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Agradecimentos

Começo por agradecer aos meus pais, pela confiança que sempre depositaram em mim
e pelo apoio incondicional que sempre me prestaram.

Quero igualmente deixar um particular obrigado ao Luís que me incentivou e ajudou


ao longo deste ano de intenso trabalho.

Agradeço ainda à minha irmã, pela compreensão e pelo apoio que me deu durante a
realização do curso.

Realço ainda a importância dos meus orientadores, pela disponibilidade e paciência


que tiveram para comigo.

Finalmente devo ainda salientar a prestabilidade e a amabilidade do arquitecto Jorge


Paulo Carolino e de Sara Noro, sem os quais não teria sido possível desenvolver parte
deste trabalho.
Índice 7

Índice

Resumo ........................................................................................................................ 09
Abstract ........................................................................................................................ 11
Introdução .................................................................................................................... 13

Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã ............................................................. 17

1. A Beira Alta _ diversidade e singularidade .............................................. 21


Caracterização da região............................................................................... 21
Povo e economia .......................................................................................... 25

2. A casa popular beirã _ simbiose entre o homem e o meio ....................... 27


Formas de povoamento................................................................................. 29
Feição exterior da casa popular beirã .......................................................... 31
Organização interior .................................................................................... 35

Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo .................... 43

1. Património, Conservação, Restauro _ evolução dos conceitos ................. 45


Antecedentes históricos ................................................................................ 46
O património monumental ........................................................................... 47
O património cultural ................................................................................... 50

2. O património arquitectónico vernáculo _ do abandono à reutilização ..... 55


O desprestígio das construções vernáculas ................................................... 55
A valorização do património arquitectónico vernacular ............................... 60
O turismo como motivo de reabilitação ...................................................... 64

Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo ........................ 71

1. Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologias .............. 73


Orientações/exigências prévias..................................................................... 74
Condições variáveis ..................................................................................... 81
Metodologia de intervenção ......................................................................... 89
8 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

2. A prática da reabilitação _
do modelo metodológico à realidade das situações ................................. 95
A aldeia de Póvoa Dão ................................................................................. 95
A Quinta de Pêro Martins ........................................................................... 113
As dificuldades da concretização ............................................................... 126

Conclusão ................................................................................................................... 129


Bibliografia ................................................................................................................ 135
Referências iconográficas .......................................................................................... 143
Anexos ....................................................................................................................... 145
Anexo I _ Entrevista ao arquitecto Jorge Paulo Carolino ........................... 147
Anexo II _ Entrevista a Sara Noro, designer de interiores ......................... 159
Resumo 09

Resumo

A arquitectura popular é o fruto da relação existente entre o homem e o meio.


Neste sentido, as construções vernáculas presentes na Beira Alta representam a
adaptação do povo beirão às características da região. A singularidade deste território
e a sua economia marcadamente agrícola influenciaram directamente a feição destas
construções, designadamente a da casa popular beirã. Esta habitação, de feição muito
rude, apresenta-se mais funcional que confortável uma vez que também serve de apoio
à actividade agrícola, onde se guardam as alfaias, as colheitas e até os animais.
Derivado às mutações sociais e à desvalorização dos espaços rurais, a maioria dos
exemplares desta arquitectura estão em estado de ruína, descaracterizados por arranjos
posteriores ou foram substituídos por construções mais adequadas ao modo de vida
actual.
Umas décadas atrás, com uma revalorização dos espaços rurais levada a cabo por
políticas de ordenamento do território, deu-se uma consciencialização do
desaparecimento a que estavam sujeitas estas construções. A necessidade da sua
salvaguarda tornou-se deste modo numa preocupação cada vez mais presente na
sociedade contemporânea, facto que levou ao reconhecimento destas construções
como fazendo parte do património cultural de cada país. Paralelamente ao processo de
revalorização dos espaços rurais surgiu ainda um crescente interesse dos portugueses
pela prática do turismo em espaço rural, com o intuito de descobrir zonas menos
conhecidas e de, num certo modo, regressar às origens. Face a estas circunstâncias, o
turismo em espaço rural passou a ser visto como um motivo que viabiliza e sustenta a
reabilitação do património construído vernáculo, mas também como um meio de
salvaguardar e dar uma nova vida à casa popular beirã.
O desenvolvimento de uma intervenção de reabilitação remete para um processo
extremamente complexo que varia consoante as especificidades de cada caso. Os
objectivos, princípios e exigências que regem este tipo de intervenção devem estar
bem claros na mente de qualquer arquitecto assim como a consciência da existência de
factores variáveis que influenciam a abordagem ao objecto de reabilitação. A
concretização duma acção de reabilitação obriga a seguir uma metodologia muito
rigorosa que, apesar de facilitar a organização e o planeamento do processo, não
impede o surgimento de situações inesperadas que levantam dificuldades no progresso
da intervenção.
Abstract 11

Abstract

The popular architecture is the result of the existent relation between man and his
environment. In that way, vernacular constructions present in the Beira Alta represent
an adaptation of its people to the features of the region. The singularity of this territory
and its economy, mainly influenced by agriculture, affected directly the aspect of these
constructions, namely of the Beira Alta house. This habitation, of very rude feature, is
more functional than comfortable due to being itself an important support in
agriculture, where the tools, the crops and even the animals were kept. Because of the
social mutations and the devaluation of the rural spaces, most part of these
architectural examples are in ruins conditions, decharacterized by posterior
modifications or have been replaced by constructions which are more adapted to the
current life style.
A few decades ago, the revaluation of the rural spaces, applied by territory
ordainment policies, produced an awareness of the disappearing of these
constructions. The necessity of its preservation became this way an growing concern
of the contemporary society and led to the recognition of these constructions as part of
the cultural patrimony of each country. Along with this revaluation process of the rural
spaces, emerged a growing interest in tourism in rural space by the Portuguese people
in ways of discovering less known areas and, in a certain way, returning to the origins.
In that way, tourism in rural space became the motive for supporting the rehabilitation
of the constructed vernacular patrimony but also the reason of protecting and giving
new life to the popular house of the Beira Alta.
The development of rehabilitation intervention appears being an extremely
complex process which changes according to the specificities of each case. The
objectives, principles and requirements ruling this kind of intervention must be clear
in every architect’s mind as well as the cognition of the existence of changeable
factors which influence the approach to the rehabilitation goal. The concretization of a
rehabilitation action forces the following of a very strict methodology, which, despite
of turning the organization and planning of the process easier, does not stops the
appearing of unexpected situations which create difficulties in the intervention
progress.
Introdução 15

Introdução

Sendo oriunda da zona das Beiras, mais propriamente da Beira Alta, a


possibilidade de poder contribuir para o seu desenvolvimento e valorização atrai-me
particularmente. Esta região, com características muito variadas, apresenta-se com um
grande potencial, principalmente a nível turístico. De facto, ao passear por esta zona
podemos apreciar a sua grande diversidade tanto a nível arquitectónico como
paisagístico, factores que constituem uma riqueza cultural digna de ser divulgada. A
arquitectura vernácula que aí se encontra advém do modo de vida do povo desta zona,
representa parte da identidade nacional e merece, por este facto, ser salva do abandono
a que está sujeita. São geralmente casas herdadas, geração após geração, cuja última
linhagem já nem vive na terra dos seus antepassados e, consequentemente, qualquer
tipo de valor, até sentimental, já se perdeu. Esta negligência por parte dos donos é
claramente visível pelo aspecto de ruína que muitos exemplares daquela arquitectura
começam a adquirir, sendo raros os que lhes dão valor e tentam recuperá-los. Em
contrapartida, é de notar um recente interesse dos portugueses pelo turismo rural, por
ir à descoberta de zonas mais isoladas do país, num certo retorno às origens. No meu
parecer, estas duas realidades podem ser conciliadas e a reabilitação da arquitectura
vernácula beirã parece-me ser o meio adequado para o desenvolvimento económico, a
atracção turística e, consequentemente, a repovoação desta zona do interior do país.

Face ao exposto, o objectivo deste trabalho remete para um estudo aprofundado


sobre a arquitectura vernácula da Beira Alta, mais propriamente sobre a reabilitação
desta para fins turísticos. Sendo a reabilitação encarada como uma potencialidade para
o desenvolvimento turístico da região, o objecto do trabalho foi limitado às habitações
populares, tipologia que facilmente se adequa ao turismo em espaço rural. O
ensinamento que se pretende retirar deste trabalho remete para o conhecimento dos
factores que incidem sobre o desenvolvimento do processo de reabilitação no âmbito
específico do património vernáculo da Beira Alta.

Sendo a reabilitação um tema que foi pouco abordado no âmbito curricular,


existem imensas lacunas a nível teórico e levantam-se inúmeras questões relacionadas
com a prática de intervenção. Portanto, a metodologia adoptada pretende fomentar o
estudo de diferentes tópicos relacionados com o tema principal no sentido de adquirir,
num primeiro tempo, um conhecimento geral que, após aprofundamento, levará a uma
16 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

certa especialização no âmbito da reabilitação da arquitectura vernácula para fins


turísticos.
A primeira parte relativa à Arquitectura Vernácula da Beira Alta, pretende
elaborar, num primeiro capítulo, uma caracterização da região em estudo, realçando as
suas particularidades físicas, económicas e sociais. Com base neste estudo, o segundo
capítulo faz uma descrição da casa popular beirã, salientando a relação que existe
entre a região e as características da sua arquitectura vernácula, designadamente das
casas populares.
Após identificação das características intrínsecas à casa popular beirã, a segunda
parte deste trabalho aborda a questão da Salvaguarda do Património Arquitectónico
Vernáculo. O primeiro capítulo consiste no estudo da evolução da noção de
património e da sua salvaguarda, em termos gerais, de modo a contextualizar o
conceito de património construído vernáculo, em particular. O segundo ponto
restringe-se ao património vernáculo, procurando explicar o seu reconhecimento
enquanto tal, a sua crescente valorização e o papel do turismo na reabilitação.
Finalmente, a terceira parte incide sobre o propósito fundamental do estudo, a
Reabilitação do Património Construído Vernáculo, onde se abordam questões relativas
à prática da intervenção neste tipo de património. Neste sentido, o primeiro capítulo
incide sobre o estudo dos objectivos, dos princípios e das exigências que regem a
intervenção de reabilitação, de modo a identificar o método mais apropriado de levar a
cabo esta intervenção. O segundo capítulo, baseado no estudo de casos, tem como
objectivo tentar perceber a prática da reabilitação na realidade de modo a, no final,
identificar as principais dificuldades encontradas no acto de concretização.
Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã 19
A Beira Alta _ diversidade e singularidade

A arquitectura popular é a expressão física da relação estabelecida entre o homem e


o meio. Este meio, geralmente rural, impõe condicionantes – geológicas, topográficas,
climáticas –, as quais, conjugadas com as necessidades económicas e sociais, ditam a
feição exterior das construções, principalmente das habitações1. Estas construções
tradicionais resultam da sabedoria popular que se foi aperfeiçoando ao longo dos
séculos pela experiência e pelo erro. É um facto estas edificações serem de autoria
anónima e erigidas por indivíduos sem formação técnica, somente a partir de um
somatório de conhecimentos adquiridos pela repetição de práticas ancestrais. Sendo
assim, é a capacidade de apropriação dos recursos naturais, a reprodução dos
“saberes” tradicionais e a harmonia criada pela adaptação ao meio ambiente, que
caracterizam a linguagem da arquitectura popular – sóbria, funcional, sem ambições
estéticas –, e não a vulgar oposição com a arquitectura erudita2.
Nos anos 60 do século passado o Sindicato dos Arquitectos Portugueses efectuou
um levantamento exaustivo da arquitectura popular existente em Portugal, compilado
em vários volumes sob o título Arquitectura Popular em Portugal3. É com base neste
precioso estudo que hoje em dia é possível entender as características destas
construções e conceder-lhes o devido valor.
Face ao exposto e tendo em conta o objectivo deste trabalho, torna-se primordial
elaborar um estudo que permita perceber e identificar as construções vernáculas da
Beira Alta. Com esse intuito, esta primeira parte divide-se em dois capítulos: o
primeiro refere-se à contextualização geográfica, económica e social desta arquitectura
e, o segundo remete para a descrição pormenorizada das características inerentes a
estas construções, salientando a relação destas com o meio envolvente.

1
PEIXOTO, António Augusto da Rocha – Etnografia portuguesa : obra etnográfica completa. Lisboa : Publi,
1990.
2
Acerca deste tema ver:
- SILVA, Paulo Brito da – Património arquitectónico e valorização dos espaços rurais. Comunicação apresentada em
representação do Forum UNESCO no seminário Horizonte 2006 – Políticas e práticas de desenvolvimento rural. Crato,
Fronteira e Monforte, 14,15 e 16 de Dezembro de 2000;
- “(…), poderá afigurar-se pelo menos questionável o limite então pretendido por alguns de tratar a arquitectura
popular por contraposição à erudita. Até que ponto esta fronteira é de manter, até que ponto é uma distinção
susceptível de clarificar as contribuições do passado no domínio da Arquitectura?” in ASSOCIAÇÃO DOS
ARQUITECTOS PORTUGUESES – Arquitectura Popular em Portugal. 3ª ed. Lisboa: Associação dos Arquitectos
Portugueses, 1988, vol.1, prefácio da 2.ª edição.
3
ASSOCIAÇÃO DOS ARQUITECTOS PORTUGUESES – Arquitectura Popular em Portugal. 3ª ed. Lisboa:
Associação dos Arquitectos Portugueses, 1988.
20 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

Castro
Meda
Daire Vila Nova
de Paiva Figueira
de Castelo
S. Pedro Trancoso Rodrigo
Aguiar da
do Sul
Sátão Beira
Oliveira de Pinhel
Viseu Penalva do Fornos de Almeida
Frades Vouzela
Castelo Algodres
Celorico
Mangualde da Beira Guarda
Tondela
Gouveia
Nelas
Carregal
Santa do Sal Seia
Mortágua Comba
Dão Oliveira Manteigas Sabugal
Tábua do
Hospital

[1] Localização da Beira Alta [2] Concelhos da Beira Alta

[3] A Serra da Estrela, montanha de formação granítica

[4] A Serra do Açor, presença de rochas xistosas


Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã 21
A Beira Alta _ diversidade e singularidade

1. A Beira Alta _ diversidade e singularidade

O território português pode ser dividido em duas zonas de áreas aproximadamente


iguais, sendo a primeira a região situada a Norte do rio Tejo, com uma grande
variedade de relevos e litoral aberto, enquanto a segunda, a Sul deste mesmo rio,
apresenta uma extensão considerável de planícies e um litoral menos domável. A
região Norte também se fragmenta em duas partes, a Leste, uma zona montanhosa que
engloba inclusivamente a Cordilheira Central, com vales e planaltos recortados pelo
leito dos rios que a atravessam, e, a Oeste, o litoral mais ameno onde as fozes dos
mesmos rios se abrem sobre o Oceano Atlântico.4 É na parte Este da zona Norte que se
encontra a região em estudo, a Beira Alta. Limitada a Norte pelas serras da Arada e da
Lapa, a Oeste pela serra do Caramulo, a sudoeste pela do Buçaco e a Sul, pelas serras
da Lousã e do Açor, esta região estende-se para Nascente até à fronteira com Espanha,
passando ainda pela vertente setentrional da serra da Estrela. Em termos
administrativos, a Beira Alta integra a quase totalidade dos distritos da Guarda e Viseu
e ainda dois concelhos do levante do distrito de Coimbra.5

Caracterização da região

Do ponto de vista litológico, a Beira Alta apresenta dois tipos de subsolos


provenientes do maciço antigo ibérico que, aliás, se estende pela maior parte do
território português. O primeiro, de formação granítica, ocupa quase a totalidade da
área da região, enquanto o segundo, composto por xistos, só abrange uma pequena
parte a sudoeste composta pelas serras da Lousã e do Açor. A tipologia das rochas
aliada à sua evolução causada pela erosão e pelos movimentos tectónicos dotaram esta
região de grandes variações altimétricas, desde os cumes das serras – serra da Estrela:
1993 m, serra do Açor: 1342 m, serra da Lousã: 1205 m, serra do Caramulo: 1075 m,
serra da Arada: 1071 m – ao planalto situado no centro da região, cuja altitude oscila
entre os 600 e os 200 m. Descendo no sentido Nordeste-Sudoeste, este planalto é
composto por uma sucessão de colinas e vales rasgados pelos rios Dão, Mondego e

4
OLIVEIRA, E. Veiga de; GALHANO, Fernando – Arquitectura Tradicional Portuguesa. 1ª ed. Lisboa: Publicações
D. Quixote, 1992.
5
Com a entrada em vigor da Constituição de 1976, a Beira Alta corresponde hoje em dia a diferentes sub-regiões: sub-
região da Beira Interior Norte, da Serra da Estrela, do Dão-Lafões bem como ainda uma pequena parte do Pinhal
Interior Norte (por abarcar no seu território os dois concelhos do distrito de Coimbra pertencentes à “antiga” Beira
Alta).
22 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[5] Vale do Alva, Serra do Açor

[6] Rio Côa, terras de Riba-Côa [7] Lagoa Escura gelada no inverno, Serra da Estrela

[8] Vale do Rossim no verão, Serra da Estrela


Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã 23
A Beira Alta _ diversidade e singularidade

Alva que correm no mesmo sentido. Além desses três rios, a região soma ainda o
Vouga que, nascido na serra da Lapa, corre de encontro com o limite Norte da região,
o Ceira, proveniente da Serra do Açor, e o Côa, oriundo do Sabugal, que ao contrário
dos outros rios corre no sentido Sul-Norte até desaguar no rio Douro. Sendo assim, a
maior parte da região apresenta-se rica em água e em solo fértil, exceptuando uma
pequena parte a Sudoeste, cujo solo de formação xistenta se revela pobre6.

O clima, em conjunto com o relevo, revela ser um factor determinante na ocupação


do solo. A Beira Alta, protegida da influência húmida do Atlântico pela barreira
montanhosa que a limita a ocidente, está sob influência da acção continental que a
caracteriza como zona temperada apesar de invernos bastantes frios e chuvosos e
verões quentes e secos. É na parte mais alta e central da Serra da Estrela que se
encontram os valores mais altos de precipitações e os valores mais baixos de
temperatura durante o inverno, gerando precipitações sob forma de neve, enquanto no
verão, a temperatura média chega aos 24°.

“Mas esta amplitude de variação térmica, este rigor dos estios e


invernos não impede que em pleno verão, nos meses tórridos de Julho e
Agosto, quando a canícula anda pelas encostas do Dão a fecundar o
néctar dos seus vinhedos, se desfrute nos planaltos das suas montanhas,
lavados de ares, abertos a todos os quadrantes, a mais fresca
temperatura de litoral; nem obsta a que em pleno inverno, quando o
vento da Estrela, a soprar por sobre as terras gretadas de geada,
trespassa dum frio de neve o burel dos ovelheiros, nas encostas
abrigadas da nortada a temperatura emparelhe com as mais
privilegiadas do País.”7

6
“As formas graníticas, em presença do tipo de clima corrente entre nós com elevado teor de humidade, arenizam-se
facilmente dando assim origem a formas topográficas bem definidas de carácter rectilíneo, contribuindo deste modo
para o desenvolvimento de vales amplos e dotados de grande fertilidade. Os xistos, pelo contrário, além de menos
permeáveis que as rochas anteriores, não sofrem o mesmo processo de arenização pelo que os solos resultantes são
bastantes pobres.” in MOUTINHO, Mário C. – A arquitectura popular portuguesa. Lisboa: Editorial Estampa, 1979,
p.13.
7
VALE, Alexandre de Lucena e – Beira Alta : terra e gente. Viseu : Comissão Municipal de Turismo, 1958, p.21-
22.
24 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[9] Preponderância de pinheiros nas encostas mais altas [10] Diversidade de cores

[11] Vegetação de matos rasteiros [12] Vinhas da região do Dão

[13] O pastoreio como actividade económica [14] Os animais e a agricultura


Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã 25
A Beira Alta _ diversidade e singularidade

A vegetação aparece muito diversificada consoante a topografia do terreno e o


clima da região. Começando pelas cumeadas e encostas, cobertas de matas de
pinheiros bravos ou, nos solos mais degradados, de matos rasteiros, segue-se a meia
encosta, presenciada com árvores de folhas caducas, o carvalho e o castanheiro, antes
de chegar às terras mais baixas e planas com ocupação predominantemente agrícola. A
serra da Estrela é o exemplo mais representativo desta estreita relação que existe entre
o relevo, o clima e a vegetação, como aliás o salienta Oliveira Martins na sua História
de Portugal8. Na primavera, esta variedade de vegetação traduz-se numa diversidade
de textura e de cores que pinta a paisagem de tons amarelos e rosas apesar de ser o
pinhal que cobre a maior parte da região.

Povo e economia

Formando parte integrante desta paisagem, a agricultura praticada nos vales e sopés
representa a base da economia da Beira Alta. Mais uma vez, esta região apresenta
diversidade no que se refere ao tipo de cultivo: desde as culturas cerealíferas à
horticultura e fruticultura, das quais se salientam o milho, o centeio, o olival e a vinha.
O milho, necessitando terras húmidas, localiza-se preferencialmente na parte situada
entre os rios Dão e Vouga ou em zonas irrigáveis, enquanto o centeio cobre a restante
parte da região. A vinha, presente por toda a parte, revela no entanto mais qualidade e
produtividade no vale do Dão. Com prova na dimensão das propriedades, de superfície
diminuta, que se encontram nesta região, todos estes cultivos são feitos à escala
familiar o que implica a participação de toda a família nesta lavoura.

À mesma escala são criados os animais domésticos, muitas vezes um porco, um


burro e mais raramente uma vaca, os quais acompanham a vida da família até dentro
de casa. Nas terras mais altas, por volta dos 600 metros de altitude, a actividade da
população é outra: o pastoreio. A criação de gado miúdo, caprino e ovino, é a mais
difundida uma vez que são animais que se adaptam ao tipo de vegetação e de relevo
das terras mais altas, descendo aos vales apenas durante o inverno. Estes enormes

8
“Por essas eminencias, tapetadas de relva no estio e de neves no inverno, nem as villas, nem as arvores se atrevem a
subir: só o pastor nómada as habita. Do alto do seu throno de rochas vê gradualmente ir nascendo a vida pelas
encostas: primeiro o zimbro, rasteiro e roido pelo gado, circumda os altos nús; logo apparecem os piornos, as urzes
brancas, os carvalhos; depois, já a meia altura da encosta, os castanheiros, as lavouras, e os enxames das villas;
afinal, na extrema baixa, o lançol de lagunas, tapete de esmeraldas engastadas em fios de brilhantes, que o sol faceta
ao espelhar-se no labyrintho dos canaes.” OLIVEIRA MARTINS cit. in “Notas sobre Portugal”, Lisboa : Imprensa
Nacional, 1908. Exposição Nacional do Rio de Janeiro, 1908, vol. II, p.30.
26 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

rebanhos, principalmente os de ovelhas, permitiram o desenvolvimento de alguns tipos


de indústrias, como a de lacticínio e a de lanifício, que vieram substituir, a pouco e
pouco a partir dos anos 50, o trabalho das queijeiras e dos tecelões.

A maioria dos habitantes da Beira Alta são agricultores ou pastores, vivem da terra
e para a terra já que é ela que os alimenta e os veste. A vida desta gente é ditada pela
sementeira, pela rega, pela poda ou ainda pelas vindimas e pelas ceifas, sempre à
mercê do clima que determina os anos de abundância ou os de fome. A tradição
comunitária está também fortemente vincada, a partilha dos fornos, dos moinhos, dos
lagares ou das eiras. Neste contexto, a casa propriamente dita serve apenas de abrigo,
para comer e dormir, uma vez que funciona mais como importante instrumento
agrícola onde se guardam as alfaias, as colheitas e até os animais. Mais funcional que
confortável, a casa rural beirã testemunha de uma vida dura e sofrida com muita
miséria e pobreza material9.

9
LEAL, João – Etnografias portuguesas (1870-1970): cultura popular e identidade nacional. 1ª ed . Lisboa : Dom
Quixote, 2000, Capítulo 5: “Pastoral e contra-pastoral: O Inquérito à Habitação Rural”, p.145-159.
Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã 27
A casa popular beirã _ simbiose entre o homem e o meio

2. A casa popular beirã_ simbiose entre o homem e o meio

“A casa popular é um dos mais significativos e relevantes aspectos da


humanização da paisagem, em que, na sua grande diversidade de tipos,
afloram, com particular evidência, numerosos condicionalismos
fundamentais – geográficos, económicos, sociais, históricos e culturais –
das respectivas áreas e dos grupos humanos que a constroem e habitam.
É evidente que ela pode considerar-se um produto imediato das relações
do Homem com o meio natural que o rodeia; e, como tal, traduz este
último na sua diferenciação regional, já directamente, pela utilização dos
materiais locais – é o que sucede nos casos mais primitivos e antigos e,
em geral, nos sistemas de construção tradicionais –, já mediatamente,
pelas soluções especiais de ajustamento às peculiaridades climáticas
desse meio e às implicações mais ou menos indirectas que estas
determinam, em forma particular às formas básicas dos géneros de
economia que lhe são próprios: para certos autores, a casa popular, e
sobretudo a casa rural, é mesmo concebida não apenas como um abrigo,
mas sobretudo como um verdadeiro instrumento agrícola que é preciso
adaptar às necessidades de exploração da terra, designadamente no que
se refere ao seu dimensionamento e à importância e distribuição relativa
dos alojamento das pessoas, dos estábulos e das lojas de arrumação das
alfaias e ferramentas de lavoura.”10

Uma vez que o capítulo anterior identificou as condicionantes que se impõem à


construção da casa popular beirã, neste capítulo propõe-se evidenciar o impacto dessas
tanto no povoamento como na feição da casa e na sua organização interior, ao mesmo
tempo que será salientado o engenho com que o homem conseguiu adaptar a casa às
suas necessidades.

10
OLIVEIRA, E. Veiga de; GALHANO, Fernando – op. cit.
28 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[15] Loriga, povoado erguido ao longo de uma crista montanhosa [16] Piódão, casas anichadas

[17] Sortelha, castelo e povoado [18] Piódão, caminhos íngremes [19] Linhares da Beira, caminho

[20] Viseu, largo da Sé com cruzeiro [21] Santa Marinha, pelourinho


frente à antiga casa da Câmara
Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã 29
A casa popular beirã _ simbiose entre o homem e o meio

Formas de povoamento

Sendo a agricultura uma das grandes condicionantes da vida beirã, foi também ela
que definiu as diferentes formas de povoamento que se encontram pela Beira Alta. De
facto, numa zona de terrenos húmidos ou irrigáveis, ou seja, mais férteis, existe uma
maior concentração de habitantes que se juntou em núcleos habitacionais apertados de
modo a poupar as terras ricas para o cultivo. Ao contrário, nos terrenos pedregosos
pouco produtivos, a densidade populacional é bastante menor e os habitantes
agruparam-se em povoados construídos com mais desafogo, com edificado mais
disperso.
O relevo também influenciou em muito a estrutura destes povoados: desde o
casario que se alastra sem condicionamentos impostos pela orografia nos povoados de
planície, às casas que se anicham, encastradas umas nas outras nos povoados de
montanha, passando por casos mais raros como os povoados erguidos ao longo duma
crista montanhosa, cuja rua principal lhe segue o desenho.
Outros factores como a presença dum castelo, em torno do qual se juntava o
casario por questões de segurança, ou ainda a influência da religião cristã, pela qual o
ajuntamento se fazia à volta da igreja, definiam ainda a estruturação dos povoados.

Parece então claro que “não intervieram na estruturação dos povoados ordenações
urbanísticas, com traçados prévios. Cada um foi erguendo a sua casa onde e
conforme pôde, adaptando-se ao parcelamento das propriedades, às condições
orográficas e à qualidade dos terrenos, deixando livres os caminhos comuns, alguns
quintais e pequenos «eidos», atinentes às habitações”11. Deste modo, os caminhos
aparecem tortuosos e estreitos, ora de terra batida ora calcetados com pedra miúda,
acontecendo ainda estarem lajeados com grandes pedras, vestígios da ocupação
romana. Estas pequenas ruas, que constituem a estrutura do povoado, dão acesso às
casas e aos currais e são por isso frequentemente percorridas pelos rebanhos aquando
da transumância.
Os largos, as mais das vezes simples alargamentos desses caminhos, são o centro
da vida social, onde o povo se junta e convive à volta dos principais equipamentos do
povoado – igreja, fonte, mercado, eira, forno, lagar, moinho. Quando situados à frente
de edifícios ou elementos mais notáveis como as juntas, os pelourinhos, os cruzeiros

11
ASSOCIAÇÃO DOS ARQUITECTOS PORTUGUESES – Arquitectura Popular em Portugal. 3ª ed. Lisboa:
Associação dos Arquitectos Portugueses, 1988, vol.2, p. 15.
30 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[22] A caminho de Cidadelhe, Riba-Côa, construção nas rochas [23] Perto de Bobadela, casa

[24] Passarela, Gouveia [25] Sazes da Beira, muro de xisto assente sobre as rochas

[27] Viseu, largo da Sé

[26] Casas fundidas na paisagem


Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã 31
A casa popular beirã _ simbiose entre o homem e o meio

ou de feição mais rica como os solares estes alargamentos servem também para
conferir importância, grandeza e respeitabilidade a estes mesmos edifícios.

“O solar e a igreja – alguns solares e igrejas apenas, com fortes raízes


na região – são as peças mais ricas e expressivas dessa Arquitectura
humilde e sem requintes. Surgem com frequência, nesta área,
pelourinhos e alminhas.”12.

Feição exterior da casa popular beirã

Em relação às habitações, são os mesmos factores apontados anteriormente que


condicionaram, em parte, a feição geral da casa popular beirã, ou algumas das suas
particularidades. Estas últimas demonstram a capacidade do homem em adaptar a sua
casa a certas dificuldades impostas pelo terreno, pelo clima e pela economia agrária,
assim como o seu engenho em tirar partido da envolvente, já que é de lá que provêm
os materiais construtivos.

A feição exterior da casa, especialmente marcada pelo material de construção, é


dependente da litologia da zona em que esta se situa: de granito na maior parte da
região, de xisto a sudoeste e de ambos materiais nas zonas de transição.

“A ornamentação das casas em toda a região granitica é pobre, não só


pela dureza rebelde do material, o que onera a construcção, mas pela
ausencia de cal e dos innumeros recursos das suas combinações”13.

A falta de calcário na Beira Alta reduz portanto o uso de argamassas e caiações,


tornando assim o tom das construções monocromático, entre o cinzento e o castanho,
em que muitas vezes não se consegue distinguir as povoações da envolvente, como
que fundidas na paisagem.
A mestria do uso da pedra, principalmente do granito, é um dos traços importantes
da civilização do Norte de Portugal14, que remete claramente para uma aprendizagem

12
ASSOCIAÇÃO DOS ARQUITECTOS PORTUGUESES – Arquitectura Popular em Portugal. 3ª ed. Lisboa:
Associação dos Arquitectos Portugueses, 1988, vol.2, p. 28.
13
BARREIRA, João – A Habitação em Portugal. in “Notas sobre Portugal”, Lisboa : Imprensa Nacional, 1908.
Exposição Nacional do Rio de Janeiro, 1908, vol. II, p.152.
14
RIBEIRO, Orlando – Geografia e Civilização : temas portugueses. Lisboa : Livros Horizonte, 1970-1986, p.13-
14.
32 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[27] Blocos assentes sem argamassa, de maior tamanho nos cunhais [28] Pedra talhada à mão

[29] Casa de granito [30] Casa de xisto

[31] Aglomerado de casas de xisto [32] Conjugação do granito


e do xisto
Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã 33
A casa popular beirã _ simbiose entre o homem e o meio

desenvolvida aos longos dos séculos e transmitida pela repetição de técnicas ancestrais
de cariz popular. O granito, extraído à mão por processos rudimentares, é usado para a
construção de paredes apresentando diferentes tipos de aparelho. O uso de blocos de
diferentes tamanhos, dispostos de maneira a travarem-se uns aos outros, aparece
frequentemente nas habitações mais antigas e construções anexas enquanto os grandes
blocos regulares aparecem nos cunhais e elementos de cantaria das habitações, por
mais humildes que sejam. O aparelho regular de blocos grandes só se difunde a partir
do século XVIII, nas melhores casas da aldeia, e a pedra lavrada aparece somente nos
solares da nobreza.
As construções de xisto, erguidas pela sobreposição de pequenas lajes dessa rocha,
necessitam obrigatoriamente de elementos de maior dimensão e mais sólidos, como a
madeira ou o granito, sob forma de padieiras e ombreiras para sustentar os vãos das
janelas e das portas. Pela sua grande capacidade estrutural, o recurso ao granito acaba
por ser imprescindível, principalmente nas construções de maior vulto como as
igrejas, os castelos e ainda os solares, que apresentam cunhais, vergas ou outros
elementos desse material, independentemente de estarem localizados em zonas
xistosas ou graníticas.

Voltando à feição exterior da casa popular beirã, esta apresenta uma constante
tipológica que denuncia a existência de dois pisos com escada exterior de pedra que dá
acesso à habitação propriamente dita, localizada no primeiro andar. De planta simples,
quadrada ou rectangular, esta casa ostenta um telhado de duas ou quatro águas coberto
por telha de canudo ou placas de xisto conforme, mais uma vez, a localização
geográfica.
A inclinação do telhado e a saliência do beiral denunciam o rigor do clima,
invernos nevosos e ventosos dos quais é necessário proteger-se. Derivado ao baixo
nível económico, esta protecção efectua-se por métodos primitivos que ajudam à luta
contra o frio, como por exemplo, a colocação de fiadas de pedras ao longo dos
beirados, a localização dos currais sob a habitação ou ainda, a ausência de chaminé na
cozinha.
Ainda com o mesmo intuito, as aberturas aparecem diminutas e raras, só na
fachada da frente e às vezes nas traseiras, fechadas por portadas de madeira, a maior
parte das vezes sem vidraça. Sendo o sol o grande aliado que ajuda a vencer o frio, as
varandas cobertas por um alpendre tornam-se nos elementos mais característicos e
funcionais da arquitectura regional beirã.
34 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[33] Moimenta da Serra, Gouveia [34] Quintã de Pêro Martins, Figueira de Castelo
Rodrigo

[35] [36]

Casas representativas da feição típica da casa popular beirã


Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã 35
A casa popular beirã _ simbiose entre o homem e o meio

“Sempre que é possível, orientam-nas para sul-poente. É o sector que


mais horas de sol quente recebe por dia, no Inverno, e também o mais
abrigado dos ventos dominantes. E se o casario vizinho não permite a
exposição usual, orientam-nas para o sul, ou sul-nascente, ou nascente,
mas nunca para o norte. Em geral, as varandas da Beira são cobertas
por um prolongamento do telhado de telha vã, ou integram-se no
perímetro da edificação e conjugam-se muitas vezes com as escadas
exteriores. Se os donos das casas têm algumas posses e um desejo
correspondente de diminuir o desconforto habitual, equipam-nas com
varandas envidraçadas, onde o sol penetra, mas os ventos não entram
(…)”15.

