas promovi¬
das pelas minorias agradam, e não somente a dos homosse¬
xuais, é porque para cada um a diferença se tornou um ideal de
realização em si: cada um aspira a se tornar outro.

Da distinção à imitação

A vontade de se distinguir, em si, não é suficiente para


criar modas. Para existir, as tendências precisam de processos
miméticos por meio dos quais se criam polarizações. Um fenô¬
meno que conjuga a imitação e a distinção acaba necessaria¬
mente em um paradoxo. De fato, enquanto a realização de si
mesmo é um dos ideais da época, as multidões ocidentais ofe¬
recem um espetáculo homogêneo.

Essa situação é tanto mais surpreendente porque ninguém


se veste mais de maneira servil; cada uma de nossas roupas é
construída de maneira deliberada e consciente. Os indivíduos
são tão mais lúcidos em relação às suas escolhas de vestuário
que doravante se tornam superinformados sobre os significa¬
dos dos looks. Além disso, a uniformização das aparências não
resulta da imitação de um modelo sugerido pelas classes domi¬
nantes. Nossa sociedade se caracteriza por sua reflexividade.
2261 Por que é marcante?

sua capacidade de decifrar os símbolos sociais que são as rou¬


pas ou as marcas. Esses símbolos podem informar sobre a posi¬
ção social de um indivíduo, às vezes também sobre seu nível
de renda. Contudo, são sobretudo instrutivos a respeito da ima¬
gem que este último quer refletir. Essa aptidão para ler a socie¬
dade não é nova; já existia no Antigo Regime. Mas, acrescenta¬
va Tocqueville, "nas sociedades aristocráticas, as relações exte¬
riores dos homens entre si são submetidas a convenções quase
fixas”.^ Hoje, ao contrário, as formas evoluem. Assim, é neces¬
sária certa habilidade para atualizar seu conhecimento de con¬
venções que não param de se transformar.

A inocência ideológica não existe mais. Esta época adora os


temas ditos "de sociedade", em que se evocam os yuppies e ou¬
tros boêmios chiques como se existissem da mesma maneira que
os carteiros ou os cariocas. Novas tribos sociais são continua¬
mente descobertas pelos escritórios de marketing, e a mídia se
encarrega de popularizar esses progressos do conhecimento. Úl¬
tima descoberta; os "metrossexuais" ("metro" de metropolitano e
"sexual” por causa de uma "sexualidade paradoxal, a meio cami¬
nho entre o macho man e o efebo viciado no espelho").® Assim,
explica-se, uma nova tendência entre os homens levaria alguns
deles a reivindicar sem complexo sua parte feminina, erigindo-a
até em estilo de vida. Pouco importa a realidade dos metrossexuais;
se a noção se popularizar, será necessário levá-los em conta. Seus
sinais de reconhecimento então se juntarão às outras panóplias
que o presente nos propõe para construir nossa aparência.

Entretanto, a multiplicidade das panóplias disponíveis con¬


trasta com essa impressão de homogeneidade que elas ofere-

^ Alexis de Tocqueville, De la ãémocratie en Amérique, cit., pp. 183-184.


® Thibault de Montaigu, “Métrosexuels, les hommes d'apprêt”, em Líbération,
5-9-2003.
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo (227

cem aos olhos das multidões ocidentais. Essa uniformidade é


primeiramente o resultado da própria natureza de nossas estra¬
tégias de imitação. Os indivíduos não se deixam enganar; sa¬
bem muito claramente que a imitação está na origem de várias
decisões em termos de vestuário. Mas, nesses processos
miméticos, eles desejam ter a impressão de ser livres. Essa as¬
piração ultrapassa obviamente o setor único do vestuário. "A
quantidade de escolhas que precisamos fazer durante nossa exis¬
tência não pára de crescer, tendo hoje cada um de nós a res¬
ponsabilidade de nossa própria biografia”, considera o sociólo¬
go Ulrich Beck.^ O desejo de escolher a própria aparência se
reflete, por exemplo, na admiração despertada pelo dândi, en¬
quanto o esnobe é objeto de ironia. O esnobe se prevalece erra¬
damente de um sentimento de superioridade; ele pensa de
maneira equívoca que pertence a uma vanguarda. Mas, longe
de ser um líder, ele de fato é o liderado: seu comportamento é
sempre determinado pelo olhar alheio. O dândi, pelo contrá¬
rio, é um autêntico original, naturalmente singular. Nada o in¬
comoda mais que o conformismo.

A partir daí, surge um paradoxo. Os uniformes são detesta¬


dos de maneira unânime; quase desapareceram. Contudo, uma
parte crescente da população mundial vive sob o domínio de
uma moda única. No Ocidente, os costumes regionais ou na¬
cionais pertencem ao folclore. No setor do vestuário, os sinais
de distinção social desaparecem uns após os outros. Antiga¬
mente, uma mulher da alta burguesia podia trocar de roupa até
cinco vezes por dia; vários eventos obrigavam as classes privi¬
legiadas a “se vestir". Doravante, tudo isso pertence ao passado.

^ "The proportion of life opportunities which are funáamentally closed to ãecision


making is decreasing and the proportion of biography which is open and must be
constructed biographically is increasing." Ulrich Beck, Risk Society (Londres; Sage,
1992), pp. 136-137.
Por que é marcante?

Hoje, pelo contrário, as convenções evoluem rapidamente em


direção a um formalismo cada vez menor. Ilustração dessa mo¬
dificação; a gravata não está mais na moda. Tãnto o estudante e
o ''marginal” quanto o presidente de empresa usam a camisa
aberta, quando não andam sem camisa, testemunhando assim
que não estão sujeitos a nenhuma disciplina em termos de rou¬
pas. Quando a economia era chamada "nova" e as empresas
start-up se multiplicavam, os recém-formados consideravam a
gravata algo tão retrógrado quanto o monóculo. Tendo os tem¬
pos se tornado mais difíceis, algumas empresas aproveitam a
situação para exigir sua volta. Mas, de maneira geral, as diferen¬
ças de roupa se apagam, traduzindo dessa forma o fato de que a
condição dos homens está se nivelando. Não são os ricos ou os
pobres que estão desaparecendo, mas os indícios que permiti¬
am distingui-los. Antes, a cada momento do dia correspondia
um tipo de roupa; o coquetel exigia um tipo de vestido que não
podia ser utilizado para o jantar. Hoje, quem se preocupa ainda
com essas panóplias? As roupas se tornaram informais, casu¬
ais. E o cúmulo do mau gosto, segundo Armani, é “try it too
hard’’,^ exagerar. A versão moderna da crinolina, essa forma ou
tipo de roupa a partir da qual cada um inventa, caracteriza-se
pela sua universalidade. Três das mais importantes invenções
da moda do século XX, em matéria de têxteis - a calça jeans, os
tênis, a camiseta -, são usadas sem distinção de classe, de naci¬
onalidade, de gênero ou de idade.

