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ISBN 978-65-84536-52-4
1. Odontologia 2. Periodontia
CDD-617.6
Flávia Furlaneto
Especialista, Mestre, Doutora e Pós-Doutora em Odontologia (Periodontia).
Departamento de Cirurgia Buco-Maxilo-Facial e Periodontia, Faculdade de
Odontologia de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil.
Renata Cimões
Professora Titular da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-Doutorado
em Periodontia no Eastman Dental Institute, Londres. Membro Permanente do
Programa de Pós-graduação em Odontologia da UFPE. Membro do Conselho
SOBRAPE. ITI Fellow. Speaker e Study Club Director. Imortal da Academia
Pernambucana de Ciências.
BELÉN RETAMAL-VALDES
Cirurgiã-dentista (DDS) e licenciada em Odontologia pela Universidade de Talca
(Chile) e pela Universidade Federal de Santa Maria (Brasil). Mestre (MSc) e
Doutora (PhD) em Odontologia (Periodontia) pela Universidade Guarulhos (Brasil).
Pesquisadora e Professora da Universidade Guarulhos, SP, Brasil. Professora
Adjunta da Universitas Gadjah Mada (Indonésia). Representante da Comunidade
do Periodontal Research Group (PRG) na IADR (International Association for
Dental Research). Coordenadora do Centro de Estudos Clínicos da Universidade
Guarulhos. Membro do Conselho Fiscal da Associação Latino-Americana de Saúde
Bucal (LAOHA) e Membro da Comissão Científica da Federação Iberopanamericana
de Periodontia (FIPP). Foi uma das autoras do atual Sistema de Classificação de
Doenças e Condições Periodontais de 2018. Revisora de revistas internacionais e
membro do Editorial Board da Journal of Clinical Periodontology.
IGOR MENDEZ
Graduando em Odontologia pela PUC-MG. Professor de Fotografia Odontológica.
INGRID OLIVEIRA-CARDOSO
Cirurgiã-dentista. Departamento de Periodontia, Divisão de Pesquisa Odontológica,
Universidade Guarulhos, Guarulhos, SP, Brasil.
JULIA BELLO
Especialista em Periodontia pela USP.
LILIAN COUTO
Especialista em Periodontia. Especialista e Mestranda em Harmonização Orofacial
pela SL MANCIC, São Paulo.
LORELEY BRAGARD
Especialista em Periodontia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). Mestre em Odontologia (área de concentração Periodontia) pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora do curso de espe-
cialização em Periodontia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio).
RACHEL RODRIGUES
Especialista em Periodontia. Doutora em Odontologia.
ROGER KIRSCHNER
Mestre e Especialista em Prótese Dentária pela SL MANDIC-SP.
STEPHANIE GARÓFALO
Graduada pela Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP).
Especialista em Periodontia pela FUNDECTO-USP. Professora Assistente do Curso
de Especialização em Periodontia da FUNDECTO-USP. Doutora em Laser em
Odontologia pela Universidade de São Paulo (FOUSP) e pela Universidade RWTH
(Aachen, Alemanha).
Se reinventar sempre.
A história desse livro começa lá atrás, no início da pandemia. Dúvidas,
medo, pânico? Vários sentimentos surgiram naquele momento. O que fa-
zer com a Sociedade Brasileira de Periodontologia em plena pandemia?
Como fazer atividades? Como fazê-la crescer se todos estavam em casa
obrigatoriamente? Era preciso se reinventar e sair da zona de conforto.
Foi quando nos surgiu a ideia de fazer lives na hora do almoço. Primeiro
surgiu o “almoço com Sobrape”.
E porque não fazer só com as mulheres? Uma pergunta da Professora
Alexandra Dias. E assim, surgiu o Perio por elas. Uma série de lives em ple-
na pandemia só com professoras. O tempo foi passando. Surgiram novos
projetos; Perioline 1, webinars, Perioline 2, Perioprev; Eventos da comissão
de inovação, Perio raiz 1, 2 e 3, Congresso Brasileiro de Periodontologia,
em Salvador, Inovação ao vivo, em Ribeirão Preto...