A cobertura destas varandas apoia-se frequentemente em balaústres de madeira ou,


nas zonas em que o granito abunda, em colunas delgadas de pedra que assentam sobre
um peitoril feito com grandes lajes rectangulares. O patim do alto da escada exterior,
muitas vezes conjugado com a varanda, existe independentemente desta e aparece
igualmente coberto por um alpendre elementar; só algumas casas mais rústicas
carecem deste elemento próprio da arquitectura popular beirã.
A escada exterior, outro elemento característico da casa popular beirã, desenvolve-
se a partir da rua, paralela ou perpendicularmente à fachada, até chegar ao dito
patamar coberto, onde se situa a porta principal de entrada para a habitação.

Organização interior

Do ponto de vista da organização interior, a casa típica beirã desenvolve-se em dois


pisos sobrepostos, independentes um do outro e com fins distintos, apesar de ambos
atestarem da vida de lavoura dos seus ocupantes.

“Absorvido nesta vida intensa do amanho da terra o aldeão beirão só


conhece a casa para cear, dormir e nela se acoitar da fúria dos
elementos. Por isso ela é pobre e desalfaiada de cómodos: quatro
paredes toscas de granito sem reboco exterior, lojas térreas para os
animais, para a arca do milho, para a pipa do vinho; por cima andar

15
ASSOCIAÇÃO DOS ARQUITECTOS PORTUGUESES – Arquitectura Popular em Portugal. 3ª ed. Lisboa:
Associação dos Arquitectos Portugueses, 1988, vol.2, p. 75.
36 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[37] Loja com as colheitas [38] Arca e depósito de vinho [39] Sobrado de madeira

[40] Eira

[41] Espigueiros [42] Choupana


Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã 37
A casa popular beirã _ simbiose entre o homem e o meio

corrido, sobradado, com uma quadra de entrada, dois ou três quartos de


dormir, e a cozinha em geral de telha vã, sem chaminé nem fogão.” 16

Sendo assim, o primeiro andar, ao qual se acede pela escada exterior de pedra,
acolhe a habitação propriamente dita, composta pela cozinha e pelos quartos. O
ambiente geral remete para a escuridão, derivado à pequena dimensão das raras
aberturas, e para o desconforto, transmitido pela rudeza do material e pela falta de
mobiliário. As paredes aparecem ainda enegrecidas pelo fumo proveniente da lareira,
que se propaga por toda a casa até escoar a pouco e pouco pelas aberturas por entre as
telhas. Muitas vezes ardendo no próprio chão da cozinha, o lume permite a confeição
dos escassos alimentos como também serve de aquecimento aos beirões, nos longos e
rudes invernos. Os quartos são de tamanho muito reduzido, quanto basta para dormir,
e muitas vezes insuficientes para toda a família que acaba por viver em grande
promiscuidade. Por cima destas divisões costuma ainda existir um sobrado de
madeira17 onde se coloca palha, para o frio não penetrar, mas que também serve de
celeiro, para proteger e guardar as colheitas. É no entanto no rés-do-chão que a tarefa
agrícola da casa beirã é mais notória.
Com acesso directo a partir da rua, o piso térreo, chamado loja, destina-se
essencialmente à recolha do gado e à arrecadação das alfaias agrícolas, podendo ainda
lá encontrar um lagar, uma pipa ou uma arca de madeira onde se guardam os
alimentos. Por uma questão de economia de espaço construído, todos os recantos são
aproveitados, como por exemplo o vão debaixo da escada exterior onde muitas vezes
se guardam galinhas, porcos, coelhos ou ainda lenha.

Deste modo, parecem ser as imposições da agricultura que regem a organização


interior da casa, mas também o prolongamento desta para o exterior. A existência de
eidos no prolongamento das lojas, ou ainda construções não habitacionais como as
eiras, onde se levantam enormes medas de palha de centeio, os espigueiros, mais
comuns nas vertentes setentrionais do Caramulo, os lagares e as adegas, na zona do
Dão, os moinhos, as azenhas, ou ainda os abrigos de pastores, completam os
elementos necessários ao funcionamento da economia agrária, base da vida local.

16
VALE, Alexandre de Lucena e – op. cit., p.34-35.
17
Qualquer elemento de madeira que se possa encontrar na casa popular beirã, desde a estrutura do telhado ou do
sobrado, passando pelo pavimento do primeiro andar, as portas, as janelas (sem vidros), as varandas ou ainda o
revestimento dos tectos nas casas mais abastadas, são de pinho uma vez que os pinhais cobrem a grande maioria do
território da Beira Alta.
38 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[43] Nave de Haver [44] Malhada Sorda

[45] S. Pedro de Rio Seco [46] Malpartida

[47] [48] [49]

Pormenores eruditos em casas populares, Santa Marinha – Seia, Linhares da Beira, Castelo Rodrigo
Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã 39
A casa popular beirã _ simbiose entre o homem e o meio

Após esta descrição relativa à típica casa popular beirã, parece ainda necessário
salientar dois aspectos que não foram tidos em conta neste trabalho por remeterem
para excepções que fogem ao tipo dominante de casa que existe na Beira Alta.
Portanto, para evitar generalizações equívocas pelo facto de não constarem neste
estudo, parece importante fazer uma breve referência às restantes casas presentes na
zona em estudo consideradas tipologicamente diferentes da casa beirã comum.
É um facto existir zonas que, apesar de pertencerem à Beira Alta, apresentam um
carácter próprio que decorre de especificidades locais, não generalizável ao resto da
região18. Pode-se tomar como exemplo as povoações de Malhada Sorda e Nave de
Haver que, pela existência de um tipo especial de pedra granítica, apresentam feições
específicas, ou ainda a zona a Sul de Almeida, onde a organização dos espaços e o
tratamento interior nada têm a ver com a tipologia dominante.
O segundo aspecto refere-se a elementos arquitectónicos que vão pontualmente
aparecendo na feição da casa vernácula beirã e que derivam de outros factores que não
os que foram citados no estudo. Como foi visto ao longo do capítulo, a casa deriva
claramente da relação entre o homem e o seu meio ambiente que remete tanto para
condicionamentos físicos como económicos e sociais. No entanto, existe por vezes
uma outra influência, a da arquitectura erudita, que aparece em edifícios de vulto
como as igrejas, para marcar valores como a hierarquia social ou a preponderância do
clero, ou ainda em solares da nobreza, dispersos por toda a Beira Alta a partir do
século XVIII. Estes elementos de natureza erudita não foram então tidos em conta
uma vez que representam casos de excepção e, principalmente, porque este trabalho
pretende sobretudo evidenciar o carácter genuíno da casa popular beirã que, como
refere João Barreira,

“(…) sujeita á multiplicidade das condições sociaes, quer na dispersão


imposta pelas primitivas circunstancias agrárias, quer no agrupamento
solidario originado pela formação inicial do burgo, a habitação,
coexistindo com as transformações por assim dizer cellulares da vida
popular, é como que o alter ego do homem e o seu mais candido e intimo
reflexo.”19.

18
Ver ASSOCIAÇÃO DOS ARQUITECTOS PORTUGUESES – Arquitectura Popular em Portugal. 3ª ed. Lisboa:
Associação dos Arquitectos Portugueses, 1988.
19
BARREIRA, João – op. cit., p.148.
40 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[50] Construções em estado de ruína [51] Casa abandonada

[52] Adaptação [53] Substituição da casa popular por construções de má qualidade

[54] Sazes da Beira, concelho de Seia, paisagem descaracterizada


Parte I _ A Arquitectura Vernácula Beirã 41
A casa popular beirã _ simbiose entre o homem e o meio

Para concluir este capítulo e justificar o facto de o discurso ter sido feito no
presente, é necessário salientar que esta realidade remete para meados do século
passado e que a descrição da casa popular beirã foi possível pelo estudo de
levantamentos efectuados antes de esse mundo entrar em declínio. Hoje em dia, a
maioria dos exemplares desta arquitectura estão em estado de ruína, descaracterizados
por arranjos posteriores ou foram substituídos por construções mais adequadas ao
modo de vida actual. Se de facto a agricultura foi, e continua a ser, a força motriz da
economia da Beira Alta, a industrialização e a mecanização modificaram
substancialmente os padrões de vida do povo agrícola. “Presentemente a
transumância quase desapareceu e a população (…) trabalha nas modernas fábricas
de lanifícios próximas (…)”20, ou emigrou, deixando a aldeia quase ao abandono só
com idosos, algumas mulheres e crianças.
No entanto, “o abandono dos sistemas tradicionais, tanto agrícolas como pastoris,
tem conduzido à transformação das paisagens que se vêm sujeitas a pressões
crescentes por parte de novas actividades”21. Nos últimos anos regista-se uma
revalorização dos espaços rurais gerada por um crescente interesse da população
portuguesa, principalmente dos citadinos, pela natureza, pela vida do campo e, para
alguns, pelo retorno às raízes. Com esta recente atenção virada para o mundo rural,
surgiu uma tomada de consciência da existência de um património arquitectónico em
risco de desaparecer, caso não lhe seja dada uma nova vida. Assim, na parte II do
presente trabalho pretende-se explicar as mudanças que sucederam ao longo do tempo,
no intuito de perceber como aconteceu esta recente valorização da arquitectura
vernácula. Procura-se ainda evidenciar os factores que têm uma influência directa ou
indirecta sobre este património, para chegar a uma conclusão sobre a importância da
sua salvaguarda e as consequentes medidas que podem ser tomadas nesse sentido.

20
RIBEIRO, Orlando – Portugal : o mediterrâneo e o atlântico. 1ª ed. Lisboa : Ed. João Sá da Costa, 1993.
21
UNIVERSIDADE DE ÉVORA; DEPARTAMENTO DE PLANEAMENTO BIOFÍSICO E PAISAGÍSTICO –
Contributos para a identificação e caracterização da paisagem em Portugal. Lisboa : Direcção-Geral do
Ordenamento do Território, 2004. Colecção Estudos 10, Volume III, Grupos de Unidades de Paisagem F-J (Beira
Alta a Pinhal do Centro), p.191.
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 45
Património, Conservação, Restauro _ evolução dos conceitos

Hoje em dia, existe a consciência de que a maioria do património construído


vernáculo distribuído pelo país está à beira do desaparecimento. A necessidade da sua
salvaguarda tornou-se deste modo uma preocupação cada vez mais presente na
sociedade contemporânea. Assim sendo, esta segunda parte do trabalho pretende, num
primeiro capítulo, explicar a evolução do conceito de património e da sua salvaguarda
no intuito de contextualizar, num âmbito mais teórico, o surgimento do conceito de
património construído vernáculo. O segundo capítulo, unicamente focado sobre o
património vernáculo rural, tenciona esclarecer quais os factores que intervêm no seu
processo de valorização, de que modo interferem e como é então possível dar uma
nova vida a estas construções.

1. Património, Conservação, Restauro _ evolução dos conceitos

Tradicionalmente, o conceito de património referia-se aos bens materiais


transmitidos dos pais para os filhos, constituindo deste modo a herança deixada à
geração seguinte. Este legado tangível referia-se então a uma propriedade privada cujo
significado e desígnio só dizia respeito aos donos. Ao longo dos séculos, a noção de
património foi-se alargando e começou a abranger testemunhos materiais mas também
imateriais1 de uma cultura com interesse universal, onde a propriedade privada deixou
lugar a uma pertença encarada de maneira cada vez mais colectiva2. A noção de
património foi então evoluindo conforme a necessidade dos povos em salvaguardar
testemunhos representativos do passado. Deste modo, torna-se interessante perceber
como se efectuou essa evolução, quais as razões que levaram ao alargamento do
conceito, em que contexto surgiu o reconhecimento e a valorização do que hoje
chamamos património vernáculo e, finalmente, qual a necessidade da sua salvaguarda?

1
CARVALHO, Paulo – Património e (re)descoberta dos territórios rurais. in Boletim Goiano de Geografia. Jul./Dez.
2003, vol.23, nº2, p. 180-181.
2
DURAND, Jean-Yves – Patrimónios / patrimônos. in “Jornadas sobre a Função Social do Museu”, Montalegre,
2005, p.6.
46 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

Antecedentes históricos

Foi na Antiguidade que começou a surgir uma preocupação, por parte dos romanos,
pelos vestígios materiais deixados pelos gregos. É de referir que este interesse remetia
tanto para bens móveis, que eram coleccionados, como para edifícios antigos. No
entanto, o propósito desta preservação não incidia sobre a protecção de testemunhos
do passado, uma vez que nem sequer lhes era reconhecido valor histórico, mas sim em
resultado de uma vontade de apropriação da cultura grega3.

Neste sentido, foi só aquando do Renascimento, ao dar-se “a consciência de uma


distância cultural em relação ao passado clássico”4, que foram reconhecidos um
valor histórico e artístico aos monumentos da Antiguidade, gerando as primeiras
preocupações relativamente à sua conservação e protecção5. Seguidamente, as
investigações efectuadas relativamente às civilizações do passado suscitaram o
interesse em conhecer a génese da sua própria nação. Deste modo, o património
construído passou a abranger, além dos monumentos da Antiguidade, monumentos
nacionais6, principalmente religiosos e militares, símbolos identitários da nação e da
sua história.

Em Portugal7, esta preocupação em salvaguardar testemunhos materiais referentes


ao passado da nação está claramente explícita no Alvará Régio de 20 de Agosto de
17218, pelo qual o rei D. João V não se limitou a apelar à conservação do património
edificado mas também aos vestígios móveis que pudessem ser encontrados.

Apesar de existir um cuidado de salvaguarda em relação a estes monumentos, foi


necessário esperar até ao século XIX para este se traduzir em preocupações técnicas e
científicas, a partir das quais foram então elaboradas as primeiras teorias de
conservação e restauro.

3
CHOAY, Françoise – A alegoria do património. Lisboa : Edições 70, 2000, p.30-31.
4
SOROMENHO, Miguel; VASSALO E SILVA, Nuno – Salvaguarda do Património / Antecedentes Históricos. Da
Idade Média ao Século XVIII. in Catálogo Dar Futuro ao Passado. Lisboa: S.E.C., I.P.P.A.A., Galeria de Pintura do Rei
D. Luís, 1993 [Catálogo da Exposição], p.22.
5
CHOAY, Françoise – op. cit., p.44.
6
CHOAY, Françoise – op. cit., p.55.
7
Para mais informação sobre o contexto português nesta época, ver SOROMENHO, Miguel; VASSALO E SILVA,
Nuno – op. cit., p.22-32.
8
Alvará disponível em
http://www.ippar.pt/apresentacao/apresenta_legislacao_alvararegio.html, consultado em 29/06/09
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 47
Património, Conservação, Restauro _ evolução dos conceitos

Património monumental

Nos finais do século XVIII gerou-se um clima de instabilidade nos países europeus
causado pelas revoluções e guerras civis mas também pelo impacto da Revolução
Industrial9. Estes factos marcaram o inicio de uma nova era que modificou os modos
de vida da sociedade da época assim como o seu reconhecimento do passado10. A
industrialização causou ainda modificações no modo de construir tradicional que, a
pouco a pouco, foi abandonado a favor das técnicas de construção moderna.
O risco de perder os edifícios representativos das técnicas tradicionais e,
consequentemente, da cultura nacional11, permitiu uma tomada de consciência acerca
da necessidade urgente de salvaguardar estes testemunhos relativos a um passado em
vias de extinção. Foi deste modo que, ao longo do século XIX, se publicaram as
primeiras legislações nacionais sobre os monumentos, se criaram organismos
responsáveis pela salvaguarda do património12 e se elaboraram as primeiras teorias de
conservação e restauro.

A primeira teoria científica do restauro13, apelidada de “restauro arqueológico”, foi


posta em prática em Itália a partir dos escritos do Papa Leão XIII acerca da Basílica de
São Pedro em Roma. Esta visão definia o restauro como a intervenção pela qual eram
excluídos todos os acrescentos até se chegar ao aspecto primitivo do monumento.
De seguida, criou-se um debate entre França e Inglaterra protagonizado pelos
defensores de dois pensamentos opostos: o “restauro estilístico” e a “conservação
estrita” respectivamente. A denominação destas teorias remete claramente para a
ideologia que as define. Deste modo, o “restauro estilístico”, defendido por Viollet-le-
Duc, propunha o restabelecimento duma unidade de estilo, o qual implicava uma

9
Para mais informações sobre este tema, ver:
- CHOAY, Françoise – op. cit., p.118-120;
- AGUIAR, José – Cor e cidade histórica: estudos cromáticos e conservação do património. 1ª ed. Porto: FAUP
Publicações, 2002, p.37.
10
“As tradições são postas em causa pela modernidade mas, no momento em que se anuncia um mundo novo,
(re)descobre-se o valor do que se perde.” in AGUIAR, José – op. cit., p.38.
11
“Sobre o solo instável de uma sociedade em curso de institucionalização, eles [os monumentos históricos] parecem
recordar aos seus membros a glória de um génio ameaçado.” in CHOAY, Françoise – op. cit., p.182.
12
LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel B. – Património Arquitectónico e Arqueológico: Cartas, Recomendações e
Convenções Internacionais. Lisboa: Livros Horizonte, 2004, p.14-15.
13
Para mais informações sobre as teorias do século XIX e do inicio do século XX, ver:
- CHOAY, Françoise – op. cit., capítulo IV;
- AGUIAR, José – op. cit., capítulo 2;
- SILVA, Armando Coelho Ferreira da – A(s) Ciência(s) do Património: Notas para a fundamentação e
enquadramento da conservação e restauro. in Revista da Faculdade de Letras, Ciências e Técnicas do Património.
Porto, FLUP, 2002. I Série vol. 1, p. 211-220.
48 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

reconstituição integral dos monumentos, enquanto John Ruskin, por seu lado, apelava
à “conservação estrita”.

No final do século XIX, em Itália, foram ainda desenvolvidas duas teorias


positivistas. A primeira, formulada por Camillo Boito, decorre de uma conciliação
entre as doutrinas de Viollet-le-Duc e de Ruskin. O autor salienta deste modo a
complementaridade que existe entre o processo de conservação e o de restauro. As
propostas apresentadas por Boito definem o conceito de “restauro moderno”, uma vez
que estas virão a ser retomadas na elaboração da teoria moderna do restauro. A
segunda, defendida por Luca Beltrami, é chamada de “restauro histórico”, uma vez
que possui uma componente teórica rigorosa baseada no estudo de documentos de
arquivo, textos literários e representações gráficas.

Já no início do século XX, o trabalho do austríaco Alois Riegl revelou ser uma
contribuição da maior importância uma vez que este interpreta o processo de
conservação dos monumentos de acordo com uma teoria de valores atribuídos aos
monumentos históricos.

Finalmente, Gustavo Giovannoni estabelece uma doutrina que integra, pela


primeira vez, a conservação e o restauro do património urbano. Este “restauro
científico” propõe a integração dos fragmentos urbanos antigos num plano de
organização territorial no intuito de legitimar o valor de uso; confere importância ao
contexto da envolvente do monumento histórico; e, retoma os processos de
conservação e restauro estabelecidos por Boito no âmbito dos conjuntos urbanos
antigos.

Ainda é de salientar que estas teorias eram aplicadas a num âmbito exclusivamente
nacional, uma vez que a gestão dos monumentos históricos e da sua respectiva
salvaguarda era assunto de cada país14. No caso de Portugal15, apesar de existirem
esforços de inventariação e classificação dos monumentos nacionais desde meados do
século XIX, foi só na transição para o século XX, que o país assumiu instrumentos
legais eficazes. A Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN),
criada a 30 de Abril de 1929 no seio do então denominado Ministério do Comércio e

14
ALHO, Carlos; CABRITA, António – Cartas e convenções internacionais sobre o património arquitectónico
europeu. in Sociedade e Território nº6. Porto: Edições Afrontamento, Janeiro 1988, p.131.
15
Para mais informações sobre o contexto português nesta época, ver: CUSTÓDIO, Jorge – Salvaguarda do
Património / Antecedentes Históricos. De Alexandre Herculano à Carta de Veneza. in Catálogo Dar Futuro ao
Passado. Lisboa: S.E.C., I.P.P.A.A., Galeria de Pintura do Rei D. Luís, 1993 [Catálogo da Exposição], p.33-71.
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 49
Património, Conservação, Restauro _ evolução dos conceitos

Comunicações, foi o organismo com maior importância no âmbito do restauro de


monumentos e na elaboração de registos para cada intervenção.

No sentido de tornar a discussão sobre a conservação dos monumentos num


problema universal, o Serviço Internacional de Museus organizou, em 1931, a
Conferência Internacional de Atenas, na qual surgiu pela primeira vez o conceito de
“património internacional”16. A Carta de Atenas sobre o restauro de monumentos,
fruto dessa reunião, estabeleceu alguns princípios fundamentais inerentes ao restauro.
É de salientar que alguns dos conceitos enunciados por Boito aparecem repetidos nesta
carta, uma vez que o seu discípulo Giovannoni estava presente aquando da sua
redacção. Deste modo, as principais conclusões17 são:
- A tendência para o abandono das reconstituições integrais;
- A instituição da manutenção como meio de conservação;
- O respeito pelo valor histórico e artístico do monumento não eliminando estilos
de nenhuma época;
- A afectação de usos para assegurar a longevidade;
- A primazia do poder do Estado sobre os proprietários privados;
- A extensão da protecção à envolvente dos monumentos;
- A aceitação da anastilose e do uso de técnicas e materiais modernos;
- A criação de registos, por parte de cada Estado, sobre os monumentos históricos
nacionais.

Estas preocupações, então discutidas a nível internacional, foram entretanto


adiadas pelo começo da Segunda Guerra Mundial. Com o rebentar deste conflito
finalizou-se igualmente uma era, qualificada por Françoise Choay de “consagração do
monumento histórico”18, uma vez que a partir dos anos sessenta o património
construído deixou de ser sinónimo de monumento histórico19.

16
ALHO, Carlos; CABRITA, António – op. cit., p.131.
17
Ver “Carta de Atenas sobre o restauro de monumentos” in LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel B. – op. cit., p.43-47.
18
CHOAY, Françoise – op. cit., capítulo IV.
19
Ibid., p.11-12.
50 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

Património Cultural

Após a segunda Guerra Mundial a noção de monumento modificou-se


substancialmente, “o objecto, as formas e a natureza do culto [do monumento
histórico] transformaram-se: antes de mais, sob o efeito de uma expansão
generalizada das suas zonas de difusão, do seu corpus e do seu público; depois, mais
recentemente, pela sua associação com a indústria cultural”20. O que se pretende
dizer com isto é que o conceito de património a salvaguardar alargou-se, tanto a nível
ecuménico, como tipológico e ainda cronológico, uma vez que passou a ter um
alcance universal, cujo objecto deixou de se reduzir aos monumentos históricos e cuja
abrangência temporal deixou de se limitar à época pré-industrial21.
Hoje em dia fala-se de património cultural22 que, além de remeter para os
monumentos históricos23, engloba novas categorias de bens como, por exemplo, os
centros históricos, o património industrial, a arquitectura rural, os jardins históricos, as
paisagens culturais, o património vernáculo, etc. No intuito de proporcionar uma
colaboração entre as nações no âmbito da salvaguarda deste património, foram criados
organismos internacionais, tais como a UNESCO, o ICOM, o ICCROM, o ICOMOS e
ainda, a nível europeu, o Conselho da Europa24. Estas organizações promovem, ainda
hoje, discussões sobre o património cultural, a partir das quais são elaboradas
recomendações, cartas, declarações, apelos, que pretendem servir de base à prática da
salvaguarda patrimonial.

Pode-se afirmar que este processo de alargamento do conceito de património foi


iniciado com a Carta de Veneza. De facto, foi no âmbito da discussão sobre a
conservação e o restauro que surgiu a necessidade da elaboração de um novo
documento que viesse rever os princípios enunciados na Carta de Atenas de 1931,
assim como proceder a um alargamento do seu objecto. Assim, realizou-se, de 25 a 31

20
CHOAY, Françoise – op. cit., p.182.
21
Ibid., p.183-184.
22
“E é esse peso, cultural, que está cada vez mais a apropriar-se do termo património, de tal forma que hoje já nem é
necessário falar de património cultural, porque falar de património já é suficiente. A partir daí, podemos falar de
património arquitectónico, genético, ecológico, paisagístico e de outros que se vão acrescentando ao termo inicial.”
TORRES Cláudio – Qualquer intervenção é, antes de mais, política. in Jornal de Animação da Rede Portuguesa
Leader +, “Pessoas e Lugares”, II série, nº 45, 2007, p.4-5.
23
“Enquanto, no antecedente, a conservação e o restauro do património cultural se confinou, quase exclusivamente,
aos “padrões imorredouros das glórias pátrias”, hoje em dia, essa preocupação alarga-se, naturalmente, aos
monumentos relativos à compreensão histórica de uma sociedade pluralista, quer se trate de uma modesta casa rural,
de arquitectura elementar e anónima, testemunha do passado campesino vernáculo, ou de um estabelecimento fabril,
dos inícios da Era industrial.” JORGE, Virgolino Ferreira – Património e Identidade Nacional. in Revista Engenharia
Civil da Universidade do Minho (CEC), n.º 9, Setembro 2000, p.7.
24
LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel B. – op. cit., p.18.
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 51
Património, Conservação, Restauro _ evolução dos conceitos

de Maio de 1964, o II Congresso de Arquitectos e Técnicos de Monumentos


Históricos, do qual resultou a Carta de Veneza sobre a conservação e o restauro de
monumentos e sítios25. Este documento definiu, num primeiro ponto, um novo
conceito de monumento histórico:

Artigo 1.º _ “A noção de monumento histórico engloba a criação arquitectónica


isolada, bem como o sítio, rural ou urbano, que constitua testemunho
de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um
acontecimento histórico. Esta noção aplica-se não só às grandes
criações, mas também às obras modestas do passado que adquiriram,
com a passagem do tempo, um significado cultural”.

De seguida, elaborou princípios relativos à conservação, ao restauro, aos sítios


monumentais, às escavações e à documentação, dos quais podemos salientar:
- A necessidade duma manutenção regular e duma atribuição funcional socialmente
útil (art.º 4.º e 5.º);
- A importância da conservação da envolvente (art.º 6.º);
- A preservação dos valores estéticos e históricos com base no respeito pelos
materiais originais e por documentos autênticos (art.º 9.º);
- A necessidade do processo de restauro ser precedido de um estudo arqueológico e
histórico (art.º 9.º);
- A aprovação do uso de novos materiais e técnicas modernas desde que a sua
eficácia tenha sido provada (art.º 10.º) e que estes se diferenciem dos originais
(art.º 12.º e 15.º);
- O abandono da unidade de estilo a favor da valorização dos acrescentos de épocas
posteriores, desde que estes tenham interesse histórico, arqueológico ou artístico
(art.º 11.º).

Este documento tornou-se numa referência doutrinária importantíssima para a


disciplina de conservação e restauro do património e, apesar de a sua actualidade ter
sido várias vezes discutida derivado ao constante alargamento do conceito de
património, a Carta de Veneza serve ainda hoje de base teórica e técnica aquando das
intervenções. No entanto, devido às recentes concepções do património, esta aparece

25
Para mais informações sobre a Carta de Veneza, ver:
- “Carta de Veneza sobre a Conservação e Restauro de Monumentos e Sítios” in LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel
B. – op. cit., p.103-107.
- NETO, Maria João Baptista – A propósito da Carta de Veneza (1964-2004). Um olhar sobre o património
arquitectónico nos últimos cinquenta anos. in Estudos/Património, n.º 9. Lisboa: Publicação do IPPAR, 2006, p.91-99.
52 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

complementada por outras cartas que abordam mais especificamente estas novas
categorias do património cultural, como aliás se verá mais à frente, ao estudar a
salvaguarda do património construído vernáculo. Antes de se cingir ao estudo desse
património, parece ainda necessário referir a recente elaboração de uma carta sobre
conservação e restauro que toma em consideração a tomada de consciência que
entretanto se deu sobre a diversidade patrimonial.

A Carta de Cracóvia 200026 reúne um conjunto de princípios sobre a conservação e


o restauro do património construído, a maioria dos quais retomados da Carta de
Veneza embora apareçam aqui aprofundados e actualizados, conforme as novas
concepções do património.
Em primeiro lugar, é de notar o aprofundamento do conceito de conservação uma
vez que é feita uma definição dos diferentes métodos de intervenção neste âmbito tais
como: o controlo ambiental, a manutenção, a reparação, o restauro, a renovação e a
reabilitação.
De seguida, salientam-se os diferentes tipos de património construído – património
arqueológico; monumentos e edifícios com valor histórico; decoração arquitectónica,
esculturas e elementos artísticos; cidades e aldeias históricas; e, paisagens culturais
(resultado da relação entre o homem e o meio ambiente) – estipulando princípios para
cada um deles.
Ainda é de realçar a insistência, ao longo do documento, sobre a necessidade de
existir um processo de documentação que acompanhe qualquer tipo de intervenção. O
facto das técnicas de conservação aparecerem vinculadas à investigação
pluridisciplinar sobre as tecnologias e os materiais apresenta-se fundamental, uma vez
que permite o respeito pela função original e garante a compatibilidade com os
materiais e estruturas originais, além de ter em conta uma possível reversibilidade da
intervenção.
Finalmente, numa parte destinada à gestão do património cultural, é acentuada a
necessidade de participação dos cidadãos no processo de identificação e gestão do seu
património, além de se alertar sobre as dificuldades que implica um processo de
gestão: controlo das dinâmicas de mudança, conjugação da gestão patrimonial com os
processos de planeamento económico das comunidades e, identificação dos riscos
como por exemplo o turismo cultural que, apesar de trazer benefícios económicos,
constituí uma ameaça real para o património.

26
Ver “Carta de Cracóvia 2000” in LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel B. – op. cit., p.289-295.
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 53
Património, Conservação, Restauro _ evolução dos conceitos

Antes de concluir este estudo sobre a evolução do conceito de património, parece


pertinente questionar-se sobre as causas desta crescente expansão que se foi dando a
partir da década de sessenta do século XX. Segundo Armindo dos Santos, este
processo é uma resposta à globalização justificada pela procura de marcos identitários:

“A necessidade de conservar na memória colectiva modos de vida existentes e


de afirmar concomitantemente particularidades culturais, face à uniformização
cultural universal, era praticamente nula há cinquenta anos atrás. A mudança
acontecia muito lentamente e os indivíduos não a sentindo tinham tempo de
adaptar-se às alterações – o tempo distante estava sempre perto. O problema
da uniformização cultural não se colocava. Inversamente, face às mudanças e
mutações sociais actuais, os testemunhos patrimoniais funcionam como
referências temporais que explicam o desenrolar da história, rememoram as
experiências passadas, dão sentido à impermanência e à vida (…).”27

As mudanças ocorridas ao longo da segunda metade do século XX são outra causa


acima esboçada. De facto, a rapidez com que a sociedade se foi modificando e a
quantidade de mutações e de incidentes28 que ocorreram num tempo muito reduzido,
fizeram com que o presente pareça tão diferente dum passado relativamente próximo.
Foi deste modo que passou a existir uma preocupação por parte das sociedades em
salvaguardar testemunhos que ainda há pouco eram o reflexo do seu modo de vida ou
que remetem para a memória de uma identidade cultural29, como é o caso da
arquitectura vernácula.

Este capítulo, referente à evolução do conceito de património e da sua salvaguarda,


foi elaborado no sentido de perceber em que contexto e como surgiu a noção de
património construído vernáculo existente hoje em dia. Apesar de se poder concluir

27
SANTOS (dos), Armindo – Património? Que Património? O Património etnológico. in Trabalhos de Antropologia e
Etnologia, Porto: Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, 2005, vol.45 (1-2), p.38.
28
“As acelerações bruscas e catástrofes ocorridas no século XX (das guerras mundiais aos atentados em larga escala,
dos riscos ambientais e biológicos às epidemias emergentes, das mudanças tecnológicas e económicas ao
adensamento do fosso entre a riqueza e a miséria) fazem com que o tempo de uma única geração seja suficiente para
se desenvolver uma consciência patrimonial, tal é a sensação de evolução progressista e a experiência do risco de se
perder algo de fundamental.” in PEIXOTO, Paulo – O desaparecimento do mundo rural. Comunicação apresentada no
VIII Congresso Luso-afro-brasileiro de ciências sociais: A questão social do novo milénio. Painel 11 “Universo rural:
debates e interpretações”. Coimbra, 16-18 de Setembro de 2004, p.13.
29
“Falar de património é falar de identidades.” TORRICO, Juan Agudo – Patrimónios e discursos identitários. in
Patrimónios e Identidades: ficções contemporâneas. Oeiras: Celta Ed., 2006, p.21-34.
54 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

que o processo de reconhecimento desse património vai de encontro com a


necessidade de procura de identidade, esta não é a única razão que desencadeou o seu
processo de salvaguarda. Deste modo, o próximo capítulo cingir-se-á ao património
vernáculo rural no sentido de explicar quais são os outros factores que intervêm no
processo de valorização do património construído vernáculo, quais são as razões desta
intromissão e, face a essas aparentes condicionantes, como é então possível conservar
estes testemunhos.
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 55
O património arquitectónico vernáculo _ do abandono à reutilização

2. O património arquitectónico vernáculo _ do abandono à reutilização

“E a Europa, cada vez mais distante e nostálgica da vida rural, acaba de


descobrir o valor patrimonial da arquitectura tradicional, camponesa, fruto da
experiência de gerações, por vezes, com grande qualidade de habitabilidade,
tão distribuída e variada pelos nossos territórios e tão ligada à paisagem, aos
homens, aos seus trabalhos agrícolas e aos seus hábitos. Os seus valores
vernaculares e as suas qualidades bem poderiam ser mais aproveitadas, se ela
estivesse mais estudada e valorizada.”30

O objecto em estudo, a arquitectura vernácula rural, apresenta-se com uma certa


complexidade uma vez que passou por várias fases, desde o desprestígio, por ser
considerada subdesenvolvida e de má qualidade31, até ao seu reconhecimento, hoje em
dia, como património cultural representativo de valores dignos de protecção e
salvaguarda. Este capítulo pretende, portanto, esclarecer os acontecimentos que
levaram ao reconhecimento do património construído vernáculo, explicar em que
ponto está o processo de valorização e descobrir os motivos que tornam a sua
reabilitação indispensável.

O desprestígio das construções vernáculas

Segundo António Manuel Castelnou32, foi a partir do Renascimento que as


construções vernáculas começaram a ser menosprezadas, facto que se intensificou
mais adiante com a industrialização. No século XX, a importância conferida à
arquitectura vernácula rural parece estar directamente ligada com as mutações que
ocorreram nos espaços rurais. De facto, após a Segunda Guerra Mundial os meios

30
ALMEIDA, C.A. Ferreira de – Pátrimónio. Riegl e hoje. in Revista da Faculdade de Letras, História, II Série vol.10.
Porto, FLUP, 1993, p.410.
31
“(…) la arquitectura vernácula ha ido desapareciendo al ser abandonada o alterada por sistemas constructivos in
compatibles. Esto se debe, en gran medida, al desprestigio que ha sufrido por ser considerada subdesarrollada y de
mala calidad. Sin embargo, como lo han demostrado diversas investigaciones, los problemas de calidad y por tanto de
conservación que presentan las estructuras vernáculas, no son resultado de las características intrínsecas de los
materiales que las constituyen, sino que se deben fundamentalmente a la pérdida de¡ interés, sabiduría y destreza de
los constructores tradicionales.” in BACA, Luis Fernando Guerrero – La Salvaguardia de la Arquitectura Vernácula.
in XXII Reunión Nacional de ASINEA, México, Maio 2003, p.67-68.
32
CASTELNOU, António Manuel Nunes – Sentindo o espaço arquitetônico. in Desenvolvimento e Meio Ambiente,
n.º 7, jan./jun. Editora UFPR, 2003, p.145-154.
56 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

rurais sofreram profundas transformações que, ainda hoje, ameaçam de


desaparecimento o património cultural rural e consequentemente as construções
vernáculas. A partir desta constatação parece necessário perceber quais os perigos que
pairam sobre os espaços rurais, as suas causas, assim como as suas consequências
sobre as construções vernáculas.

