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O Campo

Hotxuá: Jogos, brincadeiras e os potenciais


c ê n i c o s d o c ô m i c o r i t u a l n a p rát i c a p e d a g ó g i c a 1

Abreu, Ana Carolina Fialho de (UFBA) 2

Resumo: Este artigo propõe uma investigação sobre o hôxwa, cômico ritual Krahô,
localizado no estado do Tocantins, Brasil. Além de apresentar sucintamente uma pro-
posta pedagógica desenvolvida pela autora, com jogos e brincadeiras inspirados na
prática cômica indígena Krahô. Para tanto, foi realizado uma pesquisa de campo ex-
tensa e uma etnografia do amnikhi (ritual) Pàrti ou Jàt jô pĩ (Festa da Batata), onde o
hôxwa é “protagonista”. A revisão bibliográfica se baseia em um horizonte multirre-
ferencial que envolve conceitos e teorias de disciplinas associadas a diversas áreas de
conhecimento, incluindo arte, antropologia e pedagogia. Entre os autores e mestres
indígenas que se destacam nesta proposta estão: Bolognesi, Lévi-Strauss, Melatti,
Dal Gallo, Ismael Ahpracti Krahô e Getúlio Cruacraj Krahô. Este processo prático e re-
flexivo em andamento, tem como objetivo servir de subsídio para educadores, edu-
cadoras e artistas incluírem nas escolas, o ensino das histórias e cultura indígenas,
obrigatório desde 2008, segundo a Lei 11.654/2008.

Palavras-chave: Comicidade. Hôxwa. Jogos.

Resumen: Este artículo propone una investigación sobre el hôxwa, cómico ritual
Krahô, ubicado en el estado de Tocantins, Brasil. Además, presenta una propuesta
pedagógica desarrollada por la autora, con juegos y bromas, inspirados en la prácti-
ca cómica indígena Krahô. Para ello, se realizó un estudio de campo y una etnografía
del amnikhi (ritual) Perti o Yótyõpi (Fiesta de la Batata), donde el protagonista es
el hôxwa. La revisión de la literatura se basa en un horizonte multirreferencial que
involucra conceptos y teorías de disciplinas asociadas a distintas áreas de conoci-
miento, incluyendo arte, antropología y pedagogía. Entre los autores y maestros

1 Artigo aprovado em 01/05/2016.


2 Ana Carolina Fialho de Abreu é palhaça e diretora teatral. Doutoranda e Mestra em Artes Cênicas, na Universidade Federal da Bahia
- UFBA. Orientador: Professor Doutor Fábio Dal Gallo. Bacharel em Artes Cênicas com habilitação em Direção Teatral e Interpretação
pela Universidade Federal de Ouro Preto. Bacharel of Clowning pelo Nouveau Clown Institute (NCI), Espanha. Faz parte do Grupo
Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade (GIPE-CIT). (anacarolinaabreu1886@
gmail.com) 40
indígenas que se destacan en esta propuesta están: Bolognesi, Lévi-Strauss, Melatti,
Dal Gallo, Ismael Ahpracti Krahô y Getúlio Cruacraj Krahô. Este proceso práctico y
reflexivo en curso, tiene como objetivo proporcionar apoyo para los educadores,
educadoras y artistas incluir en las escuelas, las cuestiones indígenas, obligatoria
según lo sancionó la Ley 11.654 de 2008.

Palabras clave: Comicidad. Hôxwa. Juegos.

Vocês vem aqui fazer estudo, são estagiários, querem apren-


der. Ficam vendo as mulheres fazendo tiririca [...] furando ti-
ririca, fazendo tucum, enfiando na semente. Perguntam como
colhe tiririca, qual o tempo que dá, tiram fotos. Aí chega lá no
mundo dos cupen e fala tudo, mostram as fotos. As fotos são a
prova de que você foi lá e aprendeu.

Mas será que você vai entrar no mato e tirar tiririca? Ir afas-
tando o mato com o pau pra não se cortar? Será que você sabe
furar ela, ficar com os dedos todo ralado? Será que você sabe
enfiar o tucum? Sabe nada... Pra aprender sobre aquele pé de
coco ali, você tem que entender a imitação dele, a fala dele, a
cultura dele.