Será que é possível fazer o “Perio por elas” presencial, como um con-
gresso. E estamos hoje aqui, reunidos e comemorando. Comemorando
mais um evento da nossa Sobrape, conectada com um mundo moderno e
atual. Um evento só de palestrantes brasileiras, e mais do que isso, feste-
jando a competência acima de tudo. Diante de uma sociedade recheada de
desigualdades, estamos fazendo a nossa parte. É preciso evoluir sempre.
Se reinventar e sair da zona de conforto.
Um abraço a todos e bom congresso.
Sérgio Kahn
Periodontia e
Qualidade de Vida
Introdução
As doenças periodontais, gengivite e periodontite, figuram entre as condições crônicas não transmis-
síveis mais prevalentes no ser humano.1-6 Enquanto a gengivite é localizada nos tecidos de proteção e
parece ser uma inflamação reversível dos tecidos,7 a periodontite é caracterizada pela perda de inserção
conjuntiva e óssea no aparato de sustentação dental.8 Além de sua característica complexa podendo le-
var à perda de elementos dentais e até de toda a dentição, a periodontite figura como preditor de risco
para várias condições crônicas inflamatórias.9 As condições crônicas não transmissíveis são extrema-
mente prevalentes e causam um significativo impacto social e econômico.10-12
A periodontite, mais recentemente, passou então a fazer parte do rol de condições crônicas não trans-
missíveis,13 assim como doenças cardiovasculares, diabetes, doença renal crônica, doença pulmonar
obstrutiva crônica, câncer, doenças reumáticas, doenças inflamatórias intestinais, entre outras, que são
condições em que a inflamação, a disbiose e as alterações imunológicas geralmente estão presentes.14
Condições crônicas não transmissíveis são a principal causa de mortes em todo o mundo e responsáveis
por quase 42% das mortes prematuras (entre 30 e 69 anos) no Brasil.15,16 Compreender a participação da
periodontite nesse grupo de condições, portanto, eleva a Periodontia a um novo grau de importância.17
A periodontite é atualmente classificada como uma condição crônica, de caráter não linear, que apre-
senta oscilações entre progressão e estabilidade,18 multifatorial, inflamatória, associada a um biofilme
disbiótico.8,19
A suscetibilidade a várias condições crônicas, inclusive as periodontais, parece estar determinada ge-
neticamente (intrínseca) e também epigeneticamente (intrínseca e adquirida).18 A epigenética acon-
tecerá por sobre o capital genético, permitindo ou intensificando a expressão do perfil inflamatório.
Assim como o microbioma parece ser determinado e modificado constantemente por fatores epigené-
ticos, estes também são vitais na regulação do sistema imunológico, podendo também induzir respos-
tas imunológicas aberrantes. Uma resposta imune exacerbada ou descontrolada pode causar lesões
teciduais importantes.20 De fato, a inflamação excessiva é agora reconhecida como um componente
central das doenças mais prevalentes em todo o mundo, incluindo periodontite, diabetes e doenças
cardiovasculares.21
Seguindo essa premissa, suscita-se a questão de qual processo é primordial ou preponderante para
início e desenvolvimento da periodontite – o processo infeccioso local gerando inflamação e, por conse-
quência, alterando a modulação do hospedeiro ou, ao contrário, se a modulação do hospedeiro (local e
sistêmica) propiciaria a transmutação de um microbioma comensal para um microbioma disbiótico. As
duas vias parecem ser retroalimentadas.
Assim, aqui discutiremos conceitos de epigenética, controle imunológico, disbiose, inter-relação da
periodontite com outras condições crônicas e, ainda, como o estilo de vida impacta em todas essas
vertentes.
Figura 1.1.1 A periodontite como condição crônica, multifatorial, inflamatória, associada a biofilme
disbiótico. As diversas condições que acometem o indivíduo, desde a concepção até a vida adulta e o
envelhecimento, são delineadas por mudanças epigenéticas sobre o patrimônio genético adquirido. A
atuação do meio ambiente e do estilo de vida serão preponderantes em relação ao potencial resolutivo
imunológico, aos microbiomas, e, consequentemente, às condições crônicas não transmissíveis de um
modo geral.
