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legal e engenharia institucional) e seu desenvol- forte descentralização das competências tribu-
vimento, objeto privilegiado na análise de Ar- tárias, sem mecanismos de redistribuição hori-
retche, algumas questões suscitam debate. Entre zontal; alta descentralização do gasto final de
as dimensões analíticas consideradas pela au- governo; e elevado nível de autonomia orça-
tora – influência do eleitor sobre decisões de mentária, sem definição clara das respectivas
governo; natureza das relações intergoverna- competências dos níveis e governo – e o poste-
mentais; relações entre sociedade civil e gover- rior aumento da carga e recentralização tribu-
nos; e autoridade sobre provedores dos siste- tária (Afonso, 1994; Dain, 1995; Melo, 1996;
mas de saúde – parece-me que a primeira não Lesbaupin, 2000; Prado, 2001; Ferreira, 2002)
integra as instituições formais do SUS e as ou- tiveram duas conseqüências principais: não há
tras três interferem em sua implementação de qualquer orientação geral para a necessária ade-
forma diferenciada. Privilegiaremos apenas al- quação dos mecanismos de financiamento fe-
gumas questões. derativo, sendo que grande parte do processo
de descentralização é comandado pela dinâmi-
ca desse financiamento, e inverte-se a relação
Natureza das relações de determinação: é a descentralização financei-
intergovernamentais ro-orçamentária que define a descentralização
dos encargos, ou em outras palavras – a receita
Parece-me difícil discutir essas relações sem le- tende a gerar seus próprios gastos (Prado, 2001).
var em consideração a especificidade do novo Embora alguns municípios tenham ampliado
pacto federativo brasileiro que começou a ser de forma importante suas receitas próprias e
desenhado na década de 1980 e refletiu-se de inovado de forma significativa a gestão local,
forma particular na área da saúde, condicio- os instrumentos que operam a distribuição dos
nando o ritmo de implementação da reforma e recursos entre níveis de governo ganham espe-
alguns de seus impasses. cial importância, sendo essencial avaliar os me-
O desenvolvimento histórico dos sistemas canismos que determinam a capacidade de gas-
de saúde no século 20, nos distintos países, de- to dos governos subnacionais, especialmente os
monstra que o que muda em cada país, além da municípios.
natureza do federalismo, é o caráter da política No âmbito das políticas sociais, a descentra-
de saúde como política social (ordem e ritmo lização teve motivações diversas daquelas que
da intervenção estatal, escopo da legislação, for- geraram a redefinição do pacto federativo e a
mato institucional, esquema de financiamen- falta de um centro de comando foi particular-
to), que condiciona o tipo de transferências e mente importante, além de que, nos anos 90, a
incentivos federais. área social foi negligenciada, em função das
As relações entre federalismo e descentrali- prioridades estabelecidas pelo ajuste macroeco-
zação são sempre complexas, configurando uma nômico. E a descentralização setorial está inse-
específica dinâmica entre difusão e concentra- rida nesse processo mais amplo de passagem de
ção de poder, espelhando um modelo compar- uma forma extrema de federalismo centralizado
tilhado de nação e graus socialmente desejados para alguma modalidade de federalismo coo-
(ou conseguidos) de integração política e eqüi- perativo, ainda não completamente definido.
dade social (Almeida, 1996). No caso brasileiro, Agora o fato de esse processo ter se iniciado an-
o compromisso federativo e o modelo subja- tes de 1988 está mais vinculado à dinâmica da
cente não são claros e os formatos implementa- democratização e crise fiscal do Estado, do que
dos são carregados de contradições, moldados especificamente à política de reforma setorial.
inicialmente pela transição política e, posterior- Portanto, o recurso às normas operacionais
mente, pela dinâmica dos ajustes macroeconô- para implementar a descentralização na saúde
micos. Os dois fatores – econômico e político – foi a resposta do executivo setorial frente a essa
ainda que concomitantes, tiveram pesos e in- situação federativa e a partir delas tem-se ten-
fluências diversas, sendo que nos anos 80 os im- tado estruturar uma descentralização planeja-
pulsos democratizantes foram mais importan- da de encargos entre níveis de governo. O SUS,
tes e, após 1988, os constrangimentos econômi- como política nacional e como opção de im-
cos ganharam destaque (Almeida, 1995 e 1996; plementação da reforma na saúde, não partiu
Melo, 1993; Melo & Azevedo, 1996). de um modelo acabado, mas foi se desenhando
O desenvolvimento peculiar do novo arran- paulatinamente, ao sabor dos dirigentes no po-
jo federativo forjado na Constituição de 1988 – der e das formas específicas encontradas para
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Por fim, a revisão da tendência municipalis- tribuição desigual de recursos, para compensar
ta (NOAS 2001), com recuperação do papel do as desigualdades.
nível estadual e a organização de regiões é bem- De uma maneira geral, quando a demanda
vinda e quase tardia. Nas últimas décadas ob- e a necessidade podem ser quantificadas com al-
serva-se essa tendência à regionalização tam- guma precisão, o que não é tarefa fácil, mas não
bém nos distintos países, numa perspectiva de é impossível, a vinculação entre o recurso fi-
fortalecer a condução coordenada do sistema, nanceiro repassado e atividades específicas tem
vinculada a metas de maior responsabilização grande chance de ser bem-sucedida, como por
com a coisa pública e medidas de desempenho. exemplo, no controle das endemias (e outros
Poder-se-ia aproveitar, portanto, para desenca- programas verticais). No caso brasileiro, esse
dear um processo amplo de revisão do SUS, seja controle historicamente era realizado de forma
das prioridades da política de reforma, seja das centralizada, com relativo grau de sucesso, e foi
relações intergovernamentais, seja das formas desorganizado tanto pelo stress fiscal quanto
de transferência e mecanismos de incentivos. pelo processo de descentralização, com recru-
descimento de epidemias (Reis et al., 2001). E
existem indícios de que a descentralização tam-
Priorização de atividades e programas bém afetou de forma importante esses progra-
mas, primeiro porque não foram contemplados
A priorização da Atenção Básica e o repasse de nas primeiras normas, centradas fundamental-
recursos per capita são recomendados para os mente na assistência médica; e, segundo, pela
países com níveis elevados de pobreza e desi- desorganização local frente a retirada do nível
gualdade de distribuição de renda, na perspec- central que comandava e operava os programas
tiva de garantir níveis mínimos de atendimen- verticais localmente (Brito, 2002).
to de serviços básicos, não proporcionados por Penso que o SUS enfrenta tanto o problema
boa parte dos governos locais. da necessidade de garantir um mínimo básico,
Com as mudanças na alocação de recursos quanto de hierarquizar o sistema, assegurando
para a Atenção Básica (PAB, 1998), observa-se a atenção integral – preventiva e curativa. Mas
alguma melhora na redistribuição de recursos. as políticas implementadas não têm apontado
Entretanto, essa nova sistemática distributiva, na direção nem de corrigir as distorções do sis-
apesar de igualar valores per capita para o fi- tema, nem de preservar o que funcionava bem,
nanciamento de atividades ambulatoriais con- evitando o desmonte desordenado.
sideradas básicas, não leva em conta as desi-
gualdades inter-regionais, seja no que se refere
às necessidades de saúde, seja em relação à rede Relação com a sociedade civil
existente de serviços nas diferentes regiões. E as e construção de espaços de negociação
diferentes estratégias e incentivos para a Aten-
ção Básica (PAC, PSF e PACS), por um lado, e De fato a estrutura decisória formal configura-
dos demais procedimentos de maior comple- da com a reforma institucionalizou uma dinâ-
xidade e a atenção hospitalar, por outro, não es- mica inovadora que tem alterado a correlação
tão direcionados para induzir a maior integra- de forças na arena decisória e permitido a ne-
ção dos distintos níveis de complexidade da gociação na formulação e implementação da
atenção e aumentar a resolutividade do siste- política de saúde. E as diferentes normas ope-
ma, configurando, de fato, um “pacote básico” racionais que regulamentam o processo de des-
e “gargalos” de acesso que dificultam a mobili- centralização restauraram o poder de comando
dade do usuário entre distintos serviços no sis- do sistema pelo Ministério de Saúde, deslocan-
tema. Tampouco alteram as assimetrias históri- do outras esferas de poder (como o Legislati-
cas entre o setor público e o privado, cujo mix vo). Entretanto, essa dinâmica tem direcionado
de serviços é diferente em cada localidade, es- os movimentos de participação e expressão na
truturado segundo uma lógica de oferta desor- área setorial para as Comissões Intergestoras
denada e casuística, sem relação com as neces- (em nível federal e estadual), eminentemente
sidades de saúde da população, perpetuando as tecnoburocráticas. E a CIT cumpre papel arbi-
carências históricas. Portanto, o “efeito homo- tral nas complicadas negociações relativas à
geneizador do PAB”, embora possa ser mais re- descentralização política, administrativa e fi-
distributivo pode não ser mais eqüitativo, uma nanceira do SUS, uma vez que reúne, em nível
vez que o alcance da eqüidade pressupõe a dis- federal, os principais gestores da arena, e sua
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das há pouco tempo, como a regulação dos pla- será possível repensando que sistema de saúde
nos de saúde privados, a vigilância sanitária e queremos e quais os mecanismos a ser privile-
epidemiológica, a produção/distribuição de me- giados na sua implementação. Decidir “para
dicamentos. Essa assimetria entre o avanço no quem” queremos o SUS. Se concordamos que é
processo de descentralização e as áreas não to- o subsistema público para os pobres, até que
cadas não é casual, nem é uma questão menor estamos indo bem, é só uma questão de aper-
e desvela a natureza da reforma de fato imple- feiçoar mecanismos. Se queremos “outra coisa”,
mentada. temos que repensá-lo.
