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ANETTE COELI NEVES MAYNART

PESCA, ARTESANATO E CULTURA: RESGATE


HISTÓRICO DOS RIBEIRINHOS DE SÃO FRANCISCO,
MG

São Paulo
2008
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ANETTE COELI NEVES MAYNART

PESCA, ARTESANATO E CULTURA: RESGATE


HISTÓRICO DOS RIBEIRINHOS DE SÃO FRANCISCO,
MG

Dissertação apresentada ao programa


Multidisciplinar em Educação, Administração e
Comunicação (Mestrado Acadêmico) da
Universidade São Marcos, sob orientação da Profª.
Drª. Sandra Farto Botelho Trufem, com vistas à
obtenção do título de Mestre.

São Paulo
2008
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Deus pela força, coragem e oportunidade de fazer este


trabalho. Obrigada, Senhor!

À minha orientadora, professora Sandra, agradeço a direção que me deu com sua leitura
atenta e sugestões pertinentes. Muitíssimo obrigada!

Ao meu amado João Cezar, meu maior e melhor companheiro sempre. Agradeço o
incentivo, a inspiração e o amor. Obrigada por existir. Você é muito especial em minha
vida. Te amo muito!

Aos meus amados Joãozinho e Matheus, que renunciaram comigo a momentos e coisas
em função deste trabalho. De vocês recebo a motivação que impulsiona minha vida.
“Mainha” ama vocês!

Aos meus pais e irmãos, amo todos vocês... Agradeço especialmente ao meu pai e a
minha irmã Ana pelas sugestões recebidas. Obrigada pela parceria.

Aos pescadores, artesãos, foliões e turistas que atenderam às minhas curiosidades com
paciência e dedicação. Vocês foram fundamentais. Obrigada!

Ao Sr. João Naves pelas vezes que o procurei e foi sempre solícito no atendimento.

A Alair, que pacientemente me atendeu na revisão final.

À Terezinha e Esperidião pela indicação no convento. Foi um verdadeiro “achado”.

Às irmãs Fabiana e Maria das Graças, obrigada pela acolhida.

À Cleide, companheira de viagem. Apesar dos transtornos, valeu!

Enfim, aos amigos pelo apoio, especialmente a Narcízia (companheira das pesquisas de
campo), Valquíria Taschetti ( professora da EEBB) e demais pessoas em seus mais
variados ofícios que me apoiaram durante a realização deste. Muito obrigada!
RESUMO

A presente dissertação mostra algumas atividades artesanais dos ribeirinhos


de São Francisco, MG. O rio São Francisco tem uma extensão de 2700 km, desde as
suas nascentes na Serra da Canastra (Minas Gerais) até a foz no oceano Atlântico, entre
os estados de Alagoas e Sergipe. A cidade de São Francisco (MG) foi a localidade
escolhida para revelar os tesouros preciosamente guardados na memória de seus
habitantes. São Francisco não é apenas um município a mais que se estende pelas duas
margens do Velho Chico. Suas terras abrigam patrimônios e surpresas. Os ribeirinhos
do São Francisco são pessoas simples, de uma cultura própria, singular. Na região do
Vale do São Francisco, um povo reinventa a vida, movido pela necessidade e pela
criatividade. Nas margens ribeirinhas, crestadas pelo sol, florescem expressões culturais
seculares e atividades artesanais como a pesca, os bordados, a arte de esculpir em
madeiras, barqueiros e violeiros, além de diversas manifestações culturais como a folia
de reis. Este trabalho sinaliza alguns pontos que possibilitam uma maior reflexão sobre
como resgatar o artesanato, a cultura, a pesca e o turismo como atividades econômicas
para a região, capaz de acelerar o crescimento econômico e social. Pensar a diversidade
cultural dos ribeirinhos do São Francisco como fonte de riqueza e desenvolvimento
sustentável é fortalecer o sentimento de identidade e cidadania e, este estudo, fruto de
observação empírica e de vasta pesquisa bibliográfica, abre caminhos para que os
saberes e os fazeres tradicionais se transformem em propulsores de sustentabilidade das
novas gerações.

Palavras-Chave: artesanato; diversidade; pescadores; rio; turismo; sustentabilidade;


geração de renda; São Francisco.
ABSTRACT

The present dissertation shows some artisan activities of the riverside of San Francisco,
MG. The river San Francisco has an extension of 2700km, since its springs in the
Mountain range of the Hamper (Minas Gerais) until the estuary in the Atlantic Ocean,
enters the states of Alagoas and Sergipe. The city of San Francisco (MG) was the
chosen locality to disclose the preciously kept treasures in the memory of its
inhabitants. San Francisco is not only one city more than if it extends for the two edges
of the Old Chico. Its lands shelter patrimonies and surprises. The riverside of the San
Francisco are simple people, of a proper, singular culture. In the region of the Valley of
the San Francisco, a invent people the life, moved for the necessity and the creativity. In
the marginal edges, parched for the sun secular cultural expressions and artisan
activities blossom as it fishes it, the embroiderings, the art to sculpture in wood,
boatmen and guitar man, beyond diverse cultural manifestations as the folia of kings.
This work signals some points that make possible a bigger reflection on as to rescue the
craft, the culture, fishes it and the tourism as economic activities for the region, capable
to speed up the economic and social growth. To think the cultural diversity of the
riverside of the San Francisco as source of wealth and sustainable development is to
fortify the feeling of identity and citizenship and, this work presented here, fruit of an
empirical comment and a vast bibliographical research, opens ways so that to know
them and to make them traditional if they transform into propellants of sustain of the
new generations.

Key Words: craft; diversity; fishing; river; tourism; sustain; income generation;
San Francisco.
SUMÁRIO

RESUMO.........................................................................................................................III
ABSTRACT....................................................................................................................IV
LISTA DE FIGURAS....................................................................................................VII
LISTA DE TABELAS..................................................................................................VIII
LISTA DE GRÁFICOS .................................................................................................IX
INTRODUÇÃO...............................................................................................................01
CAPÍTULO I– O “Velho Chico”....................................................................................06
1.1. Contexto Histórico....................................................................................................06
1.2. Aspectos Geográficos...............................................................................................13
1.3. Degradação, Revitalização e Transposição do rio São Francisco:
questões urgentes ................................................................................................... 19

CAPÍTULO II – O rio São Francisco como geração de renda........................................28


2.1. Contexto Sócio-econômico e Cultural .................................................................... 28
2.2. As barcas ..................................................................................................................37
2.3. A pesca profissional/artesanal................................................................................. 46
2.4. A família e o modo de vida dos pescadores São Francisco ....................................52

CAPÍTULO III – As principais atividades dos ribeirinhos do São Francisco................64


3.1. História do artesanato ..............................................................................................64
3.2. Artesanato : Uma das maiores riquezas dos ribeirinhos do São Francisco............ 79
3.3. Carrancas: cultura e economia para os ribeirinhos do São Francisco..................... 90

CAPÍTULO IV – Turismo e Cultura do ribeirinho da cidade de São Francisco............ 95


4.1. O Turismo no Alto-Médio São Francisco .............................................................. 95
4.2. Cultura e folia na cidade de São Francisco ............................................................ 98
4.2.1. A Folia de Reis ..................................................................................................100
4.2.2. A Folia em São Francisco .................................................................................. 104

CAPÍTULO V – Análise do modo de vida dos ribeirinhos e suas atividades


artesanais em São Francisco – MG ..............................................................................121
CONCLUSÃO ..............................................................................................................128

BIBLIOGRAFIA ..........................................................................................................131

FONTES........................................................................................................................136
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: O “Velho Chico”............................................................................................. 09


Figura 2: Bacia do São Francisco....................................................................................14
Figura 3: Degradação do leito e das margens do rio São Francisco .............................. 20
Figura 4: Projeto de Transposição do rio São Francisco ............................................... 24
Figura 5: Localização da cidade São Francisco ............................................................ 28
Figura 6: A cidade de São Francisco às margens do rio São Francisco ........................ 31
Figura 7: O pescador do São Francisco ..........................................................................36
Figura 8: Barco a vapor que comercializava mercadorias ..............................................38
Figura 9: Espécies nativas do rio ....................................................................................44
Figura 10: O pescador do São Francisco ...................................................................... 46
Figura 11: O barqueiro em outra atividade .................................................................... 50
Figura 12: Morador das margens ribeirinhas ........ .........................................................52
Figura 13: Tecendo tarrafas e rede ................................................................................ 78
Figura 14: Rendeiras tecendo .........................................................................................79
Figura 15: Zé Pincel em seu ofício ................................................................................ 84
Figura 16: Quadro da Santa Ceia....................................................................................86
Figura 17: Rendeiras de São Francisco ......................................................................... 87
Figura 18: Seu Minervino .............................................................................................. 89
Figura 19: Carranca ........................................................................................................91
Figura 20: Carranca de proa de barco ............................................................................91
Figura 21: Praia em São Francisco ................................................................................96
Figura 22: Foliões em São Francisco ...........................................................................105
Figura 23: Foliões e suas violas ....................................................................................107
Figura 24: Pôr do Sol em São Francisco ......................................................................125
LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Razões do exercício da profissão....................................................................54


Tabela 2. Estado civil ................................................................................................. 121
Tabela 3. Atividade econômica compensatória ...........................................................122
Tabela 4. Medida para a preservação do meio ambiente ............................................122
Tabela 5. Se há investimento do governo................................................................... 123
Tabela 6. Considera o trabalho um lazer .....................................................................123
Tabela 7. Um projeto governamental seria benéfico ...................................................124
Tabela 8. Representação do rio São Francisco ............................................................124
Tabela 9. Razões de ausência de jovens na profissão de artesão .................................126
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1: Faixa Etária................................................................................................. 122


INTRODUÇÃO

O rio São Francisco nasce na Serra da Canastra (MG), mais precisamente na


Chapada da Zagaia, no município de São Roque de Minas, na região Sudeste do Estado,
a cerca de mil metros de altura. Da Canastra, ele despenca 200 metros na cachoeira de
Casca d'Antas, percorrendo 2,7 mil quilômetros, pelos estados da Bahia, Sergipe,
Alagoas e Pernambuco, recebendo 36 afluentes. Seu vale compreende a calha principal
e tributária, numa extensão de 645 mil quilômetros quadrados de áreas equivalentes a
8% do território nacional - a bacia do São Francisco é maior que o estado de Minas
Gerais inteiro.
A região do vale reúne cerca de 3 milhões de hectares possível de serem
irrigados, sendo 800 mil hectares em Minas Gerais. Em toda a região da bacia vive
cerca de 13 milhões de habitantes, o que corresponde a 10% da população brasileira.
O rio São Francisco beneficia 503 municípios com seus recursos, sendo que
240 destes localizados em Minas Gerais, bem com 70% das suas nascentes. Este estado
ainda concentra aproximadamente 38% da bacia total do São Francisco.
Aproximadamente 40% do estado de Minas Gerais estão dentro do vale.
O São Francisco tem mais de 15 mil quilômetros de águas navegáveis nos
trechos entre Juazeiro, Petrolina e de Piranhas até a foz. No entanto, boa parte desse
potencial não é aproveitada por causa do alto índice de assoreamento do rio.
O “Velho Chico” tem como principais afluentes os rios Paraopeba, Abaeté,
Velhas, Jequitaí, Paracatu, Urucuia, Verde Grande, Carinhanha, Corrente e Rio Grande.
O Rio São Francisco é um dos rios mais importantes do Brasil, não apenas
pelo que proporciona aos que habitam as suas margens, pelo peixe que alimenta; pela
energia que fornece; pela água que se bebe e pela irrigação de milhares de terras de
ribeirinhos que vivem ao seu lado, mas também por sua importância histórica, pois,
quando descoberto, serviu de elo entre o norte e o sul, com a entrada dos bandeirantes
pelo sudeste, na conquista do ouro das pedras preciosas, propiciando o avanço das
expedições para o interior do Brasil e a criação de cidades e lugarejos por toda a
extensão do rio.
Do ponto de vista social, a pobreza predomina nas comunidades ribeirinhas e
sua economia gira em torno da utilização das águas do “Velho Chico” e a pesca
profissional, que é praticada de forma artesanal, como uma das atividades mais
tradicionais de trabalho no rio São Francisco. Milhares de famílias ribeirinhas dedicam-
se a essa ocupação, por vezes, há mais de uma geração.
Além das belezas naturais, a região banhada pelo Rio São Francisco se
destaca pela produção cultural concebida pela sua gente. O artesanato retrata os
costumes de um povo rico, cheio de histórias e emoções para registrar.
Com produtos fabricados por meio de técnicas transmitidas de pai para filho,
o artesanato das barrancas do Velho Chico é a forma de expressão mais usual de uma
população que lida diariamente com matérias-primas simples e as transforma em
verdadeiras obras de arte.
A cidade de São Francisco (MG), localidade escolhida para este estudo sobre
a atividade artesanal, apresenta excepcionais condições climáticas, hidrobiológicas e de
infra-estrutura para exploração dos recursos naturais existentes. Conta com mestres de
ofício de renome nacional, como os fabricantes de viola caipira Mestre Minervino e
Nego de Venança, além de com artesãos desconhecidos, porém não menos talentosos do
que os primeiros.
Aqui estão registrados alguns ofícios e seus mestres: rendeiras, barqueiros,
músicos e cantadores, gente simples e sábia a um só tempo. Gente que conserva e
procura manter suas tradições. Pessoas simples que no Norte de Minas faz, cria, inventa
e reinventa a vida.
Neste estudo propõe-se a investigação do artesanato, da pesca profissional,
praticada de forma artesanal, do turismo e da cultura na cidade de São Francisco,
ressaltando o seu resgate e questionando se é possível utilizar essas atividades como
atividade econômica e como uma alternativa de investimento na região, capaz de
acelerar o crescimento econômico e social.
A riqueza dos recursos naturais e hídricos disponíveis na região do alto-
médio São Francisco tem despertado, tanto nos investidores privados quanto nos
investidores públicos, crescente interesse em firmar o turismo e o lazer como as grandes
vocações econômicas da região. Essa tendência chama a atenção para o fato de que vêm
sendo colocados em contato segmentos que vivem realidades sociais bastante diversas.
No caso deste estudo, as duas realidades são a do pescador profissional – que tem no
espaço do rio seu local permanente de moradia e trabalho – e a do turista – que utiliza o
mesmo espaço apenas temporariamente e com fins de entretenimento. Além de seus
aspectos econômicos e empresariais, o setor de turismo e lazer se apresenta, também,
como responsável pela construção de novas relações sociais. Desse ponto de vista,
escolheu-se descrever as relações estabelecidas entre esses dois segmentos e identificar
as interações ou conflitos originados por elas. É importante conhecer a maneira pela
qual o estímulo à presença de grupos fluidos (turistas) interfere no modo tradicional de
vida e de trabalho dos grupos permanentes (pescadores profissionais). Nesse contexto, a
pesquisa foi norteada pela seguinte hipótese: a transformação do lazer em mercadoria,
que tem especificidades territoriais, suscita o acirramento do processo de apartação e
submissão social da população mais carente ali fixada. A apartação e submissão são
caracterizadas pela inviabilidade de tal população tanto de participar das novas
atividades atualmente disponíveis ao turista quanto exercitar as suas próprias tradições
no uso do território.
A metodologia empregada para a obtenção das informações presentes neste
estudo foi a seguinte: pesquisa bibliográfica e de coleta de dados por meio de
entrevistas, abrangendo como espaço empírico a cidade de São Francisco. Utilizou-se a
técnica do depoimento pessoal com entrevistas direcionadas por um questionário semi-
estruturado, aplicado numa amostra seletiva de 40 pessoas, entre elas: artesãos,
pescadores, foliões da região, turistas e pessoas que lidam com tais visitantes.
Ênfase foi dada à abordagem qualitativa, principalmente na coleta e
sistematização de dados, o que permitiu o levantamento das aspirações, expectativas e
impressões que os indivíduos inseridos nos dois segmentos sociais focados possuíam
em relação ao uso do espaço em questão.
Outro instrumento utilizado foi à foto-documentação, essencial para a
caracterização das condições de vida dos artesãos, pescadores, foliões e turistas. Esse
instrumento permitiu os registros da expansão urbana vinculada ao desenvolvimento do
setor turístico e de lazer e da persistência da pobreza do pescador profissional.
Subsidiaram a pesquisa dados quantitativos sobre a qualidade de vida dos
pescadores. Mais especificamente, dados sobre o tipo de moradia e o nível de acesso a
serviços públicos como água e esgoto.
Os relatos e as histórias de vida coletados durante o trabalho são relevantes,
uma vez que estes depoimentos são depositários da sabedoria popular que, através do
tempo e das palavras, ganham forma e se verbalizam como queixas, advertências,
desejos, esperança e a busca de novas alternativas para um futuro mais próspero.
As culturas de tradição oral apresentam, em suas formas de transmitir
saberes, caminhos que se delineiam por rumos inter-relacionados com o que cada
universo concebe e estabelece como essencial. O conteúdo que vai ser transmitido e
como ele o vai e deve passar por uma seleção natural em que o grupo e/ou a sociedade
que o pratica arranja formas, momentos e situações de concretizar o seu
desenvolvimento e sua assimilação por parte dos membros que compõem a cultura em
questão.
Assim, este estudo apresenta, no capítulo I, o “Velho Chico”, e a sua
caracterização, em seus aspectos históricos, geográficos e sociais. No capítulo II, O rio
São Francisco como geração de renda, é apresentada a pesca como principal fonte de
renda do homem ribeirinho que vive na cidade de São Francisco. O capítulo III, As
principais atividades dos ribeirinhos de São Francisco, retrata o artesanato das
comunidades ribeirinhas nos contextos social, econômico e cultural, pois a cidade de
São Francisco é berço de artesãos de mãos mágicas. No capítulo IV, Turismo e cultura
do ribeirinho de São Francisco, são apresentados o turismo e a cultura da cidade de São
Francisco, bem como alguns artesãos da região, as danças como: a catira, a suça e o
quatro, a religiosidade, além da folia de reis e seus foliões. O capítulo V, Análise do
modo de vida, dos ribeirinhos e suas atividades artesanais em São Francisco – MG, traz
os resultados e a discussão do trabalho de campo, com características específicas da
população ribeirinha selecionada para aplicação dos questionários, tabulação e análise
do modo de vida a partir dos dados coletados
O trabalho encerra-se com a apresentação das referências bibliográficas e
fontes de consulta.
Riacho do navio corre pro Pajeú
O rio Pajeú vai despejar no São Francisco
O rio São Francisco vai bater no meio do mar.
(Luiz Gonzaga, in Riacho do navio)
CAPÍTULO I – O “VELHO CHICO”

1.1 Contexto Histórico

A história do rio São Francisco é peculiar. Descoberto pelos navegadores


Américo Vespúcio e Gaspar Lemos, que navegaram em sua foz em 4 de outubro de
1501, recebeu o nome de São Francisco em homenagem a São Francisco de Assis,
nascido na Itália 319 anos antes do descobrimento do rio. O São Francisco era visitado
apenas nas cercanias da foz, pois a mata, a caatinga desconhecida e as tribos selvagens
impediam a penetração nas terras. Os índios que habitavam a região chamavam-no de
Opara, que significa rio-mar. Também é chamado “Velho Chico”.
Segundo fontes históricas1, sabe-se que Duarte Coelho Pereira, o primeiro
donatário da capitania de Pernambuco, em 1522, fundou a cidade de Penedo - AL e foi
o primeiro núcleo povoador das margens. A localização estratégica do povoado, à porta
do sertão, mereceu também atenção dos holandeses, tanto que, mais tarde, em 1637,
ergueram um forte neste local. Além dos holandeses, os franceses também
freqüentavam a costa, e por volta de 1526 chegaram à foz do São Francisco, tanto que
uma pequena baia, próxima à foz, recebeu o nome de Porto dos Franceses.
Já a colonização do vale do médio São Francisco se efetuou em duas épocas
diferentes, a segunda delas quase um século depois da primeira. Os primeiros
estabelecimentos no médio São Francisco iniciaram-se no extremo à jusante.
Exploradores das cidades de Olinda, fundada em 1534, e de Salvador, em 1549, se
aventuraram pelo vale do rio enfrentando muitas dificuldades, dadas à agressividade da
natureza e à presença de selvagens. Um dos primeiros núcleos de colonização foi
estabelecido em Bom Jesus da Lapa - BA2. Na metade do século, um grupo de 200
homens fundou ali um estabelecimento e numerosas fazendas de gado. A criação de
gado começou em 1943, atividade que marca a história do vale. A exploração se
limitava ao litoral, principalmente por causa dos indígenas. Mas lendas sobre riquezas
inacreditáveis atraíam aventureiros que movidos pela cobiça, arriscavam-se continente

1
Expedições, entradas bandeiras. Disponível em:
www.achetudoeregiao.com.br/ANIMAIS/rio_sao_francisco. acessado em 12/02/2008.
2
idem
adentro para encontrar ouro e pedras preciosas. Porém, circulava em Porto Seguro,
boatos delirantes sobre tribos que se enfeitavam com ouro, pedras verdes, cristalinos
diamantes. Em 1553, o Governador-Geral Tomé de Sousa determinou a exploração do
rio, por ordem do rei D. João III, a Francisco Bruza de Espinosa, que formou a primeira
entrada de penetração, levando um jesuíta basco, João de Azpicuelta Navarro3.
De acordo com Godinho & Godinho4, a expedição comandada por Spinosa
dirigiu-se ao Jequitinhonha, tomando o rumo nordeste até a Serra de Grão-Mogol,
seguindo em linha reta até a barra do Mangaí e a do Pandeiros.
Sobre a expedição de Spinosa Barreto relata:

Assim foi que , em fins de 1553 ou princípio de 1554, logo depois que Tomé
de Souza passou o geverno de sua Capitania para Duarte da Costa, ao passo
que era estabelecida a povoação de São Paulo (25 de janeiro), o castelhano
Fransciso Bruza Spinosa, por ordem de Duarte da Costa, atirava-se aos
descobrimentos com a primiera expedição que partiu da Bahia e penetrou os
sertões mineiros, em busca das famosas esmeraldas que tanto falavam os
índios Tupinaki, por compreenderem a importância que os portugueses
davam a tais pedras. Essa expedição, segundo a narrativa feita pelo padre
Aspilcueta Navarro, que dela fez parte, “depois de muito andar, chegou a um
rio grande (o Jequitinhonha), alongou-se por uma delatada serra onde nasce o
rio das Ourinas (rio Pardo). Daí seguiu até descobrir um rio caudalosíssimo
(o São Francisco), do qual retorcedeu exausta e dizimada, depois de cruentas
lutas contra os selvagens e contra toda e multifária agressão da natureza
bravia.5

A ocupação do baixo São Francisco, desencadeada por Garcia d’Avila,


membro da comitiva de Tomé de Souza, estava relacionada à atividade pecuária,
açucareira e mineradora, sendo o vale do São Francisco o condutor do desbravamento e
aproveitamnto econômico da maior parte do território nacional.6
Guiados pela cobiça, os colonizadores foram dizimando os índios, que
fugiam para o planalto central. Assim, ergueram-se os primeiros e pequenos arraiais,
iniciando o domínio da região.

3
Expedições, entradas bandeiras. Disponível em:
www.achetudoeregiao.com.br/ANIMAIS/rio_sao_francisco. acessado em 12/12/2007.
4
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
5
BARRETO, A. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva. Belo Horizonte: Fundação João
Pinheiro, 1995.
6
ROCHA, Geraldo. O Rio São Francisco - Fator Precípuo Da Existência Do Brasil. 3ª edição.
Companhia Editora Nacional, 1993.
No final do século XVII a história registra a existência de uma fazenda de
gado, próxima à atual cidade da Barra (BA), o principal posto de abastecimento do
médio São Francisco.
Melo procurou transmitir em sua poesia intitulada “solidão”, o sentimento
dos colonizadores em busca dos portos.

Estou só no meio do mundo.../ Ou serei o mundo? / Quero ter um porto / Ou


apenas uma passagem? / No porto que deitar meu sonho, / Ficarei tempos
tantos / Para sentir na veia, a terra; / Do mundo passado, as alegrias. / Estou
só no meio do mundo, / E sem resposta às indagações; / Seguir viagem é um
chamado, / Mais só do que quando cheguei.7

O Ciclo do Ouro começou realmente com a bandeira de Fernão Dias Paes,


nas últimas décadas do século XVII.

Pelo sul, mais de cem anos depois da expedição de Spinosa, os sertões do São
Francisco são desbravados pelos bandeirantes paulistas, sobretudo pela
assomborosa arrancada da bandeira comandada por Fernão Dias Paes (1672 –
1681), que alcança o São Francisco através dos seus afluentes Paraopeba e
das Velhas.8

O caminho natural para o litoral e para o Reino era constituído pelos rios São
Francisco e das Velhas – que nasce no município de Ouro Preto (MG) e deságua no rio
São Francisco na localidade de Barra do Guaicuí, município de Várzea da Palma (MG).
São Francisco acima subiam as mercadorias necessárias às minerações e fazendas; os
barcos que regressavam traziam ouro.
Em 1553, Francisco Bruza Espinosa, colonizador pioneiro, pisa o território
que veio a ser Minas Gerais. Era o Ciclo do ouro, com bandeira de Fernão Dias Paes,
nas últimas décadas do século XVII. Eram então o Rio das Velhas e o Rio São
Francisco o caminho natural para o litoral e para o Reino. Através do rio, chegavam
vaqueiros baianos semeando currais e fazendas na vastidão sertaneja. Com eles vinham
também, mineradores em busca das lendárias riquezas em ouro, diamante e pedras
preciosas, de que os índios e desbravadores iam dando notícias.
Surgiram quadrilhas de assaltantes nas estradas e, principalmente, no Velho
Chico. As autoridades designaram bandeirantes como Matias e Januário Cardoso,

7
MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.
8
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
Domingos do Prado Oliveira e outros para combatê-las. Muitas quadrilhas se
refugiavam nas aldeias indígenas. Isto serviu de pretexto para expedições genocidas
contra os índios, como a que Januário Cardoso e a do português Manoel Pires Maciel
Parente comandaram na destruição da maior aldeia indígena daquela região, a de
Itapiraçaba - dos caiapós. Foi o caso também de Domingos do Prado Oliveira, que
destroçou com sua gente a grande aldeia dos guaíbas, na ilha fronteira a São Romão,
num pavoroso genocídio ainda na primeira metade do século XVIII. Esse bandeirante
tinha como base o povoado de Pedras de Cima; depois, denominado Pedra dos Angicos9
que se desenvolveu tão rapidamente, passando a sediar a comarca, transferida de São
Romão desde 1873. A 05 de novembro de 1877, Pedras dos Angicos transforma-se em
São Francisco - MG.
O título de Rio da Integração Nacional se deve às entradas e bandeiras que
nos séculos XVII e XVIII usaram-no como rota para penetrar no interior. Conhecido
ainda como Rio dos Currais, servia de trilha para fazer descer o gado do Nordeste até a
região das Minas, sobretudo, no início do século XVIII, quando se encontrava ali o ouro
que atraiu milhões de pessoas à terra e fazendo, integrando a região Nordeste às regiões
Leste, Centro-Oeste e Sudeste. Observa-se na figura 1 o traçado rio São Francisco.

Figura 1: O “Velho Chico”


Fonte: Revista Velho Chico

9
Expedições, entradas bandeiras. Disponível em:
www.achetudoeregiao.com.br/ANIMAIS/rio_sao_francisco. acessado em 12/12/2007.
Também foram importantes para a ocupação das áreas ribeirinhas as
missões, registradas na região a partir de 1641, quando os padres Franciscanos
instalaram os primeiros aldeamentos.
Em 1675, o bandeirante Lourenço Castanho encontrou jazidas de ouro em
afluentes do São Francisco e massacrou os índios cataguazes da região. Entre as várias
expedições dos bandeirantes que passaram pelo São Francisco contam-se Matias
Cardoso, Domingos Jorge Velho, Domingos Sertão, Borba Gato e Domingos Mafrense
- este último subiu alguns afluentes, chegando às nascentes do Parnaíba.
Em 1678 os bandeirantes Salmeron e Soeiros chegaram à região de São
Francisco. Porém, encontraram resistência dos índios que procuravam impedir que
estranhos dominassem seu território. Entretanto, nos anos seguintes os brancos
venceram as tribos indígenas, que cederam lugar à colonização do local.
O folclorista João Naves de Melo também faz referência a estes
acontecimentos:

Rota das rotas de quem busca seu destino, / E tromba nos sonhos sem
entender o que teve; / Águas chegadas e águas roladas, sem fim, / Colhendo
história para escrever epopéias. / Do sol que nasce, brilhando e rebrilhando, /
Um espelho de vida que mostra todo o céu; / Se é noite, de lua ou escura,
sem diferença: / Dorme embalando tantos segredos e lendas. / É sangue, é
corpo, é alma que escorre; / É um povo que se dilui em saudades, / Porque,
mesmo indo nas águas majestosas, /Deixa parte plantada nas barrancas
seculares.10

A colonização do Alto São Francisco iniciou-se a partir da descoberta do


ouro, ao término do século XVII e início do século XVIII. A região antes percorrida por
exploradores, sem qualquer povoamento, onde se localiza atualmente a cidade de Ouro
Preto (MG), desenvolveu-se em conseqüência da prosperidade mineira, que se
expandia. Muitos paulistas fixaram-se no alto São Francisco, fundando cidades que hoje
têm seus nomes, como Matias Cardoso. A descoberta de ouro em Goiás, por volta de
1720, intensificou o povoamento.
No século XVII, os paulistas já haviam chegado à região das minas à
procura de ouro e pedras preciosas. É bastante conhecida a saga dos chamados
bandeirantes, que, antes da descoberta das minas, dedicavam-se sobretudo a prear índios
para servirem como escravos. A história de alguns paulistas que chegaram à sub-região

10
MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.
do Rio das Velhas está relacionada à colonização do Vale do São Francisco. Fernão
Dias Paes lá esteve à procura de esmeraldas. Borba Gato descobriu minas na sub-região
do Alto Rio das Velhas. No princípio do século XVIII, alguns conflitos entre paulistas e
emboabas ocorreram naquele afluente. Mathias e Januário Cardoso, Manuel Francisco
Toledo e Manoel Pires Maciel combateram e escravizaram índios e se estabeleceram no
Médio São Francisco. Mas os paulistas atuaram também na área da construção naval. 11
Desde o início do século XVIII o desbravamento do São Francisco era
completado por gente de Salvador e Recife. Para a fixação, concorreu a descoberta de
ouro em Jacobina, no médio vale, junto da cabeceira de seu o afluente, o rio Salitre, e
pelo povoamento do Piauí, Maranhão e Ceará. Desenvolveram-se as fazendas de criação
de gado.
Do ponto de vista histórico, o vale do rio pode ser dividido em três grande
regiões, considerando-se o processo de ocupação humana no período colonial. A esse
respeito, Euclides da Cunha ensaiou uma divisão:

...o São Francisco foi nas altas cabeceiras, a sede essencial da agitação
mineira; no curso inferior, o teatro das missões; e, na região média, a terra
clássica do regímem pastoril, único compatível com a situação econômica e
social da colônia. Bateram-lhe por igual às margens o bandeirante, o jesuíta e
o vaqueiro12.