Disbiose Microbiana
A palavra “disbiose” tem sua origem na palavra grega bíōsis, que significa “modo
de vida”, mais o prefixo dys, que significa “mau” ou “difícil”. O termo foi inicial-
mente empregado em 1920 pelo veterinário alemão C. Arthur Scheunert em seu
estudo sobre a relação da microbiota intestinal e a osteomielite em equinos.30
Décadas depois, ao estudar a composição da microbiota intestinal de humanos,
Haenel enfatizou o termo disbiose como uma condição adversa, em oposição ao
termo eubiose, uma condição favorável ao hospedeiro.31
Atualmente, o conceito de disbiose reflete o desequilíbrio ou a alteração compo-
sicional de membros específicos de uma comunidade microbiana que habitam
um determinado hospedeiro, resultando no mau funcionamento do organismo
e no desenvolvimento de um estado de doença. Mais especificamente, essa alte-
ração reflete a redução na proporção de microrganismos comensais e o aumen-
to de espécies mais patogênicas.32 Entretanto, não há um consenso na área da
microbiologia médica sobre a disbiose microbiana ser causa ou consequência
de um estado de doença, e muito menos ainda sobre quais são os mecanismos
envolvidos nos processos que levam à perda de homeostasia.33-35 Já os termos
eubiose ou normobiose têm sido frequentemente empregados para caracterizar
uma microbiota estável ou balanceada, normalmente predominante no hospe-
deiro saudável.36,37 Seja qual for o termo usado, não há ainda uma distinção clara
entre o que é uma microbiota eubiótica/normobiótica ou disbiótica, seja na sua
composição e/ou metabolismo, em diferentes indivíduos e condições clínicas.32
Por isso, há uma grande preocupação entre pesquisadores que estudam o micro-
bioma humano sobre o conceito inadequado ou impreciso do termo “disbiose”,
33,34
e como esse conceito pode ser clinicamente traduzido em diagnóstico e tra-
tamento de doenças.
4/5
A dificuldade em distinguir meras flutuações temporais de verdadeiras rupturas
ecológicas (disbiose) na estrutura do microbioma humano, em resposta a pertur-
bações, se deve em grande parte às características próprias dessas comunidades
microbianas. Dentre estas, podemos citar: diversidade (riqueza), variabilidade
composicional entre indivíduos, resistência, plasticidade, resiliência, interações
em network e sítio-especificidade. Essas particularidades conferem ao micro-
bioma redundância funcional e estabilidade temporal.38 Assim, na maior parte
do tempo, a microbiota consegue absorver os impactos ocasionados por distúr-
bios que nos acometem ao longo da vida, sem grandes alterações funcionais e/
ou estruturais. Neste caso, essas alterações podem ser vistas como flutuações
temporais e não como disbiose. Por exemplo, a administração de um antibiótico
sistêmico de amplo espectro para tratamento de uma infecção, em um determi-
nado sítio anatômico, pode afetar membros de outras microbiotas do organis-
mo.39 Essas microbiotas podem, então, sofrer alterações na sua composição, sem
necessariamente sofrer mudanças funcionais. Ou podem simplesmente retornar
à sua estrutura original, uma vez removida a perturbação (antibiótico). Essa me-
mória e elasticidade da microbiota de restabelecer a sua composição original
é fundamental para a manutenção da homeostasia. Em outras circunstâncias,
entretanto, perturbações de longa duração e/ou de alto impacto podem resultar
na incapacidade da microbiota de restaurar a sua estrutura original.40 Isso geral-
mente ocorre quando membros-chave que compõem o núcleo central daquela
comunidade microbiana são extintos, levando potencialmente a uma catástrofe
ecológica, com perda da função do microbioma naquele determinado habitat, ou
seja, a disbiose (Fig. 1.1.2).
