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ANO III N 5 2013, DOSSIÊ

ENTREVISTA COM CAETANO VELOSO


http://www.cinecachoeira.com.br/2013/05/entrevista-com-caetano-veloso/

Por estar em turnê promocional de seu novo CD, Abraçaço, fazer Caetano Veloso parar alguns minutos
para responder a um questionário sobre sua relação com o cinema foi uma verdadeira façanha tanto
para nós, a equipe editorial da revista, quanto para este que é um dos grandes nomes de nossa cultura.
Imagino Caetano sentado num quarto de hotel ou mesmo em uma cadeira ao lado dos músicos afinando
seus instrumentos, debruçando-se sobre nosso e-mail e pacientemente dando vida a nossas perguntas.

Com o grande Guilherme Maia, parceiro nesta empreitada musical e um dos responsáveis pela
entrevista, e o empenho da assessoria do músico, especialmente de Radha Barcelos, a Cinecachoeira
apresenta uma entrevista inédita com o homenageado desta edição: Caetano Veloso.
Guilherme Sarmiento

Entrevista por Guilherme Maia e Guilherme Sarmiento

Cinecachoeira –Qual a importância da narrativa em sua obra? Você, quando cria, deseja contar uma
história?
Caetano Veloso – Quase nunca desejo contar uma história. Mas o cinema foi e é modelo consciente ou
inconsciente de minhas canções. Alegria, alegria é toda feita de montagem. Na verdade, as canções
tropicalistas têm muito de montagem de cinema. Enquanto seu lobo não
vem, Superbacana, Tropicália, todas as canções dessa época têm a ver com cinema, sobretudo o
cinema de Godard. Mas não só as minhas: Domingo no parque, de Gil, é muito cinematográfica.

Cinecachoeira – Inúmeras vezes você manifestou sua admiração por Glauber Rocha, mas
consideramos sua aproximação com o Cinema Novo, tímida. Sentimos que o modo como pensa o
cinema aproxima-o mais dos cineastas conhecidos como Udigrudis ou Marginais, especialmente
Sganzerla e Bressane. Gostaríamos que falasse um pouco sobre isto.

Caetano Veloso – Como já disse, era Godard. Sganzerla e Bressane, que desenvolveram seus estilos ao
mesmo tempo que os tropicalistas da música, também tinham Godard como mestre. Mas não é verdade
que minha aproximação com o Cinema Novo seja tímida. Sou o autor da letra de Cinema novo, samba
em parceria com Gil, que levou Fernando Trueba a dizer que qualquer cinematografia do mundo
deveria invejar a brasileira. Há Glauber em Tropicália. E o Araçá azul nasceu da trilha de São
Bernardo.

Cinecachoeira – O João Máximo diz que o cinema brasileiro é excessivamente cancionista e que
muitas vezes essa escolha se deve muito mais a questões de natureza comercial do que dramatúrgica…

Caetano Veloso – É um procedimento do cinema moderno no mundo todo. Hollywood usou canções
especiais para filmes (Laura, As time goes by, Johnny guitar…), mas o uso insistente de muitas
canções num só filme é coisa que começa nos anos 1970 e só tem feito crescer. O cinema brasileiro,
sendo o Brasil um país em que a canção popular é tão forte, não poderia ser exceção. Às vezes canções
ajudam a vender o filme. Mas isso só se dá mesmo se a canção der força às cenas a que estão coladas.

Cinecachoeira – Você já trabalhou com grandes nomes do cinema nacional, como Leon Hirszman,
Cacá Diegues, Neville de Almeida, Jorge Furtado, Júlio Bressane. Como vê essa relação diretor-
compositor no contexto da sua prática de compor para filmes?

Caetano Veloso – O mais interessante foi a trilha de São Bernardo, que fizemos de modo precário,
mas que resultou muito inspiradora. Como experiência de detalhar a trilha de um filme, minha
colaboração com Cacá Diegues foi a mais rica. Tieta do agreste, um filme que adoro, me levou a criar
várias canções que, retrabalhadas, serviam de tema para cenas dramáticas. E Orfeu, filme de que gosto
bastante menos, foi minha mais completa experiência como trilheiro de verdade. Mesmo assim,
imaginei uma música quase de cartoon (ou de partitura russa a que Eisenstein às vezes submetia
sua mise en scène e sua montagem, como em Alexandre Nevsky) para as “bacantes” que matam Orfeu
que traz Eurídice nos braços no final do filme, mas Cacá desaprovou totalmente a experiência. Nesse
filme, gosto das cenas de polícia invadindo o morro (está ali toda a gênese dos favela movies que
vieram depois – sendo homenagem ao documentário de João Moreira Salles, que veio antes) e do
carnaval na avenida, mas não gosto da encenação do romance do casal central. Fiz temas bons para
essas cenas, há algo que funciona e comove, mas não dá para fazer o drama do casal crescer. De todo
modo, foi a trilha que mais compus. Jaques Morelenbaum sendo, pacientemente e com uma humildade
emocionante, apenas aquele que transcreve as ideias de temas, timbres e contrapontos que me vinham à
cabeça.

