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CIDADE DAS SOMBRAS: A MONUMENTAL FAVELA VERTICAL EM HONG KONG

Na Cidade Murada de Kowloon moravam cerca de duas pessoas por metro quadrado — o que fez do local o
mais denso povoamento humano já existente

Era 23 de março de 1993, os tratores se postaram diante de uma das mais impressionantes, se
não exatamente fáceis para os olhos, criações da espécie humana. A morbidamente
fascinante cidade murada de Kowloon, que concentrou a maior densidade populacional jamais
experimentada pelo homem.

Um ano depois, em abril de 1994, coincidindo com a morte de Kurt Cobain, do Nirvana, estava
feito. A favela não mais existia. Para o governo, já ia tarde o lugar mais caótico de Hong Kong,
uma ferida aberta na paisagem, uma vergonha diante do mundo.

Mas, para seus milhares de moradores, o triste adeus a uma comunidade vibrante, que
conseguiu prosperar de forma autônoma por quase 40 anos, sem qualquer ajuda
governamental.

Em seu apogeu, no final dos anos 19080, a Cidade das Sombras, como era conhecida,
tinha construções de 40 metros de altura e abrigava em seus 27 mil metros quadrados, o
equivalente a pouco mais que dois campos de futebol, abrigando cerca de 50 mil habitantes.
Isso dá quase duas pessoas por metro quadrado.

Os residentes da favela tiveram sucesso ao criar o que arquitetos modernos, com todos os
seus recursos e expertise, não conseguiram: uma megaestrutura orgânica, que respondia às
constantes mudanças de seus usuários”, diz o jornalista Peter Popham em 'City of Darkness:
Life in Kowloon Walled City'.
Fortaleza murada

Diferentemente da maioria das grandes favelas, que surgem de cortiços, sob viadutos, ou em
áreas descampadas, a Cidade das Sombras se sobrepôs às ruínas de um antigo forte
amuralhado. Desde o período da Dinastia Song (960 a.C. — 1279), havia, ao norte da península
de Kowloon, um pequeno posto militar que era usado para gerenciar o comércio de sal e
monitorar piratas que espreitavam a região.

“Esse posto se manteve esquecido até 1842, quando os chineses precisaram dele novamente
para proteger a península de Kowloon”, comenta a historiadora Diana Preston, da
Universidade de Oxford, sobre a tentativa desesperada da China em conter a expansão dos
britânicos, que já haviam tomado a ilha de Hong Kong após a primeira Guerra do Ópio.
O antigo posto transformou-se, então, em uma cidade murada, que foi posta à prova diversas
vezes. Sua sorte, porém, não duraria para sempre. Em 1898, o domínio da Grã-Bretanha se
estendeu e a China foi obrigada a ceder a ela os chamados “Novos Territórios” de Hong Kong,
incluindo 235 ilhas vizinhas e Kowloon.

Os britânicos puderam usufruir dessas regiões por 99 anos”, comenta o jornalista Pepe
Escobar em seu livro '21, O Século da Ásia'.
Em 1899, a península já estava completamente dominada, e a fortificação, rendida ao controle
inimigo, foi poupada da destruição e deixada em segundo plano.

Fora do Estado: Nas décadas seguintes, alguns de seus antigos armazéns e casebres foram
convertidos em igreja, asilo, escola e hospital. “Mesmo com as intervenções, a cidade murada
não perdeu sua antiga essência e tornou-se uma atração para colonos e turistas ingleses”,
comenta a jornalista Julia Wilkinson no livro 'City of Darkness'.

Como era uma terra sem lei, facções criminosas conhecidas por Tríades, como 14K e Sun Yee
On, promoviam negócios ilícitos, controlando o narcotráfico, bares de ópio, redes de
prostituição e de casas de jogos de azar ali instaladas.

Além disso, os criminosos acolhiam médicos e dentistas sem registro para atender a população
local e até financiavam esquemas para abastecer a cidade com água encanada e energia
elétrica. Kowloon era o lugar para ir se você quisesse evitar ter contato com a Justiça.

Civis : Apesar das notícias e estereótipos que corriam por Hong Kong e o mundo, a maioria de
seus moradores era gente trabalhadora, que não se envolvia com a criminalidade e vivia
pacificamente com a vizinhança.

Chan Pui Yin, proprietário de uma loja e residente da Cidade das Sombras por mais de 40 anos,
descreve: “Não existiam assaltos — apesar de os criminosos usarem a cidade para se
esconderem, todos se conheciam, então ninguém nunca tentava se machucar. Era um pouco
como a vida nos vilarejos da China antigamente”.

