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O SUS que queremos: das e analisar em que medida esses instrumen-


sistema nacional de saúde ou tos e mecanismos estão, de fato, possibilitando
subsetor público para pobres? o alcance dos objetivos reformistas formulados
SUS that we want: national system of inicialmente.
health or public sub-section for poor? É certo, como argumenta Arretche, que as
estruturas estatais e o desenho institucional afe-
Célia Almeida 1 tam o processo decisório a partir de mecanis-
mos administrativos e políticos. Porém, a for-
Debater o artigo de Marta Arretche é um con- ma de implementação, os mecanismos e incen-
vite à reflexão, principalmente porque a autora tivos, os instrumentos de indução e controles
trabalha com dimensões analíticas em especial escolhidos para operacionalizar e gerir deter-
políticas, relativamente pouco estudadas na li- minada política, assim como as formas de me-
teratura disponível sobre a gestão local da polí- dir seus resultados, refletem valores e escolhas
tica de saúde no Brasil. Meus comentários pre- políticas em momentos específicos, revelando
tendem contribuir com o debate, que conside- os objetivos estratégicos de diferentes opções. E
ro necessário e bem-vindo, mas em nada dimi- embora seja verdade que modificações nos ins-
nuem o mérito de seu trabalho. trumentos não significam, necessariamente,
Comparto a opinião de que a reforma do “modificação de paradigma, isto é, na hierar-
sistema de serviços de saúde no Brasil já acon- quia de objetivos de uma política pública”, os
teceu, independentemente de consensos acadê- instrumentos escolhidos e a forma de opera-
micos ou políticos sobre seu início, meio ou cionalização do desenho institucional podem,
fim. Também concordo com seu principal ar- de fato, alterar os objetivos iniciais de uma po-
gumento: a descentralização do sistema de ser- lítica.
viços de saúde para o nível municipal, sobretu- Uma vez implementadas, como se preten-
do da Atenção Básica e ambulatorial, é inegável; dem transformadoras e interferem com interes-
mas não são apenas os atributos da gestão local ses constituídos, as políticas de reforma mudam
que garantem o cumprimento dos objetivos da a agenda pública e os padrões de conflito entre
reforma, pois controles e incentivos contidos no grupos que impulsionam as mudanças subse-
desenho institucional das políticas interferem qüentes (Skocpol & Amenta, 1986). Sendo as-
na qualidade de ação dos governos. Entretanto, sim, as causas e objetivos originais de uma de-
discordo de seu comentário final e penso que terminada política não são necessariamente os
as evidências apresentadas são frágeis para res- mesmos que determinam os seus desenvolvi-
paldar a conclusão de que apenas necessitamos mentos. E isto se dá não apenas pela resistência
amadurecer e melhorar os mecanismos imple- dos perdedores ou oposicionistas, mas pela ine-
mentados. rente dinâmica de sua operacionalização: fre-
Se não se trata mais de avaliar os resultados qüentemente a implementação de uma política
de um “processo de reforma”, como afirma Ar- de reforma traz resultados inesperados ou não
retche, a partir de que premissas seriam analisa- previstos por seus formuladores. Daí a necessi-
dos os mecanismos institucionalizados de ges- dade de um processo contínuo e permanente de
tão dessa política de mudança? A distinção (im- avaliação, revisão e correção de rota, desde que
portante) entre reforma e mecanismos regula- os objetivos iniciais se mantenham vigentes, as-
res de gestão de uma política mereceria ser um sim como a vontade política de alcançá-los.
pouco mais discutida. De fato, a reforma setorial e a criação do
Considero que a análise do processo de re- Sistema Único de Saúde (SUS) significaram, no
forma da saúde no Brasil ainda está para ser plano legal, uma mudança bastante expressiva
feita. Por outro lado, avaliar a gestão de uma na política de saúde brasileira. Mas a pergunta
política de reforma cujos mecanismos de ope- a ser feita é: o direito legal de acesso universal e
ração institucionalizados foram o principal ei- eqüitativo a ações e serviços de saúde em todos
xo de implementação da própria reforma pres- os níveis de complexidade vem sendo assegura-
supõe levar em consideração a concepção de re- do a qualquer cidadão brasileiro, como registra-
forma formulada, o legado das políticas passa- do na Constituição de 1988? Ou, em outras pa-
lavras, em que medida o processo de implemen-
tação do SUS tende a caminhar nessa direção?
1 Departamento de Administração e Planejamento em Saú- Concentrando a atenção na estrutura insti-
de. ENSP/Fiocruz. Almeida@ensp.fiocruz.br tucional formal da política de saúde (arcabouço
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legal e engenharia institucional) e seu desenvol- forte descentralização das competências tribu-
vimento, objeto privilegiado na análise de Ar- tárias, sem mecanismos de redistribuição hori-
retche, algumas questões suscitam debate. Entre zontal; alta descentralização do gasto final de
as dimensões analíticas consideradas pela au- governo; e elevado nível de autonomia orça-
tora – influência do eleitor sobre decisões de mentária, sem definição clara das respectivas
governo; natureza das relações intergoverna- competências dos níveis e governo – e o poste-
mentais; relações entre sociedade civil e gover- rior aumento da carga e recentralização tribu-
nos; e autoridade sobre provedores dos siste- tária (Afonso, 1994; Dain, 1995; Melo, 1996;
mas de saúde – parece-me que a primeira não Lesbaupin, 2000; Prado, 2001; Ferreira, 2002)
integra as instituições formais do SUS e as ou- tiveram duas conseqüências principais: não há
tras três interferem em sua implementação de qualquer orientação geral para a necessária ade-
forma diferenciada. Privilegiaremos apenas al- quação dos mecanismos de financiamento fe-
gumas questões. derativo, sendo que grande parte do processo
de descentralização é comandado pela dinâmi-
ca desse financiamento, e inverte-se a relação
Natureza das relações de determinação: é a descentralização financei-
intergovernamentais ro-orçamentária que define a descentralização
dos encargos, ou em outras palavras – a receita
Parece-me difícil discutir essas relações sem le- tende a gerar seus próprios gastos (Prado, 2001).
var em consideração a especificidade do novo Embora alguns municípios tenham ampliado
pacto federativo brasileiro que começou a ser de forma importante suas receitas próprias e
desenhado na década de 1980 e refletiu-se de inovado de forma significativa a gestão local,
forma particular na área da saúde, condicio- os instrumentos que operam a distribuição dos
nando o ritmo de implementação da reforma e recursos entre níveis de governo ganham espe-
alguns de seus impasses. cial importância, sendo essencial avaliar os me-
O desenvolvimento histórico dos sistemas canismos que determinam a capacidade de gas-
de saúde no século 20, nos distintos países, de- to dos governos subnacionais, especialmente os
monstra que o que muda em cada país, além da municípios.
natureza do federalismo, é o caráter da política No âmbito das políticas sociais, a descentra-
de saúde como política social (ordem e ritmo lização teve motivações diversas daquelas que
da intervenção estatal, escopo da legislação, for- geraram a redefinição do pacto federativo e a
mato institucional, esquema de financiamen- falta de um centro de comando foi particular-
to), que condiciona o tipo de transferências e mente importante, além de que, nos anos 90, a
incentivos federais. área social foi negligenciada, em função das
As relações entre federalismo e descentrali- prioridades estabelecidas pelo ajuste macroeco-
zação são sempre complexas, configurando uma nômico. E a descentralização setorial está inse-
específica dinâmica entre difusão e concentra- rida nesse processo mais amplo de passagem de
ção de poder, espelhando um modelo compar- uma forma extrema de federalismo centralizado
tilhado de nação e graus socialmente desejados para alguma modalidade de federalismo coo-
(ou conseguidos) de integração política e eqüi- perativo, ainda não completamente definido.
dade social (Almeida, 1996). No caso brasileiro, Agora o fato de esse processo ter se iniciado an-
o compromisso federativo e o modelo subja- tes de 1988 está mais vinculado à dinâmica da
cente não são claros e os formatos implementa- democratização e crise fiscal do Estado, do que
dos são carregados de contradições, moldados especificamente à política de reforma setorial.
inicialmente pela transição política e, posterior- Portanto, o recurso às normas operacionais
mente, pela dinâmica dos ajustes macroeconô- para implementar a descentralização na saúde
micos. Os dois fatores – econômico e político – foi a resposta do executivo setorial frente a essa
ainda que concomitantes, tiveram pesos e in- situação federativa e a partir delas tem-se ten-
fluências diversas, sendo que nos anos 80 os im- tado estruturar uma descentralização planeja-
pulsos democratizantes foram mais importan- da de encargos entre níveis de governo. O SUS,
tes e, após 1988, os constrangimentos econômi- como política nacional e como opção de im-
cos ganharam destaque (Almeida, 1995 e 1996; plementação da reforma na saúde, não partiu
Melo, 1993; Melo & Azevedo, 1996). de um modelo acabado, mas foi se desenhando
O desenvolvimento peculiar do novo arran- paulatinamente, ao sabor dos dirigentes no po-
jo federativo forjado na Constituição de 1988 – der e das formas específicas encontradas para
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superar os freqüentes impasses conjunturais, terogeneidades, propiciar maior uniformidade


