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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

FLAVIO BEZERRA DE LIMA

CORPO, NARRATIVA E IDENTIDADE ATRAVÉS DA DANÇA: ANÁLISE


DAS EXPERIÊNCIAS COMO INTÉRPRETE-CRIADOR

CAMPINAS

2019
FLAVIO BEZERRA DE LIMA

CORPO, NARRATIVA E IDENTIDADE ATRAVÉS DA DANÇA: ANÁLISE


DAS EXPERIÊNCIAS COMO INTÉRPRETE-CRIADOR

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da


Universidade Estadual de Campinas como parte dos
requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em
Artes da Cena, na área de Teatro, Dança e Performance.

ORIENTADORA: DRA. HOLLY ELIZABETH CAVRELL

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA
PELO ALUNO FLAVIO BEZERRA DE LIMA E
ORIENTADO PELA PROFA. DRA. HOLLY
ELIZABETH CAVRELL

CAMPINAS

2019
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Lima, Flavio, 1968-


L628c LimCorpo, narrativa e identidade através da dança : análise das experiências
como intérprete-criador / Flavio Bezerra de Lima. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

LimOrientador: Holly Elizabeth Cavrell.


LimDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Artes.

Lim1. Linguagem corporal na arte. 2. Dança moderna. 3. Dança


contemporânea. 4. Coreografia. 5. Bailarino-Pesquisador-Intérprete. I. Cavrell,
Holly Elizabeth, 1955-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de
Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Body, narrative and identity through dance : analysis of
experiences as interpreter-creator
Palavras-chave em inglês:
Body language in art
Modern dance
Contemporary dance
Choreography
Dancer-Researcher-Performer
Área de concentração: Teatro, Dança e Performance
Titulação: Mestre em Artes da Cena
Banca examinadora:
Holly Elizabeth Cavrell [Orientador]
Julia Ziviani Vitiello
Robson Lourenço
Data de defesa: 25-02-2019
Programa de Pós-Graduação: Artes da Cena

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-5267-8054
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2612534124923134

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

Flavio Bezerra de Lima

ORIENTADOR(A): Holly Elizabeth Cavrell

MEMBROS:

1. PROF(A). DR(A). Holly Elizabeth Cavrell


2. PROF(A). DR(A). Julia Ziviani Vitiello
3. PROF(A). DR(A). Robson Lourenço

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade


Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão examinadora


encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa
da Unidade.

DATA DA DEFESA: 25 de fevereiro de 2019


Dedico este trabalho
à minha companheira
Leticia Tadros
AGRADECIMENTOS

Tomar a decisão de iniciar esta pesquisa foi fácil, sabia que encetar uma pesquisa
acadêmica me ajudaria a organizar meu passado, presente e entender o caminho a seguir
nesta arte que muda constantemente, numa dinâmica movida pela rapidez que a vida
tecnológica nos oferece diariamente.
Reencontrar a minha mestra Holly Cavrell depois de quase 20 anos, que separam
de suas aulas no Balé da Cidade de São Paulo, foi um grande presente poder novamente
ser seu aluno, que com a sua maestria me orientou nesse mestrado. Meu eterno
agradecimento por sua generosidade em transmitir sua sabedoria e respeito para todos os
que querem saber um pouco de sua arte de ensinar. Meu MUITO OBRIGADO MESTRA
QUERIDA... por me fazer enxergar a dança em suas múltiplas facetas.
Foi fundamental as conversas com Robson Lourenço, grande amigo e irmão de
arte, que muito me ajudou a pensar no assunto a ser pesquisado, me ouvindo e refletindo,
com toda sua delicadeza sobre as minhas vontades, que ainda eram de uma forma ingênua
dentro do universo acadêmico, obrigado Dr. Lourenço.
Tive a sorte de encontrar colegas artistas generosos que me ajudaram a começar
entender o que é ser um pesquisador acadêmico em dança, entre eles: Paula D’Ajello,
Maitê Lacerda, André Sarturi, Fausto Ribeiro e Raissa Costa.
Meus agradecimentos a CAPES. O presente trabalho foi realizado com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de Financiamento 001.
Agradeço ao Programa e aos professores de Pós-Graduação em Artes da Cena -
Unicamp, pela confiança e contribuição de seus conhecimentos para essa pesquisa.
À Profa. Dra. Silvia Geraldi, Profa. Dra. Ana Maria Rodriguez Costas (Ana Terra)
e a Profa. Dra. Holly Cavrell por sua orientação no (Programa de Estágio Docente) PED,
que muito contribuiu para essa pesquisa e também para eu entender como é ser docente
na universidade.
À Profa. Dra. Julia Ziviani por seus comentários e atenção as necessidades de uma
pesquisa mais autoral.
Ao querido Ildo Rosa, amigo e conselheiro, que com sua experiência de terapeuta
nunca me deixava desvanecer nas dificuldades e sempre me conduzindo a ser organizado
nas demandas do mestrado e da vida familiar.
Aos mestres, coreógrafos e diretores com os quais trabalhei desde que iniciei meus
estudos em dança, pela generosidade em transmitir seus conhecimentos de dança e me
fazer ser diferente na arte e vida.
À Osmar Zampieri por sua generosidade em editar os vídeos para a qualificação
e defesa de mestrado.
À Raimundo Costa, por permitir acessar o arquivo de vídeos do Balé da Cidade
de São Paulo.
À Armando Olivetti, revisor sempre solicito e generoso na leitura destas páginas.
À minha mãe Joséfa Maria Bezerra de Lima, que mesmo depois de ter partido, mantém
viva a sua presença de amor e a família unida.
Ao meu irmão Izaías Lima que me ensinou os primeiros passos de dança em
nossas festas de família e ajudou minha mãe a construir uma base familiar,
proporcionando um conforto emocional e financeiro para que eu pudesse continuar nos
estudos em dança
Para finalizar, a minha companheira Leticia Tadros, pelos momentos de
conversas, que a todo momento que eu precisava discutir sobre esta pesquisa, ela estava
sempre pronta para me ouvir, sempre entusiasmada, me ajudando a não desistir de uma
pesquisa mais intensa, e junto a nós, a nossa queridíssima Sophia Tadros, minha enteada
inteligente e sensível que mesmo não querendo, participava de nossas conversas,
alegrando nossos cafés da manhã e jantares, nosso ponto de encontro de todo dia.
RESUMO

Esta pesquisa analisa a relação do artista bailarino no contexto da dança contemporânea


produzida no Balé da Cidade de São Paulo ao longo dos anos de 1993 a 1996, durante a
gestão artística de Ivonice Satie. O texto propõe uma reflexão sobre o modo de
organização do corpo, ou seja, de que forma o processo diário de preparação corporal por
meio das aulas de balé clássico e dança moderna/contemporânea dialoga com a
materialidade corporal desenvolvida nas produções coreográficas, ou seja, servindo como
facilitador e motivador no processo criativo. São desenvolvidos questionamentos e
reflexões sobre esse diálogo da preparação corporal com a obra cênica e sobre a
corroboração da formação técnica em dança moderna/contemporânea em uma atuação
criativa. Ao mesmo tempo, analisa-se qual seria a influência do intérprete de dança no
processo de criação, reverberando no ato de coreografar como modificador e/ou
catalisador das possíveis poéticas analisadas.

Palavras-chave: preparação corporal, dança moderna/contemporânea e intérprete-criador


ABSTRACT

This research analyzes the relations artists-dancers created using contemporary dance as
a context at the Sao Paulo City Ballet from 1993 to 1996, while Ivonice Satie was artistic
director. The text proposes a reflection about the way in which the body was organized,
that is, how the daily, bodily preparation process talked to the corporeal materiality that
was developed in choreographic productions using ballet and modern/contemporary
dance classes as a base, thus serving as facilitators and drivers in the creative process.
Questions and reflections are developed around this dialogue between bodily preparation
and the scenic work, and about the corroboration of the technical education in
modern/contemporary dance during creative interaction. Similarly, it analyzes what
would be dance interpreters’ influence in the creative process, which reverberates in the
act of choreographing as a modifier and/or catalyst in the possible poetics [sic] under
analysis.

Key words: bodily preparation, modern/contemporary dance and interpreter-creator.


SUMÁRIO

Introdução 11

Capítulo 1 – Dança oficial em São Paulo

1.1 Escola Municipal de Bailados: formação em dança 15


1.2 Corpo de Baile Municipal: dança balé clássico 18
1.3 Corpo de Baile Municipal dança: dança contemporânea 24
1.4 Balé da Cidade de São Paulo: entre os anos de 1981 e 1992 26
1.5 Balé da Cidade de São Paulo entre os anos de 1997 e 2018 32

Capítulo 2 – Direção artística de Ivonice Satie


2.1 Uma nova visão artística para o Balé da Cidade de São Paulo 43
2.2 Processo de formação: intérprete-criador em 56
dança contemporânea
2.3 Técnica de dança moderna/contemporânea a partir de 63
Holly Cavrell

Capítulo 3 – Coreógrafos internacionais no Balé da Cidade de São Paulo

3.1 Vasco Wellenkamp – De repente, não mais que de repente 69


3.2 Germaine Acogny – Z 73
3.3 Ohad Naharin – Axioma 7 78

Capítulo 4 – Análise das conexões estabelecidas pelo pesquisador


entre o trabalho de preparação corporal e os repertórios dos
coreógrafos internacionais

4.1 A prática como pesquisa no processo criativo e na docência 84

Considerações finais 91

Bibliografia 93
11

INTRODUÇÃO

A proposta desta pesquisa é desenvolver uma reflexão sobre as minhas experiências


práticas como intérprete-criador e o trabalho de preparação corporal em dança contemporânea
no contexto da dança contemporânea produzida no Balé da Cidade de São Paulo nos 4 anos em
que Ivonice Satie foi sua diretora artística. A pesquisa analisa o modo de organização do corpo,
ou seja, de que forma o processo diário de preparação corporal, naquele período, colaborava
com a proposta cênica nos processos de criação e na manutenção diária do repertório da
companhia.
A dissertação traz um histórico da dança oficial da cidade de São Paulo a fundação da
Escola Municipal de Bailados e da fundação do Corpo de Baile Municipal, atualmente Balé da
Cidade de São Paulo.
Pretende-se analisar: (1) as possíveis formas de pensar a dança desenvolvida por três
coreógrafos estrangeiros – o português Vasco Wellenkamp, a senegalesa Germaine Acogny e
o israelense Ohad Naharin –, na gestão de Ivonice Satie entre 1993 e 1996; e (2) o trabalho de
preparação corporal em dança moderna/contemporânea ministrado pela Profa. Dra. Holly
Elizabeth Cavrell.
A pesquisa pressupõe que os diferentes corpos encontrados na dança contemporânea
são inerentes ao contexto social e cultural no qual o artista está inserido, contaminado pelos
planos de estruturas econômicas e sociais sendo interpretados com uso de diferentes linguagens
técnicas e métodos de treinamento do movimento, o que reflete diretamente na maneira de se
fazer arte na dança.
Procura-se, desse modo, discutir a maneira como se realizou o trabalho de preparação
corporal no Balé da Cidade de São Paulo entre os anos de 1993 a 1996, maneira esta que serviu
como facilitadora, motivadora no processo criativo; questionar como as possíveis formas de
preparação corporal associam o trabalho técnico com o criativo; analisar qual seria a influência
do intérprete de dança no processo de criação, modificando ou catalisando as possíveis poéticas
presentes no ato de coreografar.
Esta pesquisa parte da necessidade de tentar entender a construção de um corpo treinado
em técnicas de dança, analisando primeiramente a dança desenvolvida especificamente entre
os anos de 1993 e 1996 – os 4 primeiros anos em que atuei como intérprete-criador, participando
das criações dos três coreógrafos internacionais citados anteriormente.

.
12

No diálogo entre passado e presente, esta pesquisa começou a se delinear quando eu


ainda atuava como intérprete do Balé da Cidade de São Paulo. Descrevo como minha formação
foi fundamentada mediante o aprendizado da técnica de balé clássico, possibilitando o trânsito
entre o treinamento realizado em sala de aula e a cena (interpretando repertório de dança do
gênero clássico).
Ao integrar o elenco do Balé da Cidade1, eu percebia naquele momento que o trabalho
de preparação corporal nas aulas de balé clássico não era suficiente para trazer elementos
expressivos e técnicos, ao transportar a materialidade corporal praticada nas aulas para as
coreografias do repertório da companhia.
A ausência de um trabalho corporal que dialogasse com o que a companhia estava
dançando sofreu uma mudança em 1995, com a chegada da pesquisadora e professora de dança
contemporânea Holly Elizabeth Cavrell, convidada para propor um trabalho de preparação
corporal baseado nos princípios e fundamentos da dança moderna/contemporânea, um diálogo
com as propostas artísticas das novas criações e do trabalho de manutenção dos repertórios da
companhia.
Esse trabalho de técnico em dança proposto por Cavrell possibilitou não só perceber o
trabalho técnico e sensível, mas também identificar fisicamente a relação do peso do corpo no
movimento global e de partes isoladas, como cabeça, braços, tronco, pelve e pernas. Foi a partir
do momento do contato com trabalho corporal proposto por Cavrell, que passei a dar mais
atenção ao ciclo respiratório, obtendo maior consciência no ato da respiração, no inspirar e
expirar aplicados aos movimentos.
Nas aulas, a Profa. Holly Cavrell começava a acessar o tônus muscular2 de forma mais
equilibrada, atingindo a musculatura mais profunda e entendendo a gradação do tônus na sua
relação com o peso leve e firme.3 Esses elementos proporcionavam uma percepção mais
refinada e aguçada do corpo, trazendo uma individualidade na construção do movimento.
O conhecimento adquirido como artista profissional em dança trouxe experiências
relacionadas ao desenvolvimento de um diálogo entre o trabalho de preparação corporal e o
trabalho criativo, pensando no desenvolvimento de um corpo com habilidades técnicas de

1O Balé da Cidade de São Paulo também é conhecido como Balé da Cidade e utilizarem ao longo do texto os
dois termos.
2 Utilizo o conceito de tônus apresentado por Gerda Alexander, que o define como “atividade de um músculo em
repouso aparente (...) e indica que o músculo está sempre em atividade, mesmo quando isso não se traduz em
movimentos ou gestos” (ALEXANDER, 1991, p. 12).
3 Segundo os pesquisadores MOMMENSOHN e PETRELLA no livro Reflexões sobre Laban: o mestre do

movimento (2006), o peso leve demonstra uma qualidade de movimento de extrema leveza, na conquista da
verticalidade, e o peso firme demonstra estabilidade, firmeza e atitude.

.
13

diferentes linguagens da dança, apto a dançar diferentes vocabulários de movimento e ao


mesmo tempo, um corpo sensível e poroso para o processo criativo.
Trago a pesquisadora Juliana Moraes e a pesquisadora Holly Cavrell para dialogar nesta
pesquisa sobre a forma pela qual o trabalho de técnica corrobora o trabalho criativo. A pesquisa
discute a maneira como o aprendizado de uma técnica de dança contemporânea proporciona ao
bailarino uma nova cultura de corpo. Tais pensamentos refletidos por Moraes e Cavrell
alicerçam as questões que relacionam o trabalho de técnica moderna/contemporânea ministrado
por Holly Cavrell com o processo criativo realizado no Balé da Cidade, uma vez que ao
desenvolver um trabalho de preparação corporal o professor precisa se ater às estruturas do
corpo como um todo, dialogando com o trabalho físico e sensível.
Para contextualizar a história do objeto de estudo nesta pesquisa, desenvolvo no
Capítulo 1 o histórico da Escola Municipal de Bailados do Teatro Municipal de São Paulo,
cujos alunos dos últimos anos da formação, deram início ao que posteriormente viria a ser o
Corpo de Baile Municipal – um grupo formado para dançar obras de repertório do gênero
clássico e também participar das temporadas líricas do Teatro Municipal de São Paulo.
Posteriormente, em 1974, esse grupo transforma-se em companhia de dança contemporânea e
em 1981 mudando seu nome para Balé da Cidade de São Paulo.
A presença do histórico artístico da companhia nesta Dissertação decorre da necessidade
de compreender as mudanças relacionadas à gestão de cada diretor, conectadas às políticas
públicas no âmbito cultural. A história da companhia permite perceber que as propostas
artísticas estão diretamente ligadas ao olhar do diretor artístico, definindo qual será o caminho
a ser desenvolvido pela companhia em sua gestão.
No Capítulo 2 descrevo a gestão artística de Ivonice Satie entre 1993 e 1996, que propõe
para os bailarinos, além das aulas de balé clássico um trabalho de preparação corporal em
técnica de dança moderna/contemporânea, ministrado por Holly Cavrell, que desenvolveu a
conexão de seu trabalho de técnica em dança com as ideias dos três criadores convidados entre
os anos de 1995 e 1996.
A partir dessa experiência reflito sobre minha formação em balé clássico, confrontando-
a com a entrada em uma companhia contemporânea, e discuto a conexão entre o trabalho de
corpo realizado nos longos anos de formação, o treinamento corporal com aula de técnica de
balé clássico e a dança moderna/contemporânea, aplicados nas propostas artísticas do repertório
do Balé da Cidade.
No Capítulo 3 apresento a experiência com os três coreógrafos internacionais, o
português Vasco Wellenkamp, a senegalesa Germaine Acogny e o israelense Ohad Naharin,

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cada um com suas qualidades de movimentos e diferentes características estéticas e expressivas,


descrevendo como cada um desses coreógrafos contribuiu para meu jeito de dançar.
No Capítulo 4 analiso as experiências adquiridas nos anos em dança, aplicadas hoje na
docência e no processo criativo. Apontarei questões desenvolvidas a partir das experiências
como intérprete, criador e docente, refletindo sobre o trabalho de preparação corporal no
contexto de produção de dança contemporânea realizado no Programa de Formação dos alunos
do 5º ano da Escola de Dança de São Paulo no ano de 2017 e 2018, analisando a associação das
aulas de técnica moderna/contemporânea com o processo criativo e a influência do intérprete
de dança no processo de criação.

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Capitulo 1 - Dança Oficial em São Paulo

1.1 Escola Municipal de Bailados: formação em dança

A construção do Teatro Municipal de São Paulo, financiada por incentivos fiscais e


investimentos dos barões do café, foi iniciada em 1903, com arquitetura de Ramos de Azevedo
e dos italianos Claudio e Domiziano Rossi. Sua inauguração se deu em 12 de setembro de 1911,
quando cerca de 20 mil pessoas compareceram para ver a chegada dos ilustres convidados.4
Na primeira metade do século XX passaram pelo Teatro Municipal de São Paulo as
mais importantes companhias artísticas estrangeiras e nacionais; nomes da música como Enrico
Caruso, Beniamino Gigli, Mario Del Monaco, Maria Callas e Arthur Rubinstein, e bailarinos
como Nijinsky, Isadora Duncan, Rudolf Nureyev e Margot Fonteyn.5
Até o final da década de 1930 o Teatro Municipal de São Paulo mantinha uma extensa
agenda de espetáculos de dança e óperas, e para compor as partes dos bailados nas temporadas
líricas convidava as alunas da escola de dança fundada em 1932 pelas professoras Chinita
Ullman (1904-1977) – que estudou técnica expressionista na Alemanha com Mary Wigman6 –
e a bailarina clássica Kitty Bodenheim (1912-2003), (NAVAS; DIAS, 1992, p. 21).
Com agenda extensa de espetáculos e ausência de bailarinos do próprio Teatro
Municipal para participação nos espetáculos, o prefeito Prestes Maia decide desenvolver uma
escola voltada, sobretudo, para os bailados das temporadas líricas nacionais e estrangeiras,
inaugurando em 2 de maio de 1940 a Escola Municipal de Bailados do Teatro Municipal de
São Paulo.
Fundada oficialmente e funcionando em uma sala do próprio Teatro Municipal sob
direção do bailarino Vaslav Veltchek,7 a Escola Municipal de Bailados logo nos 3 primeiros
meses montou um pequeno corpo de baile para participar da temporada lírica daquele ano,
sendo a maioria das bailarinas alunas da escola de Bodenheim e Ulmann (NAVAS; DIAS,

4 Informações do site da Fundação do Theatro Municipal de São Paulo. Disponível em:


http://theatromunicipal.org.br/espaco/theatro-municipal/#historia; acesso em: 2 abr. 2018.
5 Informações do site da Fundação do Theatro Municipal de São Paulo. Disponível em:
http://theatromunicipal.org.br/espaco/theatro-municipal/#historia; acesso em: 2 abr. 2018.
6 Mary Wigman (1886-1973): dançarina, coreógrafa e professora, estudou com Dalcroze e Laban, de quem se

tornou assistente. Deu seu primeiro recital em 1914. Abriu em 1920 uma escola em Dresden que se tornou o berço
da dança moderna alemã e de onde saíram Holm, Palucca, Kreutzberg, Giorgi e Wallmann, dentre outros (FARO;
SAMPAIO, 1989, p.416).
7 Vaslav Veltchek (1896-1967): bailarino, coreógrafo e professor tcheco. Trabalhou na Opéra-comique e no

Théâtre du Châtelet, ambos em Paris. Em 1939 tornou-se coreógrafo do Ballet do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro (NAVAS; DIAS, 1992, p. 21).

.
16

1992, p. 22).
A Escola Municipal de Bailados nasceu com o compromisso para os munícipes de
promover um ensino de dança orientado exclusivamente para o ensino de balé clássico,
compondo o Corpo de Baile com as alunas dos últimos anos, como um caminho para a
profissionalização e também a participação dos bailarinos nas produções operísticas não teriam
nenhum ônus para os empresários. A esse respeito, comenta a atriz e coreógrafa Marilena
Ansaldi em entrevista ao pesquisador Lineu Dias (1980), sobre a relação de trabalho entre a
formação na Escola de Bailados e os ensaios para participar dos espetáculos no Teatro
Municipal de São Paulo:

Acontece o seguinte: são 8 anos de curso na Escola de Bailados e, digamos, uma


menina que já chegou ao quinto, sexto ano, já começava a participar desses
espetáculos. Quer dizer, como não havia cachê – às vezes o empresário da ópera nos
dava alguns cachês, às vezes não – então, de uma certa maneira para nós pagarmos –
quer dizer, seria uma troca do estudo que a gente estava tendo, que era gratuito, e
também como um aperfeiçoamento do próprio estudo, a gente participava das óperas
e de espetáculos fora (...) E nessa época havia muito mais ópera do que hoje. Então, a
gente dançava mais nas óperas, a gente dançava muito, até. E, de uma certa maneira,
se fazia muito espetáculo, porque era tudo gratuito. Então, a gente era chamada para
tudo, em tudo que era lugar! (DIAS, 1980, p. 20)

O espaço ocupado pela Escola Municipal de Bailados estava ficando pequeno em razão
da quantidade de alunos matriculados, precisava de espaço maior para aulas e ensaios. Três
anos após sua fundação, a Escola Municipal de Bailados migrou para os baixos do Viaduto do
Chá.8 A necessidade de ter uma Escola de Dança que desenvolvesse a formação de bailarinos,
os quais futuramente fizessem parte de um Corpo de Baile para participação nas óperas, foi o
que possibilitou a existência de um Corpo de Baile, ainda não oficializado na cidade de São
Paulo. A esse respeito, os pesquisadores Navas e Dias (1992, p. 110) afirmam: “O Corpo vivia
apenso às óperas montadas no Teatro Municipal, dependendo dos empresários operísticos para
pagar seus bailarinos e coreógrafos”. Com a formação em dança sendo construída ao longo dos
anos e a necessidade de bailarinos para participarem nas temporadas líricas do Teatro municipal
de São Paulo, os alunos mais adiantados da Escola de Bailados eram recrutados, formando um
grupo de bailarinos não profissional.

8A Escola de Dança de São Paulo, antiga Escola Municipal de Bailados, permaneceu nos baixos do Viaduto do
Chá até 2011. Em 2012, sob a administração da Fundação Theatro Municipal de São Paulo, passou a ocupar dois
andares na Praça das Artes (na Av. São João, centro da cidade de São Paulo). Informações do site da Fundação do
Theatro Municipal de São Paulo. Disponível em: http://theatromunicipal.org.br/formacao/escola-de-danca-de-sao-
paulo/#historia; acesso em: 2 abr. 2018.

