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Agradecimentos
Créditos
Para aqueles criados em cidades pequenas e fofoqueiras
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Nem preciso abrir a porta de casa para ouvir os gritos do lado de dentro.
— … e não vem me dizer que você não sabia, porque você sempre
sabe! — minha mãe grita no meio de um argumento, sua voz clara apesar
de estar na cozinha. — Eu não aguento mais! Até quando você vai se escon-
der atrás dessa fachada de prefeito preocupado com o povo e ficar fazendo
esse tipo de coisa?
— E você precisava fazer aquela cena no meio da cidade toda? — Ouço
a resposta do meu pai quando giro a chave e abro a porta depois de respirar
fundo. Meu plano é apenas avisar que estou aqui, subir as escadas e me
trancar no quarto. — Precisava me desmoralizar na frente da porra do
padre?
Meu pai está de pé no batente da cozinha, a gravata afrouxada e a ex-
pressão lívida. Ele é branco e careca, mas cultiva, além da barba grisalha e
espessa que cobre seu rosto, uma gordura que ganhou nos últimos anos.
Suas orelhas são um pouco grandes demais e ele mantém, mesmo sem per-
ceber, a expressão constante de quem ouviu uma notícia ruim.
Assim que me vê entrando pela porta, percebo imediatamente que ele
modula o tom de voz e pede alguma coisa para minha mãe, mas não consi-
go ouvi-lo.
— Não! Chega! — escuto a resposta dela, em alto e bom som, vinda do
outro cômodo. — O André já é adulto o bastante para entender que as coi-
sas não estão bem nessa casa! Elas só vão ficar bem quando nós dois admi-
tirmos que esse casamento não está mais dando certo!
Sinto um bolo descer pela minha garganta. Por mais que agora eu não
chore com as brigas como chorava na infância, ainda sinto um gosto amar-
go quando percebo que as discussões começam a se inclinar para o mesmo
caminho de sempre: divórcio. E não tem nada a ver com achar que o casa-
mento deles tem algum tipo de salvação. Sendo bem sincero, tenho certeza
de que os dois funcionariam muito melhor separados. Mas como isso ficaria
para mim? Como seria ter que me desdobrar por duas casas diferentes, li-
dando com os dois ao mesmo tempo em que estou tão, mas tão perto de fa-
zer dezoito anos e que posso finalmente pensar em estudar bem longe de
Lima Reis?
Meu pai e minha mãe são completos opostos. Ele é silencioso, sério e
emburrado, ela é comunicativa e toda sorrisos, a intermediária perfeita caso
alguém deseje ter uma reunião com o prefeito. Enquanto meu pai só se pre-
ocupa com as aparências e daria qualquer coisa para manter a imagem da
família de margarina para seus eleitores, minha mãe faz questão de dizer
que só se esforça para continuar com meu pai em consideração a mim, já
que um adolescente precisa de uma casa e de uma família estáveis para
crescer.
Isso é literalmente tudo o que eu não tenho nesse momento, mãe, mas
obrigado pela consideração.
A grande verdade é que minha mãe procura qualquer justificativa para
adiar essa decisão, talvez por sua convicção de que casamentos são compro-
missos eternos — alegria e tristeza, saúde e doença, e todo esse papo religi-
oso. O problema é que isso acaba me colocando no meio de uma disputa
boba sobre com quem vou morar, que sempre aparece de forma mais ou
menos ameaçadora, dependendo da situação.
Eu moraria em qualquer lugar onde não houvesse essa gritaria como tri-
lha sonora.
— André! — minha mãe me chama.
— Eu tenho que mandar as fotos para o Felipe! — respondo de imedia-
to, subindo as escadas de dois em dois degraus e fechando a porta do meu
quarto antes que eles saiam da cozinha.
É claro que já passei as fotos para o drive compartilhado quando fui ao
jornal, mas se tem uma coisa em que sou especialista, é em evitar conflitos.
Ainda mais quando não dizem respeito a mim. Se houvesse uma habilidade
que eu pudesse destacar como a minha melhor, certamente seria essa. Com
o tempo, aprendi a arranjar desculpas sempre plausíveis o bastante para não
me envolver nessa eterna guerra instalada aqui em casa.
Mas, dessa vez, não é o bastante. Sem aviso, minha mãe abre a porta do
meu quarto com força, fazendo-a bater na parede e derrubando o funko da
Lady Gaga que está na estante.
— Ei! Devagar! — resmungo, recuperando um dos meus bens mais pre-
ciosos e colocando-o de volta no lugar.
— Vem aqui — responde ela, ríspida. — A gente precisa conversar.
— Ai, mãe, sério? Conversar o quê? Eu não tenho nada a acrescentar
nessa ou em qualquer outra discussão de vocês dois. Eu preciso trabalhar,
de verdade.
Ela me olha e, por trás de toda a fúria pelo meu pai, percebo que ainda
existe algum traço de racionalidade nela.
— Dessa vez seu pai passou dos limites, André — explica ela, o tom de
voz algumas notas mais baixo, o que faz meus sinais de alerta soarem todos
ao mesmo tempo. Essa não é a voz de gritos com palavras cruéis das quais
ela provavelmente vai se arrepender. Essa é a voz de quem está falando sé-
rio, prestes a tomar uma decisão importante.
— O que você já está colocando na cabeça desse menino? — Meu pai
entra no quarto e, aparentemente, a terapia de casal vai ser bem aqui, entre a
pilha de roupas largadas na escrivaninha e a cama bagunçada. — Eu já falei
que nossas brigas são nossas brigas! O André não tem nada a ver com isso!
— Mas ele tem! Ele é parte dessa família! Família que você tenta des-
truir de qualquer maneira!
— Destruir? Tudo o que eu faço é para vocês! E agora você quer botar
isso por água abaixo?
Meu pai respira fundo e senta na beirada da minha cama. Coloca os co-
tovelos sobre as coxas e abaixa a cabeça.
Se essa fosse a primeira vez que eu estivesse vendo isso, diria que ele
está cansado de tantas discussões e só quer resolver as coisas da maneira
mais fácil para todos.
— Eu já disse que não tive escolha, Selma — continua ele, dessa vez
mais baixo. Do que está falando? — Vamos conversar com mais calma. Se
você não quer mais continuar com esse casamento, tudo bem, mas vamos
deixar para resolver isso depois que essa eleição passar. É tudo o que te
peço.
Como não é a primeira vez que vejo a cena, sei que não está cansado.
Ele só está, como todo bom político, tentando resolver as coisas da maneira
mais fácil para ele .
Meu pai pode amar minha mãe e pode me amar do seu jeito extrema-
mente particular, mas não há nada que ele ame mais do que o cargo de
prefeito.
E minha mãe já conhece as táticas dele.
Por isso, só explode:
— Eu já estou cansada disso tudo! Dessa vez é para valer, Ulisses: che-
ga! Chega de ter que lidar com você e com sua prefeitura, com essa campa-
nha e com a maquiagem que essa cidade obriga a gente a passar no nosso
casamento!
Meu pai tensiona a mandíbula quando percebe que suas palavras não
surtiram o efeito desejado. Minha mãe continua:
— Eu sei que você ama essa merda de cargo e faria qualquer coisa por
ele, mas não passo nem mais um segundo dividindo o mesmo teto que
você!
— Você não está sendo razoável, Selma, eu…
— Não, eu não estou sendo razoável, e essa é a melhor decisão que já
tomei na vida!
Meu pai se levanta da cama e olha para minha mãe com uma expressão
raivosa.
— Não faça nada de que você possa se arrepender depois.
Ele olha para mim, talvez esperando que eu diga alguma coisa, mas uso
meu superpoder de evitar conflitos e me mantenho mudo, completamente
estático, olhando para um ponto fixo no meio da parede.
Meu pai se vira e sai do quarto, batendo a porta e derrubando o funko da
Lady Gaga mais uma vez.
A respiração da minha mãe está entrecortada. Quando olho para ela,
percebo que há um pequeno sorriso em seus lábios. Alívio, talvez. Ou o pri-
meiro sinal de que a ficha caiu, ela percebeu que foi longe demais e agora
precisa se desculpar.
Eu já vi acontecer mais de uma vez e não me surpreenderia se aconte-
cesse de novo.
Mas alguma coisa me diz que dessa vez vai ser diferente.
3
Quando chego em casa, minha mãe está sentada na mesa da sala, enca-
rando uma planilha cheia de números na tela do computador.
— Pensei que você fosse trabalhar na escola hoje.
Meu pai conseguiu uma vaga de auxiliar administrativa para ela, mas
não é um trabalho muito regular. Ela vai uma vez ou outra na semana.
— Trabalhei em casa, mas já estou encerrando o expediente. Seu pai vai
ficar trabalhando até mais tarde no comitê, mas nós dois conseguimos con-
versar de cabeça fria hoje cedo e chegamos a uma solução que vai ser boa
para todo mundo.
Dou um suspiro resignado.
— Vamos ter mais brigas hoje?
Ela desvia os olhos de suas tabelas e me encara com uma expressão
cansada. Fecha a tela do computador e entrelaça os dedos sobre a mesa, res-
pirando fundo.
— Olha, André… eu sei que as coisas não estão indo bem. Mas não
posso ignorar o fato de que seu pai está em campanha eleitoral e qualquer
mudança na vida pessoal dele pode afetar o número de votos. Você sabe
como tudo funciona por aqui.
— Mas o que ele fez dessa vez? — pergunto.
— Isso não é importante — responde ela, desconversando. Resolvo não
insistir, mesmo ciente de que isso é literalmente a informação mais impor-
tante para entender por que ela está tomando essa decisão nesse momento.
— O que importa, agora, é saber se você está bem.
Encolho os ombros, porque é assim que sempre reajo a essas brigas:
com indiferença fingida.
— Eu só não sei por que vocês dois não se separam logo — murmuro,
fazendo minha mãe erguer as sobrancelhas em surpresa com minhas pala-
vras diretas. — Tudo bem, eu sei que agora tem a eleição e tudo o mais,
mas vocês não estão bem há algum tempo. Meu pai sempre deu mais aten-
ção à carreira dele do que a nós dois.
A expressão da minha mãe muda. Dessa vez parece um pouco chocada,
mas para mim é uma conclusão meio óbvia.
Acho que ela não está acostumada a me ver sendo assim, tão direto.
Mas já estou cansado de todo esse clima pesado aqui em casa. Cansado de
ter que lidar com todas essas questões ao mesmo tempo em que devo me
concentrar no meu futuro e na melhor forma de sair dessa cidade o mais rá-
pido possível.
— Casamentos não são fáceis, meu filho — responde ela, depois de
pensar por alguns segundos. — E, quando me casei, eu sabia que era um
compromisso para a vida inteira. Você sabe que levo isso a sério.
A pior parte é que é verdade. Minha mãe leva a Igreja muito a sério.
Claramente herdou isso da minha avó, que tem a casa repleta de imagens de
santos e reza pelo menos três terços de manhã e três de tarde, ouvindo a
missa no radinho da cozinha no último volume enquanto coloca garrafas de
água para benzer. Minha mãe não é tão católica assim, mas acredita nos pre-
ceitos da Igreja. Acredita que o matrimônio deve ser para sempre, e que a
frase “na alegria e na tristeza” é uma ordem e não um mero objetivo.
É muito esquisito ver a vida de alguém ser tão pautada pelos ensina-
mentos religiosos que recebe. Eu cresci correndo entre as festas do padroei-
ro da cidade, estudei a história da Bíblia antes da primeira comunhão e ia
religiosamente para as missas de domingo. Foi na igreja que conheci Diego,
a propósito, porque ele apareceu lá ao lado de sua mãe e se apresentou para
todos nós como novo morador de Lima Reis, no começo do ano. Parece que
toda a minha vida, mesmo que indiretamente, está ligada àquele lugar.
Mas há algo que me mantém distante de tudo isso ultimamente. Talvez
seja a percepção de que, não importa o quanto eu reze, não vou conseguir
mudar o que sinto, e não quero ter que mascarar essa parte de mim apenas
para me sentir bem-vindo em algum lugar. Ouvir o padre Castro dizer em
suas homilias sobre como “o mundo está perdido” e como “a modernidade
está acabando com o conceito de família descrito por Deus” faz meu estô-
mago revirar em agonia. Não é como se eu tivesse pedido para Deus me fa-
zer gostar de garotos. Rezei exatamente pelo contrário. Já passei noites e
mais noites tentando pensar em garotas, pedindo para me apaixonar por
elas, na esperança de andar de mãos dadas com uma e mostrar para toda a
cidade que eu era o orgulho do prefeito Ulisses Aguiar.
O padre Castro fala que tudo são provações: se o casamento dos meus
pais vai mal, é Deus tentando fortalecê-lo; se eu olho para Diego e tenho
vontade de beijá-lo, é Deus me testando, porque, na cabeça limitada de
quem acredita em serpentes falantes e arcas que boiam em dilúvios, o maior
absurdo é um homem amar outro homem.
Uma parte de mim, a mais racional, tenta se convencer a todo o momen-
to de que nada disso faz sentido. Por que viver uma vida infeliz pela recom-
pensa de um Paraíso onde só entra quem segue regras arbitrárias? Mas outra
parte, aquela que cresceu ouvindo sobre como a desobediência é errada e
como a dor e a tristeza eternas são inevitáveis aos pecadores, sempre sus-
surra no meu ouvido que é melhor seguir as regras. Só para garantir.
Será que minha mãe também tem esse sentimento? Será que se sente um
fracasso por considerar se separar do meu pai?
— Eu sei que você leva a sério, mãe. Mas faz alguns anos que não está
dando certo. — Puxo uma cadeira e me sento ao lado dela, colocando a ca-
beça em seu ombro ossudo. Ela é muito menor do que eu, pequena igual a
minha avó, com cabelos curtos e pintados de vermelho-escuro, mas não dei-
xo de me sentir acolhido quando ela passa as mãos pelo meu rosto.
Ela inspira profundamente e depois solta o ar como se ele pudesse levar
embora todas as suas preocupações.
— É, não está… — responde ela. — Mas eu também não posso atrapa-
lhar a reeleição do seu pai. Você sabe como isso é importante para ele.
Ela sempre se esquece de pensar no que é importante para ela, mas pre-
firo não falar sobre isso agora.
— Você realmente acha que isso pode atrapalhá-lo? — é o que
pergunto.
— Você vive nessa cidade desde que nasceu, André. Sabe que ainda es-
tamos em 1970 por aqui.
— Mil novecentos e setenta e sete — respondo. — O seu Joaquim colo-
cou uma mesa de sinuca no bar. Um grande avanço tecnológico.
Ela dá uma risadinha.
— Que seja. Mas você sabe o que vão dizer quando descobrirem que eu
e seu pai não estamos bem. — Ela altera o tom de voz e começa a imitar
uma idosa. — “Se ele não consegue tomar conta da esposa, imagina se con-
segue tomar conta da cidade?!”
Eu a imito e também faço uma voz rouca:
— “Imagina só, uma mulher desquitada! Como vai conseguir se susten-
tar sem um marido?!”
— Essa é sua avó, não é?
Não consigo segurar a risada quando tiro a cabeça do ombro dela.
— A propósito, você já conversou com a vovó? — pergunto.
— Por Deus, não! Se tem alguém com quem eu não vou conversar so-
bre isso, é sua avó!
Fico confuso.
— Eu pensei que… não sei… você ficaria por lá para não ter que lidar
com meu pai?
— Você realmente acha que dona Sebastiana, no auge dos seus sessenta
e dois anos e três terços por turno, vai aceitar uma filha divorciada na casa
dela?
— Então qual é o plano? Você disse que conseguiu chegar em uma solu-
ção boa para todos.
— Sim, isso. O plano. — Ela parece ao mesmo tempo empolgada e an-
siosa. — Eu decidi ficar na casa que era dos seus avós — diz ela, se referin-
do à casa onde meu falecido avô paterno, antigo prefeito de Lima Reis, mo-
rou ao lado da minha avó paterna, que também já partiu dessa para a me-
lhor. — Pelo menos até tomar uma decisão definitiva. Ainda não sei qual
vai ser nosso futuro depois da eleição, mas sei que não dá mais para conti-
nuar morando aqui e convivendo com seu pai. A gente pode até fingir que
está casado durante a campanha, mas vai ser importante manter a distância
e esfriar a cabeça para pensar no que vamos fazer depois que tudo isso pas-
sar. E isso inclui você, André. A gente pode conversar quando você quiser.
— Você já sabe minha opinião — respondo prontamente, e fico satisfei-
to quando percebo que minha mãe não me vê mais como uma criança, mas
sim como alguém com direito aos seus próprios pensamentos. — Estou
mais interessado em saber qual vai ser a desculpa. Porque, mesmo que você
saia daqui às três da manhã com uma mochila, eu tenho certeza de que todo
mundo na cidade já vai estar comentando no dia seguinte.
— Seu tio Eduardo vai vir aqui me dar uma força.
Ergo as sobrancelhas em espanto genuíno.
— O quê? O tio Eduardo? O tio Eduardo que odeia essa cidade e nunca
apareceu por aqui? Esse tio Eduardo?
— Você só tem um tio Eduardo — responde ela. — Acho que vai te fa-
zer bem. Você finalmente vai poder conhecê-lo.
— Ok, e quanto você ofereceu para ele voltar a Lima Reis? — pergunto.
De todas as notícias que poderiam abalar essa cidade que sofre da sín-
drome de falta de novidades, essa me pegou completamente desprevenido.
Tio Eduardo é o único irmão da minha mãe. Ele também nasceu e cres-
ceu aqui, mas diferente de todas as pessoas sem perspectiva dessa cidade,
foi embora para São Paulo na primeira oportunidade que teve.
A gente não tem muito contato. Quer dizer, minha mãe liga para ele
pelo menos uma vez por mês para jogar conversa fora. Às vezes é só um
“oi, só queria ouvir sua voz e saber se está tudo bem. Está tudo bem? Então
tá, tchau”, e em outras é uma ligação de quarenta minutos com os dois fofo-
cando sobre o passado, acompanhada pelas gargalhadas da minha mãe, que
enchem a casa de vida. Quase sempre ela passa o telefone para mim, dizen-
do “dá um oi para o seu tio”. Cresci falando pouco mais do que ois para ele.
Tio Eduardo às vezes até faz umas perguntas impessoais, do tipo “o que tem
feito de bom?”, “quais são as novidades?” etc. etc., mas minhas respostas
geralmente circulam entre “nada de mais” e “tudo na mesma”.
Acho que ele deve ser meio quadradão. Já dei uma olhada no Instagram
e ele quase não posta. Só umas fotos conceituais de paisagens, plantas e ga-
tos em preto e branco.
— Deixa de ser bobo, André — diz minha mãe. — Ele vai vir porque
estou precisando de ajuda e vai ficar até o fim da eleição.
— Eu ainda não entendi como você vai convencer essa cidade futriquei-
ra a comprar a ideia de que o tio Eduardo não pode ficar aqui nessa casa
com a gente. Tipo, olha o tamanho desse lugar!
— Eu já pensei em tudo — responde ela, e vejo seus olhos se ilumina-
rem como se ela fosse uma mestra do crime. — E é aqui que vou precisar
da sua ajuda. Seu tio sempre foi um homem orgulhoso e meio que não é se-
gredo para ninguém que ele e seu pai não se bicam, então a desculpa de que
ele não vai ficar aqui em casa vai ser convincente. E, para que ninguém fi-
que batendo na nossa porta toda hora, seu tio concordou em fingir que está
se recuperando de uma cirurgia.
— Cirurgia? — pergunto, surpreso. — De quê?
— De... — Ela olha para cima, raciocinando por uma fração de segun-
do. — Coração! Por causa de uma doença cardíaca!
Ela definitivamente não pensou em tudo.
Só a encaro, tentando encontrar uma forma delicada de dizer que isso
pode dar muito errado.
— Não é a melhor ideia do mundo, mas é uma ideia — responde ela ra-
pidamente, vendo minha expressão duvidosa. — Espero que vocês dois
possam se dar bem. Eu ainda não acredito que você e seu tio nunca se viram
pessoalmente.
— A desnaturada é você, que nunca nos apresentou.
— Você me lembra muito dele quando era mais novo.
— Nossa, e você realmente gosta dele?
— Deixa de ser idiota, André. — Ela me dá um tapinha na parte de trás
da coxa antes que eu consiga desviar. — Ei… eu te amo, tá?
A declaração me pega de surpresa. Olho para trás, com a mochila nas
costas, pronto para subir as escadas, e não consigo evitar um sorriso.
— Sei que eu e seu pai temos nossas brigas e você fica no meio de tudo
isso — continua ela, gesticulando com os braços ao se referir a tudo isso —,
mas você não tem nada a ver com nossos problemas. Você é a melhor coisa
que eu e seu pai fizemos juntos.
Continuo sorrindo. E não deixo de pensar em tudo o que posso perder
quando minha mãe descobrir que não sou o filho que ela acredita ter criado.
As coisas vão continuar do mesmo jeito depois que ela constatar que seu
filho vai contra tudo aquilo que sua religião professa?
— Eu também te amo, mãe — respondo meio sem jeito, espantando os
pensamentos ruins.
Talvez ela possa continuar me amando quando eu finalmente tomar co-
ragem e fazer com que minha sexualidade não seja mais um segredo.
Talvez ela seja melhor do que todas as outras pessoas dessa cidade.
5
Minha mãe faz um banquete naquela noite, como se quisesse mostrar to-
das as suas habilidades culinárias de uma vez só: arroz, feijão, couve-flor
gratinada, batatas fritas, vinagrete, farofa de ovos e carne frita na manteiga,
tudo colocado nas travessas de cerâmica que ela deixa escondidas no armá-
rio mais alto e fala que são só para as visitas importantes. Tio Eduardo diz
que nada daquilo é necessário, e que se fosse por ele era só pedir uma pizza,
mas depois minha mãe o lembra de que não existem pizzarias decentes em
Lima Reis e ele se lembra de que não está mais em São Paulo, onde pode
comer tudo o que quiser à hora que quiser. Sem fazer muita cerimônia, ele
agradece e começa a encher seu prato, e meu pai ergue uma sobrancelha
como se estivesse se perguntando onde estão os modos de alguém que se
serve antes do dono da casa.
Meu pai tem esse jeito autoritário às vezes. São nas pequenas coisas:
quando grita e pede um copo de água, mesmo que seja totalmente capaz de
se levantar e pegar por si mesmo; quando reclama da casa bagunçada, mas
mal repara que larga seus objetos em qualquer lugar e bagunça tudo; quan-
do faz algum comentário sobre minhas roupas amassadas ou as cores das
roupas que minha mãe usa quando vai ao mercado (não que isso faça muita
diferença, porque minha mãe só responde com um ocasional “cuide da sua
vida” antes de sair porta afora). Minha mãe me fala que aquele é o jeito
dele, acrescenta que todos têm defeitos e devemos conviver com as partes
boas e ruins se quisermos ter uma relação longa com alguém, mas tenho
certeza de que ela também se incomoda.
E, com tio Eduardo ali, parece que o ar fica mais pesado. É um jogo fas-
cinante de observar: é como se meus pais estivessem em uma partida de xa-
drez na presença do meu tio. Todos os movimentos deles parecem calcula-
dos e artificiais. Meu pai tenta ser simpático, mas depois de abraçar tio Edu-
ardo quando chegou em casa, a primeira coisa em que reparou foi na apa-
rência dele.
— O que é isso no seu rosto? — perguntou quando percebeu que parte
do rosto de tio Eduardo ficou carimbada em sua camisa social branca.
Tio Eduardo estava testando maquiagens para ficar com uma aparência
mais pálida.
— Tenho que parecer convincente, não é, Ulisses?
Percebi quando meu pai engoliu em seco, visivelmente irritado.
De todas as suposições que tenho sobre meu pai, a principal delas é que
ele odeia qualquer coisa que seja diferente do que considera “normal”. E tio
Eduardo não tem absolutamente nenhum constrangimento com seus trejei-
tos nem se esforça para parecer menos feminino ou masculino do que é.
Aquilo me deixa admirado, mas tenho certeza de que meu pai não gosta
nadinha.
Agora, quando estamos todos sentados na mesa de jantar, vejo meu pai
dividindo sua atenção entre as mil mensagens que chegam a cada segundo
em seu celular e o rosto de tio Eduardo, como se sua cabeça estivesse se es-
forçando muito para assimilar aquela nova pessoa ali, toda sorrisos e ma-
quiagem no rosto, compartilhando o seu jantar.
— Você está diferente, Eduardo — diz meu pai, cortando a carne e fa-
zendo a faca riscar o prato com um barulho irritante. — A capital te mudou.
Tio Eduardo sorri, subitamente consciente dos olhares do meu pai sobre
ele.
— Para melhor, espero.
— A cidade inteira já está comentando sobre sua chegada — diz meu
pai. — Estão perguntando se você veio me ajudar na campanha.
— Se precisar de alguma coisa, estou a postos.
— Já tenho bastante gente me ligando a cada cinco minutos e pedindo
por coisas diferentes, mas obrigado por oferecer — complementa ele, talvez
mais para mostrar trabalho do que para iniciar qualquer tipo de conversa. —
Só essa semana eu já conversei com fazendeiros, com professores, com
operários e até com a porcaria da associação de moradores do bairro. Não
sei de onde esse pessoal tira tanto problema e tanta reclamação para minha
cabeça.
Meu pai está inegavelmente menos paciente do que o normal. Ele mal
parou em casa nessas últimas semanas, e mesmo agora, quando está jantan-
do, seu celular está ao lado do prato e ele conversa ao mesmo tempo em que
rola o indicador pela tela. Seus olhos leem as mensagens e seus dedos ágeis
abrem e fecham aplicativos.
Minha mãe pigarreia quando percebe que meu pai foi sugado pela tela
do telefone. Mesmo sabendo que ele e tio Eduardo não são exatamente me-
lhores amigos, ela quer que meu pai dê o mínimo de atenção para a visita.
Afinal, bons modos independem de cargos políticos e todo mundo aqui em
casa sabe disso.
Meu pai percebe a deixa, pressiona mais quatro ou cinco vezes a tela do
celular e então a bloqueia, virando-a contra a mesa e sorrindo.
— Em que você está trabalhando agora, Edu? — pergunta minha mãe
apenas para preencher o silêncio, porque é claro que, pelo meu pai, a trilha
sonora seriam os cliques do telefone e os talheres batendo sobre os pratos.
— A gente terminou a pós-produção de um disco da Lana Love no mês
passado. Seu convite veio no momento certo, porque posso acompanhar a
campanha de lançamento a distância. O mês passado foi uma loucura, então
estar aqui vai ser como tirar férias.
Arregalo os olhos quando ele fala aquilo.
— Você trabalha com a Lana Love? — pergunto, maravilhado.
Lana Love é uma das minhas cantoras favoritas.
Não que alguém saiba disso. Sempre tenho que desabilitar a função “o
que estou ouvindo” quando coloco alguma música dela para tocar no Spo-
tify, porque tenho certeza de que todo mundo comentaria sobre o filho do
prefeito ouvindo sem parar as músicas de uma drag queen.
— Desde o começo da carreira. Ela é uma das minhas melhores amigas
— responde tio Eduardo.
Volto a atenção para o meu prato, porque não quero que ele perceba o
brilho nos meus olhos. Não quero que ele comece a perguntar se eu conheço
alguma música dela, porque Lana Love é uma artista que não anda apenas
no nicho de músicos queer. Ela vai a programas de auditório na TV aberta,
participa de campanhas publicitárias de grandes marcas e está em lugares
onde, em outros tempos, nunca seria bem-vinda.
Ela representa a esperança de que é possível transitar nesses lugares
com a mesma confiança de um homem branco e heterossexual.
— Deus me livre… — murmura meu pai, balançando a cabeça.
São apenas três palavras ditas de um jeito casual, mas me machucam.
Como tio Eduardo está ali, percebo que meu pai se esforça para não come-
çar a emitir suas opiniões sobre como é uma aberração que um homem se
vista de mulher e se apresente para milhares de pessoas.
Tio Eduardo só olha para o meu pai e dá uma risadinha.
— Você continua igual, Ulisses. O mundo não é Lima Reis, meu amigo.
— É esse tipo de modernidade que está acabando com o mundo — res-
ponde ele. — Todas as pessoas com quem falo nas ruas dizem o mesmo:
essa modernidade ainda vai nos destruir. O que vem depois disso? Obrigar
nossos filhos a conviver com esse tipo de coisa como se fosse normal? Esse
pessoal tinha que ter vergonha na cara e não ficar expondo nossas crianças a
esse tipo de coisa.
Engulo em seco.
Tio Eduardo olha para mim com uma expressão cansada.