Sem desqualificar os avanços conseguidos (que Afonso JRR 1994. Dilemas da saúde: financiamento e des-
centralização. Apresentado no Fórum “As novas polí-
não são poucos) e a complexidade desse empre- ticas sociais: financiamento e gestão: Os desafios do
endimento, num país continental, com enorme Sistema Único de Saúde”. Ipea, Rio de Janeiro.
heterogeneidade e imensas desigualdades, até o Almeida MH 1995. Federalismo e políticas sociais. Revis-
momento o resultado do processo de reforma ta Brasileira de Ciências Sociais 10(28):109-122.
não tem apontado para a construção do SUS tal Almeida MH 1996. Federalismo e políticas sociais, pp.
13-40. In RBA Affonso & PLB Silva. Federalismo no
como formulado na Carta Magna e nas leis que Brasil – descentralização e políticas sociais. Fundap,
o instituíram. Inicialmente pensado como um São Paulo.
sistema nacional de saúde, predominantemen- Barros E 2001. Implementação do SUS: recentralizar será
te público, que harmonizasse e regulasse o com- o caminho? Ciência & Saúde Coletiva 6(2):307-310.
plexo mix público e privado de serviços (sua Brito JS 2002. A descentralização da gestão dos serviços de
controle da malária no Brasil. Projeto de dissertação
marca histórica e estrutural), o SUS é visto pela de mestrado, Escola Nacional de Saúde Pública, Fun-
população, policy makers, analistas, pesquisado- dação Oswaldo Cruz, Março de 2002 (mimeo).
res e outros diferentes atores, como o “subsiste- Carvalho AI 1995. Conselhos e saúde no Brasil – partici-
ma” público, ou a “alternativa” para os que “não pação cidadã e controle social. Ibam/Fase, Rio de Ja-
podem pagar”, ou a “oportunidade” de uso de neiro.
Cheibub JA & Przeworski A 1997. Democracia, eleições e
certos serviços para os que pagam por serviços responsabilidade política. Revista Brasileira de Ciên-
privados, mas dispõem de acesso diferenciado cias Sociais 12(35):49-60.
ao SUS a partir de canais privilegiados. A frag- Cohn A & Elias EP (coords.) 1999. O público e o privado
mentação e dualidade do sistema têm sido con- na saúde – o PAS em São Paulo. Cortez-CEDEC, São
firmadas; a heterogeneidade e as desigualdades Paulo.
Cortes SMV 1998. Conselhos municipais de saúde: avalia-
não têm sido superadas. ções otimistas e pessimistas. Ciência & Saúde Coleti-
Na minha opinião, o grande desafio da re- va 3(1):33-35.
forma na saúde consiste em explicitar clara- Dain S 1995. Seguridade social: As mudanças necessárias.
mente o que se pretende com o SUS e dimen- Saúde em Debate 48:29-30.
sionar que tipo de ajuste é necessário. Na reali- Fedozzi L 1997. Orçamento participativo: reflexões sobre a
experiência de Porto Alegre. Tomo Editorial-Observa-
dade nunca houve consenso sobre a “imagem- tório de Políticas Urbanas – Fase/IPPUR, Porto Ale-
objetivo” do SUS entre os diversos atores. Mas gre-Rio de Janeiro.
ao olhar o lugar que ele ocupa hoje no sistema Ferreira SG 2002. Federalismo fiscal – municípios: despe-
de saúde brasileiro constata-se que “vingou” a sas com saúde e transferências federais. Informe-se –
dualidade, a segmentação perversa e o mix pú- Boletim BNDES 38, fevereiro.
Fiori JL 2002. O governo já perdeu (Entrevista). Revista
blico/privado desordenado. Isto não quer dizer Época 217:13-17, 15 de julho.
que não caminhamos nada. Ao contrário, cami- Goulart FAA 2001. Esculpindo o SUS a golpes de porta-
nhamos bastante, mas numa direção diferente ria... – considerações sobre o processo de formulação
daquela preconizada pelo impulso inicial da re- das NOBs. Ciência & Saúde Coletiva 6(2):292-298.
forma contido na Carta Magna. Talvez assumir Labra ME 2002. A qualidade da representação dos usuá-
rios nos Conselhos de Saúde do Rio de Janeiro e a di-
essa constatação como real seja o primeiro pas- mensão associativa. Pesquisa Estratégica, ENSP/Fio-
so para mudar. E nesse sentido tenho dúvidas cruz. Relatório Final (mimeo).
se é apenas uma questão de explorar plenamente Lesbaupin I 2000. Poder local x exclusão social – a expe-
os instrumentos da estrutura institucional atual riência das prefeituras democráticas no Brasil. Vozes,
e amadurecer o uso dos instrumentos existentes, Petrópolis.
Médici AC 2002. El desafío de la descentralización: finan-
pois me parece que precisamos de mudanças ciamiento público de la salud en Brasil. BID, Washing-
mais profundas, de correção de rumo, e isso só ton, D.C.
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Melo MA & Azevedo S 1996. Mudanças institucionais, re- lise do desempenho dos governos de uma ma-
forma do financiamento da seguridade social e a re- neira geral, qual seja, a busca de identificação
forma tributária no Brasil, 1990-1996. Relatório Fi- dos fatores determinantes da eficiência, da efe-
nal de Pesquisa, Programa de Dotação para a Pes-
quisa FORD/ANPOCS, 1995 (mimeo).
tividade e da qualidade da ação governamental,
Melo MA 1993. A anatomia do fracasso: intermediação no sentido de produzir os resultados esperados
de interesses e a reforma das políticas sociais na No- quando da formulação de uma determinada
va República. Dados 36(1):119-163. política.
Prado S 2001. Transferências fiscais e financiamento mu- Focalizando os desdobramentos dessa ques-
nicipal no Brasil. In FA Resende. Descentralização fis-
cal e cooperação financeira intergovernamental. EBAP/
tão na análise dos resultados do processo de
K-Adenauer São Paulo (mimeo). descentralização do SUS, a autora, em primeiro
Ramminger IMS 1997. O orçamento participativo de Por- lugar, sistematiza um conjunto de informações
to Alegre: uma experiência local de participação popu- que permitem caracterizar a elevação da parti-
lar e controle social. Dissertação de mestrado, apre- cipação municipal no gasto em saúde, ao tem-
sentada à Escola Nacional de Saúde Pública, Funda-
ção Oswaldo Cruz.
po em que ocorreu a municipalização da rede
Reis COO, Ribeiro JAC & Piola SF 2001. Financiamento ambulatorial e, conseqüentemente, a munici-
das políticas sociais nos anos 1990: o caso do Minis- palização da produção de serviços nesse nível
tério da Saúde. Texto para Discussão 802. IPEA, Bra- assistencial. Fruto da “indução” operada pelo
sília. nível federal através das Normas Operacionais
Santos WG 1998. A trágica condição da política social, pp.
33-64. In S Abranches; WG Santos & MA Coimbra.