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17

Marília Franco,9 a sucessora de Maria Olenewa10 – bailarina russa que substituiu Vaslav
Veltchek na direção –, também descreve na entrevista concedida ao pesquisador Lineu Dias
(1980) como era a relação dos alunos com o corpo de baile:

Naquela época, como existia a Escola, e como havia temporadas líricas aqui em São
Paulo, e não tinha jeito de contratar gente de fora, a Escola tinha uma função
específica de pegar os alunos mais adiantados e formar um conjunto não profissional
para intervir nas temporadas líricas e nos espetáculos que precisasse. Isso durou vários
anos, inclusive mesmo depois que Maria Olenewa saiu, a Escola continuou, até a
criação do Corpo de Baile oficial (...) a ter um Corpo de Baile extraoficial para
justamente atender às líricas. (Franco, in: DIAS, 1980, p. 20)

Em 1968 o Teatro Municipal de São Paulo apresentava temporadas líricas extensas,


produzidas localmente, e também recebia companhias operísticas internacionais. Precisava,
portanto, de um corpo de baile oficial. Nesse cenário cultural do Teatro Municipal é que se deu
a fundação do Corpo de Baile Municipal, uma companhia de dança oficial da cidade de São
Paulo.
Lineu Dias (1980, p. 20) comenta o decreto de sua fundação, que menciona a
importância de um corpo de dança para o Teatro Municipal “nos moldes dos grandes Teatros
líricos da Europa e da América do Norte, que fosse uma companhia de dança à altura das
tradições artísticas apresentadas em suas temporadas”.
Desde que a Escola Municipal de Bailados foi instituída, passou por diversas
reformulações pedagógicas, ampliando as disciplinas e procedimentos educacionais. Até 2012
foi administrada pela Prefeitura Municipal de São Paulo, passando então a ser gerida pela
Fundação Teatro Municipal de São Paulo.11 Essa nova estrutura administrativa teve como
consequência a mudança de nome para Escola de Dança de São Paulo e a mudança de sede para
a Praça das Artes12 em dezembro de 2013.

9 Marília Franco (1923): Coreógrafa, dançarina e professora, estreou no BTMSP (1942), transferindo-se para o
BTMRJ (1943). Dançou com o Original Ballet Russe (1944-1947), professora da Escola de Bailado por 33 anos
(FARO; SAMPAIO, 1989, p. 157).
10 Maria Olenewa (1896-1965): Dançarina e professora, iniciou seus estudos com L. Nelidova, estreando com a

Cia. de Op. Zimin. Dançou com a Cia. de Maria Kouznetzova no Theatro dos Champs-Elysées. Entrou para a Cia.
de Anna Pavlova e veio para a América do Sul (1921), lecionou no Teatro Colón, de Buenos Aires (1922-1924),
e transferiu-se para o Brasil (1927). Foi fundadora da Escola de Dança do BTMRJ e mudou-se para São Paulo,
onde suicidou-se (FARO; SAMPAIO, 1989, p. 290).
11 A Fundação Theatro Municipal de São Paulo foi instituída pela Lei 15.380, de 27 de maio de 2011, e

regulamentada pelo Decreto 53.225, de 19 de junho, cujo estatuto vincula à Secretaria Municipal de Cultura uma
Fundação de Direito Público responsável pela gestão de um complexo de equipamentos culturais, corpos artísticos
e programas de formação em música e dança. Informações do site da Fundação do Theatro Municipal de São
Paulo. Disponível em: www.theatromunicipal.org.br/fundacao-theatro-municipal/; acesso em: 2 abr. 2018.
12 Praça das Artes é um complexo cultural dedicado à música, à dança e ao teatro e às exposições. Abriga a Escola

de Dança e Escola Municipal de Música de São Paulo, além dos grupos artísticos da Fundação Theatro Municipal
de São Paulo: Balé da Cidade de São Paulo, Orquestra Sinfônica Municipal, Orquestra Experimental de

.
18

1.2 Corpo de Baile Municipal: dança balé clássico

A oficialização do Corpo de Baile Municipal aconteceu em 7 de fevereiro de 1968, na


gestão do prefeito brigadeiro José Vicente de Faria Lima. Como aponta Lineu Dias (1980, p.
110), conservou-se o nome anterior (Corpo de Baile do Teatro Municipal), retirando-se apenas
o “do Teatro”.
Lia Marques – primeira-bailarina do antigo Corpo de Baile do Teatro Municipal de São
Paulo, solista do Balé do IV Centenário13 e também professora da Escola Municipal de Bailados
– foi convidada pelo prefeito Faria Lima para desenvolver uma estrutura visando à criação do
Corpo de Baile. Lia apresentou pessoalmente seu plano no gabinete do prefeito e indicou o
nome de Johnny Franklin14 para ser o coreógrafo da nova companhia (DIAS, 1980, p. 17).
Embora participasse normalmente das temporadas líricas do Teatro Municipal, logo
após sua fundação o Corpo de Baile buscou autonomia para produzir espetáculos desenvolvidos
pela própria companhia. Franklin e Marques trabalhavam aproximadamente 7 horas por dia
com os bailarinos. Os trabalhos coreográficos desenvolvidos nesse início se baseavam na
reconstrução de balés do gênero clássico do século XIX, estreando em 1969 Sílfides, Copélia e
a montagem brasileira Maracatu.
O elenco de bailarinos da então recente companhia profissional era formado em sua
maioria por alunos da Escola Municipal de Bailados, como relatado pela diretora Marília
Franco em entrevista a Lineu Dias (1980, p. 19): “Os primeiros bailarinos profissionais que
ingressaram nesse Corpo de Baile foram formados aqui na escola. Eram 22 moças, se não me
engano, naquela época. E os rapazes, o Johnny (...) trouxe do Rio”.
A esse respeito, a atriz e coreógrafa Marilena Ansaldi informa em entrevista ao
pesquisador Lineu Dias (1980, p. 19): “naquela época, eram todas pessoas (bailarinos) saídas

Repertório, Coro Lírico, Quarteto de Cordas e Coral Paulistano. Informações do site da Fundação do Theatro
Municipal de São Paulo. Disponível em:: www.theatromunicipal.org.br/fundacao-theatro-municipal/; acesso em:
9 nov. 2018.
13 Balé do IV Centenário: companhia de dança criada em São Paulo em 1953, para as comemorações dos 400 anos

da cidade (1954), financiada por um grupo de industriais paulistas. Composta por 80 bailarinos, ensaiou 16 balés
durante 2 anos, quatro deles coreografados por Milloss com músicas de Francisco Mignone, Villa-Lobos e Souza
Lima. Marcada pelas constantes disputas entre financiadores e a municipalidade de São Paulo, que levaram ao
encerramento de suas atividades em 1955, a companhia só mostrou seu repertório completo no Teatro Municipal
do Rio de Janeiro (1954). Apresentou-se em São Paulo no Teatro Santana, com parte do repertório e do elenco
(FARO; SAMPAIO, 1989, p. 30).
14 Johnny Franklin (1931-1991): dançarino, professor e coreógrafo natural de São Paulo, iniciou seus estudos com

Maria Olenewa em 1944. Foi bailarino do Balé do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e diretor e coreógrafo do
Corpo de Baile Municipal de São Paulo de 1968 a 1973.

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19

do Corpo de Baile da Escola Municipal de Bailados. Eram meninas que estavam recém-
formadas, meninas de 16, 15, 17 anos, no máximo, a maioria com 14 anos, inclusive...”.
Com a oficialização do Corpo de Baile os alunos adiantados da Escola Municipal de
Bailados eram contratados para trabalhar nas óperas como já faziam antes, mas agora
participavam como parte integrante do elenco da companhia de dança do Corpo de Baile
Municipal. A companhia de dança passou a dar seus primeiros passos para desenvolver seu
próprio espetáculo, os bailarinos se apresentavam nas óperas e também nas apresentações das
temporadas exclusivas da companhia no Teatro Municipal. Johnny Franklin e Lia Marques
optaram em desenvolver repertório do gênero clássico.
Como explica Marilena Ansaldi na mesma entrevista a Lineu Dias (1980, p. 22) sobre
a escolha de trabalhos acadêmicos do repertório clássico para o Corpo de Baile, “o Johnny
achava que os bailarinos tinham de aprender ainda a coisa acadêmica. Ele tinha que destacar
bem o problema da técnica clássica, logicamente –, porque o pessoal era muito novo, era muito
verde”.
Johnny Franklin visualizou a possibilidade de iniciar por uma linguagem de dança, que
fazia parte do universo das pessoas que dançavam e do público que acompanhava as temporadas
do Teatro Municipal. Era preciso iniciar com repertório de balé clássico para, depois, seguir
rumo à dança moderna (DIAS, 1980, p. 22).
Em entrevista publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 3 de abril de 1969, Franklin
ainda justifica suas escolhas de repertório para a companhia: “minha função era formar um
corpo de baile e não podia entregar-me à vaidade de inventar coreografias. Precisava dar aos
bailarinos a base dos grandes clássicos do repertório” (Franklin, in: DIAS, 1980, p. 27).
No ano de 1973 havia descontentamento geral entre os bailarinos em relação à conduta
da direção de Franklin – questões de ordem burocrática, uma vez que os bailarinos tinham de
refazer o concurso para renovação bienal dos contratos. A situação conturbada pela qual o
Corpo de Baile estava passando foi publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 16 de fevereiro
de 1973, sob o título de “Agravam-se atritos no Corpo de Baile”:

O Corpo de Baile do Municipal está vivendo uma crise, em decorrência dos


desentendimentos constantes entre bailarinos e o coreógrafo João Franco de Oliveira,
conhecido artisticamente por Johnny Franklin. O clima de intranquilidade, que já vem
de algum tempo, agrava-se agora, no momento em que um decreto municipal obriga
a rescisão do contrato dos chamados Corpos Estáveis do Teatro Municipal a partir do
próximo dia 28, e prevê a abertura de concurso para o preenchimento das vagas.
(DIAS, 1980, p. 37)

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20

Sábato Magaldi15, defensor e apoiador da mudança de linguagem de dança do Corpo de


Baile Municipal, comenta em entrevista a Lineu Dias o fato de a companhia dançar repertórios
clássicos com elenco incompleto. Mas afirma, também, que uma companhia com 30 bailarinos
poderia ser muito mais criativa:

Todos esses balés ficam incompletos, não ficam na sua forma mais satisfatória. Já um
corpo de baile com 30 figuras pode se dedicar muito mais à criação do momento, e a
tentativa de renovação era exatamente no sentido de renovar coreograficamente, de
dar ao Corpo de Baile um impulso no sentido da criatividade – da criação mesmo de
uma coreografia nacional. (Magaldi, in: DIAS, 1980, p. 23)

Entre os anos de 1968 e 1973 o Corpo de Baile Municipal se apresentou em temporadas


líricas e remontagens do gênero clássico. Normalmente era acompanhado por música mecânica,
no entanto, em algumas temporadas a orquestra Sinfônica do Theatro Municipal se apresentava
com O Corpo de Baile. As montagens dos grandes balés de repertório exigiam um elenco de
pelos menos 70 pessoas, algo impossível, já que a companhia disponha de uma quantidade
muito menor de bailarinos.
Com a crise entre o diretor Johnny Franklin e os bailarinos, somada ao
descontentamento dos grupos teatrais que tinham o crítico Sábato Magaldi como centralizador
das ideias artísticas contrárias ao que a companhia vinha realizando nas temporadas do Teatro
Municipal, a situação de Franklin à frente do Corpo de Baile estava se tornando cada vez mais
difícil.
Para somar às dificuldades que Johnny Franklin enfrentava, na década de 1970, a dança
na cidade de São Paulo vivia muitas mudanças. Em 1971, o governo militar do general Médici
torturava estudantes e trabalhadores, perseguia a Igreja e os políticos do Brasil. Nesse ano
estreia o Ballet Stagium no Teatro Independência, em Santos. Originalmente sob o nome Ballet
de Câmara Stagium, ao longo de sua trajetória a companhia ganhou maturidade e identidade

15 Sábato Magaldi foi o primeiro secretario de cultura municipal de São Paulo entre 1975 e 1979, após seu

desmembramento em 1974 da antiga Secretária de Educação e Cultura de São Paulo. Informações do site da
Academia Brasileira de Letras. Disponíveis em http://www.academia.org.br/academicos/sabato-
magaldi/biografia. acesso em: 9 nov. 2018.

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21

bem brasileira nas criações coreográficas – obras assinadas por Décio Otero,16 fundador do
Stagium com Márika Gidali17 (KATZ, 1994, p. 14).
No fim da década de 1970, foi a vez da Cisne Negro Companhia de Dança, fundada em
1978 por Hulda Bittencourt18 com o nome de Cisne Negro. Seus primeiros espetáculos tinham
características de escola, mas em 1979 estreou coreografias de Victor Navarro19 e Sônia Mota20
e, ao longo dos anos, tornou-se uma das mais importantes companhias de dança do Brasil,
caracterizada como um grupo eclético na escolha de seus repertórios coreográficos. O Cisne
Negro Companhia de Dança, assim como o Ballet Stagium, nasceram com escolas de dança
que os ajudavam a cobrir os custos e pagar os salários dos bailarinos (NAVAS; DIAS, 1980, p.
94, 104).
O Cisne Negro Companhia de Dança e o Ballet Stagium nasceram com a proposta de
apresentar espetáculos de dança contemporânea. Essas companhias tinham em comum o
interesse em trazer para os palcos as questões sociais e culturais do seu tempo. No entanto,
mesmo tendo uma proposta artística de dança contemporânea, essas companhias mantinham
em seu treinamento diário a aula de balé clássico, que servia como aquecimento muscular antes
de se iniciar o processo criativo e/ou os ensaios das coreografias que faziam parte do seu
repertório.
Para completar o cenário de dança em São Paulo na década de 1970, é preciso mencionar
a abertura do Teatro da Dança, com uma sala de dança denominada Sala Galpão, espaço
inaugurado em 17 de março de 1975. Marilena Ansaldi e Lineu Dias, integrantes da Comissão

16 Décio Otero (1933): dançarino, coreógrafo e professor, estudou com Carlos Leite e ingressou no Ballet do
Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1956. Em 1971 fundou com a bailarina Marika Gidali o Ballet Stagium,
onde exerceu a função de diretor e coreógrafo (FARO; SAMPAIO, 1989, p. 293).
17 Márika Gidali (1938): dançarina natural da Hungria, estreou profissionalmente no Ballet do IV Centenário e,

em seguida, entrou para o Ballet do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Em 1971 fundou o Ballet Stagium, onde
exerceu a função de diretora e bailarina (FARO; SAMPAIO, 1989, p. 165).
18 Hulda Bittencourt (1934): bailarina e coreógrafa, fundou em 1977 a Cisne Negro Companhia de Dança, na qual

exerce até hoje a função de diretora.


19 Victor Navarro (1944): dançarino, professor, diretor e coreógrafo nascido em Barcelona, Espanha. Estudou no

Conservatório de dança da Catalunha, dançou no Ballet Gulbenkian de Lisboa, no Gran Teatro Liceu de Barcelona,
no Teatro de La Zarzuela em Madri, no Balé Real de Wallonie, no Balé da Ópera de Lille, no Balé Real de Flandres,
na Cisne Negro Companhia de Dança e no Balé da Cidade de São Paulo. Iniciou sua carreira como coreógrafo na
Bélgica e em 1973 transferiu-se para o Brasil, onde coreografou para o Balé da Cidade, a Cisne Negro Companhia
de Dança, o Ballet do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o Ballet do Teatro Castro Alves (Salvador, BA) e para
seu próprio grupo (FARO; SAMPAIO, 1989, p. 279).
20 Sônia Mota (1948): bailarina, professora e diretora nascida em São Paulo. Formada em dança pela Escola de

Bailados do Teatro Municipal de São Paulo, foi uma das figuras mais atuantes da dança paulista na década de
1970. Dançou no Balé Real de Flandres e no Balé da Cidade de São Paulo. Desenvolveu ao longo do tempo um
método de dança, chamada “Arte da Presença”. Coreografou para o Balé da Cidade de São Paulo, o Grupo Primeiro
Ato e o Palácio das Artes (Belo Horizonte, MG). Dirigiu a Companhia de Dança de Minas Gerais de 2010 a 2014.
Desde 1989 vive na Alemanha, retornando ao Brasil anualmente para ministrar seu trabalho de dança intitulado
por ela de Arte da Presença.

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22

de Dança da Secretaria de Estado da Cultura, elaboraram um plano permanente de atividades,


incluindo aulas, ciclo de palestras e mostras de vídeos (GERALDI, 2015, p. 104).
O Teatro da Dança foi um importante local dessa arte para a cidade e celeiro de vários
professores e criadores para a dança no Brasil e do mundo. Muitos bailarinos e professores que
passaram por lá contribuíram com sua arte para o Corpo de Baile Municipal, e muitos se
deslocaram para outros países.
O Brasil da década de 1970 viveu um momento de forte pressão e endurecimento
político. O Ato Institucional no 5 (AI-5), “lei de exceção” vigente desde dezembro de 1968,
dificultava as relações culturais e políticas, proibindo a apresentação de manifestações artísticas
diferentes das impostas pelo regime militar. Nesse cenário de restrição à expressão, muitos
artistas – principalmente do teatro – começaram a organizar protestos contra o regime ditatorial
em suas produções (GERALDI, 2015, p.100). Grupos de teatro de vanguarda se dividiram em
dois grupos, definindo claramente suas propostas políticas e artísticas. A pesquisadora
brasileira Silvia Geraldi cita a historiadora Silvia Fernandes ao comentar as duas maneiras de
manifestação dos grupos da época:

A primeira é definida pelo teor político em suas propostas e pela intenção de


desenvolver uma linguagem mais popular, capaz de atingir os segmentos sociais
menos favorecidos; a segunda, preocupada com a pesquisa de linguagem e com o
teatro como forma de manifestação artística e de autoexpressão, desvinculada da
tarefa política que movia o teatro engajado. (Silvia Fernandes, apud GERALDI, 2015,
p. 101)

Geraldi (2015, p. 101) afirma, ainda, que a dança vivenciava um pensamento fixado nos
padrões estéticos do passado, sem abertura para ideias modernas em arte – ausente
politicamente, ao contrário dos grupos de teatro. A bailarina Marilena Ansaldi (1994) compara
a atuação política da classe teatral com a das outras artes na busca por uma abertura
democrática:

A dança parecia uma coisa à parte, isolada, indiferente ao drama do país. Eu


constatava que os atores se expressavam muito bem no momento em que a expressão
era tão importante; via que tinham pontos de vista definidos sobre a relação arte e
política; testemunhava como viviam, de uma maneira intensa, comprometida,
arriscando-se muito e produzindo muito. Do outro lado, em uma espécie de limbo,
estavam meus companheiros de dança, apáticos ou francamente reacionários. Foi essa
comparação que me fez procurar um caminho diferente, um caminho que me
permitisse enxergar na dança a mesma expressividade que eu via no teatro.
(ANSALDI, 1994, p. 141)

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23

Nesse momento a dança oficial da cidade está diante de uma conjuntura política adversa
e do descontentamento da classe teatral, que anseia por abertura artística. Johnny Franklin
começa a ser muito criticado pelos bailarinos, por estarem dançando pouco em comparação
com o ano anterior, como relata Lia Marques em entrevista a Lineu Dias (1980, p. 36). Franklin
era acusado de ser parcial nas decisões, privilegiando bailarinos dos quais gostava e
perseguindo outros.
Em nota publicada no dia 16 de fevereiro de 1973 no jornal O Estado de S. Paulo sob o
título “Agravam-se atritos no Corpo de Baile”, Lineu Dias (1980, p. 37) descreve a situação em
que se encontravam os ânimos dos bailarinos:

O corpo de Baile está vivendo momento de uma crise, em decorrência dos


desentendimentos constantes entre bailarinos e o coreógrafo Johnny Franklin.
No ano passado, Johnny Franklin suspendeu cinco integrantes do Corpo de Baile, por
atos de indisciplina. A punição foi considerada injusta, e os 34 bailarinos (19 moças
e 15 rapazes) levaram o incidente aos jornais. O coreógrafo foi acusado de
“desatualizado, incompetente e vingativo”. Os bailarinos observaram que em anos
anteriores Johnny Franklin promoveu 150 apresentações numa mesma temporada, e
que em 1972 não fez mais de sete espetáculos. (DIAS, 1980, p. 37)

Franklin justificava-se apontando a situação ruim e a dificuldade de fazer mais


temporadas na cidade: havia falta de apoio político e financeiro para fazer cenários e convidar
bailarinos solistas; faltava equipe para as apresentações, às vezes ele mesmo tinha de puxar as
cortinas ao fim do espetáculo (DIAS, 1980, p. 36).
José Luiz Paes Nunes21 estava incomodado com a pouca visibilidade da companhia no
meio artístico, em razão das constantes crises internas. Em entrevista concedida a Lineu Dias
(1980, p. 46), Marilena Ansaldi afirma que Nunes gostaria de mudar tudo, transformar o Corpo
de Baile em uma companhia moderna, mais atual, e que a convidara para dirigi-lo em busca de
novos rumos. Era necessária uma linguagem mais moderna, que dialogasse com a
contemporaneidade. Não se sentindo com vocação para liderança no comando de uma
companhia de dança, Ansaldi indicou Antônio Carlos Cardoso para o posto de diretor artístico
e coreógrafo do Corpo de Baile Municipal.

21 José Luiz Paes Nunes teve uma breve gestão como diretor do extinto Departamento de Cultura sob o comando

do secretário de Educação e Cultura Paulo Nathanael Pereira de Souza, no governo do prefeito Miguel Colasuonno
(DIAS, 1980, p. 41).

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24

1.3 Corpo de Baile Municipal dança: dança contemporânea

Antônio Carlos Cardoso trabalhava até 1974 no Balé Real de Flandres, na Bélgica, e
trouxe na bagagem um novo olhar artístico para o Corpo de Baile Municipal. A primeira
mudança consistiu em impedir que a companhia dançasse nas óperas; em seguida veio a
modificação da linguagem de dança, substituindo totalmente o repertório de balé clássico por
criações contemporâneas que refletissem as necessidades artísticas daquele momento.
Cardoso teve apoio, principalmente, do movimento organizado pelo meio teatral,
liderado pelo crítico Sábato Magaldi, que depois veio a ser o primeiro secretário municipal de
Cultura de São Paulo – após o desmembramento, em 1974, da antiga Secretaria de Educação e
Cultura. O principal intuito desse grupo teatral era a renovação do Corpo de Baile Municipal.
Com a entrada de Cardoso, logo os empresários de ópera souberam que não poderiam mais
contar com os bailarinos do Corpo de Baile. A companhia não dançaria mais os balés de
repertório, partindo para coreografias contemporâneas, de criações originais (NAVAS; DIAS,
1992, p. 111).
Quando Carlos Cardoso assumiu o cargo de diretor artístico, em 10 de junho de 1974,
sua primeira medida foi conseguir contrato para convidar o coreógrafo Victor Navarro, de
origem espanhola, com quem havia trabalhado no Balé Real de Flandres, e a bailarina Iracity
Cardoso,22 que também assumiu a função de ensaiadora. Marilena Ansaldi, que havia sugerido
o nome de Antônio Carlos Cardoso, ficou como coreógrafa, formando, como afirma ele em
entrevista concedida a Lineu Dias (1980, p. 49), “um núcleo, uma equipe de trabalho”, de modo
que “começamos, e fizemos o primeiro espetáculo, que estreou no fim do ano...”.
Em sua primeira temporada a companhia de dança, dançou coreografias de Cardoso,
Navarro e Ansaldi. Segundo Cardoso (DIAS, 1980, p. 49), o espetáculo foi feito muito às
pressas. Poderia ter havido mais calma, poderia ter estreado no ano seguinte, mas o coreógrafo
reconhece que a iniciativa foi necessária.
A estreia do Corpo de Baile Municipal sob a direção de Antônio Carlos Cardoso foi
elogiada pelo crítico Casemiro de Mendonça, que enalteceu a escolha do repertório, os cuidados
de produção, a estrutura do espetáculo e a atuação dos bailarinos, principalmente Ivonice Satie,

22 Iracity Cardoso (1945): formada pela Escola Municipal de Bailados, atuou no Balé Stagium e no Balé da Cidade
como bailarina e assistente de coreografia. De 1980 a 1988 foi bailarina e assistente de direção do Ballet du Grand
Théâtre de Genève, Suíça, em seguida tornou-se uma das diretoras da companhia, até 1993. Foi diretora do Balé
da Fundação Gulbenkian em Lisboa, Portugal, de 1996 a 2003, assessora de dança da Prefeitura de São Paulo em
2006 e 2007, diretora da São Paulo Companhia de Dança (Companhia Oficial do Governo do Estado de São Paulo)
de 2008 a 2012, e diretora artística do Balé da Cidade de São Paulo, de 2013 a 2016. Informações disponíveis em:
http://centroculturalvirtual.com.br/conteudo/iracity-cardoso-entrevista; acesso em: 25 dez. 2018.