— A gente passou tempo demais expondo as crianças a acharem que é
certo xingar e humilhar quem é diferente. Eu prefiro que elas sejam expos-
tas a aceitarem o que é diferente e não serem tão cabeças fechadas quanto
você.
— Eu, cabeça fechada? Esse tal de Lana Love pode fazer o que quiser
com a vida dele. Mas eu sou obrigado a concordar?
— Eu também não sou obrigado a concordar com quem acha que os ar-
tistas para quem trabalho são aberrações, mas aqui estamos nós. E o prono-
me certo é ela .
— Ei, vocês dois, vamos já parando com isso! — responde minha mãe
quando percebe que a conversa está começando a enveredar por caminhos
que ela não será capaz de controlar. — Ulisses, o Eduardo está aqui para
nos ajudar. Eduardo, você conhece seu cunhado há muito tempo para saber
como ele é. Vamos só deixar essa conversa para lá e ter um jantar sem esses
assuntos, pode ser?
Não é justo crescer ouvindo esse tipo de coisa. E não importa o quanto
me digam que o mundo está mudando e as coisas são diferentes de como
eram no passado. Agora, é isso o que tenho que ouvir. É com isso que tenho
que conviver diariamente. Por mais que meu tio seja uma faísca de esperan-
ça sobre meu futuro, ainda preciso me lembrar frequentemente de que pes-
soas como meu pai estão por aí, disseminando seus preconceitos em janta-
res a portas fechadas, talvez para outras pessoas tão preconceituosas quanto
ele.
Eu quero ser corajoso. Quero poder andar com uma camisa da Madon-
na, conhecer a RuPaul em uma viagem para os Estados Unidos e usar ma-
quiagem quando me der na telha, mas será que isso é possível? Será que
sempre vou ter que fazer isso com a preocupação de as outras pessoas esta-
rem prontas para falar o que quiserem da minha vida, sem nem se importa-
rem se me machucam ou não?
Quero ser como o tio Eduardo. Quero conseguir falar para o meu pai
que não é aceitável emitir essas opiniões, quero sacudir minha mãe e dizer
que a melhor forma de lidar com aquilo não é deixando para lá. Mas minha
reação às palavras deles é sempre a mesma: fico quieto, porque não quero
que o assunto se volte contra mim. Não quero falar sobre como meu pai é
horrível quando diz coisas como aquelas porque, assim, ele vai perguntar
por que estou sendo tão sensível.
Já criei cenários na minha cabeça em que saio do armário, e em nenhum
deles meu pai aceita aquilo bem. Em relação a minha mãe, tenho algumas
dúvidas, mas acho que ela ficaria estranha por algum tempo até digerir a in-
formação. Já meu pai não saberia lidar. Na melhor das hipóteses, ele se
manteria resignado, fingiria que não ouviu nada e, como uma criança, des-
conversaria até que eu ficasse cansado e ignorasse o assunto para o resto da
minha vida. Na pior das hipóteses, ele diria que sou uma vergonha e que
não aceitaria aquilo dentro da casa dele. Eu só tenho uma certeza: em todos
esses cenários vejo ele me ameaçando para eu nunca contar sobre minha
sexualidade para alguém, porque se as brigas com minha mãe já poderiam
colocar o cargo dele em risco, ter um filho gay com certeza o faria perder a
eleição.
Então, depois que minha mãe fala, vejo tio Eduardo concordar com um
sorriso cortês e meu pai parecer mais mal-humorado do que nunca.
E eu só pego uma batata frita e a enfio na boca, sem ousar dizer qual-
quer coisa que possa tornar a discussão ainda mais desconfortável.
Eu me enfio no quarto assim que o jantar termina. Meu pai arranja alguma
desculpa para sair, dizendo que precisa terminar de arrumar a casa onde tio
Eduardo ficará hospedado com minha mãe.
A ausência dele deixa os dois à vontade para falar alto. Consigo ouvir o
tom de voz divertido de tio Eduardo perguntando por que minha mãe não
tinha enviado a carta pedindo pelo resgate pelo menos cinco anos antes.
Ulisses era daquele jeito o tempo todo ou só estava assim pela presença
dele?
Pego meu celular e vejo que Larissa me deixou três mensagens:
Larissa: MENTIRA!
Olha que eu vou ficar com ciúmes, hein kkkk
Eu não trabalho com a Lana Love nem nada, mas também sou
incrível.
Larissa: !!!!!!!
Larissa: Deixa de neura, André. É claro que ele não vai fazer isso.
André: Ele e minha mãe conversam sobre tudo! Ele vai fa-
lar com ela, e aí ela vai falar com meu pai e vou me foder.
Larissa: Relaxa! Se ele é tão legal quanto você diz, tenho certeza
de que não vai fazer isso.
Acho que na real isso pode ser até bom pra você.
André: Idiota.
8
No dia seguinte, minha avó Sebastiana exige que tio Eduardo passe na
casa dela para matar as saudades antes de se hospedar de vez na casa que
era dos meus avós paternos. Minha mãe não gosta muito da ideia, mas sabe
tão bem quanto qualquer um que não se nega uma exigência de dona
Sebastiana.
Antes de irmos, no entanto, tio Eduardo puxa uma cadeira e se senta na
frente do espelho. Munido de seu estojo de maquiagem, começa a fazer o
trabalho de se transformar em uma pessoa doente.
— Você tinha que ver quando seu tio chegou aqui — diz minha mãe,
vendo meu tio passar uma base que dá um aspecto pálido a sua pele. — O
povo todo espiando para ver de quem era aquele carrão laranja e quem esta-
va saindo dele.
— Eu devia ter tirado uma foto antes de lavar o rosto — responde tio
Eduardo. — Foi um dos meus melhores trabalhos.
Ele realmente faz uma maquiagem primorosa: destaca olheiras que dei-
xam seus olhos mais fundos e faz um sombreamento nas bochechas, que dá
a ele um aspecto abatido. Hoje, está vestindo uma camisa alguns números
maior para mascarar o fato de que não está magro ou debilitado por nenhu-
ma cirurgia imaginária. Quando termina, ensaia uma expressão de dor e se
levanta com dificuldade, fingindo mancar de uma perna.
— Você tinha que ser ator — diz minha mãe, sorrindo com todo o tea-
tro. — E então, todos prontos?
Tio Eduardo vai mancando até uma estante e pega a chave do carro.
— Pode passando para cá que eu vou dirigir — responde minha mãe. —
Seu sobrinho está certo. Não dá pra convencer ninguém de que você está se
arrastando se for pego dirigindo aquele carro.
— Ele é automático! Quase não dá trabalho!
— Passa a chave pra cá.
— Se você machucar o meu bebê, eu…
— Eu não acredito que você se transformou em pai de carro depois de
velho. — Minha mãe pega a chave e abre a porta de casa. — Agora vamos
logo.
Antes de entrar no carro, percebo que algumas pessoas esticam o pesco-
ço assim que saímos de casa. Vejo as cortinas dos vizinhos entreabertas e
tenho certeza de que há gente espiando a movimentação para começarem o
dia com fofocas quentinhas.
— Como vai, dona Selma? Oi, André! — diz dona Rosana, uma das
nossas vizinhas. Ela tem uns quinhentos anos de idade e nada escapa aos
seus olhos. Convenientemente, está passeando com o cachorro de sua vizi-
nha pela calçada da nossa casa. O que é uma surpresa, porque dona Rosana
odeia aquele cachorro e deixa isso claro a toda oportunidade. E estou certo
de que só nos cumprimenta por cordialidade, porque logo suas atenções se
voltam para o meu tio. — Meu Deus do céu, Eduardo, há quanto tempo! A
dona Sebastiana me disse que você veio aqui se recuperar de uma cirurgia.
Está tudo bem, meu anjo?
Tio Eduardo olha para dona Rosana e, subitamente, começa a tossir. Ele
coloca a mão no peito e parece ter dificuldade para respirar, mas depois de
uma sessão extremamente exagerada de tosse, inspira fundo e sorri fraca-
mente antes de dizer:
— Olá, dona Rosana. Pois é… vou ficar aqui só por um período… a
Selma já fez tanto por mim, mas continua insistindo em ser uma boa irmã.
— Ele tosse mais uma vez, mas agora se contenta em ser mais breve. — Va-
mos visitar minha mãe antes de eu me instalar em definitivo por aqui.
— Oh, pobrezinho! Do que foi a cirurgia?
Tio Eduardo olha para minha mãe e para mim com uma expressão de
surpresa no rosto.
O problema de planos feitos em cima da hora é exatamente esse: ne-
nhum deles discutiu os detalhes. Eles acham que as pessoas daqui não con-
seguem farejar mentiras a quilômetros de distância.
— Foi uma… insuficiência cardíaca… congestiva — responde tio
Eduardo.
Ele está literalmente falando palavras aleatórias.
— Foi grave? — pergunta dona Rosana.
— Gravíssimo — responde tio Eduardo, antes de outra tossida discreta.
— Fiquei entre a vida e a morte. Os médicos chegaram a considerar um
transplante de coração. Tiveram que inserir um… um dispositivo para aju-
dar meu coração a continuar batendo.
— Um LVAD — acrescento quando percebo a clara referência a Grey’s
Anatomy. Olho para dona Rosana enquanto meu tio dá um pequeno sorriso
e minha mãe só levanta uma sobrancelha, intrigada. — Um dos médicos era
contra, mas outra médica colocou mesmo assim, sem autorização. Foi o que
salvou a vida dele.
— Nossa! Pobrezinho… — Dona Rosana dá um tapinha no ombro de
tio Eduardo. — Espero que tudo fique bem durante sua recuperação.
— Vai ficar, vai ficar… agora, se nos dá licença. — Tio Eduardo sorri
com cortesia, e aquilo é o suficiente para dona Rosana balançar a cabeça e
puxar a coleira do cachorro para continuar andando pela calçada. Com cer-
teza vai entrar na primeira casa disponível para falar sobre a cirurgia de co-
ração bem-sucedida do meu tio.
— Parece que não sou o único fã de Grey’s Anatomy por aqui — co-
menta ele assim que entra no carro.
— Eu sempre falei para minha mãe que assistir seriados não era perda
de tempo — respondo, satisfeito.
A casa da minha avó fica a cinco minutos de distância, no final de uma rua
cheia de mangueiras cujos frutos ameaçam constantemente as latarias dos
carros. Por causa da eleição, vemos cartazes em tons de laranja espalhados
pela cidade, estampando o número de candidato e o sorriso forçado do meu
pai por todos os muros, e até mesmo em algumas das árvores. Mas, diferen-
te da eleição de quatro anos atrás, quando meu pai parecia unanimidade na
escolha popular, dessa vez consigo ver placas azuis salpicadas aqui e ali,
onde Pedro Torres aparece de braços cruzados e uma expressão confiante
nos olhos arredondados e escuros.
Quando minha mãe estaciona a Land Rover e abrimos a porta do carro,
vejo uma quantidade absurda de santinhos — todos do meu pai — empor-
calhando o chão, junto aos pedaços de manga madura que caem sem aviso
das árvores. Tio Eduardo também observa o estado caótico do chão e diz
para minha mãe que ela vai pagar por qualquer eventual dano à lataria do
carro, mas ela não dá muita bola para ele.
Minha avó sai de casa assim que ouve o motor. Sempre admirei muito a
capacidade que ela tem de ouvir a menor movimentação do lado de fora, é
melhor do que qualquer sistema sofisticado de segurança. Ela é uma mulher
baixinha e magra, assim como minha mãe, com a pele marrom no mesmo
tom mais escuro de tio Eduardo e os cabelos curtos e grisalhos. Hoje, veste
uma camisa com uma estampa de Nossa Senhora de Fátima e ostenta seu
crucifixo pendurado no pescoço, mantendo sua expressão preocupada quan-
do tio Eduardo entra no “modo doente” e sai do carro como se estivesse
sentindo dor.
— Oh, pobrezinho. Está melhor? — pergunta ela antes de lhe dar um
abraço.
— Melhorando… — responde tio Eduardo, com um sorriso fraco. Ele
com certeza merece uma indicação ao Oscar. Será que está se sentindo cul-
pado ou se divertindo por estar enganando a própria mãe? — Mas finalmen-
te conheci o André ontem. Por que ninguém me disse que eu tinha um so-
brinho tão legal?
Minha avó larga tio Eduardo e me abraça em seguida, me envolvendo
com seus braços ossudos antes de nos mandar entrar.
A casa, como sempre, tem cheiro de lavanda e está impecavelmente
limpa. Vovó é o tipo de pessoa que, se precisasse de uma faxineira, limparia
a casa antes de ela chegar só para ninguém a chamar de bagunceira. Sobre a
mesa da sala, um bolo de fubá com erva-doce e uma cesta de pães nos espe-
ram junto com queijo branco, presunto e manteiga, e as louças que ela só
expõe para as visitas, mantendo a tradição da família, também estão dispos-
tas em frente às cadeiras.
Com pouco mais de sessenta anos, minha avó faz tudo sozinha: vai à
feira, limpa a casa, cozinha e ainda prepara marmitas para vender aos que
dizem que o tempero dela é o melhor de Lima Reis. Também encontra tem-
po para fazer cafés da tarde com suas amigas da igreja, costurar casacos
bregas de crochê e organizar toda a contabilidade de uma pastoral que dis-
tribui mantimentos para as pessoas mais pobres da cidade.
Ela é como minha segunda mãe. Quando eu era mais novo, minha avó
tomava conta de mim para minha mãe poder trabalhar, e sempre me encheu
de comidas gostosas e histórias sobre meu avô, que nem cheguei a conhe-
cer. Muito pouco mudou de lá para cá: ela ainda passa as tardes ouvindo
seus programas religiosos no rádio da cozinha enquanto prepara alguma co-
mida ou, quando finalmente decide se sentar e descansar um pouco, pega o
telefone e passa horas conversando com suas amigas da igreja. Ultimamente
também têm passado muito tempo explorando as possibilidades do celular e
descobriu as imagens de bom-dia nos grupos de mensagem, além de ter au-
mentado, e muito, sua eficiência em descobrir e repassar boatos ocorridos
na cidade. Tem sido uma transição interessante.
— Ai, Eduardo, por que você não me falou nada sobre essa cirurgia? —
pergunta minha avó assim que nos instalamos na mesa. Ela, sem pensar
duas vezes, começa a colocar café em nossas xícaras e a nos servir. Me sin-
to um pouco incomodado porque sou capaz de pegar uma garrafa com mi-
nhas próprias mãos, mas nessa casa é minha avó quem faz as regras. E a re-
gra principal é: permita-se ser mimado.
— Eu não queria te preocupar, mãe — responde ele.
— Mas você podia ter morrido! E como eu ia ficar? Só ia descobrir no
seu enterro?
— Foi uma cirurgia simples. E eu finalmente tive uma desculpa para
voltar para essa cidade e conhecer meu sobrinho.
Ele olha para mim e me dá um sorriso cúmplice, que retribuo.
— Você não precisava de desculpas para visitar sua família, Eduardo —
responde minha avó, uma nota de pouca paciência na voz. — Nós sempre
estivemos aqui, mas você precisou quase morrer para lembrar que a gente
existe.
Ah, a culpa católica.
— É muito difícil conseguir uma folga do meu trabalho, mãe.
— O importante é que o Eduardo está aqui agora, não é? — interrompe
minha mãe, tentando apaziguar o que pode vir a ser o início de uma
discussão.
Minha avó estende uma das mãos e pega a de Eduardo, suspirando.
— Eu só estava com muita saudade, meu querido.
Tio Eduardo sorri mais uma vez, não sei se de desconforto ou se apenas
mais uma parte da sua atuação como pessoa debilitada.
Ele recolhe a mão e a coloca entre as pernas, encolhendo os ombros.
Percebo que uma sombra passa pelo rosto da minha avó muito rapida-
mente, mas ela logo dá outro sorriso.
— Mas me conta tudo! — pede ela. — Como é finalmente conhecer o
nosso André?
— Eu estava com medo de a Selma ter criado um monstro, mas até que
ela fez um bom trabalho — responde ele, e minha mãe só revira os olhos e
dá um sorriso. Já percebi que a relação deles parece a mesma de dois irmãos
adolescentes. — O André é bem legal.
— Ele também quer ir embora de Lima Reis, igualzinho você — diz mi-
nha avó, olhando para mim. — Ele já te disse que é o jornalista da cidade?
— Eu fiquei sabendo. É meio difícil fazer suspense com qualquer coisa
por aqui. Continua a mesma coisa. — Tio Eduardo se volta na minha dire-
ção e pergunta: — No que o jornal está trabalhando agora?
— O Felipe não me deixa escrever o que realmente quero — respondo.
— Ele diz que é conflito de interesse ser filho do prefeito e querer escrever
sobre a reeleição. Na verdade, ele quer que você dê uma entrevista para o
jornal.
— O quê? Eu? — pergunta tio Eduardo, um pouco mais alto agora, ges-
ticulando de forma mais rápida do que qualquer cirurgia permitiria. Para
mascarar seus gestos, ele se encolhe e tosse uma dúzia de vezes. Quando
volta a falar, tenta parecer rouco e fraco. — O que ele… quer saber?
Encolho os ombros.
— Ele me disse que você é, e essas são palavras dele, “a joia de Lima
Reis e orgulho da cultura local”.
— Uau. Eu não sabia que era tão famoso.
— Para os padrões de Lima Reis, você é praticamente o Timothée
Chalamet.
— Aquele Felipe não perde uma oportunidade — resmunga minha avó,
franzindo a testa porque não faz a menor ideia de quem é Timothée Chala-
met. — Onde já se viu, usar o meu neto para conseguir uma entrevista com
o meu filho para o jornal?
— Você toparia, tio? — pergunto.
Tio Eduardo parece um pouco desconfortável.
— Esse jornal realmente não tem nada melhor para falar?
— Tem a eleição desse ano, mas o Felipe vetou minha ideia de fazer um
perfil do meu pai ou do Pedro Torres, e é terminantemente contra falar qual-
quer coisa sobre a construção do hospital que assombra meu pai desde
sempre.
— Então o Pedro Torres realmente está concorrendo à prefeitura dessa
cidade? — pergunta tio Eduardo. — Eu tinha quase certeza de que era ele
nas propagandas espalhadas por aqui, mas pensei que estava vendo errado!
Uau...
— E as pesquisas indicam que ele tem boas chances de ganhar do meu
pai — complemento.
Tio Eduardo balança a cabeça, os olhos fixos em sua caneca de café.
Lembro de Felipe me dizendo que meu tio, minha mãe, Pedro Torres e a
esposa dele eram próximos.
— Faz tanto tempo que não penso no Pedro — diz tio Eduardo. —
Achei que ele também estivesse morando em outra cidade.
— Que nada, menino. — É minha avó quem responde. — Depois que
você foi embora, ele engatou o noivado com a Paula e os dois se casaram.
Você se lembra da Paula?
— É claro que lembro! — Tio Eduardo vai parecendo cada vez mais ad-
mirado com aquela súbita visita ao passado. — Então ele finalmente parou
de enrolar e os dois se casaram?
Ele dá uma risada e, rapidamente, a converte em uma tosse fingida.
— Ai, meu pobrezinho… a gente não pode nem te fazer rir! — diz mi-
nha avó. — Você deve estar cansado da viagem. Ainda não sei como foi que
conseguiu vir dirigindo sozinho até aqui.
— O carro é automático — respondo para dar cobertura ao meu tio.
Minha avó parece não ouvir e continua:
— Vá descansar um pouco no seu quarto, meu filho. Está do mesmo jei-
to que era quando você foi embora. Sabe que eu nunca mudei nada de
lugar?
— A gente precisa organizar as coisas na casa dos pais do Ulisses, ma-
mãe — responde minha mãe.
— Meu filho não aparece tem quase vinte anos e agora vocês estão com
pressa? É claro que não. Dá uma deitadinha lá no quarto. Vocês só vão sair
daqui depois do almoço!
Os pedidos de dona Sebastiana são uma ordem. Minha mãe só suspira
antes de falar:
— Está bem, mas eu ajudo na cozinha. Vai lá com ele, André. É bom
que vocês conversam um pouco mais.
Todo mundo se levanta da mesa e acompanho tio Eduardo pelo corredor
em direção ao quarto dele.
Quando eu era criança e vivia correndo pela casa da minha avó, aquele
quarto sempre vivia de porta fechada. Minha mente infantil, cheia de ima-
gens das lendas urbanas que compartilhávamos em conversas na escola e na
praça, me fazia acreditar que havia alguma coisa sobrenatural ali. Mas, de-
pois que vi a porta aberta e minha avó lá dentro, sentada na cama enquanto
olhava para o nada, percebi que não era nada daquilo: o quarto só guardava
memórias. Enquanto crescia, aprendi que não era um lugar proibido, mas
vovó preferia que eu não entrasse ali. Até desobedeci às regras algumas ve-
zes quando era mais novo e estava entediado, porque o quarto do tio Eduar-
do é o único com um computador naquela casa, mas confesso que, na maior
parte das vezes em que estive ali, acabei perdendo o interesse pelo lugar.
Então, quando ele abre a porta, tenho um sentimento esquisito, como se
estivesse mais uma vez fazendo algo proibido. Mas ele não faz cerimônia:
se joga na cama de solteiro encostada a uma parede e estica o corpo, talvez
se lembrando de como era fazer aquilo durante a adolescência.
Na outra parede, há apenas um armário de madeira e uma escrivaninha
com duas gavetas, onde o computador velho e desativado descansa como
uma peça de museu. Sobre a escrivaninha impecavelmente limpa, há alguns
livros amarelados, um porta-lápis cheio de canetas coloridas e um porta-
retratos onde uma versão mais nova do meu tio e da minha mãe dividem
espaço com outros dois adolescentes fazendo careta.
Nunca tinha reparado, mas agora percebo que são Pedro e Paula Torres.
— Está igualzinho — diz tio Eduardo, olhando para o teto. — Parece
que eu entrei em uma máquina do tempo.
— Bateu saudades de morar aqui? — pergunto, sentando na cadeira em
frente à escrivaninha e olhando para as lombadas dos livros. Agatha Chris-
tie. Jorge Amado. James Baldwin. Nelson Luiz de Carvalho.
Dou uma breve risadinha ao ver o último livro ali. O Terceiro Travessei-
ro . Diz a lenda que todo gay brasileiro nos anos 1990 e 2000 já leu esse li-
vro escondido. Tio Eduardo, assim como eu, mantém suas influências literá-
rias à vista de todos.
Estendo a mão e puxo o livro, olhando para a contracapa.
— Já leu esse? — pergunta meu tio, me observando.
Sinto as orelhas quentes.
— Não é muito minha praia — minto.
É claro que já li.
— Nem a minha — responde ele. — Muito triste. Hoje em dia é tão
mais fácil encontrar histórias com gays sem um final horrível, mas na minha
época isso era tudo o que a gente tinha. Era bom saber que alguém estava
reparando na gente, nem que fosse para ter um final horrendo.
— Diz aqui que é baseado em experiências reais.
— Pois é. Então você imagina como deve ter sido ler essa história e
morrer de medo do seu futuro ser igual ao dos personagens, principalmente
depois de descobrir que era baseado em pessoas de verdade. Minha sorte é
que não deixei essa ou nenhuma outra história definir quem eu queria ser.
— Como você conseguiu?
Minha curiosidade é óbvia. É uma pergunta genérica, mas meu tio per-
cebe do que estou falando.
Como você conseguiu sobreviver a essa cidade?
Como conseguiu voltar e parecer tão bem para qualquer um que te ob-
serve de longe?
Como você conseguiu ser feliz?
Sinto meu estômago revirar ao mesmo tempo em que as palavras saem
da minha boca, mas não consigo evitar a pergunta.
Meu tio se arrasta pela cama até ficar com as costas apoiadas na cabe-
ceira. Ele cruza as pernas e, por baixo daquela maquiagem que o deixa com
um aspecto doente, percebo que me olha com compreensão.
— A gaveta da direita — diz ele subitamente, olhando para a escrivani-
nha. — A chave está dentro do porta-lápis. Sua avó disse que deixou tudo
do mesmo jeito, então ainda deve estar aí.
Pego o porta-lápis e o viro, espalhando as canetas pela escrivaninha e
descobrindo uma chave pequena no fundo dele. Pego a chave e a enfio na
fechadura da gaveta, abrindo-a.
Lá dentro, há um caderno com capa de couro marrom.
Pego o caderno e, sem abrir, estendo-o até ele. Se está tão bem guardado
por quase vinte anos, provavelmente tem algo importante nele.
— Pode ler. Não tem mais nada aí que seja segredo.
Abro o caderno e encaro a primeira página escrita, depois de pular umas
cinco em branco. Logo no topo, vejo o título rabiscado.
— Sua mãe foi minha melhor amiga — continua ele. — Ela, a Paula e o
Pedro. Eles eram as pessoas em quem eu podia confiar. Você já pensou em
conversar com sua mãe?
— Nunca! — respondo. — Eu não sei se sua irmã e minha mãe são a
mesma pessoa, porque eu cresci com uma mulher que me levou para a igre-
ja desde pequeno e sempre me pergunta quando eu vou arranjar uma
namorada.
— Nossos pais sempre criam expectativas em cima da gente. Eu não
posso te dizer como sua mãe vai reagir, mas minha irmã sempre foi muito
boa comigo.
— Eu ainda não estou pronto — digo. Ele me encara em silêncio. —
Você não vai contar para ela, vai?
— André, eu amo fofocas, mas não vou falar nada. Essa é a sua vida.
Você decide quando, para quem e se vai contar isso algum dia da sua vida.
Eu não vou tirar esse direito seu. Inclusive, essa é uma das regras. Acho que
é a treze ou a dezenove.
Olho para o caderno.
Regra nº 13: Faça pegação onde ninguém pode ver. Todo mun-
do fala da sala 39, mas o segredo é a 44, no último andar da escola.
Está sempre vazia.
Por mais fome que tivesse, tio Eduardo não pôde comer a lasanha à bo-
lonhesa e o pudim de leite que minha avó fez naquele sábado. A refeição
dele é uma canja de galinha meio rala, que dona Sebastiana insiste em dizer
que é tiro e queda para agilizar qualquer tipo de recuperação. Enquanto eu e
minha mãe nos esbaldamos na massa fumegante e cheia de carne e concluí-
mos a refeição com a delícia gelada e cheia de calda de açúcar, meu tio faz
careta a cada garfada e, quando pede um pouco de sobremesa, recebe uma
maçã farelenta como resposta. Quando ele reclama, minha avó só responde
que não quer que tenha uma indigestão. Acho que ele nunca pareceu tão ar-
rependido de ter topado se passar por doente.
Depois do almoço, minha avó finalmente nos deixa ir embora. Ela afir-
ma que tio Eduardo vai precisar de mais daquela canja, colocando-a em um
pote para viagem. Ele só aquiesce, derrotado por saber que aquele cardápio
triste vai acompanhá-lo durante sua estadia, mas quando ninguém está ven-
do, eu sussurro para ele que pode ficar tranquilo, porque posso levar alguns
doces quando for possível.
Pegamos o carro — por algum milagre, ainda intacto apesar de as man-
gas se espalharem abundantemente pelo chão — e minha mãe vai dirigindo
até a casa onde tio Eduardo e ela ficarão hospedados durante o período elei-
toral. No caminho, consigo ouvir o carro de som contratado pela campanha
do meu pai tocando o jingle irritante enquanto se desloca lentamente pelas
ruas de Lima Reis. Antes que consiga perceber, já estou cantarolando “Ulis-
ses Aguiar é o melhor prefeito de Lima Reis, ele vai ganhar com o apoio de
vocês” no ritmo de arrocha.
— Argh, que música horrível — murmura tio Eduardo.
— Péssima — concordo. — Mas gruda na cabeça.
A casa fica um pouco mais distante, sem muita vizinhança, e já estou
pensando que vou ficar com as coxas tão torneadas quanto as de Diego com
o vai e volta até o centro da cidade. Continua praticamente igual a como era
quando eu tinha dez anos: sua parte externa é pintada de branco, as janelas
com veneziana são de madeira, e um pequeno jardim ganhou vida própria e
cresce descontroladamente na parte da varanda que não está cimentada. Na
parte de trás, as árvores se espalham pelo quintal, frutas maduras cobrem o
chão e um pneu amarrado em uma corda continua pendurado em um galho
grosso, onde eu vivia me balançando quando era mais novo.
Meu pai nos espera no carro dele, e só sai do veículo ao perceber a
aproximação da Land Rover. Diferente do dia a dia, quando veste roupas
sociais e parece sempre alinhado, hoje ele usa uma camisa furada e mancha-
da de tinta, uma bermuda larga e chinelos de dedo.
Tio Eduardo limpa os cantos da boca depois de devorar todo o pudim
que havíamos levado da casa da vovó e, ao se aproximar do meu pai, os
dois trocam um abraço meio desajeitado.