São inúmeros os fatores responsáveis pela ruptura da homeostasia de uma mi-
crobiota, bem como desta com seu hospedeiro e o meio ambiente no qual estão
inseridos. Além do antibiótico já mencionado, podemos ainda citar a dieta, o
tabagismo, diversos tipos de medicamentos, o estresse, alterações imunológicas,
alterações hormonais, inflamação crônica, supercrescimento microbiano, entre
Figura 1.1.2 Características da comunidade microbiana que contribuem para a manutenção da ho-
meostasia do microbioma humano. Em geral, cada microbiota é composta por uma comunidade cen-
tral, composta por número limitado de microrganismos comumente detectados na maior parte dos
indivíduos. Esses microrganismos são espécies-chave no metabolismo da comunidade microbiana em
um determinado sítio anatômico. A maioria das outras espécies forma uma microbiota transitória ou
complementar, bastante variável em composição entre indivíduos, porém com funções similares. Essa
variabilidade e diversidade promovem estabilidade temporal, sítio-especificidade e redundância funcio-
nal, essenciais na eubiose microbiana.
Figura 1.1.3 Perfis microbianos orofecais na periodontite. Amostras de biofilme subgengival e fezes de
42 indivíduos sistemicamente saudáveis com periodontite foram analisadas pelos métodos de checker-
board e sequenciamento do gene 16S rRNA, respectivamente. A análise de agrupamentos hierárquicos
foi realizada com 210 espécies ou filotipos microbianos orais e fecais (com abundância relativa > 0,01%)
para determinar clusters orofecais relacionados à doença. Mesmo em uma amostra pequena de pacien-
tes, houve grande heterogeneidade microbiana com a formação de cinco grupos distintos. Caracterís-
ticas da amostra: 49,5 ± 10 anos de idade; 55% mulheres; % de sítios com profundidade de sondagem
≥5 mm = 17 ± 7%, nível clínico de inserção ≥ 4 mm = 35 ± 11%; e sangramento à sondagem = 49 ± 18%.
Medicina Periodontal
O termo “Medicina Periodontal” foi descrito pela primeira vez em 1996, com a pu-
blicação do artigo “Periodontal diseases: pathogenesis”.57 Já desde essa época, ao
estudar a patogenia da periodontite, era necessário, para compreensão em sua to-
talidade, englobar o estudo de outras doenças. Offenbacher reuniu nessa publi-
cação as principais evidências, que a ciência em Periodontia acumulara durante
décadas, sobre a relação entre a periodontite e outras doenças em todo o corpo.
Entendendo que eram relevantes, propôs a Medicina Periodontal como uma subá-
rea da Periodontia, que estudaria essas relações.
Dessa data até os dias atuais, houve uma importante evolução da ciência em Medicina
Periodontal, a respeito da compreensão dos mecanismos biológicos e das evidências
epidemiológicas de como a periodontite se relaciona com outras condições em todos
os sistemas do corpo humano, como sistemas cardiovascular, respiratório, uriná-
rio, reprodutor, digestivo, esquelético, nervoso e endócrino.9,13,18,21,58,59 Em paralelo,
a compreensão de como a periodontite evolui, do ponto de vista de sua etiopatoge-
nia, também avançou de maneira substancial,8,18,60 de modo que hoje é praticamente
impossível compreender as bases da Periodontia de maneira isolada da Medicina
Periodontal.
Essa evolução no entendimento da etiologia da periodontite e de como se relacio-
na com outras doenças possibilitou o estabelecimento do conceito da periodontite
como doença crônica não transmissível,13 mais recentemente, condição crônica não
transmissível.61
A periodontite passou então a fazer parte do rol de condições crônicas não transmis-
síveis, assim como doenças cardiovasculares, diabetes, doença renal crônica, doença
pulmonar obstrutiva crônica, câncer, doenças reumáticas, doenças inflamatórias in-
testinais, entre outras, que são condições em que a inflamação, a disbiose e as altera-
ções imunológicas geralmente estão presentes.14 Condições crônicas não transmissí-
veis são a principal causa de mortes em todo o mundo.15 Compreender a participação
da periodontite nesse grupo de condições, portanto, eleva a Periodontia a um novo
grau de importância17 e direciona a prática clínica em Periodontia para um cuidado
multiprofissional,62 sem o qual será cada vez menos improvável alcançar sucesso no
gerenciamento dessa condição crônica inflamatória multifatorial.