O hotxuá é a imitação das plantas. Cada planta tem seu jeito,


sua imitação. O hotxuá não é pajé é espírito. Das plantas, das
folhas, dos frutos. Cada um tem seu jeito sua imitação.

(Getúlio Cruacraj Krahô)3

Sábio Getúlio Cruacraj Krahô, que junto ao hôxwa Ismael Ahpracti Krahô e aos Krahô me
ensinaram na prática que a pesquisa de campo é o lugar da aprendizagem. Viajar para escrever é
parte fundamental da minha pesquisa de Doutorado (como foi também do Mestrado), cada local,

3 Este depoimento se encontra na dissertação de mestrado da antropóloga Ana Gabriela Morim Lima, que eu tive o prazer de conhe-
cer nas terras Krahô: Hoxwa: Imagens do Corpo, do Riso e do Outro. Uma abordagem etnográfica dos palhaços cerimoniais Krahô. Rio
41 de Janeiro, 2010, p.165, 166.
cada vivência serviu e está servindo para a construção de conhecimentos e reflexões. Pergunto-
me, sem transitar da cidade para a aldeia, como eu poderia observar, participar, refletir, escrever
uma etnografia e ampliar a pesquisa, criar, desenvolver e mediar jogos, a partir da mitologia e das
ações do hôxwa no dia a dia e no ritual Pàrti ou Jàt jô pĩ (Festa da Batata) onde este cômico ritual
é “protagonista”4? Somente o contato direto com os atores sociais e seus conhecimentos, ou seja,
a experiência da viagem torna possível esta investigação.
Segundo Fábio Dal Gallo (2012)5 o pesquisador se desloca ao encontro do “outro” fisi-
camente por meio da viagem, processo que permite o contato com outras culturas. O corpo do
pesquisador imita o corpo do ator social que tenta aprender e aproveitar experiências, usos, cos-
tumes, enfim, uma rede de conhecimentos que contribuem também para o seu desenvolvimento
humano. A etnografia, segundo o autor é um método que considera a possibilidade de aconteci-
mentos “por acaso”, sendo assim, um método que bem se adapta ao âmbito das Artes Cênicas, no
sentido de “pensar com o corpo em movimento” como possibilidade crítico-teórica. Isto acontece
porque a etnografia é um meio que permite uma vivência, articulada com uma ação pedagógica
e produção de conhecimento na qual o pesquisador se mostra como agente e interage com o
ator-autor do seu estudo. Assim, “o pesquisador em Artes Cênicas ao mesmo tempo em que, por
meio de seu trabalho, está produzindo conhecimento, está vivendo e pesquisando junto “com” a
pesquisa e não “sobre” a pesquisa” (GALLO, 2012, p. 18).
Viver e pesquisar “com” o hôxwa Ismael Ahpracti Krahô, ouví-lo, levá-lo à minha casa,
conhecer a sua aldeia, sua família, caçar com ele, cantar, comer, dormir, banhar no rio, observar
e participar ao seu lado de diversos rituais Krahô e das suas brincadeiras, me leva a confrontar
com novos desafios e conflitos, na condição de conhecer o “outro” e a mim mesma, esta vivência,
torna-se, portanto, um processo reflexivo. A coleta de dados deste trabalho se deu e se dá, por-
tanto, em sua maior parte, na pesquisa de campo6.
O processo reflexivo trouxe algumas inquietações que surgiram na criação do plano de
curso para o estágio docente (atividade do Mestrado), que realizei com os educandos e educandas