— Desculpa a bagunça, Eduardo. Não tive muito tempo para arrumar as
coisas antes de você chegar — diz meu pai ao se afastar dele, sempre cordi-
al. — E não posso demorar muito aqui. Ainda tenho que passar em casa
para me trocar e falar com os comerciantes do centro. Minha equipe de
campanha disse que as últimas semanas são cruciais para virar o voto dos
indecisos e converter os brancos e nulos.
Não me lembro de ver meu pai preocupado assim na campanha das últi-
mas eleições. O apoio do meu avô era tudo do que ele precisava para ven-
cer. Mas agora, sem o hospital finalizado e com a ameaça concreta de Pedro
Torres conseguir mais votos do que ele, é impossível não perceber como ele
parece ainda mais ansioso. E cansado. E, talvez, um pouquinho desesperado
com a perspectiva real de perder o cargo de prefeito de Lima Reis.
— Não se preocupa com isso, Ulisses — responde meu tio. — Estou
aqui para ajudar, não para ficar reparando na bagunça.
Ajudo minha mãe com as malas pesadas dela e de tio Eduardo enquanto
meu pai sobe os cinco degraus antes da entrada da casa e abre a porta.
Assim que entro, parece que voltei ao tempo em que corria por ali quan-
do era criança: as paredes ainda têm o mesmo tom de verde que sempre odi-
ei; um oratório de Nossa Senhora Aparecida ainda está pendurado na pare-
de, logo acima da mesa de jantar; ao lado, há um quadro em sépia, com meu
avô e minha avó de pé enquanto seus filhos, entre eles meu pai, estão enfi-
leirados do mais velho ao mais novo; as medalhas e prêmios que meu avô
recebeu quando era prefeito da cidade se acumulam em uma estante perto
do sofá de couro; uma cristaleira ainda mantém as louças pintadas à mão
que meu avô vivia dizendo que pertenciam aos antepassados dele; e o tapete
está mais empoeirado do que nunca, fazendo meu nariz coçar.
— Bom, eu não lembro se você chegou a conhecer essa casa — diz meu
pai para tio Eduardo —, mas seja bem-vindo de qualquer forma. Seu quarto
fica no andar de cima e tem alguns livros se quiser se distrair. Também con-
segui reativar a linha de telefone e já ligaram a internet para você conseguir
trabalhar ou se precisar nos contatar para alguma emergência. E também já
mandei abastecerem a geladeira e a dispensa com comida. — Meu pai dá
um suspiro. — Eu sei que você conhece todo mundo daqui e todo mundo te
conhece, mas eu só queria pedir que… se você puder ficar nessa casa o mai-
or tempo possível, eu ficaria muito agradecido.
— O Eduardo não é uma criança, Ulisses — diz minha mãe, ríspida. —
Ele sabe o que veio fazer aqui. E vou estar o tempo todo com ele.
E lá vamos nós.
— Eu sei, Selma. E eu, mais do que ninguém, estou muito feliz por ter-
mos conseguido chegar a uma solução momentânea. Mas a eleição é daqui
a três semanas e minha agenda está uma loucura. Muita coisa pode aconte-
cer até lá.
Tio Eduardo olha ao redor e levanta um dedo antes que minha mãe pos-
sa rebater o comentário do meu pai.
— Pode deixar que vou me comportar, Ulisses. Eu sei muito bem que as
notícias correm mais rápido aqui do que em qualquer outro lugar.
— Obrigado, Eduardo. — Meu pai soa aliviado. — Se precisar que a
gente traga alguma coisa da cidade, me avisa. O André pode vir aqui quan-
do você quiser.
Olho para minha mãe e para o meu pai, franzindo o rosto.
— Eu pensei que… eu pudesse ficar aqui com o tio Eduardo e com mi-
nha mãe — respondo, tentando fazer aquela situação toda não desencadear
mais uma briga. — Quer dizer… eu posso ficar aqui, não posso?
— É claro que sim — diz minha mãe.
— Eu não acho uma boa ideia — responde meu pai, ao mesmo tempo.
Os dois se entreolham. Meu pai continua falando.
— É mais fácil você continuar em casa, André. Suas coisas estão lá. É
mais perto da escola. Não faz sentido você passar esse tempo todo aqui.
Não quero afirmar que também não faz muito sentido, para mim, conti-
nuar lidando com ele e com toda a loucura dessa campanha quando posso
ficar em paz aqui, com minha mãe e meu tio, conhecendo-o melhor.
Não quero dizer para o meu pai, com todas as letras, que conviver com
ele é difícil.
Então só uso meu poder de evitar conflitos e me restrinjo a esperar pela
resposta da minha mãe.
— Você já tem dezessete anos, André. Faça como achar melhor — diz
ela ao perceber que ainda estou mudo, esperando que algum dos dois tome
a decisão por mim.
— Ninguém precisa decidir nada nesse momento — intervém tio Eduar-
do. — Agora eu quero tomar um banho, tirar essa maquiagem e comer o
resto daquela lasanha que minha mãe deixou com vocês. — Ele pega a mai-
or das duas malas que trouxe consigo e, com uma força muito pouco condi-
zente com sua aparência artificialmente abatida, a ergue e começa a subir as
escadas.
André: Misteriosa…
Larissa: Uau?
André: Pois é. Parece que ele, minha mãe, meu tio e a es-
posa do Pedro eram, tipo, melhores amigos. Tem até uma
foto dos quatro no quarto do tio Eduardo e eu nunca tinha
percebido.
André: Eu sei, só que… sei lá? Seu pai é de boa com você,
já se o meu descobrir… E a gente conversou e isso me deu
um gás para achar que existe mais do que as coisas que
conheço dessa cidade.
Leio e releio as regras, que parecem muito mais conselhos escritos para
ele mesmo do que qualquer outra coisa. Elas foram escritas com canetas di-
ferentes, como se o tio Eduardo tivesse demorado muito tempo para elabo-
rar a lista. Algumas delas são boas (se eu tivesse alguma boca secreta para
beijar, é claro), enquanto outras, como a de espalhar fofocas, não parecem
ser muito a minha cara.
Estou pensando muito na regra nº 16. Não que esteja pensando especifi-
camente em Diego nesse momento (ok, a quem eu quero enganar? Estou
pensando exatamente nele agora), mas será que isso é verdade? Mesmo que
eu não encontre alguém para estar ao meu lado, será que essa cidade permi-
te a existência de outras pessoas como eu? Será que existem outras pessoas
se perguntando se também estão sozinhas? Ou somos apenas eu e Larissa,
dois adolescentes deslocados e diferentes de todos os outros mais de oito
mil habitantes de Lima Reis?
Eu sei que existem curiosos. Ou pessoas que, por um motivo ou outro,
estão de passagem. Não sou tão ingênuo assim. Eu já baixei aplicativos.
Mas, quando vi que era necessário colocar uma foto de perfil, preferi deixá-
lo vazio só para ver quem estava nas redondezas. Encontrei apenas outros
perfis como o meu, todos sem foto ou descrição, e o mais próximo deles es-
tava há dois quilômetros de distância, então não sei se as pessoas não usam
aplicativos ou se realmente estou sozinho por aqui.
Não quero ser o tipo de cara que tem um perfil sem foto em um aplicati-
vo. Não quero que seja necessário me esconder para conversar com alguém,
ou que precise mascarar minha sexualidade para conseguir fazer parte de
um grupo. Não é esse o futuro que imagino para mim. Para falar a verdade,
eu nunca parei para imaginar um futuro nesse sentido. Acho que quero ter
amigos que não se preocupam com quem eu durmo. Quero, inclusive, ter
amigos que me incentivem a dormir com outros caras. Quero mais pessoas
como Larissa, Patrícia ou tio Eduardo na minha vida.
Mas como posso fazer para tê-los em minha vida, estando preso nessa
cidade minúscula?
Olho de novo para a regra nº 16. “Essas pessoas existem, mesmo em ci-
dades como essa.” Depois releio a regra nº 9: “As pessoas podem te
surpreender.”
Será mesmo?
10
***
Crescer em uma casa católica praticante faz dos domingos dias agitados.
Enquanto Larissa e Patrícia passam o dia inteiro dormindo e só me encon-
tram mais tarde para falar da vida alheia ou organizar algum trabalho a ser
entregue na segunda-feira, eu acordo cedo e me arrumo para ouvir as pala-
vras do padre Castro. A essa altura, se tornou muito mais um hábito do que
um programa agradável. Ir à igreja está longe de ser divertido, ainda mais
nos últimos meses, porque tudo o que padre Castro sabe fazer em suas ho-
milias é falar sobre o quanto a cidade vai perder caso meu pai não seja ree-
leito. Ao mesmo tempo, não quero que minha mãe comece com seu discur-
so sobre como nossa presença nas missas é importante, sobretudo por ser-
mos a família do prefeito. E minha avó também fica feliz, então prefiro fa-
zer as vontades delas e não acabar sendo o garoto revoltado que está negan-
do Deus (já ouvi isso da minha mãe quando tive preguiça e resolvi dormir
até mais tarde em um domingo do mês passado).
Lima Reis é uma cidade católica, o que faz com que a igreja esteja sem-
pre cheia aos domingos. As crianças correm no estacionamento enquanto as
senhoras se espalham pelas mesas da lanchonete, falando das vidas de quem
acham que não está ouvindo, sem saber que sempre há ouvidos para espa-
lhar as fofocas com mais ou menos precisão. Também há o grupo de adoles-
centes em um canto mais reservado, e sei bem que a igreja é apenas uma
desculpa para eles flertarem uns com os outros e explorarem lugares onde
podem se beijar sem serem notados.
Já tentei me enturmar com esses garotos, mas, depois de duas vezes,
acabei desistindo. Na primeira, minha avó se enfiou na sala de reuniões da
igreja à minha procura, logo quando a Ana e o Ricardo estavam atrás da
cortina se beijando; e, na segunda, meu pai apareceu no meio de todo mun-
do e falou que eu tinha que ir para casa imediatamente, sem me dar nenhum
bom motivo além da sua vontade autoritária. Isso desencadeou uma discus-
são que deixou todos muito constrangidos e, a partir desse dia, passei a ser
tratado com a frieza de quem não é bem-vindo. Todos olham para o filho do
prefeito como um risco às suas atividades mais ou menos lícitas, com medo
de que eu possa, de alguma forma, denunciá-los para o prefeito e, em con-
sequência, para o padre Castro.
Mas hoje, enquanto estou sentado em um banco de pedra no estaciona-
mento, mexendo no meu celular, vejo que um dos adolescentes do grupo se
desgarra e se aproxima de mim.
— Ei… será que a gente pode conversar? — diz Diego.
Ele está usando o paramento típico de coroinha: um blusão branco que
vai até seus punhos e um pouco abaixo da cintura por cima de outra roupa,
ainda maior e vermelha, que desce até seus tornozelos e cobre suas mãos.
Ele é o mais velho entre os auxiliares do padre, o que lhe dá um tipo implí-
cito de autoridade entre os outros meninos.
Mal ele fala comigo, vejo que sua mãe se aproxima. Já a vi algumas ve-
zes nas missas, conversando com as outras mulheres na expectativa de se
enturmar, mas a verdade é que não sei muito sobre ela. Tudo o que sei é que
dona Martha trabalha como professora particular e passa mais tempo dentro
de casa do que fora. Também sei que não parece existir um pai de Diego,
porque o garoto e a mãe se mudaram para Lima Reis há menos de um ano e
sempre foram apenas os dois. Os boatos na cidade falam que ele a largou
por outra mulher, mas nunca tive intimidade o bastante com Diego para
confirmar essa informação.
Dona Martha é uma mulher baixinha e sorridente, com os cabelos curtos
e pintados de castanho, que anda arrastando os pés e parece sempre prepara-
da para um desastre nuclear, olhando em todas as direções como se tivesse
olhos de camaleão. Não deve ter nem quarenta anos, mas há alguma coisa
em seu jeito de agir que dá a ela um ar de mãe. Ela aparece de súbito, com
uma expressão de urgência no rosto.
— Meu filho, a missa já vai começar! — alerta, apontando para o reló-
gio de pulso e depois para a porta da igreja, onde alguns coroinhas já come-
çam a se organizar na fila da procissão de entrada.
— Só um minutinho, mãe — responde ele com a voz suave. Eu conheço
aquele tipo de entonação, porque é exatamente a que uso quando preciso ser
educado com meu pai na frente de outras pessoas. — Eu só preciso falar
uma coisa com o André aqui.
— Tudo bem — responde ela, a voz também com a mesma nota de do-
çura/impaciência. — Mas seja rápido.
E, antes de ir embora, me dá um tapinha no ombro e acrescenta.
— É um prazer conhecê-lo, meu filho. Seu pai tem feito muito por essa
cidade. Pode contar com meu voto para a reeleição.
Dou um sorriso sem graça, porque não sei se é adequado fazer campa-
nha na casa de Deus, mesmo que o padre Castro pareça usar o altar como
seu próprio comício particular.
Assim que ela se afasta, Diego olha para mim e continua falando:
— Olha, eu só… queria me desculpar por ontem à noite.
Sou pego de surpresa e, como resposta, apenas dou um sorriso fraco ao
mesmo tempo em que balanço a cabeça.
— Está tudo bem.
Não é uma resposta convincente e Diego percebe isso.
— Não está. Eu sei que fui um babaca. Só não quero que você ache que
sou assim o tempo todo. Juro que não foi por mal. Eu achei seu tio bem di-
vertido, para falar a verdade. Aquela hora em que ele arregalou os olhos e
pediu socorro foi hilária.
Encaro ele, sem saber o que responder.
Será que ele já sacou que meu tio está mentindo?
— Ele só ficou desesperado porque todo mundo apareceu sem avisar —
tento justificar. Depois emendo: — E você não foi babaca. Só estava, sei
lá… tentando me alertar sobre como essa cidade é horrível, acho.
— Eu também ficaria aterrorizado. Imagina só, passar anos sem vir para
cá e ser recebido desse jeito. — O sino da igreja começa a badalar, o que
faz com que as poucas pessoas ainda dispersas do lado de fora entrem pelas
portas laterais e procurem pelos últimos lugares onde possam ver a missa
sentados. — E nem todo mundo dessa cidade é babaca. Pelo menos, eu
acho que não sou. — Quando os coroinhas passam assobiando por ele, Die-
go só dá de ombros. — Bom, acho que essa é minha deixa. E então? Me
desculpa?
— É claro que sim — respondo, sentindo minhas orelhas esquentarem.
E não sei o que dá em mim, mas quando percebo, já estou falando. — Hoje
à tarde vai ter um evento lá na escola para inaugurar o laboratório de infor-
mática. Vai ser meio chato, mas deve ter comida de graça. Vou tirar umas
fotos para uma matéria do jornal. Se quiser, aparece lá.
Ele sorri. Talvez esteja feliz pelo convite, ou por ter percebido que não
estou irritado com ele pelos comentários da noite passada.
— Comida de graça é sempre um grande incentivo — diz.
— É melhor do que ficar fofocando na praça — complemento.
— Beleza. Vou aparecer lá, sim. — Ele me dá as costas, mas, antes de
seguir para a entrada da igreja, se vira novamente e acrescenta: — Valeu.
Você é mais legal do que eu imaginava.
— As pessoas podem te surpreender — respondo com um sorriso, e só
depois de alguns segundos percebo que estou repetindo uma frase do diário
de tio Eduardo.
Ele alarga o sorriso, balança a cabeça e finalmente corre em direção à
igreja.
Minhas pernas viram gelatina com aquele sorrisinho.
12
No começo da tarde, minha mãe deixa tio Eduardo e volta para casa
para irmos juntos à inauguração do laboratório de informática, compondo a
imagem de família perfeita que meu pai insiste em continuar sustentando.
Ele, como de costume, está ao telefone, a gravata sem nó pendurada en-
tre os ombros e a barba desgrenhada em todas as direções.
— … não, eu já disse o valor! — esbraveja. Ainda com o celular gruda-
do à orelha, pega as chaves em cima da mesa e faz um gesto para que o
acompanhemos até o carro. — Coloca os números que eu te passei no docu-
mento. Qual é a dificuldade? Tá, tá... depois eu te ligo de novo, agora estou
atrasado para um compromisso.
Ele desliga o telefone, irritado.
— Idiotas — resmunga.
Minha mãe olha para ele e, talvez por hábito, estende as mãos e dá um
nó em sua gravata, acertando-a, e depois passa os dedos por suas bochechas
e passa a mão pela sua barba. Aquilo parece acender algo dentro do meu
pai, que a encara meio sem jeito.
— Obrigado — diz ele, o tom de voz mais suave. — Vamos?
Espero que minha mãe não esteja reconsiderando sua decisão de se se-
parar. Não quero parecer cruel ou alguém que está torcendo contra a felici-
dade de um casal, mas só eu sei como esse processo inevitavelmente termi-
na em outro ciclo de brigas. E mesmo que minha mãe e meu pai só estejam
distantes há dois dias, sinto paz quando estou com um ou com o outro. Quer
dizer, meu pai continua gritando, mas pelo menos não é com minha mãe, e
passa mais tempo fora do que dentro de casa. Finalmente consigo ler meus
livros sem precisar apelar para fones de ouvido e playlists instrumentais.
Acho que, se eles se preocupam tanto assim com minha qualidade de vida,
talvez devessem considerar seriamente levar a separação adiante.
Antes de sair, me olho pela última vez no espelho: meus cabelos foram
penteados para o lado, deixando minha testa grande demais à mostra. Estou
enfiado em uma camisa social branca, ensacada e larga no meu corpo, dei-
xando um cinto de couro à mostra. As mangas da camisa se estendem até
meus punhos, e as marcas de suor já começam a aparecer, mesmo que a
temperatura esteja agradável.
Ok, estou sendo autodepreciativo.
O que consigo ver de bom? Dentes perfeitos. Ok, sempre me concentro
muito nos meus dentes, então vou focar em outra coisa.
A fivela do cinto não é das piores. Quer dizer, se você gosta de rodeios
ou coisas desse tipo.
Meus sapatos estão bem engraxados e até que são confortáveis, mas,
honestamente, não é um bom elogio dizer “os sapatos que sua mãe escolheu
até que não são ruins”. E o mesmo se aplica ao cinto com fivela dourada.
Quando me viro e encaro minha própria bunda dentro daquela calça so-
cial, percebo que ela ficou bem valorizada.
Olha só, eu até que tenho uma bunda bonitinha!
Dou um suspiro meio cansado quando desvio meus olhos do espelho,
desistindo daquele exercício. Odeio roupas sociais. Odeio eventos sociais.
Me vestir daquele jeito para ir à escola é, no mínimo, lastimável.
Quando chegamos à escola, a sensação de deslocamento só aumenta. É
claro que já estou acostumado a participar de eventos assim. Os últimos três
anos e meio foram cheios deles. Sempre com roupas espalhafatosas como
aquela, sorrindo mecanicamente quando tudo o que eu mais queria era vol-
tar para casa e continuar assistindo aos meus seriados. Só que essa é a pri-
meira vez que meu pai faz um evento onde estudo. E, diferente de outros
eventos, esse está movimentado e tem bastante investimento: logo que che-
gamos somos recebidos por uma fileira de pessoas nos dois lados da rua,
segurando bandeiras com a cara sorridente do meu pai estampada, todas fei-
tas com o logo do partido político e seu número de candidato. As pessoas
que as hasteiam usam bonés, camisas e calças personalizadas, e sei que há
uma parcela que está ali porque realmente acredita na campanha, mas outra
só veio porque meu pai pagou.
Assim que saímos do carro, vejo que, além das bandeiras, há pessoas
distribuindo panfletos elaborados pela equipe de comunicação do meu pai,
com propaganda das supostas melhorias que ele trouxe à cidade. É tudo
exagerado, com letras garrafais e frases de efeito, e parece um espetáculo
que tenta distrair pelo barulho e desviar a atenção do que realmente
importa.
No meio da quadra, a banda da escola se arruma como pode e tenta to-
car uma versão instrumental do jingle de campanha do meu pai (é ilegal fa-
zer campanha dentro de uma escola pública, eu sei, e tenho certeza de que
meu pai também sabe, mas não daria em nada tentar denunciá-lo). O profes-
sor de música parece um pouco irritado por estar trabalhando em pleno do-
mingo e fazendo seus alunos tocarem um arrocha enquanto o coral canta:
“Ulisses Aguiar é o melhor prefeito de Lima Reis, ele vai ganhar com o
apoio de vocês.” Ele não gosta do meu pai, pelo que ouvi dizer. A banda da
escola não teve nenhuma verba nos últimos anos, e mesmo assim se desdo-
bra em vinte para participar de eventos como o desfile anual no aniversário
da cidade e as celebrações nas datas comemorativas da igreja.
Quando subo as escadas em direção à área de convivência, vejo uma
tenda enorme cobrindo uma mesa longa e repleta de comida. E não é a co-
mida típica das festas que geralmente acontecem aqui no colégio: nada de
cachorro-quente, minipizzas ou batatas fritas. Dessa vez há canapés finos de
salmão, canudinhos de frango e uma mesa de queijos diversos e frutas se-
cas, além de pequenas tigelas chiques de louça, cheias de risotos perfuma-
dos ou sopas de cores diferentes. Os garçons, com seus uniformes brancos e
pretos, levantam jarras imensas de suco, garrafas de refrigerante ou vinho e
enchem copos e taças antes de colocarem-nas em travessas e andarem dis-
tribuindo as bebidas. Tudo parece ao mesmo tempo muito caro e
desnecessário.
Dá pra perceber que meu pai investiu muito nessa festa. Ele parece
olhar para todos os detalhes antes de dar o próximo passo, e tenho certeza
de que está desesperado. Parece muito diferente do jeito meio descompro-
missado com que se apresentou na campanha anterior, quando tinha o apoio
do meu avô. Três anos e meio atrás, a campanha mais pareceu uma suces-
são ao trono, porque meu avô já estava doente e velho demais para continu-
ar na prefeitura, e colocar seu filho no poder pareceu a escolha óbvia. Na-
quela época, as pesquisas apontavam uma vitória com mais de 80% de
aprovação, e o resultado não foi diferente do esperado.
Mas, dessa vez, percebo que meu pai está desconfortável. Pedro Torres
é uma ameaça concreta à sua vitória.
Quando dona Marcela, a diretora da escola, nos vê passando, para de
conversar imediatamente e vem até nós. Ela é uma mulher alta e longilínea.
Usa um terninho laranja com um lenço amarrado no pescoço, talvez de pro-
pósito, porque essa é a cor de toda a identidade visual da campanha do meu
pai, e corre para nos recepcionar.
— Vejo que trouxe o fotógrafo oficial de Lima Reis! — diz ela, um sor-
riso grande demais no rosto, quase assustador, quando me vê com a câmera
pendurada no pescoço.
— Posso tirar uma foto? — É o que respondo, porque não sei bem
como reagir ao comentário.
Ela tenta parecer sem graça, mas dá para ver que está empolgada. Se
posiciona ao lado do meu pai enquanto minha mãe dá um passo para trás,
provavelmente querendo que um buraco se abra no meio do chão e a engula
para não ter que aparecer em nenhuma foto que vá parar no jornal.
Assim que tiro duas fotos da diretora com o prefeito, dona Marcela
puxa minha mãe e a segura pelas mãos, olhando bem fundo nos olhos dela
antes de falar.
— Fiquei sabendo que seu irmão está na cidade. Desejo muita força
para vocês nesse momento difícil.
Minha mãe a encara, sem entender.
— Ele está bem — responde minha mãe. — Só precisa descansar e da-
qui a pouco estará pronto para voltar a São Paulo.
— É claro que sim, é claro que sim… — responde a diretora com uma
nota de pesar na voz. — Espero que ele use esse tempo para pensar no que
realmente importa. A família é nosso único porto seguro nos piores momen-
tos. Uma doença tão devastadora…
— Ele não está doente — digo, porque já estou cansado de perceber que
as fofocas sobre a presença do meu tio na cidade se espalham como um in-
cêndio. — Só… se recuperando.
— Ah, sim, é claro, só se recuperando. — Dona Marcela se volta nova-
mente para minha mãe. — Não se preocupe, Selma, a cidade inteira está em
oração pela saúde dele. — Ela dá um suspiro como quem quer superar
aquele assunto, dá um tapinha na parte de cima da mão da minha mãe antes
de largá-la e acrescenta: — Agora quero uma foto com toda a família! Ei,
Diego! Tira uma foto da gente?
Olho para trás e percebo que Diego está perto de mim. Quando ouve
chamar pelo seu nome, ele se vira, olha para a diretora, para a câmera no
meu pescoço, e ergue as sobrancelhas em surpresa antes de finalmente en-
tender o pedido.
Agora, sem as roupas espalhafatosas de coroinha, ele está mais lindo do
que nunca. Não está tão formal quanto eu: veste uma calça jeans escura e
uma camisa de botões com mangas curtas que ficam meio frouxas nos bra-
ços, com um bolso na altura do coração que se destaca por mostrar um de-
senho de flores que parecem ter sido pintadas à mão. Seu cabelo ondulado
está penteado para o lado assim como o meu, e quando o sol bate em sua
pele, vejo-a brilhar.
Assim que fixo meus olhos nos dele, recebo um sorriso como retribui-
ção. Meio sem jeito, tiro a câmera do meu pescoço e a estendo até ele.
— Já está no automático. É só apertar aqui e pronto.
Ele aquiesce e dá um passo para trás quando me junto à diretora e aos
meus pais. Como um profissional, Diego coloca um dos joelhos no chão e
mira a lente para nós. Dispara três fotos seguidas, depois posiciona a câme-
ra na vertical e tira mais duas.
— Obrigada, querido — diz Marcela. — E então, prefeito, animado
para a inauguração?
Deixo meu pai conversando com a diretora e pego a câmera de Diego,
olhando para o resultado.
— Ficaram ótimas — digo. — Tenho que tomar cuidado para não per-
der meu emprego.
— Que nada — responde ele, sorrindo.
— Gostei da camisa — aponto para o bolso.
Diego parece sem graça.
— Valeu. Fui eu que pintei.
— Uau. Não sabia que você era artista.
Ele fica subitamente vermelho.
Não sei bem o que conversar com ele. Apesar de segui-lo no Instagram
e talvez ser um pouquinho obcecado com seu feed , ele não é o tipo de pes-
soa que expõe muito da sua vida. Algumas selfies, fotos de plantas, paisa-
gens meio fora de enquadramento, coisas desse tipo.
— Não é nada de mais. Ajuda a passar o tempo.
Coloco a câmera de volta no pescoço e seco o suor que começa a se
acumular em minhas mãos.
— Não tem muita coisa para fazer por aqui, né? — Continuo na minha
tentativa de não permitir que o silêncio incômodo se instale entre nós. Só
espero que eu não entre no meu modo aleatório e comece a falar sobre as-
suntos extremamente específicos. — Eu passo a maior parte do tempo len-
do. O último livro que li era sobre dois bruxos se apaixonando. Bem
divertido.
— Legal — responde ele, aparentemente com o mesmo nível de traque-
jo social que eu: nenhum.
Legal? Será que ele só falou isso porque foi a primeira coisa que veio à
mente ou porque realmente se interessa por livros de bruxos se beijando?
É claro que estou dando sinais. Minha vergonha só não é maior que mi-
nha curiosidade, e eu preciso saber se o que Diego falou sobre a coragem do
tio Eduardo foi apenas um comentário casual ou se existe algo além disso.
Se ele respondesse “Que pecado mortal!” quando falei do livro, eu certa-
mente saberia que estava lendo todos os sinais de forma errada, mas aquele
“Legal” me indicava que, no mínimo, ele não era um babaca completo.
Diego sempre foi uma pessoa neutra para mim. Sabe quando a gente
acaba categorizando as pessoas, definindo-as como incríveis ou horríveis?
Pois é. Nessa escala, Diego está bem no meio, muito mais pelo que acho
dele do que pelo que sei sobre ele.
O que acho de Diego: que ele gosta de esportes, então obviamente só
deve pensar em maneiras de manter seu corpo bonito para as garotas. Que
ele anda com outros garotos, todos barulhentos e irritantes, portanto obvia-
mente também é um garoto barulhento e irritante. Que ele veio de outra ci-
dade depois de os pais se separarem, mas isso é só um boato que ninguém
pode confirmar.
O que sei sobre Diego: acabei de descobrir que ele gosta de pintar, e
aparentemente tem talento para isso. Ele também consegue conversar comi-
go sem ficar olhando por cima do meu ombro com impaciência, como se
minha presença fosse incômoda. E, em todo esse tempo que frequentamos a
mesma escola, eu ainda não ouvi nenhum comentário horrível que ele tenha
feito sobre mim ou sobre o fato de eu andar sempre com garotas.