financeiros e políticos. Por outro lado, a arena nos padrões do gasto per capita, ou para aten-
decisória estruturada com a descentralização der situações emergenciais ou excepcionais. E
politizou de forma importante o processo de para tal, as condicionalidades são necessárias e
decisão. Daí os sucessivos ajustes que as diferen- amplamente utilizadas para induzir a adesão.
tes normas proporcionaram. A forma anterior Embora seja difícil estabelecer uma base ló-
aos anos 90 de transferência de recursos aos es- gica simples de recomendação de mecanismos
tados e municípios teve características bastante que induzam maior ou menor autonomia, uma
diferentes daquelas verificadas ao longo da dé- análise mais precisa dependeria de vários fa-
cada. O importante é analisar os rumos que es- tores, mas ressalta-se entre eles a necessidade
sas sucessivas correções de rota estão impri- de maior clareza sobre o padrão de autonomia
mindo à reforma. municipal vigente na enorme diversidade da
Mencionam-se como traços negativos da realidade local. Por outro lado, a vinculação é
descentralização setorial a excessiva normati- uma alternativa correta para o SUS, mas deve
zação burocrática, redução do poder de deci- ser formatada para ajustar as transferências efe-
são local e controles funcionais desvinculados tuadas de forma dinâmica e eficiente, manten-
da avaliação de resultados, levando à adesão do coerência entre os instrumentos introduzi-
formal aos requisitos para ter acesso aos recur- dos e os objetivos da política que se quer imple-
sos. As diferentes transferências financeiras pa- mentar.
ra distintos programas ou atividades não são O sistema de transferência de recursos “em
uma invenção brasileira nem um problema per bloco” (block grants), utilizado pelo SUS, é inde-
se, podendo ser interpretadas como respostas pendente da contribuição do nível local para a
específicas a distintos problemas. Mas a forma provisão de serviços, induz as áreas menos po-
de condução do processo e os mecanismos de voadas a gastarem menos com saúde e privile-
pagamento que balizam as transferências fi- gia as áreas urbanas, estimulando a competição
nanceiras fazem toda a diferença. fiscal com municípios vizinhos; e o recurso a li-
O dilema que permanece é o da autonomia mites mínimos do gasto em saúde (EC 29) tam-
da gestão local versus implementação de polí- bém tenderá a prejudicar aqueles municípios
ticas de escopo nacional: a autonomia plena se- menores (menos de 10 mil habitantes), uma vez
ria desejável em nome da democracia e da hete- que os maiores já atingiram o patamar de gasto
rogeneidade, mas é fortemente dependente da preconizado, além de praticamente pouco ou
eficiência e competência dos sistemas decisó- nada alterar em relação ao gasto atual (Ferreira,
rios locais e tendente a produzir mais fragmen- 2002; Médici, 2002). Uma alternativa, bastante
tação e perpetuar desigualdades; a vinculação utilizada em outros países, são as chamadas
condicionada transforma os municípios em “transferências casadas” (matching grant), em
“preenchedores de requisitos burocráticos”, ini- que o governo central paga uma parcela fixa do
be a criatividade e o desenvolvimento de capa- total de gastos do nível local, regulado em fun-
cidade local para enfrentar demandas diferen- ção do seu interesse em incentivar um tipo es-
ciadas (Goulart, 2001; Barros, 2001). Aparente- pecífico de gasto, o que reduziria o custo mar-
mente essa dinâmica espelha, por um lado, a ginal do gasto social e tenderia a superar a di-
falta de confiança do nível central na capaci- minuição do gasto local. O problema seria que
dade de implementação local, que não é infun- esse sistema exige um monitoramento rigoroso
dada, e o afã do executivo federal na definição para coibir o incentivo às fraudes embutido na
de critérios “precisos”, que garantam o cumpri- contabilização dos gastos (Prado, 2001; Ferrei-
mento de parâmetros de política nacional fixa- ra, 2002).
dos centralmente. Os incentivos, por sua vez, não necessitam
Na experiência de diversos países em geral, ser exclusivamente financeiros, podendo estar
os aportes federais (ou estaduais) priorizam ati- direcionados para as funções nobres do nível fe-
vidades ou programas que induzem um nível deral (Barros, 2001), fundamentalmente redis-
de gasto superior ao que resultaria de decisão tributivas, isto é, destinadas a melhorar os níveis
orçamentária local e se destinam à indução do de eqüidade do sistema de serviços – investi-
cumprimento de determinados objetivos, defi- mento em capacidade instalada, avaliação tec-
nidos pelos governos de níveis superiores ou nológica, suporte técnico, regulação e distribui-
acordados no pacto federativo, normalmente ção da força de trabalho, sistemas de informa-
com a finalidade de superar desigualdades e he- ção e produção de indicadores de resultados etc.
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Por fim, a revisão da tendência municipalis- tribuição desigual de recursos, para compensar
ta (NOAS 2001), com recuperação do papel do as desigualdades.
nível estadual e a organização de regiões é bem- De uma maneira geral, quando a demanda
vinda e quase tardia. Nas últimas décadas ob- e a necessidade podem ser quantificadas com al-
serva-se essa tendência à regionalização tam- guma precisão, o que não é tarefa fácil, mas não
bém nos distintos países, numa perspectiva de é impossível, a vinculação entre o recurso fi-
fortalecer a condução coordenada do sistema, nanceiro repassado e atividades específicas tem
vinculada a metas de maior responsabilização grande chance de ser bem-sucedida, como por
com a coisa pública e medidas de desempenho. exemplo, no controle das endemias (e outros
Poder-se-ia aproveitar, portanto, para desenca- programas verticais). No caso brasileiro, esse
dear um processo amplo de revisão do SUS, seja controle historicamente era realizado de forma
das prioridades da política de reforma, seja das centralizada, com relativo grau de sucesso, e foi
relações intergovernamentais, seja das formas desorganizado tanto pelo stress fiscal quanto
de transferência e mecanismos de incentivos. pelo processo de descentralização, com recru-
descimento de epidemias (Reis et al., 2001). E
existem indícios de que a descentralização tam-
Priorização de atividades e programas bém afetou de forma importante esses progra-
mas, primeiro porque não foram contemplados
A priorização da Atenção Básica e o repasse de nas primeiras normas, centradas fundamental-
recursos per capita são recomendados para os mente na assistência médica; e, segundo, pela
países com níveis elevados de pobreza e desi- desorganização local frente a retirada do nível
gualdade de distribuição de renda, na perspec- central que comandava e operava os programas
tiva de garantir níveis mínimos de atendimen- verticais localmente (Brito, 2002).
to de serviços básicos, não proporcionados por Penso que o SUS enfrenta tanto o problema
boa parte dos governos locais. da necessidade de garantir um mínimo básico,
Com as mudanças na alocação de recursos quanto de hierarquizar o sistema, assegurando
para a Atenção Básica (PAB, 1998), observa-se a atenção integral – preventiva e curativa. Mas
alguma melhora na redistribuição de recursos. as políticas implementadas não têm apontado
Entretanto, essa nova sistemática distributiva, na direção nem de corrigir as distorções do sis-
apesar de igualar valores per capita para o fi- tema, nem de preservar o que funcionava bem,
nanciamento de atividades ambulatoriais con- evitando o desmonte desordenado.
sideradas básicas, não leva em conta as desi-
gualdades inter-regionais, seja no que se refere
às necessidades de saúde, seja em relação à rede Relação com a sociedade civil
existente de serviços nas diferentes regiões. E as e construção de espaços de negociação
diferentes estratégias e incentivos para a Aten-
ção Básica (PAC, PSF e PACS), por um lado, e De fato a estrutura decisória formal configura-
dos demais procedimentos de maior comple- da com a reforma institucionalizou uma dinâ-
xidade e a atenção hospitalar, por outro, não es- mica inovadora que tem alterado a correlação
tão direcionados para induzir a maior integra- de forças na arena decisória e permitido a ne-
ção dos distintos níveis de complexidade da gociação na formulação e implementação da
atenção e aumentar a resolutividade do siste- política de saúde. E as diferentes normas ope-
ma, configurando, de fato, um “pacote básico” racionais que regulamentam o processo de des-
e “gargalos” de acesso que dificultam a mobili- centralização restauraram o poder de comando
dade do usuário entre distintos serviços no sis- do sistema pelo Ministério de Saúde, deslocan-
tema. Tampouco alteram as assimetrias históri- do outras esferas de poder (como o Legislati-
cas entre o setor público e o privado, cujo mix vo). Entretanto, essa dinâmica tem direcionado
de serviços é diferente em cada localidade, es- os movimentos de participação e expressão na
truturado segundo uma lógica de oferta desor- área setorial para as Comissões Intergestoras
denada e casuística, sem relação com as neces- (em nível federal e estadual), eminentemente
sidades de saúde da população, perpetuando as tecnoburocráticas. E a CIT cumpre papel arbi-
carências históricas. Portanto, o “efeito homo- tral nas complicadas negociações relativas à
geneizador do PAB”, embora possa ser mais re- descentralização política, administrativa e fi-
distributivo pode não ser mais eqüitativo, uma nanceira do SUS, uma vez que reúne, em nível
vez que o alcance da eqüidade pressupõe a dis- federal, os principais gestores da arena, e sua
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pauta de discussão é praticamente elaborada demonstram que os resultados da ação estatal


pelo executivo central. Essa institucionalização podem ser analisados de forma mais refinada e
resgata, em certa medida, o poder da tecnobu- dinâmica, desvendando as conseqüências polí-
rocracia setorial e traz para esse fórum de nego- ticas das políticas anteriormente institucionali-
ciação entre gestores os conflitos inerentes às zadas.
relações entre os diversos níveis de governo, Mesmo entre nós, os regimes burocrático-
tendendo a favorecer aqueles atores que histori- autoritários instituíram políticas sociais, seg-
camente já detinham maior poder de barganha, mentadas e particularistas, manipulando e co-
ou que passam de um cargo a outro, permane- optando as “massas”, é verdade, mas que lhes
cendo na esfera de poder, não raro em diferen- garantiram construção de capacidade estatal e
tes níveis de governo. Mais ainda, essa dinâmi- permanência no poder. Além disso, na vida real,
ca legitima as propostas de política do governo o que vem acontecendo na Argentina e mesmo
federal. o recente processo eleitoral no Brasil (Fiori,
Isso se dá também por um certo desprestí- 2002) tampouco confirmam os achados empí-
gio e em detrimento dos foros colegiados com ricos de Cheibub & Przeworski (1997).
participação paritária da sociedade civil, como Quanto à avaliação do impacto da compe-
os Conselhos de Saúde, nos diversos níveis, on- tição eleitoral na oferta de serviços, o fato de
de persistem muitos problemas, mencionados numa determinada pesquisa não possibilitar a
na literatura, desde a dificuldade de participa- afirmação de que a primeira tenha tido qual-
ção em discussões técnicas, falta de rotativida- quer efeito sobre a última não permite concluir
de das representações, até o desvirtuamento do que não exista correlação entre as preferências
papel dos Conselhos e inefetividade prática de ideológicas do eleitor (ao eleger este ou aquele
suas discussões e decisões (Cortes, 1998; Valla, candidato) e a provisão de serviços em nível lo-
1998; Carvalho, 1995; Labra, 2002). cal. Embora não sejam fornecidos maiores de-
Atualiza-se assim a discussão sobre os meca- talhes metodológicos, talvez os indicadores uti-
nismos mais adequados para o exercício da de- lizados para avaliar a provisão de serviços não
mocracia participativa, além de suscitar a refle- sejam os mais sensíveis para apreender esse tipo
xão sobre a funcionalidade e pertinência desses de correlação. Ou será que inovações gerenciais
arranjos institucionais (Santos, 1998; Lesbau- como o Plano de Atendimento à Saúde-PAS, da
pin, 2000). A maior politização das discussões gestão Paulo Maluf (PPR) em São Paulo (Cohn
sobre a reforma setorial, a complexificação das & Elias, 1999), e o Orçamento Participativo, in-
negociações e a obrigatoriedade de exposição troduzido na gestão Tarso Genro (PT) em Por-
ao debate de diferentes “projetos” e perspectivas to Alegre (Ramminger, 1997; Fedozzi, 1997),
na implementação da reforma é um ganho em não têm nada que ver com determinadas con-
si, mas não elimina ou minimiza a necessidade cepções sobre o sistema de saúde, opções polí-
de ajustes e revisões de mecanismos. ticas, ideológicas e resultados? Seria necessário
utilizar indicadores mais refinados e apropria-
dos para avaliar os resultados da gestão local
Preferência do eleitorado (capacidade dos sistemas de saúde, em diferentes adminis-
de veto aos governantes) e avaliação trações de distintos partidos, e a preferência do
do impacto eleitoral na oferta de serviços eleitorado.

Estas são duas temáticas que podem ou não es-


tar inter-relacionadas. Entretanto, os achados Controle do Estado sobre os
empíricos de Cheibub & Przeworski (1997), provedores de serviços
que não encontraram relação entre desempe-
nho econômico dos governos e sobrevivência Esta discussão a meu ver se vincula à questão
política dos governantes, citados pela autora e, das dimensões do sistema que não foram to-
por extensão, assumidos por ela como aplicá- cadas na reforma da saúde. Entre elas, algumas
veis à área da saúde, não são confirmados por seguem sua própria dinâmica, como a natureza
considerável literatura consagrada internacio- do mix público e privado de serviços, a produ-
nalmente que analisa a política social em geral ção e distribuição de insumos médico-hospita-
e a de saúde em particular. Skocpol & Amenta lares, a regulação da força de trabalho (tama-
(1986) apresentam uma interessante resenha nho, distribuição, “dupla militância”, formas de
dessa literatura sobre a política social na qual remuneração, etc.); e outras estão sendo mexi-
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das há pouco tempo, como a regulação dos pla- será possível repensando que sistema de saúde
nos de saúde privados, a vigilância sanitária e queremos e quais os mecanismos a ser privile-
epidemiológica, a produção/distribuição de me- giados na sua implementação. Decidir “para
dicamentos. Essa assimetria entre o avanço no quem” queremos o SUS. Se concordamos que é
processo de descentralização e as áreas não to- o subsistema público para os pobres, até que
cadas não é casual, nem é uma questão menor estamos indo bem, é só uma questão de aper-
e desvela a natureza da reforma de fato imple- feiçoar mecanismos. Se queremos “outra coisa”,
mentada. temos que repensá-lo.