De acordo com Godinho & Godinho13, muito tem se modificado ao longo


do São Francisco desde 1867, quando Burton viajou de canoa de Sabará até o mar, mas
não a importância do rio para os brasileiros. Ele é ainda o Velho Chico, o rio da unidade
nacional, e este livro que Hugo e Alexandre Godinho organizaram é o relato de um
outro tipo de viagem – o da investigação científica e o do ouvir paciente as histórias do
povo que vive ao longo do rio e luta para retirar dele sua sobrevivência. O São
Francisco dos tempos de Burton tem sido barrado, vastos lagos artificiais quase
suprimiram a catarata de Paulo Afonso que ele descreveu como a Niágara brasileira, a
água tem sido extraída para agricultura e poluída pela indústria, e planos nacionais de
revitalização ainda contemplam desvio maciço do rio.
Durante o século XVIII, as contínuas descobertas de minerais e pedras
provocaram novas colonizações nas áreas montanhosas, causando no vale do rio poucas

11
NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.
12
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984.
13
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas. 2003.
alterações. A cidade de São Francisco, situada ao norte de Minas, teve início neste
século, sendo fundada em 1877.
Podemos afirmar que nos séculos XVII e XVIII foram os da conquista e
colonização da Bacia do São Francisco. Já o século XIX, cujo marco inicial é
a instalação da família real no Rio de Janeiro, consolida a importância do Rio
São Francisco para a integração nacional. Não por acaso, D. João VI
encarrega os engenheiros Lias e Halfeld de estudar a viabilidade de ampliar
sua navegação. Data igualmente dessa época, a descoberta, do São Francisco
pelos naturalistas europeus que realizam os primeiros trabalhos de cunho
analítico, não só enfatizando o potencial da região, mas também incluindo a
caracterização dos problemas e mazelas já então observados. 14

Na segunda metade do século XVIII, a mineração entrou em decadência com


a paralisação das descobertas. Por serem de aluvião o ouro e diamantes descobertos
eram facilmente extraídos, o que levou à exploração constante, fazendo com que as
jazidas se esgotassem rapidamente. Esse esgotamento deveu-se fundamentalmente ao
desconhecimento técnico dos mineradores, uma vez que enquanto a extração foi feita
apenas nos veios (leitos dos rios), nos tabuleiros (margens) e nas grupiaras (encostas
mais profundas) a técnica, apesar de rudimentar, foi suficiente para o sucesso do
empreendimento. Numa quarta etapa, porém, quando a extração atingiu as rochas
matrizes, formadas por minério extremamente duro (quartzo itabirito), as escavações
não conseguiram prosseguir, iniciando o declínio da economia mineradora. Como as
outras atividades eram subsidiárias ao ouro e ao diamante, toda economia colonial
entrou em declínio. Muitas cidades e povoados diminuíram em tamanho e importância.
A agricultura substituiu a mineração. Cidades nascidas da mineração subsistiram da
agricultura.
No século XVIII parte da comunidade indígena de Santana do Cariri, no
Ceará migrou para as nascentes do rio São Francisco na tentativa de se livrarem da
dominação portuguesa e caminharam grandes distâncias até a primeira cachoeira
formada pelo leito do rio, decidindo aí se estabelecer.
Segundo Machado15 a povoação dessa região foi facilitada pelo rio São
Francisco, que permitia acesso a várias regiões.
Machado16 acrescenta que por volta de 1887, São Francisco era formada
basicamente de pescadores e suas famílias que sobreviviam da pesca e do comércio
deste produto que era revendido por tropeiros às cidades, vilas e arraiais. As pequenas

14
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
15
MACHADO, Fernando da Matta. Navegação no Rio São Francisco. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.
16
MACHADO, Fernando da Matta. Navegação no Rio São Francisco. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.
casas que existiam seguiam o estilo da cultura indígena; construídas de barro e com
telhados de capim e palhas.
Alguns dados estatísticos ajudam a compreender a realidade social da
população que vive às margens do São Francisco. Os 103 municípios ribeirinhos do São
Francisco abrigam pouco mais de 2,4 milhões de pessoas, distribuídos pelos cinco
estados banhados pelo rio. Aproximadamente dois terços dessa população encontram-se
nos Estados da Bahia e de Minas Gerais, distribuindo-se o outro terço pelos Estados de
Pernambuco, Alagoas e Sergipe.17

1.2 Aspectos Geográficos

Pesquisando a história e características do rio São Francisco, descobre-se


que sua extensão é de aproximadamente 2.700 km, entre sua nascente, localizada na
Serra da Canastra, no município mineiro de São Roque de Minas, e a foz, situada entre
os estados de Alagoas e Sergipe, nas proximidades da cidade de Piaçabuçu - AL. Ao
longo do seu curso, o rio banha municípios de vários estados: Minas Gerais, Bahia,
Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Sua bacia hidrográfica é totalmente brasileira, além
dos estados citados, inclui ainda o estado de Goiás e o Distrito Federal18.
A bacia do rio São Francisco é dividida em: Alto São Francisco: estende-se
da nascente até a cidade mineira de São Francisco; Médio São Francisco: compreende o
trecho entre São Francisco até a cidade baiana de Remanso; Sub-médio São Francisco:
estende-se de Remanso até a cidade baiana de Paulo Afonso e Baixo São Francisco:
situa-se em áreas dos estados da Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, estendendo-se
de Paulo Afonso até a foz.
Na figura 2 vê-se o mapa da Bacia do São Francisco.

17
IBGE, 2000.
18
Fonte : Rio São Francisco: Patrimônio Cultural e Natural – Belo Horizonte : Assembléia Legislativa
de Minas Gerais – 2003.
Figura 2: Bacia do São Francisco
Fonte: IBGE, 1999

A morfologia do rio São Francisco apresenta perfil diversificado que,


segundo critérios geomorfológicos de sua calha e da várzea (com diques marginais,
bancos de areias, anais de enchentes com lagoas temporárias e perenes etc.) pode ser
dividida em sete segmentos: 1º de suas nascentes, na cota aproximada dos 1.400 m, até
a cota dos 650 m, na confluência do rio Ajudas numa extensão de 100 km; 2º daí até o
reservatório de Três Marias; 3º.19 da barragem de Três Marias até Pirapora; 4º de
Pirapora até a confluência do rio Carinhanha; 5º daí até o reservatório de Sobradinho; 6º
da barragem de Sobradinho até Paulo Afonso; 7º daí até a foz.
Ao longo do seu curso, o rio possui 36 afluentes de porte significativo, dos
quais 19 são perenes. Em geral, os afluentes da margem direita, que nascem em terrenos

19
IBGE, 1999.
cristalinos, nos maciços das Serras das Vertentes e do Espinhaço, possuem águas mais
claras, enquanto os da margem esquerda, vindos de terrenos sedimentares, nos altos
chapadões do oeste mineiro, leste goiano e tocantinense, são mais barrentos. Seus
principais afluentes são: Rio Paraopeba; Rio Abaeté; Rio das Velhas; Rio Jequitaí; Rio
Paracatu; Rio Urucuia; Rio Verde Grande; Rio Carinhanha; Rio Corrente; Rio Grande.
De acordo com o IBGE20 a cobertura pedológica da Bacia apresenta os
principais tipos e ordens de solos já mapeados no Brasil. A bacia possui ainda os
seguintes climas: tropical úmido, clima seco com chuvas de verão, clima temperado
chuvoso e clima subtropical de altitude. O rio São Francisco atravessa regiões com
condições naturais das mais diversas. As partes extrema superior e inferior da bacia
apresentam bons índices pluviométricos, enquanto os seus cursos médio e sub-médio
atravessam áreas de clima bastante seco. O alto São Francisco é uma região de muitas
chuvas (de 1.500 a 1.000 mm anuais), que caem de novembro a abril, respondendo por
3/4 do escoamento total do rio. Assim, a maior parte do deflúvio do São Francisco é
gerado em Minas Gerais, cuja área da bacia é de apenas 37% da área total. A vegetação
é definida também pelo IBGE21 em Cerrado, Caatinga e Florestas Tropicais.
Na zona sertaneja semi-árida, apesar da intensa evaporação, da baixa
pluviosidade e dos afluentes temporários da margem direita, o rio tem seu volume
d'água diminuído, mas mantém-se perene, graças ao mecanismo de retroalimentação
proveniente do seu alto curso e dos afluentes no centro de Minas Gerais e oeste da
Bahia. Nesse trecho o período das cheias ocorre de outubro a abril, com altura máxima
em março, no fim da estação chuvosa. As vazantes são observadas de maio a setembro,
condicionadas à estação seca.
Em grande parte do vale do São Francisco as áreas mais propícias ao
aproveitamento agrícola situam-se às margens do mesmo. Por esse motivo a maior
parcela da população do vale se encontra nas proximidades do rio. Nas áreas ribeirinhas
onde há maior crescimento e progresso, como Petrolina (PE) e Juazeiro (BA)
predominam a atividade de agricultura irrigada. Esta região apresenta-se atualmente
como a maior produtora de frutas tropicais do país, recebendo atenção especial,
também, a produção de vinho, em uma das poucas regiões do mundo que obtêm duas
safras anuais de uvas.

20
IBGE, 1995.
21
IBGE, 1999.
Desde o seu descobrimento, o rio São Francisco é o principal recurso natural
que impulsiona o desenvolvimento regional. Hoje gera energia elétrica para abastecer
todo o Nordeste e parte do estado de Minas Gerais, com as hidroelétricas de Paulo
Afonso (AL/BA), Moxotó (AL/BA), Xingó (AL/SE), Itaparica (PE/BA), Sobradinho
(PE/BA) e Três Marias (MG).
A respeito das barragens, Godinho & Godinho afirmam:
As barragens hidrelétricas produzem forte impacto negativo na pesca e estão
entre as principais causas do declínio da pesca em rios de muitos países. A
regularização do regime hidrológico de um rio por meio de barragens é
geralmente reconhecida como uma das formas mais devastadoras de
degradação do habitat de águas interiores. O barramento pode modificar o
regime hidrológico natural e a qualidade da água, de modo a afetar
negativamente as condições de jusante. Mudanças ocorrem nos habitats de
desova, em áreas de abrigo e nos gatilhos do ciclo de vida, como aquele que
desencadeia a desova. O segmento jusante torna-se regulável de acordo com
as necessidades de geração de energia hidrelétrica, atenuando as grandes
cheias. Várzeas, antes alagáveis, deixam de receber água, comprometendo o
seu papel de berçários de jovens de peixes migradores. A instalação de um
regime hidrológico favorável é, portanto, importante forma de restauração
do habitat. Além disso, as barragens constituem uma barreira intransponível
na rota migratória dos peixes de piracema, que são os mais valiosos do
ponto de vista pesqueiro, reduzindo seu sucesso reprodutivo. A nova
situação no segmento de montante da barragem também é dramática para a
pesca. Todavia, seus efeitos dependem da posição geográfica da barragem
22
na bacia hidrográfica.

A pesca predatória pode produzir forte impacto negativo nos estoques


pesqueiros. Equipamentos e métodos inadequados ou ilegais são tradicionalmente
utilizados por parte dos pescadores. As limitações legais impostas à época, ao tamanho
e à quantidade do pescado capturado não são respeitadas por todos. Por outro lado, a
carência de informações essenciais sobre a pesca e sobre os peixes impede o
estabelecimento de normas de pesca mais adequadas. Dentre as técnicas disponíveis
para normalização da pesca estão: época de defeso, tamanho mínimo de captura,
santuários, limite de captura, restrições do esforço e de petrechos de pesca. Por último,
mas não menos importante, o avanço das fronteiras agroindustriais e dos aglomerados
urbano-industriais produz impactos que se somam aos anteriormente discutidos.
O repovoamento é uma das estratégias mais usadas para a reabilitação
pesqueira, embora envolva riscos relativos à eficiência do programa quanto aos seus
resultados, à preservação do pool genético e à possibilidade de introdução de doenças,
além de outros aspectos ecológicos e econômicos. Quando empregado isoladamente,

22
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003, p.20.
atua como medida mitigadora de curto prazo e não atinge as causas da debilitação da
pesca. As três principais recomendações para o uso de repovoamento são: manter a
produção face à exploração intensiva, mitigar ou compensar impactos negativos e
aumentar a produção de um dos componentes do sistema aquático. Segundo esse autor,
não existem dúvidas de que o repovoamento tornar-se-á cada vez mais importante como
ferramenta para o manejo de rios, para a manutenção de estoques altamente explorados
ou de espécies que, de outra forma, se extinguiriam.
No rio São Francisco, a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos
Vales do São Francisco e Parnaíba) vem, periodicamente, realizando repovoamentos na
região de Três Marias com espécies nativas, desde os meados da década de 1980.
Avaliações quantitativas sistemáticas sobre o desempenho dessa medida ainda não estão
disponíveis. Todavia, relatórios mostram que o matrinchã, por exemplo, considerado
extinto localmente, tem sido capturado em números crescentes, desde quando se iniciou
seu repovoamento.23
A normalização é uma ferramenta usada em conjunto com outras práticas de
reabilitação, tais como manipulação da população (repovoamento) ou do habitat
(manejo hidrológico). Seu propósito é proteger ou incrementar a pesca para benefício
dos usuários. Ela protege as populações de peixes da sobrepesca, distribui a captura
entre os pescadores e provê o pescador de uma expectativa de pescaria bem-sucedida.
É preciso, no entanto, atentar para a degradação e os impactos ambientais
que o São Francisco vem sofrendo.

No seu trecho navegável, a gaiolas e barcos a vapor dizimam a mata ciliar,


ocasionando alargamento de seu leito e conseqüente abaixamento de suas
águas. Atualmente, o homem moderno vem construindo grandes barragens,
cujos extensos lagos não são adequadamente monitorados; a agricultura
ribeirinha rouba suas águas que, quando voltam ao seu leito, vêm
impregnadas de agrotóxicos que poluem seu curso, matando a
biodiversidade nele existente. A pesca predatória, utilizando redes e
armadilhas, dizimou seus cardumes. Estudos de recarga aqüífera são
inexistentes. A região é pobre, sem força política.24

Ao longo do rio existem 103 municípios ribeirinhos distribuídos pelos cinco


estados banhados pelo rio. O Estado de Minas Gerais abriga o maior número de

23
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
24
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
municípios ribeirinhos. Segundo Ministério da Integração Nacional25, abaixo, alguns
municípios que compõem a bacia do rio São Francisco em Minas Gerais:
Araçaí, Augusto de Lima, Belo Horizonte, Belo Vale, Bom Despacho,
Brasília de Minas, Brumadinho, Buenópolis, Cachoeira da Prata, Caetanópolis, Caeté,
Capitão Enéas, Carmo da Mata, Conceição do Mato Dentro, Cordisburgo, Corinto,
Córrego do Fundo, Curvelo, Diamantina, Esmeraldas, Espinosa, Felixlândia, Formiga,
Fortuna de Minas, Francisco Sá, Gameleiras, Guaraciama, Ibiaí, Ibiracatu, Icaraí de
Minas, Igarapé, Itacarambi, Itaguara, Itapecerica, Itatiaiuçu, Itaúna, Itaverava,
Jaboticatubas, Jaíba, Janaúba, Januária, Jequitaí, Jequitibá, Joaquim Felício, Juatuba,
Juramento, Lagoa da Prata, Lagoa dos Patos, Lagoa Dourada, Lagoa Santa, Mamonas,
Maravilhas, Martinho Campos, Mateus Leme, Matias Cardoso, Ouro Branco, Pará de
Minas, Paraopeba, Passatempo, Patins, Pedras de Maria da Cruz, Pedro Leopoldo,
Pirapora, Pitangui, Ribeirão das Neves, Sabará, Santa Luzia, Santo Hipólito, São
Francisco, São Gonçalo do Pará, São Joaquim de Bicas, São Romão, Serro, Sete
Lagoas, Santa Fé de Minas, Santo Antônio do Monte, Taquaraçu de Minas, Três
Marias, Vargem Bonita, Várzea da Palma e outros mais.
A pobreza das comunidades ribeirinhas, observável por quem viaja pelo rio,
é confirmada pelos dados estatísticos governamentais. A média do índice de
desenvolvimento humano (IDH) dos municípios ribeirinhos situa-se significativamente
abaixo da média nacional. Segundo o IBGE (2006) 26, dentre os municípios ribeirinhos,
os 15 que apresentam melhor índice de desenvolvimento humano são os mineiros.
A fonte de vida e de riqueza das águas do Rio São Francisco possibilita o
múltiplo uso do seu potencial hídrico, para abastecimento humano, agricultura irrigada,
geração de energia, navegação, piscicultura, lazer e turismo. Há alguns anos, vários
problemas de natureza social e econômica vêm afetando o percurso natural do rio.
A bacia do rio São Francisco, com área maior que a soma das áreas de
Portugal e Espanha, situada numa faixa intertropical de sul para norte, apresenta
diversidades biótica e abiótica únicas, verdadeiro desafio para qualquer estudioso da
região. Se considerarmos a ausência de estudos específicos, a bacia torna-se vasto
laboratório de pesquisa sem-par. Desde épocas históricas, o rio São Francisco vem
sofrendo impactos ambientais introduzidos pelo homem. No seu trecho navegável, as
gaiolas e barcos a vapor dizimam a mata ciliar, ocasionando alargamento de seu leito e

25
http://www.integracao.gov.br/saofrancisco/noticias/noticia.asp?id=3056 acessado em 12/12/2007
26
IBGE, 2006
conseqüente abaixamento de suas águas. A pesca predatória, utilizando redes e
armadilhas, dizimou seus cardumes. Estudos de recarga de seu aqüífero são inexistentes.
A região é pobre, sem força política.
O sertão norte-mineiro que está inserido no bioma cerrado, com suas
peculiaridades climáticas, vegetais e geográficas se destaca no território brasileiro, visto
que é atravessado pelo rio São Francisco, o qual representa séculos, de importância,
indispensável para a formação demográfica de Minas considerada canal de integração
entre o litoral e o interior brasileiro.
Neste contexto geográfico, encontra-se o município de São Francisco, às
margens do referido rio de mesmo nome. O município de São Francisco está situado na
região Norte de Minas Gerais, a 580 km da capital Belo Horizonte. A partir de 1702,
aproximadamente, data em que se estabeleceu o bandeirante paulista, Domingos do
Prado de Oliveira, fundador do povoamento original, conforme Brasiliano Braz27,
terminologias como “Pedras de Cima”, “Pedras dos Angicos”, São José dos Angicos”,
“Cidade Evangelina”, “São Francisco das Pedras”, e finalmente, “São Francisco”, todas
essas denominações faziam referência ao atual Município de São Francisco, hoje com
uma configuração territorial e demográfica bastante diversa.

1.3 Degradação, Revitalização e Transposição do rio São Francisco: questões


urgentes

Um exemplo de como o país vem administrando seus recursos naturais é


muito bem retratado através do estado de degradação em que se encontra o rio São
Francisco. Dentre os principais agentes poluidores do São Francisco destacam-se as
ações desordenadas de mineradoras, a erosão do solo, o uso indiscriminado de
agrotóxicos. Mas o grande vilão é a região metropolitana de Belo Horizonte, capital de
Minas Gerais, que polui seu maior afluente, o Rio das Velhas.
O rio São Francisco é vítima do desmatamento e queimadas desde a sua
nascente, na Serra da Canastra, em Minas Gerais, da poluição na forma de agrotóxicos,
esgotos domésticos e industriais, além do desvio de água cada vez maior para projetos

27
BRAZ, Brasiliano. São Francisco Nos Caminhos da História. São Francisco: Lemes, 1977
de irrigação mal elaborados, o rio São Francisco a cada ano tem diminuído
perigosamente o seu volume de água e a navegação já não se faz em determinados
trechos e em determinadas épocas. Observe na figura 3 a degradação do leito e das
margens do rio São Francisco. 28

Figura 3: degradação do leito e das margens do rio São Francisco


Fonte: http://www.brasiloeste.com.br/noticia/rio-sao-francisco-meio-
ambiente

O rio também é vítima do desprezo e da irresponsabilidade de sucessivos


governantes, seja a nível federal ou estadual, insensíveis e incapazes da adoção de
medidas para impedir a sua “morte lenta”. As derrubadas e queimadas de árvores, seja
na nascente ou ao longo do seu percurso, estão cada vez maiores. As cidades ribeirinhas
não têm sistema de tratamento de esgoto e as indústrias continuam despejando toda
sujeira no seu leito. Agricultores, alguns sem escrúpulos, outros por falta de orientação,
usam e abusam de agrotóxicos em plantações nas margens do rio e esse veneno também
é conduzido para o rio São Francisco.
Além de contribuir para secas constantes nas nascentes do São Francisco e
de seus afluentes, o desmatamento provoca a queda de barrancas e, conseqüentemente,

28
www.ambientebrasil.com.br/composer. agua/doce/artigos/velhochico.html acessado em 12/12/2007
o assoreamento do rio (acúmulo de terra no leito). O resultado disso é o perigo e a
dificuldade de navegação, pois muitas ilhas já estão formadas em seu percurso. 29
A degradação é o que mais tem atingido o São Francisco nos últimos anos. A
maioria dos 503 municípios existentes ao longo da bacia do rio joga esgoto em suas
águas. Além disso, as matas ciliares da região alta do rio São Francisco, entre Minas
Gerais e Bahia, foram quase totalmente destruídas. Muitas entidades questionam que, se
o governo tinha consciência do estado de degradação do rio, como vinha até agora
defendendo a transposição?
A revitalização é ponto essencial para o rio São Francisco e condição para
que muitos estados do Norte e Nordeste aceitem a transposição. O rio vive em estado de
degradação profunda, perdendo volume de água a cada ano e, com isso, ameaçando a
geração de energia. Na Bahia, o Lago do Sobradinho, que abastece as usinas do
complexo hidrelétrico de Paulo Afonso, operado pela Chesf (Companhia Hidrelétrica do
São Francisco), e que responde pela geração de energia para todo o Nordeste, é um
exemplo da fadiga do São Francisco.
Para o coordenador técnico do Projeto São Francisco, João Urbano Cagnin30:

A revitalização do São Francisco é uma ação fundamental para garantir a


continuidade do abastecimento de água aos estados Nordestinos e para
suprir as necessidades dos nove milhões de brasileiros que habitam a
região do semi-árido, pois é a maior fonte de água doce da região.

As prioridades estabelecidas para a região do alto São Francisco são a


proteção das nascentes, a recomposição das matas ciliares e o saneamento básico das
cidades e vilas que se localizam às margens do rio. No médio São Francisco, os pontos
mais relevantes do programa estão centrados na complementação dos projetos de
irrigação já iniciados e na melhoria da Hidrovia do São Francisco para garantir boas
condições de navegação até Juazeiro.
A polêmica ‘revitalização x transposição’ do Velho Chico se arrasta por
alguns anos e ainda é motivo para acaloradas discussões. Mesmo que a primeira posição
prevaleça, a segunda continua viva e com ferrenhos defensores, tanto nas possíveis
cidades afetadas quanto no Congresso e órgãos do governo.

29
idem.
30
http://www.integracao.gov.br/saofrancisco/noticias/noticia.asp. acessado em 03/01/2008
Independente disso, grandes obras com o intuito de levar água ao semi-árido
brasileiro já se encontram em funcionamento ou em construção, a maioria sob a
responsabilidade da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e
Parnaíba (Codevasf). Estes projetos, principalmente os de irrigação, ajudam a
reestruturar parte da economia, do cotidiano e da natureza da região.
O Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco
(PRSF) é coordenado pela Secretaria- Executiva do Ministério do Meio Ambiente, em
parceria com o Ministério da Integração Nacional. Com prazo de execução de 20 anos,
suas ações estão inseridas no Programa de revitalização de bacias hidrográficas com
vulnerabilidade ambiental do Plano Plurianual (PPA 2004/2007) e será complementado
por outras ações previstas em vários programas federais do PPA. As ações de
revitalização são executadas de acordo com a Política Nacional de Meio Ambiente – Lei
nº. 6.938/81, Política Nacional de Recursos Hídricos – Lei nº. 9.433/97 e a Política
Nacional de Saneamento – Lei nº. 11.445/0731. Divide-se em 5 linhas de ações, em
conformidade como Plano de Atividades e Metas 2004-2007 – PAM: Gestão e
Monitoramento; Agenda Socioambiental; Proteção e uso sustentável de recursos
naturais; Qualidade de saneamento ambiental e Economias Sustentáveis.
O Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco
terá sua continuidade assegurados com recursos do Programa de Aceleração do
Crescimento – PAC (2007-2010) na ordem de R$ 1.274.700.000,00. As ações previstas
consistem em obras de saneamento básico (resíduos sólidos, esgoto), contenção de
barrancos e de controle de processos erosivos, melhoria da navegabilidade e
recuperação de matas ciliares. As ações de esgotamento sanitário, inicialmente,
envolverão os 102 municípios da calha do rio São Francisco. Este programa representa
um esforço comum de articulação e integração entre os vários órgãos de governos em
todas as esferas e da sociedade civil, todos imbuídos do propósito único que é promover
a revitalização da bacia e o desenvolvimento em base sustentável e alcançar a
governabilidade desejada, reconhecida como chave para a gestão mais eqüitativa,
eficiente e sustentável dos recursos naturais.

31
Fonte: Agência Nacional das Águas, em: http://www.ana.gov.br/gefsf/conteudo acessado em
03/01/2008
A irrigação no Vale do São Francisco, especialmente no semi-árido, é uma
atividade social e econômica dinâmica, geradora de emprego e renda na região e de
divisas para o País – suas frutas são exportadas para os EUA e Europa.
O Programa de Revitalização do São Francisco, cujas ações já se iniciaram,
contempla, no curto prazo, a melhoria da navegação no rio, providência que permitirá a
otimização do transporte de grãos (soja, algodão e milho, essencialmente) do Oeste da
Bahia para o porto de Juazeiro (BA) e daí, por ferrovia, para os principais portos
nordestinos.
O projeto de usar as águas do Rio São Francisco para combater o problema
da seca no Nordeste Setentrional (Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte)
remonta ao século XIX. Foi em 1886 que o engenheiro Tristão Franklin Alencar de
Lima cogitou pela primeira vez nessa idéia. Desde então, muitas outras propostas
surgiram, mas em nenhuma foi comprovada eficácia suficiente que justificasse a
execução.
A proposta atual32 prevê em duas tomadas d'água levar 127 m3/s de água a
partir da cidade de Cabrobó (PE), eixo norte, (de onde serão levados 99m3/s) e do lago
de ltaparica (BA), eixo leste (serão levados 28m3/s).No Ceará, o Rio Jaguaribe e bacias
metropolitana de Fortaleza seriam interligadas pelo Canal do Trabalhador. No Rio
Grande do Norte, os rios beneficiados seriam o Apodi e o Piranhas-Açu. Na Paraíba, as
águas do Velho Chico alimentariam a vazão dos rios Piranhas e Paraíba. Em
Penambuco, os rios Brígida e Moxotó seriam contemplados. Para a água alcançar as
vertentes dos estados, terá que ser elevada a 164 metros de altura, passar por túneis e
aquedutos e percorrer dois mil quilômetros de rios e canais a céu aberto, evaporando e
infiltrando. Porém, o bombeamento não será contínuo, pois o objetivo é somente suprir
alguns açudes para compensar a água evaporada, abastecendo seis milhões de pessoas e
irrigando 180 mil hectares de terras.
Um dos grandes argumentos de quem é contra o Projeto é de que os canais
irão passar por grandes fazendas e beneficiar latifúndios e não a população mais pobre.
Porém, analisando a outorga que foi concedida pela Agência Nacional de Águas (ANA),
que é responsável pela liberação de licenças para uso e exploração de água, percebe-se
que lá está escrito de forma inquestionável que a prioridade é para consumo humano e
dessedentação animal.

32
Fonte: Agência Nacional das Águas, em: http://www.ana.gov.br/gefsf/conteudo.
As pessoas não vivem sem água, mas também não vivem só de água.
Precisam do emprego, precisam de renda, precisam de comida. Exatamente por isso, a
sobra de água deve sim ser utilizada para beneficiar a produção, além do consumo
humano e a dessedentação animal, que são absolutamente prioritários.
Observa-se na figura 4 o mapa do Projeto de Transposição do Rio São
Francisco.

Figura 4: Projeto de Transposição do rio São Francisco


Fonte: Ministério da Integração Nacional, em:
www.integracao.gov.br/saofrancisco/noticias/noticia
Segundo o Ministério da Integração Nacional33, um engano muito freqüente
em relação a esse projeto é o de que o curso do rio irá ser desviado. O que se vai fazer
na realidade é bombear 26 m³/s para atender e matar a sede de nossos irmãos do
Nordeste Setentrional. O que significa dizer que a cada 100 litros, a proposta é tirar 1,4
litros para esse projeto que se assemelha a tantos projetos de irrigação que utilizam água
do Rio São Francisco. Como, por exemplo, ao sistema de abastecimento da cidade de
Aracaju, que nada mais é do que uma transposição de águas. As águas do Rio São
Francisco se integram à Bacia do Rio Sergipe, para abastecer, 100 km depois, a cidade
de Aracaju, que é uma cidade fora da Bacia do São Francisco. Essa ligação foi feita por
soluções de obra de engenharia (canais, túneis, aquedutos). São soluções de engenharia,
pois hoje temos tecnologias extremamente modernas e testadas para esse tipo de obra.
A garantia de que o projeto não terá um impacto ambiental negativo na
Bacia do São Francisco é que um órgão do rigor do Ibama, que tem respeitabilidade em
todo país e até fora do país demorou tanto tempo para conceder as licenças, estabeleceu
36 Planos Básicos Ambientais, que visam proteger o ambiente e que o Ministério da
Integração Nacional está levando adiante com muita seriedade. Inclusive, foi sugerido e
criado uma comissão interministerial para acompanhar a implementação de todos esses
planos, que vão mitigar e amenizar qualquer problema ambiental que eventualmente
possa surgir. 34
Considerado inviável, o projeto de Transposição do rio São Francisco, agora
“maquiadamente” denominado “Projeto de Integração da Bacia do São Francisco às
Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional” tem sido assunto de discussão no país
inteiro. Dos 44 impactos listados no Relatório de Impacto Ambiental, somente 11 são
considerados positivos, mas muitas incertezas ainda estão são sem explicações. Além
dos potenciais impactos sobre os peixes, o projeto de transposição apresenta outros
problemas. Primeiramente, regiões áridas não são próprias para incentivo de
adensamento humano. O atual projeto, além de teoricamente melhorar a condição de
vida dos que lá já se encontram pode, por outro lado, incentivar o aumento de sua
população. Isso acarretaria novos problemas e necessidade de mais água no futuro.
Também muito se ouve de especialistas, inclusive nordestinos, que é
possível aumentar a oferta de água para a população da região através da interligação

33
Fonte: www.integracao.gov.br/saofrancisco/noticias/noticia.asp acessado em 03/01/2008.
34
Ministro da Integração Nacional Geddel Vieira Lima, em www.integração.gov.br acessado em
03/01/2008
mais eficiente dos açudes existentes, coleta de água de chuva e armazenamento, e
perfuração de poços artesianos. Diz-se que a água armazenada atualmente é bastante
para manter a população e que não é utilizada para reservar para épocas de seca mais
severa.
A água que atualmente flui pelo rio São Francisco, abaixo do ponto de
captação previsto, passa por 5 grandes usinas hidrelétricas. Além de restringir a
produção energética numa região ainda carente desse insumo, a elevação da água por
meio de potentes bombas (160 m no eixo norte e de cerca de 300m no eixo leste)
consumirá, por outro lado, porção relevante da energia produzida na região.
Surgem também suspeitas de que o equipamento a ser comprado para o
bombeamento teria sido adquirido por outro país e não foi utilizado. Será que essas
bombas são dimensionadas para o volume projetado para a nossa transposição ou para o
projeto do outro país? O Governo garante que a transposição visa exclusivamente o
abastecimento humano. Mas sabe-se que outros grandes grupos têm seus interesses: as
fazendas de camarões e de criação de peixes da espécie tilápia em larga escala, os
grupos produtores de frutas irrigadas, as empreiteiras que conduzirão a obra e os
fornecedores de grandes volumes de cimento e ferro, entre outros.
Mesmo desconsiderando tudo o que foi dito acima, quem garante que os 720
km de canais a céu aberto, revestido de concreto, não serão ocupados pela população
carente? Existe o risco de uma verdadeira favelização desses canais, trazendo junto o
lixo e esgotos produzidos. A possibilidade de perda da qualidade da água é iminente.
Sem se considerar a presença de animais, também muito provável.
Lá na serra da Canastra lá de Minas Gerais
O Senhor olhou seu povo e uma lágrima derramou
Esse choro virou rio e São Francisco se chamou.
(Frei Luiz Capio, bispo da Igreja Católica)
CAPÍTULO II – O RIO SÃO FRANCISCO COMO GERAÇÃO DE RENDA

2.1 Contexto Sócio-econômico e Cultural

A cidade de São Francisco, localizada na região Norte do Estado de Minas


Gerais, é cortada na direção sudoeste nordeste pelo Rio São Francisco, ficando à sua
margem direita. Tem 3.300 km² e sua população é de aproximadamente 52.985
habitantes (IBGE, 2007).
A figura 5 mostra a localização do município de São Francisco, no Estado de
Minas Gerais.
Figura 5: Localização da cidade São Francisco
Fonte: IBGE

O cerrado, a mata seca e a caatinga compõem a flora local de onde são


extraídos frutos e plantas que são utilizadas como alimento e remédio pelos sertanejos.
A população de baixa renda vive basicamente da pesca artesanal (de
subsistência). A pesca artesanal é realizada com tecnologias de baixo poder de
depredação, levada a cabo por produtores autônomos, empregando força de trabalho
familiar ou do grupo de vizinhança e cuja produção, além do consumo, destinar-se
também ao mercado. Sua vida está condicionada ao ciclo da natureza, pois o fenômeno
da enchente e da vazante do rio regula em grande parte o cotidiano dessa gente. Como
forma de organização social e econômica, a atividade pesqueira permeou toda a
trajetória das comunidades ribeirinhas até os dias atuais.
Mas São Francisco não é apenas um município a mais que se estende pelas
duas margens do Velho Chico. Suas terras abrigam patrimônios e surpresas. Violas e
rabecas, Reis e São Gonçalo, rendas, louça de barro e barcos.
São Francisco é cheia de lendas e estórias. As narrativas orais do velho
Chico constituem uma determinada identidade para os grupos étnicos da região, fixando
valores culturais, que viajam no tempo e no espaço; estão inseridos em culturas vivas
constituindo documentos vivos do passado e do presente.

O mito é uma fala. É um sistema de comunicação, é uma mensagem; é um


modo de significação, uma forma, pois o universo é infinitamente sugestivo.
E aqui, tomaremos o mito enquanto mensagem permeada de significações.
Mensagem que retrata a falta de obediência para com a natureza aquática do
velho Chico, o desmatamento, a pesca predatória, o nadar em águas
profundas e desconhecidas, sem permissão dos pais. Daí surgem os mitos
articulados, constituindo, assim, um arcabouço da cultura, que ajuda a
construir um mundo comum e habitável.35

A arte de contar histórias é praticada pela população humilde em São


Francisco. A produção dessas narrativas é influenciada pelo ambiente em que são
contadas, assim como as modificações no enredo dos casos são feitas conforme o
momento, a experiência, os conhecimentos e as habilidades daquele que narra. Prática
de memória, de resistência, esses contos revelam o objetivo de informar, ensinar. O
sobrenatural fascina o barranqueiro. E a presença do diabo, perdendo as almas,
enganando os homens, ou sendo afinal por eles enganados, é constante. É infinito o
número de causos de amor, de aventuras, de assombração, trágicos e humorísticos.
Entre lendas e mitos, que ganham vida nas palavras dos contadores de
causos São Franciscanos, verdadeiros artesãos do imaginário popular, destacam-se o
Caboclo D’água, Mãe D’água, Surubim Gigante, Palácio Encantado e Romãozinho.