As mutações que ocorreram nos espaços rurais fizeram com que estes sofram ainda
hoje de vários desequilíbrios, tanto de natureza demográfica como económica, e ainda
ecológica33. Do ponto de vista demográfico, pode-se dizer que estes meios apresentam
densidades populacionais reduzidas assim como um acentuado envelhecimento das
populações. Estes sinais são reflexo do êxodo rural, processo que esvaziou os campos
a favor das cidades, mas também da emigração cujo contingente é maioritariamente
constituído por população rural. Este processo de despovoamento das zonas rurais foi
provocado por uma crescente instabilidade económica que começou aquando das
mutações técnicas que afectaram a agricultura ou seja, com a aplicação das políticas
produtivistas34.
Por outro lado, a falta de população foi piorando cada vez mais a situação
económica destes meios. A mecanização da agricultura e a implantação de indústrias
também modificaram substancialmente as antigas paisagens agrárias, gerando
problemas de âmbito ecológico, além de participarem no desaparecimento dos saberes
e misteres tradicionais a favor de uma uniformização de técnicas ou seja, da
globalização. Todos estes problemas tornaram-se causas e consequências uns dos
outros, convertendo os espaços rurais em locais cada vez mais obsoletos,
marginalizados e cada vez menos atractivos.

A valorização da arquitectura vernácula, enquanto construções representativas de


técnicas e saberes tradicionais, mas também como resultado da relação harmoniosa
entre o homem e o meio ambiente, foi afectada por todos estes factores. A casa rural,
construída em relação à vida agrícola levada pelos seus habitantes, perdeu o seu
significado e a sua funcionalidade uma vez que este modo de vida foi profundamente
modificado.

33
Sobre este assunto, ver:
- PEIXOTO, Paulo – op. cit., p.13.
- SANTOS (dos), Armindo – op. cit., p.38.
- CARVALHO, Paulo – op. cit.
34
CARVALHO, Paulo – op. cit., p. 175.
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 57
O património arquitectónico vernáculo _ do abandono à reutilização

Sendo assim, as casas que não estão ao abandono aparecem alteradas,


acrescentadas, adaptadas a novas necessidades sem respeito pelas suas características
originais. A falta de artesãos35 com sabedoria suficiente para trabalhar com os
materiais tradicionais e a substituição destes últimos por elementos pré-fabricados
permitem a inclusão de elementos dissonantes aquando dessas modificações36.
Retomando as palavras de Armindo dos Santos,

“assiste-se à descaracterização do habitat antigo português que, como se sabe,


era na sua grande maioria de cor acastanhada – segundo se tratava de xisto ou
barro queimados pelo sol – ou mais ou menos acinzentada no caso do granito –
e se tornou homogeneamente branco, fazendo desaparecer a oposição entre as
regiões do granito e do xisto e as regiões do barro. A cor branca das casas
invadindo primeiro o sul de Portugal atinge hoje todo o norte, como se sobre o
país se tivesse abatido um imenso manto branco. Da paisagem habitacional,
contrastadamente atlântica e mediterrânea, reflectindo culturas opostas,
passou-se a uma paisagem indiferenciada e mediterrânica.”37

Contribuindo ainda para este processo de descaracterização, existe uma vontade em


introduzir, na aldeia, conceitos citadinos38, entendidos nos meios rurais como
sinónimos de modernidade, embora na realidade apareçam desenquadrados quando
incluídos na paisagem rural. As casas ditas “de emigrantes”, apesar de construídas à
margem dos núcleos antigos, participam igualmente na desfiguração paisagística uma
vez que pretendem diferenciar-se, salientar-se umas das outras, tornando a paisagem
num mosaico que traduz desordem e incoerência.

Portanto, o estado avançado de ruína apresentado por algumas construções


abandonadas, as profundas alterações efectuadas – a maior parte das vezes
irreversíveis – ou ainda a construção de edifícios sem relação com o meio envolvente,
que descaracterizam a paisagem, reflectem claramente a negligência para com as

35
“Pouco a pouco, perdemos os antigos saberes construtivos e, ao mesmo tempo que perdemos esse conhecimento,
falta-nos a comprovação experimental das teses que defendem a convivência das velhas com as novas tecnologias.” in
AGUIAR, José – Dificuldades na Conservação e Reabilitação do Património Urbano Português. in Sociedade e
Território n.º 21. Porto: Edições Afrontamento, Março de 1995, p.33.
36
Sobre este assunto, ver:
- PEIXOTO, Paulo – op. cit.
- CARVALHO, Paulo – op. cit., p. 174-196.
- SANTOS (dos), Armindo – op. cit., p.44-45.
37
SANTOS (dos), Armindo – op. cit., p.45.
38
Ibid., p.44-45.
58 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

construções vernáculas que por consequência tendem a desaparecer. Ainda é de


salientar que este panorama aparece claramente exposto no Inquérito à Arquitectura
Popular, obra de relevado interesse que foi executada ainda a tempo de conter alguns
exemplares genuínos desta arquitectura, antes de se perderem para sempre.

Frente a estas ameaças, gerou-se uma preocupação crescente acerca do património


arquitectónico rural que se reflectiu, a nível europeu, na elaboração de textos cujo
propósito pretendia sensibilizar os estados para este problema assim como propor um
conjunto de recomendações, conducentes à sua resolução.

O Apelo de Granada sobre a Arquitectura Rural e o Ordenamento do Território39


promulgado em 1977 pelo Conselho da Europa foi o primeiro documento a tratar do
problema da salvaguarda da «arquitectura rural e a sua paisagem», em particular. Este
texto identifica o desenvolvimento industrial da agricultura, o êxodo rural e a
promoção desproporcionada do turismo como principais causas do desaparecimento
da cultura local.
Apesar destes perigos, destaca-se a seguinte constatação: “(…) o espaço rural
responde às necessidades de melhoria da qualidade de vida, cada vez mais
necessária, quer para os que desejam aí residir em permanência, quer para aqueles
que apenas o desejam fruir em tempo de lazer.”40. Neste sentido, são apontados
princípios que permitem tanto o desenvolvimento global das zonas rurais como a
salvaguarda da arquitectura rural e, consequentemente, dos seus valores culturais. O
conceito de conservação integrada, que remete para a complementaridade entre as
políticas de ordenamento do território, de desenvolvimento sócio-económico, de
conservação do património e da ecologia, aparece como condição indispensável para
atingir este objectivo. O empenho das comunidades também se apresenta fundamental
neste processo onde o Poder Local é considerado responsável tanto pelo sucesso da
participação das populações como pela aplicação das políticas de conservação.

Em 1989, o Conselho da Europa preocupou-se novamente com este assunto ao


elaborar a Recomendação n.º R (89) 6 sobre a protecção e a valorização do património

39
Ver “Apelo de Granada sobre a Arquitectura Rural e o Ordenamento do Território” in LOPES, Flávio, CORREIA,
Miguel B. – op. cit., p.189-193.
40
“Apelo de Granada sobre a Arquitectura Rural e o Ordenamento do Território” in LOPES, Flávio, CORREIA,
Miguel B. – op. cit., p.191.
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 59
O património arquitectónico vernáculo _ do abandono à reutilização

arquitectónico rural41, na qual salienta “(…) que o reconhecimento, quer do


património construído, quer do património natural impõe-se de forma imperativa aos
Estados membros e às instituições europeias na definição das suas políticas agrícolas
e ambientais.”42. Deste modo, foram definidas linhas orientadoras para responder a
quatro objectivos primordiais:

- Salvaguardar a memória colectiva da Europa rural através do desenvolvimento


de instrumentos de pesquisa e de identificação do seu património arquitectónico,
como por exemplo com a elaboração de inventários que relacionem as
características arquitectónicas e artísticas com os factores geográficos, históricos,
económicos, sociais e etnológicos;

- Integrar a salvaguarda do património construído no processo de planeamento


económico, de ordenamento do território e de protecção do ambiente, elaborando
estratégias conjugadas de salvaguarda e de valorização do património construído
e natural, encorajando a reutilização das construções existentes e aplicando, nos
edifícios protegidos, os princípios da Carta de Veneza;

- Dinamizar a valorização do património como factor privilegiado de


desenvolvimento local incentivando, por exemplo, os investimentos públicos para
a reabilitação de edifícios, para a construção de equipamentos e infra-estruturas, e
para o apoio a actividades económicas tais como a modernização das explorações
agrícolas, o desenvolvimento de empresas e a criação de habitações turísticas
rurais e de empreendimentos turísticos;

- Promover o respeito e o conhecimento do património rural ao nível europeu.

Embora redigidos com mais de uma década de diferença, estes dois textos insistem
sobre os mesmos princípios, dos quais se pode salientar a recomendação sobre a
necessidade de conciliar o processo de salvaguarda patrimonial com as políticas de
ordenamento do território, de desenvolvimento económico e de protecção ambiental.
Com o intuito de valorizar e proteger o património construído vernáculo, estes
documentos ajudaram principalmente à definição de novas estratégias para o
desenvolvimento rural.

41
Ver “Recomendação n.º R (89) 6 sobre a protecção e a valorização do património arquitectónico rural” in LOPES,
Flávio, CORREIA, Miguel B. – op. cit., p.219-222.
42
Ibid., p.219.
60 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

No final dos anos oitenta do século XX, as preocupações produtivistas começaram


a ser postas de parte para dar lugar a uma abordagem que reconhece mais
complexidade, mais potencial e mais diversidade funcional aos espaços rurais. Esta
recente concepção do mundo rural provém das novas filosofias de ordenamento do
território que, em conjunto com as preocupações ambientalistas e com os processos de
salvaguarda patrimonial, têm como objectivo valorizar a multifuncionalidade dos
espaços rurais e usar as suas potencialidades para um desenvolvimento sustentável43.

A valorização do património arquitectónico vernáculo

Como já foi dito, a valorização do património vernáculo aparece directamente


ligada à visão do espaço rural. Portanto, se a arquitectura vernácula foi prejudicada na
época em que o mundo rural estava em declínio, hoje em dia, com a revalorização
destes espaços, o património construído rural também é reconhecido e ganha cada vez
mais importância. Sendo assim, os seguintes parágrafos pretendem explicar que tipo
de relação existe entre o desenvolvimento rural e a valorização e protecção do
património rural.

"O espaço rural passou de espaço de onde se vem para espaço para onde se
vai, de espaço de repulsão para espaço de atracção, de espaço
predominantemente agrícola, para espaço predominantemente simbólico.”44

Como fruto das novas políticas de ordenamento do território iniciou-se, na última


década do século XX, um processo de retorno ao campo por parte de alguma
população citadina. Por um lado, esta atracção pelos espaços rurais encontra
explicação na recente função recreativa e turística que estes proporcionam45. Com o
intuito de fugir ao turismo de massas que acontece nos litorais portugueses, foi-se

43
Sobre este assunto, ver:
- CARVALHO, Paulo; CORREIA, Juliana – Turismo, património(s) e desenvolvimento rural: a percepção local da
mudança. in Colóquio Ibérico de Estudos Rurais, Coimbra, 23-25 de Outubro de 2008.
- CARVALHO, Paulo – op. cit., p. 174-196.
44
Afonso de BARROS cit. in ALVES, João Emílio – Património rural e desenvolvimento: do discurso institucional às
dinâmicas locais. O programa Revitalização de aldeias e vilas históricas da região Alentejo. Dissertação de Mestrado
em Cidade, Território e Requalificação do ISCTE, Departamento de Sociologia. Lisboa, 2002, p.12.
45
ALVES, João Emílio – op. cit., p.12.
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 61
O património arquitectónico vernáculo _ do abandono à reutilização

desenvolvendo um novo tipo de lazer, o turismo em espaço rural, que proporciona a


qualidade e a diversidade procuradas pelos turistas46.
Por outro lado, existe uma busca de novos ideais e valores, no sentido de fuga à
rotina citadina, que leva à visão destes espaços como lugares representativos do ideal
de vida procurado47. Os ritmos de vida mais calmos, o constante contacto com a
natureza e a ideia de estar mais próximo dum modo de vida tradicional conduzem, em
certos casos, à eleição do espaço rural para a fixação de residências principais48.
Em ambos os casos, numa visão turística ou residencial, a qualidade aparece
directamente ligada à presença dum património rural49 – construído, natural ou ainda
intangível –, tornando a sua protecção e conservação imprescindíveis para o sucesso
do processo de revalorização dos espaços rurais. Apesar de a qualidade ser um critério
essencial à salvaguarda de um certo património, esta não é a única razão que justifica a
recente valorização do património vernáculo rural.

As constantes mutações do mundo moderno alteraram os padrões de vida das


sociedades, como aliás demonstra a crescente mobilidade populacional50. Apesar desta
facilidade de movimentação permitir deslocações de lazer, cada vez mais frequentes e
numerosas, também provoca uma certa instabilidade e insegurança que levou as
pessoas a sentir cada vez mais a necessidade de procurar referências estáveis que as
ajude a superar aquilo a que se pode chamar de crise identitária. Esta necessidade das
pessoas em procurar uma identidade cultural parece encontrar solução num regresso
aos espaços rurais, lugares vistos como redutos dos modos de vida tradicionais e das

46
“O turismo no espaço rural, nas suas múltiplas modalidades, perfila-se como um dos sectores com maior potencial
para assegurar a multifuncionalidade de alguns dos espaços rurais, contribuindo para o seu desenvolvimento
sustentável. A busca de destinos turísticos mais individualizados, onde se possam desfrutar uma melhor qualidade.”
FONSECA, Fernando, P. ; RAMOS, Rui A.R. – O turismo no espaço rural como eixo estratégico de desenvolvimento
sustentável: o caso de Almeida. in 13º Congresso da APDR “Recriar e Valorizar o Território”, Universidade dos
Açores, Campus de Angra do Heroísmo, 05-07 de Junho de 2007.
47
ALVES, João Emílio – op. cit., p.12.
48
Sobre este assunto, ver:
- CAVACO, Carminda – “Habitares” dos espaços rurais. in Revista da Faculdade de Letras, Geografia. Porto, FLUP,
2003. I Série vol. XIX, p. 47-64.
- PEIXOTO, Paulo – op. cit.
49
“Património é o que tem qualidade para a vida cultural e física do homem e para a existência e afirmação das
diferentes comunidades, desde a vicinal e paroquial, à concelhia, à regional, até à nacional e internacional. É neste
duplo aspecto, isto é, o de «Património como valor de identidade e de memória» de uma comunidade e, sobretudo, o
de «Património como qualidade de vida» que ele será cada mais falado e se lhe dará, futuramente, maior
importância.” in ALMEIDA, C.A. Ferreira de – op. cit., p.407-408.
50
Acerca da mobilidade ver CAVACO, Carminda – op. cit., p. 49-50.
62 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

práticas e saberes ancestrais. Mais uma vez, é o património rural presente nestes
espaços que funciona como símbolo do passado, da história e da tradição51.

“A salvaguarda e a valorização do património são condição necessária para


uma paisagem mais equilibrada e atractiva, qualidades que reforçam a sua
identidade. Preservar o património pode constituir um recurso importante para
a afirmação do território e para o reforço da auto-estima das populações,
enfim, para o desenvolvimento local. Um território com qualidade e com
identidade, portanto, com relevância geográfica, é potencialmente atractivo
(…)” 52

A atracção referida acima proporciona ainda a vinda e a fixação de população que,


além de regular os níveis demográficos, se revela numa fonte de mão-de-obra
indispensável à criação de novas actividades e portanto ao crescimento económico53.

No quadro das políticas de desenvolvimento rural, é possível concluir que a


valorização e a protecção do património não aparecem apenas como consequências
mas também como meios. O património desempenha um papel fundamental na
afirmação dos valores culturais e ambientais destes espaços54, facto que torna a sua
protecção e conservação indispensáveis. Apesar de ter consciência que o património
rural engloba diversas manifestações tais como a arquitectura, as festividades, os
modos de fazer, os ofícios tradicionais e os idiomas locais55, parece necessário tornar a
salientar que, no âmbito deste trabalho, este conceito aparece aqui restringido ao de
património construído vernáculo. Neste sentido, revela-se importante identificar os
critérios que definem o processo de conservação, no sentido de salvaguardar os
valores inerentes ao património construído vernáculo, ou seja, a raridade, a
autenticidade e a identidade56.

51
“A revalorização do património e o encanto que ele produz inserem-se numa tendência geral que consiste na
necessidade sentida hoje pelas pessoas de recordar, de comemorar, própria de sociedades que passam por crises de
identidade. A busca de identidade leva a revalorização do significado do passado e das suas expressões
temporalizadas no espaço. Tal preocupação aparece ligada ao interesse pela história e pela tradição que, por vezes,
tem a ver com a ambivalência do presente e a incerteza quanto ao futuro. A crise de identidade ocorre numa época
marcada pela grande ambiguidade do existente e pelo risco que o acompanha. Esta situação própria da modernidade
tardia faz valorizar produtos históricos tornados objectos de consumo.” FERNANDES, António T. – Poder Local e
Turismo Social. in Revista da Faculdade de Letras, Sociologia, I Série vol. 12. Porto, FLUP, 2002, p.11-12.
52
CARVALHO, Paulo – op. cit., p. 178.
53
CAVACO, Carminda – op. cit., p. 50.
54
CARVALHO, Paulo – op. cit., p. 183.
55
DEWAILLY cit. in CARVALHO, Paulo – op. cit., p. 181.
56
CARVALHO, Paulo – op. cit., p. 181.
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 63
O património arquitectónico vernáculo _ do abandono à reutilização

Consciente do súbito interesse pelo património rural assim como da consequente


necessidade de conservação, o ICOMOS elaborou a Carta sobre o património
construído vernáculo57 em 1999. Este documento apresenta-se como complemento à
Carta de Veneza, acrescentando princípios próprios à conservação e protecção do
património construído vernáculo. Começando por definir as características das
construções vernáculas ou tradicionais, conclui-se rapidamente que a protecção deste
património depende em grande parte da sua utilização e manutenção, mas igualmente
da participação das comunidades locais. Além desses requisitos, ainda são elaborados
princípios acerca da conservação deste património, tais como:
- Respeitar o valor cultural e o carácter tradicional das construções vernáculas;
- Conservar preferencialmente conjuntos e povoados em vez de edifícios isolados;
- Ter em conta a relação existente entre o património construído vernáculo e a
paisagem cultural;
- Promover a continuidade dos métodos de construção tradicionais, pela educação e
pela formação;
- Garantir a coerência de expressão, aspecto, forma e textura com o edifício
original, ao integrar novos materiais;
- Respeitar a integridade, o carácter e a forma das construções vernáculas aquando
da sua adaptação e reutilização;
- Considerar todas as partes duma construção vernácula independentemente de a
sua construção não corresponder a uma única época.

Apesar de estes tópicos permitirem uma conservação respeitadora dos valores da


arquitectura vernácula, a valorização desta passa ainda pela sua reutilização. Torna-se
portanto primordial repensar certos espaços em função de novos usos, atribuindo-lhes
novas funções que lhe conferem consequentemente uma nova vida58. É com este
propósito que o turismo tem surgido, impondo-se progressivamente como a forma
mais fácil de garantir a salvaguarda do património construído vernáculo. Neste
sentido, o próximo ponto incidirá sobre a relação que se tem vindo a estabelecer entre
o património e o turismo através dos processos de desenvolvimento rural.

57
Ver “Carta sobre o património construído vernáculo” in LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel B. – op. cit., p.285-288.
58
PEIXOTO, Paulo – op. cit., p.17.
64 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

O turismo como motivo de reabilitação

“A valorização do património cultural e, em particular, do património


arquitectónico, tendo em vista a sua utilização para fins turísticos, é uma das
formas mais eficazes de estimular a sua salvaguarda e de criar as receitas
necessárias para o respectivo financiamento.”59

Hoje em dia o turismo é visto como um factor de desenvolvimento dos espaços


rurais, assim como um incentivo à reabilitação do património construído vernáculo.
Apesar de uma retrospectiva do turismo não parecer aqui essencial, parece contudo
necessário explicar alguns dos acontecimentos que levaram à atracção pelo turismo
rural e, consequentemente, ao seu uso pelas políticas de desenvolvimento rural e pelos
processos de valorização patrimonial.

Desde a segunda metade do século XX, um variado conjunto de acontecimentos


fizeram com que o turismo se tornasse acessível a um maior número de pessoas,
afirmando-se como um sector cada vez mais importante para a economia. O aumento
da prática do turismo levou à massificação de alguns destinos, nomeadamente os que
propõem turismo de praia e sol. A falta de planeamento desta actividade, no passado,
fez com que hoje em dia alguns destes locais apareçam descaracterizados, a nível
paisagístico e ambiental, além de degradados pelo uso excessivo, sem falar ainda da
sobrelotação que acontece em época estival. A qualidade destes espaços encontra-se
portanto posta em causa e as motivações dos turistas perdem sentido uma vez que a
tranquilidade e a regeneração pretendidas aparecem condenadas60.

Após alguma perda de interesse pelo turismo de praia e sol, é possível constatar
que alguns turistas optam por outros destinos menos concorridos e mais
personalizados, portanto, com outro tipo de características. Esta progressiva mudança
de preferências e exigências reflecte claramente uma mudança ideológica na sociedade
actual que, como foi mencionado anteriormente, está em busca de novos valores
culturais e emocionais, além de dar importância a outros aspectos tais como a
tranquilidade, a diversidade, a singularidade e, principalmente, a qualidade. Hoje em
dia a qualidade do património construído, da envolvente natural, da gastronomia, das

59
CÓIAS, Vítor – Património e turismo: um casamento de conveniência. in Pedra e Cal nº 3, Jul/Ago/Set 1999, p.5.
60
FONSECA, Fernando, P. ; RAMOS, Rui A.R. – op. cit., p.3-5.
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 65
O património arquitectónico vernáculo _ do abandono à reutilização

vivências e das actividades, interfere na escolha de um determinado destino61. As


novas formas de turismo em espaços rurais, eleitas principalmente por populações de
origem citadina, são as que melhor dão resposta a esta procura uma vez que
proporcionam “novas relações simbólicas e materiais com a natureza, novas práticas
dos espaços [e] contactos com as populações locais”62.

63
Apesar da oferta do Turismo em Espaço Rural (TER) ter conhecido um
crescimento significativo apenas nas últimas duas décadas, o reconhecimento oficial
do TER deu-se a partir do final dos anos setenta do século XX, mais propriamente em
1978, aquando da publicação da primeira regulamentação do sector. Contudo, foi o
Decreto-Lei 256/86, de 27 de Agosto, que estabeleceu as normas relativas ao
desenvolvimento de três formas de turismo no espaço rural: Turismo de Habitação,
Turismo Rural e Agroturismo. Entretanto, novos decretos foram publicados dos quais
se salienta o Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março, que constituí a mais recente
legislação sobre esta matéria, estabelecendo o regime jurídico da instalação e do
funcionamento dos empreendimentos turísticos. Este diploma apresenta uma nova
nomenclatura que distingue os empreendimentos de turismo de habitação dos
empreendimentos de turismo no espaço rural. Estes últimos aparecem subdivididos em
três categorias: as Casas de Campo, os Hotéis Rurais e o Agro-turismo. É ainda de
salientar que os requisitos específicos aos empreendimentos de turismo em espaço
rural constam de outro documento, a Portaria n.º 937/2008, de 20 de Agosto, que
completa o decreto-lei, estabelecendo os requisitos mínimos a observar pelos
estabelecimentos de turismo de habitação e de turismo no espaço rural.

“O turismo no espaço rural (TER) tem-se vindo a impor como actividade com
potencial para relançar o desenvolvimento de alguns espaços rurais,
nomeadamente daqueles que têm recursos com elevada qualidade cultural ou
natural. Contudo, a sustentabilidade é um conceito chave para esta modalidade

61
Sobre este assunto, ver:
- FONSECA, Fernando, P. ; RAMOS, Rui A.R. – op.cit., p.5-7.
- CAVACO, Carminda – op. cit., p. 57-61.
62
CAVACO, Carminda – op. cit., p. 58.
63
Sobre o TER ver:
- CAVACO, Carminda – op. cit., p. 59-60.
- CARVALHO, Paulo; CORREIA, Juliana – op. cit.
- FONSECA, Fernando, P. ; RAMOS, Rui A.R. – op. cit., p.7-8.
66 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

de turismo, porque se não houver um processo de desenvolvimento sustentável


hipoteca-se o que de mais valioso estes territórios albergam.”64

A recuperação do património arquitectónico, a revitalização do património cultural


e a preocupação em preservar a qualidade ambiental e a unidade paisagística são
acções pretendidas pelo TER, que conduzem a sua sustentabilidade65. Algum
património construído rural, como as igrejas, as pontes medievais ou ainda os
pelourinhos, aparece directamente relacionado com o turismo, uma vez que responde à
necessidade de conhecimento implícita no conceito de turismo cultural. Nestes termos,
o património aparece como condição fundamental para a existência do turismo66. Por
outro lado, no caso de algumas construções como as casas senhoriais, as habitações
agrícolas e os abrigos de pastores – cujo estado de degradação já não permita o uso ou
cuja função esteja desactualizada – é o turismo rural que estimula a sua reabilitação de
modo a poderem ganhar um novo uso, no âmbito turístico, como por exemplo o
alojamento sazonal67. Parece ainda importante salientar que as reabilitações efectuadas
no âmbito do TER baseiam-se no respeito pela autenticidade e pelos valores
patrimoniais.

Além de fomentar a valorização e a conservação do património construído


vernáculo, a indústria turística incentiva ainda os investimentos no sector terciário –
alojamento, restauração, promoção de actividades – que por sua vez proporcionam o
crescimento económico dos espaços rurais e a criação de empregos. Sendo assim, é
possível resumir as acções do TER do seguinte modo: preservação dos valores
naturais e construídos, dinamização da vida cultural, melhoria da qualidade de vida
das populações locais, atenuação das assimetrias regionais, criação de empregos e,
desenvolvimento sustentável68.

Esta capacidade de valorizar o património assim como os espaços rurais, sob um


ponto de vista económico, faz com que o turismo rural seja cada vez mais usado como

64
FONSECA, Fernando, P. ; RAMOS, Rui A.R. – op. cit., p.1.
65
Ibid., p.10.
66
Rentabilização Económica do Património in Dossier freguesias, ed. ANAFRE e MINHATERRA, Lda. Janeiro 2000,
p.2.
67
CAVACO, Carminda – op. cit., p. 58.
68
CAVACO, Carminda – op. cit., p.61.
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 67
O património arquitectónico vernáculo _ do abandono à reutilização

instrumento de desenvolvimento local pelas autarquias69. Neste sentido, é possível


identificar um certo número de apoios relativos à implementação da indústria turística
nos meios rurais, proporcionados pelas políticas oficiais de turismo e de
desenvolvimento rural e local70. O Programa Integrado Turístico Estruturante de base
Regional (PITER), a Rede Europeia de Turismo de Aldeia, o Programa das Aldeias
Históricas e ainda o Programa de Iniciativa Comunitária LEADER – que surge com
uma vertente mais ligada à preservação do património –, são alguns exemplos dos
programas que incentivam o turismo em espaço rural.
Apesar de o turismo se apresentar como factor indispensável para o sucesso das
políticas de desenvolvimento rural, a sua influência sobre património, geralmente de
ordem benéfica, pode no entanto constituir uma ameaça à salvaguarda desse mesmo
património71. Consciente deste risco desde o início da expansão da prática turística, o
ICOMOS promulgou, em 1976, a Carta sobre o turismo cultural72. Este documento
reconhece os fins positivos que o turismo cultural pretende atingir ao promover certo
património, no entanto, também considera os efeitos negativos que este pode causar se
não existir uma política de controlo dos fluxos turísticos que estabeleça limites de
ocupação e utilização conforme cada local. Neste sentido, o ICOMOS sugeriu à
Organização Mundial de Turismo (OMT) e à UNESCO que se reunissem no intuito de
assegurar a aplicação de políticas proteccionistas; recomendou aos especialistas
responsáveis pela concepção e gestão turística que recebessem uma formação no
âmbito deste problema; e, ainda, salientou a necessidade de divulgar o respeito pelo
património através do ensino escolar e dos meios de comunicação.
Ainda é de salientar que esta preocupação, referente ao impacto do turismo cultural
sobre o património, foi reiterada pelo ICOMOS em 1999, resultando na elaboração da
Carta internacional sobre o turismo cultural73. Embora tenha sempre em mente a
protecção do património cultural, este documento apela principalmente à conciliação
entre a prática turística e a conservação patrimonial, salientando os benefícios que esta
relação pode trazer tanto para a indústria turística como para a valorização do

69
SILVA, Paulo Brito da – Património arquitectónico e valorização dos espaços rurais. Comunicação apresentada em
representação do Forum UNESCO no seminário Horizonte 2006 – Políticas e práticas de desenvolvimento rural. Crato,
Fronteira e Monforte, 14,15 e 16 de Dezembro de 2000.
70
Sobre este assunto, ver:
- CAVACO, Carminda – op. cit., p. 58.
- CARVALHO, Paulo; CORREIA, Juliana – op. cit.
71
SILVA, Paulo Brito da – op. cit.
72
Ver “Carta sobre o turismo cultural” in LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel B. – op. cit., p.171-174.
73
Ver “Carta internacional sobre o turismo cultural” in LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel B. – op. cit., p.277-284.
68 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

património, passando ainda pelo desenvolvimento sócio-económico das comunidades


de acolhimento.

No entanto, há que ter consciência que o turismo não constitui o único factor de
desenvolvimento rural. É necessário as autarquias investirem noutras áreas como a
cultura, a educação, as novas tecnologias de comunicação, que possibilitem um modo
de vida contemporâneo às pessoas que desejam permanecer nesses espaços74. Além
disso, ainda é preciso ter em conta que nem todas as áreas rurais são dotadas de
características que permitam o desenvolvimento da indústria turística. Estas
especificidades prendem-se, em linhas gerais, com a ligação à agricultura em moldes
tradicionais, a traça marcadamente rural das paisagens e dos espaços, a preservação
das tradições e dos costumes culturais e a existência de tipologias de edificados
tipicamente regionais onde possam funcionar os equipamentos e serviços turísticos75.
O caso em estudo, a Beira Alta, possui os requisitos necessários ao
desenvolvimento turístico. Como já foi salientado na primeira parte deste trabalho,
esta região encontra-se numa situação privilegiada, caracterizada pela diversidade e
singularidade paisagística. O Parque Natural da Serra da Estrela, a mais extensa área
protegida portuguesa; a Região Dão-Lafões, famosa pelo seu vinho; e a zona serrana,
conhecida pela gastronomia e pelos produtos pastoris, são algumas das zonas que
constituem fortes estímulos à prática turística da região. Resta ainda salientar a
presença, por toda a parte, de património histórico como igrejas, capelas, solares,
casas típicas, vias e pontes romanas, estações arqueológicas e castros que, como já foi
visto, atraí um grande número de turistas. Por outro lado, é um facto existirem
inúmeras construções vernáculas abandonadas e em ruínas. Neste sentido, é de notar
que a região já foi alvo de algumas acções desenvolvidas no sentido de recuperar
conjuntos com maior valor patrimonial, como é o caso do Programa de Recuperação
das Aldeias Históricas. Sendo assim, é possível concluir que a Beira Alta apresenta
um enorme potencial turístico que não pode deixar de ser aproveitado.

Para terminar, relembrar-se-á algumas das conclusões tiradas do estudo sobre a


salvaguarda do património construído vernáculo, elaborado nesta segunda parte. Num
primeiro ponto, é possível constatar que foi a constante mutação da sociedade que
levou à crescente preocupação acerca do património, proporcionando hoje em dia o

74
SILVA, Paulo Brito da – op. cit.
75
FONSECA, Fernando, P. ; RAMOS, Rui A.R. – op. cit., p.8.
Parte II _ A Salvaguarda do Património Arquitectónico Vernáculo 69
O património arquitectónico vernáculo _ do abandono à reutilização

reconhecimento da arquitectura vernácula. Num segundo ponto, a valorização do


património vernáculo rural revelou-se directamente ligada à visão que se tem dos
espaços rurais. Concluiu-se ainda que a relação que o património rural mantém com os
processos de desenvolvimento rural não aparenta ser só de causa/consequência mas
sim de interdependência. Finalmente, a valorização do património, no âmbito rural,
mostrou ser um meio mas também uma consequência da difusão do turismo em
espaço rural. Deste modo, o TER passou a ser visto como um motivo que viabiliza e
sustenta a reabilitação do património construído vernáculo, designadamente no caso
da casa popular beirã. Após esta última constatação, as dúvidas que restam sobre a
reabilitação do património construído vernáculo incidem sobre as metodologias e os
critérios de intervenção que, por esta razão, serão tema da terceira parte deste trabalho.
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 73
Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologia

Após ter descrito alguns dos fenómenos que levaram à valorização da arquitectura
vernácula e ao seu consequente reconhecimento enquanto património, a segunda parte
deste trabalho deixou ainda bem claro a necessidade de conservar estas construções.
Com a crescente difusão do turismo em espaço rural, a reabilitação surge como a
intervenção que melhor dá resposta a esta necessidade uma vez que permite, por um
lado, a salvaguarda deste património e, por outro, a sua reutilização. Mas como é que
se processa realmente uma intervenção de reabilitação, mais particularmente no caso
do património vernáculo da Beira Alta com vista para um uso turístico? Quais são os
pressupostos teóricos implícitos neste processo e como é que estes são transpostos
para a prática? Quais são as principais dificuldades?
De maneira a formular uma resposta crítica a estas perguntas, surgiu a necessidade
de dividir esta terceira e última parte em dois capítulos. O primeiro, de índole teórica,
pretende salientar as condições prévias relativas ao processo de reabilitação assim
como identificar o método mais apropriado de levar a cabo esta intervenção. O
segundo capítulo, baseado no estudo de casos, tem como objectivo tentar perceber
como funciona a prática da reabilitação na realidade. Cada obra escolhida pretende
exemplificar o desenvolvimento de um processo de reabilitação em específico, de
modo a, no final, salientar as dificuldades que se encontram na concretização dos
projectos.

1. Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologia

Antes de começar qualquer tipo de intervenção de reabilitação é necessário ter em


mente o conjunto de objectivos, princípios, exigências que estão implícitos no
conceito de reabilitação. Por outras palavras, é imprescindível saber em que é que
consiste uma reabilitação, quais os princípios éticos a ter em conta e quais as
exigências que se devem cumprir do ponto de vista regulamentar. Mas também é
necessário ter consciência da existência de factores variáveis que tornam o processo de
reabilitação mais específico. Só após ter conhecimento de todos estes factores é que
parece possível entender o funcionamento de um processo de reabilitação, razão pela
qual a metodologia de intervenção só aparece no final deste capítulo, com intuito de
recapitular os passos indispensáveis à realização da intervenção.
74 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

Orientações/exigências prévias

Antes de começar uma intervenção de reabilitação é necessário ter em mente os


objectivos, os princípios e as exigências nos quais esta acção se baseia. Neste sentido,
parece natural começar por esclarecer o próprio conceito de reabilitação:

“Reabilitação de um edifício:
Obras que têm por fim a recuperação e a beneficiação de uma
construção, resolvendo as anomalias construtivas, funcionais, higiénicas
e de segurança acumuladas ao longo dos anos, procedendo a uma
modernização que melhore o seu desempenho até próximo dos actuais
níveis de exigência.”1

Esta definição, apesar de ter sido apresentada no âmbito da reabilitação urbana,


deixa bem claro os objectivos de uma obra de reabilitação: “recuperar” e “beneficiar”.
Em outros termos, compor de maneira a salvaguardar algumas das características do
edifício assim como dotá-lo de condições que permitam o seu uso para a função
pretendida, podendo esta ser igual ou diferente da original.
O primeiro objectivo, relativo à recuperação, remete claramente para o conceito da
conservação. De facto, a reabilitação é antes de tudo uma intervenção que visa a maior
conservação possível das diversas partes, elementos e materiais do edificado alvo
desta acção2. Neste sentido, a ética de conservação, fruto de vários encontros
internacionais sobre o tema3, deve servir igualmente de base para uma intervenção de
reabilitação quando esta incide sobre construções com reconhecido valor patrimonial,
como é aqui o caso do património construído vernáculo. No entanto, não sendo a
conservação o único objectivo da reabilitação, há que também ter em conta os critérios
relativos à acção de beneficiação que esta pretende efectuar.

Embora não exista nenhum documento de referência que estabeleça princípios


orientadores da intervenção de reabilitação, a leitura de vários documentos dedicados

1
Artigo 1.º a Carta de Lisboa sobre a Reabilitação Urbana Integrada in LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel B. –
Património Arquitectónico e Arqueológico: Cartas, Recomendações e Convenções Internacionais. Lisboa: Livros
Horizonte, 2004, p.264.
2
AGUIAR, José; CABRITA, A. Reis; APPLETON, João – Guião de apoio à reabilitação de edifícios habitacionais.
4.ª Ed. Lisboa: LNEC, 1996/98, p.112.
3
Ver parte II capítulo 1.
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 75
Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologia

aos temas da conservação e da reabilitação4 permite resumir e organizar os seguintes


princípios:

1.º Respeitar as características tipológicas e morfológicas da arquitectura


assim como a paisagem envolvente do lugar onde incide a intervenção de
modo a resultar numa integração harmoniosa;

2.º Aproveitar o maior número de elementos e partes das construções antigas e


considerar as alterações feitas ao longo do tempo como parte integrante
destas;

3.º Quando necessária a substituição de elementos ou partes, optar por usar os


RECUPERAÇÃO

métodos e materiais tradicionais de construção ou, não sendo possível,


escolher materiais e soluções que assegurem a compatibilidade com os
elementos construtivos antigos assim como uma coerência de expressão,
aspecto, textura e forma com a edificação original;

4.º Respeitar o valor cultural da edificação defendendo a integridade física dos


elementos que o testemunham;

5.º Evitar modificações irreversíveis e tornar a intervenção o menos intrusiva


possível de modo a permitir futuras intervenções e/ou o regresso a soluções
anteriores;

6.º Assegurar as condições básicas de higiene, saúde e conforto, assim como


condições de segurança estrutural, contra o incêndio e contra intrusões;
BENEFICIAÇÃO

7.º Melhorar o desempenho da construção, dos espaços, dos equipamentos e


das instalações conferindo ao edifício uma qualidade arquitectónica,
funcional e construtiva igual ou superior à preexistente;

8.º Adaptar o edifício às novas necessidades e aspirações dos moradores,


decorrentes em especial da alteração dos modos de vida.

4
Ver:
- PAIVA, José Vasconcelos [et al.] – Guia técnico de reabilitação habitacional. Lisboa : I.N.H, 2006, p.271-272.
- “Carta sobre o património construído vernáculo” in LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel B. – op. cit., p.285-288.
76 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

A observância destes princípios, apesar de não ser obrigatória, orienta a


intervenção de maneira a esta se traduzir, no final, numa reabilitação de qualidade. De
facto, cada orientação acima enunciada traduz claramente a vontade de atingir a maior
qualidade exigível, em cada acção efectuada.
Uma leitura mais atenta dos princípios orientadores acima expostos permite ainda
notar que a observância destes princípios implica a consideração de uma série de
exigências. Face ao exposto, parece lógico afirmar que a qualidade da intervenção
depende directamente do cumprimento destas exigências.

No que se refere à acção de recuperação5, a qualidade parece estar directamente


relacionada com as exigências de autenticidade, reversibilidade, durabilidade e
compatibilidade6.
O conceito de autenticidade remete para a qualidade daquilo que é autêntico,
genuíno, verdadeiro7. No caso da reabilitação a palavra autenticidade aparece então
associada aos elementos que caracterizam o objecto alvo desta intervenção, ou seja, a
feição arquitectónica, as evidências históricas, os materiais, as técnicas construtivas e
o meio envolvente. Sendo assim, não existe um único conceito de autenticidade mas
sim vários8:
- A autenticidade estética remete para a preservação das ideias arquitectónicas que,
por um lado, dirigiram a concepção inicial do edifício e, por outro lado, suscitaram
as possíveis alterações efectuadas ao longo dos tempos;

- A autenticidade histórica pretende salvaguardar a integridade dos elementos com


valor histórico, impedindo as acções passíveis de adulterar uma evidência histórica;

- A autenticidade dos materiais requer a manutenção dos materiais originais


utilizados na construção assim como o respeito pelas suas características;

- A autenticidade construtiva e tecnológica aparece intimamente ligada à


autenticidade dos materiais uma vez que os métodos construtivos e tecnológicos

5
É necessário referir que, ao longo de todo este capítulo, o termo “recuperação” remete para o âmbito da conservação.
6
Acerca deste tema ver:
- AGUIAR, José; CABRITA, A. Reis; APPLETON, João – Guião de apoio à reabilitação de edifícios habitacionais.
4.ª Ed. Lisboa: LNEC, 1996/98, p.116-117.
- CÓIAS, Vítor – Reabilitação estrutural de edifícios antigos : alvenaria, madeira : técnicas pouco instrusivas. 2ª
ed. . Lisboa : Argumentum, 2007. p.30.
7
CÓIAS, Vítor – op. cit., p.27.
8
LNEC (Laboratório Nacional de Engenharia Civil) – A conservação do património histórico edificado. Lisboa:
L.N.E.C., 1990, p.15-16.
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 77
Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologia

usados dependiam directamente dos materiais disponíveis para a construção. Sendo


assim, a pretensão é semelhante, ou seja, preservar os testemunhos das técnicas
usadas para a construção do edifício;

- A autenticidade do espaço envolvente implica o respeito pela relação existente


entre o edifício e a sua envolvente, pois, um edifício nunca deve ser encarado
isoladamente mas sim inserido no seu meio ambiente.

É de salientar que a exigência de autenticidade indispensável para garantir a


qualidade da intervenção implica a consideração de todos os conceitos acima
enunciados. Caso contrário, a aplicação desta exigência pode produzir um efeito
perverso como por exemplo aconteceu com o “fachadismo”, tendência que ocorreu
principalmente no pós Segunda Guerra Mundial e que consistia na manutenção
exclusiva da fachada original, enquanto todos os outros elementos do edifício eram
destruídos e reconstruídos sem respeito pelos valores associados a estes. Uma vez que
a imitação é o conceito oposto ao de autenticidade, esta exigência também tem
implícito a reprovação do pastiche nas obras que pretendem a conversação de
elementos genuínos, como é o caso da reabilitação9.

A exigência de reversibilidade, hoje em dia substituída pelo conceito de não-


intrusividade, aparece relacionada com a de autenticidade. De facto, é esta exigência
que vai permitir o respeito pela integridade dos elementos genuínos do edifício alvo de
reabilitação. Por outro lado, há que ter consciência que as decisões tomadas hoje em
dia poderão não ser consideradas as melhores no futuro, razão pela qual a remoção das
acções efectuadas tem que ser possibilitada sem que existam perdas ou danos nos
elementos mais característicos do edifício.

Relativamente às exigências de durabilidade e compatibilidade, estas aparecem


directamente ligadas à aplicação de novos materiais. De facto, uma vez que a
intervenção de reabilitação pretendida incide sobre edifícios relativamente antigos tem
que existir o cuidado de utilizar materiais cuja durabilidade seja apropriada ao tempo
de vida do edifício alvo de reabilitação. Sendo ainda por vezes indispensável a
aplicação de novos materiais e o uso de novas técnicas construtivas, torna-se

9
“ As novas soluções arquitectónicas, para que sejam compatíveis com as Áreas Históricas, deverão rejeitar tanto o
pastiche como o objecto dissonante, sendo actuais e mantendo uma linguagem contextual.” Artigo 10.º da “Carta de
Lisboa sobre a Reabilitação Urbana Integrada” in LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel B. – op. cit., p.267.
78 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

imprescindível assegurar a compatibilidade destes com os elementos pré-existentes da


construção10.

Após este esclarecimento sobre as orientações que regem a acção de recuperação, é


possível constatar que as exigências de autenticidade, de reversibilidade, de
durabilidade e de compatibilidade vão de encontro com os princípios éticos redigidos
no âmbito da conservação11. É no sentido em que obrigam ao respeito pelos princípios
orientadores da conservação que estas exigências permitem aspirar à maior qualidade
possível numa intervenção de reabilitação, pelo menos no âmbito da acção de
recuperação.

No que diz respeito à acção de beneficiação12, a qualidade exigida parece ser


atingida pelo cumprimento de uma série de exigências relativas ao uso do edifício.
Sendo assim, parece possível organizar estas exigências do seguinte modo:

- Exigências de habitabilidade: o cumprimento deste tipo de exigências é


imprescindível ao uso do edifício sendo portanto obrigatória a sua aplicação no
caso da reabilitação. De facto, só o respeito por estas exigências permite conferir
ao edifício as condições mínimas consideradas necessárias à sua utilização. Estas
exigências dizem respeito às condições básicas de higiene, saúde e conforto mas
também às questões de acessibilidades e de segurança estrutural, contra incêndio e
contra intrusões.

- Exigências funcionais: estas exigências dependem directamente da função para a


qual o edifício se destina. De facto, se o edifício alvo de reabilitação não pretender
ter fins exclusivamente habitacionais, o cumprimento das exigências
regulamentares acima referidas terá de ser completado pela observância das
exigências regulamentares referentes ao uso desejado.

- Exigências pessoais: este tipo de exigências remete para as aspirações dos donos
da obra ou dos moradores. Apesar de não se referirem a normas regulamentares,
estas ambições não se revelam menos exigentes e têm um grande peso no
desenvolvimento da obra.

10
AGUIAR, José; CABRITA, A. Reis; APPLETON, João – op. cit., p.117.
11
Ver Carta de Veneza na parte II capítulo 1.
12
É necessário referir que, ao longo de todo este capítulo, o termo “beneficiação” remete para as acções que pretendem
o melhoramento da eficiência do edifício.
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 79
Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologia

Todas estas exigências influenciam o processo de reabilitação. No entanto, é de


salientar que tanto as exigências funcionais como as exigências pessoais dependem de
factores variáveis – a função e os donos da obra – impossíveis de sistematizar. Sendo
assim, restam as exigências regulamentares relativas à habitabilidade, as quais
implicam o cumprimento das seguintes normas:

- Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU)13;

- Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE)14;

- Sistema Nacional de Certificação Energética e da Qualidade do Ar Interior nos


Edifícios (SCE) de acordo com as exigências e disposições contidas no
Regulamento dos Sistemas Energéticos e de Climatização nos Edifícios (RSECE) e
no Regulamento das Características de Comportamento Térmico dos edifícios
(RCCTE)15;

- Regime Jurídico de Segurança Contra Incêndio em Edifícios (RJ-SCIE)16;

- Regime da Acessibilidade aos Edifícios e Estabelecimentos que recebem público,


via pública e edifícios habitacionais17.

Estes regulamentos estabelecem os requisitos mínimos necessários para uma


garantia da higiene, da saúde, do conforto, das acessibilidades, da segurança estrutural
e da segurança contra incêndio, nas edificações em geral. O seu cumprimento no
âmbito da reabilitação permite então garantir uma qualidade de uso idêntica à das
novas construções.

De modo a resumir as ilações retiradas deste estudo sobre as exigências implícitas


nos princípios que orientam a reabilitação é possível afirmar que, se por um lado é
obrigatório por lei cumprir as exigências de habitabilidade, por outro, a observância
das exigências relativas à ética de conservação – autenticidade, não intrusividade,
durabilidade e compatibilidade – é fortemente aconselhável para atingir um resultado
de qualidade.

13
Ver Decreto-Lei n.º 38 382, de 7 de Agosto de 1951 que aprova o Regulamento Geral das Edificações Urbanas.
14
Ver Decreto-Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, que estabelece o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.
15
Ver Decreto-Lei n.º 78/2006, de 4 de Abril, que aprova o Sistema Nacional de Certificação Energética e da
Qualidade do Ar Interior nos Edifícios (SCE); Decreto-Lei n.º 79/2006, de 4 de Abril, que aprova Regulamento dos
Sistemas Energéticos e de Climatização nos Edifícios (RSECE); Decreto-Lei n.º 80/2006, de 4 de Abril, que aprova o
Regulamento das Características de Comportamento Térmico dos edifícios (RCCTE).
16
Ver Decreto-Lei n.º 220/2008, de 12 de Novembro, que estabelece o Regime Jurídico de Segurança Contra Incêndio
em Edifícios (RJ-SCIE).
17
Ver Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de Agosto, que aprova o Regime da Acessibilidade aos Edifícios e
Estabelecimentos que recebem público, via pública e edifícios habitacionais.
80 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

Face ao exposto, falta ainda fazer uma ressalva extremamente importante. Apesar
da conclusão acima tirada transmitir a ideia de existir um método, aparentemente fácil,
que garanta a eficiência da intervenção, a concretização deste é muito mais complexa
do que possa parecer. De facto, ao tentar aplicar todas estas exigências vai ser possível
reparar que o cumprimento das normas legais entra em conflito com as exigências
relativas à ética de conservação. Esta incompatibilidade parece surgir principalmente
do facto de não existir regulamentação específica para o caso de uma intervenção de
reabilitação.
A consciência desta falha regulamentar faz com que exista uma certa flexibilidade
relativamente à aplicação dos regulamentos gerais ao caso dos edifícios existentes,
portanto, às reabilitações. Esta permissividade é também ela estabelecida por lei como
atestam os seguintes artigos:

- Ponto 1 do artigo 60.º do Decreto-Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, que


estabelece o RJUE:

“As edificações construídas ao abrigo do direito anterior e as utilizações


respectivas não são afectadas por normas legais e regulamentares
supervenientes.”

- Alínea c) do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 80/2006, de 4 de Abril, que estabelece


o RCCTE:

“Excluem-se do âmbito de aplicação do presente regulamento: as


intervenções de remodelação, recuperação e ampliação de edifícios em
zonas históricas ou em edifícios classificados, sempre que se verifiquem
imcompatibilidades com as exigências deste regulamento.”

- Ponto 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de Agosto, que aprova o


regime da acessibilidade:

“(…) o cumprimento das normas técnicas de acessibilidades constantes


do anexo ao presente decreto-lei não é exigível quando as obras
necessárias à sua execução sejam desproporcionadamente dificéis,
requeiram a aplicação de meios económico-financeiros
desproporcionados ou não disponíveis, ou ainda quando afectem
sensivelmente o património cultural ou histórico, cujas características
morfológicas, arquitectónicas e ambientais se pretende preservar.”
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 81
Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologia

A invocação destes artigos pode, após avaliação adequada, permitir a não


observância dos regulamentos, facilitando deste modo a compatibilidade com as
exigências implícitas na ética de conservação. No caso concreto do património
vernáculo, apenas o artigo do RJUE parece ser aplicável uma vez que os restantes
implicam a classificação ou o reconhecimento dos valores inerentes a estas
construções, factos que acontecem raramente, como se verá no próximo ponto.

De modo a concluir este ponto relativo às exigências prévias implícitas no conceito


de reabilitação, é possível constatar três factos. Por um lado, parece evidente afirmar
que estas orientações e exigências ajudam a tomar as opções mais acertadas durante o
processo de reabilitação e, consequentemente, permitem realizar uma intervenção de
qualidade. Por outro lado, é necessário salientar que, apesar de estas exigências terem
sido diferenciadas segundo o objectivo que elas pretendem18, na realidade elas estão
dependentes umas das outras e, é aliás por essa razão que existe o conceito de
reabilitação. Finalmente, estas orientações ainda deixam implícito o facto de existirem
condições variáveis passíveis de influenciar o seu cumprimento.

Condições variáveis

As orientações e as exigências prévias anteriormente expostas são os critérios fixos


a ter em conta no processo de reabilitação. No entanto, a sua aplicação varia consoante
as condições que o edifício alvo de reabilitação apresenta. Sendo assim, a
consideração destes factores confere à reabilitação em causa um grau de
subjectividade, tornando-a num caso único e específico que deve ser tratado de forma
individual.
Com intuito de elaborar um estudo que possa estabelecer um paralelo com o
anterior, optou-se por organizar este ponto do mesmo modo, ou seja, começar por
identificar os factores que incidem sobre a acção de recuperação e, depois, enunciar as
variáveis que interferem no acto de beneficiação.

18
Esta diferenciação foi efectuada com intuito de facilitar a organização do estudo assim como a percepção das ideias
que se pretendiam transmitir.
82 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

Sendo a recuperação uma acção que pretende a salvaguarda de elementos ou partes


da construção, torna-se evidente afirmar que a intervenção depende directamente da
tipologia do objecto de reabilitação. Neste sentido, coloca-se a seguinte questão:
“Recuperar o quê?”, ou seja, quais são as características do edifício que se pretende
salvaguardar?, quais são os testemunhos e os valores que se pretendem transmitir às
gerações vindouras?, e, serão estes abrangidos por algum tipo de protecção?
De modo a dar resposta a estas perguntas torna-se então primordial efectuar um
estudo aprofundado do edificado em causa que identifique todos os factores passíveis
de influenciar a intervenção de reabilitação. É nesta fase que o processo de
reabilitação ganha complexidade e especificidade, pois, o conhecimento destas
condições vai ajudar a tomar as decisões mais acertadas para este caso em concreto,
soluções essas que não podem portanto ser sistematizadas.

No caso do património construído vernáculo, mais propriamente, a casa popular


beirã, relembra-se que o estudo acima sugerido já foi efectuado na primeira parte deste
trabalho. No entanto, falta ainda referir os valores implícitos neste tipo de património e
considerar o facto de este poder ser abrangido por algum tipo de protecção.

“Existe grande interesse pela conservação e protecção da Arquitectura


vernácula mas não podemos proteger sem entender quais são as
qualidades que fazem destas construções despojadas e frágeis parte do
património cultural”19

Segundo a Carta sobre o Património Construído Vernáculo, “o património


vernáculo é a expressão fundamental da identidade de uma comunidade [e] das suas
relações com o território (…)”20. Estas construções, de feição marcadamente local ou
regional em resposta ao meio ambiente, são o resultado de um modo de construir
emanado da própria comunidade, adquirido a partir de um conhecimento da
composição e das técnicas tradicionais da construção, que se foi transmitindo ao longo
dos anos de modo informal. A coerência de estilo, de forma e de aspecto, bem como o
uso de tipos arquitectónicos tradicionalmente estabelecidos e também a resposta eficaz
às necessidades funcionais, sociais e ambientais são ainda algumas das características
deste património cultural.21

19
SERRANO, Rui; CABRITA, Ricardo – Arquitectura vernácula, a arquitectura feita por não arquitectos.
20
“Carta sobre o património construído vernáculo” in LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel B. – op. cit., p.285.
21
Ibid., p. 285-286.
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 83
Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologia

Estas propriedades, específicas do património construído vernáculo, reflectem a


existência de um conjunto de valores inerentes a este tipo de construções. De facto, os
elementos que evidenciam a forma, a feição, a organização dos espaços, a relação com
a envolvente e os materiais e técnicas construtivas remetem para valores históricos,
estéticos, sociais, económicos e técnicos. Foi esta constatação, aliás, que permitiu o
reconhecimento destas construções como fazendo parte do património cultural.
Sendo assim, a conservação, protecção e recuperação das características mais
significativas aparecem como meios para atingir o derradeiro objectivo que consiste na
salvaguarda dos valores intrínsecos a este património e na transmissão destes às
gerações vindouras. Devido à importância destes valores, convém ainda relembrar que
a observância das exigências de autenticidade expostas no ponto anterior é
imprescindível. Pois, uma vez que se pretende transmitir um testemunho, é essencial
garantir que a integridade deste seja respeitada acima de tudo.
Portanto, é possível afirmar que o estudo aprofundado das características do
objecto de intervenção é um elemento essencial do processo de reabilitação, uma vez
que é este que vai permitir a identificação dos valores inerentes a estas construções e,
por consequência, a ponderação das opções mais acertadas para este tipo de
construção.

“ [É o reconhecimento da] totalidade destes valores que nos permite


passar a uma fase de planeamento das intervenções práticas de uma
maneira consciente e cuidadosa.”22

No caso específico do património construído vernáculo, designadamente no da casa


popular beirã23, ainda é de salientar o facto destes valores nem sempre serem
reconhecidos por todos uma vez que o significado destes diz principalmente respeito à
comunidade à qual pertencem. Sendo assim, o respeito e a preservação dos elementos
que evidenciam estes valores acabam por serem acções com um grau de
subjectividade elevado.

Os valores reconhecidos num certo edifício parecem ter igualmente importância no


processo de atribuição de classificação. De facto, é de salientar que os critérios gerais
de classificação de bens imóveis se baseiam no significado histórico-cultural do

22
AMORIM, Júlio – Algumas considerações sobre uma intervenção cuidadosa. Göteborg, Maio de 2003, p.2
23
Não parece existir sombra de dúvidas relativamente ao facto de esta tipologia ser considerada património construído
vernáculo uma vez que o estudo efectuado na primeira parte deste trabalho identificou as propriedades acima citadas
como sendo características destas habitações.
84 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

edifício, nas qualidades estético-sociais, nas evidências técnico-científicas, no estado


de integridade, na exigência de autenticidade e no carácter de exemplaridade que o
edifício em análise apresenta24.
Face ao exposto, seria de esperar existir mais património construído vernáculo
classificado, ao contrário do que se verifica hoje em dia. Esta limitação da atribuição
de classificação parece vir do facto de, na maioria das vezes, os valores inerentes a
estas construções fazerem apenas sentido para a comunidade que os produziu.

“Os tipos de classificação patrimonial, existentes, não estão ajustados às


realidades de hoje. Continuam presos à tradição do século XIX. Os tipos
de classificação são poucos, apenas três, a saber: «monumento
nacional», desde os finais do século XIX, «imóveis de interesse público»,
desde 1932, e «de valor concelhio», desde 1949.”25

Segundo o autor desta citação, seria necessário existirem quatro categorias de


classificação, referentes aos imóveis de interesse de freguesia, de valor concelhio, de
valor regional e de interesse nacional, respectivamente geridos por entidades distintas
de maneira a descentralizar a actual gestão do património que compete ao Estado. Ao
propor uma classificação baseada na organização administrativa do território, esta
proposta confere um certo poder às comunidades locais e regionais que seria
extremamente benéfico no caso do património construído vernáculo. No entanto, de
um ponto de vista mais genérico esta gestão poderia criar um efeito perverso no
âmbito da classificação patrimonial. De facto, ao permitir uma avaliação considerada
mais subjectiva correr-se-ia o risco de cair num exagero e classificar quase todos os
imóveis, gerando uma banalização desta acção que deixaria, por consequência, de
fazer qualquer tipo de sentido.

Voltando ao processo de reabilitação, convém ainda esclarecer o impacto de uma


possível abrangência do edifício alvo de intervenção por um grau de protecção, seja
este a classificação, a inventariação ou ainda a inserção numa área especial de
protecção.

24
Ministério da Cultura; Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico – Critérios de classificação
de bens imóveis. 2ª ed . Lisboa : IPPAR, 1996, p. 26 a 29.
25
ALMEIDA, C.A. Ferreira de – Pátrimónio. Riegl e hoje. in Revista da Faculdade de Letras, História, II Série vol.
10. Porto, FLUP, 1993, p.414.
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 85
Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologia

Actualmente, a classificação de um imóvel depende do Instituto de Gestão do


Património Arquitectónico e Arqueológico (IGESPAR)26, razão pela qual as obras que
incidem sobre edifícios protegidos por lei têm de ser submetidas a um parecer prévio
deste instituto. No caso da proposta de intervenção apresentada para avaliação
respeitar as condições estabelecidas por este instituto quanto à garantia de salvaguarda
dos valores culturais reconhecidos no imóvel em causa, o parecer emitido será
favorável e possibilitará a obra. Sendo assim, é possível dizer que a existência de
algum tipo de protecção só vem tornar obrigatório o respeito pelos valores intrínsecos
ao edifício em causa, ou seja, torna-se imprescindível cumprir os princípios éticos
relativos à conservação.
No caso de os edifícios não serem abrangidos por uma protecção legal, cabe aos
intervenientes envolvidos na reabilitação tomarem a posição ética27 que eles
considerem adequada ao tipo de edificado em que estão a intervir. Como é óbvio, esta
postura é algo subjectiva e, se esta não for cuidadosamente ponderada, corre-se o risco
de a reabilitação resultar numa mera reconstrução sem respeito pelos valores
intrínsecos ao edifício. Neste caso concreto, uma vez que este trabalho sempre
identificou as construções vernáculas como sendo um património cultural e
reconheceu os valores que elas transmitem28, considera-se que a postura mais
adequada remete para o seguimento, na íntegra, das orientações éticas relativas ao
património cultural. No entanto, é de salientar que a maioria destes edifícios não são
abrangidos por qualquer tipo de protecção, razão pela qual é possível constatar uma
falta de qualidade das intervenções de reabilitação realizadas nas construções
vernáculas.

No que diz respeito à acção de beneficiação, como aliás já foi referido, esta
pretende a melhoria, a vários níveis, do edifício existente e por isso depende, por um
lado, do estado em que este se encontra e, por outro lado, do uso que este pretende ter.
Neste sentido surge a seguinte questão: “Beneficiar o quê e com que objectivo?”, ou
seja, quais são as anomalias presentes no edifício que impedem ou tornam inseguro o
seu uso?, qual é a [nova] função que este pretende desempenhar? e,

26
“Ao IGESPAR compete por lei propor a classificação dos bens culturais imóveis de âmbito nacional.” in
http://www.igespar.pt/patrimonio/classificacaodopatrimonio/
27
RODERS, Ana Rita Pereira – Uma reabilitação consciente. Comunicação apresentada no 2.º Encontro Nacional
sobre Patologias e Reabilitação de Edifícios.
28
Admite-se que este reconhecimento é algo subjectivo uma vez que eu própria pertenço à descendência da
comunidade que erigiu estas construções, neste caso, o povo beirão.
86 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

consequentemente, quais são as exigências mínimas necessárias assim como as


instalações e infra-estruturas adicionais que devem ser tidas em conta para uma
reutilização deste género?
De modo a responder a estas questões torna-se indispensável identificar as
anomalias existentes no edifício assim como as suas causas e ter consciência do
impacto das exigências impostas pela função no processo de reabilitação. Estes
factores influenciam a abordagem feita ao edifício e, consequentemente actuam sobre
as decisões tomadas no processo de reabilitação.

As anomalias físicas mais comuns no caso do património construído vernáculo


dizem respeito aos materiais e ao sistema estrutural. Sendo assim, é necessário ter um
conhecimento aprofundado sobre as patologias que afectam os materiais de
construção, ou seja, a pedra granítica e xistosa e a madeira de pinho assim como sobre
o sistema construtivo utilizado para poder escolher as opções de resolução mais
adequadas a estes problemas. É ainda de salientar que a identificação deste tipo de
anomalias e as respectivas soluções de reparação já se encontram descritas em alguns
relatórios de intervenção, razão pela qual se torna possível aceder a estas informações
de modo a adquirir conhecimentos acerca deste tema. Por outro lado, a realização de
congressos acerca deste tema tem vindo a ser cada ver mais comum e a participação
nestes encontros permite aprender imenso acerca deste assunto29.
Sendo o factor das anomalias um tema demasiado específico, no sentido em que
varia de caso para caso, e uma vez que não se pretende aqui sistematizar as resoluções
de anomalias, mas sim identificar os factores que influenciam o processo de
reabilitação, opta-se por não desenvolver mais este tema. De modo a concluir, refere-
se então a necessidade de saber identificar os problemas existentes no edifício assim
como as suas causas. É a análise destes problemas que vai permitir estipular o grau de
intervenção necessário à beneficiação do edifício e, por consequência, prever o tipo de
obras a realizar e escolher as melhores opções de reparação

Outro factor que influencia o processo de reabilitação é a função para a qual o


objecto de reabilitação se destina. É necessário tornar a referir que esta função pode
manter-se igual à original ou ser diferente desta, conforme o dono da obra pretender.

29
Esta afirmação é efectuada com base na minha participação no PATORREB 2009, 3.º Encontro sobre Patologias e
Reabilitação de Edifícios que decorreu nos dias 18, 19 e 20 de Março de 2009 e no Congresso Património 2010
“Património Intervenção” realizados nos passados dias 14, 15 e 16 de Abril de 2010.
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 87
Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologia

Tanto num caso como no outro a beneficiação é efectuada de modo a optimizar o seu
desempenho e a cumprir os níveis de exigências requeridos por lei para esta função.
No entanto, no caso de um edifício ser adaptado a uma nova função, a probabilidade
da obra de reabilitação se tornar mais intrusiva – no sentido de trazer mais
modificações – é maior, partindo do pressuposto que o edifício não estaria preparado
para receber um programa diferente do original.
Neste sentido, a função pretendida para o edifício é uma variável a ter em conta no
processo de reabilitação uma vez que é esta que vai definir a necessidade de efectuar
certos tipos de modificações ou adaptações. No caso em estudo, sabe-se que a função
da casa popular beirã é a habitação, apesar de esta servir igualmente de apoio à
actividade agrícola. A sua tipologia levanta portanto problemas funcionais dos quais
se podem salientar a exiguidade dos espaços, a insuficiência de pé direito, as infra-
estruturas rudimentares e a falta de conforto térmico e acústico. Estes problemas
podem inviabilizar a sua reutilização para outros usos que não habitacionais. O
turismo em espaço rural, parece ser uma função adequada para a reutilização deste
tipo de construções uma vez que converge para o mesmo tipo de uso habitacional e,
portanto, tem um programa similar. As exigências requeridas por lei para o exercício
desta função surgem aqui como condicionantes a ter em conta no processo de
reabilitação.

Para mais à frente perceber quais a exigências impostas por este tipo de função e,
consequentemente, qual o impacto destas no acto de beneficiação, convém esclarecer
o conceito de “turismo no espaço rural”.
Segundo o Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março, que aprova o regime jurídico
da instalação, exploração e funcionamento dos empreendimentos turísticos, a noção de
empreendimento de turismo no espaço rural tem a seguinte definição:

“São empreendimentos de turismo no espaço rural os estabelecimentos


que se destinam a prestar, em espaços rurais, serviços de alojamento a
turistas, dispondo para o seu funcionamento de um adequado conjunto de
instalações, estruturas, equipamentos e serviços complementares, tendo
em vista a oferta de um produto turístico completo e diversificado no
espaço rural.”30

30
Artigo 18.º ponto 1, do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março.
88 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

O ponto 2 do mesmo artigo ainda refere o facto de os empreendimentos de turismo


no espaço rural – casa de campo31, agro-turismo32 e hotéis rurais33 – terem de
“integrar-se nos locais onde se situam de modo a preservar, recuperar e valorizar o
património arquitectónico, histórico, natural e paisagístico das respectivas regiões,
através da recuperação de construções existentes, desde que seja assegurado que esta
respeite a traça arquitectónica da construção já existente.”34. No caso concreto deste
trabalho optou-se por estudar a categoria “casa de campo” uma vez que os estudos de
casos referidos no próximo capítulo incidem sobre este tipo de actividade.

Este Decreto-Lei ainda define os requisitos gerais de instalação dos


empreendimentos turísticos, os quais se podem resumir dizendo que este tipo de
empreendimentos tem que respeitar as exigências regulamentares aplicáveis às
edificações em geral35, ou seja, as exigências habitacionais referidas no ponto
anterior36. No entanto, estes podem ser dispensados conforme esclarece o ponto 1 do
artigo 39.º deste mesmo Decreto-Lei:

“Os requisitos exigidos para a atribuição da classificação podem ser


dispensados pelo Turismo de Portugal, I.P., ou pela câmara municipal,
consoante os casos, quando a sua estrita observância for susceptível de
afectar as características arquitectónicas ou estruturais dos edifícios que
estejam classificados a nível nacional, regional ou local ou que possuam
valor histórico, arquitectónico, artístico ou cultural.”

No caso específico do turismo em espaço rural, o cumprimento das normas


relativas às acessibilidades não é obrigatório, conforme esclarece o ponto 2 do artigo
6.º do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março. Relativamente a esta mesma
modalidade, a Portaria n.º 937/2008, de 20 de Agosto que estabelece os requisitos
mínimos a observar pelos estabelecimentos de turismo de habitação e de turismo no

31
“São casas de campo os imóveis situados em aldeias e espaços rurais que prestem serviços de alojamento a turistas
e se integrem, pela sua traça, materiais de construção e demais características, na arquitectura típica local.” in
Artigo 5.º, da Portaria n.º 937/2008, de 20 de Agosto que estabelece os requisitos mínimos a observar pelos
estabelecimentos de turismo de habitação e de turismo no espaço rural.
32
“São empreendimentos de agro-turismo os imóveis situados em explorações agrícolas que prestem serviços de
alojamento a turistas e permitam aos hóspedes o acompanhamento e conhecimento da actividade agrícola, ou a
participação nos trabalhos aí desenvolvidos, de acordo com as regras estabelecidas pelo responsável.”in Artigo 7.º,
da Portaria n.º 937/2008, de 20 de Agosto.
33
“São hotéis rurais os hotéis situados em espaços rurais que, pela sua traça arquitectónica e materiais de
construção, respeitem as características dominantes da região onde estão implantados, podendo instalar-se em
edifícios novos que ocupem a totalidade de um edifício ou integrem uma entidade arquitectónica única e respeitem as
mesmas características.” in Artigo 8.º, da Portaria n.º 937/2008, de 20 de Agosto.
34
Artigo 18.º pontos 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março.
35
Artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março.
36
Ver p. 78 e 79 deste trabalho
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 89
Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologia

espaço rural ainda consta de alguns requisitos de cumprimento obrigatório


relativamente às infra-estruturas e equipamentos do empreendimento, aos espaços das
unidades de alojamento e aos serviços prestados37.
Conforme acabou de ser exposto, o desempenhar desta função não parece obrigar a
ter em conta mais exigências do que as aplicáveis aos edifícios em geral, e ainda
permite a dispensa quando existe incompatibilidade com a preservação das
características deste património. A maioria das construções vernáculas nem sempre
são reconhecidas com o devido valor e não é portanto fácil invocar essa dispensa mas,
quando acordada, esta permite zelar pela conservação dos valores intrínsecos ao
edificado alvo da intervenção.