Condições crônicas não transmissíveis, ainda, são condições que compartilham fato-
res de risco comuns, como alterações disbióticas, fatores derivados do estilo de vida
(tabagismo, dieta, sedentarismo, consumo de bebida alcoólica), fatores imunológi-
cos, genéticos e epigenéticos, presença de outras condições crônicas não transmis-
síveis (comorbidades).10-14
8/9
Nessa lógica do compartilhamento de fatores de risco comuns é que se entende hoje
a periodontite como fator de risco para condições endócrinas como a hiperglicemia,
em pacientes com diabetes tipo 2, assim como o contrário.58,63-65 Pacientes com diabe-
tes fora da meta terapêutica glicêmica estarão em maior risco para o desenvolvimen-
to ou agravamento da periodontite.58,63-65
Essa compreensão fez com que recentemente a American Diabetes Association te-
nha considerado a periodontite como uma das comorbidades do diabetes, e, portan-
to, recomenda-se a realização de exame periodontal completo para investigação de
periodontite na avaliação integral em saúde a que toda pessoa, imediatamente após
seu diagnóstico de diabetes, precisa ser submetida.66 Da mesma forma, a Federação
Europeia de Periodontologia no consenso com a Federação Internacional de
Diabetes,58 e a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, nas Diretrizes
com a Sociedade Brasileira de Periodontologia,63 recomendam que todo paciente
com diabetes seja rastreado para periodontite, assim como todo paciente com perio-
dontite seja rastreado para diabetes.
Ainda no entendimento da relação entre a periodontite e as doenças cardiovascu-
lares ateroscleróticas, por exemplo, uma das recomendações do consenso entre a
Federação Mundial do Coração e a Federação Europeia de Periodontologia é que
o encaminhamento para um exame periodontal deve ocorrer para todas as pessoas
com doenças cardiovasculares recém-diagnosticadas, como parte do tratamento
contínuo dessas doenças.13
A relação entre periodontite e outras condições, estudada pela Medicina Periodontal,
é parte do quebra-cabeça para o entendimento atual da etiologia da periodontite
como sendo multicausal (ver Fig. 1.1.1). Na prática clínica odontológica e periodon-
tal, cada paciente precisará ser avaliado de maneira personalizada, individualizada,
para que o profissional diagnostique a magnitude da influência de cada um dos fa-
tores contribuintes para a condição crônica não transmissível periodontite, e assim
possa direcionar a melhor conduta para cada caso.
Controle Imunológico
O sistema imune é formado por um conjunto de células, tecidos e moléculas que
medeiam reações de defesa aos patógenos e outras substâncias nocivas.67 A função
fisiológica mais importante do sistema imune é prevenir ou erradicar infecções.
Para isso, nosso corpo conta com células da chamada defesa inata, fagócitos, como
neutrófilos e macrófagos, prontas para reconhecer invasores e orquestrar uma res-
posta imediata. Os dois tipos principais de reações do sistema imune inato são
inflamação e defesa antiviral.68
A inflamação consiste no acúmulo e na ativação de leucócitos e proteínas plas-
máticas em sítios de infecção ou de lesão tecidual. Essas células, principalmente
neutrófilos, e proteínas, como citocinas, atuam em conjunto para destruir micror-
ganismos e eliminar tecidos danificados. Em contraste com esses papéis benéficos,
as respostas imunes anormais causam muitas doenças inflamatórias associadas a
grave morbidade e mortalidade.68
De fato, a inflamação excessiva é agora reconhecida como um componente central
das condições mais prevalentes em todo o mundo, incluindo periodontite, diabe-
tes, doenças cardiovasculares e doenças reumáticas.69
Nos tecidos periodontais, o biofilme apresenta um desafio constante ao sistema
imunológico inato do hospedeiro. Em locais clinicamente saudáveis, esse desafio
pode ser benéfico, resultando em resistência à colonização por periodontopató-
genos. Em contraste, em locais doentes, o desafio microbiano resulta na altera-
ção dos mecanismos normais de defesa no periodonto,70 visto que a periodontite
é uma condição inflamatória crônica que apresenta desregulação imune – função
imune aberrante – em sua base. Essa resposta aberrante do hospedeiro leva a um
desequilíbrio com o biofilme dentário, resultando na destruição dos tecidos pe-
riodontais causada pela inflamação.18 Além disso, essa resposta imune aberrante
pode resultar em mecanismos de quebra da tolerância (incapacidade de reagir a
moléculas reconhecidas como próprias). Quando a autotolerância é interrompida,
surge a autoimunidade.