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25

Carlos Demitre e Iracity Cardoso. Lineu Dias (1980, p. 49, 51), cita matéria de Casemiro de
Mendonça publicada na Folha da Tarde em 11 de novembro de 1974:

Foi acertada a escolha de Vivaldi para abrir o programa do Corpo de Baile. Com um
trecho das Quatro estações – justamente o Inverno – Victor Navarro (...) criou uma
coreografia limpa, sem muitos enfeites e de muita vitalidade.... Na noite de estreia um
bom trabalho de Ivonice Satie e Carlos Demitre...
Medéia é um trabalho planejado há longo tempo por Marilena Ansaldi, que só
conseguiu coreografá-lo com a música de Ummagunma (um disco do Pink Floyd de
68/69), dentro de uma visão muito pessoal de Medéia... A linha do balé segue
basicamente os momentos principais da tragédia de Eurípedes, numa síntese bem
solucionada. E Iracity Cardoso (na estreia) corresponde a esta visão e realmente é a
força e presença feminina, mais do que a vingadora ou a sacerdotisa que perdeu as
suas raízes.
Para terminar, Hermeto Paschoal. A partir de uma concepção básica de Antônio
Carlos, Hermeto criou o tema de Paraíso?, onde, através de Adão, Eva, o Anjo e a
Serpente, Antônio Carlos desenvolve mais longamente o seu trabalho de coreógrafo.
Paraíso?, como tema, pode colocar em questão a primeira situação humana. A
descoberta do espaço, do próprio movimento, do som e dos sentidos.
Pelos cuidados de produção e estrutura do espetáculo, desde a composição inédita de
Hermeto Paschoal, a realização de Medeia, até mesmo um catálogo de boa qualidade
visual, o Corpo de Baile do Teatro Municipal precisava ser visto. Há momentos em
que há uma certa falta de interiorização dos movimentos, quando ainda não existe um
equilíbrio interno que o conjunto de bailarinos passe para o público. Mas isto é
largamente compensado pela sensação de entusiasmo dos bailarinos que finalmente
podem dançar com temas revigorados, em coreografias inteligentes e com o apoio que
lhes falta. E é isso que eles precisam. Dançar mais...

Nos anos como diretor artístico, Antônio Carlos Cardoso construía identidade ao grupo
do Corpo de Baile, pois queria ao mesmo tempo estabelecer a característica de uma companhia
paulista e brasileira, mas também a de um grupo artístico contemporâneo. Convidou Oscar
Araiz, de origem argentina, que veio ao Brasil pela primeira vez a convite de Klauss Vianna,
para se aliar ao que viria a ser o grupo seleto dos três, “A.N.A.”, que são as letras iniciais dos
sobrenomes de Oscar Araiz, Victor Navarro e Luís Arrieta, esses três coreógrafos produziram
coreografias nas décadas de 1970, 1980 e 1990. Os primeiros trabalhos coreográficos de Araiz
foram Mulheres e Canções (1976), respectivamente com músicas de Grace Slick e Frederic
Chopin. Luis Arrieta teve sua estreia com a criação Camila, como coreógrafo e ainda como
bailarino no Corpo de Baile Municipal, no Workshop da 1ª Mostra de Coreografia,23 implantado
durante a direção de Antônio Carlos Cardoso.

23 A mostra coreográfica foi uma iniciativa para novos talentos criativos, desenvolvida no interior do Corpo de
Baile Municipal, com o objetivo de estimular os bailarinos da companhia a iniciarem no campo criativo,
trabalhando com profissionais, sem o intuito de que as obras coreográficas fossem incorporadas à companhia
(GERALDI, 2015, p. 162).

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26

Antônio Carlos Cardoso permaneceu como diretor artístico da companhia até 1980,
exceto no ano de 1978, quando se afastou por motivos pessoais e Iracity Cardoso e Victor
Navarro ficaram à frente da direção artística. Após os 6 anos como diretor artístico Antônio
Carlos deixou a companhia por desentendimento com o então secretário de cultura do município
de São Paulo, Mário Chamie (COURI, 2003, p. 20)

1.4 Balé da Cidade de São Paulo: entre os anos de 1981 e 1992

Para a sucessão de Antônio Carlos Cardoso, em 1981, foi convidado para a direção
artística o coreógrafo Luis Arrieta.24 Sua primeira iniciativa foi a mudança do nome de Corpo
de Baile Municipal para Balé da Cidade de São Paulo. Segundo Couri (2003, p. 21) esse nome
definia melhor o que representava a companhia para a cidade de São Paulo, já que não era mais
uma companhia de Corpo de Baile, de repertório clássico, e não tinha mais a obrigatoriedade
de ilustrar as temporadas líricas. Arrieta permaneceu no cargo somente um ano.
Em 1982, o secretário de cultura Mário Chamie, convidou Klauss Vianna (1928-1992)
para a direção do Balé da Cidade. Vianna aceitou o desafio, e nessa época o repertório da
companhia já estava totalmente modificado. Em seus trabalhos coreográficos já não havia mais
coreografias de gênero de balé clássico, mas sim de dança contemporânea. Segundo Couri
(2003, p. 23), para Vianna “o Balé da Cidade é uma companhia de dança contemporânea, mas
com uma mentalidade de uma companhia clássica”.
A companhia mudou sua forma de dançar, mas ainda mantinha o mesmo pensamento
em relação ao trabalho de preparação corporal desde sua fundação como companhia de danças
clássicas, mantendo somente como preparação corporal diária a aula de balé clássico.
Antônio Carlos Cardoso comenta (em Dias, 1980) sobre o processo de preparação
corporal quando foi convidado para dirigir o Corpo de Baile Municipal:

Desde a renovação do Corpo de Baile, que teve a mudança de linguagem para dança
moderna, o trabalho de preparação corporal ainda era totalmente focado em aulas de
balé clássico. Em 74, quando eu cheguei, eu mesmo dei um tipo de... não foi
propriamente dança moderna, mas eu dei sequências de movimentos contemporâneos,
porque aulas de dança moderna [quem] deu, naquele período, [foi] a Ruth Rachou.
Não era propriamente uma aula: depois da aula de balé clássico, ou enfim, a aula [era]
de balé clássico, mas até a metade dela, e depois eu dava uma série de movimentos
utilizados em qualquer tipo de coreografia. (DIAS, 1980, p. 61)

24Luis Arrieta (1951): argentino que chegou ao Brasil ainda muito jovem para dançar no Ballet Stagium, teve sua
estreia como coreógrafo ainda como bailarino do Corpo de Baile Municipal, no Workshop da 1ª Mostra de
Coreografia (iniciativa para novos talentos criativos) com a criação Camila, que passou a fazer parte do repertório
da companhia (DIAS, 1980; NAVAS; DIAS, 1992; COURI, 2003).

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27

Cardoso ainda afirma que era muito difícil alinhar o tempo didático com o tempo de
desenvolver coreografia. Como não havia tempo hábil para preparação e formação dos
bailarinos do Balé da Cidade com aula de balé clássico, seguida de aula de dança moderna,
mantinha-se apenas aula de balé clássico, e em relação ao entendimento da dança moderna os
bailarinos aprenderiam diretamente no processo coreográfico, num trabalho prático (DIAS,
1980, p. 61).
Vianna (2005, p.62) afirma que, ao assumir o Balé da Cidade, percebeu que faltava um
trabalho de expressividade não focado somente numa forma definida pelos coreógrafos, mas
um treinamento que buscasse a potência interior de cada indivíduo, com movimentos de dança
mais expressivos, por isso convidou Joana Lopes para ministrar aulas de teatro, de
interpretação.
Com o intuito de trazer novos ares e modificar a mentalidade dos bailarinos, Klauss
chamou José Carlos Violla, conhecido artisticamente como J. C. Violla,25 para uma nova
criação na companhia, denominada Valsa para 20 Veias (1982). A ideia era propor novos tipos
de movimento que os bailarinos não estavam habituados a fazer nos seus repertórios, buscando
assim uma dança mais intuitiva, que não estivesse focada somente na técnica de balé clássico
(VIANNA, 2015, p. 62).
A entrada de Klauss Vianna representou muitas mudanças na conduta e no trabalho
artístico realizado pela companhia, procurou incentivar novos criadores para desenvolverem
novas criações para o Balé da Cidade de São Paulo.
A pesquisadora Cássia Navas (1992, p. 115) descreve o cenário criativo dessa época em
relação aos coreógrafos brasileiros, citando alguns fatores que podem ter contribuído para a
ausência de criadores na companhia:

Dois fatores concorreram para que houvesse poucas tentativas de realização por parte
de coreógrafos brasileiros: primeiro, nossa falta de tradição em dança, pois somente
num meio onde se faça muita dança, de todos os tipos e por muito tempo, é que podem

25 J. C. Violla é um artista multifacetado. Nascido em Lins (SP), é bailarino, professor de dança, coreógrafo e ator.
Iniciou os estudos em dança com a mestra húngara Maria Duschenes (1922-2014), discípula de Rudolf Laban
(1879-1958) e Kurt Joos (1901-2009). No início da década de 1970, convidado por Duschenes, teve sua primeira
experiência como professor de dança ao ministrar a parte prática de um curso de formação na Teoria do Movimento
de Laban. Em 1975 Violla parte para Nova York, onde estuda nas renomadas escolas de Alwin Nikolais (1910-
1939), Alvin Ailey (1931-1989) e Martha Graham (1894-1991). No mesmo ano atuou como preparador corporal
do show Falso Brilhante, de Elis Regina, onde conheceu Naum Alves de Souza, com quem desenvolveu grande
parceria. Participou do elenco do primeiro musical produzido no Brasil, Chorus Line, de James Kirlwood (1924-
1989) e Nicholas Dante (1941-1991). Desde 2005 é jurado técnico do quadro “Dança dos Famosos”, do programa
de TV Domingão do Faustão. Informações disponíveis em: http://www.spcd.com.br/figuras_da_danca.php;
acesso em: 9 abr. 2018.

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28

surgir talentos realmente organizados e capazes de produzir alguma coisa; segundo,


pela relutância geral dos brasileiros em abrir oportunidades para... os próprios
brasileiros.

Segundo Couri (2003, p. 23) sobre a direção artística de Klauss Vianna, novas
oportunidades foram geradas para o Balé da Cidade de São Paulo: “em um ano, Klauss trouxe
sete coreógrafos diferentes”. Entre os trabalhos realizados sob a sua direção, destaque para
Dama das Camélias (1993), de José Possi Neto,26 com a colaboração da equipe de bailarinos.
Couri (2003, p. 24) afirma que o espetáculo foi impactante, pois os bailarinos usaram a plateia,
os camarotes e a rua no entorno do Teatro Municipal de São Paulo.
Segundo Vianna (2003, p. 64), a coreografia de Bolero (1982) de Maurice Ravel, com
concepção de Emilie Chamie, coreografia de Lia Robatto e colaboração de Sônia Mota foi
desenvolvida com a colaboração dos bailarinos, ou seja, estes propunham os movimentos e Lia
Robatto organizava, selecionando o que em sua opinião “funcionava”, e fazia as ligações dos
movimentos – pela primeira vez o grupo podia improvisar.
Mara Borba desenvolveu a coreografia Certas Mulheres (1982). Vianna (2005, p. 64)
relata a novidade que essa coreografia trouxe para o público do Teatro, apresentando a nudez
dos seios: “foi a primeira vez que uma bailarina dançou com os seios nus no Teatro Municipal
de São Paulo”.
Klauss Vianna queria reestruturar a companhia, e para isso convidou artistas que
estavam fazendo dança fora do Balé da Cidade, principalmente artistas que estavam trabalhando
no Teatro da Dança, espaço criado em 1974 na sala Galpão no Teatro Ruth Escobar. Muitos
professores experimentavam sua pesquisa. Considerado avançado e muitas vezes
incompreensível para a época, fechou suas portas em 1981 (GERALDI, 2015, p. 93).
Como ideia inicial, Vianna abriu oportunidades para novos artistas criadores, cedendo
espaço e material humano para que mostrassem suas potencialidades criativas. Ao mesmo
tempo que dirigia a companhia, Klauss Vianna criou em 1982 o que se denominou Grupo
Experimental. Para integrar esse grupo convidou bailarinos que estavam trabalhando como
professores de dança e coreografando na cena paulistana, nomes como Sônia Mota, Denilto
Gomes, Susana Yamauchi, Mara Borba, Ismael Ivo, João Mauricio e Mazé Crescente.

26 José Possi Neto – Nascido em São Paulo (1947), formado em crítica e dramaturgia na Escola de Comunicação
e Artes da Universidade de São Paulo (ECA- USP) em 1970. Diretor da Escola de Teatro da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) entre 1971 e 1972. Diretor ligado ao teatro dança e musical. Diretor do Balé da Cidade
de São Paulo entre 1997 e 1999. Informações do site Biblioteca Itaú Cultural, disponíveis em:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa109215/jose-possi-neto; acesso em: 9 nov. 2018.

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29

Vianna (2005, p. 64) descreve esse momento na companhia: “foi o primeiro gênero na
história dos grupos oficiais no país”. A partir do Grupo Experimental surgiram algumas
“cabeças criativas”, resultando nas coreografias Karadá, de Susana Yamauchi e João Mauricio
(1993), e Absurdos, de Susana Yamauchi (1984).
Com a mudança de gestão no governo, em 1983 o crítico Fábio Magalhães torna-se o
responsável pelo Balé do Teatro Municipal. Magalhães não entende o projeto artístico que a
companhia vinha realizando até o momento, declara que gostaria de mudanças na linha dos
trabalhos, pois eram experimentais demais, sugerindo até que o Balé da Cidade de São Paulo
deveria dançar como o Balé do Municipal do Rio de Janeiro.27 Em seu livro A Dança, Vianna
(2005, p. 65) declara que seria um retrocesso, que ele nem saberia fazer isso e, além do mais,
não era o que queria fazer artisticamente com a companhia. Decidiu não seguir o caminho
imposto por Fábio Magalhães, pediu sua demissão do cargo de diretor artístico e decidiu
publicar um comunicado ao público:

Estamos em momento de crise. Mas o que é uma crise e o que isso tem a ver com o
projeto que estamos propondo? Somos bailarinos e, portanto, nada melhor para
expressar nosso ponto de vista do que o movimento.
Em todo processo de mudança, de evolução, existe um momento crítico e instável,
como no caminhar: no momento em que estamos dando um passo à frente e nos
encontramos com um pé no chão e outro no ar corremos o risco de desequilíbrio e da
queda.
É a crise – mas também somente através desse risco que podemos alcançar nosso
objetivo.
E qual é a transformação que está ocorrendo? Mudanças políticas, democracia,
abertura, integração. A nós, artistas, cabe captar esse momento histórico e expressá-
lo dentro de nossa linguagem, com isso contribuindo na expressão desses ideais. O
Balé da Cidade de São Paulo não foge à regra, seu trabalho foi sempre precursor de
novas tendências. São Paulo é o polo cultural do país, e esta polaridade vem
justamente do fato de ser o estado que, por razões políticas e econômicas, mais se
transforma e, portanto, gera e propõe o novo. A companhia oficial de dança tem o
compromisso de catalisar e representar o espírito dessa cidade. O momento é de
democracia, de poder optar e opinar. O momento é de abertura, de abrir nossas portas
para a comunidade que ainda não foram utilizadas, para os bairros, as escolas, as
praças, para o interior. O momento é de abertura de novas ideias e linguagens.
(VIANNA, 2005, p. 67)

Com a saída de Vianna, em 1983, a bailarina Julia Ziviani, de 27 anos, que atuava desde
1980 como intérprete no Balé da Cidade de São Paulo, passou a ser a sua diretora artística.
Ziviani pretendia dar continuidade ao pensamento que Klauss Vianna trouxe nos anos em que

27 Balé do Teatro Municipal do Rio de Janeiro (BTMRJ): primeira companhia profissional do país, fundada

oficialmente em 1936 tendo por base a escola aberta por Maria Olenewa, passou a ser a escola oficial do Teatro
Municipal do Rio de Janeiro (FARO; SAMPAIO, p. 31).

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30

atuou como diretor artístico, como afirma em carta que enviou a ele: “aprendi com você a
procurar harmonia na técnica para deixar fluir o de dentro” (COURI, 2003, p. 24).
Mesmo com as dificuldades administrativas e sem investimento financeiro por parte do
secretário de Cultura Gianfrancesco Guarnieri, em 2 meses Julia Ziviani em conjunto com os
bailarinos e assistentes de ensaio conseguiram estrear duas obras. Com as coreografias
Absurdos ou Doze Trabalhos de Flérsules (1984), de Susana Yamauchi, balé composto de 12
quadros bem-humorados de fantasia livre sobre o urbano, também foi apresentada a coreografia
Com – Passos (1984), de Mara Borba, um espetáculo infantil feito pela primeira vez no Balé
da Cidade. Esse trabalho foi concebido em meio à crise, sem investimento financeiro, e os
figurinos foram reutilizados de outras montagens (COURI, 2003, p. 25).
Ainda no ano de 1985, nesse vai e vem de diretores, Antônio Carlos Cardoso volta para
a direção do Balé da Cidade. Ao contrário das conquistas obtidas entre 1974 e 1980, quando
ele esteve como diretor artístico, nesta retomada de gestão consegue desenvolver somente uma
produção com criação coreográfica de Luis Arrieta, Sagração da Primavera, e mais três
remontagens de Victor Navarro.
Couri (2003, p. 21) afirma, sobre a passagem rápida de Antônio Carlos Cardoso, que
este decidiu abandonar a direção artística do Balé da Cidade em razão da vitória de Jânio
Quadros nas eleições para prefeito na cidade de São Paulo.
Após a saída de Antônio Carlos, a companhia fica sem diretor por alguns meses, e no
ano de 1986 o Balé da Cidade inicia sua temporada ainda sem comando artístico. A crítica
Helena Katz descreve seu descontentamento com o poder público e a falta de interesse dos
governos em manter um diretor artístico por mais tempo, impedindo assim que a companhia
pudesse ganhar identidade artística. A matéria sobre o início de temporada do Balé da Cidade
foi publicada no dia 14 de março de 1986 na Folha de S. Paulo. Katz critica o descuido por
parte da Secretaria de Cultura em relação ao Balé da Cidade e recrimina a falta de projeto,
definindo que o problema não está em dançar velhos balés, mas espera que não seja somente
essa a proposta da Companhia.28
Nesse cenário de alterações constantes de comando no Balé da Cidade, Luis Arrieta
retorna para conduzir a companhia durante a gestão Jânio Quadros na Prefeitura (1985 a 1988).
Como diretor artístico e coreógrafo, Arrieta manteve no repertório da companhia apenas obras
de sua autoria, remontando Presenças, desenvolvida para o Balé da Cidade em 1979. Antes de
deixar a direção artística, Arrieta desenvolve a obra Mar de Homens. Com essa criação a

28Informações disponíveis em: http://www.helenakatz.pro.br/midia/helenakatz81193405733.jpg; acesso em: 9


abr. 2018.

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31

companhia ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) de melhor


coreografia, e de melhor bailarino para Irineu Marcovecchi.
Mar de Homens foi elogiada pela crítica Helena Katz em matéria publicada no jornal O
Estado de S. Paulo em 2 de setembro de 1988, na qual destaca o coreógrafo por tratar pela
primeira vez de um tema relacionado à natureza – “um trabalho sutil que nos leva para as
profundezas do mar, mesmo quem não o penetra é banhado por esse mar”.29
Ao longo dos anos, Luis Arrieta demonstrou grande capacidade de criação em obras
bastante significativas para o repertório do Balé da Cidade e outras companhias brasileiras e
internacionais. No entanto, Couri (2003, p. 22) afirma que seu valor não estava no trabalho
burocrático da direção, mas em sua qualidade como artista criador.
Assim como em sua experiência inicial de 1981, quando foi substituído por Klauss
Vianna, Luis Arrieta permaneceu na companhia de 1986 a 1988 sob dificuldades
administrativas, como afirma Cássia Navas: “não havia interesse do poder público para com a
arte da dança, e as criações ou eram remontagens ou os mesmos criadores de sempre, a
companhia oficial da cidade estava numa espécie de banho-maria” (NAVAS; DIAS, 1992, p.
117).
No final da década de 1980, Rui Fontana Lopez entra para a direção do Balé da Cidade
de São Paulo, na prefeitura a prefeita Luiza Erundina, a secretária da Cultura Marilena Chauí e
Emilio Kalil, diretor do Teatro Municipal de São Paulo.
Fontana Lopez inicialmente convida para remontar ou desenvolver criações, os três
coreógrafos do grupo seleto “A.N.A.” (Arrieta, Navarro e Araiz). Convida, também,
coreógrafos brasileiros para remontarem coreografias desenvolvidas em gestões anteriores. A
coreógrafa Lia Robatto remonta Bolero (1982), obra desenvolvida na gestão do diretor artístico
Klauss Vianna. Os coreógrafos Susana Yamauchi e João Mauricio remontam a coreografia
Karadá (1983), e os coreógrafos Sérgio Funari e Wilson Aguiar remontam a coreografia
Mikrokosmos (1985), ambos trabalhos desenvolvidos e incorporados ao repertório do Balé da
Cidade na gestão da diretora artística Julia Ziviani.
Ainda durante a gestão de Rui Fontana Lopez o coreógrafo Rodrigo Pederneiras30 e os
bailarinos da companhia Raymundo Costa e Sérgio Funari foram convidados para
desenvolverem novas criações para o Balé da Cidade.

29 Informações disponíveis em: http://www.helenakatz.pro.br/midia/helenakatz11139401783.jpg; acesso em: 9


abr. 2018.
30 Rodrigo Pederneiras (1955): dançarino e coreógrafo mineiro, estudou dança no Rio de Janeiro e em Belo

Horizonte. Membro fundador do Grupo Corpo de Belo Horizonte, atualmente é diretor e coreógrafo residente
dessa companhia (FARO; SAMPAIO, 1989, p. 301).

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32

Em 28 de agosto de 1989, estando Lopez há alguns meses à frente do Balé da Cidade,


a crítica de dança Helena Katz escreve no Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo enaltecendo
o elenco e as obras escolhidas para a temporada da companhia no Teatro Municipal:

Só mesmo uma equipe de primeira grandeza conseguiria, nos devolver a esperança de


voltarmos a ter orgulho de nossa companhia oficial de dança. Passados três meses de
uma estreia lamentável, o Balé da Cidade de São Paulo volta à cena com energia
renovada. Até parece outro elenco e não aquele que se apresentou no Festival
Internacional de Dança, em maio. Rui Fontana Lopez na direção, Hugo Travers na
assistência e mais Sérgio Funari e Suzana Mafra como ensaiadores formam um
quarteto que sabe o que faz.
A recuperação de oito ótimas obras de seu rico repertório (as seis que serão mostradas
nesta temporada e mais Mandala, de Luis Arrieta e Bolero, de Lia Robatto e Emilie
Chamie, reestreadas em maio) recompôs o Balé da Cidade. Ei-lo novamente com a
garra que o distingue. (KATZ, 1989)

Já próximo do final de sua gestão, Fontana Lopes traça uma parceria com o Instituto
Goethe e convida o diretor-coreógrafo alemão Johann Kresnik para desenvolver um espetáculo
de Teatro-Dança para a companhia.
Segundo Navas e Dias (1992, p. 117), nesse momento a companhia tem a possibilidade
de experimentar um trabalho coreográfico com mais vivacidade, a partir do trabalho
coreográfico de Johann Kresnik, “um tônus vital que não estava fazendo parte do tom normal
da companhia”, um espetáculo que atinge o espectador, comparável aos da época em que
Antônio Carlos Cardoso desenvolvia suas coreografias.
Lopez terminou sua gestão com vários prêmios, entre eles o APCA 1989 (revelação
como bailarina, Luciana Porta; melhor bailarina, Mônica Mion; melhor bailarino, José Maria
Alves), APCA 1990 (melhor coreografia, Variação sobre um tema de Haydn, de Rodrigo
Pederneiras; melhor bailarina, Lumena Macedo), e APCA 1992 (melhor bailarina, Ellen
Addário).

1.5 Balé da Cidade de São Paulo: entre os anos de 1997 e 2018

Entre os anos de 1993 e 1996 esteve na direção do Balé da Cidade a artista Ivonice Satie
e foi nesse momento que ingressei como bailarino da companhia. Neste item da dissertação não
será apresentada a gestão de Ivonice Satie, pois este período será aprofundado ao longo do
Capítulo 2, quando será desenvolvida uma narrativa empírica, baseada em minha experiência
como intérprete/criador, que vivenciou na prática as produções realizadas no Balé da Cidade
de São Paulo nestes quatro anos da direção de Satie.