No passado, do tempo sumido, / O homem plantou parte de sua vida; /


Viajou noites e trouxe seus temores / Perpetuando o seu modo de ser/viver. /
Idas e vindas, tantas voltas, / Percorreu diversos caminhos; / Mais esconsos
que claras trilhas,/ Mais escuridão que brilho da luz. / O fantástico tomou
conta de sua alma; / O mundo dois se fez tanto/tanto real / Quanto o que ele
mostra ser homem, / Por isso ele continua viajando no tempo.36

As festas, festejos, alegrias de viver, um pontinho preto no norte das Minas


Gerais. A cidade que o rio mais gosta porque leva o seu nome37. A música apresenta-se
de forma marcante na cidade. Na expedição que fizeram ao Brasil, de 1817 a 1820, para

35
SOUTO, Maria Generosa Ferreira. Eu nunca vi não... só vejo falar: Mitos e ritos da narrativa oral das
barrancas do São Francisco. 1ª ed. Rio de Janeiro: Eclesiarte, 2004.
36
MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.
37
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
coletar amostras para o Jardim Botânico de Munique, os botânicos Karl Von Martius e
John Von Spix espantaram-se com a musicalidade do Vale do São Francisco.38
O modo de vida dos ribeirinhos está intimamente condicionado ao ciclo da
natureza. Às margens do São Francisco as pessoas se relacionam com a natureza e com
o espaço onde vivem de forma particular, considerando-os como uma extensão do
próprio corpo. O rio é um parceiro presente na lida diária, no sustento, e nunca um
adversário que deva ser domado para o aproveitamento máximo.
Observa-se na figura 6 a cidade de São Francisco, às margens do rio São
Francisco.

Figura 6: Cidade de São Francisco às margens do rio São Francisco.


Fonte: João Naves de Melo

O rio São Francisco ainda é uma das principais fontes brasileiras de


pescado. Os pescadores ainda fornecem peixes em quantidade suficiente para alimentar
a população ribeirinha e para atender ao mercado de outras regiões do Nordeste e do
Sudeste do Brasil. A pesca foi também uma das principais fontes geradoras de recursos
para sua população ribeirinha. Provavelmente milhares de pescadores desportivos,
dirigiam-se anualmente às margens do rio. Centenas de estabelecimentos comerciais,
como hotéis, restaurantes, clubes de pesca, peixarias e lojas obtinham na pesca sua fonte

38
Fonte: Revista Globo Rural, ano 16, n.º 180.
principal ou secundária de recursos. A receita gerada pela pesca pode ter atingido
dezenas de milhões de reais por ano. Além disso, o rio provia proteína animal farta para
milhares de ribeirinhos.39
Godinho & Godinho40 trazem que embora de reconhecida importância, a
pesca no São Francisco nunca foi regularmente quantificada. Menezes compilou
diversas publicações sobre a pesca que aí era realizada até a primeira metade do século
20. Várias dessas publicações mostram como era magnífica a pesca, tanto que Menezes
e Moojen (1940)41 consideraram que a piscosidade do São Francisco tinha feição de
milagre. Certamente, a abundância de peixes no passado rendeu fama ao rio. Mesmo
assim, o cuidado com a pesca foi negligenciado e, conseqüentemente, inexistem séries
históricas de estatísticas pesqueiras para a bacia.
Segundo a Sudepe/Codevasf (1980), cerca de 6.500 pescadores
profissionais, com baixo nível de escolaridade e não contando com assistência técnica,
atuavam no rio São Francisco em 1977-1978, auferindo baixos rendimentos, vivendo
sob o domínio de intermediários. Apenas cerca de 2.000 deles estavam devidamente
registrados em colônias de pescadores existentes ao longo do rio. Estimou-se em 26.500
t/ano a produção de pescado para aquele período, sendo que mais da metade era oriunda
da represa de Sobradinho. A produção média, estimada no período de safra, foi de 126,9
kg/pescador/semana/ e no período de entressafra, de 31,3 kg/pescador/semana
(Sudepe/Codevasf, 1980). Vinte e seis mil pescadores atuavam no vale do São
Francisco em 1985, segundo estimativas da Planvasf (1989), sendo que 62% desse total
eram registrados em colônias de pescadores e 7,7% deles atuavam na represa de
Sobradinho. A produção de pescado do vale para aquele ano foi estimada em 26.100 t.
Menezes e Moojen (1956) estimaram a produção de pescado em 2.543,4 t, para 1951, e
em 1.790,7 t, para 1954, em 29 municípios ao longo do rio.42
Na segunda metade da década de 1980, cerca de 2.400 pescadores
profissionais encontravam-se associados às colônias de pescadores no trecho mineiro do
São Francisco, quando apenas 1/3 deles exercia exclusivamente a atividade. A maioria
dos pescadores era analfabeta. Os petrechos de pesca mais empregados eram a rede de

39
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
40
idem.
41
Menezes e Moojen citados por Godinho 2003.
42
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
espera, anzol, tarrafa e rede de caceia. Eles utilizavam principalmente barcos de madeira
a remo.
O pescado era mantido fresco ou conservado em gelo.
Godinho & Godinho43 relatam que dentre os diversos peixes de importância
para a pesca no São Francisco, o surubim é um dos destaques. Na colônia de pesca de
Pirapora, ele representou 86% do pescado desembarcado no segundo semestre de 1986.
O surubim, além da grande estima popular, é também o mais valioso e um dos mais
apreciados pelos pescadores desportivos e para a culinária local.
O “País” do São Francisco44 é um lugar cheio de contradições. Em alguns
pontos tomados isoladamente há quadro de pleno desenvolvimento, mas o vale ainda é
uma região de baixo poder aquisitivo. Ao contrário do que apregoa o bordão em torno
do rio, na maioria das cidades as populações do São Francisco, de tão abandonadas,
parecem esquecidas da comunhão nacional. Nos municípios ribeirinhos, não são raras as
populações que vivem praticamente alheias às leis econômicas, produzindo apenas o
suficiente para viver. O aspecto de pobreza e de atraso é extremo. A maioria das pessoas
não tem trabalho permanente. A impressão mais forte que se tem é de que todos estão
perdidos em um local onde não chegaram os avanços do progresso.
O homem do São Francisco é produto da entrosagem do índio e do luso, com
laivos de sangue negro, o sertanejo são-franciscano é a perfeita encarnação do tipo
bandeirante rijo, que lutou com a Natureza, devassou os sertões ínvios, dominou os
selvagens, repeliu o elemento estranho.45 Os pioneiros que se aventuraram pelo sertão,
na conquista de novas terras e em busca de riquezas, firmaram-se às margens do São
Francisco através da formação de currais de gado, economicamente rentáveis, e da
agricultura de subsistência.
Devido às origens da formação étnica do ribeirinho, seu linguajar apresenta
influência de vocábulos indígenas, e muitas localidades tiveram início em aldeias de
nativos. Mas, a maior parte da população ribeirinha teve sua origem nas antigas
fazendas situadas às margens do Rio São Francisco. Grande parte dessas famílias
trabalhou como diaristas ou eram filhos de diaristas daquelas fazendas, que com o
passar dos anos, foram expulsos pelos proprietários, o que obrigou estas famílias a

43
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
44
Expressão utilizada pelo jornalista Jamildo Melo na série de reportagens S.O.S São Francisco,
publicadas no Jornal do Comercio (PE).
45
ROCHA, Geraldo. O Rio São Francisco - Fator Precípuo da Existência Do Brasil. 3ª edição.
Companhia Editora Nacional, 1993.
fixarem residência em ilhas e às margens do rio. O folclorista Melo retrata em sua
poesia “Tipos”, os tipos ribeirinhos:

Pois é o que se vê: cada alma tem seu universo; / Pois é o que se sabe: cada
cabeça tem sua história; / Pois é o que se conta: cada coração tem seu amor;
/ Pois é, o homem não navega na alma do homem. / Cada um leva seu sonho
no seu mundo diverso; / Cada um tem seu rumo para buscar um porto, / E,
no seu viajar, aos outros pode parecer diferente, / Mas, para ele, os outros é
que não viajam. / Um busca um amor; outro apenas espera; / Um conta uma
história; o outro a recolhe; /Um quer uma canção; outro apenas cantar; / São
tolos? São apenas parte de nossa história.46

Essas populações, por viverem praticamente isoladas dos centros urbanos


mais avançados ou pelo menos enfrentando dificuldades para manter com estes um
relacionamento freqüente, desenvolveram hábitos próprios de consumo: elas
centralizaram suas atividades no extrativismo vegetal, agricultura, pesca e caça,
procurando o quanto possível a auto-suficiência, sem objetivos de comercialização. Em
geral, todos os membros das famílias estão envolvidos no processo de trabalhos que são
executados, observando-se inclusive o trabalho de crianças, que muitas vezes deixam de
freqüentar a escola para ajudar os pais na lida. Esta cultura comunitária é ampliada cada
vez mais, na medida em que os filhos crescem e se casam, formando outros núcleos
familiares, e alguns casos, até mesmo novas comunidades.47

Na maioria das vezes os ribeirinhos acostumaram-se em uma vida de


dificuldades e não reclamam. Mesmo nas áreas onde as chuvas são abundantes, como
no Baixo São Francisco, em plena zona da mata, observa-se pobreza e pouco
desenvolvimento.

A figura do pescador artesanal é constante da paisagem do São Francisco,


realizando suas atividades em íntima relação com seu meio natural. O saber desses
atores da vida no rio revela-se grande conhecimento a respeito do comportamento dos
peixes, do próprio rio e de seus ciclos naturais. O folclorista Melo retrata o pescador em
sua poesia intitulada “Pescador” :

Partícula dos assombros milenares que mergulha / Nos tempos das luzes que
não mostram caminhos; / Que sai todo dia no ir, seguro de ter que voltar, /
Porque uma âncora prende seu corpo ao ninho. / A extensão do peito é corda
fria que estica,/ Levando parte da barriga de quem espera; / Os braços
retesados têm o símbolo da alegria / Do coração que disparado bate o sino

46
MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.
47
FRAXE, 1998.
do porto. / Vai e vem, noites e dias, como as águas do rio; / Leva sonhos e
recolhe desesperanças, quase sempre; / E de jornadas feitas escreve a longa
história / De um povo que sabe o peixe para poder viver48.

Thé, sobre o conhecimento do pescador, afirma:

O estudo deste conhecimento e das práticas locais realizadas pelas


comunidades ribeirinhas do rio São Francisco é fundamental para a avaliação
da participação das mesmas nos processos de discussão e negociação do
manejo dos recursos naturais entre a comunidade, os outros usuários dos
recursos pesqueiros e o Estado.49

O pescador profissional, apesar de praticar uma pesca artesanal, é aqui


entendido como a pessoas que tem no ato de capturar ou extrair organismos aquáticos o
seu principal meio de sustento. A pesca profissional de água doce, praticada de maneira
artesanal, pode ser uma atividade econômica sustentável em termos ambientais.
O uso de equipamentos rudimentares, a ausência de relações de trabalho
assalariadas e mesmo a falta de ambição do pescador contribuem para que a pesca seja
praticada de maneira a permitir a adequada reposição dos estoques. Tais circunstâncias
têm levado os pescadores profissionais/artesanais do Alto-Médio São Francisco a
viverem precariamente. Não existem condições materiais que permitam organizar
satisfatoriamente a sua vida.
Do ponto de vista social, a pobreza é predominante em meio aos pescadores
profissionais, agravada pela apreensão de valores culturais oriundos das grandes
cidades.

No geral, a atividade mais citada como prejudicial ao rio foi o desmatamento


das matas ciliares, que provoca o deslizamento de terras para dentro do rio, o
que gera, uma maior largura da calha do rio e o acúmulo de terra / areia no
leito do rio. Outro fator polêmico foi a poluição do rio devido ao uso de
agrotóxicos. Os pescadores acreditam que com a chuva e o alagamento das
lavouras durante a época de cheias, o agrotóxico aplicado nas plantações
passa para o rio, podendo provocar até mesmo morte de peixes.50

É neste cenário de complexidade e beleza ambiental, de carência de


informação, de exclusão social, de necessidade de ações e políticas públicas que se

48
MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.
49
THÉ, A.P.G. Conhecimento Ecológico, Regras de Uso e Manejo Local dos Recursos Naturais na
Pesca do Alto-Médio São Francisco, MG”. Tese de doutorado, PPG- ERN/UFSCar, São Carlos, SP.2003.
50
TIBÉRIO, SILVA, MANCUSO, THÉ.
encontra o pescador artesanal do São Francisco, em destaque na figura 7, na página
seguinte.

Figura 7: O pescador do São Francisco


Fonte: arquivo pessoal

A pesca de subsistência praticada pelas populações ribeirinhas, relevante do


ponto de vista social, tem sido também atingida. Face à situação generalizada de
desemprego que ocorre ao longo do São Francisco, a pesca de subsistência adquire
importância ainda maior, pois é a exclusiva fonte protéica para muitos dos ribeirinhos.
2.2. As barcas

As barcas estavam presentes no dia-a-dia dos ribeirinhos, pois, aportavam


em cidades, vilas, povoados e sítios para fazer o comércio ambulante não apenas no Rio
São Francisco, mas também em alguns afluentes. Os barqueiros, seus proprietários,
vendiam a varejo as mercadorias que transportavam, mas compravam também produtos
regionais das mãos de sitiantes e agregados, ou seja, o campesinato ribeirinho. Faziam
operações mais vultosas de compra e venda em suas relações com os comerciantes das
cidades ou com fazendeiros.
Uma característica fundamental do comércio realizado nas barcas era o
atendimento aos ribeirinhos em suas necessidades básicas de consumo.
Existe uma informação que é muito relevante para compreender as duas
citações: o barqueiro ou seu preposto (o encarregado) operava os negócios de compra e
venda, ao passo que as pequenas operações (a venda de meia-rapadura, por exemplo)
podiam ficar a cargo de alguns trabalhadores.
Em algumas cidades onde o comércio estivesse mais propício, as barcas
podiam demorar alguns dias - tempo suficiente para o barqueiro fazer a praça, isto é, as
transações de compra e venda. Na zona rural, às vezes era necessário esperar que uma
engenhoca (pequeno engenho) ultimasse a produção de rapaduras, que o barqueiro
comprava do sitiante ou fazendeiro para revender durante a viagem. No Rio Grande,
afluente do São Francisco, havia uma localidade denominada Buracão onde essa prática
era usual: se necessário, as barcas aguardavam o término da fabricação de rapaduras.
Mantinha-se a tripulação ociosa por dois ou três dias na expectativa de futuros lucros no
comércio ambulante51.
A figura 8, na página seguinte, apresenta uma embarcação familiar aos
ribeirinhos da cidade de São Francisco, o vapor Benjamim Guimarães.

51
NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.
Figura 8: Barco a vapor (Benjamim Guimarães) que comercializava mercadorias
Fonte: www.jacaremoto.com.br

Indiretamente, as barcas eram importantes também na vida econômica dos


habitantes das cidades e vilas. Os donos de vendas, ou seja, os pequenos comerciantes
de secos e molhados, eram clientes das barcas, onde compravam a rapadura, o sal, a
farinha, o feijão, o arroz, a carne-seca, o açúcar, a cachaça, o querosene etc. Os
consumidores abasteciam de víveres suas residências nesses estabelecimentos
comerciais quando não compravam diretamente dos barqueiros. Havia também o
comércio de peixe seco, que os negociantes ribeirinhos compravam nas barcas para
revender aos tropeiros. Quando viajava em sua canoa até a cidade para vender os
produtos da roça por ocasião das feiras, o camponês ribeirinho adquiria nas vendas as
mercadorias que não produzia no campo, como o querosene, o café, o sal etc., mas era
comum também comprar esses produtos nas barcas.
Em reconhecimento pelo seu trabalho de catequese, o Padre Anastácio
d'Audierne, missionário capuchinho, recebeu do Estado colonial, em doação, uma canoa
novíssima, que podia levar até vinte pessoas, conforme descreve o Frei Martinho de
Nantes, outro missionário capuchinho. Padre Anastácio viajava até 120 km para assistir
índios e portugueses residentes na ribeira, o que evidencia o alcance da ação missionária
no último quartel do século XVII. Certamente, a habilidade dos índios como navegantes
era empregada nessa canoa doada à missão religiosa. Assim, o trabalho de catequese
aproveitou as condições de navegabilidade do rio para alcançar áreas ribeirinhas mais
distantes. Frei Martinho refere-se a outros padres que percorriam maiores distâncias ao
longo do rio. Produtos da lavoura e da pecuária eram certamente transportados nas
embarcações para o abastecimento dos aldeamentos.
A capacidade de transporte das barcas não era medida em toneladas, mas
pelo número de rapaduras que carregavam, o que denota a importância desse produto na
alimentação dos barranqueiros. No século XIX, havia embarcações que transportavam
12 mil rapaduras grandes, cada uma pesando de 2 a 2,5 kg, sem contar algumas
mercadorias em pequena quantidade e víveres para a tripulação. Uma barca com
capacidade para 12 mil rapaduras, por exemplo, poderia transportar de 24 a 30
toneladas. Supõe-se que tais embarcações se classificassem entre as maiores do Médio
São Francisco no século XIX.
No entanto, a média de capacidade de transporte das barcas variava, pois o
cálculo de uma média geral era difícil devido ao intenso tráfego de pequenas barcas que
adentravam os afluentes, fazendo também a navegação do Rio de Baixo, bem como pela
falta de dados históricos e pelo grande número de embarcações. Em 1867, as barcas
comportavam 6 toneladas em média; já nos anos 1870, essa média era de 15 toneladas,
talvez considerando apenas as barcas maiores. À medida que o tempo passa, a
tonelagem dessas embarcações aumenta. Assim, no século XX, a capacidade média das
grandes barcas passa para cerca de 30 toneladas, embora houvesse embarcações com
estrutura para transportar de 40 a 50 toneladas, como era o caso da Barcelona, Minas
Gerais e Humaitá. No entanto, a maior barca do Médio São Francisco, batizada de
Mississipi, transportava até 60 toneladas.52
É possível conhecer o número de barcas apenas em termos aproximados.
Ainda assim, esses dados poderão servir para se avaliar a importância das barcas para a
rede de relações econômicas regionais e inter-regionais. O número de barcas começou a
decrescer somente nos anos 30 (século XX), quando foram introduzidas as leis tra-
balhistas no Brasil, e aumentou significativamente o número de vapores com a criação
da Navegação Mineira do Rio São Francisco, em 1925, além da fundação de outras
empresas menores. Os barqueiros passaram a ter dificuldades na contratação de
remeiros, pois os direitos trabalhistas haviam se estendido a todas as categorias
profissionais. Nos 1940 e 1950, foram introduzidas as canoas sergipanas, que
necessitavam de número menor de trabalhadores, bem como as barcas motorizadas, que
viajavam com apenas três tripulantes. Assim, desapareceram as velhas barcas.

52
NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.
A navegação iniciada no século XVIII intensificou-se no século XIX. Era
ainda intensa na primeira metade do século XX.
Em 1819, na sub-região de Paracatu, chegavam comerciantes ribeirinhos do
São Francisco que levavam o sal de Pilão Arcado para o gado. Paracatu não era – como
não é – uma localidade ribeirinha, mas tinha o seu porto, situado a 72 km da sede da
vila: o Porto de Bezerra, à margem do Rio Paracatu. Ali, as barcas descarregavam o sal
e levavam na viagem de volta açúcar, toucinho, aguardente, café, milho, feijão, queijos
e vários outros produtos. Mas também havia o porto de Buriti, localizado a
aproximadamente 48 km da referida vila. No século XX, as barcas continuaram
visitando o Rio Paracatu.
O Rio Verde Grande era freqüentado por pequenas barcas e canoas até 180
km acima da sua foz. Já o Rio Grande permitia a navegação para barcas e canoas até
288 km acima da sua foz.
Com referência ao Urucuia, cuja embocadura localiza-se a pequena distância
de São Romão, pequenas barcas e canoas também navegavam 150 km rio acima até a
localidade de Campo Grande. A capacidade de transporte dessas embarcações não devia
ultrapassar 5 toneladas, pois as condições de navegabilidade do Rio Urucuia não
permitem embarcações de maior tonelagem. Em suas margens, já havia fazendas com
áreas cultivadas, bem como campos para pastos e densas matas.
No início do século XVIII, os currais do Rio Corrente já eram fornecedores
de boiadas para a cidade e o Recôncavo da Bahia, ou seja, para Salvador e adjacências.
É bastante provável que a navegação no Rio Corrente tenha se iniciado nos primeiros
anos do século XIX; possivelmente, até antes. Santa Maria da Vitória e Porto Novo
(BA) eram as principais localidades à margem daquele afluente beneficiadas pela
navegação de barcas. Na segunda metade do século XIX, as embarcações que
singravam as águas do Corrente eram dos mais variados tamanhos, pois o Rio Corrente
oferece boas condições de navegabilidade. De Santa Maria, partiam nas barcas o açúcar
de excelente qualidade e a famosa rapadura do Corrente para outras localidades da
região são- franciscana. Sua produção de aguardente era também comercializada pelas
barcas no Médio São Francisco. Esses produtos faziam concorrência com os de Januária
e Barreiras. 53

53
NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.
Diversas mercadorias eram objetos do comércio nas barcas, mas não se pode
esquecer a teia de relações econômicas que esse meio de transporte constituiu no Médio
São Francisco e em seus afluentes.
Da segunda metade do século XVIII até o século XIX – um período de
aproximadamente 100 anos –, o sal foi o principal produto comercializado pelas barcas,
pois era utilizado para consumo doméstico, para a alimentação do gado e para salgar o
peixe secado ao sol. No entanto, já no início do século XIX, algumas sub-regiões forne-
ciam seus próprios produtos ao sistema econômico regional. As barcas que levavam o
sal a Paracatu, por exemplo, lá compravam açúcar, toucinho, aguardente, café, queijos e
outros gêneros. A freguesia de Barra do Rio das Velhas, por sua vez, recebia tanto o sal
da terra quanto outros produtos também por via fluvial. Nessa época, a rapadura
produzida em Januária começou a ganhar o mercado regional, sendo amplamente
comercializada no século XIX. Ainda nesse século, entraram na concorrência os Vales
dos Rios Grande e Corrente, de onde partiam muitas barcas carregadas de rapadura.
Além dela, outro produto dos engenhos, destilado nos alambiques da região e
comercializado nas barcas, era a cachaça, sendo as aguardentes de Januária e de Santa
Maria da Vitória as mais valorizadas. Assim, o comércio de produtos derivados da cana-
de-açúcar continuou ocorrendo no século XX. Mas não eram só eles os produtos de
destaque no comércio; os barqueiros também valorizavam bastante a farinha de mandio-
ca, cujas sacas viajavam pelo Rio São Francisco e seus afluentes acompanhadas de
outros produtos, como açúcar, feijão e arroz.54
Algumas mercadorias que interessavam a industriais, artesãos e exportadores
– tais como couros e peles, penas de ema e borracha de maniçoba e mangabeira –
também circulavam nas barcas, sendo transportadas até Juazeiro, de onde seguiam para
a capital baiana.
Rapadura – Com ela, adoçava-se o café e fazia-se a jacuba, isto é, uma
mistura de farinha de mandioca, rapadura raspada e água, utilizada como merenda. A
rapadura era também a sobremesa tanto no almoço quanto no jantar, bem como
guloseima para as crianças. Era também um ingrediente importante para diversos tipos
de doces: o pé-de-moleque, a cocada morena, o doce de laranja da terra, o doce de
banana, o doce de caju etc. Na poesia “Rapadura” o folclorista Melo descreve a
indústria caseira da rapadura:

54
NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.
A estrela- d’alva precede ao sol- brilha! / A cana tem gelo do sereno da
madrugada; / Muge a junta de bois -grita o candeeiro; / O moedor canta
despertando os galos. / Acorda o engenho, imensas moendas gemem, /
Esmagam braçadas de cana: desce a garapa; / O menino, com a cuia, goza do
néctar do campo; / Os tachos esquentam os fundos. Ferve a calda. / A batida,
primeiro, no canto da masseira se faz; / A rapadura, depois, dividida em
formas tais.../ Repete-se o milagre da interação: homem-terra, / E é propício,
assim, de adoçar a sua vida.55

Mas podia se transformar no melado consumido com farinha, queijo,


mamão, banana, etc.
Farinha – Em duas ou três refeições, servia-se a farinha de mandioca
diariamente nos lares ribeirinhos. Pela manhã, o “churrasco” (farofa de carne-seca) com
café. No almoço, arroz com feijão (era muito utilizado o feijão-de-corda), carne ou
peixe, farinha, abóbora etc. Às 14 ou 15 horas, era a vez da merenda, que podia ser a
jacuba. No jantar, arroz, ovos, picadinho de carne-seca, mandioca cozida e,
eventualmente, a boa farinha de mandioca barranqueira. Para acompanhar o peixe,
fazia-se o pirão de farinha. Novamente, a indústria caseira da farinha é retratada na
poesia de Melo:

De ser tão rústica para suportar o agreste, / Não haveria a macaxeira de ser
nobre,/ Mas sem ela, é preciso dizer, de verdade, / O sertão não seria de
tanta riqueza. / É mais do que comida para o corpo, / Antes ela é alimento
para a alma, / Pois no seu itinerário até ser levada ao prato, / O homem conta
e reconta a sua história. / No mutirão, atirando manivas nas covas; / Na
oficina, no raspar ou contando na rodinha; / Na borda do forno contando
causos: / O sertão criou o universo das famílias.56

As atividades comerciais na primeira metade do século XX foram bastante


diversificadas devido a, vários fatores. Como a produção do sal havia diminuído e, em
1896, inaugurou-se a ferrovia Juazeiro-Salvador, houve espaço para o incremento da
comercialização do sal marinho. Além de gêneros diversos, os tecidos continuavam
incluídos nas transações. Havia barcas que eram um verdadeiro bazar, tamanha a
diversidade de produtos que comercializavam. As donas de casa e as costureiras que
viviam nas cidades, vilas e povoados ribeirinhos podiam comprar tecidos, novelos e
carretéis naquelas embarcações, mas não se pode esquecer que havia casas comerciais
em algumas localidades ribeirinhas.

55
MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.
56
MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.
Dentre os produtos de outras regiões que chegavam ao Médio São Francisco,
sendo comercializados nas barcas, destacavam-se o café e o querosene este indis-
pensável à iluminação de residências no campo, nos pequenos povoados, nas vilas e até
mesmo em algumas cidades.
Nas viagens rio abaixo, os remeiros utilizavam como instrumentos de
trabalho os remos, cujo número variava em cada barca de acordo com o seu tamanho. O
manejo dos remos era bastante simples. Sentados frente a frente, dois trabalhadores
movimentavam um remo: enquanto um remeiro o empurrava, o outro simultaneamente
o puxava, imprimindo-lhe maior força no contato com as águas do São Francisco. Não
era incomum serem três remeiros: dois para puxar o remo e um para empurrá-lo. Nas
grandes barcas, podiam ser até mesmo quatro homens para cada remo, sentados face a
face, em virtude do tamanho e peso dos remos. A comparação é inevitável: há
semelhança com o trabalho nas galés européias do século XIX.
Em suma, era significativa a rede de relações econômicas na região ao longo
dos séculos XIX e XX. Os remeiros, levando as barcas a todos os trechos navegáveis do
grande rio e de seus afluentes, contribuíam para a integração tanto regional quanto inter-
regional.
O sistema econômico regional também se relacionava com outras regiões da
sociedade brasileira e até mesmo com outros países, tendo em vista a circulação de
mercadorias de diversas procedências, as quais eram transportadas nas barcas ao longo
do grande rio e de seus afluentes.
No princípio do século XIX, os mercadores do sal subiam o São Francisco
nas barcas, comercializavam o seu produto em vilas, povoados e fazendas ribeirinhas e
recebiam em troca outros produtos regionais. Assim, chegavam até a confluência do Rio
das Velhas, percorrendo aproximadamente 1 240 km, embora houvesse outras rotas do
sal. Juazeiro e os povoados ribeirinhos do Rio de Baixo, além de Jacobina (BA) e do
Piauí, por exemplo, recebiam parte da produção do sal da terra. O escambo era uma
modalidade bastante usual que o comércio ambulante assumiu nas primeiras décadas do
século XIX, mesmo havendo circulação monetária.
Se o dono da barca tinha um comércio estabelecido numa cidade ou vila, sua
embarcação podia ser uma extensão ou filial do estabelecimento comercial. O
proprietário, neste caso, nomeava uma pessoa de sua confiança, que o substituía nas
viagens comerciais. Podia ser um filho ou um parente próximo. Este preposto chamava-
se encarregado. Os remeiros ironicamente o chamavam de carregado.
Ainda hoje, a navegação no Rio São Francisco requer prática e muita
habilidade, pois não são poucos os acidentes e intempéries ao longo do rio: pedras,
corredeiras, troncos, bancos de areia, pontas d' água, queda de barreiras, tempestades,
pés-de-vento. No tempo das velhas barcas, esse conjunto de obstáculos dificultava o
trabalho de pilotos e remeiros e colocava em risco as embarcações. Mas não era só o
mestre (piloto) que dirigia a embarcação; os dois proeiros, isto é, os remeiros que
ocupavam a proa da barca nas viagens rio acima, o auxiliavam nessa tarefa, sobretudo
por se encontrarem mais próximos dos acidentes fluviais: trabalhando na proa, tinham
visão melhor dos obstáculos. Observe na figura 9, as espécies nativas no rio São
Francisco.

Figura 9: Espécies nativas no rio


Fonte: arquivo pessoal

A terminologia utilizada pelos remeiros para designar seus instrumentos de


trabalho guarda, obviamente, estreita relação com a atividade econômica predominante
na região durante muitas décadas: a pecuária. Até mesmo o gancho das barcas tem
alguma semelhança com o objeto metálico usado nos açougues e fazendas para
dependurar a carne bovina. A explicação para tal analogia talvez seja a extração social
dos remeiros: o meio rural.57
O número de instrumentos de trabalho dependia da quantidade de remeiros e
do tamanho da embarcação. Na barca Misissipi, por exemplo, a maior do Rio São
Francisco, havia vinte e quatro ferrões, três bois e um ou dois ganchos. Já a tripulação
perfazia um total de vinte e cinco homens, sendo vinte e quatro remeiros, que
trabalhavam com as varas, mais o mestre, que manobrava o leme. Ao se referir a uma
barca cuja tripulação fosse constituída de quatro remeiros, o barqueiro dizia “barca de
quatro varas”. Ficava implícita a existência do mestre, que não trabalhava com as varas,
mas, sim, com o leme. Assim, o total de tripulantes da barca, excluído o patrão, era de
cinco pessoas. Nessas embarcações de pequeno porte, era comum o proprietário ocupar
o leme, evitando, assim, a contratação de um mestre.
Outro recurso a que recorriam os trabalhadores para superar os trechos de
água dura, ou seja, a forte correnteza, era a corda. Utilizando-se de embarcação auxiliar,
em geral um paquete ou urna canoa, um remeiro levava a corda (sirga) até o barranco.
Depois de feitas as amarras num pé-de-pau (árvore), os trabalhadores no interior da
barca empunhavam a outra extremidade da corda e puxavam-na, fazendo a embarcação
avançar contra a correnteza. Havia urna outra forma de vencer as águas duras usando a
corda: a fileira de homens que trabalhavam do lado do barranco continuava em seu
posto manejando as varas, ao passo que os do lado de fora puxavam a corda pelo seco,
ou seja, fora d' água.
Nos anos 1940, a jornada diária dos remeiros era, em média, de quatorze
horas, estando incluídas as horas noturnas de ampliação dessa jornada.
Quanto à natureza das relações sociais do trabalho, não predominava
lealdade cega do trabalhador em relação ao patrão. Os remeiros exigiam a contrapartida.
E mais: o conflito e a resistência estavam igualmente presentes no discurso e nas
atitudes dos trabalhadores.
Frente às condições de trabalho acima descritas, os moços resistiam. A sátira
em prosa e verso, as fugas individual e coletiva eram as formas encontradas pelos
trabalhadores para manifestar sua resistência. Era comum a tensão no local de trabalho,
isto é, em cada barca, mas a classe dos remeiros como um todo não se organizou para
resistir às más condições de trabalho: não era conhecida a greve nem existiam

57
NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.
associações e sindicatos que congregassem os trabalhadores das diversas unidades de
produção.