De qualquer modo, como o ilustrava o caso Lacoste, o or¬


çamento que os indivíduos dedicam a suas roupas não reflete
necessariamente a classe social à qual pertencem. Acertar a
proveniência de uma roupa hoje exige olhos treinados. Para se
distinguirem umas das outras, as marcas são submetidas ao

8
Marie Claire, setembro de 2003, p. 89.
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo

"narcisismo das pequenas diferenças", procurando cada uma o


pequeno "achado" que muda tudo. Pode ser a calça jeans Notify,
"com seus detalhes luxuosos, sua pátina especial, seus quatro
cortes diferentes".^ São também as roupas Prada Sport, uma li¬
nha amplamente imitada, que durante muito tempo deveu sua
salvação a uma pequena tira vermelha que permitia distinguir
o original das cópias. O detalhe funcionou até o momento em
que grandes marcas que propunham roupas mais baratas co¬
meçaram, por sua vez, a utilizar a tira vermelha. É preciso dizer
que esse exercício às vezes é um verdadeiro quebra-cabeça. Na
moda masculina, as nuanças são particularmente difíceis de
ser percebidas. A competência necessária para julgar o corte de
um terno falta a muitos dos não-especialistas. As mais decisi¬
vas inovações nesse setor são geralmente invisíveis, e dizem
respeito aos tecidos. Assim, alguns, embora tenham conserva¬
do o aspecto tradicional de tecidos de lã, não amarrotam, e
outros esticam: tantos aperfeiçoamentos sutis impedem que,
por trás do tecido, se saiba quanto a roupa custou.

Nesse contexto, a "logomania" constitui obviamente uma


bênção. Muitos artigos se distinguem de seus concorrentes ape¬
nas pela menção da marca, posta em evidência no bolso de trás
da calça jeans ou na camiseta mais banal. Após a fraca venda
de uma de suas coleções, Versace foi aconselhado a aumentar o
tamanho de seu logotipo nas calças jeans; ao que parece, era o
que a clientela esperava para voltar a comprar seus produtos.
Assim, essas "marcações" permitem aos que as usam conciliar
vontade de distinção com desejo de pertencer a um grupo. Os
logotipos enfeitam principalmente roupas sem originalidade,
quase sempre roupas básicas. Dessa maneira, permitem com¬
por com a grande normatividade da época.

® Elle, 25-8-2003, p. 12.


2301 Por que é marcante?

Nossos contemporâneos não são mais gregários que seus


ancestrais. Ao contrário, a época impõe suas normas no setor
da aparência. Assim, o olhar social nos incita a seguir uma es¬
treita via delimitada pelas tendências e pelos critérios do bom
gosto. A beleza se tornou praticamente uma obrigação cultural,
como explicou Bruno Remaury.^° É o que explica esse consumo
de moda ampliada, desde os cremes e outros óleos até a cirur¬
gia estética. A faca se tornou o complemento da agulha. Às ve¬
zes, ao folhear revistas, tem-se a estranha impressão de que um
negociante esperto vendeu a várias clientes o mesmo nariz ou
os mesmos lábios. Cada época teve seu estilo de beleza corpo¬
ral, mas a nossa é a primeira que desenvolve técnicas que per¬
mitem modelar a carne de maneira profunda. Em matéria de
aparência, nossa liberdade é de fato amplamente controlada.
Nossa época pretende ser tolerante, mas essa tolerância é ape¬
nas uma promessa. Jean-Claude Kaufmann teve a oportunida¬
de de mostrar, em seu estudo sobre os seios nus,^^ até que pon¬
to a praia podia se mostrar normativa. No começo, o topless
era praticado em nome da liberdade íntima de cada um. Contu¬
do, várias proibições distinguem aquelas que “podem se mos¬
trar" das outras, que “deveriam se conter”. Hoje, o indivíduo
não pode se abstrair dessa pressão social, da mesma forma que
um comediante não pode ignorar a opinião dos espectadores.

0 eu como última utopia

Atrás de nosso entusiasmo pela moda, encontramos esse fer¬


vor suscitado pelo que mais prezamos; nós mesmos. A constatação
é banal; nenhuma utopia pode nos mobÜizar coletivamente. Como

Bruno Remaury, Le beau sexe faible (Paris: Grasset, 2000).


“ Jean-Claude Kauftnann, Corps de femmes, regarás dhommes: sociologie des sáns
nus (Paris: Nathan, 1995).
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo 231

temia Tbcqueville, a modernidade fabricou um homem voltado


para si mesmo; após ter separado o homem de seus contemporâ¬
neos, "ela o traz sempre para si mesmo e ameaça contê-lo por
inteiro na solidão de seu próprio coração”.^^ Nota-se, na criação
contemporânea - filmes e romances -, uma proliferação de "mons¬
tros” que se preocupam apenas com o próprio umbigo: o arquéti¬
po desses personagens foi sugerido por Bret Easton Ellis em seu
romance O psicopata americano. * * Ellis põe em cena um jovem de
26 anos, Patrick Bateman, apaixonado por marcas e roupas, meio
yuppy, meio serial kíller. Bateman é fascinado por seu "eu”, passa
horas em academias e no esteticista, pensa naquüo que poderia ou
deveria consumir e às vezes, com as unhas feitas, corta suas ami¬
gas em pedaços. Nestes últimos tempos, vários autores se inspira¬
ram na história de serial killers: é porque de forma hiperbólica
simbolizam uma patologia que surpreende os psiquiatras, princi¬
palmente nos Estados Unidos, muito mais que a síndrome da com¬
pra compulsiva. Essa patologia é o distúrbio dissociativo geral¬
mente chamado de personalidade múltipla.

O distúrbio dissociativo diz respeito à obsessão do indiví¬


duo pela mudança de identidade, de procurar ser ele mesmo e
ao mesmo tempo querer se tornar outro. Aqueles que vivem
várias personalidades dentro de um mesmo corpo são os no¬
vos condenados da terra. Ao chegar ao fim da lógica da época,
tiveram a "sensação de não serem mais nada nem de lugar ne¬
nhum, [sendo] a vertigem diante de seu próprio vazio o preço a
pagar para, de certa maneira, exercer a propriedade de si”, como
formulou Marcei Gauchet.^^ A era da autonomia do sujeito im-

Alexis de Ttoqueville, De la démocratie en Amérique, tomo II, CEuvres completes,


vol. I, cit., p. 106.
* Bret Easton Ellis, O psicopata americano (Rio de Janeiro; Rocco, 1991).
Marcei Gauchet, "Essai de psychologie contemporaine", em La démocratie
contre elle-même (Paris: Gallimard, 2002), p. 257.
232 Por que é marcante?

pede que o indivíduo se defina e também que vá ao encontro


do outro. Aqui também Bateman, o personagem de Ellis, serve
de revelação: sua loucura é uma metáfora das dificuldades en¬
contradas por nossos semelhantes desde que nos tornamos
modernos. Nossas patologias do vínculo são as conseqüências
de nossas obsessões narcísicas.

