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Merecendo o melhor: desafiando regras na terapia

Por Sally Tomkins

Publicado primeiramente na Gecko: Uma Revista de idéias desconstrutivas e narrativas na prática


terapêutica 1998 vol. 3

Cris e eu nos encontramos primeiramente há um ano atrás quando ela


veio para o programa de grupo de narrativa no Centro Langton onde eu
trabalho (o Centro Langtton é um centro para pessoas com problemas com
álcool e/ou drogas). Ao escrever este artigo estou procurando contar um
pouco da história da jornada que Chris e eu empreendemos em nosso
trabalho conjunto. É também a história das idéias e crenças que foram
colocadas de lado de modo que esse trabalho acontecesse e as idéias e
crenças que fizeram o nosso trabalhar junto possível.

Recentemente, enquanto eu andava pela praia numa tarde de


domingo, percebi meus pensamentos se voltando para as memórias das
conversações que Chris e eu partilhamos durante algum tempo. Eu estava
consciente do quão positivo esse tipo de pensamentos era para mim e como
eram discrepantes de algum dos treinamentos que recebi ao longo dos anos
– treinamento que diz: “não traga trabalho para casa com você”, “bons
conselheiros saem do trabalho às 5hs e desligam totalmente do
trabalho”,“mantenha o trabalho totalmente separado de sua vida pessoal”.
Este artigo , de algumas maneiras, é escrito como um protesto a estas
idéias,pois eu acho que essas noções simplesmente não se encaixam para
mim e para meu trabalho.

Desconstruindo a história dominante

Depois de Chris ter participado algumas vezes do programa de grupo,


ela começou a me encontrar individualmente. Como Chris havia passado
tempo entrando e saindo da prisão – com sentenças relacionadas ao seu uso
de drogas – começamos a desconstruir algumas das compreensões para as
quais o sistema de justiça social havia recrutado Chris a pensar sobre si
mesma.

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Uma parte de grande auxílio nesse processo ocorreu quando eu
participei de um pequeno workshop com David Epston no início de 1998.
Neste workshop David me entrevistou fazendo o papel da Chris, e os outros
membros do grupo formaram uma equipe reflexiva. Eu levei as perguntas da
equipe reflexiva de volta para Chris (que havia me dado permissão para falar
de nosso trabalho), que então escreveu as respostas que mandamos de
volta para os participantes do workshop. Chris também ouviu a fita da
entrevista e recebeu também uma transcrição da mesma. As respostas de
Chris à equipe reflexiva aumentaram minha compreensão sobre o que ela
havia precisado colocar de lado para podermos trabalhar juntas.

Uma das perguntas da equipe reflexiva que veio para Chris foi:

O sistema de justiça criminal opera, do meu ponto de vista, com base


na idéia de que aquelas pessoas que são sujeitas a ele merecem o pior. Como é
então que o seu grupo em Langton chegou a uma conclusão tão diferente – que
você merece o melhor? Quem você acha que sabe melhor, o grupo de Langton no
qual você foi capaz de confiar ou aqueles do sistema de justiça criminal?

Chris respondeu o seguinte:

É verdade que uma vez na prisão, você é rotulado MAU, sem


exceção. Os poderes que dirigem o sistema prisional constantemente te lembram
de que somos criminosos embrutecidos, que nunca vamos ser nada, que nunca
vamos ter uma chance sequer, que a sociedade nos rejeita. Toda a minha vida eu
fui rotulada – não presta, nasceu ruim, vida baixa, drogada, criminosa, etc.. Vem um
momento na vida de todos nós, quando você se enche de ser chamado de nomes,
de rótulos, você se enche de ser puxado para todos os lados, ouvindo que você não
é bom. Tudo o que o sistema prisional quer saber é que você é mau, eles não tem
fé em você, eles não acreditam que um leopardo possa mudar suas manchas, sem
chances de reabilitação. Se você quer que as coisas mudem,você tem que levantar
a bunda da cadeira e fazer por você mesmo. Eu acordei uma manhã e decidi que
estava, cheia e cansada, e que eu não aguentava mais, eu estava acabada... Se eu
quisesse fazer qualquer coisa nessa vida, eu tinha que fazer a mudança.

Assim, quem me conhece melhor, se é o sistema judiciário ou


aqueles em quem eu escolhi confiar em Langton? Sem dúvida alguma seriam as
pessoas de Langton, por que eles não me julgam, eles viram quem eu realmente
sou – não a máscrara que eu utilizo às vezes. Eles vêem um nome, não um

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número. Eles me viram rir e eles me viram chorar – o sistema prisional não se
importa em ver nada disso, eles vêm isso como fraqueza. Assim, sim, as pessoas
que me conhecem realmente melhor são as pessoas em Langton.

