Você está na página 1de 179

SUMÁRIO

Agradecimentos

Prefácio da Autora

Introdução

PARTE 1
A ESTRUTURA DA HISTÓRIA

Juntando as Ideias
A Estrutura em Três Atos: Por Que e Como Utilizá-la
O Segundo Ato: Como Mantê-lo em Movimento
Como Criar Cenas
Criando um Roteiro Coeso

PARTE 2
O DESENVOLVIMENTO DA IDEIA

Transformando seu Roteiro em Algo Vendável


A Criação do Mito
PARTE 3
A CONSTRUÇÃO DOS PERSONAGENS

Da motivação ao Objetivo: Encontrando a


Espinha Dorsal do Personagem
Procurando o Conflito
Criando Personagens Bem Dinensionados
A Função dos Personagens

PARTE 4
ESTUDO DE CASO

A Caminho do Oscar: Um estudo de Caso -


A Reescrita do Roteiro

Epílogo

Linda Seger
Voltar ao Sumário

AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos

Ao Dr. Leonard Felder, pelo título, e por editar a segunda edição deste livro;
À Cynthia Vartan, por editar a primeira edição deste livro;
À Dara Marks por sua franca interação com o material, encorajamento e apoio constante;
Aos revisores da segunda edição — Sharon Cobb, Carolyn Miller e Treva Silverman e aos
revisores da primeira edição — Mary Beth Gaik, Mark Gerson e Lindsay Smith. Agradeço a vocês
por suas idéias, contribuições e por toda ajuda;
À Cathleen Loeser e a Chris Vogler, pela ajuda com o capítulo 6;
A Bill Kelley e David Bombyk, pelas informações e pelos dois memoráveis jantares, quando
trocamos idéias, sobre o filme A Testemunha. À Pamela e a Earl Wallace, que me forneceram as
informações adicionais para essa segunda edição;
À Columbia Pictures e a Larry Gelbart, Don McGuire e Murray Schisgal, por permitirem as
citações do roteiro de Tootsie;
À Horizon Films, pela permissão de uso das citações extraídas do roteiro de Uma Aventura na
África;
À Universal/MCA e a Peter Benchley, pela permissão de uso das citações extraídas do roteiro
de Tubarão; à Universal e à Ambling Entertaine-ment, a Bob Gale e Robert Zemeckis pela
permissão de uso das citações extraídas do roteiro do filme De volta para o Futuros
À Paramount Pictures, pela permissão de uso das citações extraídas do roteiro do filme A
Testemunha;
A George Lucas e à Lucas Film Ttd, pela permissão de uso das citações extraídas do roteiro do
filme Os caçadores da Arca Perdida.
E, como sempre, ao meu marido, Peter Le Var, por sua constante afeição, por seu amor e por
todas aquelas maravilhosas mensagens nas costas, que me ajudaram a continuar a escrever.

4
Voltar ao Sumário

PREFÁCIO DA AUTORA

Quando escrevi a primeira edição de Como Aprimorar um Bom Roteiro, já existiam inúmeros
livros sobre redação de roteiros no mercado. Porém, notei que nenhum deles discutia o importante
processo que explica como reescrever um roteiro. Assim, decidi voltar o foco do meu livro para
esse processo. Entretanto, tão logo comecei a receber comentários de leitores sobre o livro, descobri,
para minha surpresa, que estava sendo muito usado não só por roteiristas que queriam aprender
a escrever um roteiro, mas também por roteiristas mais experientes, ganhadores de Oscars, que
encontravam problemas com o processo de reescrita.
A primeira edição, contudo, não fornecia todas as informações necessárias para quem quisesse
criar um roteiro, desde o primeiro rascunho até o roteiro final, utilizado durante as filmagens.
Faltava o primeiro passo do processo de escrita: juntar as idéias. Outro assunto muitos não havia
sido abordado era a criação das cenas. Assim, decidi que já era tempo de fazer uma nova edição.
Uma vez que a primeira sem dúvida alguma, estava sendo bastante útil para muitos roteiristas,
queria torná-la o mais completa possível, sem mexer naquilo que já estava bom.
A segunda edição é essencialmente igual a primeira. A diferença está no acréscimo de dois
capítulos novos, de alguns exemplos de filmes mais atuais e de informações adicionais nos capítulos
existentes. Nesta edição o leitor encontrará uma discussão mais ampla sobre o tema, a sequência
de créditos, a cena central e a montagem. Mantive os exemplos principais pois se baseiam em três
filmes que desafiam a passagem do tempo: Uma aventura na África, A Testemunha e Tootsie. Na
primeira edição não tive permissão para fazer citações do filme A Testemunha. Nessa edição a
Paramount Studios gentilmente me concedeu permissão para fazer uso do roteiro, o que permitiu
que eu pudesse desenvolver ainda mais os conceitos mostrados na primeira edição.
Agradeço a todos os leitores que elogiaram a primeira edição, e espero que continuem a apreciar
e aprender Como Aprimorar um Bom Roteiro.

5
Voltar ao Sumário

INTRODUÇÃO

Não basta somente uma boa idéia para a criação de um grande roteiro. Também de nada adianta
apenas colocar essa idéia no papel. Na redação de roteiros, mais do que em qualquer outra forma
de redação, o que faz com que um bom roteiro se torne excelente não é só o modo como ele é
escrito, mas também como é reescrito.
Os princípios que regem o processo de redação de roteiros são basicamente os mesmos
empregados no processo de reescrita. Se você estiver escrevendo seu primeiro roteiro, este livro irá
ajudá-lo a desenvolver sua habilidade de criar histórias dramáticas e interessantes. Se já for um
escritor experiente, este livro irá ajudá-lo a articular aquelas habilidades que você intuitivamente
já utiliza. E se você, por acaso, estiver sentindo uma enorme dificuldade em avançar no processo
de reescrita de algum roteiro, sem saber ao certo que rumo deve tomar, este livro irá ajudá-lo a
analisar e superar esse obstáculo, resolvendo os eventuais problemas existentes e fazendo com que
você retome o caminho certo.
Este livro irá conduzi-lo ao longo de todo o processo, desde o momento em que surge a primeira
centelha de uma idéia, até o final do processo de reescrita de um roteiro. Quando você começa a
escrever, precisa saber como organizar suas idéias, como criar uma história interessante, como
criar personagens bem dimensionados, que tenham apelo e mereçam sua atenção por umas duas
horas. Mas, acima de tudo, você precisa saber como reescrever seu roteiro quando estiver terminado
— pois, se você escrever um roteiro, pode ter certeza que precisará reescrevê-lo. Faz parte da
natureza do negócio. A não ser que você seja um escritor que só escreve para si mesmo, e depois
guarda seus roteiros no fundo da gaveta, você se pegará revisando e reescrevendo seus roteiros por
inúmeras vezes.
A primeira vez, você vai reescrevê-lo para deixar o primeiro esboço “redondinho”. Então, seus
amigos lhe darão algumas sugestões e você vai reescrevê-lo de novo, para deixá-lo um pouco
melhor. Seu agente certamente vai lhe dar algumas sugestões também, visando aumentar o apelo
comercial do roteiro, e você, mais uma vez, vai reescrevê-lo para incorporar essas ideias. O produtor
e o patrocinador vão pedir que você o reescreva, pois também querem ver sua participação refletida
no roteiro. E ainda tem os atores, que lhe trarão outro tipo de ideias, dizendo o que “funciona bem
para eles”, e por isso também vão pedir que você altere “uma coisinha aqui e outra acolá”.
Ora, tudo isso é maravilhoso, desde que você saiba o que reescrever, e tenha certeza de que cada
vez que fizer isso estará melhorando seu roteiro. Porém, infelizmente, é rarissimo ver isto acontecer.
Na verdade, muitos se sentem como aquele cara que resolveu ser um roteirista porque já estava
cansado de ver tanta coisa ruim na televisão e no cinema. “Com certeza posso fazer bem melhor
que isso!”, pensou ele. Certo dia, depois de submeter seu roteiro a um produtor, e de vê-lo ser

6
Voltar ao Sumário

recusado, ele protestou: “Mas este roteiro é muito melhor do que tudo que já vi!”. “Com certeza”,
respondeu o produtor, “Qualquer um pode escrever coisa melhor que os roteiros que você tem
visto. O segredo não é só escrever, mas escrever de um modo tão brilhante que, mesmo depois que
toda a equipe arruinar seu roteiro, tentando reescrevê-lo, ele ainda assim mereça ser produzido.”
Esta é a mais pura verdade. Muitos roteiros vão piorando, e não melhorando, a cada vez que são
reescritos. Quanto mais se afastam do original, mais confusos se tornam. Parece que que começam
a perder sua mágica. Lá pela quinta vez em que é reescrito, o ritmo se perde, e alguns elementos
começam a não fazer mais sentido. Depois de umas 10 tentativas de reescrevê-lo, a história ficará
totalmente diferente, e ninguém mais vai se interessar me fazer o filme.
A solução parece bem simples: “Ora, não reescreva!”. Infelizmente, você não tem essa opção. A
maior parte dos roteiros, mesmo o que contam com toda a magia e criatividade que se possa
colocar no primeiro esboço, não ficam bons logo de cara. Alguns são redundantes, outros são
muito longos e fica impossível transformá-los num bom filme, que possa ser comercializado. Às
vezes, falta alguma coisa na criação de determinada passagem – desenvolver mais algum, completar
uma linha de diálogo do personagem, finalizar um enredo secundário. Alguns roteiristas tem no
primeiro esboço apenas a semente de uma ideia que só vai nascer e desabrochar se o escritor
mergulhar mais fundo na história. Sem passar pelo processo de ser reescrito, todas essas questões
permanecem sem solução.
Portanto, qual seria a resposta para essa questão? Ou melhor, será que existe mesmo uma
resposta? Ora, a solução não é assim tão dificil quanto parece: basta reescrever apenas o que não
ficou bom e deixar o resto como estava. O difícil é se limitar a fazer isto, pois temos que resistir a
tentação de ficar trabalhando o texto cada vez mais, num processo que parece não ter fim. Significa
também não se deixar levar por alguma ideia nova e diferente, que pode até ser muito boa, mas
não resolve o problema que estamos tentando solucionar. Em outras palavras, resume-se em
mofificar apenas aquilo que não ficou bom, em vez de ficar mexendo no roteiro todo. Isto significa
que devemos nos ater à ideia criativa original do roteirista, que por sinal já é “muito boa, obrigado”.
As sugestões devem apenas ajudar a manter o roteiro em sua “trilha original”, e não permitir que
se desvie dela.
Mas como fazer isso? Este livro foi escrito justamente para tratar desse assunto. Seu intuito é
definir o que significa “manter-se na trilha” e determinar quais são as diretrizes que se deve seguir,
para fazer com que um bom roteiro fique ainda melhor. Foi concebido para ensinar como se fazer
para escrever e reescrever um roteiro com eficiência e rapidez, sem perder ao longo desse processo
a magia da criação, desde o primeiro esboço até o roteiro final, que será usado na filmagem.
O foco do meu trabalho como consultora de roteiros tem sido, quase que exclusivamente, trazer
roteiros para a trilha certa, resolvendo os problemas, mas preservando sua criatividade original.
Tenho trabalhado dessa forma com centenas de roteiros de filmes para cinema e televisão, desde
miniséries, novelas, filmes de terror, aventura, sitcoms e comédias de modo geral, dramas e até
filmes de fantasia. O desafio é sempre o mesmo: como fazer com que o próximo esboço do roteiro

7
Voltar ao Sumário

fique bom. O processo também é o mesmo, não importa com quem eu esteja trabalhando:
roteiristas, produtores, diretores ou executivos da indústria de entretenimento. Juntos, analisamos
quais são as dificuldades, definimos os conceitos a serem trabalhados, e procuramos soluções para
que o esboço fique bom. Já trabalhei com inúmeras pessoas dentre as mais criativas e bem sucedidas
nesse ramo, e percebi que problemas na hora de escrever e reescrever roteiros podem acontecer
com todo mundo, mesmo com os mais experientes.
Geralmente, as dificuldades surgem porque os problemas não foram devidamente detectados
ou analisados, antes de começar a reescrever o roteiro. Em decorrência disso, muitas vezes o diretor
vem e manda reescrever o segundo ato, por exemplo. Mesmo assim ele continua insatisfeito, e
conclui então que o problema é com o personagem principal. Daí, novas alterações são feitas
visando resolver essa questão. Em seguida, mais modificações são introduzidas na tentativa de
consertar o enredo secundário. Mas o enredo secundário, depois de reescrito, acaba tirando o
roteiro principal dos trilhos, e daí começa tudo de novo.
Como roteiro só funciona como um todo, é claro que as alterações feitas em uma parte afetam
as demais. Meu trabalho como consultora é identificar e analisar esse tipo de problema, antes de
começar a reescrever um roteiro, e trabalhar em conjunto com todos os envolvidos no processo de
criação para que os problemas sejam de fato resolvidos. Descobri que o processo de reescrever
roteiros não é algo indefinido, mágico, ou aleatório, que pode ou não funcionar. Existem elementos
bem específicos que são indispensáveis para aprimorar um bom roteiro, elementos esses que
podem e devem ser conscientemente analisados e melhorados.
Naturalmente, como cada roteiro é único, os problemas que surgem são diferentes. Seria
impossível escrever um livro com todos os passos para a criação de um roteiro perfeito. O processo
de criação não segue um esquema rígido, e este livro não foi concebido para fornecer regras e
formulas que possam ser seguidas mecanicamente.
Entretanto, posso afirmar, pela minha experiência como consultora, que os tipos de problemas
que surgem nos roteiros são recorrentes. São problemas de expressão, problemas com o momentum
ou problemas com uma ideia específica que não foi suficientemente desenvolvida. São problemas
que podem fazer a diferença entre vender um roteiro e receber mais uma carta de recusa, ou entre
o sucesso comercial e o fracasso de bilheteria.
Para compreender melhor como esses problemas foram resolvidos nos grandes roteiros vou
tomar como exemplo alguns dos filmes mais primorosos e bem sucedidos. Muitos são os mesmos
que serviram de exemplo na primeira edição desse livro, mas dessa vez me concentrei em alguns
deles, como: A testemunha, Uma aventura na África e Tootsie. Esses são filmes que escapam à
barreira do tempo, servem como ótima fonte de aprendizado, além de serem um bom
entretenimento, pois podem ser assistidos várias vezes, sem cansar, só de estudá-los muito se
aprende sobre a arte e o ofício de escrever roteiros. Eu me utilizo também de exemplos tirados dos
filmes Tubarão, Guerra nas Estrelas e De volta para o futuro, que continuam a ser os melhores
filmes para ajudar a compreender questões relacionadas a prognóstico dos problemas e desfechos.

8
Voltar ao Sumário

Acrescentei, nesta edição, um exemplo extraído do filme Os caçadores da Arca Perdida, e fiz
comentários sobre alguns filmes mais recentes, como Os imperdoáveis, A lista de Schlinder e O
fugitivo. Além desses, faço menções menos detalhadas a filmes como E o vento levou, Atração
fatal, O caça fantasmas e Por favor, matem minha mulher. Todos foram sucessos de bilheteria e
conseguiram algum elogio da crítica. Além disso, particularmente os considero ótimos exemplos
para quem quer aprender a fazer filmes. São filmes muito bem estruturados, com ideias bem
trabalhadas e personagens bem dimensionados. Contudo, não são fórmulas: são filmes criativos,
artísticos e bem elaborados. Para aqueles que não assistiram, recomendo que o façam. Você deve
procurar se familiarizar com eles, pois, em cada capítulo vamos analisar algumas de suas
características com alguma profundidade. Pode estar certo de que, além de descobrir porque
foram tão bem sucedidos e como isso aconteceu, você também vai se divertir.
Acredito piamente que, para criar um bom filme, que tenha alguma coisa a dizer e que seja de
boa qualidade, duas coisas são necessárias: um roteiro bem escrito e que passe por um processo
bem trabalhado na hora de ser reescrito. Com alguma criatividade e uma boa ideia é possível fazer
um bom roteiro. Mas o objetivo desse livro, no entanto, vai além disto. Queremos mostrar como
aprimorar um bom roteiro. Mãos à obra!

9
Voltar ao Sumário

PARTE 1

A ESTRUTURA DA HISTÓRIA
Voltar ao Sumário

CAPITULO 1

JUNTANDO AS IDÉIAS

Vamos imaginar que você seja um roteirista e acaba de ter uma idéia genial para um filme. Acha
que sua idéia é incrível e que o filme tem potencial para ser tão bom quanto o E.T. e tão original
quanto Os Caça-Fantasmas, tão tocante quanto Conduzindo Miss Daisy. Alguns trechos da ação
são formidáveis, lembram o filme Duro de Matar, e um pouco talvez do estilo de Os Imperdoáveis.
Voce já sabe que para fazer um filme não basta ter uma boa idéia: a produção também é muito
importante. Você quer fazer tudo certo. Por onde deve começar, então?
Imagine agora que você seja um produtor e acaba de ler um artigo que lhe deu algumas idéias
para um filme. Porém, antes de contratar um roteirista para desenvolvê-las, quer organizá-las
melhor. Você quer ser coerente e criar uma linha de ação dramática sólida e eficaz. Mas como fazer
isto?
Ou, então, imagine-se no papel de um diretor. Nunca fez um roteiro na vida, mas há quase dois
anos tem uma linha de ação dramática que não pára de martelar na sua cabeça. Você quer colocá-
la no papel, em formato de tratamento ou roteiro. Quem sabe, então, você possa encontrar um
roteirista para ajudá-lo com isso. Mas por onde deve começar?
As idéias raramente surgem completas. A maior parte dos roteiros nasce de um lampejo criativo,
de fragmentos de imagens. Talvez comece com algum tema específico que você pretenda explorar.
Pode ser também que comece com algum personagem que você tenha conhecido ou imaginado.
Quem sabe são fragmentos de uma história que sempre lhe vêm à mente, e que estão pedindo para
serem contados. Pode ser até algo tão simples quanto uma ideia de apenas uma linha — "Algo
sobre circos” — ou quem sabe algo mais complexo como um épico — "Uma história que meu avô
me contou sobre as batalhas da Revolução Russa. Em algum ponto entre o momento em que a
ideia surge e as 120 páginas de um roteiro, essa idéia precisa tomar corpo. A história tem que
tomar forma, ganhar vida por intermédio dos personagens, ser construida através de imagens e
emoções, ser entrelaçada com outras idéias. É a forma como isso é feito que determina se o roteiro
será uma confusão total, um roteiro razoável ou uma verdadeira obra de arte.
Como acontece com toda forma de arte, o processo de escrever um roteiro começa com um
certo caos. As idéias ainda estão incompletas. A linha de ação dramática ainda não está bem
definida e, a qualquer momento, pode desembocar em um beco sem saída. Os personagens podem
parecer inconsistentes, unidimensionais, previsíveis demais ou muito parecidos com algum outro

11
Voltar ao Sumário

personagem que você já viu mais de cem vezes. Você ainda não sabe bem o que já tem nas mãos,
e principalmente não sabe onde pode chegar.
Esse processo envolve uma progressão continua do caos para a ordem.
A velocidade desta progressão depende de vários fatores: de quão rápido você escreve; do
quanto já domina o processo e a arte de escrever; de quão disciplinado você é; do grau de
complexidade que sua ideia apresenta; de quanta pesquisa você precisará fazer e do quanto valoriza
seu próprio processo criativo. Alguns conseguem pensar rápido, ser mais organizados, ter idéias
que fluem mais rápido do que sua capacidade de anotá-las. Já outros precisam de tempo para
amadurecer suas idéias. Não existe uma fórmula pronta para ser criativo. Não existe um processo
que seja único e que se aplique a todos indistintamente.

COMO CHEGAR À IDEIA


Você já se perguntou de onde vêm as idéias? O mundo está repleto de histórias fascinantes,
personagens dramáticos, idéias e temas intrigantes. Parte de seu treinamento como roteirista
consistirá justamente em descobrir as dicas, as deixas, as pequenas pistas que podem levar à criação
de um grande roteiro.
Muitos roteiristas encontram idéias em artigos de jornal. O jornal é uma bela fonte de conflitos,
dramas, personagens dinâmicos e questões importantes. Os parentes mais próximos — tanto
aqueles de quem você gosta quanto os que não suporta — também são uma boa fonte de inspiração
para diversas situações que podem ser exploradas num roteiro.
Amizades, relacionamento conjugal, problemas no trabalho — sejam de sua própria vida, sejam
de um caso que ouviu contar — tudo isso pode ser aproveitado. Além disso, seus sonhos, fantasias,
esperanças e objetivos — bem como fracassos, desapontamentos e traições — tudo constitui
matéria-prima para a sua criatividade.
Muitas situações, quando acopladas a uma boa dose de imaginação, podem gerar novas idéias.
Você pode se perguntar: O que teria acontecido na minha vida se eu tivesse me casado com ele?
Como teria sido se eu tivesse aceitado aquele emprego no Oriente Médio? Imagine como teria
sido se eu tivesse estudado naquele colégio interno.
Muitos roteiristas fazem fichários cheios de anotações com idéias para possíveis histórias.
Alguns têm arquivos em seus computadores com centenas de frases de uma única linha. Outros
têm anotações esparramadas por toda parte. A uma certa altura, uma dessas histórias chama sua
atenção, implorando para ser contada.

ORGANIZANDO AS IDÉIAS
Existem muitas formas de dar início a um ordenamento sistematizado de suas idéias. Alguns
roteiristas preferem ficar pensando em suas idéias durante algum tempo, brincar um pouco com
elas, antes de começar a escrever. Mas é importante escrevê-las no papel, para que possa ver o que
12
Voltar ao Sumário

você já conseguiu obter, e decidir para onde deseja ir. Anotar suas idéias é fundamental também
porque desocupa espaço em sua mente, criando condições para que novas idéias surjam. Boas
idéias chamam novas idéias e assim — eureca! — a história começa a tomar forma.
Um roteiro pode ser dividido em cinco partes: a linha de ação dramática, os personagens, a
idéia central, as imagens e os diálogos.
Cada um desses elementos vai tomando forma em etapas distintas do processo. Há pessoas que
têm mais facilidade em lidar com personagens, e assim podem iniciar seu trabalho por determinada
personagem que imaginaram. Elas deixam a história vir à tona à medida que vão descobrindo as
decisões e ações das personagens.
Outras preferem começar pela história. Ficam intrigadas com a seqüência dos eventos. Gostam
de ação, de ver os personagens fazendo coisas emocionantes.
Já existem certos roteiristas que preferem começar por alguma idéia
específica que pretendam explorar. Talvez comecem tentando responder a uma pergunta como:
O que aconteceu naquele verão que mudou minha vida? Ou quem sabe decidam explorar temas
relacionados à justiça, identidade, ou algo voltado para o que acontece com pessoas vítimas da
ganância ou da corrupção.
De qualquer maneira, por onde quer que você comece, num dado momento terá que juntar
todos esses elementos no roteiro. E como todos eles são interligados, ao trabalhar com os
personagens, novas idéias surgem, e assim por diante.
Dessa forma, o que você está buscando é um método de juntar suas idéias, mas ao mesmo
tempo ainda mantê-las fluidas o suficiente para que não se cristalizem antes do tempo. Em outras
palavras, seu objetivo é dar todas as oportunidades para que as ideias surjam, se modifiquem e
tomem novas formas.
Para conseguir fazer isto, muitos roteiristas anotam suas ideias em fichas indexadas.