A necessidade de moda se inscreve obviamente entre es¬


ses dois pólos: a vontade de nos tornarmos nós mesmos, o de¬
sejo de entrarmos em relação com o outro. Alguns criadores
perceberam muito bem o que a moda e as patologias do víncu¬
lo tinham em comum. Calvin Klein, em seus anúncios, por
muito tempo explorou essa veia, expressando, ao que parece,
suas próprias angústias. Assim, um de seus comerciais mostra¬
va um casal procurando um ao outro em um corredor compri¬
do, sem conseguir se encontrar. Outros mostravam persona¬
gens declamando longos monólogos existenciais, em um ambi¬
ente tão caloroso quanto um grande copo de água gelada. Esses
anúncios eram tão típicos que nos Estados Unidos provocaram
paródias hilariantes. O pornô-chique pode levar à mesma inter¬
pretação: seres incapazes de travar verdadeiras relações com
os outros. Corpos que se cruzam, rutilantes, em relações de
dominação ou de fetichismo, em que nunca se trata de amor;
na melhor das hipóteses, imitam gestos de amor.

A patologia do vínculo é uma conseqüência da incapacida¬


de do indivíduo contemporâneo de saber quem ele é. De agora
em diante, ele deve encontrar seu lugar sem a ajuda de tradição
alguma. A moda pode experimentar ter esse papel integrador;
ela permite que o indivíduo se situe pela oposição, que ele se
integre e, ao mesmo tempo, se distinga. Mas a simples opera¬
ção de se construir pela identificação se torna mais problemáti¬
ca do que antes. Quais são os nossos modelos? Estrelas inaces-
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo

síveis, os protagonistas dos reality shows, mulheres e homens


políticos? Os famosos também conhecem a precariedade: pro¬
gramas de televisão em que estrelas decadentes vêm contar
sua queda se multiplicam porque hoje a celebridade é mais ins¬
tantânea do que ontem. Finalmente, temos tanta dificuldade
de conviver longamente com os mesmos ídolos quanto a que
temos com as pessoas comuns, no cotidiano. Mesmo quando
não toma um rumo patológico, a busca da identidade dificulta
nossas relações, como testemunham as mudanças que o casal
está sofrendo atualmente.

Ser confrontado com o outro, ser confrontado consigo


mesmo: dois lados de um mesmo problema, como destacou
Marcei Gauchet.^^ Os outros são indispensáveis para nós; con¬
tudo, conviver com eles se tornou algo cada vez mais difícil.
Cada um oscila entre a tentação de abolir o outro e a de viver
permanentemente ligado a ele.^^ Mas é difícil sentir o outro,
isso no sentido mais literal: o outro pode ter um cheiro, desde
que não seja o que o corpo naturalmente exala. Daí provavel¬
mente vem o surpreendente entusiasmo pelo perfume, essa
joupa que usamos na pele. As tendências, nesse setor,
freqüentemente dão resultados surpreendentes: no meio da
multidão, ao fechar os olhos, conseguimos distinguir o cheiro
tenaz do perfume que está na moda.

Diante dessas difículdades, que constituem apenas alguns


exemplos, temos a medida da mutação antropológica que está
ocorrendo, conseqüência da passagem da sociedade de tradição
ao mundo contemporâneo. Essa crise, centrada no indivíduo e
em suas relações com o outio, esclarece nossa relação com a
moda: ela explica por que esse fenômeno ocupa hoje o lugar que

14
Ibidem.
15
Ihidem.
234) Por que é marcante?

é seu. Poderíamos, aliás, ir além dessa hipótese e formular uma


conjectura: haveria uma correlação entre essa crise antropológi¬
ca e a relação que cada sociedade mantém com a moda.

A noção de crise antropológica não soa tão familiar para


nós quanto a de crise econômica. Esta última é objeto de co¬
mentários diários; é facilmente quantificada por meio de diver¬
sos indicadores, desde o desemprego até os principais resulta¬
dos negativos. A crise antropológica, por sua vez, é mais dificil
de cercar. Ela designa todas as manifestações do mal-estar pro¬
vocado pela modernidade. Estas podem adotar as mais diver¬
sas formas, desde o divórcio e outras rupturas até o consumo
de drogas e de psicotrópicos. A depressão, por exemplo, pode,
assim, ser interpretada como um sintoma das dificuldades en¬
contradas por nossos contemporâneos; como destacou Alain
Ehrenberg, "o deprimido não está ã altura, ele está cansado de
ter de se tornar ele mesmo”.A sociedade tradicional podia
suscitar frustrações ou dilemas, mas pelo menos dispensava o
indivíduo de procurar uma identidade.

Nesse contexto, poderíamos imaginar que a relação com a


moda revelasse a ansiedade do indivíduo por “se tornar ele mes¬
mo”. Sendo assim, a relação com as tendências e as marcas ob¬
servada no seio da sociedade poderia ser função da amplitu¬
de da crise antropológica por que passa essa sociedade. O caso
do Japão parece corroborar essa hipótese. Come se sabe, o ar¬
quipélago desenvolveu uma relação muito especial com a moda:
a população das fashion victims parece particularmente impor¬
tante nesse país. Algumas marcas, como a Vuitton, são objeto
de uma verdadeira veneração; a inauguração de uma butique
pode juntar multidões histéricas. Todo mundo conhece tam-

16
Alain Ehrenberg, La fatigue d'être soi (Paris: Odile Jacob, 1998), p. 11.
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo 235

bém esses tráficos que permitem importar “produtos cinza” no


Japão; em outros termos, mercadorias autênticas, comercia¬
lizadas em circuitos paralelos e vendidas a menor preço. Mui¬
tos parisienses já foram abordados por japoneses que lhes pe¬
dem que comprem para eles uma bolsa Vuitton ou Dior; essas
marcas desconfiam dos falsos turistas que fazem compras não
para o próprio uso, mas para abastecer o mercado cinza. Em
compensação, são autênticos turistas japoneses que participam
de verdadeiros “safári shoppings", em que as presas são substi¬
tuídas por compras realizadas em butiques de luxo às quais são
metodicamente levados por tour operators. Parece às vezes que
o apetite dos japoneses não tem limites: o fenômeno não se
restringe aos hodíkons, contração de hody conscious (loucos ou
loucas pelo próprio corpo). Afeta a ambos sexos e a todas as
camadas sociais, como testemunham os pacatos executivos que
carregam uma maleta enfeitada pelo monograma “LV” ou usam
um boné Gucci. Algumas patentes são especificamente desen¬
volvidas para o Japão, como os lenços com o logotipo de uma
marca ou até cordões para telefones celulares, com os quais as
empresas auferem benefícios substanciais.