Práticas de re-associação

Chris e eu continuamos a nos encontrar e mais tarde naquele


mesmo ano, Chris se encontrou com a equipe de terapia e com Gaye
Stockell, meu supervisor externo, para uma sessão com equipe reflexiva.

Nesta sessão Chris falou sobre alguns poemas que sua mãe
havia escrito para ela muitos anos atrás. Chris falou de como ela os
apreciava como um tesouro, e quão presente sua mãe ainda estava em sua
vida, através destes poemas. Chris falou de sua mãe como sendo uma “luz
que guiava”. A memória da mãe de Chris, e o pensar sobre palavras de
encorajamento e apoio que ela teria dito a Chris em várias situações, foram
parte de nossas conversações em várias ocasiões. Ter a presença da mãe
de Chris evocada de tal modo em nossas conversações ficou como um forte
contraste às idéias tradicionais dolorosas e as idéias de todo dia como: “você
precisa deixar isso ir embora”, e “deixe tudo para trás e vá em frente”.

Desintoxicando idéias tóxicas

Lá pela metade do último ano, Chris decidiu se desintoxicar da


metadona. Ela primeiramente fez uma desintoxicação não medicamentosa e
então, ao as crises de abstinência que ela estava experimentando da
metadona ficarem piores, ela começou um programa de desintoxicação
medicamentoso. Chris e eu continuamos a manter contato durante essa
primeira fase de desintoxicação pelo telefone e por visitas pessoais que eu
fazia a Chris em cada centro.

No processo de decidir se visitava Chris ou não, várias poderosas


idéias sobre como trabalhar nessa área me convidavam a ficar longe. Idéias
como “ela não é mais sua “cliente” se ela está sendo atendida em outro
serviço”, “não se envolva muito”, “e como ficam os limites?”, todas me
encorajavam a manter distância.

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A que práticas essas idéias nos levam, e como as pessoas que se
encontram conosco experimentam essas práticas? O que elas dizem sobre
as pessoas com as quais nos encontramos e falamos a respeito de modo tão
objetivo? Quais convites para trabalhar de jeitos que não ajudam precisam
ser deixados de lado para se trabalhar de um jeito verdadeiramente
respeitoso com as pessoas com as quais nos encontramos?

Aprisionamento

Eu visitei Chris uma vez em cada desintoxicação e nossas


conversações continuaram. Umas duas semanas mais tarde, entretanto,
nossa jornada deu uma nova volta. Eu recebi uma carta de Chris contando
que a heroína a havia agarrado novamente, e que ela agora estava na prisão.
Chris perguntava se nós poderíamos continuar nossas conversações juntas
por carta, e assim começaram os nossos “encontros pelo correio”. Mais uma
vez, perguntas dos modos dominantes vieram me assombrar.

Deveria você ficar trocando cartas apesar delas serem a continuação


do trabalho que vocês vêm fazendo juntas?

Eu também tinha perguntas minhas que precisavam ser pensadas e


levadas em cuidadosa consideração.

Que efeito haverá saber que as minhas cartas para Chris e


possivelmente as cartas de Chris para mim serão abertas pelos agentes da prisão?
Será que isso irá me silenciar em relação a nomear e escrever sobre as práticas
abusivas e opressivas dentro do sistema prisional? Como posso resistir a esse
empurrão para permanecer em silêncio ao invés de me postar contra essas
posições? Como poderia eu tomar uma posição firme sem tornar a vida de Chris
mais difícil? Quão grande seria o efeito dessas e outras práticas silenciadoras em
Chris quando elas são tão reais para mim e eu não estou encarcerada dentro do
sistema prisional? Que perguntas de responsabilidade deveria eu me perguntar?
Seriam elas realmente diferentes das perguntas de responsabilidade que eu me
pergunto quando eu trabalho com pessoas fora da prisão?

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Depois de termos trocado várias cartas, eu me encontrei com Chris na
prisão. Ao eu me aproximar da entrada da prisão eu senti o opressivo poder
silenciador do lugar a me pesar fortemente. Isso continuou ao eles
verificarem minha carteira de identidade e fazerem o processo de revista
antes de eu me encontrar com Chris. Eu estava muito grata por Chris ter
descrito em suas cartas como era o processo de revista e os procedimentos
de visita, assim eu sabia o que esperar. Entretanto eu estava surpresa com a
enormidade do poder silenciador que eu sentia. Afinal de contas, eu estava
ali só de visita.