2.3. A pesca profissional/artesanal

A pesca profissional, que está em estudo neste trabalho, é praticada de forma


artesanal, é também uma das atividades mais tradicionais de trabalho no rio São
Francisco, havendo milhares de famílias ribeirinhas que se dedicam a esta ocupação, por
vezes, há mais de uma geração58. Tal atividade é bastante abordada por muitos autores
que se dedicam às ciências sociais, porém a conceituação do termo ainda encontra
divergências entre as abordagens. O fato das atividades desses trabalhadores ocorreram
em áreas próximas as atividades dos produtores rurais, contribui para que esta categoria
fosse trabalhada como um subsistema da sociedade camponesa, como se observa na
figura 10.
Costa (1983) apud Diegues (1989) analisa a produção dos lavradores e dos
pescadores artesanais de forma distinta. A primeira pode ser considerada como
camponesa por ser a agricultura a sua atividade principal, enquanto os pescadores
artesanais possuem a pesca como atividade exclusiva. A identidade da categoria dos
pescadores seria construída pelo fato destes serem detentores das habilidades e saberes
específicos, o que permite o domínio do oficio da pesca. 59

58
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
59
DIEGUES.A.C; Tradição e Mudança nas comunidades de pescadores do Brasil: por uma sócio-
antopologia do mar. Programa de Pesquisa e Conservação de áreas Úmidas no Brasil, São Paulo, 1989.
Figura 10: O pescador do São Francisco
Fonte: arquivo pessoal
Este argumento baseia-se no fato das atividades destes trabalhadores não
ocorrerem em períodos fixos e sem volumes constantes.
É possível constatar a que os pescadores artesanais de São Francisco (MG)
possuem características que os possibilitam serem inseridos em todas essas abordagens.
Desta forma não há unanimidade em se aderirem a uma abordagem específica
apresentada.
Conforme registro da colônia de pesca do município de São Francisco, a
população pesqueira da cidade de São Francisco compreende cerca de 300 pescadores
artesanais, incluindo algumas mulheres que geralmente são esposas de também
pescadores.
A pesca é realizada em grande parte em embarcações pequenas, no máximo
de dois metros. Em reduzidos casos, a pesca ocorre em embarcações maiores e estas se
destinam a passeios turísticos. A pesca compreende até duas pessoas, uma responsável
pelo controle do motor e direção do barco e a segunda que se encarrega do equipamento
realizado na pescaria.
Os aparelhos mais usados pelos pescadores do local são redes, tarrafas e
anzóis. A rede de amarrar, ou seja, de espera é colocada fixa no rio.
A rede de caceio é colocada descendo o rio e ela contém pouca quantidade
de chumbo. Já a tarrafa é usada em todos os tamanhos, conforme a qualidade de peixe
que estiver aparecendo na época.
O anzol é usado em vários tamanhos, já o espinhel se utiliza 08 a l0 anzóis e
a grosseira de 30 a 40 anzóis, sendo estes pequenos.
Existe também o caçado que se utiliza apenas de um anzol, com a linha de
mão, e a rede de amarrar usada na maioria das vezes para a pesca do Surubim, e do
Dourado, sempre quando a água do rio está limpa, ou seja, de maio a setembro.
Rede de caceio é usada para a pesca da Curimatá, Pirá e Surubim. A tarrafa é
usada para todos os períodos que são permitidos a pesca, pegando todas as espécies de
peixe. Espinhel é usado quase sempre na pesca do Dourado.
A rede grosseira é usada para a pesca do Mandi e do Pirá. A rede caçador é
usada para a pesca do Surubim.
Qualidade dos peixes e os meses em que aparecem com maior freqüência:
Piau, Mandi, Piranha, Matrincham: nos meses de fevereiro a abril. Dourado e Piau: nos
meses de maio a setembro. Surubim e Pocoman: nos meses de setembro a outubro,
sendo que todas as qualidades de peixes citadas aparecem no mês de outubro.
Grande parte dos pescadores artesanais do rio São Francisco se desloca para
outros lugares do rio em busca de melhores locais de pesca. Geralmente se deslocam em
regiões denominadas pelos pescadores como: rio acima e rio abaixo. A primeira se
refere ao trecho do rio antes de chegar à cidade de São Francisco, que se localiza no
meio do rio, no pátio de São Francisco (direita para esquerda). A segunda refere-se ao
trecho do rio após a cidade.
O pescador artesanal não dispõe de jornada de trabalho fixa, pois seu horário
está condicionado ao horário dos cardumes, dependendo muito da percepção e
conhecimentos dos seus hábitos. Mas, a maior parte dos pescadores realiza seus
descansos aos domingos.
A venda do peixe é realizada no mercado ou feira local, nas ruas para
atravessadores, onde se destacam os restaurantes, quiosques e barzinhos da cidade e
também na colônia de pescadores.
São várias as estratégias de pesca são praticadas, mas uma se destaca pelas
suas peculiaridades. Ela é realizada numa área de cerca de 2 hectares, durante 24 horas,
todos os dias do ano. Ela é realizada por cerca de 50 pescadores. Por ser uma pequena
área, adotou-se um sistema que possibilita a todos estes pescadores trabalharem. A
prática adotada foi o sistema de pesca em turnos. A cada turno trabalham até quatro
pescadores simultaneamente, mas com maior freqüência um ou dois.
O direito de pescar neste local é herdado de pai para filho ou adquirido,
comprando-se a hora. Os intrusos são afastados, às vezes, de maneira violenta, embora
a estes, dá-se o direito de pescar em determinados trechos da área.
Antes de descer o rio, o pescador toma conta da hora para que seu turno não
seja tomado por outro, caso o dono da hora não queira pescar, ele pode passar a hora
para outro, sendo que o produto da pesca, nesse caso será dividido entre os dois. O
pescador que não tem hora ou que não marcou horário pode pescar abaixo do pesqueiro
a qualquer momento.
A pesca ocorre, normalmente, desembarcada e o pescador percorre o
pesqueiro nadando ou andando de uma lage (pedra) para outra. Quando realizada em
dupla, utiliza-se barco de madeira para explorar a área.
Uma das características principais da pesca no rio é a captura freqüente de
peixe abaixo do tamanho permitido por lei. O IBAMA60 tem conhecimento desta
prática, mas é comum fazer vistas grossas, uma vez que esta atividade tomou-se um
costume que não é possível definir quando ocorreu o seu início.

A maior parte dos pescadores artesanais de São Francisco, herdou a


profissão, que encara como predestinação. “Pesca, como diz o caso, herdei dos meus
pais. A minha família era da pesca, aí não tinha outra sina. Naquela época era quase só
pesca o que tinha”.61
Os pescadores artesanais reconhecem que a quantidade de peixe extraída tem
diminuído consideravelmente; e aqueles que estão há muitos anos nesta atividade
analisam que em anos anteriores (por volta dos anos 1960-1970) o peixe era pouco
valorizado na economia local, entretanto era possível capturar peixes em grande
quantidade. Atualmente o preço do peixe é considerado bom para os pescadores, existe
valorização do produto que tem sempre boa receptividade.
São poucos pescadores que sobrevivem estritamente da pesca, sendo
necessário participarem da economia informal e realizarem bicos. O período da
piracema (época em que a pesca é proibida por lei) contribui para essas atitudes.
Consideram que a sociedade encara o pescador artesanal, sendo como um
marginal, não sendo inserido na mesma. “A gente não é incluído nos planos dos
políticos e nem dos órgãos de fiscalização. Acham que a gente não faz parte da

60
IBAMA, Instituto Brasileiro de Meio Ambiente.
61
José Pedro de Melo, 43 anos, pescador artesanal.
sociedade, não procuram beneficiar a gente em nada”.62
Criticam os órgãos que atribuem a eles ações que degradam o rio. Acreditam
que nenhum fiscal é tão eficiente quanto eles.
Consideram que o pior período para a pesca compreende os meses de
fevereiro a agosto. Outro período crítico é o período da piracema. A efetiva fiscalização
dos órgãos responsáveis, priva o pescador de suas atividades normais, como se observa
na figura 11. Neste período recebem um benefício correspondente a um salário mínimo
considerado insuficiente para estes trabalhadores que em grande parte possui grande
número de filhos.
Possuem receio do envelhecimento, pois tem consciência de que a vida
dedicada à pesca desgasta a saúde física do pescador. Chamam atenção às nascentes dos
rios, que consideram o início da vida dos mesmos. A bacia é tida como um abrigo que
guarda todo o volume de água que é enviado.

Figura 11: Barqueiro em outra atividade à beira rio

62
idem.
Fonte: arquivo pessoal

“As veredas e as nascentes não tão secas, tão assoreadas, têm mais areia que
água. Fiscalizam a gente e esquecem de reclamar os projetos de carvão vegetal e
reflorestamento”.63
Os pescadores artesanais atribuem a degradação do rio como
responsabilidade dos projetos que foram originados pelo modelo de desenvolvimento
brasileiro.
No município de São Francisco, o Instituto Estadual de Florestas – IEF e o
Ministério do Meio Ambiente são responsáveis por um projeto de revitalização da bacia
do São Francisco64. Este projeto, na cidade, encontra-se em fase de implantação.
Na região deste município, o projeto abrangerá a reposição da mata ciliar, ou
seja, a mata que cobre a margem do rio. Estas matas são as árvores e as plantas de
menores portes que seguram a terra com as suas raízes mantendo a umidade e
estabilizando as margens do rio. As melhores espécies a serem plantadas nas barrancas
do rio São Francisco, segundo o IEF são: ingazeiro, aroeirinha-vermelha, angico,
cagaita, jenipapo, cedro do campo, entre outras. 65
O plantio deve seguir a curva do terreno, na horizontal. As plantações feitas
dessa forma evitam que a água das chuvas escorra diretamente para o rio levando terra e
areia. Outra vantagem é o menor esforço para trabalhar a terra, já que o produtor não
precisa subir terrenos muito inclinados.
Outro recurso consiste em manter os restos vegetais (mato capinado, capim
seco) nos intervalos entre as linhas das plantas cultivadas. Dessa forma é possível
proteger o solo contra o impacto da chuva ou da irrigação por erosão. Ajuda manter a
umidade, controla a temperatura do solo, preserva a fauna, a micro-fauna e a micro-flora
do solo.
Os coordenadores do projeto na região expõem que, para atender às
necessidades da população, o projeto segue um modelo desenvolvimento sustentável,
que para ser eficiente deve contar não somente com os setores públicos, mas também,
com articulações entre todos os níveis. Serão oferecidos estímulos ao desenvolvimento
de novas atividades econômicas, que proporcionem as mais diversas formas de

63
Sebastião Alves Pereira, 65 anos pescador artesanal.
64
Lei 8.666/93 e Decreto Nº 93.872/86 - Processo Nº 0200.003074/2005-46 – Fornecimento de mudas
de espécies do cerrado mineiro para utilização nas ações de Revitalização da bacia do rio São Francisco.
65
IEF-MG: Instituto Estadual de Florestas. Januária, MG.
exploração sustentável dos patrimônios ambiental e cultural.
Para incentivar a adesão da população ribeirinha ao projeto, serão fornecidas
também, mudas de plantas frutíferas para aumentar o incentivo. A população será
instruída sobre as formas de extrair a polpa para comercialização, seja ainda com o
objetivo de destinar para a fabricação de sucos ou doces.
O projeto, no entanto não é visto com credibilidade pela população.
Admitem que ele é viável e muito bem formulado, mas argumentam que não sentem
estímulos a abraçarem-no como causa pessoal. Acreditam que este da mesma forma que
não é o primeiro, não será o último e temem que também não seja concluído.
Os pescadores artesanais reclamam da postura adotada pelos
implementadores do projeto que, segundo eles, não os deixam informados sobre as
fases, objetivos e metas. Interrogados sobre o conhecimento de algum projeto destinado
à preservação do rio São Francisco, os pescadores artesanais são unânimes em negarem,
confessam que são excluídos das decisões mais sérias, o que deixa estes profissionais
em desvantagens porque não consideram sua realidade.
2.4. A família e o modo de vida do pescador de São Francisco

A família do pescador profissional do alto-médio São Francisco, onde se


localiza o município de mesmo nome, é do tipo nuclear (pai, mãe e filhos) e é, também,
numerosa. De maneira geral, possui características socioeconômicas que evidenciam
inserção vulnerável, com severos riscos de exclusão social.. A família é, geralmente,
autóctone, mas o chefe, muitas vezes, guarda uma história de migração do seu tempo de
criança, no eixo Nordeste/Centro-Sul: veio acompanhado dos pais, fugitivos da seca ou
do progresso técnico na agricultura.66
A figura 12 mostra um morador da beira do rio São Francisco, em atividade
doméstica.

66
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003
Figura 12: Morador das margens ribeirinhas
Fonte: arquivo pessoal

Possui estrutura patriarcal, em que a chefia da casa compete exclusivamente


ao homem. A mulher que exerce alguma atividade econômica somente o faz na
companhia e como suporte da atividade do marido. O número de dependentes é alto e,
como elemento complicador, as oportunidades de emprego são escassas. Sobra a pesca
como alternativa, mas essa também vai seguindo escassa na capacidade do provimento
dos mínimos vitais do grupo. Alguns dos pescadores admitem que trabalhar na pesca
não foi fruto apenas das adversidades sofridas, mas tornou-se opção gratificante de
trabalho. Outros admitem que a pesca é apenas uma forma alternativa e não realizadora
de garantia da sobrevivência familiar.
Os pescadores profissionais da área urbana do município tendem a se
concentrar em um único bairro, invariavelmente um dos mais carentes do município,
que também abriga a sede da Colônia.
Nas residências dos pescadores, a maioria deles apresenta o rádio como
opção preferencial de entretenimento e informação. A televisão também aparece em
grande parte. Há quase que total destituição de automóveis e motocicletas. A bicicleta é
o meio de locomoção usual em terra. Em água, locomovem-se por canoas de madeira,
muitas das quais produzidas pelo próprio pescador com a ajuda dos colegas.
Diante das condições precárias de sobrevivência as famílias empobrecidas,
freqüentemente ficam expostas a enfermidades e os membros adoecem com freqüência.
A infra-estrutura dos domicílios interfere diretamente no aparecimento de
algumas das enfermidades ali presentes: a ausência de esgoto sanitário, de tratamento
domiciliar da água (filtragem, fervura, entre outros), o contato cotidiano com o lixo nas
vizinhanças do domicílio e a presença de vetores dentro das casas facilitam a expansão
do número de casos.
As doenças mais comuns em adultos e crianças são: sucessivas gripes,
verminoses, desidratação, micoses e diarréia.
Geralmente as doenças são tratadas com ervas medicinais encontradas na
flora nativa, o que caracteriza outro aspecto das interações da família do pescador com o
meio ambiente.
Em relação ao nível de instrução formal do pescador, predomina o
analfabetismo. Em relação aos filhos, a educação escolarizada é vista como uma
contraposição sadia ao saber tradicional. A escola torna-se um meio de ascensão social
que projeta para seus filhos um destino diferente.
Sobre as perspectivas e aspirações dos pescadores não há interesse em se
deslocar definitivamente do território no qual estão estabelecidos. Mas pensam nessa
possibilidade para os filhos jovens em virtude da escassez de emprego.
A principal fonte de renda é a comercialização a varejo do pescado. A
negociação é realizada por intermediários, conhecidos como peixeiros. Poucos
pescadores vendem o peixe na sua própria residência. Existem ainda, aqueles que
vendem o peixe de casa em casa.
A atividade pesqueira praticada pelas populações ribeirinhas do São
Francisco, relevante do ponto de vista social, tem sofrido queda significativa por vários
motivos, tais como poluição, uso inadequado do solo, normas pesqueiras impróprias,
pesca predatória, destruição de habitat e barramento.
No rio São Francisco, confirma-se a mesma situação identificada por
Diegues (1998)67 para pescadores do mar: a de que a produção e a reprodução social e
simbólica vai se tornando cada vez menos dependente do rio, razão pela qual os saberes
técnicos particulares sobre o funcionamento do ecossistema vão se perdendo.

67
DIEGUES.A.C; Tradição e Mudança nas comunidades de pescadores do Brasil: por uma sócio-
antopologia do mar. Programa de Pesquisa e Conservação de áreas Úmidas no Brasil, São Paulo, 1989.
Além da tradição do domínio masculino no exercício da captura, os
pescadores profissionais do alto-médio São Francisco orgulham-se de sua longevidade
no serviço. Nesse trecho, os pescadores atuam de 10 a 53 anos na atividade. Os adultos
que entraram na pesca em época mais recente são, na maioria dos casos, desempregados
urbanos. O contingente trazido para a pesca pelo desemprego ou falta de opção é
significativo (Tab. 1).

Tabela 1. Razões do exercício da profissão


RAZÃO FREQÜÊNCIA % % ACUMULADA

Desemprego 22 35,5 35,5


Falta opção 11 17,7 53,2
Tradição familiar 11 17,7 70,9
Complemento da renda 7 11,3 82,2
Abundancia de peixe no 4 6,5 88,7
passado
Serviço que não é pesado 2 3,2 91,9
Vocação 2 3,2 95,1
Tenta vida melhor 2 3,2 98,3
Boa renda 1 1,6 100,0
Total 62 100,0
Fonte: Godinho & Godinho, 2003

Ao conviverem nos mesmos bairros pobres e na maioria das vezes passando


por privações, muitos desempregados deparam-se, muitas vezes, com a solidariedade
dos pescadores mais velhos no ensino das técnicas para o exercício da atividade. Mas
nem sempre isso acontece e há os que, todavia, não encontram essa acolhida por duas
razões fundamentais: os pescadores mais velhos consideram que o contingente de
trabalhadores da pesca, em exercício no trecho do rio em que atuam, já estaria
excessivo; outros avaliam que a ausência de vocação do desempregado que vai para a
pesca, compelido pelas circunstâncias, o levaria a fazer mau uso das técnicas de captura,
o que repercutiria negativamente na imagem social de todo o grupo: “Não cabe mais
pescador no rio, não cabe mais gente nova. Tá vindo muito desempregado, jogando
tarrafa e outro, cuidando do barco e dos peixes, mas não sabe horário e local certo,
costuma fazer errado”.68
Os motivos da resistência do pescador em agregar esse novo membro, cuja
origem da opção pela pesca é apenas a falta de quaisquer outras opções, precisam ser

68
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
considerados. De fato, ao questionar o desempregado, transformado em pescador, sobre
suas aspirações econômicas, esse é taxativo em dizer que gostaria de encontrar um
trabalho urbano a continuar na labuta no rio. Para ele, o rio seria o local dos deserdados,
dos que já estão definitivamente excluídos, apartados da sociedade; daí a razão pela
forma quase hostil como é tratado pelo grupo ocupacional a que passa a pertencer. O
pescador que, por vocação ou tradição, escolhe a profissão desde muito cedo não vê em
sua ocupação motivo de vergonha perante a sociedade (a vergonha está na ausência de
um retorno financeiro compatível com o esforço empreendido e com as necessidades da
família) e sente-se ferido quando, no seio da categoria, surge um sentimento como esse.
“Pescador não é bandido”, eis o que recorrentemente se houve entre os pescadores, seja
para contrapor-se aos olhos da fiscalização ou aos recém-ingressos na ocupação:

Na época em que se pegava muito peixe, todos nos conheciam e respeitavam.


Hoje, não podemos comprar nada no comércio, porque não temos crédito. Meu
fogão quebrou e não pude comprar outro, pois o comércio não nos considera
trabalhador. (...) hoje aumentou o número de pescadores por falta de emprego
na cidade. Antigamente, havia fartura de peixe, havia mercado, o pescador
vivia melhor. Hoje ele pega um pouco, ou nada, e vive em grande
dificuldade.69

A construção da identidade social do pescador do São Francisco dá-se da


seguinte maneira: primeiro, ocorre pela alteridade, pelas formas como reconhece o
outro; segundo, pelos rituais de reafirmação dos significados e sentidos partilhados por
seu coletivo; terceiro, pela afirmação do sentido de pertencimento ao lugar.
No primeiro caso, o outro tem sido reconhecido pelo conflito no uso da água
e nos interesses sobre os estoques. São os fazendeiros, as concessionárias de energia, os
pescadores amadores:
Tem havido agressões por desmatamentos, as lagoas marginais, que são o
berçário do rio, não recebem água porque as barragens impedem. As lagoas
acabam criando peixe adulto que deixam de sair pro rio e repovoar o rio. Por
isso, o peixe vem diminuindo no rio. Os fazendeiros drenam as lagoas para
plantar e acabam também com elas. As cidades ribeirinhas estão crescendo,
os esgotos domésticos descem para o rio. As indústrias também estão
jogando a poluição pra dentro da água. (...) A pesca amadora atrapalha
bastante porque faz a pressão para fechar a pesca de malha, profissional. Ela
tem boas iscas, tem dinheiro. O pescador amador vem para gastar com os
equipamentos de captura, é esporte. Para nós, é sobrevivência. Mas eles se
colocam contra nós. Hoje, o peixe mal paga a feira da semana.70

69
Sr. Luís Mendes Vieira, 43 anos, pescador profissional.

70
Sr. Luís Mendes Vieira, 43 anos, pescador profissional.
Outro pescador ensaia o seguinte dizer sobre a escassez do peixe:

Não é o peixe que está acabando. É a natureza que está se modificando, por
exemplo, pelos fazendeiros, que prendem as lagoas por um ano e só eles
usufruem do peixe que foi pra dentro na enchente.71

O estudo de Félix72 descreve como a expansão recente dos investimentos


turísticos no alto-médio São Francisco, focando a fruição dos recursos hídricos, estão
alterando a organização tradicional do trabalho e do lazer do pescador profissional e de
sua família, gerando constrangimentos, tanto no uso do território das águas como em
terra firme, no espaço ribeirinho. Ou, como relata o pescador profissional:

Eu admiro demais o pescador amador que vem fugir da cidade grande. Antes
a pessoa não queria sair da cidade, dizendo que aqui, no mato, havia febre
amarela, havia mosquito, havia onça. Hoje a cidade virou um verdadeiro
inferno. Quando chega aqui, o turista não consegue pegar o peixe, vê o
profissional, que é um coitado, conseguindo, e quer comprar nele. Então, ele
fica contra a pesca profissional. Mas tem que ver que é para a sobrevivência
dele. Ele não pode impor que o profissional tem que parar, pois o
profissional não tem outra forma de viver.73

No segundo caso, a identidade do pescador manifesta-se ao apresentar ao


outro seu trabalho, em sintonia com os movimentos e necessidades da natureza:

Hoje não está havendo mais peixe. O negócio é o seguinte: o peixe é igual a
nós. O senhor amanhece o dia, vai para o serviço, vai para casa almoçar,
volta para o serviço e, à noite, volta para casa. Do mesmo jeito é o peixe. Ele
mora na pausada. Então, os pescadores, cresceram os olhos, limparam a
pausada e o peixe desapareceu do lugar da pausada, porque está tudo limpo,
não encontram mais a casa deles. Mas, existe peixe ainda. Sabe onde? Nas
pedreiras e nos córregos fundos.74

O senhor Norberto acrescenta:

Eu queria que deixassem de ver o pescador como vilão. A pesca bem feita
não faz o rio sofrer. A pesca profissional sempre existiu. Algumas
modalidades precisam fazer a correção, das modalidades ou das leis. Nós
precisamos sentar juntos para discutir. Não queremos ser extintos porque
nós não temos do que sobreviver. Faz o quê com a proibição das redes?

71
Sr. Milton Ferreira da Costa, pescador.
72
FELIX, S. A. O impacto do uso para lazer e turismo do rio São Francisco sobre as condições de
reprodução social dos pescadores profissionais. São Carlos: Centro de Educação e Ciências Humanas,
UFSCar, 2001. 102p. (Dissertação, Mestrado em Ciências Sociais).
73
Sr. Norberto Damião Vieira, 51 anos, pescador profissional.
74
Sr. Benedito dos Reis Silva, 97 anos, pescador profissional.
Estou olhando para aquele que é marginalizado pela fiscalização, que mora
com a família num rancho de capim.75

Em último lugar, vem a afirmação da sua territorialidade, do seu direito de


estar no lugar e dele retirar seu provimento, de entender que sua sobrevivência reside na
fruição daquele lugar. O pescador não se afirma como munícipe, nem se afirma apenas
como trabalhador com direito ao livre acesso ao local de trabalho. Afirma-se, sim, como
“gente do São Francisco”, gente das águas doces onde realiza sua atividade, por onde
constrói certa coesão social, dentro e fora da família: “O sangue de todos os beiradeiros
é o mesmo. São cinco povos no São Francisco – mineiros, baianos, sergipanos,
alagoanos e pernambucanos, mas as mesmas características na luta e no sofrimento.”76
A renda da pesca é, no alto-médio São Francisco, a principal renda da
família.
A lavração de terra nas áreas de vazante, próximas aos acampamentos de
pesca, com plantio de feijão ou milho, também ocorre para proveito único da família.
Quando abordados pela fiscalização, esses pescadores têm apenas seus
equipamentos e peixes apreendidos e, muitas vezes, fornecem nomes e endereços falsos
a fim de não permitir sua devida identificação, abandonando temporariamente o uso dos
pontos onde foram flagrados.
O cadastramento do pescador na colônia de sua região não é visto apenas
como uma formalidade burocrática. Há razões socioeconômicas que pressionam sua
adesão, como o fato de que, ao regularizar sua situação, o pescador sente mais
segurança. Esse cadastramento assegura, após três anos de exercício contínuo da
profissão, o direito de receber o salário-desemprego (no valor correspondente ao de um
salário-mínimo) concedido pelo INSS, na época de piracema, de acordo com a
legislação vigente.77
É importante recuperar a história de como a institucionalização da pesca
profissional colocou-se na esfera política, amparando o desenvolvimento desse
trabalhador, culminando, contudo, em tempos mais recentes, na estigmatização do
pescador e em restrições ao uso das águas do rio para fins de captura.
Para o exercício dessa atividade tem-se construído significativo arsenal de
regulações socioambientais. Estas se materializam como força política exógena e

75
Sr. Norberto Damião Vieira, 51 anos, pescador profissional.
76
Sr. Norberto Damião Vieira, 51 anos, pescador profissional.
77
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003
relativamente indiferente à penúria por que passa o pescador e, talvez, por essas mesmas
razões, venha a constituir um arcabouço, em parte estéril, em parte conflituoso consigo
mesmo.
A pesca no Brasil foi regulamentada, em âmbito federal, pelo Decreto-lei
221/67, atribuindo-se a então Sudepe (Superintendência do Desenvolvimento da Pesca),
dentre outras funções, a de regular e fiscalizar as atividades do setor. A criação do
Ibama, em 1989, veio, contudo, absorver aquele órgão (dentre outros) e tomar para si a
função de executar o controle e a fiscalização ambiental nos âmbitos regional e
nacional, zelando pela preservação de espécies e pela sustentabilidade dos recursos
naturais, por meio da normatização das condições de uso. No que tange à pesca, caberia
ao Ibama ordenar o uso dos recursos pesqueiros em águas sob domínio da União.
Destaque-se que, em 1992, o Ibama (vinculando-se, então, ao recém-criado Ministério
do Meio Ambiente) tornou-se responsável, além das funções citadas, pela criação de
modelos de gerenciamento voltados para a gestão integrada das interfaces atuantes
sobre o ecossistema aquático. Todavia, poucos são os exemplos de que esta tarefa foi,
de fato, assumida pelo órgão. Há escassas referências de que houve a implementação e o
êxito de experiências e, no trecho do alto-médio São Francisco, os pescadores não dão
notícias de que algo ali tenha havido, senão a continuidade da mesma prática
fiscalizatória de sempre.
Há cerca de três anos, o trecho mineiro do rio São Francisco sofreu
tentativa, por parte do governo do Estado de Minas Gerais, de ser controlado por
normas estaduais de ordenamento pesqueiro. O Decreto Estadual n. 38.744/97, que
dispõe sobre a política de proteção à fauna e de desenvolvimento da pesca e da
aqüicultura no Estado, procurou determinar, dentre outros: a emissão de licenças de
pesca com limite territorial de validade sobre o rio São Francisco; o aumento dos
tamanhos mínimos de captura de várias espécies em relação à Portaria 2.230/1990 do
Ibama; a extensão do período de defeso (de três, conforme determina o Ibama, para
quatro meses) e a proibição da pesca profissional no rio, após um ano da edição do
decreto. Além disso, o governo estadual ainda atribuiu ao Instituto Estadual de Florestas
(IEF) a função de fiscalizar as atividades pesqueiras no curso mineiro do rio São
Francisco. Os problemas para a pesca profissional, decorrentes da sistemática tentativa
de ampliar o controle do IEF sobre o trecho mineiro do rio são inúmeros.
Também no município de São Francisco a abordagem fiscalizatória junto
aos pescadores profissionais tem sido aviltante:
O maior problema que temos é com a fiscalização. Existe muito pescador que
é profissional, mas é mal tratado, principalmente quando pesca na piracema.
Mas não se vê que a gente sobrevive daquilo. Os que se arriscam pescar é
porque não ganham o salário-desemprego. A fiscalização é boa quando
corrige, mas não quando nos trata como bandido: os policiais chegam com
revólver ao trabalhador, quebram a porta e invadem o rancho do pescador.
Precisa de certa educação para conversar conosco. Isso revolta o pescador. (...)
A maioria dos fiscais desdenha de nós. Não possuímos crédito na cidade
porque não temos renda. É preciso dar valor ao pescador. Ele é trabalhador
profissional. Profissional hoje também trabalha sem carteira assinada, sem
salário fixo.78

Situações como essas têm causado grande inquietação à Federação das


Colônias de Pescadores de Minas Gerais, manifestando-se, quando possível, na busca
de fundamentos sólidos para o debate sobre o uso dos recursos pesqueiros, bem como
na necessidade de criação, revisão e aplicabilidade da legislação estadual e federal, sem
grandes conflitos e prejuízos para o pescador profissional.
Ao Ministério do Meio Ambiente e ao IBAMA, restaram a função de
fiscalização do uso de espécies sobre exploradas ou ameaçadas de extinção.
Embora essas alterações configurem distinções claras entre competências de
agências no nível federal, isso está longe de induzir o manejo sustentável da pesca, pois
falta integração entre as políticas dos dois órgãos.
Enquanto isso, as comunidades de pescadores carecem de formas concretas
de apoio ao seu desenvolvimento econômico. A pesca, no alto-médio São Francisco, é
realizada com equipamentos produzidos artesanalmente pela família e colegas. As redes
são tecidas e consertadas em frente às casas e às colônias de pesca. Grande parte das
embarcações é de madeira (isto é, são apenas canoas) e o remo ou pequenos motores são
a forma de impulsão mais utilizadas. A maioria dos pescadores (83,6%) tem pequenas
embarcações para realizar seu trabalho. Aqueles que não as possuem realizam seu
trabalho de pé, sobre as pedras, de onde jogam as suas tarrafas, o que é a prática
específica – e ilegal – dos pescadores do município de São Francisco. A captura, nas
corredeiras, é permanentemente proibida pelo , por envolver sérios riscos de vida a
quem a pratica e devido à vulnerabilidade das espécies migradoras que passam no meio
das pedras e lutam contra a correnteza ao subir o rio.79

78
Sr. José Francisco de Almeida, 53 anos, pescador.
79
GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São
Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003
A pequena presença de política efetiva de desenvolvimento do setor é
também atestada pelos pescadores:

Antes, a Sudepe, quando existia, comprava material para a Colônia. Mas,


desde então, nunca houve nada para o pescador, mas deveria existir (...). É
preciso ter melhor material. Muitos pescam no remo. Precisava ter uma
tralha boa para poder ir mais longe. O governo poderia ajudar da mesma
forma que faz para os lavradores: financiar a compra de material nas
condições que é possível a nós o pagamento depois. Nós deveríamos,
também, ter uma cooperativa, um armazém, onde pudéssemos comprar
comida e pagar com peixe.80

Dos instrumentos monoespecíficos, a tarrafa é bastante utilizada pelos


pescadores de São Francisco. Dos multiespecíficos, a rede de espera é a mais utilizada
em São Francisco, onde as redes de batida aparecem como as tralhas mais utilizadas e
onde a necessidade de realização do trabalho, no uso de ajudantes de pesca fica mais
evidente.
Pirapora, São Francisco e Januária são os municípios onde se encontram
pescadores que, freqüentemente, realizam seu trabalho em trechos do rio que distam
consideravelmente de suas casas e dos trechos urbanos, razão pela qual, quando para lá
se deslocam, ficam em acampamentos por vários dias.
O ritmo do trabalho é ditado pela natureza: a hora de sair, de colocar a rede
e recolhê-la, ou jogar tarrafa, não são desígnios diretos das relações sociais, mas do
comportamento dos peixes. A jornada de trabalho é descontínua e, portanto, absorve
grande parte do dia, impedindo que o pescador se dedique com eficiência às outras
atividades que se vê obrigado a desempenhar para o provimento da família. A diferença
de ritmos entre a atividade da pesca e as atividades secundárias ou entre as atividades
urbanas de modo geral, faz com que a primeira pareça indolente e livre, embora
constitua trabalho árduo.
São poucos os pescadores que vendem o peixe na sua própria residência ou
possuem geladeira e/ou freezer para fazê-lo nos dias que se seguem à captura. Um
quarto dos pescadores afirmou que não possui nenhum tipo de compromisso prévio de
venda, realizando-a, no atacado ou varejo, a quem chegar primeiro.
O atendimento direto ao consumidor é feito em local sem estrutura
apropriada. A ausência de condições adequadas de higiene no processo de limpeza e de
armazenamento do peixe, desde a captura até o local de comercialização, aumenta o

80
Sr. José Francisco de Almeida, 53 anos, pescador.
risco de perecibilidade dessa mercadoria e, portanto, o risco desse trabalhador ver sua
profissão ser identificada como responsável por significativa perda predatória de um
recurso natural. Assim, a questão que está por detrás do dano ambiental – somente este
considerado pela opinião pública – é a da ausência de um aparato tecnológico e
organizacional eficiente para manter as condições de comercialização, ou seja, há uma
dimensão econômica de acesso a meios de produção adequados que precisa ser colocada
em discussão.
Se a perecibilidade é um dos grandes problemas dessa atividade extrativista,
há fatores culturais que impedem a adoção de soluções econômicas alternativas. A salga
do peixe, por exemplo, não é procedimento usual no alto-médio São Francisco, pois não
existe mercado para tal produto na região.