Básicas, durante a década de 1990, particular-
Política social e combate à pobreza. Jorge Zahar Ed., mente a NOB/96, a descentralização, ainda que
Rio de Janeiro. apresentando resultados heterogêneos nos vá-
Skocpol T & Amenta E 1986. States and social policies. rios estados, é um “fato inquestionável”, defini-
Annual Review of Sociology 12:131-157. dor da configuração atual do sistema público de
Valla VV 1998. Comentários a Conselhos de Saúde: a
possibilidade dos usuários participarem e os deter-
saúde no país.
minantes da participação. Ciência & Saúde Coletiva Posto isso, a autora trata de reafirmar argu-
3(1):32-32. mentos contrários às crenças amplamente di-
fundidas com relação às “vantagens” da descen-
tralização no sentido de gerar, por si mesma, a
melhoria do desempenho institucional dos go-
vernos locais, chamando a atenção para o fato
de que não há nenhuma garantia de que esse
processo resulte em aumento de eficiência na
Determinantes do desempenho gestão municipal do SUS ou implique, auto-
institucional do SUS municipal: maticamente, democratização do sistema. Con-
controle de gestão ou capacidade cordo inteiramente com a distinção entre os
de governo? processos de descentralização e democratiza-
The health system (“SUS”) performance ção, que obedecem a lógicas distintas, embora
determinants at local level: management possam estar, em algum momento, interligadas.
assessment or governability skills? Além disso, enfatizaria a possibilidade de que,
em nosso contexto, o processo de descentrali-
Carmen Fontes Teixeira 1 zação venha a contribuir para reforçar práticas
políticas patrimonialistas, clientelistas, e autori-
O artigo de Marta Arretche, “Financiamento tárias, bem como gerar a reprodução de práti-
federal e gestão local de políticas sociais: o difí- cas administrativas burocratizadas e ineficien-
cil equilíbrio entre regulação, responsabilida- tes que caracterizam nossa administração pú-
de e autonomia” coloca em debate os resulta- blica, em que pesem eventuais “ilhas de exce-
dos, desafios e perspectivas do processo de des- lência”.
centralização da gestão do Sistema Único de A autora, entretanto, ao assumir como hi-
Saúde, problematizando, especialmente, o pa- pótese que a “qualidade da ação dos governos
pel desempenhado pelas instâncias de controle depende – em grande parte – dos incentivos e
do processo de gestão municipal do SUS. Nesse controles a que estão submetidos”, se propõe a
sentido, traz à tona uma questão central na aná- analisar, exatamente, os mecanismos de contro-
le da gestão do SUS que vêm sendo criados e
institucionalizados ao longo do seu processo de
1 Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. carment@ufba.br construção. Considerando, portanto, que o “de-
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sempenho dos governos locais é, em geral, re- políticos que disputam as eleições nos vários
sultado do desenho institucional dos sistemas níveis de governo, especialmente no nível mu-
nacionais”, Marta apresenta, em um diagrama, nicipal, refletem sua aprovação ou desaprova-
as quatro dimensões da estrutura institucional ção com relação ao desempenho institucional
do SUS que incidem sobre a gestão municipal, do governo. Nesse sentido, é importante que se
quais sejam, o controle exercido pelos eleitores, especifique o papel que tem desempenhado ou
as comissões intergestores (CIT, CIBES), os pode vir a desempenhar a expansão e reorien-
Conselhos de Saúde e as relações entre gestores tação da prestação de serviços de saúde no for-
e provedores de serviços. Pode-se perceber que talecimento do poder político de determinados
a autora, embora admita que essas instâncias partidos. Se bem, é certo que, como a autora
são responsáveis, apenas “em parte”, pela qua- assinala, na fase de implantação da municipali-
lidade da gestão municipal, adota uma pers- zação, a expansão da oferta de serviços não possa
pectiva que privilegia os controles “externos” ser associada a nenhuma corrente política em
ao sistema municipal de saúde, deixando de la- particular, penso que podem existir diferenças
do, pelo menos, por ora, a análise do governo significativas na prática político-gerencial do
municipal em si, aspecto que, particularmente, sistema de saúde ao nível local, a depender do
considero fundamental para se compreender o partido ou da coalizão de forças políticas que
processo de gestão do sistema de saúde. Reto- ocupem o Executivo e Legislativo nesse nível,
marei, posteriormente, este comentário, mas, diferenças essas que podem implicar a legiti-
em princípio, gostaria de dialogar com a autora mação (ou não) de projetos políticos partidá-
nos seus termos, ou seja, a partir da sua propos- rios distintos.
ta de análise das instâncias e mecanismos de in- Já com relação às instâncias de indução e
dução e controle da gestão local do SUS. controle criadas especificamente no processo de
Assim, creio que uma primeira distinção construção do SUS (Comissões Intergestores e
pode ser feita entre um controle “geral” sobre a Conselhos), gostaria de enfatizar alguns aspec-
gestão municipal, exercida pelos eleitores, no tos relevantes na análise efetuada no artigo de
processo democrático de escolha dos seus go- Marta, tomando a liberdade de acrescentar al-
vernantes e representantes através das eleições gumas inquietações e sugestões para outros es-
periódicas, e as instâncias de controle “específi- tudos.
co” sobre a gestão do sistema municipal de saú- Em primeiro lugar, o reconhecimento do
de, quais sejam, as Comissões Intergestores e os papel das Comissões Intergestores como espa-
Conselhos de Saúde; as primeiras, responsáveis ços de pactuação política em torno das regras
pela negociação e pactuação das regras do pro- do processo de descentralização, cujos resulta-
cesso de descentralização dos recursos e corres- dos se refletiram nas NOBs e na recente NOAS.
pondente “responsabilização” das instâncias es- Nesse sentido, duas questões merecem destaque
tadual e municipal do SUS com relação à orga- e podem vir a ser objeto de estudos e pesquisas
nização da prestação de serviços, e os segundos, específicas: a) a problematização da NOAS, no
instâncias colegiadas de gestão, controle e ava- sentido de sua capacidade de vir a promover ou
liação da política e da gestão do sistema de saú- não a redistribuição de recursos federais de mo-
de em cada nível de governo. Uma segunda dis- do a que sua implementação venha a contribuir
tinção, a meu ver, deve ser feita entre essas ins- para a promoção da eqüidade e a redução das
tâncias de gestão do sistema e as relações esta- desigualdades regionais e estaduais no que diz
belecidas entre gestores e provedores, já que em- respeito à oferta de serviços de saúde; b) os limi-
bora todas essas relações sejam, de modo geral, tes e possibilidades do processo de implementa-
“políticas”, as relações entre gestores e provedo- ção da NOAS induzir uma mudança significa-
res têm um componente econômico pronun- tiva no perfil de oferta dos serviços ao nível lo-
ciado, principalmente as relações entre os ges- cal, de modo que não ocorra apenas uma ra-
tores públicos e os prestadores privados (a rede cionalização da oferta de serviços em função da
contratada e conveniada). organização dos “módulos assistenciais” e “mi-
Com relação ao controle “geral” sobre a ges- crorregiões de saúde”, mas também se estabele-
tão municipal exercido pelos eleitores, penso ça um processo de mudança e transformação
ser importante que se desenvolvam pesquisas do perfil de oferta dos serviços em função da
na direção apontada pelo artigo de Marta, ou heterogeneidade dos problemas e necessidades
seja, que se investigue até que ponto as opções de saúde da população nas diversas regiões, nos
do eleitorado em torno dos distintos partidos diversos estados e municípios (Teixeira, 2002).
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Em segundo lugar, cabe registrar a contribui- antigo Inamps. De fato, esse risco permanece até
ção da autora na sistematização dos resultados hoje, desde que, mesmo com a mudança estabe-
de vários estudos sobre a atuação dos Conselhos lecida na lógica do financiamento federal, com a
de Saúde no Brasil. Em que pesem as distintas NOB/96 – criação do PAB e transferência fundo
interpretações acerca dos seus determinantes, vá- a fundo – subsiste uma marcada ênfase na oferta
rios estudos apontam as limitações dos Conse- de serviços médicos, ambulatoriais e hospitala-
lhos como instância de efetivo controle social, o res, não só em função da permanência da rede
que não invalida, segundo a autora, a possibili- “contratada e conveniada” como parte do nível
dade de que venham a tornar-se efetivos, na me- operacional do SUS, mas também pela reprodu-
dida em que ocorra sua consolidação. Como ção desse modelo no âmbito da “rede própria”,
profissional que vem se envolvendo há mais de mesmo ao nível básico de atenção. A mudança
dez anos na capacitação de conselheiros de saú- desse modelo, de modo a se criar um certo equi-
de, e em algumas pesquisas sobre seu funciona- líbrio entre as ações de assistência médica, as
mento, concordo inteiramente que não se pode ações de prevenção de riscos e agravos (vigilân-
descartar sua potencialidade. Porém, como afir- cia epidemiológica e sanitária) e as ações de pro-
ma Marta, é preciso analisar sua efetividade to- moção da saúde, ainda é o maior desafio enfren-
mando como referência a “disposição dos gover- tado no processo de construção do SUS, em que
nos para serem controlados”. Isso nos remete, pesem os esforços que vêm sendo desencadeados
novamente, à necessidade de investigar não ape- com a implantação da Saúde da Família e a des-
nas as instâncias e mecanismos de controle, mas centralização das ações de vigilância (Teixeira,
também as características do governo municipal 2002). Por outro lado, a implantação do sistema
e das práticas de gestão do sistema de saúde de- nacional de auditoria, controle e avaliação, bem
senvolvidas. Como já sugeria Paim (1992) há como o fortalecimento das ações de regulação
cerca de 10 anos, é necessário se investigar “co- das relações de compra e venda de serviços, prin-
mo o governo governa”, o que pressupõe, em pri- cipalmente no que diz respeito à média e alta
meiro lugar, a identificação das forças político- complexidade, em sua maior parte sob controle
partidárias nele representadas, seu projeto políti- da rede privada, pode vir a contribuir para a re-
co e, essencialmente, suas práticas – em outras versão do modelo de atenção, mas isso ainda é
palavras, o “perfil” dos dirigentes e os “métodos uma esperança, um caminho a ser construído e
de trabalho” utilizados para a tomada de decisão não uma certeza.