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33

Após a gestão artística de Ivonice Satie em 1997, foi convidado o diretor teatral José
Possi Neto para substituí-la. Possi trouxe para a companhia um pouco de sua experiência
adquirida no teatro e nas produções de dança das quais participou como diretor em performance,
destacando-se os trabalhos em parceria com a bailarina Marilena Ansaldi em três espetáculos,
incluindo o premiadíssimo Um Sopro de Vida (1979). Em 1983 Possi havia desenvolvido
também A Dama da Camélias: um delírio romântico, para o Balé da Cidade (COURI, 2003, p.
26). Como diretor, José Possi Neto deu continuidade ao planejamento artístico que Satie
começara a desenvolver nos anos anteriores, mantendo as turnês internacionais e o convite
realizado durante a gestão de Ivonice Satie para que o coreógrafo Vasco Wellenkamp
desenvolvesse um novo trabalho coreográfico – a obra Como Num Jardim.
José Possi procurou incentivar as criações coletivas com os bailarinos da companhia,
apostando em novos talentos criadores em dança contemporânea. Em seu primeiro trabalho de
criação atuando como um organizador de ideias, propôs aos bailarinos desenvolverem
composições de movimento, e a partir desse processo criativo nomeou alguns bailarinos que
demostraram interesse em desenvolver partituras de movimento e organizou uma equipe
coreográfica (da qual participei na equipe de criadores), para criar a coreografia Enthousiasmós.
Nesse momento eu pude atuar pela primeira vez em uma produção na companhia como
intérprete e criador ao mesmo tempo, participando das reuniões de equipe criativa e sugerindo
caminhos de movimento coreográfico para a obra.
Decidido a investir em novos coreógrafos brasileiros e, principalmente, valorizar a
criação coletiva com os bailarinos, Possi convidou nove bailarinos da companhia – Ana
Teixeira, Robson Lourenço, Lilia Shaw, Raimundo Costa, Jorge Garcia, Roberto Silva, Willy
Helm, Claudia Palma e Armando Aurich – para participar como criadores em uma produção
inspirada nas pinturas de Candido Portinari, culminando no desenvolvimento da obra Baile na
Roça (1999).

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34

Figura 1: Coreografia Baile na Roça, de Jorge Garcia,


Willy Helm e Roberto Silva – foto: Silvia Machado

Durante sua gestão Possi Neto manteve o pensamento artístico de Ivonice Satie, em
relação ao treinamento corporal dos bailarinos em diferentes linguagens de dança, alternando
aulas de balé clássico e de dança contemporânea. Para o trabalho de preparação corporal em
dança moderna/contemporânea, Holly Cavrell, que havia sido convidada anteriormente por
Ivonice Satie, continuou o trabalho corporal que vinha realizando, nutrindo o diálogo do
trabalho de preparação corporal com o que a companhia estava produzindo artisticamente. José
Possi Neto ainda convidou outros professores de dança contemporânea para contribuir com sua
visão artística, entre os quais Júlia Ziviani, que fora bailarina e diretora artística nos anos de
1983 e 1984, e Sônia Mota, bailarina e coreógrafa.
Entre os coreógrafos brasileiros convidados por José Possi estão Susana Yamauchi e
João Maurício para desenvolver Plenilúnio, e a bailarina da companhia, Claudia Palma, para
remontar Quase Dois (1996), desenvolvido para a Mostra Coreográfica. O coreógrafo Sandro
Borelli foi convidado para remontar Inside (1996).

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35

Figura 2: Coreografia Plenilúnio, 1997 de Susana


Yamauchi – acervo pessoal

Durante a gestão do prefeito Celso Pitta José Possi Neto permaneceu na companhia
durante 2 anos e meio, de 1997 a 1999. No final da gestão desse prefeito e do secretário
Municipal da Cultura de São Paulo Rodolfo Konder, Ivonice retornou para ficar por mais um
ano e meio, entre 1999 e 2000. Desta vez, seu foco era realizar um sonho de José Possi Neto,
inaugurar a Cia. 2, uma companhia de dança formada por bailarinos mais maduros do Balé da
Cidade, inspirada no molde artístico do Nederlands Dans Theater III.31
Essa companhia incorporou intérpretes-criadores vindos da companhia principal para
desenvolverem trabalhos coreográficos mais experimentais, que aqueles realizados na
companhia, de modo que esses bailarinos tivessem a possibilidade de estender seu tempo de
vida na arte e, além de atuarem como intérpretes, também terem a possibilidade de desenvolver
trabalhos criativos coletivos e individuais. Como afirma Couri, “a verdade é que os corpos,
desejos e a ambição da dança são diferentes entre grupos etários, e aos 45 anos os bailarinos

31
Nederlands Dans Theater III, da Holanda, companhia de dança, que iniciou suas atividades em 1991 encerrando
em 2006. Para o diretor e coreógrafo Jiri Kylián, o grupo foi criado para dançarinos experientes treinados na
técnica clássica, com idade acima de 40 anos. O objetivo dessa companhia era propor desafios artísticos apropriado
para seus corpos em transformação, ampliando, assim, suas carreiras (TEIXEIRA, 2011, p. 87).

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36

são praticamente expulsos da dança no mundo; a Cia. 2 possibilita aos bailarinos da companhia
prolongar o tempo de palco” (COURI, 2003, p. 28).
Nesse retorno a direção artística, Ivonice Satie manteve-se simultaneamente na direção
das duas companhias, o Balé da Cidade de São Paulo e Cia 2. Diferentemente de quando esteve
entre 1993 e 1996 da sua gestão anterior no Balé da Cidade, que tinha como meta convidar
coreógrafos internacionais, Satie valorizou o investimento na criação nacional, convidando
coreógrafos brasileiros para novas criações.
Para a companhia principal Satie convidou Deborah Colker, que remontou Paixão.
Nesse trabalho coreográfico, desenvolvido para a Companhia de Dança Deborah Colker,32 a
coreógrafa decidiu remontar para o Balé da Cidade um quadro da obra Vulcão, do espetáculo
Mix.

O coreógrafo Henrique Rodovalho


desenvolveu In Pulso.

Figura 3: Coreografia In Pulso, de Rodrigo


Rodovalho – foto: Arnaldo Torres

32 A Companhia de Dança Deborah Colker foi fundada em 1994 por essa diretora e coreógrafa. Teve sua estreia
dividindo a noite no Teatro Municipal do Rio de Janeiro com a Momix Dance Theater, do coreógrafo Moses
Pendleton. Informações do site da Companhia de Dança Deborah Colker; disponíveis em:
http://www.ciadeborahcolker.com.br/a-companhia; acesso em: 25 dez. 2018.

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37

A coreógrafa Ana Mondini remonta Forró


for All, criado para a extinta República Cia.
de Dança.33

Figura 4: Coreografia Forró for All, de Ana Maria


Mondini – foto: Silvia Machado

Figura 5: Coreografia Forró for All, de Ana Maria


Mondini – foto: Silvia Machado

Neste seu segundo período como diretora artística, Ivonice Satie permaneceu por um
ano e meio. Com a posse de Marta Suplicy na Prefeitura de São Paulo, no início de 2001, Marco
Aurélio Garcia foi convidado para a Secretaria Municipal da Cultura, e Lucia Camargo para a
direção artística do Teatro Municipal. Com a mudança do secretario de cultura do município de
São Paulo a bailarina Mônica Mion34 foi convidada para ser a nova diretora artística do Balé da
Cidade.

33República da Dança – Fundada em 1994 por bailarinos da Cisne Negro Cia de Dança, apresentou em sua estreia
a coreografia Forró For All, assinada por Ana Maria Mondini. Informações disponíveis em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/5/12/ilustrada/8.html; acesso em: 25 dez. 2018.
34Mônica Mion (1954): bailarina solista desde 1976, exerceu o cargo de assistente de coreografia por 10 anos. Em
2001 assumiu a direção do Balé da Cidade de São Paulo, cargo em que permaneceu até 2009.

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38

Nos seus 9 anos na direção do Balé da Cidade Mônica Mion passou pelas gestões de
José Serra (2005 e 2006) e Gilberto Kassab (a partir de 2007). Na pasta da Secretaria de Cultura
desses dois prefeitos da cidade de São Paulo esteve Carlos Augusto Machado Calil.
Durante o período de Mion houve muita produção artística, com repertórios de diversos
coreógrafos brasileiros e estrangeiros. Entre os brasileiros que desenvolveram obras para o Balé
da Cidade estão Sandro Borelli (Concepção Vesânica, Lac, Adeus Deus e O Lago dos Cisnes?);
Jorge Garcia (Interlúdio, Divinéia, Desatino do Norte – Desatino do Sul e RG); Susana
Yamauchi e João Maurício (Plenilúnio); Susana Yamauchi (Coisas que nos ajudam a viver);
Fernando Martins (Sarah); Raymundo Costa (Swansong [solo]); Henrique Rodovalho (Bossa);
Mário Nascimento (Constanze e Onde Está o Norte); Luis Fernando Bongiovanni (Dicotomia),
Maurício de Oliveira (Khaos) e Alex Soares (Wii Previsto).

Figura 6: Coreografia Divinéia, de Jorge Garcia –


foto: Silvia Machado

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39

Figura 7: Coreografia Plenilúnio, de Susana


Yamauchi – foto: Silvia Machado

Figura 8: Coreografia Bossa, de Henrique


Rodovalho – foto: Silvia Machado

Dos coreógrafos estrangeiros que desenvolveram criações destacam-se o iraniano Gagik


Ismailian (Dualidade@br), o Israelense Rami Levi (Res Ipsa), o italiano Mauro Bigonzetti
(Zona Mina-da), o israelense Ohad Naharin (que remonta Perpetuum, Black Milk e Queens,
este último desenvolvido para o Ballet du Grand Théâtre de Genève), o francês Angelin
Preljocaj (Liqueurs de Chair), o israelense Itzik Galili (Frágil e A Linha Curva) e o espanhol
Cayetano Soto (Canela Fina).
Mônica Mion sempre esteve atenta às necessidades de preparação de corpo. Assim
como Ivonice Satie, Mion sabia da importância de proporcionar aos bailarinos aulas de dança,

.
40

que não estivesse focado somente na linguagem de balé clássico. Durante a gestão de Mion
foram convidados professores de dança de diferentes linguagens: além das aulas de balé
clássico, tínhamos professores de dança moderna americana nas técnicas de Martha Graham,
Humphrey/Limón e Merce Cunningham e de dança contemporânea.
Mion finalizou sua gestão com estas premiações da APCA: 2004: Iniciativa – Solo em
questão – Cia. 2 (2004); Instalação Coreográfica – Lilia Shaw e Marta Soares – Cia. 2 (2004);
Projeto: Todos os 12 – direção de Ana Teixeira e Sigrid Nora – Cia. 2 (2005); Melhor bailarino:
Dielson Pessoa (2007).

Figura 9: Coreografia Zona Mina-da, de Mario


Bigonzetti– foto: Silvia Machado

Figura 10: Coreografia Res Ipsa, de Rami Levi –


foto: Silvia Machado

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41

Em 2010, ainda sob a gestão do prefeito Gilberto Kassab e do secretário de Cultura


Carlos Augusto Machado Calil, a bailarina Lara Pinheiro foi convidada para ser a nova diretora
do Balé da Cidade, permanecendo no cargo até 2013.
Como diretora, Lara Pinheiro desenvolveu uma mostra coreográfica em 2012 e
trabalhos coreográficos em conjunto com o elenco da companhia, como em Crônicas de Tempo
/ Laboratório de Criação e a Obra. Desenvolveu Nos Outros, de sua autoria, e trabalhou com
o grupo Pia Fraus (Terra Papagalis); o coreógrafo Luís Fernando Bongiovanni desenvolveu a
coreografia Giselles; Renato Viera criou Ter/Alado, e Jorge Garcia produziu T.A.T.O. Tecidos
por Tensões Opostas.
Entre os coreógrafos estrangeiros convidados durante a gestão de Lara Pinheiro
destacam-se o português André Mesquita (Cidade Incerta), o grego Andonis Foniadakis
(Paraíso Perdido) e o eslovaco Lukas Timulak (Offspring).
Em 2013 tomou posse na Prefeitura de São Paulo Fernando Haddad, e na Secretaria de
Cultura, Juca Ferreira. Como único nome indicado pelos bailarinos, retornou ao Balé da Cidade
como diretora artística Iracity Cardoso, que havia sido bailarina e ensaiadora na reestruturação
da companhia, em 1974, e também vivenciara uma carreira internacional.
Em seu primeiro ano de gestão Iracity Cardoso valorizou os trabalhos de seus antigos
colegas, convidando para remontar obras das décadas de 1970 e 1980 os coreógrafos do grupo
seleto, “A.N.A.”: Arrieta, após duas remontagens de A Sagração da Primavera (em 1985 e
1993), retorna para sua terceira remontagem, e desenvolve uma releitura de La Valse/Octeto,
uma peça desenvolvida originalmente em 2008. Navarro revisita Apocalipsis (1976), e Araiz,
Cantares (1984 e 1990). O coreógrafo Sandro Borelli remonta LAC (2001), e o sueco Alexander
Ekman remonta Cacti (criado para o Lucent Dans Theatre, de Haia, na Holanda, em 2010).
Para nova criação Cardoso convida Alex Soares, ex-bailarino da companhia que teve
sua estreia como coreógrafo ainda quando fazia parte do elenco do Balé da Cidade, na mostra
coreográfica de 2009, desenvolvendo a obra Abrupto. O coreógrafo espanhol Cayetano Soto
volta para uma nova criação, Uneven, e o israelense Itzik Galili remonta Frágil (2005).
Em 2014 Cardoso valoriza os estrangeiros, convidando coreógrafos de várias partes do
mundo. O coreógrafo italiano Mauro Bigonzetti retorna à companhia para desenvolver Cantata
e Antiche Danze, o israelense Itzik Galili volta para desenvolver O Balcão de Amor.
Em 2105 Cardoso valoriza os criadores brasileiros e convida três ex-bailarinos da
companhia, que haviam começado a desenvolver coreografias na mostra coreográfica: Gleidson
Vigne (Fio da Meada), Alex Soares (Cenas a 37 ou Eu queria que fosse a 33) e Jorge Garcia
(A Árvore do Esquecimento). O espanhol Cayetano Soto desenvolve Adastra neste mesmo ano.

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42

Em seu último ano como diretora artística do Balé da Cidade, Cardoso realizou três
produções, convidando o português André Mesquita (Corpus), o italiano Stefano Poda (Titã) e
o brasileiro Alex Soares, que optou em fazer uma releitura do balé de repertório O Quebra-
nozes, desenvolvendo Quebrakovsky – The Nuts Talent Show.
Em 2017, com João Dória Junior na Prefeitura de São Paulo e André Sturm como
secretário de cultura do município de São Paulo, Ismael Ivo é convidado para ser o novo diretor
do Balé da Cidade de São Paulo, permanecendo até o final desta pesquisa em fevereiro de 2019.
O trabalho iniciado em 1993 pela diretora artística Ivonice Satie, possibilitou que a
companhia desde 1995 até o ano de 2018, realizassem apresentações artísticas em diversas
cidades da França, Suíça, Alemanha, Israel, Portugal, Áustria, Turquia, Itália, Holanda,
Luxemburgo, Espanha, Sérvia, China e Estados Unidos da América.35

35 Todos os dados sobre coreografias, coreógrafos, turnês internacionais e diretores artísticos constam no livro
histórico (brochura) e três DVDs em tiragem de 500 exemplares, lançado em 2013 em comemoração aos 45 anos
do Balé da Cidade de São Paulo, projeto idealizado por Lara Pinheiro e Raymundo Costa, iniciado em 2012, sob
a coordenação da pesquisadora Cássia Navas em parceria com a Pipoca Cine Vídeo. Os dados referentes ao período
posterior a 2013 foram fornecidos pelo coordenador de acervo Raymundo Costa, dos arquivos do Balé da Cidade.

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43

Capítulo 2 – Direção artística de Ivonice Satie

O intérprete é aquele que se situa entre o coreógrafo e o seu


texto, entre ele próprio e aquilo que mostra.
Laurence Louppe

2.1 Uma nova visão artística para o Balé da Cidade de São Paulo

Em 1993 o prefeito Paulo Salim Maluf assumiu a Prefeitura da cidade de São Paulo, e
para a pasta da Secretaria Municipal de Cultura convidou Rodolfo Konder. Ivonice Satie,36
indicada pelos bailarinos,37 é convidada para ser a diretora artística do Balé da Cidade de São
Paulo.
Por ser uma companhia oficial38 do município de São Paulo, a escolha do diretor do
Balé da Cidade muitas vezes é política, ou seja, sua indicação pode provir da sugestão dos
bailarinos, mas precisa também estar de acordo com a filosofia cultural do partido político que
está no poder. Por esse motivo, pensar artisticamente o perfil da companhia é quase impossível,
uma vez que as mudanças de liderança são frequentes.
Essas trocas constantes de diretor artístico trazem consequências para os bailarinos, os
quais precisam ter flexibilidade mental, emocional e corporal para saber lidar em diferentes
situações – pois muitas vezes não é fácil adaptar-se às escolhas artísticas do novo diretor. A
substituição está intrinsecamente ligada a mudanças políticas na Prefeitura, e alguns diretores
com os quais convivi não conseguiram permanecer nem 4 anos no cargo. Toda vez que ocorre
a substituição do diretor, tenta-se redefinir o perfil artístico da companhia. Cada integrante da

36
Ivonice Satie formou-se pela Escola Municipal de Bailados, onde estudou dos 9 aos 16 anos. Em 1968 entrou
para o Corpo de Baile e nele permaneceu até 1983. Ivonice adaptou-se às mudanças realizadas por Antônio Carlos
Cardoso em 1974, mas foi demitida com Luis Arrieta depois de 14 anos de casa pelo secretário de Cultura Mário
Chamie, em 1981. Em 1983 foi convidada por Oscar Araiz para integrar, como assistente de coreografia, o Ballet
du Grand Théâtre de Genève.
37
Os bailarinos atuavam politicamente por intermédio da Associação dos Bailarinos do Balé da Cidade de São
Paulo – elegiam-se três nomes para possíveis diretores artísticos e entregava-se ao futuro secretário de Cultura
uma carta com os nomes indicados. Ivonice Satie foi um dos nomes sugeridos nessa carta.
38
Companhia Oficial – companhias sustentadas pelo erário público. A verba pode vir diretamente do orçamento
ou por meio de benefícios fiscais, via leis de incentivo. Por fazerem parte dos equipamentos gerenciados pelo
poder público, essas companhias obedecem ao que o Estado regulamenta para a sua estrutura de funcionamento
(TEIXEIRA, 2012, p. 35).

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44

direção artística quer trazer para o grupo seu gosto artístico, e nesse vai e vem de gestores plenos
de ideias são os bailarinos que, ao dançar as peças, levam ao palco o “jeito de corpo” da
companhia. O elenco reúne pessoas de diferentes culturas, de várias partes do país, que trazem
na bagagem suas próprias referências de vida e formação em dança.
No que se refere especificamente ao elenco feminino, são bastante comuns bailarinas
muito bem preparadas tecnicamente na linguagem de balé clássico. Em sua maioria, elas
provêm das classes média e alta e começam seus estudos já na infância e adolescência,
praticando o balé clássico incentivadas pelos familiares (DANTAS, 1995, p. 40). Os rapazes,
no entanto, normalmente iniciam seus estudos em balé clássico mais tarde, na idade adulta.
Primeiramente aproximam -se de uma dança que sofra menos preconceitos em nossa sociedade,
como (capoeira, hip hop, dança de salão e jazz). Muitos dos meus colegas na
companhia,39começaram a estudar balé clássico já na idade adulta, para desenvolver um corpo
mais coordenado, que possibilitasse praticar com mais propriedade a linguagem de dança
escolhida por eles.
Minha trajetória foi bastante diferente em comparação com vários dos colegas com os
quais trabalhei em meus 14 anos no Balé da Cidade. O interesse em dançar se deu por uma
necessidade de me comunicar por intermédio do corpo, sentia que minha vida fazia sentido
quando me expressava pela dança, era assim que eu me posicionava e me expressava no mundo.
Nasci em uma família de sete irmãos, pai e mãe de origem nortista. Minha mãe gostava
de fazer festas, proporcionando em casa um ambiente de música e dança, constantemente aos
finais de semana todos reuniam-se em casa com os amigos para dançar, embalados pelos ritmos
dos anos 1970. Foi nesse ambiente de dança em sua forma mais primordial de expressividade
que meu desejo de dançar começou a se manifestar.
Meus primeiros passos no caminho de uma futura profissionalização deram-se quando
tinha 12 anos, ao ser convidado para fazer parte de um grupo de adolescentes que iriam dançar
na televisão. Nos encontrávamos nos finais de semana e ensaiávamos as coreografias para
apresentar no programa infantil da Rede de Televisão Gazeta.

39Um exemplo é Robson Lourenço – mestre e doutor em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), foi bailarino do Balé da Cidade de São Paulo de 1993 a 2008, e atualmente é professor da Universidade
Anhembi Morumbi. Lourenço começou fazendo dança de salão, e posteriormente estudou balé clássico para
aperfeiçoar seus passos de dança de salão (informações obtidas pelo pesquisador nos anos em que atuaram juntos
no Balé da Cidade de São Paulo, entre 1993 e 2007). Milton Kennedy – foi bailarino e, depois, professor de técnica
de balé clássico do Balé da Cidade de São Paulo, de 1987 a 2017. Atualmente é professor da Escola de Dança do
Teatro Municipal de São Paulo. Kennedy começou fazendo aula de jazz por ser muito tímido; posteriormente
iniciou as aulas de balé clássico para desenvolver mais consciência corporal (informações obtidas pelo pesquisador
nos anos em que atuaram juntos no Balé da Cidade de São Paulo, entre 1993 e 2007).

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45

Com o intuito de aprender balé clássico, aos 15 anos iniciei meus estudos de dança na
Academia40 de Dança Marly Zavar, no bairro onde eu vivia, na Zona Norte da cidade de São
Paulo. Como na maioria das escolas de dança no Brasil, não havia um método definido para se
ensinar balé clássico, o que seguimos são métodos importados da Europa segundo diversas
correntes estéticas (SAMPAIO, 2013, p. 12).41
O aprendizado de dança no Brasil, especificamente do balé clássico, foi ganhando
grandes proporções ao longo do século XX, ensinado por professores que vinham da Europa,
aqui se instalavam e transmitiam seus conhecimentos aos alunos brasileiros. Foi nessa
multiplicidade de métodos que minha formação em balé clássico se desenvolveu.

Figura 11: 1985 – Turma de alunos da Academia de Dança Marly Zavar


foto: Acervo pessoal

40 Acadêmicos – termo usado por escolas que ensinam balé clássico, referente à dança sistematizada na Academia
Real de Música e Dança, fundada na França por Luís XIV, em 1672, e desenvolvida em várias escolas, métodos e
estilos (SAMPAIO, 2013, p. 12).
41 Correntes estéticas – Escola Francesa tradicional, método Cecchetti, o método que Vaganova desenvolveu na

Rússia, o método de Bournonville, a Royal Academy of Dancing e o método que Balanchine desenvolveu nos
Estados Unidos da América (SAMPAIO, 2013, p. 12).

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47

a artifícios mecânicos que elevassem os bailarinos do solo, era a maquinaria substituindo o


esforço físico” (FARO, 2014, p. 34).
No decorrer dos estudos, totalmente focado na construção estética do balé clássico, eu
dançava pas-de-deux42 do gênero clássico e participava dos festivais de dança.43 As
apresentações nesses festivais eram uma maneira de experimentar no palco o trabalho realizado
nos estudos em balé clássico – eu potencializava o aprendizado dos conteúdos e os princípios
estudados ao desenvolver o virtuosismo físico que as coreografias exigiam.