Eu fiquei aliviada ao ver que pela minha visita ser classificada como
“visita profissional”, Chris foi poupada da indignidade de ser forçada a usar
um macacão branco fechado com um zipper atrás até o pescoço e que era
ajustado por um cadeado. As mulheres na prisão eram obrigadas a usar
esses macacões durante visitas não profissionais, ostensivamente para inibir
o contrabando dos visitantes que já haviam sido muito bem revistados. Eu
estava chocada pela visão desses macacões em outras mulheres apesar de
Chris ter me falado que ela provavelmente usaria um deles durante nossa
visita.

Neste encontro com Chris, os poderes silenciadores pareciam ter sido


retirados. Era quase como se o jeito de ser de Chris e o modo de trabalhar
que havíamos desenvolvido juntas fosse capaz de roubar da prisão um
bocado de seu poder opressor. Chris e eu conversamos bastante nessa
primeira visita e eu tinha muitas perguntas ao ir embora:

Quantas práticas degradantes/opressivas/destruidoras haveriam em


um lugar como esse? Como as coisas poderiam ser diferentes? Como as pessoas
mantinham um senso de self em um sistema no qual as demandas de conformidade
e submissão eram tantas maneiras e freqüentemente ativadas com palavras contra
o desenvolvimento de relacionamentos de apoio entre os indivíduos? Como
poderíamos Chris e eu achar modos de criar o espaço para continuar nosso trabalho
em face de tal oposição? Como tínhamos criado esse espaço até agora? Como
essa experiência afetaria o modo que eu via e valorizava meu próprio estilo de vida
e liberdade que eu tão freqüentemente encaro como certo?

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A equipe reflexiva

Na época da segunda metade de 1997 um evento muito estimulante


aconteceu. Chris se encontrou com a equipe para uma segunda equipe
reflexiva, desta vez na prisão. Eu me lembro de ter me sentido muito ousada
naquele momento – ousada por que dentro de um sistema de tal opressão
Chris e a equipe poderiam criar espaço para conversações apoiadoras,
espaço para os planos e sonhos de Chris; ousada por que nós havíamos sido
capazes de levar um gravador conosco de modo a que a conversação fosse
documentada; ousada de um modo muito fabuloso!

Mais uma vez, eu experimentei o poder silenciadador da prisão na


chegada, mas achei-o menos poderoso do que eu o havia experimentado
antes. Eu suspeito que isso tenha acontecido devido a algumas coisas: o
apoio e presença da equipe, a excitação da antecipação, e saber pelas
cartas, o quanto Chris estava antecipando esse momento.

Durante nosso encontro, Chris também falou da importância da equipe


para ela:

Eu sinto que eu tenho algo que ninguém mais tem quando eu penso
sobre as minhas ligações com Langton, eu realmente tenho. Eu tenho pessoas lá
que me conhecem, que querem me ajudar e que nunca vão se virar contra mim,
virar suas costas para mim. E o que eu coloquei lá, é o que eu vou tirar de lá, e é só
sabendo que eu tenho isso é uma grande, tão grande vantagem para mim... Eu não
trocaria isso por nada.

Dentro dessa reunião nós (os membros da equipe terapêutica), fomos


capazes de falar sobre o processo de mão dupla do nosso trabalho, e
reconhecer a contribuição que Chris tinha dado às nossas vidas e práticas de
trabalho. Nós reconhecemos que nós agora tínhamos perguntas diferentes a
fazer para as pessoas com quem nos encontrávamos, que não seríamos
capazes de fazer se não tivéssemos nos encontrado com Chris. Nós também
reconhecemos os modos nos quais nós poderíamos levar conosco, para as
nossas vidas, alguns dos conhecimentos, idéias e esperanças que Chris

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tinha partilhado conosco. Essa prática de reconhecimento, pela minha
experiência, parece estar fora das práticas clínicas mais utilizadas.

Esse encontro conjunto pareceu produzir uma grande excitação entre


nós todos. Em uma carta que Chris escreveu para mim depois deste
encontro, ela escreveu da grande animação que ela havia sentido e de como
ela havia passado um grande tempo pensando sobre o que havíamos
conversado. Isso também era verdadeiro para a equipe. Ficamos
energizados pelos nossos momentos juntos e passamos um tempo
considerável depois do encontro pensando e conversando sobre essa
reunião da qual havíamos todos compartilhado.

