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Yellowfork #2: Marmota é a obra-prima de Getúlio Abelha

No dia 20 de Maio do ano passado, eu escrevi um texto chamado “As Marmotas de


Getúlio Abelha” em que falava um pouco dos singles e da vida do cantor que
atualmente vive aqui em Fortaleza. Contei um pouco sobre minha aventura indo pro
show dele no último carnaval antes do apocalipse, e por fim falei que o álbum Marmota
chegaria em breve. Então, como prometido ele finalmente chegou.
E chegou chegando.
Para não repetir as mesmas informações do primeiro texto que eu escrevi sobre o
Getúlio, recomendo ler ele se você não conhece o trabalho do artista e quer saber um
pouco mais. Lá são as instruções. Esse texto aqui é para os que já são habituados com a
energia caótica do cantor e que querem saber sobre o que ele trouxe em seu álbum de
estreia, então por isso vou me concentrar exclusivamente em fazer um track by track do
álbum e comentar sobre essa que é uma das mais recentes obras-primas alencarinas.
Capa do álbum “Marmota”
1. TAPURU
A faixa inicial é sempre a mais importante porque ela dita o tom do álbum, e
normalmente muitos artistas pecam em colocar uma faixa fraca para abrir seus
trabalhos. Esse não é um problema que Getúlio tem, já que Tapuru é uma das faixas
mais bem produzidas de todo o álbum. Ele já tinha revelado essa canção em algumas
apresentações e até mesmo em suas redes sociais, mas a versão em estúdio supera tudo
pela mistura entre uma ópera de terror e uma lambada bem ritmada. Apesar de não ter
muitas mudanças líricas, a personalidade do Getúlio transborda a cada verso e eles
nunca parecem os mesmos, ainda que contenham a mesma letra.
É uma das minhas faixas favoritas porque ela mostra que esse é um álbum esquisito,
queer, bem produzido, campy e muito mais, já que adjetivos são poucos para o que virá
a seguir.
2. LARICADO
Literalmente minha faixa favorita!
Foi por ela que eu conheci o Getúlio, então eu tenho um carinho especial por Laricado e
num primeiro momento eu torci o ouvido porque pra quem não sabe, essa foi uma
música que ele regravou para o álbum. A versão de 2017 é um pouco mais crua que essa
aqui e é muito legal ver a evolução vocal do Getúlio, já que Laricado não é uma música
fácil de se cantar e ele conseguiu tornar ela ainda melhor com o passar dos anos. A letra
é de uma simplicidade tão encantadora que eu fico apaixonado e o clipe é mais perfeito
ainda, tendo sido gravado no Mercado São Sebastião.
Como Laricado já foi trabalhada há muito tempo, a regravação é mais um presente pros
fãs do Getúlio que o acompanham desde aquela época. E um detalhe interessante é que
o finalzinho da música ganhou novos acordes que intensificam o trecho final, dando a
ela uma produção tão requintada quanto a de outras faixas do álbum. Dito isso, Laricado
é a essência do Getúlio e eu digo que ao vivo ela é ainda melhor.
3. CAVALO CORREDOR
Essa aqui é uma mistura de sensações.
Ao mesmo tempo que Cavalo Corredor é uma homenagem ao baião clássico de Luiz
Gonzaga, ele atualiza o gênero mostrando que ele ainda pode ser muito interessante para
os ouvintes do século 21. Como o próprio Getúlio já disse, Marmota é uma coletânea de
músicas que são inspiradas em canções que ele escutava quando era criança, e tendo
crescido no Piauí não é de espantar que uma de suas inspirações seja o Baião e os
triângulos (instrumento que ganhou uma imensa popularidade graças a ganhadora do
BBB21, Juliette).
Mas sobre a canção em si, Cavalo Corredor é uma típica canção de amor que de normal
não tem nada. Apesar da sua primeira metade ser a homenagem ao baião, a sua segunda
metade tem um trecho falado que remete ao clássico vídeo “Lá vem ela, a viadinha
atrevida, só é pequena, mas é atrevida”. E esse trecho falado é tão bom que eu vou
reproduzir aqui na íntegra pois ele é perfeito e eu amei desde a primeira vez que eu
ouvi.
“Num venha com aquelas correntezinha que a gente usa nas calça pra ficar estilosa
parecendo um skatista não, venha com umas corda que prenda uns 3 navio ali no
Mucuripe, sabe onde é o Mucuripe? ah sabe não… ôôô, pois eu vou te ensinar, viu, vem
cá, vem cá, me dá um abraço. Também não precisa ficar “ai meu deus, eu tô com medo,
ele não me quer”, eu gosto de você, eu te amo, só que ás vezes parece que você quer
ficar grudado demais em mim, assim, meio siamês, mas eu gosto de você, viu? beijo, eu
vou ali, viu? vai!”