Figura 13: Festival de dança de Curitiba (PR), 1990 – foto: Acervo pessoal

Para completar minha formação, em 1992 frequentei durante 8 meses um curso de


especialização em balé clássico na companhia de dança do Ballet Nacional de Cuba,44 em

42 Pas-de-deux – palavra francesa que significa “passo de dois”, em que o casal, homem e mulher, dançam juntos.
O pas-de-deux contém variações dos solistas com coda, que se acrescenta para um solo das estrelas feminina e
masculina. Pode ser dançado separadamente ou incluído em uma obra clássica, para contar uma história
(BOURCIER, 2016, p. 221).
43 Festivais de Dança – participar desses festivais era uma maneira de estarmos no palco, uma vez que, como

alunos, só tínhamos oportunidade de dançar no espetáculo de final de ano realizado pela escola de dança. Durante
o ano de 1991 trabalhávamos de 4 a 5 horas por dia, ensaiando os pas-de-deux dos balés La Fille Mal Gardée e
Festival de Flores de Genzano. Com esses trabalhos participamos de vários concursos no Brasil, obtendo o 1º
lugar no Festival de Dança de Uberlândia (MG), no CBDD (RJ) e no Festival de Dança Capézio (SP).
44 Ballet Nacional de Cuba – Fundado em 1948 pela bailarina Alicia Alonso, em 1950 cria-se a Escuela Nacional

de Ballet Alicia Alonso anexa à companhia profissional. Após a revolução socialista liderado por Fidel Castro em
1959, inicia-se uma nova etapa para o ballet cubano. Como parte de um novo programa cultural, a companhia
muda seu nome para Ballet Nacional de Cuba. Informações disponíveis em: http://www.balletcuba.cult.cu/es;
acesso em: 25 dez. 2018. A dança em Cuba vem criando, há algum tempo, uma metodologia e um estilo próprios

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48

Havana. A experiência durante esse período em uma companhia profissional potencializou


minha capacidade de aprendizado na técnica de balé clássico, principalmente porque fazia aulas
somente com rapazes, diferentemente da experiência que tinha no Brasil, onde normalmente
havia no máximo dois rapazes frequentando as aulas. Participar das aulas somente para rapazes
trouxe a possibilidade de vivenciar conteúdos de dança específicos, como saltos e piruetas
desenvolvidos para bailarinos do sexo masculino, e desenvolver um corpo mais hábil e virtuoso
na técnica de balé clássico para rapazes.
De volta ao Brasil, fui convidado para participar do festival de dança do Théâtre
National de l’Opéra-Comique, em Paris, França, dançando os balés La fille mal gardée45 e
Festival de Flores de Genzano.46 Essa seria minha última apresentação, finalizando o ciclo de
estudos como bailarino/aluno focado somente na estética de balé clássico.

Figura 14: pas-de-deux da coreografia La Fille


Mal Gardee, 1990 – acervo pessoal

para o seu povo miscigenado, estando em processo o desenvolvimento de uma escola própria de dança acadêmica
(SAMPAIO; FARO, 1989, p. 64).
45 La Fille Mal Gardée: coreografia original e roteiro de Jean Dauberval. Um dos grandes balés do século XVIII,

narra o romance de Lisa, filha de uma rica proprietária, Simone, e um camponês, Colas. A versão de pas-de-deux
que dancei era do Balé Nacional de Cuba, remontada por Isaura Guzmán.
46 Festival de Flores de Genzano: coreografia de August Bournonville estreada em 1958 com o Balé Real da

Dinamarca. O pas-de-deux se baseia em acontecimento histórico do início do século XIX, e narra os amores e
lutas de um jovem casal, Rosa e Paulo (SAMPAIO; FARO, 1989, p. 147).

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49

Figura 15: solo da variação da coreografia La


Fille Mal Gardée, 1990 – acervo pessoal

Em 1993 fui convidado para integrar o elenco do Balé da Cidade de São Paulo, após
realizar um teste (audição) que consistiu em uma aula de balé clássico e no aprendizado de
alguns trechos da coreografia Karadá (1983). Esse trabalho coreográfico foi desenvolvido pela
coreógrafa Susana Yamauchi47 para a Mostra Coreográfica, sob a gestão de Klauss Vianna, e
incorporado ao repertório do Balé da Cidade na direção de Julia Ziviani.
Entrar na companhia foi um passo profissional muito importante, o momento em que
passei a trabalhar diariamente e viver financeiramente da dança. No entanto, a adaptação
corporal demandou muita disponibilidade física, mental e emocional para que eu chegasse a
entender corporalmente como mover meu corpo em uma linguagem de movimento que eu não
havia experienciado nos longos anos de estudos em dança.
Ao assumir a direção artística do Balé da Cidade de São Paulo em fevereiro de 1993,
Ivonice Satie trouxe como filosofia de trabalho o pensar em um corpo que dança de forma
híbrida. Com visão mais flexível em relação às escolhas dos artistas da dança, Satie enxergava
a atuação de um bailarino para além de seu corpo treinado na técnica específica de balé clássico,

47 Susana Yamauchi – coreógrafa, bailarina, professora e diretora, cuja formação inclui a Escola Municipal de
Bailados (atualmente Escola de Dança do Theatro Municipal de São Paulo), Teatro Galpão, e Balé Stagium, além
das escolas de Alvin Ailey e Merce Cunningham. Estudou com Ismael Guiser, Sônia Mota, Klauss Viana, Louis
Falco e Kazuko Hirabayshi. Atuou no Balé Stagium e no Balé da Cidade de São Paulo. Profissional desde 1975,
acumulou vasta produção coreográfica em grupos e companhias brasileiros, dirigiu o grupo Lúdica Dança, foi
curadora do Panorama SESI de Dança e diretora Artística da Escola de Dança do Theatro Municipal de São Paulo.
Atualmente atua como consultora do programa de Cultura do Governo do Estado de São Paulo. Informações
disponíveis em: http://www.vicentegil.com.br/ispa/por/bio_program_Susana_Yamauchi.html; acesso em: 26 abr.
2018.

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50

como relata em entrevista concedida ao programa Figuras da Dança48 em 2008: “todos os


corpos se movem, todos os corpos têm alguma coisa interessante para dar, e todos os corpos
podem dançar”.
Satie interessava-se por intérpretes com diferentes formações em dança. Mesmo que
todos tivessem como base a técnica de balé clássico, o que mais lhe importava era como esse
intérprete se movia na confluência das suas experiências e de outras linguagens da dança.
Procurava convidar bailarinos com formação técnica e artística em dança bastante eclética.
Claro que, ao fazer o teste para entrar na companhia, o bailarino precisava fazer uma aula de
balé clássico e demonstrar uma habilidade técnica em dança da linguagem do balé clássico, mas
Satie queria algo além de seu trabalho técnico. O bailarino precisava dançar além da capacidade
técnica, a diretora sugeria que os intérpretes buscassem um sentido de expressividade no
movimento, personificando o artista na sua singularidade – que pudéssemos trabalhar além das
referências técnicas, que fizéssemos um mergulho em nossas próprias histórias de vida e
conhecimento (cultura), para que isso refletisse no jeito de dançar.
O pensamento de Satie dialoga com o da pesquisadora Tereza Rocha (2009, p. 48),
afirmando que o mecanismo de aprendizado da técnica de dança de um intérprete vem numa
mão dupla: o corpo é operado de dentro para fora e de fora para dentro, no diálogo entre cultura
e ambiente, um sentido que flui bilateralmente, pois o corpo também age no ambiente,
modificando-o e fabricando.
Nesse ambiente artístico, de uma companhia de dança contemporânea que não conta
com um coreógrafo residente e constantemente convida criadores de diferentes culturas e
formações técnicas diversas, é o intérprete/bailarino que traçará um diálogo direto com o
coreógrafo durante o processo de criação. O bailarino precisa estar flexível e atento às
exigências dos coreógrafos, pois muitas vezes o intérprete pode não estar familiarizado com a
linguagem de dança proposta pelo criador, precisando ter a habilidade de absorver rapidamente
as informações de corpo sugeridas pelo coreógrafo durante o processo criativo, e encontrar
novas possibilidades corporais nas solicitações expressivas e físicas do universo criativo do
coreógrafo.

48 Figuras da Dança: a série conta hoje com 34 episódios, exibidos nos canais de televisão Curta! e Arte 1. Os
documentários são reunidos em uma caixa de DVDs acompanhados de livretos informativos sobre cada artista,
com textos de pesquisadores, fotos históricas e cronologia. A série Figuras da Dança não é comercializada, é
distribuída para instituições educativas e culturais, principalmente as que contam com biblioteca pública, além de
universidades e ONGs. Informações disponíveis em: http://www.spcd.com.br/figuras_da_danca.php; acesso em:
26 abr. 2018.

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51

Para iniciar o trabalho artístico que viria a ser seu legado para a companhia, Satie
convidou o coreógrafo Luis Arrieta para desenvolver uma nova criação, a coreografia Warm-
up, e também para remontar Sagração da Primavera (1985). Raymundo Costa, bailarino da
companhia, remontou Nonetto, desenvolvido na mostra coreográfica sob a direção artística de
Rui Fontana Lopez; Susana Yamauchi desenvolveu a coreografia Curinga, e no mesmo ano
Ivonice Satie desenvolveu uma nova criação, a coreografia Pauliceia Desvairada.

Figura 16: Coreografia Warm-up, 1993 de Luis


Arrieta – acervo pessoal

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52

Figura 17: Coreografia Sagração da Primavera, 1993 de Luis


Arrieta – acervo pessoal

No ano seguinte (1994), Susana Yamauchi foi convidada novamente, agora para
remontar Karadá (1983), e Ivonice Satie ainda remontou Mozarteando,49 incorporado ao Balé
da Cidade em 1994.
Enquanto convidava coreógrafos nacionais e internacionais, Satie contratava
professores de outras linguagens da dança. Foi nesse momento, no ano de 1994, que os
bailarinos tiveram de vencer resistências políticas. Após uma greve realizada por falta de
pagamento dos salários – atrasados por 3 meses –, os bailarinos decidiram cancelar a temporada
da semana e ocupar a frente do Teatro Municipal com uma faixa – “Sr. Prefeito, onde está a
verba da cultura?”, para Paulo Maluf, isso era uma afronta; imediatamente demitiu todos os
bailarinos. Tínhamos reuniões diárias nas casas de diferentes intérpretes da Companhia, de
agosto a novembro de 1994, quando os bailarinos desenvolviam estratégias para o contato com
políticos e personagens influentes da cultura paulistana naquele momento. As reuniões
aconteciam pela tarde, e pela manhã para que os bailarinos mantivessem a forma, fazíamos
aulas no Ballet Stagium e/ou Ballet Ismael Guiser, que abriram seus espaços de dança para que
os bailarinos fizessem aulas.

49Mozarteando - Coreografia desenvolvido em 1992 por Ivonice Satie, para um projeto de dança em São Paulo,
com direção artística do bailarino Fernando Bujones. Com as intérpretes Silvia Gaspar (Grupo Corpo) e Érika
Ishimaru (Balé da Cidade de São Paulo), pois ambas trabalharam neste projeto com direção de Fernando Bujones.
Ambas dançaram a coreografia “Mozarteando” em sua estreia e depois no elenco em que eu dancei no Balé Da
Cidade de São Paulo. Tal projeto de Bujones foi sediado em São Paulo, os intérpretes trabalharam no Centro de
Formação de Esportes do Estado no Parque do Ibirapuera.

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53

A notícia foi divulgada na Folha de S. Paulo, anunciando o descontentamento do


secretário municipal de Cultura: “Após relatar os motivos da greve, o elenco foi repreendido
por Konder, que reclamou da ‘postura de vítima’ do elenco. Konder mencionou a foto do grupo
Pesquisar qual o nome do projeto de dança em São Paulo, com direção artística de Fernando
Bujones

publicada em reportagem da Folha do dia 29 de agosto de 1994 como mais um motivo para
estabelecer um confronto com a secretaria” (COURI, 1994).
A recontratação ocorreu em dezembro de 1994 – Com um espetáculo aberto ao público
no Parque do Ibirapuera. A proposta de retorno da Companhia que veio da Secretaria de
Cultura, o retorno só poderia acontecer se os bailarinos assinassem um documento de pedido
de desculpas ao então prefeito Paulo Maluf. Mesmo não sendo uma vontade de todos os
bailarinos, o documento contendo o “pedido de desculpas” foi assinado por todos os integrantes
da companhia.
De volta às atividades artísticas da companhia, Satie pôde retomar o rumo de suas ideias,
e em 1995 convidou o coreógrafo Rodrigo Pederneiras para remontar Variações sobre um tema
de Haydn (1990). O coreógrafo português Vasco Wellenkamp50 foi convidado para a criação
de uma obra em homenagem ao músico brasileiro Antônio Carlos Jobim. Vasco Wellenkamp
desenvolveu De repente, não mais que de repente.
Neste mesmo ano a senegalesa Germaine Acogny foi convidada para desenvolver uma
obra de dança em comemoração aos 300 anos da morte do líder do Quilombo dos Palmares,51
Zumbi.

50 Vasco Wellenkamp: bailarino desde 1968, coreógrafo e professor de dança contemporânea da Companhia de
Dança da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa) de 1978 a 1996, obteve formação sólida em dança, estudou no
Centro de Dança Contemporânea de Martha Graham, frequentou o curso de composição coreográfica de Merce
Cunningham e de dança clássica com Valentina Pereyslavec, no American Ballet Theater. Como coreógrafo em
Portugal, Vasco passou a ser chamado por diversas companhias no estrangeiro. No Brasil, foi convidado para
desenvolver coreografias para a Cisne Negro Companhia de Dança, o Ballet de Niterói, o Ballet Guaíra (Curitiba)
e o Balé da Cidade de São Paulo.
51 O Quilombo dos Palmares foi considerado o maior e mais longo reduto negro da história brasileira, o movimento

de resistência dos escravos mais famoso do Brasil. A palavra “quilombo” na língua Banto significa “povoação”
(OLIVEIRA, 2017, p. 105).

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54

Figura 18: Coreografia Z, de Germaine Acogny –


foto: Silvia Machado

No ano seguinte em 1996 foi convidado o coreógrafo Sandro Borelli, que havia sido do
elenco do Balé da Cidade, para desenvolver uma criação, Inside. O armênio Gagik Ismalian foi
convidado para desenvolver a coreografia Máscaras do Tempo, e o coreógrafo Luis Arrieta
voltou para a remontagem de Pavane (1992) e La Valse (1992), ambos desenvolvidos para o
espetáculo Um, Dois, Três, do Balé da Cidade.
Com as obras incorporadas ao repertório da companhia – De repente, não mais que de
repente, do coreógrafo português Vasco Wellenkamp, e Z, da senegalesa Germaine Acogny –,
o Balé da Cidade realizou sua primeira viagem internacional para a Bienal de Lyon,52 França,
em 1996 se apresentando no Teatro da Ópera National de Lyon.
Essa viagem foi de extrema importância para o desenvolvimento de uma carreira
internacional para a companhia. Em Lyon o Balé da Cidade foi visto pelo empresário Meinrad
Huber, da produtora Ecotopia Dance Productions,53 que passou a ser o agente da companhia no
exterior, representando-a nas suas turnês internacionais desde 1997.

52 Bienal de Lyon: fundada em 1984, é considerada o maior festival de dança da Europa. Seu primeiro curador
artístico foi Guy Darmet, que permaneceu até 2010, a 14ª edição. O evento acontece na cidade de Lyon, França,
no mês de setembro. Atualmente em sua 17ª edição, tem curadoria artística de Dominique Hervieu. Informações
disponíveis em: http://www.labiennaledelyon.com/la-biennale-de-la-danse.html; acesso em: 2 abr. 2018.
53 Ecotopia Dance Productions – produtora dirigida por Claudia Bauer e Meinrad Huber, sediada na Alemanha,

responsável pelas turnês internacionais de várias companhias de dança, entre as quais: Nederlands Dans Theater
I, Nederlands Dans Theater II, São Paulo Companhia de Dança, Danza Contemporânea de Cuba, Grupo Corpo,
Shen Wei Dance Artes, Companhia Aterballetto, Gauthier Dance, Richard Siegal / Ballet Of Difference,

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55

Foi também em Lyon, na estreia internacional da companhia, que o israelense Ohad


Naharin, convidado previamente para trabalhar com a companhia, foi assistir ao espetáculo e
no dia seguinte realizou uma vivência com os bailarinos da maneira como todo coreógrafo gosta
de fazer, desenvolvendo movimentos dentro da sua linguagem de dança.
Nesse primeiro contato com os bailarinos Naharin ministrou um workshop em que nos
apresentou um pouco de seu vocabulário de movimento, que usava os elementos do balé
clássico, mas, ao mesmo tempo, fugia dos padrões convencionais dessa técnica. Éramos
convidados a experimentar uma desconstrução dos passos de balé clássico, e esse processo nos
dava uma sensação de liberdade. Foi nesse momento que entramos em contato com a
materialidade corporal da coreografia Axioma 7, aprendendo alguns trechos desta peça
desenvolvida para o Ballet du Grand Théâtre de Genève.
Ana Francisca Ponzio, convidada especial da Folha de S. Paulo em Lyon, relatou no
jornal em 25 de setembro de 1996 o encontro da companhia com Ohad Naharin: “Durante sua
temporada em Lyon (França), onde participa da 7ª Bienal da Dança, o elenco do Balé da Cidade
de São Paulo encontrou-se com o coreógrafo israelense Ohad Naharin, convidado para remontar
para o grupo a coreografia Axioma 7, que deve estrear em dezembro em São Paulo”. O
desenvolvimento do processo de remontagem de Axioma 7 será descrito no Capítulo 3, item
3.3.
Axioma 7 foi a última produção artística que Satie desenvolveu para o Balé da Cidade
nesses 4 anos em que esteve à sua frente como diretora artística, finalizando com a estreia no
Teatro Municipal de São Paulo em dezembro de 2006.

Companhia de Dança Vertigo, Shaun Parker & Company, Helena Waldmann e Balé da Cidade de São
Paulo.Informações disponíveis em: https://www.ecotopiadance.com; acesso em: 25 dez. 2018.

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56

Figura 19: Elenco do Balé da Cidade e o coreógrafo Ohad Naharin


ao fundo, sala de ensaio do Teatro da Opéra National de Lyon, 1996
foto: João Mussolini
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2.2 Processo de formação: intérprete-criador em dança contemporânea

Nos dois primeiros anos atuando como intérprete no Balé da Cidade eu precisava
desenvolver estratégias corporais que me ajudassem física e artisticamente a realizar os
trabalhos desenvolvidos pelos coreógrafos convidados. Precisava estudar como obter em meu
corpo uma movimentação mais flexível e menos rígida muscularmente. Num primeiro
momento meu corpo procurava imitar o que estava sendo proposto pelos criadores, exatamente
como fizera ao reproduzi-los nos anos como estudante ao aprender os exercícios das aulas de
balé clássico e dos repertórios do gênero clássico. Essa era uma forma de trabalhar que eu havia
aprendido: partia da visualização e, depois, da repetição do que se estava propondo, sem que
eu entendesse o caminho sensível do movimento.
Entendo que esse procedimento tenha sido gerado pelo tipo de formação que conheci ao
longo dos anos, com muitos dos professores com os quais estudei balé clássico, que não
focavam nas sensibilidades corporais, mantinham o movimento centrado nas habilidades
mecânicas e no virtuosismo da técnica. Uma forma utilizada por muitos professores que tiveram
seu aprendizado no sistema de ensino, como afirma Sampaio (2013, p. 113), “através dos
conceitos formulados por seus professores, sendo repetitivos”, de pouco conhecimento de

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57

anatomia e biomecânica. Sampaio ainda descreve como referência didática a transmissão de


ensino de forma oral, reproduzindo a técnica em busca da forma, sem referências sensoriais
corporais (SAMPAIO, 2013, p. 113).
Como bailarino do Balé da Cidade, eu precisava rever essa forma de reprodução no
trabalho de preparação corporal baseado nas aulas de balé clássico que realizávamos
diariamente, antes de iniciarmos os ensaios e/ou novas criações. Ainda durante os primeiros
anos repetia mecanicamente o movimento com o propósito de imitar e alcançar a forma
específica, buscando a estética dentro do pensamento da técnica de balé clássico. Meu foco
ainda era a busca em adquirir virtuosismo, sem me preocupar com as compensações que o corpo
faz para alcançar a estética exigida da técnica de balé clássico. Durante anos dançando pelo
olhar do balé clássico, pensava nas necessidades dos padrões estéticos exigidos da técnica, sem
me permitir experimentar outras possibilidades de movimentos expressivos.

Figura 20: Aula de balé clássico, sala de


ensaio do teatro da Ópera National de
Lyon - 1996 – foto: João Mussolini

Sentia, nesse início, ao fazer parte do elenco de uma companhia de dança


contemporânea, que ter somente a formação em balé clássico não era suficiente para preparar

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58

física e expressivamente meu corpo, de modo a estar preparado corporalmente para receber as
varias informações de dança, necessárias para desenvolver processo criativo junto aos
coreógrafos. Sentia a necessidade de aprender diferentes linguagens da dança, que
desenvolvessem outras habilidades motoras, diferente das que eu havia aprendido e também
servindo como ferramentas, que ajudassem nas propostas cênicas e expressivas que o
coreógrafo nos trazia.
Para embasar a importância de obter no corpo diferentes linguagens servindo como uma
ferramenta corporal, a pesquisadora e critica Helena Katz (apud DANTAS, 1999, p. 100)
afirma: “Um bailarino com técnica de jazz não dança Merce Cunningham, alguém treinado em
clássico não faz butô. No corpo, você tem o que você põe. [...] Portanto, no corpo algo sempre
está inscrito materialmente”. Todos podem dançar tudo, no entanto, o bailarino pode não dançar
com a mesma clareza e domínio determinada linguagem que ele não tenha se apropriado. Como
bailarino formado em balé clássico e dançando em uma companhia contemporânea, eu percebia
que executava bem as propostas criativas dos coreógrafos, mas não conseguia desenvolver a
expressividade e a qualidade de movimento solicitadas no jeito de corpo de cada obra o que,
em minha opinião, seria o caminho correto. Claro que isso não quer dizer que não existam
outras possibilidades e potencialidades do corpo, e um treinamento não exclui o outro ou
potencializa para o outro. Um exemplo disso é o bailarino russo Mikhail Baryshnikov, que
experimentou muitas técnicas e estilos de dança no corpo, mesmo possuindo uma base sólida
de técnica clássica.
Ao aprender as coreografias, eu exercitava e repetia exaustivamente, buscando
encontrar um melhor caminho para chegar à proposta cênica. Diariamente pesquisava as
possibilidades corporais e tentava me adaptar nas diferentes experiências de movimento,
elaborando em meu próprio corpo as novas corporeidades. A dificuldade maior encontrada
nesse início na companhia consistiu em conseguir uma confluência entre as aulas de balé
clássico e as coreografias, possibilitando uma empatia com o fazer do artista contemporâneo,
dentro de uma companhia nos moldes do Balé da Cidade de São Paulo. Era preciso valorizar a
contribuição técnica que a aprendizagem através do balé clássico proporciona, causando um
contato entre as linguagens de balé clássico e da dança contemporânea.
Percebo que ter um corpo treinado no sistema convencional de aprendizagem de balé
clássico e habituado a habitar o corpo como um instrumento de repetição, que executa o
movimento em busca de um padrão estético da técnica de balé clássico, facilitou no momento
em que tinha de aprender novos vocabulários de movimento contidos nos repertórios e
precisava ter um corpo ágil, coordenado e disciplinado para executar o que estava sendo

.
59

proposto pelo coreógrafo. No entanto, as criações realizadas em um período bastante curto, com
pouco tempo para exploração do movimento, e esse pouco tempo tornava frágil o entendimento
sensível e corporal nas propostas de movimentos das criações da companhia, deixando,
também, pouco tempo para a pesquisa expressiva do movimento, dificultando na exploração
corporal e na possibilidade de propor ideias de movimento no fazer artístico.
Trago a questão do tempo porque no período em que atuava como bailarino-intérprete,
um processo criativo na companhia geralmente durava em torno de 45 a 60 dias, e nesse
processo de preparação da obra o intérprete precisava aprender os movimentos propostos,
vivenciá-los e repeti-los exaustivamente para chegar próximo ao que o coreógrafo propunha.
Uma frase muito comum em sala de dança, na voz de muitos professores, ensaiadores e
coreógrafos, é: “repete, repete até ficar bom”. Em uma companhia de repertório de dança
contemporânea como o Balé da Cidade de São Paulo, os ensaios acontecem diariamente,
ensaiamos parte por parte da obra e em um determinado momento do dia, fazemos um ensaio
da obra inteira. Em seguida são feitas as correções do que foi observado pelo ensaiador, que
atento ao que foi desenvolvido pelo coreógrafo nos conduz a refazer parte da coreografia, nos
conduzindo as correções do movimento para resgatar o que foi desenvolvido pelo criador.
Um momento bastante exaustivo, de muito trabalho corporal e mental. Não bastava
visualizar o movimento desenvolvido pelo coreógrafo e repeti-lo, precisava me apropriar do
vocabulário gestual apresentado e, a partir de suas ideias de movimento, criar minha própria
corporeidade como intérprete e criador diante daquela obra. Nesses processos diários de
trabalho da companhia, precisei de momentos de muito estudo do corpo para que eu pudesse
alcançar essas novas ideias corporais atravessando o meu fazer artístico, indo além do
entendimento do movimento técnico, mas encontrando um sentido de expressão para a proposta
dramatúrgica. Nesse processo de criação o intérprete precisa estar sensível e disponível para
contribuir corporalmente com o coreógrafo, encontrar novas possibilidades de movimentos
num processo de criação e recriação de outras formas corporais.
Essa relação entre o coreógrafo e o intérprete-criador se dá de forma compartilhada, pois
o intérprete atua na elaboração da proposta do criador e, nesse movimento, precisa ter
ferramentas corporais que possibilitem absorver a proposta e criar uma comunicação corporal
somando sua própria história de dança e de vida.
Muitos dos coreógrafos com os quais trabalhei na companhia não propunham nenhum
trabalho de preparação corporal que pudesse gerar um diálogo com seu processo criativo,
chegavam ao espaço de ensaio quando já havíamos realizado uma aula de balé clássico ou dança
contemporânea. Ao começar a criação, propunham partituras de movimento e, ao