De modo a concluir este ponto relativo as condições variáveis que influenciam o


desenvolvimento do processo de reabilitação, parece pertinente sumarizar estes
factores. Primeiramente, salientou-se a importância do conhecimento aprofundado do
objecto de reabilitação, imprescindível à identificação dos elementos que devem ser
salvaguardados no acto de recuperação. Seguidamente, realçou-se a possibilidade de o
imóvel poder ser abrangido por algum tipo de protecção, o que torna obrigatório o
respeito pelos valores com significado cultural reconhecido por lei. Num terceiro
momento, destacou-se a necessidade de avaliar o estado do objecto alvo de
reabilitação de maneira a estipular o grau de intervenção necessário à beneficiação do
edifício. Finalmente, identificou-se a função como sendo um factor que implica o
cumprimento de exigências específicas. Apesar de não ter referido as exigências
pessoais38, por ser um factor demasiado subjectivo, estas não deixam de ter um peso
considerável, principalmente no ponto de vista económico da intervenção. É ainda de
referir que todas estas variáveis conferem ao processo de reabilitação especificidade e
complexidade, tornando cada obra num caso único.

Metodologia de intervenção

Conforme deixaram bem claro os dois pontos anteriores, para realizar uma
intervenção de qualidade é necessário, por um lado, seguir as orientações e exigências
éticas relativas ao conceito de reabilitação e, por outro lado, ter consciência da

37
Estes requisitos aparecem descritos nos artigos 10.º a 25.º da Portaria n.º 937/2008, de 20 de Agosto e não aparecem
aqui citados pelo facto de estes não representarem condicionantes com impacto relevante no processo de reabilitação.
38
Relembra-se que as exigências pessoais dizem respeito as aspirações dos donos de obra, conforme esclarecido p. 78.
90 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

existência dum conjunto de variáveis que influenciam o processo de reabilitação. Esta


multiplicidade de condicionantes obriga a ser muito metódico na organização do
processo de reabilitação. Após estudo dos textos existentes sobre a reabilitação urbana,
uma vês que não existem documentos relativos à reabilitação de construções
vernáculas, parece possível seguir a metodologia apontada que se desenvolve em três
fases: a fase de levantamento, a fase de projecto e a fase de obra.39
A primeira fase consiste na elaboração de um conjunto de estudos e análises que
permitam a recolha de toda a informação necessária à elaboração de um diagnóstico
que permita orientar o projecto de reabilitação. Estes estudos incidem sobre vários
aspectos relativos ao objecto alvo de reabilitação, nomeadamente, históricos,
arquitectónicos e construtivos. De um modo geral, esta fase remete para o
reconhecimento prévio das condições intrínsecas ao edifício, identificadas no ponto
anterior. É ainda de salientar que esta fase implica o envolvimento de vários
intervenientes, especialistas em disciplinas distintas, tais como a história, a
arqueologia, a engenharia civil – relativamente às estruturas e aos materiais –, as
engenharias específicas – relativamente a humidade, ao controlo ambiental, a
hidráulica e a geotecnia – e, a arquitectura – relativamente à coordenação de todas
estas especialidades com o projecto de arquitectura40. Sendo assim, estes estudos
podem ser agrupados do seguinte modo: levantamento arquitectónico, pesquisa
histórica, análise do estado actual de conservação dos materiais e análise da
estabilidade do edifício41.

O levantamento arquitectónico consiste na elaboração de elementos desenhados,


plantas, cortes, alçados, pormenores construtivos, de maneira a compreender o
funcionamento do edifício em causa, desde a sua relação com as construções
envolventes e o seu meio ambiente até aos pormenores construtivos e decorativos,
passando ainda pela percepção da sua organização espacial e funcional. Este
levantamento permite ainda a caracterização do edifício do ponto de vista técnico
(materiais) e construtivo (sistema estrutural) assim como um reconhecimento prévio
das patologias presentes nestes elementos. Geralmente acompanhado por um
levantamento fotográfico exaustivo, este estudo constitui um registo que, após a

39
PAIVA, José Vasconcelos [et al.] – Guia técnico de reabilitação habitacional. Lisboa : I.N.H, 2006, p. 295.
40
FERREIRA, J.F. – Técnicas tradicionais da construção; sua aplicação; alguns exemplos. in A intervenção no
património : práticas de conservação e reabilitação. Porto : FEUP, 2005. 2º Seminário, p.652.
41
MATEUS, João Mascarenhas – Técnicas tradicionais de construção de alvenarias: a literatura técnica de 1750 a
1900 e o seu contributo para a conservação de edifícios históricos. Lisboa: Livros Horizonte, 2002, p.283-284.
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 91
Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologia

intervenção, se tornará num documento de grande relevância para as possíveis


intervenções futuras.

A pesquisa histórica remete para a procura de documentos esclarecedores acerca da


vida do imóvel, desde a sua construção até aos dias de hoje. Estes documentos são,
regra geral, encontrados em bibliotecas, arquivos, conservatórias, registos notariais
sob forma de escritos ou peças iconográficas (desenhos, gravuras, fotografias). Toda a
informação retirada do estudo destes permite perceber de que tipo de edifício se trata,
quando foi a sua construção, qual foi a sua função inicial, quem foram os seus
proprietários e quais foram a alterações que sofreu ao longo dos tempos. No entanto
convém salientar que, uma vez que se trata de edifícios antigos, torna-se muitas das
vezes difícil ou mesmo impossível ter acesso a este tipo de registos que, com o passar
dos anos, já não existem, ou então, nunca chegaram a existir.

Após estes estudos que permitem uma contextualização prévia do imóvel, iniciam-
se análises mais técnicas sobre elementos ou partes do edifício de modo a avaliar o seu
estado de conservação, identificando as anomalias existentes e as suas causas. Estes
estudos incidem principalmente sobre os materiais e o sistema construtivo e são
realizados “in situ” e em laboratório. Estas análises consistem em recolhas de
amostras, sondagens, prospecções, medições, monitorizações, ensaios, portanto,
qualquer tipo de exame que permita “determinar o estado, as capacidades e as
características essenciais dos materiais e dos elementos construtivos preexistentes,
assim como as causas das anomalias verificadas”42.

Todos estes estudos são indispensáveis à elaboração do diagnóstico, o qual, por sua
vez, permite identificar as acções necessárias à reabilitação do edifício. Sendo assim, a
intervenção pretendida pode ser classificada consoante o grau das acções de reparação
e beneficiação a efectuar43.

“Depois do reconhecimento prévio, do desenvolvimento das análises e


do estabelecimento de um diagnóstico, passamos a saber, com rigor, o
que é possível conservar e o que é necessário reparar, ou substituir, na

42
PAIVA, José Vasconcelos [et al.] – Guia técnico de reabilitação habitacional. Lisboa : I.N.H, 2006, p. 297.
43
Ver exemplo de graduação in AGUIAR, José; CABRITA, A. Reis; APPLETON, João – Guião de apoio à
reabilitação de edifícios habitacionais. 4.ª Ed. Lisboa: LNEC, 1996/98, p. 122 a 127.
92 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

construção original. Estamos, apetrechados para elaborar o programa


definitivo e iniciar o projecto de intervenção.”44

A fase de projecto consiste essencialmente na sintetização de todas as informações


adquiridas na fase anterior de maneira a tomar decisões que permitam compatibilizá-
las com as exigências programáticas, funcionais, pessoais e regulamentares que têm de
ser cumpridas. Neste sentido, relembra-se que os projectos das diversas especialidades
devem ser elaborados até um grau de pormenorização que possibilite a ponderação das
diferentes opções possíveis para atingir esta compatibilização. Cabe ao projecto de
arquitectura em particular reunir todos estes dados e traduzi-los numa proposta que
vise a maior qualidade possível da intervenção.
Relativamente ao desenvolvimento do projecto de reabilitação, ainda é de salientar
a importância do dono da obra, principalmente no que diz respeito ao custo da
intervenção. A atenção relativamente a este aspecto implica a elaboração de um
cuidadoso planeamento e uma gestão eficaz e racional dos trabalhos. Face ao exposto,
apresenta-se a seguinte citação que expõe, de maneira clara, os objectivos desta fase:

“O projecto de reabilitação deve assim procurar levar ao extremo a


melhor exploração possível dos recursos existentes, tirando o melhor
partido das principais características físicas do tipo de edificado sobre o
qual incide, não só em termos de espaços e linguagens arquitectónicas
caracterizadoras, mas também em termos de maximização das
possibilidades de recuperação e aproveitamento do sistema estrutural e
construtivo original.”45

Na fase de obra, a fiscalização e o acompanhamento são as acções mais


importantes a realizar uma vez que existe uma grande probabilidade de surgirem
situações inesperadas, acrescida pelo facto da obra incidir sobre edifícios existentes.
Sendo assim convém programar visitas regulares ao estaleiro de maneira a identificar
os problemas que surgem e poder resolvê-los directamente em obra. É a frequência
com que acontecem estas alterações em obra que torna indispensável o
acompanhamento da intervenção até à conclusão dos trabalhos.

44
CABRITA, A. Reis; AGUIAR, José; APPLETON, João – Manual de apoio à reabilitação dos edifícios do Bairro
Alto. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, LNEC, 1993, p. 129 e 130.
45
PAIVA, José Vasconcelos [et al.] – Guia técnico de reabilitação habitacional. Lisboa : I.N.H, 2006, p. 302.
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 93
Os preceitos teóricos da reabilitação _ critérios e metodologia

O seguimento da metodologia acima descrita parece ser o meio de realizar uma


reabilitação com qualidade, consciente das especificidades do edifício alvo de
intervenção. No entanto, no caso do património construído vernáculo, ainda é de
salientar a dificuldade da sua aplicação, nomeadamente na elaboração dos estudos
sugeridos na primeira fase relativa ao levantamento. Por um lado, relembra-se que se
trata de construções que em tempos foram desvalorizadas e cujo reconhecimento
enquanto património cultural é recente. Por essa razão existem poucos estudos
efectuados no tempo em que estes exemplares da arquitectura popular portuguesa se
apresentavam em bom estado de conservação e, por consequência, as informações que
existem sobre este tipo de construções são escassas, tornando difícil uma abordagem
consciente das suas especificidades. A valorização tardia desta arquitectura também
tem um impacto na elaboração da pesquisa histórica que, na maioria dos casos se torna
inconclusiva, não existindo dados sobre estas construções. Por outro lado, o
reconhecimento do valor destes edifícios ainda não se encontra generalizado, como
aliás testemunha a sua falta de classificação, facto que se traduz em muitos casos na
inexistência de estudos mais específicos e na falta de intervenientes especializados.

De modo a terminar este capítulo sobre os preceitos teóricos da reabilitação, é


possível concluir que esta intervenção requer um processo muito complexo e
específico que deve ser considerado caso a caso. A multiplicidade e interdependência
de todos os factores apresentados ao longo deste capítulo obrigam a um planeamento
rigoroso e a uma gestão muito ponderada de todas as fases desta intervenção, que se
traduzem numa metodologia extremamente rigorosa. No caso do património
construído vernáculo a sua aplicação exige imenso estudo uma vez que se trata de
construções cujas características são pouco conhecidas ainda nos dias de hoje. De
modo a perceber se a realidade da prática corresponde ao que está apontado na
metodologia acima exposta, o próximo capítulo pretende expor dois casos de
reabilitação cujo processo de intervenção será exaustivamente descrito de modo a tirar
algumas conclusões sobre a prática de intervenção.
94 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

Viseu

Póvoa Dão

[55] Localização de Póvoa Dão, Concelho de Viseu [56] Esquema de acesso à aldeia de Póvoa Dão

[57] Vista área da aldeia de Póvoa Dão na margem esquerda do rio Dão

[58] Vista da aldeia de Póvoa Dão após a intervenção de reabilitação


Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 95
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

2. A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

Após o capítulo anterior ter efectuado um estudo sobre os preceitos que regem,
pelo menos em teoria, o processo de reabilitação, este capítulo pretende esmiuçar o
desenrolar de duas intervenções já concretizadas. Como foi visto no capítulo anterior,
o facto de a reabilitação não ter enquadramento legal, acrescentado ao facto de ainda
não existir uma consciência generalizada dos valores existentes no património
construído vernáculo, fazem com que as reabilitações efectuadas neste âmbito não
resultem em intervenções consideradas respeitadoras das orientações éticas enunciadas
nos princípios de reabilitação. Neste sentido, os casos de estudo escolhidos para
desenvolver este capítulo não pretendem ser exemplos de uma boa prática, mas sim
ajudarem a perceber quais os principais problemas que surgem no âmbito da
reabilitação do património vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística. Sendo
assim, o objectivo dos dois primeiros pontos remete para a descrição do
desenvolvimento de duas intervenções de reabilitação no património construído
vernáculo da Beira Alta, enquanto que o último ponto pretende salientar as principais
dificuldades passíveis de surgir neste tipo de intervenção.

A aldeia de Póvoa Dão

Situada na margem esquerda do rio Dão, em plena região demarcada de Dão-


Lafões, Póvoa Dão é um dos mais antigos povoados de que há registo, desde o século
XII, na freguesia de Silgueiros, concelho de Viseu. Com apenas dois habitantes, já se
encontrava em estado de abandono e em risco de desaparecer quando, em 1995, esta
aldeia beirã foi adquirida por uma empresa “com o intuito de lhe devolver os seus
ancestrais usos e costumes, tornando-a viva, visitável e habitável.”46. De modo a
cumprir estes objectivos foi iniciada uma intervenção de reabilitação a qual, dividida
em três fases, se prolonga até aos dias de hoje.
O projecto, da autoria do arquitecto Jorge Paulo Carolino, contemplou a
reabilitação da aldeia, desde as casas à capela passando pelos caminhos e espaços
públicos e ainda, a instalação de infra-estruturas e equipamentos. O objectivo desta
intervenção pretendia, por um lado, permitir a vida quotidiana na aldeia e, por outro

46
Ver http://www.povoadao.com/
96 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[59] Casa em ruína [60] Inexistência das coberturas, persistência dos paramentos exteriores

[61] Feição típica da casa popular beirã: escadas exteriores de pedra, alpendre, beiral saliente

[62] Habitações com vãos de tamanho muito reduzido


Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 97
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

lado, possibilitar uma estadia sazonal. De facto, parte das casas estão à venda
enquanto as restantes constituem um empreendimento de turismo no espaço rural,
mais precisamente a modalidade designada por “Turismo de aldeia”, que é composta
por um conjunto de casas de campo.

Apoiando-se na entrevista efectuada ao arquitecto Jorge Paulo Carolino47, este


texto pretende esclarecer o desenrolar da intervenção de reabilitação da aldeia de
Póvoa Dão, ou seja, quais os princípios, os métodos e as condicionantes que
orientaram todo este processo.
A primeira visita efectuada pelo arquitecto à aldeia de Póvoa Dão permitiu
constatar que as casas estavam em perfeito estado de ruína, algumas ainda com os
paramentos exteriores mas já sem cobertura. Após esta primeira constatação visual,
uma questão foi colocada: “Segundo que moldes seria feita a recuperação?”48. Para
começar foi efectuado o levantamento do existente que consistiu, segundo o autor do
projecto, num levantamento aerofotogramétrico49, num levantamento topográfico da
aldeia assim como num levantamento geométrico e fotográfico das casas uma a uma.
Este levantamento encontra-se distribuído pelos diversos intervenientes, sendo apenas
possível da minha parte ter acesso às fotografias do existente e da obra. Também
parece ter sido realizada uma pesquisa histórica uma vez que existe um pequeno livro,
publicado no ano de 2000, que conta a história da Póvoa Dão e dos seus habitantes ao
longo dos séculos. No entanto, esta publicação não é de grande ajuda para o
desenvolvimento do processo uma vez que esta incide essencialmente sobre a vida da
aldeia e dos seus habitantes, não fazendo nenhuma referência a nível arquitectónico –
formal, funcional ou construtivo.
Segundo as respostas que foram dadas pelo arquitecto Jorge Paulo Carolino
aquando a entrevista, supõe-se que estes estudos permitiram realizar as seguintes
observações:
- A tipologia identificada remetia para casas muito rudimentares, de planta simples,
com dois pisos.
- A feição exterior respeitava a traça da típica casa popular beirã: janelas
pequeníssimas com caixilho de madeira – alguns com vestígios de pintura –,

47
Ver anexo 1.
48
Citação retirada da entrevista ao arquitecto Jorge Paulo Carolino, ver anexo 1.
49
“A Fotogrametria é a ciência que permite executar medições precisas utilizando de fotografias métricas. (…)Tem
por finalidade determinar a forma, dimensões e posição dos objectos contidos numa fotografia [neste caso aérea],
através de medidas efectuadas sobre a mesma.” in http://pt.wikipedia.org/wiki/Aerofotogrametria.
98 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[63] [64]

[65] [66]

Levantamento fotográfico de algumas casas antes da reabilitação

[67] Caminho romano, única via pavimentada que atravessava a aldeia


Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 99
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

escadas exteriores de pedra de acesso à habitação – algumas com alpendre no


patamar superior –, um beiral saliente e paredes exteriores de pedra.
- As paredes eram constituídas por um paramento único de pedras de granito
assentes sem argamassa.
- Os vestígios das coberturas indiciavam a existência de duas águas e denunciavam
uma estrutura de madeira, coberta por telhas de barro levantadas para deixar passar
os fumos, as chaminés eram inexistentes.
- No interior, a divisão entre os dois pisos era feita por um pavimento de madeira,
soalho, com frinchas relativamente largas de maneira a deixar passar o calor vindo
dos animais.
- O piso de baixo chamado “loja”, destinava-se à recolha do gado e à arrecadação
dos instrumentos agrícolas50. Devido ao seu uso, este apresentava um pé-direito
relativamente baixo.
- O piso de cima, que recebia a habitação propriamente dita, era composto por
divisões extremamente reduzidas em número mas também em tamanho. Estes
espaços eram separados por paredes divisórias de tabique.
- Existiam algumas excepções: casas completamente adaptadas, algumas com
azulejos por cima das pedras.
- No que diz respeito ao núcleo principal da aldeia, este é atravessado por um
caminho romano, única via pavimentada, com extrema importância na
configuração do povoado.
- O povoado consta ainda de uma capela, única construção rebocada em toda a
aldeia, uma fonte, que se encontrava perfeitamente adulterada e, vários fornos.
- A aldeia não aparece dotada de infra-estruturas básicas de saneamento, de
abastecimento de água, nem de electricidade.

Face ao exposto, é possível afirmar que, decorrente ou não dos estudos


preliminares, foi efectuado o reconhecimento das diferentes tipologias existentes, dos
elementos característicos destas casas, dos materiais de construção e das
condicionantes inerentes às casas e impostas pela envolvente. Em suma, todas as
condições intrínsecas à aldeia aparecem aqui identificadas.
A partir desse momento foi possível ponderar as diversas opções, consoante os
objectivos definidos e as exigências impostas. É necessário salientar que, desde início,
foi previsto o faseamento das obras, dividindo o aglomerado da aldeia em vários

50
Ver capítulo 2 da parte I, A casa popular beirã _ simbiose entre o homem e o meio.
100 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

núcleos que foram desenvolvidos de forma separada com projecto próprio. Existem
assim as casas da aldeia que compõem o núcleo do povoado, as casas da eira que
ficam depois da zona lúdica e, as casas dispersas que se encontram espalhadas pela
quinta que apresenta um total de 120 hectares. O primeiro projecto a ser desenvolvido
foi o que diz respeito às casas da aldeia e é essencialmente sobre este que incide este
estudo.
Voltando às exigências impostas, é possível resumi-las do seguinte modo:
- Nenhuma das casas era abrangida por qualquer tipo de classificação, não sendo,
neste sentido, obrigatório manter as características que elas apresentavam.
- Apesar do facto anterior, os promotores pretendiam uma intervenção que
devolvesse à aldeia a sua feição original, sugerindo a prática das técnicas
tradicionais antigas, o uso de materiais nobres e elementos rústicos e rejeitando as
soluções contemporâneas.
- Ao nível da regulamentação, nos finais da década de 90 e até 2006/2007, as
exigências térmicas e acústicas não eram tão rigorosas não sendo necessária, por
exemplo, a actual certificação energética.
- Relativamente às exigências impostas pela função, foi opção do promotor não
licenciar o projecto com uso para turismo. Sendo assim, as únicas exigências a ter
em conta a nível regulamentar remetiam apenas para as normas relativas aos
edifícios em geral.

“Tudo isso eram premissas que à partida deveriam ser cumpridas.”51

Após o reconhecimento prévio do estado das construções e a identificação das


exigências a cumprir, foram então definidas as acções necessárias para atingir os
objectivos previstos. Relembra-se que a reabilitação visava o restabelecimento das
condições de vida na aldeia de modo a esta ser de novo habitada. Sendo assim, foram
estipuladas as seguintes obras a executar:
- Obras de adequação funcional, ou seja, modificação da tipologia das casas de
modo a permitir a existência de várias divisões, ao contrário de algumas que
apresentavam um único compartimento, e inclusão de escadas interiores
originalmente inexistentes. Ou então, como no caso do restaurante, adaptação e
agrupamento de casas de maneira a estas poderem acolher outro tipo de função
para além da habitação.

51
Citação retirada da entrevista ao arquitecto Jorge Paulo Carolino, ver anexo 1.
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 101
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

- Reconstrução dos elementos de madeira, ou seja, cobertura e lajes dos pisos


adaptando-as aos paramentos existentes.
- Inserção das infra-estruturas básicas na aldeia – electricidade, água potável,
caminhos – e de equipamentos que permitissem a higiene, a saúde e o conforto no
interior das habitações – aquecimento, água quente e fria, ventilações sanitárias,
exaustão de fumos.

Perante esta lista de tarefas, indispensáveis ao cumprimento dos objectivos


impostos, foi lançada a fase de projecto52. A compatibilização de todos os factores
anteriormente expostos levantou uma série de problemas os quais, obviamente,
condicionaram o decorrer das obras e, portanto, influenciaram o resultado final. As
principais dificuldades que surgiram na elaboração do projecto foram então as
seguintes:
- O cumprimento do pé direito mínimo obrigatório por lei foi uma exigência que
obrigou a modificações consideráveis e a obras de grande dimensão:

“Aquelas casas muitas vezes funcionavam, como sabe, com uma “loja”,
onde se punham os animais, (…) os animais não requeriam a
habitabilidade que nós temos e nem que o RGEU nos exige.
(…)
Tivemos que, ou afundar o pavimento térreo, ou subir, e algumas estão
crescidinhas. Se eu subo uma, pois toda a envolvente tem de subir para
dar uma coerência. Não é nada fácil. Há um sítio em que se percebe
perfeitamente que em determinadas zonas foi impossível cumprir.”53

- A inserção de lareiras para o aquecimento das casas obrigou, por vontade do


promotor, à colocação de chaminés na cobertura. Relembra-se que a casa popular
beirã não tinha chaminé, portanto, a inclusão desta levantou problemas de
autenticidade estética. Assim sendo, o desenho da chaminé teve que ser pensado de
maneira a garantir a coerência da imagem do conjunto.
- A colocação das caixas dos contadores de electricidade também foi outro
elemento que levantou problemas ao nível da feição exterior das casas. Apesar da
procura de uma solução que tivesse um menor impacto visual, estas caixas não
puderam ser modificadas por proibição da companhia de electricidade, tendo que
optar por resolver este problema de maneira menos satisfatória.
52
Como já foi salientado anteriormente, não tiva acesso ás peças desenhadas relativas ao projecto de arquitectura.
53
Citação retirada da entrevista ao arquitecto Jorge Paulo Carolino, ver anexo 1.
102 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[68] [69]

[70]

[71] [72]
Fotografias do decorrer das obras
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 103
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

- O uso de técnicas tradicionais de construção também se revelou num


constrangimento por várias razões. Por um lado, a vontade de executar as paredes
divisórias em tabique não pôde ser concretizada por já não existirem profissionais
com a sabedoria necessária à realização deste tipo de solução construtiva. Por outro
lado, os requisitos de higiene e saúde obrigaram, em certos casos como por
exemplo no restaurante, à remoção dos tabiques existentes e a um maior cuidado na
execução do pavimento, impedindo uma execução em conformidade com as
técnicas de construção tradicionais.

É de salientar que estes foram alguns dos problemas identificados ainda na fase de
projecto, não impedindo que surgissem outros durante a fase de obra. Para começar
esta última fase do processo de reabilitação, foi reunido um conjunto de técnicos e
artesãos – tais como carpinteiros e canteiros – indispensáveis à execução da obra nos
moldes em que esta tinha sido decidida. Passa-se agora à descrição da condução das
obras, salientando os imponderáveis que foram surgindo assim como a resolução
destes.

Como foi dito pelo arquitecto Jorge Paulo Carolino, as primeiras casas foram feitas
por experiência e as soluções foram surgindo no desenrolar da obra. Sendo assim,
apesar de não ter tido acesso às peças desenhadas do projecto, supõe-se que este não
tenha sido desenvolvido à escala do pormenor. A ideia inicial relativamente aos
paramentos exteriores remetia para a sua consolidação de maneira a estes poderem
suportar as novas estruturas do pavimento e da cobertura. No entanto, após várias
experiências de consolidação, chegaram à conclusão que, em boa parte das casas, era
preferível demolir o que ainda se mantinha erguido e reconstruir. A técnica escolhida
para proceder a esta reconstrução consistia em registar as casas, com recurso à
fotografia, demoli-las e voltar a construí-las. O arquitecto ainda salientou a facto de a
reconstrução acabar por não ser efectuada estritamente conforme o existente devido ao
facto de algumas pedras serem permeáveis, outras não apresentarem grande dureza e,
por consequência, não ser aconselhável tornar a usá-las, pelo menos na posição em
que elas se encontravam inicialmente. É ainda de realçar que as pedras tiveram de ser
todas lavadas, retirando-lhes a patine do tempo. Sendo assim, a opção de demolição
acabou por transformar esta intervenção mais numa reconstrução do que numa
reabilitação, uma vez que a ideia de manutenção do existente, implícita neste conceito,
deixa de existir. Apesar desta constatação, convém salientar que a vontade de usar as
técnicas de construção e os materiais tradicionais se manteve e não foi portanto usado,
104 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[73] Escavação do piso térreo para aumento do pé-direito [74] Exemplo de vão reduzido

[75] Estrutura do pavimento em madeira [76] Soalho com pregos à vista

[77] Estrutura da cobertura em madeira, coberta por roofmate, [78] Uso de materiais tradicionais
uma chapa de onduline e telha grampeada
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 105
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

nos paramentos exteriores, nenhum material contemporâneo como, por exemplo, o


betão ou o cimento.
Tendo por base o respeito pela feição original das casas, foi mantida a pedra à vista
no interior das casas. Relembra-se mais uma vez que as paredes exteriores eram
construídas com um paramento único de pedra, sem argamassa, não existindo portanto
nenhum tipo de isolamento térmico. As pedras menos porosas foram então colocadas
nas zonas mais expostas tanto à intempérie como às maiores variações térmicas. A
aplicação da argamassa exige juntas secas e, para isso, as pedras tinham de ser todas
uniformes, o que não era o caso. Por outro lado, a aplicação da argamassa conferia
uma leitura à casa que divergia em demasia da feição original, razão pela qual foi
reduzida ao mínimo a aplicação de argamassa. Por causa desta opção, surgiu um
grande problema: no primeiro inverno verificou-se que, com as grandes oscilações
térmicas, a argamassa tinha fissurado, assim como o spray hidrófugo que tinha sido
borrifado em cima paredes. Acrescentando a isso o facto de existir chuva e ventos
muito fortes na região, as poucas casas que já estavam construídas deixaram entrar
água para o interior. Algumas paredes tiveram mesmo que ser demolidas, mais uma
vez. Para resolver este problema, foi contactado o Laboratório Nacional de Engenharia
Civil que desenvolveu uma argamassa – composta por barro, cimento branco, cimento
cinzento e outros componentes – que não fosse tão rígida de maneira a permitir
alguma elasticidade. Após aplicação desta nova argamassa, foram efectuados testes
que confirmaram que o problema tinha sido em parte resolvido. Mesmo assim, em
alguns casos, foi impossível dominar a entrada da água e foi necessário remover o
pavimento em madeira de algumas casas e substituí-lo por tijoleira. Uma vez que a
maioria dos paramentos não foram mantidos mas sim reconstruídos, na minha opinião,
a melhor solução teria sido a construção de uma parede dupla que resolvesse tanto o
problema de impermeabilização como o do conforto térmico assim como permitia
satisfazer a vontade de manter a pedra à vista no interior. Se não fosse este um dos
requisitos impostos pelo promotor, ainda teria sido possível revestir as paredes
problemas e resolver estes mesmos problemas.
Durante a reconstrução das paredes exteriores ainda foi identificado outro
problema devido ao conflito existente entre o cumprimento das normas
regulamentares e o respeito pela feição original da casa. De facto, o RGEU “obriga
que os vãos, para cada compartimento, tenham uma determinada percentagem, 1/10
(…)”54, enquanto as casas apresentavam janelas pequeníssimas. Após ser aumentada a

54
Citação retirada da entrevista ao arquitecto Jorge Paulo Carolino, ver anexo 1.
106 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[79] Estrutura à vista [80] Paredes de gesso cartonado [81] Substituição dos tabiques

[82] Reforço da laje de madeira com betão para colocação de lareira [83] Lareira do restaurante

[84] Chaminés das casas revestidas a pedra [85] Chaminé do forno em chapa
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 107
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

dimensão do vão, as casas apareciam descaracterizadas e com falta de coerência


estética. Neste caso específico o departamento de urbanismo da câmara municipal de
Viseu chegou à conclusão que se todas as regras tivessem que ser cumpridas, o
projecto nunca poderia ser concretizado. Sendo assim, abriu uma excepção e autorizou
a manutenção das janelas conforme o seu formato original. Surgiram duas soluções
para remediar o que já estava feito: em alguns dos casos foi possível desmanchar a
parede e construí-la de novo, noutros casos, o arquitecto optou por duplicar as
ombreiras de modo a reduzir o tamanho do vão. Ficou, conforme o arquitecto disse,
“disfarçado”.
Após reconstrução das paredes exteriores, foram então executadas as estruturas do
pavimento e da cobertura. Como já foi referido, em muitos casos a cércea teve que ser
aumentada de maneira a cumprir as alturas mínimas dos pés direitos exigidos por lei.
O pavimento das casas foi efectuado de acordo com as técnicas tradicionais, estrutura
de madeira revestida a soalho de madeira. É de referir que o soalho foi pregado à
moda antiga, foi deixado com os pregos à vista e não foi polido, apenas encerado. O
pavimento do restaurante teve que responder a exigências mais rigorosas de higiene e
saúde, tendo que ser feito um soalho duplo, com isolamento a meio e uma película
plástica de modo a não deixar passar pó para o piso de baixo igualmente destinado à
restauração.
Relativamente à cobertura, a estrutura foi igualmente refeita, levou o típico ripado
de madeira e, antes de colocar a telha, foi aplicado um isolamento, protecção que
antigamente não era usada mas que hoje em dia é obrigatória por causa das questões
térmicas e acústicas. Sendo assim, a cobertura levou uma chapa de onduline, em cima
do roofmate, que permite resolver tanto as questões de impermeabilização e de
isolamento térmico. Em cima desta foi depois colocada a telha grampeada que, devido
à fraca inclinação dos telhados existentes em Póvoa Dão, se segura facilmente. As
telhas usadas são de canudo, igual às originais, com a coloração do barro normal, por
insistência do arquitecto que não aceitou colocar telhas com uma coloração falsa que
já vêm de fábrica com uma cor que dê uma certa rusticidade.
Após executada a envolvente exterior das casas, foram começadas as obras no
interior. Como já foi referido, já não existia quem soubesse fazer paredes de tabique,
portanto, teve que ser escolhida uma alternativa que, uma vez que não iria respeitar a
autenticidade de materiais, pudesse melhorar o desempenho da construção. Sendo
assim, foram realizadas paredes de gesso cartonado as quais, devido à sua
composição, permitem um bom nível de isolamento acústico. Por causa das oscilações
108 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[86] Aplicação da caixilharia [87] Janelas de abrir em madeira [88] Escadas interiores

[89] Caixas dos contadores [90] Candeeiros e números [91] Sinalética

[92] Luminária de rua [93] Iluminação no pavimento [94] Tijoleira de barro


Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 109
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

das lajes, que são de madeira, e para optimizar o conforto acústico, foi então feita uma
estrutura de perfis metálicos que acolhe duas placas de gesso cartonado de 15mm, em
vez dos habituais 13mm, e ainda lã de rocha de alta densidade entre elas. É de
salientar que esta técnica foi essencialmente usada nos segundos pisos das habitações
que estão assentes sobre estrutura de madeira. De facto, nos locais em que as paredes
divisórias assentavam em cima do enrocamento, após o pavimento térreo ser
devidamente tratado e impermeabilizado, estas eram construídas em tijolo.
Ainda no interior mas também no exterior, a colocação da lareira, imposta pelo
promotor, levantou dois tipos problemas: o primeiro de ordem construtiva e o segundo
de ordem estética. A construção das lareiras nos pisos inferiores não colocou em si
nenhum problema de execução, ao contrário das lareiras situadas em cima dos
pavimentos com estrutura em madeira. De facto, esta estrutura não está preparada para
aguentar com uma carga deste tipo, o que obrigou à execução de um reforço em betão
devidamente dissimulado. O segundo problema surgiu durante a construção da
chaminé. Uma vez que as casas beirãs não tinham chaminés, o arquitecto Jorge Paulo
Carolino fez várias propostas cuja intenção era claramente assumir a
contemporaneidade, tal como aconteceu com o tubo de exaustão do termoacumulador,
vulgo cilindro. Estas ideias não foram avante, rejeitadas pelos promotores que
insistiram na construção de uma chaminé “típica” e, ainda, no seu revestimento a
pedra.
Finalmente, no que diz respeito às portas e às caixilharias das janelas – de duas
folhas de abrir e vidros duplos –, é de salientar que todas estas foram executadas em
madeira, assim como as escadas interiores acrescentadas de modo a permitir a
funcionalidade da habitação. Apesar de existirem vestígios de cor em alguns caixilhos,
o dono de obra não aceitou que as janelas fossem pintadas, preferindo optar pelo
verniz que escureceu a cor natural do pinho.
Relativamente aos acabamentos exteriores, relembra-se a proibição por parte da
companhia de electricidade, de modificar a forma e aparência dos contadores
eléctricos. Sendo assim, a opção tomada foi a pintura com uma tinta especial que
confere um aspecto enferrujado. Apesar de o arquitecto não considerar esta solução
como opção mais adequada, era a única autorizada pela companhia e, sempre
aparentava melhor do que as caixas de contadores originais. É de salientar que esta
tinta acabou por ser usada noutros elementos tais como a indicação dos números das
portas, os candeeiros dos alpendres e ainda a sinalética existente na aldeia. No que diz
respeito à iluminação das ruas, os postes também não puderam ser modificados,
110 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[95] [96]

[97] [98]

[99] [100]

[101] [102]

Comparação entre as casas existentes antes da reabilitação e o aspecto destas depois desta intervenção
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 111
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

conforme o desejo do arquitecto, e foram então escolhidas luminárias de desenho


simples e minimalista de modo a marcar a contemporaneidade. Ainda no exterior das
casas, existiu um grande cuidado de escolha dos materiais. De facto, por causa do frio,
da geada e das variações climáticas, foram escolhidos materiais naturais como por
exemplo tijoleira de barro sem vidrados para não correrem o risco de estalar.