Durante longas décadas, o Japão foi considerado um eldo¬


rado pelas empresas de moda. Algumas grifes, como Courrèges
ou Leonard, encontraram lá uma segunda juventude. Depois, o
arquipélago conheceu a crise: econômica, vinculada ao estouro
da bolha financeira; mas igualmente outra crise, tão profunda
quanto a primeira, ligada ao desaparecimento da sociedade tra¬
dicional. Dessa forma, é tentador fazer uma conexão entre essa
situação e as frenéticas compras de moda que fazem alguns ja¬
poneses. Existem muitos sintomas do mal-estar japonês. O nú¬
mero de divórcios está alcançando os padrões ocidentais, mas
cada vez mais a iniciativa é tomada pela mulher, às vezes depois
de uma longa vida em comum. Por um lado, essa situação reve-
2361 Por que é marcante?

la a autonomia conquistada pelas mulheres japonesas, notada-


mente por meio de sua chegada maciça ao mercado de trabalho,
e, por outro lado, sua profunda insatisfação: o aumento dos di¬
vórcios é a sanção de um modo de vida percebido cada vez mais
como sendo alienante. Simultaneamente, nunca houve tantas
mulheres japonesas solteiras: em 2002, em Tóquio, 60% das
mulheres de menos de 30 anos ainda viviam sozinhas ou na
casa dos pais; em 1980, elas representavam apenas 37% Para¬
lelamente, o número de fobias sociais está crescendo dramati¬
camente, e até constitui um verdadeiro problema de saúde pú¬
blica.^® A relação com o outro se tornou difícil, como testemu¬
nha o modo de vida dos jovens chamados otaku (literalmente, "a
casa"): saindo pouco, principalmente para fazer compras, esses
indivíduos vivem voltados para si mesmos, entre seu console
de jogos, sua televisão e seu computador. De certa forma, eles
vivem no país das marcas, cercados por criações mercantis. Esses
autistas de tipo diferente inventaram uma nova linguagem, ba¬
seada nas marcas e tendências.

A necessidade de ficção

Nossos contemporâneos sabem ler e escrever a moda. O


sistema das marcas e das tendências se tornou um importante
componente do jogo social, por meio do qual os indivíduos
trocam sinais e códigos. Seja o sapato Manolo Blahnik na série
Sex and the City ou o boné Nike em algumas comunidades dos
subúrbios, esses diferentes objetos permitem que os indivíduos
transformem sua aparência em uma narrativa.

Para o Japão inteiro, os números são de 48% e 23%; Cf. Philippe Pelletier,
Japon, crise d'une modemité, coleção Asie Plurielle (Paris: Belin, 2003), p. 119.
Cf Jean-Claude Jugon, Phobies sociales au Japon (Paris: Êditions Sociales
Françaises — ESF, 1998).
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo 237

Ao praticar esse jogo social - escolher para si um estilo,


exibir marcas o indivíduo satisfaz uma das necessidades es¬
senciais do ser humano: narrar histórias, tanto para si como
para os outros, sendo o narrador em alguns casos, o leitor em
outros. Assim, como destacou o filósofo Paul Ricoeur, a identi¬
dade é inseparável de uma narrativa.^® A idéia segundo a qual
nossa vida não teria mais importância, ou não seria mais con¬
tada, provoca em nós um profundo sentimento de abandono.^®
Algumas hipóteses ousadas no setor das ciências cognitivas até
consideram que a narrativa se beneficia de um estatuto parti¬
cular na nossa mente. Alguns exemplos parecem apoiar essa
tese. Assim, nosso cérebro memoriza facilmente histórias, en¬
quanto uma lista de números lhe cria mais dificuldades; essa
constatação é particularmente evidente na criança. Da mesma
forma, os psicólogos notaram que tínhamos tendência, quan¬
do tomamos decisões importantes, em recompor a realidade
na forma de histórias.

Durante vários séculos, a principal fonte de história, a


metanarrativa, como ãs vezes é chamada, foi a religião. No
Ocidente, havia a Bíblia, à qual se juntava a narrativa das proe¬
zas legendárias dos santos e de personagens notáveis. Hoje, a
novidade não é nem a existência de um mundo virtual nem
mesmo a fascinação pelos objetos. Os homens da Idade Média
também viviam em um mundo em que o maravilhoso e o irreal

Paul Ricoeur, Jbmps et récits, coleção Points Essais, vol. 1 (Paris: Seuil, 1991).
É notadamente a tese desenvolvida por Pierre Rosanvallon em Le peuple
introuvable: histoire de la représentation démocratique en France (Paris: Gallimard,
1998).
Um estudo norte-americano demonstrou assim que os jurados, para resolver
um caso de consciência, recorriam a uma história, utilizando todos os deta¬
lhes obtidos durante o processo - qualquer tipo de índice, acusação, etc. -
para criar uma narração e ver se ela parece coerente. Cf. Nancy Pennington
& Reid Hastie, “Reasoning in Explanation-Based Decision Making”, em
Cognition, n“ 49, 1993, pp. 123-163.
238 Por que é marcante?

às vezes contavam mais que a realidade. Vários objetos, relí¬


quias de santos ou apóstolos eram venerados de tal forma que
os falsificadores fabricavam e comercializavam imitações. Mas,
nessa sociedade, o imaginário era determinado pela religião.
Portanto, seu desaparecimento mais uma vez deixou um vazio;
contribuiu para tornar nosso mundo desencantado. Se, duran¬
te um tempo, as ideologias ocuparam o lugar das religiões, hoje
elas estão enfraquecidas. Assim, esse vazio está sendo parcial¬
mente preenchido pelas “histórias laicas” difundidas por dife¬
rentes vetores, a literatura, a televisão, o cinema, as histórias
em quadrinhos ou os videogames.

Nesse sentido, Emma Bovary é a personagem que simboli¬


za perfeitamente o indivíduo contemporâneo, em seu desejo
de história, sua sede de sonhos. A heroína de Gustave Flaubert
é semelhante a nós: perpetuamente insatisfeita, refugia-se nos
lugares-comuns e nas esperanças romanescas. Após ter segui¬
do alguns caminhos que acabaram sem saída, Emma começa a
fazer compras compulsivas de tecidos para suas roupas e sua
casa. É a incapacidade de pagar suas dívidas, a perspectiva da
desonra, que a levará a cometer o gesto fatal. As histórias e os
objetos laicos não consolam tão bem quantos seus predecesso¬
res religiosos; contudo, são os únicos aos quais podemos facil¬
mente ter acesso. É dessa maneira que as marcas e a moda
tentam, de todas as formas, satisfazer nossa necessidade de fic¬
ção. É difícil dizer se as vítimas da síndrome da compra com¬
pulsiva têm realmente uma necessidade radical de ficção, ex¬
pressa de forma desmedida nas suas relações com os objetos,
ou se, ao contrário, acabaram esquecendo que os objetos ser¬
viam antes de tudo para contar histórias.