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60

experimentarmos no corpo, percebíamos o quanto do que ele propôs ficava com o intérprete e
o quanto ele, o coreógrafo, precisava jogar fora. Uma experiência em que o intérprete atua como
colaborador na elaboração da obra, tornando-se um atuador na elaboração de linguagens
(DANTAS, 2005, p. 43).
Durante esses primeiros tempos na companhia precisei entender como realizar a
passagem de um corpo treinado dentro dos padrões estéticos do balé clássico para essa nova
atuação artística em uma companhia de dança nos moldes do Balé da Cidade de São Paulo na
contemporaneidade. O questionamento para o bailarino/intérprete está entre o trabalho técnico
aprendido em uma linguagem de dança e seu trabalho criativo, uma vez que, ao treinar, ele se
desliga das estratégias de criação e percepção, é “como se buscasse de início um corpo técnico
para, em seguida, dar uma resposta criativa” (MILLER, 2012, p. 30).
A partir da afirmação de Miller e de minha experiência profissional, questiono se é
eficiente para os bailarinos de uma companhia de dança contemporânea como o Balé da Cidade,
ter somente aula de balé clássico como único tipo de preparo corporal, uma vez que, esta técnica
desvincula o trabalho técnico do criativo. O que poderia contribuir para o intérprete neste
contexto de companhia, seria um trabalho técnico que envolvesse procedimentos e estratégias
para ampliar a percepção sensorial e criativa, que trouxesse ferramentas para o desenvolvimento
de um corpo mais poroso e sensível, possibilitando absorver as informações corporais dos
diferentes coreógrafos.
Ao me iniciar no Balé da Cidade, precisava desenvolver no corpo a percepção do peso
nas suas diferentes gradações. Precisava entender como trabalhar essa aceitação do abandono e
o controle do peso do corpo para alcançar a expressividade corporal solicitada pelos
coreógrafos. Como descreve a pesquisadora francesa Laurence Louppe (2012, p. 105), a
percepção do peso do corpo é uma das descobertas da modernidade na dança, quando se utiliza
a gravidade e o fator peso se torna um “desafio poético primordial”. Louppe (2012, p. 105)
ainda comenta sobre o fator gravidade na dança moderna/contemporânea, descrevendo que está
relacionado à entrega do peso do corpo: deixa-se que este ceda em direção ao chão. Essa relação
de entender como ceder o peso do corpo e em seguida recuperá-lo, foi uma das minhas maiores
dificuldades ao dançar as coreografias da companhia. Acostumado a acessar tônus54 hipertônico
nos exercícios realizados em aulas de balé clássico, não conseguindo acessar um equilíbrio
entre a musculatura hipertônica e hipotônica. Percebia que com o corpo totalmente treinado

54 Utilizo o conceito de tônus apresentado por Gerda Alexander, que o define como “atividade de um músculo em

repouso aparente (...) indica que o músculo está sempre em atividade, mesmo quando isso não se traduz em
movimentos ou gestos” (ALEXANDER, 1991, p. 12).

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61

para dançar balé clássico não conseguia obter as nuances de tônus exigidas nas coreografias,
acessando um tônus normal.
Nesse primeiro momento, era difícil obter a consciência do abandono do peso em
relação à gravidade, aplicada nos movimentos das coreografias da companhia. Essa dificuldade
na entrega do peso nos movimentos trouxe uma questão fundamental para minha carreira
profissional como intérprete: como graduar o tônus corporal que se adquire no treinamento de
aula de balé clássico e integrá-lo às coreografias de dança contemporânea desenvolvidas na
companhia?
A autora Jussara Miller reflete sobre a importância da “percepção do peso do próprio
corpo”, que “evidencia a gradação do tônus muscular para determinadas nuanças de
movimento” (MILLER, 2012, p. 108). O ensino da técnica de balé clássico, por sua vez, tem
como uma de suas características a solicitação da musculatura antigravitacional direcionando o
tônus muscular no sentido vertical, sempre elevando o corpo em oposição ao solo. Um exemplo
disso acontece nos exercícios de pequena ou grande flexão dos joelhos (plié), em que se solicita
ao bailarino um trabalho de oposição: no momento em que está flexionando os joelhos, ele
procura exercer uma força muscular de suspensão, em oposição ao solo.
Esse trabalho de sempre manter a força da musculatura corporal no sentido
antigravitacional, trouxe problemas quando passei a dançar as coreografias da companhia. Para
atingir a qualidade necessária nos movimentos das coreografias, precisava entender
corporalmente o abandono do peso do corpo, compreendendo que a busca da verticalidade é
sempre um ponto de passagem e estamos constantemente transferindo o peso para outro ponto
de apoio no espaço ou no solo para subitamente recuperá-lo, para novamente buscar a
verticalização do corpo ou de uma das partes. Entendia que essa sensação de nunca abandonar
o peso do corpo, apreendida nos estudos de técnica de balé clássico, dificultava o entendimento
relacionado ao abandono do peso corporal, do controle da carga de tensão nos movimentos,
necessário para obter as nuances de tônus exigidas nas coreografias. Faltava um trabalho
corporal que instrumentalizasse o corpo para realizar os movimentos de desequilíbrios e
transferências do peso.
Com base nesse pensamento e na necessidade de um trabalho de preparação corporal
para além das aulas de balé clássico, Ivonice Satie decidiu ministrar aulas de dança, mesclando
a estrutura da técnica de balé clássico (barra e centro) com fundamentos e princípios da dança
moderna americana,55 com contrações, espirais, release, quedas e recuperações do solo,

55A dança moderna americana é definida pela pesquisadora e Dra. Holly Cavrell em seu livro Dando Corpo à
História com base em suas três matriarcas na sua segunda geração: Martha Graham (1894-1991), Doris Humphrey

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62

propondo realizarmos as aulas de técnica de balé clássico de um jeito mais livre, sem
precisarmos chegar a sua forma definida na estética do balé clássico.
Em suas aulas, nos vários exercícios na barra e no centro, Satie propunha mobilizar a
coluna vertebral nos três segmentos – região cervical, torácica e lombar – nas direções anterior,
lateral e circular, estimulando que os movimentos partissem do centro do corpo para as
extremidades. Essas aulas despertaram em meu corpo outros sentidos no movimento, como
dançar pensando nas articulações e não mais somente na função de cada grupo muscular. Eu
percebia que mudava a qualidade do movimento, com menos tensão e mais fluidez, mesmo
permanecendo no vocabulário dos exercícios da técnica de balé clássico.
Para Satie o entendimento musical era de extrema importância, mais do que a trajetória
do movimento: acreditava que a expressividade esteja contida no entendimento musical, como
um princípio primordial enquanto dança. Ao ministrar as aulas utilizando os exercícios
sistematizados do balé clássico, dava um tratamento diferenciado quanto aos fundamentos
dessa técnica. Ao mesmo tempo que se buscava a verticalidade de tronco, solicitava o peso da
pelve nos momentos de flexão dos joelhos (pliés) e trazia a consciência da sustentação dos
braços pelas escápulas, diminuindo assim a tensão muscular dos braços, possibilitando mais
flexibilidade e elasticidade dos membros superiores.
Satie considerava que a companhia tinha a necessidade de outras linguagens de dança
para preparar física e artisticamente seus intérpretes. Sempre dizia: “A vida útil de um bailarino
é muito curta, tem-se que fazer muito em pouco tempo, não podemos perder tempo; o bailarino
tem que trabalhar no mínimo com três coreógrafos por ano, dançar muito, trabalhar diferentes
técnicas de dança para aumentar seu vocabulário de movimento”.56 Na época ainda muito
jovem, eu visualizava um longo período pela frente e não compreendia totalmente o que Satie
dizia, mas hoje consigo entender o furacão que existia dentro dela. Parecia saber que nos
deixaria ainda muito jovem, pois Ivonice Satie faleceu aos 57 anos, em 12 de agosto de 2008.
Antes de traçar uma análise das informações recebidas do trabalho de corpo
desenvolvido por Holly Cavrell, Vasco Wellenkamp, Germaine Acogny e Ohad Naharin,
contextualizo a natureza de cada coreógrafo, descrevendo como esses artistas contribuíram para
meu modo de fazer dança, diferenciando cada um em seu universo no território da arte.

(1895-1958) e Helen Tamiris (1905-1966) desenvolveram os princípios e estratégias para uma nova expressão do
momento político e social a partir do final de década de 1920 (CAVRELL, 2015, p. 122).
56 Ivonice Satie discorreu sobre esse assunto em conversa com os bailarinos do Balé da Cidade de São Paulo, e

suas ideias ficaram registradas indelevelmente em minha memória.

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2.3 Técnica de dança moderna/contemporânea a partir de Holly Cavrell

A professora Holly Cavrell, norte-americana radicada no Brasil, foi convidada em 1995


para contribuir com um trabalho técnico e artístico ministrando aulas de dança contemporânea
e desenvolvendo um diálogo do seu trabalho de preparação corporal com os processos criativos
dos novos coreógrafos convidados. Com longa trajetória na dança internacional, Cavrell
desenvolveu ao longo de sua carreira estratégias próprias de um treinamento técnico voltado
para a formação do intérprete-criador no contexto da dança contemporânea. Para ela
(CAVRELL, 2015, p. 214), sua preocupação em ensinar dança, estava em preparar um corpo
técnico com habilidades, possibilitando o bailarino entender o caminho do movimento
sugerido, encontrando como se organizar dentro das propostas de movimento, que serão
explicitados adiante.
O trabalho de técnica em dança moderna/contemporânea desenvolvido na companhia
por Cavrell, trouxe uma nova formação corporal – e uma nova linguagem corporal – para
muitos bailarinos da companhia, entre os quais me incluo.
Em seu método de trabalho de dança, Cavrell propõe o uso dos princípios organizativos
de movimento, contemplados nos exercícios e nas sequências coreográficas, para pesquisar um
corpo singular. Nesse processo de aprendizagem usa como estratégia a repetição da sequência
proposta, antes de mudar para outro tema. Na estratégia de repetição, o bailarino é convidado a
compartilhar com o colega de sala, observar e ser observado. Nesse processo de troca de
informações entre os bailarinos, o foco é tomar consciência e entender o caminho do
movimento, buscando se aprofundar no movimento orgânico e não na sua mecanicidade.
Cavrell parte de uma metodologia organizada com sequências de movimento
desenvolvidas a partir de suas experiências como pesquisadora, bailarina, coreógrafa e
professora, aprendidas nos diversos países em que viveu e trabalhou. Cavrell (2015, p. 201)
relata que sua dança não vem apenas dos estudos de dança moderna e balé clássico, mas sim
que emergiu de trabalhos corporais como Pilates, Yoga, Flamenco, dança pós-moderna, contato
e improvisação, release e Gyrotonics,57 e que dessas experiências, ao longo dos anos, vem
desenvolvendo caminhos de ensino que visem entender o corpo de hoje afetado pela sociedade
e suas culturas, criando estratégias e sendo atravessada por todas as práticas corporais ao longo
de sua carreira.

57 O método de educação somática chamado Gyrotonics é um sistema de exercícios desenvolvido por Juliu Horvath

centrado em reestruturação postural e no uso de respiração. Os exercícios são originados da Yoga, da natação e da
ginástica (CAVRELL, 2015, p. 209).

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A bailarina e pesquisadora Paula Telles D’Ajello, mestra em Artes da Cena pelo


Departamento de Artes Corporais, Instituto de Artes, Unicamp sob orientação da Profa. Dra.
Holly Elizabeth Cavrell, define o trabalho técnico de dança contemporânea vivenciado nas
aulas da graduação em dança na Unicamp, na disciplina de Técnica e Expressividade ministrada
por sua orientadora:

No trabalho de Holly, os intérpretes são estimulados a experimentar, no próprio corpo,


as diferenças entre um modo de fazer e outro, sem julgamento. O processo de
aprendizagem não é conduzido de maneira excludente, selecionando a maneira
“certa” e a “errada” de se mover a partir de referências externas. Tudo é possível,
desde que o intérprete saiba o que está fazendo e qual a escolha mais adequada para
cada situação. Assim, ao invés de simplesmente seguir as orientações do professor,
buscando atingir um modelo de resultado, o intérprete coloca-se como pesquisador,
explorando procedimentos e discernindo os resultados a partir da experiência
vivenciada em seu próprio corpo. (D’AJELLO, 2016, p. 23)

Cavrell aborda a técnica de uma linguagem de dança, como uma habilidade no


entendimento dos caminhos que o corpo pode percorrer, na construção de um corpo expressivo
de uma linguagem específica, dentro do universo corporal de cada artista da dança. Nesse
processo de ensino Cavrell propõe uma abordagem metodológica para exercitar o isolamento e
sucessão nos movimentos, fundamenta os movimentos de queda e recuperação, exercícios
pendulares do tronco, cabeça, pelve, braços e pernas, trabalhando esses segmentos de forma
global ou isoladamente em determinada parte do corpo.
Os exercícios são propostos pensando num corpo que se move por meio das
transferências do peso sobre o espaço em diferentes níveis, como se a posição vertical fosse
sempre um momento, para em seguida deslocar seu peso sobre o apoio dos dois pés ou em
apoio unipodal.
Nos anos em que atuou como preparadora corporal em dança contemporânea no Balé
da Cidade, Cavrell buscava trazer para nossos corpos o entendimento da técnica, mas com o
olhar de quem sabe o que faz, respeitando o universo artístico de cada bailarino. Diz ela:

A natureza da dança inclui seu estado de impermanência. Mas isto não impede o
questionamento em relação àquilo que os corpos carregam em si como heranças
visíveis e históricas. O que seria uma cartografia registrada no corpo e como
poderíamos interpretar as informações que convergem para o corpo dançante? Seria
o movimento na dança visto como técnicas e sistemas de conhecimento acumulados
ao longo do tempo ou como estratégias que permitem a visibilidade e compreensão
de ideias do artista e seus diversos contextos? (CAVRELL, 2015, p. 17)

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65

Após os exercícios servirem como aquecimento e a prática como pesquisa no corpo


dançante, proporcionando vocabulários de movimento dentro da linguagem contemporânea de
dança, Cavrell propunha jogos compositivos e improvisações. Era um momento para despertar
possibilidades criativas e o domínio de novos percursos, dinâmicas e ritmos, preparando um
corpo técnico e sensibilizando o intérprete/criador para os processos de criação e os ensaios dos
repertórios da companhia.
A respeito do trabalho desenvolvido ao longo de sua carreira, Holly Cavrell descreve
como construiu um pensamento voltado para o artista como indivíduo na sua singularidade:

Até onde minha história pessoal me diz respeito, eu era passionalmente atraída pelo
movimento de Graham, encantada e didaticamente instruída por Humphrey, e
transformada pela coreografia de Tamiris. Cada uma delas desenvolveu uma parte de
mim e permitiu a construção de uma identidade pessoal expressiva, filosófica e
consciente de sua arte. Ao ensinar as técnicas de Graham e Humphrey, tornei-me
verdadeiramente submersa no universo de cada uma, porque eu tinha que transmitir
não apenas os exercícios, mas também, os princípios por detrás dos movimentos. Para
poder inspirar, eu precisava de um profundo conhecimento empírico de seus
trabalhos, não apenas uma familiaridade de passos e estilo. (CAVRELL, 205, p. 124)

Seu trabalho de dança desenvolveu-se num processo dinâmico ao longo dos anos,
permitindo ser afetada pelas diferentes experiências vividas, sendo transformada pelos
resultados dos corpos de seus alunos, buscando estratégias para se conectar à
contemporaneidade, num processo vital como artista que se conecta ao seu tempo atual. Em seu
livro Dando Corpo à História Cavrell (2015 , p. 20), Cavrell descreve a importância da
observação do corpo na história da dança e nos bailarinos atuais, que envolve conhecimento
empírico, intuitivo e inato, desvendando sua história “procurando pistas no movimento e em
outros dados referenciais”.
Nas aulas de técnica de dança contemporânea ministradas no Departamento de Artes
Corporais, Instituto de Artes, Unicamp, no curso de graduação em dança,58 Cavrell relata que
os corpos de hoje são diferentes dos de ontem, precisamos olhar e perceber como esse indivíduo
está inserido social e politicamente na sociedade. Esse pensamento se aproxima do de Dantas
(1999, p. 100): o corpo que dança é construído na sua vida cotidiana, interferido pelas diferentes
experiências no processo de socialização, de educação, de repressão e de transgressão. Em
Dantas e nos conceitos do trabalho de dança de Cavrell, o corpo que dança sempre precisa ser
revisto relacionado a seu tempo, para assim organizar um trabalho corporal que dialogue com

58Frequentei as aulas da Profa. Holly Cavrell na disciplina Técnica e Expressão, no Departamento de Artes
Corporais, Instituto de Artes, Unicamp no curso de Graduação, durante os anos de 2016, 2017 e 2018.

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a contemporaneidade, em uma estrutura de preparação corporal de aula que passe dos limites
do entendimento técnico dos exercícios, para nos conduzir a experimentar modos de fazer sem
julgamento, onde o intérprete vivencie as experiências em seu próprio corpo, atuando como um
pesquisador da prática e utilizando a prática como pesquisa.
No ano de 1995 iniciei no curso de Fisioterapia na Universidade Bandeirante de São
Paulo, no mesmo ano em que Cavrell iniciou na companhia. O curso trouxe conhecimentos
teóricos em anatomia e cinesiologia, que depois, aplicados nas aulas mediante procedimentos
somáticos59 e nos exercícios das aulas de dança contemporânea, possibilitaram a consciência
do corpo articular e muscular e o entendimento teórico e prático do caminho do movimento.
Com os estudos teóricos da faculdade de Fisioterapia e as aulas praticas de Cavrell, passei a ter
maior consciência do movimento involuntário da respiração mediante exercícios de dança
propostos em aula. Ao realizar os exercícios percebia a consciência do fluxo respiratório, e
progressivamente ia deslocando a atenção da respiração para diferentes partes do corpo num
processo imagético, do oxigênio invadindo determinada área do corpo,
Iniciar a aula de dança com o foco no processo respiratório trouxe ainda a consciência
dos aspectos internos, ao começar o movimento do centro do corpo e deslocar para as
extremidades, iniciando o movimento pela respiração, como “um ponto de partida para a
construção da frase do movimento” (BARTENIEFF, 1977, apud LAMBERT, 2010, p. 95). A
pesquisadora Marisa Lambert ainda afirma que também através da consciência do processo
respiratório pode-se estimular a consciência do espaço interno, conectado pela coluna vertebral
(LAMBERT, 2010, p. 127).
A coluna vertebral, inserida no tronco, é definida como um tutor sólido (CALAIS-
GERMAIN, 2005, p. 44), situado na linha média do tronco, conecta a cabeça ao pescoço, fixado
pelos músculos inspiratórios (esternocleidomastoideos, escalenos e serráteis); conecta-se à
caixa torácica com cerca de quarenta articulações e vários músculos movendo-se ou se fixando
em torno da coluna.
A região lombar se conecta aos músculos abdominais e ao diafragma, chegando até a
região pélvica e fixando-se ao assoalho pélvico. A consciência anatômica e mecânica desse
processo respiratório possibilitou o entendimento dos movimentos das esferas cilíndricas:

59Abordagens somáticas – entre as correntes que vêm ganhando crescente espaço nas aulas de dança em todo o
país encontram-se as chamadas escolas de educação somática. O Método Feldenkrais, a Eutonia, a Técnica de
Alexander e o Body-Mind Centering (BMC) baseiam algumas dessas escolas, que compartilham entre si, assim
como outros princípios, o fato de considerarem o ser humano de acordo com uma perspectiva integral; corpo e
mente constituem um organismo indissociável, formando um conjunto integrado (GERALDI, 2010).

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cabeça, tronco e pelve nos movimentos de flexão e extensão, queda, depressão e torsões, uma
vez que no ato inspiratório ocorre uma elevação e dilatação da musculatura respiratória, e ao
expirar ocorre uma depressão, contração da musculatura respiratória.
Um aspecto significativo nesse processo de formação em dança contemporânea,
adquirido nos anos em que estive atuando no Balé da Cidade, foi o entendimento do peso do
corpo e a relação da gravidade nas suas diferentes gradações. Antes de iniciar os estudos
práticos de dança moderna/contemporânea com Holly Cavrell em 1985, minha sensação de
risco era como se o meu corpo estivesse sempre em queda rígida, mas, com a prática em dança
contemporânea passei a ter mais consciência controlada nos movimentos. Entendia como
abandonar e controlar o peso em determinada parte do corpo e ir ao solo com flexibilidade e
elasticidade. Aprendia a explorar minha própria arte de dançar, não mais como um repetidor
dos passos de balé clássico, mas como um pesquisador de novas possibilidades de gestos,
buscando nas técnicas aprendidas e na minha história de vida social e cultural uma forma de
movimentar o corpo com mais propriedade, encontrando minha própria identidade corporal.
Como procedimento de percepção corporal, em suas aulas no Balé da Cidade de São
Paulo, Cavrell propunha sentarmos em dupla, com as costas em contato. O foco era
percebermos cada parte da coluna vertebral e todo das costas, e ao contarmos uma história para
o companheiro o torso ganhava movimento. Nesse procedimento de percepção e consciência
corporal aconteciam inicialmente pequenos movimentos que depois aumentavam sua
amplitude, assim o tronco se movimentava acompanhado pelos movimentos articulares da
coluna vertebral. O contato com as abordagens para sensibilizar o corpo, aplicadas em cada
encontro semanal, possibilitou desenvolver um corpo mais sensível, de modo a aplicar esses
instrumentos corporais como fonte criativa, em um diálogo entre a técnica e a poética do
movimento.
As propostas desenvolvidas nas aulas nos estimulavam a encontrar diversas camadas
cognitivas, possibilitando ampliar a expressividades dentro da dança, que vinha fazendo na
companhia. Essas aulas aconteciam duas vezes por semana, e nos outros dias tínhamos aulas
de balé clássico. Assim, procurávamos agregar novas maneiras de dançar e aplicar o trabalho
de técnica desenvolvido nas aulas de dança contemporânea e de balé clássico, no aprendizado
de remontagens coreográficas e na participação das novas criações. Eu procurava ampliar os
movimentos imaginando-os do centro para as extremidades; ao imaginar o movimento dos
braços iniciando-se pelas escápulas, tinha a sensação de que meu corpo ganhava volume.
Com base no trabalho corporal desenvolvido no Balé da Cidade de São Paulo, eu
identificava de que forma a preparação corporal serviria como trabalho técnico na formação do

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intérprete-criador e, também, como disparador no processo criativo dos 3 coreógrafos


convidados, que serão descritos no capítulo 3.