Conclusão Referências bibliográficas

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Santos WG 1998. A trágica condição da política social, pp.
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Básicas, durante a década de 1990, particular-
Política social e combate à pobreza. Jorge Zahar Ed., mente a NOB/96, a descentralização, ainda que
Rio de Janeiro. apresentando resultados heterogêneos nos vá-
Skocpol T & Amenta E 1986. States and social policies. rios estados, é um “fato inquestionável”, defini-
Annual Review of Sociology 12:131-157. dor da configuração atual do sistema público de
Valla VV 1998. Comentários a Conselhos de Saúde: a
possibilidade dos usuários participarem e os deter-
saúde no país.
minantes da participação. Ciência & Saúde Coletiva Posto isso, a autora trata de reafirmar argu-
3(1):32-32. mentos contrários às crenças amplamente di-
fundidas com relação às “vantagens” da descen-
tralização no sentido de gerar, por si mesma, a
melhoria do desempenho institucional dos go-
vernos locais, chamando a atenção para o fato
de que não há nenhuma garantia de que esse
processo resulte em aumento de eficiência na
Determinantes do desempenho gestão municipal do SUS ou implique, auto-
institucional do SUS municipal: maticamente, democratização do sistema. Con-
controle de gestão ou capacidade cordo inteiramente com a distinção entre os
de governo? processos de descentralização e democratiza-
The health system (“SUS”) performance ção, que obedecem a lógicas distintas, embora
determinants at local level: management possam estar, em algum momento, interligadas.
assessment or governability skills? Além disso, enfatizaria a possibilidade de que,
em nosso contexto, o processo de descentrali-
Carmen Fontes Teixeira 1 zação venha a contribuir para reforçar práticas
políticas patrimonialistas, clientelistas, e autori-
O artigo de Marta Arretche, “Financiamento tárias, bem como gerar a reprodução de práti-
federal e gestão local de políticas sociais: o difí- cas administrativas burocratizadas e ineficien-
cil equilíbrio entre regulação, responsabilida- tes que caracterizam nossa administração pú-
de e autonomia” coloca em debate os resulta- blica, em que pesem eventuais “ilhas de exce-
dos, desafios e perspectivas do processo de des- lência”.
centralização da gestão do Sistema Único de A autora, entretanto, ao assumir como hi-
Saúde, problematizando, especialmente, o pa- pótese que a “qualidade da ação dos governos
pel desempenhado pelas instâncias de controle depende – em grande parte – dos incentivos e
do processo de gestão municipal do SUS. Nesse controles a que estão submetidos”, se propõe a
sentido, traz à tona uma questão central na aná- analisar, exatamente, os mecanismos de contro-
le da gestão do SUS que vêm sendo criados e
institucionalizados ao longo do seu processo de
1 Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. carment@ufba.br construção. Considerando, portanto, que o “de-
353

sempenho dos governos locais é, em geral, re- políticos que disputam as eleições nos vários
sultado do desenho institucional dos sistemas níveis de governo, especialmente no nível mu-
nacionais”, Marta apresenta, em um diagrama, nicipal, refletem sua aprovação ou desaprova-
as quatro dimensões da estrutura institucional ção com relação ao desempenho institucional
do SUS que incidem sobre a gestão municipal, do governo. Nesse sentido, é importante que se
quais sejam, o controle exercido pelos eleitores, especifique o papel que tem desempenhado ou
as comissões intergestores (CIT, CIBES), os pode vir a desempenhar a expansão e reorien-
Conselhos de Saúde e as relações entre gestores tação da prestação de serviços de saúde no for-
e provedores de serviços. Pode-se perceber que talecimento do poder político de determinados
a autora, embora admita que essas instâncias partidos. Se bem, é certo que, como a autora
são responsáveis, apenas “em parte”, pela qua- assinala, na fase de implantação da municipali-
lidade da gestão municipal, adota uma pers- zação, a expansão da oferta de serviços não possa
pectiva que privilegia os controles “externos” ser associada a nenhuma corrente política em
ao sistema municipal de saúde, deixando de la- particular, penso que podem existir diferenças
do, pelo menos, por ora, a análise do governo significativas na prática político-gerencial do
municipal em si, aspecto que, particularmente, sistema de saúde ao nível local, a depender do
considero fundamental para se compreender o partido ou da coalizão de forças políticas que
processo de gestão do sistema de saúde. Reto- ocupem o Executivo e Legislativo nesse nível,
marei, posteriormente, este comentário, mas, diferenças essas que podem implicar a legiti-
em princípio, gostaria de dialogar com a autora mação (ou não) de projetos políticos partidá-
nos seus termos, ou seja, a partir da sua propos- rios distintos.
ta de análise das instâncias e mecanismos de in- Já com relação às instâncias de indução e
dução e controle da gestão local do SUS. controle criadas especificamente no processo de
Assim, creio que uma primeira distinção construção do SUS (Comissões Intergestores e
pode ser feita entre um controle “geral” sobre a Conselhos), gostaria de enfatizar alguns aspec-
gestão municipal, exercida pelos eleitores, no tos relevantes na análise efetuada no artigo de
processo democrático de escolha dos seus go- Marta, tomando a liberdade de acrescentar al-
vernantes e representantes através das eleições gumas inquietações e sugestões para outros es-
periódicas, e as instâncias de controle “específi- tudos.
co” sobre a gestão do sistema municipal de saú- Em primeiro lugar, o reconhecimento do
de, quais sejam, as Comissões Intergestores e os papel das Comissões Intergestores como espa-
Conselhos de Saúde; as primeiras, responsáveis ços de pactuação política em torno das regras
pela negociação e pactuação das regras do pro- do processo de descentralização, cujos resulta-
cesso de descentralização dos recursos e corres- dos se refletiram nas NOBs e na recente NOAS.
pondente “responsabilização” das instâncias es- Nesse sentido, duas questões merecem destaque
tadual e municipal do SUS com relação à orga- e podem vir a ser objeto de estudos e pesquisas
nização da prestação de serviços, e os segundos, específicas: a) a problematização da NOAS, no
instâncias colegiadas de gestão, controle e ava- sentido de sua capacidade de vir a promover ou
liação da política e da gestão do sistema de saú- não a redistribuição de recursos federais de mo-
de em cada nível de governo. Uma segunda dis- do a que sua implementação venha a contribuir
tinção, a meu ver, deve ser feita entre essas ins- para a promoção da eqüidade e a redução das
tâncias de gestão do sistema e as relações esta- desigualdades regionais e estaduais no que diz
belecidas entre gestores e provedores, já que em- respeito à oferta de serviços de saúde; b) os limi-
bora todas essas relações sejam, de modo geral, tes e possibilidades do processo de implementa-
“políticas”, as relações entre gestores e provedo- ção da NOAS induzir uma mudança significa-
res têm um componente econômico pronun- tiva no perfil de oferta dos serviços ao nível lo-
ciado, principalmente as relações entre os ges- cal, de modo que não ocorra apenas uma ra-
tores públicos e os prestadores privados (a rede cionalização da oferta de serviços em função da
contratada e conveniada). organização dos “módulos assistenciais” e “mi-
Com relação ao controle “geral” sobre a ges- crorregiões de saúde”, mas também se estabele-
tão municipal exercido pelos eleitores, penso ça um processo de mudança e transformação
ser importante que se desenvolvam pesquisas do perfil de oferta dos serviços em função da
na direção apontada pelo artigo de Marta, ou heterogeneidade dos problemas e necessidades
seja, que se investigue até que ponto as opções de saúde da população nas diversas regiões, nos
do eleitorado em torno dos distintos partidos diversos estados e municípios (Teixeira, 2002).
354

Em segundo lugar, cabe registrar a contribui- antigo Inamps. De fato, esse risco permanece até
ção da autora na sistematização dos resultados hoje, desde que, mesmo com a mudança estabe-
de vários estudos sobre a atuação dos Conselhos lecida na lógica do financiamento federal, com a
de Saúde no Brasil. Em que pesem as distintas NOB/96 – criação do PAB e transferência fundo
interpretações acerca dos seus determinantes, vá- a fundo – subsiste uma marcada ênfase na oferta
rios estudos apontam as limitações dos Conse- de serviços médicos, ambulatoriais e hospitala-
lhos como instância de efetivo controle social, o res, não só em função da permanência da rede
que não invalida, segundo a autora, a possibili- “contratada e conveniada” como parte do nível
dade de que venham a tornar-se efetivos, na me- operacional do SUS, mas também pela reprodu-
dida em que ocorra sua consolidação. Como ção desse modelo no âmbito da “rede própria”,
profissional que vem se envolvendo há mais de mesmo ao nível básico de atenção. A mudança
dez anos na capacitação de conselheiros de saú- desse modelo, de modo a se criar um certo equi-
de, e em algumas pesquisas sobre seu funciona- líbrio entre as ações de assistência médica, as
mento, concordo inteiramente que não se pode ações de prevenção de riscos e agravos (vigilân-
descartar sua potencialidade. Porém, como afir- cia epidemiológica e sanitária) e as ações de pro-
ma Marta, é preciso analisar sua efetividade to- moção da saúde, ainda é o maior desafio enfren-
mando como referência a “disposição dos gover- tado no processo de construção do SUS, em que
nos para serem controlados”. Isso nos remete, pesem os esforços que vêm sendo desencadeados
novamente, à necessidade de investigar não ape- com a implantação da Saúde da Família e a des-
nas as instâncias e mecanismos de controle, mas centralização das ações de vigilância (Teixeira,
também as características do governo municipal 2002). Por outro lado, a implantação do sistema
e das práticas de gestão do sistema de saúde de- nacional de auditoria, controle e avaliação, bem
senvolvidas. Como já sugeria Paim (1992) há como o fortalecimento das ações de regulação
cerca de 10 anos, é necessário se investigar “co- das relações de compra e venda de serviços, prin-
mo o governo governa”, o que pressupõe, em pri- cipalmente no que diz respeito à média e alta
meiro lugar, a identificação das forças político- complexidade, em sua maior parte sob controle
partidárias nele representadas, seu projeto políti- da rede privada, pode vir a contribuir para a re-
co e, essencialmente, suas práticas – em outras versão do modelo de atenção, mas isso ainda é
palavras, o “perfil” dos dirigentes e os “métodos uma esperança, um caminho a ser construído e
de trabalho” utilizados para a tomada de decisão não uma certeza.
e condução político-institucional, em nosso ca- Concordo com a autora acerca da necessida-
so, do sistema de serviços de saúde, principal- de de se desenvolver estudos que analisem os re-
mente ao nível municipal. sultados alcançados até o momento com a im-
Concluindo o diálogo na perspectiva colo- plantação dessas ações e dessas propostas. Creio
cada por Marta, gostaria de tecer alguns comen- que podem vir a ser realizados tanto estudos de
tários sobre a relação entre gestores e provedores casos, em municípios que apresentem resultados
de serviços, que, na minha opinião, não chega a relevantes e aspectos inovadores na gestão, quan-
se caracterizar como uma instância de “controle to estudos comparativos entre municípios cujas
político” e sim como uma relação de mercado, administrações sejam distintas, tanto do ponto
especialmente entre os gestores públicos e os de vista político-partidário quanto das práticas
provedores privados, que me parece ser a relação de gestão do sistema municipal de saúde. Com
que a autora problematiza ao chamar a atenção isso, será possível articular a compreensão do pa-
para a possibilidade de “captura dos governos lo- pel desempenhado pelos mecanismos de “indu-
cais por interesses privados”. Na verdade, o risco ção” e pelas instâncias de controle gerencial e
de que o processo de descentralização da gestão controle social estabelecidas no desenho e no
conduzisse a um fortalecimento do processo de processo de construção do SUS, com a identifi-
privatização da assistência foi apontado desde os cação da singularidade de cada experiência con-
primórdios da municipalização, por autores co- creta, podendo-se até vir a investigar o papel de-
mo Paim (1991) e Mendes (1992), motivados, na sempenhado pelos “sujeitos” do processo de ges-
época, pela crítica à lógica do financiamento es- tão, sejam os dirigentes e técnicos, sejam os pro-
tabelecida na NOB/91. Mendes apontava, mais fissionais e usuários envolvidos nas instâncias
propriamente, o risco de “inampização do SUS”, colegiadas de decisão, acompanhamento e ava-
entendido como um processo que implicasse o liação da política municipal de saúde.
fortalecimento do modelo médico assistencial Nesse sentido, creio que a contribuição de
privatista e hospitalocêntrico, característico do Matus (1997; 2000), especificamente a noção de
355