Para vender o maior número possível de objetos, algu¬


mas marcas contam histórias simples: Ralph Lauren elabora
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo (239

uma América de bolso; outros constroem um universo mais


complexo, como Agnès B, que recorre ao panteão dos intelec¬
tuais parisienses: não hesita em chamar Jean-Luc Godard para
ajudá-la. Cada criador tem sua própria narrativa: o fabricante
de sapatos Bruno Frisoni propõe para o verão 2003 os "temas
matador, massai, preppy (clássico chique), cores tranqüilas, mu¬
lheres indianas do século XVIII, cor de chá inglês, materiais
simples e naturais".^^ As tendências narram histórias, como
essas calcinhas de cores vivas, enfeitadas de tule e desenha¬
das pelas criadoras Frilly e Racy, que fazem parte da corrente
"Eu me realizo no meu houdoir”}^ Os temas de fotografias nas
revistas dizem respeito a universos com nomes chamativos:
Madame Butterfly, Espírito dos Fifties, Musa, etc. Nessas his¬
tórias, as imagens ocupam mais espaço que as palavras, dei¬
xando assim o campo mais livre para a imaginação. Efetiva¬
mente, podemos considerá-las ingênuas como se fossem fá¬
bulas para adultos. Contudo, essa simplicidade permite que se
transformem em uma tela sobre a qual projetamos nossos
sonhos ou nossas fantasias; servem para nós como um alfabe¬
to para escrever nossas próprias histórias. Em todas as civili¬
zações, o homem deu uma importância especial aos sinais tra¬
çados sobre seu próprio corpo. Nossa época não escapa a essa
regra; distingue-se pelo fato de ser a primeira sociedade domi¬
nada por histórias individuais e coletivas. A religião parou de
organizar o espaço social, que não é mais agitado por lutas e
grandes esperanças. Hoje, o indivíduo encena a si mesmo em
suas próprias histórias. Essa altitude o coloca em uma postura
irônica em relação ao mundo.

22
LOfficiel, maio de 2003, p. 54.
240 Por que é marcante?

A ironia está na moda

Curiosamente, a última voga respeita as línguas mortas.


Graças à moda, nunca fomos tão pessoas, do latim persona,
que significa ao mesmo tempo pessoa e máscara. “Sua cuique
persona”: "a cada um sua máscara”, ou "cada um conforme sua
personalidade”, como proclamava um quadro do pintor
florentino Domenico Ghirlandaio! Doravante, cada um pode
escolher uma identidade, trocar de cabeça ou de corpo para
finalmente ter aquele que merece. A moda responde a essa gra¬
ve preocupação de forma agradável: satisfaz à criança lúdica
que existe em nós. Pela primeira vez, a frivolidade intervém
nesse processo de construção identitária.

No centro desse jogo se encontra o dândi, reconhecível


pelo olhar irônico com o qual vê a existência. O dândi vive
perigosamente; segundo um dos mais famosos, Barbey d’Aure-
villy, sua existência gira em torno de três verbos: “vestir-se, ta¬
garelar e despir-se, eis umas das ocupações importantes daqui”.
Mas esse personagem não pode ser assimilado a uma roupa que
andaria por si. Uma vez chegado ao fim do desencantamento,
ele somente crê em si mesmo. Portanto, procura transformar
sua vida em obra de arte, estar onde não é esperado. Sua roupa
é sua máscara; permite que esteja no seio da sociedade sem
realmente participar dela. É nesse sentido que ele se torna
irônico, porque, como dizia Vladimir Jankélévitch,^^ ironizar
quer dizer se ausentar. Hoje, cada um de nós tenta se ausentar,
e a moda é considerada uma boa maneira de conseguir isso.
Conhecíamos as civilizações da vergonha, as da culpabilidade;

Barbey d'Aurevilly, apud Rose Fortassier, Les écrivains français et la mode (Pa¬
ris: Presses Universitaires de France, 1988), p. 81.
Vladimir Jankélévitch, Lironie (Paris: Flammarion, 1964).
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo

O mundo contemporâneo está inventando uma cultura da iro¬


nia. Na nossa relação com os outros e com a realidade,
ironizamos. A moda simboliza a influência da ironia em nossos
modos de existência.

A ironia se tornou uma referência estética inevitável. Ela


destaca o designer da moda ou ainda o restaurante em que é
preciso ser visto. Referência evidente: Starck, o mais famoso
criador de objetos, que fez da ironia seu fundo de comércio. Os
prestigiosos hotéis que ele concebeu no mundo inteiro reve¬
lam, por contraste, a seriedade dos palácios. Nos hotéis criados
por Starck, anões de jardim convivem com dentes gigantes de
aço escovado, e poltronas Luís XVI são forradas de tecido de
leopardo. E os mesmos contrastes se encontram também na
culinária. Assim, dois anos atrás. Paris descobriu com surpresa
o "frango com coca-cola”, uma invenção que doravante perten¬
ce ao panteão da ironia. A gastronomia provavelmente reser¬
vará um lugar mais modesto a essa invenção: aliás, a quantida¬
de de coca-cola que entra na receita serve apenas para justifi¬
car a ironia do prato, que, contudo, deve ficar comestível.

A postura irônica veste maravilhosamente a época; a moda


utiliza todas as funções desse processo. A ironia tem duas fun¬
ções:^® designa em primeiro lugar um critério estético que apare¬
ceu com a modernidade e o romantismo, segundo o qual tudo
pode se tornar arte por decisão pessoal do criador ou do compra¬
dor. Doravante, a moda se sente então menos sozinha; sua indi¬
ferença em relação ao belo e ao feio não a destaca mais. Mas a
ironia é também uma atitude que permite que um mesmo indi¬
víduo conjugue a crítica com a adesão. Graças a ela, hoje é possí¬
vel, num primeiro plano, apreciarmos um objeto kitsch ou re-

26 Marie de Gandt, "La place de rironie", em Revue des Deux Mondes, janeiro de
2003, pp. 102-107.
2421 Por que é marcante?

gressivo, fingindo desprezá-lo num segundo plano. Esse tipo de


má-fé consciente permite, ao mesmo tempo, que nos cubramos
de logotipos apesar do desprezo que mostramos em relação a
eles. Esse comportamento não se explica pelo inconsciente do
indivíduo; ele o autoriza a ter sem ser. Como destacou o filósofo
Dan Sperber, a ironia é uma questão de menção e não de uso.
Assim, embora adultos, citamos Hello Kitty, heroína de uma his¬
tória em quadrinhos infantil japonesa, devoramos seu horósco¬
po lunar afirmando que não acreditamos nisso... Ironizar pro¬
porciona ao indivíduo um suplemento de liberdade.