O SISTEMA DE FICHAS INDEXADAS


Como só muito raramente a linha de ação surge completa na mente de quem escreve, é necessário
encontrar uma forma de anotar todos os fragmentos de idéias que, somados, vão formar o roteiro.
Muitos roteiristas anotam suas idéias em fichas, ou mesmo em folhas soltas de fichário, para
facilitar o início do trabalho. Fichas não têm uma ordem predefinida, são coloridas e mais fluidas
— e tudo isto é condizente com o início de um processo criativo.
Muitos do que adotam esse sistema costumam utilizar fichas de diversas cores. À medida que
ordenam seus pensamentos, cada cor passa a representar diferentes elementos do roteiro. Por
exemplo, se você estiver escrevendo uma história de mistério, pode usar fichas brancas para as
cenas sobre a investigação. As fichas cor-de-rosa podem ser usadas paras as cenas de amor entre o
detetive e a testemunha cega. As amarelas podem trazer observações sobre os personagens —

13
Voltar ao Sumário

dados biográficos, relacionamentos, descrições e até mesmo características peculiares. As fichas


azuis podem ser destinadas às anotações sobre imagens — a imensidão da cidade (como em O
Fugitivo) ou a desolação das ruas de Nova Iorque (Taxi Driver). As anotações feitas nas fichas
podem ser curtas (Nervosa, ela chama a polícia) ou mais detalhadas, descrevendo o clima da cena
e parte da ação. Você pode ter fichas separadas com anotações de informações levantadas em
pesquisas — O que acontece numa cena de crime? Onde um investigador pode encontrar
impressões digitais? O que é um resíduo de pólvora e onde pode ser encontrado?
Como o processo criativo tende a se deslocar do caos para a ordem, sua mente automaticamente
começa a perceber a relação entre as fichas. Você pode descobrir que suas anotações sobre a cena
de amor se ajustam perfeitamente às anotações sobre a paixão doentia do personagem, o que, por
sua vez, se encaixa bem com a imagem de um apartamento apertado, dividido em pequenos
cômodos, localizado na zona industrial de empacotamento de carne da cidade (Atração Fatal).
De repente, você pode perceber que sua cena de amor ficará muito melhor se vier logo após a
cena em que a protagonista acaba de desembarcar de seu primeiro vôo de avião (Entre Dois
Amores). Então, muda a ordem das fichas para refletir esta nova inter-relação de cenas.
O uso de fichas talvez seja o método que melhor flui no processo para reunir idéias. Dá
oportunidade para que as idéias possam surgir e se associar naturalmente a outras idéias. Usando
esse método de fichas você nao se vê forçado a escrever o roteiro antes de estar preparado para isto.
Não se sente pressionado a inventar uma parte da história que ainda não lhe parece coerente. As
fichas lhe permitem testar várias combinações de idéias entre diferentes atos ou cenas. As idéias
podem ser agrupadas em centenas de combinações possíveis — e assim uma destas combinações
vai, eventualmente, lhe parecer “mais certa" do que as demais.
Muitos roteiristas chegam a pregar suas fichas num quadro, e vão invertendo suas posições de
um ato para outro, e estudando-as diariamente, em busca de novas possibilidades. Alguns passam
as informações de suas fichas para o computador. O perigo deste sistema é você acabar com uma
porção de fragmentos de idéias sem qualquer seqüência lógica. Porém, mesmo que isto aconteça
a princípio, com o passar do tempo sua mente vai encontrando as ligações naturais entre as idéias.
E as anotações do roteiro vão pouco a pouco se organizando em sua mente, numa descoberta
natural, criativa e emocionante.
Naturalmente você não tem idéia de quantas fichas vai precisar antes que a história, os
personagens, o tema e as imagens comecem a se d definir. Pode ser que você precise de apenas 50
fichas, pode ser que precise de mais de 2 mil. Mas chega um determinado momento em que a
própria história começa a clamar por ser escrita. É neste ponto que você deve começar a escrever
o esboço.

O ESBOÇO
O esboço se resume a umas poucas linhas acerca de cada uma das cenas que compõe a história.
Você pode anotá-las em folhas de papel, no seu computador ou em folhas soltas de fichário, usando

14
Voltar ao Sumário

uma página para cada cena. Um esboço completo pode ter de 50 a 100 linhas, mas você não
precisa, necessariamente, anotar todas as cenas principais, antes de começar a escrever seu roteiro.
Se você fosse escrever o esboço da primeira parte de Uma Aventura
na África, ele ficaria assim:
1. A missão. Mostrar Rose e seu irmão na vila onde fica a missão. Charlie chega.
2. Cena mostrando o início do relacionamento entre Charlie e os irmãos missionários, Rose e
o Reverendo Samuel.
3. Os alemães chegam — matam o Reverendo Samuel e os nativos, destroem o vilarejo.
4. Charlie volta ao vilarejo. Enterra o Reverendo Samuel. Ele e Rose planejam sua fuga.
...Etc.
Com este mínimo de informação, já é possível começar a redigir o roteiro, embora alguns
roteiristas prefiram antes elaborar bem mais cada cena, recheando-as com informações sobre a
história e personagens. Ou podem optar por escrever o primeiro tratamento do roteiro.

O TRATAMENTO
Alguns roteiristas começam a escrever pelo tratamento, que é basicamente uma narrativa ou
resumo da história. Assim como um conto, o tratamento é bem curto — tendo em média de oito
a quinze páginas — e conta o início, o meio e o fim da história. Se a história lhe ocorrer de forma
completa, já de início, o primeiro tratamento é uma ótima oportunidade de colocar a narrativa
numa seqüência lógica. Ao acompanhar a linha da narrativa, você poderá verificar se a história faz
sentido, se é plausível, se tem ação suficiente, e se segue uma direção definida. Se perceber que
algum fato parece não ter relação com outro, é bem possível que você tenha se desviado e saído
por alguma tangente que não tenha nada a ver com a história. Se sua história parece não sair do
lugar, você conseguirá perceber exatamente onde está faltando mais ação. Se o clímax não estiver
bem claro, você verá que sua história não está conseguindo se estruturar, ou perdeu a direção
rumo ao final.
Se estiver escrevendo um tratamento para um estúdio ou uma produtora, o formato geralmente
solicitado costuma ter de cinco a doze páginas. No entanto, o tratamento também pode ser
empregado como uma ferramenta de criação. Alguns roteiristas usam o tratamento como forma
de escrever em fluxo de consciência, deixando todas as suas idéias aflorarem livremente. Podem
escrever, por exemplo, cinco páginas sobre o ambiente do apartamento de um dado personagem,
ou explicar por que dois dos personagens se sentem atraídos um pelo outro e, em seguida, resumir
as próximas oito cenas em apenas uma ou duas linhas. O tratamento coloca no papel a faísca
inicial da idéia. É também uma excelente oportunidade para permitir que todas as idéias venham
à tona, para começar a pegar o ritmo dos diálogos, bem como para começar a sentir um pouco o
estilo da história.

15
Voltar ao Sumário

Os tratamentos ajudam muito na elaboração da história, pois permitem que você perceba
eventuais problemas e vá reformulando a história à medida que eles vão surgindo. No entanto, é
muito importante manter o tratamento fluido, bem maleável, especialmente nos estágios iniciais,
de tal forma que ele possa ser modificado e ampliado, enquanto o texto é reescrito. Para certos
roteiristas, uma vez escrito, torna-se uma verdade absoluta. Há também quem se encante com as
aparências, com o simples fato de uma linha de ação estar escrita de forma limpa e bem organizada
no papel, ainda que no fundo ela não esteja boa. Se você também se sentir assim, evite passar suas
idéias a limpo: rabisque-as em papéis de rascunho para ter total liberdade de continuar brincando
com elas, explorá-las ao máximo, e até introduzir alguma idéia maluca no texto que, mais tarde,
você mesmo pode decidir descartar. Isto evita que você fique preso a uma determinada forma, e
faz com que se sinta livre para fazer constantes alterações em sua linha de ação, até que a uma certa
altura, você sinta que ela está “de acordo” — coerente, interessante e bem estruturada.

FAZENDO UM DIÁRIO
O tratamento é uma excelente ferramenta para se chegar a uma noção mais clara da história,
mas não é muito útil quando se trata do desenvolvimento do tema ou mesmo dos personagens.
Por isso, alguns roteiristas, antes de escrever o roteiro em si, costumam trabalhar com um diário.
Escrever uma espécie de diário dá ao roteirista uma oportunidade de explorar personagens e
temas de uma forma muito semelhante ao que ele faria, se estivesse escrevendo sobre sua própria
vida e assuntos pessoais.
Essa técnica do diário faz com que o roteirista possa penetrar mais fundo na mente de seus
personagens, descobrindo assim o que eles pensam, o que sentem, o que os incomoda, com o que
se importam e de que forma reagem. Como na vida real, em que o fato de escrever seus pensamentos
mais íntimos em um diário pode ajudá-lo a compreender melhor a si mesmo, você vai perceber
que a técnica do diário poderá ajudá-lo a conhecer melhor o íntimo dos personagens, ajudando-o
a encontrar para cada um deles um rosto e uma voz.
O diário pode ser escrito na primeira pessoa, como se você fosse o próprio personagem
descrevendo suas experiências e pensamentos. Pode também ser escrito na terceira pessoa, como
se os personagens fossem amigos seus, ou alguém a quem você estivesse observando. Pode conter
descrições de personagens, ações e relações. Você pode fazer perguntas do tipo: Quanto o
personagem ganha? Como é sua família? Em que escola se formou?
Você pode criar um personagem escrevendo sobre pessoas que conheça e procurando definir
de que forma seu personagem se assemelha a elas. Talvez possa começar a imaginar traços da
personalidade do personagem que lhe interessem, ou se perguntar por que um certo personagem
age de determinada forma ou faz o que faz. Pode ser que decida basear sua história em alguma
experiência pessoal, e comece a escrever sobre seus sentimentos em relação a alguém que o tenha
abandonado, anos atrás. Quem sabe se lembre de um romance que viveu num certo verão e resolva
escrever todos os detalhes que provocarão uma reviravolta nessa história. Algo começa a borbulhar

16
Voltar ao Sumário

dentro de sua cabeça à medida que você trabalha com suas idéias. Você fica mais entusiasmado, as
idéias vão surgindo. Talvez decida usá-las; talvez elas lhe apontem um novo rumo.
Os temas também podem ser explorados através da técnica do diário. Os roteiros contêm idéias,
e as idéias precisam ser trabalhadas, tanto quanto a história e os personagens. Se seu tema trata da
influência negativa e cada vez mais disseminada da violência (como no filme O Passado Não
Perdoa), você pode fazer anotações no diário sobre as várias formas e os diferentes níveis com que
a violência afeta os diversos personagens. Você pode escrever sobre os pesadelos de seu personagem,
quando se depara com a violência. Pode falar da estranha atração que as pessoas sentem pela
violência, que parece fazer parte de todo mundo. Pode analisar como se dá a formação de fortes
vínculos entre pessoas que vivem sob a égide da violência. Ao analisar, por exemplo, os vínculos
formados entre soldados ou vítimas de guerra, ou entre membros de gangues, estará se assegurando
que o tema escolhido está em sintonia com uma audiência contemporânea.
Da mesma forma que o tratamento o ajudará a verificar certos aspectos da história, o diário
pode ajudá-lo a penetrar no interior dos personagens e do tema.
A esta altura, você já deve ter experimentado várias dessas técnicas, e descoberto que seus
personagens começam a querer falar com você. Se isto estiver acontecendo, arrume logo um
gravador, e experimente uma outra técnica.

FALANDO CONSIGO MESMO EM UM GRAVADOR


Na vida real, você fala consigo mesmo todos os dias. Já está acostumado a fazer isso. Mas o fato
de falar para um gravador pode lhe dar ainda mais liberdade, criando uma oportunidade para que
suas idéias fluam de forma desinibida. Talvez você já esteja imaginando trechos de diálogos para
algum de seus personagens. Você chega a ouvir suas vozes. Pode ser que fale tão rápido que você
mal consegue anotar num papel tudo o que dizem. Ou talvez eles decidam falar quando você
estiver preso no trânsito ou quando acorda, no meio da noite, com um pensamento, um fragmento
de diálogo. De repente, do nada, você escuta as palavras que estava buscando. Quando você ouve
as coisas que estava buscando, não importa onde e como você esteja, deve anotá-las o mais rápido
possível, enquanto ainda estão frescas na sua mente. O gravador é uma ferramenta muito útil para
isso, pois lhe permite registrar palavras e idéias onde quer que ocorram. E mais ainda, permite que
você as ouça, em vez de apenas vê-las escritas num papel.
Qualquer tipo de idéia pode, de repente, vir à sua mente. Você pode brincar com diálogos,
tentando exprimir certas atitudes dos personagens ou encontrar caminhos que expressem melhor
certas questões do roteiro, ou mesmo para explorar o relacionamento entre personagens. Às vezes,
o diálogo surge completo em sua cabeça, de uma vez só. Outras vezes você se recorda apenas de
algumas palavras-chave, ou de uma determinada combinação de palavras, enquanto vai trabalhando
no restante do roteiro.
A desvantagem do gravador é que você terá que transcrever o que foi gravado. Mas você não
precisa transcrever tudo que foi gravado, só aquilo que lhe agrada. O que não lhe agradar, você

17
Voltar ao Sumário

simplesmente corta. Algum tempo depois, pode voltar ao gravador, para tentar captar novamente
a inspiração de um diálogo ou uma certa associação de idéias. Mesmo que não utilize exatamente
as mesmas palavras, é importante saber por que elas foram ditas naquela ordem específica.
Porém, em vez de usar todas estas técnicas que mencionamos, você pode decidir que quer
apenas se sentar e escrever. E há roteiristas que fazem exatamente isto.

COLOCANDO TUDO NO PAPEL


Algumas ideias parecem que já surgem completas. É como se quem está escrevendo pudesse
ver um filme passando em sua cabeça. Se isto acontecer com você, comece a escrever o roteiro
imediatamente. Pode ser que mais para frente, ao longo do trabalho, você possa sentir dificuldade
e precise utilizar uma das técnicas que descrevemos. No entanto, existem roteiristas que na
realidade simplesmente se sentam e escrevem todo o roteiro, sem precisar recorrer a nada.
Talvez você seja um marinheiro de primeira viagem. Neste caso, pode até ser que esteja pronto
para escrever seu primeiro roteiro, mas a idéia de escrever 120 páginas o apavora. Se já tiver na
cabeça uma linha de ação, pode começar por colocar a história no papel em formato de roteiro,
sem maiores preliminares e, mais tarde, você volta e reescreve o roteiro. Até que você encontre seu
processo criativo, sempre ficará com receio. Será que vou conseguir escrever 120 páginas? Será
que vai valer a pena todo este esforço? Quanto tempo vai demorar? Colocar as 120 páginas no
papel, sejam elas boas ou ruins, elimina a questão do "será que eu consigo?". Raramente este
primeiro esboço ficará bom logo de cara, pois envolve pouca habilidade durante o processo de
escrita. Em compensação, pode fazer com que surjam algumas cenas artísticas, mágicas ou mesmo
bons diálogos. É verdade que você terá que trabalhar tudo de novo, desde do começo, preparando
e refinando sua história. Mas o fato de saber que você já conseguiu escrevê-la da primeira vez vai
tornar mais fácil o processo de reescrevê-la.
A maioria dos roteiristas mais experientes analisa suas histórias e personagens com muito
cuidado, antes de começar a fazer o roteiro. Quanto mais tempo for dedicado a esta preparação,
menos tempo será gasto na elaboração do roteiro em si. Você poderá optar por uma solução
intermediária, ou seja, lançar mão de todos os métodos de preparação antes de começar a escrever,
mas, uma vez que tenha começado, escreva tudo de uma sentada só, até o final. Muitos roteiristas
reconhecem que, assim que o roteiro começa a fluir, não se deve interromper o processo para
corrigir a gramática, eliminar erros de digitação, ou experimentar diversas versões para uma
mesma cena. Eles preferem escrever tudo de uma só vez.

PROGRAMAS DE COMPUTADOR
Vivemos na era da informática. A maior parte dos roteiristas escreve direto no computador.
Muitos costumam acessar a Internet, e se comunicar com outros roteiristas em grupos de bate-
papo. Portanto, nada mais natural que tenham surgido no mercado vários programas de
computador destinados a ajudar roteiristas a escrever e reescrever seus roteiros.
18
Voltar ao Sumário

Não estou me referindo a templates, isto é, programas para formatar roteiros (como o Scriptoor,
o MovieMaster ou o Scriptwrite), mas sim a programas destinados a auxiliá-lo na organização e
preparação para escrever seu roteiro. (Quando escrevi este livro, estavam disponíveis no mercado
o Collaborator, o Storyline e o Dramatica). Há muita controvérsia em relação a estes programas.
Alguns acham que são muito limitantes, como aqueles livros de desenho em que as crianças têm
de seguir os números. Estes programas dizem ao roteirista onde ele deve colocar cada elemento, e
lhe asseguram que, se seguir direitinho todos os passos, terá em mãos um roteiro “perfeito .
Outros vêem nesses programas uma espécie de catalisador para sua criatividade. Servem como
guias para mantê-los na rota e indicar qual deve ser seu próximo passo.
O que estes programas de roteiro fazem de fato? Quando podem ser úteis? Com o que você
precisa tomar cuidado?
Um programa desses no mínimo ajuda você a organizar suas idéias e a colocar toda a informação
de que dispõe num só lugar. Ao contrário das fichas, que você precisa escrever e reescrever, ou dos
blocos de rascunho com aquelas anotações extensas, num programa desses toda a informação
relativa à história, aos personagens, à locação e ao tema, tudo, rigorosamente tudo, está reunido
em um único lugar, onde pode ser modificado por diversas vezes, à medida que idéias novas forem
surgindo.
Um programa desses também poderá ajudá-lo a perceber as questões que você precisa solucionar,
enquanto escreve o roteiro. Existem centenas, senão milhares, de elementos que contribuem para
fazer com que um roteiro dê certo. Os roteiristas mais experientes conhecem esses elementos
inconscientemente, mas um novato ainda não dispõe desta percepção. Esses programas de roteiro
perguntam o tempo todo ao roteirista: Você já resolveu os problemas da biografia do seu
personagem? Você sabe o que seu personagem quer e que ações vai tomar para conseguir o que
deseja? Qual é o conflito? Quais são os problemas que seu personagem terá que resolver? Quem
será sua audiência? As decisões do seu personagem fazem sentido? Quais são os traços da
personalidade dos personagens principais e coadjuvantes?
Muitas dessas perguntas são bem parecidas com as que você encontrará no final de cada capítulo
deste livro. Da mesma forma que as perguntas do livro, sua finalidade é manter o roteirista a par
das questões que precisam ser resolvidas, fazendo assim com que o roteiro dê certo.
Um bom programa trabalha como um parceiro ou alguém que o ajude a levar suas idéias em
frente. Muitos deles trazem definições, informações, análise de roteiros famosos e mostram como
os vários elementos se relacionam nesses roteiros. Desta forma, esses programas servem, ao mesmo
tempo, como recursos para aprendizagem e como ferramentas para o processo de escrita.
Alguns deles ainda possibilitam que você brinque com suas idéias. A maioria é programada
para fazer certas perguntas em vários pontos do processo de criação da sua história. Muitos
organizam o material de tal forma que você consegue enxergar o relacionamento entre os vários
elementos que compõem o roteiro.
Lembre-se de que qualquer programa é baseado na teoria dramática adotada por seu idealizador.
19
Voltar ao Sumário

Você terá que aprender o vocabulário utilizado por quem idealizou o programa. Assim, antes de
começar a escrever, talvez você tenha que estudar alguns conceitos.
Qualquer programa sempre tem uma certa lógica implícita. Um programa de computador só
pode ser construído de forma lógica, ainda que alguns roteiristas adotem certas abordagens não-
racionais para a escrita de roteiros. Talvez você queira começar a construir seu personagem a
partir de um diálogo, ou de algum aspecto relacionado ao ritmo ou à energia do personagem, ou
ainda por algo relacionado à forma como ele se veste, por exemplo. Porém, quando começar a
fazer perguntas sobre o personagem, verá que as perguntas são sempre as mesmas, o que pode
levá-lo a pensar que exista somente um processo de criação. Isso acontece pelo fato de o programa
não poder levar em conta as centenas de diferentes pontos de partida que um roteirista possa
adotar, ou os milhares de diferentes processos que redundam em bons roteiros.
No final das contas, o teste para qualquer método consiste em verificar se ele é ou não uma
ferramenta útil e eficiente para você. Qualquer que seja o método, será tão bom quanto o talento
da pessoa que o utiliza. Se a pessoa se deixar limitar por um programa, acabará conseguindo
chegar a um roteiro, mas provavelmente acabará com um roteiro previsível, sem a menor
originalidade. Portanto, esteja certo de uma coisa: se determinado método não o ajuda a moldar e
estruturar sua história, nem a criar personagens cativantes e envolventes, com certeza esse método
não é para você. Um bom método deve deixar espaço e flexibilidade suficientes para que você
desenvolva seu próprio processo criativo. Deve funcionar como um parceiro de criação, ajudando-o
a resolver seus problemas bem como dar forma ao seu roteiro.

NÃO EXISTE APENAS UM ÚNICO JEITO CERTO


Diversos roteiristas recorrem a diferentes métodos para roteiros diferentes. Parte da arte de
escrever está em conhecer e recorrer a diferentes técnicas para chegar ao seu roteiro de diferentes
maneiras. Se uma técnica não der certo, provavelmente alguma das outras dará. Mas lembre-se
sempre, o objetivo dessas técnicas é que sirvam para que você efetivamente escreva seu roteiro.
Alguns roteiristas têm centenas de idéias, milhões de técnicas, mas não chegam a escrever roteiro
algum. A uma certa altura, você precisa sentar e colocar o roteiro no papel; precisa dar forma ao
que está em sua cabeça.
A criação do roteiro demandará não somente conhecimento e habilidade, mas também seu
talento pessoal — sua voz, sua visão, sua perspectiva, sua experiência, atitudes que são
exclusivamente suas. Todas as técnicas e conceitos, ao ajudarem você a trabalhar sua história,
funcionam como um elemento catalisador, contribuindo para aperfeiçoar seu talento.
Ao escrever um roteiro, grande parte do trabalho estará pronto se você fizer primeiro toda essa
preparação. Após ter completado todo o trabalho inicial e caprichado na preparação, escrever de
fato o roteiro ficará muito mais fácil.

20
Voltar ao Sumário

Para a maioria dos roteiristas, o processo de escrever um roteiro, desde a primeira idéia até o
primeiro tratamento, leva cerca de três a seis meses, embora haja roteiristas que cheguem a levar
um ano ou até mais. Pode até ser que alguns levem uns cinco anos. Também já conheci outros que
conseguiram escrever um roteiro em três semanas. O próprio processo de reescrever o roteiro
pode demorar em torno de duas semanas ou até dois anos, quem sabe. Isso não importa. Não há
um tempo fixo que deva ser obedecido durante a criação de um roteiro. Também não existe um
jeito certo ou um jeito errado para se fazer isso, pois não existe um único processo de criação.

APLICAÇÃO
Há uma razão para você estar escrevendo um roteiro. Também há certas perguntas que pode
fazer e que irão ajudá-lo a permanecer em contato com sua paixão, sua criatividade e com o
método que seja melhor para preparar seus pensamentos para começar a escrever.
Portanto, antes de começar a escrever seu roteiro, pergunte a si mesmo:
■ O que me leva a querer escrever este roteiro?
■ Já refleti bem a respeito de todos os elementos do roteiro — a história, os personagens, o
tema, as imagens, os diálogos?
■ Consigo ouvir a voz dos meus personagens? Eles já estão começando a falar comigo, de
forma que eu possa ter verdadeiros personagens falando, quando começar a escrever os diálogos?
■ Gastei tempo suficiente explorando as possibilidades da história e dos personagens, antes
de me apressar em escrever o roteiro?
■ Será que eu impus uma série de regras à minha história e aos meus personagens ou permiti
que fossem evoluindo naturalmente?
■ Estou concentrando o foco naquilo que me comove, em minha arte, naquilo que realmente
quero dizer? Ou estou mais preocupado com aspectos comerciais, relacionados ao marketing, à
fama ou a quanto dinheiro esse roteiro irá me render? Estou pensando apenas em ganhar prêmios
ou já me daria por satisfeito com uma simples indicação?
■ Estou me lembrando de manter os olhos no processo em vez de ficar tentado a encontrar
soluções rápidas?
Depois que tiver passado por toda essa fase de preparação, você estará pronto para começar a
escrever seu roteiro. Quando tiver chegado a este ponto, estará pronto para dar uma estrutura e
uma forma dramática para sua história. Estará pronto para moldar o início, o meio e o fim do seu
roteiro.