4 As palavras do léxico teatral são utilizadas de forma metafórica.


5 Fábio Dal Gallo é orientador desta pesquisa. Possui Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2009),
Mestrado em Ciências Sociais e Graduação em Economia pela Alma Mater Studiorum Universidade de Bolonha, Itália, (2005).
6 Minha aproximação e vivência com o hôxwa Ismael Ahpracti Krahô, da Aldeia Manoel Alves Pequeno, Tocantins, Brasil, aconteceu
na VII Aldeia Multiétnica, Chapada dos Veadeiros, Goiás (julho de 2013), onde pude observar a “interferência” do hôxwa no ritual de
Iniciação das Crianças Krahô, chamado Pemp’kahààc; na IX Feira Krahô de Sementes Tradicionais na aldeia Krahô, Tocantins (outubro
de 2013); no I Encontro Internacional de Palhaços de Cataguases, Minas Gerais (dezembro de 2013), produzido por mim, onde pude
observar e participar da brincadeira do hôxwa na cidade e compartilhar esta experiência com palhaços de Minas Gerais e de todo
Brasil; pela observação e participação no dia a dia, nos preparativos e no ritual Pàrti ou Jàt jô pĩ , em maio de 2014 e julho de 2015,
na aldeia Krahô Manoel Alves Pequeno. 42
do curso de Licenciatura em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia em 2014, que giram
em torno das seguintes perguntas: os estudantes de Artes Cênicas tem na universidade algum
aprendizado com e sobre as culturas e histórias indígenas? Como contribuir com a efetivação da
Lei 11.645/2008, resultado de décadas de luta dos movimentos indígenas, que instituiu a obri-
gatoriedade do ensino da história e das culturas dos povos indígenas nos currículos dos estabe-
lecimentos de ensino públicos e privados no país? O plano de curso que se refere este trabalho,
criado a partir da prática cômica ritual indígena Krahô, pode colaborar com o ensino de teatro e
com o processo de descolonização do saber nas escolas e universidades?
Como professora-artista7, palhaça e diretora teatral, afirmo que a vivência na pesquisa
de campo, na sala de aula e a criação andaram juntas, assim, optei por criar um plano de curso
com a participação dos Krahô, com jogos, brincadeiras, improvisações que buscam estabelecer
corporalmente um diálogo entre diferentes culturas, entre os saberes indígenas, entre a prática
cômica Krahô, a minha experiência artística como palhaça e os conhecimentos dos educandos e
educandas. O objetivo dos jogos e das atividades que fazem parte do processo criativo que se está
ampliando com a continuidade da pesquisa no Doutorado, é fornecer subsídio para uma nova
forma de abordar a “temática” indígena, pela via da comicidade ritual, no sentido de superar
as concepções estereotipadas presentes no senso comum a respeito dos povos indígenas como
meio de combater o desconhecimento, a intolerância e o preconceito em relação a eles.
Um estudo sobre o povo Krahô, com foco no hôxwa, as justificativas e os objetivos desta
prática pedagógica, poucos dos tantos desafios e perigos que esta trajetória se depara, alguns
dos jogos desenvolvidos e mediados, serão resumidamente expostos no desenvolvimento deste
artigo.

O povo Krahô e o hôxwa

Atualmente, a população Krahô é de cerca de 3.000 pessoas, vivendo em 28 aldeias.


Encontram-se no estado do Tocantins, cujo território está localizado próximo às cidades de Itacajá
e Goiatins, entre os rios Manoel Alves Pequeno e Vermelho, no nordeste do estado. O termo
Krahô é reconhecidamente uma nominação externa do grupo, eles se autodenominam mehi, cuja
tradução feita pelos próprios Krahô para o português é “nós mesmos” ou “nossa carne”. Desta
forma, antagonizam-se com os cupen, nome utilizado para identificar os não “índios”.