“triângulo de governo” e a especificação dos O arcabouço institucional institui,


componentes da “capacidade de governo” – per- mas também exclui
fil do dirigente, sistemas de trabalho e desenho The institutional outline institutes,
organizativo –, bem como as reflexões mais re- but it also excludes
centes de autores como Rivera e Artmann (1999;
2001) acerca da questão da subjetividade na ges- Emerson Elias Merhy 1
tão, desenvolvidas a partir da revisão de autores
que têm trabalhado a proposta de “organizações Comentar o texto de Marta Arretche não é uma
que aprendem”, podem vir a ser extremamente tarefa fácil. A autora consegue com bons argu-
úteis no desenvolvimento de estudos e pesquisas mentos e comprovações nos colocar diante de
que contribuam para o conhecimento e aperfei- questões interessantes e pertinentes para quem
çoamento das práticas de gestão do SUS em to- quer pensar os sentidos das políticas públicas
dos os níveis. na área da saúde, no Brasil atual, no qual, desde
1988, vem se constituindo uma maquinaria es-
Referências bibliográficas tatal para operar projetos governamentais den-
tro do arcabouço do denominado Sistema Úni-
Matus C 1997. Los 3 cinturones del gobierno: gestión, orga- co de Saúde. Aponta para a idéia básica, ao fi-
nización y reforma. Fondo Editorial Altadir, Caracas,
Venezuela.
nal do seu texto, de que o principal da enge-
Matus C 2000. O líder sem estado maior. Edições Fundap, nharia institucional já está feito, na saúde, para
São Paulo. dar conta do que seria necessário na constru-
Mendes EV 1992. O consenso do discurso e o dissenso da ção de políticas sociais universalizantes, equi-
prática social: notas sobre a municipalização da saúde tativas e eficientes. E que o problema central
no Brasil, pp. 6-16. In ABEN, Comissão Permanente
de Serviços de Enfermagem. Descentralização em
seria a não utilização adequada desses arranjos
saúde e a prática de enfermagem (Doc. III), Brasília. nos casos em que tais políticas não são sinérgi-
Paim JS 2002. Burocracia e aparato estatal: implicações cas com estes princípios norteadores.
para a planificação e implementação de políticas de Arretche demonstra, desmitificando, o papel
saúde, pp. 149-162 In Saúde, política e reforma sani- de certos atores nesse cenário da saúde. Mostra
tária. CEPS-ISC, Salvador. (Publicado originalmente
em SF Teixeira (org.) 1992. Estado e políticas sociales
como a força dos eleitores, a ação dos conse-
en América Latina. 1a ed. UAM, Xochimilco, México, lhos ou mesmo a filiação partidária dos gover-
pp. 293-311. nos instituídos não parecem ter grandes pesos
Paim JS 2002. Quando a municipalização não é o cami- para a efetivação das ações governamentais. Há
nho, pp.191-194. In Saúde, política e reforma sani- como que uma inércia operacional, não neces-
tária. CEPS-ISC, Salvador. (Publicado originalmente
em Temas/Radis 12:27-28, nov. 1991, Fiocruz).
sariamente negativa, que impõe uma agenda
Rivera FJU & Artmann E 1999. Planejamento e gestão em para a ação dos governos, nas várias esferas de
saúde: flexibilidade metodológica e agir comunicati- atuação, que constrange suas ações na direção
vo. Ciência e Saúde Coletiva 4(2):355-365. de certos desenhos organizacionais na saúde e
Rivera FJU & Artmann E 2001. Reflexões sobre a subjeti- não de outros; porém, dentro de certos graus
vidade na gestão a partir do paradigma da organiza-
ção que aprende. Ciência e Saúde Coletiva 6(1):209-
de liberdade, como reconhece a autora ao dizer
219. que o município não precisa se subordinar ao
Teixeira CF 2002. Promoção e vigilância da saúde no federal, pois na prática os diferentes níveis go-
SUS: desafios e perspectivas, pp. 101-125. In CF Tei- vernamentais podem navegar em direções dis-
xeira (org.). Promoção e vigilância da saúde. CEPS- tintas. Uns podem, por exemplo, realizar ações
ISC.
mais privatizantes, enquanto outros podem fa-
zer o oposto na construção de seus modos de
fabricar a saúde.
Entretanto, instituir quem é importante
nesse jogo e quais os seus poderes não é tão
aberto assim, de tal modo que no arcabouço de-
senhado, hoje, alguns atores não podem sim-
plesmente dizer que não aceitarão certas regras
e atuarão em outras direções; mesmo para aque-

1 Departamento de Planejamento e Administração de Ser-


viços de Saúde/Unicamp. emerhry@mpc.com.br
356

les que pertencem ao bloco político que se co- pois no texto a autora mostra que os atores que
loca do lado de projetos sociais democratizan- jogam com efetividade, neste momento, são: os
tes e equitativos. Neste jogo é difícil escapar agrupamentos governamentais dos vários ní-
das imposições que o nível federal define para veis, com pesos significativos para o federal e os
a agenda local, como, por exemplo, na constru- municipais, mas conformados principalmente
ção da efetiva responsabilização do gestor local pelos grupos dirigentes das máquinas governa-
pela ação da rede básica convivendo com uma mentais da saúde; as tecnoburocracias médica e
baixa capacidade de agir nos outros níveis. sanitária, que vêm gerando uma infinidade de
Interessante essa dupla situação. De um la- projetos para organizar o SUS, em particular as
do, o constrangimento em certos modos de ope- do Ministério da Saúde; os setores médicos pri-
rar o setor saúde, com a legitimação de alguns vados, que se apresentam sob as mais variadas
atores como peças-chave; e de outro, a possibi- formas organizacionais como prestadores, que
lidade de dar sentido para as ações de saúde de não são homogêneos e não atuam de modo uni-
modos diferenciados, desde que consiga se afas- forme, o que, aliás, é uma marca de todos os
tar das principais determinações do arcabouço atores deste cenário; e, finalmente, os empresá-
institucional, que o reconhece como ator cen- rios capitalistas do setor, que podem se confun-
tral, mas dentro de certas agendas, e não de ou- dir em alguns casos com grupos médicos, mas
tras. não obrigatoriamente. Isto é, vejo que a autora
Qual a importância dessa situação que de- demonstra, mesmo não sendo esse seu objetivo,
termina que o arcabouço institucional não sir- que não são muitos os atores, no Brasil, que fo-
va igualmente a senhores do mesmo campo, ram instituídos por e neste arcabouço e que jo-
que portam modos diferentes de operar o sis- gam estrategicamente no dia-a-dia da constru-
tema? ção da política de saúde, e, felizmente ou não, é
Aproveito, no momento, deste possível de- assim. O cenário é mais pobre do que deseja-
bate que o texto permite, sem desconsiderar que ríamos, mas é nele que vêm se constituindo pe-
há muitos pontos instigantes a dialogar com a quenas e grandes questões. E vale verificar que
Marta. Por exemplo, seria possível perguntar mesmo nessa pobreza ele não é nada uniforme,
sobre os vetos feitos pelo governo Collor às vá- os atores básicos se diferenciam internamente e
rias propostas para a Lei Orgânica da Saúde, uns em relação aos outros.
que mereceria alguma lembrança e problema- Há grupos de secretários municipais que
tização em um texto deste tipo, para mostrar são totalmente sinérgicos com a tecnoburocra-
certos recuos, não sem conseqüências, a certas cia federal do setor, há outros que dizem que
pretensões de construção do SUS; ou, ainda, houve “roubos” da autonomia municipal pela
poderia se perguntar de que modo certas NOBs atual política vigente, mas apontam para res-
foram negociadas e como as acirradas disputas ponsabilidades sérias com a construção do SUS.
em torno delas mostram que essa instituciona- Há grupos médicos que se colocam a favor de
lidade que a autora analisa não foi constituída negociações estreitas com o sistema público, há
sem sérias alterações de alguns projetos mais outros que só se interessam nas agendas gover-
descentralizadores, e o que isso implica em ter- namentais que lhes permitem construir meca-
mos de graus de ação e possibilidades finalísti- nismos decisórios sob o modo de usar os fun-
cas para as políticas implementadas. Porém, dos públicos. Há grupos que pedem a ação mais
apesar dessas questões instigantes, volto à per- efetiva e reguladora dos governos sob os modos
gunta do parágrafo anterior. de agir do setor privado, há outros que dizem
Esse arcabouço que veio se desenhando vem que isso é ir contra a regulação da lógica do
contribuindo e respondendo à construção de mercado, que é quem deveria operar o setor.
que tipo de atores vitais para operarem o cená- Enfim, se há alguma coisa de consenso nesse
rio da saúde? Há mudanças de alguns tradicio- cenário é que não é um cenário consensualiza-
nais? Aparecem novos? Como têm jogado? O do entre os vários atores em cena, inclusive en-
que eles têm negociado entre si? O que de rele- tre os que apostam quase na mesma direção: um
vante podemos perceber do processo? Por que, SUS amplo, democrático, equânime e eficiente.
ao olhar para todos esses anos, as avaliações são E, aí, o que disso podemos perceber mais,
tão díspares, mesmo no interior de grupos que ou mesmo concluir?
sempre estiveram apostando no processo de No mesmo caminho da autora, podemos fa-
construção do SUS, no Brasil? zer várias perguntas sobre quem tem poder de
Estas questões não são escolhas gratuitas, ditar o que deve e pode ser feito, só que reduzi-
357

do ao que esses atores que nomeio podem com- centralizados nos níveis loco-regionais, para os
portar, mas olhando para algumas questões em quais a construção de certos dispositivos insti-
particular, que, em parte, são de alguma forma tucionais, visando dar competência no operar
também colocadas pela autora. as diferentes perspectivas, não consegue se en-
• Será possível a esses atores centrais construí- quadrar no que está desenhado hoje – na ver-
rem modos mais democráticos de se produzirem dade uma prática do nível central que os exclui
e operarem as políticas públicas? Eles apostam, e os subordina como gestores da saúde no pla-
e como, na construção de um modo mais am- no municipal, instituindo-os como restritos
plo de construir as arenas institucionais da saú- administradores de programas e projetos defi-
de no Brasil? Será que apostam? Quais deles? nidos e desenhados fora de seus âmbitos. E o
• Que tipo de práticas de saúde esses atores interessante é constatar que eles se constituem
centrais estão indicando e o que eles têm nego- atores centrais nesses mesmos arranjos.
ciado nessa direção? Podem agir em qualquer Talvez, por isso, instiga a percepção de que
direção ou são determinados por parte do pró- apesar de esta ser uma queixa de muitos gesto-
prio arcabouço que os limita? res locais, na prática, quando vemos sua ação
• Até onde o arranjo institucional comporta por outros desenhos institucionais que lhes ga-
os vários projetos que esses atores bancam, em rantam mais governabilidade nos projetos que
especial os que estão apontando para a constru- desejam, eles se colocam, na maioria das vezes,
ção da universalidade, eqüidade e eficiência na nesse lugar instituído e de modo subordinado
saúde? às regras do jogo. Vemos centenas de secretários
Não é possível responder aqui a todas essas municipais pedirem mais verbas, mas não os
questões, mas dá para indicar algumas refle- vemos propondo novos arranjos que possam
xões. E, nesta linha, entendo que não é seme- permitir novos campos de intervenções nesse
lhante o modo como jogam os quatro tipos de cenário. Instiga-me pensar que dos milhares de
atores centrais, que identifiquei atrás – os agru- municípios brasileiros só uma centena tem rede
pamentos governamentais, a tecnoburocracia de serviços instalada, para dar conta de todos os
médica e sanitária, os setores médicos privados níveis tecnológicos de ação, na saúde, e como os
e os empresários capitalistas do setor. Além de seus gestores não usam desse poder para criar
não serem blocos uniformes, como já apontei, novos mecanismos institucionais que lhes per-
o mais significativo, a meu ver, é que um mes- mitam negociar outros papéis dentro do siste-
mo dispositivo institucional, como por exem- ma. Assumem o seu limite instituído e abrem
plo uma arena institucional específica, pode ser mão de novas possibilidades de alterarem as re-
tão diferente na mão de alguns deles que ela em gras do jogo, à semelhança da conclusão final
si não significa nada, em termos de desenho de da autora que diz que praticamente o arcabou-
política setorial. Isto é, não consigo pensar de ço institucional desenhado é este que está aí, e
modo separado o arranjo institucional dos su- o certo é operá-lo.
jeitos sociais e políticos específicos em suas De fato, não creio nisso. O que está instituí-
ações, e o modo como se determinam mutua- do hoje não serve para outros tipos de ações
mente. que não esse da subordinação que apontei, e
Só a título de aprofundamento específico do isso se repete se olharmos para outras dimen-
que estou escrevendo, proponho imaginarmos sões do debate, como o tipo de desenho que é
como esses atores centrais olham para os vários possível para a construção das práticas de saú-
arranjos institucionais já cristalizados e vêem a de no nível local. Entendo que um nível federal
construção das suas práticas, interrogando se es- que controla a média e alta tecnologia e um lo-
tes arranjos lhes permitem fazer qualquer coisa. cal que opera através da rede básica não é o
Percebemos isso quando interrogamos o melhor desenho de um modelo gerencial para
modo como o nível federal vem impondo, atra- construir uma assistência adequada aos princí-
vés de certos dispositivos instituídos, uma prá- pios da universalidade e eqüidade, para produ-
tica autoritária na construção do modelo de zir modelos centrados nos usuários. O instituí-
atenção à saúde, ou mesmo vem impondo cer- do obedece a certas regras do jogo e não admi-
tos dispositivos e modos de decidir sobre a po- te outras. Por isso, vejo sob o mesmo ponto de
lítica, que vem se chocando com as perspecti- vista o debate em torno da construção do Pro-
vas de alguns atores governamentais ou frações grama de Saúde da Família, que não entendo
da tecnoburocracia médica e sanitária. Esses se do jeito que o governo federal compreende ho-
colocam como defensores de modelos mais des- je, como um novo modelo assistencial, neces-
358