21
Voltar ao Sumário

CAPÍTULO 2

A ESTRUTURA EM TRÊS ATOS:


POR QUE E COMO UTILIZÁ-LA

Imagine que você é um escritor que acaba de escrever um roteiro maravilhoso. O roteiro é de
fato muito bom, e você sabe disso. Inclusive já o mostrou a vários amigos, que disseram ter achado
seu roteiro melhor do que o do filme E. T., o Extraterrestre. Mas lá no fundo você não está assim
tão seguro. Ainda acha que há algo de errado nele. Em algum ponto, talvez no segundo ato, parece
que os elementos não estão se encaixando muito bem. Alguma coisa não bate. As coisas não
parecem estar como deveriam e você começa a ter uma série de dúvidas sobre seu trabalho.
Outro caso comum é o do produtor que deseja desesperadamente conseguir a opção para um
determinado roteiro muito engraçado, único no gênero, e perfeito para ser encenado por um dos
artistas mais badalados da cidade. Contudo, por algum motivo, o roteiro parece ter algo de
estranho. Não tem consistência. O final é muito melhor do que o começo. Além disso, tem uma
quantidade excessiva de personagens. Você não quer perder este negócio, mas, ao mesmo tempo,
não pode se comprometer com a opção de uma história que não dê certo.
Suponha que você seja um diretor de produção que deve começar as filmagens em menos de
três semanas. O roteiro do filme, que já conta com 138 páginas, ainda está sendo terminado, o
segundo ato está atrasado, e a estrela do filme não gosta da forma como seu personagem aparece
neste ato.
Todas essas situações são corriqueiras, e precisam ser resolvidas para que um roteiro fique bom.
Estes problemas geralmente são estruturais. Não é a história que é ruim; o problema está na
construção dessa história. O fato é que o roteiro ainda não está bom; mas, por onde começar a
consertá-lo?

A ESTRUTURA EM TRÊS ATOS


Escrever e reescrever é um processo que exige duas coisas: uma visão geral da história e uma
enorme atenção para os detalhes. Como o próprio roteiro, o processo de escrevê-lo também tem
um começo, um meio e, felizmente, um fim.
Parte da arte de escrever e reescrever um bom roteiro consiste em encontrar uma estrutura
forte o bastante para comportar a história. Em outras palavras, isso significa construir a história
de modo a lhe dar forma, foco, momentum e clareza, ou seja, colocar a história em um formato
dramático.
22
Voltar ao Sumário

Desde os primórdios, as peças de teatro tendem a seguir uma estrutura em três atos. A começar
pela tragédia grega, passando pelas peças de Shakespeare, pelas séries dramáticas, ou pelos Movie-
of-the-Week, o que se observa é sempre a clássica estrutura em três atos: começo, meio e fim —
que também pode ser definida como: apresentação, confrontação e resolução.
Na maior parte das peças em três atos, essa divisão estrutural é nítida: a cortina desce no final
do primeiro ato, deixando claro que chegamos ao fim da apresentação. O mesmo ocorre no final
do segundo ato, marcando o término da confrontação. E a seguir, temos o terceiro ato, que caminha
em direção ao clímax e à resolução.
A televisão, a fim de possibilitar a exibição de comerciais, interrompe artificialmente sua
programação, criando estruturas de dois atos (para os sitcoms) de sete atos para os filmes de longa
metragem (com duas horas de duração), ou de quatro atos para novelas e seriados. Mesmo assim,
apesar desses cortes artificiais, num bom espetáculo de televisão dá para perceber a clássica
estrutura de três atos, com uma clara apresentação, uma confrontação e uma resolução.
Embora nos filmes de cinema a exibição nunca seja interrompida, também encontramos esta
mesma estrutura em três atos, o que ajuda na dinâmica e no foco da história. Em conseqüência
dessa estrutura estar presente em todas as formas de arte dramática, os mesmos comentários que
faço a respeito da estrutura de filmes de cinema aplicam-se também para a televisão e o teatro.
Na elaboração de um filme, esses atos normalmente compreendem: de dez a quinze páginas
para a apresentação da história, seguidas de mais umas vinte páginas de confrontação no primeiro
ato; a seguir, um longo segundo ato de quarenta e cinco a sessenta páginas e, por fim, um terceiro
ato mais rápido, de vinte a trinta e cinco páginas. Cada ato tem um foco diferente. A passagem de
um ato para outro normalmente se dá através de uma ação ou evento denominado ponto de
virada. Se fizéssemos um gráfico para mostrar essa estrutura em três atos, chegaríamos ao seguinte
esquema:

Cada parte desta estrutura tem uma finalidade diferente. A apresentação atinge objetivos

23
Voltar ao Sumário

diversos do segundo ponto de virada. O mesmo se pode dizer do desenvolvimento dos dois
primeiros atos, que é bem diverso. O ritmo do terceiro ato é geralmente mais rápido do que nos
precedentes.
É mais fácil reformular um roteiro após termos identificado e nos concentrado na apresentação,
nos pontos de virada e na resolução.

A APRESENTAÇÃO
Os primeiros minutos da história são os mais importantes. Muitos roteiros têm problemas
justamente nestes primeiros momentos, por não apresentar a história de modo claro, por não se
focalizar bem nela, ou até mesmo por apresentar tudo, menos a própria história.
O objetivo da apresentação é passar aquelas informações vitais, de que precisamos para
compreender a história. Quem são os personagens principais? De que trata a história? Onde se
passa? Que tipo de história temos: uma comédia, um drama ou uma tragédia?
A apresentação existe para nos dar pistas sobre a espinha dorsal da história, ou seja, a direção
em que ela caminha. Começa focalizando a situação e traça uma linha de ação coerente. Ela dá
impulso à história e ajuda a orientar o público, para que possa assistir ao espetáculo sem ficar o
tempo todo se perguntando sobre o que o filme trata, ou o que os personagens estão fazendo, ou
por que estão fazendo isto ou aquilo.
Comece com uma imagem. Na maioria dos bons filmes, a apresentação começa com uma
imagem. A primeira coisa que visualizamos é uma imagem que nos dá uma boa noção do lugar
em que se passa o filme, do ambiente, da estrutura e, por vezes até do tema. A primeira imagem
pode mostrar uma batalha espacial (como em Guerra nas Estrelas), ou um bando de gângsteres
nas ruas de Nova York (Amor, Sublime Amor) ou uma jovem cantando nas colinas (A Noviça
Rebelde), ou ameaçadoras estátuas de leões, guardando a entrada de uma biblioteca mal-
assombrada (O Caça-Fantasmas).
Filmes que começam com um diálogo, em vez de uma imagem, são geralmente mais difíceis de
serem entendidos. Isto porque nossos olhos gravam mais rapidamente os detalhes do que nossos
ouvidos. Quando uma informação importante é transmitida verbalmente, antes que o público
tenha tido oportunidade de se habituar ao estilo, ao lugar e à parte sonora do filme, a audiência
terá dificuldades em se lembrar dessa informação verbal. Conseqüentemente, podemos acabar
não conseguindo fazer com que o público se envolva na história.
Por isso, comece sempre com uma imagem, transmitindo um sentimento, a sensação do lugar
em que se está. Procure dar uma idéia do ritmo e do estilo do filme. Conte o máximo possível
através dessa imagem. Introduza o público no clima da história. Se possível, crie uma metáfora
para o filme, apresentando o tema de modo simbólico, através das imagens mostradas nas cenas
iniciais.
Alguns dos filmes mais populares são lembrados por suas imagens vibrantes e inesquecíveis.

24
Voltar ao Sumário

Vamos analisar dois deles: A Testemunha e Uma Aventura na África.


Os primeiros três minutos de A Testemunha são compostos praticamente só de imagens,
acompanhadas por uma música de fundo. Vemos o seguinte:
■ Campos de cereais ondulando ao vento.
■ Pessoas da comunidade amish vestidas com suas tradicionais roupas pretas, andando em
meio à plantação.
■ Carroças em movimento e o som do trote dos cavalos.
■ Uma casa de fazenda.
■ Um funeral.
■ Rostos.
■ As primeiras palavras que ouvimos são ditas em holandês.
Depois de assistirmos esses primeiros minutos de A Testemunha, perguntamos a nós mesmos:
O que estas cenas nos dizem? O que ficamos sabendo através dessas imagens?
A Testemunha começa num ritmo que lhe é peculiar: lento e, ao mesmo tempo, lírico. Os
primeiros momentos nos mostram esse povo simpático, que forma uma comunidade coesa e
participativa. Um povo que vive no meio rural, o que fica evidente pelas imagens das plantações
logo na primeira cena. Seu ritmo de vida é mais lento do que o dos habitantes das cidades. Sente-se
claramente sua ligação com a terra e o forte vínculo que os une uns aos outros.
Já nos primeiros minutos do filme, um tema começa a se tornar aparente: a comunidade. Com
o desenrolar da história, a imagem da comunidade começa pouco a pouco a se formar, e vai
surgindo o contraste entre seu ritmo de vida pacato e pacífico e o ritmo frenético e violento do
mundo dos policiais.
É digna de nota a ausência de diálogos nesta primeira parte. A imagem vai sendo construída,
detalhe por detalhe, até que se tenha um quadro completo do cenário, do ritmo de vida, do clima
e do contexto geral.
Uma Aventura na África começa dando uma idéia do contexto com a seguinte informação
inicial: “ Um povoado nativo situado numa clareira entre a floresta e o rio. Fim de manhã.”
LONG SHOT — UMA CAPELA
Luz intensa, muito calor, um silêncio profundo. De repente, ouve-se o som agudo de um órgão,
duas vozes bem nítidas e o som abafado uma miscelânea de vozes, tímidas e arrastadas, entoando
um hino:
VOZES
(cantando)
“Guia-me, ó Grande Jeová..."

25
Voltar ao Sumário

INTERIOR DA CAPELA — AO LONGO DA CAPELA DESOLADA, A CONGREGAÇÃO,


O PASTOR AO PÚLPITO E ROSE AO ÓRGÃO.
PASTOR
“Sou um peregrino nessas terras desertas..."
O pastor de meia-idade, rosto anguloso, calvo, sua em bicas. É um homem muito esforçado,
muito dedicado ao seu rebanho. Com voz anasalada, canta a plenos pulmões, tentando cravar as
palavras no coração dos fiéis, como se fossem pregos. Batendo com as mãos no púlpito, tenta
acelerar o ritmo que se arrasta sonolento:
PASTOR
“Eu sou fraco, tu és o Todo-Poderoso..."
Rose aparenta ter uns trinta e poucos anos; feições compenetradas e cabelo preso... Aperta
vigorosamente os pedais do órgão, enquanto, com os joelhos, manobra as alavancas de madeira
que controlam o volume do som. Ao mesmo tempo, acompanha aflita a partitura do hino aberta
à sua frente, tentando tocar as notas certas — está assoberbada. Ela também está cantando a plenos
pulmões, bem alto...
ROSE
“Segura-me, Senhor, com tua poderosa mão..."
(Neste momento da mais exaltada piedade eis que surge:)
Uma coluna faiscante de fumaça e um som estranho, cada vez mais alto; um som meio rouco,
alto e sincopado de um motor a vapor que já conheceu dias melhores. Os olhos desviam sua
atenção do livro de hinos.
CORTE PARA O INTERIOR DA CAPELA
Aparece a figura do Pastor que, irritado, franze o cenho e canta ainda mais alto, tentando impor
ordem no ambiente; mas a atenção está mesmo sendo desviada dos hinos.
LONG SHOT - AFRICAN QUEEN
A cena mostra um pequeno barco, o African Queen, cujo apito lança no ar um som de vapor,
que repete mais uma vez, como que satisfeito. O barco mede cerca de 10 metros de comprimento,
é pesado, tem um design deselegante e o casco achatado. Um toldo esfarrapado cobre cerca de 2
metros da popa. No centro do barco ficam a caldeira e o motor. Um toco de chaminé se ergue,
passando pouco acima do toldo.
NO SEGUNDO APITO
CORTE PARA:
PLANO EM MEDIUM CLOSE — ALLNUTT — EM SEU BARCO
Allnutt está vestindo roupas brancas, gastas e encardidas. Descalço, senta-se meio recostado,
fumando um charuto. Traz na cabeça um chapéu de palha todo roto e esburacado, meio inclinado,
26
Voltar ao Sumário

para se proteger do sol. Dois jovens negros o ajudam no barco. São tão altos, magros, e graciosos
que até lembram fios de espaguete negro. Um deles, todo importante e atarefado, cuida do motor
a vapor, que exige muita atenção. O outro abana ALLNUT, que aproveita a mordomia, contente e
descontraído... O African Queen gira lentamente sua proa em direção à margem.
A imagem continua mostrando todo o rebuliço provocado pela chegada do barco e a frustração
do Pastor e de Rose, que tentam arduamente terminar o hino de modo digno, enquanto Allnutt se
aproxima, fumando seu charuto e trazendo o correio.
Vemos que a primeira imagem é rica em contrastes. Em apenas alguns minutos, fomos
apresentados aos “negros convertidos " e aos “nativos cristianizados". Conhecemos também Rose
e o Pastor, dois piedosos missionários brancos, que permanecem em franca oposição à figura de
Allnutt, o homem branco pagão que, escarrapachado em seu barco, contrasta intensamente com a
compenetrada Rose, toda perfilada na igreja. Reparamos que havia pessoas cantando e outras que
não cantavam; vimos os “brancos civilizados” tentando impor sua ordem ao “povo primitivo".
Este mundinho à parte é subitamente invadido por uma coluna de fumaça e um apito, que vão
ligar esta região isolada aos problemas de uma guerra mundial.
Procure um elemento catalisador. Depois que a imagem inicial introduz a história, precisamos
começar a apresentar os principais personagens que farão parte da trama. Precisamos ter
informações sobre a situação: Onde estamos? O que está acontecendo? E então precisamos de
algum acontecimento para dar início à história. Isto é o que costumo chamar de elemento
catalisador da história.
O elemento catalisador é o que faz a ação da história começar. Alguma coisa acontece — uma
explosão, um assassinato, uma carta que chega ou uma visita — e deste momento em diante, a
história começa a se definir. A partir deste ponto, sabemos do que trata a história, qual será sua
espinha dorsal.
O elemento catalisador é como se fosse um primeiro empurrão que faz com que o roteiro se
desenvolva. Algo acontece, alguém toma uma decisão. O personagem principal começa a agir, a
história principia.
Existem três tipos diferentes de elementos catalisadores. Os mais marcantes consistem naquelas
ações específicas que dão início à história. No filme A Testemunha, um assassinato acontece, e
John Book é chamado para solucioná-lo. Um fantasma é visto na biblioteca em O Caça-Fantasmas.
Em Tubarão, alguém é morto por um tubarão.
Às vezes o catalisador pode ser uma informação que o personagem recebe, e que nos fornece
uma pista da história. Isto acontece muito nos Movies-of-the-Week, que frequentemente tratam
de uma questão específica, ou de crimes e doenças. Por exemplo, uma senhora fica sabendo que
está com câncer; um homem recebe uma promoção ou um casal descobre que nunca poderá ter
filhos.
Muitas vezes o elemento catalisador vem a ser uma situação, uma série de incidentes que se
passam durante um certo tempo, e que nos remetem à história. Em De Volta para o Futuro, só
27
Voltar ao Sumário

ficamos sabendo que existe uma máquina do tempo após uns vinte minutos de projeção. Mas
sabemos que um dos principais personagens é um cientista maluco. Sabemos também que Marty
terá uma reunião com ele no Twin Pines Mall, e que este encontro é secreto e muito importante.
Conforme a situação vai se definindo, ficamos cada vez mais curiosos e, no final do primeiro ato,
a espinha dorsal da história torna-se evidente.
Tootsie também tem um começo baseado numa situação. Sabemos que Michael é um ator
desempregado, e que é uma pessoa com quem é difícil de se trabalhar. Ninguém quer empregá-lo
por causa de seu gênio, apesar de ser um bom ator. Ficamos sabendo que há um ótimo papel
disponível para uma atriz, numa novela. Essa situação é construída no decorrer do primeiro ato
até que, ao seu final, descobrimos o rumo da história. E a partir daí ela está pronta para ser
desenvolvida.
Levante a questão central: A apresentação da história, entretanto, ainda não está completa.
Apesar de as imagens terem nos orientado, e de o elemento catalisador ter colocado a história em
movimento, ainda falta um outro ingrediente para podermos de fato começar a história.
Toda história, num certo sentido, traz em si um mistério. Na apresentação, a história sugere
uma pergunta que só será respondida no clímax. Geralmente somos apresentados a um problema
ou a uma situação que exige uma solução. Esta situação ou problema desperta em nós algumas
perguntas. Por exemplo, ao assistir ao filme A Testemunha, geralmente perguntamos: será que
John Book vai descobrir quem é o assassino? Já no filme Uma Aventura na África, indagamos se
os alemães vão continuar seu massacre impunemente e no filme Tubarão, perguntamos se Martin
conseguirá pegar o tubarão.
Uma vez levantada a questão central, tudo o que acontecer dali por diante vai ser relacionado a
ela. Na maioria das vezes, a questão central encontra uma resposta afirmativa, quando a história
atinge seu clímax. John Book consegue pegar os criminosos, Allnutt e Rose dinamitam o Louisae
Martin pega o tubarão. No entanto, ficamos sem saber as respostas dessas perguntas até o final do
filme. Podemos até tentar adivinhar qual será o desfecho, mas continuamos presos à história, e
curiosos o tempo todo para saber o que vai acontecer.
Uma vez que a questão central é definida, a apresentação termina e a história já está pronta para
se desenvolver.

COMPONDO A AÇÃO DO PRIMEIRO ATO


Quando a apresentação chega ao final, já se passaram provavelmente de dez a quinze minutos
de exibição. É muito importante fazer uma apresentação curta, pois a audiência fica impaciente
quando não consegue compreender o sentido da história nos primeiros quinze minutos.
Evidentemente existem muitos filmes estrangeiros, e mesmo alguns americanos, que fazem a
audiência esperar mais do que isto. Na realidade, quanto mais tempo demorar, mais aumenta o
risco de se perder a espinha dorsal do tema e, com isto, da audiência não compreender seu rumo.
Os filmes que não seguem esta regra, embora sejam muitas vezes filmes de arte, raramente alcançam

28
Voltar ao Sumário

sucesso de bilheteria. No entanto, acredito que é possível conjugar as duas coisas: fazer um filme
de arte com um roteiro muito bem elaborado, sem que uma coisa prejudique a outra. Por isso,
recomendo sempre uma apresentação curta, sem floreios, e de fácil compreensão.
Esta apresentação será seguida pelo desenvolvimento do primeiro ato. Depois da apresentação,
serão necessárias outras informações para nos conduzir na direção da história. Precisaremos saber
mais sobre os personagens e vê-los um pouco em ação, antes de podermos acompanhar a sua
evolução, no segundo ato. É provável que seja necessário conhecer um pouco da backstory dos
personagens ou da situação em torno da qual se desenrola a história. De onde vem esse personagem?
O que o motiva? Qual é o conflito central? Quem é seu antagonista?
Para analisar o primeiro ato, precisamos compreender aqueles ele-nentos dramáticos mais
importantes que nos preparam para o desenrolar da história.
Podemos definir elemento dramático como sendo um único momento dramático ou um
acontecimento dramático específico. Na música, o encadeamento de marcações ou cadências
regulares forma o que chamamos de ritmo ou compasso. Conforme vamos encadeando mais
marcações teremos um trecho de uma música, e depois uma melodia, até chegarmos a uma canção
inteira. Com a arte dramática acontece da mesma maneira. Os elementos dramáticos mais
importantes, quando reunidos, criam uma cena. Esses elementos dramáticos de uma cena somam-
se aos de outras cenas, criando um ato. Por sua vez, os elementos dramáticos principais de cada
ato juntam-se as de outros atos, criando a história.
No filme A Testemunha, foram necessários vários desses elementos dramáticos para definir a
ação central do primeiro ato, a saber, a tentativa de identificar o assassino:
■ John Book mostra a Samuel um suspeito para identificação.
■ John consegue que Rachel e Samuel fiquem mais um dia.
■ John mostra a Samuel diversos suspeitos.
■ John mostra para Samuel fotos do arquivo policial.
■ Samuel vê a foto de McFee e o identifica como sendo o assassino.
■ John Book avisa o chefe de polícia, Paul Schaeffer.
■ McFee tenta matar John e John percebe que Paul está envolvido no assassinato.
Estes elementos dramáticos não constituem o foco principal da história, mas nos preparam
para o que virá a seguir.

POR QUE TER PONTOS DE VIRADA?


Uma boa história é sempre interessante. Consegue prender o interesse do público devido a uma
série de fatos imprevisíveis ou pontos de virada intrigantes, ou seja, certas mudanças que ocorrem
no curso da ação até que esta atinja seu clímax. Se tivéssemos uma história completamente linear,
isto é, que se desenvolvesse na mesma batida contínua, desde o primeiro impulso dado pelo
29
Voltar ao Sumário

elemento catalisador até chegar ao clímax, provavelmente perderíamos o interesse, e o foco da


ação não ficaria bem claro.
Embora ao longo de toda a história possa ocorrer uma série de mudanças ou pontos de virada,
na estrutura em três atos existem dois pontos de virada que devem estar presentes para que a ação
possa se desenvolver: um no começo do segundo ato, e o outro no começo do terceiro ato. Eles
ajudam a mudar a direção da ação; novos acontecimentos se desdobram a partir desses pontos de
virada; novas decisões acontecem. Como resultado desses dois pontos de virada, a história atinge
seu momentum e mantém o foco da ação.
Em geral, o primeiro ponto de virada ocorre na primeira meia hora de filme, e o segundo nos
vinte a trinta minutos que precedem seu final.
Cada um desses pontos tem várias funções:
■ Mudar o curso da ação rumo a uma nova direção;
■ Manter aceso o interesse pela questão central, fazendo-nos buscar uma resposta;
■ Ser, em geral, momentos em que o personagem principal toma uma decisão ou assume
determinado compromisso;
■ Aumentar o envolvimento;
■ Fazer com que a história caminhe para o próximo ato,
■ Conduzir o público para uma nova parte da historia, passando-lhe a sensação de um novo
foco para a ação.
Um ponto de virada consistente assume todas essas funções, embora muitos deles o façam
apenas parcialmente.
O filme A Testemunha é um dos melhores exemplos de estrutura de roteiro bem ajustada, e
seus pontos de virada são dos mais marcantes que podemos encontrar. O primeiro ponto de virada
surge a trinta e dois minutos do início do filme, logo que John Book acaba de explicar para o chefe
de polícia, Paul Schaeífer, que o menino identificara McFee.
Schaeffer pergunta, então: “Quem mais sabe disso?" Book responde:
"Só nós dois."
Schaeffer sugere que esta informação seja mantida em sigilo. John Book vai embora, mas é
emboscado, na garagem, por McFee. Quando se da conta de que foi baleado, vem-lhe à cabeça a
pergunta de Schaeífer “Quem mais sabe disso?"— e a resposta que ele lhe dera — “Só nós dois.”
Repare o que acontece nessa cena. Até esse momento, John vinha seguindo os procedimentos
de rotina para encontrar o assassino. Ele investigara atentamente os suspeitos, havia examinado os
arquivos de fotos da polícia, e parecia que sua busca tinha chegado ao fim. Paul dissera que cuidaria
de tudo. A ação já estava praticamente no fim.
Mas, com este ponto de virada, subitamente tudo muda de figura. Acompanhamos o desenrolar

30
Voltar ao Sumário

de uma ação drástica — McFee tenta matar John Book. Com esta ação, John compreende que Paul
está envolvido no crime. A partir deste ponto, voltamos a nos indagar: “Será que John vai conseguir
pegar o criminoso?" A resposta que antes parecia ser um “sim”, muda agora para “pode ser que
nao".
O risco aumenta novamente. John precisa deixar este lugar; ele tem que fugir. Sua vida, pela
primeira vez, corre perigo, juntamente com as vidas de Rachel e de Samuel. Nesta hora, John
precisa tomar algumas decisões: destrói os arquivos, leva Rachel e Samuel de volta para a fazenda
e se esconde, até a situação se acalmar.
No filme A Testemunha temos o exemplo de um ponto de virada que contém dois momentos
dramáticos diferentes. O primeiro acontece quando John é baleado, e percebe que Paul é um
assassino. Isto faz a ação mudar de rumo, e encerra o primeiro ato. No entanto, ainda é necessário
outro momento dramático para passarmos ao segundo ato. Até esse ponto, a única coisa que
sabemos é que John pretende fugir. A ação do segundo ato, com a sua conseqüente permanência
na fazenda dos amish, ainda não começara. Ela se inicia quando John se recupera de seu ferimento
e guarda seu carro no estábulo, tendo que se esconder na Fazenda Lapp. Pouco antes, a intenção
de John era fugir, e o segundo ato poderia ter mostrado um homem escondido em algum hotel de
segunda categoria. Em vez disso, John se vê forçado a permanecer numa fazenda amish, e o
segundo ato se desenvolve em torno desse eixo.
Em Tootsie, o primeiro ato mostra detalhes do personagem de Michael: seu talento como ator
e professor de teatro, sua personalidade difícil, sua procura por trabalho. No primeiro ponto de
virada, aos vinte e dois minutos de filmagem, Michael se transforma em Dorothy. A partir daí, o
segundo ato se desenvolve explorando todas as mudanças, complexidades e situações inimagináveis,
que decorrem dessa transformação de um homem em uma mulher.
Em Uma Aventura na África, após cerca de trinta minutos de exibição, tendo Allnutt e Rose
fugido rumo ao desconhecido, Rose tem a idéia de dinamitar o navio alemão Louisa e Allnutt
finalmente concorda com ela. Esta decisão nos conduz ao segundo ato, que vai tratar justamente
desta intenção.