7 O professor-artista é um conceito criado pelo pesquisador Gilberto Icle, trata-se de um criador, um pesquisador, em suma, um pro-
fessor que não deseja mais o modelo de transmissão de conhecimento e nem pensa o teatro de forma estritamente hierarquizada.
43
Segundo o indigenista Fernando Schiavini (2006), a vontade do colonizador de exterminar
os povos nativos desta terra era tão forte, que a história e cultura indígenas são ensinadas nas
escolas, absurdamente, colocando-os sempre no passado. “Isso faz com que a grande massa da
população praticamente desconheça a existência atual de cerca de cento e oitenta línguas indíge-
nas faladas no país, pelos povos que resistiram ao extermínio” (SCHIAVINI, 2006, p. 14).
Após sofrerem um massacre no início da década de quarenta, empreendido por fazendei-
ros locais, os Krahô tiveram, em 1951, por pressão do Governo Federal, suas terras demarcadas
pelo Estado de Goiás. Atualmente o território representa a maior área de cerrado contínua, pre-
servada no Brasil, cerca de 302.000 hectares.
Conhecido por sua receptividade e por sua alegria, o povo Krahô tem, entre suas tarefas
cotidianas, a caça, o plantio e o riso. Eles consideram que a alegria é um elemento-base de sua
sociedade, e os hôxwas e mekhens8, para cumprir essa tarefa, usam a força do riso, da doçura e do
escárnio. Dentre suas funções, instauram o avesso, falam o que os outros calam, ensinam o certo
ao agir de forma errada, desmistificam o erro, fortalecem a auto-estima e unem o grupo através
da alegria, do abraço e da conversa, ajudando a garantir a sobrevivência de sua cultura milenar.
Segundo Getúlio Cruacraj Krahô, a partir do depoimento registrado pela antropóloga Ana
Gabriela Morim Lima (2010), o hôxwa é um grande guloso, se você tem carne na sua casa, ele não
sai de lá enquanto não comer tudo, e que ele não se importa, por que o hôxwa tem direito, se
fosse outro ele não gostaria, é que o hôxwa não está roubando, só brincando. Ele enfatiza que a lei
do hôxwa é diferente, ele pode fazer qualquer coisa, entrar e sair de qualquer lugar. Vale ressaltar
que as brincadeiras aparecem não somente no dia a dia da comunidade, mas também no ritual.
Trata-se do ritual Pàrti ou Jàt jô pĩ, também conhecido como Festa da Batata, que acon-
tece normalmente no mês de maio, período que marca a colheita da batata-doce. Trata-se do
único momento no ano em que todos os hôxwas da aldeia se pintam, se reúnem no centro do kà
(pátio) e apresentam suas “esquetes” cômicas. Os movimentos feitos pelo líder hôxwa (ancião),
no caso de minha visita em 2014 e 2015, pelo líder Ismael Ahpracti Krahô, da aldeia Manoel Alves
Pequeno, são reproduzidos pela fila de adultos, jovens e crianças hôxwas e imitam a flor da abó-
bora. Segundo os Krahô, quando a batata-doce se prepara nascer a abóbora tem o direito de fazer
esse ritual. Segue abaixo, a transcrição de um relato sobre o mito que “originou” o rito Perti ou

8 Segundo o Krahô Roberto, tanto os hôxwa quanto os mekhens participam da Festa da Batata, cada um fazendo a sua parte, que
incluiu imitar os frutos, os legumes e as plantas, como lhes fora ensinado no mito. Entretanto, fora da festa, o hôxwa “fica quietinho
e o mekhen faz as palhaçadas fazendo o povo sorrir, qualquer hora, qualquer lugar ele está lá, só na Festa da Batata que o hôxwa faz
aquelas palhaçada” (ABREU, 2014, p.152). Num depoimento registrado por Lima (2013), dado por Pascoal Hapor Krahô, ele diz que
o hôxwa é ihken, ihken é boboca, boboca é besta, que não fala, é mudo, não tem juízo, não presta é qualquer pessoa, coisa e comida
que apodreceu. 44
Yótyõpi, feito pelo próprio hôxwa Ismael Ahpracti Krahô, no dia 11 de dezembro de 2013, durante
o Seminário de Comicidade, realizado no I Encontro Internacional de Palhaços de Cataguases,
atividade que fez parte da minha pesquisa de Mestrado. Tal relato, repleto de detalhes, contribui
para revelar a partir do hôxwa e da prática cômica ritual Krahô, um pouco mais sobre o modo de
viver/ser e existir deste povo.