Aqueles que seguem estritamente a moda não se vestem


mais, ironizam. Graças às roupas, podemos nos fantasiar e ser
outra pessoa, vestir-nos de hippie e fazer aplicações na bolsa de
valores, utilizar uma calça militar e nos manifestar contra a guer¬
ra, escolher ser alguém atraente e permanecer casto, ser o mais
doce dos culturistas, colecionar roupas de grife sem, no entanto,
ser vítima desse jogo... A moda contemporânea se deleita com a
ironia. Nos anos 1950, Dior desenhava modelos sublimes, mas,
antes de tudo, o espírito de seriedade impregnava todas as suas
criações. Obviamente, não era o único: todos os grandes costurei¬
ros da época fizeram a mesma coisa. Basta comparar seu estilo
com o de um Jean-Paul Gaultier ou de Dolce & Gabbana. Por um
lado, roupas magníficas fincadas na sua beleza; de outro, roupas
em que se superpõem citações, distância e até zombaria. Sendo
assim, a imprensa de moda elaborou um gênero literário inédi¬
to. Uma experiência deveria ser tentada: tentar reescrever uma
revista dedicada a esse assunto sem recorrer à ironia. A missão
não é impossível, mas leva à criação de outro jornal. Exemplos:
o que fazer com a "bolsa de da-dame", como falar do look de
“beauté fatole”, como substituir o título de um artigo chamado
"Jamais too much: as maiores jóias"? O mundo da moda adora a
ironia; comparece aos eventos organizados pelo casal Guetta,
A moda para o indivíduo se tornar ele mesmo í 243

judiciosamente batizados “Fuck me, I am famous”. Essa denomi¬


nação pode deixar alguém perplexo; contudo, tem o mérito de
reunir citação, distância e zombaria.

Originalmente, foram os grandes escritores do século XIX


Flaubert e Stendhal os primeiros grandes irônicos. Hoje, utiliza¬
mos esse estilo irônico para descrever nossa própria existência.
Essa ficção nos ajuda a tornar o mundo viável; permite que
sejamos ao mesmo tempo o ator e o espectador do espetáculo
que queremos viver. O desaparecimento das grandes narrati¬
vas, religiosas ou políticas, obriga-nos a preencher esse vazio
com milhares de pequenas histórias. Estas se escrevem dentro
do espaço organizado pela distância irônica, com risco de não
deixar lugar nenhum para a narrativa coletiva que até agora
servia de trama para todas as sociedades.

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Conclusão

A ironia serve bem ao indivíduo; em contrapartida, adapta-se


mal ao vínculo social. Ela contribui para tornar ainda um pou¬
co mais difícil, como destacou Paul Zawadzki, "a inserção sim¬
bólica do indivíduo em um futuro e um senso comuns, que lhe
permitiriam pensar como contemporâneo de seus contempo¬
râneos; em outros termos, fazer sociedade".^ De tanto procurar
sua singularidade, o indivíduo corre o risco de se tornar inteli¬
gível apenas para si, tornando-se a sociedade uma reunião de
solidões.

A fragmentação do coletivo encarna um dos grandes me-


^ dos da época, que parece particularmente difícil de ser comba¬
tido. Um amplo consenso incrimina o capitalismo, acusando-o
de transformar a sociedade em um mercado, e os cidadãos, em
consumidores. Aparentemente, a relação com a moda parece
ser uma prova suplementar de nossa bulimia por objetos. Con¬
tudo, a preocupação com as tendências não é a causa de nosso
mal-estar; no melhor dos casos, encarna um dos sintomas. Os
altermundialistas criticam as marcas e as multinacionais; con¬
fundem a causa e a conseqüência. O mal do qual sofremos en¬
cobre uma crise de civilização, e não uma simples escolha de

1 Paul Zawadzki (org.), Malaise dans la temporalité (Paris; Publications de la


Sorbonne, 2002), pp. 14-15.
246 ) Vítimas da moda? Como a criamos, por que a seguimos

sociedade. Aliás, as dificuldades encontradas pelos críticos do


capitalismo em articular um projeto alternativo testemunham
a gravidade de nossos males.

Nesse contexto, nossos contemporâneos consomem da


mesma forma que outros fumam ópio. Assim como em relação
às verdadeiras drogas, essa dependência é acompanhada de
reações ambivalentes, às vezes até contraditórias. Ora, parado¬
xalmente, em um clima de desligamento generalizado, a moda
pode nos ajudar a descobrir, no outro, alguém idêntico a nós.
Finalmente, poderíamos tirar desse espetáculo de milhares de
pessoas agindo de maneira semelhante uma moral universalista.
Os vínculos entre os seres são cada vez mais frouxos, o indivi¬
dualismo parece dominar os comportamentos, e eis que com a
moda surge, como um refluxo, o coletivo. A coisa parece tão
surpreendente que imaginamos os mais improváveis complôs,
antes de acolhermos essa verdade de bom senso: os homens
desenvolvem gostos em comum porque se tornaram cada vez
mais semelhantes entre si. As coisas poderiam nos ajudar, na
ausência das palavras, a experimentar de novo o sentido da
unidade.

A contemplação dessa nova relação entre o homem e as


coisas nos sugere duas conclusões. A primeira é sombria: se
apenas o consumo nos reúne, então nosso futuro será um pesa¬
delo. Os seres humanos irão se espalhar em vastos shoppings,
em que marcas magníficas os abastecerão em sonhos miserá¬
veis. Nos dias mais importantes, uma nova marca se estabele¬
cerá em uma galeria ou a deixará: isso será chamado de evento.
Mas existe também uma alternativa a essa visão niilista. Antes
de nós, as coisas não impediram que os homens pensassem,
vivessem ou amassem. Então, devemos desejar, por meio des¬
ses objetos, inventar uma nova linguagem que simbolize nossa
Conclusão 247

relação com o mundo e com os outros. Como destacou Paul


Ricoeur, a humanidade "dá sinais de sua própria existência. En¬
tender esses sinais é entender o homem”.^ A realidade é uma
ferida; precisamos de história para amortecer a dor provocada
por seu contato. As roupas poderiam se tornar nossos objetos
transicionais prediletos.

^ Paul Ricoeur, "La tâche de Tlierméneutique”, em Du texte à Vaction. Essais


dfierméneutique, vol. II (Paris: Seuil, 1995), p. 91.
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Bibliografia

A literatura consagrada à moda é abundante. Não se limita ao


Sistema da moda de Roland Barthes, obra cujo título é engana¬
dor porque trata mais do discurso consagrado à moda do que
da moda em si. Além da imprensa especializada, cuja leitura é
obrigatória (Elle, Vogue, Citizen K, etc.), seguem alguns títulos
suscetíveis de prolongar a reflexão iniciada neste livro:

BOUCHER, François. Histoire du costume en Occident. Paris:


Flammarion, 1996.

-BOUDON, Raymond. Raison, bonnes raisons. Paris: Presses


Universitaires de France, 2003.

DEROCHE-GURCEL, Lilyane. Simmel et la modernité. Paris:


Presses Universitaires de France, 1997.

DESLANDRES, Yvonne. Le costume, image, de Vhomme. Paris:


Institute Français de la Mode (IFM), 2002.

ELIAS, Norbert. La civilisation des mceurs. Paris: Calmann-Lévy,


1975.

* Esta bibliografia é complementar às obras já citadas em notas de rodapé ao


longo do livro. (Nota da edição brasileira.)
250 Vítimas da moda? Como a criamos, por que a seguimos

GAUCHET, Marcei. La démocratie contre elle-même. Paris:


Gallimard, 2002.

GREEN, Nancy. Du Sentier à la 7- avenue. La confection et les


immigrés. Paris-New York 1880-1980. Paris: Seuil, 1998.

HERPIN, Nicolas. Sociologie de la consommation. Paris: La


Découverte, 2001.