Regra nº 9: As pessoas podem te surpreender.
Ele então completa, casualmente:
— Parece divertido. Ler não é muito minha praia.
Droga. Continua neutro na minha escala, mas perdeu alguns pontinhos
depois dessa declaração.
Por obra do destino — porque eu realmente não quero fazer outra per-
gunta aleatória —, sou salvo por Larissa, que me puxa pelo ombro antes de
me dar um abraço.
— Ai, até que enfim te achei! — Ela olha para o lado e percebe que não
estou sozinho. — Ah… oi, Diego.
Larissa parece intrigada com o fato de estarmos conversando.
— Oi, Larissa. — Nenhum de nós três parece saber bem o que falar. —
Bom, eu vou indo lá… tchau, André.
— Não! — digo subitamente. Larissa ergue uma sobrancelha. — Quer
dizer… você pode ficar com a gente. Se quiser, é claro.
Diego olha para Larissa.
— É claro — confirma ela. — Vamos ver o que tem de bom para
comer?
Juntos, nós três analisamos a mesa e começamos a atacá-la. Larissa en-
che a boca com os canudinhos de frango e eu enfio um canapé de salmão
inteiro na boca. Diego parece mais comedido a princípio, pegando só um
quadradinho de queijo gorgonzola, mas depois percebe que ninguém ali está
fazendo cerimônia e vira uma tigela de sopa de uma vez, sem nem usar a
colher.
— Isso aqui está muito bom! — diz ele. — As festas aqui são sempre
assim?
— Só quando meu pai quer ganhar a eleição — respondo, pegando ou-
tro canapé e comendo-o em velocidade recorde. Está realmente
maravilhoso.
— Ele está se esforçando, não é? — pergunta Diego.
— Ele está morrendo de medo, isso sim — responde Larissa. — Esse
evento por si só é um risco, porque tenho certeza de que é contra a lei fazer
campanha em uma escola pública, mas, sinceramente, quem se importa com
isso em Lima Reis? — Ela se volta para Diego e pergunta: — Você já tirou
seu título de eleitor?
— Uhum. Minha mãe falou que é importante votar. — Depois acrescen-
ta com um sussurro: — Eu acho que ela é apaixonada pelo seu pai, André.
Larissa solta uma risada muito espontânea. Parece que a comida vai vol-
tar pela sua garganta.
— Ela vota no Ulisses, não é? — pergunta.
Diego parece assustado com a indagação tão direta. Olha para mim,
coça a cabeça e então responde:
— Ela, sim.
Ele faz questão de enfatizar que não é uma decisão conjunta.
— E você? — pergunta ela.
Diego só me encara mais uma vez.
— Está tudo bem — digo, assim que percebo o desconforto. — Se quer
uma confissão, eu ainda não decidi se vou votar no meu próprio pai.
Ele parece aliviado.
— Um grande drama shakespeariano — comenta Larissa.
— Eu só cheguei aqui no começo do ano, mas… enfim… desculpa di-
zer isso, André, mas seu pai não é exatamente o meu tipo favorito de políti-
co — conclui Diego.
Ele espera ansioso pela minha resposta. Dou pontos pela sinceridade e
pela forma direta com que fala, porque Larissa só começou a falar mal do
meu pai depois de termos firmado nossa amizade e ele já está ali, falando o
que pensa.
Gosto de pessoas que falam o que pensam.
— E eu aqui pensando que você era só um rostinho bonito. — A falta
de filtro de Larissa ainda vai arrumar problemas para ela. — Bonitinho e
com consciência política.
— E bom com arte também — acrescento, apontando para o bolso da
camisa. — Ele que desenhou.
Larissa arregala os olhos. Diego fica meio sem graça, mas não me sinto
culpado.
— Ficou lindo — diz ela.
— Obrigado — responde ele. — Eu meio que… gosto de fazer essas
coisas.
Nossa conversa é interrompida pela voz grave de Patrícia.
— Eu não acredito que vocês começaram sem mim! — diz ela, aproxi-
mando-se da mesa. — Ah, oi, Diego.
— Esse queijo é muito bom — responde ele, apontando para o gorgon-
zola. — E a sopa está ótima também.
— Do que vocês estão falando?
— De como nossas decisões políticas impactam a vida de Lima Reis —
responde Larissa prontamente. Quando Patrícia faz cara de quem não com-
pra aquela conversa profunda, ela acrescenta: — Está bem… só estamos
fofocando em quem votar para prefeito.
— Se eu fosse um pouco menos inteligente, seria facilmente comprada
por todo esse banquete — diz Patrícia, pegando uma coxinha e saboreando-
a.
— Eu acho muito louco que todos nós pensamos muito parecido sobre
em quem votar na eleição, mas ainda assim… — Diego não conclui o pen-
samento, mas só olha ao redor.
Meu pai está rodeado de pessoas. De alguma forma, consegue dar aten-
ção por alguns segundos a todos os que o param para conversar, e quem o
olhasse de longe pensaria que ele estava fazendo aquilo porque realmente se
preocupa com seu eleitorado. Mas é uma obrigação de campanha. Só eu sei
o quanto ele odeia que as pessoas lhe peçam coisas aleatórias. Ele não é
todo sorrisos desse jeito quando não está em campanha. É cheio de “fale
com meus assessores” e “ligue para a prefeitura”, sempre encontrando des-
culpas para não ouvir a população. Agora, está quase prometendo o próprio
braço em troca de alguns votos.
— A gente não tem a percepção de como as pessoas pensam, mesmo
em uma cidade tão pequena como essa — diz Patrícia. — Tem horas que eu
vejo todo mundo no Twitter falando as mesmas coisas e penso: como é pos-
sível que existam pessoas com pensamentos tão diferentes do meu se todo
mundo que eu sigo pensa tão parecido?
— A Patrícia anda filosofando sobre bolhas desde que viu aquele docu-
mentário sobre redes sociais na Netflix — Larissa murmura para Diego.
— Mas é sério! Eu e meu pai pensamos muito parecido, mas olha para o
André, por exemplo! Eu não faço ideia de como a gente é amigo, porque o
pai dele representa literalmente tudo o que eu mais abomino na política. Ele
é machista, homofóbico, adora essa história de privatização e vive falando
que bandido tem tudo que morrer.
— Seu pai é uma exceção, Patrícia — respondo. — A gente passa muito
tempo conversando lá no jornal e uma coisa que ele sempre me disse é que
essa cidade sempre foi assim. Se as pessoas não acreditassem nesse discur-
so, duvido que votassem na minha família durante todos esses anos. E a
pior parte é que, ao mesmo tempo em que ele fala todas essas atrocidades,
ele ainda é o meu pai.
— Então você defende ele? — pergunta Patrícia.
— É claro que não! Só que… o que eu posso fazer?
Esse sempre é o ponto-chave: mesmo vivendo sob o mesmo teto do meu
pai e discordando de basicamente tudo o que fala, ele ainda é o meu pai. O
homem que me criou e me fez tão diferente dele.
— Eu entendo o André — diz Diego, para a minha surpresa e a das ga-
rotas. — Minha mãe também é fã desse discurso, mas eu não suporto. E pa-
rece que não adianta nada tentar conversar. Ela só fica mais agressiva e co-
meça a falar sobre como a mídia influencia a mente dos jovens com menti-
ras e como ela e seus grupos de mensagens é que sabem a verdade que nin-
guém mostra.
— A gente cresceu acreditando que estaria colonizando Marte e agora
precisa explicar para os nossos pais que a Terra não é plana e que o nazismo
não é um movimento socialista — murmura Larissa. — Eu honestamente
não sei mais o que está acontecendo.
Nossa conversa é interrompida pelo som da diretora Marcela chamando
todos para a frente do laboratório de informática. A mesa de comidas tem
um pequeno princípio de aglomeração, mas logo todos pegam seus petiscos
e a seguem pelo corredor em direção aos fundos da escola.
Lá dentro, a cena é ainda mais ridícula: na frente da porta há um cordão
com um laço vermelho impedindo a passagem das pessoas. A distância,
vejo que Felipe está com seu caderninho em mãos, anotando todas as pecu-
liaridades daquele evento para sua matéria no jornal. Tiro algumas fotos e
aceno para ele, que retribui com um gesto antes de continuar riscando frene-
ticamente no papel.
— Com a palavra, o prefeito Ulisses Aguiar!
Dona Marcela puxa um coro de palmas animadas. Minha mãe está ao
lado do meu pai mas eu, com a desculpa de estar cobrindo o evento, consi-
go me manter mais distante.
Meu pai levanta as mãos, o sorriso sempre no rosto, dispensa o microfo-
ne e decide falar a plenos pulmões.
— Muito obrigado pela presença de todos! Foi com muita luta que con-
seguimos conquistar esse novo espaço para a juventude de Lima Reis. To-
dos sabem da importância da inclusão digital, e agora, com esse novo labo-
ratório de informática com computadores de última geração, finalmente
conseguiremos dar andamento ao programa que traçamos desde o início
dessa gestão: a de formar os melhores profissionais que essa cidade pode
ter!
Com outro coro de palmas, Marcela estende uma tesoura para minha
mãe que, com um sorriso educado, a dispensa. Meu pai olha para ela e per-
cebo uma sombra passando rapidamente pelo seu rosto. Ele mesmo pega a
tesoura e corta o laço vermelho sob a ovação dos presentes.
Felipe está bem à frente do laboratório e é um dos primeiros a entrar
quando a diretora abre as portas.
Está realmente incrível: as paredes foram pintadas, toda a mobília foi
trocada e pelo menos quinze computadores estão dispostos sobre as mesas,
alguns ainda com as películas de proteção nas telas dos monitores. Tiro al-
gumas fotos enquanto as pessoas circulam pelo espaço.
— Será que a gente finalmente vai conseguir ter uma aula sem que esses
computadores fiquem reiniciando toda hora? — pergunta Larissa,
empolgada.
— Todos os computadores que vocês veem aqui são de última geração
— consigo ouvir meu pai dizendo para um grupo que o cerca, talvez um
pouco mais alto do que o necessário. — A prefeitura fez uma parceria com
a empresa fornecedora e conseguiu os melhores preços para os nossos alu-
nos. O melhor custo-benefício do mercado!
Por curiosidade, aperto o botão para ligar um dos computadores, mas
percebo que todos eles estão desconectados das tomadas.
— Será que a gente consegue ver algum deles em ação? — pergunto,
menos pela minha veia jornalística do que pela empolgação de usar um
computador que não se pareça com uma carroça velha nas próximas aulas
de informática.
A diretora me ouve e responde prontamente:
— Por enquanto, não, meu querido. Eles ainda não foram configurados,
mas guarde sua empolgação para as aulas! Vocês finalmente vão usar algo
que esteja à altura do nosso nível de educação.
Bem, isso é anticlimático.
Antes que eu possa fazer mais alguma pergunta, a diretora bate palmas e
chama a atenção de todos.
— Não vamos ficar aqui a tarde toda, não é? Aproveitem a música e o
bufê que a prefeitura nos ofereceu para celebrar este dia especial!
Ela não precisa dizer duas vezes. Aos poucos, as pessoas começam a
sair da sala de informática e voltam para o pátio central da escola.
— Você não vem, André? — pergunta Larissa, percebendo que ainda
estou olhando para os computadores.
— Já estou indo — respondo, tirando mais algumas fotos e me pergun-
tando por que tenho a sensação de que algo está errado.
13
Quando chego na casa onde minha mãe e tio Eduardo estão hospedados,
percebo que há um carro desconhecido parado na frente do terreno.
— Quem será dessa vez? — murmura minha mãe, mais para si do que
para mim.
Consigo ver as luzes acesas, as janelas abertas e, quando saímos do car-
ro, é impossível não ouvir o som alto das vozes ecoando para fora da casa.
São risadas. De tio Eduardo e, pelo menos, mais duas pessoas.
Assim que entramos, vejo que meu tio não está usando suas roupas lar-
gas de doente falso nem a maquiagem que deixa seu rosto abatido. Em vez
disso, está com uma camisa verde com uma estampa do Scooby-Doo e uma
bermuda azul, segurando uma taça de vinho tinto enquanto parece discutir
algum assunto super relevante com o casal sentado no sofá à frente dele.
— … exatamente! É por isso que as pessoas olham para a Lady Gaga e
falam: olha como ela é revolucionária! Por acaso esqueceram que a Madon-
na já fez tudo isso, e muito melhor? — Ao perceber nossa presença, ele er-
gue a taça de vinho e sorri. — Olá! Se não é a minha irmã e o meu sobrinho
favoritos!
Olho para o sofá e vejo que quem acompanha meu tio são Pedro Torres,
o candidato concorrendo à eleição contra meu pai, e sua esposa, Paula Tor-
res. Os dois também erguem suas taças e sorriem, muito menos bêbados do
que meu tio.
— Somos os únicos que você tem — responde minha mãe, ao mesmo
tempo meio preocupada com o estado alcoólico dele e com aquelas visitas
inesperadas. — Você esqueceu que está se recuperando de uma cirurgia,
Eduardo?
— Ah, pelo amor de Deus, Selma! Olha quem está aqui! — Ele aponta
para os dois. — Eu sei que a gente tem que sustentar essa história porque
essa cidade não consegue parar de falar da vida dos outros, mas eu nunca
me perdoaria se voltasse para esse fim de mundo e não ligasse para as úni-
cas pessoas boas daqui. A gente ainda pode confiar neles, não é? Diz que
sim!
Minha mãe balança a cabeça e revira os olhos, mascarando sua impaci-
ência com bom humor artificial.
— É claro que sim. Como é bom ver vocês de novo, seus sumidos!
Minha mãe segue com as boas-vindas e abraça os dois, e me chama para
fazer o mesmo.
Pedro Torres deve ter a mesma idade do meu tio e, diferente das ima-
gens promocionais de sua campanha, agora está usando uma roupa esporti-
va e mais confortável. Ele tem a pele negra de tom escuro, os cabelos raspa-
dos e um porte atlético. Já o vi correndo pela cidade no meu caminho para a
escola e posso confirmar: provavelmente muito do seu eleitorado está mais
preocupado em procurar por fotos dele sem camisa (eu talvez seja um de-
les) do que por ouvir suas propostas de campanha (ok, eu também me inte-
resso por essa parte). Sua esposa parece o par perfeito para ele: também é
atlética, sua parceira de corridas matinais, tem a pele negra de tom mais cla-
ro e cabelos crespos e cheios, que hoje estão longe de sua testa por conta de
um lenço amarrado na nuca. Ela é mais alta do que tio Eduardo e envolve
minha mãe em um daqueles abraços de amigos de longa data que não se
veem com tanta frequência quanto gostariam.
— Eu estava aqui contando para esses dois como foram os anos em São
Paulo — diz tio Eduardo. Ele está sentado ao lado de Pedro Torres. Encosta
sua mão no ombro dele e logo o envolve em um abraço de lado. — E como
eu estava morrendo de saudade das nossas conversas.
— E olha só para você, André! — comenta Pedro, olhando para mim
com seu sorriso diplomático. — Eu sei que eu e seu pai somos meio que ri-
vais nessa cidade, mas não posso deixar de dizer como sua mãe e seu tio
foram especiais para mim quando eu tinha a sua idade. Você tem muita sor-
te de ter os dois por perto.
Dou um sorriso sem graça e balanço a cabeça, um pouco constrangido
como sempre fico na presença de tantos adultos que parecem querer colocar
a conversa em dia.
— Bom, a noite tem sido ótima, mas acho que já passamos da hora —
diz Pedro, olhando para o relógio de pulso. — Temos que ir embora.
— Ah, não! — resmunga tio Eduardo. — Fiquem um pouco mais.
— Ah, Edu, você sabe como o Pedro é — diz Paula. — Amanhã vai
querer acordar às seis da manhã e sair correndo por aí.
— Você fala como se não levantasse primeiro e me arrastasse para fora
da cama — comenta Pedro.
Os dois trocam um sorriso de quem parece estar sempre em sintonia.
— Selma, foi um prazer vir aqui — diz Pedro. — Desculpe sair assim,
mas já ficamos mais do que pretendíamos. Foi ótimo ver o Eduardo de
novo.
— Obrigada pela visita. — Ela olha para Pedro e continua sorrindo
quando acrescenta em um tom de voz mais baixo: — Olha, eu sei que você
e o Ulisses estão em campanha, mas se for possível não… comentar nada
sobre o Eduardo para ninguém… — Ela parece preocupada.
— É claro, é claro. Se recuperando de uma cirurgia, eu sei. Ele me ligou
e disse que estava na cidade, então só viemos fazer uma visita rápida. Não
se preocupe com isso.
Ela aquiesce, mas não sei se parece mais aliviada.
Quando os dois entram no carro e dão marcha a ré em direção à estrada
que leva ao centro da cidade, minha mãe solta tudo o que parece ter segura-
do até agora.
— Pelo amor de Deus, Eduardo! Como você consegue ser tão
irresponsável?
Tio Eduardo, que até então continuava aproveitando as boas sensações
que o vinho traz, muda completamente de expressão.
— Calma, Selma. Eu só estava entediado e resolvi chamar um amigo.
Era só o Pedro.
— Só o Pedro? Ele é o concorrente do meu marido! Eu só te pedi para
vir aqui para não estragar a campanha dele e você convida o adversário dele
para tomar vinho? E se ele conta para alguém? E se ele usa isso na campa-
nha e conta para todo mundo que eu e o Ulisses estamos nos separando?
— Mãe… — Tento apaziguar a situação, mas minha mãe está lívida e
sequer olha para mim.
— Selma, ele nunca faria isso! — diz tio Eduardo. — É o Pedro! Você
esqueceu como a gente era amigo?
— Amigo? Não existem amigos no meio de uma eleição! Ele vai usar
qualquer coisa ao alcance dele para vencer, nem que isso signifique colocar
meu nome na lama!
Minha mãe sempre falou como tio Eduardo e eu éramos parecidos, mas
agora percebo que há uma diferença fundamental entre nós dois: se eu esti-
vesse recebendo um sermão daqueles de qualquer pessoa que fosse, meu
primeiro instinto seria o de me encolher e rastejar, pedindo por perdão. Mas
tio Eduardo não é assim. Os gritos da minha mãe parecem enchê-lo de rai-
va, causando uma reação muito diferente.
Ele também começa a gritar.
— Você está preocupada com seu nome na lama? Coitada de você! Pa-
rece que se esqueceu de tudo o que aconteceu e de como o Pedro me ajudou
quando a gente era mais novo, não é?
— Gente, por favor… — continuo tentando.
Mas agora os dois estão desenterrando fantasmas de um passado que
não conheço. Pareço invisível no meio daquela sala.
— Por que você continua protegendo o lixo do seu ex-marido ? — Ele
faz questão de enfatizar a palavra enquanto continua falando. — E não quer
nem que eu volte a ter contato com a única pessoa dessa cidade por quem
tenho um pouco de consideração?
— Porque ele não é a mesma pessoa de quando a gente era adolescente,
Eduardo! Nenhum de nós é!
— Eu não vou deixar de confiar nas pessoas só porque você não confia
em ninguém, Selma. Seria tão ruim assim se essa cidade tivesse um prefeito
decente, para variar um pouco? Ou você está tão confortável nessa sua posi-
çãozinha de poder que não tem coragem de largar seu marido? Será que isso
te fez perceber que você não tem nada se ele não puder mexer os pauzinhos
para você? — diz meu tio. Minha mãe o olha, chocada. — Casar com o
Ulisses te deixou igualzinha a ele. Paranoica.
— Vocês dois, chega! — Falo um pouco mais alto, fazendo com que
eles se encarem em silêncio, minha mãe com os olhos arregalados e meu tio
com uma expressão de quem ainda tem muito ressentimento para despejar
pela sala.
Ele desvia o olhar primeiro e finalmente olha para mim.
— Sua mãe parece esquecer muito fácil do passado, André — diz tio
Eduardo, levantando-se da cadeira onde está. — Eu vou me deitar. Boa noi-
te para vocês.
Minha mãe continua com a expressão de poucos amigos. Ela dá um sus-
piro, procura por uma taça vazia no armário da cozinha, vai até a garrafa de
vinho sobre a mesa e se serve, talvez colocando mais do que faria em uma
situação normal.
— Seu tio é inacreditável. Me desculpa pela gritaria.
— Está tudo bem, mãe — digo, tentando apaziguar aquela situação em
que eu, surpreendentemente, pareço uma pessoa sensata enquanto ela pare-
ce uma adolescente. Acho que se reconectar ao passado deve tê-la feito re-
gredir no desenvolvimento emocional. — Mas o tio Eduardo disse que vo-
cês e o Pedro eram amigos… É tão ruim assim ele vir aqui?
— É claro que sim! Imagina se ele fala algo? Eu não quero… estragar
as coisas. Estou cansada de estragar as coisas.
Ela dá um gole no vinho, suspira e continua falando:
— Olha, André… quando seu tio foi embora, não foi nada fácil para ne-
nhum de nós. Nem para ele, nem para mim, nem para o Pedro e a Paula. A
gente era muito ligado, e depois disso as coisas simplesmente… desmoro-
naram. Eu nunca mais falei com o Pedro do mesmo jeito depois que seu tio
foi embora. O único apoio emocional que eu tive nessa época foi seu pai. É
por isso que eu simplesmente não consigo jogar tudo para o alto. Eu sei que
ele tem seus defeitos, e também sei que essa prefeitura parece ser muito
mais importante para ele do que qualquer outra coisa, mas nem sempre foi
assim. Eu era apaixonada pelo seu pai, e ele estava ao meu lado quando
mais precisei. Quando seu tio decidiu que ninguém nessa cidade merecia a
atenção dele, nem mesmo eu ou sua avó, foi horrível para todo mundo.
— O Pedro teve alguma coisa a ver com o meu tio ir embora, não teve?
— Não cabe a mim dizer isso — completa ela.
É uma resposta que parece indicar que Pedro teve, sim, alguma influên-
cia nessa história toda. Mas resolvo que aquele não é o momento para de-
sencavar histórias do passado.
— Vai lá falar com seu tio. Vou continuar tentando achar um pouco de
paz no fundo dessa taça.
Ela se joga no sofá e liga a TV apenas para ter algum som lhe fazendo
companhia. Penso em continuar ali, ao lado dela, mas descubro que quero
conversar com tio Eduardo.
Vou até o quarto e vejo que ele está deitado na cama com a luz apagada,
o rosto iluminado pela tela do celular. Parece entediado, rolando o feed de
alguma rede social exatamente do mesmo jeito que faço antes de dormir.
Acho que nosso abismo geracional não é tão grande quando se trata de re-
des sociais.
— A internet desse lugar é horrível — resmunga ele quando me vê. Per-
cebo que está irritadiço, como uma criança colocada de castigo depois de
fazer bagunça.
Sem pedir licença, acendo a luz e ele comprime os olhos, me encarando
com cara de poucos amigos.
— Vim saber se você está bem — digo, sentando na cadeira de balanço
onde vovô costumava ler seus livros de mistério.
— Você é um querido, André. Nem parece que foi criado por aquele
monstro.
Agora ele só está sendo infantil.
— Qual é, tio. Você sabe que não devia ter chamado ninguém para cá.
Aquilo parece tirá-lo do seu transe das redes sociais.
— Ela te mandou aqui para dizer isso? Porque não estou a fim de brigar,
muito menos com você.
— É claro que não. Não sei se você se lembra, mas é possível ter opi-
nião própria aos dezessete anos.
Ele bloqueia a tela do celular e senta na cama com as pernas cruzadas.
— Ai, André… eu não sei o que ela te contou sobre o Pedro, mas ele e a
Paula eram meus únicos amigos aqui. Sabe quando eu te falei que essa cida-
de sempre foi muito cruel comigo? Pois é. O Pedro e a Paula nunca foram.
Eles sempre estiveram comigo. Você também tem pessoas assim. Imagina
se você passasse tanto tempo sem ver seus melhores amigos e tivesse a
oportunidade de poder abraçá-los de novo? Você ia se preocupar com essa
bobeira de manter um segredo para uma cidade inteira ou só ia ligar para
eles?
Colocar tudo em perspectiva daquele jeito me faz olhar tio Eduardo me-
nos como uma pessoa irresponsável e mais como alguém tentando fazer as
pazes com seu passado.
— Além do mais — continua ele, em uma espiral de pensamentos em
voz alta que talvez seja mais para ele mesmo do que para mim —, eu não
consigo entender por que sua mãe não larga seu pai de uma vez. Por que ela
se importa tanto com as pessoas dessa cidade ou com a eleição dele? Eu sei
que ele é seu pai, mas não consigo colocar isso na minha cabeça.
— Ela ama essa cidade — respondo, e então me lembro do que minha
mãe acabou de me dizer. — E ela também ama meu pai. Do jeito dela, mas
ama.
— Eu sei — responde ele, de má vontade. — No fim das contas, tudo se
resume a isso, não é? A verdade é que nunca consegui entender isso de
amor, então acho que acabei um pouco amargo. Espero que as semelhanças
entre mim e você fiquem apenas na parte dos nossos gostos musicais.
— Você já se apaixonou? Sei lá… quando morava aqui?
— É meio difícil amar em uma cidade como essa. Principalmente por-
que as chances de ser amado de volta não são muito grandes. Espero que
você não termine amargo que nem eu.
— Você vai encontrar alguém incrível para estar ao seu lado. Por mais
que não pareça, essas pessoas existem, mesmo em cidades como essa.
— O quê? — Ele parece identificar as palavras, mas não sabe muito
bem de onde.
— Regra número dezesseis. Foi você quem escreveu.
— Você… memorizou?
Encolho os ombros.
— Só algumas. Não tem muita coisa pra fazer em Lima Reis.
— É mais fácil escrever um conselho do que colocá-lo em prática. —
Ele sorri, agora com tristeza. — Sabe, eu nunca pensei que pudesse ter um
sobrinho… igual a mim.
— Gay — respondo, me lembrando de quando ele disse que não devía-
mos ter medo de chamar as coisas pelos seus nomes.
— Gay — repete ele, balançando a cabeça antes de continuar falando.
— E agora que estou vendo você aqui, tudo o que eu mais queria era poder
te enfiar em uma bolha para te proteger de toda essa merda. Eu passei tanto
tempo longe daqui que acabei esquecendo como essa cidade funciona. Eu
só queria que Lima Reis fosse igual a São Paulo, Rio de Janeiro, Nova
York, Madrid! Não é exatamente seguro estar nesses lugares e andar de
mãos dadas com outro cara, mas ainda é melhor do que viver cercado por
todos os fofoqueiros daqui. Honestamente, eu fico muito triste quando per-
cebo que esse lugar seguro talvez nem exista. Quem sabe na Parada do Or-
gulho, se você não ficar em nenhum lugar escuro depois que anoitece.
— É cansativo, não é?
Ele suspira.
— Queria poder te dizer que não é, mas não consigo. É verdade quando
eu te digo que as coisas melhoram, porque tenho certeza de que seu futuro
vai ser incrível em qualquer lugar do mundo, mas eu ainda me pego pensan-
do em como tudo é complicado.
— Não parece tão difícil para você. Quer dizer, você já chegou aqui fa-
lando sobre ser gay de um jeito que eu nunca vi antes. Acho que jamais vou
ter essa coragem.
— É claro que vai. Com o tempo, a gente vai aprendendo a deixar as
pessoas lidarem com seus próprios preconceitos. É melhor do que se escon-
der, isso eu te garanto.
Dessa vez sou eu que dou um sorriso meio cansado.
— Você acha que eu devia falar? — pergunto. — Pelo menos para mi-
nha mãe?
É uma questão que começou a se formar na minha cabeça a partir do
momento em que vi meu tio em todo o seu esplendor. Se minha mãe é ca-
paz de lidar com ele, de aceitá-lo e de inclusive parecer confortável perto
dele, por que não comigo? Será que é um baque muito grande descobrir que
não apenas seu irmão é gay, mas seu filho também?
— Quem sou eu para te dizer quando você deve ou não contar às pesso-
as? — pergunta ele.
— Eu queria que existisse um mundo onde a gente só pudesse ser , sem
precisar ficar o tempo todo declarando nossas vidas por aí.
— Mas eu já disse para você que é importante falar — complementa
ele. — Não o tempo todo, é claro. Ninguém chega para o dono do mercado
e fala “sou gay, me vê dois quilos de arroz?”. Também não estou dizendo
que você deva fazer uma reunião ou uma festa de saída do armário, mas as
pessoas precisam se acostumar ao fato de que estamos aqui. Então falar é
importante. Mas no seu tempo. Nos seus termos. Porque falar abertamente
faz as pessoas perceberem como tudo isso pode ser natural.
— E se eu falasse com… aquele garoto?