Nós come milho, nós come batata, nós come abóbora, nós
come croá, cana, essas coisas, tudo nós come, então, teve
uma aldeia, e plantando aqueles frutos, depois de fruto, for-
mou, e não comeram aquele fruto, e mudaram, porque que
mudaram? Deixaram a roça plantada, essas fruta, tudo dentro
da roça, porque eles plantaram banana, plantaram abóbora,
plantaram inhame, plantaram várias coisas que nós come, dos
frutos que nós come, e aí saíram, mudaram. Aí veio um índio,
e foi lá, mas quando chegou lá, já viu, encontrou já com as fru-
teiras fazendo esse movimento, fazendo essa alegria, só que
o rapaz, quando chegou e viu pra mode ele aprender como
é que ficou, por que de primeira não disse nada, não existia
esse palhaço dos mehi né, só por causa da fruta que saiu, pra
fazer isso agora, aí de lá pra cá veio. Então, entrou dentro de
uma casa, até, dentro da minha casa, (...). Então o cara chegou
entrou, e viu que tava movimentando, e tava esse movimento
só das frutas mesmo, aí chegou e ele, enquanto ele não viu
pro rapaz que chegou, ele ficou só olhando e, entrou e su-
biu lá no alto, naquele girauzim, lá em cima. Então, escutando
aquele cantiga, das fruteiras que estão fazendo a arrumação, e
escutando, só escutando, mas aí ele saiu fora pra saber como
é que ia fazer esse movimento que vai acontecer. Então, ele
ficou escutando, ouvindo como é que é, quando terminou, o
batata viu, achou o rapaz que entrou, ele falou com os outros
frutos: - Olha não sei quem é que entrou dentro dessa casa,
não sei quem é, mas eu vou ver quem é que ta aí em cima. (...)
Olhando pra cima, o rapaz estava olhando pra baixo, aí o ra-
paz pensou: – O que é isso? Será que é um... nós saímos todo
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mundo e ta acontecendo assim, uma ação aqui? No krinkapé
só as aldeias mesmo, não tem gente, como é que pode fazer
isso? E aí, o batata já respondeu o rapaz: – Olha, você pode
descer, eu quero contar pra você, você é igual eu, você ta escu-
tando o nosso movimento, né, eu vou explicar como é que é,
eu vou explicar pra você. (...) – Olha, você plantou nóis, dentro
da roça, os frutos que tem aqui, ta tudo fazendo arrumação
aqui, você fez só plantar nóis, largaram nóis e saíram pra plan-
tar outra aldeia, como é que é isso? Então, nós combinemos, e
nóis estamos fazendo essa festa. Agora é pra você chegar lá na
onde está os outros e chegar lá você vai explicar como é que
é. (...). Então a abóbora diz que é hôxwa, a abóbora diz que é
hôxwa por que você vê, tem abóbora branca, tem aquela abó-
bora rajada, essas cor aí. Então, a abóbora contou que, depois
fez assim e assim. E aí o rapaz ficou ajuntando como é que é.
Então tá bom. Já que ele já tinha gravado, já tinha tudo na
cabeça, e ele ficou queto aí, gravou tudo. As cantigas, tudo ele
gravou tudo. O movimento que ele tava olhando aí eles fize-
ram o coro, fizeram a brincadeira, como que nós faz também,
depois disso, e aí ele viu que foi assim. O hôxwa saiu da fruta,
por que a abóbora é hôxwa, a batata e a abóbora, e agora eu
vou acabar de contar. E aí ele foi, quando chegou lá, na aldeia,
de volta, onde o povo tava, aí ele falou assim: - Olha, é isso e
isso e isso, nós plantemo a roça, nóis saímos de lá, dexemo a
roça plantada, e nóis saímos de lá e não cuidemos de colher,
mas eu vi a festa, era do frutos que fazia lá dentro mesmo da
roça, na aldeia. Fez essa aldeia, fez esse tora, cortaram tora
mesmo, por que é uma madeira muito pesada que eles fazem,
então eles fizeram, eles brincaram, o batata contou tudo pra
mim que é pra nóis fazer agora assim, e daí pra frente é pra
nóis fazer isso. E com isso, o que a gente já sabe, ganha aquele
nome, que é hôxwa, e ele já vai ficando aprendendo, como é
que é, ele vai brincando, desde pequeno, desde os seis anos
pra frente, ele já vai começar a brincar, por que ele é hôxwa, o
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tio dele é hôxwa, o hôxwa saiu dessas fruteiras, da planta que
nóis come, então, é isso aí (AHPRACTI, 2012, depoimento).