Sobre a libertação/soltura

As cartas entre Chris e eu continuaram, ao contarmos as semanas até


a soltura de Chris. Chris não entrou em contato comigo por um número de
semanas após sua soltura, apesar de termos feito planos de nos
encontrarmos. Chris cruzou com outro membro da equipe e mandou o
recado de que ela estava bem apesar das dificuldades que estava vivendo.

Primeiramente, eu imaginei se de algum modo o trabalho que


havíamos realizado dificultava de alguma maneira Chris a entar em contato
comigo. Nossas conversações haviam focado nas coisas positivas que Chris
havia feito, o orgulho que ela tinha em suas conquistas. Eu imaginava se
isso de alguma forma estaria dificultando o contato de Chris comigo neste
período de dificuldades. Nosso trabalho conjunto havia sido um lugar para a
história preferente de Chris. O que poderia eu/nós termos feito para criar
mais espaço para essa história preferida quando Chris enfrenta situações
difíceis? Esse tipo de pergunta com freqüência me apareciam quando as
pessoas com as quais eu estava me encontrando não apareciam para as
sessões marcadas.

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Continuando as conversações

Bem, aconteceu que Chris veio ao Centro para me ver, em meio a


muitas dificuldades, e nossas conversações têm continuado. Nós
exploramos como Chris negocia com sistemas difíceis e o que a sustenta em
meio a isso tudo.

Estas conversações continuam a impactar minha vida e trabalho de


modo positivo. Pensar na Chris me ajuda a manter a esperança viva, a ser
constantemente inspirada pelo espírito humano e a acreditar na habilidade
das pessoas em mudar em tempos de desafio.

Agradecimentos

Eu tenho a sorte de trabalhar com colegas que são comprometidos a


continuamente questionar suas práticas de trabalho.

Meu líder de equipe, Gary Thornell; supervisor externo, Gaye Stockell;


e colegas, Anne Sloss e Alisson Daniel; que continuamente me apoiaram,
encorajaram e inspiraram. A equipe com quem eu trabalho dá muito apoio a
mim e meu trabalho. Chris também conheceu outros membros da equipe.
Ao encontrar com Chris e escrever para ela, era quase como se toda equipe
estivesse lá comigo – com certeza o apoio deles estava. Eles também
estavam sempre desejosos de tomar parte nas conversações sobre todo tipo
de perguntas que eu escrevi sobre este artigo.

Escrever sobre as coisas que tornaram esse trabalho possível não


teria sido possível sem prestar uma homenagem ao meu avô. Meu avô, a
quem eu chamava de Papa, muito contribuiu para as crenças e idéias que
são tão importantes em meu trabalho. Quando eu me encontro com as
pessoas no trabalho, a voz e o jeito de ser do meu avô estão comigo. Eles
são constantes lembranças do modo de ser pelo qual eu luto para ser. Eu
tenho muitas ótimas lembranças do tempo em que passei com ele, mas foi
apenas ao ter as conversações de re-associação (White, 1997) com outros e

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comigo mesma que fui capaz de reconhecer a enorme contribuição que esse
homem tão especial fez à minha vida e ao modo como eu trabalho.

Eu me lembro de me sentir muito confortável na presença de Papa, de


experienciar um sentimento de contentamento e segurança que vem do se
sentir realmente respeitada e cuidada, e do seu modo maravilhoso de estar
com as pessoas. Eu me lembro de sentir como se eu fosse uma pessoa
muito especial quando eu passava tempo com Papa. Eu me lembro do modo
como ele sempre assinava seus cartões ou cartas para mim com um “com
amor a minha pianista/violonista favorita” e o modo como ele sempre incluía
nosso cão muito amado, Danny; e mais tarde Mindy, com um “e com amor ao
meu cão favorito”. Eu me lembro de quando criança nunca ter sido posta de
lado por ele, mas ao invés disso de ser ouvida com atenção. Sem dúvida
alguma todos os que tiveram a grande chance de estar algum tempo com
este suave homem sentiu o mesmo.

Eu me lembro do modo como Papa tinha tempo para todos e eu me


lembro como ele tratava a todos com quem encontrava com genuinidade,
sinceridade e respeito. Minhas memórias de Papa me permitem manter sua
voz viva em minha vida e fazer sua presença forte em meus pensamentos de
um modo que eu só posso descrever como mágico.

Tradução Claudia Bruscagin

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