Ele muda de expressão quando me ouve falando de garotos. Dá um sor-
risinho com o canto dos lábios.
— Uuuuh, então tem mesmo um garoto.
— A gente passou um tempão conversando hoje. Eu, ele e minhas ami-
gas. E aí, quando a gente foi embora, ele meio que… me abraçou. Por uns
dois segundos a mais do que outra pessoa abraçaria.
— Você acha que são dois segundos que valem a pena investir?
— Eu não sei! — Passo as mãos pelo rosto, frustrado. — Ele parece ser
tão… hétero! Ele vive jogando futebol e fazendo esportes, mas aí hoje do
nada foi para a festa na escola com uma camisa pintada à mão que ele mes-
mo pintou porque aparentemente também é artista? Mas ele ajuda na igreja
e parece gostar de fazer isso, e apesar de ter um monte de garotas suspiran-
do por ele, nunca vi ele ficando com nenhuma.
— Ei, se acalma, André!
— É tão… argh! — resumo. — Como foi com você?
— Comigo?
— É. Com o Guilherme — digo, me lembrando das páginas preenchi-
das incessantemente com aquele nome seguido por corações.
Ele estreita os olhos, como se tentasse puxar alguma memória muito en-
terrada em sua mente.
— Ah, sim! O Guilherme! — responde, lembrando subitamente. —
Nossa, foi um caos.
— Animador — resmungo.
— Mas o caos faz tudo ser mais empolgante! — completa, tentando me
fazer sorrir. — Olha, eu não vou dizer que foi uma experiência boa. Mas
também não vou dizer que foi ruim. Foi só… constrangedora.
— Realmente animador — continuo resmungando, vendo minhas chan-
ces com Diego escorrerem pelo ralo.
— Eu fiquei quase dois anos só admirando esse garoto. Era ridículo.
Mas aí eu comecei a crescer e percebi que não ia adiantar nada tentar con-
vencer as garotas a ficarem comigo, porque se eu sou esquisito assim hoje,
naquele tempo era muito pior.
— Você não é esquisito — afirmo. — Devia se olhar mais no espelho
para perceber como você é bonito.
— Own, meu terapeuta ficaria orgulhoso de você. Mas enfim… eu não
conseguia mais ignorar o fato de que precisava saber como era. Eu queria
beijar um garoto, por mais arriscado que fosse. Tive outras oportunidades, é
claro, mas só percebi que elas existiram quando já tinha ido embora daqui.
Porque se tem uma coisa que você tem que saber, André, é que há muitos
garotos dispostos a fazer o que você quiser com eles, contanto que seja em
um beco escuro e longe da vista de todos. Eles existem na capital e aqui
também, mas fique longe deles. Eu estava tão fixado no Guilherme que só
aceitava beijar alguém se fosse ele.
— E o que você fez?
— Ok, esse é o momento em que preciso ser o adulto responsável e di-
zer duas coisas. A primeira: eu era um adolescente muito inconsequente; e a
segunda: por favor, não repita meu exemplo. Você é muito melhor do que
isso.
— Está bem — respondo rapidamente, cada vez mais curioso. — O que
você fez?
— Fiz ele beber — responde meu tio. — Obviamente eu também bebi,
porque estava nervoso. Mas nós estávamos em uma festa, não lembro na
casa de quem, e começamos a beber. Eu percebi que nós dois fomos nos
soltando. Ele era tão tímido quanto eu, mas tinha um ar de… não sei, misté-
rio?, que eu não sabia identificar se era só uma parte da sua personalidade
ou se era alguma coisa comigo. Então nós bebemos, nós conversamos e nós
bebemos mais um pouco. Tudo o que entra precisa sair, então ele disse que
ia ao banheiro e eu falei que ia também.
“Só que eu percebi que ele me olhava. Sabe quando a gente olha para
uma pessoa e, logo depois de desviar o olhar, olha de novo? Encara os olhos
dela e parece querer falar todas as palavras do mundo ao mesmo tempo?
Era assim que ele me olhava. E era assim que eu olhava para ele de volta. A
gente continuou andando e ele olhava para trás o tempo todo, então percebi
que ele não estava indo para o banheiro principal, mas sim para o dos fun-
dos. É claro que eu o segui. Eu estava empolgado, amedrontado e meio bê-
bado. Então ele entrou, fez o que tinha que fazer e saiu. Depois eu entrei, fiz
o que tinha que fazer e também saí, e só então me dei conta de que ele ainda
me esperava. E então ele me olhou nos olhos. Não tinha ninguém por perto
porque ninguém sabia da existência daquele outro banheiro, então eu só me
inclinei em direção à boca dele. Ou acho que ele se inclinou. Enfim, nós
dois nos inclinamos ao mesmo tempo, mas só encostamos os lábios. Foi rá-
pido e pareceu mais um choque do que um beijo, e logo nos afastamos, os
dois com medo, olhando para os lados só para ter certeza de que não tinha
ninguém nos vendo. Não tinha. Então nos beijamos de novo, dessa vez mais
devagar, com mais vontade, ele com as mãos no meu rosto, eu com as mãos
na cintura dele. Fiquei quase sem ar quando finalmente dei um passo para
trás. Então nós voltamos para a festa e continuamos bebendo e conversan-
do, como se nada tivesse acontecido.”
— Vocês não se trancaram no banheiro? — pergunto, estreitando os
olhos. Talvez o vinho ainda esteja falando por mim. — Vocês só se beija-
ram? Você não está transformando essa história em um conto de fadas só
para me dizer como seu primeiro beijo foi incrível, está?
Meu tio dá uma gargalhada genuína.
— André, você pode ter um monte de suposições sobre mim, e tenho
certeza de que a maioria delas está certa, mas eu juro para você que eu esta-
va com tanto, mas tanto medo que não consegui pensar em mais nada além
de acabar logo com aquele beijo para ninguém nos ver. O que, parando para
pensar hoje, foi uma oportunidade incrivelmente perdida de dar uns amas-
sos em um banheiro deserto.
— Dar uns amassos — repito. — A gente realmente não tem a mesma
idade.
Ele ergue uma sobrancelha com meu comentário e continua falando:
— Enfim… depois disso a gente continuou se falando por algum tempo
como se nada tivesse acontecido. E, assim como Sherazade, termino a his-
tória por aqui e prometo que conto o restante dela em outra oportunidade.
Não quero pensar nisso agora.
— Tudo bem. Eu provavelmente tenho que impedir que minha mãe
beba mais do que uma taça de vinho se quiser que ela dirija e me leve de
volta para casa em segurança.
E, antes que eu mude de ideia, dou um passo na direção do tio Eduardo
e o envolvo em um abraço. Percebo que ele é pego desprevenido, seu corpo
rígido em contato com o meu, mas ele logo me abraça de volta.
— Ei… se arrisque um pouco — aconselha ele antes de me soltar. — Se
der tudo errado, lembra que você sempre pode contar comigo. Talvez não
faça tanta diferença assim, mas eu gostaria que alguém tivesse me dito isso
quando eu tinha a sua idade.
— Faz toda a diferença, tio — respondo.
14
Larissa: Essa é uma lista muito elaborada para quem só quer dar
uns beijos.
André: Dá no mesmo.
Larissa: Mas o que você tem a perder se ele te falar que não gosta
de garotos?
André: Ele pode espalhar meu segredo para todo mundo?
André: O quê?
Larissa: Se menosprezando.
Vamos lá.
Três qualidades.
Agora.
Não vale falar dos dentes.
Larissa: E quem seria maluco de dispensar alguém que faria ele rir,
tem olhos lindos e ainda lava a louça depois do jantar?
André: Tudo bem, mas isso não significa nada. Ele é mui-
to… melhor do que eu.
Sinto a régua batendo no meu braço, estalando alto o bastante para fazer
o professor virar a cabeça em busca do som. Faço uma careta de dor e esfre-
go o braço discretamente enquanto parte da sala dá alguns risinhos. O pro-
fessor só balança a cabeça, revira os olhos e volta a escrever no quadro.
Pego meu celular e volto para nossa tela de mensagens.
André: HOMOFÓBICA!
Larissa: Isso é para você nunca mais dizer que alguém é melhor do
que você!
O Diego pode ser ótimo, mas sei lá, vai que ele é um assassino?
Vai que tem um bebê reborn que chama de Valentina? Ninguém é
perfeito, André.
Larissa: Eu também!
— Espero que minha aula não esteja interrompendo a atenção aos seus
telefones, Larissa e André.
A voz do professor me faz olhar subitamente para cima.
— Desculpa, professor — diz Larissa, a voz doce e um sorriso que só
consigo descrever como maníaco. Sem nem parar para pensar, ela comple-
menta: — Eu estava justamente mostrando para o André as estatísticas so-
bre a agricultura familiar no Brasil e como as commodities no campo são
uma ameaça para o nosso desenvolvimento sustentável. Será que a gente
pode falar um pouco sobre isso?
O professor pisca três ou quatro vezes para absorver o que Larissa
falou.
— Vamos nos concentrar primeiro nos benefícios da exportação de
commodities para a economia do país — responde ele. — Não se deixe en-
ganar por essas fake news inventadas pela esquerda, Larissa.
E, sem deixar Larissa rebater — e eu tenho certeza de que ela adoraria
contra-argumentar —, o professor se volta mais uma vez para o quadro.
Ela sempre consegue. É impressionante.
15
Quando chego no jornal, Felipe está soltando fumaça por todos os ori-
fícios do corpo.
Ele anda de um lado para o outro, impaciente, enfiado em uma camisa
furada do Iron Maiden. Sei que as coisas não estão boas porque ele está
com um cigarro aceso dentro da sala, coisa que só faz quando seu nível de
estresse está alto.
Mas, agora, ele não se importa se incendiar acidentalmente aquela ba-
gunça de papéis espalhados por todos os lados.
— Ah, agora você resolve aparecer! — diz ele assim que abro a porta.
— Desde quando eu te dei autorização para mudar meu texto, André?
Felipe nunca falou comigo daquele jeito. É claro que já o vi em momen-
tos de raiva, quando enfia as mãos nos cabelos longos e geme enquanto en-
cara a tela do computador e não consegue finalizar um artigo, ou quando
bate o telefone depois de passar quase uma hora ouvindo alguém tentando
convencê-lo a escrever uma matéria falando bem sobre seu estabelecimento
comercial. Mas nunca comigo. Comigo, ele sempre está disposto a sentar,
me ouvir e conversar sobre qualquer coisa.
Mas as alterações que fiz no texto da noite passada parecem tê-lo tirado
do sério.
— Eu… — A princípio, tento entender por que ele está tão irritado. Or-
ganizo meus pensamentos. — Aquela matéria estava cheia de erros, Felipe.
— Quem é você para me dar aulas agora? — responde ele, ríspido.
— Eu só fiz o que a gente sempre faz quando encontra alguma inconsis-
tência! Eu corrigi o texto, sinalizei as alterações e te mandei uma mensagem
avisando.
— Uma mensagem que eu não vi! O que fez seu texto ser impresso no
jornal em vez da minha versão!
— O texto continua sendo seu. Eu só… revisei.
— André… — Felipe aperta o espaço entre seus olhos e os fecha, de-
pois leva o cigarro aos lábios e deixa a fumaça sair pelas narinas. — Eu sei
que você quer foder seu pai nessa eleição, mas não me fode no processo.
O quê?
Do que ele está falando?
— Foi para isso que você veio trabalhar aqui, não é? — continua ele. —
Para usar o jornal como arma e destruir a campanha do seu pai? Porque,
sinceramente, isso é muito imaturo. E eu sei que, para você, isso aqui é só
uma distração enquanto seu grande sonho de ir para a capital e se ver livre
de todos nessa cidade não se concretiza, mas isso aqui é a minha vida, e
você não tem o direito de brincar com isso!
— Eu não estou brincando! — Não consigo entender de onde Felipe ti-
rou todas aquelas suposições. — Será que você pode parar de gritar por um
segundo e me dizer qual é o grande problema em corrigir algumas informa-
ções sobre um laboratório de informática?
— O problema, André — responde ele, com o tom de voz um pouco
mais baixo, mas nem por isso menos ameaçador —, é que a gente está em
período eleitoral. E eu não sei se você sabe, mas a imprensa é a primeira a
ser atacada quando alguém quer se certificar de que vai continuar no poder.
Então a gente precisa ser muito mais cuidadoso do que geralmente é, para
que esse tipo de merda não aconteça e a gente não corra o risco de sofrer
alguma retaliação.
— Retaliação? Você está dizendo que alguém… fez alguma coisa com
você?
Digo alguém porque não quero fazer a pergunta óbvia.
Será que meu pai fez alguma coisa contra Felipe?
Felipe traga o cigarro pela última vez antes de amassá-lo no cinzeiro.
— Eu não disse isso — responde ele, expirando. Finalmente parece es-
tar se acalmando. — Eu só estou… cansado. É exatamente por isso que
você não pode escrever as matérias políticas desse jornal. Eu sei que seu
pensamento é diferente do do seu pai, mas aqui nós precisamos ser isentos.
— Você sempre me ensinou que não existe isenção no jornalismo. Se
tem alguém que não está sendo isento aqui, é você, porque eu só corrigi as
informações que estavam incorretas. Ou você prefere que as matérias saiam
cheias de erros das próximas vezes? Eu posso simplesmente não revisar
mais nada.
— É exatamente isso o que eu quero a partir de hoje. Que você não re-
vise nem escreva mais nada. Pelo menos por enquanto.
Só consigo olhar para Felipe, sem saber como reagir.
— Essa eleição está mais disputada do que o normal, e qualquer deslize
da nossa parte pode ser prejudicial para um lado ou para o outro — conti-
nua Felipe, mas as palavras dele soam como ruído branco. Eu ainda não
consigo assimilar muito bem por que estou sendo punido se segui os ensina-
mentos dele à risca. — Então, por enquanto, é melhor você se afastar das
atividades do jornal. Pelo menos na parte dos textos. É claro que você pode
continuar tirando fotos e me ajudando em todas as outras áreas.
É inacreditável. Aquilo não faz o menor sentido.
Ele está me demitindo?
Quero gritar com Felipe sobre como tudo aquilo é injusto. Quero argu-
mentar com ele e entender o que o deixou tão incomodado: se foi o fato de
eu ter alterado um texto que não foi checado por ele, o fato de ele ter come-
tido erros tão grosseiros e não ter percebido, ou, quando começo a pensar
nas probabilidades mais soturnas, se foi porque ele sabia que o texto não
condizia com a realidade e ainda assim quis publicá-lo errado, já que a ver-
são que ele escreveu claramente beneficiava meu pai.
Felipe sempre foi um opositor da prefeitura. Ele é chamado de comunis-
ta mais vezes do que pode contar, e sempre rebate que, se ser comunista é
acreditar em um mundo com mais oportunidades para todos, ele toma aqui-
lo como um elogio.
O que mudou? Por que ele está tão enfurecido e estressado com essa
matéria boba de jornal?
Quero sacudi-lo e arrancar respostas dele, mas aquela parte de mim que
evita conflitos fala mais alto e eu simplesmente engulo todos os palavrões
que estão prestes a sair, todos de uma vez.
— Eu não quero mais colaborar com o jornal, Felipe — respondo com
um tom de voz baixo e desanimado. — Boa sorte com suas matérias.
Continuo olhando para ele, na esperança de ele dizer que está com a ca-
beça quente e não quis dizer nada daquilo.
Mas ele simplesmente sustenta o olhar e, por fim, encolhe os ombros.
— Se você prefere assim, tudo bem — responde. — Sua colaboração
foi muito importante para o andamento do jornal. Agora, se não se importa,
preciso concluir algumas matérias para a edição de amanhã.
Vou direto para a casa dos meus avós paternos, empolgado para contar a no-
vidade para o tio Eduardo.
Quando entro pela sala, ouço música alta saindo da TV e vejo que ele
está ofegante e deitado de barriga para baixo no chão. Parece que alguém o
assassinou, mas não há sangue, apenas suor.
Com destreza, ele se empurra para cima em uma flexão, depois sobe o
quadril e leva os pés muito perto das mãos, subindo com um pulo.
— O que você está fazendo? — pergunto.
— Burpees! — responde ele, ofegante e animado, antes de se jogar no-
vamente no chão e subir outra vez. — Quer me acompanhar?
— Você não tem amor-próprio — resmungo, e ele só sorri e cai mais
uma vez. — Será que a gente pode conversar?
— Um minutinho! — pede ele, subindo e descendo, subindo e descen-
do. — Noventa e oito, noventa e nove, e… cem! Pronto!
Tio Eduardo se arrasta até a mesa, pega uma garrafa de água e quase a
drena com meia dúzia de goles. Se alguém chegasse nesse momento, a fa-
chada de doente se recuperando de uma cirurgia iria pro espaço.
— Por que você faz isso com você mesmo? — pergunto.
— Exercícios físicos são a base para uma vida longa — recita ele. — E,
sendo bem sincero, não tem muita coisa para fazer aqui. É melhor fazer
exercício para não pensar em todas as coisas que eu gostaria de falar para as
pessoas dessa cidade.
— Aconteceu alguma coisa?
— O Felipe veio aqui mais cedo — responde ele. — Queria a tal
entrevista.
Eu me jogo no sofá enquanto tio Eduardo puxa uma cadeira.
— Ele me contou que te mandou embora — continua, sentando.
— Por um motivo completamente aleatório e injusto — acrescento. —
Espero que ele tenha mencionado essa parte. Mas não quero falar disso ago-
ra, porque tenho novidades!
— Boas novidades?
— Eu beijei o menino.
Tio Eduardo quase cospe a água que está terminando de beber.
— Você beijou o menino?
— Eu beijei o menino! — repito, empolgado. — Não foi na sala 44,
mas a gente descobriu que o hospital abandonado também é um lugar exce-
lente. Vou até dar um desconto para o meu pai por ter deixado a construção
largada por tanto tempo.
Tio Eduardo abre um sorriso e balança a cabeça.
— Como você está se sentindo? — pergunta.
— Eu… — Considero a pergunta por dois segundos, e não vou ficar en-
rolando ou mascarando o que realmente estou sentindo. Por isso, apenas
respondo: — Feliz? E um pouco aterrorizado porque nunca senti isso em
toda a minha vida?
— Ah, os dezessete anos… — Tio Eduardo parece uma senhora saudo-
sa com sua era de ouro. — Eu fico muito feliz por você, André. De verdade.
Espero que ele seja um dos caras bacanas.
— Ele é — respondo. — Quero que você conheça ele.
— Olha só, já está querendo apresentar para a família!
Reviro os olhos, mas não consigo deixar de sorrir. Estou maravilhado,
sentindo todos os sentimentos do mundo ao mesmo tempo.
— Só toma cuidado para não se empolgar demais — acrescenta tio Edu-
ardo, vendo minha expressão sonhadora. — Odeio ser a pessoa a te dar esse
conselho, mas você sabe como essa cidade é.
— Eu sei — respondo, meio de má vontade. — A gente combinou de
não falar com ninguém além de você e da Larissa, é claro. Mas eu queria…
argh, eu queria sair gritando para todo mundo! Por que é tão injusto? Pri-
meiro, eu perco meu emprego, e agora sou a pessoa mais feliz dessa cidade
e nem posso falar sobre isso com os outros!
— Meu Deus, eu não sabia que eu tinha um sobrinho tão intenso. Os
dezessete anos são realmente incríveis.
— Vai me dizer que você também não se sentia assim com o
Guilherme?
Tio Eduardo demora alguns segundos para responder.
— É claro que me sentia assim… antes de tudo desandar. É por isso que
estou dizendo para você ter cuidado. As pessoas têm o poder de ser incrí-
veis e também de te decepcionar de maneiras inacreditáveis.
— Regras número nove e dez — respondo. — Eu realmente memorizei
aquela página.
— E você deve ter percebido que eu escrevi esses conselhos um depois
do outro, porque fui de eufórico para puto da vida em questão de dias —
responde ele. — Depois voltei a ficar eufórico, daí fiquei puto de novo, até
que as coisas saíram completamente dos trilhos e terminaram mal, como
sempre achei que terminariam.
Sinto uma mudança no tom de tio Eduardo.
— Comigo não vai ser assim. Eu sei me cuidar — respondo com
convicção.
— Era exatamente o que eu pensava antes de tudo dar errado — diz ele.
— Nossa, parece que você está torcendo contra mim — resmungo.
— Não é nada disso, André. Só quero que você tome cuidado. As pes-
soas falam muito, e é muito difícil ser cuidadoso quando a gente está apai-
xonado por alguém. Por melhor que esse garoto seja, ele ainda é um ser hu-
mano e vocês ainda vão ter muitas chances para fazer burradas. Mas nossas
burradas custam mais caro.
Eu não quero começar a discutir com o tio Eduardo e tentar convencê-lo
de que ele está completamente errado, então só concordo.
— Tudo bem. Vou tomar cuidado. — Não quero mais ouvir aqueles
conselhos que me deixam menos empolgado, então resolvo mudar de assun-
to. — Mas agora vamos falar de você: como foi a entrevista com o Felipe?
Tio Eduardo revira os olhos e solta um grunhido de insatisfação.
— Ele fez um monte de perguntas aleatórias sobre minha vida: como
era voltar para Lima Reis, do que eu mais sentia falta, como era me reen-
contrar com meus antigos amigos, esse tipo de coisa. Acho que só estava
me sondando para saber se eu tinha ficado rico. Primeiro foi aquele padre
vindo aqui para rezar pela minha alma, agora o Felipe vindo se intrometer
na minha vida. É impressionante como as pessoas mudam quando a gente
consegue provar para elas que somos um sucesso. Você acredita que eu pe-
guei ele com a cara enfiada na janela, tentando olhar aqui dentro de casa?
Quase tive um infarto! Mas a sorte era que eu estava de pijama e tinha aca-
bado de acordar, então eu realmente estava me arrastando. Se ele tivesse me
visto agora, acho que nossa história teria ido para o espaço.
Acho estranho que Felipe tenha feito aquilo. Eu sei tão bem quanto
qualquer um que ele está sempre procurando por uma boa história, mas es-
pionar as pessoas e olhar dentro das casas? Não faz o estilo dele.
— Quase mandei ele ir embora, mas não podia começar a gritar e deixar
ele pensar que eu não estava tão mal assim — continua tio Eduardo —, en-
tão decidi ser educado e seco. A gente conversou um pouco, ele comentou
sobre sua demissão e como toda a cidade está dividida com essa eleição
pela prefeitura.
— Lembra que eu falei como foi injusto? Ele te contou que me demitiu
porque eu corrigi um texto dele cheio de erros?
— Ele comentou alguma coisa comigo nesse sentido. Eu ainda não ti-
nha visto ele desde que cheguei, mas o Felipe parecia… agitado. Acho que
devia estar se sentindo mal por te demitir, se é que isso vale de consolo.
— Não vale. Eu ainda quero entender por que ele fez isso.
— Ele está trabalhando demais, André. Essa eleição está deixando todo
mundo meio sem juízo. Toda essa situação da sua mãe não querer se separar
publicamente no meio da campanha, o tanto que seu pai está estressado…
Tem sido muito, para todo mundo.
— Inclusive para mim — acrescento. — Não vejo a hora dessa votação
acontecer logo.
— Não vai demorar muito. Você vai ver.
18
Por que meu pai teria uma conta alternativa com todos esses controles?
Eu não sou tão ingênuo assim. Sei que a política é um terreno de nego-
ciações e que é preciso dar algo para conseguir o que quer. Mas essa conta
de e-mail não parece ser parte do que considero um jogo limpo. Tem algu-
ma coisa muito estranha acontecendo, então decido que preciso de mais
tempo para analisar o que está ali, bem na minha frente.
Com paciência, vou copiando páginas e mais páginas com todos os e-
mails dessa conta paralela, e percebo que existem muitos anexos de docu-
mentos que preciso ver com mais calma. Crio pacotes e mais pacotes de in-
formação, que vou enviando aos poucos para o meu e-mail, batendo o pé de
ansiedade porque meu pai pode chegar em casa a qualquer momento.
Estou criando o último pacote de e-mails quando ouço a voz dele no an-
dar de baixo:
— ... esse orçamento! Não se preocupe com isso, seu Domingues! Des-
de quando eu fiz uma promessa que não cumpri? Especialmente para o se-
nhor, que trabalhou com meu pai desde que eu era um moleque correndo
por aí!
A voz dele é agradável e consigo ouvi-la aumentando de tom à medida
que os passos sobem as escadas.
A bolinha de carregamento fica verde e consigo enviar o e-mail para
mim mesmo. Com a mão trêmula, a boca seca e o coração batendo rápido,
vou até a lista de e-mails enviados. Preciso deletar todos os meus rastros.
Respira, André.
Meu pai abre a porta do escritório enquanto ainda estou selecionando os
e-mails para mandá-los desaparecer pela lixeira.
— O que você está fazendo aqui?
Eu sabia que sair correndo era a pior opção possível. Então só levanto a
cabeça e sorrio, respondendo da forma mais casual possível.
— Estudando — explico, desfocando meu olhar do dele e voltando a
encarar a tela do computador. Por favor, não deixa ele vir até aqui ver o que
estou fazendo. Ainda não terminei o trabalho, mas duvido que consiga
avançar mais do que isso com meu pai bem ali, me encarando. Abro uma
nova aba do computador e entro na Wikipédia sobre a Segunda Guerra
Mundial. Só para garantir. — Deixei meu computador na casa da Larissa. Já
estou saindo.
— Não demora — responde ele, meio impaciente, mas menos ríspido
do que é com as pessoas com quem trabalha. — Preciso ver algumas coisas
antes de dormir.
— Só mais um pouquinho, só estou terminando uma coisa aqui... —
digo, vendo que os e-mails foram todos excluídos. Levo o mouse até o íco-
ne da conta paralela e volto a conectar a conta oficial dele. Limpo o históri-
co do navegador das últimas horas, depois fecho a aba em que o e-mail está
aberto e estico os braços para cima, fingindo me espreguiçar. — Acho que
chega por hoje.
Dou o sorriso mais aliviado da história de Lima Reis.
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gar 15 computadores e 20 cadeiras. O laboratório vai ficar
desfalcado.
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Santo Augusto de Lima Reis
Você não é político por acaso. Sabe fazer negócio como nin-
guém. Tudo bem, então. Vamos deixar essa porta aberta. Só não
esquece de mim mais para a frente.
Arregalo os olhos quando termino de ler a conversa, abismado com
aquele valor. Quatrocentos mil reais por quinze computadores. Esses núme-
ros não condizem nem um pouco com a realidade. Volto para o documento
anexado e vejo que, na página seguinte, há fotos com a marca e as especifi-
cações dos modelos comprados, e não preciso ser nenhum gênio para saber
que os valores declarados são muito mais altos do que os valores reais. Um
computador com aquelas especificações sendo vendido por quase oito mil
reais a unidade?!
Apenas para confirmar, entro em uma página de comparação de preços e
pesquiso pelo mesmo modelo de computador para tirar a diferença. O mais
caro que encontro custa R$ 2.300,00; o mais barato, R$ 1.950,00.
Os outros produtos também estão no mínimo três vezes mais caros do
que o normal.
Abro o aplicativo da minha calculadora e começo a somar os valores,
assustado com o que estou vendo bem ali na minha frente. Daquele valor, é
certo que uma parte vai direto para o bolso de quem está negociando aquele
e-mail.
Dinheiro em troca de apoio pela campanha do meu pai.
Dinheiro para ser usado na reta final da eleição.
Continuo me virando na cama, pensando que tenho em mãos algo que
pode comprometer toda a permanência do meu pai na prefeitura de Lima
Reis. Será que é a primeira vez que ele faz isso? Se não, por quanto tempo
ele se sustenta no poder com essas trocas financeiras?
Ter um pai político sempre me obrigou a ouvir piadas sobre ser filho de
ladrão e ter uma vida de luxo paga pelos impostos dos moradores da cidade.
Mas meu pai sempre me disse que as pessoas preferem acreditar que os po-
líticos roubam porque não estão dispostas a verem o quanto trabalham. Ele
sempre se gabou de uma vida de “ficha limpa”, como gosta de dizer, e de
vir de uma família tradicional de políticos que, diferente de tantas outras
espalhadas por aí, não tinha casos de corrupção pesando em suas costas.
Mas, no fim das contas, ele não é tão diferente assim dos outros. Só
sabe fazer suas negociações com discrição.
Até agora, pelo menos.
Quando me levanto da cama pela manhã, ainda com o celular em mãos,
vejo que meu pai já saiu de casa. Ele tem saído cada vez mais cedo nesta
reta final, para dar conta de todos os compromissos de campanha. Meu cor-
po e minha mente estão cansados, então me arrasto até a cozinha e misturo
um copo de leite com achocolatado, pensando no que posso fazer com o
que sei.