Por misturar baião, referências da internet, fazer menção ao Porto de Mucuripe aqui em
Fortaleza e ainda misturar tudo isso com um instrumental maravilhoso, Cavalo Corredor
não só mantém a qualidade já apresentada, como também a eleva mais ainda.
4. VOGUEBIKE
Uma das faixas mais esperadas do álbum, Voguebike foi apresentada pela primeira vez
ao vivo num programa que eu chuto ter sido feito na TV União. De vestido brilhoso e
salto alto, Getúlio cantou a música com muita personalidade e humor, não dando o
mínimo foda-se pro claro incômodo dos homens heterossexuais que ali estavam. Foi
essa mistura de vários detalhes que fez a música hitar no mundinho Twitter, e claro que
a versão em estúdio foi tão icônica quanto o esperado.
Misturando um forró das antigas que lembra bandas como Calcinha Preta, Voguebike
também é outra canção de amor que descreve facilmente cenas que aconteceriam na
cidade de Fortaleza, quando jovens iam de bicicleta para lugares como a Gentilândia e
outros points de encontro.
Getúlio adiciona o vogue a esse cenário e uma guitarrinha deliciosa dá continuidade a
canção, que termina caótica em um instrumental que faz jus a falecida SOPHIE. Com
todos esses elementos é de se duvidar que uma canção consiga ficar coesa no seu
resultado final, mas é aí que entra a genialidade do seu intérprete que funciona como
uma cola a esses elementos.
O resultado final é uma música que faz o ouvinte ficar com um sorriso no rosto toda vez
que termina de escutá-la, sendo uma das minhas favoritas do álbum (difícil não favoritar
todas!).
5. SINAL FECHADO
A canção que fez o ano de 2020 pro Getúlio, Sinal Fechado ganhou um dos melhores
clipes da era que foi muito bem dirigido por Lucas Sá. A música é um brega
melodramático que tem um dos melhores instrumentais do álbum inteiro, e eu fico
arrepiado toda vez que escuto a parte do “…eu ainda me lembro”.
Uma das melhores características desse álbum todo é que as músicas tem o tempo
necessário para crescerem. O Getúlio não tem medo de fazer músicas com quatro
minutos e cheias de elementos, porque ele enxerga a indústria com um olhar fora da
caixa. É por isso que mesmo Sinal Fechado sendo uma das faixas mais comuns de todo
o disco, ela ainda é muito diferente do que nós normalmente escutamos na esfera
nacional.

Aqui temos o resgate dos bregas românticos que fazem sucesso no interior do Ceará, e
eu digo isso por experiência própria, que é atualizado da mesma maneira que o cantor
fez na faixa Cavalo Corredor. Dessa vez, o elemento moderno é a parte final da música
que costura o refrão da faixa Cry For You da cantora September.
Mais uma vez, outro acerto de um álbum que chega na sua metade tão potente quanto o
seu começo.
6. TEMPESTADE
Como o próprio diz, essa aqui é pra chorar…
Tempestade poderia facilmente integrar algum álbum do Calcinha Preta ou do Forró
Tropykália, mas ela é 100% Getúlio Abelha romântico e melodramático. A escolha de
colocar essa faixa logo depois de Sinal Fechado é bem acertada, já que as duas tem
sentimentos muito parecidos, mas nenhuma se sobrepõe a outra. Alguns podem achar
Sinal Fechado melhor, mas eu acho Tempestade mais interessante.
Ela é o tipo de música que você escutaria chorando e com uma cerveja na mão,
encostado numa parede de bar enquanto o som estronda do lado de fora. É uma música
que tem uma vibe e uma ambientação tão incríveis que transportam o ouvinte
diretamente pro sentimento do eu lírico, o que só demonstra a força musical do próprio
Getúlio.
Seria o tipo de música que viraria single em um mundo perfeito.
7 & 8. CACHORRO MALDITO / PIGARRO
A sétima faixa do álbum é uma interlude absurda envolvendo Getúlio e um cachorro
que ataca ele diariamente. Quem mora em Fortaleza sabe que esse é um perigo real,
mesmo que a maioria dos doguinhos daqui sejam tranquilos. De qualquer forma, essa
interlude leva a gente pro próximo ato que abraça o absurdo de vez nas faixas mais
loucas do álbum.
Pigarro é uma faixa extremamente doida que parece mais um fluxo de consciência
transformado em música. Apesar disso, ela é a faixa mais biográfica, já que fala de
algumas vivências de Getúlio em Fortaleza e na sua infância, que ele contou um pouco
em entrevistas linkadas no primeiro texto que eu escrito sobre ele aqui no site. O final
da música é uma mistura tão louca que até ele mesmo se pergunta que porra é aquela, e
nós também nos perguntamos, mas ainda assim, é uma loucura muito bem feita!