Esta descrição da execução da obra permite verificar a ocorrência de um conjunto


de problemas que parecem ter sido causados, por um lado, pela procura de soluções
directamente efectuada na fase de obra e, por outro, por imponderáveis que foram
surgindo e resolvidos graças ao acompanhamento da obra. De modo a concluir este
estudo sobre Póvoa Dão, é então possível descrever esta reabilitação do seguinte
modo:
Em primeiro lugar, existiu uma clara vontade do promotor em respeitar a feição
original da casa popular beirã apesar de, por um lado, já não ser fácil encontrar
artesãos que saibam construir com as técnicas tradicionais, por outro, porque este tipo
de construção encarece imenso a obra e, finalmente, porque não existia qualquer tipo
de protecção que obrigasse ao respeito pelas construções existentes. No entanto, este
desejo do promotor, levado em demasia, associado ao facto de esta intervenção acabar
por ser mais uma reconstrução do que uma reabilitação, acabou por tornar a aldeia
numa imitação, num fachadismo, uma vez que a autenticidade estética e, de certo
modo, a autenticidade construtiva foram pervertidas. De facto, a opção de uniformizar
o conjunto em vez de distinguir os elementos acrescentados ou alterados, como por
exemplo as chaminés ou ainda o uso da cor nos caixilhos, acaba por ter um impacto
sobre a integridade da casa como testemunho do passado. Ao assumir a
contemporaneidade, como aliás desejava o arquitecto Jorge Paulo Carolino, a leitura
do conjunto podia ter ganho mais a nível do respeito pela autenticidade estética e
histórica. Apesar destas constatações, é de salientar que existiu um considerável
empenho em respeitar a autenticidade de materiais.
Em segundo e último lugar, salientam-se as dificuldades que existiram em
compatibilizar as exigências relativas à ética de conservação com as exigências
regulamentares assim como com as entidades externas relativas às infra-estruturas. De
facto, por um lado existiu um certo facilitismo por parte da câmara que permitiu
manter algumas das características exteriores da casa popular beirã, nomeadamente a
dimensão dos vãos, apesar de a intervenção não ser uma reabilitação propriamente
dita. Por outro lado, a resistência por parte da companhia de electricidade em não
112 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

Quintã de
Pêro Martins
Figueira
de Castelo
Rodrigo

[103] Localização de Quintã de Pêro Martins, Concelho de Figueira de Castelo Rodrigo

[104] Vista área da aldeia e localização da Quinta de Pêro Martins com vista para o vale do rio Côa

[105] Quinta de Pêro Martins antes da intervenção [106] Vista da quinta após a reabilitação
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 113
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

deixar modificar as caixas dos contadores, que acabaram por ser pintados com uma
tinta que imita a ferrugem, reflecte a dificuldade em compatibilizar os princípios
orientadores da intervenção com as exigências impostas por entidades externas. Estes
problemas parecem surgir do facto de não existir regulamentação específica, ou mais
excepções, destinadas a facilitar o respeito pelas características do edifício alvo de
reabilitação, designadamente no caso das construções vernáculas uma vez que para os
edifícios classificados já existem regras que obrigam à protecção da integridade do
edifício.

A Quinta de Pêro Martins

A Quinta de Pêro Martins fica situada na região da Beira Interior Norte, mais
precisamente numa aldeia do concelho de Figueira Castelo Rodrigo chamada Quintã
de Pêro Martins. Foi adquirida em 2002 por um jovem casal, Miguel Torres,
arquitecto, e Sara Noro, designer de interiores, com o intuito de lá morarem mas
também de lá desenvolverem uma unidade de turismo em espaço rural. Sendo os dois
profissionais na área da construção, foram os donos da casa que executaram o projecto
de reabilitação.

“Este projecto pretendeu adaptar uma habitação rural beirã a unidade


de turismo em espaço rural (…). Pretendeu-se ao mesmo tempo
conservar os aspectos mais marcantes e interessantes do núcleo de
arquitectura rural e prestar aos hóspedes um serviço de qualidade, com
conforto [e] comodidade (…)”.55

Apesar de ser relativamente recente, inícios do século XX, esta habitação


apresenta-se com as principais características da casa popular beirã, razão pela qual foi
escolhida como caso de estudo neste trabalho.
Face ao exposto e baseando-se na entrevista efectuada a Sara Noro56, dona da casa
e designer de interiores, o seguinte estudo pretende esclarecer o processo de
intervenção levado a cabo para a reabilitação da Quinta de Pêro Martins.

55
Ver http://www.quintaperomartins.com/layout.html
56
Ver anexo 2
114 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[107] Fachada Poente com escadas de granito e alpendre [108] Beiral duplo

[109] Vista do pátio interior situado entre a casa e os anexos

[110] Primeiro piso com carpintarias em bom estado de [111] Loja com vigas de madeira
conservação
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 115
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

Uma vez que a casa apresentava um bom estado de conservação antes da


intervenção, parece pertinente fazer uma descrição das condições prévias que a
definiam antes de passar para a obra de reabilitação em si. Sendo assim, é possível
identificar os seguintes aspectos:
- A Quinta de Pêro Martins encontra-se à entrada da aldeia mas fora do núcleo
principal desta e possui uma paisagem aberta sobre o planalto granítico de Ribacôa.
A quinta era composta por uma casa de habitação e construções anexas que
serviam de apoio à agricultura. Estas construções estavam organizadas em forma
de U, criando um pátio entre elas, por onde se efectuava a entrada para a loja e para
os anexos.
- A tipologia da casa remete para a construção tradicional beirã, de planta
rectangular, com dois pisos, sendo o de baixo a “loja” e o de cima destinado à
habitação. Pelo facto de ser relativamente recente, relembra-se que data dos anos
20 ou 30 do século passado, esta casa apresenta grandes dimensões, ao contrário
das habitações mais antigas e modestas.
- A feição exterior apresenta as principais características da casa popular beirã, ou
seja, escadas exteriores em granito com alpendre – a estrutura do alpendre era de
ferro apesar de existirem vestígios de uma anterior em madeira –, um beiral
saliente – sendo aliás um beiral duplo – e as paredes exteriores em granito. Esta
casa apresenta uma particularidade relativamente às fachadas, as paredes orientadas
a Norte e Nascente apresentavam a pedra à vista enquanto as outras duas, viradas a
Sul e Poente, eram rebocadas de cor branca.
- Nesta zona da Beira Alta as paredes eram constituídas por pedras relativamente
pequenas de granito da zona, chamado amarelo de Figueira, assentes com uso de
argamassa feita de barro, com uma tonalidade alaranjada. Nos cunhais, nos vãos e
nas escadas exteriores, eram usadas pedras maiores de maneira a reforçar e
aguentar as cargas que incidem nessas zonas.
- No interior, o piso da loja era todo de pedra à vista e ostentava vigas de madeira
em óptimo estado de conservação.
- O piso destinado à habitação tinha paredes divisórias em tabique que estavam em
bom estado de conservação. As janelas e portas eram de madeira de pinho e não
tinham nem pintura nem vernizes, não apresentando deteriorações de grande porte,
apenas algumas infiltrações e algum caruncho.
- No piso do sótão era possível observar a estrutura da cobertura, toda de madeira e
igualmente em bom estado.
116 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[112] Porta interior existente [113] Porta após reabilitação [114] Corredor no piso privado

[115] Sala de estar para uso do turismo em espaço rural [116] Coexistência entre o novo
e o antigo

[117] Granito da região [118] Caixilharia exterior em [119] Perfis de ferro


madeira de câmbala
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 117
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

- Ainda no exterior mas na zona do pátio situado entre as construções, o pavimento


é a rocha natural que apresenta um desnível considerável desde a entrada até aos
anexos situados no fundo do pátio.

“(…) Não havia muita obra que se tivesse que fazer de novo, ou seja,
podíamos pegar na casa e trabalhar dentro da casa.”57

Os tópicos acima expostos identificam, resumidamente, as condições intrínsecas à


quinta. De modo a registar o existente foi efectuado um levantamento geométrico e
fotográfico das construções e alguma pesquisa histórica, esta última sem grande
relevância uma vez que a dona da quinta já tinha efectuado alguns estudos sobre este
tipo de construções, no âmbito académico. Optou-se por não colocar os desenhos
cedidos por Sara Noro uma vez que a escala em que foram desenvolvidos não traz
mais informação do que é possível identificar nas fotografias.
Antes de passar à fase de projecto ainda foram identificadas uma série de
condicionantes e de exigências das quais se salientam as seguintes:
- A quinta não possuía as infra-estruturas básicas de saneamento nem de
abastecimento de água.
- Devido às funções que pretendia desempenhar, o turismo rural e a habitação dos
donos, era necessário efectuar alguma adequação funcional uma vez que não
existiam nem cozinha, nem instalações sanitárias.
- Especificamente no caso do turismo, o projecto tinha que ir a apreciação e ser
aceite pelo Turismo de Portugal58.
- Relativamente às exigências de conforto térmico e acústico, sendo o projecto
anterior à saída dos diplomas legais, as exigências da época não eram tão rigorosas
e, portanto, não impunham tantos requisitos como existem actualmente.
- Por outro lado, também não existia qualquer tipo de exigências relativamente à
conservação uma vez que este imóvel não é abrangido por protecção legal.
- Uma das dificuldades habituais é também aqui facilitada, uma vez que foram os
próprios donos da quinta que elaborarem o projecto.

57
Ver anexo 2
58
É de salientar que hoje em dia a avaliação deste tipo de turismo é efectuada pela câmara municipal do local do
empreendimento.
118 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[120] Zona de jantar com passa pratos para a cozinha [121] Escada em caracol

[122] Acesso aos quartos [123] Um dos três quartos situados na casa-mãe

[124] Quarto de um dos anexos [125] Acesso à casa de banho


privativa
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 119
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

Frente às condições intrínsecas à casa e tendo em conta as exigências necessárias


para esta tornar a ser habitável foi possível começar a elaborar o programa, organizar
os espaços e, portanto, fazer o projecto de reabilitação. A fase de projecto foi
desenvolvida seguindo as seguintes ideias:
- A ideia principal consistia na manutenção dos elementos existentes tal como
estavam e deixar alguma patine do tempo à vista, nos espaços reservados ao uso
privativo dos donos da casa. “Tudo o que não fosse nossa casa, que fosse comum
ou que fosse só para hóspedes ia ter uma linguagem mais contemporânea (…)”59.
- O piso de cima e o sótão iriam acolher o programa da habitação dos donos da
casa enquanto o piso da loja e os anexos seriam adaptados de modo a receber os
espaços destinados ao turismo em espaço rural.
- Os donos queriam respeitar os materiais já presentes na casa – a madeira de
pinho, o granito da região chamado amarelo de Figueira –, acrescentando outros
compatíveis tanto a nível estético como construtivo. Sendo assim e também por
questões práticas, foram escolhidos o xisto de Foz Côa, existente em aldeias
vizinhas, o ferro e ainda uma madeira exótica, a kâmbala, nas caixilharias
exteriores de modo a se tornarem mais duráveis.
- A estrutura seria aproveitada, tendo apenas que ser reforçada pontualmente por
perfis metálicos.
- Apesar da casa se apresentar muito escura no interior, foi vontade dos donos
manter os vãos existentes e não acrescentar mais nenhum na habitação
propriamente dita.
- A colocação de infra-estruturas seria efectuada de modo a ser o menos invasiva
possível, ou seja, evitando mexer no existente para a inclusão destas.
- Apesar de não ser obrigatório criar acessos a pessoas com mobilidade reduzida, a
ideia ainda foi ponderada mas finalmente abandonada por ser uma adaptação que
se tornaria muito difícil de fazer uma vez que existem muitos desníveis tanto no
exterior como no interior da casa.

Segundo contou Sara Noro, o programa surgiu intuitivamente de maneira a


aproveitar ao máximo os espaços:

“Esta parte foi muito simples, sabíamos que a escada tinha que ser aqui
porque tínhamos o quarto escuro lá em cima e não queríamos estar a
desaproveitar nada e era a zona mais favorável no sótão para subirmos,

59
Citação retirada da entrevista a Sara Noro, ver anexo 2.
120 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[126] Fachada Norte antes da intervenção [127] Fachada Norte actualmente

[128] Anexos no fundo do pátio [129] Pátio e construções anexas antes da reabilitação

[130] Alpendre em madeira [131] Janelas de vidro único nas zonas de serviço

[132] Novo alpendre na [133] Reconstrução do beiral [134] Manutenção do desenho


fachada Norte do caixilho original
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 121
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

sabíamos que a cozinha tinha que ser para ali para aproveitarmos as
pocilgas e que aqui tínhamos que ter uma zona mais desafogada para
entrar para os quartos de hóspedes, pareceu-nos bem que a sala de
refeições fosse perto da cozinha e que tivesse um passa pratos ou uma
coisa do género que dê-se funcionalidade à sala de refeições, pronto e as
coisas foram surgindo.”

O mais difícil parece ter sido a inclusão dos três quartos na casa-mãe,
principalmente em termos de áreas e de funcionalidade devido à articulação com as
instalações sanitárias privativas. De resto, a elaboração do programa foi finalizada sem
problemas, algumas vezes com recurso a pareceres prévios de modo a ter a certeza que
este respeitava as condições necessárias à função de turismo rural. Um destes
pareceres foi pedido , por exemplo, para esclarecer a possibilidade de criar uma zona,
no interior dos quartos situados nos anexos, com equipamentos que permitissem a
confecção ou o aquecimento de comida. Uma vez que a legislação impedia a
instalação deste tipo de equipamentos no compartimento do quarto e que não havia
espaço para criar uma sala onde pudesse haver uma kitchenett, foi abandonada a ideia,
que nem chegou a ser incluída no projecto que foi avaliado para licenciamento.

De seguida, começou a obra que foi seguida diariamente por Sara Noro e Miguel
Torres, facto que permitiu estar sempre em cima dos acontecimentos e corrigir alguns
problemas que iam surgindo.
No que diz respeito à feição exterior, a casa principal manteve a aparência inicial.
As fachadas rebocadas foram pintadas de branco e as de pedra foram mantidas
conforme estavam. A estrutura do alpendre situado por cima das escadas exteriores foi
refeita, em madeira, e os elementos de ferro que a sustentavam foram substituídos por
perfis metálicos. Na fachada Norte foi acrescentado outro alpendre, igualmente com
estrutura metálica. Devido à falta de luz, as antigas portas de madeira que davam
entrada para a loja e as portas de ferro que davam acesso às pocilgas, por baixo das
escadas, foram substituídas por janelas de vidro único que permitem uma maior
entrada de luz. No entanto as portadas também foram mantidas para preservar tanto do
frio como do calor. Nas restantes janelas, foi mantido o desenho inicial e os caixilhos
foram refeitos em madeira de kâmbala, pintada em estufa, de maneira a ficar mais
durável.
Nos anexos, os paramentos exteriores foram refeitos com os materiais da região,
granito amarelo de Figueira e argamassa feita a partir de barro. De maneira a permitir
122 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[135] Sala de estar com paredes rebocadas a branco [136] Coexistência entre granito
e reboco

[137] Paredes de gesso cartonado [138] Recuperação da estrutura da cobertura

[139] Encaixe tradicional da [140] Pilar acrescentado para [141] Reforço da viga
asna reforço do cunhal
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 123
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

o uso destes espaços, tiveram que ser abertas janelas que seguiram o desenho existente
na casa apesar de simplificado.

“(…) tentámos que houvesse uma linguagem comum a todas as


janelas.”60

As obras executadas no interior da casa remetem essencialmente para um reforço


da estrutura existente e para uma organização dos espaços que fosse adequada à
função pretendida. Como já foi dito, o piso inferior, destinado ao uso turístico, ficou
pontuado por elementos que marcam a contemporaneidade. A sala a partir da qual se
tem acesso às zonas comuns apresenta um pavimento de xisto de Foz Côa, clivado,
cuja métrica representa a projecção das vigas no chão. Uma vez que cada peça
apresentava um formato diferente, foi necessário efectuar previamente a marcação
destas no chão para, depois, o xisto ser cortado à medida e aplicado. Na sala ainda
existe uma escada metálica em caracol, de acesso ao piso de cima, que foi colocada de
maneira a aproveitar o compartimento fechado existente no piso superior.
Relativamente às paredes exteriores do antigo piso da loja, era suposto a pedra ficar
à vista mas por opção da dona da casa, estas acabaram por ser isoladas termicamente,
revestidas a gesso cartonado e rebocadas. É de salientar que esta opção foi
essencialmente tomada por causa da sujidade proveniente da pedra além de, por um
lado, tornar a sala mais clara devido ao uso da cor branca e, por outro lado, permitir
um maior conforto térmico no interior da habitação. As paredes divisórias que não
foram construídas em tijolo, foram executadas com um painel sandwich composto por
placas de gesso cartonado, isolamento térmico e algumas com isolamento acústico. No
piso destinado à habitação dos donos, todas as paredes são rebocadas, foram mantidos
os tabiques originais – os quais foram limpos e rebocados de novo –, e as paredes
acrescentadas seguiram a mesma técnica construtiva que as do piso inferior, ou seja,
de gesso cartonado. Ainda no piso superior e com intuito de reduzir as pontes
térmicas, existiu o cuidado de colocar isolamento térmico nas zonas dos vãos, que foi
revestido a gesso cartonado e finalmente rebocado.
No que diz respeito à estrutura, como já foi referido, esta foi mantida apesar de ter
sido reforçada com elementos metálicos. De facto, de maneira a consolidar as vigas de
madeira existentes na sala que aguentavam com o piso superior, foi necessário
executar uma cintagem de ferro. No piso do sótão, a estrutura de madeira da cobertura
ficou à vista e foi apenas tratada contra os ataques dos xilófagos. Uma das paredes dos

60
Citação retirada da entrevista a Sara Noro, ver anexo 2.
124 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[142] Recuperado de calor [143] Calha metálica [144] Percurso através o pátio

[145] Vista do pátio com acesso aos quartos dos anexos [146] Acesso à casa

[147] Vista da Quinta de Pêro Martins após intervenção de reabilitação


Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 125
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

cunhais começou a ceder, obrigando à colocação de perfis metálicos de modo a retirar


alguma carga à parede.
O seguimento diário da obra foi essencial para resolver este tipo de problemas que
foram surgindo na obra, mas também para verificar que estava a ser executada
conforme o planeado. Neste âmbito, um dos incidentes que ocorreu foi os operários
começarem a limpar as vigas da sala ao contrário do que pretendiam os donos que
desejavam manter a marca do tempo.

Finalmente, no que diz respeito à colocação das infra-estruturas, é possível dizer


que existiu um grande cuidado para estas não interferirem na leitura da casa, tanto no
interior, como no exterior. De facto, dentro de casa, todas as tubagens relativas às
ventilações e ao aquecimento foram colocadas no interior das paredes de modo a não
terem nenhum impacto visual. Na sala, a lareira existente acabou por ser substituída
por um recuperador de calor que permite o aquecimento das zonas comuns da casa. No
entanto, existe ainda um sistema de aquecimento central, instalado na garagem que se
situa num dos antigos anexos. Todas estas infra-estruturas, os tubos de abastecimento
de água, de saneamento e ainda os cabos eléctricos têm passagem obrigatória pela
zona do pátio. Uma vez que o pátio tem uma rocha natural como pavimento, estas
infra-estruturas foram dissimuladas por baixo de uma calha metálica disposta de
maneira a configurar um percurso, alternado com lajetas de granito, que une a casa
principal à entrada dos quartos situados nos anexos. Além de não descaracterizar a
rocha existente no pátio e de ter um uso funcional, esta grelha marca a
contemporaneidade da obra. Abrangida ainda por parte da rocha, a construção dos
anexos foi ligeiramente levantada para permitir, por um lado, manter a rocha sem ter
que a picar e, por outro lado, passar as infra-estruturas para o interior dos quartos a
partir do pavimento.

A execução da obra demorou um ano e três meses e ficou concluída em 2005.


Quatro anos mais tarde, os únicos problemas que têm surgido são algumas fissurações
e pequenas infiltrações inerentes às construções em geral. Tem-se notado ainda algum
trabalho das caixilharias de madeira que incham por causa da humidade e das
variações de temperatura, embora estas situações não terem muita gravidade uma vez
que foi escolhida uma madeira exótica que trabalha menos do que o pinho.

De modo a concluir este ponto relativo à reabilitação da Quinta de Pêro Martins,


convém salientar as seguintes questões. Em primeiro lugar, realça-se o facto de terem
126 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

sido os donos da obra a efectuar o projecto, situação que facilita muitas das questões
inerentes ao processo. No entanto, parece que esta situação não proporcionou o
envolvimento de diversos especialistas, nem uma análise prévia mais aprofundada
conforme sugerido na metodologia descrita no capítulo anterior. Em segundo lugar, é
de salientar a manutenção, na íntegra, da estrutura existente assim como o respeito
pela feição original da casa, no exterior mas também no segundo piso destinado ao uso
dos donos. Em terceiro lugar, a obra realizada reflecte a clara intenção de marcar a
contemporaneidade usando, nos elementos novos, materiais que se distinguissem dos
originais mas, compatíveis com esses. Finalmente, é de salientar que a inclusão das
infra-estruturas e a adaptação dos espaços foram realizadas de modo a respeitar o
edifício existente, tanto do ponto de vista construtivo como formal e ainda estético.

Dificuldades da concretização

Após o estudo dos casos anteriormente apresentados é possível salientar a


existência de uma série de dificuldades que surgem no acto de concretização do
projecto de reabilitação, assim como falhas relativamente ao seguimento da
metodologia referida no anterior capítulo. Este ponto pretende apontar os principais
problemas identificados nestes exemplos e explicar, quando possível, o porquê.

No que diz respeito à fase de levantamento, sugerida como ponto de partida para o
desenvolvimento de uma intervenção de reabilitação, é de realçar uma grande falta de
estudos e análises em ambos casos. Como já foi referido, no caso específico da
reabilitação da arquitectura vernácula a falta de enquadramento por entidades
reguladoras do património faz com que não seja obrigatório, por um lado, a
constituição de uma equipa pluridisciplinar de especialistas e, por outro, a elaboração
de análises e estudos sobre os materiais e as estruturas. Uma vez que o recurso a estas
medidas implica, do ponto de vista económico, um gasto considerável e, em
contrapartida, não existe o “peso moral” de estar a intervir sobre um edifício
classificado, estas medidas não costumam ser tomadas no âmbito do património
construído vernáculo. Por outro lado e de um ponto de vista realista, é possível afirmar
que se não fosse com vista ao uso turístico, parece bem provável que estas construções
ainda nem sequer fossem valorizadas, pelo menos em Portugal, apesar de, no âmbito
Parte III _ A Reabilitação do Património Construído Vernáculo 127
A prática da reabilitação _ do modelo metodológico à realidade das situações

internacional, estas terem sido reconhecidas como pertencentes ao património cultural


de cada país.
Face ao exposto é possível dizer que, se por um lado o uso turístico permite
salvaguardar este tipo de construções, por outro, o desejo de promoção turística acaba
por ganhar mais peso nas opções tomadas durante o processo do que, como seria
desejável, a vontade de salvaguardar os testemunhos de um património em risco de
desaparecimento. O exemplo de Póvoa Dão reflecte claramente esta ideia, de facto,
conforme afirmou o arquitecto Jorge Paulo Carolino, a insistência por parte dos
promotores em promover uma imagem rústica estava directamente ligada ao facto de
quererem abranger um certo tipo de clientela.
De modo a concluir sobre este aspecto, é necessário salientar que a posição ética
tomada pelo arquitecto é extremamente relevante no desenvolvimento do processo de
reabilitação, assim como o seu papel na consciencialização do dono de obra. No
entanto, uma vez que não existem imposições de ordem patrimonial que possam
justificar uma postura considerada eticamente correcta, o papel do arquitecto torna-se
ingrato quando o que é pretendido pelo dono de obra vai contra a observância dos
princípios éticos da reabilitação.

No que diz respeito à fase de projecto, as principais dificuldades parecem ser a


adequação funcional, a inserção de infra-estrutura – e consequentemente a
compatibilização do projecto de arquitectura com os projectos de especialidades – e
ainda, o respeito pelas normas regulamentares sem comprometer a qualidade
arquitectónica. De facto, começando pela adequação funcional, é importante salientar
que, devido à forma e às dimensões da casa popular vernácula, torna-se complicado
organizar os espaços de modo a estes responderem às necessidades da vida moderna.
A inserção das infra-estruturas básicas de abastecimento de água e de saneamento é
uma constante na reabilitação deste tipo de património uma vez que são edifícios
muito antigos construídos antes de existirem estas redes infra-estruturais. Por outro
lado, existem novas infra-estruturas relativas à ventilação e ao aquecimento que são
essenciais para atingir o nível de higiene, conforto e salubridade requerido hoje em
dia. Sendo assim, há que ter em atenção os problemas que a inclusão destes elementos
possa causar, como por exemplo o aumento de carga que possa danificar a estrutura
existente ou ainda o impacto visual que estas podem ter quando não podem ser
inseridas nos elementos construtivos. Face ao exposto salienta-se a importância da
compatibilização entre o projecto de arquitectura e das especialidades que permitem
128 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

prever a existência de problemas numa fase prévia. No caso de Póvoa Dão, este tipo
de problemas foi resolvido em obra, relembra-se assim a necessidade de reforço da
estrutura de madeira do pavimento com betão armado de modo a esta poder aguentar
com o peso da lareira.
No que se refere ao respeito pelas normas regulamentares, relembra-se novamente
a falta de regulamentos específicos para os casos de reabilitação que tivessem em
conta as dificuldades de adaptação das normas vigentes às pré-existências. Este facto
obriga a adaptações que, por vezes, impedem a observância dos princípios relativos à
conservação, influenciando deste modo a qualidade da intervenção de um ponto de
vista ético. Sobre este assunto, relembra-se o caso de Póvoa Dão, em que foi a
flexibilidade permitida por parte da câmara municipal que permitiu garantir a
dimensão dos vãos das casas, impedindo uma total descaracterização da feição das
casas.

Finalmente, na fase de obra salienta-se a extrema importância do seu


acompanhamento por partes dos intervenientes. De facto, como aconteceu em ambos
casos e aliás acontece em quase todos, existem sempre imponderáveis que surgem no
acto de execução do projecto. Relembra-se por exemplo em Póvoa Dão o problema
das infiltrações nas paredes exteriores de pedra ou ainda, na Quinta de Pêro Martins, a
parede do cunhal que começou a ceder. No primeiro caso, se o recurso aos técnicos do
Laboratório Nacional de Engenharia Civil tivesse sido mais cedo, a resolução do
problema podia ter sido melhor ponderada em vez de ser resolvida directamente em
obra. Em ambos casos convém no entanto questionar-se acerca da possibilidade de
estes problemas terem surgido por causa de não ter havido análises mais
especializadas que poderiam ter determinado, previamente, as anomalias presentes na
pedra e as patologias da estrutura. De facto, conforme foi dito mais acima, a maioria
das intervenções neste tipo de património não são consideradas suficientemente
“importantes” que justifiquem o facto de usar este tipo de recursos. Apesar de serem
medidas dispendiosas, a sua falta causa problemas cuja resolução acaba por encarecer
ainda mais a obra.
Conclusão 131

Conclusão

Antes de concluir sobre os ensinamentos retirados deste trabalho convém relembrar


que o seu objectivo pretendia a aquisição dos conhecimentos necessários para levar a
cabo uma intervenção de reabilitação no património vernáculo da Beira Alta numa
perspectiva turística. De modo a adquirir estes conhecimentos foram efectuados vários
estudos que permitissem abordar todos os conceitos, todas as questões implícitas no
tema principal. A metodologia seguida traduziu-se na elaboração de três partes que,
apesar de poderem ser lidas separadamente, se completam umas às outras permitindo
um total conhecimento sobre o assunto e, consequentemente, uma abordagem rigorosa
ao tema.
Após a primeira parte ter identificado as características do objecto de estudo – a
casa popular beirã –, a segunda permitiu adquirir conhecimentos teóricos acerca da
salvaguarda e da valorização do património construído vernáculo que salientaram a
necessidade de dar um novo uso a estas construções. A reabilitação com fins turísticos
revelou ser a solução que dá melhor resposta a esta necessidade, razão pela qual a
terceira parte consistiu no estudo aprofundado desta intervenção. Em si, foi esta última
parte que permitiu uma aprendizagem mais profícua à prática profissional uma vez
que incidiu sobre questões concretas relativas à prática da arquitectura.

A elaboração deste trabalho permitiu uma certa especialização no âmbito da


reabilitação em geral, apesar de ter principalmente focado o caso da arquitectura
vernácula da Beira Alta, numa perspectiva turística. A última parte suscitou uma
particular reflexão sobre o papel do arquitecto: a posição que deve ter, as soluções que
deve encontrar, os problemas que deve resolver e as dificuldades que deve ultrapassar.
O processo de reabilitação revelou-se extremamente complexo e não parece existir
método “perfeito” para concretizar esta intervenção até porque, como foi dito, cada
caso é um caso. No entanto, é possível afirmar sem sombra de dúvidas que cabe ao
arquitecto zelar pelo respeito da nossa arquitectura vernácula e adequá-la às
necessidades impostas pelo modo de vida actual. Para isso o arquitecto tem que ter,
antes de tudo, um conhecimento aprofundado sobre o objecto alvo de reabilitação. Foi
aliás a consciência desta necessidade que levou à elaboração da primeira parte.
De seguida o arquitecto tem que adoptar uma postura que privilegie o edifício e
não a vontade de deixar o seu cunho pessoal. De facto, uma vez que esta intervenção
actua sobre uma pré-existência, não se pode crer dissimular a traça original com uso
132 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

de elementos contemporâneos que a façam parecer algo que não é. Senão, para quê
reabilitar? Não valeria mais destruir e fazer de novo? Esta afirmação não deve no
entanto levar à imitação e ao fachadismo, bem pelo contrário. Na minha opinião, tem
que ser encontrado uma solução intermédia que, por um lado, respeite a pré-existência
e, por outro lado, se assuma como marca contemporânea. Esta solução exige um
grande trabalho por parte do arquitecto a quem compete garantir a coerência do
resultado final a nível estético, formal, funcional e também a nível construtivo. Acerca
deste assunto relembra-se ainda o conceito de compatibilidade que aparece inerente ao
processo de reabilitação.
Finalmente, convém ainda salientar o papel de “gestor” do arquitecto que remete
para a compatibilização de uma série de exigências provenientes do dono de obra, das
entidades reguladoras e das normas impostas por lei, além da coordenação do trabalho
dos restantes técnicos intervenientes. Os casos de estudo permitiram salientar algumas
das dificuldades resultantes da incompatibilidade existente entre estas exigências e
concluir que estas condicionam em muito o desenvolvimento do processo de
reabilitação. De modo a facilitar a execução do projecto, convém então o arquitecto ter
um conhecimento rigoroso das leis que regem este tipo de intervenção as quais, como
já foi visto, remetem essencialmente para as normas relativas à edificação em geral.

De modo a concluir, posso afirmar que todos os estudos efectuados para a


elaboração deste trabalho permitiram aprofundar o meu conhecimento acerca dos
temas mais teóricos – expostos essencialmente na segunda parte – e, tirar conclusões
acerca do processo de reabilitação que constituem uma bagagem que se revelará,
espero eu, extremamente útil na minha prática profissional.
Bibliografia 135

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142 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

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Portaria n.º 937/2008, de 20 de Agosto, que estabelece os requisitos mínimos a


observar pelos estabelecimentos de turismo de habitação e de turismo no espaço rural.
Referências iconográficas 143

Referências iconográficas

Todas as fotografias são do autor, exceptuando as imagens seguintes:

[1] Mapa do autor com base na imagem disponível em


http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/55/Provincias_Portugal_legenda.p
ng, retirada em 17/09/09.

[2] Mapa do autor com base nas imagens disponíveis em


http://portugal.veraki.pt/distritos/fpage.php, retirada em 17/09/09.

[12] Imagem disponível em http://www.quintadebispos.com/beira-alta/vinhas-


dao.html, retirada em 17/09/09.

[15] Imagem disponível em


http://www.trekearth.com/gallery/Europe/Portugal/North/Guarda/Loriga/photo917291
.htm, retirada em 17/09/09.

[17] Imagem disponível em http://ipt.olhares.com/data/big/81/812059.jpg, retirada em


17/09/09.

[35] Imagem disponível em http://i.olhares.com/data/big/152/1527858.jpg, retirada em


17/09/09.

[36] Imagem disponível em http://www.prof2000.pt/users/cfaeca/cidaldeia/foto06.jpg,


retirada em 17/09/09.

[40] Imagem cedida pelo Arquitecto Jorge Paulo Carolino.

[41] Imagem disponível em http://raizes.no.sapo.pt/Espigueiro%20-%20Caramulo.jpg,


retirada em 17/09/09.

[42] Imagem disponível em http://paradadegonta.blogs.sapo.pt/746.html, retirada em


17/09/09.

[43] [44] [45] [46] Imagens retiradas de Arquitectura Popular em Portugal. 3ª ed.
Lisboa: Associação dos Arquitectos Portugueses, 1988.

[55] Mapa do autor com base nas imagens disponíveis em


http://portugal.veraki.pt/distritos/fpage.php, retirada em 17/09/09.
144 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

[56] Imagem disponível em http://www.povoadao.com/, retirada em 17/09/09.

[57] Imagem retirada do Google Earth.

[59] a [83]Imagens cedidas pelo Arquitecto Jorge Paulo Carolino.

[86] [87] [88] Imagens cedidas pelo Arquitecto Jorge Paulo Carolino.

[95] a [102] Imagens cedidas pelo Arquitecto Jorge Paulo Carolino.

[103] Mapa do autor com base nas imagens disponíveis em


http://portugal.veraki.pt/distritos/fpage.php, retirada em 17/09/09.

[104] Imagem retirada do Google Earth.

[105] Imagem cedida por Sara Noro.

[107] a [112] Imagens cedidas por Sara Noro.

[126] Imagem cedida por Sara Noro.

[129] Imagem cedida por Sara Noro.

[135] Imagem cedida por Sara Noro.


Anexo I _ Entrevista ao arquitecto Jorge Paulo Carolino 147
A aldeia de Póvoa Dão

Entrevista efectuada ao arquitecto Jorge Paulo Carolino,


18 de Setembro de 2010.