O movimento natural seria correr até Felipe e mostrar para ele. Mas, se
meu pai está chantageando o único jornalista da cidade, que garantia tenho
de que o Diário de Lima Reis irá publicar essa ou qualquer outra informa-
ção que o comprometa?
Além do mais: será que quero denunciar meu pai quando nem sei se en-
tendi todas essas informações direito? Será que não estou sendo precipitado
e interpretei tudo errado?
Não quero acreditar que meu pai possa ser esse tipo de pessoa. Isso tem
que ter uma explicação melhor do que corrupção.
Meu pai sempre me ensinou a ser uma pessoa boa. Por mais que a gente
tenha diferenças e ele represente todas as coisas que mais abomino na polí-
tica, sei que parte daquele discurso só existe para agradar aos eleitores. Ao
menos, é no que quero acreditar. Nossos mundos giram de um jeito diferen-
te, mas estão lado a lado. Se eu estou aqui hoje e se posso sonhar com um
futuro longe dessa cidade, devo parte disso a ele.
Ouço o barulho da chave girando na porta e fico alerta, pensando que
meu pai pode ter voltado porque esqueceu alguma coisa e vou ter que enca-
rá-lo depois de tudo o que li. Não sei se vou conseguir fingir que está tudo
bem.
— Bom dia, filho.
Levanto a cabeça e vejo quando minha mãe entra pela porta da sala. Ela
traz pães frescos e sorri quando me vê ainda meio acordado, dissolvendo os
pedaços de chocolate em pó no copo com leite.
Eu a encaro e ela percebe imediatamente que algo está errado.
Talvez seja intuição de mãe.
— O que foi? — pergunta ela.
Não sei se quero falar que invadi o computador do meu pai e li uma sé-
rie de documentos que me faz questionar tudo o que conheço sobre ele. En-
tão evito o assunto, os pensamentos girando em mil sentidos diferentes.
— Fui tentar falar com o Felipe ontem… — começo a dizer, sem cora-
gem de olhar para minha mãe.
— Conseguiu? — pergunta ela, colocando o pão sobre a mesa e sentan-
do na cadeira ao meu lado.
— Eu ouvi ele falando… com alguém — digo. Parece que estou pisan-
do em um campo minado, e o próximo passo em falso pode ser a explosão.
— Acho que estavam ameaçando ele.
— Ah…
Analiso a expressão da minha mãe. Ela desvia o olhar e parece
desconfortável.
— Alguma coisa sobre publicar uma matéria para prejudicar o Pedro
Torres — complemento.
— Filho… você não tem que se preocupar com isso — responde ela,
evasiva. — Você sabe como é em época de campanha. Todo mundo brigan-
do por causa da prefeitura.
— Mas dessa vez é diferente, não é? Não lembro do meu pai tão irritado
desse jeito. — Respiro fundo. — Eu acabei… vendo uma coisa.
Ela tenta espiar meu telefone. Bloqueio a tela para ela não ver o e-mail
ainda aberto na tela inicial.
— O quê? — pergunta ela.
— Eu estava desconfiado de toda essa história de o Felipe ter me demi-
tido porque corrigi uma matéria falando sobre o laboratório de informática
da escola. Não fazia o menor sentido. Então resolvi investigar. Eu… olhei
as coisas do meu pai ontem.
— Você fez o quê? — Ela parece chocada.
— Calma! — digo assim que percebo a alteração na voz dela. — Acho
que ele pagou mais do que devia pelos computadores.
Não quero dizer com todas as palavras.
— Você sabe alguma coisa sobre isso? — pergunto quando vejo que ela
mantém a expressão neutra, desviando o olhar de mim.
Ela fica calada. Encara os próprios pés, depois olha para o saco de papel
cheio de pães. Deixo o silêncio se instalar na mesa, aguardando que ela me
diga alguma coisa.
Não vou falar até que ela fale primeiro.
Minha mãe dá um suspiro profundo.
— É complicado, André… — É o que ela diz, desconfortável, ainda
sem olhar para mim. — Um cargo desses… Seu pai é obrigado a fazer coi-
sas que nem todo mundo consegue entender.
— Então ele pagou a mais pelos computadores da escola? — pergunto,
pressionando-a. — E está ameaçando o Felipe?
— Ele não está… ameaçando. — Percebo que minha mãe tem um dile-
ma. Ela quer me proteger, proteger meu pai e ficar com a consciência tran-
quila em relação aos atos dele, tudo ao mesmo tempo. Eu sei que ela sabe.
Está escrito na cara dela. — É só… você é muito novo para entender isso.
— Novo? — Minha paciência está no limite. Pode ser a privação de
sono, ou o choque, ou um pouco dos dois, mas não quero mais ser o especi-
alista em evitar conflitos. Então simplesmente explodo: — Não é você que
faz questão de dizer que eu tenho dezessete anos e já posso tomar minhas
próprias decisões? Sou muito novo para entender o quê? Que meu pai é um
corrupto que está pagando para ser reeleito? — Não consigo acreditar que
ela sabe de tudo. Não quero acreditar naquilo. — Entender que você é cúm-
plice dele?
Minha mãe dá um soco na mesa.
O gesto me pega de surpresa. Arregalo os olhos, sem entender de onde
vem toda aquela raiva.
— Você acha que eu gosto disso? Acha que eu concordo com esse tipo
de atitude do seu pai? Mas o que você quer que eu faça? Que eu denuncie
ele? Que ele vá preso? — Vejo os olhos dela começarem a encher de lágri-
mas. Minha mãe é uma das mulheres mais fortes que conheço, e, se já cho-
rou alguma vez depois que eu nasci, se certificou de fazer isso escondida.
Mas, dessa vez, ela deixa as lágrimas de frustração caírem dos seus olhos.
— Seu pai se meteu em um buraco do qual não consegue mais sair, André.
Por que você acha que vou me separar dele?
Então esse tempo todo... ela sabia?
Vê-la assim, tão fragilizada, deixa todos os meus pensamentos embara-
lhados. Tento avaliar muito bem as próximas palavras que vou dizer e tento
dizê-las com a maior calma do mundo.
— Ele está ameaçando pessoas, mãe. Está usando dinheiro da prefeitura
para a campanha dele. Eu não me importo que ele responda pelos crimes
que cometeu. Mas o que sei é que isso é errado. Você me ensinou que isso é
errado. Então por que você não está fazendo nada?
— O que eu posso fazer? Se seu pai for processado ou, Deus me livre,
preso, como a gente fica? Aquele trabalho que ele arranjou para mim na es-
cola mal paga as contas dessa casa! Eu nunca vi você reclamando de todo o
conforto que tem, e tudo isso vai embora a partir do momento em que as
pessoas descobrirem as coisas que seu pai fez!
Eu não consigo acreditar que, mesmo pedindo pela separação, ela ainda
tenha coragem de defendê-lo.
— A gente se vira! — respondo. — A gente dá um jeito sem ele!
— Como? — pergunta ela, secando as lágrimas debaixo dos olhos. — A
vida não é tão fácil quanto a gente faz parecer para você, meu filho. Seu pai
teve que fazer escolhas difíceis ao longo desses anos na prefeitura.
— E você concorda com isso?
— É claro que não!
— Então por que está defendendo ele?
— Não estou defendendo ninguém! Só estou dizendo que o mundo é
mais complexo do que você imagina!
— Ele não está roubando para fazer nada além de se manter no poder,
mãe. É muito menos complexo do que eu imagino.
— André, ele é o seu pai! Você não pode falar assim dele! Por mais que
ele tenha errado, ele te ama e isso não vai mudar.
— Ama? Ele só ama a prefeitura e você sabe disso! Se o que ele está
fazendo é tão justificável, vamos ver o que vai acontecer quando todo mun-
do descobrir.
Levanto da mesa, irritado com minha mãe, com meu pai e com toda a
hipocrisia que escorre pelas paredes desta casa.
— Você não vai prejudicar a campanha do seu pai, André. — A voz
dela é dura e autoritária.
Exatamente a mesma voz que usava quando eu era criança e fazia algu-
ma malcriação. A voz que ela não usa há alguns anos, porque sempre me
esforcei para ser o filho que ela esperava ter. O filho que nunca se envolve
em confusões, que nunca tem motivos para ser malvisto pelas suas amigas
da igreja, o filho que é o orgulho da cidade de Lima Reis.
Mas não sou mais uma criança, então não congelo ou começo a chorar.
Só dou as costas para ela e abro a porta da sala.
— Ele já fez o suficiente para se prejudicar — respondo, saindo de casa.
19
O Diário de Lima Reis apurou uma série de fotografias obtidas pela re-
dação através de uma fonte anônima. Nelas, o candidato à prefeitura da
nossa cidade, Pedro Guilherme Almeida Torres, é flagrado aos beijos
com Eduardo Dantas Silva. Eduardo é um conhecido produtor musical
de renome nacional, trabalhando com artistas de peso como Fábio Gade-
lha, Luísa Costa e Lana Love, e é cunhado do candidato à reeleição,
Ulisses Ferreira Aguiar. O produtor se encontra na cidade há um mês,
convalescendo de uma cirurgia cardíaca.
Segundo apuração, Pedro Torres, casado com a educadora física
Paula Garcia Torres, é visto com frequência na casa onde Eduardo está
hospedado. Os dois se conheceram ainda na juventude, ambos morado-
res da cidade de Lima Reis, e perderam contato após a ida de Eduardo
para a capital do estado. Pedro Torres segue em disputa pelo cargo de
prefeito da cidade, em empate técnico com o atual prefeito, Ulisses
Aguiar.
Questionada sobre o ocorrido, a assessoria de Pedro Torres afirmou
que qualquer informação que não diga respeito à prefeitura ou a sua
competência como gestor não seriam discutidas.
Não me despeço, só saio da casa de Larissa, cada vez mais arrependido por
não ter trocado de roupa e agora estar sentindo frio naquele pijama. O mo-
vimento da cidade começa a se intensificar, e vejo as pessoas lendo a maté-
ria no Diário de Lima Reis , arregalando os olhos para as imagens que estão
na capa, enquanto outras estão com os rostos enfiados em seus celulares,
replicando a notícia nos grupos de mensagem com sabe-se lá quantas cama-
das de mentiras.
Mas não consigo acreditar que tio Eduardo possa ter feito aquilo. Ele
havia me alertado sobre homens nas sombras dispostos a saírem com você,
contanto que sejam um segredo. Ele me disse que não valia a pena dar
chance para esses homens. Então por que tinha beijado Pedro Torres? Por
que, em vez de seguir seus próprios conselhos, havia feito exatamente aqui-
lo que me falou tantas vezes que não valia a pena fazer?
Por que meu tio estava se colocando nesse papel de amante gay de um
homem casado?
Eu preciso ouvir dele que isso tudo é um mal-entendido. Eu acreditaria
em qualquer coisa que meu tio dissesse: montagem, brincadeira de mau
gosto ou fake news do meu pai para desestabilizar a campanha de Pedro
Torres. Eu acreditaria em absolutamente qualquer coisa, se ele me dissesse
que aquelas fotos não eram reais.
Ele se tornou o meu exemplo. E não quero acreditar que ele me
decepcionaria.
20
O caminho para a casa dos meus avós sempre é um pouco deserto, mas des-
sa vez é diferente: vejo alguns carros, motos e bicicletas paradas ao longo
da estrada de terra que me leva até lá.
Quando chego ao terreno, vejo alguns curiosos procurando por respos-
tas. Não são muitos nem parecem agressivos, mas murmuram entre si senta-
dos no meio-fio, de guarda-chuvas abertos para se protegerem da chuva fina
que insiste em cair, observando a movimentação na esperança de que algu-
ma cortina se movimente ou alguém chegue ali e nutra a cidade faminta por
fofocas. Alguns apontam seus celulares e tiram fotos, prontos para espalha-
rem as imagens entre os grupos de mensagens. Me pergunto se alguns deles
não estão ali a mando do meu pai.
— Ele seduziu o Pedro Torres — murmura alguém.
— Esse homem é uma vergonha para essa cidade! — outra pessoa fala,
dessa vez um pouco mais alto.
— Você nunca devia ter voltado para cá! Ninguém te quer em Lima
Reis! — uma terceira, mais exaltada, grita na direção da casa.
Os insultos me atingem como facas. Todas as pessoas pareciam admira-
das com meu tio quando ele apareceu em seu carro caro e sua história de
sucesso trabalhando com músicos famosos na capital. Mas agora, com essa
nova informação, parece que todos estão prontos para fazer o que mais sa-
bem: hostilizar quem é diferente, fazê-lo se sentir tão mal que a única alter-
nativa é sumir daqui e nunca mais voltar.
Mesmo que eu esteja completamente irritado com ele, ainda sinto que
todos aqueles comentários poderiam ser para mim. É inevitável pensar em
como toda essa cidade está cheia de intolerantes.
Eu me aproximo da casa e percebo que entrar pela porta da frente talvez
não seja uma boa ideia. Dou a volta com a bicicleta e bato na dos fundos.
— Tio Eduardo! — murmuro com a cara enfiada na porta, rezando para
nenhum curioso ter me seguido até ali. — Sou eu! André!
Bato na porta mais uma vez, depois outra, esperando pela resposta.
Depois de algum tempo, ouço a movimentação do outro lado e vejo
quando ele abre a porta para mim. Primeiro uma fresta, para se certificar de
que sou realmente eu e de que estou sozinho, depois a porta inteira.
— Então você já ficou sabendo, né? — pergunta ele assim que me vê
entrar. Noto que parece destruído pela divulgação daquela notícia: seus
olhos estão avermelhados, como se tivesse acabado de acordar ou de chorar,
e seu tom de voz não está mais tão bem-humorado, mas sim grave, desani-
mado. — Entra logo, antes que alguém te veja.
Olho para o jornal em cima da mesa.
Vê-lo daquele jeito faz a fúria dentro de mim se misturar com um tanto
de tristeza.
— Fui comprar pão e peguei um jornal, e só depois disso entendi por
que todo mundo estava olhando torto para mim — explica ele, mesmo que
eu ainda não tenha aberto a boca. Com o passar do mês, minha mãe concor-
dou com saídas esporádicas de tio Eduardo, sempre de carro ou usando uma
bengala e andando bem devagar, para convencer a cidade de que estava, aos
poucos, melhorando de sua cirurgia inventada.
— É verdade? — pergunto para ele, tentando levar o conselho de Diego
à risca e ouvi-lo antes de dizer o que penso.
Quero que diga que é mentira.
Mas ele só fecha os olhos e balança a cabeça, confirmando.
Não consigo acreditar.
Tio Eduardo tenta se aproximar e colocar uma das mãos em meu ombro,
mas me desvencilho, irritado.
— Por quê? — quero saber.
Sei que a vida é dele; sei que faz o que bem entender e eu não tenho
nada a ver com suas decisões, mas algo quebra dentro de mim. Conhecer tio
Eduardo foi o acontecimento mais incrível desse ano, e perceber que ele era
uma pessoa tão autêntica e, ao mesmo tempo, tão boa, me dava esperanças
de um futuro melhor. Um futuro em que as pessoas não ficariam me questi-
onando sobre minha ética a partir do momento em que percebessem que eu
era gay. Mas saber que minha maior inspiração tinha beijado um homem
casado me faz questionar se é inevitável que cresçamos e nos tornemos pes-
soas horríveis, que não levam em conta os sentimentos dos outros e só se
preocupam com o agora.
— É complicado, André — murmura tio Eduardo em resposta.
— Complicado? — pergunto, sentindo a raiva borbulhar dentro de mim
ao perceber que isso é tudo o que ele tem para me dizer. É o que todo mun-
do me diz ultimamente. — O que é mais complicado: as pessoas descobri-
rem que você está beijando um candidato à prefeitura de uma cidade homo-
fóbica como essa ou descobrirem que você está beijando um cara casado,
escondido nas sombras que você me ensinou a evitar a todo custo?
Estou tão cansado. Só quero me sentar no chão, abrir um buraco nele e
desaparecer. Não quero mais ter que lidar com essa cidade, ou com a ansie-
dade de esconder quem eu sou, ou com minha decepção ao perceber que as
pessoas que eu admiro também fazem coisas horríveis.
— André, por favor, me escuta — pede tio Eduardo, olhando para mim.
— O Pedro e eu… a gente tem uma história.
— Eu sei! Vocês eram amigos de adolescência, mas isso não justifica
nada! Ele é casado! Ele é a única chance que essa cidade tem de se ver livre
do meu pai na prefeitura, e você sabe que uma notícia como essa pode aca-
bar com a candidatura dele!
— Não, André, me escuta! — grita tio Eduardo, me fazendo engolir as
palavras e encará-lo, assustado. Tio Eduardo desvia o olhar do meu, me dá
as costas e começa a andar pela sala, agitado. — Eu e o Pedro éramos ami-
gos. E fomos mais do que isso. O nome completo dele é Pedro Guilherme
Torres. Lembra, André? Guilherme?
O nome ressoa dentro de mim e a conclusão me faz arregalar os olhos.
Pedro Guilherme Torres.
Guilherme.
O mesmo Guilherme para quem tio Eduardo gastava páginas e páginas
do seu diário, rabiscado dezenas de vezes ao lado de corações. O mesmo
Guilherme que havia arrastado ele para o banheiro dos fundos durante uma
festa e dado o primeiro beijo assustado da vida dos dois.
— Era assim que eu o chamava no meu diário — tio Eduardo continua
falando —, para despistar caso alguém o encontrasse e lesse. Era dele que
eu estava falando quando te contei sobre meu primeiro beijo.
As informações colidem na minha cabeça.
Pedro Torres era o amor da adolescência do tio Eduardo.
— Aquele dia que eu o chamei para me visitar, eu… precisava daquilo.
Eu precisava conversar com ele e saber como tudo estava depois de tantos
anos. Eu sei que não devia ter convidado ele, mas foi mais forte do que eu.
E a gente se reconectou, André. Não parecia que haviam se passado quase
vinte anos. A gente simplesmente… Era como se a gente nunca tivesse se
separado.
— Mas… — A descoberta de que Pedro Torres é a mesma pessoa que
faz os olhos do meu tio brilharem não anula o fato de que o tempo passou e
eles não são mais adolescentes. — O Pedro Torres é casado! Como você
pode fazer isso com a esposa dele?
Tio Eduardo esboça um sorriso.
— Por que você está rindo? — pergunto, revoltado.
— Desculpa, André… Eu também achei que ele fosse casado, mas ele e
a Paula são só amigos. Era disso que a gente estava conversando quando os
dois estavam aqui. Foi o preço que o Pedro teve que pagar para permanecer
em Lima Reis. Ele sabe que nunca teria conseguido crescer na vida política
se fosse um solteirão de quase quarenta anos, ou, Deus livre as pessoas des-
sa cidade, gay! Então ele e a Paula combinaram de se casar, porque era um
bom arranjo para os dois. A Paula nunca quis saber de relacionamentos,
mas esse inferno de cidade regula até quem quer ficar sozinho.
— Então os dois nunca…?
— Consumaram o casamento? — completa ele, vendo meu rosto ficar
vermelho. — Tenho quase certeza de que não. Eles só moram juntos para a
cidade não ficar fazendo fofocas dos dois.
Fico chocado. Nunca passou pela minha cabeça que as pessoas de Lima
Reis tivessem todo esse poder. Eu sei que viver nessa cidade é difícil, mas
perceber que Pedro e Paula moldaram completamente quem são apenas
para serem aceitos em um lugar que não tolera algo diferente do esperado
faz meu estômago revirar.
— Por isso eu fui embora daqui — diz tio Eduardo. — Eu não ia supor-
tar viver essa vida de fachada para sempre. Mais cedo ou mais tarde, a cor-
tina cai e as pessoas veem quem nós somos de verdade. E eu gostaria muito
que essa cidade apenas aceitasse quem nós somos, porque não tem nada de
mais nisso, mas você sabe tão bem quanto eu que as coisas não são assim
por aqui.
— Por que ele… ficou? — pergunto. — Por que não fez como você e
foi embora daqui?
Tio Eduardo encolhe os ombros.
— Quando decidi ir embora, eu pedi que ele fosse para São Paulo comi-
go. E quando ele se negou, fiquei magoado. Eu achava que ele não queria
ficar comigo. Passei muito tempo pensando que ele seria a única pessoa por
quem eu me apaixonaria, mas que ele tinha vergonha de ser gay. Que não
gostava tanto de mim quanto eu gostava dele. Mas, agora, percebo que era
algo muito mais profundo. Ele não queria deixar essa cidade.
“Existem pessoas que querem desbravar o mundo, como eu e você, e
outras que preferem mudar o mundo que já conhecem. O Pedro é assim.
Acho que nunca vou conseguir entendê-lo, mas ele ama essa cidade mais do
que qualquer outra coisa. Ele cresceu aqui e enxerga o potencial que as pes-
soas daqui têm. Esse era o ponto onde mais discordávamos. Ele queria ser
um grande revolucionário local, mudar a cabeça das pessoas, e achava que
elas só precisavam ser educadas de um jeito melhor para entenderem que o
mundo é muito mais complexo do que pensam. E ele está conseguindo! Eu
não me lembro de já ter visto alguma eleição nesta cidade ser disputada,
mas o Pedro está mudando as coisas.”
— Estava, até essa notícia sair — respondo, amargo. — Você sabe que
o Felipe só está fazendo essas coisas porque meu pai está ameaçando ele,
não é?
Tio Eduardo engole em seco.
— Eu imaginei — responde. — Me desculpa te dizer isso, André, mas
seu pai não é uma boa pessoa.
— Eu sei — concordo, controlando meu impulso natural de defendê-lo
apenas por ser meu pai. Tio Eduardo está certo. Se meu pai usa a sexualida-
de do seu oponente como forma de manchar a imagem dele enquanto faz
esquemas de desvio de verbas nas sombras, eu honestamente não tenho ne-
nhum motivo para defendê-lo.
Ouvimos alguém bater na porta dos fundos.
— Eduardo, abre a porta! — Ouço a voz da minha mãe. — O Pedro está
aqui!
Arregalamos os olhos. Como Pedro Torres conseguiu chegar ali sem ser
visto por ninguém?
Tio Eduardo corre para abrir a porta dos fundos enquanto olho para as
janelas apenas para me certificar de que todas as venezianas estão fechadas.
Espicho o pescoço para a cozinha e vejo quando ele entra. Pedro está acom-
panhado de sua esposa, Paula. Os dois ainda estão usando suas roupas de
corrida matinal, e vejo quando Pedro abraça tio Eduardo com força.
— André, o que você está fazendo aqui? — pergunta minha mãe. — E
por que está usando um casaco por cima do pijama?
— Eu precisava conversar com o tio Eduardo — respondo, ainda irrita-
do com ela. — Precisava saber se essa história toda era verdade.
Minha mãe suspira, percebendo como estou decepcionado.
— É verdade — diz Pedro Torres, olhando para mim. — Eu só não que-
ria que a cidade descobrisse assim, dessa forma e nesse momento. Isso é
ruim para a eleição.
— Oi, André — diz Paula, abrindo um sorriso. — Que confusão, hein?
Pedro e Paula não parecem estressados. Pedro olha para tio Eduardo,
mas não o encara como se ele fosse o culpado de todas as fofocas da cidade.
Ele tem um perfil completamente diferente do meu pai. Acho que nunca o
vi irritado ou impaciente. Parece estar sempre no controle da situação.
— Desculpa pela confusão, Pedro — digo, mesmo sem saber por que
estou pedindo desculpas. — Se eu ainda estivesse no jornal, ia me certificar
de que essa matéria não saísse, mas o Felipe me mandou embora.
— Não é culpa sua — responde ele, sentando em uma das cadeiras en-
costadas na mesa da cozinha. Tio Eduardo pega uma xícara, abre a garrafa
térmica e despeja um pouco de café dentro. — Obrigado — agradece Pedro,
olhando para tio Eduardo e abrindo um sorriso.
Há alguma coisa quase palpável entre os dois. Tio Eduardo e Pedro se
olham e se movem como se nunca tivessem se separado antes.
Talvez o amor dure para sempre em alguns casos, no fim das contas.
— André, você precisa ir para casa — responde minha mãe. — Não
quero que fale para o seu pai que estou aqui nem que o Pedro veio ver o
Eduardo. A gente precisa resolver como contornar essa situação.
— Você ainda acha que eu não devo contar o que sei sobre meu pai? —
pergunto com um tom de voz ressentido. — Foi ele que fez o Felipe publi-
car essa história. Ainda está tudo bem para você, saber o que sabe e não fa-
zer nada para mostrar às pessoas quem meu pai realmente é?
Tio Eduardo olha de mim para minha mãe.
— Do que ele está falando, Selma?
Minha mãe parece nervosa, como se estivesse decidindo, naquele mo-
mento, a quem devia sua lealdade.
Então ela só estufa o peito, inspira profundamente e fala as palavras que
estou esperando que diga há pelo menos cinco anos.
— Ah, quer saber de uma coisa? Foda-se! — explode ela. — Eu não sa-
bia que o Ulisses ia fazer isso, Eduardo, juro que não sabia. Eu estava ten-
tando arranjar qualquer desculpa para acreditar que ele é uma boa pessoa,
apesar de tudo o que já fez na vida, mas ele não é. Isso ultrapassou todos os
limites, e sei que ele vai continuar fazendo o que for necessário para ganhar
a eleição. Ele não está nem aí para quem machuca no caminho.
É impossível esconder meu sorriso à medida que ouço aquelas palavras
saindo da boca da minha mãe. Fico aliviado ao perceber que ela não está
mais tentando defender meu pai e, além disso, consigo sentir o alívio por
trás de cada palavra saída da boca dela, o peso indo embora das suas costas
e deixando-a cada vez mais empolgada.
Ela se vira para Pedro Torres e continua falando:
— O André acabou descobrindo que o Ulisses está envolvido em algum
esquema de troca de favores. É assim que ele tem conseguido dinheiro para
a campanha dele e como fez aquela inauguração ridícula na escola. Por isso
eu quis me separar dele, mas achava que devia alguma lealdade e decidi es-
perar a eleição passar. Mas isso está fora de controle. Ele não merece estar
na prefeitura dessa cidade.
— Por que você não falou nada antes, Selma? — pergunta Paula. Ape-
sar de manter a serenidade, ela parece menos paciente do que Pedro. Encara
a amiga de infância com olhos arregalados.
— Como eu conseguiria provar para as pessoas? Era a minha palavra
contra a dele!
— A gente consegue provar agora — digo.
— Como? — pergunta tio Eduardo.
— Eu consegui alguns e-mails. — Puxo meu celular do bolso e abro a
troca de e-mails, estendendo o aparelho para tio Eduardo e Pedro Torres. —
Não é muita coisa, mas eles provam que meu pai estava se comunicando
com alguém e pagando a mais pelos equipamentos de informática da escola.
Pedro analisa os e-mails, sempre paciente.
— Isso pode nos ajudar — diz ele —, mas essas mensagens não estão
assinadas. Seu pai pode muito bem dizer que a gente está inventando tudo
isso.
— É claro que ele vai dizer — complementa tio Eduardo.
— Mas a gente nunca vai saber se não tentar — respondo. Um plano
começa a se formar na minha cabeça. — A gente pode encontrar um jeito
de divulgar esses e-mails e também pode falar sobre você e a Paula serem
só amigos, se estiver tudo bem para os dois. Eu sei que essa cidade é homo-
fóbica, mas se as pessoas souberem que nunca houve uma traição, talvez
pudessem mudar de posicionamento. O que acham?
Pedro encolhe os ombros.
— Não dá para ficar pior do que já está — diz ele.
— E lá se vai meu casamento arranjado — responde Paula, com uma
nota de bom humor na voz. — Faça o que for necessário, André. As pessoas
vão falar de qualquer jeito. Pelo menos não vou ser a esposa traída, para va-
riar um pouco o tema das fofocas desta cidade.
— Mas o que você pretende fazer, André? — pergunta minha mãe.
— Colocar em prática o que aprendi com Felipe e ser um bom jornalista
para Lima Reis.
21
Depois de explicar o meu plano para minha mãe, tio Eduardo, Pedro e
Paula Torres, pedalo de volta para casa como se minha vida dependesse dis-
so, agradecendo o sol que começa a aparecer no céu e as nuvens de chuva
que se dissipam. Nunca vi tantas pessoas na rua lendo o Diário de Lima
Reis e discutindo sobre a matéria de capa, mas estou certo de que nenhuma
delas está falando sobre como Pedro Torres é um bom sujeito ou um ho-
mem decente. Todas parecem enojadas com a revelação, tanto pelo fato de
ele ser um homem casado traindo sua esposa — o que, convenhamos, não
seria tão grave para essas pessoas se ele a traísse com outra mulher —
quanto pelo fato de estar beijando outro homem. Isso parece chocá-las mais
e fazê-las deixar de lado tudo o que Pedro Torres falou em favor da cidade,
sobre os empregos e o bem-estar de todos os moradores daqui.