9. VÁ SE LASCAR!
Vá Se Lascar é a incursão de Getúlio ao pop, e até mesmo em um estilo mais genérico
ele consegue colocar sua personalidade numa música. O clipe gravado de maneira
independente (pode-se dizer até mesmo no formato de cinema marginal) no centro de
Fortaleza, complementa ainda mais uma faixa que é pra ser porra louca e chiclete. Já
que depois de ouvi-la você dificilmente vai esquecê-la.
Mesmo sendo muito boa, Vá Se Lascar parece pequena diante das músicas gigantes que
lhe antecederam e das que lhe sucedem, mas ainda assim ela tem seu valor e seu chame.
10. AQUENDA
Essa faixa aqui já é lendária só pelo nome.
Aquenda é uma música que fala sobre a intolerância que as pessoas tem com a
comunidade queer. Getúlio é incrível fazendo menção aos homens que preferem usar
calcinha e as mulheres que preferem usar cueca, ressaltando que há questões mais
importantes a serem discutidas, como a ditadura, que a unicidade de cada um. Vale
mencionar que desde suas primeiras apresentações, Getúlio conta com uma mulher trans
na sua equipe de dançarinos, e mostra que ele é cem por cento comprometido com a
comunidade, não só defendendo-a, mas também criando oportunidades artísticas
O clipe da música, gravado no Carnaval de Fortaleza em 2019, mostra muito disso. Ele
captura um pouco da cena queer fortalezense e a exalta em uma música transgressora e
cheia de coragem como todo o conjunto do álbum.
11. TAMANCO DE FOGO
Se Aquenda fala um pouco do preconceito contra a comunidade queer, Tamanco de
Fogo dá nome aos bois e fala sobre o ódio dos crentes para com a comunidade.
Essa é uma música bem polêmica por tocar na ferida com gosto, mas só demonstra a
coragem de Getúlio de falar sobre um tema tão delicado com tanta audácia, e ele tá mais
que certo. Em um país que mais mata membros da comunidade LGBTQIA+, Tamanco
de Fogo é uma música necessária. Ela é muito mais politizada que Aquenda e trata de
forma lúdica um tema tão pesado. Graças ao instrumentais dessa aqui, Getúlio ganhou
muitas comparações com David Bowie, mas ouso dizer que nem Bowie teria coragem
de fazer uma faixa como essa e isso é um mérito do Sad Clown do Forró.
Parabéns, Getúlio. Tanto a música quanto o clipe de Tamanco de Fogo são arte PURA.
12. PERIGO
Encerrando o álbum com uma música mais calminha, Perigo encerra uma trilogia de
faixas sobre a comunidade LGBTQIA+. Se Aquenda é sobre afirmação, Tamanco de
Fogo sobre o preconceito existente, Perigo é um calmo grito de resistência.
Sendo a música escolhida pra fechar os trabalhos do álbum, Perigo é uma música
simples, mas que não precisa de muita coisa para passar sua mensagem. Ela é forte por
si só. Getúlio Abelha pode ser muitas coisas, incluindo o perigo dessa cidade. E essa é
uma informação importantíssima devido aos alvos que ele coloca em si mesmo ao se
assumir como um artista tão transgressor em um país tão conservador.
Só por isso essa é uma excelente faixa que finaliza o álbum com uma nota altíssima.
Conclusões Finais
Marmota não é um disco comum. Getúlio Abelha não é como os artistas que
conhecemos atualmente. Ele é único. Vide sua estratégia inversa de lançar um álbum,
lançado diversos singles até encerrar a era liberando o conjunto de músicas completo e
um clipe final. Em suas entrevistas, Getúlio disse que ainda não sabe se quer gravar um
outro disco, já que passou 4 anos de sua vida empenhado em trazer o Marmota à vida.
Pela qualidade apresentada aqui, eu só posso ficar triste com essa afirmação, mas eu
ainda torço para que ele continue sua carreira e faça muito sucesso onde desejar mostrar
sua arte.
O mundo da música pode ser muito pequeno para Getúlio Abelha, e eu quero ver o que
ele pode fazer em outras esferas artísticas. Ainda assim, espero que não demore tanto
tempo para que haja um sucessor desse álbum. Raras vezes eu me senti tão representado
como um jovem queer e nordestino como se senti escutando as músicas do Marmota.
Aposto que muitos ainda vão se identificar com o álbum e com seu intérprete. E quando
isso acontece, é por que a música é boa de verdade.
Por tudo o que eu já falei aqui, posso dizer com todas as letras e todo o orgulho que
Marmota é a obra-prima de Getúlio Abelha.
PS: Para ler o perfil que o site Geleia Total fez do cantor, clique aqui. Para ler as
entrevistas dele ao Diário do Nordeste clique aqui e aqui. E por último, para ler o artigo
sobre ele no UOL clique aqui.
PS²: Se você se encantou pelo clipe de Sinal Fechado, então deve curtir o canal do
diretor do clipe, Lucas Sá, um excelente profissional que deve ganhar espaço no futuro.
Para ver mais trabalhos dele clique aqui.
Texto originalmente publicado em 09/06/2021

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