O SEGUNDO PONTO DE VIRADA


Depois de cerca de uma hora de desenvolvimento do segundo ato, há um segundo ponto de
virada, que também muda a direção da ação, encaminhando a história para o terceiro ato. Ele
exerce as mesmas funções do primeiro:
■ Mudar o curso da ação rumo a uma nova direção;
■ Manter aceso o interesse pela questão central, fazendo-nos buscar por uma resposta;
■ Ser, em geral, momentos em que o personagem principal toma uma decisão ou assume
determinado compromisso;
■ Aumentar o envolvimento;

31
Voltar ao Sumário

■ Fazer com que a história caminhe para o próximo ato;


■ Conduzir o público para uma nova parte da história, passando-lhe a sensação de um novo
foco para a ação.
No entanto, o segundo ponto de virada tem uma função adicional: ele acelera a ação. Isto faz
com que o terceiro ato seja mais intenso do que os anteriores. Ele traz um certo sentimento de
urgência, um certo momentum, e conduz a história rumo a um desfecho.
Muitas vezes o segundo ponto de virada funciona como se fosse uma “bomba-relógio”: “Muito
bem, James Bond, você tem 6 horas antes de eu mandar Paris pelos ares!” Ou ainda: “Se você não
fizer o que estou exigindo, em 24 horas vou te denunciar à polícia”. Ou quem sabe: “Eles vão chegar
aqui ao meio dia para te pegar!”
O segundo ponto de virada pode também ocorrer através de dois momentos dramáticos
diferentes que, em geral, vêm a ser um “momento negro" seguido de um novo estímulo.
Num filme de mistério, por exemplo, este momento negro acontece quando o detetive parece
estar quase que desistindo de sua busca, por considerar o caso insolúvel. De repente, ele vislumbra
uma solução, e a partir daí se inicia o terceiro ato, com a busca pelo vilão. Num filme de terror, o
momento negro ocorre quando o cientista começa a perceber que jamais vai conseguir destruir o
monstro. No entanto, poucos minutos depois, um novo plano infalível começa a se delinear.
O filme Cocoon nos oferece um excelente exemplo de um ponto de virada dividido em duas
partes. Logo que os velhinhos do asilo conseguiram drenar energia da piscina, Walter vê que um
dos habitantes de Antares morre num dos casulos. Esta morte é um momento negro para Walter
— coloca sua missão em perigo e aumenta os riscos envolvidos. Tudo parece perdido. Havia
falhado em sua missão. Mas a ação ganha um novo estímulo cinco minutos depois. Grandpa
oferece a ajuda dos aposentados para colocar os casulos de volta na piscina, mantendo-os a salvo
para a futura viagem. Com esse novo estímulo — essa nova solução — o problema fica resolvido,
o que nos conduz diretamente ao terceiro ato.
No filme A Testemunha, o segundo ponto de virada acontece quando o esconderijo de John é
descoberto, e Paul e McFee já sabem onde encontrá-lo. Esta descoberta ocorre em vários momentos
dramáticos:
■ John fica sabendo que seu parceiro morreu, e diz a Paul que irá em seu encalço.
■ Quando alguns punks tentam agredir os amish, John se sente na obrigação de protegê-los.
■ Um policial que passa pela esquina reconhece o homem que Paul descrevera. Então, ele
confidencia a Paul que John vive com Eli Lapp.
O segundo ponto de virada ocorre no momento em que John dá um murro no punk. Este
episódio, aliado ao fato de a polícia ter identificado John Book, faz com que a ação sofra uma
reviravolta, o que nos leva até a cena do tiroteio, no terceiro ato.

32
Voltar ao Sumário

O GRANDE FINAL
O clímax normalmente ocorre nas últimas cinco páginas do roteiro seguido por uma resolução
que dá um desfecho a todas as situações pendentes. O clímax marca o fim da história: é o grande
final. Este é o momento em que o problema é resolvido, a questão central é respondida, a tensão
desaparece e sentimos que agora tudo vai dar certo.
■ John captura Paul e, com isso, percebemos que nada mais resta senão um adeus.
■ Marty “volta ao futuro”.
■ Tootsie é descoberto sob seu disfarce, mas consegue ficar com a garota.
■ Em Os Caça-Fantasmas, o fantasma grandalhão é capturado e, no filme Tubarão, Martin e
Matt finalmente conseguem pegar o tubarão.
Uma vez alcançado o clímax, a festa chega ao fim e é hora de ir para casa. Não há mais nada a
dizer, e o melhor é não falar mais nada mesmo. Embora possa surgir a tentação de prolongar a
história, de adicionar alguma informação ou outra imagem, na realidade, o melhor a fazer é
admitir que a história terminou. Portanto, é hora de escrever simplesmente “FIM”.
Além da clássica estrutura em três atos, existem outras formas de se estruturar um roteiro.
Dentre elas, citamos dois métodos que podem ser usados na continuação do trabalho de
estruturação de um roteiro: a seqüência de créditos e a cena central.

A SEQUÊNCIA DE CRÉDITOS
Um filme pode começar de três maneiras. De acordo com a primeira delas, a maneira tradicional,
o filme começa exibindo na tela uma relação das pessoas e empresas que participaram de alguma
forma para aquela produção audiovisual. Esses créditos são exibidos por alguns minutos, para só
então dar inicio a história. Sua forma de apresentação pode ser bem simples: letras brancas sobre
um fundo preto ou vice-versa (como, por exemplo, nos filmes de Woody Allen). Também podem
seguir o estilo clássico, bastante usado nos filmes anteriores à década de 50 (e também em outros
filmes como Uma Janela para o Amor e A Idade da Inocência).
Uma segunda maneira consiste em sobrepor os créditos às imagens e ações, geralmente em
cenas sem diálogos (como nos filmes O Silêncio dos Inocentes, Tubarão, Atração Fatal). Dessa
forma, o cineasta já apresenta algumas informações e uma boa dose de contexto junto com os
créditos, antes mesmo de o filme começar.
A partir da década de 1980, surgiu um terceiro modo de apresentação dos créditos: um número
cada vez maior de filmes tem uma seqüência de cenas que antecede os créditos. Na maioria dos
casos, são dois ou três minutos de montagem, ou uma a duas cenas curtas que são usadas para
apresentar personagens ou mesmo um determinado contexto ou situação. Essas cenas iniciais são
seguidas por uma tradicional seqüência de créditos (como em Amigos, Sempre Amigos) ou por
créditos sobrepostos à ação (como em War Games).

33
Voltar ao Sumário

O uso de uma seqüência de cenas precedendo os créditos pode favorecer o trabalho de


estruturação da história, pois permite que o roteirista comece sua abordagem de dois modos
diferentes: primeiro, delineando uma determinada situação para, em seguida, apresentar os
personagens. Por exemplo, no filme Os Caça-Fantasmas, a seqüência inicial anterior aos créditos
nos apresenta ao fantasma da biblioteca. Em seguida, começam os créditos e, logo depois, os
personagens principais são apresentados. Em Nos Bastidores da Notícia, os personagens a princípio
são apresentados ainda crianças. Em seguida, vêm os créditos, e a história passa a mostrar os
personagens já adultos, como jornalistas de televisão.
Na maioria dos casos, essa seqüência de cenas anterior aos créditos é bem curta, tomando em
média de dois a três minutos, embora, ocasionalmente, possamos ter seqüências longas. A
seqüência inicial do filme War Games, por exemplo, dura sete minutos. O mesmo ocorre no filme
Nascido em 4 de Julho. Nos dois casos, essas seqüências iniciais apresentam o contexto, mas a
história de fato só começa depois dos créditos.
Embora quase todos os executivos, produtores e diretores digam que os créditos não são assunto
de sua alçada (e na maioria dos casos também não há razão para que os roteiristas se ocupem
deles), existem casos em que os créditos passam a integrar a estrutura do filme. Nestes casos,
torna-se necessário que o roteirista comunique esta estrutura para o editor e para os produtores.
Nos últimos anos, o uso dos créditos tornou-se muito criativo. Um exemplo que chama a
atenção nesse aspecto é a apresentação dos créditos do filme O Fugitivo, que é feita de forma
intercalada nos primeiros onze minutos de filmagem. Primeiro, são mostrados alguns créditos
junto com a cena do crime, filmada em câmera lenta, em preto e branco. Depois, os créditos
passam a ser intercalados com as cenas da prisão e do interrogatório de Richard Kimble. Então,
param de aparcer por alguns minutos, e recomeçam a ser mostrados depois que Kimble recebe sua
sentença e é levado de ônibus para a prisão. Neste caso espcífico, os créditos ajudam a dar forma e
movimento à apresentação do filme, dividindo-a em várias partes e imprimindo-lhe um ritmo
rápido, que é característico desse filme.

A CENA CENTRAL
A cena central acontece exatamente no ponto onde se espera que ela ocorra — mais ou menos
na metade do roteiro. Syd Field, em seu livro Manual do Roteiro, fala que a cena central divide a
história em duas partes, ao introduzir um acontecimento ou uma linha de diálogo que ajuda a
estruturar o segundo ato.
Tendo trabalhado como consultora em mais de 1.500 roteiros, e tendo utilizado muitos dos
melhores filmes como exemplo em meus cursos, posso dizer o seguinte: nem sempre existe uma
cena central; porém, quando ela existe, constitui-se num instrumento excelente para estruturar o
segundo ato, tarefa que costuma ser bem difícil.
Além de dividir o roteiro em duas partes, a cena central também divide ao meio o segundo ato.
Ela imprime uma certa direção à primeira parte do segundo ato e muda essa direção, na parte final

34
Voltar ao Sumário

deste ato. No entanto, faz tudo isso sem deixar que o segundo ato perca seu foco geral, que por sua
vez foi determinado pelo primeiro ponto de virada.
Algumas das melhores cenas desse tipo são encontradas em filmes de mistério ou de suspense.
No filme Atração Fatal, Alex conta que está grávida lá pela metade do filme. O segundo ato inteiro
gira em torno da questão de como fazer para “se livrar de Alex”, mas essa cena central especificamente
traz Dan de volta à vida dela, ainda que ele quisesse se afastar.
No filme O Fugitivo, mais ou menos na metade do segundo ato, Richard Kimble consegue
obter, por computador, uma informação sobre o homem de um braço só. Neste caso, a primeira
metade da ação do segundo ato gira em torno da fuga para Chicago. Todas as cenas são basicamente
cenas de perseguição. A segunda metade do segundo ato mostra Richard investigando o homem
de um braço só e Sam Gerard investigando Richard. Embora o filme jamais deixe de mostrar que
Gerard deseja encontrar Richard, essa investigação feita por Richard dá uma estrutura adicional
ao segundo ato.
Na cena central do filme O Silêncio dos Inocentes, Hannibal Lecter muda-se para Memphis,
conseqüentemente mudando a direção da história no restante do segundo ato. A cena central em
Tootsie mostra a fama cada vez maior de Dorothy, à medida que ela se torna a queridinha da
audiência e da mídia e aparece em revistas de âmbito nacional.
Muitos escritores acham um pouco confusa essa técnica de utilizar a cena central. Em meu
trabalho de consultoria, descobri que muitos escritores confundem a cena central com o primeiro
ponto de virada, e acabam desarticulando a estrutura normal, pois só começam o segundo ato
depois de chegar à metade do roteiro. Entretanto, se o roteirista criar uma nítida estrutura em três
atos, a cena central surgirá espontaneamente. Neste caso, durante o processo de reescrever seu
roteiro, o roteirista conseguirá reforçar essa cena, imprimindo-lhe ainda mais foco.

O QUE ESTÁ ERRADO COM A ESTRUTURA?


Raramente se vê um filme em que todos os atos sejam igualmente bem estruturados. Não é todo
mundo em Hollywood que sabe estruturar bem um roteiro nem todo roteirista, por mais brilhante
que seja, também é bom em trabalhar com estruturas. Em conseqüência disso, a maior parte dos
filmes apresenta falhas em um dos três atos.
Muitas vezes o problema está numa apresentação muito demorada, como acontece, por exemplo,
em A Força do Carinho, embora o filme seja brilhante. Sua apresentação, longa e repleta de
sutilezas, requer que o público tenha muita paciência, enquanto espera que a história comece.
O mesmo ocorre em O Beijo da Mulher Aranha, que a princípio focaliza um personagem e uma
imagem, e só apresenta o primeiro elemento catalisador, fora da tela (quando o personagem de
William Hurt concorda em buscar informações de seu companheiro de cela), numa apresentação
tardia, já há vinte minutos do início do filme. No cinema, você fica sentado e espera. São raras as
pessoas que saem nos primeiros vinte minutos da sessão. No entanto, na televisão, uma apresentação

35
Voltar ao Sumário

muito demorada pode ser fatal — geralmente acaba numa troca de canal.
Alguns filmes custam muito até chegar ao primeiro ponto de virada, fazendo com que a ação
evolua muito lentamente no primeiro ato e acabe se concentrando no segundo, o que pode levar a
audiência a perder o interesse. Foi justamente isso que aconteceu no filme Tempo de Despertar,
que teve seu primeiro ponto de virada muito tardio (por volta de quarenta e três minutos de
filme), e um segundo ato mais leve e concentrado.
Há outros filmes que introduzem o segundo ponto de virada cedo ou tarde demais. No primeiro
caso, isso força uma evolução mais lenta do terceiro ato; no segundo, faz com que haja falta de
tempo para desenvolver adequadamente a tensão e o suspense que levam ao grande final.
Existem também filmes com uma resolução tão longa que parece não terminar nunca. Mesmo
depois de já se ter chegado ao clímax, a resolução ainda continua a se estender indefinidamente.
Os filmes Passagem para a índia e A Cor Purpura foram muito criticados quanto a esse aspecto,
pois tinham resoluções longas demais, com mais de vinte minutos. Quando isto acontece, o público
não entende com clareza o final, ou sente que já viu o final, e fica se perguntando porque o filme
não acaba.
A Testemunha é um dos melhores filmes que se pode escolher para o estudo da estrutura. É
claro, conciso, dá para perceber a passagem de um ato para outro, bem como acompanhar as
mudanças na ação e no espaço.
Poderíamos citar ainda outros filmes que também dariam bons exemplos para o estudo da
estrutura: Os Imperdoáveis; O Fugitivo; Por Favor, Matem Minha Mulher; De Volta para o Futuro
e Tootsie. Nestes, como em muitos outros filmes, os pontos de virada à primeira vista nem sempre
são aparentes. Entretanto, o teste para estes ou quaisquer outros filmes é sempre o mesmo: se você
se sentir preso ao filme durante toda a exibição, e não perder o interesse ou a dinâmica da história,
pode estar certo de que o roteiro foi bem estruturado.

APLICAÇÃO
Trabalhar na reestruturação de uma história é como escrevê-la novamente. Raramente os três
atos já estarão bem delineados logo no primeiro esboço. O que costuma acontecer é que um ato
sempre fica mais marcante do que os outros. Outras vezes o ponto de virada não está bem colocado,
ou é muito fraco, prejudicando a passagem de um ato para o outro.
Quando for analisar a estrutura de seu roteiro, faça a si mesmo estas perguntas:
■ Lembrei de começar com uma imagem?
■ Será que a imagem que escolhi dá uma idéia do estilo e do sentido da história?
■ Tenho um nítido elemento catalisador para começar a história? Este catalisador é forte e
dramático o suficiente, e se expressa através de uma ação, como é o ideal?
■ A questão central está conduzindo minha história a um clímax? Essa questão ficou clara

36
Voltar ao Sumário

para a audiência? Os pontos de virada estão voltados para a questão central?


■ O primeiro ponto de virada está bem nítido? Ele conduz a ação para o segundo ato? O
segundo ponto de virada também está claro? Ele introduz o clímax da história?
■ O clímax de minha história é um grande final? Será que minha resolução ficou boa, nem
muito longa nem muito curta?
Agora você acabou de reescrever seu enredo principal. Ele ficou consistente, dramático,
dinâmico. Porém, dificilmente você terá um único enredo em seu roteiro. Portanto, o próximo
passo importante será justamente trabalhar a integração dos enredos secundários.

37
Voltar ao Sumário

CAPÍTULO 3
QUAL É A FUNÇÃO DOS ENREDOS SECUNDÁRIOS?

Um enredo secundário eficiente possui várias funções. A mais importante delas é acrescentar
uma nova dimensão ao enredo principal. Durante o desenvolvimento normal da história, o
protagonista está inteiramente voltado para a ação. São os enredos secundários que lhe dão a
oportunidade de sentir o perfume das flores, de se apaixonar por alguém, de se dedicar a um
hobby ou de desenvolver uma nova habilidade.
Um bom enredo secundário dá impulso ao enredo principal, mudando, muitas vezes, sua
direção, em função do efeito que exerce sobre ele. Em Tootsie, Michael poderia perfeitamente se
contentar em continuar como Dorothy por mais uma temporada. Porém, ao se apaixonar por
Julie, ele se vê forçado a mudar a direção do enredo principal, e começa a procurar uma oportunidade
para revelar sua verdadeira identidade. No filme A Testemunha, o cuidado de John por Rachel,
uma situação criada pelo enredo secundário, acaba por aumentar o interesse do enredo principal,
na cena em que Paul aponta uma arma para a cabeça e Rachel.
Um bom enredo secundário afeta a história principal não só por dar impulso ao enredo
principal, mas também por se cruzar com ela. O enredo principal e o secundário são conectados
entre si de várias maneiras. Por exemplo, a pessoa que desperta o interesse amoroso do protagonista
no enredo secundário, pode ser também a testemunha de um crime no enredo principal. No filme
Amargo Pesadelo, a prática da canoagem, elemento que integra o enredo secundário, passa a
integrar o enredo principal ao se tornar um meio dos protagonistas escaparem do perigo por que
estavam passando.
Um bom enredo secundário engloba também o tema da história. No filme Sociedade dos Poetas
Mortos, cada aluno representa um enredo secundário que ajuda a expandir o tema da criatividade
versus o conformismo. No filme Feitiço da Lua cada enredo secundário traz uma faceta diferente
do tema geral, o amor.
Os enredos secundários podem tratar de praticamente qualquer assunto. Em geral, consistem
numa história de amor que revela uma dimensão adicional dos personagens. Algumas vezes,
servem para trazer à tona importantes temas individuais dos personagens relacionados à identidade,
integridade, cobiça, amor ou autoconhecimento. O enredo secundário mostra por exemplo, as
vulnerabilidades de um personagem. É comum encontrarmos filmes policiais em que o detetive
tem que se enquadrar no perfil do valentão, sempre preparado para qualquer coisa. No entanto,
através do enredo secundário que retrata seu relacionamento familiar, podemos perceber seu lado
mais vulnerável.
Muitas vezes, é através do enredo secundário que ficamos conhecendo os sonhos, objetivos e
desejos dos personagens. É como se o personagem estivesse muito ocupado com a ação do enredo
principal, e o enredo secundário lhe desse a chance de relaxar, sonhar, desejar e pensar em algo

38
Voltar ao Sumário

mais amplo do que o mero objetivo imediato de sua ação.


O enredo secundário também pode nos mostrar a transformação de um personagem. Pode nos
mostrar passo a passo o desenvolvimento de sua personalidade, auto-estima e autoconfiança. Com
isso ele nos ajuda a ver por que e como um personagem se transforma.
Não raro os enredos secundários são a parte mais interessante de um filme. No filme A
Testemunha, o enredo principal é um tanto convencional. Com certeza, todos nós já vimos algo
parecido, no mínimo umas cem vezes, nos filmes policiais que assistimos na televisão. O que torna
a história única e lhe dá um toque de originalidade é justamente o enredo secundário que se
desenvolve em torno da relação entre Rachel e John. É isso que nos faz lembrar do filme, o que
mais nos emociona e o que desperta nosso interesse.
Outro exemplo bem claro está no enredo secundário que mostra o relacionamento entre Rose
e Allnutt, no filme Uma Aventura na África.
O enredo principal trata de uma história de guerra, como tantas outras, e sobre a explosão de
um navio. Já no enredo secundário, temos cenas memoráveis entre Charlie e Rose. Vemos as
transformações dos personagens, suas revelações, e o desenvolvimento de seu relacionamento. É
desta parte do filme que todos nos lembramos bem.

QUANTOS ENREDOS SECUNDÁRIOS SÃO NECESSÁRIOS?


A maior parte dos filmes têm de um a dois enredos secundários. Alguns filmes chegam a ter
cinco ou seis deles. Um filme sem enredos secundários corre o perigo de ficar monótono, sem
dimensionalidade. No entanto, quando temos muitos enredos secundários, estes podem tornar o
roteiro confuso e tomar parte do tempo necessário para o desenvolvimento das principais linhas
de ação dramática da história (as linhas “ A”e “B”, por exemplo).
Os enredos secundários servem para dar mais complexidade a uma linha de ação que esteja
muito óbvia, muito trivial. No filme Tootsie, por exemplo, muitas das complicações do enredo
derivam das intersecções, ou seja, dos momentos em que os enredos secundários se cruzam com
a linha de ação dramática. A história parece estar se desenvolvendo numa certa direção, quando
somos surpreendidos por um fato proveniente de um enredo secundário, que muda a sua direção.
Uma dessas surpresas surge quando o pai de Julie se apaixona por Dorothy. Michael então se vê
forçado a se desmascarar (ação que se desenrola ao nível da linha “A” de ação dramática) e, ao
mesmo tempo, ver suas relações com Julie se complicarem (na linha “B”). Um outro enredo
secundário, a amizade de Sandy com Michael, complica seu relacionamento com julie (na linha
“B”). Por outro lado, o relacionamento de Julie com Ron, mais outro dos enredos secundários,
interfere no relacionamento entre Julie e Dorothy, complicando a situação da linha “A” da história,
em que Michael se faz passar por Dorothy.
Um dos melhores filmes para examinarmos a complexidade dos enredos secundários em ação
é Por Favor; Matem Minha Mulher, de Dale Launer. A história se torna cada vez mais complicada

39
Voltar ao Sumário

à medida que as várias linhas de ação vão alterando a direção do filme. Nada é como parece ser,
tudo vai mudando, seja o relacionamento de Barbara (Bette Midler) com o marido Sam (Danny
DeVito), sejam as intenções dos seqüestradores, seja as relações entre Sam e sua amante, que
secretamente tem um outro amante, Earl. Cada enredo secundário que vai surgindo, muda a
direção da história, criando situações imprevisíveis e cheias de humor.