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Capítulo 3: Coreógrafos internacionais no Balé da Cidade de São Paulo

3.1 Vasco Wellenkamp – De repente, não mais que de repente

O coreógrafo Vasco Wellenkamp, de origem portuguesa, foi bailarino, professor de


dança contemporânea e coreógrafo do Ballet Gulbenkian, estudou dança contemporânea em
Nova York, na Escola de Dança Contemporânea de Martha Graham, frequentou curso de
composição com Merce Cunningham e dança clássica com Valentina Pereyslavec no American
Ballet Theatre.
Como coreógrafo desenvolveu obras coreográficas para grandes companhias de dança,
como Ballet du Grand Théâtre de Genève, Baletto di Toscana, Extemporary Dance Theatre,
Ballet do Teatro Nacional de Zagreb. No Brasil, desenvolveu obras coreográficas para o Cisne
Negro Cia. de Dança; Keep Going (1988) e Sábia (1988), remontagem de Passacaglia (1992)
e Cânticos Místicos (1989). Para o Balé da Cidade de São Paulo, desenvolveu Sinfonia de
Réquiem (1994), De repente, não mais que de repente (1995) e Como Num Jardim (1997). Em
De repente, não mais que de repente, Wellenkamp desenvolveu uma criação com canções de
Tom Jobim, tendo como ideia inicial homenagear esse compositor.
Segundo Ivonice Satie, em entrevista concedida para um documentário realizado pela
TV Cultura e exibido no ano de 1995, a proposta de desenvolver um trabalho com canções de
Tom Jobim consistia em “buscar material fonográfico conhecido e desconhecido pelo público.
A obra De repente, não mais que de repente foi desenvolvida numa relação direta com
a música, em uma sincronia entre a melodia, o ritmo e o próprio significado da letra. Com
direção musical e arranjos vocais de Paulo Jobim – filho do compositor –, direção teatral de
Iacov Hillel e figurinos de Helena Lozano. A obra coreográfica foi construída em 17 cenas,
desenvolvida em um processo de mão dupla entre o coreógrafo e os intérpretes, que ao
receberem a partitura de movimento, traduziam para o coreógrafo seu entendimento corporal,
atravessado pela música de Jobim.
Ao se abrirem as cortinas, os bailarinos aos poucos entram em cena e permanecem
imóveis, criando um ambiente silencioso, traduzindo corporalmente o sentido do Soneto de
Separação, declamado pela voz de Jobim. A obra foi intitulada De repente, não mais que de
repente, retirado do 4º verso da 3ª estrofe desse poema de Vinicius de Moraes, para a qual Tom
Jobim compôs a música.

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De repente do riso fez-se o pranto


Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto

De repente da calma fez-se o vento


Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama

De repente, não mais que de repente


Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente

Fez-se do amigo próximo, distante


Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente

Vinicius de Moraes

O processo criativo de Wellenkamp permitia que o intérprete participasse do ato de


criação. O coreógrafo propunha a ideia de movimento e deixava que seguíssemos o fluxo para
encontrarmos outras possibilidades. Alguns bailarinos tinham dificuldade em propor ideias,
algo que se dava também com os que vinham de outras companhias e não haviam
experimentado compor juntamente ao coreógrafo. Isso se aplica especialmente a mim, que
ainda estava aprendendo um trabalho de corpo no pensamento da dança contemporânea, distinto
do que havia vivenciado antes de entrar para o Balé da Cidade de São Paulo.
Nessa criação coreográfica os movimentos estão sempre passando de um momento de
suspensão, na vertical, para uma queda abrupta em direção ao solo por intermédio dos apoios
de uma ou mais partes do corpo. A movimentação de Wellenkamp transita em diferentes
dinâmicas e tensões corporais que, em sincronia entre a música e os movimentos corporais,
geram uma movimentação fluida envolvida pelo ritmo da música.
Para Wellenkamp, o principal trabalho de um coreógrafo é criar uma imagem daquilo
que ouvimos e traduzi-la por meio da dança. Nesse sentido, o coreógrafo procurou não se
desviar dos sentimentos mais profundos que a própria música de Tom Jobim provocava,
imprimindo na obra a mesma emoção que a música lhe passava.60

60Entrevista concedida para o documentário de estreia do Balé da Cidade de São Paulo no espetáculo De repente,
não mais que de repente, coreografia de Vasco Wellenkamp. Produzido pela TV Cultura, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=ocFujH49Kdg; acesso em: 2 abr. 2018.

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Seu vocabulário coreográfico se inspirava na fusão da dança moderna americana com o


balé clássico, usando muito do virtuosismo técnico com o qual eu estava habituado, buscando
em cada movimento uma forma dentro da estética já conhecida do balé clássico. No entanto,
precisava aplicar corporalmente as variadas possibilidades de movimentação do tronco na
flexão frontal e lateral e circular. Nesse momento o desafio era entender uma forma de ir para
o chão, como acessar o relaxamento das articulações na sua flexibilidade e obter conhecimento
do ato de transferência do peso com a ação do centro do corpo, no contato com o chão de forma
contínua e fluida. Era um desafio que eu procurava trabalhar diariamente a partir dos exercícios
propostos por Cavrell, encontrando um diálogo entre o trabalho de preparação corporal em
dança contemporânea e a movimentação de Wellenkamp.
Como muitos coreógrafos que desenvolveram criações na companhia, Wellenkamp não
propunha nenhum trabalho estruturado de preparação corporal para servir como base a sua
criação. Wellenkamp faz parte de um grupo de coreógrafos contemporâneos, que segundo
Dantas (2005, p. 43), não se preocupam em desenvolver um sistema próprio de treinamento e
em codificar uma técnica.
Ao iniciar seu processo de criação com a companhia, algumas vezes Wellenkamp
chegava com frases coreográficas previamente desenvolvidas ou as desenvolvia diretamente
com os intérpretes que iria trabalhar no momento, e, ao transmitir a partitura de movimento,
permitia que o intérprete a reelaborasse como um “bailarino produtor”, encontrando outros
significados expressivos, inspirados na própria movimentação desenvolvida pelo coreógrafo e
na temática musical. Essa forma de desenvolver coreografia que Wellenkamp trazia para a
companhia naquele momento defino como afirma Laurence Louppe (2013, p. 227) como um
processo que se dá entre coreógrafo e intérprete, de forma que o bailarino contemporâneo seja
antes de tudo um produtor em conjunto com o coreógrafo.

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Figura 21: Coreografia De repente não mais que de repente,


de Vasco Wellenkamp,1995 – foto: João Mussolini

Wellenkamp parte dos movimentos do vocabulário da técnica de balé clássico integrado


à dança moderna americana,61 em atravessamento das duas linguagens, deslocando o
pensamento corporal para um processo de desconstrução, para garimpar outras possibilidades
poéticas no movimento dançado.
O coreógrafo optou por selecionar para a obra De repente não mais que de repente,
tosos os integrantes de bailarinos da companhia. Essa escolha definiu a escrita coreográfica,
desenhada com a heterogeneidade de cada integrante da companhia no desenvolvimento de um
trabalho eclético e criativo, permitindo que cada integrante contribuísse com seu jeito de dançar.
Uma das características estéticas dessa criação é o modo como Wellenkamp faz uso do elenco
masculino, formando casais entre bailarinos e bailarinas – também muito comum em seus
outros trabalhos –, com uso de duos, trios e quartetos e coreografias em grupo, principalmente
para terminar com todos em cena.

61O pesquisador e bailarino Dr. Robson Lourenço, afirma em sua tese de doutorado sobre o trabalho corporal
desenvolvido nas coreografias de Vasco Wellenkamp que em suas criações estavam muito presentes “os
fundamentos de queda, recuperação, oposição e suspensão, baseadas na técnica de dança moderna americana”
(LOURENÇO, 2012, p. 119).

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3.2 Germaine Acogny – Z

Zumbi é um personagem simbólico, um símbolo. De fato, Zumbi é um


ser, é a liberdade, liberdade que mora em cada um de nós. Não
importa a cor nem o continente. A liberdade é um fogo interior que
queima em nós, que nos consome e que nos faz um ser. A liberdade
é uma força, é uma união. A liberdade, para mim, é algo indefinível,
de que todos nós precisamos.62
Germaine Acogny

A coreógrafa e bailarina Germaine Acogny nasceu no ano de 1944 em Porto Novo,


Benim, mas mudou-se quando criança para o Senegal. Aos 18 anos foi estudar educação física
e ginástica rítmica em Paris, França. Nos Estados Unidos, realizou cursos de dança moderna
com Martha Graham, José Limón63 e Alvin Ailey.64 Após sua formação voltou para a África e
começou a introduzir o que denominou de “dança negro-africana” no programa de formação
do Instituto Nacional de Artes de Dakar, onde atuava como chefe de departamento.
Posteriormente Acogny foi convidada para a direção artística do Centre Africain de Recherche
et de Perfectionnement de l’Interprète (Centro Africano de Pesquisa e de Aperfeiçoamento do
Intérprete), sob direção geral de Maurice Béjart,65 nomeado como Mudra Afrique.66 Nesse
projeto Acogny e Béjart desenvolveram uma pesquisa de comunicação entre as estéticas
europeias e africanas, que permaneceu ativa de 1977 a 1982.67 Germaine Acogny sistematizou
uma técnica baseada na associação e síntese entre danças da cultura africana e dança moderna

62 Trecho da entrevista concedida para o documentário produzido pela TV Cultura sobre a produção do espetáculo
Z, coreografia de Germaine Acogny, apresentado pelo Balé da Cidade no Teatro Municipal de São Paulo em 2005
(Arquivo pessoal, FBL).
63 José Limón (1908 – 1972) – Dançarino, coreógrafo e professor. Nacionalidade mexicana, estudou com Doris

Humphrey e Charles Weidman. Fundou a José Limón Dance Company em 1974, lodo se tornaria uma das mais
importantes companhias de dança moderna americana, com Doris Humphrey como co-diretora artística. Como
coreógrafo seu estilo era dramático como Martha Graham, no entanto, buscava temas mais contemporâneos,
marcado por sua grande musicalidade e poder de expressão (FARO, SAMPAIO, 1980, p. 239).
64 Alvin Ailey (1931 – 1989) – Dançarino, coreógrafo e diretor de balé, estudou com Lester Horton, Martha

Graham, Holm Charles Weidman em Nova York. Iniciou sua carreira com a Horton Dance Theatre em 1950,
tornando-se diretor após a morte de Lester Horton em 1953. Formou sua própria companhia a Alvin Ailey Dance
Theatre em 1958. Como coreógrafo combinava elementos da dança africana, dança moderna americana, jazz e
balé clássico (FARO, SAMPAIO, 1980, p. 4).
65 Maurice Béjart (c.1927-2007): dançarino, coreógrafo, professor e diretor, nasceu em Marselha, França. Estudou

na Escola de Ballet da Ópera de Marselha e depois em Paris, com Staats, Egorova, Kiss e Rousanne, e em Londres,
com V. Volkova. Foi diretor e coreógrafo do Ballet do Século XX, sediado em Bruxelas, de 1960 a 1987,
deslocando-se posteriormente para Lausanne, na Suíça (FARO; SAMPAIO, 1989, p. 51).
66 Mudra é uma escola de dança fundada em Bruxelas em 1970 por Maurice Béjart. Financiada pela Unesco, a

escola tinha a intenção de trabalhar com artistas de diversas partes do mundo. O Mudra Afrique constituiu uma
filial africana (SILVA; SANTOS, 2017).
67 Informações disponíveis em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/11/19/mais!/32.html; acesso em: 23 nov.

2018.

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74

americana (Martha Graham) que se pode constatar em seu livro African Danse, publicado em
inglês, francês e alemão.
Acogny é considerada uma das maiores personalidades da dança africana, como afirma
Ivonice Satie no documentário produzido pela TV Cultura:68

Acogny cria uma fusão da dança acadêmica com a dança moderna que pode
contribuir para os bailarinos desenvolverem um jeito diferente de corpo ao se
movimentar, e esse encontro dos bailarinos com a técnica de dança africana
de Acogny levaria os bailarinos da Companhia à descoberta de nossas origens
ancestrais.

O convite a Acogny para desenvolver uma coreografia em comemoração ao


tricentenário da morte do herói do Quilombo dos Palmares, Zumbi, considerado líder nas lutas
contra a desigualdade e a opressão sofridas pelos negros escravos, surgiu após Ivonice Satie
conhecer seu trabalho coreográfico apresentado na Bienal de Lyon em 1994.69 Para compor a
trilha musical foi convidado o músico brasileiro Gilberto Gil. Segundo Satie,70 o convite se deu
por Gil ser um músico conhecedor das nossas raízes africanas, batidas rítmicas e ancestralidade
africana.
Para iniciar esse processo de criação a coreógrafa Acogny propôs trabalharmos
primeiramente a técnica desenvolvida por ela, uma pesquisa que focalizou sua cultura
tradicional e na qual a dança era constituída pelo diálogo de sua cultura com linguagens da
dança ocidental (Martha Graham, José Limón e Alvin Ailey). Aprendíamos e pesquisávamos a
mistura de informações corporais, e nesse processo de aprendizado éramos conduzidos para o
seu universo criativo com imagens, sensibilizando-nos e buscando por meio dos símbolos da
natureza o movimento expressivo em um diálogo permanente com o céu, a terra e o cosmo.
Na pesquisa de composição, Acogny nos propunha temas para estimular a nossa
criatividade na composição de pequenas partituras de movimento, explorando nosso imaginário
individual a partir de um tema específico, como oração, embate, guerra, flagelação, masculino,
feminino ou festa. Esses temas interferiam na qualidade e na forma do movimento, além de
trazerem a expressividade para dentro da dramaturgia da cena.
Segundo as pesquisadoras Luciane Silva e Inaicyra Falcão dos Santos (2017), o trabalho
técnico desenvolvido pela coreógrafa senegalesa está centrado na ligação com as forças da

68 Documentário produzido pela TV Cultura sobre a produção do espetáculo Z, coreografia de Germaine Acogny,
apresentado pelo Balé da Cidade no Teatro Municipal de São Paulo em 2005 (Arquivo pessoal, FBL).
69 Em 1994, a Bienal da Dança de Lyon teve como tema uma retrospectiva de companhias de dança africanas.
70 Fala de Ivonice Satie para o documentário produzido pela TV Cultura sobre a produção do espetáculo Z,

coreografia de Germaine Acogny, apresentado pelo Balé da Cidade no Teatro Municipal de São Paulo em 2005
(Arquivo pessoal, FBL).

.
75

natureza e na percepção do universo como energia integrada ao corpo, técnica que tem o
imaginário como ponto de partida para gerar os movimentos por meio de simbologia.
O trabalho de corpo desenvolvido por Acogny a partir das raízes africanas era necessário
para nos aproximar do universo de sua dança, e isso se dava pelo vocabulário de movimento
trabalhado em sala de aula, proposto como preparação corporal, também os temas sugeridos
servindo como dispositivo para o processo de criação.
O aquecimento inicial proposto por Germaine Acogny era conduzido com caminhada
em círculo, buscando um ritmo comum entre os bailarinos, como Acogny descreve em seu livro
African Dance, sobre a importância da caminhada. “A caminhada nesse método é muito
importante para sentir o ritmo, o impulso vital da dança, como a seiva que sobe dos pés até as
pequenas costas, até o peito, o pescoço e depois a cabeça”. (ACOGNY, 1994, p. 27)
Durante o aquecimento trazíamos o foco para os pés, para aguçar a percepção do apoio
no metatarso e no calcanhar, permitindo, que o contato dos pés sobre o solo absorvesse a força
da terra e reverberasse em espiral para a pelve, o tronco e a cabeça, como um fluxo de energia
favorecendo os movimentos de ondulação da coluna vertebral. A imagem que Acogny nos
trazia frequentemente era a do tigre caminhando. Trabalhávamos as ondulações e torções do
torso associadas aos movimentos dos braços, e constantemente Acogny repetia que na dança
africana o ritmo é muito importante, sobretudo na sua cultura existe um diálogo entre a dança
e a percussão, e a “dança é verdadeiramente um diálogo com ritmo, que é a vida”.71 Um dos
princípios da técnica desenvolvida por Acogny consistia em estimular que o movimento
emergisse da coluna vertebral, como se ele brotasse da região do tronco para as extremidades.
Para a elevação da coluna vertebral (tronco), por exemplo, Acogny dirigia nossa
consciência para a osso esterno, na parte anterior do tórax, denominado le soleil, como o high
release na técnica de Martha Graham. Para a coreógrafa senegalesa a intenção era o
direcionamento da parte superior do peito para o sol, tracionando todo o tronco para cima. Para
a região do púbis, denominada “les étoiles”, as estrelas, “centro de forças” que conecta nosso
corpo com a terra e o céu, Acogny destaca a importância da posição dos pés determinando a
posição da bacia e sua relação na aceitação da gravidade a favor do movimento, uma
especificidade da dança africana: “É necessário ter sempre em mente que esse diálogo com a

71Informações contidas no documentário produzido pela TV Cultura sobre a produção do espetáculo Z, coreografia
de Germaine Acogny, apresentado pelo Balé da Cidade no Teatro Municipal de São Paulo em 2005 (Arquivo
pessoal, FBL).

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76

terra, o céu, as árvores e o cosmo é um diálogo permanente com a força cósmica, para que possa
existir uma comunhão entre o céu e a terra”.72

Após a aula de técnica a coreógrafa nos conduzia ao seu universo criativo, propondo
exercícios de improvisação num processo colaborativo entre os bailarinos. Para cada cena pedia
que desenvolvêssemos a partir da improvisação pequenas células de movimento,
posteriormente trabalhadas individualmente com ela. Em seguida, a coreógrafa organizava o
material corporal, sugerindo novas possibilidades de movimentos com base na partitura
desenvolvida, trazendo novas ideias. Nessa pesquisa incorporava o que fazia sentido para a
obra, somando as células desenvolvidas pelos bailarinos ou mesmo os movimentos
desenvolvidos por ela mesma.
Nesse processo percebia o diálogo entre a preparação corporal desenvolvida por Holly
Cavrell e Germaine Acogny direcionada a parte criativa. Cada célula desenvolvida tinha um
sentido dentro da dramaturgia proposta pela coreógrafa, que tinha uma temática e uma proposta
de movimento bem claras. Ao uni-las, construía-se uma linguagem brasileira inspirada nas
raízes africanas, trazendo para o palco um Zumbi universal dentro de questões política e social.
Nessa experiência do contato com a movimentação desenvolvida por Acogny percebo
que o desafio não era fazer uma cópia corporal do que ela estava propondo, mas encontrar de
onde partia esse impulso, com pequenos movimentos do tronco, para que cada bailarino
encontrasse em seu próprio corpo a potência interna na cena.
A obra foi denominada Z, que representa a primeira letra do nome de Zumbi dos
Palmares, e a estreia aconteceu no dia 5 de dezembro de 1995 no Teatro Municipal de São
Paulo.

72 Informações contidas no documentário produzido pela TV Cultura sobre a produção do espetáculo Z, coreografia

de Germaine Acogny, apresentado pelo Balé da Cidade no Teatro Municipal de São Paulo em 2005 (Arquivo
pessoal, FBL).

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77

Figura 22: Coreografia Z, de Germaine Acogny, 1995 (Acervo pessoal,


FBL). Milton Kennedy (centro), Robson Lourenço (esquerda) e Flávio
Lima – foto: João Mussolini

Figura 23: Coreografia Z, de Germaine Acogny, 1995. Da esquerda


para direita, Flavio Lima, Milton Kennedy e Robson Lourenço foto:
João Mussolini

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78

3.3 Ohad Naharin – Axioma 7

O coreógrafo Ohad Naharin nasceu no ano de 1952 em Mzra, Israel. Em 1974, ainda
com pouco estudo em dança, entrou para a Batsheva Dance Company. Durante seu primeiro
ano atuando como bailarino, Martha Graham que naquele momento atuava como coreógrafa do
Batsheva Dance Company, o convidou para integrar o elenco de sua companhia em Nova York.
Naharin permaneceu na Martha Graham Dance Company entre 1975 e 1976, depois estudou
dança no American Ballet School, na Juilliard School, e com os professores Maggie Black e
David Howard. Em seguida foi convidado para integrar o elenco do Ballet do Século XX, de
Maurice Béjart, em Bruxelas. Em 1979, de volta a Nova York, começou sua carreira como
coreógrafo, desenvolvendo trabalhos para diversas companhias de dança, ao mesmo tempo
trabalhando com seu próprio grupo de bailarinos, desenvolvendo criações coreográficas. Em
1990 foi convidado para ser o diretor artístico e coreógrafo residente da Batsheva Dance
Company. Permaneceu até 2018 no cargo de diretor artístico, e depois ficou somente como
coreógrafo residente.73
Em 1996 Ivonice Satie convidou Ohad Naharin para remontar na companhia um dos
seus trabalhos coreográficos. Aceito o convite, nosso primeiro contato com o coreógrafo
Naharin aconteceu em 1996, quando a companhia participava da 7ª Bienal de Dança de Lyon,
na França. O encontro com a linguagem de dança de Naharin se deu na sala de ensaio da Opéra
National de Lyon, quando nos apresentou partituras de movimento da coreografia Axioma 7,
dividida em três movimentos, com música de Johann Sebastian Bach (1685-1750): o Concerto
de Brandemburgo no 4, interpretado pela English Chamber Orchestra sob regência do maestro
Raymond Leppard, coreografia desenvolvida para o Ballet du Grand Théâtre de Genève.
Em entrevista concedida à crítica de dança Ana Francisca Ponzio publicada na Folha
de S. Paulo, Naharin explicou os motivos da escolha e qual o significado do título dessa obra:

Por que você escolheu remontar Axioma 7 para o Balé da Cidade?


Primeiro, porque é um espetáculo feito para um grupo numeroso de bailarinos.
Segundo, porque é uma peça muito estruturada, capaz de se manter corretamente, fiel
ao original, mesmo quando eu não estiver mais presente, orientando a companhia.
Há um tema em Axioma 7?

73 Informações do site Batsheva Dance Company; disponível em


https://batsheva.co.il/en/about?open=ohas_naharin: acesso em: 2 nov. 2018.

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79

Não é sobre um tema, mas pode conter vários. É um trabalho sobre composição, não
sobre ideias, mas como juntar ideias. Axioma 7 é uma peça que desperta emoções e
sensações. Também enfoca a forma dos movimentos, como quebrar esta forma, e
neste sentido é muito matemática. É dançada ao som do Concerto de Brandemburgo
nº 4, de Bach, uma música que não pode ser ilustrada. Esta obra desse grande
compositor desafiou-me a criar minha própria forma e minha própria estrutura em
termos coreográficos. Ao assistir Axioma você pode tecer comentários sobre
sociedade, amor, fragilidade ou espontaneidade. Mas a composição se assenta sobre
a pesquisa do movimento e da estrutura.
Qual o significado do título Axioma 7?
O filósofo Spinoza tem ensaios sobre a existência de Deus, e Axioma nº 7 é um deles.
Não tenho um conhecimento profundo a respeito da obra, mas sei que fala sobre a
impossibilidade de provar a existência de Deus por meio de uma ideia simples. Mas
eu já gostava da palavra “axioma” antes de ler Spinoza. Acho que contém uma ideia
intrigante. Pode significar matemática e também um fato inquestionável.
Então você se inspirou em Spinoza para compor Axioma 7?
Não. Spinoza é um pensador que me inspira, mas Axioma 7 não tem relações diretas
com o ensaio dele.
Qual o seu conceito de dança moderna?
Não gosto de chamar nada de moderno, porque às vezes pode dar margem à ideia de
uma arte que não reconhece o passado. Como, para mim, tudo está conectado ao
passado, tenho restrições ao termo moderno.
A cultura judaica está presente em seu trabalho?
Sim, porque minha maneira de trabalhar reflete minhas limitações. Sou judeu, mas
também sou outras coisas. Quando estou criando não tento representar meu povo, mas
sei que minha condição está representada, porque faz parte de mim.

Para remontar Axioma 7, Naharin convidou sua assistente de coreografia e ensaiadora


Mari Kajiwara,74 que chegou a São Paulo no final de 1996. Kajiwara, diretora de ensaio da
Batsheva Dance Company, começou a remontagem de Axioma 7 no mês de novembro, e
durante 4 semanas aprendemos todas as partes da coreografia. Para cada parte do solo, dos duos
ou trios, havia pelo menos três pessoas aprendendo e o elenco que estrearia no Theatro
Municipal de São Paulo em 3 de dezembro de 1996 seria definido após a chegada de Ohad
Naharin.
Com a chegada do coreógrafo Ohad Naharin, 15 dias antes da estreia, iniciamos uma
experiência com a linguagem de movimento desenvolvida por ele, GAGA.75 Sem espelho,
como exigência do coreógrafo para trabalhar a linguagem GAGA, improvisávamos atentos ao

74 Mari Kajiwara (1951-2001): bailarina e assistente de ensaio do Alvin Ailey American Dance Theatre de 1970
até 1984, em 1990 mudou-se para Israel com Ohad Naharin para exercer a função de diretora de ensaio da Batsheva
Dance Company.
75 GAGA: linguagem de movimento desenvolvida por Ohad Naharin ao longo de sua trajetória como coreógrafo.

O método permite aos bailarinos irem além do que conhecem de seu repertório de movimento mediante
improvisação guiada. Baseia-se em pesquisas para aumentar a sensação e a imaginação, tomando consciência da
forma, encontrando novos hábitos de movimento e indo além dos limites familiares. Atualmente GAGA é o
treinamento diário dos dançarinos da Batsheva Dance Company. Informações do site Batsheva Dance Company;
disponível em https://batsheva.co.il/en/about?open=ohas_naharin: acesso em: 2 nov. 2018.