Segundo Lévi-Strauss (2004), as histórias de caráter mitológico são, ou parecem ser, arbi-
trárias, sem significado, absurdas, mas pode-se dizer, apesar de tudo, que elas reaparecem por
toda a parte. O antropólogo sugere que devemos descobrir se existe um pouco de ordem atrás
dessa aparente desordem, ao mesmo tempo, nos alerta sobre a inexistência de um verdadeiro
término na análise mítica, isto é, os mitos e seus temas se desdobram ao infinito. “O pensamento
mítico, totalmente alheio à preocupação com pontos de partida ou de chegada bem definidos,
não efetua percursos completos: sempre lhe resta algo a perfazer. Como os ritos, os mitos são
intermináveis” (STRAUSS, 2004, p. 26). Assim, compreende-se que o mito é uma realidade cul-
tural extremamente complexa, que pode ser abordada, interpretada e reinterpretada através de
perspectivas múltiplas e complementares.
Segundo a interpretação de Lima (2013), o mehi que viu o movimento desta festa ouviu,
aprendeu e lembrou-se de tudo. Ensinou aos outros que, desde então, fazem a festa todo ano.
Nota-se, portanto, o papel central conferido aos sentidos para a apropriação do conhecimento,
“(...) o desenvolvimento da visão, da audição, do olfato e do táctil são imprescindíveis aos proces-
sos de aprendizado relatados no mito e transmitidos no ritual por meio de práticas cotidianas”
(LIMA, 2013, p. 11-12). Para a autora, no mito e no ritual, que gira em torno do hôxwa, as plan-
tas são animadas e personificadas, percebidas através de uma estética que atribui significações
simbólicas e morais, traduzindo uma experiência multissensorial e de trocas de perspectiva entre
humanos e plantas. Assim, as plantas são personificadas e os hôxwas, brincam com a humanidade
que as anima, brincadeira esta que também provoca medo, acompanhado por um riso ao mesmo
tempo assustado e excitado.
Percebe-se assim, que o corpo do hôxwa é o canal máximo de sua expressão, das emo-
ções, da sua lógica (ilógica) e de sua graça, ele atua com o corpo e com a capacidade de ver o mun-
do às avessas. Contudo, a imitação é feita à maneira do hôxwa que está aprendendo, ou seja, cada
hôxwa imprime no seu corpo a brincadeira e imprime à brincadeira suas próprias características.
O ator-pesquisador Ricardo Pucetti, integrante do Lume – Núcleo Interdisciplinar de
Pesquisas Teatrais da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, esteve presente na aldeia
Krahô para participar da gravação do documentário Hotxuá, dirigido por Letícia Sabatella e Gringo
Cardia em 20049. Segundo ele, o hôxwa “não é um personagem, mas uma função social que

47 9 A estreia do documentário se deu em 2011.


alguns escolhidos têm o privilégio de possuir” (FERRACINI, 2006, p.158). Esta função é passada
pelo nome, que segundo Schiavini é o maior legado que os Krahô possuem.

Tradicionalmente, quando uma pessoa transmite um de seus


nomes a uma criança, geralmente seu sobrinho ou sobrinha,
está passando toda a tradição de inúmeras gerações, além
das funções rituais que ele exerce na sociedade. Como os
Krahô não possuem bens, o nome é o maior patrimônio que
a pessoa possui e deve tentar enriquecer durante sua vida
(SCHIAVINI, 2006, p. 11).

Juntamente com o nome pessoal de seu ketj (padrinho) ou tyj (madrinha), o indivíduo her-
da uma série de relações sociais, como passar a pertencer a uma das metades do par wacmejê/
catàmjê e a ter os mesmos amigos formais daquele que o “batizou”. As relações do ipantuw (so-
brinho (a)), com seu ketj ou tyj, estabelecidas no “batizado”, são desenvolvidas desde cedo. Como
disse Ismael Ahpracti Krahô, a partir dos seis anos de idade eles já são vistos juntos nos ritos, onde
desempenham os mesmos “papéis”. Para Melatti (1976), o nome é como um personagem que,
através dos tempos, vem sendo encarnado por atores diversos.

Ao invés de pessoa, seria mais apropriado fazer corresponder


aos nomes pessoais craôs a noção de personagem. Cada nome
pessoal seria como que o nome de um personagem. A socie-
dade craô seria constituída por um conjunto de personagens
que, tais como os do teatro, seriam eternos, fadados a repe-
tirem sempre os mesmos atos. Os atos e as relações desses
personagens seriam somente aqueles transmitidos junto com
os nomes pessoais. Embora eternos tais personagens seriam
encarnados por atores diversos, que se sucederiam no tempo
(MELATTI, 1976, p. 145).