É inevitável não ficar decepcionado com Lima Reis.
Assim que chego em casa, tomo um banho rápido e finalmente me visto
de forma decente. Dali, pedalo até o Diário de Lima Reis e vejo que Felipe
está com a cara enfiada na frente do seu computador.
— Bom dia, Felipe. Posso entrar? — digo, batendo na porta timidamen-
te e fazendo-o virar a cabeça na minha direção, assustado. — Eu não vim
aqui brigar — me adianto, levantando as mãos em um gesto de paz.
Felipe olha para mim e vejo as olheiras gigantes pintando seu rosto. Ele
parece tão pequeno, encurvado naquela cadeira, os cabelos bagunçados, o
cinzeiro cheio de bitucas amassadas ao lado do mouse e a expressão de
quem não sabe o que é uma boa noite de sono há algum tempo.
— Eu já sei o que meu pai fez — continuo, puxando uma cadeira e me
sentando ao lado dele.
Felipe coloca as mãos na frente do rosto e abaixa a cabeça. Depois res-
pira fundo, passa os dedos pelos olhos e tenta recuperar a compostura, mas
só parece destruído pelas circunstâncias.
— Ainda não tive coragem de sair pela cidade — diz ele. — As pessoas
estão comentando muito?
— É claro que estão — respondo. — Acho que meu pai conseguiu o
que queria.
— Eu juro que… ah, André, eu não queria que as coisas tivessem che-
gado a esse ponto. Quando descobri que seu tio e o Pedro Torres tinham se
reencontrado, jurei que iria guardar a informação só para mim. Eu sabia que
eles tinham se envolvido durante a adolescência, porque toda a cidade co-
mentava sobre isso quando a gente era mais novo. Mas, naquela época,
quando seu tio percebeu que o Pedro não iria embora de Lima Reis, ele fez
questão de dizer para quem quisesse ouvir que havia tentado seduzi-lo, mas
nunca tinha sido correspondido, tudo para que Pedro não fosse tão hostiliza-
do quanto ele já era. Seu tio foi embora com essa marca de gay desesperado
que tenta beijar qualquer homem que vê pela frente. E todos foram horríveis
com ele. Por isso ele nunca quis voltar.
Felipe engole em seco, sem levantar os olhos em minha direção.
— Então, quando ele finalmente voltou — continua —, eu fiquei saben-
do que ele estava hospedado na casa que era dos seus avós, fui até lá tentar
uma entrevista e o vi junto com o Pedro. Eu devia ter ficado quieto, por que
o que eu tenho a ver com isso? Mas continuei indo até a casa e bisbilhotan-
do pela janela. Não me orgulho disso, mas ouvi a conversa dos dois e perce-
bi que eles já estavam se encontrando com frequência, e também percebi
que seu tio não estava doente. E quando seu pai começou a me ameaçar a
fazer matérias em favor da campanha dele, eu sabia que tinha um trunfo que
faria ele me deixar em paz.
“Eu fui um covarde, André, mas fiquei assustado. Seu pai nunca fez ne-
nhum tipo de ameaça contra mim ou contra meu jornal antes. Ele sempre
me atacou de outras maneiras, tentando me desacreditar, inventando históri-
as sobre minha índole ou sobre minha ética. Mas já estou acostumado com
isso. É assim que o jornalismo funciona. Só que, dessa vez, ele perdeu o
controle. Disse que iria me destruir se eu não fizesse o que ele queria. Seu
pai está fora de si com a perspectiva de perder essa prefeitura para o Pedro
Torres. Ele está usando tudo o que tem”.
— Você fez o que era necessário para ficar vivo, Felipe — digo, não
porque acho que ele tenha tomado a decisão certa, mas porque entendo que
era a saída que o deixava mais seguro. Era a mesma saída que eu escolhia
seguir todos os dias. — Eu sabia que meu pai estava disposto a muita coisa
para se manter no poder, mas nunca imaginei que fosse capaz de ir tão
longe.
— Eu não posso continuar acuado — diz Felipe, balançando a cabeça, e
vejo lágrimas de frustração começando a se acumular em seus olhos. — Eu
não quero continuar acuado. Seu pai não vai parar enquanto alguém não fi-
zer alguma coisa. A gente não pode continuar sacrificando nossas verdades
por causa dele.
Ninguém melhor do que eu para saber dos sacrifícios que temos que fa-
zer para ficarmos seguros.
Todos aqui parecem se sacrificar: meu tio foi embora, Pedro se casou
com Paula para passar a impressão de uma família tradicional, Felipe está
agindo contra seus princípios porque está sendo ameaçado, Diego chegou
aqui sem conhecer ninguém e, assim como eu, precisa esconder quem é
para não decepcionar sua mãe, e eu estou dentro do armário para não man-
char a imagem de família perfeita que meu pai quer tanto passar para todos
os seus eleitores.
— A gente não pode continuar acuado — concordo com ele. — A gente
precisa mostrar para todo mundo o que meu pai está fazendo — concluo.
Então conto tudo para ele: começo explicando o casamento de fachada
entre Pedro e Paula, mostro todos os e-mails que provam a corrupção do
meu pai, explico o motivo da vinda do meu tio Eduardo para a cidade e
como minha mãe não queria atrapalhar a campanha do meu pai e, por fim,
digo que precisamos publicar aquelas mensagens, porque a eleição é nesse
fim de semana e não temos mais tempo para pensar se devemos ou não co-
locar todas as cartas na mesa.
— Meu Deus, André, isso é… grave — diz Felipe, olhando para o meu
celular e analisando a troca de mensagens.
— E isso foi só o que consegui descobrir de ontem para hoje. Ainda tem
muita coisa aí. Tenho certeza de que a gente consegue encontrar muito mais
podres nesses e-mails. — Felipe ainda está muito concentrado no meu celu-
lar quando complemento: — Eu sei que é te pedir muito, mas a gente preci-
sa fazer a coisa certa agora.
Felipe levanta o olhar do celular e me encara. Percebo o conflito interno
nos olhos dele, entre querer fazer o que é certo e se preocupar com as con-
sequências que aquilo pode trazer para sua vida.
— Você acha que, se isso for revelado, as pessoas vão esquecer esse es-
cândalo com o Pedro Torres e ficar mais indignadas com a corrupção do seu
pai do que com alguém que foge das regras de moral e bons costumes dessa
cidade?
Fico feliz ao perceber que ele está pedindo minha opinião como sempre
fez antes. Que ainda me considera uma pessoa com pensamentos válidos, e
não um adolescente bobo e cheio de vontade de mudar o mundo.
Encolho os ombros, porque não tenho uma resposta para a pergunta.
— Não sei, mas sei que a gente precisa tentar. — Então me lembro das
palavras que disse para Diego e as repito para Felipe: — Um pouquinho de
cada vez.
Felipe sorri, levantando o olhar do meu celular, e me encara.
— Eu tenho muito orgulho de você, André.
Não consigo evitar um sorriso como resposta. As palavras que sempre
quis ouvir, mas nunca consegui arrancar do meu pai. As palavras que todas
as pessoas como eu precisam ouvir, pelo menos uma vez na vida, para sentir
que estão indo na direção certa.
— Você acha que vai ser perigoso? — pergunto. — Eu sei que meu pai
está te ameaçando.
Felipe encolhe os ombros, mas há uma nova determinação em seu olhar.
— André, talvez você ainda descubra isso mais para a frente, mas ser
jornalista não tem a ver só com fazer matérias sobre o campeonato de fute-
bol de várzea ou com a volta de uma figura importante para uma cidade pe-
quena. Os riscos fazem parte dessa profissão. Eu me esqueci disso e optei
pela solução mais segura, mas não posso mais fazer isso. Por mais arriscado
que seja, a gente precisa ter forças para fazer o que é certo.
Dou um sorriso, orgulhoso.
— Então, o que você me diz? — pergunto. — Vamos ver se a cidade
fica indignada com alguma coisa que realmente valha a pena?
Larissa: ????
Patrícia: Por que você não veio para aula, André? Está tudo bem?
André: Sim, está tudo certo. Vocês podem vir aqui depois
da aula? Pode deixar que eu explico tudo.
Patrícia: Não quero ser babaca, mas você não vai fazer nada que
coloque meu pai em risco, não é, André?
Patrícia: Fechado.
Passo o restante da manhã no jornal ao lado de Felipe, sentindo uma
onda elétrica percorrer meu corpo enquanto destrinchamos os e-mails e
pensamos na melhor forma de divulgá-los para a cidade. Enquanto Felipe
bebe canecas e mais canecas de café, também mando mensagens para mi-
nha mãe e tio Eduardo, confirmando que consegui conversar com Felipe e o
plano para expor as mentiras do meu pai continua de pé.
No começo da tarde, Diego, Larissa e Patrícia aparecem depois da aula
com as famosas marmitas da minha avó, que são o almoço perfeito para to-
dos nós. Nos sentamos na mesa que fica no meio do jornal, mastigando ba-
tatas fritas e bebendo refrigerante enquanto conversamos. Resumo para eles
tudo o que aconteceu, porque Diego sabe de algumas coisas e Larissa e Pa-
trícia, de outras: sobre como meu pai obrigou Felipe a fazer as matérias em
favor da prefeitura, sobre os e-mails que encontrei, sobre o relacionamento
de fachada entre Pedro e Paula Torres e sobre o amor de juventude entre Pe-
dro e meu tio. Quando termino de falar e explico sobre a edição extra que
estamos elaborando, todos parecem empolgados com o que pode acontecer
amanhã, depois que essas notícias se tornarem públicas.
— Se o Pedro Torres não vencer a eleição depois dessas notícias, eu vou
pessoalmente assassinar cada um dos moradores dessa cidade — diz Patrí-
cia, sempre muito simpática.
— Como você está se sentindo, André? — pergunta Larissa, ignorando
o comentário de Patrícia. Larissa é minha melhor amiga e sabe todos os
sentimentos conflitantes que sinto em relação ao meu pai. Como tudo é
muito complicado dentro da minha cabeça e como sempre tenho essa pré-
disposição a acreditar que ele está fazendo a coisa certa, só que do jeito
errado.
— Eu nunca tive tanta certeza na minha vida — respondo, e minha con-
vicção jamais foi tão forte. — E estou muito feliz por todos vocês estarem
do meu lado.
Ela sorri em resposta.
— É o mínimo que posso fazer depois de tudo — diz Larissa.
Patrícia sorri, também feliz com a minha resposta, mas vejo que seus
olhos estão carregados de preocupação. Ela olha para Felipe e pergunta:
— Você tem certeza de que quer fazer isso, pai? Eu sei que a gente tem
que fazer o que é certo, mas essas ameaças que você está sofrendo são reais.
Felipe passa um dos braços por cima dos ombros da filha e a aperta,
dando-lhe um beijo suave nos cabelos.
— Eu já provoquei muitos danos por causa do medo, filha. Essa profis-
são tem vários riscos, e eu sabia disso quando comecei a falar dos proble-
mas daqui. Eles só estão parecendo mais reais agora. Não se preocupa com
isso. Vamos resolver um problema de cada vez.
Ela não parece tão convencida assim, mas só aquiesce em resposta.
— Eu quero fazer o possível para impedir meu pai, Patrícia — respon-
do, reafirmando minha decisão para ela e para mim mesmo. — Esse é o úni-
co jeito. A gente precisa mostrar quem ele é para todas as pessoas daqui. Se
a gente ficar calado, ele vai ganhar e continuar agindo como se fosse o dono
de Lima Reis. Mas ele não é.
Depois do almoço, Felipe continua concentrado em seu texto, aparando
arestas, lendo os parágrafos em voz alta e decidindo se está ou não sendo
claro o suficiente. Enquanto Larissa e Patrícia conversam em um canto, eu e
Diego ficamos do outro lado da sala.
— Nunca imaginei que você pudesse ser tão corajoso — diz Diego, os
olhos brilhando ao me observar.
— Nem eu — respondo, estendendo as mãos e entrelaçando meus dedos
nos dele.
— Eu estou muito orgulhoso de você. — Ele abre um sorriso que parece
fazer meu coração parar. Para quem queria ouvir aquilo uma vez, ouvir duas
no mesmo dia é quase como ganhar na loteria.
Sinto o mundo suspenso por um segundo. Naquele momento, não ouço
mais o barulho do teclado de Felipe nem os murmúrios de conversa entre
Larissa e Patrícia, não vejo nem sinto nada além dos dedos de Diego contra
os meus, os lábios dele com a boca entreaberta e os dentes um pouco tortos
que são os mais lindos do mundo, que se abrem em um sorriso sem graça
quando ele percebe que estou olhando para ele em silêncio.
— O que foi? — pergunta ele.
— Eu só estou... feliz — respondo. — Tipo, está tudo de cabeça para
baixo, mas você estava certo quando disse que essa cidade não é tão ruim
assim, se vocês estão aqui comigo. Se você está aqui comigo.
O sorriso dele, se é que isso é possível, fica ainda maior.
— Espero que, quando as pessoas souberem a verdade, elas possam nos
surpreender — diz ele.
Regra nº 9: As pessoas podem te surpreender , penso.
Aperto as mãos de Diego com mais força e me pergunto se isso que sin-
to é parecido com o que tio Eduardo sentia — e ainda sente, talvez — por
Pedro Torres.
— Espero que essa cidade me mostre que ainda vale a pena lutar pelo
que a gente acredita — digo.
— Não sei quanto à cidade, mas eu sei que vale a pena — responde ele.
— E te ver fazendo isso me inspira a também lutar pelo que acredito.
— Um pouquinho de cada vez — digo.
— Um pouquinho de cada vez — repete ele.
— E… pronto! — Felipe grita do outro lado da sala, animado. — Ponto
final!
A impressora dá um estalo e vemos quando puxa os papéis e começa a
imprimir o texto.
— Quero que vocês leiam e me digam o que acham — diz Felipe, nos
entregando as cópias depois de virar o resto daquela que provavelmente é
sua quinta xícara de café.
Ele distribui as cópias para todos nós e ficamos em silêncio, concentra-
dos no texto. Leio rápido da primeira vez e com mais calma na segunda,
murmurando e mexendo os lábios enquanto sussurro as palavras para me
certificar de que estão claras o bastante para serem entendidas de primeira.
— Está ótimo, Felipe — digo, colocando a folha sobre a mesa. — Con-
ciso, claro, direto ao ponto. Sem perder tempo com explicações desnecessá-
rias e do tamanho certo para as pessoas conseguirem repassar a matéria pe-
los grupos de mensagens.
— Acho que não tem mais nada que eu consiga te ensinar, André. —
Ele sorri ao me ouvir falar como um editor. — E isso porque você ainda
nem começou a faculdade. Tenho certeza de que vai ser um jornalista ainda
melhor do que é hoje.
Fico sem graça com o elogio. Larissa, Patrícia e Diego também concor-
dam que o texto está pronto para ser impresso, mas Felipe pega o papel e lê
os parágrafos pelo menos mais duas vezes, puxa uma caneta e rabisca algu-
mas alterações, depois volta para o computador e ajusta alguns pequenos
detalhes. Ele sempre foi seu maior crítico.
— Já temos a matéria de capa! — diz Felipe, concluindo que não tem
como modificar mais aquele texto. — Agora preciso terminar de fazer a edi-
ção de amanhã. André, você pode me ajudar?
Fico surpreso com o pedido.
— Tem certeza? — pergunto, olhando dele para Diego, e depois para
Larissa e Patrícia. Larissa levanta os polegares em um gesto de incentivo.
— É claro! Tenho que admitir que as coisas estão difíceis desde que
você saiu. Não aguento mais reciclar textos dos anos passados e fazer maté-
rias falando bem do seu pai. Acho que a edição de amanhã vai ser diferente.
Sem elogios no caderno da cidade. Apenas o que eu sempre fiz desde que
fundei esse jornal: falar a verdade, doa a quem doer, sem medo de encarar
as consequências. Você quer me ajudar nisso e ter seu emprego de volta?
— A gente pode discutir um salário? — pergunto.
— Vamos com calma. Primeiro a gente vê se essa matéria vai surtir al-
gum efeito na cidade, depois a gente conversa sobre pagamentos.
— Justo — respondo, animado, dando uma risadinha mesmo na iminên-
cia de um desastre. — Não custava nada tentar.
22
Larissa, Patrícia e Diego voltam para suas casas enquanto passo o res-
tante da tarde e o início da noite no jornal, sentindo a adrenalina de correr
contra o tempo circular pelas minhas veias. Eu e Felipe nos apressamos
para fechar a edição de amanhã a tempo de imprimi-la e distribuí-la cedi-
nho. Eu não sabia que estava sentindo tanta falta daquela sensação.
Quando terminamos, são quase oito da noite. Mergulhar no trabalho
evitou que eu percebesse o quanto a fofoca de Pedro Torres e tio Eduardo se
espalhou pela cidade, mas, assim que saio do Diário de Lima Reis e começo
a ouvir as conversas das pessoas enquanto ando propositalmente devagar
com minha bicicleta, sei que a situação não é nada boa.
Todos estão falando sobre como Pedro Torres é imoral por beijar outro
homem.
— Isso vai contra a natureza! — um senhor sentado perto da entrada da
praça comenta com outro velhinho. — Eu até estava pensando em votar
nesse homem para ver se as coisas mudavam por aqui, mas depois disso?!
Nunca na minha vida!
— Eu não estou nem aí se ele gosta de homem ou de mulher, mas uma
imoralidade dessas representando nosso município? Nem pensar! — con-
corda outro senhor, como se falar em voz alta que não é preconceituoso au-
tomaticamente o autorizasse a falar qualquer barbaridade que passasse pela
sua cabeça.
— Eu fico com pena da esposa dele, coitada. — Ouço uma mulher con-
versando com alguém no telefone, um pouco mais à frente. — Uma moça
tão bonita! Não deveria se sujeitar a casar com um homem desses.
Resolvo que não quero mais ouvir aquelas conversas, mas também não
quero ir para casa e correr o risco de encontrar meu pai. Não sei se vou con-
seguir usar minha habilidade de evitar conflitos agora, quando estou tão elé-
trico e empolgado para revelar o que descobri sobre ele. Não quero colocar
tudo a perder e falar mais do que deveria, então resolvo parar a bicicleta no
meio do caminho e puxar meu celular. Entro no aplicativo de mensagens e
procuro pela minha conversa com Diego.
Diego: Claro.
Hospital, daqui a dez minutos?
André: Fechado.
Não preciso virar a esquina da rua de Felipe para sentir o cheiro forte de
queimado atingindo minhas narinas.
Não, não, não.
Pedalo minha bicicleta com velocidade, o coração batendo descompas-
sado enquanto torço para tudo aquilo não estar acontecendo de verdade.
Mas, assim que viro a esquina, vejo uma aglomeração do outro lado da rua
enquanto os bombeiros desconectam a mangueira do hidrante mais próxi-
mo. Um deles conversa com Felipe, que ainda está usando suas roupas de
dormir, descalço e com os cabelos bagunçados para todos os lados. Ele só
assente para as orientações de um dos bombeiros, e não sei muito bem se
está conseguindo absorver todas as informações.
Patrícia e Larissa estão perto dele, a primeira também de pijama. Quan-
do me aproximo, apenas abraço as duas, completamente chocado com o que
estou vendo. Diego chega logo depois, também em sua bicicleta, e arregala
os olhos quando olha para a garagem de Felipe.
— O que aconteceu? — pergunta ele.
Diego tenta se aproximar de mim, mas dou um passo para trás. Ele pa-
rece levar um choque e fica imóvel, e todos nós permanecemos lado a lado,
olhando para o estrago feito no jornal.
O Diário de Lima Reis está completamente destruído. As paredes pin-
gam uma mistura de água e fuligem, os móveis estão carbonizados, os pa-
péis se transformaram em cinzas e os computadores viraram uma massa de
metal retorcido. O que mais impressiona é o cheiro: se estende para o outro
lado da rua, quase palpável, fazendo meus olhos arderem, não sei se irrita-
dos ou entristecidos com o que vejo.
Felipe anda até nós, exausto.
— Os bombeiros disseram que por sorte o fogo não entrou em casa. O
bar do seu Joaquim tem câmeras que gravam a entrada do jornal — diz ele,
pesaroso. — Eles suspeitam de um incêndio criminoso, mas ainda não têm
certeza de nada.
Eles não têm certeza, mas eu tenho.
Nós estávamos muito perto de conseguir desmascarar meu pai. Muito
perto de mostrar para toda a Lima Reis quem ele é de verdade.
E meu pai saiu de casa durante a madrugada.
— Foi o meu pai, não foi? — pergunto.
Felipe encolhe os ombros.
— Eu não quero acusar ninguém sem ter provas. Não é assim que o
bom jornalismo funciona.
Era isso o que Felipe temia. Era contra isso que estava lutando, e por
isso estava fazendo tantas matérias a favor do meu pai. Ele sabe o poder que
Ulisses Aguiar tem nessa cidade, e, mesmo depois de todas as ameaças, mu-
dou de ideia e decidiu ir contra meu pai para fazer o que é certo.
E olha o que recebeu como recompensa.
Sinto a revolta crescer dentro de mim.
— Desculpa, Felipe — digo, secando lágrimas de ódio que insistem em
cair do meu rosto. — A culpa é toda minha.
— Não — responde ele, apertando meu ombro e dando uma leve sacu-
dida nele. — A gente ainda não sabe o que aconteceu. Pode ter sido só uma
coincidência.
— Não foi — murmura Patrícia, olhando para o chão. — Foi o pai do
André.
Ela não consegue levantar a cabeça. Esfrega o pé no chão, funga e pare-
ce travar uma batalha interna para continuar falando.
Mas, por fim, diz:
— E-eu pensei que… eu sabia que, se essa matéria saísse, o Ulisses ia
ficar furioso com você, pai. Me desculpa.
A conclusão para as palavras de Patrícia me deixa em choque.
— Você contou para o meu pai? — pergunto.
— O que eu podia fazer? — responde ela, finalmente levantando a ca-
beça. Seus olhos estão avermelhados pelas lágrimas. — Ele disse que ia
acabar com meu pai se ele não colaborasse, e eu… eu… eu fiquei com
medo! Seu pai é um monstro, André, e ainda bem que ele só tacou fogo no
jornal, e não na gente!
Larissa se afasta da namorada, também chocada com a informação.
— Patrícia, eu não acredito que você… — ela começa a dizer, mas Feli-
pe a interrompe.
— Está tudo bem — diz ele, em um tom derrotado e apaziguador. —
Agora a gente precisa se reerguer. A culpa não é da Patrícia. É do Ulisses.
Ficamos em silêncio enquanto o cheiro de queimado enche nossas
narinas.
— O que a gente faz agora? — pergunta Diego.
— Eu não sei — responde Felipe.
E, nesse momento, vemos um carro preto se aproximando.
— O que aconteceu aqui? — Meu pai sai do veículo e olha para todos
nós, uma expressão preocupada estampada no rosto. — Felipe, você está
bem?
Ele consegue fazer cada palavra que sai de sua boca parecer sincera.
Seus olhos estão arregalados em choque, e ele fica olhando para cada um de
nós como se não soubesse exatamente o que aconteceu durante a
madrugada.
— Acho que você conseguiu o que queria, Ulisses — responde Felipe,
ressentido.
Vejo alguns curiosos se aproximando para entender o que significa
aquela comoção. Meu pai sabe que estão ali, com celulares a postos, pron-
tos para gravar qualquer coisa se a situação sair do controle. Então, faz o
necessário para manter a pose de cidadão indignado. Olha para Felipe com
olhos arregalados e se aproxima dele.
— Eu vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para descobrir quem
fez isso, Felipe — diz ele, projetando a voz para que as outras pessoas tam-
bém consigam ouvi-lo. — Não vou admitir que pessoas que querem expres-
sar suas opiniões sejam ameaçadas nesta cidade.
Tenho vontade de socar meu pai, principalmente quando ele finge não
entender do que Felipe está falando.
— Como você sabe que alguém fez isso? — pergunto. — Os bombeiros
disseram que ainda vão abrir uma investigação para saber se não foi só um
acidente.
Meu pai fica confuso por um segundo e quase sai do personagem. Mas,
em pouco tempo, volta a sorrir e diz:
— André, por que não está na escola? Graças a Deus que você não tra-
balha mais nesse jornal! Eu sabia que ser jornalista era uma profissão arris-
cada, mas nunca imaginei que isso pudesse acontecer na nossa cidade.
Estou borbulhando por dentro: por minha mãe, que sempre soube de
toda a podridão envolvendo meu pai e, ainda assim, preferiu se manter em
silêncio; por Diego, quando fingiu que nossa relação era só um mal-entendi-
do; por Larissa e Patrícia, quando omitiram saber que Felipe estava sendo
ameaçado; por Felipe, que também escondeu as ameaças durante tanto tem-
po; e por meu pai, por ser essa pessoa horrível, que não tem nenhum limite
quando o assunto é aquela posição pequena de poder como prefeito de Lima
Reis.
— Onde você estava ontem de madrugada, pai? — pergunto, o tom de
voz também alto o bastante para as outras pessoas ouvirem.
Meu pai dá um sorriso sem graça, encarando as pessoas ao redor.
— André, pare de ter tanta raiva do mundo. Eu saí de casa para resolver
os problemas do comício. Você acha que eu ia tocar fogo no jornal de um
dos meus amigos? Eu e o Felipe não temos as mesmas ideias, mas sempre
respeitei o trabalho dele. Agora pare de achar que isso é uma conspiração e
vá para a escola. Eu não tenho tempo para lidar com isso.
Estou enfurecido. Por isso, só continuo falando:
— Você está com medo de perder! Com medo de que todos saibam que
você está desviando dinheiro da prefeitura para bancar sua reeleição! —
Aquilo atiça a curiosidade das pessoas. Finalmente vejo uma câmera erguer-
se e alguém começar a gravar.
— Não invente mentiras — responde ele, perdendo a postura de político
ponderado.
— Não é mentira! — respondo, irritado. — Primeiro você expõe meu
tio e o Pedro e chantageia o Felipe para fazer aquela matéria sobre os dois,
e agora coloca fogo no jornal!
— CHEGA ! — grita ele. Depois fecha os olhos, dá uma risada sem graça
e tenta retomar o controle sobre si mesmo. — Eu não vou ficar ouvindo
meu próprio filho plantar mentiras a meu respeito. Vá para a escola. Agora!
Vejo as pessoas murmurando entre si, chocadas com o fato de o filho
prodígio do prefeito estar ali, aos berros com o pai na antevéspera da elei-
ção. Fico momentaneamente satisfeito ao perceber que meu pai se sente
ameaçado.
— Você não vai conseguir se sair como herói dessa vez — digo.
Dou as costas para ele e ainda o ouço murmurar “adolescentes, sabem
como é…” para tentar colocar panos quentes naquelas pessoas cada vez
mais interessadas em desvendar os dramas familiares dos Aguiar.
— Pronto! — digo para mim mesmo, dez minutos depois. Consegui editar o
texto para dar uma ideia geral da notícia, com frases imperativas e de efeito.
Não é meu melhor trabalho e nem me orgulho de estar fazendo um texto de
tom tão sensacionalista, mas preciso trabalhar com as armas que tenho para
chamar atenção.
Espero só mais alguns minutos para ver minha mãe empurrando uma
mesinha de escritório cheia de resmas de papel, com um toner extra de tinta
equilibrado acima delas.
— Talvez eu tenha invadido o almoxarifado — diz ela, fechando a porta
para se certificar de que ninguém vai nos ver. — Mas não vamos dar conta
de fazer tudo isso sozinhos. É muito pesado.
— Pode deixar que eu chamo reforços — digo, pegando meu telefone e
mandando mensagens para os meus amigos.
— Eu vou chamar seu tio Eduardo — responde ela, também pegando
seu aparelho. — Ele vai adorar saber o que estamos aprontando.
— Mas, mãe… e o disfarce dele? — pergunto.
— Eu não me importo mais em fingir para essas pessoas — responde
ela, me enchendo de orgulho. — Já passei tempo demais vivendo minha
vida em função do seu pai. Dessa vez, é nos meus termos.
Não consigo me segurar. Levanto da mesa e quase a sufoco com um
abraço.
— O que você esperava com esse showzinho, hein, André? — Meu pai
avança sobre mim quando entra na casa onde tio Eduardo está hospedado,
sem esperar que alguém abra a porta para ele.