Assim, a periodontite tem sido estudada como possível fator de risco para o desenvolvimento de au-
toimunidade (ver Fig. 1.1.1). Essa associação pode ser pelos microrganismos presentes na periodontite
ou pela lesão tecidual causada pela inflamação.71 Os microrganismos podem levar ao mimetismo mole-
cular, porque os antígenos do microrganismo reagem cruzadamente, ou mimetizam, os autoantígenos.71
Por outro lado, as alterações anatômicas nos tecidos periodontais, como a quebra do tecido conjuntivo
causada pela inflamação, podem levar à exposição de autoantígenos que normalmente são ocultos ao
sistema imunológico.71
Uma das doenças autoimunes mais prevalentes no mundo é a artrite reumatoide, uma desordem sistê-
mica caracterizada por inflamação crônica e dano aos tecidos articulares, com vias patológicas muito
semelhantes às da periodontite.72 A citrulinização de proteínas, uma modificação pós-traducional, pode
ser a chave para o entendimento dessas vias.73 Em tecidos estressados por feridas ou infecções, a ati-
vidade da enzima peptil arginina desaminase (PAD) é induzida. Ao converter resíduos de arginina em
citrulina (citrulinização) a PAD desestabiliza as proteínas, tornando-as imunogênicas e mais suscetíveis
à degradação.73,74 Nesse sentido, a bactéria Porphyromonas gingivalis, que expressa PAD, é capaz de
citrulinar proteínas e pode estar envolvida na etiologia da artrite.75 Além da P. gingivalis, outra bactéria
periodontal, Aggregatibacter actinomycetemcomitans, demonstra a capacidade de desencadear a pro-
dução de anticorpos antiproteína citrulinada (ACPAs), uma característica clássica detectada na artrite
reumatoide.76
Esses achados corroboram a observação clínica de que pacientes com artrite apresentam maior pre-
valência e gravidade das doenças periodontais,76-80 com associação positiva entre piores índices perio-
dontais e índices de atividade da artrite.76,80 De forma consistente, o tratamento da periodontite resulta
em melhora nos índices da artrite reumatoide.81-83 Diante desses achados, diversas outras doenças au-
toimunes têm sido investigadas por sua associação com a periodontite, dentre elas o lúpus eritematoso
sistêmico84,85 e a psoríase.86,87
Os estudos sugerem uma via de mão dupla, onde a inflamação sistêmica causada pelas doenças au-
toimunes é capaz de induzir a disbiose da microbiota subgengival e progressão para periodontite. A
periodontite então afetaria a resposta imune sistêmica, levando a maior atividade das doenças. Esses
achados reforçam a necessidade de acompanhamento odontológico periodontal de todos os pacientes
diagnosticados com doenças reumáticas, para prevenção de periodontite e melhor controle e resposta
ao tratamento da doença reumática.
Considerações Finais
As diversas condições que acometem o indivíduo, desde a concepção até a vida
adulta e o envelhecimento, são delineadas por mudanças epigenéticas sobre o pa-
trimônio genético adquirido. A atuação do meio ambiente e do estilo de vida serão
preponderantes em relação ao potencial resolutivo imunológico, aos microbiomas,
e, consequentemente, às condições crônicas não transmissíveis de um modo geral.
Assim, ao se entender a periodontite à luz dos conhecimentos atuais, como uma
condição crônica, não linear, multifatorial, inflamatória, e associada à disbiose, fica
patente a necessidade de se entender essa condição como uma condição sistêmica
e não somente local. Além disso, pelo seu caráter preditor de risco para outras con-
dições crônicas não transmissíveis, a detecção precoce pode servir de alerta para
se estabelecer prevenções e cuidados efetivos. Assim, uma atuação multiprofis-
sional com a intenção de instituir uma saúde global e um estilo de vida condizente
com saúde, é necessária para o paciente com periodontite.
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