Assim, se o inxu (pai) ou inxe (mãe) de um craré (criança), seu ketj (padrinho), ou tyj (ma-
drinha) ou seu wejxum (avô) ou sua wejcahaj (avó) que lhe der o nome for hôxwa, a criança será
conduzida/ensinada desde pequena a “interpretar” este papel na aldeia. Vale lembrar que se
a criança for uma menina e sua tyj ou sua nominadora for hôxwa, ela será uma hôxwa mulher,
ou seja, este “papel” pode ser vivido, “interpretado”, por homens e mulheres. Entretanto, não é

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porque a pessoa recebe o nome de hôxwa que ela obrigatoriamente se apresenta como tal, en-
carnando e desenvolvendo o “personagem”: “Não trata-se de um “dado pré-determinado”, mas
uma “potencialidade dada” que vem a ser “atualizada” ou não pelos atores” (LIMA, 2013, p. 9).

Processo criativo

As escolas de teatro, no país, como afirma Bolognesi (2010), dispensam pouca atenção
ao universo cômico. Quando muito, alguns comediógrafos e suas obras são tratados do ponto de
vista historiográfico. “Experimentações cênicas, baseadas na linguagem cômica, são raridades. O
assunto é pouco tratado no âmbito da interpretação e da encenação. Tal ausência torna-se ainda
mais evidente quando se trata do cômico popular” (BOLOGNESI, 2010, p. 72). E o que dizer no
âmbito da Licenciatura em Artes Cênicas? Como apresentado no início do texto, em março de
2008, o então presidente Luís Inácio Lula da Silva, sancionou a Lei 11.645 que tornou obrigatório
o estudo da história e cultura indígena nas escolas de ensino fundamental e de ensino médio, pú-
blicos e privados. Tais conteúdos devem ser ministrados em todo o currículo escolar, em especial
nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileira. Entretanto, a falta de material
didático apropriado e pesquisas na área, corroboram para dificultar o trabalho dos educadores. A
difusão destes conhecimentos nos cursos que formam professores torna-se, portanto, uma ferra-
menta necessária. O trabalho que estou desenvolvendo, abordado neste artigo crê e ambiciona
resultados positivos a este nível.
Na sequência, disponho três jogos, dentre os vinte e seis que já foram mediados, vale
lembrar que a prática e a teoria caminham juntas, assim, os educandos e educandas têm também
acesso a documentários, vídeos de pesquisas de campo, relatos dos próprios indígenas, fotos,
textos críticos acerca das histórias indígenas, do processo de colonização no Brasil, etnografias,
entre outros.

• Jogo dos Pratos


Grande roda. Ao centro tem um prato gigante e invisível. Cada participante vai ser um
ingrediente do prato. Vai-se até o prato (centro da sala), faz-se a forma (com o corpo) do ingre-
diente que escolheu, olha nos olhos dos colegas (congelando a imagem) e diz o nome do ingre-
diente escolhido. Permanece no “prato”, até o fim do jogo. Cada “prato” termina quando todos
os participantes-ingredientes estiverem dispostos no prato. A instrução dada pelo mediador (a)
neste jogo é o nome do prato que será servido. Deve-se respeitar o tempo de “preparo” de cada
prato. Sugestão da sequência dos pratos:
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∙ Prato 1: Salada.
∙ Prato 2: Comida japonesa.
∙ Prato 3: Comida baiana. (Quando realizado em outro local, cidade, estado,
país, é interessante para identificação dos alunos, acrescentar uma comida
típica local).
∙ Prato 4: Prato do hôxwa.
∙ Prato 5: Prato do nada.
∙ Prato 6: Prato do infinito.

• Telefone sem fio das ações


Divide-se o grupo em platéia e participantes. São cinco participantes para cada rodada do
jogo. Pede-se um voluntário dentre os cinco, este será o primeiro. Os outros devem se descolar
para o lado de fora da sala e serão posteriormente chamados, um por um. Ao primeiro partici-
pante eu leio uma frase, em seu ouvido, de forma que o público não ouça, tal frase deve servir de
inspiração para que o participante crie uma sequência de três movimentos. Os três movimentos
devem ser repetidos três vezes e em seguida mostrado três vezes para o próximo participante. O
próximo participante observa, copia e mostra para o próximo e assim sucessivamente. Trata-se de
um telefone sem fio, mas de ações. No final, mostra-se novamente a todos, o primeiro e o último
participante, para vermos que interferência esta “ligação” sofreu, revela-se também a frase pro-
vocadora. Utilizei as seguintes (uma frase para cada rodada de jogo):
∙ Antigamente todos os legumes falavam.
∙ Os hôxwas se pintaram com toá na cara, no peito.
∙ A abóbora é hôxwa.