e condução político-institucional, em nosso ca- Concordo com a autora acerca da necessida-
so, do sistema de serviços de saúde, principal- de de se desenvolver estudos que analisem os re-
mente ao nível municipal. sultados alcançados até o momento com a im-
Concluindo o diálogo na perspectiva colo- plantação dessas ações e dessas propostas. Creio
cada por Marta, gostaria de tecer alguns comen- que podem vir a ser realizados tanto estudos de
tários sobre a relação entre gestores e provedores casos, em municípios que apresentem resultados
de serviços, que, na minha opinião, não chega a relevantes e aspectos inovadores na gestão, quan-
se caracterizar como uma instância de “controle to estudos comparativos entre municípios cujas
político” e sim como uma relação de mercado, administrações sejam distintas, tanto do ponto
especialmente entre os gestores públicos e os de vista político-partidário quanto das práticas
provedores privados, que me parece ser a relação de gestão do sistema municipal de saúde. Com
que a autora problematiza ao chamar a atenção isso, será possível articular a compreensão do pa-
para a possibilidade de “captura dos governos lo- pel desempenhado pelos mecanismos de “indu-
cais por interesses privados”. Na verdade, o risco ção” e pelas instâncias de controle gerencial e
de que o processo de descentralização da gestão controle social estabelecidas no desenho e no
conduzisse a um fortalecimento do processo de processo de construção do SUS, com a identifi-
privatização da assistência foi apontado desde os cação da singularidade de cada experiência con-
primórdios da municipalização, por autores co- creta, podendo-se até vir a investigar o papel de-
mo Paim (1991) e Mendes (1992), motivados, na sempenhado pelos “sujeitos” do processo de ges-
época, pela crítica à lógica do financiamento es- tão, sejam os dirigentes e técnicos, sejam os pro-
tabelecida na NOB/91. Mendes apontava, mais fissionais e usuários envolvidos nas instâncias
propriamente, o risco de “inampização do SUS”, colegiadas de decisão, acompanhamento e ava-
entendido como um processo que implicasse o liação da política municipal de saúde.
fortalecimento do modelo médico assistencial Nesse sentido, creio que a contribuição de
privatista e hospitalocêntrico, característico do Matus (1997; 2000), especificamente a noção de
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les que pertencem ao bloco político que se co- pois no texto a autora mostra que os atores que
loca do lado de projetos sociais democratizan- jogam com efetividade, neste momento, são: os
tes e equitativos. Neste jogo é difícil escapar agrupamentos governamentais dos vários ní-
das imposições que o nível federal define para veis, com pesos significativos para o federal e os
a agenda local, como, por exemplo, na constru- municipais, mas conformados principalmente
ção da efetiva responsabilização do gestor local pelos grupos dirigentes das máquinas governa-
pela ação da rede básica convivendo com uma mentais da saúde; as tecnoburocracias médica e
baixa capacidade de agir nos outros níveis. sanitária, que vêm gerando uma infinidade de
Interessante essa dupla situação. De um la- projetos para organizar o SUS, em particular as
do, o constrangimento em certos modos de ope- do Ministério da Saúde; os setores médicos pri-
rar o setor saúde, com a legitimação de alguns vados, que se apresentam sob as mais variadas
atores como peças-chave; e de outro, a possibi- formas organizacionais como prestadores, que
lidade de dar sentido para as ações de saúde de não são homogêneos e não atuam de modo uni-
modos diferenciados, desde que consiga se afas- forme, o que, aliás, é uma marca de todos os
tar das principais determinações do arcabouço atores deste cenário; e, finalmente, os empresá-
institucional, que o reconhece como ator cen- rios capitalistas do setor, que podem se confun-
tral, mas dentro de certas agendas, e não de ou- dir em alguns casos com grupos médicos, mas
tras. não obrigatoriamente. Isto é, vejo que a autora
Qual a importância dessa situação que de- demonstra, mesmo não sendo esse seu objetivo,
termina que o arcabouço institucional não sir- que não são muitos os atores, no Brasil, que fo-
va igualmente a senhores do mesmo campo, ram instituídos por e neste arcabouço e que jo-
que portam modos diferentes de operar o sis- gam estrategicamente no dia-a-dia da constru-
tema? ção da política de saúde, e, felizmente ou não, é
Aproveito, no momento, deste possível de- assim. O cenário é mais pobre do que deseja-
bate que o texto permite, sem desconsiderar que ríamos, mas é nele que vêm se constituindo pe-
há muitos pontos instigantes a dialogar com a quenas e grandes questões. E vale verificar que
Marta. Por exemplo, seria possível perguntar mesmo nessa pobreza ele não é nada uniforme,
sobre os vetos feitos pelo governo Collor às vá- os atores básicos se diferenciam internamente e
rias propostas para a Lei Orgânica da Saúde, uns em relação aos outros.
que mereceria alguma lembrança e problema- Há grupos de secretários municipais que
tização em um texto deste tipo, para mostrar são totalmente sinérgicos com a tecnoburocra-
certos recuos, não sem conseqüências, a certas cia federal do setor, há outros que dizem que
pretensões de construção do SUS; ou, ainda, houve “roubos” da autonomia municipal pela
poderia se perguntar de que modo certas NOBs atual política vigente, mas apontam para res-
foram negociadas e como as acirradas disputas ponsabilidades sérias com a construção do SUS.
em torno delas mostram que essa instituciona- Há grupos médicos que se colocam a favor de
lidade que a autora analisa não foi constituída negociações estreitas com o sistema público, há
sem sérias alterações de alguns projetos mais outros que só se interessam nas agendas gover-
descentralizadores, e o que isso implica em ter- namentais que lhes permitem construir meca-
mos de graus de ação e possibilidades finalísti- nismos decisórios sob o modo de usar os fun-
cas para as políticas implementadas. Porém, dos públicos. Há grupos que pedem a ação mais
apesar dessas questões instigantes, volto à per- efetiva e reguladora dos governos sob os modos
gunta do parágrafo anterior. de agir do setor privado, há outros que dizem
Esse arcabouço que veio se desenhando vem que isso é ir contra a regulação da lógica do
contribuindo e respondendo à construção de mercado, que é quem deveria operar o setor.
que tipo de atores vitais para operarem o cená- Enfim, se há alguma coisa de consenso nesse
rio da saúde? Há mudanças de alguns tradicio- cenário é que não é um cenário consensualiza-
nais? Aparecem novos? Como têm jogado? O do entre os vários atores em cena, inclusive en-
que eles têm negociado entre si? O que de rele- tre os que apostam quase na mesma direção: um
vante podemos perceber do processo? Por que, SUS amplo, democrático, equânime e eficiente.
ao olhar para todos esses anos, as avaliações são E, aí, o que disso podemos perceber mais,
tão díspares, mesmo no interior de grupos que ou mesmo concluir?
sempre estiveram apostando no processo de No mesmo caminho da autora, podemos fa-
construção do SUS, no Brasil? zer várias perguntas sobre quem tem poder de
Estas questões não são escolhas gratuitas, ditar o que deve e pode ser feito, só que reduzi-
357
do ao que esses atores que nomeio podem com- centralizados nos níveis loco-regionais, para os
portar, mas olhando para algumas questões em quais a construção de certos dispositivos insti-
particular, que, em parte, são de alguma forma tucionais, visando dar competência no operar
também colocadas pela autora. as diferentes perspectivas, não consegue se en-
• Será possível a esses atores centrais construí- quadrar no que está desenhado hoje – na ver-
rem modos mais democráticos de se produzirem dade uma prática do nível central que os exclui
e operarem as políticas públicas? Eles apostam, e os subordina como gestores da saúde no pla-
e como, na construção de um modo mais am- no municipal, instituindo-os como restritos
plo de construir as arenas institucionais da saú- administradores de programas e projetos defi-
de no Brasil? Será que apostam? Quais deles? nidos e desenhados fora de seus âmbitos. E o
• Que tipo de práticas de saúde esses atores interessante é constatar que eles se constituem
centrais estão indicando e o que eles têm nego- atores centrais nesses mesmos arranjos.