sariamente contrário ao médico hegemônico. antes da definição de seu arcabouço legal com
E, por tipos de argumentos, procuro indicar a Constituição Federal de 1988 e as leis federais
possibilidades de dialogar com a autora, ques- no 8.080 e 8.142, ainda no bojo das Ações Inte-
tionando-a em torno de sua tese central: será gradas de Saúde (AIS), aguardam um balanço
que o arcabouço institucional construído para aprofundado e definitivo, pautado em avalia-
o SUS nesses anos está praticamente bem enca- ções empíricas mais isentas, como nos alerta
minhado na direção de uma política mais efi- Marta Arretche, não diferindo, nesse ponto, das
ciente, universal e equânime? experiências dos demais arranjos descentrali-
zados de políticas públicas implementados em
outros países. No nosso caso, observa-se uma
clara contaminação das avaliações pelos varia-
dos vieses ideológicos e posicionamentos polí-
ticos dos autores que pretenderam envidar esse
esforço avaliativo. A elevada conflitividade da
“arena de políticas” que o SUS representa tal-
Avançando na gestão descentralizada vez possa explicar essa dificuldade analítica. A
do Sistema Único de Saúde: se aceitar a categorização proposta por Theo-
a busca do federalismo cooperativo dore J. Lowy (1964), o sistema de saúde brasi-
Towards decentralized management leiro pode ser classificado como uma arena ti-
of the Brazilian health system: picamente “redistributiva”, a mais conflitiva de
searching for a cooperative federalism todas. Esse autor propõe a existência de “arenas
de políticas”, delimitadas pelos impactos de seus
Francisco Carlos Cardoso de Campos 1 custos e dos benefícios que os grupos de interes-
Maria Helena de Carvalho Brandão 1 se esperam de sua implementação e as classifica
em quatro categorias: 1) as políticas regulató-
Introdução rias, formadas por normas e cuja coerção se exer-
ce de forma direta e imediata sobre o comporta-
O artigo da professora Marta Arretche, que nos mento individual; 2) as políticas distributivas,
coube comentar, representa mais uma contri- que consistem na repartição dos recursos me-
buição dessa pesquisadora no entendimento do diante sua desagregação em pequenas unidades
complexo federalismo brasileiro. A sua extra- independentes umas das outras e livres de toda
ção externa ao setor saúde, advinda do campo regra general; 3) as políticas redistributivas, que
da ciência política, e sua relativamente recente implicam o estabelecimento de critérios por parte
aproximação a esse “subsistema de políticas” ain- do setor público, dando acesso a vantagens que se
da lhe permitem um certo “olhar distanciado”, outorgam não a sujeitos específicos, mas a classes
uma visão mais isenta dos movimentos nessa de casos ou de sujeitos, sendo a “arena mais con-
arena política tão ideologizada e conflitiva. Sua flitiva de todas”; 4) as políticas constitutivas,
reflexão instiga a tentação de se tecer comentá- que traduzem em definições, por parte do poder
rios a cada parágrafo, pela abrangência e pro- público, das regras do jogo em geral, podendo sig-
fundidade que alcançou em sua análise. No re- nificar reformas constitucionais, institucionais ou
servado espaço dessas notas, limitamo-nos, com administrativas, apresentando um elevado grau
certo pesar, a focalizar apenas algumas das ques- de conflito (idem).
tões que julgamos relevantes para o momento As elevadas expectativas suscitadas pela des-
político-institucional por que passa o sistema. centralização das políticas públicas no contexto
da redemocratização do país alçaram-na a ver-
dadeira consigna política, como historia Maria
A descentralização do sistema de saúde: Hermínia Tavares de Almeida (1995), pois se
expectativas e limites tratava de desmontar e reconstruir as estrutu-
ras centralizadas do regime autoritário ante-
Os resultados do prolongado processo de des- rior. O processo da Reforma Sanitária brasilei-
centralização da gestão do sistema de saúde bra- ra não ficou infenso a esse influxo e elegeu a
sileiro, que se iniciou na década de 1980, mesmo descentralização do sistema de saúde como um
princípio organizativo, conseguindo mesmo in-
seri-lo com uma diretriz constitucional. O aler-
1 DDGA/SAS/MS. ta da professora Marta Arretche quanto aos efei-
359

tos adversos e as limitações dos processos de por uma delas; a “resolução de problemas”, im-
descentralização, expresso em diversas publica- plicando interesses comuns, uma relativa abertu-
ções, além desta que comentamos, induz a uma ra ao intercâmbio de informação e a busca e sele-
reflexão mais equilibrada sobre esse extenso ção de alternativas que beneficiem a todas as
movimento. A sua crítica ao automatismo entre partes; a “gestão cooperativa”, que supõe alguma
a gestão descentralizada e o alcance de níveis forma de acordo, que vai desde os informais até
superiores de responsabilidade, acesso e eqüi- convênios formalizados por escrito e, finalmente,
dade, e a sua vigorosa defesa de arranjos insti- o “desenvolvimento das capacidades de cada ní-
tucionais adequados à indução de boas práti- vel de governo”, que lhes permite adquirir as ha-
cas de gestão, através de incentivos e controles bilidades de prever e influir nas mudanças, para
pelos demais níveis de gestão, introduz uma vi- tomar decisões bem fundamentadas, atrair, ab-
são diferenciada do discurso usual de uma re- sorver e gerir recursos e também para avaliar as
levante parcela dos atores da arena setorial. atividades com vistas a adquirir referências para
ações futuras.
Toda essa argumentação conflita com con-
Indução, resistências e curtos-circuitos cepções bastante presentes no discurso de mem-
na rede intergovernamental bros da “rede de assunto” que permanentemente
discutem o financiamento do SUS, que aspiram
A necessidade e a adoção de incentivos que pro- por um modelo de transferências globais sem
movam a indução de boas práticas de gestão qualquer condicionamento, chegando alguns a
pelos níveis subnacionais, defendida pela auto- propor o repasse da totalidade dos recursos pe-
ra, são interpretadas, muitas vezes, por deter- lo critério populacional, pura e simplesmente.
minados atores constitutivos dessa arena, co- A experiência das transferências de recur-
mo uma tendência recentralizadora promovida sos para cobertura das ações e serviços de Aten-
pelo Ministério da Saúde. Por outro lado, reco- ção Básica calculados sobre um valor per capita
nhece-se que a excessiva decomposição dos re- nacional (o Piso de Atenção Básica), embora
cursos do custeio do sistema em incentivos fi- vinculado a compromissos formais de execução
nanceiros com destinação específica resulta de um rol de ações pactuado, demonstrou ser
numa exagerada complexidade do modelo de um mecanismo indutor frágil das práticas de
financiamento, dificultando até mesmo sua com- saúde coletiva, como sugerem avaliações realiza-
preensão pelos atores. A simplificação do mo- das pelo Ministério da Saúde (dados não publi-
delo de financiamento, com a unificação de in- cados). A debilidade dos mecanismos de acom-
centivos para áreas mais abrangentes, talvez se- panhamento e controle sobre a utilização ade-
ja uma questão a ser inserida na agenda de ne- quada daqueles recursos, bem como a inexis-
gociação intergestores num futuro próximo. Re- tência de dispositivos que garantam a responsa-
forçando a linha de raciocínio apresentada por bilização dos gestores, resultou muitas vezes no
Arretche, aduzimos a contribuição de Robert não cumprimento dos compromissos assumi-
Agranoff (1989) que relaciona entre os mecanis- dos. A constatação dessas debilidades reforça as
mos de gestão intergovernamental, verificada posições expressas pela autora, para quem não
em outros sistemas de políticas, a “administra- seria suficiente confiar que os incentivos à gestão
ção de subvenções”, dentre outros mecanismos. responsável dos governos possam advir exclusiva-
A gestão intergovernamental das políticas mente da ameaça de punição dos eleitores.
públicas pressupõe a utilização de diversos me- Por outro lado, há que se reconhecer os re-
canismos ou técnicas de gestão. Muniz (1997) sultados positivos possibilitados pelas transfe-
enumera várias de tais técnicas dentre as arrola- rências fundo a fundo do PAB fixo que, de for-
das por Agranoff (1989): a “regulação”, bem co- ma pioneira, aportou recursos significativos pa-
mo “alterações das rotinas intergovernamentais”, ra a quase totalidade dos municípios desenvol-
com a intenção de determinar o comportamento verem ações de Atenção Básica (exceção de ape-
das outras unidades de governo; a “administração nas 22 municípios ainda não habilitados em
de subvenções”, tanto por parte de quem as rece- nenhuma forma de gestão), induzindo a estru-
be como de quem as concede, com o fim de cana- turação dos órgãos gestores municipais, bem
lizá-las para seus interesses; a “negociação” me- como o exercício pleno de suas capacidades de
diante mecanismos mais ou menos formais desde gestão sobre esses recursos.
um enfoque, em que se concebem como perdas Os citados questionamentos acerca da com-
para as demais partes os benefícios alcançados petência do nível federal em estabelecer meca-
360

nismos indutores de políticas, e do condiciona- existentes entre municípios menores, despos-


mento de transferências a compromissos bem suídos de estruturas assistenciais completas, e
estabelecidos por parte dos gestores, demons- aqueles com estruturas mais completas (pólos
tram a permanência de disputas quanto aos li- de referência) se ampliaram de forma crescente,
mites das competências e atribuições dos três a ponto de comprometer, em muitos casos, as
níveis de governo, caracterizando ainda uma fa- necessárias relações de cooperação, redundando
se conflitiva nas relações intergovernamentais em perigoso risco de fragmentação do sistema.
no setor, típica da transição de um modelo cen- A revisão desses dispositivos, através das
tralizado para um modelo descentralizado, ain- Normas Operacionais da Assistência à Saúde
da em construção. Essa tensão permanente pa- (NOAS SUS 01/01 e NOAS SUS 01/02) foi, em
rece indicar que, apesar da crescente consolida- grande parte, motivada pela tentativa de supe-
ção dos mecanismos institucionais construídos ração dos conflitos intergestores, que passaram
no período, a Reforma Sanitária Brasileira apre- a representar em dado momento, e ainda não
senta-se como um processo ainda inconcluso. podem se considerar plenamente equaciona-
Temos, no entanto, de concordar com Marta dos, barreiras ao acesso dos usuários do sistema
Arretche, se passarmos a considerar essas mu- à totalidade dos serviços existentes nas suas re-
danças nos mecanismos institucionais mera- giões. O esforço de regionalização do sistema,
mente tópicas, sem ameaçar os fundamentos do com o desenho de redes funcionais hierarquiza-
paradigma de política pública representado pe- das, perpassou ambas as normas, representan-
lo SUS, considerada aqui uma abrangente polí- do um mecanismo negociado de garantia de
tica de bem-estar social, elaborada e implemen- acesso a todos, através da indução de práticas
tada num contexto totalmente adverso, quan- solidárias entre os gestores públicos.
do a maioria dos países se voltava para reformas Análises preliminares dos Planos Diretores
inspiradas em propostas liberalizantes e “deses- de Regionalização (PDR), Planos Diretores de
tatizantes”. Investimentos (PDI), e das Programações Pac-
tuadas e Integradas (PPI) – instrumentos opera-
cionais instituídos pelas NOAS – têm demons-
A norma operacional da assistência trado avanços importantes na aproximação dos
e a busca de relações cooperativas serviços aos cidadãos, condição inicial para se
entre os gestores falar em garantia de acesso e busca de eqüidade.
Estudos mais aprofundados já se encontram em
Se a descentralização da gestão do sistema im- andamento e, esperamos, possam comprovar
plicou uma crescente participação relativa dos categoricamente essa tendência redistributivista.
municípios na oferta dos serviços ambulatoriais Em seu artigo, Arretche apresenta alguns
e hospitalares, bem como um significativo in- dados sobre a evolução da produção ambulato-
cremento na participação dos recursos federais rial, consultas básicas, visitas domiciliares, ser-
sobre o seu comando (como bem documenta a viços de alta complexidade e gastos com AIHs e
professora Arretche em seu artigo), esse movi- SIA, entre os anos de 1997 e 1999. Embora ad-
mento trouxe para a arena setorial um enorme mita um crescimento da oferta de alguns desses
contingente de novos atores. Atuando como blocos de serviços e dos gastos, conclui, através
agentes, muitos deles tendem a buscar maximi- da verificação dos desvios padrão, que aumen-
zar seus benefícios, inclusive eleitorais, desvi- taram no período, que teria havido uma maior
ando-se muitas vezes dos objetivos gerais do concentração dos gastos e serviços entre os mu-
sistema e ameaçando a necessária solidarieda- nicípios. Seria mais adequado concluir, a nosso
de com os demais gestores municipais. Apesar entender, apenas que tenha se verificado um
de sua elevada potência em promover a descen- alargamento da faixa de variabilidade dos valo-
tralização rápida da gestão do sistema, os dis- res per capita analisados. Ao se efetuar o cálculo
positivos normativos representados pelas Nor- dos Índices de Gini para a totalidade dos recur-
mas Operacionais de 1993 e 1996, ao ampliar a sos federais transferidos a todos os municípios
autonomia local sem garantir instrumentos efi- brasileiros, para um período semelhante, pode-
cazes para a coordenação regional das políticas se chegar a conclusão exatamente oposta: a de
por parte dos estados federados, possibilitaram que houve, de fato, uma redistribuição, embora
a intensificação do conflito redistributivo ine- tímida, mas com uma tendência inequívoca de
rente ao sistema de relações intergovernamen- desconcentração dos recursos. Isso pode ser ve-
tais representado pelo SUS. As contradições rificado na figura 1.
361

Figura 1
Evolução do índice de Gini para as transferências federais para os municípios brasileiros, 1997-2001.