LANNELONGUE, Marie-Pierre. La mode racontée à ceux qui la


portent. Paris: Hachette, 2003.

MORAND, Paul. LAllure de Chanel. Paris: Hermann, 1996.

MÜLLER, Florence 87 KAMITSIS, Lydia. Paris: Les chapeaux, une


histoire dé tête. Paris: Syros, 1993.

PASTOUREAU, Michel. Bleu, histoire d'une couleur. Paris: Seuil,


2002.

PERROT, Philippe. Les dessus et les dessous de la bourgeoisie: une


histoire du vêtement au XIX^ siècle. Paris: Fayard, 1981.

PICON, Jérôme. Jeanne Lanvin. Paris: Flammarion, 2002.

REMAURY, Bruno (org.). Dictionnaire de la mode au XX^ siècle.


Paris: Regard, 1996.

ROGHE, Daniel. La culture des apparences, une histoire du


vêtement XVIF-XVIIP siècles. Paris: Fayard, 1989.

SIMMEL, Georg. La parure et autres essais. Paris: Maison des


Sciences de rHomme, 1998.

TAYLOR, Gharles. Le malaise de la modemité. Paris: Cerf, 1992.


índice geral

Agir apesar da incerteza, 185


Agradecimentos, 11
Alugar o nome, a invenção da licença, 58
Beleza do preço. A, 197
Benetton ou os limites de uma estratégia de provocação, 157
Bibliografia, 249
Bourdieu, o modo de dominação da moda, 207
Circuito curto das tendências ou o modelo do Sentier, O, 145
Colette, a profetisa, 167
Conclusão, 245
Concurso de beleza. O, 176
Conspiração imaginária. A, 111
Criadores de diferenças, 45
Criador superstar. O, 49
Criar sua lenda, 87
Da distinção ã imitação, 225
Doentes da moda, 216
Do primeiro costureiro à primeira marca de moda, 32
Enigma do sucesso e do fracasso. O, 123
Espírito da moda é irracional?. O, 191
Eu como última utopia. O, 230
Fábrica das tendências. A, 101
Fascinação pelo artista. A, 53
252) Vítimas da moda? Como a criamos, por que a seguimos

