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ComCiência no.123 Campinas 2010.

ARTIGO

Cartografia do excesso
Por Brian Holmes
Traduzido por Germana Barata

Ideias utópicas – como a ideia da "Terra espaçonave" – são circulares, multidimensionais, interrelacionadas:
seu mapa arquetípico é a Via Láctea, as constelações infinitas. Mas o pensamento racional é instrumental,
linear, ele distorce: e este é, exatamente, o problema com o mapa Mercator, a projeção mais comum do
mundo. Buckminster Fuller, inventor da abóbada geodésica, criou o "Mapa Dymaxion" para corrigir aquelas
distorções. Primeiramente, a Terra se transforma em uma figura geométrica, um icosaedro: seus vinte
triângulos se separam e são colocados, então, num plano, de modo que as massas da Terra irradiam de um
nexo ao norte, sem separar os continentes ou ampliar as regiões polares. Fuller baseou suas ideias políticas
nesse mapa: na “Expo Mundial de 1967” em Montreal, na cúpula do pavilhão dos EUA, ele quis apresentar
uma projeção vasta de Dymaxion, e a animou com as estatísticas mais modernas, para que os visitantes
pudessem visualizar o fluxo de recursos através da Terra e identificar os padrões estruturais, as
desigualdades, as soluções com mais desperdícios ou as mais eficientes. As delegações das diferentes regiões
deveriam se reunir para participar de sessões cooperativas, em um processo de resolução de problemas
chamado "World Peace Game" jogo da paz mundial1. A ideia por trás dele era simples: igualdade funcional,
democracia radical. “Fazer com que o mundo funcione para 100% da humanidade o mais rápido possível,
com a cooperação espontânea, sem danos ecológicos ou desvantagens para qualquer um”2.
Gerardus Mercator era um estudioso protestante de Flanders; publicou seu mapa em 1569, para ajudar
navegantes europeus a traçar rotas às costas distantes. A habilidade de navegar em linha reta levou ao mundo
da economia capitalista. Oyvind Fahlström era um artista sueco que passou sua juventude no Brasil e morreu
nos EUA. Seu mapa mundi foi pintado em 1972, pouco depois de Fuller imaginar sua utopia. O mapa de
Fahlström se parece com a projeção Mercator: mas os oceanos praticamente desapareceram, os continentes
são esmagados ou inflados pelas pressões políticas que a economia mundial traz. O espaço transborda com
conflitos entre ricos e injustiçados, a CIA e aqueles que lutam pela liberdade, os capitalistas, os comunistas,
os revolucionários.
Fahlström estava interessado na resistência e no excesso: pelos quais quero dizer a política mais a
subjetividade do transbordamento, as estatísticas mais a invenção figurativa. Para ele, um mapa era um
espaço plano governado por um sistema de regras, que servia para o jogo social; mas era igualmente um
território aberto para um jogo imaginário3. No início dos anos 1970 ele criou uma série de jogos de
tabuleiros de monopólio Monopoly, conhecido no Brasil como Jogo Imobiliário (Monopólio da CIA,
Monopólio do comércio mundial, Indochina etc), nos quais a informação política e econômica fornece regras
inflexíveis, seja qual for a paixão, seja qual for a nossa criatividade. Contudo, um trabalho como o seu
Pentagon Puzzle (Quebra-cabeças Pentágono) – que inclui um detalhe de uma Terra quadrada e acorrentada
– pôde igualmente ser desmontado, dispersado e suas partes introduzidas em outro jogo.
A utopia de Fuller não foi aceita para o pavilhão dos EUA em 1967: na entrada, os oficiais colocaram uma
enorme águia dourada. Mas, hoje, o acesso à internet colocou grandes volumes de informação ao nosso
alcance. Agora qualquer pode usar recursos de mapeamento. “O aspecto comunicativo do meu trabalho pode
ser vastamente ampliado mediante o uso dos computadores e pelo uso da televisão, do vídeo e da tendência
de miniaturização da comunicação em vídeo…. milhões de pessoas e multibilhões de dólares estão
envolvidos apenas no desenvolvimento de tais equipamentos, pessoal especializado e knowhow, “escreveu
Fuller em 19704. Parte da herança de Fuller está em osEarth Inc., uma usina de ideias (think-tank) e um
compilador de base de dados que organiza sessões do jogo mundial em um gigantesco mapa Dymaxion, uma
experiência de aprendizagem para os jovens. Entretanto, essa experiência é igualmente vendida às equipes de
negócio das corporações listadas pela Fortune 500. “A sociedade civil global”, com todas suas
cumplicidades e manipulações, está enquadrada no mapa de nossa situação atual.