0,0450
0,0400
y = 0,0044x - 8,7464 0,03929
0,0350 R2 = 0,6915

0,0300

0,0250 0,02251
0,02275 0,02265
0,0200 0,01742
0,0150
Índice de Gini

0,0100

0,0050

0,0000
1997 1998 1999 2000 2001 Ano

Uma questão ausente no artigo de Arretche, no mínimo equivocadas, expressas por alguns
mas que tem freqüentado a agenda intergover- atores, de que o custeio da assistência à saúde
namental, é a limitação da discussão dos recur- seria uma atribuição exclusiva do nível federal.
sos de financiamento aos recursos federais. Pa-
ra a autora, a “concentração das funções de fi-
nanciamento” no nível federal torna os gover- O desenho institucional do SUS:
nos locais fortemente dependentes das transfe- inovação e debilidades
rências do Ministério da Saúde. Cabe ponderar
que a participação relativa dos demais níveis de A grande inovação que a “engenharia institu-
governo no financiamento de custeio tem cres- cional” do SUS traz para o conjunto das políti-
cido, como demonstram diversos estudos. Res- cas públicas é o formato que adquire o proces-
salte-se a crescente participação relativa dos so de negociação das diretrizes e mecanismos
municípios no financiamento do sistema veri- da descentralização. As Comissões Intergesto-
ficada nos últimos anos, que lamentavelmente res (Comissão Intergestores Tripartite, no nível
não tem sido, em geral, acompanhada de maior federal; e Comissões Intergestores Bipartite, no
participação dos estados. A edição da Emenda âmbito estadual), introduzidas pela NOB/93,
Constitucional n. 29, que vincula receitas orça- constituem importantes dispositivos de trata-
mentárias para a saúde, não tem sido rigorosa- mento e resolução dos conflitos inerentes ao
mente respeitada por alguns estados, com ar- sistema de relações intergovernamentais, im-
gumentações diversas, como a da não regula- pedindo muitas vezes que esses conflitos extra-
mentação da Emenda. polassem os limites do campo setorial para os
No entanto, o conhecimento dos montan- outros espaços de resolução de conflitos do sis-
tes disponíveis para o custeio e investimento tema político, como o Poder Legislativo e o Ju-
no sistema, e a instituição de mecanismos de diciário, aliviando as suas já sobrecarregadas
discussão tripartite da destinação da totalidade agendas. Contribuiu, também, sobremaneira,
dos recursos SUS, e não apenas dos montantes para reduzir os espaços de poder discricionário
transferidos pelo nível federal, representaria de cada nível de gestão, realidade com a qual
um enorme salto qualitativo na relação inter- muitos atores não se conformam e tentam con-
gestores. Tentativas empreendidas até o presen- tinuamente subverter, utilizando-se de estraté-
te, no sentido de buscar a uniformização das gias as mais variadas. A negociação, como re-
aberturas orçamentárias dos três níveis, têm si- gra básica da convivência e da construção soli-
do infrutíferas e dificultadas por concepções, dária da gestão do sistema de saúde, passou a
362

ser um pressuposto da relação entre os níveis de quem lhes cabe regular.


governo, até mesmo na elaboração das normas A idéia, portanto, de que a NOAS se orienta
que regem essas mesmas relações. pela ampliação da noção da Atenção Básica pela
Cabe aqui pontuar uma questão que consti- qual os municípios seriam responsáveis, e reservan-
tui, a nosso ver, um fator limitante da eficácia do do à União e aos estados a gestão da média e alta
processo de negociação intergestores: a debilida- complexidade, como sustenta Barros (2001), não
de da representação municipal nos fóruns inter- resiste, de nenhuma forma, a uma leitura mais
gestores. Tanto o governo federal quanto os esta- cuidadosa da própria norma. Mesmo a
dos conseguem demarcar e unificar claramente NOAS/2002 não define essa partição de gestão da
suas posições. Os gestores estaduais sistematica- rede por nível de complexidade, muito pelo con-
mente se reúnem em assembléia para analisar as trário: o comando único passa a ser exercido pe-
pautas da CIT. O relativamente reduzido número los municípios em condição de gestão Plena do
de estados e, portanto, de interlocutores, facilita e Sistema e, em caso de acordo na CIB, pelos esta-
possibilita a tomada conjunta de posições e uma dos. Nunca, porém, o comando sobre os presta-
intervenção mais coerente nesse fórum. Já os mu- dores fica dividido, como permitido nas normas
nicípios, embora absolutamente majoritários nu- anteriores.
mericamente, tanto pelas suas contradições in-
ternas quanto pela óbvia dificuldade de comuni-
cação e articulação entre os milhares de secretá- Conclusão
rios municipais, tendem a apresentar uma repre-
sentação menos uniforme. Essa debilidade estru- O SUS tem demonstrado um amadurecimento
tural da representação municipal nas instâncias das práticas de negociação entre os gestores dos
intergestoras somente pode ser superada por um três níveis de governo e o aperfeiçoamento con-
grande esforço de desenvolvimento e integração tínuo dos dispositivos institucionais que possibili-
das redes intergovernamentais no âmbito dos es- tam a gestão cooperativa do sistema. No entanto,
tados, como defende Campos (2001), um dos au- resta muito a ser feito e desenvolvido, principal-
tores desses comentários, em artigo anterior. mente na simplificação dos mecanismos de finan-
Quanto à relação dos gestores com os presta- ciamento e melhoria dos mecanismos de controle
dores de serviço – públicos e privados –, não só a e regulação das relações intergestores e das rela-
Norma Operacional da Assistência à Saúde – SUS ções dos gestores com os prestadores de serviços
01/01 (NOB 01/01), mas também a sua revisão de saúde. Mesmo se reconhecendo a legitimidade
mais recente (NOAS 01/02) estabeleceram forte- e oportunidade do estabelecimento de mecanis-
mente o princípio da unificação do comando so- mos de condicionamentos mínimos que induzam
bre os prestadores, ao contrário do que sugere a boas práticas de gestão e a execução de ações de
autora: embora esteja em curso uma mudança na saúde de forma uniforme em todo o território na-
concepção de qual nível de governo deva ter autori- cional, essas questões devem freqüentar a agenda
dade para regular quais tipos de provedores, per- dos dirigentes do SUS no futuro próximo. A sim-
manece a concepção de que o Estado deve ter auto- plificação dos mecanismos de financiamento,
ridade para regular os prestadores de serviço (Ar- bem como a consolidação dos seus diversos com-
retche, 2002). ponentes de custeio atualmente observados, apre-
As “partilhas de gestão” entre os municípios e senta-se como um desafio a ser enfrentado no fu-
os estados foram possibilitadas pela NOB/96, turo próximo, sob pena de sobrecarregar os gesto-
que, embora reservando o comando único aos res com os inúmeros procedimentos administra-
municípios na condição de Gestão Plena do Sis- tivos que lhes correspondem.
tema, permitiu, nas suas disposições transitórias, A elevada conflitividade da arena de políticas
que qualquer pacto acordado nas CIBs prevalece- do setor dificulta o estabelecimento de relações
ria sobre os dispositivos da própria norma. Essa mais cooperativas entre os três níveis de governo
abertura engendrou verdadeiras aberrações na e, mesmo entre gestores municipais e estaduais
relação com os prestadores de serviços, observan- que disputam por recursos e ampliação de seus
do-se divisões de comando entre estados e muni- benefícios. Os recursos financeiros envolvidos nas
cípios (e fontes de pagamento diferentes, conse- negociações têm se restringido àqueles arrecada-
qüentemente) para uma mesma entidade. Os dos e transferidos pelo nível federal, não envol-
prestadores submetidos a duplo comando, na vendo a totalidade dos recursos do SUS, restrin-
verdade, tendem a não se submeter a comando gindo-se a transparência dos montantes envolvi-
algum, ou talvez, passem mesmo a manipular dos no financiamento solidário do sistema, con-
363

dição fundamental para a sua gestão cooperativa


e a busca da desejada justiça distributiva. Equilíbrio e ousadia:
desafios atuais à gestão do SUS
Balance and daring: current
Referências bibliográficas challenges to the management of SUS
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In JL Perry (ed.). Handbook of public administration. Maria Luiza Jaeger 2
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Almeida MHT 1995. Federalismo e políticas sociais. Re-
vista Brasileira de Ciências Sociais 28(10):88-108.
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Barros E 2001. Implementação do SUS: recentralizar será A descentralização da gestão de políticas so-
o caminho? Ciência e Saúde Coletiva 6(2):307-310. ciais, que vem amalgamando expectativa de tão
Campos FCC 2001. Gestão intergovernamental e finan- “virtuosos” resultados, conforme registra a au-
ciamento do Sistema Único de Saúde: apontamentos tora, vem demandando, igualmente, renovadas
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Mandell M 1994. Gerência intergovernamental: uma pers- Dos possíveis recortes para o difícil exercí-
pectiva revisada. In B Kliksberg (org.). Pobreza: uma
questão inadiável; novas propostas a nível mundial.
cio de comentar a robusta reflexão apresentada,
Enap, Brasília. optamos por escolher algumas questões, segu-
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lítica de medio ambiente en Brasil: un enfoque de ges- gestão estadual do Rio Grande do Sul.
tión intergubernamental. Tese de doutoramento. Uni- A primeira questão, recortada das conside-
versidad Complutense de Madrid.
Muniz RM 1997. El nuevo pacto federativo y la gestión in-
rações iniciais do artigo, refere-se à implemen-
tergubernamental: notas para un nuevo campo de in- tação do processo de reformas do setor saúde.
vestigación en Brasil. CEPEAD/UFMG, Belo Hori- Se é verdadeiro o fato de que há um resultado
zonte. (Série “Ensaio de Administração – Texto 007). institucional, um arcabouço legal e um conjun-
to de iniciativas que constituem concretude ao
ideário da reforma, será verdadeiro também
que a reforma do setor saúde já aconteceu? Bas-
tará visualizar alguns fluxos descentralizadores
e/ou desconcentradores da instância federal de
gestão e a existência de estruturas institucionais
para compartilhamento da gestão de políticas
para constatar a implementação da reforma do
setor saúde?
Na nossa experiência de gestão e de reflexão
sobre as políticas de saúde, temos alimentado a
convicção de que há outro plano de avaliação
que precisa ser considerado para fortalecer essa
afirmação: as práticas institucionais, a operação
concreta de fluxos e instrumentos da gestão
descentralizada, particularmente pelas esferas
estaduais e pela federal. Nesse plano de reflexão,
nossa experiência reencontra uma das conclu-
sões do artigo, de que o desafio atual “consiste