ciado nessa direção? Podem agir em qualquer Talvez, por isso, instiga a percepção de que
direção ou são determinados por parte do pró- apesar de esta ser uma queixa de muitos gesto-
prio arcabouço que os limita? res locais, na prática, quando vemos sua ação
• Até onde o arranjo institucional comporta por outros desenhos institucionais que lhes ga-
os vários projetos que esses atores bancam, em rantam mais governabilidade nos projetos que
especial os que estão apontando para a constru- desejam, eles se colocam, na maioria das vezes,
ção da universalidade, eqüidade e eficiência na nesse lugar instituído e de modo subordinado
saúde? às regras do jogo. Vemos centenas de secretários
Não é possível responder aqui a todas essas municipais pedirem mais verbas, mas não os
questões, mas dá para indicar algumas refle- vemos propondo novos arranjos que possam
xões. E, nesta linha, entendo que não é seme- permitir novos campos de intervenções nesse
lhante o modo como jogam os quatro tipos de cenário. Instiga-me pensar que dos milhares de
atores centrais, que identifiquei atrás – os agru- municípios brasileiros só uma centena tem rede
pamentos governamentais, a tecnoburocracia de serviços instalada, para dar conta de todos os
médica e sanitária, os setores médicos privados níveis tecnológicos de ação, na saúde, e como os
e os empresários capitalistas do setor. Além de seus gestores não usam desse poder para criar
não serem blocos uniformes, como já apontei, novos mecanismos institucionais que lhes per-
o mais significativo, a meu ver, é que um mes- mitam negociar outros papéis dentro do siste-
mo dispositivo institucional, como por exem- ma. Assumem o seu limite instituído e abrem
plo uma arena institucional específica, pode ser mão de novas possibilidades de alterarem as re-
tão diferente na mão de alguns deles que ela em gras do jogo, à semelhança da conclusão final
si não significa nada, em termos de desenho de da autora que diz que praticamente o arcabou-
política setorial. Isto é, não consigo pensar de ço institucional desenhado é este que está aí, e
modo separado o arranjo institucional dos su- o certo é operá-lo.
jeitos sociais e políticos específicos em suas De fato, não creio nisso. O que está instituí-
ações, e o modo como se determinam mutua- do hoje não serve para outros tipos de ações
mente. que não esse da subordinação que apontei, e
Só a título de aprofundamento específico do isso se repete se olharmos para outras dimen-
que estou escrevendo, proponho imaginarmos sões do debate, como o tipo de desenho que é
como esses atores centrais olham para os vários possível para a construção das práticas de saú-
arranjos institucionais já cristalizados e vêem a de no nível local. Entendo que um nível federal
construção das suas práticas, interrogando se es- que controla a média e alta tecnologia e um lo-
tes arranjos lhes permitem fazer qualquer coisa. cal que opera através da rede básica não é o
Percebemos isso quando interrogamos o melhor desenho de um modelo gerencial para
modo como o nível federal vem impondo, atra- construir uma assistência adequada aos princí-
vés de certos dispositivos instituídos, uma prá- pios da universalidade e eqüidade, para produ-
tica autoritária na construção do modelo de zir modelos centrados nos usuários. O instituí-
atenção à saúde, ou mesmo vem impondo cer- do obedece a certas regras do jogo e não admi-
tos dispositivos e modos de decidir sobre a po- te outras. Por isso, vejo sob o mesmo ponto de
lítica, que vem se chocando com as perspecti- vista o debate em torno da construção do Pro-
vas de alguns atores governamentais ou frações grama de Saúde da Família, que não entendo
da tecnoburocracia médica e sanitária. Esses se do jeito que o governo federal compreende ho-
colocam como defensores de modelos mais des- je, como um novo modelo assistencial, neces-
358
sariamente contrário ao médico hegemônico. antes da definição de seu arcabouço legal com
E, por tipos de argumentos, procuro indicar a Constituição Federal de 1988 e as leis federais
possibilidades de dialogar com a autora, ques- no 8.080 e 8.142, ainda no bojo das Ações Inte-
tionando-a em torno de sua tese central: será gradas de Saúde (AIS), aguardam um balanço
que o arcabouço institucional construído para aprofundado e definitivo, pautado em avalia-
o SUS nesses anos está praticamente bem enca- ções empíricas mais isentas, como nos alerta
minhado na direção de uma política mais efi- Marta Arretche, não diferindo, nesse ponto, das
ciente, universal e equânime? experiências dos demais arranjos descentrali-
zados de políticas públicas implementados em
outros países. No nosso caso, observa-se uma
clara contaminação das avaliações pelos varia-
dos vieses ideológicos e posicionamentos polí-
ticos dos autores que pretenderam envidar esse
esforço avaliativo. A elevada conflitividade da
“arena de políticas” que o SUS representa tal-
Avançando na gestão descentralizada vez possa explicar essa dificuldade analítica. A
do Sistema Único de Saúde: se aceitar a categorização proposta por Theo-
a busca do federalismo cooperativo dore J. Lowy (1964), o sistema de saúde brasi-
Towards decentralized management leiro pode ser classificado como uma arena ti-
of the Brazilian health system: picamente “redistributiva”, a mais conflitiva de
searching for a cooperative federalism todas. Esse autor propõe a existência de “arenas
de políticas”, delimitadas pelos impactos de seus
Francisco Carlos Cardoso de Campos 1 custos e dos benefícios que os grupos de interes-
Maria Helena de Carvalho Brandão 1 se esperam de sua implementação e as classifica
em quatro categorias: 1) as políticas regulató-
Introdução rias, formadas por normas e cuja coerção se exer-
ce de forma direta e imediata sobre o comporta-
O artigo da professora Marta Arretche, que nos mento individual; 2) as políticas distributivas,
coube comentar, representa mais uma contri- que consistem na repartição dos recursos me-
buição dessa pesquisadora no entendimento do diante sua desagregação em pequenas unidades
complexo federalismo brasileiro. A sua extra- independentes umas das outras e livres de toda
ção externa ao setor saúde, advinda do campo regra general; 3) as políticas redistributivas, que
da ciência política, e sua relativamente recente implicam o estabelecimento de critérios por parte
aproximação a esse “subsistema de políticas” ain- do setor público, dando acesso a vantagens que se
da lhe permitem um certo “olhar distanciado”, outorgam não a sujeitos específicos, mas a classes
uma visão mais isenta dos movimentos nessa de casos ou de sujeitos, sendo a “arena mais con-
arena política tão ideologizada e conflitiva. Sua flitiva de todas”; 4) as políticas constitutivas,
reflexão instiga a tentação de se tecer comentá- que traduzem em definições, por parte do poder
rios a cada parágrafo, pela abrangência e pro- público, das regras do jogo em geral, podendo sig-
fundidade que alcançou em sua análise. No re- nificar reformas constitucionais, institucionais ou
servado espaço dessas notas, limitamo-nos, com administrativas, apresentando um elevado grau
certo pesar, a focalizar apenas algumas das ques- de conflito (idem).
tões que julgamos relevantes para o momento As elevadas expectativas suscitadas pela des-
político-institucional por que passa o sistema. centralização das políticas públicas no contexto
da redemocratização do país alçaram-na a ver-
dadeira consigna política, como historia Maria
A descentralização do sistema de saúde: Hermínia Tavares de Almeida (1995), pois se
expectativas e limites tratava de desmontar e reconstruir as estrutu-
ras centralizadas do regime autoritário ante-
Os resultados do prolongado processo de des- rior. O processo da Reforma Sanitária brasilei-
centralização da gestão do sistema de saúde bra- ra não ficou infenso a esse influxo e elegeu a
sileiro, que se iniciou na década de 1980, mesmo descentralização do sistema de saúde como um
princípio organizativo, conseguindo mesmo in-
seri-lo com uma diretriz constitucional. O aler-
1 DDGA/SAS/MS. ta da professora Marta Arretche quanto aos efei-
359
tos adversos e as limitações dos processos de por uma delas; a “resolução de problemas”, im-
descentralização, expresso em diversas publica- plicando interesses comuns, uma relativa abertu-
ções, além desta que comentamos, induz a uma ra ao intercâmbio de informação e a busca e sele-
reflexão mais equilibrada sobre esse extenso ção de alternativas que beneficiem a todas as
movimento. A sua crítica ao automatismo entre partes; a “gestão cooperativa”, que supõe alguma
a gestão descentralizada e o alcance de níveis forma de acordo, que vai desde os informais até
superiores de responsabilidade, acesso e eqüi- convênios formalizados por escrito e, finalmente,
dade, e a sua vigorosa defesa de arranjos insti- o “desenvolvimento das capacidades de cada ní-
tucionais adequados à indução de boas práti- vel de governo”, que lhes permite adquirir as ha-
cas de gestão, através de incentivos e controles bilidades de prever e influir nas mudanças, para
pelos demais níveis de gestão, introduz uma vi- tomar decisões bem fundamentadas, atrair, ab-
são diferenciada do discurso usual de uma re- sorver e gerir recursos e também para avaliar as
levante parcela dos atores da arena setorial. atividades com vistas a adquirir referências para
ações futuras.