• Brincado com a música: Ajpemõn10


Comparte-se com as educandas e educandos a música Ajpemõn, ensinada por Ismael
Ahpracti Krahô, que faz parte do ritual Pàrti o jàt jô pĩ e depois a tradução da mesma. Na sequ-
ência, se agrega à letra, a melodia do cântico. Canta-se juntos, várias vezes. Depois, se divide os
participantes em dois grupos. Cada grupo tem dez minutos para criar uma nova melodia e core-
ografia para a letra aprendida. Ou seja, permanece apenas a letra. Segue a partitura da música
como é cantada no ritual (figura 1) e a partitura da música (inspirada no arrocha-estilo de música
baiana) criada pelos estudantes do módulo III de Licenciatura em Artes Cênicas da UFBA (figura 2).

10 A letra dessa música que faz parte da Festa da Batata, ensinada por Ismael Ahpracti Krahô é uma livre transcrição minha que
ainda precisa passar pelas correções gramaticais Krahô. 50
Tradução da música: Ajpemõ (Vamos todos)/Cuhkõncahàc (Abóbora) /Acucren (Comer) /“Vamos
todos a comer la abóbora”

Figura 1: Partitura da “música” Ajpemõ, ensinada por Ismael Ahpracti Krahô


Fonte: Armando de Mendonça Filho (partitura encomendada para a pesquisa)

Figura 2: Versão dos estudantes para a canção indígena Ajpemõ


Fonte: Armando de Mendonça Filho (partitura encomendada para a pesquisa)

Os jogos e as brincadeiras têm como objetivo produzir a presença na sala de aula de uma
cultura que está sempre ausente, se problematiza esta ausência, trazendo sujeitos que foram nega-
dos, escravizados e subjugados. Não se trata de mimetizar as ações do hôxwa, nem de representar
partes do ritual, mas sim, de se perguntar, questionar e refletir o que estes jogos nos permitem
fazer ver desta cultura, da prática cômica Krahô. Ressalto a importância, portanto, de esclarecer
que se trata de um processo criativo inspirado na prática cômica Krahô, com a ajuda dos Krahô,
um diálogo entre culturas, visto que não sou uma Krahô e que mesmo prolongando minha perma-
nência nas aldeias, nunca chegarei a dispor de dados completos sobre o hôxwa e o rito Yótyõpi,

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porque não há uma relação entre cada rito e um só mito, “(...) na verdade há um grupo de mitos e
um grupo de ritos, mas cada um desses ritos se relaciona com todos os mitos e cada mito também
se relaciona com todos os ritos” (MELATTI, 1978, p. 338).
Conclui-se que o trânsito entre a cidade e a aldeia, a universidade, as escolas e os saberes
indígenas são e continuarão sendo fonte de conhecimentos, ideias e conflitos. Observou-se nas
aulas que durante os jogos, educador e educandos desestabilizaram o “chão terraplanado onde
o colonizador se permite mover sem nunca pedir licença e sem tropeçar” (LEPECKI, 2003, p.8);
problematizou-se o “redimir” do homem ocidental ao seu passado via uma “celebração” da “cul-
tura” do até ontem colonizado. Segundo Lepecki, esta celebração passa por uma comercialização
e estetização das multiculturas, que se redefinem como essencialmente exóticas e performáticas,
dignas de serem contempladas à distância. Na sala de aula, pelo contrário os jogos aproximaram
os educandos da cultura Krahô de forma lúdica e crítica, não sugerindo um apaziguar confortável,
uma confirmação puramente fictícia, delirante e cega de todas as tensões políticas e de todos os
horrores corporais, sociais e humanos causados pelo colonialismo. Tratou-se de “auscultar o chão,
ouvir seus abismos, encontrar suas falhas, determinar os entulhos onde estão os corpos que a
história enterrou sem cuidados (LEPECKI, 2003, p.11)”. Para que se dance, brinque, jogue e cante o
problema do equilíbrio nada firme nem liso da história.

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Referências bibliográficas

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