Jorge Paulo Carolino: Há um livrinho que depois lhe posso facultar que tem toda a história de
Povoa Dão. Nos dias mais recentes esta quinta era de uma família cujo nome me devia lembrar,
mas não me lembro. Que produzia aqui tudo o que tinha a ver com agricultura; tinham os
vinhos, enfim tinham imensas coisas. Estas casas derivavam de um empréstimo que os donos
da quinta, desta grande propriedade, cediam, gratuitamente. As pessoas iam construindo as
suas casas e trabalhavam, e tiravam, como sabe, parte do proveito para eles próprios, para
consumo. As casas estavam em perfeito estado de ruína. Havia uma zona mais consolidada,
ainda havia os paramentos exteriores. Normalmente eram casas que se resumiam a 4 paredes,
com uma cobertura, parte da parede enfarruscada, de fazer as refeições, com telha levantada,
que era o que eles utilizavam. Eram casas muito rudimentares. A casa maior, é a casa onde
agora ainda lá está um senhor, é o Sr. Soares. Entretanto as pessoas foram saindo, até que ficou
só esse senhor e a senhora. Tomavam conta daquilo… Esta quinta foi depois posta à venda e
estes senhores compraram-na. Aquilo, como lhe dizia há pouco, estava num estado lastimoso, e
foi sendo recuperado. Agora o problema era, como é que se recuperaria isso. De que moldes?
Então começou-se por fazer o levantamento do existente, o qual não fomos nós que fizemos…
O levantamento começou por um levantamento aerofotogramétrico, depois fez-se um
levantamento topográfico, depois fez-se o levantamento das casas uma a uma.

Sara Ribeiro: Geométrico e fotográfico? Plantas, alçados, uma a uma?

JPC: Sim, mas daquilo que havia, atenção! E com base nisso, depois partiu-se para o projecto.
Como disse, o aglomerado da aldeia foi dividido em vários núcleos, e cada núcleo tem diversas
casas. E foram-se fazendo os projectos assim. Vamos agora pegar neste núcleo e vamos
desenvolver as casas… Quero dizer que também há as casas da eira, que ficam depois daquela
zona lúdica, e as casas dispersas. Esta zona lúdica, como é óbvio, foi criada de raiz. Tirando
uma casinha que lá estava, não havia lá nem lago, nem charco, nem nada dessas coisas.

SR: Por acaso eu só estive nas casas da aldeia. Neste núcleo, as casas foram feitas de modo
tradicional? É tudo na mesma linguagem?

JPC: Foram. Vamos ver! Há aqui três casas, que eu depois posso dar o número, mas são estas
casas que estão aqui [o arquitecto está a apontar para o mapa]. Estas três casinhas que aqui
estão, foram casas que ficaram, foram casas que custaram uma fortuna.

SR: São as que estão perto do café?

JPC: As que estão perto do café… ora eu desço por aqui ao pé do restaurante, a casa melhor
que havia era onde está agora o restaurante, mas não tinha nada a ver com aquilo, claro. Estas
três casas são as que foram feitas mais a preceito. E nessas casas, o que é que nós fizemos?
Tirámos fotografias. Era impossível repor as pedras no mesmo sítio porque eram pedras,
muitas vezes, como eu costumo dizer na brincadeira, pedras broeiras. Portanto pedras que se
desfaziam, sem grande dureza, outras mais permeáveis.

SR: Mas eram dispostas só umas em cima das outras ou tinham algum tipo de argamassa?

JPC: Não, não tinham tipo nenhum de argamassa. Também depende das casas. Como sabe,
pessoas com fracos recursos, iam pondo as pedras umas em cima das outras, não é?
148 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

Possivelmente havia casas, mas eu isso não detectei … Possivelmente, sim esta casa maior já
tinha alguma argamassa, barro essencialmente. Nós fizemos várias experiências para tentar
consolidar aquilo que estava feito e chegámos à conclusão que, em boa parte delas, era
preferível demoli-las. Fotografá-las, registá-las, demoli-las e voltá-las a construir. E quando
digo “voltámos a construir”, não vamos ser utópicos e dizer que a janela estava rigorosamente
ali. Até porque houve que passar de um... aquilo devia ser um T0, era um compartimento
único, e depois tentar fazer um T2 ou T3, não é pêra doce.

SR: Então a tipologia foi modificada em si?

JPC: A tipologia foi modificada. Isso não tenho dúvida nenhuma sobre isso. A tipologia foi
modificada.

SR: Mas ao nível da forma, feição exterior…?

JPC: Repare uma coisa. Quando vir esse livro de que lhe estou a falar, verá que há diferenças
na construção. Há diferenças na construção. Todas as casas, todas as aldeias que eu conheço,
têm mutações, como é óbvio. Por exemplo, há uma aldeia aqui, não é muito perto, mas é uma
das melhores recuperações, foi feita com subsídios do estado, que é a aldeia de Castelo
Rodrigo. Não sei se conhece. Distrito da Guarda.

SR: Por acaso vou lá amanhã.

JPC: Castelo Rodrigo tem uma intervenção completamente distinta do que esta tem. Aliás fez-
se até uma intervenção em algumas zonas do castelo, com soluções contemporâneas, muito
engraçado. Aqui optou-se por não fazer isso. Optou o promotor. Até por que eu acho que uma
das coisas que aqui faz falta na aldeia, é a cor. Acho que faz muita falta na aldeia, porque esta
aldeia em muitas casas tinha cor. As janelas tinham um vermelho, outra vez um azul, pontuado.
Nos bocadinhos de vestígios de madeira que havia, atenção. Embora a maior parte era tudo
madeira natural. Só duas janelas que existiam de sobra é que tinham vestígios disso. Outras,
completamente adaptadas, alguns sítios em que colocaram azulejos por cima das pedras. A
fonte estava perfeitamente adulterada. A única construção que havia com argamassa interior e
exterior era a capela. E agora se lá for é igual. A capela é o único sítio que tem isso. Em relação
às casas, do ponto de vista comercial, e faço a comparação com castelo Rodrigo precisamente
por causa disso, Castelo Rodrigo teve um subsídio, orientou-se essa adaptação tendo por base,
esse valor pecuniário que lhes foi facultado, e portanto o objectivo, visando o lucro como é
óbvio, foi contrabalançado com essa dádiva, não é? Aqui não. Então as pessoas tiveram de
alguma forma, e nisso eu concordo plenamente com elas, tiveram de adaptar as próprias casas
no sentido delas se tornarem habitáveis e que financeiramente pudessem ser…, que pusesse
haver uma compensação. As primeiras três casas como lhe disse, foram feitas por experiência,
uma experiencia que se foi adaptando. Depois contratou-se os canteiros, toda a gente,
carpinteiros… uma panóplia de pessoas, uma equipa vasta, demorou-se uma eternidade a
construir as casas. E depois tentou-se que nas casas seguintes, a construção fosse mais célere.
Que eu saiba, não se utilizou nada de cimento, mas houve um ou dois sítios onde se pôs tijolo,
e está devidamente oculto. Eu estou a falar na construção da casa no seu exterior, porque no
interior houve muitas construções que eu não acompanhei. Fiz só o projecto mas não
acompanhei. Estas de que lhe estou a falar, acompanhei-as e tenho a certeza absoluta daquilo
que aconteceu. Por exemplo, o soalho foi pregado à moda antiga, foi deixado com os pregos,
não foi polido, não houve lá máquinas, a cera foi posta e acabou… Levantava-se o problema de
como se deviam fazer as paredes. Tabique já não podia ser, porque já não havia ninguém que
as fizesse. Então adaptou-se a técnica das paredes de gesso cartonado, com duas placas
sobrepostas, por causa das oscilações das lajes que são em madeira. A estrutura é em madeira.
Anexo I _ Entrevista ao arquitecto Jorge Paulo Carolino 149
A aldeia de Póvoa Dão

SR: Mantiveram a estrutura?

JPC: Não, não mantivemos a estrutura, refizemos a estrutura. Muitas vezes pôde ser adaptada
ao que estava, mas na maioria dos casos as madeiras não existiam. Se vir as fotografias, os
telhados não existiam. O único sítio que estava mais preservado é o restaurante. Portanto
aquilo que agora faz parte do restaurante, antigamente era duas ou três casas. Tinham no meio
uma zona a céu aberto, tinham muitos corrais com as cabras, os porcos… Nós não queríamos
nem porcos, nem cabras nem nada disso. Portanto tínhamos de adaptar as coisas para terem
outra funcionalidade, não é? Há por exemplo algumas paredes do restaurante que estão tal
igual como estavam, há outras que foram modificadas, e pronto é assim.

SR: Mas tornaram a construir com as técnicas tradicionais de madeira?

JPC: Tentámos ao máximo fazer isso. Ou seja, utilizámos a madeira para as estruturas,
utilizámos a madeira para as lajes. É evidente que chegámos à cobertura, por exemplo, e
colocámos outras coisas. Ou seja pusemos madeira, estrutura de madeira, ripado de madeira,
mas em cima do ripado de madeira e antes da telha pusemos, para além do isolamento… Até
porque existe obrigatoriedade de cumprir determinada legislação que, se fosse agora, por
exemplo nas casas que nós estamos a fazer, vamos ter sérias dificuldades para as reconstruir.
Ou há uma excepção na lei para estas coisas, e isso a autarquia e as entidades é que poderão de
alguma forma dizê-lo, ou então é um pouco difícil. Mas falando outra vez da cobertura. A
cobertura teve uma chapa de onduline, que conhece com certeza… É uma chapa ondulada, de
origem francesa, muito boa, e que faz o isolamento acústico, térmico, para além de também
impedir a passagem da chuva. Portanto, é posta a onduline em cima do roofmate, e depois é
colocada a telha em cima. Aquilo é áspero e aguenta a telha. Nos casos mais inclinados, que
são poucos, há-de ver que os telhados de Povoa Dão são muito pouco inclinados, as telhas são
grampeadas.

SR: E usaram o tipo de telha…

JPC: O tipo de telha que lá estava. Procurámos fazê-lo o mais próximo possível. Na altura
houve uma polémica sobre isso para saber se a telha já tinha de ser… Alguém defendia que a
telha devia ter a coloração que vem de fábrica, uma coloração falsa, portanto já com aspecto
rústico, e eu disse que não queria nada disso. Vamos por a telha com o barro normal, depois ela
há-de chegar à sua velhice. As pedras tiveram de ser, infelizmente, todas lavadas. Foi uma
pena, mas pronto, teve de ser.

SR: Foi retirada então a patine, aquela marca do tempo.

JPC: Sim foi. Houve uma coisa nas casas que eu detesto e não consegui mostrar ao promotor.

SR: O promotor é o Grupo Catarino?

JPC: Sim. Eu já lhe mostrei o meu desgosto por isso, pelas chaminés. Aquelas casas nunca
tiveram chaminés!

SR: Pois, a casa típica beirã não tem chaminés.

JPC: Pois. E quando chegámos aquela altura, para a chaminé e a colocação da lareira, foi uma
chatice. Porque as lareiras que havia no primeiro andar, se a estrutura era toda em madeira,
eram de difícil execução. Eu na altura propus que houvesse um aparelho de queima, que nós
chamamos as salamandras, os recuperadores. Mas isso não foi aceite. Então tive de fazer
lareira. Lareira no rés-do-chão ainda dava mas lareira no andar de cima é muito difícil. Como é
150 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

que eu agarro a lareira se eu por baixo tenho uma estrutura de madeira? Então aí tive de utilizar
um reforço em betão. Está devidamente escondido, é uma situação ou outra. E pronto, teve de
se fazer isso. Mas quando chegou à parte de cima, pôs-se a questão de como é que se devia
fazer a chaminé. Eu sugeri que, já que tínhamos de fazer uma coisa que não existia, iríamos
fazê-la em chapa. Portanto, uma chapa que levasse…, em suma eram duas chaminés, digamos,
uma dentro da outra como agora se faz para os aquecimentos centrais, que são aquelas chapas
cilíndricas, aquelas condutas cilíndricas em inox. Do género disso mas não em inox, em chapa.
Chapa que depois levava uma tinta ou então deixava-se à intempérie, mas demoraria muito
tempo. Por uma questão de facilidade, já que a intempérie demora muito tempo, utilizámos
uma tinta com dois componentes. É uma tinta da CIN, muito cara por acaso, que após de
pintada aquilo fica com um aspecto de ferrugem.

SR: Por acaso não usaram isso nas caixas dos contadores?

JPC: Nas caixas dos contadores! As caixas dos contadores eram horrorosas! Como é que nós
vamos fazer isto? Antigamente não havia estas coisas todas que há agora. Na altura eu sugeri
que fizessem, em cada caixa da EDP, um invólucro, como se fosse uma camisa, uma caixa que
entrasse, que tapasse aquilo. A EDP não deixou. Portanto a solução foi, ou pintamos de uma
cor, ou deixamos estar tal e qual assim. Depois daquela tinta ser ensaiada noutros lados,
optámos por usar também aqui. Aquilo é uma coisa meia esquisita até porque quando chega
aos números, é horrível.

SR: Sou sincera, realmente quando olhei para aquilo… Acredito que haja quem goste, mas
realmente pronto. Tenho algumas dúvidas em relação a isso e gosto de falar nisso… em relação
à autenticidade, aos valores estéticos e históricos que se devem preservar. Por outro lado,
gostei imenso de estar em Povoa Dão, do projecto, de sentir a rusticidade do sítio, das
caixilharias serem em madeira, de respeitarem essas coisas, apesar de na realidade não reflectir
o original.

JPC: Não era assim que eu as queria por exemplo

SR: Pois depende, a mim não me incomoda. Enquanto as caixas da EDP, aquela tinta, parecia-
me falso … é fachadismo!

JPC: E é!

SR: Para mim se calhar valia mais assumir. Por algo, …não sei…

JPC: São tão feias!

SR: Algum inox, simples, minimalistas…

JPC: Não deixam pôr! Eu estava-lhe a dizer que éramos para fazer uma caixa, em ferro
natural. Viu a sinalética? Comprámos as chapas e ficaram lá à intempérie não sei quantos
meses, não conseguimos. Pintámo-las. E quando chegámos às caixas da EDP, o que é que a
gente verificou? Verificou que, ou se deixava como estava, o que era horroroso, ou então se
fazia a tal camisa que tapava aquilo tudo. Uma caixa tapava aquilo tudo. Como a EDP não
autorizou, alguém se lembrou de pintar aquilo daquela cor. Já não sei se fui ou quem foi. Não
me lembro. Sei que os números são horrorosos porque pelo menos os números deveriam ter
sido repintados em cima daquela cor de ferrugem. Isso é o que eu opino. Mas há muitas coisas.
E as dificuldades de se fazer alternativas aos elementos ditos verdadeiros, autênticos… Esta
aldeia foi feita, apesar de ter muito tempo, esta aldeia e as casas foram feitas, tirando as três
Anexo I _ Entrevista ao arquitecto Jorge Paulo Carolino 151
A aldeia de Póvoa Dão

primeiras casas, foram feitas rápidas, porque havia a urgência de fazer dinheiro, de pôr a
render. Isto custou muito dinheiro. Ou seja isto não tem a tal dádiva do Estado.

SR: Pois, lá está, Castelo Rodrigo é aldeia histórica.

JPC: É! E esta não é.

SR: Nenhuma das casas era abrangida por qualquer tipo de classificação?

JPC: Não! E repare, tudo, infra-estruturas, caminhos, electricidade, água e essas coisas, até a
pequena ETAR, foi tudo feito à custa destes senhores. Eu louvo de facto esta iniciativa. Mesmo
assim, apesar de ser algo rápido e de nós fazermos alguma pesquisa, eles diziam “já estamos a
demorar muito”. Têm de se tomar opções. Luminárias exteriores, para dar outro exemplo.
Quando chegámos às luminárias exteriores, eu estava com algum receio que alguém quisesse
umas luminárias “à época”. À época não havia luminárias. Portanto vamos para trás e vamos
ver o que há de mais parecido. E então alguém sugeriu, não como aqueles belos candeeiros,
entre aspas, que estão ali no rossio, que são todos torneados, mas alguma coisa parecida. Eu
fiquei em pânico! Então sugeri, já que não havia electricidade, vamos fazer uma coisa nova.
Vamos assumi-la. A ideia, voltando outra vez a estas coisas da EDP, era pintá-la com uma cor
que fosse engraçada. A EDP também nem sequer isso consentiu. Está a ver? Portanto não é
muito fácil. As luminárias que têm as casas, são luminárias em folha, dessa do artesanato
visiense, ou de outro lado qualquer da beira. Quando as colocámos lá eram branquinhas, todas
polidas não é? Como é que nós vamos fazer? Por outra vez à intempérie? Não dá. Temos que
as electrificar. A bela tinta da CIN, passou a referência. Toca a pintar aquilo tudo e parece que
fomos buscá-las não sei aonde. Está a ver? Apesar de haver algum achado do levantamento que
nós fizemos e da recuperação das casas, os achados que havia foram basicamente de índole
agrícola e pessoal. Mas não mais do que isso está a ver? As pessoas não viviam com isso e teve
que se adaptar. Voltando outra vez às chaminés. Havia dois tipos de chaminés. Há a chaminé
do fogão e a do cilindro. Não havia esquentadores porque não havia gás, era tudo eléctrico.
Isso depois também houve complicações com isso porque entretanto já há casas que têm
aquecimento central, com botijas cá fora. Têm um gradeamento em madeira que eu desenhei
para lá, não queria uma coisa muito fechada, mas enfim. Como não havia esquentador, só havia
o termoacumulador, vulgo cilindro. Nós aqui só precisamos de uma saída. Para o fogão fez-se
um tubo e esse tubo foi pintado de preto… chapeuzinho chinês. Chegou-se àquela bela
chaminé e eu desenhei uma peça, trapezoidal, um cone de pirâmide, com duas placas em cima,
uma coisa muito limpinha, e não foi possível verificar isso. Não sei porquê. Na altura os donos,
quem de direito… Nós fazíamos actas, reuniões e essas coisas todas. Nessa reunião por acaso
não estive e foi decidido fazê-la em pedra. Então cortou-se a pedra, pedra velha, cortou-se a
pedra aos bocadinhos, e a primeira vez que vi aquilo, fiquei descrente.

SR: Mas isso eles podiam fazer isso?

JPC: O promotor pode fazer o que quiser. Quando a Sara tiver o seu atelier, vai ver que é
assim.

SR: Sim, mas o arquitecto não deveria ter conhecimento disso antes, a nível de
responsabilidade?

JPC: Deveria, mas repare uma coisa. Isso é muito bonito quando estamos na faculdade, mas cá
fora é muito pior. Essa coisa das chaminés, eu disse, já que não querem fazer isto em chapa,
tirem lá as pedras, e fez-se isso. Tirem lá as pedras, vamos rebocar o tijolo. Porque elas são
feitas em tijolo. Ou seja, eu tenho o reforço, ou não, depende se está no 1º andar ou no rés-do-
152 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

chão, depois tenho um ducto, a chaminé, em tijolo, e depois era forrado. E quando ultrapassava
a cobertura, eu disse assim, bom, vamos lá tirar a pedra, e vamos arear isto e pintá-las.
Experimentámos pintá-las de branco. Aí, acredito que fosse o meu erro. Naquela altura
pintámo-las de branco. Isso já foi há bastante tempo e eu devia ter procurado uma cor neutra
mas que não sobressaísse tanto. Reunimo-nos na aldeia e, as pessoas que tinham para decidir,
votaram e então optou-se pela pedra – acho que fui eu e o engenheiro Alexandre que votamos
pelo areado pintado – todos os outros votaram pela manutenção da pedra. Eu achei aquela
pedra muito feia. Nas chaminés não tem nada a ver com a casa. Quer dizer, pode ter a ver com
a casa mas não tem… Nesta aldeia, na recuperação destas casas, procurou-se ao máximo tentar
cumprir o mínimo necessário para as casas serem, poderem-se dizer como uma recuperação.
Mas é evidente que ninguém, alias pelas fotografias vai ver. Há fotografias em que só há
ruínas. Só ruínas. Portanto o que lá está é produto da sua imaginação. O posicionamento da
porta às vezes coincide, outras vezes é preciso mudar. Outra coisa que lhe devo dizer. O pé
direito. Aquelas casas muitas vezes funcionavam, como sabe, com uma “loja”, onde se punham
os animais, mas nem todas eram assim. Aquelas casas tinham dois pisos, era assim que
funcionava. E os animais não requeriam a habitabilidade que nós temos e nem que o RGEU
nos exige. Portanto o que é que houve? Tivemos que, ou afundar o pavimento térreo, ou subir,
e algumas estão crescidinhas. Se eu subo uma, pois toda a envolvente tem de subir para dar
uma coerência. Não é nada fácil. Há um sítio em que se percebe perfeitamente que em
determinadas zonas foi impossível cumprir.

SR: Há, por exemplo, umas casas que estão muito encostadas àquelas pedras, onde passa o
caminho romano, aí não foi possível, mexer?

JPC: Não, isso era assim. Mas há uns sítios onde se vê que, por exemplo, a cércia foi
modificada. Há aqui o caminho romano, o restaurante, e há aqui uma zona, acho que é ali
mesmo, aquela casa ali [o arquitecto está a apontar para o mapa] que, se comparar com esse
livrinho... É mesmo assim, não há volta a dar. Cada metro quadrado que eles tinham, há coisas
que eu não defendo tanto, como disse, o uso da cor, as chaminés, as janelas. Eu não queria as
janelas assim, nem de longe nem de perto. Desde sempre que não queria, mas isso sou eu.
Porque já não é uma aldeia histórica, podíamos ser mais atrevidos, não é? Eu ali fazia uma
janela de um vidro único, que é uma coisa que eu já faço há décadas. Em vez dos vidrinhos,
que é uma coisa que eu detesto. Mas isso sou eu que não gosto. E para dar mais conforto. Por
exemplo dentro das casas, havia muitas casas que eu teria forrado a gesso cartonado as paredes
de pedra do lado de dentro.

SR: Isso é uma pergunta que eu fiz aos senhores que estavam lá a trabalhar, como é que era
feito o isolamento?

JPC: Não há! Simplesmente não há. E para vedar a água? Como é que se veda a água? A Sara
há-de reparar que se pegar no cimento e num tijolo, que é poroso, e meter a argamassa, ela vai
secando e consolida. A pedra não é tão porosa. As pedras que eram mais porosas, nós tentámos
pô-las em locais em que não apanhava água. Todas as outras, como eram menos porosas, mais
fechadas, o grão é mais pequenino, a Sara põe a argamassa, a argamassa exige sempre junta
seca. Para ser junta seca, as pedras tinham de ser uniformes. Chegámos à conclusão de que não
podia ser assim senão as casas eram todas muito bonitas, muito certinhas, e não era isso que lá
estava. Voltámos atrás, e tentámos pôr o menos argamassa possível. Isto aqui tem uma
variação térmica estrondosa, porque está exposto a norte. E se vir, em poucos meses as pedras
ganham musgo, enquanto no verão isto é tórrido. E com os picos térmicos, o que é que
acontece? No primeiro inverno houve muitas casas que deixaram entrar água. E porque é que
deixaram entrar água? Não foram muitas casas porque ainda não havia muitas feitas. Como lhe
disse, isto foi feito por núcleos, e nós íamos aprendendo. As melhores casas são estas três que
Anexo I _ Entrevista ao arquitecto Jorge Paulo Carolino 153
A aldeia de Póvoa Dão

lhe falei. Para mim são. Até na sua autenticidade. Há aqui uma casa, que para mim é das mais
bonitas, que é esta aqui [o arquitecto está a apontar para o mapa]. Essa está quase, quase como
lá estava. Estava eu a dizer. Quente e frio, verifica-se que entre a argamassa e a pedra há uma
fissura. Já ouviu a expressão “chover deitado”? “Chover deitado” é uma forma popular de
dizer. Mas há zonas aqui em que a chuva não cai assim, não cai na vertical, cai com alguma
inclinação. E dependendo dos sítios, a força do vento é tal, que a chuva quase que cai deitada.
E com essa chuva, o beiral estar lá ou não estar não adianta. Pode proteger 30 cm de parede lá
em cima o resto não protege. E a água a fustigar a parede, acaba por entrar. Como é que nós
resolvemos? Houve umas paredes que nós tivemos de demolir e fazer de novo. Então
inventamos uma argamassa, recorremos a técnicos do Laboratório Nacional de Engenharia
Civil. Fizemos uma massa, não sei agora as proporções mas sei que leva barro, cimento branco,
um pouco de cimento cinzento, para lhe dar um bocadinho de cor, e mais uns ou outros
“ingredientes” para tentarmos fazer uma argamassa que não fosse tão rígida, que tivesse
alguma elasticidade, está a ver? E lá se foi conseguindo. Nós para testarmos isso, pusemos
mangueiras no cimo da casa, umas todas furadas, outras com maior pressão, para estarem ali
dias consecutivos a deitar água para vermos, para neutralizarmos a entrada da água dentro das
casas. Houve muitas casas em que o pavimento em madeira, em algumas zonas, teve de ser
retirado, fazer um fundo falso, e recorrermos a tijoleira. Porque era impossível dominar a água.
Porquê? Repare, é uma única parede. Não tem parede dupla.

SR: Pois, por mais que seja muito espessa.

JPC: Por mais que seja muito espessa.

SR: A nível de legislação, portanto a nível do conforto térmico e acústico?

JPC: Mas isso antigamente não era regulamentado.

SR: Antigamente, portanto nos finais dos anos 90 quando isto foi feito?

JPC: Hoje temos de ter mais cuidado com isso. Nós temos a debater este problema e aquilo
que nós propusemos foi que houvesse ocasionalmente uma das paredes, uma ou outra parede
que pudesse ser em pedra única, quando quisessem pedra por causa de ter esta rusticidade que
é tão de agrado dos habitantes das grandes cidades, há lá muitas casas vendidas a lisboetas por
exemplo, tinha que se fazer parede dupla, antigamente como sabe nós vemos aí casas
lindíssimas com paramentos em pedra lindíssimos e essas paredes têm pouca profundidade,
deve saber isso com certeza, são chamadas as paredes duplas daquela altura, o que é que eles
faziam? Faziam a parede por fora, portanto tinha uma estereotomia cuidada, depois no meio era
posto barro e palha, palha de centeio, portanto era feito uma mistura tal igual como se faz nas
coisas de taipa, o processo era igual e depois punha-se pedra mais fraquita pelo lado de dentro.
Depois ainda levava uma argamassa mas a pedra não era a mesma. Na reconstrução há imensas
casas em Viseu que acontece isso, imensas, eu tenho feito algumas. Depois as pessoas que
tinham mais dinheiro, daí a capela, porque era uma dádiva, a capelita já está rebocada. Pronto
era uma coisa que já exigia mais mão-de-obra, mais dinheiro por metro quadrado, não era ir
buscar as pedras a algum lado e encasteladas por ali acima. Na igreja não, porque a igreja se for
ver tem reboco da parte de dentro, tem reboco da parte de fora, foi pintada a cal. Pronto e
basicamente é isso, tentámos preservar ao máximo mas apoiarmo-nos um pouco em soluções
mais práticas não é? Nas futuras, como lhe disse, temos que inventar. Eu propus uma
intervenção completamente diferente com uso de corten, uso de pilares metálicos, de coisas
forradas a fenólio e pura e simplesmente foi rejeitado. Porquê? Porque eles tencionam abranger
o mercado britânico e eles gostam destas coisas, não há volta a dar… Os projectos já estão
154 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

feitos, ou seja, vão ser outra vez casinhas do género. Vou ver se desta vez me deixam fazer as
tais chaminés como eu quero.

SR: Percebo, estou a gostar imenso desta conversa porque esclarece as dúvidas que eu tenho
sobre o mantimento da rusticidade, não será simplesmente imitação ou fachadismo, qual será o
mal de integrar materiais modernos?

JPC: Não tem mal nenhum!

SR: Pois não, não vejo qualquer problema. Por exemplo, fui visitar o Mosteiro de Tibães e as
janelas não tinham vidro, obviamente agora foi necessário, então foram postos caixilhos
minimalistas, que não se vêm e que resulta muito bem. Mas depois há aquelas intervenções em
que se vêm janelas, de guilhotina, em PVC branco!

JPC: É horrível…

SR: Pronto, aí não se pode dizer “sim, sim, vamos usar materiais novos”, há que saber como
usá-los e portanto usá-los no sentido de marcar a contemporaneidade e não tentar imitar algo
que já foi. É por isso que eu gostei desta intervenção, porque é realista, é verdadeira. Por
exemplo, quiseram pôr janelas como eram e então puseram-nas de madeira, conforme eram,
por mais que não sejam as mesmas possivelmente a madeira não será ou o vidro agora é duplo
mas tentaram respeitar o máximo pelo menos a autenticidade estética.

JPC: Tentámos mas não era aquilo que eu queria. Também sou sincero, não era nada disso que
eu queria. Como lhe disse depois o promotor é que manda e, como eu costumo dizer, para os
arquitectos conseguirem fazer as suas coisas não depende só de si não é? Depende de outras
coisas… É evidente que fazer a Póvoa Dão é completamente diferente que fazer aquele
restaurante para o polis não é? Não tem nada a ver… Não tem nada a ver por exemplo com ser
um edifício multifamiliar, as coisas são como são não é?

SR: Mas por outro lado ao reabilitar é porque se tenciona manter algo do passado.

JPC: Sim, sem sombra de dúvida… mas há coisas que eu acho que não deviam… até em favor
da comodidade. Repare, algumas casas também têm aquecimento central eléctrico, para quê?
Sendo assim, punha-se uns cobertores de papa! Porque é que a janela não há de ter, eu já nem
falava nessas caixilharias minimalistas, mas por exemplo um caixilho em madeira com aquela
estrutura por dentro que é metálica e que é de vidro único. Não foi possível por vários motivos,
até por uma questão económica. O que é que quer saber mais?

SR: Pronto, já foi respondendo a certas perguntas… Mas por exemplo há outra casa, quando se
sobe pela estrada romana, antes de se chegar ao café do lado direito em que, aí nota-se
perfeitamente que a forma, a tipologia foi modificada, há um acrescento de madeira,
perfeitamente assumido e gostei, gostei mesmo de ver…

JPC: Eu nem sei como é que me deixaram fazer isso!

SR: Porque realmente é tudo muito bonito, parece tudo antigo, mas sabe bem ver estas marcas
contemporâneas quando soam assim bem.

JPC: Pois isso foi uma coisa que aconteceu numa determinada casa, nós tivemos que fazer
uma parede de uma determinada maneira e depois tivemos que… a madeira é um cenário
porque se lá for ver dentro a parede não é em pedra…
Anexo I _ Entrevista ao arquitecto Jorge Paulo Carolino 155
A aldeia de Póvoa Dão

SR: Tinha aqui perguntas sobre os critérios, os princípios que guiaram o projecto de
reabilitação que foi basicamente, acho eu, o que o arquitecto teve a dizer: tudo depende em
muito do promotor, o que ele pretende a esse nível.

JPC: Sim mas repare, tentou-se, e a verdade é essa, tentou-se ao máximo seguir a metodologia
que era então usada. Agora, com uma tipologia diferente como é óbvio. A maior parte das
casas não tinham escadas interiores e estas têm escadas interiores…

SR: Isto é a adequação funcional…

JPC: Exactamente. A divisão que havia entre pisos era uma divisão que só tinha ripinhas, não
é? Para o calor passar dos animais, agora não. Até porque havia zonas que levantavam
problemas com o bater dos passos no pavimento não podia haver pó. Por exemplo, o
restaurante, tivemos imensos problemas. Visitou o Restaurante?

SR: Sim, sim.

JPC: Houve uma parte em cima que não foi mudada. A Sara entra no café, depois desce,
depois tem ali uma zona, aquela zona toda grande, ampla, não tinha telhado, era um pátio. Se
for em frente tem umas escadinhas e tem uma parte do restaurante em que tem uns tabiques.
Esses tabiques eram a casa do senhor Soares, ele vivia ali naquele primeiro andar, em baixo
tinha os porcos, uma cabra... Os tabiques que lá estavam eu preservei-os, tentei ao máximo
preservá-los. Aquilo era a divisão das casas, não tinham portas, não tinham nada… Quer dizer,
tinham umas portas que nós depois arrancamos…

SR: Aquilo eram os quartos, alcovas?

JPC: Alcovas exactamente. Ora bom, quando passou a vistoria, o nosso colega da câmara
obrigou a substituir isso tudo. Porque ele pegou numa chave e começou a raspar dizendo “isto
está carunchoso, tem que sair”. Pronto e então o que é que nós fizemos? Tivemos que fazer
umas novas… mais ou menos a imitar, para lá pôr. Mas, a imitar, não estão bem iguais.

SR: Porque a nível de higiene, para um restaurante…

JPC: Exactamente. Quando nós passamos naquele piso, em baixo há uma zona de restauração.
Ora bom, batendo os pés, eu se tiver com atenção, posso ver pó a cair. Então tivemos que fazer
um soalho duplo, com isolamento a meio, com uma película plástica, isolada, pronto essas
coisas que nós não podemos seguir aquilo que era feito antigamente. E nas próximas vai ser
pior do que aquilo que nós falámos: o acústico, o térmico… As próximas vão ter casas de
banho que vão ser aprovadas com o regulamento do 163/2006, de 8 de Agosto, é um decreto-
lei sobre a acessibilidade.

SR: Em relação a essas exigências, quais foram as normas? Portanto, relativamente ao


património, a nível de respeito, não havia regulamentação porque não havia classificação nem
nada. Mas em relação ao turismo? Da adaptação para turismo?

JPC: também não houve porque repare uma coisa: eles nunca quiseram isto para turismo.

SR: Isto não entrou como projecto turístico?

JPC: Não, aliás devo-lhe dizer que, para este tipo de casas é a câmara que delibera sobre isso,
se for um hotel não, mas nestes casos sim.
156 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

SR: Por exemplo, no caso de integração de novos materiais como é que é feita a adaptação,
como é que é feita a compatibilidade entre materiais?

JPC: Não é estudada, faz-se normalmente!

SR: Mas por exemplo há paredes que, ao pôr uma laje de betão, não aguentam…

JPC: Ah, está bem… Mas isso repare numa coisa, nós temos soluções para essas coisas. O
convento de Freichinho foi feito por exemplo com situações em que nós pegávamos em alguns
locais, estudávamos isso e pegávamos em zonas de pedra que estavam em óptimas condições
de estabilidade e áreas não muito grandes em que conseguimos aplicar nas paredes uma
estrutura muitas vezes metálica para recepcionar lajes. Temos aí estudos sobre isso, fizemos
estudos sobre isso uma vez até invertíamos umas vigas em U que eram aparafusadas na parede.

SR: E se a parede não aguenta?

JPC: Está bem mas isso tem que ser paredes com…, não pode ser com dimensões de 30 cm
como tem em Póvoa Dão, ou de 40 cm… paredes grandes em que chega lá e estuda-se isso e
vê-se que a parede suporta, que está bem do ponto de vista da estabilidade, que não está como a
gente diz “embarrigada”, enfim não é com pedrinha pequenina, é com pedra grande. Nós aí no
convento fizemos uma coisa também engraçada. Foi na zona da cozinha, a parede era de pedra
mais ou menos miúda e nós queríamos manter essa parede. Isto tem implicações, tem custos
mas o convento é um monumento nacional. Precisávamos de manter essa parede, o que é que
nós fizemos? Fizemos uma estrutura atrás da parede, se não me engano em ferro, fizemos uma
peça de betão, um muro de betão e depois, através de grampos, segurámos a parede toda
exterior, a parede exterior é um papel. Pronto isso é o processo, agora essa parede, por
exemplo, ficou caríssima. Mas eles também tiveram direito a um subsídio.