A ESTRUTURA DOS ENREDOS SECUNDÁRIOS


Assim como o enredo principal, todo enredo secundário tem começo, meio e fim. Um bom
enredo secundário tem pontos de virada, uma apresentação bem clara, confrontação e uma
resolução no final. às vezes os pontos de virada de um enredo secundário reforçam a linha do
enredo principal, por acontecerem um pouco antes ou logo após os pontos de virada do enredo
principal. Também podem acontecer separadamente, no meio do segundo ou do terceiro ato, por
exemplo. Outras vezes, o enredo secundário só começa depois do primeiro ponto de virada do
enredo principal. No filme Tootsie, o relacionamento entre Julie e Michael começa no primeiro
ponto de virada do enredo principal. No filme O Fugitivo, o obstinado agente federal Sam Gerard
só é apresentado no final do primeiro ato. Em O Passado Não Perdoa, Will Munny (Clint Eastwood)
e Ned (Morgan Freeman) se associam no primeiro ponto de virada.
Quase todos os filmes têm enredos secundários. O sucesso de muitos se deve justamente ao fato
de saber explorá-los bem. Podemos citar três filmes que souberam explorar muito bem seus
enredos secundários: A Testemunha, De Volta para o Futuro e Tootsie. Cada linha desses enredos
secundários apresentava desafios específicos. Contudo, todos foram muito bem-estruturados,
enriquecendo muito a história.
A Testemunha fez uma exploração singular do enredo secundário. Ele ocupa um bom espaço
do filme, e é tão importante que chega a se confundir com o enredo principal. Como você deve se
lembrar, o enredo principal do filme se desenvolve em torno de uma questão central: será que
John vai conseguir pegar o assassino? Esta linha do enredo é o que dá o momentum e tensão do
filme. Entretando, o relacionamento entre John e Rachel, que domina a linha do enredo secundário,
torna-se o foco do segundo ato. Depois, no terceiro ato, voltamos à linha original do enredo, que
nos conduz à cena final do confronto entre John, McFee e Paul.
O enredo secundário que mostra o relacionamento entre John e Rachel tem uma estrutura tão
clara quanto à do enredo principal. A apresentação acontece durante o primeiro ato, quando
Rachel e John se conhecem. O primeiro ponto de virada ocorre no começo do segundo ato, quando
Rachel cuida dele e é correspondida, o que provoca uma mudança dos sentimentos de um em
relação ao outro. A confrontação do enredo secundário se estende por todo o segundo ato, à
medida que seu relacionamento vai se aprofundando nos cafés da manhã, quando dançam juntos,
e durante a construção do celeiro. Um segundo ponto de rada ocorre quando se beijam, o que
aumenta o envolvimento de seu relacionamento e traz novamente à tona a questão principal desse
enredo secundário: será que Rachel e John ficarão juntos ou não? O clímax acontece quando John

40
Voltar ao Sumário

salva a vida dela, jogando fora sua pistola. A resolução ocorre quando ele parte.
Neste enredo secundário que acabamos de descrever, os pontos de virada acontecem logo após
os pontos de virada do enredo principal, no esquema abaixo, eu aponto os minutos em que tudo
isso se passou d filme, embora no roteiro deste filme, como o de muitos outros, um minuto equivale
a uma página. Se tivéssemos que fazer um esquema do enredo principal (história “A”) e do enredo
secundário (história “B”), ficaria mais ou menos assim:

Este uso incomum do enredo secundário pode se tomar perigoso, principalmente se


considerarmos que é precisamente o segundo ato que desenvolve o enredo e é o foco da história
principal. Entretanto, nas mãos experientes dos roteiristas de A Testemunha, observamos as várias
técnicas que foram usadas para manter o momentum no segundo ato, deixando-nos sempre
conscientes do perigo que John corria (por meio da linha do enredo principal), mas, ao mesmo
tempo, voltando o foco para o enredo secundário. Durante o segundo ato, somos cinco vezes
levados de volta para a situação do enredo principal. Vemos cenas em que John telefona para seu
parceiro, para perguntar se ele pode voltar. Depois vemos seu parceiro sendo interrogado por
Paul. No final do ato, ficamos sabendo que o parceiro dele foi morto, o que força John a tomar uma
atitude.
No filme De Volta para o Futuro, a linha central do enredo gira em torno da máquina do tempo
e do dilema de Marty, que ficou preso no passado. A questão central do enredo principal é uma só:
será que Marty conseguirá voltar para o futuro? Assim, a estrutura básica do enredo é a seguinte:
Apresentação: Marty encontra o Dr Brown no Twin Pines Mall para fazer um teste com sua
nova máquina do tempo.(18’— lembre-se de que esta é uma apresentação voltada para a situação;
por isso demora mais do que na maioria dos filmes).
Primeiro ponto de virada: Por engano, Marty volta ao passado. (30’)
Confrontação (Desenvolvimento da História): Marty e o Dr Brown precisam descobrir uma

41
Voltar ao Sumário

maneira de fazer Marty voltar para o futuro.


Segundo ponto de virada: Marty e o Dr Brown se preparam para canalizar um raio. Eles
acreditam que isso possibilitará que Marty volte para o futuro (76’)
Clímax: Marty volta para o futuro. (106’)
Como no filme A Testemunha, o enredo secundário do filme De Volta para o Futuro também
trata de um relacionamento amoroso incomum, o romance entre Lorraine e George McFly. Através
deste enredo secundário, os roteiristas puderam explorar temas referentes à determinação, tomadas
de decisão e transformação pessoal. É como se tivéssemos uma história dentro da história.
O enredo secundário se passa durante o segundo e o terceiro atos, quando Marty estava preso
no passado, embora informações importantes desse enredo secundário já tenham surgido no
primeiro ato. Por exemplo, no primeiro ato, ficamos sabendo como Lorraine conheceu George: o
pai de Lorraine atropela George com seu carro. Também ficamos sabendo que a primeira vez que
eles se beijaram foi quando dançavam “Enchantment Under The Sea" e que foi nesse momento
que Lorraine soube que ficaria com George pelo resto da vida. Descobrimos também algumas
características dos personagens, como o fato de Lorraine beber muito e de George ser um tanto
displicente.
A apresentação do enredo secundário começa logo depois que Marty volta para o passado.
Primeiro, George conhece Lorraine, quando o pai dela o atropela. Mas, para Martin, algo não vai
bem nessa reprise de cenas do passado, pois ele está colocando em perigo sua própria vida, ao
interferir neste primeiro encontro.

CENA EXTERNA: UMA RUA RESIDENCIAL — DIA


MARTY dobra a esquina e vê A BICICLETA DE GEORGE encostada debaixo de uma árvore.
Marty olha em volta, quando então vê
GEORGE
que está em cima da árvore, empoleirado precariamente num galho, que pende para o lado da
rua, a uns quatro metros de altura. Ele está com um BINÓCULO, espiando pela janela do segundo
andar de uma casa do outro lado da rua.
MARTY
não consegue ver direito o que está acontecendo, e se aproxima, para enxergar melhor.
GEORGE focaliza melhor seu binóculo.
A imagem mostra o P.D.V. (Ponto de Vista) de GEORGE através dos binóculos:
Uma moça nua, que está se vestindo, é vista através da janela do segundo andar.
MARTY
olha incrédulo, quando percebe o que George está fazendo.

42
Voltar ao Sumário

MARTY
Ele é um voyeur!
P.D.V. de GEORGE:
A moça chega perto da janela.
GEORGE procura aproximar mais a visão, mas perde o equilíbrio e despenca na rua.
MARTY observa GEORGE gemendo, e depois, tentando vagarosamente se levantar.
Nesse momento, um carro aparece, virando a esquina.
George não se dá conta, mas Marty percebe que o carro pode atropelar George.
MARTY
Papai! Cuidado!
George ainda está aturdido. Marty se precipita pela rua e, num salto espetacular, o empurra
para fora da trajetória do carro.
Quando Marty está tentando se desviar, o carro dá uma guinada VINDO EM DIREÇÃO A ELE
— ouve-se uma freada, e o carro acaba atingindo Marty!
George, que nunca foi de se envolver com nada, foge, deixando Marty inconsciente, estirado no
meio da rua.
Esse incidente foi um azar para George, pois, em função dele, Lorraine fica conhecendo Marty,
e não George. A história passa, então, a se desenvolver ao contrário do que se imaginava. Marty se
vê forçado a representar o papel de cupido para seus pais. Precisa dar um jeito de fazer os dois
dançarem juntos na festa, para que ele pudesse vir a nascer, no futuro.
Infelizmente, George não é nenhum Don Juan. Ele resiste a todas as sugestões que lhe fazem
para convidar Lorraine para dançar “Enchantment Under The Sea”. Então, Marty é obrigado a
forçar a barra, criando assim a cena do primeiro ponto de virada do enredo secundário
INTERIOR DO QUARTO DE GEORGE PAN SOBRE O ROSTO DE GEORGE. Ele dorme
profundamente em sua cama.
Neste momento, UM PAR DE MÃOS COM LUVAS coloca LEVÍSSIMOS FONES DE OUVIDO
nas orelhas de George.
AS MESMAS MÃOS inserem uma fita cassete intitulada “VAN HALEN” num Walkman. Um
dedo gira o botão do volume para o nível “10”e pressiona a tecla “PLAY”.
GEORGE acorda, gritando! Abre os olhos e fica ainda mais aterrorizado com o que vê:
UM ASSUSTADOR MONSTRO AMARELO... Marty, com sua roupa à prova de radiação... aos
pés de sua cama!
Marty desliga a música. Quando fala, sua voz sai distorcida pelo filtro do capacete, que fica na
altura da boca. Uma janela aberta indica por onde ele entrou.

43
Voltar ao Sumário

MARTY
Silêncio, terrestre!
GEORGE
Quem é você?
MARTY
(Imitando Darth Vader)
Meu nome é Darth Vader. Eu sou um alienígena do Planeta Vulcano!
GEORGE
Eu devo estar sonhando...
MARTY
Silêncio, eu estou recebendo uma transmissão da Battlestar GalactiCa! Você, George McFly,
criou uma controvérsia na continuidade do tempo-espaço. Por isso o Supremo Klingon te ordena
que leve a terrestre do sexo feminino chamada “Baines, Lorraine” para um local conhecido como
Hill Valley High School, em exatamente quatro ciclos terrestres, a partir de agora, isto é, no sábado
à noite, em sua linguagem.
GEORGE
Você quer dizer, levar Lorraine ao baile?
MARTY
Afirmativo.
GEORGE
Mas, eu não sei se vou conseguir...
MARTY LIGA O WALKMAN novamente. GEORGE GRITA!
E então concorda em levar Lorraine ao baile!
No segundo ato, o enredo secundário continua, girando em torno dos esforços de George para
sair com Lorraine — sendo que nada dá certo, pois ela está mais interessada em Marty. Finalmente,
Marty bola um plano que se torna o segundo ponto de virada do enredo secundário, e que acaba
finalmente levando ao beijo, quando dançam juntos “Enchantment Under The Sea”.
EXTERNA: O QUINTAL DA CASA DE GEORGE — DIA
(…)
MARTY
Talvez seja melhor estudarmos novamente nosso plano.
Onde é para você estar às 8:55h?

44
Voltar ao Sumário

GEORGE
No baile.
MARTY
E eu, onde eu devo estar?
GEORGE
No estacionamento, com ela.
MARTY
Muito Bem! Então, lá peias 9 horas ela vai ficar brava comigo.
GEORGE
Mas, por que? Por que ela ficará brava com você?
MARTY
(É difícil para ele dizer o motivo)
Bem.. .porque.. .bem, as moças direitas ficam bravas com os rapazes que... tentam se aproveitar
delas...
GEORGE
Quer dizer que você vai — você vai tentar tocá-la naquele lugar!?
MARTY
George, fique sossegado, vou estar apenas representando. Não se preocupe com isso. Só se
lembre que às 9 horas você vai estar passando pelo estacionamento, e vai ver a gente (Marty engole
seco, com dificuldade para continuar a falar...)bem, vai ver a gente se atracando dentro do carro.
Então você vai correr para acudir Lorraine, abrir a porta e dizer o que... ?
George não responde nada…
MARTY
Sua fala, George...
George
Bem... "Ei! Você aí! Tire suas mãos sujas de cima dela!”Você mesmo que devo xingar?
MARTY
Claro, George! Claro que você tem que xingar e em seguida você vai me dar um soco no
estômago, me deixar na lona, e então você e Lorraine viverão felizes para sempre.
Nesta cena sentimos o tom de urgência e a energia que vão sendo construídas à medida que
Marty se prepara para voltar ao futuro, depois de ter se assegurado de que seus pais já tinham se
beijado, no baile. O clímax do enredo secundário é esse beijo e a resolução ocorre logo após, com
a partida de Marty.

45
Voltar ao Sumário

INTERIOR QUADRA DA ESCOLA —


BASTIDORES DO PALCO — NOITE
LORRAINE
Marty, espero que você não se importe, mas George perguntou se ele podia me levar para casa.
(...)
GEORGE
Marty, será que ainda vamos te ver?
MARTY
Claro, pode ter certeza!
(…)
MARTY
Por falar nisso, se algum dia vocês tiverem um filho, e ele fizer um buraco no tapete, quando já
tiver uns nove anos de idade, por favor, não fiquem muito bravos com ele, está bem?
Dito isso, Marty parte para seu caminho de volta para o futuro.
Se resolvêssemos fazer um resumo da linha desse enredo secundário, chegaríamos a algo assim:
Primeiro ato: George não conhece Lorraine, por isso Marty precisa dar um jeito de provocar
esse encontro. Nada parece dar certo. George não convida Lorraine para sair.
Primeiro ponto de virada: Marty se veste como um ser espacial para assustar George e
obrigá-lo a convidar Lorraine para ir ao baile. (47’)
Segundo ato: George tenta se aproximar de Lorraine, mas ela só se interessa por Marty.
Segundo ponto de virada: Marty e George bolam um plano: George vai “salvar” Lorraine do
assédio de Marty. (73’)
Terceiro ato: Apesar de alguns tropeços, o plano funciona.
Clímax: George e Lorraine se beijam. (86’). (Preste atenção: o clímax desse enredo secundário
acontece pouco depois do segundo ponto de virada da história da história “A”, ou seja, da história
do enredo principal).
Resolução: Marty se despede.
O ponto de encontro do enredo secundário (a história "B") com o enredo principal (a história
"A") pode ser esquematizada assim:

46
Voltar ao Sumário

Este enredo secundário é único, pois tem uma dupla apresentação e uma dupla resolução. De
um lado, o enredo secundário sobre o passado tem começo, meio e fim bem nítidos: George e
Lorraine se conhecem, o relacionamento vai sendo construído e eles terminam juntos. No entanto,
esse enredo secundário é enquadrado pelo presente. No primeiro ato, antes de Marty voltar ao
passado, os personagens de George e Lorraine são apresentados. Quando ele volta ao presente,
vemos a resolução do segundo enredo secundário. Marty os transformou com a sua presença, e
percebemos que houve uma mudança perceptível no casal. Na segunda resolução, George e
Lorraine têm uma linda casa, Biff trabalha para George e George acaba de publicar seu primeiro
livro de ficção científica. Que grande mudança!
No filme Tootsie, vemos um exemplo de uma das mais complexas utilizações de enredos
secundários. Embora a maioria dos filmes empregue, no máximo, três enredos secundários,
Tootsie faz uso de cinco deles.
Temos o enredo secundário de Michael e Julie; o de Michael e Sandy; o de Michael e Les; o de
Michael e Brewster e finalmente, o de Julie e Ron. Cada um deles, de algum modo, tem algo a dizer
sobre dois temas: amor e amizade. Cada um tem uma estrutura própria e se desenvolve a partir da
linha do enredo principal, ao mesmo tempo em que se cruzam com ela.
Vamos analisar primeiro um enredo secundário de cunho romântico, que mostra a relação
amorosa entre Julie e Michael. Os pontos principais desse enredo secundário são os seguintes:
Apresentação: Michael (disfarçado de Dorothy) encontra Julie em seu primeiro dia de
trabalho, e se sente atraído por ela. (21’)
Primeiro ponto de virada: Julie o convida para jantar. Começa daí uma amizade. (46’)
Confrontação do enredo secundário: Eles se tornam amigos e viajam juntos. Conversam
bastante e Dorothy consegue convencer Julie a romper com Ron. Dorothy ajuda Julie a tomar
conta das crianças.
Segundo ponto de virada: Dorothy tenta beijar Julie (84’).
Confrontação: Julie se recusa a ver Dorothy.

47
Voltar ao Sumário

Clímax: Michael diz: “O pior já passou.” Eles se tornam amigos. Agora eles podem continuar
com seu relacionamento. Passam a viver juntos. (110’)
Note como a linha do enredo secundário é completamente diferente da estrutura da linha do
enredo principal. Veja abaixo a estrutura da linha do enredo principal:
Apresentação: Michael não consegue arrumar emprego. (18’ — Note que se trata de uma
apresentação voltada para a situação, como no filme De Volta para o Futuro).
Primeiro ponto de virada: Michael consegue um emprego, como Dorothy. (20’)
Confrontação: Michael se torna um grande sucesso.
Segundo ponto de virada: Michael tenta romper seu contrato, mas o sucesso de Dorothy é
tamanho que ninguém aceita a idéia do rompimento. (76’)
Clímax: Dorothy tira seu disfarce e revela sua verdadeira identidade como Michael. (104')
Perceba como o enredo secundário romântico da uma dimensão à linha original do enredo. O
romance é a razão que leva Michael a querer quebrar seu contrato. Ele está apaixonado e, portanto,
não quer mais continuar se disfarçando de mulher.
Em Tootsie, o segundo ponto de virada do enredo ocorre logo depois da cena de onze minutos
em que Michael se apaixona por Julie. Em consequência disso, ele fica desesperado para acabar
com sua farsa Mas descobre que está totalmente amarrado a seu contrato. Este fato aumenta ainda
mais seu desejo de expressar seu amor por Julie, o que acaba levando ao segundo ponto de virada
da história, quando tenta beijar Julie. Depois disso, como Julie decide não vai mais se encontrar
com Dorothy (ela não é “este tipo de mulher”), Michael se vê forçado a descobrir um meio de sair
dessa enrascada. Isso nos leva ao clímax do enredo principal (o fim do disfarce), que, por sua vez,
desencadeia o clímax do enredo secundário e, ao mesmo tempo, sua resolução (Michael e Julie
ficam juntos).
Como dá para perceber, há um movimento de oscilação constante entre o enredo principal e o
enredo secundário. Sem esses pontos de encontro entre o enredo principal e o secundário, este
último pareceria irrelevante, e ficaria solto, totalmente separado da linha de ação dramática.
O enredo de Tootsie se baseia em complicações. Os enredos secundários são acrescentados, um
após o outro, com o intuito de complicar cada vez mais a linha de ação dramática que mostra
“Michael disfarçado como Dorothy”.
Com certeza, do ponto de vista de Michael, conseguir trabalhar como atriz parecia ser a solução
ideal para seus problemas. Ele conseguira um emprego no qual poderia expressar seus talentos
naturais. Porém, em vez disso, essa solução aparentemente ideal acabou complicando ainda mais
sua vida. Todos os enredos secundários decorrem dessa estranha decisão de se disfarçar de mulher
para conseguir um emprego. Cada um desses enredos mostra uma dimensão diferente dessa
situação, além de desenvolver a temática do amor.
Já que chamamos de “B” o enredo secundário de Michael e Julie, podemos chamar de “C” o

48
Voltar ao Sumário

enredo secundário de Michael e Sandy; de “D o enredo de Michael e Les; de “E” o enredo de


Michael e Brewster e, finalmente, de “F”, o de Julie e Ron.
Analisando-os separadamente, observaremos as seguintes estruturas:
Enredo secundário C: Michael e Sandy
(Este enredo secundário refere-se ao relacionamento entre Michael e sua amiga Sandy, uma
pessoa bastante insegura. Ela também é atriz e Michael, um ator mais experiente, tem lhe dado
algumas orientações sobre a carreira, além de encorajá-la em suas entrevistas. Enfim, há muitos
anos tem sido um grande amigo, mas sem qualquer interesse romântico).
Apresentação: Mostra a amizade de longa data entre Michael e Sandy, ao retratá-los em
diferentes ocasiões, como na festa de aniversário ou na cena em que Michel prepara Sandy para
uma entrevista. (6’)
Primeiro ponto de virada: Michael e Sandy fazem amor, o que altera o relacionamento
anterior, e coloca em perigo a amizade que existia entre os dois. (31')
Confrontação: Sandy se sente cada vez mais insegura. Ela convida Michael para jantar e o
questiona sobre seu comportamento.
Segundo ponto de virada: Sandy descobre que Michael está apaixonado por outra mulher,
e termina seu relacionamento com ele. (94’)
Clímax: Sandy estréia numa nova peça e reata sua antiga amizade com Michael. (106’).
Enredo secundário D: Michael e Les
(Les é o pai de Julie. Ele é viuvo e se apaixona por Dorothy.)
Apresentação: Les conhece Dorothy. (42’)
Primeiro ponto de virada: Les começa a gostar de Dorothy. (63’)
Confrontação: Eles cantam juntos na visita que Dorothy faz à fazenda, com Julie. Les convida
Dorothy para dançar.
Segundo ponto de virada: Les pede Dorothy em casarnento (86')
Clímax: Michael devolve o anel para Les. (109’)
Resolução: Les perdoa Michael.
Enredo secundário E: Michael e Brewster
(Brewster é um mulherengo. Ele faz o papel de médico na novela da qual1 Michael participa, e
está decidido a fazer amor com Dorothy).
Apresentação: Michael é alertado sobre Brewster e sua mania de assédio sexual. (34’)
Primeiro ponto de virada: Brewster começa a sentir atração por Dorothy. (40’)
Confrontação: Eles trabalham juntos. Dorothy procura evitar Brewster, mas ele tenta beijá-
la durante as cenas.
49
Voltar ao Sumário

Segundo ponto de virada: Brewster faz uma serenata para Dorothy e tenta seduzi-la. (88’)
Clímax: Michael revela seu disfarce e Brewster percebe que Dorothy não é uma mulher.
(104’)
Enredo secundário F: Julie e Ron
(Ron é o diretor da novela. Ele sai com Julie — e com muitas outras mulheres, sem que ela saiba
disso).
Apresentação: Mostra que Julie e Ron estão saindo juntos. (34')
Confrontação: Michael percebe a forma desdenhosa com que Ron trata Julie.
Climax: Julie decide terminar com Ron, depois que Dorothy lhe dá umas lições de auto-
estima. (79')
Embora o enredo secundário B seja o principal e precise de uma estrutura mais forte para se
desenvolver ao longo de toda a trama central, os outros enredos secundários são, às vezes, mais
equilibrados, mesmo sem terem o foco tão voltado para sua estrutura e seus pontos de virada. É
comum que esses enredos secundários, menos importantes (como a história de Ron e Julie), não
necessitem mais do que umas poucas pinceladas para serem criados e postos em foco, de modo
que possamos notar sua influência sobre a história principal.
Como no filme Tootsie, muitas outras tramas têm vários enredos secundários. É comum ouvir
falar na história “A” (que se refere sempre ao enredo principal) e também na história “B”, “C” e “D”
(que dizem respeito aos enredos secundários).
Em muitos seriados de televisão, os enredos secundários são parte integrante do próprio
formato. A história “A” (ou seja, o enredo principal), pode ser a história de um mistério a ser
solucionado (nos seriados de detetives) ou retratar uma situação engraçada (no caso das comédias
e sitcoms). Já a história “B” (o enredo secundário principal), em geral, é mais pessoal e pode girar
em torno do relacionamento de certos personagens como, por exemplo, de um personagem
coadjuvante que se apaixona ou enfrenta algum tipo de problema com os filhos. A história “C”, na
televisão, em geral é criada para acrescentar um toque de humor ao enredo. Pode mostrar alguma
confusão que aparece na hora de pintar a casa, de reformar o escritório ou de adestrar o cachorro.
Ocasionalmente, pode existir uma história “D”, usada com o intuito de aumentar ainda mais a
dimensão do enredo. Costuma girar em torno de algum personagem secundário ou alguma outra
história de menor importância.
Se as linhas dos enredos secundários forem cuidadosamente trabalhadas, um bom filme será
capaz de suportar um grau significativo de complexidade, podendo trabalhar ao mesmo tempo
com três a sete enredos secundários. Entretanto, se a história tiver muitos enredos secundários
que estejam mal integrados, acaba se tornando confusa, sem foco e sobrecarregada com o excesso
de eventos que acontecem simultaneamente.