Alguém duvida que as pinturas do monopólio de Fahlström, com seu enfoque na confrontação política, se
aproximam muito mais dos jogos que o mundo realmente joga? Contudo as recentes rodadas de negócios e
as demonstrações globais ainda lembram as ideias básicas de Fuller, igualdade funcional, democracia radical.
E se começa a questionar: onde estão os artistas-cartógrafos de hoje?
Linhas de poder
O grupo conceptual baseado em Paris, Bureau d'Etudes, trabalha intensamente em duas dimensões. Para uma
exposição recente chamada "Planeta dos Macacos" eles criaram pôsteres integrados dos laços de propriedade
entre organizações transnacionais, uma visão sinóptica do jogo monetário mundial. Contra um fundo preto,
formas semelhantes a brasões são decorados com os nomes dos estados, corpos de controle, think tanks,
empresas e corporações financeiras. Entre essas formações são afixados textos sobre privatização e
flexibilização. Alguns pontos levam às zonas azuis, cômico e surreal, como word-balloons (balões com
diálogos) ou oceanos psíquicos: estes contêm contra-informação de grupos autônomos, manifestos,
constituições, chamadas à ação…
Em vez de um catálogo, o visitante recebe três “Crônicas dos tempos de guerra” (Wartime Chronicles),
folhas únicas que dividem os jogadores do poder em regiões de sobreposição. Uma delas é um polo de
finanças, com fundos de pensão, gerentes de empresas e bancos, além de zonas cinzentas de fundações
legitimadoras de poder. Outra mostra empresas de telecomunicações, grupos de mídia, redes de distribuição
de bens de consumo. Então você quer chamar a polícia para deter esses criminosos? As instituições militares,
as agências de inteligência, os fabricantes de armas e as companhias de satélites completam o quadro.
Algumas citações aparecem nas laterais das folhas, como esta do artista Fabrice Hybert: “Meu primeiro
colecionador, bem, grande colecionador… era um mediador para a Otan e grandes estruturas como essas, a
Otan e países africanos ou sul-americanos, algo assim, outro era um mediador para toda a indústrias
armamentista, bem, vocês sabem, é horrível mas ele tem esta capacidade de abstrair-se dessa cena… Eu, eu
gosto de pessoas como essas"5.
Se os artistas estão falando naqueles termos, por onde você pode escapar? Existe uma aposta nessa
exposição: pinte um retrato totalitário, totalmente preto, e as pessoas vão procurar rachaduras que conduzem
a alguma outra dimensão. Outro folheto para levar, um texto de oito páginas chamado “Potenciais” explora o
“conhecimento autônomo/poder” – ou a desconstrução e a reconstrução de máquinas complexas – com uma
análise política de diferentes posições anarquistas, bem como mapas ou figuras que listam produtores
dissidentes do conhecimento, squats e hacklabs, e um esquema que relaciona várias formas de trocas não-
capitalistas. Um não-preço (0 euro) e uma nota contratual figuram em cada uma das folhas: “A presente
publicação não pode ser adquirida, vendida ou destruída. Todas as pessoas podem, todavia, usá-la como
quiserem, com a obrigação de dá-la a outros se desejar”.
Esse último detalhe tem sua importância. Como Bruce Sterling disse recentemente: “A informação quer ser
desvalorizada” – quer dizer, desvalorizada em termos monetários6. E, para além da lógica do computador de
software livre, o grande projeto alternativo da última década tem traçado o espaço transnacional investido
primeiramente pelas corporações, e tem distribuído esse conhecimento livremente. Este é o real poder da
“cooperação espontânea”, em um projeto da informação global como a Indymedia. Por uma década ou mais,
do início dos anos 1980 a meados dos anos 1990, as réguas da economia neoliberal foram escondidas nos
buracos negros de paraísos fiscais. Hoje, uma enormidade de projetos como Planeta dos Macacos está se
tornando cada vez mais visível7, ao ponto de que uma nova resistência significa que podemos começar a
imaginar – ou a explorar –, mais uma vez, um mapa radicalmente diferente do planeta.
Fuller teria adorado o desenho da internet, que torna possível o compartilhamento da informação para o jogo
mundial. Fahlström, o admirador do cartunista Robert Crumb, teria amado a multidão dos Dias da Ação
Global: autônoma e selvagem, inteligente e com pés ligeiros. O Bureau d'Etudes pertence a essa multidão.