Antigamente, havia as balsas que atravessavam os carros. Havia um


depósito de compra e vendas de mercadorias que vinham de um lado da
Bahia e de outro de Montes Claros. Vinha caminhão, também de São Paulo.
Então aqui era muito movimentado, trabalhava muita gente. Os fazendeiros
vinham para cá comprar as coisas, querosene, pinga, também traziam suas
coisas para vender. Todo esse povo que vinha comprava nosso peixe e os
filhos vendiam para gente, além do peixe, banana e milho, coisa que a gente
plantava aqui mesmo, a gente mesmo. Para tudo tinha comprador (...) Mas, o
pessoal que foi enriquecendo foi mudando para a cidade (São Francisco),
colocando os filhos na cidade. 81

Conhecedor das coisas do rio, a adaptação às mudanças do meio circundante


é penosa e, por vezes, os interesses são irreconciliáveis com os novos fluxos que vão se
construindo, no que o pescador vê recrudescer sua pobreza.
É preciso que as novas formas de regulação forneçam não apenas a
necessária rede de proteção ao pescador e à sua família, mas que estabeleçam uma
situação negociável com os demais usuários para que os usos ecológicos de que
depende a pesca sejam melhor atendidos, conforme apresentam os relatos:

Que o Ibama, o IEF, fornecessem para a Cemig o momento exato em que a


água deveria ser liberada para as lagoas marginais para o peixe desovar lá.
Que o Ibama e o IEF fiscalizassem, também, a mata ciliar, que serve de
alimento pros peixes. Tem que tirar o gado da mata ciliar (...). Para repovoar
o rio no prazo mais curto? A única coisa que repovoa o rio é a água. É
preciso voltar a ter enchente para repovoar o rio.82

81
Sr. João Batista Oliveira, 60 anos, pescador há 48 anos.
82
Sr. Norberto Damião Vieira, 51anos, pescador profissional.
Outra sugestão é dada por um outro pescador:

É preciso ter melhor material. Muitos pescam no remo. Precisava ter uma
tralha boa para poder ir mais longe. O governo poderia ajudar, da mesma
forma que fazem para os lavradores: financiar a compra de material nas
condições que dá para gente pagar. A gente podia, também, ter uma
cooperativa, um armazém, que pudesse comprar comida e pagar com
peixe.83

E finalizando o presidente da Colônia de Pescadores de São Francisco,


sugere:

A Colônia deveria servir como uma cooperativa para todos os pescadores,


em que eles chegavam do rio, a Colônia pagava para eles e a Colônia
venderia.84

83
Sr. José, 53 anos, pescador profissional.
84
Sr. João, pescador profissional e presidente da Colônia Z-3. São Francisco, MG.
Só é popular o que o povo aceita e torna seu. As mãos
são do artista, mas a arte é do povo. ( Franz Boas)
CAPÍTULO III – AS PRINCIPAIS ATIVIDADES DOS RIBEIRINHOS
DO SÃO FRANCISCO

3.1 História do artesanato

A atividade artesanal é tão antiga quanto o homem que fabricava suas


próprias ferramentas nas cavernas. Segundo Martins, o homem de Pequim conhecia já o
uso do fogo e sabia fabricar instrumentos de quartzo e grés, e a tecelagem da lã
comprovadamente já existia nos tempos pré-históricos.85
Com certeza, o homem das cavernas era um artífice. Todos os instrumentos
e utensílios de que dispunha eram por ele mesmo fabricados, utilizando a matéria-prima
que mais facilmente encontrava e a partir de sua própria concepção e necessidade.
Com o passar do tempo, tais objetos foram tomando a conotação cultural do
ambiente em que o homem estava cercado, fato que possibilita hoje identificar, em
objetos e conquistas arqueológicas, os costumes e características do povo que viveu em
determinado local.
Há indícios do artesanato em todos os momentos da história.
Na antiga Grécia, o artesanato, juntamente com a agricultura e o comércio
compunham a base da economia de Atenas, embora o artesão permanecesse como o
elemento menos valorizado dessa estrutura econômica.86
Os egípcios produziam cerâmicas, usando o tomo do oleiro, há 4 mil anos,
embora a técnica venha a ser realmente utilizada, noutros lugares, somente muito tempo
depois.
Conforme a Bíblia, José era carpinteiro, e ensinava seu ofício a seu filho
Jesus, enquanto Maria fiava e tecia.
Para Weber, no entanto, “a indústria, no sentido de transformação de
matérias-primas, surgiu, economicamente, como trabalho para cobrir as necessidades
próprias de uma comunidade doméstica”. Weber considera o artesanato como um tipo
de indústria, conquanto modifica ou transforma a matéria-prima em outro produto.

85
MARTINS, Saul. Contribuição ao Estudo Científico do Artesanato. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1973,.
86
PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social. Desvendando o Artesanato; uma
contribuição do Programa de Artesanato Paranaense. Curitiba: SEEC, 1994.
Acrescenta ainda que, “o tipo de transformação de matérias-primas, desenvolvido para
satisfazer outras necessidades diferentes daquelas que dizem respeito à própria
economia consutiva, é a produção de caráter lucrativo, que se inicia com o artesanato”.87
Seria prudente acrescentar, para melhor compreensão, que Weber faz
referência ao artesanato medieval que, nos dizeres de Rima, é o passo intermediário
para a industrialização.88
Realmente, somente na Idade Média, com o desenvolvimento dos mercados,
de novas rotas de comércio, das cidades e com o aumento da população, enfim, com
uma nova situação econômica e social é que o artesanato vive sua época de maior
crescimento e relevância na economia.89
A explicação proposta por Rima, para o processo de surgimento do
artesanato na época Medieval é a seguinte:

O intenso crescimento da população da, Europa e a excelência de seus recursos


naturais combinados com técnicas de produção mais evoluídas aceleraram a
expansão da produção e ampliaram os mercados. Os mercados crescentes
possibilitavam a especialização dos trabalhadores em determinados produtos,
adquirindo eles perícias ocupacionais que os transformavam em artesãos. Esta
especialização e a divisão do trabalho que tende a acompanhá-la resultaram na
produção para o mercado, substituindo a forma mais primitiva de produção
que era para o autoconsumo, típica das unidades familiais do sistema feudal. 90

A autora cita como causa principal do desenvolvimento do artesanato, a


preocupação com a produção para o mercado. Tal fato é relevante, vez que o artesanato,
como atividade de produção, embora sem interesses comerciais, já existia há muito,
conforme citado anteriormente.
Martins, analisando o desenvolvimento histórico do artesanato, propõe o
desenvolvimento da indústria manual caseira na Europa, nos séculos X, XI e XII,
principalmente em torno dos castelos, porque ali os mestres-artesãos exerciam suas
atividades e trocavam seus produtos pelos do campo.91
De fato, nenhuma burguesia podia prescindir dos objetos fabricados que a
satisfação de suas necessidades exigia,92 contribuindo, conforme o autor, para a fixação
dos artesãos junto aos burgos, próximos aos castelos, e para o surgimento de diversos

87
WEBER, Max. História Geral da Economia. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
88
RIMA, Ingrid Hahne. História do Pensamento Econômico. São Paulo: Atlas, 1977.
89
CARREIRO, C.H. Porto. História do Pensamento Econômico. Rio de Janeiro: Rio, 1975.
90
RIMA, Ingrid Hahne. História do Pensamento Econômico. São Paulo: Atlas, 1977.
91
MARTINS, Saul. Contribuição ao Estudo Científico do Artesanato. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1973.
92
PIRENE, Henri. História Econômica e Social da Idade Média. Rio de Janeiro: Mestre Jou, 1963.
artífices, especializados em determinados produtos, conforme as necessidades da
população local.
Observa-se a atividade artesanal surgir, economicamente, como forma de
atender a um mercado crescente, originário do desenvolvimento das cidades do
crescimento do comércio, de forma geral.
Sua exploração econômica incrementou-se na idade média principalmente
devido ao crescimento do mercado e, conseqüentemente, da demanda.
Assim, é possível, a partir destes elementos, identificar características da
atividade artesanal, na idade média, que permaneceram presentes até a atualidade,
conforme analisar-se-á.
Antes, porém, é necessário melhor definir o que seja a atividade artesanal, na
abrangência deste trabalho, para que não se incorra em interpretações outras que não
aquela sugerida pelo mesmo.
Conceituar a atividade artesanal, em qualquer momento histórico, ou para
qualquer objetivo, será sempre uma tarefa difícil e ingrata. Assim o é, por não se
conseguir, com um só conceito, abarcar todas as variantes que esta expressão permite,
oferecendo, sempre, uma conceituação, em uma análise mais profunda, pobre.
Por ser assim, o conceito jamais atenderá às diversas concepções que se
possa ter da atividade, acarretando exclusões e inclusões, sob cada ótica, indevidas.
Não obstante, far-se-á uma apresentação de conceitos de alguns autores que
se dispuseram a estudar tal assunto e, com o intuito de melhor representar a concepção
deste trabalho, arriscar-se-á uma definição, embora elástica, da atividade artesanal.
Weber conceitua o artesanato como sendo “o exercício de um trabalho
industrial aprendido, com uma extensão variável, executando-se à base de preparação
profissional ou de especialização técnica, de maneira independente, para um senhor,
para uma comunidade ou por conta própria.”93
Em seu conceito, Weber ao identificar o artesanato com o trabalho industrial
aprendido, considera a atividade como a transformação da matéria-prima característica
da indústria - e como uma escola, onde são repassadas as técnicas de produção e o
oficio aos aprendizes, sob os cuidados do mestre. Para o autor, há uma certa
especialização no artesanato. Não a especialização nos moldes da “divisão do trabalho”,
característica própria da organização industrial moderna, mas uma especialização

93
WEBER, Max. História Geral da Economia.São Paulo: Mestre Jou, 1968.
técnica, uma separação profissional, a partir da elaboração de um determinado
produto.94
Carreiro, embora não conceitue propriamente a atividade artesanal, comenta
que “a técnica de produção do artesanato baseia-se na indústria sobretudo manual (é a
verdadeira manufatura)”.95
Novamente há a identificação do artesanato com a indústria. Percebe-se que
há uma tendência dos autores, ao menos enquanto análise econômica em aproximar tais
atividades, devido à proximidade de seus objetivos, de transformação da matéria-prima
em outro produto.
Para outro autor, Canclini, “o artesanato segue designando um modo de
utilizar os instrumentos de trabalho, mas o seu sentido também é construído na
recepção, por intermédio de uma série de traços que são atribuídos aos objetos apesar de
terem sido fabricados com o emprego de tecnologia industrial”.96
Este autor, com uma concepção diferente, introduz outros elementos na
construção do seu conceito. Para ele, não só o modo de produção define se uma
atividade é artesanal ou não, mas também o sentido dado ao produto, tanto pelo próprio
produtor, quanto pelo consumidor final, pelo usuário do produto.
Acrescenta o autor que a concepção errônea da atividade artesanal, pode
redundar em um purismo atávico que de nada contribui para a melhoria das condições
do trabalhador artesão. Por outro lado, pode-se também, abranger em uma mesma
classe, produtos de processo, mercados e significados diferentes que acabariam por
descaracterizar por completo a atividade e o produto artesanal.97
Martins, ao delinear o seu conceito, segue o caminho de descrever o que não
é artesanato e, por exclusão, caracterizar o que é, em sua concepção. Para ele, a
atividade artesanal se situa no grupo de atividades de transformação de matéria-prima,
dentro do qual se diferencia da indústria, das artes puras ou desinteressadas, das artes
industriais ou ofícios e das “indústrias populares ou indústrias caseiras ou pequenas
indústrias.
Menciona ainda que “só o processo de trabalho, a maneira de produzir
distingue o artesão do artífice. E isto se conhece diante da oficina (...). A feição

94
Tal especialização também é comentada por RIMA, quando da análise da origem do artesanato.
95
CARREIRO, C. H. Porto. História do Pensamento Econômico. Rio de Janeiro: Rio, 1975.
96
CANCLINI, N.G. apud PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social do. Op.cit.p.25.
97
CANCLINI, N.G. apud PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social do. Op.cit.p.25.
artesanal de uma atividade econômica resulta das características do objeto e,
principalmente, da maneira pela qual foi produzido”.98
O autor também faz referência à dimensão do núcleo populacional e as
exigências do mercado consumidor na caracterização e definição de uma atividade em
artesanal ou não. Conforme cita, “o serralheiro nos grandes centros teria que ser ferreiro
nas cidadezinhas do interior” vez que “o serralheiro não poderia viver do oficio numa
aldeia, onde não haveria procura que encorajasse o estabelecimento de tal
especialização”.99
Martins, encerrando o seu capítulo sobre a conceituação do artesanato,
ressalta que “a definição constitui sempre uma projeção da idéia que a gente faz da
realidade, razão por que pode vir a ser modificada”100, e conclui: Desse modo, hoje
dizemos que artesanato é o regime de trabalho doméstico que reúne os diferentes
processos manuais de criação de objetos usuais e artísticos ou suscetíveis de sê-lo, com
emprego de material disponível.
A partir do estudo de Martins, observa-se que há uma grande diversidade de
fatores que influenciam na concepção e definição da atividade artesanal. Estes fatores
relativizam os conceitos e toma-se extremamente complexo afirmar categoricamente o
que é e o que não é artesanato.
A diferenciação que o autor propõe para a atividade, nem sempre pode ser
observada a contento. O universo que compõe o dia-a-dia do artesão e da prática de sua
profissão, interage, conforme o próprio autor menciona, com variáveis distantes deste e
fora do seu controle. Estas variáveis comprometem a pureza do processo produtivo e do
produto resultante. Ou seja, as técnicas de produção, definidas pelo autor como não
sendo artesanato, estão presente em atividades artesanais propriamente ditas, a partir da
sua concepção.
Na luta pela sustentação da atividade na atualidade, o artesão tem buscado
formas alternativas de produção que possam dar agilidade ao processo produtivo
tomando o seu produto capaz de competir no mercado.

98
THÉ, A.P.G. Conhecimento Ecológico, Regras de Uso e Manejo Local dos Recursos Naturais na
Pesca do Alto-Médio São Francisco, MG”. Tese de doutorado, PPG- ERN/UFSCar, São Carlos, SP.2003.
99
THÉ, A.P.G. Conhecimento Ecológico, Regras de Uso e Manejo Local dos Recursos Naturais na
Pesca do Alto-Médio São Francisco, MG”. Tese de doutorado, PPG- ERN/UFSCar, São Carlos, SP.2003.
100
THÉ, A.P.G. Conhecimento Ecológico, Regras de Uso e Manejo Local dos Recursos Naturais na
Pesca do Alto-Médio São Francisco, MG”. Tese de doutorado, PPG- ERN/UFSCar, São Carlos, SP.2003.
No esforço de se definir a atividade artesanal buscar-se-á fazê-lo de forma o
mais abrangente possível, considerando o mencionado pelos autores acima e
ressaltando, sobremaneira, a característica econômica desta atividade, entrelaçada com
sua importância sócio-cultural.
Recuperando Weber, considerar-se-á a atividade artesanal como um trabalho
não feito pelas mãos aprendido.
A característica de trabalho industrial também é permanente no artesanato,
se considerar-se o industrial, como sendo a transformação da matéria-prima em outro
produto. A atividade artesanal sempre será um processo de elaboração de um produto
diferente a partir de outros produtos ou matéria-prima.
Sob o ponto de vista de Canclini, utilizar-se-á a relevante observação sobre o
sentido dado ao artesanal pelo consumidor, que considera produtos fabricados a partir
da tecnologia industrial, como objetos artesanais.
Sob este ponto de vista, a atividade artesanal está relacionada com o modo
de viver de uma determinada região, seus valores e sua cultura, que são traduzidos nos
objetos produzidos. A presença de traços culturais próprios, de um determinado povo
e/ou região, nos produtos, é uma característica sempre presente no artesanato, e bastante
valorizada pelo mercado atualmente.
Embora não sendo uma definição ideal, acredita-se que seja suficientemente
ampla para abarcar diversidade de atividades consideradas artesanais, sem contudo,
expropriar as características fundamentais do artesanato.
Esta definição, ao mesmo tempo em que se baseia em Martins, o
desconsidera vez que não releva a distinção a partir do processo produtivo que o autor
acredita existir. Não obstante, considera-se que tal distinção é pertinente, apenas não
sendo relevante para os objetivos deste trabalho.
Com a passagem do sistema de produção doméstico para o fabril, fomentado
principalmente pela grande procura de produtos, os trabalhadores perderam sua
independência e a habilidade tomou-se menos importante devido à incorporação cada
vez mais intensiva de máquinas, sendo muito grande a dependência da produção ao
capital.
Desta forma, a atividade artesanal, que na Idade Média ocupou posição de
destaque no ambiente econômico da época, na sociedade industrial corresponde a um
modo de produção que, principalmente nas grandes cidades, foi substituído pela
atividade fabril e, concorrendo com esta de maneira desvantajosa, “relegou os artesãos à
realização de conceitos ou outros trabalhos marginais onde a criatividade manual
permanece útil”.101
O artesão, como na época medieval, antes do período áureo do artesanato,
permanece como um trabalhador de classe econômica baixa. Conforme Lopes, a
atividade ocupa, na maioria dos ramos, mulheres e crianças da zona rural e mesmo
suburbanas do interior, além de desempregados destas mesmas áreas.
A renda auferida pela atividade em muito se distancia de um mínimo
razoável para a manutenção familiar. Por isso, a atividade é desenvolvida como forma
de complementar o orçamento, composto pela receita de várias outras atividades,
geralmente de caráter informal.
Além do rendimento oferecido pela atividade artesanal ser baixo, ocorre
ainda que o acesso ao mercado dá-se por via de comerciantes que, intermediando a
transação, absorvem parte da renda dos artesãos.
Esta dinâmica retira do artesão o contato com o consumidor, tomando-o
dependente do comerciante. O resultado é o desaparecimento do trabalhador
independente, que trabalha em sua casa, com a sua família e seus recursos, para a
incorporação deste como assalariado, trabalhando para um empregador que organiza a
produção em formas empresariais.102
Conforme Lopes, o controle da produção por firmas comerciais amplia o
mercado, vez que o mesmo transcende a região onde se localiza a atividade e o artesão
não consegue atingi-lo com sua fraca produção e parcos recursos. Porém estas firmas
comerciais concentram em suas mãos grande parte do lucro auferido, sendo a diferença
entre o valor pago ao artesão e o valor do produto para o consumidor, a receita do
intermediário.103
As atividades que se encontram em locais de maior acesso de turistas ou
próximas aos grandes centros produzem o que satisfaz o mercado, ainda que
descaracterizando em um ou outro aspecto a tradição local. A necessidade do artesão em
comercializar a sua produção é que acaba definindo o tipo de produto que desenvolverá.
Já nas atividades que se desenvolvem em locais distantes dos centros
comerciais ou pouco explorados por turistas, o que se percebe é que os produtos e a

101
PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social. Op.cit., p.26.
102
LOPES, Juarez Rubens Brandão. Desenvolvimento e Mudança Social; formação da sociedade urbano
industrial no Brasil. 5ª. Ed. São Paulo: Nacional, 1980.
103
LOPES, Juarez Rubens Brandão. Desenvolvimento e Mudança Social; formação da sociedade urbano
industrial no Brasil. 5ª. Ed. São Paulo: Nacional, 1980.
dinâmica da produção ainda possuem muitas das características tradicionalmente
mantidas através dos tempos.
Nestas localidades pode-se observar a técnica ser transmitida de geração para
geração através do aprender fazendo, próprio deste tipo de atividade e grande parte da
produção artesanal ainda é utilizada para suprir à comunidade das suas necessidades
básicas de utensílios e outros artigos ali desenvolvidos.
Percebe-se que, ainda atualmente, cada região se identifica com um tipo de
atividade, seja pela influência cultural, seja pela abundância de um ou outro tipo de
matéria-prima, pela tradição da região ou, ainda, pela pressão do mercado sobre a
atividade.
O artesanato é, atualmente, uma forma de se sobreviver no mercado, onde o
modelo econômico vigente se toma cada vez mais excludente. É necessário identificar
formas de se recuperar o poder de produção e comercialização dos artesãos, para que
esta atividade possa absorver a habilidade das pessoas de determinada região e
transformá-la em recursos econômicos.
Desta forma, o investimento feito na atividade artesanal é, inicialmente, o
próprio trabalho do artesão, que confecciona suas próprias ferramentas ou utiliza as
mãos como instrumento essencial de trabalho. Quando há a necessidade de algum
recurso financeiro, este é proveniente de outra atividade geralmente desenvolvida pelo
artesão, como complemento da renda familiar.
A manutenção constante do investimento, ou melhor dizendo, o capital de
giro necessário à atividade artesanal é conseguido a partir do próprio artesão, que vende
suas peças e adquire nova matéria-prima, em um processo constante, impulsionado pela
necessidade de recursos do artesão. Quando este necessita de dinheiro, vende alguma
peça, compra matéria-prima, produz e comercializa novamente sua peça para adquirir o
recurso necessário.
Quanto ao capital necessário para o início das atividades de um artesão, que
possua um planejamento prévio das atividades a serem desenvolvidas, que necessite de
uma estrutura mínima para sua atividade.
O artesanato é desenvolvido como uma das possíveis ocupações rentáveis
para a família congregando, regra geral, todos os membros desta. Assim, há uma certa
divisão de tarefas nesta atividade, que envolve a produção das peças. Há que se ressaltar
no entanto, que é o artesão quem concebe, produz com suas mãos e/ou instrumentos
simples e vende o resultado do seu trabalho. Desta maneira, ele executa senão todas,
quase todas as etapas produtivas.
Ocorre, porém, que a atividade nem sempre é desenvolvida constantemente
durante o ano, estando sujeita a períodos sazonais devido não só à disponibilidade da
matéria-prima que utiliza, mas, também, à demanda do mercado. Outro fator que
contribui para esta sazonalidade da produção é o fato de que o artesão sempre tem outra
ocupação que possa lhe garantir algum acréscimo na sua renda, desta forma o artesanato
é desenvolvido em períodos de entres safra ou decréscimo da atividade que o ocupa
normalmente.
Embora o processo produtivo na atividade artesanal seja consideravelmente
simples, a sazonalidade da produção, a demanda do mercado e outras componentes do
cenário econômico no qual a atividade se insere, conduzem à necessidade de um
mínimo de controle e gerenciamento deste processo.104
As características do artesanato, já citadas anteriormente, limitam o produto,
de alguma forma, à habilidade do artesão e suas condições econômicas. Tais limitações
dentro de uma economia de mercado, fazem com que este produto artesanal não reúna
condições de competir, satisfatoriamente, com os produtos industrializados que atendem
às mesmas necessidades dos consumidores que aquele. As características próprias do
produto artesanal e a capacidade limitada da produção, definem o espaço restrito do
artesanato no mercado.105
Segundo Martins,106 o mercado da atividade artesanal está intimamente
relacionado com a atividade turística, quando não possui um caráter de autoconsumo.
Ressalta o autor que este mercado tem sido ampliado com o
desenvolvimento de feiras e exposições em grandes cidades ou, ainda, mostras
permanentes de artesanato, seja em museus regionais, saguões ou galerias de edifícios
públicos e locais de grande afluxo de turistas como aeroportos, terminais rodoviários e
ferroviários e pontos estratégicos nas estradas.
Porém, ainda segundo o autor, o artesão produz, mas não dirige e nem sabe
negociar, sendo necessário o apoio de órgãos de fomento, geralmente públicos para
possibilitar o acesso do artesão ao mercado.

104
MAIA, Isa. Cooperativa e Prática Democrática. São Paulo: Cortez, 1985.
105
SINDEAUX, Roney Versiani. Aspectos Econômicos da Atividade Artesanal. 1º. Seminário sobre a
Atividade Artesanal no Norte de Minas. Relatório. Montes Claros, 1994.
106
MARTINS, Saul. Panorama Folclórico. Belo Horizonte: SESC-MG, 2004.
Analisando os aspectos históricos, sociais e econômicos da atividade
artesanal, pode-se observar que, embora ela represente uma atividade importante para o
país em alguns aspectos como cultura, história, combate ao desemprego e outros, esta
atividade possui alguns estrangulamentos, principalmente, em se tratando dos seus
aspectos econômicos, embora possa se definir alguns elementos que se traduzem em
potencialidades desta atividade.
Enquanto potencialidades que devem ser ressaltadas na atividade artesanal,
salientam-se alguns aspectos como a possibilidade desta atividade despertar no homem
simples, principalmente do interior, aptidões que podem lhe proporcionar aumento em
sua renda e a capacidade de o artesanato absorver a atividade feminina na família,
criando uma ocupação doméstica paralela às atividades normais de um lar.107
Outro aspecto relevante é o fato de que, assim como o turismo favorece a
atividade artesanal, esta também contribui com aquele, ou seja, há regiões e localidades
em que uma das principais atrações turísticas é o artesanato regional, extremamente
característico.108
Outro fator que garante a importância do artesanato é percebê-lo como
elemento de manutenção da história e da cultura de uma determinada região, traduzindo
nas peças desenvolvidas muitas das tradições, crenças, símbolos e história de uma
comunidade.
Conforme Martins, o artesanato pode possibilitar ao artesão, melhores
condições de vida e, atuando contra o desemprego, pode ser considerado elemento de
equilíbrio no país. Para ele, a atividade artesanal garantiu ao largo da história, e ainda
garante, a sobrevivência de comunidades inteiras. Geradora de ocupação e renda,
tomou-se necessariamente alvo das ações governamentais neste sentido.109
Porém, além de toda a importância intrinsecamente relacionada à atividade
artesanal, ela não pode se suportar sem que seja economicamente viável. Neste ponto,
sob a ótica do mercado e da sobrevivência econômica, concentram-se as principais
dificuldades em se fazer desenvolver o artesanato.
A aquisição de matéria-prima tem se constituído em um dos principais
problemas do artesão. A devastação de regiões onde a matéria-prima era disponível na
natureza obrigou-o a adquiri-la de outras regiões ou substituí-la por insumos

107
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. 2ª. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
108
Poderia-se citar, como exemplo, as carrancas do Velho Chico.
109
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. 2ª. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
industrializados. Isso trouxe problemas de abastecimento em conseqüência da restrita
capacidade financeira dos artesãos, do aumento constante dos preços, da
impossibilidade de armazenamento ou ainda da impossibilidade de redução destes
preços por aquisição em grande escala.
A democratização do acesso às fontes de crédito é uma das maiores
reivindicações dos artesãos. Esta demanda é bastante complexa, pois à inexistência de
linhas creditícias voltadas para o fomento do artesanato, somam-se outros obstáculos
como a complexidade dos trâmites para a obtenção do crédito, vez que é grande o
número de artesãos que não possui documentos de identidade, cadastro de contribuinte
ou título de eleitor. Outra dificuldade a se considerar neste aspecto é o problema dos
prazos de pagamento e dos juros.
A comercialização do produto artesanal enfrenta a forte concorrência do
mercado por parte dos produtos industrializados vendidos a preços relativamente
baixos. Assim, muitas vezes, o artesão se vê obrigado a vender seus produtos a preços
irrisórios para iniciar o processo produtivo ou mesmo para atender a alguma
necessidade familiar no momento.
A dispersão geográfica e o caráter individual da atividade artesanal
constituem graves obstáculos para a sua organização. Nas últimas décadas, os artesãos
adotaram diversas formas de organização como associações, sindicatos e federações.
Entretanto, estas entidades ainda aglutinam pequena parcela de artesãos e não alcançam
suficientemente aqueles que vivem na zona rural ou em pequenas comunidades, ou seja,
os que mais carecem de organização eficiente. Sendo assim, continuam utilizando
instrumentos e técnicas rudimentares na produção de seus artefatos, desconhecendo
tecnologias alternativas que podem propiciar maior qualidade e rapidez na confecção
das peças.
Finalmente, do ponto de vista do apoio institucional, os esforços
governamentais para promover o desenvolvimento do setor artesanal têm se revelado
insuficientes, ocorrendo de maneira isolada e com dotações orçamentárias limitadas que
não permitem apoio satisfatório.110
Esta análise sobre a atividade artesanal, embora não muito profunda, fornece
elementos suficientes para demonstrar que o artesanato é uma atividade desenvolvida
essencialmente por uma classe econômica baixa, que o utiliza, não raro, como fonte de

110
MINAS GERAIS, Secretaria de Estado do Trabalho e de Ação Social de. Programa de Apoio ao
Artesanato. Belo Horizonte, 1993.
renda complementar ao orçamento doméstico, composto, também, de parcos recursos
provenientes de outras atividades econômicas, geralmente de subsistência.
Observando os aspectos econômicos que perpassam a atividade artesanal,
principalmente as suas dificuldades, percebe-se que em um mundo onde a maioria dos
produtos que a população consome é industrializada, pouca chance possui um artesão de
se organizar economicamente de forma eficaz e competir com estes produtos, seja por
falta de capacidade de produção suficiente para atender ao mercado em suas exigências,
principalmente de preços, seja por não possuir, como já citado, recursos suficientes para
afrontar a capacidade produtiva da indústria.
Porém, paradoxalmente, enquanto cresce o consumo de produtos
industrializados, cresce também o consumo de produtos artesanais. Tal fato, segundo
Canclini,111 é devido à capacidade da atividade artesanal em criar alternativas que
agradem a um consumidor específico, geralmente composto por pessoas de classe
econômica mais elevada, que vêm no objeto artesanal mais que um simples produto e
sim a expressão de uma determinada cultura e história.
Cita o autor que o artesanato é importante para a indústria, pois, oferece a
esta estampas e desenhos vários e criativos que são apropriados para os produtos
industrializados.

111
CANCLINI, N.G. Apud. PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e de Ação Social do.
Op.cit.p.24-25.
Neste cenário, onde o artesão se toma cada dia menor economicamente e
onde o fruto do seu trabalho começa a se tomar reconhecido pelo que realmente
representa, há a dificuldade de fazer com que a atividade artesanal possa ser organizada
para atender ao mercado.
O Vale do São Francisco é uma das regiões mais ricas deste país, no que se
refere ao artesanato. Pessoas comuns, que utilizam as mãos e algum instrumento como
extensão dos dedos para confeccionar peças de uso decorativo e utilitário se fazem
presentes às margens do rio. Oficinas caseiras exibem mestres, oficiais e aprendizes nas
mais diversas atividades: produção de mobiliário doméstico, instrumentos musicais, de
trabalho e de transporte, objetos de lazer, etc.
O artesanato está correlacionado com os recursos naturais existentes e
decorre, necessariamente, da relação entre o homem e o meio, reflete o sistema de vida
adotado pelos moradores do lugar ou região.
Na maestria de confeccionar objetos, utilizando recursos naturais da terra da
região a criatividade dos artesãos sempre foi ímpar e diversificada, diante das
possibilidades que lhes são apresentadas. Ao longo do rio, as comunidades desenvolvem
diferentes modalidades de artesanato.
O artesanato em couro tem origem regional. O couro beneficiado ou curtido
é utilizado na elaboração de diversos ornamentos e utensílios. O artesanato em couro
teve uma época áurea durante o florescimento da pecuária. A existência de muitos
curtumes garantia a fartura da matéria-prima. Até o início do século era largamente
utilizado na produção de roupas de vaqueiros, parecendo antigas couraças medievais,
arreios para suas montarias, malas, assentos de bancos, cadeiras e até portas. O
artesanato em couro sobrevive ainda na Região Nordeste, especialmente no Sertão,
mesmo enfrentando a concorrência das grandes fábricas de plástico. Nas feiras
populares são encontrados alpercatas, chapéus, cintos, selas, arreios, alforjes, baús
tacheados, gibões, perneiras, bolsas, sacolas, tapetes de peles de animais etc.
A madeira também compõe matéria-prima para o artesanato dos ribeirinhos,
a arte em Madeira de origem européia, sendo usada para a criação de vários objetos. Na
Região dos Lagos do Rio São Francisco são utilizados diversos tipos de madeira e até
galhos e raízes de árvores e palitos de fósforos, que se transformam em móveis, santos
em estilo barroco, animais, talhas, figuras populares, ex-votos, carrancas, barcos etc.,
dependendo da imaginação dos artesãos, preocupados em retratar as tradições e
costumes da sua vida sócio-cultural.
Destacam-se os seguintes municípios que apresentam artesanato em
madeira: Poço Redondo (SE) – esculturas de santos em estilo barroco, personalidades e
animais confeccionados em umburana; Canindé do São Francisco (SE) – santos, figuras
do Ciclo do Cangaço e figuras populares como Lampião e Maria Bonita e Antonio
Conselheiro; Porto da Folha (SE) – reprodução de modelos de antigas embarcações do
Rio São Francisco. Piranhas (AL) - esculturas com troncos de árvores como mulungu,
umburana e cedro, além de galhos e raízes, com figuras de animais a exemplo de
macacos e cobras, dentre outras; Pão de Açúcar (AL) - bancos e mesas de troncos de
árvores como o pereiro, a jurema e a catingueira, e esculturas de vários espécies de
animais. Chorrochó (BA) - santos, ex-votos, talhas e móveis; Nossa Senhora da Glória
(BA) – figuras populares em umburana e cedro, mini-esculturas em madeira, que
formam uma peça única, e esculturas em palito de fósforo. O artesanato em Palha
também tem origem nordestina. A palha é utilizada na confecção de chapéus, tapetes,
bolsas e abanos; os artesãos usam a palha do olho do coqueiro (a palha central, fica no
meio do coqueiro), por ser mais macia e maleável.
O bordado, típico da região, de origem européia, é um ornamento executado
sobre qualquer tipo de tecido, por meio de agulha e linhas coloridas, podendo ser
trabalhado com as mãos ou feitos em máquinas apropriadas. As linhas são compradas já
beneficiadas. Os bordados dão acabamento em peças de vestuário, cama, mesa e banho,
trabalhando-se os fios do próprio tecido ou fazendo-se apliques. Na região do São
Francisco são mais comuns o ponto cheio, vagonite, boa-noite, labirinto, redendê,
ponto-de-cruz. Os desenhos representam ornamentos florais, paisagens, espécies da
fauna da região, figuras geométricas, monogramas, etc. São destaques destaque os
bordados de Abaré, Rodelas, Macururé e Chorrochó, na Bahia; ltacuruba e Floresta, em
Pernambuco; Pão de Açúcar, Belmiro Gouveia e Piranhas, em Alagoas e Poço
Redondo, Porto da Folha, Canindé do São Francisco em Sergipe.
A arte em cerâmica, de origem indígena-africana, pode ser figurativa ou
utilitária e tem como matéria-prima a argila. A cerâmica figurativa caracteriza-se por
expressar os modos de vida da população. As peças retratam os costumes, rituais
religiosos e lúdicos, fantasias e cenas do cotidiano, representações de um rico
imaginário. A cerâmica utilitária caracteriza-se pela produção de objetos. O barro
moldado com as mãos, trabalhado em tornos rústicos e depois cozido no fogo de lenha
transforma-se em potes, vasos, panelas, travessas, pratos, moringas. Estudiosos indicam
que a cerâmica é a mais antiga de todas as indústrias e o seu progresso foi determinado
pelo intercâmbio entre os homens. Atualmente a cerâmica utilitária tem sido sufocada
em diversos lugares pelos utensílios de alumínio.
A cestaria, também de origem indígena, é a arte milenar de trançar cipós,
caniços e palhas, produzindo com estes materiais os mais diferentes utensílios para os
mais diferentes fins. Em trançados dos mais delicados aos mais grossos e firmes
produz-se toda sorte de objetos. Com mãos hábeis os artesãos vão transformando a
palha, aos poucos, em cestos, caçuás, bolsas, balaios, esteiras, sacolas, chapéus, abanos,
tapetes, móveis etc. Utilizam os materiais na tonalidade original ou tingidos com
pigmentos naturais e a palha do ouricuri, além do coqueiro, tapera, sisal, piaçava,
bambu, cipó, dentre outras.
O crochê, de origem européia, é a arte de entrelaçar fios de linhas com o
auxílio de uma agulha. É um trabalho que exige muita habilidade dos artesãos. É
utilizado nos acabamentos para peças íntimas, enxovais de bebês, lenços, toalhas de
banho, lençóis, fronhas etc, são feitos com fios de linhas finos; a linha mais grossa, de
algodão, lã, nylon, ráfia etc é utilizada para confecção de coberturas para almofadas,
bolsas, sacolas, colchas, toalhas de mesa. Merecem destaque na confecção do crochê os
seguintes municípios: Floresta e Itacuruba, em Pernambuco; Gararu, Canindé do São
Francisco, Porto da Folha e Monte Alegre, em Sergipe; Rodelas, Macururé, Chorrochó
e Abaré, na Bahia.
O filtro de coco é um artesanato confeccionado com o próprio coco para
curtir cachaça. Para isso, o coco é descascado e sua água é retirada. São feitas duas
perfurações, uma em cima e outra na lateral do coco. A da parte de cima é utilizada para
introduzir a cachaça, e a da lateral é usada para se adaptar uma pequena torneira. Deixa-
se então a cachaça maturar até ficar bem curtida.
O oficio de tecer redes de pesca, é com certeza, uma arte e uma fonte de
renda para os artesãos que a ele se dedicam, como se observa na figura 13. De origem
indígena as redes de pesca são tecidas com fios de nylon ou de seda. O material
utilizado é o nylon seco ou a seda, pesos de chumbo de vários tamanhos, agulhas
especiais, feitas em PVC e bolas de isopor. O tempo usado para confeccionar uma rede
de tamanho grande é de aproximadamente três meses. Depois de tecida, coloca-se em
volta da rede uma corda de nylon, onde são presos pequenos chumbos - o espaço entre
eles é determinado pelo uso a ser feito da rede: a rede de nylon seco é usada em épocas
de águas limpas; no período de enxurradas deve-se usar a rede de seda.
Figura 13: Tecendo tarrafas e redes
Fonte: arquivo pessoal

As rendas de bilro, de origem européia, têm como matéria-prima linha e


como instrumento para a execução deste tipo de renda os bilros, peças de madeira que
não excedem a 15cm, compostas de uma haste com a extremidade em forma de bola ou
fuso, que recebe o nome de cabeça de bilro, Em almofadas redondas, recheadas com
palha de bananeira, a rendeira aplica o molde, riscado e marcado por alfinetes ou
espinhos, e vai elaborando o seu trabalho com um emaranhado de linhas, habilmente
conduzidas pelos bilros. Tilintando os bilros em movimentos rápidos e precisos com as
mãos, as rendeiras vão pacientemente transformando as linhas em delicadas peças de
rendas, conforme figura 14.
Figura 14: rendeiras tecendo
Fonte: João Naves de Melo

A tapeçaria em sacos de algodão tem origem regional. Para fabricação da


tapeçaria artesanal são usados sacos de algodão, onde são riscados, no avesso do tecido,
com carbono, os motivos a serem bordados. São pesquisados desenhos, cores pontos e
formas de acabamento. O bordado é realizado com lã, e os pontos mais usados são o
simples, o de escovação e o de corte.112
Diante da diversidade artesanal encontrada nas regiões que o São Francisco
atravessa, mesmo com a evolução técnica, industrial e científica, e com a propaganda
acirrada da cultura de massa para o consumo desregrado de objetos industrializados, os
quais geram alto índice de poluição ambiental, encontram-se, nesta terra, em pleno
século XXI, artesãos que ainda mantêm sua genialidade, produzindo objetos que
retratam a história e a cultura de seu povo e deles tiram seu sustento.