.
80

seu comando. Ohad nos propunha sentir as partes internas do tronco, imaginando que
tivéssemos um micro - inseto mecânico se deslocando internamente. Com a atenção nesse corpo
mecânico, o foco era a atenção para cada parte do corpo, seguindo o caminho que esse micro -
inseto realizava, e procurávamos movimentar o corpo à medida que o inseto se locomovia.

Figura 24: ensaio da coreografia Axioma 7, de


Ohad Naharin, 1996. Flávio Lima e o coreógrafo
Ohad Naharin - foto: Silvia Machado

Figura 25: ensaio da coreografia


Axioma 7, de Ohad Naharin, 1996.
Flávio Lima e o coreógrafo Ohad
Naharin – foto: Silvia Machado

Com o método GAGA, Naharin nos conduzia para percebermos a distância entre as
partes do corpo, o espaço entre as articulações, a consciência da relação do corpo com o espaço,

.
81

a distância entre nosso corpo e os colegas de trabalho. Ele nos trazia a imagem de um pote de
mel caindo e escorrendo sobre o corpo, fazendo com que a qualidade do movimento se tornasse
mais densa e contínua, e no decorrer da improvisação pedia que nos conectássemos ao prazer
dos movimentos que estávamos fazendo naquele momento, tornando-nos presentes e
conscientes do agora.
Sentir no corpo o seu trabalho de preparação corporal GAGA permitia repensar além da
movimentação de Axioma 7, que está pautada nos códigos de balé clássico e da dança moderna
americana, pois Naharin os descontruía indo além da forma proposta, queria que fizéssemos os
movimentos com sensação de liberdade, buscando realizá-los de forma articular e não
muscular, procurando nossa própria maneira de expressão dentro do vocabulário proposto.
Como intérprete repensava como transportar a sensação corporal a partir de GAGA para
os outros trabalhos coreográficos, e também como fazer aula de balé clássico articulando com
a sua linguagem de movimento. Muito do que ele nos propôs nesse momento fez mais sentido
quando Naharin voltou em 2003, para remontar três coreografias: Queens of Golub, trabalho
coreográfico somente para o elenco feminino, Black Milk, trabalho coreográfico somente para
o elenco masculino, e Perpetuum, trabalho coreográfico desenvolvido para todos os bailarinos.
Eu pensava ser preciso chegar à movimentação proposta na coreografia na sua forma
mais clara possível, mas Naharin queria que chegássemos à essência do movimento proposto
em sua coreografia, permitindo que todo trabalho desenvolvido a partir das aulas de técnica de
balé clássico e dança moderna/contemporânea, fosse como descreve Strazzacappa (2012, p. 38)
a “técnica como um meio e não um fim, e desse modo a forma era uma passagem do movimento
e não um fim. Para Naharin o corpo fica em estado de atenção, como faz o animal ao encontrar
sua caça, à espreita esperando para dar o bote.
Nessa sensação corporal de atenção e tensão muscular, a segunda posição do balé
clássico surgia de forma exagerada, de modo que os pés ficassem distanciados ao máximo no
movimento de grande flexão do joelho em rotação externa da articulação coxofemural. Essa
posição proporciona ao corpo estabilidade no espaço, permitindo que o bailarino se desloque
com rapidez para qualquer direção, despontando no corpo uma presença cênica.
O coreógrafo Naharin não queria que tivéssemos à atenção no contorno do corpo,
definindo a forma e para isso nos pedia, que mantivéssemos as mãos como as de um bebê, com
os dedos em flexão, quase fechados em posição de relaxamento, denominada por ele de baby
hands. Para Naharin as extremidades do corpo não são importantes, fundamental é o movimento
ter seu impulso a partir do tronco, com o corpo todo em posição de espreita, como se fosse um

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82

animal pronto para pegar sua presa, fazendo gestos pequenos e delicados, mas voltados para o
ataque repentino.

Figura 26: Coreografia Axioma 7, de Ohad Naharin, 1996

Figura 27: coreografia Axioma 7, de Ohad Naharin, 1996 –


foto: Silvia Machado

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83

Figura 28: coreografia Axioma 7, de Ohad Naharin, 1996 –


foto: Silvia Machado

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84

Capitulo 4 – Análise das conexões estabelecidas pelo pesquisador entre o


trabalho de preparação corporal e as coreografias dançadas

4.1 A prática como pesquisa no processo criativo e na docência

Ao escrever sobre as experiências vividas nas criações coreográficos de diversos


criadores em dança contemporânea, analiso de que forma essas informações recebidas de
diversos artistas contribuíram no meu modo de dançar e também ao aplicá-los na docência. As
aulas de balé clássico e as aulas de preparação corporal da técnica de dança
moderna/contemporânea ministrada pela Profa. Cavrell foram fundamentais para que meu
corpo estivesse preparado fisicamente e apto para dançar os repertórios da companhia, e,
mediante entendimento corporal nos estudos dos fundamentos e princípios de suas aulas, isso
me permitia explorar novas possibilidades de movimento. Ao longo do tempo, procurei
desenvolver como intérprete algumas estratégias para rememorar os procedimentos seguidos
durante o processo de criação, e após as aulas de balé clássico ou dança contemporânea eu me
dirigia para a sala de ensaios, onde refletia e atualizava em meu corpo os procedimentos e
movimentos desenvolvidos pelo coreógrafo ao longo do processo de criação.
Essa ponte entre a preparação corporal, o rememorar de procedimentos de criação e os
ensaios do repertório coreográfico abriu caminhos para o meu processo de desenvolvimento
como pesquisador, e a partir do momento em que passei a trilhar a docência e criação, surgiram
questões que reverberaram em meu processo diário como professor e criador em dança.

A partir da experiência pessoal como intérprete-criador: influenciar e ser influenciado


no processo de criação.

Refletindo sobre o titulo acima, percebo que o processo de trabalho em dança está em
constante transformação. Os procedimentos aplicados no ano anterior precisam ser revistos para
determinado momento da atualidade, uma vez que a arte contemporânea é um campo amplo,
aberto para o novo, e de infinitas possibilidades. A vida diária de um artista profissional é um
processo em que o intérprete se coloca em desafio o tempo todo, permitindo-se experimentar,
errar e acertar para conquistar outras possibilidades. Em uma companhia de dança como o Balé
da Cidade de São Paulo o intérprete perceberá que cada trabalho tem sua especificidade de
movimento, e cada criador tem seu próprio modo de trabalhar o corpo.

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85

A dança contemporânea é uma arte que remete ao tempo atual e é viva, passível de
mudanças, com interferências diretas na relação sociocultural do artista. A pesquisadora e
artista norte-americana Holly Cavrell afirma que o potencial de transformação do artista está
conectado com sua época, sendo ele “um transformador de sua era” que, assim, “se envolve na
reformatação dos contextos” (CAVRELL, 2015, p. 237).
Cavrell analisa a relação entre o tempo no qual esse artista vive e as suas descobertas
corporais, com base em uma técnica utilizada como meio de expressividade:

Observar a técnica em diferentes períodos de tempo é uma boa maneira de elucidar


identidades estéticas de uma época. A maneira como treinamos o corpo diz muito a
respeito de como nos sentimos em relação a ele e o que motiva a arte. (...) Chamo de
técnica um conjunto de procedimentos ou métodos de disciplina e estruturação do
corpo, com vistas a capacitação ou domínio de um estilo ou linguagem de movimento,
e, em muitos casos, a técnica não foi somente um modo de codificar o corpo, mas um
meio para se obter liberdade, expressão e naturalidade. (CAVRELL, 2015, p. 35)

Ao refletir sobre o pensamento de Jussara Miller (2012, p. 53), que afirma que a noção
de técnica é uma experiência e recurso para a construção do próprio corpo disponível, como
um processo de descobertas constantemente reformuladas, respeitando a individualidade do
aluno artista. Ao integrar o pensamento de Cavrell e Miller, percebo que o processo de
aprendizado de uma determinada linguagem de dança, definido como técnica, tem como
proposta a organização do corpo, desenvolvendo a consciência e o entendimento do caminho
do movimento, acessando um corpo dançante. Cavrell (2015, p. 222) ainda afirma, que o
aprendizado de uma técnica aprimora a eficiência do movimento e pode ser usada para evitar
danos ao corpo e ter controle dos movimentos.
As ideias de Cavrell sobre técnica vão ao encontro da pesquisa que tenho desenvolvido
como docente e coreógrafo, ao pensar em técnica de dança como um trabalho de preparação
corporal que serve para estruturar o corpo, possibilitando ao artista obter um corpo
muscularmente forte e um domínio das coordenações motoras, mas também um corpo
expressivo e sensível na busca de sua autonomia como artista intérprete-criador, respeitando a
individualidade de cada artista e possibilitando um processo investigativo para acessar um
corpo cênico. Desse modo corroboro o trabalho técnico com o criativo, pesquisando de que
forma esses corpos acabam influenciando o processo de criação, o ato de coreografar como
modificador e/ou catalisador das ideias no trabalho.
Em 2017, essas ideias tomaram corpo e pude trazer para a sala de aula a ideia de
desenvolver nos alunos, um corpo coordenado dentro da linguagem em dança contemporânea

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86

e ao mesmo tempo expressivo ao desenvolver um projeto de criação para os adolescentes de 13


a 15 anos, da turma de alunos da Escola de Dança do Teatro Municipal de São Paulo.76
Esta pesquisa se desenvolveu concomitantemente ao curso da disciplina AC-001-A
Pesquisa em Artes, ministrada no 1º semestre de 2017 pelo professor e pesquisador Renato
Ferracini. Para desenvolver os estudos em Pesquisa em Artes, Ferracini recorreu a alguns
filósofos como Gilles Deleuze, Felix Guattari e Benedict de Spinoza, finalizando com a leitura
e estudo de Pistas do Método da Cartografia: pesquisa e produção de subjetividade (PASSOS;
KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009) a parte teórica da disciplina.
Os estudos sobre pesquisa a partir do curso de Ferracini abriu possibilidades de pensar
em uma criação. Como ponto de partida para o início da pesquisa, eu refletia com os alunos
sobre o que eles queriam trazer como dramaturgia. Como professor, percebia que ficava latente
em nossas conversas suas dificuldades em lidar com a velocidade, parecendo que tudo se
tornava urgente na vida diária. Essas conversas possibilitaram encontrar um tema para o que
realmente queríamos falar. Após determinarmos o tema da coreografia, partimos para a
pesquisa de corpo. Eu solicitava que desenvolvessem partituras de movimentos, trazendo como
referência o trabalho que desenvolvíamos em aula, partindo do universo conhecido para depois
se impregnar de novas perspectivas criativas.
Nesse processo criativo eu me posicionava como descrevem Alvarez e Passos (2009),
como um agenciador de ideias, colocando-me numa posição de atenção aos acontecimentos,
numa posição de espreita, habitando o território com uma receptividade afetiva. Solicitava aos
intérpretes/alunos que compusessem células de movimentos. Compartilhávamos cada criação,
adicionando, tirando, reformulando e reorganizando o que achávamos que poderia ter
expressividade no universo voltado para o contexto específico do trabalho coreográfico.
A cada encontro eu refletia e relia as anotações das aulas do professor e pesquisador
Renato Ferracini:

“Não interessa a identidade e função desse corpo mas as suas relações”, “Um corpo é
definido pelas suas relações internas e externas – extensivas e intensivas, pelas relações
afetivas do que o atravessa”, “Se o corpo é pensado como relação, é através dessa
relação que tenho a capacidade de afetar e ser afetado pelo mundo”, “Nós não somos
indivíduo, somos multidão que se potencializa nas relações”, “Para haver um bom

76 Escola de Dança de São Paulo, instituição pertencente à Fundação Theatro Municipal de São Paulo, é um centro
de ensino de dança de São Paulo, onde o aluno desenvolve sua vocação artística e aprendizados de técnica de balé
clássico e dança moderna/contemporânea, durante 9 anos, almejando um refinamento necessário para autonomia
profissional. Informações disponíveis em: http://theatromunicipal.org.br/formacao/escola-de-danca-de-sao-
paulo/#história; acesso em: 25 ago. 2016.

.
87

encontro, tem que ser em ambas as partes, para que haja potencialidade dos corpos”,
“Corpo – relações de força coletivas e singulares”.77

Eu identificava a ressonância das anotações registradas nas aulas de Renato Ferracini


com as experiências adquiridas como intérprete/criador nas aulas de preparação corporal e no
contato prático com os coreógrafos ao longo dos anos. Ao me aprofundar nesta dissertação,
novas perspectivas surgiam em minha conduta no processo de criação, fazendo que eu agisse
como um provocador, instigando o grupo a procurar maneiras de pensar a relação entre corpo
individual e coletivo, entendendo o quanto somos afetados e afetamos o processo criativo,
potencializando a troca com o outro.
Assim iniciava a criação, imbuído de vontade de trazer algo novo para o modo de fazer
dança em relação que o grupo de alunos conhecia. Refletia como poderia deslocar o que já
havia sido construído anteriormente e trazer novas ideias de uma movimentação corporal,
reconstruindo algo que fazia sentido na proposta cênica. Durante o processo de criação
trabalhava jogos de improvisações com os alunos, para eles se conectarem com outras
possibilidades de material composicional. Esses procedimentos buscavam desconectá-los das
estruturas de movimentos aprendidas nas aulas de técnica no processo de formação, e se
lançarem para outras camadas estruturais.
Individualmente, solicitava composições que no decorrer do processo reunia a outros
solos, muitas vezes gerando uma composição coletiva ou outras composições de um solo.
Exaustivamente refazíamos as partituras encontradas, sem medo de jogar fora o que já havia
sido feito, procurando encontrar algo que fosse novo, desconstruindo ideias fixas dentro do
vocabulário de movimento realizados por eles, e reconstruindo outras.
A cada partitura de movimento desenvolvida, os alunos apresentavam para os colegas
da turma e refletíamos sobre o conceito de que toda criação é violenta, que pensar é um ato de
violência e é criação, por isso é um grande desvio da norma,78 nos tira do conforto, do
conhecido, lançando-nos para novas formas de reorganização, deslocando-nos de um
pensamento comum. Esse pensamento nos projetava para outras camadas e, como num
dispositivo de persistência, novamente eu buscava algo que pudesse fazer sentido no universo
criativo da dança.

77 Anotações de aula registradas durante a disciplina Pesquisa em Artes do curso de Pós-Graduação do Instituto
de Artes – Artes da Cena, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) 1º semestre de 2017, ministrada pelo
professor e pesquisador Renato Ferracini.
78 Anotações de aula registradas durante a disciplina Pesquisa em Artes do curso de Pós-Graduação do Instituto

de Artes – Artes da Cena da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 1º semestre de 2017, ministrada pelo
professor e pesquisador Renato Ferracini.

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Como descrevem Deleuze e Guattari (2000), eu criava “linhas de fuga dentro do mesmo
território”, buscando outros modos de composição, deixando que o processo criativo partisse
da percepção, para depois entrar num processo de racionalizar o movimento, repetindo cada
escolha de movimento até chegar a um lugar singular de expressão dentro do contexto
dramatúrgico e técnico do trabalho coreográfico, sempre buscando elementos/alimentos para o
que persegue a fome de pesquisa. Percebia que nesse processo “tudo pode nascer a qualquer
momento, com abertura das possibilidades para outros pensamentos como potências infinitas
de vida”.79
No decorrer da criação os alunos-intérpretes produziam uma materialidade corporal da
qual eu me apropriava, em seguida elaborava, muitas vezes, reformulava os movimentos com
o olhar de criador/pesquisador, organizando e chegando a um resultado, quando possível. A
ideia não era abandonar o que fazia parte do universo do pesquisador/criador e do intérprete-
criador/aluno, mas sim, como citam Alvarez e Passos (2009, p. 149), “compondo com”,
desenvolver o que já havia sido construído e deslocar para outras possibilidades de movimentos
ou não. A participação do aluno/intérprete nesse processo coreográfico reverberou diretamente
na concepção coreográfica, pois os alunos apresentaram um corpo presente, aberto ao novo, em
prontidão para o ato de criar, numa busca constante no modo de dançar, no fluxo da pluralidade
de informações e de diferentes maneiras de se movimentar.
Defino essa criação com os alunos como um processo pedagógico no qual o mais
importante seria proporcionar procedimentos em que os alunos entendessem as dinâmicas
musicais na combinação com o movimento, a noção do corpo no espaço e em relação aos
desenhos coreográficos. Essa criação também constitui uma pesquisa da materialidade corporal
desenvolvida para a corporeidade do grupo, unindo o trabalho técnico específico na linguagem
de dança contemporânea e o sentido do movimento expressivo.
Ao analisar esse processo criativo, reflito de que forma o trabalho desenvolvido nas
aulas de técnica de dança contemporânea , pode considerar o lado artístico nesse mesmo tempo,
num lugar criativo e fértil, e não como uma repetição de passos e gestos, pensando que o
trabalho técnico serve para entendermos a mecânica do movimento, o caminho, para depois
chegarmos a determinada expressividade de movimento. Uma vez dominada a linguagem de
dança em técnica de balé clássico e dança contemporânea, precisamos deixar que a
movimentação flua sem que com isso tenhamos de racionalizar cada ação. Esses elementos

79 Anotações de aula registradas durante a disciplina Pesquisa em Artes do curso de Pós-Graduação do Instituto

de Artes – Artes da Cena da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 1º semestre de 2017, ministrada
pelo professor e pesquisador Renato Ferracini.

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funcionam como uma base, alicerce de conhecimento na formação, para que depois esse mesmo
bailarino/aluno consiga descontruir e quebrar o domínio conquistado desses princípios técnicos
dentro da linguagem da dança e deixe fluir sua própria maneira de dançar dentro de uma
linguagem especifica de dança.
Ao longo desta pesquisa e do conhecimento prático em dança pude atualizar no corpo a
memória muitas coisas que havia vivenciado como intérprete, mas que, naquele momento –
quando as coisas estavam acontecendo, enquanto eu dançava – minha necessidade era
simplesmente chegar à movimentação solicitada pelo coreógrafo, quando eu dava importância
para o “fazer”, muitas vezes sem saber racionalmente “como fazer”.
Hoje percebo que o processo de criação coreográfica é um fenômeno bastante
complexo, em que o intérprete precisa ter capacidade de aprender a investigar, organizar,
refletir, precisa ter permeabilidade mental e corporal e a disponibilidade para aceitar as
intervenções do acaso. Todos esses fatores são considerados, segundo Mônica Dantas, como
“um dos elementos centrais na formação do intérprete em dança contemporânea” (DANTAS,
2015, p. 53).
Durante os anos em que atuei no Balé da Cidade de São Paulo o processo de criação
com diferentes coreógrafos foi uma constante, atuando com três a quatro convidados, em média,
por ano. Como a companhia não tinha coreógrafo residente, constantemente éramos afetados
por diferentes criadores, cada um com seu jeito peculiar de criar. O bailarino precisava ter
capacidade de adaptação muito rápida para se adequar às necessidades dos novos coreógrafos.
Precisava estar preparado com certa urgência para entender o modo particular de ver a dança
de cada criador, e ao mesmo tempo o coreógrafo precisava estar sensível para perceber como
cada intérprete afeta e é afetado por sua criação.
Em uma rotina diária de 6 horas, cinco vezes por semana, o coreógrafo despendia, em
média, um a dois meses para desenvolver seu trabalho. Nesse processo de urgência para uma
criação, o bailarino precisa estar apto o mais rápido possível para compreender as propostas
cênicas demandadas na movimentação elaborada pelo criador. Muitas vezes, a contribuição do
intérprete no momento da criação procura absorver a intenção dos gestos que o coreógrafo está
querendo expressar.
O trabalho corporal de Holly Cavrell levava em consideração a expressividade de cada
intérprete, contribuindo para construir uma maneira de se movimentar, priorizando a técnica
como caminho no aprender de uma linguagem da dança, mas também olhando para o artista da
dança na sua singularidade expressiva e sensível. O trabalho de preparação corporal nas aulas
de técnica de dança moderna/contemporânea, desenvolvido diariamente na companhia

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preparava o corpo fortalecendo e flexibilizando os músculos ao longo da aula, possibilitando


que o bailarino recebesse as informações corporais durante o processo criativo ou nos ensaios
para manutenção dos repertórios da companhia.
Assim, todo o trabalho de corpo experienciado no percurso da dança, como intérprete-
criador do Balé da Cidade de São Paulo e depois na docência, proporcionou a oportunidade de
rever, nesta pesquisa, meu histórico de corpo. Considero esse um material rico, como base para
que eu possa construir um pensamento em dança como intérprete-criador e docente dentro da
contemporaneidade, sem estar preso a um só tempo, uma só ideia, olhando para os corpos que
dançam hoje e amanhã num processo dinâmico de movimentos que dançam ao sabor dos
tempos.

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Considerações Finais

Desde que iniciei os estudos na academia, muitas das minhas “verdades” se


transformaram, os paradigmas que trazia em relação ao trabalho de corpo encontraram outras
direções de pensamento. Ao iniciar minha carreira como docente, ministrando aulas de dança
contemporânea para companhias de dança na cena paulistana, incluindo a Escola de Dança do
Teatro Municipal de São Paulo, e depois com as experiências no Programa de Estágio Docente
– PED, Unicamp, no 1º semestre de 2018, orientado pela Profa. Holly Cavrell, e no 2º semestre,
orientado pela Profa. Silvia Geraldi, e como assistente de direção em uma criação para o
Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, dos alunos do 4º ano, orientado pela Profa. Holly
Cavrell e por Ana Terra, pude experimentar muito do que havia trabalhado como intérprete-
criador, pesquisando diretamente com corpos dos alunos da Unicamp a relação do trabalho
técnico com o processo criativo. Percebi ao longo do processo, pela resposta dos próprios
bailarinos do 4º ano, o quanto o trabalho de preparação corporal contribuiu para, enquanto se
priorizava o trabalho técnico, também buscássemos uma abertura corporal, abrindo caminhos
para que se sentissem criativos e sensíveis, encontrando expressividade dentro do contexto
dramatúrgico que eles estavam desenvolvendo.
Nesta pesquisa percebi que o artista da dança contemporânea precisa estar conectado ao
seu tempo, avançar em um ato contínuo de busca de conhecimento, visando sua própria
necessidade expressiva. As técnicas de corpo existentes, ou as que virão por uma necessidade
de expressão do seu tempo, decorrem da pluralidade de corpos da atualidade. Ainda as
diferentes linguagens técnicas com as quais entramos em contato podem não ser suficientes
para determinado trabalho criativo, de modo que o artista da dança precisa repensar qual seria
o trabalho corporal que dialoga com determinado trabalho criativo, e se os recursos aplicados
para a criação suprem as necessidades da direção que a obra coreográfica está seguindo.
Durante meu percurso em dança tive contato com diversas linguagens de dança80 e
procedimentos de criação de diversos coreógrafos, que proporcionaram ferramentas corporais
para que eu tivesse domínio do corpo e habilidades para dançar as diversas criações realizadas
no Balé da Cidade de São Paulo. Nesse processo, ao longo dos anos, em confluências dos
estudos e práticas de diversas técnicas de dança, das experiências nas novas criações
desenvolvidas pelos coreógrafos, é que se deu meu processo de formação como
intérprete/criador em dança contemporânea, desenvolvendo em meu fazer artístico uma

80Dentre as técnicas de dança que tive contato foram: dança moderna americana (Martha Graham,
Humphrey/Limon e Merce Cunningham, release, contato e improvisação e balé clássico.

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capacidade corporal de absorver rapidamente o que estava sendo proposto pelo artista-criador,
em uma construção corporal que nunca se esgota, pois acredito que o bailarino está em
constante transformação no seu modo de fazer dança.
A atuação do intérprete-criador em dança é múltipla e varia de acordo com o contexto
onde esse artista se insere. Em alguns locais, os bailarinos participam diretamente no ato de
coreografar e estão em busca constante do modo de dançar. No universo da contemporaneidade
o intérprete-criador precisa estar aberto as diversas possibilidades de linguagens de dança,
entender que a política sócio cultural influencia diretamente na maneira como os corpos se
movem e influência no processo criativo. O artista contemporâneo precisa estar munido de uma
pluralidade de informações para desenvolver novas maneiras de se movimentar.
Nos anos como artista intérprete-criador de dança contemporânea no Balé da Cidade,
desenvolvi a necessidade de experimentar no corpo outras linguagens de movimento que
possibilitassem transitar entre o trabalho desenvolvido em técnica de balé clássico e dança
moderna /contemporânea e o sensível, visando a organização e coordenação corporal e, ao
mesmo tempo, habilitando um corpo expressivo para o processo criativo, preparado para fazer
escolhas sem medo de errar.

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