Toda essa argumentação conflita com con-
Indução, resistências e curtos-circuitos cepções bastante presentes no discurso de mem-
na rede intergovernamental bros da “rede de assunto” que permanentemente
discutem o financiamento do SUS, que aspiram
A necessidade e a adoção de incentivos que pro- por um modelo de transferências globais sem
movam a indução de boas práticas de gestão qualquer condicionamento, chegando alguns a
pelos níveis subnacionais, defendida pela auto- propor o repasse da totalidade dos recursos pe-
ra, são interpretadas, muitas vezes, por deter- lo critério populacional, pura e simplesmente.
minados atores constitutivos dessa arena, co- A experiência das transferências de recur-
mo uma tendência recentralizadora promovida sos para cobertura das ações e serviços de Aten-
pelo Ministério da Saúde. Por outro lado, reco- ção Básica calculados sobre um valor per capita
nhece-se que a excessiva decomposição dos re- nacional (o Piso de Atenção Básica), embora
cursos do custeio do sistema em incentivos fi- vinculado a compromissos formais de execução
nanceiros com destinação específica resulta de um rol de ações pactuado, demonstrou ser
numa exagerada complexidade do modelo de um mecanismo indutor frágil das práticas de
financiamento, dificultando até mesmo sua com- saúde coletiva, como sugerem avaliações realiza-
preensão pelos atores. A simplificação do mo- das pelo Ministério da Saúde (dados não publi-
delo de financiamento, com a unificação de in- cados). A debilidade dos mecanismos de acom-
centivos para áreas mais abrangentes, talvez se- panhamento e controle sobre a utilização ade-
ja uma questão a ser inserida na agenda de ne- quada daqueles recursos, bem como a inexis-
gociação intergestores num futuro próximo. Re- tência de dispositivos que garantam a responsa-
forçando a linha de raciocínio apresentada por bilização dos gestores, resultou muitas vezes no
Arretche, aduzimos a contribuição de Robert não cumprimento dos compromissos assumi-
Agranoff (1989) que relaciona entre os mecanis- dos. A constatação dessas debilidades reforça as
mos de gestão intergovernamental, verificada posições expressas pela autora, para quem não
em outros sistemas de políticas, a “administra- seria suficiente confiar que os incentivos à gestão
ção de subvenções”, dentre outros mecanismos. responsável dos governos possam advir exclusiva-
A gestão intergovernamental das políticas mente da ameaça de punição dos eleitores.
públicas pressupõe a utilização de diversos me- Por outro lado, há que se reconhecer os re-
canismos ou técnicas de gestão. Muniz (1997) sultados positivos possibilitados pelas transfe-
enumera várias de tais técnicas dentre as arrola- rências fundo a fundo do PAB fixo que, de for-
das por Agranoff (1989): a “regulação”, bem co- ma pioneira, aportou recursos significativos pa-
mo “alterações das rotinas intergovernamentais”, ra a quase totalidade dos municípios desenvol-
com a intenção de determinar o comportamento verem ações de Atenção Básica (exceção de ape-
das outras unidades de governo; a “administração nas 22 municípios ainda não habilitados em
de subvenções”, tanto por parte de quem as rece- nenhuma forma de gestão), induzindo a estru-
be como de quem as concede, com o fim de cana- turação dos órgãos gestores municipais, bem
lizá-las para seus interesses; a “negociação” me- como o exercício pleno de suas capacidades de
diante mecanismos mais ou menos formais desde gestão sobre esses recursos.
um enfoque, em que se concebem como perdas Os citados questionamentos acerca da com-
para as demais partes os benefícios alcançados petência do nível federal em estabelecer meca-
360
Figura 1
Evolução do índice de Gini para as transferências federais para os municípios brasileiros, 1997-2001.
0,0450
0,0400
y = 0,0044x - 8,7464 0,03929
0,0350 R2 = 0,6915
0,0300
0,0250 0,02251
0,02275 0,02265
0,0200 0,01742
0,0150
Índice de Gini
0,0100
0,0050
0,0000
1997 1998 1999 2000 2001 Ano
Uma questão ausente no artigo de Arretche, no mínimo equivocadas, expressas por alguns
mas que tem freqüentado a agenda intergover- atores, de que o custeio da assistência à saúde
namental, é a limitação da discussão dos recur- seria uma atribuição exclusiva do nível federal.
sos de financiamento aos recursos federais. Pa-
ra a autora, a “concentração das funções de fi-
nanciamento” no nível federal torna os gover- O desenho institucional do SUS:
nos locais fortemente dependentes das transfe- inovação e debilidades
rências do Ministério da Saúde. Cabe ponderar
que a participação relativa dos demais níveis de A grande inovação que a “engenharia institu-
governo no financiamento de custeio tem cres- cional” do SUS traz para o conjunto das políti-
cido, como demonstram diversos estudos. Res- cas públicas é o formato que adquire o proces-
salte-se a crescente participação relativa dos so de negociação das diretrizes e mecanismos
municípios no financiamento do sistema veri- da descentralização. As Comissões Intergesto-
ficada nos últimos anos, que lamentavelmente res (Comissão Intergestores Tripartite, no nível
não tem sido, em geral, acompanhada de maior federal; e Comissões Intergestores Bipartite, no
participação dos estados. A edição da Emenda âmbito estadual), introduzidas pela NOB/93,
Constitucional n. 29, que vincula receitas orça- constituem importantes dispositivos de trata-
mentárias para a saúde, não tem sido rigorosa- mento e resolução dos conflitos inerentes ao
mente respeitada por alguns estados, com ar- sistema de relações intergovernamentais, im-
gumentações diversas, como a da não regula- pedindo muitas vezes que esses conflitos extra-
mentação da Emenda. polassem os limites do campo setorial para os
No entanto, o conhecimento dos montan- outros espaços de resolução de conflitos do sis-
tes disponíveis para o custeio e investimento tema político, como o Poder Legislativo e o Ju-
no sistema, e a instituição de mecanismos de diciário, aliviando as suas já sobrecarregadas
discussão tripartite da destinação da totalidade agendas. Contribuiu, também, sobremaneira,
dos recursos SUS, e não apenas dos montantes para reduzir os espaços de poder discricionário
transferidos pelo nível federal, representaria de cada nível de gestão, realidade com a qual
um enorme salto qualitativo na relação inter- muitos atores não se conformam e tentam con-
gestores. Tentativas empreendidas até o presen- tinuamente subverter, utilizando-se de estraté-
te, no sentido de buscar a uniformização das gias as mais variadas. A negociação, como re-
aberturas orçamentárias dos três níveis, têm si- gra básica da convivência e da construção soli-
do infrutíferas e dificultadas por concepções, dária da gestão do sistema de saúde, passou a
362
mais em amadurecer a utilização dessa estrutu- não somente na esfera municipal, mas particu-
ra institucional [criada no processo de reforma] larmente entre os estados e a União.
e menos em redesenhá-la”. Ainda há o que fa- Julgamos ser indispensável considerar um
zer, e muito, para efetivar/tornar concreta a re- contexto mais amplo na análise dos mecanis-
forma do setor saúde. mos e fluxos da descentralização, já que a inten-
Mantendo apenas a “atividade e a responsa- cionalidade desse processo, como bem relem-
bilidade de dirigir um sistema de saúde” como bra a autora, já tem forte registro, inclusive na
o eixo da reflexão, segundo a definição de ges- Constituição e na legislação complementar. A
tão que está registrada na NOB/96, é inegável gestão do SUS, segundo as disposições legais,
que há mais do que resquícios autoritários e deve ter como objetivo principal a garantia do
centralizadores na condução das políticas de acesso equânime e universal às ações e serviços
saúde nas esferas estaduais e, principalmente, que proporcionem a atenção integral à saúde.
na federal. Não nos parece ser exatamente sufi- Ora, sendo a integralidade da atenção um con-
ciente avaliar a implementação de normas fede- ceito que deve estar associado à vida das pesso-
rais para dimensionar a extensão da descentra- as, seguramente é na dimensão local, com confi-
lização, se esta for entendida como um processo gurações tão heterogêneas quanto é a realidade,
de mudanças institucionais e reordenamento que tem melhores condições de ser auferida e
dos modos de relação entre as três esferas de planejada, devendo, portanto, ser expressa com
governo, com uma direcionalidade marcada pe- particular intensidade no âmbito municipal
la idéia de horizontalidade. O volume de nor- (Righi, 2002). Seguramente partiu dessa pre-
mas federais, publicadas com uma velocidade e missa a disposição constitucional de que os es-
uma regularidade de impressionar até mesmo tados e a União caracterizem sua atuação como
as próprias estruturas federais de gestão da saú- de cooperação técnica e financeira com os mu-
de, por si, já mostra o limite dessa vertente ava- nicípios.