50
Voltar ao Sumário

PROBLEMAS COM OS ENREDOS SECUNDÁRIOS


Os enredos secundários são responsáveis por vários dos problemas que aparecem nos roteiros.
Alguns filmes fracassam em decorrência da falta de integração dos enredos secundários. Esses
problemas são de diversos tipos. Muitas vezes falta estrutura ao enredo secundário, e ele caminha
sem rumo e sem foco, desorientando o público a ponto de este não saber do que história trata, ou
o que, afinal, está acontecendo.
Esse problema, em certos filmes, deve-se ao fato de o enredo secundário não se encontrar com
o enredo principal e, com isso, ficar parecendo que não tem nada a ver com a história. Embora o
enredo secundário possa até ser interessante, fica solto, sem conexão, não se integrando aos
acontecimentos da história principal.
No filme Um Lugar no Coração, o enredo secundário que mostra a história de Vi e Wayne foi
muito criticado, justamente por esse motivo. Quando se assiste ao filme, a gente percebe que o
caso de amor entre Vi e Wayne tem muito pouco a ver com a história de Edna. Embora o enredo
secundário tenha alguma relação com o tema em geral, parece ser uma história que corre em
separado do restante do filme.
Alguns filmes têm problemas devido ao mau posicionamento do enredo secundário. Em vez de
se desenvolver ao longo do enredo principal ou de se entrelaçar a ele de tempos em tempos, alguns
enredos secundários são mostrados antes da trama principal. Em decorrência disso, a linha do
enredo principal só surge bem depois do ponto em que a audiência já estava convencida de que o
enredo secundário era a história principal. Esse é o caso do filme Entre Dois Amores, cujo enredo
secundário, que conta a história de Bror e Karen, é mostrado quase que na íntegra, antes que a
história principal de Karen e Denys realmente comece a se desenrolar. Isto pode confundir e
desorientar o público. No caso do filme Entre Dois Amores isso ocasionou inúmeras críticas, que
diziam que o personagem de Robert Redford tinha aparecido muito tarde no filme. Houve muitos
comentários de espectadores do tipo: “Gostei do filme, mas levei muito tempo para entender o que
se passava”.

APLICAÇÃO
Quando estiver trabalhando com o enredo secundário, procure separá-lo da linha de ação
principal, para ter uma idéia clara de como ele esta funcionando. Se voce não estiver conseguindo
perceber qual é a história "A" e qual é a história "B", pergunte a si mesmo: “De onde vem o
movimento da história? Onde se concentra a maior parte da ação?” É bem provável que esta seja
a linha de seu enredo principal. Pergunte em seguida: “Qual é o meu tema? O que eu quero
transmitir? Quais são as linhas principais que estão me ajudando a transmitir essa mensagem ao
público?” As respostas a essas perguntas irão me mostrar quais são as linhas dos enredos
secundários.
Ao fazer a separação entre as linhas dos enredos secundários e a linha do enredo principal, você

51
Voltar ao Sumário

consegue ver como estruturou cada uma delas. Procure encontrar a apresentação do enredo
secundário. Deixe claro o que acontece em cada um dos três atos. Geralmente, a estrutura do
enredo secundário é a mais difícil de visualizar. Para isso, talvez você precise descobrir o ponto de
confrontação do enredo secundário. Quando conseguir traçar esta linha, procure traçá-la de volta
ao princípio da sua história. Provavelmente este é o primeiro ponto de virada. Depois, procure
localizar o próximo ponto de virada. Existe algum ponto onde o enredo secundário se torna mais
urgente ou mais intenso? Se houver, é aí que se encontra o segundo ponto de virada. Procure
assegurar-se de que, quando o clímax do enredo principal acontecer, os clímaces dos enredos
secundários ocorram logo a seguir.
Uma das principais tarefas de um roteirista é fazer com que o enredo secundário funcione.
Quando for reescrever seu roteiro e estiver tentando condensar as idéias e deixá-las mais claras,
faça as seguintes perguntas:
■ Este enredo secundário é realmente necessário? Acrescenta algo à história? Em algum ponto
ele se encontra com a história ou lhe dá uma nova dimensão?
■ Quantos enredos secundários eu tenho em meu roteiro? Caso eu tenha mais de três ou
quatro, seria possível cortar algum deles, para concentrar mais o foco no enredo principal e nas
histórias "B" e "C"?
■ Meus enredos secundários têm uma estrutura clara? A apresentação, os pontos de virada e
o clímax estão bem nítidos, sobretudo nos principais enredos secundários, isto é, nas histórias “B”
e “C"?
■ A resolução do enredo secundário está ocorrendo perto do climax do enredo principal?
Se seu enredo secundário estiver bem estruturado, se der dimensão à história e conseguir cruzar
com o enredo principal em algum ponto, com certeza ele vai funcionar bem e vai ajudá-lo, no
decorrer do filme a dizer o que você pretende. Agora, seu maior desafio é manter o roteiro
movimento, principalmente no segundo ato, um dos mais difíceis.

52
Voltar ao Sumário

CAPITULO 4

O SEGUNDO ATO: COMO MANTÊ-LO EM MOVIMENTO

O segundo ato às vezes parece interminável. Para quem escreve, ele representa a necessidade de
manter a história em movimento, durante quarenta e cinco a sessenta páginas. Para quem vai ao
cinema, um segundo ato mal trabalhado se transforma na hora do cochilo, de sair para comprar
pipoca, ou de jurar que nunca mais se arriscará a assistir um filme deste maldito cineasta.
A maior parte dos problemas do segundo ato decorre de um momentum insuficiente e da falta
de foco. O filme parece não sair do lugar! E a pior parte é que não estamos bem certos do que está
acontecendo nem do porquê.
Estes problemas, todos correlacionados, surgem porque o filme se desvia da espinha dorsal da
história. Em geral, o que acontece é que a inclusão de certas cenas desconectadas da história
acabam deixando o filme confuso e lento. Ou então os personagens ficam só falando o tempo
inteiro, em vez de interpretar seus papéis. Uma outra hipótese é que a história esteja se desenrolando
muito depressa, ou muito devagar, por falta ou supressão do ritmo.
Uma apresentação e confrontação bem definidas no primeiro ato são fatores que ajudam muito
a deixar o segundo ato mais claro. Um primeiro ponto de virada impactante também ajuda bastante
a manter o segundo ato em movimento. Mas serão necessários outros elementos para que o
segundo ato consiga prender a atenção da audiência por uma hora ou mais.

O QUE É 0 MOMENTUM DO ROTEIRO?


O momentum ocorre quando uma cena conduz à outra, e assim por diante, ou seja, uma cena
implica no desenvolvimento da próxima. Uma outra forma de expressar o que é momentum seria
dizer que as sementes de uma cena estão contidas na cena anterior. E assim, quando todas as cenas
estão interligadas numa relação de causa e efeito, cada cena leva a ação adiante aproximando-nos
cada vez mais do clímax.
É evidente que esta é uma forma bem simplificada de descrever algo bem mais complexo.
Também é certo que algumas cenas contêm apenas pequenos pontos da história, e podem, ao
contrário, concentrar mais seu foco em algum enredo secundário ou na revelação de algum
personagem. Naturalmente, se todas as cenas nos impelissem para frente, numa linha reta, sempre
avançando em direção ao clímax, a história ficaria sem sutilezas, sem dimensão. No entanto, por
ora, peço que pense no momentum como algo que resulta das cenas de ação e reação. A medida
que formos analisando idéias e personagens, iremos pouco a pouco incorporando mais
complexidade aos conceitos.
Podemos notar essas relações de causa e efeito nos bons filmes. Vamos analisar o final do

53
Voltar ao Sumário

primeiro ato do filme A Testemunha, onde é possível notar um forte momentum ocorrendo de
uma cena para outra. O ritmo se move mais ou menos da seguinte forma:
• Samuel aponta McFee como o assassino.
• Em conseqüência, surge a cena seguinte:
• John Brook visita Paul, e conta o que descobriu sobre McFee. Paul lhe recomenda que
mantenha sigilo a respeito deste assunto.
• Isto provoca a reação de John:
• John volta para seu apartamento, onde é alvejado por McFee. Ele então percebe que Paul é
um dos assassinos.
• Em conseqüência deste tiro, John agora toma uma nova atitude:
• John pega Rachel e Samuel, pede emprestado o carro de Elaine? e se dirige para a fazenda
dos amish.
• Isto conduz à cena seguinte:
• Devido ao seu ferimento, John desmaia.
Isto leva ao segundo ato, quando então John se esconde na fazenda dos amish. Note como cada
cena está interligada com a cena seguinte. É este o momentum que continuamente empurra a
história para adiante.

O PONTO DE AÇÃO DRAMÁTICA


As ações que movem a história para adiante são chamadas de pontos de ação dramática. Um
ponto de ação dramática é um evento dramático que causa uma reação. Normalmente, esta reação
provoca uma nova ação. Como esta é uma ação dramática e visual (ou seja, uma ação que não se
limita a ser expressa por meio de diálogo), ela move a história para frente.
Podemos definir um ponto de ação dramática como sendo uma ação que exige resposta. Em
Tootsie, Michael fica sabendo, através de Sandy, que há uma oferta de emprego numa novela de
televisão (ação). Ele se veste de mulher e vai fazer a entrevista, concorrendo à vaga (numa reação
à informação obtida na cena anterior). O diretor contrata Michael (ação). Por causa disto, ele
conhece Julie e imediatamente se sente atraído por ela (reação). O interesse é mútuo e faz com que
Julie convide Dorothy para jantar (ação), o que, por sua vez, faz com que Dorothy/Michael comece
a se apaixonar por Julie (reação).
Observe que a ação é sempre visual, dramática e forte o suficiente para exigir algum tipo de
resposta. Poderia haver outras ações e reações que poderiam ter causado uma seqüência de eventos
totalmente diferentes desses. O que importa aqui é o fato de que existe um encadeamento das
cenas. Elas não são ocasionais; cada cena nasce da anterior, formando assim um todo compacto
que se move para frente, em direção ao clímax.

54
Voltar ao Sumário

Embora os pontos de ação dramática possam ser usados em qualquer ato, são particularmente
importantes no segundo ato, quando o roteiro precisa da maior quantidade possível de momentum,
pelo maior período de tempo. Existem vários tipos de pontos de ação dramática que podem ser
utilizados. Já estudamos os pontos de virada, que são pontos de ação dramática que ocorrem no
final do primeiro e segundo atos. Já vimos também a cena central, um ponto de ação dramática
que ocorre bem no meio do roteiro. Outros pontos de ação dramática são o obstáculo, a complicação
e a reversão de expectativa.

O OBSTÁCULO
Em muitos filmes, observamos um personagem que tenta fazer alguma coisa — tal como seguir
uma pista, ou executar uma determinada ação — mas isto parece não dar certo, pois não leva a
lugar algum. Isso acontece porque o personagem encontrou um obstáculo. É como se ele tivesse
se deparado com um muro: não lhe resta outra saída a não ser mudar de direção e tentar outro
tipo de ação. O obstáculo é um ponto de ação dramática porque obriga o personagem a tomar
uma decisão, agir de outro modo ou a tomar um outro rumo.
Note como o obstáculo funciona: ele interrompe a ação por um instante, até que o personagem
contorne o obstáculo e tente continuar por outro caminho. A história não se desenvolve a partir
de um obstáculo mas sim da decisão provocada por ele de se tentar uma outra ação. Por exemplo,
se eu fosse uma vendedora e batesse na porta de alguém para tentar vender meu produto, e o
cliente me dissesse “nao”, eu teria encontrado um obstáculo pela frente. Então, eu bateria em outra
porta, numa nova tentativa, e outro cliente me diria “não”. Eu teria me deparado com mais um
obstáculo. Finalmente, eu bateria numa terceira porta e alguém compraria meu produto. Graças a
esta venda, pude terminar mais cedo o trabalho e sair para comemorar com meu chefe. Durante a
comemoração, fui promovida, ganhei uma sala para trabalhar e agora não preciso mais sair pelas
ruas a bater de porta em porta.
Por este exemplo, podemos ver que os obstáculos levaram à continuidade da ação, mas a
verdadeira confrontação, o verdadeiro momentum resultaram da última ação, quando o obstáculo
já havia sido superado.
No filme Tubarão vemos um bom exemplo de como funcionam os obstáculos, quando Martin,
Matt e Quint tentam pegar o turbarão assassino:
■ Primeiro, Quint tenta fisgar o tubarão com sua linha de pesca.
O tubarão é esperto, e se esconde debaixo do barco, até arrebentar a linha.
■ Depois, com um arpão, tentam fisgar o tubarão, que foge em disparada.
■ Em seguida, tentam usar uma gaiola para tubarões, mas o tubarão a destrói.
■ Finalmente, Martin consegue atirar dentro da boca do tubarão um cilindro de oxigênio, que
explode e o mata.

55
Voltar ao Sumário

No filme E o Vento Levou, Scarlett tenta obter dinheiro de Rhett para pagar os impostos de sua
propriedade, Tara. Quando ele diz não (um obstáculo), ela se casa com Frank Kennedy, para
conseguir seu objetivo.
Em A Testemunha Paul tenta localizar John na fazenda dos amish. Ele pede ajuda à polícia de
Lancaster, que não tem como localizá-lo, pois os amish não têm telefone (um obstáculo). Então
Paul interroga o parceiro de John, que se recusa a falar (outro obstáculo). Por fim, Paul mata o
parceiro de John, o que indiretamente faz com que John Brook acabe revelando seu esconderijo.
Embora possam ser encontrados em quase todos os filmes, os obstáculos são mais utilizados
em filmes policiais, de mistério, ação ou aventura. Ocasionalmente também são usados em dramas
e comédias. É possível incluir vários obstáculos num mesmo filme. Porém, caso sejam utilizados
em excesso, a história fica repetitiva, como se estivéssemos reprisando a ação em lugar de
desenvolvê-la. Neste caso, os obstáculos, em vez de conferir momentum à história, fazem com que
ela fique mais lenta, pesada. No entanto, se forem bem dosados, os obstáculos ajudam muito a
impelir a história para adiante.

A COMPLICAÇÃO
A complicação é um ponto de ação dramática que não surte resultado imediato. Alguma coisa
acontece, mas a reação a este acontecimento só vai ocorrer mais tarde. O fato de termos de esperar
por isso nos faz antecipar a reação inevitável.
Vamos analisar uma complicação em Tootsie, por exemplo. Para conseguir um emprego,
Michael se travestiu de mulher e se transformou em Dorothy Michaels. Seu único propósito era
conseguir trabalho. Mas já no primeiro dia de trabalho no estúdio, ele conhece Julie. Embora
naquele momento nada aconteça, sabemos que é apenas uma questão de tempo. A presença de
JuJie complica o propósito inicial de Michael. Imaginamos que ele vá se apaixonar por ela, o que
vai colocar em risco seu emprego.
O primeiro encontro e a reação final por ele provocada estão separados por trinta e duas páginas
de roteiro. Dorothy conhece Julie na página vinte e nove. Nesse primeiro encontro, eles simplesment
se observam.
RITA
Ron, quero fazer um teste com a Srta. Michaels.
Vamos gravar um vídeo com ela.
JULIE PHILIPS, a estrela do programa, uma loira estonteante, passa por Dorothy bem na hora
em que esta derruba umas paginas do roteiro. Rapidamente, Dorothy se agacha para apanhá-las,
quando percebe Julie ajoelhada a seu lado, tentando ajudar.
DOROTHY
Oh, querida, nao consigo achar a página quatro!

56
Voltar ao Sumário

JULIE
Eles não vão nem perceber que está faltando...
Julie junta as páginas. Ambas se levantam. Julie as entrega para Dorothy, sorrindo com simpatia.
JULIE
Não encare isto aí como uma câmera. Pense numa coisa menos intimidante, como uma máquina
fotográfica.
Julie então se afasta. Dorothy a acompanha com o olhar. Na porta Julie se vira, pisca para ela e
faz um sinal de positivo com o polegar.
Nada acontece neste primeiro encontro, mas só pela forma como Dorothy olha para Julie,
percebemos que “ele” está se apaixonando por ela.
Trinta e duas páginas depois, Julie convida Dorothy para uma visita à sua casa.
JULIE
Dorothy... eu sei que isto não é bem o que você gostaria de ouvir — mas temos vinte e seis
páginas para amanhã. Se você pudesse fazer a gentileza de vir até minha casa, e ensaiar comigo;
poderíamos comer qualquer coisa, eu sou especialista em comida congelada. Bem, é claro que
você pode me dizer que por hoje basta de ensaios.
O relacionamento vai se desenvolvendo num crescendo, da complicação (o primeiro encontro)
até uma reação (a visita).
Em Tootsie vemos outra complicação, quando Dr. Brewster, o médico da novela, conhece
Dorothy e decide que a deseja. Mais uma vez, o resultado deste ponto de ação dramática não é
imediato. Na verdade, ele só vai acontecer no decorrer do terceiro ato, quando Dr. Brewster decide
fazer uma serenata para Dorothy, praticamente forçando-a a aceitar sua atenção.
Mais uma complicação surge, quando o pai de Julie se apaixona por Dorothy. Ele a conhece no
começo do segundo ato, mas quase nada acontece, até que Dorothy faz uma visita à sua fazenda,
no final do segundo ato. Eles cantam e dançam juntos, o que o leva a se declarar para Dorothy.
Uma complicação nao é um ponto de ação dramática comum. Na realidade, é bastante rara.
Muitos roteiros não lançam mão de complicações. No entanto, quando está presente num roteiro,
pode ser bastante sutil. Para identificar uma complicação, procure por três elementos:
■ A complicação não surte efeito imediato; portanto, ela cria uma expectativa na história.
■ A complicação é o começo de uma nova linha ou de um enredo secundário. Ela não muda
a história em si; ao contrário, mantém o desenrolar da história, embora lhe acrescente um elemento
novo.
■ A complicação é algo que se coloca no caminho da intenção do personagem.
Por causa de Julie, Breswster e Les, Michael não pôde continuar sendo Dorothy Michaels, apesar
de estar no auge de sua carreira. Ele continua com sua intenção originai: ter sucesso. Estes

57
Voltar ao Sumário

personagens não alteram sua intenção inicial, mas certamente interferiram no seu deseio de
continuar sendo Dorothy. E esta é a complicação.

A REVERSÃO DE EXPECTATIVA
O ponto de ação dramática mais forte que existe é a reversão de expectativa, pois provoca um
giro de 180º na direção da história, fazendo-a mudar de uma direção positiva para uma negativa
ou vice-versa. É mais forte que a maioria dos pontos de virada, que apenas desviam a trajetória da
ação, sem contudo invertê-la. A reversão de expectativa provoca uma reviravolta completa.
As reversões de expectativa podem atuar de forma física ou emocional, pois podem reverter
tanto a ação quanto as emoções de um personagem. Em Os Caça-Fantasmas, professores
universitários desempregados decidem mudar de vida e fundar seu próprio negócio. Em Tubarão,
o povo da cidadezinha acha que pegou o tubarão e começa a festejar, mas ocorre uma reversão de
expectativa, quando Matt avisa que o tubarão capturado não é o assassino.
Em Cocoon, a missão de Walter parece não ter mais sentido, quando os idosos drenam toda a
energia da piscina e um dos habitantes de Antares morre. Isto provoca uma reversão de expectativa
em sua missão. Contudo, sua missão sofre uma nova reversão de expectativa, quando os idosos se
oferecem para ajudar a salvar os casulos.
Estes três momentos também retratam reversões de expectativa emocionais. Em Os Caça-
Fantasmas, os apáticos e avoados professores se transformam, de repente, em pessoas altamente
motivadas. Em Tubarão, Martin e Matt passam de um clima festivo para um clima de apreensão.
Em Cocoon, Walter passa da dor e desespero para a esperança.
Introduzir uma reversão de expectativa no primeiro ou segundo ponto de virada pode ser uma
ótima maneira de criar momentum para o segundo e o terceiro atos. No entanto, as reversões de
expectativa podem funcionar em qualquer ponto do roteiro. Em filmes de terror, freqüentemente
ocorre uma reversão de expectativa quando todos estão festejando e se sentindo seguros, e de
repente a causa do terror reaparece.
Nos filmes policiais, acompanhamos uma reversão de expectativa quando o investigador, quase
a ponto de desistir da investigação, finalmente tem uma inspiração e descobre como pode
solucionar o caso.
Nos romances, testemunhamos reversões de expectativa quando o herói desaparecido finalmente
volta para sua amada, ou quando sua amada, no leito de morte, tem uma súbita melhora.
Tanto os obstáculos, ao forçar a tomada de novas decisões, quanto as complicações, ao introduzir
uma reação antecipada, impulsionam a história para frente. As reversões de expectativa, no
entanto, ao fazer com que a história tome um rumo totalmente novo, provocando assim novos
desdobramentos, são bem mais intensas e têm o dom de arremessá-la para frente. Justamente em
função dessa capacidade de criar um momentum de tamanha intensidade, será muito raro você
precisar lançar mão de mais do que uma ou duas reversões de expectativa num mesmo roteiro.

58
Voltar ao Sumário

Uma ou duas delas já terão força suficiente para dar impulso à história ao longo daquele difícil
segundo ato. Em todos esses exemplos dados, notamos que a ação evolui, em vez de se repetir.
Assim, em lugar de criar uma cena na qual um investigador fica fazendo e refazendo a mesma
pergunta sem parar, você opta por fazer com que o investigador a repita apenas o suficiente para
elucidar o ponto que lhe interessa (em geral, umas duas ou três vezes bastam), mas nunca a ponto
de fazer com que a mesma ação fique se repetindo. Isso permite que a história se desenvolva
melhor, dando origem a novos desdobramentos, a novas descobertas e a ações diferentes.

