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METAPOEMAS

O poema

A tinta e a lápis
escrevem-se todos
os versos do mundo.

Que monstros existem


nadando no poço
negro e fecundo?

Que outros deslizam


largando o carvão
de seus ossos?

Como o ser vivo


que é um verso,
um organismo

Com sangue e sopro,


pode brotar
de germes mortos?

O papel nem sempre


é branco como
a primeira manhã.

É muitas vezes
o pardo e pobre
papel de embrulho;

É de outras vezes
de carta aérea,
leve de nuvem.

Mas é no papel,
no branco asséptico,
que o verso rebenta.

Como um ser vivo


pode brotar
de um chão mineral?

João Cabral de Melo Neto, in O engenheiro (1945)


II

Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia


Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só te cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.
Carrega-me contigo.
No Amanhã

Hilda Hilst, in Amavisse (1989)

limites ao léu

POESIA: "words set to music" (Dante


via Pound), "uma viagem ao
desconhecido" (Maiakovski), "cernes e
medulas" (Ezra Pound), "a fala do
infalável" (Gothe), "linguagem
voltada para a sua própria
materialidade" (Jakobson),
"permanente hesitação entre som
e sentido" (Paul Valery), "fundação do
ser mediante a palavra" (Heidegger),
"a religião original da humanidade"
(Novalis), "as melhores palavras na
melhor ordem" (Coleridge), "emoção
relembrada na tranquilidade"
(Wordsworth), "ciência e paixão"
(Alfred de Vigny), "se faz com
palavras, não com ideias"
(Ricardo Reis/Fernando Pessoa), "um
fingimento deveras" (Fernando
Pessoa), "criticism of life" (Mattew
Arnold), "palavra-coisa" (Sartre),
"linguagem em estado de pureza
selvagem" (Octávio Paz), "poetry is to
inspire" (Bob Dylan), "design de
linguagem" (Decio Pignatari), "lo
imposible hecho posible" (Garcia
Lorca), "aquilo que se perde na
tradução" (Robert Frost), "a liberdade
da minha linguagem" (Paulo
Leminski)...

Paulo Leminski, in La vie en close (1991)

Da calma e do silêncio

Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar


se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés


abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

Conceição Evaristo, in Poemas da recordação e outros movimentos (2008)


Ricardo Aleixo, in Pesado demais para a ventania (2018)

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