Cinecachoeira –Como foi o processo de concepção, criação e execução da música do filme São
Bernardo?

Caetano Veloso – Como já disse, foi o mais interessante. Embora a concepção geral da música do
filme tenha estado muito mais sob minha responsabilidade em Orfeu, de Cacá, do que em São
Bernardo. Foi assim: eu tinha chegado de Londres e Leon me disse que queria que eu fizesse a música
para sua adaptação do romance de Graciliano Ramos. A primeira coisa que eu disse foi: ele não
gostava de música – e Nelson Pereira dos Santos resolveu isso perfeitamente em Vidas secas, usando
apenas o ranger das rodas de carro de boi como trilha. Leon respondeu que eu poderia fazer algo como
os grunhidos que eu tinha feito na gravação londrina de Asa branca. E me mostrou algumas cenas. O
filme ainda não estava todo montado. Ele tinha um mini estúdio de 4 canais e eu ia improvisando sobre
as cenas que eram projetadas. Fazia um take com uma voz e depois somava mais uma, duas ou três.
Sempre revendo as imagens. Ficou bonito.
Cinecachoeira – Por algumas declarações suas à imprensa, percebe-se seu interesse pela produção
brasileira contemporânea. Que filmes recentes brasileiros assistiu e de que forma eles te mobilizaram
como espectador?

Caetano Veloso – Vejo menos filmes do que desejo. Gosto de Filme de amor e de O casamento de
Romeu e Julieta. Acho Cidade de Deus cheio de figuras muito vivas, interpretações brilhantes e grande
virtuosismo na direção. Tenho carinho especial por Bendito fruto. Idolatro Houve uma vez dois
verões e Saneamento básico. Receberia as piores notícias dos seus lindos lábios me arrebatou. Sempre
serei fã de Superoutro. Gosto de Reis e ratos. O filme recente que mais me impressionou foi O som ao
redor. Mas devo estar deixando de mencionar alguns filmes importantes para mim porque
simplesmente não me vieram à cabeça à medida que eu escrevia aqui.

Cinecachoeira – A MPB há muito tempo superou esta oposição rígida entre arte e indústria: temos
inúmeros artistas, como você, Gilberto Gil, Zeca Baleiro, Maria Gadu, enfim, várias gerações de
compositores para os quais a relação música/mercado não necessariamente produz mediocridade. No
cinema brasileiro parece que esta relação ainda é problemática…

Caetano Veloso – Acho que não penso do mesmo modo. O Cinema Novo era, no começo, quase que
exclusivamente feito de filmes sem apelo popular e com grandes pretensões intelectuais, políticas e
artísticas. Justo o contrário das chanchadas que o precederam. A Vera Cruz não dera os frutos que
prometera. Mas nos anos 1970, Cacá, Jabor e Neville de Almeida, além de Bruno Barreto, produziram
sucessos enormes de bilheteria sem deixar de manter a respeitabilidade do projeto inicial do
movimento. E temos Central do Brasil, Cidade de Deus, Tropa de elite 1 e 2. Mas é verdade que a
canção popular tem uma história mais consistente do que o cinema. Cinema é caro de fazer.

Cinecachoeira – Já faz mais de dez anos que dirigiu O cinema falado. Ainda tem projetos? Desistiu do
cinema?

Caetano Veloso – Talvez. No fundo nunca sinto que desisti. Mas, na prática, na idade em que estou,
parece que é o que aconteceu. Quando vejo Dustin Hoffman dirigir seu primeiro filme aos setenta e tal,
penso que impossível não há. Mas é fato que não tenho muito talento para a música, mas tenho mais
vocação para a vida de músico.

Cinecachoeira – Almodóvar costura as canções como fios narrativos nos filmes dele, e você participa
de uma das cenas mais belas de Fale com ela, cantando Cucurrucucú paloma. O que acha da poética
musical do Almodóvar?

Caetano Veloso – Adoro. Curiosamente tudo aquilo tem a ver com O bandido da luz vermelha. O uso
dos boleros e das canções cantadas estava já desenvolvido no primeiro Sganzerla. É sensacional
também a voz de Maysa sendo dublada por uma garotinha em Ne me quittes pas, cena de A lei do
desejo.

Cinecachoeira – Por fim, gostaríamos que destacasse a música de um ou de alguns filmes que
considera especialmente engenhosa, original, comovente ou, simplesmente, bela.
Caetano Veloso – Nino Rota em todo o Fellini – mas também em Rocco e seus irmãos, O leopardo, O
poderoso chefão.

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