A SEQUÊNCIA DE CENAS
O momentum é algo que se obtém através dos pontos de ação dramática, que criam cenas de
ação—reação, onde cada cena conduz à próxima, levando assim a história ao seu clímax.
Por vezes, estas cenas de ação-reação são aglutinadas em torno de uma espécie de mini-linha
de ação dramática central. Estas cenas têm começo, meio e fim, e são marcadas por uma
apresentação, confrontação e um clímax que jamais sofrem a interrupção de enredos secundários.
Este tipo de cena, conhecida como seqüência de cenas, é a que provoca o maior momentum.
A maioria das sequências de cenas é relativamente curta, com duração de três a sete minutos.
Porém, às vezes, uma seqüência de cenas pode tomar todo o terceiro ato, como no filme A
Testemunha, onde a cena do confronto final é composta por uma longa seqüência de cenas, com
duração de quatorze minutos.
Muitas das cenas mais memoráveis são na verdade sequências de cenas. No filme E o Vento
Levou, o incêndio de Atlanta é retratado por uma sequência de cenas com sete minutos de duração.
A cena da tempestade em Um Lugar no Coração também é uma seqüência de sete minutos. Na
última batalha de Guerra nas Estrelas observamos mais uma seqüência de cenas.
Em E o Vento Levou, temos duas seqüências de cenas, uma após a outra. A primeira mostra “o
nascimento do bebê de Melanie e a segunda retrata “o incêndio de Atlanta”. Ambas duram cerca
de sete minutos e estão, provavelmente, entre as melhores cenas de todo o filme. Ao analisar mais
de perto estas duas seqüências, é possível observar como as seqüências de cenas dão foco e
momentum à história.
A seqüência que mostra “o nascimento do bebê de Melanie" começa depois que o cerco à Atlanta
já durava trinta e cinco dias. Percebendo que os ianques iriam tomar a cidade de assalto, os soldados
e moradores começam a abandoná-la. Justamente neste momento, Melanie entra em trabalho de
parto.
Apresentação: Melanie avisa que está tendo contrações
Primeiro ponto de virada: Scarlett manda Prissy chamar o médico
Confrontação: Prissy volta, dizendo que o médico não poderá vir atendê-la
Segundo ponto de virada: Dizem a Scarlett que ela terá que ajudar a fazer o parto

59
Voltar ao Sumário

Clímax: O bebê nasce


A seqüência que retrata “o incêndio de Atlanta” ocorre da mesma maneira:
Apresentação: Prissy vai atrás de Rhett e lhe pede que as ajude a fugir
Primeiro ponto de virada: Rhett vem resgatá-las
Confrontação: Alguns homens tentam impedir a passagem da carruagem, a multidão tenta
roubar o cavalo, e Rhett avisa que precisam passar pelo depósito de munição antes que este vá
pelos ares.
Segundo ponto de virada: Chegam ao depósito de munição, que já está em chamas. Isto
coloca sua fuga em perigo.
Confrontação: Tentam escapar através das chamas.
Clímax: Mal atravessam a chamas, o paiol explode.
Resolução: Quando todos estão a salvo, Rhett os deixa.
Como no caso dos pontos de ação dramática, as seqüências de cenas podem ser utilizadas onde
quer que se queira dentro da história. Muitas vezes uma seqüência é colocada logo após a metade
do segundo ato, para evitar que corra o risco de se tornar monótono. Pode também ser colocada
no primeiro ato, seja sob a forma de uma emocionante apresentação (como vemos em muitos dos
filmes de James Bond), seja como um meio de nos conduzir ao primeiro ponto de virada.
Steven Spielberg, este grande mestre do momentum do cinema contemporâneo, freqüentemente
lança mão de seqüências de cenas. Você encontrará uma seqüência curta em De Volta para o
Futuro, quando Biff persegue Marty e dá de encontro com um caminhão de esterco. Em Tubarão
há várias seqüências de cenas, como a da “caça ao tubarão com um arpão”, ou aquela em que eles
“usam uma jaula para tubarões” e ainda a seqüência final da “vitória”. No filme A Lista de Schindler,
existem várias seqüências de cena, entre elas a da “matança no gueto”, a de “Amon, o
carrasco”, e a seqüência da “mudança para a Tchecoslováquia”.
Isto não significa que Spielberg imponha seqüências de cenas a todos os seus roteiros. Duvido
que ele acorde de manhã e pense: “Hoje vou fazer uma seqüência de cenas”. No entanto, Spielberg,
como muitos dentre os melhores desse ramo, tem um instinto natural para as sequências por ter
um um faro para momentum. Em certos momentos, no entanto, este instinto precisa ser
conscientemente desenvolvido.

PROBLEMAS COM O MOMENTUM


A falta de momentum é um dos problemas mais corriqueiros dos filmes. Normalmente isso
decorre da falta de uma clara estrutura em três atos com pontos de virada nítidos para manter a
historia em movimento. Outras vezes isso se deve ao fato de algumas cenas levarem a história a
sair por uma tangente, em vez de manterem seu foco na linha de ação.
Com freqüência os problemas relacionados a falta de momentum recebem diagnósticos
60
Voltar ao Sumário

equivocados. Consequentemente, as soluções dadas não surtem o efeito desejado.


Muitos diretores tentam resolver os problemas relacionados a falta de momentum acrescentando
mais ação à historia. Não é incomum encontrarmos séries policiais às quais o diretor acrescenta
uma perseguição de carros, uma luta ou um tiroteio cada vez que a historia parece estar perdendo
impulso. Infelizmente, é muito raro este tipo de técnica resolver o problema. Pelo contrário, o que
faz muitas vezes é tirar a história de sua espinha dorsal, contribuindo para diminuir ainda mais
seu momentum, especialmente depois que as cenas de ação terminam.
Um outro problema freqüente é que os diretores muitas vezes confundem momentum com
ritmo. Para resolver um problema de momentum, muitos costumam acelerar o ritmo da história,
às vezes atropelando o enredo de tal forma que não dão uma pausa sequer para a audiência respirar.
Se o ritmo for rápido demais, a audiência não conseguirá acompanhar a história, e terá a sensação
de que está sempre atrás dos acontecimentos.
Outras vezes, quando a audiência perde o interesse pela história, pode parecer que o problema
reside na falta de momentum. Na realidade, o problema tem muito pouco a ver com a dinâmica
da história em si. Se história for muito previsível, a audiência perderá o interesse. Se a história
carecer de enredos secundários que lhe acrescentem mais dimensões, ou se os personagens ficarem
estereotipados e não conseguirem nos envolver o interesse também diminui.
Nestes casos, concentrar-se no desenvolvimento da linha do enredo principal, dos enredos
secundários e do tema é a resposta para aumentar o interesse, desde que este desenvolvimento seja
combinado a um forte momentum.

APLICAÇÃO
Nenhum destes recursos para reescrever uma história pode ser imposto a um roteiro. Eles
precisam ser parte integrante da história. Contudo, podem contribuir para reforçar um roteiro
que já traga em si alguma reversão de expectativa, complicação ou mesmo alguma sequência de
cenas.
No entanto, para que estes recursos possam ser bem utilizados num roteiro, é importante
entendê-los bem. Um primeiro passo seria assistir a alguns filmes tentando especificamente
identificá-los. Verá que certos filmes se apoiam mais em um desses recursos do que nos outros, ao
passo que alguns recorrem a todos.
Só para começar, preste atenção na quantidade de obstáculos que Sam Gerard encontra ao
tentar encontrar Richard Kimble, no filme O Fugitivo.
Observe o uso de reversões de expectativa no filme O Caça-Fantasmas (quando o homem da
agência de proteção ambiental deixa o fantasma sair), ou em Atração Fatal, quando a segunda
noite de sexo tórrido se transforma numa tentativa de suicídio.
Note o uso de cenas marcantemente estruturadas, com começo, meio, e fim, como a primeira
cena, no restaurante, em A Lista de Schindler, ou algumas das longas seqüências de lutas em Os

61
Voltar ao Sumário

Brutos também Amam.


Uma vez que você entenda claramente a forma como estes elementos são usados em filmes
específicos, terá mais facilidade em encontrá-los e desenvolvê-los no seu próprio roteiro.
Muitas vezes, seqüências de cenas podem ser criadas logo após a primeira versão do roteiro,
exigindo que pouco seja reescrito. Quase sempre, cenas de ação-reação giram ao redor de várias
idéias, não de uma só. Para criar uma seqüência de cenas, o roteirista precisa encontrar cenas
relacionadas a uma determinada idéia e agrupá-las, criando a apresentação, confrontação e clímax
para a seqüência.
Uma reversão de expectativa pode ser obtida ao se conferir impacto e reforçar um determinado
ponto de ação dramática. Pense na forma abrupta com que os caça-fantasmas perdem seus
empregos justamente no momento em que encontraram um fantasma na biblioteca. Se isto tivesse
sido encenado sem uma reversão de expectativa, nós os veríamos voltando para seus escritórios,
conversando sobre o fato e, em seguida, apareceria alguém para alertá-los de que poderiam ser
despedidos. É bem provável que a esta altura já tivéssemos saído do cinema, ressentidos com a
falta de energia do filme. No entanto, este momento foi encenado rapidamente, como uma típica
reversão física e emocional, impulsionando o desenvolvimento da história.
Uma outra idéia para criar fortes reversões de expectativa emocionais é procurar por momentos
de emoção que possam ser expandidos ou prolongados. Se seu personagem principal, por exemplo,
for do “tipo triste” antes de transformá-lo em um “tipo alegre”, verifique se é possível criar um
clima de “desespero que conduz ao êxtase” para obter um impacto maior. Ou faça uma reversão
de expectativa para o lado negativo, passando da celebração para o horror ou para o medo.
Resumindo, analise seu roteiro e pergunte a si mesmo:
■ Como estão sendo usados os pontos de ação dramática? A história ganha momentum
através deles, ou estou usando somente diálogos para levar a história adiante?
■ Que tipos de pontos de ação dramática meu roteiro contém? Obstáculos? Complicações?
Reversões de expectativas? Onde ocorrem e com que freqüência?
■ Existe nesse roteiro alguma seqüência de cenas ou potencial para
criar alguma? Onde elas ocorrem? O que fazem para conferir mais energia à história?
■ Meu roteiro tende a sair pela tangente, ou mantém o foco no desenvolvimento do enredo
principal e dos enredos secundários?
■ Posso construir pontos de ação dramática ou seqüências de cenas lançando mão dos
elementos dramáticos que já estou utilizando em minha história?
Acima de tudo, tenha sempre em mente que, enquanto houver ações e reações que estejam
relacionadas à linha de ação, seu roteiro continuará a caminhar. Você não precisa de grandes
ações para mover a história. Nem toda ação física necessita de uma reação dramática que seja
física para impulsionar sua trama. De tempos em tempos, você pode dar movimento à sua história

62
Voltar ao Sumário

através de ações físicas, diálogos, ou mesmo através de respostas emocionais. Desde que haja
relação entre uma ação e outra, e desde que você tenha uma estrutura que dê sustentação à sua
história, seu roteiro vai se desenvolver.
Tendo isto em mente, não precisa se preocupar em saber se seu roteiro é mais relacional e tem
um ritmo mais lento do que Rambo, ou do que o de algum filme de James Bond, nem se o ritmo
mais rápido de sua história de aventura se torna mais lento durante uma cena de amor. Desde que
haja cenas de ação—reação, seu roteiro terá direção, foco e momentum.
Analise quais tipos de pontos de ação dramática você utilizou, e como faz para manter a história
em movimento no segundo ato. Não tente impor nada à história que não lhe seja intrínseco, mas
ao mesmo tempo não hesite em ser intenso e dramático. A história, e especialmente o segundo ato,
precisarão de energia e impacto para se manter emocionantes — e para manter o momentum
fluindo.

63
Voltar ao Sumário

CAPÍTULO 5

COMO CRIAR CENAS

As cenas são como os tijolos na construção de uma história. Através do uso de imagens e
diálogos, uma grande cena faz a história avançar, revela quem são os personagens, explora uma
idéia e constrói imagens. Uma grande cena é aquela que faz tudo isso, ao passo que uma cena bem
feita alcança pelo menos alguns desses objetivos.
Os roteiristas costumam me dizer: “Escrevi essa cena com a intenção de revelar um personagem.”
E, realmente, é apenas isso que aquela cena se limita a fazer. Entretanto, um filme, na realidade, é
algo multidimensional e por isso uma cena pode perfeitamente ter várias finalidades ao mesmo
tempo. O background da cena pode mostrar uma imagem, enquanto as ações revelam um
personagem, trechos do diálogo podem servir para levar a história adiante, ao passo que a
combinação de tudo isso pode estar voltada para a exploração do tema.
Grandes cenas podem criar momentos de tensão e suspense, levar a audiência às lágrimas ou
ao terror ou até mesmo a alterações de ordem física, como suar frio ou provocar a aceleração dos
batimentos cardíacos.
Uma grande cena é aquela que envolve emocionalmente a platéia. Aristóteles já dizia que a
tragédia deve induzir a platéia a sentimentos de piedade e medo. Não há a menor dúvida de que
os melhores filmes despertam em nós essas emoções, embora também provoquem outros tipos de
sentimento, como compaixão, alegria, raiva, frustração, empolgação, desapontamento e tristeza.

IDEALIZANDO A CENA
Como acontece com os demais aspectos da arte dramática, não existem regras ou fórmulas fixas
para aplicarmos ao seu processo de criação. O que temos são alguns conceitos e idéias que nos
ajudam a compreender um pouco desta arte. Quando estiver trabalhando suas cenas, lembre-se de
que existe um bom motivo para o cinema já ter sido chamado de moving picture, dado seu forte
caráter pictórico. Embora o ato de escrever esteja associado a palavras, quem escreve para cinema
está, na verdade, criando diálogos e imagens. Em outras palavras, isto significa escolher cenas que
contenham movimento e direção — bem como conflito ação e emoção — e expressar tudo isso
através de locações cinematográficas, ações dramáticas e relacionamentos dinâmicos entre os
personagens.
Como os filmes têm movimento, as cenas em geral são curtas, variando entre uma ou duas
frases simples até cenas de três a quatro páginas. Os diálogos tendem a ser econômicos, alternando-
se entre os personagens em falas de poucas sentenças. Como há um limite, em geral de 120 páginas,
para o tamanho de um roteiro, cada linha de um diálogo, cada descrição é muito importante e

64
Voltar ao Sumário

precisa ser levada em conta. Além disso, como quem dá vida à cena são o diretor e os atores, ela
precisa trazer em si coloridos, texturas, relacionamentos e sentimentos que serão representados
por esses artistas. Quando se escreve um roteiro, as palavras precisam ser muito bem pensadas.
Diversos detalhes devem ser comunicados em poucas frases bem trabalhadas, que sejam capazes
de pintar um quadro dos personagens e de suas ações, mas sem detalhar em excesso para não
invadir o espaço do trabalho alheio.
Uma boa cena alcança uma série de objetivos:
1. Faz a história avançar, passando as informações necessárias para que possamos acompanhá-
la. Num filme de mistério, a cena revela alguma pista; num filme romântico, cria um relacionamento.
Como numa jornada, ela nos leva cada vez mais perto do destino final. Num bom roteiro, as cenas
conduzem para uma determinada direção e boa parte delas nos levará cada vez mais perto do
clímax. (Lembre-se, por exemplo, de como as cenas vão pouco a pouco transmitindo várias
informações, no filme O Fugitivo; ou em Tootsie, de como as cenas vão pouco a pouco levando
Michael a se desmascarar; ou de como as cenas no filme O Silêncio dos Inocentes vão revelando
cada vez mais pistas a Clarise Starling.)
Uma cena da história implica que outra ação acontecerá na próxima cena. Na verdade, ela
antecipa a ação seguinte, ou seja, apresenta e carrega em si as sementes da cena seguinte.
No filme A Testemunha, uma das cenas mostra John Book recebendo de Samuel uma informação
que fará com que a ação avance:
JOHN BOOK
Sou um oficial da polícia... É meu dever descobrir o que aconteceu. Quero que você me conte
tudo o que viu lá.
Passada essa cena, a investigação continua.
Uma cena não precisa ser assim tão direta, desde que conduza à cena seguinte.
Acompanhe este diálogo do filme Tootsie, entre George e Michael:
GEORGE
Ninguém vai te empregar.
MICHAEL
Ninguém? Você quer dizer, ninguém em...
GEORGE
(interrompendo)
Ninguém, em parte alguma!
CORTE:
CENA EXTERNA: UMA RUA DA CIDADE —

65
Voltar ao Sumário

DURANTE O DIA
A história começa com a imagem de Michael, vestido como Dorothy, caminhando pela rua
com seu primeiro par de sapatos de salto alto. Se ninguém estava disposto a contratar Michael
como Michael, talvez contratem Michael como Dorothy Michaels.
2. Uma cena pode revelar personagens. A maior parte do personagens são apresentados
nas cenas dos enredos secundários, mas as cenas da história “A” também podem ser usadas com
essa finalidade, mostrando como determinado personagem age, que decisões toma e como se
comporta sob pressão.
Informações sobre determinado personagem, dadas por uma cena da história “B” podem
resultar numa ação desse personagem em uma da história “A”. Às vezes uma cena dá a impressão
de estar apenas revelando o personagem, mas pode perfeitamente estar mostrando também
alguma habilidade do protagonista, que lhe será muito útil mais tarde para alcançar seu objetivo.
Por exemplo, o filme mostra uma cena em que o protagonista está praticando seu esporte
predileto: alpinismo. Podemos imaginar que esta cena sirva apenas para revelar o personagem.
Porém, mais tarde, veremos que o protagonista usará esta habilidade para resgatar os companheiros
desaparecidos em combate ou para invadir uma fortaleza no alto de um penhasco.
As melhores cenas voltadas para a apresentação de personagens não revelam características ao
acaso, mas revelam traços de personalidade que vão se tornar úteis em outra parte do roteiro. Por
isso as características dos personagens, mostradas numa cena, como a paixão por jogos de
computador (em War Games), a habilidade de imitar vozes (em Uma Babá Quase Perfeita) ou o
fato de gostar de tocar piano (em O Piano), não aparecem somente com a finalidade de revelar o
personagem, mas também de desenvolver a própria história.
No filme A Testemunha, descobrimos novos aspectos da história de John e Rachel, quando ela
lhe traz limonada no celeiro. Essa cena atua em vários níveis. Revela um outro lado de John,
mostrando que ele possui habilidades para a carpintaria, e fazendo uma introdução para cena da
construção do celeiro. Deixa claras as diferenças existentes entre John e Daniel, apenas pelo jeito
como cada um toma sua limonada. Daniel sorve civilizadamente, enquanto John toma grandes
goles, com um prazer quase sensual. A cena também ajuda a desenvolver o relacionamento entre
John e Rachel, pois mostra John caçoando e brincando com ela. Por fim, a cena ajuda a fazer com
que a história "B” avance, ao mostrar que Rachel está muito mais interessada em John do que em
Daniel.
JOHN BOOK
O que houve com Hochstetler?
RACHEL
Ele tomou uma limonada e saiu.
JOHN BOOK

66
Voltar ao Sumário

Parece um meteoro.
RACHEL
Você entende de carpintaria?
JOHN
Tenho algumas noções...
RACHEL
E o que mais você sabe fazer?
JOHN
Eu sei bater nos outros. Sou ótimo nisso!
Este diálogo provocador revela a dinâmica do relacionamento entre esses dois personagens que,
até aqui, está inteiramente subentendido. Como em todas as grandes cenas, fica algo nas entrelinhas,
um subtexto que está sendo encenado aqui. Imaginamos que o subtexto de Rachel seja: “Estou me
sentindo atraída por você e quero que você saiba que não gosto de Daniel”. Para John, o subtexto
poderia ser: “Já percebi que seu namoro com Daniel não é lá nenhuma paixão. Quero tirar isso a
limpo, mas ao mesmo tempo não quero muita intimidade, pois vou precisar partir logo.” A atração
que começa a brotar aqui, culmina com a cena em que os dois dançam juntos e com a cena da
construção do celeiro.
3. Uma cena também serve para explorar um tema. Os filmes sempre giram em torno
de algum tema: o bem e o mal, um problema de identidade, integridade moral, cobiça, amor,
traição e outros inúmeros temas relacionados à condição humana. As cenas exploram e desenvolvem
esses temas através do que os personagens dizem, de suas ações, e também por meio das imagens
criadas pelo roteiro.
Às vezes uma cena mostra sem rodeios o tema escolhido, como no filme “A Testemunha", onde
Eli explica, logo no início, um tema central que norteia a filosofia dos amish:
ELI
A arma que você carrega nas mãos serve para matar um homem... O que que você carrega nas
mãos você também leva para dentro do coração.
Em outras ocasiões o tema central é revelado através de decisões e reações de um personagem.
Rachel expressa sua filosofia e seus valores através de seu modo de agir:
O imenso revólver calibre 38 de Book está guardado na gaveta, em seu coldre. Samuel, fascinado,
pega a arma. Incapaz de resistir à tentação, ele a tira do coldre.
BOOK
Pare!.. .Nunca, jamais, aponte uma arma carregada...
Neste instante, chega Rachel:

67
Voltar ao Sumário

RACHEL
Samuel, espere por mim lá embaixo. John Book, enquanto você estiver nesta casa, exijo que siga
nossas regras.
BOOK
Tome, pode ficar com a arma. Ponha em algum lugar que ele não encontre.
Rachel hesita e em seguida pega a pistola, segurando-a com cuidado, e sai.
Nesta cena, a atitude dos personagens e a situação em si apontam
para o tema da não-violência:
4. Uma boa cena constrói uma imagem. Embora parte da tarefa de trabalhar as imagens
fique por conta do diretor, o roteirista também precisa lembrar de incluir imagens no roteiro,
tendo sempre consciência de que toda imagem transmite uma mensagem.
Quando esse recurso é pouco explorado, a imagem simplesmente repete uma idéia sem, contudo,
desenvolvê-la. A ganância, por exemplo, pode ser retratada de forma estática e repetitiva, através
da imagem de um personagem escondendo dinheiro em algum lugar. As cenas podem repetir essa
imagem, talvez mostrando várias vezes o personagem contando seu dinheiro, para destacar sua
ganância.
Entretanto, uma imagem que vai pouco a pouco se desenvolvendo tem o efeito de expandir a
própria imagem. Para explorar essa mesma idéia da ganância, o roteirista pode mostrar uma
pessoa que está disposta a tudo por dinheiro. A cena seguinte mostra essa pessoa comprando jóias
e roupas caras. Uma outra cena mostra todo um aparato de segurança, isto é, guardas, alarmes e
cachorros para proteger sua riqueza. Mais tarde, uma outra cena mostra que essa pessoa coloca o
dinheiro acima de tudo: família, amizades e até mesmo integridade pessoal.
Às vezes uma imagem torna o tema visível dentro da cena. Um exemplo disso são as cenas que
mostram o tema de vida em comunidade, como na primeira cena de A Testemunha: “Pessoas
vestidas de preto caminham pela alameda”. A imagem mostra uma comunidade que tem em
comum os mesmos valores, roupas e estilo de vida.
A cena ideal é aquela que faz a história avançar, revela um personagem, explora um tema e
constrói uma imagem. Contudo, raramente uma cena atinge esse ideal. Nos filmes de mistério, por
exemplo, certas cenas apenas servem para fazer a história avançar e revelar um pouco de um ou
outro personagem. Muitas cenas dos enredos secundários se concentram no tema ou no
personagem, mas em nada colaboram para o desenvolvimento da história principal. Porém, o
simples fato de ter em mente que as cenas podem atuar em diversos níveis vai melhorar
automaticamente a qualidade das cenas que um roteirista optará por exibir.

68
Voltar ao Sumário

QUAIS CENAS USAR E ONDE DEVEM SER INSERIDAS?