3.2. Artesanato: uma das maiores riquezas dos ribeirinhos do São Francisco

A cidade de São Francisco é berço de artesãos de mãos mágicas. Há vários


artesãos, comunidades que trabalham o barro com primor; o trabalho em madeira, o
bordado, e as rendas, o crochê que fazem parte da diversidade do artesanato produzido
na região. A perfeição de alguns trabalhos ultrapassaram as fronteiras do município, a
viola produzida em São Francisco, por exemplo, é comercializada no Brasil e no
exterior.
Uma arte que era repassada de geração em geração, que atravessaram tempo
e que devem, pelo bem do patrimônio cultural da humanidade, prosseguir atravessando.
O folclorista Melo retrata em “Barro” um pouco do artesanato da região:

A forma vem pelos dedos, / Fluindo sentimentos guardados; / Um pote é


mais que um objeto, / É uma vida renascida. / As mãos se aprofundam nas
locas / E na umidade sentem a veia da terra, / E dela o pulsar do sentido /
Que leva o homem às suas origens. / E tudo que nasce da massa preparada /
É a mistura dos tempos juntados; / A fusão do ontem ao hoje / Para que se
tenha o amanhã.113

112
Disponível em www.sfrancisco.bio.br. Acesso em 14/07/2007.
113
MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.
A relação do homem ribeirinho com o rio São Francisco, compreendida a
partir da cultura, leva em consideração que esta relação se constrói nos hábitos do dia-a-
dia, nas formas de percorrer e viver o espaço. No cotidiano se processa a esfera da
proximidade, da vizinhança, do conhecimento e do reconhecimento, da horizontalidade
das relações afetivas.
É na materialidade do cotidiano que existe a possibilidade concreta de
apreensão do espaço pelas pessoas. É através das ações e das possibilidades de ações
que os lugares se constroem, investidos de valor simbólico, relacionando materialidade
e subjetividade.
Este processo de estabelecimento de valor cria o sentido do espaço, cria
identidade. Os laços culturais se formam no compartilhamento de experiências diversas.
Ao longo da história, as condições precárias de vida dos ribeirinhos do São
Francisco, o analfabetismo e o espírito ingênuo característicos desta população
possibilitaram o surgimento e a perpetuação das mais variadas crendices e superstições.
Esses homens, não contando com maiores recursos para abandonarem as duras
condições de vida e tendo de trabalhar arduamente pela própria sobrevivência, projetam
seus temores na personificação de seres mitológicos.
Buscam, assim, no sobrenatural a explicação mágica dos fenômenos naturais
cuja causa desconhecem e criam, ao mesmo tempo, uma defesa inconsciente contra
esses temores. Como conseqüência das crendices existentes deriva naturalmente a
criação de práticas supersticiosas protetoras, que lhes venham confortar o espírito.

Como fenômeno social, a crendice e a superstição nas regiões do São


Francisco não apresentam fundamental novidade em relação a outras épocas
ou lugares; a diferença reside apenas em sua forma de manifestação,
caracterizada pelo fato de alguns mitos existentes serem próprios do rio São
Francisco e se relacionarem com os perigos nele encontrados pelos
ribeirinhos. Muitos são os personagens mitológicos, alguns de origem
indígena, que lhes povoam a imaginação: Goiajara, Anhangá, Angaí, Galo
Preto, Capetinha, Cavalo d'Água, Cachorro d'Água e tantos outros. Dos mitos
que habitam as águas do rio os mais conhecidos são o Bicho d´Água, a Mãe
d'Água e o Minhocão. Tais crendices têm perdurado na imaginação dos
ribeirinhos até os dias de hoje.114

Uma peculiaridade das cidades ribeirinhas é a religiosidade do seu povo. As


manifestações religiosas nas águas do Velho Chico podem ser entendidas como uma

114
BERGAMINI, José. Rio São Francisco, sua história e estórias. 1976.
forma de atenuar os momentos de angústia e desolação causados pelas cheias. As
crenças funcionam como uma espécie de guardiã do rio e dos que vivem dele.
Algumas cidades, como Bom Jesus da Lapa, na Bahia, são exemplos de uma
devoção que se confunde com capricho de sertanejo. Para rezar aos pés do Bom Jesus, o
romeiro não pode chegar lá no bem-bom, de carro, ônibus ou besta. Só vale se for a pé
ou em pau-de-arara. Quanto mais longe, melhor.

O Rio São Francisco é para as famílias que lá residem às suas margens um


fator que determina o espaço, a territoriedade de ribeirinho. As águas do São
Francisco são responsáveis por marcar as histórias de vida destes ribeirinhos,
pois, para esta população as memórias e as lembranças se constituem como
referencial. Os valores, o seu modo de vida e a forma de entendimento do
mundo são fundamentais para construção da identidade destas famílias,
contrapondo-se, na maioria das vezes, às imposições do Estado.115

Ser ribeirinho, barranqueiro do rio São Francisco é sinônimo de estabilidade


para aqueles que ali vivem. Seus valores, o modo de vida e de trabalho o modo de
perceber o mundo são passados de geração para geração.
O Vale do rio São Francisco apresenta relevante produção da cultura popular
que perpassa por diferentes manifestações. Os mitos, os causos, as danças, as carrancas,
as manifestações religiosas, o artesanato compõem o universo cultural dos ribeirinhos.

As narrativas orais das barrancas do Velho Chico constituem uma


determinada identidade para os grupos étnicos da região fixando valores
culturais, que viajam no tempo e no espaço; estão inseridos em culturas
vivas, constituindo documentos vivos (do passado) e do presente.

Apesar das riquezas culturais observadas, as mudanças no modo de vida dos


ribeirinhos do rio São Francisco, nascidos e habitantes na cidade de mesmo nome, se
fazem perceptíveis em seu cotidiano, os fazeres diários são cada vez mais impregnados
pelo conflito entre a tradição existente e a modernidade.
A construção de grandes barragens e a implantação de projetos de
agricultura irrigada de grande porte, além da construção de estradas margeando o rio a
partir da década de 1960, sobretudo na década de 1970, alteraram sobremaneira o viver
local, introduzindo novas técnicas de trabalho e relações de produção típicas da
modernidade.

115
SODRÉ, Maria Lúcia. Doutoranda em Sociologia na Universidade Federal de Pernambuco.
O tempo passa a ser ditado pelo relógio mundial, fruto do progresso técnico
(Santos, 1993), o domínio dos fenômenos pelo homem assume um papel
importante. A água do rio passa a ser considerada como um recurso a ser
explorado em prol dos grupos capitalistas, ao invés de um parceiro na
sobrevivência dos ribeirinhos.

Pode-se dizer que um processo de mudança profunda em diversos aspectos


da vida da população ribeirinha – alimentação, consumo, educação, aspirações – está
em curso, e se traduz nos seus fazeres. Este processo é vivo e presente. Não houve um
extermínio da vida tradicional pela modernidade, ainda que esta seja hegemônica,
controle as necessidades. Também não se pode dizer que a modernidade não tenha
trazido o imperativo da mudança de concepções de existência. O ritmo da mudança é
detectado na vida diária - é onde se percebe de que forma e até que ponto o novo se
impõe e o velho se destrói, ou permanece.
A entrada da televisão na vida da população é relativamente recente e tem
proporcionado série de mudanças, tanto nos hábitos, como no imaginário das pessoas.
As reuniões noturnas à luz da lua ou das fogueiras, para contar “causos”, histórias de
seres sobrenaturais, conhecidos como bichos, e contemplar a noite, são cada vez mais
substituídas pela reunião silenciosa e passiva das famílias na frente da televisão. Isto foi
acontecendo à medida em que a luz elétrica foi chegando às localidades ribeirinhas.
Ainda hoje alguns povoados – como o próprio Mato da Onça – não dispõem de
eletricidade, ainda que se localizem muito próximo à barragem que ajudou a secar o rio.
Dados do levantamento socioeconômico do São Francisco constataram há
menos de 30 anos a quase inexistência de aparelhos de televisão nas casas. Hoje, os
programas televisivos dominam conversas e atenções nos lares baixo-sanfranciscanos e
brasileiros.
É importante ressaltar que este processo de mudança, com a implantação de
parâmetros urbanos e técnicos, modernos, em detrimento de um modo de vida
tradicional, adequando-se às novas exigências da vida em sociedade, não é um fato
isolado no Vale do São Francisco. O fenômeno ocorre em muitos lugares no Brasil,
podendo ser considerado uma tendência das formas de pensar e agir, de
homogeneização dos modos de viver.
Nas palavras de MELO:

Na peleja entre a matéria e o espírito, fica no seu porto; / É o modo de cada


um ter de fazer seu mistério/mister; / E as noites cobrem as noites,
perdendo-se nos tempos, / Enquanto recolhe fatos/vida/dor/alegria, faz
história. / Ali, de raiz plantada nas pedras para não ter de sair, / Cumpre sina
de passageiro do rio na eterna missão; / Ali, plantado para não ganhar os
gerais mais além, / E perder a água do seu batismo de barranqueiro. / O
destino tem de ser o de ficar, onde foi nascido; /Ficar ali, plantado, mesmo
de querer ir descendo, / Pois que, como um angico, parece buscar o céu; / Os
pés ficam/fincam no rio, o porto de sua vida.116

Deve-se também lembrar que a resistência à ação coercitiva do capital é


também uma realidade mundial, no processo conhecido como fragmentação, pois afinal
os seres humanos têm desejos, vontades e referências existenciais íntimos e profundos
que nem sempre podem ser negligenciados.
Nesta perspectiva, os fazeres e olhares ribeirinhos, como formas de viver e
entender o mundo, estão impregnados por tradições que os ligam de forma profunda e
concreta ao lugar e à natureza, criando um sentido referenciado no passado, comum a
todos os moradores da beira do rio. Ao mesmo tempo, começam a se interessar pelo
progresso tecnológico, pelo universo urbano, em que as referências são mundiais.
Considerado um ofício à deriva, pelas mãos de Zé Pincel, figura 15, a
confecção artesanal de barcos sobrevive na cidade de São Francisco.

116
MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003, p.13.
Figura 15: Zé Pincel em seu oficio
Fonte: João Naves de Melo

José Rodrigues de Queiroz nasceu no município de Brasília de Minas em


1943, tornou-se Zé Pincel por razão que não pode precisar. Nunca soube o motivo do
apelido, pois nunca foi pintor. Diante da dificuldade de sustentar a família com a pesca
por causa do progressivo desaparecimento do pescado no Rio São Francisco assumiu a
atividade de confeccionar embarcações, sem contar com o auxílio de mestre algum.
Como ele mesmo narra a origem do seu ofício:

A gente morava na beira do rio. Há sempre uma pessoa necessitando de


embarcação e, naquele tempo, havia aqui três barqueiros: Seu Balbino, Seu
Paulo e Zé Clemente e uns outros mais. Eu fui ter com eles para que me
ajudassem a fazer um barco. Eles estavam sempre ocupados e nunca podiam.
Então, eu resolvi aprender por mim mesmo. 117

Para construir sua primeira embarcação, Zé vendeu sua televisão e com o


dinheiro comprou cedro e tamboril, madeiras que utiliza até hoje. Na beira do rio
encontrou um barco cujas dimensões rabiscou no papel. Um velho facão, um martelo e
um serrote emprestado foram ferramentas suficientes para fazer seu primeiro barco.
Desde então, Zé Pincel constrói barcos “no estilo sergipano”, barcos de seis
a oito metros de comprimento, de fundo curvo. Hoje, dispondo de mais instrumentos de
trabalho, acelerou o ritmo da produção e é capaz de finalizar um barco em quatro ou
cinco dias.
Harilson Ferreira de Souza é outro artesão que a cidade se orgulha. Natural
de São Francisco, Harilson ou Maguila, como também é conhecido, desenvolve a arte
de esculpir em madeiras há aproximadamente 20 anos. Começou sua carreira esculpindo
letreiros e com o passar do tempo foi aprimorando seu trabalho. Hoje, ele é formado em
História, professor da rede estadual e universitária. Além da paixão pela arte, o
artesanato também complementa a renda da família. Suas obras ganharam espaço em
todo Brasil e também no exterior. Já esculpiu cerca de 300 quadros com grande
variedade de motivos, sendo o regionalismo, o mais presente. “O mundo tem muito a
aprender com modo de viver do barraqueiro e do sertanejo. Solidários, cordiais e
serenos, faz da dureza da vida uma oportunidade para dividir os problemas e vivê-la
com satisfação.”
Este universo foi a fonte inspiradora de quadros de pescadores, lenhadores,
bois, cavalos, santos, carrancas, barrancas e outras mais. Observe a figura 16.
As principais madeiras utilizadas são: o cedro e a cerejeira. Como
ferramentas ele utiliza serrote, martelo, estilete, faca e alicate.

117
José Rodrigues de Queiroz, vulgo Zé Pincel.
Figura 16 : Quadro da Santa Ceia
Fonte : Harilson Ferreira de Sousa

Na margem oposta à cidade de São Francisco fica Bom Jardim da Prata. A


localidade, quando descoberta, também revela tesouros preciosamente guardados na
memória de seus habitantes.
Trazida da Europa por colonizadores portugueses, a renda de bilro se
desenvolveu em comunidades ligadas a rios e mares, especialmente onde é intensa a
prática da pesca. “Onde há renda há rede”, diz o ditado popular, e assim ela está
presente em Bom Jardim da Prata.
A canção que fala da renda e do amor, conhecida em todo País, também se
faz presente na voz das rendeiras desse pequeno povoado, cujas casas, dispersas pela
área rural fronteira ao rio, o tornam quase imperceptível, não fossem a escola municipal
e a igreja de São Sebastião, locais em que pulsa a vida social. Os últimos versos
enriquecem a canção revelam a especificidade que abriga. Trata-se da renda de bilro,
birro como registra o falar regional. Observe a cantiga popular conhecida no universo
das rendeiras:

Olê muié rendeira / Olé muié rendá / Cê me ensina a fazer renda / Que eu te
ensino
namorá / Fazê renda é trocá birro / Namorá é só piscá.
(Cantiga Popular)

Trocar bilro. Assim se expressam as rendeiras ao se referirem ao ato de


entrelaçar fios de linha para criar rendas. A expressão advém do instrumento que
utilizam, o bilro, pequena peça de madeira em forma de fuso, composto de duas partes:
o cabo em que se enrola o fio, e a cabeça, que no local é formada pelo coco (semente)
do buriti. Completam o instrumental de trabalho a almofada (daí a renda de bilro ser
também conhecida como renda de almofada, feita de um saco recheado por palha de
milho, bananeira ou capim); o papelão, tira de papel grosso que é “pinicada”, isto é,
perfurada com o desenho a executar; e alfinetes para guiar as linhas que formam o
desenho – no passando, no “tempo velho”, como é dito, utilizam-se espinhos de palma
ou mandacaru.
Flaviana, Olímpia e Zulmira são as guardiãs da memória local e preservam o
conhecimento acerca da arte de rendar, aprendida por volta dos 13 anos de idade, com
mães e avós, no seio da família, conforme figura 17. A atividade era parte do processo
de socialização da mulher para os misteres da vida e assim, por ali, toda menina
aprendia a trocar bilro. Era também uma maneira de passar o tempo, “não ficar
pensando em namoro”.
Uma vez adulta, cabia à mulher conduzir o ofício feito nas horas livres do
dia, geralmente à tarde, após cumprir com as demais obrigações com a família e a casa.
À noite, não se fazia renda, pois à luz de candeeiro era grande o risco de trocar s bilros e
errar o ponto.

Figura 17: rendeiras


Fonte: João Naves de Melo
A prática tornava hábil a mulher no lidar com os bilros, que poderiam somar
até 12 pares. Manusear tantas peças a um só tempo a tornava uma mestra, competente,
capaz. Da quantidade de bilros dependia a largura da renda a ser executada. Quanto
maior o número empregado, mais larga a peça a ser feita e mais complexo o desenho
realizado. E dessa maneira se desenvolvia a arte que ela levaria por toda a vida, até a
morte.
Prescrito mesmo só o período de gravidez, devido à crença de que trançar
fios e dar-lhes nós poderia estender-se ao cordão umbilical e às tripas da criança,
causando sua morte.
Assim se passava o tempo. No costume de trocar bilros para enfeitar as
anáguas e camisas, que se sobrepunham por debaixo do vestido para impedir as
transparências, nos lençóis, nas fronhas, nas toalhas de mesa, nos panos de igreja.
Com o passar do tempo foram-se várias tradições e surgiram novas maneiras
de viver. Chegaram a escola, a luz elétrica, o rádio e a televisão. Novos hábitos, novos
modos de preencher o dia a dia, novas modas. A indústria trouxe outras rendas, feitas
aos metros por segundo, mais fáceis de conseguir, mais baratas de comprar. Ampliou-se
o mercado de trabalho par a mulher com atividades consideradas mais compensadoras.
Às jovens já não mais interessava trocar bilros. E a renda desapareceu da localidade.
Mas, a oficina de resgate de ofício, realizada em 2005, numa pareceria entre
SEBRAE e a Secretaria de Estado de Cultura, reaviou o cantar dos bilros na localidade.
As antigas rendeiras repassaram seus conhecimentos às jovens aprendizes, trazendo a
certeza da continuidade de sua arte e da cultura popular da região.
A construção de violas, violões e rebecas, também é ponto forte no
artesanato da cidade de São Francisco.
Minervino Gonçalves Rodrigues Guimarães, figura 18, nasceu em Angical,
município de São Francisco. Tem 78 anos e constrói instrumentos desde os dezoito anos
de idade. Toca viola e rebeca. Começou a tocar por influência do avô e seguiu seu
aprendizado sozinho. Aprendeu a construir instrumentos pela dificuldade de se comprar
um pelas redondezas.

Isso é porque a gente comprava num homem lá fora, retirado daqui a cinco
léguas. Então eu fui lá comprar a viola na mão dele. Chegando lá, ficava
dois, três dias esperando ele acabar de fazer para eu trazer. 118

118
Sr. Minervino Gonçalves Rodrigues Guimarães, in TOCADORES. Curitiba : Jangada Brasil, 2002.
Figura 18: Seu Minervino
Fonte: Arquivo pessoal

Augusto Ribeiro, conhecido por Nego de Venança, nasceu em 1936 em


Vargem de Casa, Município de São Francisco. É tocador de violão, sanfona, viola e
rabeca, e também constróis e conserta instrumentos em sua oficina.
Cansado de batalhar de sol a sola na lavoura, seu Nego fez seu primeiro
instrumento por volta de dezoito a vinte anos de idade. a arte de construir instrumentos
foi herdada do pai e de um dos irmãos mais velhos, também não teve mestre. “E
começando, aprendi, sem mestre nenhum. É sangue da família”.119
Artesãos como Seu Minervino, Nego de Venança, Zé Pincel, Harilson e as
rendeiras são mestres neste ofício e comercializam sua arte por toda região, e alguns no
âmbito nacional e até mesmo internacional. A genialidade dessa gente produz objetos
que retratam a história e a cultura de um povo, e ainda, traz a oportunidade de exercer
uma profissão, promovendo a melhoria da qualidade de vida pelas próprias mãos.
O resgate do artesanato e sua utilização como atividade econômica pode ser
uma forma de desenvolvimento social e econômico da população São Franciscana. A

119
Sr. Augusto Ribeiro, vulgo Nego de Venança, in TOCADORES. Curitiba : Jangada Brasil, 2002.
exemplo dos artesãos citados anteriormente, outras pessoas podem através de oficinas,
aprender um ofício e gerando mais renda e mais qualidade de vida.
Contudo é preciso orientar os novos artesãos estejam atentos à necessidade
de se organizarem em associações ou cooperativas, para que, juntos, possam produzir e
vender, obtendo renda digna para sua manutenção; é importante que não se deixem ser
explorados por atravessadores e exijam do poder público os seus direitos de produção e
escoamento dos produtos.
A criação de oficinas para passar às novas gerações o modo do fazer é
fundamental para que o artesanato de São Francisco continue rico e forte. Pois, manter a
sobrevivência cultural do seu povo, com a corajosa dignidade do residir, do resgatar
valores para um mundo novo é iniciativa importante não somente como ação cultural
mas também como gesto relevante significação social, pois além de garantir a
preservação de ofícios e expressões em risco de desaparecimento, fixa as comunidades
o valor dos mestres e seus saberes.

3.3. Carrancas: cultura e economia para os ribeirinhos do São Francisco

O termo “carranca”, cujo uso difundiu-se mais recentemente, refere-se


também às antigas figuras de proa, mas diz respeito, sobretudo, ao artesanato, que,
seguindo a tradição das esculturas em forma de monstro, serve na atualidade para
decorar residências e escritórios. Foi utilizado pela primeira vez pelo viajante Durval
Vieira de Aguiar nos anos 1880, para designar as figuras de barca do Rio São
Francisco.120
As carrancas – uma das mais genuínas e enigmáticas manifestações da arte
popular brasileira – mesclando detalhes humanos com os de animais, destes sobretudo a
generosa cabeleira à semelhança de uma juba de leão, apresentam em geral uma
expressão de ferocidade. São feitas de um único tronco de madeira e retratam apenas a
cabeça e o pescoço de alguma figura mitológica indeterminada.
As carrancas podem ser observadas nas figuras 19 e 20, na página seguinte.

120
NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.
Figura 19: Carranca Figura 20: Carranca de proa de
barco
Fonte: www.embramic.com.br Fonte:
www.40graus.com/turismo

Ligada diretamente aos barqueiros do rio São Francisco, desenvolveu-se na


região uma arte própria e os artistas populares denominados carranqueiros, apoiados na
idéia de esculpir um enfeite de proa, criaram soluções plásticas próprias, de elevado
conteúdo artístico e emocional, provocando verdadeiro impacto.
As carrancas são esculturas de madeira que eram colocadas quase que
obrigatoriamente nas antigas 'barcas do São Francisco, que se traduzem como poderosos
monstros que espantam os maus espíritos das águas, principalmente o lendário Caboclo
D' Água, conhecido pelos ribeirinhos como o nêgo traquino, virador de canoas.
Dentre os artistas carranqueiros, destacou-se Francisco Biquiba Dy Lafuente
Guarany121. Nascido na Bahia, em 1884, esculpiu, em mais de 50 anos de trabalho, uma
enorme quantidade de peças revelando refinada sensibilidade e criação de soluções
originais para as figuras antropomórficas. Sua primeira carranca foi esculpida em 1901
121
RIBEIRO, Nurimar. O direito à memória; o vale do São Francisco e sua história. Brasília, Codevasf,
1999.
e Guarany atribuia a cada peça um nome original e próprio, ora baseado em animais
pré-históricos, ora na mitologia indígena ou apenas em sua imaginação. Guarany é, sem
dúvida, o único profissional no gênero, pois a produção de carrancas permaneceu
atividade constante ao longo de sua vida - outros artistas, com peças de valor artístico,
não viveram exclusivamente deste trabalho como Guarany.
Utilizadas como elementos de decoração ou figuras de proa por um período
de menos de um século, as carrancas popularizaram-se, constituindo-se manifestação
artística excepcional. Hoje, já não se encontram mais nas proas das embarcações do São
Francisco, mas sem dúvida, transformaram-se em disputados objetos de decoração,
fazendo parte do acervo de museus brasileiros e do exterior e como peças de
comercialização para turistas, o que tem o mérito de mantê-las vivas na cultura
brasileira.
Acredita-se que as carrancas tenham sua origem em ornamentos usados nas
embarcações da Assíria, Fenícia e Egito em eras remotas, de muitos séculos, que de
forma majestosa eram colocadas na proa dos navios e galeras, conhecidos como figuras
de proa.
Para Paulo Pardal, autor da mais completa monografia sobre essa arte
popular do São Francisco, as carrancas tiveram origem por motivos de prestígio e
indicação de propriedade, por imitação de carrancas antropomorfas, vistas por algum
fazendeiro do São Francisco, em navios aportados no Rio de Janeiro ou em Salvador.
Para que, ao longe, os ribeirinhos identificassem a barca pelo busto de seu poderoso
proprietário à proa. De ornamento das barcas passou-se também a atribuir a essas
curiosas figuras de proa a função mágica de afugentar maus espíritos – atribuição
devida não só a uma pequena minoria de ribeirinhos, pois a maioria dos barqueiros
prefere desconhecer semelhante opinião, mas também a narradores fantasiosos, que
encontraram na função totêmica uma fácil explicação para a obscura origem de tal
manifestação espontânea da arte popular.
As carrancas do São Francisco constituem, como bem observa Paulo Pardal,
uma manifestação artística coletiva, com caracteres comuns, respeitadas a
individualidade de cada artista, como não se encontra em nenhum outro local ou época.
Fruto da criação de uma cultura e de uma região isoladas do resto do País e do mundo,
cujos artistas populares, a partir da idéia de esculpir uma figura de proa, criaram
soluções plásticas próprias, de elevado conteúdo artístico e emocional, que provocam
um verdadeiro impacto.
A carranca é parte do mitológico / Que viaja o rio em busca de um porto; /
É a segurança do marinheiro e viajor / Nas longas e perigosas travessias. /
A canoa leve, forrada de curimas e pintados; / O barco fornido, quase
fazendo água,/ Abarrotado de abóbora, melancia, milho e feijão. / A viola,
rabeca, violão ou caixa do folião; / Neste porto a vida passa pela madeira: /
Imburana, cedro, pau d’arco, jatobá, e... / O formão e o malho escrevem
histórias.122

122
MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.
A gente tem que sair do sertão! Mas só se sai do sertão é
tomando conta dele a dentro.
(Guimarães Rosa)
CAPÍTULO IV – TURISMO E CULTURA DO RIBEIRINHO
DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO

4.1 O Turismo no Alto-Médio São Francisco

A atração dos moradores das grandes cidades pelas paisagens litorâneas é


um fenômeno bastante comum. Especialmente porque a barragem dos rios e os lagos
artificiais criam atrações recreacionais e uma série de outras atividades náuticas
impossíveis de ser encontradas em áreas urbanas. Sendo uma das regiões onde esse tipo
de fenômeno ocorre, o desenvolvimento do turismo nos municípios da região de estudo
apresenta certa homogeneidade.
Em São Francisco, a principal atração dos turistas é o rio. Além da pesca e
dos passeios em barcos, especialmente adaptados para transportá-los, os turistas têm à
disposição restaurantes e lojas de artesanato.
A maior diferença encontrada entre o município de São Francisco e os
demais é a existência de uma estrutura temporária, especificamente montada para a
recepção de turistas que, tradicionalmente, visitam a cidade nessa época. Compreendido
entre os meses de julho a outubro, esse período de alta temporada ocorre devido à
estiagem, que faz baixar o nível das águas do rio São Francisco e abre um espaço
conhecido como prainha. Nesse local, são montadas barracas e equipamentos de lazer
em que sobressai o oferecimento de refeições à base de pescado, como mostra a figura
21 na página seguinte.
Figura 21: Praia em São Francisco
Fonte : João Naves de Melo

Para os turistas, a maior reclamação é quanto à simplicidade do local que,


segundo os depoimentos colhidos, deveria receber atenção maior por parte dos órgãos
públicos para se tornar mais atrativo, como se percebe pela fala de um deles:

Ainda tem que melhorar muita coisa, porque é tudo simples demais. Eu sei
de muita gente que não vem por causa disso. Eu estou falando de hotel,
transportes, para passear pelo rio, pois, os barcos que servem para isso são
muito rústicos. Pelo menos para locação. Existem pessoas que gostariam de
uma coisa melhor, mais bem preparada. Isso traria desenvolvimento para a
cidade.123

À disposição desses turistas encontra-se rede hoteleira ainda em


desenvolvimento e comércio simples, concentrado no centro da cidade.
O setor mais explorado é o de alimentação com restaurantes e quiosques
que, como os da maioria na região, também têm na culinária do pescado sua principal
atração. Por isso, para os pescadores profissionais, a forma de aproveitar a presença dos
turistas é comercializando o peixe para os restaurantes, hotéis e para os próprios turistas.
A água do rio atrai turistas diversos, tanto de uma faixa etária mais jovem como de
pessoas com a idade mais avançada, com preferência pela pesca amadora, mas também
pelo uso de lanchas mais potentes, ou seja, o espaço da água atrai pela oportunidade de
praticar esportes.