1 Secretaria de Políticas de Saúde, Ministério da Saúde.


alcindo@saude.rs.gov.br
2 jaeger@zaz.com.br
364

mais em amadurecer a utilização dessa estrutu- não somente na esfera municipal, mas particu-
ra institucional [criada no processo de reforma] larmente entre os estados e a União.
e menos em redesenhá-la”. Ainda há o que fa- Julgamos ser indispensável considerar um
zer, e muito, para efetivar/tornar concreta a re- contexto mais amplo na análise dos mecanis-
forma do setor saúde. mos e fluxos da descentralização, já que a inten-
Mantendo apenas a “atividade e a responsa- cionalidade desse processo, como bem relem-
bilidade de dirigir um sistema de saúde” como bra a autora, já tem forte registro, inclusive na
o eixo da reflexão, segundo a definição de ges- Constituição e na legislação complementar. A
tão que está registrada na NOB/96, é inegável gestão do SUS, segundo as disposições legais,
que há mais do que resquícios autoritários e deve ter como objetivo principal a garantia do
centralizadores na condução das políticas de acesso equânime e universal às ações e serviços
saúde nas esferas estaduais e, principalmente, que proporcionem a atenção integral à saúde.
na federal. Não nos parece ser exatamente sufi- Ora, sendo a integralidade da atenção um con-
ciente avaliar a implementação de normas fede- ceito que deve estar associado à vida das pesso-
rais para dimensionar a extensão da descentra- as, seguramente é na dimensão local, com confi-
lização, se esta for entendida como um processo gurações tão heterogêneas quanto é a realidade,
de mudanças institucionais e reordenamento que tem melhores condições de ser auferida e
dos modos de relação entre as três esferas de planejada, devendo, portanto, ser expressa com
governo, com uma direcionalidade marcada pe- particular intensidade no âmbito municipal
la idéia de horizontalidade. O volume de nor- (Righi, 2002). Seguramente partiu dessa pre-
mas federais, publicadas com uma velocidade e missa a disposição constitucional de que os es-
uma regularidade de impressionar até mesmo tados e a União caracterizem sua atuação como
as próprias estruturas federais de gestão da saú- de cooperação técnica e financeira com os mu-
de, por si, já mostra o limite dessa vertente ava- nicípios.
liativa. Mais do que alocar à idéia da descentra- Conforme afirmam diversos autores, entre
lização uma marca contraditória, as normas in- os quais Carvalho (1997), a remodelação insti-
fraconstitucionais têm criado, por vezes, ten- tucional proposta de forma inovadora no pro-
dências fortemente centralizadoras. cesso de reforma tem por objetivo tornar o Es-
Tomando as disposições constitucionais co- tado capaz de implementar os princípios finalís-
mo um marco fundamental do processo de re- ticos da Reforma Sanitária, como a universalida-
formas, é inegável perceber que os sucessivos de, a eqüidade, a integralidade, expressivos do di-
recortes de caráter predominantemente buro- reito à saúde como um direito de cidadania. Se-
crático produzidos pelos instrumentos norma- gundo o autor o núcleo de idéias-força do pen-
tivos federais para a definição de responsabili- samento reformador prescrevia que o Estado de-
dades e prerrogativas dos estados e municípios veria ser aproximado da sociedade usuária e
não vêm mostrando uma tendência compatível permeabilizado a suas demandas. As diretrizes
com as disposições da Carta Magna. A dimen- constitucionais de participação da comunidade
são processual de implementação da reforma, e de descentralização, com direção única em ca-
por vezes, tem sido submetida a retrocessos im- da esfera de governo (CF, Art. 198, I e III), com
portantes (Carvalho, 2001). Fazendo alusão às o objetivo de fortalecer a expressão e a legiti-
conclusões da autora, nos últimos anos, o pro- midade política das demandas da população e
cesso de reforma tem sido mais marcado por para aproximar dela a decisão sobre a aplicação
sucessivas tentativas de redesenho dos meca- de recursos e a execução de prioridades, são, na
nismos institucionais e fluxos de gestão do que verdade, as idéias inovadoras fundamentais para
propriamente pelo seu amadurecimento. Parece o sistema de saúde tal como definido pela Cons-
estar havendo uma tentativa de tutela do proces- tituição e pleiteado pela Reforma Sanitária.
so de descentralização da gestão, pasteurizan- Vistos dessa perspectiva, os problemas rela-
do-a a uma simples operação desconcentrada tivos ao equilíbrio entre regulação, responsabi-
de procedimentos e fluxos, inclusive no que se lidade e autonomia das instâncias municipais
refere ao financiamento. não podem ser identificados apenas pelo com-
Por outro lado, também os outros dois pila- ponente local: a permeabilidade ou não do mu-
res da tríade de diretrizes constitucionais, indis- nicípio ao controle social; o nível de eficácia
sociáveis no ideário da reforma, têm sido ate- que demandas corporativas têm sobre as ins-
nuados. Participação da população e integrali- tâncias locais; a capacidade criativa para a pro-
dade da atenção têm sido objeto de negligência posição de soluções adequadas aos problemas
365

configurados em cada realidade; a maior ou no interior do aparato desenhado nesse proces-


menor resistência dos governos locais em im- so. Trata-se de analisar o contexto onde se de-
plantar as normas verticais emanadas da gestão senvolveram as inúmeras experiências exitosas,
estadual e/ou federal; a capacidade ou não dos mesmo em meio às adversidades já rapidamen-
governos locais em utilizar os recursos em prol te referidas. Essa emergência, por si só, mostra a
da população e de acordo com os princípios es- potência do processo de reformas.
tabelecidos pela legislação; todos esses proble- Nesse plano de análise, não há como des-
mas têm equivalência nas esferas estaduais e fe- considerar o fato de que, na sua maioria, essas
deral. Não é razoável, por exemplo, colocar em experiências estão localizadas nos municípios,
questão a efetividade do processo de descentra- o que nos mostra o risco de analisar os limites e
lização por decorrência da constatação de que problemas do processo de descentralização ape-
alguns municípios são refratários ao controle nas pela sua aparência local.
social, dado que essa não é uma característica Nas análises que temos produzido acerca da
exclusiva dos municípios e, mais do que isso, as nossa experiência na gestão estadual do Rio
políticas estaduais e federais têm feito muito Grande do Sul no período de 1999 a 2002, que
pouco para fortalecer a rede de controle social procurou fortalecer mecanismos, instrumentos
no país. Mesmo que se tenha de considerar al- e fluxos já configurados no processo de refor-
gumas estratégias de capacitação de conselhei- ma da saúde, invariavelmente temos identifica-
ros e a definição formal de que alguns fluxos do evidências que reforçam a conclusão de que
burocráticos para habilitação de estados e mu- o território a ser “inventado” é, na realidade, de
nicípios devam ser aprovados pelos respectivos estratégias de aprofundamento dos mecanis-
Conselhos de Saúde, há um descompasso im- mos institucionais e do arcabouço legal que já
portante entre o rigor que as normas ministe- estão desenhados. O desafio é, todavia, vencer
riais estabelecem para esse fluxo em compara- a cultura instituída, que reforça a sedução dos
ção com outros rituais administrativos e buro- controles burocráticos, da indução administra-
cráticos. Avaliações similares poderiam ser fei- tiva, da gestão fragmentada e a subordinação da
tas com cada um dos aspectos citados. participação da população à formalidade dos
Portanto, a constatação de que há proble- rituais tecnocráticos. Dos diversos projetos im-
mas na regulação, responsabilidade e autono- plementados durante nosso período à frente da
mia nas instâncias locais, no nosso entendi- gestão estadual da Secretaria da Saúde do Esta-
mento, gera duas evidências e ambas dizem res- do do Rio Grande do Sul (SES/RS), que já fo-
peito diretamente à responsabilidade das esfe- ram objeto de diversas análises (Ferla & Mar-
ras estaduais e federal no contexto do processo tins Jr., 2001; Ferla, Jaeger & Pelegrini, 2002;
de descentralização: a expressão de uma cultura Ferla & cols., 2002), queremos rapidamente
patrimonialista e tutelada de gestão pública e a destacar um dos primeiros a serem implemen-
incapacidade de gerar, de fomentar processos tados – a Municipalização Solidária da Saúde –,
descentralizadores por parte da União e dos es- que se caracterizou pela cooperação técnica e
tados. Se é verdade que há muito o que apren- financeira da SES/RS, principalmente por meio
der na operação de instrumentos e fluxos de das instâncias de gestão regional, com os mu-
gestão descentralizada, também é verdade que, nicípios. Recursos financeiros estaduais foram
antes e na mesma medida, há muito o que de- repassados a todos os municípios habilitados,
saprender de gestão centralizada e burocrática, independentemente da modalidade formal de
ainda visível, principalmente nas práticas da sua habilitação, fundo a fundo, sem qualquer
gestão estadual e federal. Novamente, nossa re- definição prévia de sua utilização por parte da
flexão reencontra a conclusão já referida do ar- gestão estadual, para serem utilizados em pro-
tigo que está sendo comentado. jetos e atividades definidas pelo gestor munici-
Dessa forma, mais do que identificar com- pal e aprovadas pelo respectivo Conselho de
ponentes equivalentes na gestão estadual e fe- Saúde, tendo como instrumento de prestação
deral para os problemas verificados na gestão de contas o Relatório de Gestão. Os valores re-
local, vai sendo aberto outro campo de possibi- passados a cada município foram o resultado
lidades para analisar as condições de efetivida- da aplicação de critérios técnicos, horizontais
de da gestão descentralizada e do processo de ao conjunto dos 497 municípios existentes. A
reformas que, no nosso entendimento, ainda ampliação (real) da autonomia do município
está em plena efervescência, particularmente foi acompanhada, na grande maioria deles, pelo
no seu componente de práticas institucionais fortalecimento da participação da população e
366

de impactos positivos na organização dos res- lidade e controle social como desafios para os gover-
pectivos sistemas municipais de saúde. O cru- nos, pp. 23-30. In L Tavares (org.). Tempo de desafios:
a política social democrática e popular no governo do
zamento dos fluxos de acompanhamento e con- Rio Grande do Sul. Vozes, Petrópolis.
trole com outras estruturas e fluxos de partici- Ferla AA, Geyer LMC, Pritoluk LB & Breunig M 2002.
pação, como o Orçamento Participativo Esta- Descentralização da gestão da saúde no Rio Grande
dual, suscitou movimentos de tornar públicas do Sul: implementando a legislação para garantir
as insuficiências no funcionamento dos siste- saúde de verdade e com qualidade para todos os gaú-
chos, pp. 121-125. In Ministério da Saúde. Experiên-
mas de saúde e, particularmente, nos mecanis- cias inovadoras no SUS: gestão de serviços de saúde.
mos de gestão, inclusive da gestão estadual, de Ministério da Saúde, Brasília (no prelo).
forma potente para inserir a solução dos pro- Righi LB 2002. Poder local e inovação no SUS: estudo sobre
blemas identificados nas agendas dos principais a construção de redes de atenção à saúde em três mu-
atores envolvidos. Esse efeito, que é obtido mui- nicípios no Estado do Rio Grande do Sul. Tese de dou-
torado em saúde coletiva. Departamento de Medici-
to raramente quando são utilizados os ainda na Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Mé-
comuns mecanismos burocráticos ou excessi- dicas da Universidade Estadual de Campinas.
vamente formais de acompanhamento, tal qual
reiteradamente “reinventados” nas sucessivas
portarias ministeriais, confirma, novamente, a
principal conclusão da autora.
Ou seja, se ainda há um caminho a ser per-
corrido relativamente ao desenvolvimento de
metodologias adequadas para avaliação das po- A autora responde
líticas sociais com gestão descentralizada, pro- The author replies
cesso que o artigo apresentado fortalece com
rigor e qualidade, é indiscutível que já existem Marta Arretche
experiências que podem auxiliar nesse intento
e, da mesma forma, os problemas identificados Financiamento federal e gestão local
nas sucessivas aproximações feitas ao tema não de políticas sociais: o difícil equilíbrio
permitem concluir que a estrutura institucio- entre regulação, responsabilidade
nal e os mecanismos e fluxos que derivaram do e autonomia
atual estágio do processo de reformas na saúde
precisam ser redesenhados. É preciso amadure- Só tenho a agradecer a Patrícia Lucchese e aos
cer particularmente o componente das práticas editores da revista Ciência e Saúde Coletiva pela
no seu interior, conforme se afirmou. oportunidade de escrever este artigo, bem co-
Talvez devêssemos, sem receio de revisitar o mo aos debatedores, profundos conhecedores
passado, afirmar que a ousadia ainda é cumprir da política de saúde no Brasil, pela densidade e
a lei. Antes que as análises, correntes em nosso profundidade dos comentários apresentados.
meio, que procuram evidências para o redese- Será impossível nesta réplica responder a
nho dos impactos institucionais do processo de todos os comentários. Não apenas pelas limita-
reformas, consigam gerar consensos discursivos ções de espaço e tempo, mas também porque
suficientemente fortes para fazê-lo. me falta competência para fazê-lo com relação
a diversas das questões levantadas. Prefiro, as-
Referências bibliográficas sim, me concentrar em duas questões que me
parecem centrais, seja em minha argumentação,
Carvalho AI 1997. Conselhos de Saúde. Responsabilidade seja nas críticas feitas pelos comentaristas. Estas
pública e cidadania: a reforma sanitária como refor-
ma do Estado, pp. 93-111. In S Fleury (org.). Saúde e
dizem respeito à afirmação de que a reforma da
democracia: a luta do CEBES. Lemos Editorial, São saúde já se completou e de que, para atingir os
Paulo. objetivos da política nacional de saúde, trata-se
Carvalho G 2001. A inconstitucional administração pós- menos de redesenhar a engenharia institucional
constitucional do SUS através de Normas operacio- do SUS e mais de aprofundar sua utilização.
nais. Ciências & Saúde Coletiva 6(2):435-444.
Ferla AA & Martins Jr. FC 2001. Gestão solidária da saú-
Inicio pela distinção entre reforma e meca-
de: a experiência de gestão estadual do SUS no Rio nismos regulares de gestão de uma política pú-
Grande do Sul. Divulgação em Saúde para Debate 23: blica. Minha avaliação, de fato, toma como cri-
8-20. tério o cumprimento de requisitos de natureza
Ferla AA, Jaeger ML & Pelegrini MLM 2002. A gestão da formal, referentes à aprovação de uma legisla-
saúde no contexto do SUS: descentralização, integra-
ção reformadora e sua efetiva implementação.
367