Colaborando com os squats, os desempregados e os sans papiers (sem documentos), operando um espaço
auto-gerido em Estrasburgo, o Syndicat Potentiel e combinando-o com a Université Tangente, um projeto
para a produção autônoma do conhecimento, ele começou silenciosamente a transmitir uma intransigência
pragmática a outros da cena francesa da arte, dominada pelos gostos de Fabrice Hybert. Um nível novo de
engajamento foi marcado pelo encontro deles com a rede No-Border para o curso de verão de Estrasburgo
em 2002, uma tentativa de subverter uma das mais poderosas linhas de poder: o sistema de informação
Schengen. Atividades como essas simplesmente não podem aparecer nos muros do mundo da arte. Neste
sentido, metade do trabalho do Bureau d'Etudes permanece subterrânea: as recusas e as denúncias são claras,
a cooperação e o jogo subjetivo permanecem quase invisíveis. E talvez seja melhor desse modo: como é
possível representar com sucesso uma experiência alternativa radicalmente democrática?
Usos incertos
Um projeto sofisticado de mapeamento em multimídia tentou responder apenas a essa pergunta. A tela à sua
frente mostra uma massa de cor púrpuro-negra, salpicada de constelações hipnóticas: aos poucos você nota
que se trata de uma foto noturna da Europa urbanizada, com retângulos brancos que marcam as zonas de
atividade potencial. A cena é interrompida: música toca, cartas dançam e rolam, soletrando palavras; e você
começa a vagar dentro de uma matriz de telas autônomas ligeiramente elevadas. Você está cercado por séries
distintas de imagens impositivas e estáticas em preto e branco de construções arquitetônicas; e depois por
fotos coloridas instantâneas de pessoas que se misturam livremente em cenas do cotidiano; e entrevistas
suspensas em preto e branco com enormes cabeças falantes; e então por um vídeo lírico que percorre
labirintos do território urbano. Pare na frente de uma tela, e uma história específica, localizada, se desdobra:
cenários arquitetônicos, atores, história individual, trajeto subjetivo pela cidade. Até que a cena se quebra, a
língua rola, a música toca, e as permutações recomeçam diferentemente. Nas franjas do mundo da arte, um
grupo de urbanistas criou um dos sistemas de representação visual mais impressionante que surgiu nos
últimos anos: USE (USO, no português), ou o “Uncertain States of Europe” (“Estados incertos da Europa”),
um projeto de Stefano Boeri e Multiplicity.
Multiplicity é um grupo de pesquisadores interligados que explora o território europeu conforme ele muda,
em vinte e seis locais diferentes de Atenas a Espoo, de Porto a Bucareste ou Moscou. A premissa básica é
que as fronteiras são inapreensíveis, que programas arquitetônicos e os limites urbanos são instáveis – mas,
em toda parte, o excesso subjetivo de “inovações autopoéticas” cria padrões de mudança reconhecíveis, pelo
menos para o observador que se mistura a elas. Para Boeri, cujo objetivo é desconstruir um planejamento
urbano antiquado, o olhar se vê é “o triunfo da multitude”: transformando-se consistentemente, mas com
padrões completamente imprevisíveis de auto-organização situados em ambientes construídos que, cada vez
mais, perderam sua função predeterminada. Assim, uma das sequências (palavra-chave: détournement –
desvio, em português) conta como os usos da comunidade chinesa transformaram completamente o
programa ideal de um enorme quarteirão habitacional moderno no 13º distrito de Paris. Outro (palavra-
chave: eruption – erupção) lida com a organização cuidadosa das caóticas raves, “nomadic flames” (chamas
nômades): “Os trajetos de milhões de ravers e de tribos que invadem as ruas da Europa todos os finais de
semana nos deixam cada vez mais distantes de um destino preciso, funcional8.
A referência à multidão no texto de Boeri e, certamente, às telas do USO, lembra o pensamento político da
autonomia italiana, com o “êxodo” com um de seus temas centrais, a retirada consciente do planejamento
modernista e do trabalho assalariado. Obviamente se trata de um dilema para os urbanistas tradicionais, ou
para qualquer político que queira exercer o controle: “Escapar desta condição de impotência implica
simplesmente na aceitação de ingovernabilidade de uma grande parte do território contemporâneo”, escreveu
Boeri. Isso, por outro lado, significaria “aprender a agir em um contexto dirigido por diferentes sujeitos,
altamente variáveis”9. É o que chamaria de uma situação de democracia radical.
Mas a grande questão que permanece é como usar uma instalação como o USO, e como usar o modelo
operacional de um grupo de pesquisa em rede colaborativa como a Multiplicity. O dispositivo da exposição,
em si, elaborado fora do sistema galeria-revista-museu, é a melhor instalação que já vi sobre o processo
social interativo: com sua extensa matriz de telas/monitores, ela abre um território real e imaginário, um
mundo multidimensional interrelacionado de liberdades subjetivas. Mas até que ponto ele é politicamente
eficaz? “Resistir não é ser contra, não mais, mas singularizar”, escreveu Suely Rolnik, refletindo sobre as
mudanças de significados da prática artística desde a Grande Recusa dos anos 1960. “Todo e qualquer ato de
resistência é um ato de criação e não um ato de negação”10.