Gucci e a segunda vida das marcas de moda, 68


Introdução, 19
Ironia está na moda. A, 240
Lei de Poiret, A, 161
Leis das tendências. As, 161
Luxo, sempre na moda. O, 85
Marca de fábrica. A, 29
Marca reina sobre o produto? O exemplo do perfume, A, 192
Marcas desejadas e clientela indesejável, 91
Marcas de valor e valor das marcas, 81
Marca, sonho de capitalista. A, 74
Marketing da moda e seus intelectuais prediletos. O, 201
Milagre da marca. O, 63
Misteriosas tendências, 104
“Moda é o que sai de moda". A, 107
Moda está no arbitrário. A, 103
Moda não é dominada. A, 95
Moda para o indivíduo se tornar ele mesmo. A, 215
Moda, reflexo da moda. A, 118
Na fonte da criação, um desejo de revanche, 38
Nascimento do costureiro. O, 31
Necessidade de ficção. A, 236
Nota da edição brasileira, 7
Onda do pornô-chique. A, 153
People profeta. O, 172
Por que é marcante?, 189
Prefácio, 15
Profecia auto-realizadora. A, 164
Provocar o sucesso, 148
Roupa não faz a classe. A, 210
Rua é o laboratório da moda. A, 114
Sentir o que está na onda, 138
Tbndências são dirigidas?, As, 131
Um capitalismo ostensivo, 63
Um mundo muito pequeno, 132
Um mundo sem piedade, 181
Um universo em que tudo é possível, 126
Vestir o ser, 219
Vestir(-se) para distinguir (-se), 221
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Compus Lgum da S6o Pedro
E-moil: odimocaa@s)ijeiiaciii lá: (19) 3482-7000 • Fm: (19) 3482-7036 Senot Piretlcsbo
Swn Coiitoi(i{6o E-moíl: tDmpu30gaosdesoopedro@spjenot.br lél.: (19) 3434-9700 • Fnx: (19) 3434-7303
TeL: (11)3236-2050 • Fm: (11) 32S5d)792 E-meil: piracicobo@sp.seflot.br
Centro Unhorsitdrio Senot
E-raoll: a)ns(ilocao@spjcfliK.br Compos Campos do Jorddo Senot Presidente Prudente
Tá: (12) 3688-3001 • Foj: (12) ^2-3529 Tá: (18)222-9122 * Ffli: (18)222-8778
Seioi Fniidsto Mgtomzo
E-moil: tampuscomposdojordoo@spjenatJ>r E-moil: presidenteprudenle@spjenaLbr
lei.: (11) 3S79-3600 • Ftn: (11) 3864-4597
E-moil: fronciscomalorano@s|i.senoLbr Senot Ara{otaba Senot Ribeiròo Preto
U.: (18) 36238740 • Fot: (18) 3623-1404 W.: (16) 624-2900 * Foi: (16) 624-3997
Smo< Guorellios
E-fflod: arototabo@spLtenodir E-mail: ribeirooprelo@sp.senot.bt
M: (11)6443-1622 • Foi: (11)6443-6042
E-m«1: guonilhos@spje«iocbr Senot Aroroquoro Senot Rio Cloro
W.: (16) 3336-2444 • Fo»: (16) 3336-9337 U: (19)3524-6631 • Foi: (19)3523-3930
SoMK Doqiero
E-mo8: oraroqoara@spjeaod)r E-moil: riodarc@$pjenot.br
lél; (11) 6944-5488 • Ftu: (11) 6944-9022
Senot Borretos Senot Sontos
E-moii: itaquera@sp.Mnod)r
U: (17) 3322-9011 • Fox: (17) 3322-9336 lá: (13) 3222-4940 * Fm: (13) 3235736S
Soioc Joboqaaro
E-moil: bo(Tetos@spjenQtbr E-mail: santo@i^j«iot.br
W.: (11)5017-0697 • Fm: (11)5017-2910
Senot Boura SenK Sdo Corlos
E-ndI: j[iboquaro@í(Lseflocbr
W.: (14) 2278702 • Fox: (14) 227-0278 M: (16)3371-^ • Fm: (16)3371-8229
SewK Logo Feeâolo E-mod: bouni@spjeflaü>t E-mail: saocarlos@spjeflaLbr
U. (11) 3865-4888 • Fm: (11) 3862-9680 Senot Bebedouro SenK S6o Jo&i do Boo Visto
E-moíl: lapai(8ntolo@s|)jenocbr W.: (17) 33428100 • Fm: (17) S42-3S17 lélTFfli: (19)3623-2702
Seeoc Sdpiòo E-fl»íl: bebedoaro@spjenacbr E-ffloil; sib<i<tnsto@spjeniK.br
lél.: (11) 3866-2500 • Fm: (11) 3862-9199 Senot Bolutoto SenK S6a José do Rio Prato
E-moil: lapasàpio»@spj«noüir lá: (14) 3882-2536 • Foi: (14) 38153981 Tá: (17) 3233-1565 • Fm: (17) 3233-7686
SoMK Upo THo E-moil: boiDtiilv@spjenad)r E-moil: sjnoprmo@spjenac.bc
lél.: (11) 3868-6900 • Fm: (11) 3868-6^ Senot Compinos SeoK S6o José dos Compos
E-mml: lopoHto@spjenocbr U: (19)2117-0600* Fox: (19)2117-0601 TélTFoi: (12)3929-2300
Seaot Noaa de Jvfto E-moil: tgmpinas@spjeiKK.á E-mail: sitoiiqx»@spjenatbr
M: (11) 3016-5601 SenK Cotoadinro SenK Soroo^o
E-moii: iK)«edejoiho@tp.5eflgLbf lél.: (17) 3522-7200 • Fm: (17) 3522-7279 Tá: (15) 3227-2929 • Fm: (15) 3227-2900
E-mod: tDlondino@spjenotá E-moil: 8i)tocidio@q]jenoc.br
Sêloc Osflsco
M: (11) 36854100 • Fm: (11) 3681-7056 Senot Franca Senot Toaboté
E-moii: as<BCO@spjeni)cJir H: (16) 3723-9944 • Fox: (16) 3723-9086 Tá: (12) 3632-5066 * Fm: (12) 3632-3686
E-moil: iranto@spjenac.bt
Saao( Peobo E-maíl: laubote@spjengc.bT
Senot Gaorotingaád
Tél.: (11) 2135-0300 • Fm: (11) 213S4B98 Senot Voluporoego
Tá: (12) 3122-2499 • Fm: (12) 3122-4786
E-moil: peflba@spie(iacJ)r W.: (17) 3421-0022 * Fm: (17) 3421-9007
E-moíl: guoralingueta@spjenotJ)r
Soao( Sonto Cadiio E-mail: »otaporonga@spj8natbr
Senot Itopetiningo
lél.: (11) 3662-2152 • Fm: (11) 3667-2743
M: (15) 3272-5463 • Foi: (15) 3272-5177 OfUnu IhMaths
E-moil: ]ontocodlio@5pjenocJ>r
E-moil: itopelirHngG@9Jenocbr Editara Senot S6o Paulo
Soaoc SoRtoBO Tá: (11) 21874450 * Fm: (11) 21874486
Senot llopiro
M: (11) 69730311 • Fm: (11) 69730704 E-mail: edilKa@spjenot.br
lá: (19) 3863-2835 • Fm.- (19) 3863-1518
E-moil: sontono@^jenad>r E-moil: itopira@spjenac.br kde SescSanoc de Tele«b&o
Seaot Souto Amoto Senot Ita bd.: (11) 2123-7150 * Fm: (11) 2123-7186
léL: (11) 55238822 • Fm: (11) 5687-8253 lél.: (11) 40234881 • Foi: (11) 4013-3008 E-mait: stv@spje(HK.br
E-bkhI: sontaonioro@spjenocbr E-moil: in)@spjenot.bi Grande Hotel S6o Pedro - Hotel-esralo SeoK
Seaot Soato Aailré Senot JoboNtobol Té!.: (19) 3482-7600 * Fm: (19) 3482-7700
lél.: (11) 6842-8300 • Fox.- (11) 6842-8301 lélTFbi: (16)3204-3204 E-moíl: grondehatelsoopedro@spjeflaLbr
E-moil: sefltoatidre@jpjenacbt E-moil: fflbotlcobol@sp.senot.br Gronde Hotel Campos do Jordão -
Seaot Totoopé Senotio6 Hotel-escolo Senot
M: (11) 2939188 «Foj: (11) 294-2437 W.: (14) 3622-2272 • Foi: (14) 36218166 Tá: (12) 3668-6000 * Fm: (12) 3668-6100
E-moil: totuope@spjenocbr E-mod: |oa@spjenoc.bt E-mail: grandeholeíaifflpos@sp.senotbr
Seaot Tirodenles Senot Jendiol
M: (11)3329-6200 • Fm: (11)3329-6266 U: (11) 45868228 • Foi: (11) 4586-8223 Faça ium «ufe*tíU>,
E-moil: firadefit«@spjenat.br E-moil: {undiai@spjenot.br cHtica, «togto.
Oh I imdònniÇk» qua
Seaot 24 de oib» Senot Limeira «ôcA praâMs CMto •
H: (11) 221-9622 • Fm: (11) 221-9407 W.: (19) 34S144M • Fm: (19) 3441-6039 aCutahMallSW
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E-moil: 24demalo@tpjenatÍK E-moil: liffleiro@spjenocJ)t aeaLBNaaDQsfumcAr
alfaiates, filho de dono de confecção, tra¬
balha nessa área desde os 12 anos de
idade. Na sua história, o ohcio da moda e
a cultura judaica são partes de um mes¬
mo contexto, que ele busca apreender
através da sociologia, mas sem perder a
ligação afetiva com essa história.

É justamente nessa abordagem


embasada em universos que vivenciou
que consiste o diferencial e o charme do
livro de Guillaume Erner, tornando-o
igualmente atraente para o leitor ama¬
dor e 0 estudioso de sociologia. Um tex¬
to de indubitável quahdade hterária, no
qual uma argumentação intelectual con¬
sistente evolui associada ao humor e à
ironia, que vem preencher uma lacuna
de publicações que contribuam para o
desenvolvimento da reflexão e da pes¬
quisa no domínio da moda.

Maria Lucia Buem


Doutora em sociologia e coordenadora do
mestrado em moda, cultura e arte do Centro
Universitário Senac.

Guillaume Erner é maitre de confé-


rence em sociologia no Instituto de Estu¬
dos Pohticos de Paris. Trabalha também
há uma década no universo da moda, no
qual contribuiu para o desenvolvimento
de várias marcas.
No século XIX, com o advento da importância dos costureiros, sua
assinatura e marca de fábrica, nasce o fenômeno social da moda. No
século XX - “o século dos costureiros” -, Chanel é personabdade; Dior
é recebido como chefe de Estado. Hoje, Gaultier ou Lagerfeld são
celebridades. Encarnando numa só figura o artista e o homem de
negócios, surgem os estilistas - e eles criarn suas marcas. As grifes
têm, então, lugar garantido no sistema da moda.

Mas como funciona esse sistema? Quais são seus elementos? Os


estüistas de fato inspiram tendências ou elas não passam de um
enigma? Qual é o papel da sociedade nesse sistema? Lacroix estava
certo ao insinuar que “a rua é perigosamente criadora”? Como
transformar objetos banais em produtos de sucesso? Um após outro,
sucedem-se os talentos no ranking da moda; seria esse um forte
indício de que os estihstas são suas primeiras vítimas? Quem seriam,
afinal, as vítimas da moda?

O Senac São Paulo espera, com esta obra, responder a essas questões e
aprofundar o estudo do complexo e glamoroso mundo da moda.

ISBN 85^7359-454-3

9788573 594546

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