123
Júlio B. Piovezan, professor em Brasília-DF.
Para quem vive da pesca, as formas hegemônicas de lazer, até pouco tempo,
não faziam muito sentido, isto é, o lazer moldado pelo mercado. Para eles, assim como
ocorre com outras comunidades que têm seu meio de subsistência vinculado ao tempo
da natureza, o lazer se apresenta, muitas vezes, como ações de revalorização do trabalho
e, por isso, é uma atividade social em que podem se reunir para cantar, realizar festas
religiosas ou comemorar o sucesso da colheita ou, nesse caso específico, da boa
pescaria. O uso dos ambientes naturais para formas exclusivas de lazer, como pesca
amadora e esportiva, natação, mergulho e outras atividades é uma ação exclusiva dos
turistas.
O convívio com o turista, entretanto, reforça, no pescador profissional e em
sua família, a necessidade de mudança de seus costumes, o que é intensificado pela
renda cada vez mais escassa que obtêm na comercialização do pescado. É o início do
fim de algumas tradições, dentre elas as relacionadas às formas de lazer tradicional, até
então praticadas.
Perante o forte contraste provocado pela ostentação dos que usufruem do
espaço no seu tempo de não-trabalho e a penúria dos que precisam do espaço como
fonte de trabalho, fica evidente que as finalidades modernas de uso dos rios são
priorizadas nas decisões políticas.
Não é exagero afirmar-se que o pescador profissional poderá apresentar,
dentro em breve, uma combinação de costumes que mudará sua relação com o lazer,
substituindo, progressivamente, a participação nas festas comunitárias e familiares para
uma vida consumista.
Desde que a sedução, especialmente dos mais jovens, pelo estilo de vida
urbano se amplie e se confirme, decretar-se-á o início do fim de possíveis ações,
comportamentos e instituições que valorizem o trabalho de pesca, que reafirmem os
direitos sociais e de cidadania desse trabalhador. A tendência é que se tornem meros
espectadores da ocupação do rio pela indústria do lazer, da morte do rio e de sua cultura,
pois que “confrontam” os costumes locais com juízos de valor que são negativos à sua
forma de viver. Consolidam-se, então, posturas de aceitação passiva das perdas:

Existem certos lugares onde não se pode mais pescar, pois já foram
descobertos pelos turistas. Antes o Ibama protegia por causa do nível das
águas e de outras coisas, como preservar os peixes (...) Agora é preciso deixar
de fora do roteiro alguns lugares. 124

O fato de se apresentar como investimento lucrativo e de grande e


diversificada demanda deixa pouca margem para que se façam críticas negativas em
relação à exploração do turismo. Dentre os argumentos favoráveis está a idéia de que é,
por si só, um negócio potencialmente sustentável. A sustentabilidade do turismo
apoiado, dentre outros, na fruição do ecossistema aquático como forma de obtenção de
lucro deverá, para ser seguramente rentável, preservar sua fonte de riqueza. Entretanto,
se o lucro for pautado na fruição da natureza por grande número de pessoas, sabe-se que
a atividade terá fim pelos danos ambientais decorrentes. Ou seja, mesmo considerado
por muitos como um dos mais promissores negócios do fim do século XX e mesmo que,
de fato, apresente grandes possibilidades de retorno financeiro e de empregabilidade,
não há como ignorar o lado negativo. Todo avanço econômico vem acompanhado de
vantagens para o setor de serviços e comércio, assim como para a infra-estrutura em
geral, mas também traz desvantagens sociodemográficas como insegurança social,
poluição, degradação da natureza, dentre outros.
Em última análise, as prováveis riquezas decorrentes de investimentos
turísticos são alternativas que colocam em grande vulnerabilidade as relações sociais e
bióticas que ocorrem tradicionalmente nesses ambientes e, portanto, só deveriam ser
estimulados se, antes de mais nada, correspondessem aos anseios da população
envolvida e passassem por um sério planejamento do uso sustentável do ambiente.

4.2 Cultura e folia na cidade de São Francisco

Beijemos, beijemos, beijemos meus irmãos. / Vou beijar o Menino-Deus,


com o joelho no chão. / Beijemos, beijemos todo mundo com alegria. / Vou
beijar o Menino-Deus, filho da Virgem Maria. (bis)125

Compreender o que seria cultura tem sido, nos últimos dois séculos, um dos
principais anseios dos antropólogos. Segundo estudiosos, que vêm se dedicando à
análise e compreensão desse assunto, a busca de uma definição do termo cultura vem

124
José Maria Alves Filho, pescador.
125
Folia de Reis de João Raposo – São Francisco; Hora de Beijar no Altar.
desde Tylor (1832-1917), que a caracterizou como um todo complexo que inclui
conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade e
hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.
O conceito de cultura tem sofrido ao longo do tempo diversas conotações,
adaptadas às distintas correntes antropológicas que foram se constituindo no decorrer da
história.
Se pensarmos numa definição mínima de cultura como conceitos e
comportamentos apreendidos e se a entendermos como um grande código, comum a um
determinado grupo e/ou contexto, podemos afirmar que ela é o fator determinante para a
concretização de todo processo que envolva relações sociais. Nesta perspectiva,
tratamos nesse estudo de um dos aspectos comuns a todo e qualquer contexto cultural
— a música — buscando entender como ela se configura no processo de comunicação
dentro de um determinado grupo social.
Para Emile Durkheim: “Na medida em que participa da sociedade, o
indivíduo naturalmente ultrapassa a si mesmo, seja quando pensa, seja quando age”.126
Pode-se então pensar no folclore brasileiro a partir da sua diversidade e da riqueza de
hábitos, costumes e criatividade original, oriundos das diversas etnias constituintes da
formação da população brasileira a partir das matrizes: européia; africana e indígena.
A cultura mineira compreendida a partir dessa diversidade pode ser
vislumbrada pela sua fácil difusão oral e, no caso do Norte de Minas, pela sua
simplicidade plástica e envolvimento rítmico.
O pescador do São Francisco, homem simples, mas de muita cultura, busca
nas festividades sua forma de lazer.
As festividades (qualquer que seja o seu tipo) são formas primordiais
marcantes da civilização humana. Não é preciso considerá-las nem explicá-las como um
produto das condições e finalidades práticas do trabalho coletivo nem, interpretação
mais vulgar ainda, da necessidade biológica (fisiológica) de descanso periódico. As
festividades tiveram sempre um conteúdo essencial, um sentido profundo, exprimiram
sempre uma concepção do mundo.127

126
DURKHEIM, Emile. 1858-1917. As Formas Elementares da Vida Religiosa: O Sistema Totêmico na
Austrália. Tradução, Paulo Neves. - São Paulo: Martins Fontes, 1996.
127
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. 3 ed., Brasília. São Paulo: Editora da UNBHuciet, 1993.
Analisar com um olhar histórico a população que habita os sertões do Brasil
requer cautela para não cometer equívocos ou preconceitos acerca de suas percepções
frente à realidade na qual está inserida.
Dentre as atividades praticadas pelos moradores de São Francisco,
culturalmente consideradas, será tratada aqui de uma arte herdada dos costumes
ibéricos. Seguramente é a festa com aspectos mais característicos do sertanejo por
exprimir seu espírito, a tradicional “Folia de Reis”.
Essa mentalidade comum, mas repleta de variantes, é percebida no prefácio
128
da obra “Folia de Reis: Festa Raiz” de Miguel Mahfoud , numa passagem que
apresenta o sentido principal deste estudo, ainda que em realidade espacial e descrita
por óticas diversas. A saber:

O sujeito da experiência (...) não é nem o sujeito que se contém em si


mesmo, determinado por sua própria estrutura, nem o sujeito assujeitado
pelas determinações sociais. Trata-se, sim do sujeito que ativamente
constrói; e reconstrói o significado de sua experiência, a partir dos
sentimentos e cognições multifacetadas, cuja Análise exige a maestria de um
domínio interdisciplinar.129

João Botelho Neto em sua obra Imagens Sertanejas relata: “Assim, os


sertanejos do cerrado tinham um “modus-vivendi” diferente do barranqueiro do rio São
Francisco e do catrumano das caatingas e das matas130. Relações sócio-culturais
diversas, mas que se une a partir de ritos e folguedos tradicionais na região são sintomas
de uma mentalidade homogênea e fruto de festividades agregadoras de todos os povos
presentes.

4.2.1 A Folia de Reis

A cultura é compreendida como todas as atividades sociais fruto da ação


humana, com suas peculiaridades, e com o desenvolvimento de suas várias faces.
José Luís dos Santos131, referi-se a cultura como:

128
Regina Helena de Freitas Campos, In: MAHFOUD, 2003.
129
Regina Helena de Freitas Campos, In: MAHFOUD, 2003.
130
BOTELHO NETO, João. Imagens Sertanejas, 2002.
131
SANTOS, José Luiz dos. O Que é Cultura. 16ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.
Grau de escolaridade; manifestações artísticas; intensidade de informação;
freqüência em cerimônias; festividade tradicional; mito popular; costumes,
entre outros. Para o autor a cultura popular, ou antes, o folclore, dispensa
qualquer elaboração ou reconhecimento científico para se desenvolver e
existir a seu tempo. Sempre que hábitos e costumes se desenvolvem a partir
da população, tende-se a permanecer e se estender para além das fronteiras,
envolvendo povos de diversos costumes, que acolhem esses hábitos, dado ao
penhor sentimental contido em tais manifestações.

A Folia de Reis se destacou como expressão da cultura no Norte de Minas,


desenvolvendo-se desde os primórdios do catolicismo, e se firmando nas mais diversas
regiões, no decorrer dos séculos e com uma plasticidade incrível; afinal a cristandade
ocidental é especialista na arte de ampliar e propagar seus rituais sagrados.
A partir de relatos bíblicos do evangelista São Mateus, acerca dos reis
magos que visitaram o Menino-Deus132, criou-se toda uma encenação mística,
estipulando dados que se adaptaram aos quesitos de um evento; quando o número de
reis magos dado por pinturas e documentos antigos apresentam dois, quatro, seis e até
mesmo doze personagens.
Conforme Antônio Henrique Weltzel:

Fixou-se três, talvez pelos presentes: ouro (porque Jesus era rei), incenso
(porque Jesus era Deus) e mirra (porque Jesus era homem), ou então por
representar ele as três raças oriundos dos três filhos de Noé (Sem, Caim e
Jafé): os Semitas, habitantes do Oriente, que compreendem hebreus, assírios,
aramaicos, fenícios e árabes; os camitas, habitantes da África e da Ásia
Ocidental; os Jaféticos, povoadores do planalto central asiático e parte da
Europa, também chamados de arianos ou indo-europeus.133

Weltzel afirma que, seus nomes foram mencionados pela primeira vez a
partir do século VII na biblioteca de Paris, Melquior (Belchior-Brechó), trouxe ouro;
Gaspar, trouxe mirra; Baltazar, trouxe incenso. Foram descritos pelo sábio são Beda, o
Venerável, como sendo:Brechó, um velho de barbas longas; Gaspar, jovem rúivo,
Baltazar era negro de barba cerrada. Mas cultivou-se a confusão sobre suas reais
aparências, e a folia de reis argumenta que isso era mais uma façanha para enganar
Herodes 134.

132
BÍBLIA SAGRADA (MATEUS Capítulo 2 Versículo 1-12)
133
WEITZEL, Antônio Henrique. “Folia de Reis” In: Comissão Mineira de Fo1clore (CMFL), 2002.
134
RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão
Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.
Embora São Cesário atribua no séc. VI, aos Reis magos, títulos de santos e a
tradição os acolha como verdadeiros monarcas, somente no séc. XII são cultuados como
santos. No século IV seus corpos foram trasladados da Arábia para Constantinopla e de
lá, para Milão e, no ano de 1161, para Colônia na Alemanha, e por isso, a festa da
trasladação de suas relíquias é ali comemorado no dia 23 de julho. No dia 6 de janeiro a
Igreja comemora a festa da Epifania do Senhor que quer dizer aparição, manifestação de
Deus através dos três reis.
Na Europa, esta religiosidade animada ganhou terreno, principalmente na
Península Ibérica a partir do século XIII. Há relatos de versos do poeta português Gil
Vicente em sua tragi-comédia, “Triunfo do Inverno” segundo Tinhorão, 135, enfatizando
a super freqüência da arte no reino:

Em Portugal vi eu já em cada casa pandeiro, e gaita em cada palheiro. E de


vinte anos a cá ha ni gaita nem gaiteiro. A cada porta hum terreiro, cada
aldeia dez folias. Cada casa atabaqueiro: e agora Jeremias he nosso
tamborileiro.

A partir daí, desenvolveu-se e aperfeiçoou instrumentos musicais sob


noções árabes, os quais se aplicam ao evento. Portanto, compreende-se que os
portugueses tenham vivido para o Brasil com uma bagagem repleta de instrumentos e
entusiasmo e que logo imprimiram tal cultura, uma vez que a folia expressa com tanta
precisão, o espírito de boa parte do povo brasileiro.
Na região nordeste do Brasil organizou-se e denominou-se de reisado,
homenageando santos específicos (folia de São Sebastião; São José; Sr. Bom Jesus e
outros) e tais tendências envolvem o Norte de Minas Gerais por tratar de um evento que
ocorre em várias datas do ano e por apresentar diferença entre cada celebração,
considerando-se os cantos de saudação, e indumentárias simbólicas. Mas aqui na região
Sudeste denomina-se ternos de folia e são mais conhecidos pelos nomes de seus
“cabeças”. (folia de João Raposo; folia de Martinho; folia de Adão Barbeiro e outras)
136
.
Torna-se necessário enfatizar as diversidades entre as regiões, e até mesmo
entre grupos conterrâneos; onde não há regras estabelecidas acerca do número de
membros (5, 8, 12, 15, 20...), ordem de apresentação, indumentária mais ou menos

135
Gil Vicente, 1529 apud TINHORÃO, 2000.
136
RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão
Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.
colorida, instrumentos utilizados e nem mesmo quanto às datas mais comemorativas da
Igreja. Portanto, durante todo o período Colonial, houve intensa festividade deste
gênero no litoral e interior brasileiro.
Com o processo de independência do Brasil, percebe-se alterações no
padrão de comportamento nas classes brasileiras, e com isso, práticas culturais, ás
vezes, se invertem. Muitas vezes suprimem-se determinadas danças por gerações.
Há variados tipos de danças que reproduzem a musicalidade, algo que
parece próprio do povo na região de São Francisco, são os ternos de dançadores do
lundu, caninha verde, e Dança de Fita. Além do São Gonçalo, As Pastorinhas, o
Carneiro, o Rei dos Cacetes (temerosos), dentre outros do gênero, assuntos que serão
tratados posteriormente.
Os grupos existentes em cada um desses universos apresentam
particularidades significativas, fazendo dessa manifestação um complexo e
diversificado campo de saberes expressados, sentidos e percebidos através da música,
da dança, da religiosidade e de todos os demais fatores que constituem os seus contextos
culturais.
Na região central de Minas Gerais, ocorrem festas como a “Folia do Divino
Espírito Santo”, pouco praticada no Norte de Minas, que é festejada com fogos, mesa
farta, procissões, cantos e danças e os protagonistas ( ... ) rezam nas casas e se coroam.
Todas essas formas de manifestações populares, além de exprimir uma inegável
religiosidade, mostram o que Carlos Rodrigues Brandão 137 bem colocou:

A celebração piedosa de “nós mesmos” através de nossos santos e


padroeiros, revividos como folguedos modernos de afirmação de “nós
ainda”, através do que produzimos e ostensivamente mostramos a nós e a
todos; as mesmas divertidas situações de trocas mansas, solidárias, ou de
competição ativa; a mesma farta orgia do comer e beber e as mesmas buscas
do outro, onde os desejos do amor e do prazer entre homens e mulheres
agora se escondem menos e já não sei sublimam tanto mais. Narciso muda
de roupa mas não de cara.

Isso reflete a já referida plasticidade de uma cultura proveniente da Europa


de origens orientais, mas que se adaptou com uma compatibilidade incrível a regiões tão
peculiares como a longínqua cidade de São Francisco, e que, muito embora· não tenha
perdido os traços mais tradicionais desse costume, vem sofrendo transformações no

137
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Cultura Na Rua. Campinas: Papirus, 1989.
transcurso dos séculos, buscando vivificar o trajeto e os costumes dos primórdios da
cristandade.
A busca racional de adaptação do evento à realidade educacional e
mercadológica atual, através da apropriação pelas instâncias: Estado, Escola e Mídia,
mediante cuidados imprescindíveis, enriquece e reproduz esta tradição. Não se sabe
exatamente quando de sua iniciação como evento festivo, mas sabe-se que já no século
XVI, era de freqüência notável em Portugal.

4.2.2. A Folia em São Francisco

Na aurora do século XX é que se constatam as primeiras manifestações de


folia no perímetro urbano da cidade de São Francisco e concomitantemente aos
primeiros grupos de folias a que se tem registro nesta região, tem-se também a presença
de artesãos como Juca Bicota, produtor de violas, que faria notáveis discípulos como
seu filho Joaquim Bicota e o atual artesão Seu Minervino.138
Acontecimentos no mínimo bizarros são mencionados na obra de
“Brasiliano Braz”139, acerca dos primeiros ternos de folia e sua disseminação na área
urbana. Este autor refere-se aos reisados de São Vicente, que foi o precursor nos
primeiros anos do século, sob proteção do padre local; e a partir de 1910, dado a um
desentendimento entre o padre e seu sacristão, este cria o Reisado de São José, ficando
eles oponentes entre si.
No período entre o natal e ano novo, ocorriam os ensaios para os seis dias
até a Epifania. Nestes dias, saíam sempre à noite e visitavam todas as casas possíveis.
Sempre recebiam doações para a festa do dia seis. Nas seis noites que percorriam a
cidade, tentavam apresentar no máximo de casas possível, com permanência em cada
casa de cerca de uma hora. Diferentemente dos contemporâneos ranchos como o das

138
RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão
Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.
139
BRAZ, Brasiliano. São Francisco Nos Caminhos da História. São Francisco: Lemes, 1977.
Pastorinhas que escolhiam antecipadamente seis casas (uma para cada dia de 1 a 6 de
janeiro), onde fariam um belo sarau depois de perambularem pelas ruas nas primeiras
horas da noite, observe a figura 22.

Figura 22: Foliões em São Francisco


Fonte: João Naves de Melo

Afirmar, ou, atrever-se a registrar todos os grupos de folia em São


Francisco, requer empenho e pode ser um projeto audacioso, pois o município é
composto de mais de 130 comunidades rurais, organizadas em associações
comunitárias. Apesar disso, não é absurdo mencionar que haja próximo de cem ternos
de folia neste município, dada a proporção notificada nas regiões levantadas a fim de
desenvolver este trabalho.140
No norte de Minas, mais precisamente na região de São Francisco, não se
reconhece o festeiro como folião do ano, mas como imperador. São tantos os ternos de
folias que todo o seu conteúdo material e imaterial e a fertilidade do imaginário local
alimentaria vários números de pesquisas, trazendo todas novidades, lendas, crenças,
testemunhos, experiências, relatos, músicas, versões acerca da origem da folia, danças,

140
RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão
Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.
denominações, estruturas e técnicas de produção instrumental ainda desconhecidas.
Sendo todos, elementos da cultura de resistência.
A primeira voz é feita pelo guia ou puxador de reis, seguida pelo ajudante
de guia; estes são respondidos por outra dupla; segmento é a seqüência de versos
cantados e repetidos ou respondidos que costuma chegar a 25 versos; organizados em
manuscritos denominados “tabela de folia”. Existem cantos para muitos santos da Igreja
Católica, pois pode sair folia em qualquer dia do ano e sempre é feita a saudação
referente ao santo.
Quem acolhe a folia em sua casa e é tido dono da promessa é o imperador
ou mordomo, sua mulher é a imperatriz, aqui chamada de imperadeira, geralmente, são
quem elaboram o itinerário da folia, convidam e tratam dos visitantes e dão toda
assistência necessária no transcurso do evento. A presença do palhaço não é comum nas
folias de São Francisco, mas pode haver ternos que atribua esta função ao bandeireiro.
No entanto, a posição de bandeireiro requer a maior seriedade possível, visto que ali,
carrega-se uma imagem de grande devoção.
O processo de produção artesanal e utilização de instrumentos musicais a
partir da matéria-prima local e do conhecimento de seus dependentes que são
verdadeiros mestres artesãos, com grandes talentos e pouca evidência. São estes
músicos e artesãos, artistas na essência da palavra. Vêm ultimamente, sendo descobertos
e tendo seus talentos merecidamente reconhecidos. Às vezes, convertendo seus esforços
e conhecimentos em meios de capitação de renda, melhorando assim, suas condições de
vida, geralmente simples e desprovida de riquezas materiais. Relatos de foliões como o
sanfranciscano João Ferreira de Sousa (João da Viola) em estudos afins, apresentam o
estilo da folia em meados do século XX, onde afirma que nesta região, os instrumentos
de corda como viola; violão; cavaquinho; bandolim. Eram predominantemente usados,
visto que não se empregavam caixa, pandeiro e outros de percussão. Para o livro,
Tocadores141, foi colhido o seguinte comentário do folião e artesão sanfranciscano:

Eu era minino nesse tempo, eu estou com 61 anos, eu era molequinho assim,
lembro. Fazê uma festona assim, de folia, fazia só com instrumentos
cordiais, viola, violão, cavaquinho, bandolim... Só esses instrumento. Caixa,
pandeiro, num tinha, num usava. Não existia nem sanfona. Quando existiu
sanfona era sanfoninha oito baixo. Era só instrumentos cordiais, só viola. Ali
juntava umas quatro, cinco viola, um violão, pra fazer aquela farra. A turma
dançava até inchar o pé.

141
João da Viola, Seco apud. CORRÊA, 2002, p. 253
A folia de caixa é a mais presente na região, pelo seu caráter permanente e
predominantemente rural, constitui-se, de vários foliões portando: viola; violão; caixa;
pandeiro; rabeca (rebeca); reco-reco (reque); rapa-pau; triângulo; balainho; maromba
(geroma), além da bandeira. (lembrando que não há número determinado de foliões num
terno; havendo grupos com mais de quinze ou apenas cinco).
A viola utilizada pelos foliões de São Francisco segue o modelo da viola de
Queluz, (atual Conselheiro Lafaiete) composta por dez cravelhas (tarrachas), dez cordas
agrupadas duas a duas, algumas industrializadas, mas aqui se encontra também a viola
curraleira, tendo como principais artesãos: Seu Minervino (discípulo de Juca Bicota);
Nego de Venança e Seu Martins. As cordas da viola são aqui conhecidas, de cima para
baixo, por: burdão; baixão, baixinho, toada e prima; e suas afinações são: violada,
enviolada, cebola e cebolão. Os principais toques são: jaca, jacão, caborja, lindovina,
rio-a-baixo, e outros. O violão tem as mesmas cordas, acrescentando-se a corda
superior, chamada “sol”. Usa-se várias violas num terno, quanto mais violas, mais doce
é a melodia dos cantos de saudação e mais quente é o fervor da suça142 . Observe-se a
figura 23.

Figura 23: Foliões e suas violas


Fonte : João Naves de Melo

142
RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão
Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.
O músico e especialista em produção artesanal de instrumentos de corda
José Leite, em texto contido na obra “Tocadores”, apresenta uma lista com dezenas de
madeiras de excelente qualidade para produção de instrumentos musicais, mas diz que
prefere aproveitar velhos pedaços de madeira, pois “o tempo lhe aplica atributos
recompensadores”. Para ele: “(...) No interior do Brasil, berço por excelência da viola,
encontra-se não só a madeira para construí-la, mas a sua alma.”
A rebeca parece com o violino e é feita artesanalmente com madeira local;
normalmente com quatro cordas, havendo rebequeiros que as fazem com cinco, seis e
até sete cordas, a exemplo do fabricante artesanal de rebecas Edimilson Tronxado,
folião do temo de Domingos Corrêa e morador do bairro Sagrada Família da cidade: de
São Francisco. Este artesão, além de produzir o instrumento, é um exímio rebequeiro. O
pelo do arco é feito de rabo de cavalo, que, vez por outra deve ser passado em resinas:
vegetais adequadas ou (breus), para preservar sua aspereza indispensável na captação
dos sons. Som este que faz a grande diferença entre os ternos de folias, pois, nem
sempre existem rebequeiros nos ternos, e entre os que existem, são raros os realmente
bons. Mas em São Francisco, encontram-se alguns de reconhecimento regional cujo
desenvolvimento é incontestável.
O principal instrumento de percussão é a caixa, um tubo de tronco de
madeira de forma cilíndrica de uns vinte e cinco cm de diâmetro por vinte e cinco de
altura, tapado por dois tampos de couro de veado ou de bode e ajustável por arriatas,
tocada com dois cambitos (palitos de uns vinte e cinco centímetros). Principal
instrumento do batuque, de origem africana, que assimilou-se à folia brasileira, dando
um toque impecável às diversas danças desse gênero. Em São Francisco o principal
produtor artesanal é Joaquim Goiabeira que, através de projetos do antropólogo e
pesquisador Wagner Chaves do Rio de Janeiro, instalou-se uma oficina e teve aberto
canais de escoamento da produção. Este projeto iniciou-se em 2004, com uma produção
média de 100 (cem) caixas por ano. Não obstante o empreendimento do artesão Joaquim
Goiabeira, a grande maioria dos instrumentos de percussão usados nas folias
sanfranciscana são de fabricação dos próprios membros de cada terno de folia. 143
Outro instrumento de percussão é o pandeiro, pode ser confeccionado com
couro de cobra ou veado, armação de madeira. normalmente industrializada. Na
categoria percussão, ainda são usados pelos pescadores-foliões de São Francisco os

143
RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão
Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.
seguintes instrumentos: balainho, giroma, rapa-pau, triângulo e outros de produção
local.
Não se pode pensar em instrumentos de produção tribal; seja indígena, seja
africana, sem se projetar a suas origens étnicas. Neste sentido, faz-se necessário, no
mínimo informar que o “balainho” tem origem nas tribos indígenas do Brasil, produzido
a partir de tabocas ou talescas de bambu e sementes secas ou uma porção de milho; o
rapa-pau, tudo indica que é próprio do vale do São Francisco. Já a caixa, o pandeiro e
outros instrumentos da família dos tambores, foram introduzidos pelos africanos durante
o período colonial e distribuídos por todo o Brasil; os instrumentos de corda e o
triângulo são de origem ibérica. Em síntese, resume-se este conjunto nas palavras de
Generosa Souto144: “A harmonia do instrumental é fantástica flui com naturalidade de
uma orquestra sinfônica, ensaiada e afinada. E a melodia, embora rústica, guarda tantas
recordações, telúricas, recordações, que parece um sopro da alma”.
Ao ritual sagrado da folia, no transcurso dos tempos, assimilou-se diversas
danças de diferentes origens. Em São Francisco, se dança com muita freqüência o
lundu; o guaiano; o quatro; calango; a suça; o xachado; a catira.
O lundu, dança solo, também conhecida por “carijó”, que tem a variante “rio
abaixo”, particularidade do alto-médio São Francisco, (Pirapora / Januária), a qual se
atribui lendas que são cultivadas pelos foliões. Poucos se atrevem a tocar um trecho de
rio-abaixo, dizendo que todos os que o tocam morrem em poucos dias. Diz a lenda que
o diabo (o demo, o manquinho, o tinhoso, o encardido, o coiso, o enfusado, o bicho, o
cão, o pé redondo, o catimbó, o tristonho, o moço, o capeta...)145, vinha descendo o rio
São Francisco numa canoa durante a noite e entoando um belo toque de viola, e que
uma senhora que morava na beira do rio, pediu que ele cantasse para ela. Mas seu filho
percebeu que o homem tinha chifres e os pés redondos. Quando os mostrou a sua mãe,
esta gritou por Nossa Senhora e por Senhor Bom Jesus da Lapa. Nisto o diabo explodiu,
sua viola transformou-se num sabugo de milho e sua canoa, numa cuia. Daí para cá,
quem se atrever a tocar esta moda morre rapidamente.
O catira e o quatro (também conhecido por curraleira), danças mais
complexas; suça; (que se dança em quatro, oito, dez ... ); guaiano (dançado em quatro);
e algumas brincadeiras mais fáceis de se dançar, que recebem o nome de animais:

144
SOUTO, Maria Generosa Ferreira. Eu nunca vi não... só vejo falar: Mitos e ritos da narrativa oral das
barrancas do São Francisco. 1ª ed. Rio de Janeiro: Eclesiarte, 2004.
145
GUIMARAES ROSA, 184
carneiro, tatu, calango, macaco, caranguejo, coruja, gambá e tantas outras modalidades
e denominações de danças como por exemplo o quebra-quebra-gabiroba, mané-
joaquim, colondino, chega-xiar, dança das palmilhas, dança das peneiras, dança do pote,
dança do peão, baratão entre outros, são elementos que compõem a parte dançante da
folia de Reis.
A tradição dessa arte dá-se pelo cultivo de suas crenças. Suas lendas
alimentam o imaginário de seus protagonistas e regem seus comportamentos. E no
município de São Francisco, não é comum a encenação do palhaço, personagem
indefinido. Há quem o tem como um soldado de Herodes; um dos reis magos, ou ainda
sendo a estrela, tradição que se faz presente em outras regiões. Aqui tem o uso da toalha
como símbolo da pureza da virgem; a bandeira ou o quadro de santo são indumentárias
imprescindíveis; costuma-se colocar uma cruzinha de madeira dentro da viola, para
nada interferir na jornada. Acredita-se que quem participa da folia por toda vida tem a
proteção de Santos Reis. Quem desrespeita a folia tem a vida amaldiçoada; quem
participa da folia uma vez, tem de participar por sete anos, ao menos três dias por ano.
São inúmeras as superstições e mitos que, apesar de confessarem ser fruto da
simplicidade dos mais velhos, não deixam de ser cultivados.
A religião católica é permeada de datas cujas comemorações requer uma
mescla do mais sofrido sentimento de culpa, da mais sincera emoção; que se contrai
com sorrisos e luxúria. Para não se dispersar neste assunto, basta lembrar as festas como
o São João, onde se bebe, se come e se brinca sem reservas; no natal, as pessoas se
esforçam em se vestir melhor, em comer melhor; na semana santa, a dieta especial é
indispensável. Estas são algumas datas destacadas pelos foliões de São Francisco
(conhecidos apenas de Foliões de Reis), que durante o ano, cumprem fielmente os
compromissos religiosos propostos pelo dia correspondente, depois se esbaldam em
suas danças e comezainas, sem jamais perder o verniz da moralidade cristã. Após o
cumprimento dos rituais religiosos, acontece a reza do terço, a saudação ao santo do dia,
o recitar do bendito, os muitos e muitos vivas, a ladainha e tantas outras orações e
cantos que concluem a parte religiosa da folia, aí sim, caem na festa. Comem, bebem,
cantam, dançam e riem à vontade. Sem censura, é um espaço de sociabilidade, onde
todos têm voz e vez.
O sagrado e o profano não se separam, mas cada um tem seu momento no
espaço físico e temporal dentro de casa, coexistindo ícones católicos e adereços
mundanos; cantos sacros e quadrinhas hostis; genoflexões e danças sinuosas; altares e
bebidas; crucifixos e armas brancas; terços e piratas. Aí, a própria dicotomia sagrado-
profano seria inadequada, visto que são elementos constituintes do seu dia-a-dia.
Em São Francisco, as festas e caráter sócio-religioso, ainda preservam muito
de sua essência natural e de folclórico, tanto no meio rural quanto no urbano. Portanto,
não é fácil delimitar fronteiras entre os traços e costumes da cidade e do meio rural,
pois, grande parte da população atual desta cidade, é remanescente do meio rural.
Maior alvoroço acontece nas festas de folias realizadas no meio rural, talvez
pelo maior espaço dos quintais, por todos se conhecerem, pela afinidade nas relações
vicinais e de parentesco, pela despreocupação em incomodar vizinhos, pela apreciação,
geralmente mais honesta, dos presentes na festa, pelas danças e todo o conjunto da festa.
146
Enfim, pela tranqüilidade que lhes são inerentes, e segundo José Leite : “Nós
trabalhamos para comprar o que precisamos para viver depressa e eles vivem
basicamente para fazer o que precisam para viver com calma.”
Nota-se maior liberdade de circulação entre os presentes, gargalhadas são
dadas sem preocuparem-se com escândalos; comida sendo servida à vontade, sem
cerimônias e a fartar; as bebidas, geralmente caseiras e diversificadas, reproduzem a
mesa típica regional (feijoada; farofa; galinha, caipira; bolo de fubá, de trigo ou puba;
biscoito de peta e cambão; pão de queijo; requeijão; queijo; doce de leite, de mamão e
de burití; café; leite; chá; batida; quentão; licores de coquinho do mato, de genipapo e
de pequí. Todos caseiros, além das diversas variedades de vinhos industrializados e
sucos de frutas naturais e artificiais, sem jamais se esquecer da cachaça a vontade e para
os presentes. Todos se arriscam a entrar na roda, principalmente numa roda de suça; o
dono da casa ou o imperador (dono da festa) se preocupa em atender a todos de maneira
simpática e acolhedora. Enfim, o arremato de uma folia na roça, corresponde
verdadeiramente ao conceito de festa, lembrando assim, os costumes medievais que se
estenderam pelas tradições portuguesas e por eles, transplantadas para o Brasil.
Nomeia-se urbano, quando se arremata uma folia que percorreu um dia ou
mais, não importa quantos, o número de casas visitadas é, sem dúvida, bastante
satisfatório, pois, principalmente nos bairros mais periféricos, não falta quem suplique
por uma visita dos foliões em sua casa. Mas o costume de estar presente na casa do
festeiro na noite da festa não é marca notável entre os moradores da cidade. Isso é
justificável devido às opções mais abundantes oferecidas pela cidade: escola, igreja,