Numerosas fábricas, lojas e comércios familiares também prosperavam ali, e alguns civis até se
reuniam em associações para discutir e propor melhorias. Existia uma rede de coleta de lixo,
um jardim de infância, várias ONGs de reabilitação de dependentes químicos e até um corpo
de bombeiros voluntário.

“Ainda assim, histórias sensacionalistas da cidade foram contadas durante esse período”,
comenta Seth Harter, professor de estudos asiáticos, em 'Hong Kong’s Dirty Little Secret'.
Era um reduto onde os chineses podiam viver entre os seus, sem pagar impostos ou serem
perseguidos por fiscais da colônia à procura de explicações sobre vistos, taxas, condições de
trabalho ou de higiene. Ali, todos podiam negociar, prosperar e enriquecer.

Na Cidade Murada, gente desocupada não tinha vez. Os jovens, por exemplo, aprendiam
desde cedo, com os pais, algum tipo de ofício e o desenvolviam na prática para que no futuro
pudessem se garantir sozinhos ou até mesmo abrir seus próprios negócios.

Diversos casos mostrados no livro 'City of Darkness' transmitem uma noção clara de como
havia dignidade no modo de viver dos moradores da favela e de como era latente o
preconceito dos que a enxergavam do lado de fora. “A população da grande Hong Kong não
acreditava que alguém da própria comunidade pudesse ser bem-sucedido”, comenta Harter.

Velas sombrias: Quanto ao seu crescimento espacial, o lugar passou por um boom durante a
década de 1960, que se manteve em ritmo crescente até o fim dos anos 1980. Por quase 30
anos, cerca de 500 edifícios não licenciados surgiram sem planejamento, formando um
conglomerado de pequenos apartamentos.

Por serem tão próximos, os edifícios da favela impediam a circulação de ar em seu interior.
Empilhados uns sobre os outros, tinham varandas gradeadas e uma rede compartilhada de
escadas verticais conectada a um labirinto de ruas sujas, úmidas e escuras. A sujeira vinha do
lixo atirado da janela pelos moradores com menos consideração.

A umidade, dos canos e roupas pingando do alto — o que obrigava os habitantes a andar com
capas ou guarda-chuvas no solo. E a escuridão, do fato que o espaço todo, até o último andar,
era tomado por fios, canos, varais e extensões das construções. Misericordiosamente, aqui e
ali havia lâmpadas fluorescentes,quando muito, que eram postas pelos próprios moradores.

Essa enorme estrutura modular só parou de crescer quando uma restrição em relação à sua
altura foi imposta pelas autoridades. Devido à trajetória de voo dos aviões que subiam e
desciam do aeroporto de Kai Tak, havia a possibilidade de uma colisão ocorrer caso os prédios
não parassem nos 14 andares. Se não fosse por isso, provavelmente chegariam a níveis mais
elevados, comparados aos de modernos arranhacéus vizinhos.

Adeus ao lar : Apesar de o crime organizado ter diminuído na década de 1970, após uma série de
incursões policiais que resultaram em mais de 2.500 prisões e o enfraquecimento das Tríades,
com a aproximação de 1997, data de devolução das posses britânicas à China comunista, as
autoridades concluíram que não era bonito manter uma favela dentro de Hong Kong.

Em 1987, sem negociar com a comunidade, o governo desapropriou os moradores e as


empresas da favela, mediante compensações financeiras muito menores do que mereciam”,
comenta, em 'City of Darkness', o fotógrafo Greg Girard.
A medida teve a aceitação de alguns, mas foi reprovada por uma maioria esmagadora, que foi
despejada à força e obrigada a recomeçar sua vida do zero. De 1988 a 1992, as moradias,
então, se esvaziaram lentamente. Em entrevistas a emissoras locais, muitos argumentavam
que a compensação oferecida era humilhante e não valia a pena se comparada ao paraíso
isento de impostos que a favela proporcionava.

Finalmente, em janeiro de 1993, a Cidade das Sombras se esvaziou por completo. Com a
eletricidade interrompida, suas quitinetes, barracões e vielas abandonadas se apagaram em
silêncio antes que as máquinas de demolição iniciassem o estrondoso ruído do “progresso”.

Na área, desde 1995, funciona o Parque da Cidade Murada de Kowloon, ornamentado com
belos jardins do início da Dinastia Qing (1644-1912) e dividido em setores batizados com os
nomes de construções e vielas da antiga fortaleza, mas que em nada recordam a ela.

Maquetes em pequena escala são a única lembrança física de um dos mais singulares
experimentos da História, a aterradora mas familiar face do que, para até 50 mil pessoas, um
dia foi chamado de lar.

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