A reforma do setor elétrico, por exemplo, se cais e sugerem que essas práticas estariam em
concluiu com a aprovação parlamentar das pri- conflito (ou contradição) com os objetivos da
vatizações e com a venda efetiva das respectivas reforma. Concordo com a primeira afirmação,
estatais. O fato de que tenhamos sofrido uma mas discordo da segunda. O modelo de descen-
brutal crise de energia não significa que a refor- tralização da saúde adotado no Brasil concentra
ma não ocorreu. Significa que, tendo ocorrido, autoridade no nível federal – isto é, no Minis-
não foi capaz de cumprir suas promessas. tério da Saúde – porque atribui a este último a
Portanto, concordo inteiramente com os função de principal financiador da política na-
argumentos de que a política de saúde mudou, cional, normatizador das regras nacionais e co-
mas “práticas institucionais conservadoras” per- ordenador das relações intergovernamentais, o
manecem, assim como “a participação da popu- que, na prática, significa que pouco de norma-
lação e integralidade da atenção têm sido negli- tização “resta” para os demais níveis. Combina-
genciados”. E concordo inteiramente com os ar- das ao processo centralizado de formação do
gumentos referentes à vital necessidade de “um Estado brasileiro – que historicamente concen-
processo contínuo e permanente de avaliação, trou capacidades estatais no nível federal –, es-
revisão e [eventualmente] correção de rota” do tas características do SUS fazem com que o Mi-
SUS, assim como que “ainda há o que fazer, e nistério da Saúde seja simultaneamente a prin-
muito, para efetivar e tornar concreta[s]” suas cipal arena de formulação da política nacional
promessas. Penso apenas que avaliações dessa de saúde e o ator mais poderoso desta mesma
natureza – assim como outras tantas – e as me- arena. A mesma assimetria de poder pode tam-
didas necessárias para enfrentá-las fazem parte bém se reproduzir no plano estadual. Assim, a
dos mecanismos regulares de qualquer política possibilidade de práticas centralizadoras está
pública. Apenas para efeito de comparação, to- inscrita no próprio modelo; neste sentido, elas
memos o sistema de saúde inglês. Avaliações e não estão em contradição com o modo como o
recomendações dessa ordem foram feitas com SUS foi construído.
relação ao NHS desde sua criação em 1948, com Como resultado, as prioridades e o proces-
base no Plano Beveridge, até a reforma de seu so decisório da política nacional dependem em
paradigma de gestão em 1990, no governo That- grande parte da orientação que venha a contro-
cher. No entanto, é difícil afirmar que uma re- lar a pasta da Saúde. O governo Collor parece ter
forma estivesse sendo implementada ao longo sido até o momento o exemplo mais extremado
destes mais de 40 anos. de emprego dos instrumentos centralizadores
Concordo inteiramente com o argumento do SUS para uma tentativa de reversão de seus
de que “instrumentos e a forma de operaciona- objetivos principais. A reação a esta tentativa –
lização do desenho institucional podem alterar via NOB/93 e fortalecimento da CIT, por exem-
os objetivos iniciais de uma política”. Penso que plo –, na conjuntura favorável do governo Ita-
talvez eu não tenha sido suficientemente clara mar Franco, institucionalizou direitos de par-
com relação a esse ponto, pois meu argumento ticipação política na política nacional de saú-
se referiu ao critério para avaliar uma mudan- de, instituindo arenas federativas para sua for-
ça de paradigma e não, à estratégia adotada pa- mulação – a CIT e as CIBs. Se é verdade que es-
ra efetivá-lo. Há estratégias de reforma – “revo- te não é “um jogo aberto”, em vista de todos os
luções silenciosas” ou “reformas sem reforma” recursos financeiros e institucionais de que dis-
(Kirkman-Liff, 1997) – que, como resultado de põe o Ministério da Saúde – e, em outra medi-
sucessivas e bem-sucedidas alterações nos me- da, também os governos estaduais –, é igual-
canismos de gestão de uma política, acabam mente verdade que ele é hoje menos fechado do
por alterar substantivamente a hierarquia de que na “era Collor”, dada precisamente a bem-
objetivos de um modelo anterior. Penso mesmo sucedida estratégia de institucionalização da
que este fenômeno no Brasil ocorreu com rela- participação dos governos locais no processo
ção às políticas de habitação e saneamento no decisório. Entretanto, não há nenhuma garan-
governo Fernando Henrique Cardoso. Mas não tia de que tentativas de reversão dos princípios
tenho informações que me autorizem a avaliar do SUS não possam ocorrer no futuro, pois as
que um fenômeno dessa natureza esteja em orientações e as práticas do Ministério da Saú-
curso no SUS. de – e, por conseqüência, de todo o sistema –
Alguns comentaristas afirmam que há prá- tendem e tenderão a variar de acordo com a
ticas autoritárias e centralizadoras dos níveis coalizão política que estiver no poder no exe-
federal e estadual em relação aos governos lo- cutivo federal.
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Na verdade, esta possibilidade não diz res- ardo Marques e Renata Bichir (2002), ao exa-
peito apenas à política de saúde, mas às demais minar os investimentos da Secretaria de Vias
políticas que envolvem relações intergoverna- Públicas do Município de São Paulo, concluí-
mentais no Brasil. Não compartilho da visão – ram que a inclinação político-ideológica do pre-
largamente difundida na literatura – de que feito (...) torna previsível para os eleitores o enca-
nosso modelo de federalismo, tal como dese- minhamento das políticas públicas a serem im-
nhado em 1988, dispersa autoridade política e plementadas. Mais que isso, como bem chama-
constrange a capacidade de iniciativa do gover- ram a atenção os comentaristas, experiências
no federal. Penso que essa avaliação minimiza de gestão municipal e estadual confirmam uma
recursos de poder do executivo federal, como o relação entre orientação político-ideológica do
revelaram a aprovação da Lei de Responsabili- executivo e suas políticas públicas. Entretanto,
dade Fiscal, da Emenda Constitucional no 29/ essa relação varia de acordo com as políticas,
2000, do Fundef, para citar apenas alguns exem- mais particularmente da autonomia decisória
plos. O que ocorre na área da saúde, entretanto, do executivo local em cada política particular.
é que essa concentração de autoridade está tam- Se esta é razoável na área de obras públicas, por
bém inscrita no próprio modelo de gestão da exemplo, é bem mais reduzida na área da saúde,
política. como concordamos todos.
Passo ao argumento referente à “defesa” da Assim, na fase de implantação da reforma,
estrutura institucional do SUS. Argumentei que os incentivos contidos nas sucessivas NOBs – is-
penso que esta foi instituída entre 1988 e 1993, to é, as regras do Ministério da Saúde – e o cál-
período em que através da CF, da LOAS e da culo dos potenciais benefícios eleitorais a serem
NOB/93 foram institucionalizados os princí- obtidos com base na ampliação de serviços de
pios de formulação das regras do SUS. Procurei saúde pesaram mais decisivamente do que a in-
demonstrar ainda que os principais atores des- clinação político-ideológica dos prefeitos. Uma
se processo decisório são os eleitores, os gover- vez implantada a reforma, a estrutura institucio-
nos locais, os governos estaduais e o Ministério nal do SUS restringe a autonomia decisória dos
da Saúde. Distintas orientações com relação ao governos locais, ao regulamentar com detalhe as
SUS se distribuem desigualmente entre essas condições para a efetivação das transferências fe-
categorias de atores e se expressam através do derais, reduzindo assim a importância das prefe-
voto, dos cargos no executivo e da representa- rências político-ideológicas na gestão dessa po-
ção nos diversos conselhos. Procurei demons- lítica particular.
trar ainda – e penso que não fui suficientemen- Pretendi argumentar, entretanto, que os
te clara a esse respeito – que estes distintos ato- eleitores têm instrumentos mais limitados do
res têm peso distinto na estrutura institucional que os demais tipos de atores, seja para fiscali-
do SUS, o que não necessariamente determina, zar a implementação da política, seja para in-
mas condiciona tanto as decisões tomadas co- fluir na formulação de suas regras de operação.
mo sua implementação. Isso ocorre porque preferências e avaliações
Penso, assim, que os resultados eleitorais têm com relação à política de saúde não são o único
conseqüências, sim, sobre os rumos do SUS, na componente da decisão do voto, porque o elei-
medida em que determinam quem controlará os tor médio tende a ser menos informado do que
cargos no executivo dos diversos níveis de go- os “participantes ativos” com relação ao desem-
verno. A estrutura do SUS e a natureza do pre- penho de uma política e, finalmente, porque a
sidencialismo brasileiro – válida para qual- participação episódica do voto é menos efetiva
quer nível de governo – permitem a alavanca- do que a participação regular via representação.
gem da orientação política que controla esses Penso que – diferentemente das demais po-
cargos, em detrimento das orientações de polí- líticas sociais que envolvem relações intergo-
tica não representadas no poder executivo. Em vernamentais no Brasil – a política de saúde foi
uma eventual situação de conflito, a orientação a única em que o “jogo das regras” operou no
do primeiro tende a prevalecer, dada a superio- sentido de institucionalizar – de direito e de fa-
ridade relativa dos recursos de poder do execu- to – um sistema decisório que garante represen-
tivo. tação e “voz” aos diferentes atores e interesses
Não pretendi entretanto afirmar que não diretamente envolvidos nesta política. Este sis-
existe nenhuma relação entre preferências par- tema combina concentração de autoridade com
tidárias, resultados eleitorais e as políticas efe- mecanismos de contrapeso a esta mesma con-
tivamente implementadas. Ao contrário, Edu- centração de autoridade. Como observadora da
369

política de saúde, constato que há majoritária isto é, cada ator considerava que as regras do jo-
aceitação das instâncias decisórias do SUS, em- go só eram respeitáveis na medida em que per-
bora haja um certo desapontamento quanto a mitissem alavancar os seus próprios objetivos.
seu modo de operação e divergência quanto ao O reconhecimento mútuo dessa prática impli-
conteúdo das decisões tomadas. cou a generalização da desconfiança e a impos-
Ainda assim, considero justa a ressalva de sibilidade de uma solução negociada para os
que minha afirmação de que se trata mais de conflitos. Assim, se os atores agem de modo a
aprofundar e amadurecer o uso dos instrumentos reduzir a credibilidade nas regras instituídas
existentes e menos de redesenhar esta estrutura foi para solução de conflitos porque estas não con-
inconsistente, no sentido de que ela não pode duzem à realização de suas próprias preferên-
ser deduzida da argumentação que a antecede. cias, a própria possibilidade de uma solução ne-
Na verdade, minha afirmação decorre não ape- gociada de conflitos tende a ser inviabilizada a
nas de um reconhecimento da superioridade da médio prazo.
estrutura institucional do SUS, mas também de
questões de princípio.
Penso que não temos no Brasil uma tradi- Referências bibliográficas
ção de respeito pelas regras do jogo. Nossa his-
tória política é abundante de exemplos de ade- Arretche M 2002. Federalismo e relações intergoverna-
mentais no Brasil: a reforma dos programas sociais.
são instrumental a princípios e instituições polí- Dados 45(3):431-57.
ticas. Wanderley Guilherme Santos (1978) mos- Figueiredo A 1978. Democracia ou reformas. Paz e Terra,
tra a adesão instrumental ao liberalismo por São Paulo.
parte de nossas elites políticas no Império e na Marques E & Bichir R 2002. Clivagens ideológicas e em-
Primeira República, bem como o autoritarismo presas privadas nos investimentos públicos urbanos
– São Paulo 1978-1998. Revista Brasileira de Ciências
instrumental do pensamento político da pri- Sociais 17(50):71-88.
meira metade do século 20. Ao analisar o golpe Kirkman-Liff B 1997. The United States. In C Ham (ed.).
de 64, Argelina Figueiredo (1993) demonstrou Health Care Reform. Learning from international ex-
que todas as correntes políticas em disputa ti- perience. Open University Press, Buckingham.
nham uma visão instrumental da democracia, Santos WG 1978. Ordem burguesa e liberalismo político.
Duas Cidades, São Paulo.

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