Ele sabia que eu não voltaria para casa. Eu não lidaria com ele depois
do que tinha feito, então me esgueirei pela multidão junto de Diego, voltei
para a escola e peguei minha bicicleta, tomando o caminho até a casa que
era dos meus avós enquanto ainda estava na companhia de Diego.
Mandei mensagens para Larissa e Patrícia, que vieram imediatamente
ao meu encontro. E, logo depois, tio Eduardo, Felipe e minha mãe também
apareceram.
Eu estava começando a tomar coragem para falar com minha mãe quan-
do meu pai irrompeu pela porta.
— O que você acha que vai conseguir com esse tipo de atitude? — con-
tinua ele, enfurecido. — Até quando vai continuar passando dos limites
para chamar atenção? Hein? Responde!
— Ulisses, chega! — grita minha mãe, se colocando entre nós dois. —
Você passou dos limites quando decidiu roubar o dinheiro da cidade!
— Você vive dizendo que o André é adulto o bastante para entender as
coisas, então para de defender ele! Essa é uma conversa entre homens!
Coloco uma das mãos no ombro da minha mãe e a afasto gentilmente,
ficando de frente para o meu pai.
— Desde quando você se importa com isso? — pergunto. — Você faz o
que bem entende, sempre sem deixar rastros, mente e engana todo mundo, e
vem falar comigo sobre ser homem?
O rosto dele está vermelho de raiva.
— Seu moleque, você vai ver…
Ele dá um passo ameaçador, mas não me encolho.
Consigo me manter firme.
— Se você encostar um dedo no meu filho, eu quebro suas pernas —
diz minha mãe, em uma ameaça que não deixa dúvidas de que é concreta.
— E eu, os braços — complementa tio Eduardo, seco.
Meu pai parece surpreso com aquelas reações. Dá um passo para trás,
mas não desiste assim tão fácil e continua falando:
— Todos vocês perderam a cabeça! É por isso que o mundo está desse
jeito! — Ele olha para mim. — Se você acha que é bonitinho sair por aí bei-
jando outros homens, então seja feliz! Eu não preciso de gente assim na mi-
nha vida. — Ele se volta para minha mãe e aponta um dedo acusador para
ela. — A culpa disso tudo é sua, Selma. Quando eu ganhar essa eleição, sou
eu quem nunca mais vou querer olhar na sua cara. Foi você quem criou esse
menino para ser desse jeito. Passei tempo demais tentando encontrar um jei-
to de sustentar vocês, e é assim que me retribuem? Vá dando adeus para o
seu empreguinho naquela escola, e não me peça um centavo! Se você é mu-
lher o bastante para quebrar minhas pernas, também vai conseguir se sus-
tentar sem mim.
Minha mãe só balança a cabeça, com uma expressão desgostosa no
rosto.
Mas sou eu quem falo:
— A gente dá um jeito, pai. Ninguém aqui precisa da sua ajuda. Esta-
mos melhor sem você.
Ele me encara, perplexo com minha ousadia. Parece que vai falar mais
alguma coisa, mas só balança a cabeça e me olha com desprezo antes de me
dar as costas e sair pela porta da frente, batendo-a com força ao passar.
Sinto todos na sala soltarem a respiração, aliviados.
Minhas pernas amolecem subitamente. Meio sem jeito, vou até o sofá e
me sento, ainda ouvindo os ecos das palavras que meu pai acabou de dizer.
Queria dizer que sou forte o bastante para não ter sido atingido por elas,
mas não sou.
Elas ressoam, e dói.
Por isso, choro.
— Não se preocupa, filho. — Minha mãe se aproxima e coloca uma das
mãos sobre meu ombro. — Está tudo bem agora.
Levanto a cabeça e olho para ela. Estou com tanto medo do que pode
dizer. Medo de todas as formas pelas quais ela pode ser cruel e falar que ter
me visto beijando Diego fez seu estômago se revirar.
Mas ela não diz nada disso.
— Você sabe como eu sou católica e sempre falei que acredito na Igreja
e em Deus. E, quando você nasceu, eu rezei muito para Ele te guiar pelo ca-
minho que eu tinha planejado. Porque, não sei se você sabe, mas a gente
sempre tem um plano quando um filho nasce, e não há nada mais assustador
do que imaginar que esse plano pode sair do nosso controle. Mas não me
lembro de ter pedido para você se casar com uma mulher, se isso significas-
se viver uma vida infeliz. O que me lembro foi de ter pedido que você fosse
feliz. Muito, muito feliz. E eu sei que você só está buscando sua felicidade.
Ela passa a mão no meu cabelo, arrumando-o, e enxuga minhas boche-
chas com carinho.
— Eu sempre disse que você e seu tio eram muito parecidos. Talvez eu
só não quisesse admitir para mim mesma que vocês são muito mais pareci-
dos do que eu imaginava. E está tudo bem. A Igreja nos ensina a amar as
pessoas como a nós mesmos, e eu sei que muitos lá não colocam em prática
o que aprendem, mas não vou ser um deles. Eu te amo do mesmo jeito que
eu me amo: exatamente do jeito que a gente é.
“Algumas dessas coisas nem são tão novas assim para mim, porque seu
tio está aqui e eu vejo o quanto ele é feliz e completo sendo ele mesmo. E
quem sou eu para te dizer com quem você deve compartilhar sua vida? O
que eu quero que entenda, filho, é que eu não sei tudo. Assim como você,
eu também vou errar, mas estou disposta a aprender contigo, e quero ser a
mãe que você merece. Porque você merece a melhor mãe do mundo.”
É inevitável não sentir alívio e deixar as lágrimas correrem soltas pelo
meu rosto. Quando minha mãe termina de falar e só fica me olhando com
um sorriso, dou um abraço apertado nela. Quero agradecer pelas palavras,
mas não consigo falar nada porque estou com a respiração irregular de tanto
chorar. Então só a abraço, e ela passa uma das mãos pelas minhas costas,
me acalmando.
— Agora vai lavar esse rosto e respira fundo, porque esse dia me deixou
morrendo de fome! — diz ela, fingindo animação enquanto dá duas batidi-
nhas no meu ombro. — Eduardo, me ajuda a preparar o jantar? Vocês ficam,
Felipe? Crianças?
Todos concordam.
Depois do café da manhã, peço licença e digo que vou até a praça me en-
contrar com meus amigos. Minha avó me abençoa e pede para eu ter cuida-
do e não me importar com o que as pessoas estão falando. Dou um abraço
apertado nela antes de ouvi-la falar para minha mãe e meu tio que eles não
vão embora dali antes do almoço, e também insiste para eu voltar se quiser
comer o delicioso escondidinho de carne seca que ela está preparando. Ela
afirma que posso trazer meus amigos, se quiser. Tem comida de sobra.
Estou sem minha bicicleta e ando até a praça lentamente, chutando os
poucos santinhos que ainda se espalham pelo chão. Vejo o movimento de
carros quando passo na frente da escola, com as pessoas entrando e saindo,
carregando as urnas eletrônicas e fazendo as sinalizações que indicam as
seções eleitorais para o dia de amanhã.
Quero acreditar que conseguimos mudar alguma coisa em Lima Reis,
mas à medida que ando e vejo os olhares das pessoas passando por mim,
percebo que meu tio está certo: não dá para mudar as coisas em tão pouco
tempo. Ouço sussurros, vejo pessoas apontando para mim e até ouço al-
guém gritar “Ulisses Aguiar é o melhor prefeito de Lima Reis!”, em uma
clara provocação que não me faz sentir nada além de decepção.
Quando chego na praça, todos já estão lá, me esperando, sentados em-
baixo de uma árvore que os protege contra o sol. Larissa está deitada no
colo de Patrícia, e Diego mexe em seu celular, olhando para a frente a todo
o momento, provavelmente na expectativa de me ver chegar.
E, quando me aproximo, abre um sorriso com seus dentes tortos e
amarelados.
— E aí, como foram as coisas na sua avó? — pergunta ele, dando espa-
ço para eu me sentar.
Encosto no tronco de árvore e Diego se aproxima de mim, colocando a
cabeça no meu ombro. Algumas pessoas olham para nós, mas estou tão bem
ali, tão acolhido por aquelas pessoas, que faço o exercício de não me
importar.
— Ela foi muito mais legal do que eu imaginava — admito.
— Viu só? Pelo menos uma cabeça a gente conseguiu mudar — diz ele.
Sorrio.
— Será que valeu a pena ter feito tudo aquilo ontem? — pergunto. —
Eu não acho que o Pedro Torres vá ganhar.
Larissa olha para mim e responde de imediato:
— Ah, eu sei que ele não vai ganhar.
— Obrigado por ser tão otimista — digo.
Ela ri.
— Mas a questão não é essa. O importante não é saber quem vai ganhar
essa eleição, mas sim fazer as pessoas perceberem que existe gente que pen-
sa diferente. Não sei se serve de consolo para você, mas fiquei muito feliz
de perceber que a gente pode se unir, se quiser mudar alguma coisa.
— Talvez as pessoas daqui não tenham mudado de ideia em tão pouco
tempo — diz Patrícia —, mas pelo menos a gente fez o que podia. Quem
sabe, em outra eleição, as pessoas que nos viram dessa vez percebam que
existe outra maneira de pensar. Uma maneira que não agrida nem transfor-
me os outros em motivo de piada.
Não sei se aquilo me consola, mas, por hoje, é suficiente.
Continuamos deitados embaixo da árvore, em silêncio, apenas olhando
para as nuvens que avançam no céu sem muito propósito.
— Oi, gente.
Uma voz diferente fala conosco. Levanto a cabeça e vejo que Mateus se
aproxima, as mãos nos bolsos e uma corrente de metal tilintando no lado de
sua calça preta. Sozinho, com uma expressão de quem não sabe muito bem
o que está fazendo ali.
— Oi, Mateus — respondo, me lembrando do soco que ele deu em Iago
e de como pareceu constrangido quando me viu com Diego no hospital
abandonado. — Está tudo bem?
— Uhum — responde ele. — Eu vi vocês aqui e… sei lá. — Ele enco-
lhe os ombros. — Eu só queria dizer que está todo mundo comentando o
que você fez ontem.
Larissa revira os olhos, esperando pela piada.
— O Iago está com você, não é? Ele mandou você vir aqui?
— Não, não! — ele se apressa a dizer, levantando as mãos. — Eu vim
sozinho, e vim em paz! — Ele toma fôlego e enfia novamente as mãos nos
bolsos. Não sei como não rasga o tecido. — Eu só queria passar aqui para
dizer que achei foda demais o que você fez, André. Era só isso.
Ele dá as costas para nós, meio sem jeito.
— Ei, Mateus, espera aí! — digo, sem saber muito bem como lidar com
aquele elogio e percebendo que, de alguma forma, ele admira algo que eu
fiz. — Obrigado. Se quiser ficar aqui batendo papo com a gente…
Ele olha para os lados, receoso de que alguém esteja vendo.
— Não, eu só… eu preciso voltar para casa — responde ele.
E então nos dá as costas e caminha para fora da praça.
— O que acabou de acontecer? — pergunta Patrícia, completamente
estupefata.
Não respondo, mas alguma coisa dentro de mim me diz que, em uma
cidade de oito mil, duzentos e treze habitantes, não é possível que existam
apenas quatro adolescentes queer de dezessete anos.
27
@DiariodeLimaReis 2h atrás
Segunda parcial! Com 40% das urnas apuradas, temos o seguinte resultado:
Pedro Torres 36%
Ulisses Aguiar 43%
Brancos e nulos 21%
@DiariodeLimaReis 1h atrás
Terceira parcial! Com 67% das urnas apuradas, temos o seguinte resultado:
Pedro Torres 41%
Ulisses Aguiar 48%
Brancos e nulos 11%
@DiariodeLimaReis 1 min atrás
Apuração encerrada! Com 100% das urnas apuradas, o prefeito reeleito de Lima
Reis é Ulisses Aguiar!
Pedro Torres 46%
Ulisses Aguiar 49%
Brancos e nulos 5%
Quando o último tweet é liberado e vejo que meu pai ganhou a eleição,
dou um suspiro resignado.
Mas não parece uma derrota. Ver a porcentagem de votos em favor de
Pedro Torres faz brotar um sorriso em mim, porque a disputa foi muito
acirrada.
Penso que, de alguma forma, todos nós tivemos alguma influência na-
queles números.
— Foi por tão pouco! — grita Patrícia, apertando o próprio celular. Sin-
to que ela só não o joga contra a parede porque Felipe provavelmente está
concentrando todos os seus esforços financeiros na reconstrução do jornal.
— Se essa cidade tivesse mais gente, nós teríamos conseguido!
— Mais quatro anos vivendo sob a tirania do seu pai — diz Larissa. —
Sinto muito, André.
— Não precisa — respondo. — Eu não vou passar os próximos quatro
anos aqui.
Aquela ideia parece cada vez mais consolidada dentro de mim, e dizê-la
em voz alta só faz com que eu tenha ainda mais certeza da minha decisão.
— Então você decidiu, é? — diz Diego, o tom de voz um pouco mais
baixo do que o normal.
Balanço a cabeça, fazendo que sim.
Não tem a ver com meu pai ganhar ou não a eleição, nem com o fato de
a cidade ser um lugar péssimo para pessoas gays. Quer dizer, tem um pouco
a ver com tudo isso, mas o fator principal, aquele que martela na minha ca-
beça desde que me entendo por gente, é a vontade de sair por aí e ver o res-
to do mundo. Quero saber do que ele é feito, quem o faz ser tão grande, plu-
ral e fascinante. Quero estar presente naqueles lugares onde as pessoas se
esbarram e estão apressadas demais para olhar umas para as outras.
Quero fazer parte de tudo isso.
— Os vestibulares e o ENEM começam no mês que vem — digo. — Se
eu conseguir uma nota legal em uma boa universidade, vou estudar em ou-
tro lugar. Mas isso não significa que a gente não vai mais se ver, nem que
vou ficar lá para sempre. Quero voltar para Lima Reis quando puder. Essa
cidade pode ter seus momentos ruins, mas foi aqui que conheci as melhores
pessoas da minha vida. E, se elas ficarem, pode ter certeza de que vou voltar
para vê-las sempre que possível.
— Eu não sei se você vai precisar voltar aqui para me ver — diz Diego.
— Acho que também vou embora, se conseguir entrar em uma faculdade
legal. Eu conversei com meu pai, e ele disse que me ajuda com as despesas,
e eu também posso começar a trabalhar. Eu e meu pai, a gente… meio que
está se entendendo, mesmo que aos poucos.
— Você está falando sério? — pergunto, surpreso.
— Minha mãe ainda não quer conversar comigo — diz ele —, e eu não
posso obrigá-la a concordar com tudo o que eu faço. O que é uma pena,
porque estou vendo como sua família foi incrível com você. Tudo o que
você me disse continua martelando aqui dentro. — Ele aponta para a pró-
pria cabeça. — Talvez seja meio egoísta da minha parte, mas preciso pensar
em mim. Talvez o tempo ajude minha mãe a colocar as coisas em perspecti-
va, e eu sempre vou estar disponível para quando ela quiser conversar. E
também vou visitá-la sempre que eu puder. Mas… É, acho que estou falan-
do sério. Quem sabe a gente não consegue ficar na mesma cidade, ou pelo
menos perto o bastante para continuar se vendo sempre que quiser.
— Eu adoraria — respondo, e me sinto confortável o bastante para
avançar e dar um beijo rápido nele, mesmo na casa da minha avó.
Quando me afasto, olho ao redor para ver se alguém reparou, e consigo
ver os olhos brilhantes de tio Eduardo sorrindo para mim.
Meu maior incentivador.
Não sei o que vai acontecer no futuro. Não sei se vou mudar de ideia e
ficar fascinado por uma cidade grande, tão fascinado a ponto de não querer
mais colocar os pés em Lima Reis, mas acho que consigo manter minha
promessa de voltar para cá. Quero continuar vendo minha mãe, continuar
jogando conversa fora na praça, comendo as comidas gostosas que vovó faz
e observando enquanto o tempo passa, para saber se Lima Reis vai continu-
ar estacionada no tempo ou se outras pessoas, assim como eu, terão cora-
gem para fazer alguma mudança.
Quem sabe eu me surpreenda.
Até o mês passado, eu nunca imaginaria beijar um garoto no meio de
toda a cidade, e olha só o que aconteceu. Então, não posso dizer que o futu-
ro já está traçado.
O que sei é que a vida é cheia de surpresas, e quero viver cada uma de-
las o mais intensamente possível.
Não vamos à festa de vitória do meu pai. Em vez disso, continuamos todos
na casa da minha avó até a madrugada, conversando e comendo enquanto
os adultos bebem suas garrafas de vinho e vão aumentando o tom das suas
conversas.
Não parece, de forma alguma, uma derrota.
Quando já passa da meia-noite, alguém bate na porta da casa.
— Pedro! — diz minha avó, puxando-o para um abraço e pedindo que
entre. Paula vem logo atrás, e, apesar de os dois não estarem com a melhor
aparência do mundo, vejo que não estão indignados com a derrota.
Parecem, ao contrário, satisfeitos com o número de votos que Pedro
recebeu.
— O Eduardo me disse que vocês ainda estavam acordados, e a gente
não podia deixar de passar aqui para dar um abraço em todos — diz Pedro,
olhando para a sala e vendo que ela está cheia. — Se não fosse por vocês,
eu tenho certeza de que teria muito menos votos.
— O mérito é todo seu, Pedro — diz tio Eduardo, abraçando-o com
aqueles mesmos dois segundos a mais que Diego usou quando nos abraça-
mos pela primeira vez. Parece que faz tanto tempo. — Essa cidade está per-
cebendo que precisa de mudanças.
— Vou me certificar de fazê-las acontecer — afirma ele. — Ulisses
Aguiar que me espere nas próximas eleições.
— Ele não pode se candidatar pela terceira vez — diz Larissa, entrando
na conversa. — Pelo menos a gente tem esse prêmio de consolação.
— Espero que ele incentive o André a se candidatar — responde Pedro.
— Não que eu vá te apoiar nem nada disso, André, porque eu com certeza
quero ganhar as próximas eleições. Mas pelo menos seria uma disputa
saudável.
— Não precisa se preocupar com isso — respondo. — Meus planos não
incluem a vida política. Mas, quem sabe, eu não faça a cobertura da sua
campanha? Não sei se já vou ter terminado a faculdade, mas posso vir aqui
por você.
— Prometo que não vou te subornar, ameaçar nem incendiar seu local
de trabalho — diz Pedro, e Felipe só o encara com uma expressão de falso
mau humor antes de também cair na risada e puxar Pedro para um abraço.
— Desculpa, foi muito cedo, não é?
— Pedro — chamo ele depois que todos já se cumprimentaram, e ele
vem na minha direção.
Pego o celular do bolso e abro o arquivo com todos os e-mails que con-
segui pegar do computador do meu pai.
— Eu quero que você fique com isso — digo, mostrando a tela para ele.
— É o histórico de quase um ano de troca de e-mails de uma conta paralela
do meu pai. Eu só consegui ler os e-mails sobre os computadores da escola,
mas deve ter muito mais coisa aí. Você é a pessoa que mais se importa com
Lima Reis, e tenho certeza de que vai fazer a coisa certa.
Estendo o telefone e Pedro o pega, surpreso ao deslizar o dedo pela
quantidade de mensagens.
— Coloca seu e-mail aí que eu te encaminho — digo, e ele obedece.
— Obrigado, André — responde ele, me entregando o aparelho de
volta.
— Também queria te pedir para você ficar em cima da investigação que
estão fazendo sobre o incêndio no jornal do Felipe — peço. — Eu tenho
certeza de que tem o dedo do meu pai nessa história, mesmo que a gente
não consiga provar agora. Você pode fazer isso, por mim e pelo Felipe?
— Você nem precisava me pedir — responde Pedro. — Já estou de olho
na investigação e só vou descansar quando eles tiverem um laudo técnico
que seja confiável.
Dou um suspiro, cansado e aliviado ao mesmo tempo.
— Eu só quero que meu pai responda pelas coisas que fez. Mesmo que
essa cidade ainda não consiga ver, eu sei que você e outras pessoas estão
lutando para fazer de Lima Reis um lugar melhor. E quero ajudar no que for
possível.
Ele sorri, bate no meu ombro e me olha nos olhos.
— Todo mundo aqui gosta muito de você, André. Espero que você saiba
que, não importa o que aconteça, você tem potencial para ganhar o mundo.
Concordo com a cabeça, e dessa vez não me sinto sem graça pelo
elogio.
— Eu sei — respondo, não para soar convencido, mas tendo a certeza
de que sim, tenho todo esse potencial e estou pronto para enfrentar o que o
futuro tem guardado para mim.
Quando Pedro se afasta, vejo tio Eduardo vindo na minha direção.
— Então quer dizer que você decidiu ir embora de Lima Reis? — diz
ele, sentando no sofá. Eu o acompanho e me sento ao lado dele.
— Quero saber o que tem lá fora — digo.
— Tem tanta coisa — responde tio Eduardo, com uma voz sonhadora.
— Se você acabar parando em São Paulo, quero que venha morar comigo.
— O quê?
— É! Eu moro sozinho em um apartamento que não tem nem um terço
do tamanho dessa casa, mas tenho certeza de que a gente consegue conviver
bem. Eu quero te mostrar como é a cidade que eu amo. Quero que você co-
nheça meus amigos, vá a festas comigo, e que também estude muito para se
tornar o melhor jornalista que esse país já viu. Tenho certeza de que sua
mãe não vai se opor.
Minha cabeça começa a ferver com todas as possibilidades.
— A gente pode ir em um show da Lana Love?
— Querido, ela pode fazer um show na sala do meu apartamento! — diz
ele, sorrindo. — Se você quiser, é claro. Daqui a pouco você vai se tornar
um homem independente e vai querer explorar o mundo. E, apesar de mi-
nha pele não dizer, eu tenho mais que o dobro da sua idade e com certeza
vou ser o adulto chato que vai te dizer “não” quando achar que você está se
colocando em perigo. Mas, pelo que já conheço de você, sei que isso não
vai acontecer com frequência.
— Obrigado, tio — respondo, abraçando-o.
E eu não sei o que vai ser daqui para a frente. Não sei se meu pai vai
conseguir abafar as investigações do incêndio ou se ela terá uma conclusão
justa, nem como Lima Reis vai estar daqui a alguns anos, muito menos
como meu relacionamento com Diego vai ficar. Tampouco sei se vou conti-
nuar amando meu tio Eduardo quando passarmos a morar juntos. Não faço
ideia se São Paulo é realmente esse lugar que não se importa com um garo-
to gay de dezessete anos, ou se sempre haverá olhares sobre mim, me jul-
gando e medindo tudo o que faço.
Mas sei que estou pronto para tentar. Estou pronto para desbravar o
mundo, e conhecê-lo melhor, e explorar cada pedacinho que me pareça inte-
ressante e, por que não?, também mudá-lo e torná-lo melhor para outras
pessoas que sejam iguais a mim.
Da mesma forma que tio Eduardo mudou meu mundo e me ajudou a en-
frentar os rumores da cidade, quero conseguir mudar o mundo dos que vie-
rem depois de mim.
Um pouquinho de cada vez.
Agradecimentos
Quando escrevi meu primeiro livro, achei que estava entrando em uma
carreira que seria estável. Eu lançaria um livro por ano, no mínimo, sem
atrasos, sem percalços, sem nenhum imprevisto. Eu me sentaria, escreveria,
publicaria; me sentaria, escreveria, publicaria — em uma constante que du-
raria pelo resto dos meus dias.
Mas aí apareceu a vida e me disse que não seria bem assim.
Primeiro, tinha uma pandemia no meio do caminho — o que, por si só,
já deixou todo mundo fora de ritmo. Além disso, alguns dos meus manus-
critos finalizados ainda precisavam de mais trabalho ou não estavam no mo-
mento certo de serem publicados. Tinha insegurança, insônia, ansiedade,
troca de agente, troca de editora, troca de casa editorial: tudo se mostrou
uma grande inconstante. Como a vida é e vai continuar sendo, seja eu vicia-
do por controle e estabilidade ou não.
Rumores da cidade não foi a primeira coisa que escrevi depois do meu
primeiro livro, mas é definitivamente a mais divertida. Tem tudo o que gos-
to em uma história: é engraçada quando tem que ser, é triste de vez em
quando, é humana em sua totalidade. Algumas pessoas cismam em dizer
que a escrita é um ofício solitário, mas tenho certeza de que este livro não
seria o que é se não estivesse cercado de pessoas que puderam me ajudar a
torná-lo a sua melhor versão. E, por isso, preciso agradecer.
Para minha agente e amiga, Taissa Reis, que me ouviu falar deste livro
desde que ele era uma semente que envolvia flashbacks megalomaníacos,
assassinatos e quase o triplo de personagens que ele tem agora: obrigado
por me ajudar a entender a história que queria contar, por discutir comigo
quando, em uma quarta-feira de noite qualquer, eu chegava aleatoriamente e
apenas falava “qual carro é legal para um tio gay ter?”, por me reconectar
novamente à escrita quando achei que não estava mais dando certo e, prin-
cipalmente, por me emprestar seu sobrenome para batizar a cidade na qual
se passa essa história. Um parágrafo nunca será o bastante para te agradecer
por tudo o que você fez e ainda faz por mim. Você é incrível.
Para o meu namorado, Leonardo Gomes, que também me acompanhou
durante a jornada de escrever as dinâmicas de Lima Reis: obrigado por atu-
rar minhas inseguranças e minhas reclamações, por ouvir minhas ideias e
me dar feedbacks importante para o andamento da história. Obrigado por
estar ao meu lado em um quarto de hotel de Ouro Preto, em um dia de chu-
va, quando coloquei o ponto final no primeiro manuscrito de Rumores da
cidade . Te amo.
Para toda a equipe da Alt e, em especial, para Agatha Machado e minha
editora, Paula Drummond, por suas sugestões incrivelmente assertivas so-
bre diversas passagens do livro. Obrigado por torná-lo a sua melhor versão,
pela empolgação à medida que lia a história, pela parceria e cumplicidade
em todas as etapas da edição. Seus comentários me deram um novo fôlego
para me certificar de que tinha feito um trabalho à altura dos títulos publica-
dos sob seu aval.
Para minha antiga editora, Veronica Gonzalez: não trabalhamos muito
tempo juntos, mas sua presença e seu amor por este selo editorial foram
muito importantes para que eu estivesse certo de que estava confiando meu
trabalho para pessoas que amam livros tanto quanto eu.
Para Bárbara Morais, que não só preparou o livro que você tem em
mãos, como também me ajudou muito durante todo o processo de escrita,
com dicas, sugestões, conversas empolgadas e muita troca de
conhecimento.
Para Helder Oliveira, que fez esta capa incrível que transmite tão bem
tudo o que existe na história, obrigado por me dar não apenas uma, mas
duas ilustrações maravilhosas. Você captou perfeitamente tudo o que eu
queria mostrar e transformou minhas palavras em imagens que não consigo
parar de ver.
Para o meu grupinho de escritores e amigos: Dayse Dantas, Fernanda
Nia, Mareska Cruz, Iris Figueiredo e Babi Dewet, obrigado por ouvirem in-
seguranças e anseios sobre a carreira, por serem minha força quando eu
achava que nada daria certo e por trocarem tantas experiências que nos tira-
ram de furadas!
Para Vitor Martins e Vitor Castrillo, minhas fiéis escudeiras, com quem
posso contar para literalmente qualquer coisa: obrigado por serem os me-
lhores amigos que a escrita me trouxe.
Para Orlando dos Reis, meu editor internacional que, mesmo sem que-
rer, acabou semeando a ideia deste livro de um jeito meio descompromissa-
do (olha só no que deu!).
E, por fim, para todos vocês que se permitiram ter a companhia de An-
dré, Diego, tio Eduardo, Larissa, Patrícia e todos os moradores da fofoquei-
ra cidade de Lima Reis: só escrevo histórias porque vocês estão dispostos a
lê-las. Todas as mensagens, comentários, críticas e conversas que a literatu-
ra me trouxe e continua trazendo me fazem perceber que estou na carreira
que sempre sonhei. Obrigado por serem os leitores mais carinhosos, amá-
veis, pacientes e empolgados que um autor poderia querer.
E que continuemos nossas pequenas grandes revoluções, porque mudar
o mundo dá trabalho e não acontece de uma hora para a outra. Mas a gente
consegue. Um pouquinho de cada vez.
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RAS E NOVIDADES NAS NOSSAS REDES:
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Copyright do texto © 2022 by Lucas Rocha
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Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legis-
lativo nº 54, de 1995).
R574r
Rocha, Lucas.
Rumores da cidade / Lucas Rocha. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Globo Alt, 2022.
ISBN 978-65-88131-70-1.
ISBN digital: 978-65-88131-75-6
1ª edição, 2022
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