liativa. Mais do que alocar à idéia da descentra- Conforme afirmam diversos autores, entre
lização uma marca contraditória, as normas in- os quais Carvalho (1997), a remodelação insti-
fraconstitucionais têm criado, por vezes, ten- tucional proposta de forma inovadora no pro-
dências fortemente centralizadoras. cesso de reforma tem por objetivo tornar o Es-
Tomando as disposições constitucionais co- tado capaz de implementar os princípios finalís-
mo um marco fundamental do processo de re- ticos da Reforma Sanitária, como a universalida-
formas, é inegável perceber que os sucessivos de, a eqüidade, a integralidade, expressivos do di-
recortes de caráter predominantemente buro- reito à saúde como um direito de cidadania. Se-
crático produzidos pelos instrumentos norma- gundo o autor o núcleo de idéias-força do pen-
tivos federais para a definição de responsabili- samento reformador prescrevia que o Estado de-
dades e prerrogativas dos estados e municípios veria ser aproximado da sociedade usuária e
não vêm mostrando uma tendência compatível permeabilizado a suas demandas. As diretrizes
com as disposições da Carta Magna. A dimen- constitucionais de participação da comunidade
são processual de implementação da reforma, e de descentralização, com direção única em ca-
por vezes, tem sido submetida a retrocessos im- da esfera de governo (CF, Art. 198, I e III), com
portantes (Carvalho, 2001). Fazendo alusão às o objetivo de fortalecer a expressão e a legiti-
conclusões da autora, nos últimos anos, o pro- midade política das demandas da população e
cesso de reforma tem sido mais marcado por para aproximar dela a decisão sobre a aplicação
sucessivas tentativas de redesenho dos meca- de recursos e a execução de prioridades, são, na
nismos institucionais e fluxos de gestão do que verdade, as idéias inovadoras fundamentais para
propriamente pelo seu amadurecimento. Parece o sistema de saúde tal como definido pela Cons-
estar havendo uma tentativa de tutela do proces- tituição e pleiteado pela Reforma Sanitária.
so de descentralização da gestão, pasteurizan- Vistos dessa perspectiva, os problemas rela-
do-a a uma simples operação desconcentrada tivos ao equilíbrio entre regulação, responsabi-
de procedimentos e fluxos, inclusive no que se lidade e autonomia das instâncias municipais
refere ao financiamento. não podem ser identificados apenas pelo com-
Por outro lado, também os outros dois pila- ponente local: a permeabilidade ou não do mu-
res da tríade de diretrizes constitucionais, indis- nicípio ao controle social; o nível de eficácia
sociáveis no ideário da reforma, têm sido ate- que demandas corporativas têm sobre as ins-
nuados. Participação da população e integrali- tâncias locais; a capacidade criativa para a pro-
dade da atenção têm sido objeto de negligência posição de soluções adequadas aos problemas
365
de impactos positivos na organização dos res- lidade e controle social como desafios para os gover-
pectivos sistemas municipais de saúde. O cru- nos, pp. 23-30. In L Tavares (org.). Tempo de desafios:
a política social democrática e popular no governo do
zamento dos fluxos de acompanhamento e con- Rio Grande do Sul. Vozes, Petrópolis.
trole com outras estruturas e fluxos de partici- Ferla AA, Geyer LMC, Pritoluk LB & Breunig M 2002.
pação, como o Orçamento Participativo Esta- Descentralização da gestão da saúde no Rio Grande
dual, suscitou movimentos de tornar públicas do Sul: implementando a legislação para garantir
as insuficiências no funcionamento dos siste- saúde de verdade e com qualidade para todos os gaú-
chos, pp. 121-125. In Ministério da Saúde. Experiên-
mas de saúde e, particularmente, nos mecanis- cias inovadoras no SUS: gestão de serviços de saúde.
mos de gestão, inclusive da gestão estadual, de Ministério da Saúde, Brasília (no prelo).
forma potente para inserir a solução dos pro- Righi LB 2002. Poder local e inovação no SUS: estudo sobre
blemas identificados nas agendas dos principais a construção de redes de atenção à saúde em três mu-
atores envolvidos. Esse efeito, que é obtido mui- nicípios no Estado do Rio Grande do Sul. Tese de dou-
torado em saúde coletiva. Departamento de Medici-
to raramente quando são utilizados os ainda na Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Mé-
comuns mecanismos burocráticos ou excessi- dicas da Universidade Estadual de Campinas.
vamente formais de acompanhamento, tal qual
reiteradamente “reinventados” nas sucessivas
portarias ministeriais, confirma, novamente, a
principal conclusão da autora.
Ou seja, se ainda há um caminho a ser per-
corrido relativamente ao desenvolvimento de
metodologias adequadas para avaliação das po- A autora responde
líticas sociais com gestão descentralizada, pro- The author replies
cesso que o artigo apresentado fortalece com
rigor e qualidade, é indiscutível que já existem Marta Arretche
experiências que podem auxiliar nesse intento
e, da mesma forma, os problemas identificados Financiamento federal e gestão local
nas sucessivas aproximações feitas ao tema não de políticas sociais: o difícil equilíbrio
permitem concluir que a estrutura institucio- entre regulação, responsabilidade
nal e os mecanismos e fluxos que derivaram do e autonomia
atual estágio do processo de reformas na saúde
precisam ser redesenhados. É preciso amadure- Só tenho a agradecer a Patrícia Lucchese e aos
cer particularmente o componente das práticas editores da revista Ciência e Saúde Coletiva pela
no seu interior, conforme se afirmou. oportunidade de escrever este artigo, bem co-
Talvez devêssemos, sem receio de revisitar o mo aos debatedores, profundos conhecedores
passado, afirmar que a ousadia ainda é cumprir da política de saúde no Brasil, pela densidade e
a lei. Antes que as análises, correntes em nosso profundidade dos comentários apresentados.
meio, que procuram evidências para o redese- Será impossível nesta réplica responder a
nho dos impactos institucionais do processo de todos os comentários. Não apenas pelas limita-
reformas, consigam gerar consensos discursivos ções de espaço e tempo, mas também porque
suficientemente fortes para fazê-lo. me falta competência para fazê-lo com relação
a diversas das questões levantadas. Prefiro, as-
Referências bibliográficas sim, me concentrar em duas questões que me
parecem centrais, seja em minha argumentação,
Carvalho AI 1997. Conselhos de Saúde. Responsabilidade seja nas críticas feitas pelos comentaristas. Estas
pública e cidadania: a reforma sanitária como refor-
ma do Estado, pp. 93-111. In S Fleury (org.). Saúde e
dizem respeito à afirmação de que a reforma da
democracia: a luta do CEBES. Lemos Editorial, São saúde já se completou e de que, para atingir os
Paulo. objetivos da política nacional de saúde, trata-se
Carvalho G 2001. A inconstitucional administração pós- menos de redesenhar a engenharia institucional
constitucional do SUS através de Normas operacio- do SUS e mais de aprofundar sua utilização.
nais. Ciências & Saúde Coletiva 6(2):435-444.
Ferla AA & Martins Jr. FC 2001. Gestão solidária da saú-
Inicio pela distinção entre reforma e meca-
de: a experiência de gestão estadual do SUS no Rio nismos regulares de gestão de uma política pú-
Grande do Sul. Divulgação em Saúde para Debate 23: blica. Minha avaliação, de fato, toma como cri-
8-20. tério o cumprimento de requisitos de natureza
Ferla AA, Jaeger ML & Pelegrini MLM 2002. A gestão da formal, referentes à aprovação de uma legisla-
saúde no contexto do SUS: descentralização, integra-
ção reformadora e sua efetiva implementação.
367
A reforma do setor elétrico, por exemplo, se cais e sugerem que essas práticas estariam em
concluiu com a aprovação parlamentar das pri- conflito (ou contradição) com os objetivos da
vatizações e com a venda efetiva das respectivas reforma. Concordo com a primeira afirmação,
estatais. O fato de que tenhamos sofrido uma mas discordo da segunda. O modelo de descen-
brutal crise de energia não significa que a refor- tralização da saúde adotado no Brasil concentra
ma não ocorreu. Significa que, tendo ocorrido, autoridade no nível federal – isto é, no Minis-
não foi capaz de cumprir suas promessas. tério da Saúde – porque atribui a este último a
Portanto, concordo inteiramente com os função de principal financiador da política na-
argumentos de que a política de saúde mudou, cional, normatizador das regras nacionais e co-
mas “práticas institucionais conservadoras” per- ordenador das relações intergovernamentais, o
manecem, assim como “a participação da popu- que, na prática, significa que pouco de norma-
lação e integralidade da atenção têm sido negli- tização “resta” para os demais níveis. Combina-
genciados”. E concordo inteiramente com os ar- das ao processo centralizado de formação do
gumentos referentes à vital necessidade de “um Estado brasileiro – que historicamente concen-
processo contínuo e permanente de avaliação, trou capacidades estatais no nível federal –, es-
revisão e [eventualmente] correção de rota” do tas características do SUS fazem com que o Mi-
SUS, assim como que “ainda há o que fazer, e nistério da Saúde seja simultaneamente a prin-
muito, para efetivar e tornar concreta[s]” suas cipal arena de formulação da política nacional
promessas. Penso apenas que avaliações dessa de saúde e o ator mais poderoso desta mesma
natureza – assim como outras tantas – e as me- arena. A mesma assimetria de poder pode tam-
didas necessárias para enfrentá-las fazem parte bém se reproduzir no plano estadual. Assim, a
dos mecanismos regulares de qualquer política possibilidade de práticas centralizadoras está
pública. Apenas para efeito de comparação, to- inscrita no próprio modelo; neste sentido, elas
memos o sistema de saúde inglês. Avaliações e não estão em contradição com o modo como o
recomendações dessa ordem foram feitas com SUS foi construído.