SR: Pois, lá está… Continuando com as exigências já me disse que na altura não havia tantas
exigências a nível de segurança e de conforto térmico, acústico…

JPC: Não porque antigamente isso não era certificado e agora é. Antigamente os projectos de
acústica eram iguais quase para todo o lado, fazia-se o projecto acústico, pronto era assim, os
engenheiros faziam isso, os especialistas faziam isso.

SR: Mas e nesse caso, agora que é obrigatório. Existem normas que se tornam flexíveis uma
vez que se trata de uma reabilitação? Como por exemplo a classificação energética obrigatória
nas casas também o é numa reabilitação?

JPC: Olhe, eu vou lhe dizer o seguinte: quando nós começamos a fazer Póvoa Dão, o
departamento de urbanismo da câmara de Viseu foi convidado a ir à aldeia e chegou à
conclusão que se fosse a aplicar todas as regras, nunca era feito. Portanto tiveram que abrir
uma excepção, não descarada, mas tiveram que abrir alguma excepção sem prejudicar as regras
básicas no sentido que isso pudesse ser feito. Por exemplo, as casa antigamente, e se reparar há
determinadas casas, que se olhar para elas parece que têm duas ombreiras e têm de facto duas
ombreiras porque quando nós fizemos o projecto, aliás dessas tais três casas, uma delas o
projecto obrigava, o RGEU obrigava, por isso é que até o engenheiro lá foi, obrigava que os
vãos para cada comprimento tenham uma determinada percentagem, 1/10 não é? Ora bom,
havia zonas em que as janelas eram pequeniníssimas pois como é evidente estamos numa
região onde as janelas são pequeninas, nós dilatámos o vão, e quando vi aquilo construído
disse: “não pode ser!”. Eu olho aqui para determinadas fachadas e só vejo buracos. E aquilo
Anexo I _ Entrevista ao arquitecto Jorge Paulo Carolino 157
A aldeia de Póvoa Dão

ficou grande e não dava. Então voltámos a encolher, há muitos compartimentos lá em que não
se cumpriu essa regra.

SR: Mas é por isso então que têm duas ombreiras?

JPC: Têm porque eu depois tive que as encolher, algumas deitei-as abaixo e fi-las de novo,
outras que dava para disfarçar, disfarçou-se. Está a ver?

SR: Sim, sim, percebo. Pronto e então a última pergunta era mesmo, mas acho que isso
também já foi dizendo ao longo do discurso, sobre as principais dificuldades portanto a
adequação funcional, a legislação mas principalmente o orçamento.

JPC: Tudo isso eram premissas que à partida deveriam ser cumpridas. Nós tínhamos um valor,
não me recordo de quanto já, mas tínhamos um valor para fazer esta obra toda, foi largamente
ultrapassado. Na legislação já lhe contei, quanto à adaptação das casas também já foi
referenciado. A partir de 2007, portanto há dois anos, as leis a maior parte das vezes saíram em
2006 e 2007, a partir desta data tudo está mais rigoroso, tem que ter uma classificação do
imóvel quer termicamente, quer acusticamente. Os imóveis têm todos que ser classificados tal
igual os frigoríficos. E portanto o que é que acontece? Nestas novas casas nós vamos ter que
ter o cuidado, já debatemos sobre isso. Uma das preocupações que nós tivemos foi que do
ponto de vista acústico, as casas estivessem tratadas e foi por isso mesmo que nós
introduzimos, e também por causa daquelas oscilações da madeira, as divisórias em pladur.
Então nós pensamos da seguinte forma, todos os espaços que ficaram assentes em lajes de
madeira, essas divisórias eram feitas em estrutura metálica, com perfilaria metálica melhor
dizendo, com duas chapas de gesso cartonado de 15mm, normalmente são 13 mas as de15mm
são mais reforçadas e postas a tapar junta percebe? No meio levava sempre lã de rocha de alta
densidade e fez-se o tratamento acústico. Porquê? Numa casa de banho, num quarto, numa
sala, pronto, no mínimo isso funciona impecável. Nos outros locais em que eram feitas as
divisórias em cima do enrocamento, depois do chão tratado, impermeabilizado, podia-se fazer
com tijolo. Portanto foi uma construção mista. Eu não me lembro de haver lajes de betão ou
aligeiradas, não me lembro, se calhar houve mas eu não tenho ideia sobre isso.

SR: E a nível térmico, por exemplo, aquelas paredes como não foram isoladas…

JPC: Não são isoladas. Aliás, elas são isoladas elas levam um revestimento pelo exterior, uma
espécie dum produto tipo sica, isso sica é uma marca, é um líquido que se borrifa tal igual
como um spray e que é hidrófugo. Deita um balde de água e a pedra não fica com a água, a
água escorre. Só que como lhe disse há bocado, quando há fissuras entre a pedra e a massa a
água chega ali e entra, por muito isolado que isto esteja e por muito que a pedra e a argamassa
estejam. Como esse filtro não é elástico, ela racha. A nível térmico, o que nós fizemos foi todo
o tratamento basicamente na cobertura porque era o único sítio onde nós podíamos. Imagine
por exemplo uma casa, se lá for ver casas nem todas têm paredes de granito, ou seja, têm
paredes de granito mas por dentro têm outro acabamento. Quando assim acontece, por alguma
razão, então púnhamos um wallmate e acabávamos aquilo e termicamente ficava resolvido. E a
cobertura, como lhe falei há bocado da onduline, a onduline é um excelente material, para além
do isolamento, termicamente é óptimo, e também levou o roofmate não é? A própria madeira
tem um comportamento térmico não é?

SR: Pois, lá está, e a pedra em si também? A pedra tanto conserva a frescura interior quando
está calor lá fora como mantém o calor lá dentro, quando a lareira está acesa?
158 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

JPC: Está bem mas a Sara aquece a casa, desliga o aquecimento e a pedra mantém alguma
inércia mas depois aquilo desaparece. E, primeiro que a pedra consiga acumular o calor, é
muito difícil. Portanto, nós tentámos utilizar todos os métodos construtivos usados na altura,
não é? Adaptando-os à tipologia das casas e às funções que elas iam ter. Utilizamos muita
mão-de-obra e muito material de madeira e utilizamos muita pedra como é óbvio. Por isso é
que encareceu imenso as casas. Nós, quando fizemos o preço do custo por metro quadrado da
casa, dessas três casas, era completamente primitivo, eram uns milhares. Depois teve que se ir
diluindo nas outras casas está a ver? Outra coisa que também tivemos que tratar com alguma
dificuldade foi o tratamento exterior, o que é que íamos lá pôr? Por causa do frio, da geada,
tudo sempre em materiais naturais. Lá está aquelas tijoleiras em algumas zonas são de barro
mas não têm vidrados porque estalam. E pronto, foram essas coisas que nós fizemos, não é?

SR: Pois, esses cuidados todos…


Anexo II _ Entrevista a Sara Noro, designer de interiores 159
A Quinta de Pêro Martins

Entrevista efectuada a Sara Noro, designer de interiores,


19 de Setembro de 2010.

Sara Ribeiro: Para começar, qual era o estado da construção antes da intervenção?

Sara Noro: Estava muito bom porque nós acabámos por manter quase todo o piso de cima. O
piso de cima não tinha quase sido habitado e então nem sequer tínhamos vernizes, não
tínhamos pinturas, não tínhamos nada. E estava tudo muito bom. Claro que há sempre
problemas, a casa é do início do século XX, é de 1920, 1930, por aí… Portanto temos sempre
aqueles problemas inerentes em termos de madeiras com infiltrações, com algum caruncho… E
aí em cima já tínhamos optado por ser a nossa casa, optamos também por deixar alguma coisa
à vista alguma patine do tempo. Tudo o que não fosse nossa casa, que fosse comum ou que
fosse só para hóspedes ia ter uma linguagem mais contemporânea embora com alguns
materiais que nós consideramos que são importantes na construção popular aqui na Beira.
Utilizámos muito a madeira, acabamos por optar pelo pinho porque já era o pinho que existia lá
em cima e agora aqui utilizámos pinho também, só não utilizámos o pinho nas caixilharias
exteriores porque não é tão adequado ao clima usámos uma madeira exótica que é a câmbala e
acabamos por pintar também em estufa que ficou um bocadinho mais durável. Depois
utilizamos o granito da região, aqui amarelo de Figueira, é abujardado à picola. Utilizámos
também o xisto clivado, não é bem aqui desta aldeia mas em aldeias circundantes existe xisto.
Nós acabámos por utilizar o xisto de Foz Côa, utilizámos também no mobiliário de casa de
banho, acabámos por optar também por isso e aí ficou cerrado, ficou com meio polimento, aqui
utilizámos o clivado na zona da sala. E também o ferro que acho que é um material que não era
utilizado na altura mas que é um material nobre e que nestas recuperações normalmente
funciona muito bem.

SR: Quais foram os estudos efectuados antes de iniciar o projecto? Portanto, houve algum tipo
de levantamento, de pesquisa histórica?

SN: Pronto, aconteceu-me mais o menos o que lhe está a acontecer a si. Eu vim para cá porque
fiz turismo em espaço rural em casa do meu avô como tese de licenciatura. Pronto, fiz um
estudo exaustivo de o que era o turismo em espaço rural na altura, que já foi há daqui a pouco
nove anos, quais eram as condicionantes, o que é que era a arquitectura vernacular aqui na
Beira, pronto esse género de coisas e acabei por fazer a tese de licenciatura sobre a casa do
meu avô que é aqui em Vale de Afonsinho. Depois acabei por ficar cá a morar e comecei com a
casa da Cisterna, foi a minha primeira obra e foi uma escola porque era uma obra complicada.
É uma aldeia histórica com todas as condicionantes inerentes a uma aldeia histórica.

SR: A pergunta seguinte tem a ver com isso, a casa era abrangida por algum tipo de
classificação?

SN: A Quinta de Pêro Martins, não. Está numa aldeia normal, sem condicionantes nenhumas,
quer dizer, tem as condicionantes inerentes ao edifício e ao espaço. A casa da Cisterna tinha
muitas condicionantes (…).
E então quando começamos a ver que íamos casar, que tínhamos que arranjar uma casa para
viver, ao início pensámos em comprar terreno, construir uma habitação contemporânea essas
coisas todas, até tínhamos alguma espécie de projecto e, estávamos a fazer a casa da Cisterna e
eu disse “se fizesse uma coisa deste género”. Andámos à procura, eu tenho raízes cá, o meu
pai é de Algodres, é uma aldeia aqui perto, o Miguel é que não é de cá e andámos a procura em
Algodres de uma casa, nunca mais encontrávamos nada, andávamos assim um bocado
160 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

desorientados e tristes e eu disse “bem, vamos alargar as buscas”. Eu na altura ainda estava a
trabalhar na câmara, já tinha saído, estava naquela fase de me implementar sozinha e tinha uma
colega que trabalhava connosco na altura e disse “ah! Eu tenho uma casa na minha aldeia à
venda já há imenso tempo, muito gira e não sei o quê, não sei que mais, se calhar vocês até
vão achar piada, vamos ver”. E eu vim cá com ela. Apaixonei-me principalmente pela
paisagem que é lindíssima, não é? E gostei muito da casa, achei que a casa estava muito bem
situada, estava perto da aldeia mas não estava na aldeia... E estávamos um bocadinho desviados
disso e a casa em si era muito interessante, do ponto de vista arquitectónico achei-a muito
bonita. Para já porque é uma casa relativamente recente em termos de arquitectura popular, que
é do século XX, achei que tinha as características mais interessantes da arquitectura popular e
depois achei que era grande, tinha imensa potencialidade em termos de divisões e não havia
muita obra que se tivesse que fazer de novo, ou seja, podíamos pegar na casa e trabalhar dentro
da casa. E depois entrei e vi as vigas, fiquei fascinada e fiquei fascinada com o piso de cima
que achei que estava muito bem conservado e gostei muito, gostei do sótão, gostei de tudo. E
acabámos por comprar e depois fizemos o projecto. Quando estamos a trabalhar para nós é
mais complicado, ainda demorámos algum tempo a fazer embora em termos de divisões o mais
difícil foi fazer estes quartos aqui que eram mais complicados de gerir em termos de áreas e de
funcionalidade com casas de banho. De resto esta parte foi muito simples, sabíamos que a
escada tinha que ser aqui porque tínhamos o quarto escuro lá em cima e não queríamos estar a
desaproveitar nada e era a zona mais favorável no sótão para subirmos, sabíamos que a cozinha
tinha que ser para ali para aproveitarmos as pocilgas e que aqui tínhamos que ter uma zona
mais desafogada para entrar para os quartos de hóspedes, pareceu-nos bem que a sala de
refeições fosse perto da cozinha e que tivesse um passa pratos ou uma coisa do género que dê-
se funcionalidade à sala de refeições, pronto e as coisas foram surgindo. Depois às tantas
queríamos recuperar uma lareira que tínhamos lá em cima que acabamos por não recuperar e
fizemos o recuperador de calor e estamos muito satisfeitos, se calhar a lareira não tinha
funcionado tão bem. Pronto e há sempre imponderáveis na obra que surgem, foi a parede do
cunhal que estava com problemas, foi vermos que tínhamos que fazer uma estrutura em ferro
que não estávamos a contar, estávamos a contar com pequenos apontamentos de pilares, pronto
foram surgindo coisas que tivemos que nos adaptar e é sempre, não há nenhuma obra que não
aconteça isso. Mas pronto foi uma obra relativamente fácil em relação à casa da Cisterna só
demorou um ano e três meses, foi muito rápida. Foi porque nós também estávamos sempre em
cima do acontecimento, vínhamos cá todos os dias, houve erros, houve coisas que nós agora
olhamos e sabemos que não foi como nós queríamos mas que ficava mais caro estar a tirar e
não valia a pena, houve coisas que o empreiteiro fez e que mais ninguém fazia, por exemplo
este chão parece que é muito simples, é uma coisa engraçada. Aparece a marcação das vigas
em baixo, parece uma coisa simples mas cada quadrado tem uma métrica ou seja, todas as
pedras foram cortadas à medida para caberem, nós tivemos aqui um dia inteiro a fazer a
marcação do chão, parece que é muito fácil…

SR: Pois, parece que são todas iguais mas não.

SN: Parece que foi um chão facílimo de fazer, parece que chegaram aqui e foi só assentar, não
foi nada, é muito complicado. São pequenas coisas que são complicadas e que na altura nós
não pensámos, parece-nos bem em planta e depois vamos à obra e a concretização é
complicada. Mas pronto, fez-se. E o empreiteiro foi simpatiquíssimo e esteve sempre aqui,
claro que não é aquele empreiteiro perfeito, também faz erros, e as vezes nem é por ele é pelos
empregados que cá estão. Por exemplo o Miguel chegou aqui uma vez e estavam, ainda se
nota, a limpar a viga, acharam que estava suja coitada, estavam a plaína-la, íamos tendo um
colapso, mas pronto disfarçou, normalmente ninguém nota. Pronto são pequenas coisas que
olhamos e pensamos “Ai que horror! O que é que aconteceu aqui?!” mas que a maior parte
Anexo II _ Entrevista a Sara Noro, designer de interiores 161
A Quinta de Pêro Martins

das pessoas não nota. Pronto, neste momento temos tudo o que é inerente a uma obra, que
mesmo numa obra nova acontece: fissurações, algumas pequenas infiltrações, pequenas coisas
que todas as obras têm, a casa já tem quatro anos e pronto vai precisando de uma pintura, de
uns arranjos aqui, outros ali, isso é normalíssimo…

SR: Pois, há que continuar com uma manutenção…

SN: Sim, e depois é assim, no turismo, o segredo é ir mudando, é ir comprando aqui uma coisa,
fazendo um lifting aos quartos principalmente, é importante. E fazer sempre coisas novas, ter
ideias tentar que os hóspedes adiram às ideias novas que aparecem, não é?

SR: Sim, sim. Pronto, isto já foi dito mas, recapitulando, aqui os critérios, princípios de
intervenção, foram essencialmente manter os materiais originais mas compatibilizando.
Portanto a maior compatibilização que se nota aqui a nível de material mas também de
estrutura foi a cintagem das vigas em ferro…

SN: É assim, aqui foi um bocado para preservar os pisos de cima que nós tivemos que fazer
isso porque nós podíamos perfeitamente ter deitado uma parte da casa abaixo e pronto. E
acabámos por se calhar gastar mais dinheiro mantendo o piso de cima do que se tivéssemos
deitado tudo abaixo e construído de novo, não é? Não tínhamos tido tantas restrições, não
tínhamos tido tantos custos e tanta dificuldade em termos de criar aqui a cintagem, não é?

SR: Fala-se muito da questão da autenticidade, a autenticidade tanto de materiais como


histórica. No caso da reabilitação em si, onde se pretende preservar o máximo de valores da
obra inicial, como é que encara esta questão?

SN: É assim, eu tenho umas teorias completamente… vão desde a preservação total até uma
certa reinterpretação das coisas. Por exemplo se for numa igreja, se for num edifício histórico,
numa coisa que esteja marcadamente classificada e que seja muito importante do ponto de vista
histórico e arquitectónico e estético, acho que sim, acho que se deve preservar o máximo.
Embora não tenha construído ao modo do antigamente. É assim por exemplo eu acho Castelo
Rodrigo muito interessante em termos de preservação porque as muralhas estavam quase a cair
e chegou-se a um ponto em que disseram “atenção, vamos preservar o que já existe, só nos
sítios em que seja perigoso para o visitante vir passear e cair é que nós vamos preservar e
subir um bocadinho mais.”. Então o que é que eles fizeram? Acabaram por fazer um
gateamento de juntas a marcar o que existia, o que era existente e o que era novo, o que foi
apenso, embora se tenha feito da mesma maneira que dantes mas pronto é diferente, nota-se
que teve ali qualquer coisa diferente. Pronto eu sou apologista do que é histórico não se mexer.
E, quando se mexe, ser uma coisa que seja externa ao que já existe, ou seja, que se possa deitar
abaixo e manter o que lá estava, não é? Coisas em vidro, em ferro…

SR: A tal questão da reversibilidade e não-intrusividade.

SN: Exactamente, pronto. Agora em casas assim, destas, acho que uma linguagem
contemporânea não faz mal nenhum porque estamos a conseguir preservar um bocadinho da
nossa história mas adaptando ao que nós precisamos neste momento que é o conforto, a
comodidade, casas de banho, cozinhas isto não existia, não é? Portanto aqui já sou um
bocadinho mais facilitadora embora, pronto aqui as nossas paredes podem cair que a estrutura
mantém-se, não é?, porque acabamos por fazer isso assim.

SR: Pois, por exemplo, eu gostei imenso das fotografias que tinha visto na internet: aquele
alpendre com perfis metálicos. Aquilo tinha alpendre?
162 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

SN: Tinha.

SR: De madeira?

SN: Não, já tinha sido feito de novo, era uma estrutura horrível daqueles ferros finos redondos
e fazia um triângulo em cima.

SR: Pois estou a ver… mas havia marcas da antiga estrutura de madeira?

SN: Eu penso que eles tentaram fazer o alpendre só com dois pilares de madeira mas que
depois correu mal e tiveram que pôr um terceiro em ferro e acabaram depois por refazer toda a
estrutura em ferro.

SR: Porque eu realmente concordo com o que disse, com o facto de nestas casas se poder
marcar a contemporaneidade preservando os materiais, alguma vida, algo do passado… Mas
realmente acho que em certos casos, em que as pessoas acabam por entrar num certo
fachadismo ou numa certa imitação…

SN: É um kitsch, acaba por ser um kitsch…

SR: É. Na minha opinião, o exemplo dos caixilhos é o mais emblemático, causa muitas vezes
problemas. Ou quero preservar aquela janela de guilhotina antiga e então faço-a de madeira,
conforme era exactamente, pronto obviamente os vidros já são diferentes mas pronto, conforme
era, de madeira; ou então assumo a contemporaneidade e ponho por exemplo vidro único, que
seja, pronto não sou muito apologista de plásticos, mas nem que fosse PVC…

SN: É assim neste momento nós aqui temos o problema: a madeira é muito bonita mas em
termos de pontes térmicas é…

SR: E manutenção também?

SN: E manutenção. Mas principalmente pela diferença de temperaturas, temos diferenças


também de… trabalho, trabalha muito. E então as tantas no Verão temos a madeira a secar e a
ficarmos com frinchas brutais e no Inverno temos o oposto e não conseguimos fechar as portas.

SR: Porque estão empenadas?

SN: Não estão empenadas, incharam com a água…

SR: E depois alguns vidros estalam?

SN: Não ainda não tivemos este problema mas é assim não temos muitas razões de queixa com
estas madeiras. Lá está, porque escolhemos uma madeira exótica. Se tivéssemos escolhido
pinho como por exemplo escolhemos na casa da Cisterna, tínhamos tido problemas muito mais
graves.

SR: É com os erros que se aprende não é?

SN: Não! Não foi com os erros que se aprende, a dona da casa da Cisterna embirrou que tinha
que ser uma madeira de pinho ou uma madeira… porque ela é bióloga, e é contra o abate da
floresta amazónica…

SR: A nível ecológico portanto.


Anexo II _ Entrevista a Sara Noro, designer de interiores 163
A Quinta de Pêro Martins

SN: É muito ecológico, é muito bonito mas na minha casa eu quero ter conforto… Mas claro
que se eu não tivesse que fazer em madeira, eu achei que a madeira era muito importante, se
calhar se fosse a minha casa tinha optado pelo alumínio, ponto final. O alumínio que agora é
fantástico…

SR: Uma casa de raiz?

SN: Ou nesta, sem ser para turismo.

SR: Ah! Está bem, sim sim.

SN: Eu teria optado pelo alumínio. Porque é assim, realmente é verdade em termos de ponte
térmica a madeira é muito pior e mesmo com as portadas em madeira, há muita gente que se
vira para mim e diz “há mas isso não é alumínio?” E eu: “Não, não, é madeira!”.

SR: Mas por acaso é verdade, quando eu vi as fotografias pensava que era…

SN: Não, é madeira.

SR: Porque se nota, lá está porque muitas vezes quando se assume a contemporaneidade
deixam a madeira e põem caixilhos mais minimalistas e realmente quando eu vi vidro único
fiquei com essa ideia.

SN: Não, aqui a opção de vidro único foi só para dar luz por aqui temos muito pouca luz e
aquela porta já existia com aquele desenho e nós, como era a porta de entrada principal,
tentámos manter a porta como existia mas como vê, elas estão as duas abertas, aquela está um
bocado fechada mas também não ia criar muito mais luz, e nós temos pouca luz na sala, a sala
tem muita pouca luz. Aquela janela ali também não cria muita mais luz e neste momento está
sempre fechada porque não é prática de estar aberta e optámos por pôr lá o aquário e
esquecemos completamente a janela. Mas realmente temos muito pouca luz aqui e também nos
bungalows embora os bungalows estejam com vidro fosco para a privacidade dos hóspedes, se
eles quiserem ter aquilo aberto não têm que estar a ver as outras pessoas que estão a passar no
pátio e verem o que se passa lá dentro. Mas uma das coisas foi a luz porque de resto nós
tentámos manter todo o desenho de janelas que existia. Quando não estava muito bem feito, do
género, não sabíamos muito bem o que é que era porque já estavam em ferro ou qualquer coisa,
optámos pelo desenho que já existia na casa. Lá em cima era quase tudo em madeira e
mantivemos o mesmo desenho, depois aqui simplificámos um bocadinho mais nestas janelas
que foram criadas, tanto nos bungalows como aqui nos quartos, simplificámos um bocadinho
mais mas baseámo-nos numa que já existia neste quarto vermelho. Pronto, tentámos que
houvesse uma linguagem comum a todas as janelas. De resto, as portadas acho que por duas
razões porque já existiam na casa embora não houvesse cá em baixo, achei importante manter e
porque são boas para tirar frio e calor.

SR: Desculpe, agora lembrou-me: esta porta já tinha este formato? Mas não eram lojas aqui?

SN: Eram, mas esta era assim porque não tinha luz. Aqui era um portão de garagem, não, era
uma porta assim só que era só portada e não tinha luz quase nenhuma então eles tinham esta
porta assim, só para dar um bocadinho de luz. Eu por acaso agora já não lembro se aí também
tinha uma portada mas era capaz de ter. Mas realmente a casa é muito escura e nós optamos
por não abrir mais vãos. Todos os vãos que existem na casa principal… O que nós tentámos
foi: casa principal, o mais fiel possível ao existente; tudo o que foi construído de novo, nota-se
que foi construído de novo, pronto. Este sistema aqui da cozinha, tudo o que é novo, que foi
introduzido, nota-se que é novo. O resto, porque não tinha tanto interesse, porque eram
164 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

armazéns, porque eram sítios onde estavam as galinhas, tentámos que fossem funcionais e que
tivessem uma linguagem contemporânea e mais funcionalidade.

SR: A casa do ponto de vista exterior deste lado é de pedra…

SN: Era o que estava.

SR: Mas deste lado está rebocada.

SN: Estava assim.

SR: Estava assim rebocada?

SN: Estava. Nós pensamos em pôr toda ou em pedra ou rebocada mas ela tem uma razão para
estar assim. Os ventos dominantes vêm daqui e ela está mais quente deste lado então eles
puseram o branco deste lado e desse lado está a pedra, não tem tantos problemas. Foi uma
inteligência na altura, não sei se depois quando houvesse dinheiro até rebocavam tudo, mas
quando nós comprámos eram duas fachadas em pedra e duas fachadas sem ser em pedra,
rebocadas. E nós discutimos um bocado isso, eu não sou apologista, por exemplo eu gosto de
Castelo Rodrigo mas custa-me um bocadinho Castelo Rodrigo não ter reboco em algumas
casas que se nota que mereciam porque foram feitas para levar reboco. Quando se vê aquelas…

SR: Cantarias?

SN: As cantarias. Quando se vê que elas saiem da parede de pedra e são direitinhas é porque
iam levar reboco e é importante que haja, lá está é a tal identidade da casa, se era para levar
reboco porque não? Porque agora está na moda a pedra à vista e qualquer dia está na moda a
rebocar e vai tudo rebocado mesmo as casas que não eram para rebocar. É assim, dantes quem
tinha dinheiro, assim há uns séculos atrás, rebocava as casas, não é? E quem tinha dinheiro
deixava as cantarias nos cunhais e à volta das janelas e das portas. Quem não tinha pintava e
depois pintava a fingir que eram cunhais. Quem não tinha dinheiro deixava a pedra à vista.
Neste momento é o contrário.

SR: É o contrário, é verdade.

SN: Não é? E as casas acabam por perder um bocadinho de identidade portanto aqui nós
optámos por deixar o que estava. Estava tudo em pedra menos estas duas fachadas e eu acho
que ficou interessante do ponto de vista estético e cromático porque marca a casa, porque a
casa vê-se melhor sendo branca, não é? E quando subimos, ou por um lado, ou pelo outro,
conseguimos vê-la logo porque faz uma distinção muito grande entre o balcão e a casa não é?
E depois aqui no pátio também marca a entrada e distingue bastante do resto. Pronto, foi uma
opção, já estava e nós optámos por deixar.

SR: Optaram por manter, está bem. Para responder às novas necessidades, de segurança,
conforto e também turismo, portanto as leis, tiveram que ser acrescentadas infra-estruturas?

SN: Sim, não havia casa de banho, não havia cozinha, não havia água corrente.

SR: E isso, há bocado falou-me, passa tudo ali debaixo daquele…

SN: Sim daquela calha, é uma calha técnica que tem toda a parte de infra-estruturação: tem a
parte de aquecimento, tem a parte de águas e esgotos e tem a parte eléctrica.
Anexo II _ Entrevista a Sara Noro, designer de interiores 165
A Quinta de Pêro Martins

SR: E por exemplo naquelas casas de banho que estão ali naqueles anexos, aquilo está em cima
da rocha?

SN: Hummm, não bem…

SR: Como tem a rocha aqui no meio, parece que aquilo…

SN: Está um bocadinho em cima e conseguimos fazer…

SR: Ah! Levantaram para poder fazer passar as infra-estruturas?

SN: Sim.

SR: Ah, pronto, está bem. Lá está, era isso, como é que conseguiram encaixar as infra-
estruturas? Por exemplo as salamandras deixaram, assumiram o tubo à vista, mas o resto, os
aquecimentos já foi tudo pensado em projecto? Porque, lá está, esta casa não tem pedra à vista
no interior, como se costuma usar mais na minha zona, o que dificulta se quisermos manter a
pedra à vista no interior, conseguir pôr isolamento térmico.

SN: Nós éramos para deixar pedra à vista nalgumas paredes aqui, e estou satisfeita de não
termos deixado. Para já porque tornava ainda mais escura a sala e por outra coisa, é que está
sempre sujo, aquilo suja imenso, a pedra deita areia, e torna-se sujo. Nós éramos para manter,
eu não sou muito apologista da pedra à vista nos interiores, sinceramente, acho que é muito
bonito no exterior mas no interior, é sujo, é escuro, não é muito funcional. E pronto, opinião
pessoal não é? São quase todas paredes com caixa de ar e pladur.

SR: E portanto com isolamento térmico…

SN: Com isolamento térmico, algumas com acústico. Optámos pelo pladur em todas as
divisões em que não temos tijolo, é um painel sanduíche duplo com isolamento no meio, a
infra-estruturação passa toda dentro das paredes, aqui também. As únicas paredes que estão
rebocadas aqui em baixo é esta e aquela ali porque eram para ser em pedra e depois eu optei
por não as deixar em pedra. Lá em cima é tudo rebocado, só as paredes que foram construídas
de novo é que são de pladur, as outras são em tabique.

SR: Mas têm algum isolamento?

SN: As paredes de pladur sim, as outras não, são de tabique normal. Não sei se conhece o que
é que é um tabique?

SR: Sei, sei. Mas eu estava a falar das exteriores.

SN: As exteriores não, lá em cima só temos pladur e isolamento por baixo das janelas que é
onde há as maiores pontes térmicas e optámos, para não diminuir mais as divisões, não pôr.
Mas cá em baixo todas têm.

SR: E lá em cima mantiveram as paredes de tabique originais?

SN: Exactamente, as paredes de tabique originais só deitando abaixo partes nas zonas onde
queríamos fazer mudanças. Depois claro que picámos tudo e voltámos a rebocar.

SR: Está bem. Pronto e em relação às principais dificuldades que têm a ver também com as
exigências, pronto tirando o dono da obra que neste caso são vocês…

SN: Neste caso era fácil não é?


166 Reabilitação do Património Vernáculo da Beira Alta numa perspectiva turística

SR: Exacto, mas muitas vezes… Por exemplo a nível do turismo, coisas que teve que…

SN: É assim, já tinha a experiência de outras casas e foi mais fácil. A única coisa que eu queria
pôr e que não pus foi, nos dois bungalows, uma mini cozinha, pôr um micro-ondas, e não foi
possível porque, não sei se já conhece a legislação mas num quarto directamente não podemos
ter uma cozinha. Podemos ter uma sala com 12m2 onde teríamos a kitchenett, portanto foi
impossível. Pronto, foi a única coisa que não pusemos. De resto, não houve alterações
nenhumas.

SR: E a nível de, apesar de isto ter mais de 4 anos mas, a nível de RCCTE e de…

SN: RCCTE não sabemos, não fizemos, podemos estar a respeitar, podemos não estar a
respeitar. Quer dizer, a respeitar estamos sempre…

SR: Mas não houve nenhum controlo a nível de turismo para ser aceite?

SN: Não, ainda não. É assim, houve. Pusemos o projecto a apreciação, foi aprovado e vieram
fazer vistoria, estava conforme o projecto, fizemos aquelas pequenas afinações porque há
sempre aqueles imponderáveis de obra mas vieram cá e estava tudo bem e pronto, foi a única
coisa. Eu estou aí a ver as acessibilidades, as acessibilidades ainda não tinham saído.
Acessibilidades nós optámos por não ter porque não tínhamos muita facilidade para acesso a
deficientes.

SR: Mas não é obrigatório?

SN: Não é obrigatório, e continua a não ser e se quiser pedir isenção… Para turismo em espaço
rural não é obrigatório, e continua a não ser agora. É assim, por opção nossa na altura
pensámos e ponderámos mas era difícil porque nós temos muitos desníveis e era muito difícil
estarmos aqui a fazer isso mas, nestas últimas recuperações que temos feito, e eu estou quase
especialista em turismo em espaço rural, porque temos feito muitos aqui em Figueira e aqui na
zona, temos optado por pôr um quarto para deficientes, para pessoas com mobilidade
condicionada e temos percursos de mobilidade condicionada. Mas é assim, aqui optámos por
não ter porque era muito complicado.

SR: Exacto, mas isso também não é em si um requisito…

SN: Não porque se não quiser ter pede isenção. Diz que dado as características da casa não é
possível, pronto.

SR: Pronto. E portanto em si não houve assim nada que impedisse, normas?

SN: Não. É assim normalmente eu faço sempre, não neste momento porque é a câmara que
legaliza os turismos, legaliza ou licencia, mas dantes eu ia sempre ao turismo com o projecto,
com o ante-projecto falar com a arquitecta e falávamos sobre essas coisas. Por exemplo, eu não
pedi que me aprovassem as kitchenett’s, eu fui antes pedir um parecer prévio e ela disse-me
que não. Pronto, e eu não avancei. Foi opção, perguntei a ver se dava, não deu portanto vamos
avançar com as coisas como estão.

SR: Está bem. Pronto, acho que é tudo, não estou a ver mais nada… Tenho aqui questões mas
em si não…

SN: Pronto, foram respondidas de outra maneira…

SR: Sim, quer dizer, a pesquisa histórica, a avaliação…?


Anexo II _ Entrevista a Sara Noro, designer de interiores 167
A Quinta de Pêro Martins

SN: Há sempre. Há sempre pesquisa histórica mas depois é assim: já tínhamos o background
do que o que era a arquitectura popular e acaba por ser um bocado tudo igual não é?

SR: Sim, sim.

SN: É mais difícil se calhar construir um edifício de raiz e pensar orientação solar,
características da zona, clima… do que se calhar pegar numa pré-existência e pensarmos “é
uma arquitectura popular temos que fazer isto com estes materiais e com estas condicionantes
e adequar isto a este programa”. Pronto é mais fácil se calhar. Eu gosto muito mais de
trabalhar em recuperação do que em edifícios novos, pessoalmente.

SR: Pois eu também gosto imenso. E torna-se sempre mais fácil mais condicionantes tivermos.

SN: Eu acho que sim. Aquela coisa da folha em branco acho muito complicado para mim.

SR: E depois há sempre as exigências impostas pelo dono da obra…

SN: Pois, há clientes que querem condicionantes a mais e aí torna-se muito complicado.

SR: Pois, isso sem dúvida mas no caso de uma reabilitação, portanto duma pré-existência, há
logo coisas que estão limitadas que…

SN: Sim, a estrutura, a não ser que queiramos deitar tudo abaixo, mas temos sempre aquela
coisa, são quatro paredes, não é? Não vamos sair muito daí.

SR: Exacto.

SN: É mais fácil.

SR: Pronto, acho que é só mesmo.

SN: Pronto e depois eu tenho o seu e-mail vou tentar mandar-lhe algumas fotografias da nossa
obra, tanto do antes como do durante…

SR: Sim, agradeço.

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