Dito belamente – mas não tenho certeza. O grande balanço teórico das três últimas décadas, da negação
crítica sobre o valor do uso e da afirmação subversiva, deixou as práticas “progressivas” abertas a todas as
forma de cooptação e cumplicidade. Apesar dos processos autopoéticos que uma instalação como o USO tão
brilhantemente nos leva a enxergar, o planeta inteiro – a Terra espaçonave – é vítima do ressurgimento da
autoridade repressiva, dentro do jogo perfeitamente legítimo do mundo de economia capitalista. A Itália de
Berlusconi, onde esse projeto foi mostrado, não é uma exceção: e, no entanto, é também um dos laboratórios
para novas formas de mobilização política. Podemos imaginar representações artísticas de processos auto-
organizados em confronto aberto com o jogo econômico? “As regras se opõem e descarrilam a subjetividade,
afrouxando os circuitos impressos do indivíduo”, escreveu Oyvind Fahlström. É somente então que um
território mais profundo emerge, um jogo de interação mais complexo. Linhas de poder/democracia radical.
Brian Holmes, é pesquisador do Bureau d'Etudes & Multiplicity.
Notas
Este texto foi originalmente publicado em alemão no jornal Springerin, Viena, Março 2002.
1. “A suposição comum dos poderes políticos principais de nosso planeta de que a guerra é a última solução
causou o desenvolvimento da World WAR Gaming Science (ciência do jogo da GUERRA mundial) por parte
das estratégias militares respectivas das grandes potências. A World WAR Gaming Science envolveu todos os
recursos terrestres. Minha World PEACE Gaming Science (ciência do jogo da PAZ mundial) muda a
premissa básica sobre a incapacidade fundamental da manutenção total das funções vitais e implica na
capacidade total para o êxito de todos os seres humanos”. Buckminster Fuller, “Preamble and memorandum
to those interested in playing world game”, In: The world game: integrative resource planning tool
(Carbondale, Ill.: Southern Illinois University, typescript, 1971), p.2, disponível em: . Fuller é, claro, quem
cunhou a expressão “Terra espaçonave”.
2. Citado em Medard Gabel, "Buckminster Fuller and the Game of the World," disponível em: . Obrigado a
Hubert Salden por ter me colocado neste caminho.
3. Uso a distinção de Suely Rolnik's entre “playing-the-game” jogando o jogo e “just-playing” apenas
jogando, em “Oyvind Fahlström's Changing Maps”, exhib. cat. Oyvind Fahlström: Another Space for
Painting, MACBA, Barcelona, 2001.
4. Buckminster Fuller, “Preamble and Memorandum”, op. cit., p. 6.
5. Entrevista em 2 de maio de 1996, com Fabrice Hybert, artista que representou a França na Bienal de
Veneza, em Bureau d'Etudes, Chroniques de guerre 2, brochure, February 2002.
6. Bruce Sterling, “Information wants to be worthless”, distribuída gratuitamente no Nettime, 6 de março de
2002, arquivada em: http://nettime.org. Deixe-me lembrar que um dos laços mais ricos do Nettime ao longo
dos anos diz respeito à “high-tech gift economy” (economia do dom da alta tecnologia).
7. Os esboços diagramáticos e fichamentos de escândalos bancários de Mark Lombardi’s, ou o website
“TheyRule” de Josh On and Futurefarmers (www.theyrule.net), se aproximam de projetos recentes do
Bureau d’Etudes. “TheyRule” introduz o método DIY de rastreamento de corporações: os usuários podem
construir diagramas a partir da participação de um único CEO diretor-presidente, em português em conselhos
administrativos corporativos. No entanto, nenhum projeto possui as ambições sinópticas do Bureau d’Etudes.
8. Paolo Vari, “USE.04 Raves”, In: exhib. cat. Mutations, arc en rêve centre d'architecture, Bordeaux, 2000.
9. Stefano Boeri, “Notes for a Research Program”, In: Mutations, op. cit.
10. Suely Rolnik, “Oyvind Fahlström's Changing Maps”, op. cit.
Websites
Oyvind Fahlström:
www.fahlstrom.com
Bureau d'Etudes:
http://utangente.free.fr (inclui mapas)
http://syndicatpotentiel.free.fr
http://bureaudetudes.free.fr
Multiplicity:
www.multiplicity.it
www.classic.archined.nl/extra/archi_tv/tv3/eng/hoofdframe1.html

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