relação ao NHS desde sua criação em 1948, com Como resultado, as prioridades e o proces-
base no Plano Beveridge, até a reforma de seu so decisório da política nacional dependem em
paradigma de gestão em 1990, no governo That- grande parte da orientação que venha a contro-
cher. No entanto, é difícil afirmar que uma re- lar a pasta da Saúde. O governo Collor parece ter
forma estivesse sendo implementada ao longo sido até o momento o exemplo mais extremado
destes mais de 40 anos. de emprego dos instrumentos centralizadores
Concordo inteiramente com o argumento do SUS para uma tentativa de reversão de seus
de que “instrumentos e a forma de operaciona- objetivos principais. A reação a esta tentativa –
lização do desenho institucional podem alterar via NOB/93 e fortalecimento da CIT, por exem-
os objetivos iniciais de uma política”. Penso que plo –, na conjuntura favorável do governo Ita-
talvez eu não tenha sido suficientemente clara mar Franco, institucionalizou direitos de par-
com relação a esse ponto, pois meu argumento ticipação política na política nacional de saú-
se referiu ao critério para avaliar uma mudan- de, instituindo arenas federativas para sua for-
ça de paradigma e não, à estratégia adotada pa- mulação – a CIT e as CIBs. Se é verdade que es-
ra efetivá-lo. Há estratégias de reforma – “revo- te não é “um jogo aberto”, em vista de todos os
luções silenciosas” ou “reformas sem reforma” recursos financeiros e institucionais de que dis-
(Kirkman-Liff, 1997) – que, como resultado de põe o Ministério da Saúde – e, em outra medi-
sucessivas e bem-sucedidas alterações nos me- da, também os governos estaduais –, é igual-
canismos de gestão de uma política, acabam mente verdade que ele é hoje menos fechado do
por alterar substantivamente a hierarquia de que na “era Collor”, dada precisamente a bem-
objetivos de um modelo anterior. Penso mesmo sucedida estratégia de institucionalização da
que este fenômeno no Brasil ocorreu com rela- participação dos governos locais no processo
ção às políticas de habitação e saneamento no decisório. Entretanto, não há nenhuma garan-
governo Fernando Henrique Cardoso. Mas não tia de que tentativas de reversão dos princípios
tenho informações que me autorizem a avaliar do SUS não possam ocorrer no futuro, pois as
que um fenômeno dessa natureza esteja em orientações e as práticas do Ministério da Saú-
curso no SUS. de – e, por conseqüência, de todo o sistema –
Alguns comentaristas afirmam que há prá- tendem e tenderão a variar de acordo com a
ticas autoritárias e centralizadoras dos níveis coalizão política que estiver no poder no exe-
federal e estadual em relação aos governos lo- cutivo federal.
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Na verdade, esta possibilidade não diz res- ardo Marques e Renata Bichir (2002), ao exa-
peito apenas à política de saúde, mas às demais minar os investimentos da Secretaria de Vias
políticas que envolvem relações intergoverna- Públicas do Município de São Paulo, concluí-
mentais no Brasil. Não compartilho da visão – ram que a inclinação político-ideológica do pre-
largamente difundida na literatura – de que feito (...) torna previsível para os eleitores o enca-
nosso modelo de federalismo, tal como dese- minhamento das políticas públicas a serem im-
nhado em 1988, dispersa autoridade política e plementadas. Mais que isso, como bem chama-
constrange a capacidade de iniciativa do gover- ram a atenção os comentaristas, experiências
no federal. Penso que essa avaliação minimiza de gestão municipal e estadual confirmam uma
recursos de poder do executivo federal, como o relação entre orientação político-ideológica do
revelaram a aprovação da Lei de Responsabili- executivo e suas políticas públicas. Entretanto,
dade Fiscal, da Emenda Constitucional no 29/ essa relação varia de acordo com as políticas,
2000, do Fundef, para citar apenas alguns exem- mais particularmente da autonomia decisória
plos. O que ocorre na área da saúde, entretanto, do executivo local em cada política particular.
é que essa concentração de autoridade está tam- Se esta é razoável na área de obras públicas, por
bém inscrita no próprio modelo de gestão da exemplo, é bem mais reduzida na área da saúde,
política. como concordamos todos.
Passo ao argumento referente à “defesa” da Assim, na fase de implantação da reforma,
estrutura institucional do SUS. Argumentei que os incentivos contidos nas sucessivas NOBs – is-
penso que esta foi instituída entre 1988 e 1993, to é, as regras do Ministério da Saúde – e o cál-
período em que através da CF, da LOAS e da culo dos potenciais benefícios eleitorais a serem
NOB/93 foram institucionalizados os princí- obtidos com base na ampliação de serviços de
pios de formulação das regras do SUS. Procurei saúde pesaram mais decisivamente do que a in-
demonstrar ainda que os principais atores des- clinação político-ideológica dos prefeitos. Uma
se processo decisório são os eleitores, os gover- vez implantada a reforma, a estrutura institucio-
nos locais, os governos estaduais e o Ministério nal do SUS restringe a autonomia decisória dos
da Saúde. Distintas orientações com relação ao governos locais, ao regulamentar com detalhe as
SUS se distribuem desigualmente entre essas condições para a efetivação das transferências fe-
categorias de atores e se expressam através do derais, reduzindo assim a importância das prefe-
voto, dos cargos no executivo e da representa- rências político-ideológicas na gestão dessa po-
ção nos diversos conselhos. Procurei demons- lítica particular.
trar ainda – e penso que não fui suficientemen- Pretendi argumentar, entretanto, que os
te clara a esse respeito – que estes distintos ato- eleitores têm instrumentos mais limitados do
res têm peso distinto na estrutura institucional que os demais tipos de atores, seja para fiscali-
do SUS, o que não necessariamente determina, zar a implementação da política, seja para in-
mas condiciona tanto as decisões tomadas co- fluir na formulação de suas regras de operação.
mo sua implementação. Isso ocorre porque preferências e avaliações
Penso, assim, que os resultados eleitorais têm com relação à política de saúde não são o único
conseqüências, sim, sobre os rumos do SUS, na componente da decisão do voto, porque o elei-
medida em que determinam quem controlará os tor médio tende a ser menos informado do que
cargos no executivo dos diversos níveis de go- os “participantes ativos” com relação ao desem-
verno. A estrutura do SUS e a natureza do pre- penho de uma política e, finalmente, porque a
sidencialismo brasileiro – válida para qual- participação episódica do voto é menos efetiva
quer nível de governo – permitem a alavanca- do que a participação regular via representação.
gem da orientação política que controla esses Penso que – diferentemente das demais po-
cargos, em detrimento das orientações de polí- líticas sociais que envolvem relações intergo-
tica não representadas no poder executivo. Em vernamentais no Brasil – a política de saúde foi
uma eventual situação de conflito, a orientação a única em que o “jogo das regras” operou no
do primeiro tende a prevalecer, dada a superio- sentido de institucionalizar – de direito e de fa-
ridade relativa dos recursos de poder do execu- to – um sistema decisório que garante represen-
tivo. tação e “voz” aos diferentes atores e interesses
Não pretendi entretanto afirmar que não diretamente envolvidos nesta política. Este sis-
existe nenhuma relação entre preferências par- tema combina concentração de autoridade com
tidárias, resultados eleitorais e as políticas efe- mecanismos de contrapeso a esta mesma con-
tivamente implementadas. Ao contrário, Edu- centração de autoridade. Como observadora da
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política de saúde, constato que há majoritária isto é, cada ator considerava que as regras do jo-
aceitação das instâncias decisórias do SUS, em- go só eram respeitáveis na medida em que per-
bora haja um certo desapontamento quanto a mitissem alavancar os seus próprios objetivos.
seu modo de operação e divergência quanto ao O reconhecimento mútuo dessa prática impli-
conteúdo das decisões tomadas. cou a generalização da desconfiança e a impos-
Ainda assim, considero justa a ressalva de sibilidade de uma solução negociada para os
que minha afirmação de que se trata mais de conflitos. Assim, se os atores agem de modo a
aprofundar e amadurecer o uso dos instrumentos reduzir a credibilidade nas regras instituídas
existentes e menos de redesenhar esta estrutura foi para solução de conflitos porque estas não con-
inconsistente, no sentido de que ela não pode duzem à realização de suas próprias preferên-
ser deduzida da argumentação que a antecede. cias, a própria possibilidade de uma solução ne-
Na verdade, minha afirmação decorre não ape- gociada de conflitos tende a ser inviabilizada a
nas de um reconhecimento da superioridade da médio prazo.
estrutura institucional do SUS, mas também de
questões de princípio.
Penso que não temos no Brasil uma tradi- Referências bibliográficas
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tória política é abundante de exemplos de ade- Arretche M 2002. Federalismo e relações intergoverna-
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