146
CORRÊA, Roberto; LEITE, José et aI. TOCADORES. Curitiba: Jangada Brasil, 2002.
trabalho, televisão e outros eventos. Até as iguarias servidas são diferentes, geralmente
serve-se refrigerante;bolacha; pão de sal ou sovado; caldão; vaca-atolada; licores e
vinhos industrializados; frios, e bolos de padarias; recorrendo assim, a serviços
imediatos, próprios da cidade. Mas nada disso significa menor satisfação do morador
em receber a folia em sua casa, em geral, nos bairros mais periféricos.
Na cidade, os participantes da festa são os vizinhos mais próximos, que
atraídos pela cantoria, aproximam-se e adentram as casas que são geralmente modestas
e acessíveis, também marcam presença os familiares dos foliões envolvidos na folia,
principalmente no seu arremato, durante e depois do jantar.
O gosto pelo cigarro de fumo de rolo, pelo café farto, pela cachaça
(indispensável), a sinceridade com que cumprimentam, despedem e iniciam uma
conversa são alguns dos aspectos e costumes mais marcantes dos sanfranciscanos.
É interessante observar, o trajeto entre as casas, as grotas e cercas
perpassadas; o raiar com cachorros em cada casa que se chega e o silêncio da
madrugada; o olhar oblíquo dos meninos ao chegarem a folia; a acolhida alegre dos
donos da casa; o encontro de dois ternos em uma mesma casa; o café, cachaça são
pedidos para forrar o estômago, transformando essa exigência em motivos de risadas e
mais danças para pagar o que ganham .
No tocante à festa em si do arremato de folia, também não se pode deixar de
especificar as principais danças, suas origens e características, bem como as lendas que
as acompanham e as crenças criadas, cultivadas e difundidas, às vezes, defendidas com
veemência por seus conhecedores.
O município de São Francisco, já foi perpassado por pesquisadores
especialistas em folclore e no assunto aqui tratado e que captaram a dimensão em
termos quantitativos e de particularidades no desempenho dessa riqueza cultural que vai
desde a arquitetura de predominância neo-clássica, refletindo influências externas até as
diversas romarias anuais a Bom Jesus da Lapa, exportando a cultura rítmica, através das
freqüentes folias e expressando a religiosidade intensa da região que também é
manifestada nas festas juninas de Santo Antônio, onde já é tradição a trezena, de 1 a 13
de junho, com quermesse diária na igreja local; o dia de São João, com fogueiras
iluminando a cidade e as glebas na noite de 23; o dia de São Pedro, fogueira das viúvas,
além dos diversos dias santos totalmente monitorados pelo clero. Outro aspecto da
cultura sanfranciscana é o caráter hospitaleiro e pouco capitalista expresso no
acolhimento aos “chegantes”.
Um grande exemplo da diferença entre a folia sanfranciscana e algumas
outras, é o costume do palhaço na folia. Aqui não se pratica esse costume, nem existem
foliões mascarados. As lendas ou mitos acerca destes traços na folia apresentam-se em
várias versões. Há quem diz que o palhaço significa a “Estrela do Oriente”; outros
defendem que é um soldado de Herodes querendo atrair as crianças para matar. Ainda
dizem que seria um dos três reis magos147, disfarçados para que Herodes não o
reconhecesse. O mesmo se dá com o uso da máscara, que seria disfarce dos reis magos
de volta para casa, escondendo assim sua felicidade ou soldados camuflados.
As folias na região urbana ou rural de São Francisco preocupam-se
especificamente, com o roteiro do terno, a parte sagrada das rezas, a afinação dos
instrumentos e com as danças a serem brincadas. A animação é natural e não dependem
de artifícios ou incrementos. O folião e artesão fabricante de caixa, Joaquim Goiabeira,
em conversa sobre a tradição da folia sob sua ótica, diz que: “esse negócio de palhaço é
invenção, a folia tem de ser da principal dos três reis magos, que é a original, a miséria,
dos três reis magos. Nem todos os ternos ou foliões usam indumentárias distintivas.
Primam por aquilo que é mais essencial na folia que são os itens acima
citados. Também quando se trata de instrumentos, existem inumeráveis versões acerca
da primazia ou preferência pelos foliões. Há quem diz que os três instrumentos
principais na folia seriam o balainho, o triângulo e o rapa-rapa-pau, porque seriam os
mesmos, usados pelos reis magos em visita ao Menino-Deus, jamais desafinados.
Outras versões afirmam ser a caixa, a viola e a rebeca os três instrumentos
indispensáveis na folia.
Há um relato interessante colhido no Bairro Sagrada Família, onde Zé
Gafanhoto (folião há setenta anos), pois iniciou aos oito anos de idade e encontra com
setenta e oito anos e ainda sai com seu filho Tone Gafanhoto e seu neto Warley,
conforme observa-se em seu depoimento:

O bispo de Januária, Don Ancelmo me disse um dia, que o principal


instrumento da folia era a rebeca pruquê quando a gente toca, ela faz o sinal
da cruz. E isso é a coisa mais certa e gesticulando, ele contitnua: Ta veno, o
arco faz um sinal da cruz com o braço da rebeca. 148

São valores imensuráveis, que se vivem, neste discreto município, mas que
vêm pouco a pouco sendo desvendados e revelados como uma das grandezas dos

147
Folião e Artesão produtor de caixas do bairro Sobradinho em São Francisco - 2006
148
José Francisco (Zé Gafanhoto) bairro Sagrada Família em São Francisco - 2006
Geraiseiros. O próprio fato de se encontrar um folião com setenta anos de trajetória
nesta manifestação é uma grandeza a ser ressaltada e reconhecida. Dentre os foliões
existentes na região, boa parte está neste oficio há mais de quarenta anos, e deixam de
fazer o giro somente em caso de saúde insuficiente.
As danças e cantorias desenvolvidas pelos foliões de São Francisco são
inúmeras. De origens diversas e que se desdobram em tantas outras versões e
modalidades, assimiladas ao contexto da realidade e do ânimo dos festeiros.
As festas e costumes mais tradicionais existentes no município e região vêm
sendo apropriadas pelas escolas e pela administração municipal que patrocinam suas
apresentações. Mas, deve-se salientar a diferença entre a festa praticada em âmbito
privado, promovida por um terno, uma família, alguém que cumpre alguma promessa,
das apresentações organizadas pelas instâncias escola, empresa ou Estado destinado a
atender um público mais abrangente; pois neste caso, o evento dá-se mediante
programação que altera seu desenvolvimento natural, tais como o tempo de duração,
requerendo supressão de partes dos cantos, adequação de cada canto ao momento da
festa, uniformização dos artistas, iluminação artificial, sonorização regulada fora da
naturalidade.
Nas palavras de Roberto Corrêa149 : “A festa, a folia, a brincadeira, são
distintas de sua representação. A representação é folclórica, é quase (...) turística”. A
representação não carrega todo o sentimento inerente ao evento como cumprimento de
um compromisso com Deus. A folia é como que uma válvula de escape para o
sertanejo.
Como já se colocou, não cabe a este trabalho, precisar o número de ternos
de folia existente no município de São Francisco, mas, para melhor abordar o assunto,
levantou-se dados que permitem estipular quantidades aproximadas acerca do número
de ternos organizados na área urbana.
A cidade é composta, atualmente, por dezenove bairros, sendo grande parte,
pessoas oriundas do meio rural, que normalmente, trazem toda a sua bagagem de
costumes, objetos e crenças. Os foliões que se dividem geograficamente entre rurais e
urbanos, não se diferem nos costumes ou preferências musicais ou alimentar. Foram
identificados cerca de quinze ternos na área urbana, através dos “cabeças”, mediante

149
CORRÊA, Roberto; LEITE, José et aI. TOCADORES. Curitiba: Jangada Brasil, 2002.
entrevistas pessoais, sendo boa parte (seis ternos), situados no bairro Sagrada Família,
coincidentemente, um dos bairros mais carentes e o mais populoso da cidade.
Todos os ternos citados e tantos outros não notificados têm como dever
cumprir a jornada, ao menos da noite de 24 de dezembro. Cada um deles possui seus
cantos próprios, munidos de instrumentos e indumentárias correspondentes ao dia-santo,
saem um, três, seis e até mesmo quatorze dias seguidos pelas ruas ou estradas (no
último caso, de 24 de dezembro a 06 de janeiro).
As músicas de saudação das “lapinhas” ou altares nos dias santos são
profundas e transmitem mensagens bíblicas, enquanto que as brincadeiras são
totalmente descontraídas e suas falas são espontâneas e imediatas.
Os foliões são bem humorados, geralmente o bom humor é reforçado por
doses reguladas de cachaça ou licores caseiros, que não se restringe ao momento da
suça. A distribuição da cachaça é indiscriminada, servindo-se a quem aceitar,
independentemente de idade, sexo ou categoria social. O trajeto entre um ponto e outro
do giro é pleno de brincadeiras, causos interessantes e comentários da última parada. A
chegada de uma folia em casa é motivo de comemoração mediante foguetes.
Este sentido festivo, impregnado de alegria, faz-se necessário para que uma
150
folia permaneça na memória de todos. Conforme Durkheim , na festa, a religião
articula-se ao profano e constroem um mundo simbólico que enriquece o imaginário
popular. Para Brandão151: “Séria e necessária, a festa apenas quer brincar com os
sentidos, o sentido e o sentimento. E não existe nada de mais gratuito e urgentemente
humano do que exatamente isto”
As surpresas e os rituais da festa da folia são atenuantes às agruras do
cotidiano. O sertanejo, a grosso modo, é calejado pelas dificuldades sociais, pelo
isolamento geográfico, e pelo desconhecimento de seus direitos. Então a festa cai-lhe
como grande auxiliar e é aquilo que ele reproduz sem muita dificuldade e com imenso
desdém. As festas populares tornam-se assim, instrumento de resistência, fator social de
subsistência do sujeito desfavorecido de certos tipos de lazer e bem-estar. A festa é
apropriada e apreciada por todas as classes, e dentro da festa propriamente dita, não se
inclui ou exclui ninguém, são todos cristãos.

150
DURKHEIM, Emile. 1858-1917. As Formas Elementares da Vida Religiosa: O Sistema Totêmico na
Austrália. Tradução, Paulo Neves. - São Paulo: Martins Fontes, 1996.
151
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Folia de Reis de Mossâmedes. Coleção (Cadernos de Folclore).
Belo Horizonte: Evoluarte, 1977.
Geralmente, quando se trata de um cumprimento de promessa, o imperador
organiza de antemão o giro, recruta os foliões, faz o convite aos vizinhos, parentes e
amigos e à comunidade em geral e prepara a recepção, que se destaca pela fartura. Tudo
isso é melhor visível nas comunidades rurais, mais ligadas pelas relações vicinais, de
parentesco, de compadrio e segundo Carlos Rodrigues Brandão152 , estas comunidades
vivem uma dupla oposição na concepção religiosa, o que seria para ele:

Entre a reprodução cultural da rotina da fé versus a ruptura festiva da rotina


cotidiana, o que é o sentido da própria sucessão de festas como ciclos que se
repetem. E entre o desejo da residência, estabilidade, consagração dos lugares
santificados próprios e próximos versus o deslocamento cultural, como folia,
cortejo, procissão ou romaria.

Não é comum finalizar uma folia com músicas comerciais ou danças


estranhas àquelas relativas ao ritual da folia, posto que, uma folia costuma cantar até as
quatro horas da manhã na casa do imperador, (às vezes, cortam o dia seguinte até a hora
do almoço, conforme o entusiasmo dos foliões) depois de feito o giro dos dias
trabalhados.
A natureza religiosa -cristianismo- do povo ibérico foi bem difundida no
território brasileiro. Com a chegada e instalação efetiva dos jesuítas na colônia, a
assimilação das práticas festivas em Portugal aos costumes ameríndios e posteriormente
africanos frutificaram e multiplicaram as datas sagradas, e que são cultivadas até a
atualidade, representando intensidades diversas, conforme o predomínio étnico da
população de cada região.
Em se tratando da “Folia de Reis” o fundamento primeiro desta festa é a
certeza de se estar desenvolvendo um trabalho apostólico, a serviço da vinha de Deus. O
antropólogo e pesquisador de folias, Wagner Chaves153 , percebeu que:

A afinação é um momento particularmente importante nas folias, pois ali não


se afinam só cordas e couros, mas também sensibilidades musicais de cada um
dos participantes. É o momento de um tipo de comunicação baseada no que se
ouve, onde olhares exercem uma função mais expressiva do que palavras. É o
instante em que instrumentos feitos artesanalmente e que, na maioria das
vezes, são construídos sem padrões e moldes comuns buscam um limiar
possível de interação harmônica e musical. .

152
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Folia de Reis de Mossâmedes. Coleção (Cadernos de Folclore).
Belo Horizonte: Evoluarte, 1977. V.20.
153
CHAVES, Vagner. Sons de Couro e Corda: Instrumentos Musicais Tradicionais de São Francisco-
MG. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2005.
A preponderância deste evento nas áreas rurais do Norte de Minas Gerais, é
tão grande que é estranha à possibilidade de haver um Natal, primeiro, um seis, ou um
vinte de janeiro sem que haja folias se encontrando pelas casas e estradas, ao menos no
município de São Francisco, onde é comum a jornada da visita ao “Menino-Deus” na
noite de Natal (24 de dezembro);de seis dias seguidos (de 1º a 6 de janeiro) ou na folia
de São Sebastião (20 de janeiro). Tendo a Igreja Católica vários santos para preencher
cada dia do ano, pode-se afirmar que cabe apenas às folias adequarem seus cantos de
saudação do dia santo mais próximo ao dia preferido pelo imperador.
Existe aproximadamente quatrocentos santos, beatos e bem-aventurados,
que por motivos diversos, são venerados pelos brasileiros que lhes prestam homenagens
em retribuição por graças recebidas ou por mera simpatia.
A data principal no calendário cristão é sem dúvida, o natal. Para as folias, é
o inicio da jornada rumo ao salvador que acaba de nascer. Alguns temos saem de vinte e
quatro de dezembro a seis de janeiro, ou seja, quatorze dias de giro. Mas isso é raro,
pois o objetivo real é saudar as lapinhas na véspera do nascimento, e no seis de janeiro,
quando os três Reis Magos teriam chegado para adorar o Menino-Deus. Para Brandão154
:

Entre os camponeses do Centro-Sul do Brasil, o Natal é uma viagem de


Deus no mundo dos homens; é a interrupção de uma viagem de seres
humanos para o momento do nascimento do ser divino; é o estatuto de uma
viagem de magos e supostos reis ao lugar do nascimento miraculoso.

Basta uma visita despretensiosa em casa de qualquer católico, não


necessariamente fervoroso, residente no meio rural sanfranciscano, e percebe-se a
procedência da afirmação acima.
Quando a folia retira-se do sentido festivo, pode-se notar a busca da
interiorização por alguns momentos: a exigência na hora do terço; a cerimônia no
cumprimento de cada ritual componente como o beijar da bandeira; o aspergir de água
benta, se for possível; o silêncio durante o canto de saudação; os muitos e muitos vivas
ao santo do dia; a reverência na condução da bandeira pelo caminho, e na acolhida da
mesma, na reza do “bendito” etc. Todos os ritos são compreensíveis e verossímeis à
realidade dos indivíduos protagonistas, sendo a religião, uma necessidade. Para

154
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Folia de Reis de Mossâmedes. Coleção (Cadernos de Folclore).
Belo Horizonte: Evoluarte, 1977.
Durkheim155 : “É inadmissível (...), que sistemas de idéias como as religiões, que
ocuparam na história um lugar tão considerável, nos quais os povos de todas as épocas
vieram buscar a energia necessária para viver, sejam apenas tecidos de ilusões”.
Pode-se dizer que os dias mais freqüentes em que se apresentam Folias de
Reis em São Francisco são:

Inicia no dia 1º de janeiro, dia de Nossa Senhora ao dia 6, dia de Santos Reis,
onde se homenageia os três Reis Magos (Anunciação do Senhor ou Epifania);
e na seqüência, Mártir São Sebastião (20 de janeiro), sendo estas festas
denominadas de janeiras; Nossa Senhora das Candêias (2 de fevereiro), esta
data é pouco festejada em São Francisco e representa a “Apresentação do
Senhor”, sendo tradicional em outras regiões; São José Operário (19 de
março), um dos principais dias em que se encontra folias pelas ruas e estradas
de São Francisco; Nossa Senhora de Fátima (13 de maio); Santa Rita de Cácia
(22 de maio); Santo Antônio (13 de junho); São João (24 de junho); São Pedro
e São Paulo (29 de junho), estas são as festas juninas, de poucas apresentações
de folias na região, mas podem ser consideradas, visto que alguns ternos
cultivam esta tradição; Santa Isabel; Nossa Senhora do Carmo (16 de julho);
Senhor Bom Jesus (6 de agosto), outro dia-santo indispensável para um terno
de Folia, pois é a Transfiguração do Senhor; Nossa Senhora das Dores (15 de
setembro); São Geraldo (24 de setembro);São Cosme e São Damião (26 de
setembro); São Vicente de Paulo (27 de setembro); São Francisco de Assis (4
de outubro); Nossa Senhora do Rosário (7 de outubro); Nossa Senhora
Aparecida (12 de outubro); Zacarias e Isabel (5 de novembro); Nossa Senhora
das Graças (27 de novembro); Imaculada Conceição de Nossa Senhora (8 de
dezembro); Santa Luzia (13 de dezembro); Natal (25 de dezembro, festa da
Natividade) que é o nascimento de Jesus Cristo, fechando assim o calendário
cristão, Para Saul Martins, em verdade, o calendário da Igreja Católica
encerra-se no dia seis de janeiro, com a festa da Epifania. 156

Esses dias são apontados arbitrariamente, dado o fato já esclarecido de não


haver nenhuma uniformidade entre os ternos de folias no tocante aos dias definidos de
se sair folia. Mas dentre eles, alguns, os mais salientados são indispensáveis. Outro
aspecto a ser enfatizado é que alguns dias são escolhidos por ocasião de aniversário, ou
de algum beneficiário de “milagres”, que retribui através da folia, as graças recebidas.
Os tantos e tantos cantos, rezas, ladainhas, benditos, bandeiras, mastros,
vivas e todas as referências dadas aos santos homenageados numa folia, encheriam
milhares e milhares de páginas de trabalhos acadêmicos. E nem assim, não absorveria
toda a imensidão desta cultura imaterial, que nasce, reproduz e morre no anonimato.
Além do vasto acervo material utilizado para simbolizar a presença de forças místicas.

155
DURKHEIM, Emile. 1858-1917. As Formas Elementares da Vida Religiosa: O Sistema Totêmico na
Austrália. Tradução, Paulo Neves. - São Paulo: Martins Fontes, 1996.
156
RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão
Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.
Essas formas diferenciadas de aprendizagem musical que implicam valores,
relações sociais da música e de seus praticantes, definições de conteúdo e de estruturas
musicais, dentre outros diversos fatores da ex-pressão musical enquanto fenômeno de
performance sociocultural, evidenciam a idéia de que a transmissão musical congrega os
aspectos essenciais que caracterizam o fenômeno musical, sendo responsável pela sua
assimilação, consolidação e transformação no âmbito da cultura.
Lembrar é tecer fios do passado que não foram tecidos,
mas que podem ser retecidos no presente, reatualizando
a história.

(Walter Benjamin)
CAPÍTULO V - ANÁLISE DO MODO DE VIDA DOS RIBEIRINHOS E SUAS
ATIVIDADES ARTESANAIS EM SÃO FRANCISCO - MG

Este capítulo tem como objetivo apresentar a análise dos dados coletados na
entrevista realizada pare este trabalho. Por se tratar de pesquisa descritiva e exploratória,
como instrumento de coleta de dados utilizou-se questionário. O mesmo foi formulado
com questões fechadas para maior precisão de análise e facilidade de tabulação das
respostas, porém, não deixou de colher as angústias, lamentações e desabafos dos
entrevistados.
Foram entrevistadas cerca de 40 pessoas, entre elas: artesãos, pescadores,
foliões e pessoas que lidam com o turismo e turistas, residentes na área ribeirinha do
município de São Francisco, previamente selecionadas no período de junho a setembro
de 2007.
Por se tratar de uma cidade relativamente pequena, onde praticamente quase
todas as pessoas se conhecem ou já ouviu dizer, as pessoas entrevistadas foram
selecionadas da seguinte maneira: os artesãos mais conhecidos, ou seja, aqueles que se
tornaram populares devido ao seu ofício; os pescadores mais antigos ou conhecidos, que
residem no bairro onde está localizada a colônia de pescadores; os foliões mais atuantes
nas folias da cidade e, finalmente os turistas, para os quais não houve nenhum critério
na seleção.

Na questão 01, foi perguntado sobre o estado civil, os entrevistados


responderam:

Tabela 02 – Estado Civil

OPÇÕES %
Solteiro 5%
Casado 80%
Mora Junto 15%
Estes dados demonstram que a maioria absoluta dos entrevistados possui
família.
Na questão 02, ao serem questionados sobre a faixa etária, foram apresentados
os seguintes resultados:
Gráfico 01 – Faixa Etária

10%

entre 30 e 49 anos

40%
mais de 50 anos

entre 20 e 29 anos
50%

Estes dados mostram que é um trabalho exercido por pessoas mais velhas.
Vê-se que o número de jovens é muito pouco, quase insignificante ao comparar com a
faixa etária mais de 50 anos que ocupa a metade dos profissionais ora em estudo.
Na questão 03, perguntou se o trabalho como artesão/pescador é uma
atividade econômica compensatória para o sustento da família, os entrevistados
apontaram:

Tabela 03 – Atividade Econômica Compensatória

OPÇÕES %
Sim 24%
Não. Precisa complementação. 76%

Os dados demonstram que os artesãos vivem num contexto de baixa renda,


os mais idosos, complementam a renda com o artesanato, pois são aposentados, já os
mais jovens, complementam a renda com outras atividades não relacionadas ao
artesanato. Os pescadores conjugam a pesca com a agricultura para atender as
necessidades da família.
A questão 04 responde à seguinte pergunta: Por se tratar de um trabalho que
utiliza a madeira/rio São Francisco como matéria-prima para o exercício de sua
profissão, você toma alguma medida para a preservação do meio ambiente ?

Tabela 04 – Medida para a Preservação do Meio Ambiente

OPÇÕES %
Sim 70%
Não 30%

Os dados apontam que ainda há a necessidade de um trabalho de


capacitação com os profissionais pesquisados para a conscientização dos problemas
ocasionados pela degradação do rio e desmatamento. Porém, os pescadores têm
consciência quanto à preservação do meio ambiente, pois, eles têm a preocupação com
o “estoque”. A maior parte atribui a degradação do rio aos fazendeiros e aos órgãos do
governo, devido à falta de fiscalização. Os artesãos (violeiros e barqueiros) também
preocupam, pois utilizam como matéria-prima a madeira disponível na natureza.
Ambos, pescadores e artesãos obedecem à lei natural.
Na tabela 05, apresenta-se o resultado da seguinte pergunta: O que o poder
público faz pela classe dos artesãos/pescadores no município de São Francisco ?

Tabela 05 – Se há Investimento do Governo

OPÇÕES %
Apresenta investimento 5%
Não tem conhecimento 20%
Nenhum investimento 75%

De acordo com os pescadores, o governo paga o seguro desemprego na


época da piracema, porém, não são todos os pescadores cadastrados, muitos não
recebem o benefício. Já os artesãos e foliões, não têm conhecimento de
investimento/incentivo do governo para a classe.
Na questão 06, perguntou se considera o trabalho uma forma de lazer.

Tabela 06 – Considera o Trabalho um Lazer.

OPÇÕES %
Sim 100%
Não -

Percebe-se através da tabela 06, que os entrevistados foram unânimes em


encontrar no trabalho uma forma de lazer. Os artesãos e pescadores gostam do que
fazem, trabalham com prazer e encontram no trabalho uma diversão. Já os foliões,
apesar da maioria ser aposentado, encontram na folia uma forma de entretenimento,
crença e qualidade de vida.
“Eu canto e danço todo tipo de folia. Eu não tenho outra diversão , trabaio a semana
toda e fico doido pra chegar o fim de semana pra foliar. Eu tenho muita fé em folia,
pois a gente reza e diverti.”148
Na questão 07, perguntou se houvesse um projeto governamental para o
incentivo do artesanato na região ribeirinha, no município de São Francisco, como
alternativa para acelerar o desenvolvimento econômico seria benéfico para os artesãos?

Tabela 07 – Um Projeto Governamental seria Benéfico

OPÇÕES %
Sim 100%
Não -

Nota-se através da tabela 07 que todos os entrevistados esperam por este


momento. Há um grande descaso neste sentido.
Na questão 08 a pergunta foi sobre o que o rio São Francisco representa
para eles.
Tabela 08 – Representação do Rio São Francisco

OPÇÕES %
Fonte de Renda 60%
Turismo e Lazer 15%
Riqueza para o município 35%

Dentre todos os entrevistados, a importância do rio foi bastante relevante.


Considerado como “Pai” dos ribeirinhos, artesãos, pescadores, foliões e turistas não

148
Tino do Padre. Folião – 69 anos de idade e 43 anos de folia. Entrevista concedida à autora em
02/08/2007.
pouparam elogios e agradecimentos a essa dádiva que integra homem, natureza e
cultura, observe a figura 24. E o poema na seqüência, retrata a grande intimidade entre o
rio e a cidade de São Francisco.

Figura 24: Pôr-do-Sol em São Francisco


Fonte : Arquivo Pessoal

São Francisco & São Francisco


Uma palavra pode definir o encontro do rio São Francisco em São Francisco:
Deslumbramento !
Deslumbramento ao deitar os olhos no espelho das águas plácidas
Que trazem notícias das chapadas e, depois, delizam buscando seu destino.
Deslumbramento, ao volver os olhos aos (in)finitos pontais acompanhando uma trilha.
O brilho que se espicha levando o rio, o rio que quer ficar.
Deslumbramento ! Quando deixar os olhos na linha do horizonte
E lá, eles se deitam no mais belo espetáculo do rio : o pôr-do-sol. Nada igual !
O criador deixou escorregar os pincéis celestes deslizando pelo arco-íris
E eles vão descrevendo linhas, quadros, aquarelas,
um berço de pedras multicoloridas esfuziantemente belas !
São Francisco abençoou São Francisco !
E o criador deu mais a São Francisco:
Um povo hospitaleiro, generoso e feliz,
Tem na sua cultura a imensa riqueza – que é a alma barranqueira / cerratense.
De peito franco e aberto, o chamado :
Sacie-se no belo / Sinta a vida no São Francisco em São Francisco. 149

149
MELO, João Naves de. Jornal “ O Barranqueiro”– abril / 2007
Na questão 09, foram apresentados itens que justificam a baixa procura do
jovem pela profissão de artesão em nossa região.

Tabela 9 – Razões de ausência de jovens na profissão de artesão

FATORES %
Dificuldade para sobreviver 38%
Falta de incentivo do poder público 36%
Descaso dos órgãos governamentais 16%
Falta de emprego 10%

Mediante o exposto, podemos inferir que o jovem ribeirinho não se


interessa em dar continuidade ao trabalho dos pais, pela falta de oportunidade como: as
dificuldades enfrentadas pela luta da sobrevivência, pela falta de incentivo do poder
público, descaso e desemprego. Estes fatores fazem com que os jovens busquem outras
opções de vida que tem mais facilidade para sua inserção no mercado de trabalho.
Somente a história pode dar a um povo a consciência de
si mesmo.
(Arthur Schopenhauer)
CONCLUSÃO

O presente trabalho se propôs a investigar foi atividades artesanais, dentre


elas a pesca, a cultura e o turismo na cidade de São Francisco, ressaltar o resgate da
mesma e questionar se é possível utilizar o artesanato como atividade econômica e
como uma alternativa de investimento na região, capaz de acelerar o crescimento
econômico e social. A partir da análise dos dados apresentados no capítulo V, à luz do
referencial teórico discutidos nos capítulos II, III e IV deste trabalho, podemos afirmar
que são vários os fatores que interferem na economia e como alternativa para o
desenvolvimento desta região tão pobre do sertão norte-mineiro, ora focalizado nesta
pesquisa – o município de São Francisco.
A principal contribuição que se pretendeu dar com este trabalho foi
estabelecer um panorama de resgate através de ações para alavancar o artesanato como
profissão e sua rentabilidade para sobrevivência dos artesãos. Foram analisados os
resultados considerados mais relevantes para permitir uma visão ampla e formular
estratégias a serem utilizadas em programas voltados para o investimento na região.
A criação de oficinas para passar às novas gerações o modo de fazer é
fundamental para que o artesanato de São Francisco continue rico e forte. Pois, manter a
sobrevivência cultural de seu povo, com a corajosa dignidade do residir, do resgatar
valores para um mundo novo é iniciativa importante não somente como ação cultural
mas também como gesto de relevante significação social, pois além de garantir a
preservação dos ofícios e expressões em risco de desaparecimento, fixa as comunidades,
o valor de seus mestres e seus saberes.
A pesquisa mostrou que a maioria dos artesãos entrevistados possui
família, sendo arrimo da mesma e necessita do trabalho desenvolvido para o seu
sustento. Foi mostrado ainda, que o trabalho é exercido por pessoas mais velhas e
possui baixa rentabilidade, sendo necessária a complementação da renda familiar
associada a outra atividade econômica, como: pedreiro, vaqueiro, carvoeiro,
comercialização de peixes, entre outras. Isto comprova a falta de apoio, incentivo e
direcionamento para os produtos produzidos por eles. Esta pode ser uma das causas que
justificam o desinteresse da procura dos jovens para a referida profissão – dificuldade
no escoamento da produção.
Apesar do baixo nível de escolaridade, percebe-se a preocupação com a
preservação do meio ambiente. E quanto ao rio São Francisco, há um cuidado muito
grande, como ouvimos de um entrevistado: “o rio São Francisco é minha vida, é tudo
para mim.” Entende-se que a matéria prima para a profissão é algo sagrado. Há também
uma preocupação dos pescadores com o meio ambiente, não só por depender dele
diretamente para sua sobrevivência, mas, também, por um certo pertencimento ao
ecossistema de onde deriva sua pesca. Um meio ambiente ecologicamente equilibrado é
de fundamental importância para a vida de um modo geral, mais ainda, para os que
dependem dele enquanto categoria social e culturalmente diferenciada, como é o caso
dos ribeirinhos do São Francisco. Há a necessidade de conscientização e capacitação
dos demais moradores e fazendeiros que desenvolvem outras atividades econômicas nas
cidades ribeirinhas, como distribuição de cartilhas ou cursos destinados a preservação
do meio ambiente promovidos pelos órgãos públicos e a necessidade de uma
fiscalização permanente às margens do rio.
Os dados coletados apontam para o descaso que o poder público tem para
com a classe dos artesãos. Os órgãos governamentais poderiam investir em pequenas
cooperativas para promover o escoamento dos produtos fabricados para outras
localidades, favorecendo a venda e a entrada do dinheiro nas cooperativas. Para os
pescadores cadastrados há o salário-desemprego que recebem na época da piracema. Os
foliões e artesãos não têm nenhum benefício regulamentado. Encontram no trabalho
uma forma de diversão, lazer e resgate da cultura, para que a mesma não desapareça da
região. Os foliões são pessoas fervorosas na fé, rezam e acreditam naquilo que
professam. Muitos deles trabalham na construção dos próprios instrumentos tocados por
eles, como: tambores, rabecas, violas, pandeiros, caixas e outros. Quanto ao turismo na
cidade de São Francisco há a necessidade de investir neste setor. A sugestão principal
deste estudo é que seja realizado desenvolvimento adequado ao setor de turismo e lazer,
considerando os hábitos tradicionais e o modo de vida dos moradores da região.
As paisagens do rio São Francisco atraem a atenção de moradores das
grandes cidades. Na região da cidade de São Francisco é um exemplo de lugar onde esse
tipo de fenômeno ocorre. Em São Francisco, a principal atração dos turistas é o rio.
Além da pesca e dos passeios em barcos, especialmente adaptados para transportá-los,
os turistas têm à disposição restaurantes e lojas de artesanato. A maior diferença
encontrada entre o município de São Francisco e os demais é a existência de uma
estrutura temporária, especificamente montada para a recepção de turistas que,
tradicionalmente, visitam a cidade nessa época.
Percebe-se que a sustentabilidade do turismo apoiado, dentre outros, na
fruição do ecossistema aquático como forma de obtenção de lucro deverá, para ser
seguramente rentável, preservar sua fonte de riqueza. Entretanto, se o lucro for pautado
na fruição da natureza por grande número de pessoas, sabe-se que a atividade terá fim
pelos danos ambientais decorrentes. Ou seja, mesmo considerado por muitos como um
dos mais promissores negócios do fim do século XX e mesmo que, de fato, apresente
grandes possibilidades de retorno financeiro e de oportunidades de emprego, não há
como ignorar o lado negativo. Todo avanço econômico vem acompanhado de vantagens
para o setor de serviços e comércio, assim como para a infra-estrutura em geral, mas
também traz desvantagens como insegurança social, poluição, degradação da natureza,
dentre outros. Além disso, os ganhos decorrentes de investimentos turísticos são
alternativas que colocam em grande vulnerabilidade as relações sociais e bióticas que
ocorrem tradicionalmente nesses ambientes e, portanto, só deveriam ser estimulados se,
antes de mais nada, correspondessem aos anseios da população envolvida e passassem
por um sério planejamento do uso sustentável do ambiente.
Este trabalho sinaliza alguns pontos que possibilitam uma maior reflexão
sobre como resgatar o artesanato, a cultura, a pesca e o turismo como atividades
econômicas para a região. Torna-se necessária a realização de estudos que tenham como
objetivo propor alternativas para o desenvolvimento dessas atividades na cidade e como
alternativa de investimentos na região, capaz de acelerar o crescimento econômico e
social.
Espera-se que este trabalho, além das contribuições para ampliar as
discussões sobre o tema, possa também servir como oportunidade de investigar um
assunto que tanto incomoda os sanfranciscanos e ribeirinhos, e todos os que participam
das dificuldades e dos anseios desta gente sofrida que vive às margens do rio e da
sociedade. Acredita-se que as informações obtidas e as discussões efetuadas possam ser
úteis para o desenvolvimento de um projeto governamental que incentive, regulamente e
valorize essa gente.
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