Qualquer história traz em si uma infinidade de cenas possíveis, à medida que os personagens
vão se movimentando ao longo da história. Os personagens comem, dormem, acordam, interagem
uns com os outros, discutem, tomam decisões, planejam o futuro, praticam esportes e se divertem,
ou seja, a lista das possibilidades é interminável. Como roteirista, dentre tantas possibilidades,
quais você deve usar?
Em geral, você precisa confiar na sua intuição dramática. Porém
vamos deixar aqui algumas sugestões que você deve ter em mente, quando for criar uma cena.
Esteja certo de que os elementos dramáticos mais importantes da história “A” estejam bem
marcados. Toda história possui uma série de elementos dramáticos principais que formam sua
espinha dorsal. Embora nem todas elas sejam necessariamente mostradas em cena, você precisa
demarcá-las numa espécie de esquema, para se assegurar de que sua história fique coerente. Num
filme policial, por exemplo, temos o assassino, o investigador que se encarrega de solucionar o
caso, algumas descobertas específicas feitas ao longo da história, e a captura do criminoso no final.
Numa comédia como Tootsie é necessário mostrar os acontecimentos que esclarecem por que
Michael não consegue um emprego normal, introduzir cenas que mostrem seu sucesso como
Dorothy e, em seguida, mostrar as complicações que aparecem pelo fato de Michael se apaixonar
por Julie, ao mesmo tempo em que não consegue romper seu contrato com a rede de televisão e,
finalmente, mostrar como ele se desvencilha dessa enrascada. Por isso, fica claro que é preciso
fazer também um esquema dos principais elementos dramáticos dos enredos secundários, de tal
modo que todas as linhas de enredo caminhem juntas, de forma integrada, do começo ao fim. É
necessário estar seguro de que não vão ocorrer furos na sua história e, para isso, é preciso verificar
todas as cenas, uma a uma, para se assegurar de que contenham todos os elementos dramáticos
mais importantes de que precisa para contar sua história.
Mostre a ação. É melhor do que falar sobre ela. Um filme gira em torno da ação, pois nada mais
é do que uma série de acontecimentos que nos levam a um clímax. Melhor do que falar sobre um
assassinato, sobre uma promoção ou sobre um encontro amoroso é mostrá-los, pois isso faz com
que o filme fique mais imediato, mais direto. Quando estiver delineando sua história, escolha
acontecimentos que criem uma história bem cinematográfica, que possa ser exibida na tela e
mostre-os do modo mais dramático possível.
Coloque um pouco de ação nas cenas mais paradas para torná-las interessantes. Como sempre
você terá certas cenas que são, por natureza, mais estáticas: cenas em que um personagem está
dirigindo um carro ou sentado num restaurante etc. Mesmo estas cenas podem se tornar mais
interessantes, intensas, dramáticas e reveladoras.
Percebemos que em muitos filmes foi acrescentada uma certa dose de ação em cenas como
essas. Por exemplo, já vimos cenas em que alguma informação importante é fornecida enquanto a
personagem cuida do jardim, descasca batatas, pendura roupas no varal ou escova os cabelos antes

69
Voltar ao Sumário

de dormir.
No filme Atração Fatal, há uma cena em que Dan e Beth precisam conversar sobre a casa que
pretendem comprar. É uma cena parada, que se passa na cozinha. O que torna a cena interessante
são os truques engraçadinhos que Ellen tenta fazer com o baralho, para seu pai, mas que dão
errado.
Mesmo nas cenas mais paradas, de pura exposição, o roteirista sempre pode inventar algo
interessante para acrescentar um pouco de movimento.
Escolha cenas que ajudem a orientar o público. Há momentos em que você precisa de cenas de
localização, para que o público saiba onde se encontra e qual é a relação entre um elemento e outro
do enredo. Geralmente estas cenas são rápidas e mostram, por exemplo, um carro entrando no
edifício em que mora um personagem; ou uma cena em que aparece a parte externa de uma
prisão, seguida por outra cena interior que mostra a disposição das celas. Às vezes uma cena
dessas mostra a altura de uma muralha (como no filme O Fugitivo), o quão longa será a corrida
(como em Ben-Hur) ou a altura de uma torre (como em Um Corpo que Cai). Sem essas cenas, o
público ficaria desorientado sem ter acesso à informação visual de que precisa para entender a
história. (Se você quiser ver exemplos de filmes em que faltam esse tipo de cenas, assista Mrs.
Soffel - Um Amor Proibido, ou assista à cena do tiroteio no O.K. Corral, em Paixão dos Fortes.
Nesses dois filmes, ficamos muitas vezes sem saber onde estamos, e não percebemos a proximidade
física das pessoas, dos edifícios e dos cavalos).
Você também pode usar montagens para transmitir informações e mostrar a passagem do
tempo. Uma montagem é composta por uma seqüência de pequenas cenas que, em geral,
transmitem informação. Geralmente não têm diálogo, embora algumas possam ter uma ou duas
linhas de falas. Lançando mão da técnica de colocar diversas cenas bem curtas em seqüência, é
possível transmitir informação de forma mais rápida.
Certamente todos já tiveram a oportunidade de ver montagens que retratam dois personagens
se apaixonando: um jantar à luz de velas, um passeio de mãos dadas pela praia, um beijo ao luar e
a cena final dos dois fazendo amor, apaixonadamente. Em vez de usar um ato inteiro para mostrar
como eles se apaixonaram, uma montagem dessas consegue fazer isso em alguns segundos,
permitindo que o filme explore outros aspectos desse relacionamento (o que se passa depois disso,
talvez concentrando mais o foco sobre o período do casamento). Embora essas montagens
românticas sejam as mais populares e comuns, na verdade uma montagem pode ser usada para
qualquer assunto: uma seqüência que mostre como a personagem conseguiu um emprego, a
construção de sua casa, a mudança para uma nova cidade ou mesmo a investigação de um crime.
Nas montagens, entretanto, não temos cenas de confrontação. Elas não mostram interação
entre personagens, não expressam conflitos e não transmitem muitas emoções. Mas certamente
trazem muito material para a história, de maneira bem rápida. Um bom exemplo é a montagem
feita no início do segundo ato de O Caça-Fantasmas, quando eles finalmente ficam famosos. A
montagem, que começa logo após os caça-fantasmas terem capturado o fantasma no hotel, mostra

70
Voltar ao Sumário

os comentários que as pessoas faziam sobre eles nas ruas, sua foto na capa da revistas Time e a
discussão sobre eles no Larry King Show.
O Fugitivo tem uma montagem muito boa lá pela metade do segundo ato, quando os oficiais
estão interrogando os amigos de Richard, enquanto ele prepara uma nova identidade como
faxineiro do hospital.
Em Tootsie, há uma montagem no final do segundo ato que mostra Dorothy, toda atrapalhada,
tomando conta de Amy, a filha de Julie. A montagem retrata uma noite longa e muito difícil:
MONTAGEM:
INTERIOR — QUARTO DE AMY — TARDE DA NolTE
Sentada no chão, cercada de brinquedos, Dorothy agita os brinquedos para Amy e faz caietas
engraçadas. Mas a criança não para de chorar.
INTERIOR DA SALA — TARDE DA NOITE
Dorothy corre em volta da sala, de salto alto, carregando Amy, que continua a chorar. Ela corre
da sala para o segundo andar, em direção ao quarto.
INTERIOR DA COZINHA — TARDE DA NOITE
Dorothy está tentando dar purê de maçã para Amy (e as duas ficam cobertas de purê). Amy
continua a chorar. Amy joga purê em Dorothy.
INTERIOR DO BANHEIRO — TARDE DA NOITE
Dorothy tenta limpar a blusa e o cabelo, enquanto conversa com Amy, que colocou sentada
dentro da pia.
INTERIOR DA SALA — TARDE DA NOITE
Dorothy está sentada, com Amy no colo. Mexe os brinquedos que estão em cima da mesa, na
tentativa de fazê-la dormir. Mas nada parece funcionar.
INTERIOR DO QUARTO DE AMY — TARDE DA NOITE
AMY brinca no chão, em meio aos brinquedos. A CÂMERA VOLTA PARA TRÁS e mostra
Dorothy dormindo, no canto do quarto. Dorothy acorda com o barulho de um brinquedo, levanta-
se e vai pegar Amy.

SE PRECISAR DE CENAS DE EXPOSIÇÃO, FAÇA COM


QUE SEJAM VISUAIS E DRAMÁTICAS
Muitas vezes há necessidade de transmitir certas informações para o público, que não são,
porém, nada interessantes. Existem algumas técnicas que podem ser utilizadas para compensar o
que de outro modo poderia vir a ser uma cena parada e monótona.
Uma das melhores cenas de exposição que se pode encontrar filme Os Caçadores da Arca

71
Voltar ao Sumário

Perdida. Ao ler esta cena, repare quantas técnicas diferentes foram utilizadas para comunicar o
que realmente era o objetivo principal da cena: que os nazistas haviam encontrado Tanis.
Se você assistir novamente ao filme, notará que essa cena poderia ter sido filmada em qualquer
lugar: um escritório, uma sala de aula, uma sala de reuniões. Em vez disso, resolveram utilizar um
cenário mais interessante - um impressionante salão de leitura em estilo gótico, o que acrescentou
riqueza visual e interesse à cena.
INTERIOR — SALÃO DE LEITURA — DIA
INDY sobe na plataforma em frente à sala. Dois homens, EATON e MUSGROVE, o seguem.
EATON
Ravenwood foi seu professor na Universidade de Chicago.
INDY
Sim, foi.
EATON
Você tem alguma idéia por onde ele anda atualmente?
INDY
O que sei são só boatos. Parece que ele está em algum lugar na Ásia,
se não me engano. Faz mais de dez anos que não falo com ele. Éramos amigos, mas... tivemos
um desentendimento tempos atrás.
Com este diálogo começam a surgir informações da backstory, o que faz com que a cena revele
uma série de informações sobre o personagem. Descobrimos onde Indy estudou. (Descobrimos
também que a pessoa que escreveu o roteiro fez direitinho sua pesquisa, escolhendo uma das
melhores universidades do país para o doutorado de Indy. Puxa, o homem deve ser um crânio!).
Também ficamos sabendo de seu relacionamento com o professor Ravenwood. Mas, isso não nos
é dado simplesmente como COMO CRIAR CENAS |109|
uma mera informação e ponto final. Transmite uma atitude do personagem, pois sentimos
claramente que Indy se sente incomodado com o tal desentendimento que teve com Ravenwood.
À medida que a cena continua, ela se reveste de um certo mistério, além de transmitir a
informação que vai introduzir todo o resto da história.
MUSGROVE
Dr. Jones, compreenda que tudo o que vamos falar agora é estritamente confidencial.
INDY
Compreendo perfeitamente.
Musgrove pigarreia.
MUSGROVE
72
Voltar ao Sumário

Ontem à tarde, as agências européias interceptaram uma mensagem alemã, que foi enviada do
Cairo para Berlim. Pois bem...
EATON
(interrompendo)
Veja bem, nos últimos dois anos, os nazistas têm enviado vários grupos de arqueólogos pelo
mundo todo, atrás de artefatos religiosos. Hitler está obcecado com isso... Ele tem obsessão por
coisas sobrenaturais. Parece que atualmente está havendo uma escavação arqueológica dirigida
por alemães, num deserto perto da cidade do Cairo.
Musgrove abre uma maleta.
MUSGROVE
Exatamente. Nós temos uma informação aqui, mas não sabemos como utilizá-la. Talvez você
saiba. (Ele lê) “Evolução no projeto Tanis. Encontramos peça do cetro de Ra. Abner Ravenwood,
U.S.”
Novamente vemos aqui muita exposição. Porém, perceba a forma como diálogo trocado entre
Brody e Musgrove ajuda a manter o interesse, neste vai e vem. Note como a expectativa aumenta
quando Eaton interrompe Musgrove, pretendendo revelar a informação importante. Por outro
lado, Musgrove, que é quem está de posse do telegrama, retoma novamente o comando da conversa,
para tratar do motivo que os levara esse encontro.
À medida que a cena continua, a reação emocional de Indy diante dessa informação acrescenta
um novo colorido à cena. Ele fica nitidamente empolgado e chega a interromper Brody, enquanto
este lhe dá a notícia.
Indy e Brody entreolham-se. Indy bate na mesa com mão.
INDY
Os alemães encontraram Tanis!
EATON
Mas, o que Tanis significa para você?
BRODY
Bem, é...
INDY
(interrompendo)
A cidade de Tanis é um dos prováveis locais onde se encontra a Arca
Perdida.
MUSGROVE
A Arca Perdida?
73
Voltar ao Sumário

Começamos assim a perceber que Indy era um homem de um vasto conhecimento, apesar dele
mesmo não se considerar um entendido em Tanis... (“Quem fez a primeira pesquisa mais profunda
a respeito de Tanis foi Ravenwood. Ele, na verdade, era obcecado com isso, embora nunca tenha
conseguido descobrir onde ficava a cidade.”)
O começo da cena já tinha deixado claro que Indy dominava a arqueologia. Agora começa a
mostrar suas habilidades como professor.
COMO CRIAR CENAS \Uij
INDY
A Arca da Aliança, a arca que os hebreus usaram para levar os Dez
mandamentos.
EATON
Você quer dizer os Dez Mandamentos da Bíblia?
INDY
Exatamente, os Dez Mandamentos. As tábuas de pedra que Moisés trouxe do Monte Sinai e que
depois quebrou, se é que você acredita nessa história.
Os homens ficaram impressionados, mas impassíveis.
INDY
Algum de vocês aí freqüentou as aulas de catecismo?
Aqui temos, portanto, mais informação sobre a história, mas também mais informação sobre o
personagem e sua atitude em relação à religião. Indy freqüentou as aulas de catecismo, mas agora
dá a impressão de ser agnóstico.
A cena prossegue, explicando a história da Arca, como foi levada para o templo de Salomão, em
Jerusalém e depois desapareceu, numa tempestade de areia.
Mas existem ainda outras informações para serem transmitidas, o que é feito através de fortes
recursos visuais.
EATON
O que exatamente é essa peça do cetro de Rá?
INDY
Bem, o cetro é só um bastão usado por uma autoridade real.
Ele mostra o tamanho que o cetro deve ter e, virando de lado um quadro negro, começa a
desenhar alguma coisa com um pedaço de giz. Este desenho nos ajuda a reconhecer o cetro quando
mais tarde for mostrado no filme.

74
Voltar ao Sumário

No final da cena, um desenho ajuda a simbolizar o poder da arca.


EATON
Como é essa arca?
INDY
Eu tenho um desenho dela aqui. Veja.
Ele abre um livro com fecho lateral, na página de uma gravura O desenho mostra uma batalha
bíblica — o exército israelita está vencendo uma batalha contra um inimigo. O que mais chama
atenção é um feiXe brilhante de luz e chamas (que sai de dentro da arca)...
E a cena chega ao final com um pouco de humor, quando Brody entra novamente na conversa.
EATON
Meu bom Deus!
BRODY
Sim, foi exatamente isso que os hebreus pensaram.
MUSGROVE
Mas, também, o que se poderia esperar que viesse da arca?
INDY
Luz, fogo... poder de Deus ou algo do gênero.
EATON
Estou começando a entender o interesse de Hitler nisso.
BRODY
Claro. A Bíblia fala da Arca aplainando montanhas e subjugando regiões inteiras. Um exército
que carrega a arca diante de si é invencível.
Assim, a cena termina deixando uma sensação do que está em risco se os nazistas de fato
tiverem encontrado Tanis.
O acréscimo de emoções, atitudes, imagens e conflitos tornou esta cena interessante e
cinematográfica, sem perder de vista seu objetivo principal: transmitir com dramaticidade uma
informação importante.

DO PONTO DE VISTA DE QUEM A HISTÓRIA É VISTA?


Antes de decidir alguma coisa em relação às cenas, é preciso resolver uma série de questões:
“De quem é a história que será contada? Quem é o centro das preocupações, com quem o roteirista
se identifica mais, cujos passos parece seguir? Até que ponto a história é vista através do ponto de
vista específico de alguém?”

75
Voltar ao Sumário

Uma história pode ser contada através do ponto de vista de um personagem, de vários deles ou
através de um ponto de vista onisciente. Muitos filmes tentam fazer com que o público se identifique
completamente com um personagem específico. Você fica sabendo só o que esse personagem sabe.
Ele está presente em todas as cenas e o público vai vivendo a história através dos olhos desse
personagem. Tootsie conta a história de Michael Dorsey; praticamente todas as cenas giram em
torno dele e o público vai acompanhando sua trajetória através do filme. Uma Aventura na África
é contado através do ponto de vista de dois personagens, Rose e Allnutt. Em todas as cenas pelo
menos um deles aparece.
Um ponto de vista onisciente faz com que a audiência tenha informações às quais o protagonista
não tem acesso. Passa uma visão mais ampla e objetiva da história. Em vez de nos identificarmos
completamente com determinado personagem, conseguimos enxergar outros aspectos da história.
O filme A Lista de Schlinder adota esse ponto de vista onisciente, mostrando diversas cenas que
focalizam Schlinder, o comandante, as mulheres no campo de concentração, as crianças, os
homens, os nazistas e a população do gueto.
Às vezes os filmes policiais querem fazer com que a audiência saiba mais do que o protagonista.
Então, mostram cenas com o vilão ou com a policia, apesar de a maioria das cenas girar em torno
do personagem principal.
Alguns filmes trazem o ponto de vista de um ou mais personagens combinado com algumas
cenas de ponto de vista onisciente. No filme O Fugitivo, a maior parte das cenas giram em torno
do agente Gerard ou de Richard Kimble, mas algumas são voltadas para outros personagens como
a polícia de Chicago, o homem de um braço só e algumas cenas com os outros agentes em que
Gerard não aparece. Se tiver a intenção de que a audiência se identifique mais de perto com um ou
dois personagens, o ponto de vista deverá ser mais estreito e subjetivo. Se precisar mostrar mais
informações para que a audiência com compreenda os principais pontos da história que compõem
o mistério, a saída será ampliar o ponto de vista

POR ONDE COMEÇAR E ONDE TERMINAR UMA CENA?


Algumas cenas começam antes da hora e acabam ficando muito lentas,
demoradas, parecem não ter um foco definido. Dão a impressão de não saber para onde vão,
nem como chegar lá.
Outras começam atrasadas e não passam a informação de que o público precisa para poder
entender a cena. Além disso, são cenas que não têm duração suficiente para construir a tensão, o
conflito ou o suspense.
Para decidir onde a cena deve começar, primeiro defina onde ela termina. Qual é o motivo da
cena? Por que incluí-la? Qual é a informação mais importante que a audiência precisa extrair dela?
Qual é o foco dessa cena? Para onde ela caminha?
Uma cena pode mostrar Tootsie procurando um emprego, sendo que o propósito da cena seria

76
Voltar ao Sumário

a contratação. Outra cena pode fazer parte da investigação de um assassinato, mostrando um


detetive que encontra uma informação importante. Este é o seu propósito que só vai ser atingido
no final da cena.
Mas, afinal, por onde começar uma cena? O que a audiência precisa saber para entender a cena?
A resposta está na apresentação da cena. No filme Tootsie, a cena poderia começar com Tootsie
chegando no estúdio. Neste caso, todo o contexto do estúdio seria mostrado logo de início. Este
contexto configura um ambiente de competição, as pessoas envolvidas na cena e alguma informação
sobre o que seria pedido de Dorothy.
Em seguida, como ficaria a confrontação? Como a cena seria desenvolvida? Que acontecimentos
seriam necessários para nos levar da apresentação até o clímax da cena? Em Tootsie a confrontação
divide-se em três momentos: Dorothy lê seu texto, em seguida quase é dispensada, mas acaba
sendo contratada.
Pense em que direção a cena deve seguir para ter uma ligação com a cena seguinte. Em Tootsie
a cena de contratação nos leva diretamente à cena em que Michael, vestido de Dorothy, cumprimenta
seu agente no Salão de Chá Russo, provando que realmente conseguira o emprego.
Pense na ação da cena. Muitos se preocupam demais com a informação a ser transmitida pela
cena e, com isso, suas cenas se tornam um verdadeiro palavrório que gira em torno dessa
informação. Porém, se pensar em termos da ação de uma cena, ela automaticamente ganha uma
nova energia. Ela terá acontecimentos que provocarão certas reações, decisões e novas ações, e as
coisas começarão a acontecer. Por exemplo, uma cena pode começar mostrando pessoas
conversando numa festa, à noite. Ou pode só falar disto, sem mostrar. No entanto, se você repensar
esta cena, considerando o que de fato está se passando, pode resolver começar a cena de outro
modo, como, por exemplo, mostrando a reação de pessoas que chegam e se encontram na festa.
Outra hipótese seria a de chegar à conclusão de que a cena gira em torno de um conflito e uma
confrontação que acontece entre dois dos convidados, que acaba levando a uma ação: um deles vai
embora da festa desgostoso; ou eles se alteram, a briga esquenta e um convidado atira um cálice
de vinho no outro. Quando se pensa na cena em termos de ação — mesmo no caso de uma cena
relativamente estática — ela ganha mais dramaticidade, emoção e dinamismo.

DÊ UMA ESTRUTURA E UM FORMATO ÀS SUAS CENAS


Do mesmo modo que a história tem uma estrutura, as cenas também têm um formato. Elas
também possuem direção e movimento. Uma cena bem estruturada normalmente se divide em
três atos, com um nítido começo, meio e fim. Também costuma ter o primeiro e o segundo pontos
de virada, e uma evolução dramática que leva ao clímax.
Uma das cenas mais bem estruturadas que conheço é a cena do assassinato, no filme A
Testemunha. Fiz uma ligeira edição dela a seguir, mas no roteiro original ela tem umas três páginas,
e toma de três quatro minutos de filmagem. Ao assistir ao filme é possível perceber como a direção
de Peter Weir realça a estrutura intrínseca de três atos da cena escrita, através da mudança de

77
Voltar ao Sumário

movimento e som nos pontos de virada.


Ao descrever esta cena, vou dividi-la em três atos para que o leitor possa perceber claramente
sua estrutura.
PRIMEIRO ATO (A idéia para o começo da cena é mostrar Samuel entrando no banheiro
e trocando olhares com um homem que lá se encontra).
INTERIOR DA ESTAÇÃO DE FILADÉLFIA — À NOITE
RACHEL/SAMUEL
O menino se levanta, diz alguma coisa à sua mãe, e ela sacode afirmativamente a cabeça,...
Ele começa a andar, esquecendo seu chapéu, mas a mãe o alcança e se apressa em lhe colocar o
chapéu na cabeça.
INTERIOR DO BANHEIRO MASCULINO
Vê-se uma longa fila de pias, mictórios e privadas... (Os olhos de Samuel se encontram com os
de um homem que está lavando as mãos). Samuel percorre a longa fila de portas, e entra numa
delas, no final do corredor.
...Outros dois homens entram no banheiro; um NEGRO grandalhão, usando um terno (McFee)
e seu COMPANHEIRO (Fergie), um homem branco, vestindo um jeans de grife e uma jaqueta de
couro.
PRIMEIRO PONTO DE VIRADA: (O primeiro ponto de virada da cena é o ataque, e o segundo
ato da cena vai mostrar o assassinato).
SEGUNDO ATO:
ÂNGULO DENTRO DA CABINE ONDE ESTÁ SAMUEL
Eles avançam sobre o jovem ameaçadoramente... uma luta selvagem, sem palavras se inicia...
DE VOLTA À LUTA
A briga caminha para um clímax... o homem negro sinaliza ao companheiro para que vigie a
porta...
ANGULO DENTRO DA CABINE ONDE ESTÁ SAMUEL
Quando ele passa, a porta da cabine se entreabre. Por cima de seu ombro... refletido no espelho...
podemos vislumbrar o rosto do homem negro.
...o homem negro vai se dirigindo para a saída, quando resolve dar uma última olhada na fileira
de cabines.
PONTO DE VISTA DO HOMEM NEGRO — AS CABINES
Tudo quieto, mas...
SEGUNDO PONTO DE VIRADA: (Nesta hora, Samuel se movimenta, fazendo um ruído. Isto
nos leva ao terceiro ato da cena, quando McFee examina todas as cabines e quase encontra Samuel).
78
Voltar ao Sumário

TERCEIRO ATO:
O homem negro apanha, de repente um revólver .357 Magnum e começando pela cabine mais
próxima, vai abrindo uma a uma toda as portas.
...À medida que ele vai se aproximando, Samuel tenta desesperadamente fechar o trinco.
Finalmente, ele consegue trancar a porta.
O HOMEM NEGRO
Ele tenta abrir a porta da cabine de Samuel... mas está trancada
ÂNGULO DENTRO DA CABINE ONDE ESTÁ SAMUEL
Lutando contra o medo, Samuel se encolhe o mais que pode.
O HOMEM NEGRO
chuta a porta, mas esta resiste...
Em desespero, Samuel descobre a única saída possível... agacha-se e passa por debaixo da
divisória para a cabine ao lado, que o homem negro já havia examinado. Mas seu chapéu cai no
caminho. Close em sua mão, que volta, por baixo da divisória, para apanhar o chapéu...
CLÍMAX:
...no exato momento em que o homem negro arromba a porta com um violento pontapé, que
arrebenta a fechadura e quase a arranca a porta fora das dobradiças, ele aparece emoldurado pelo
vão da porta, como se o cano enorme de seu revólver estivesse apontando para nossas gargantas.
RESOLUÇÃO:
Uma pausa e, em seguida, o homem negro guarda o revólver no coldre e se vira, acompanhando
seu parceiro em direção à saída.

CRIANDO UMA SEQÜÊNCIA DE CENAS


Quando você estiver criando uma cena, pense no relacionamento dela com outras cenas.
Quanto mais estreito for esse relacionamento entre as cenas, mais nítido serão o fluxo e o foco da
história (o que servirá também para evitar que o produtor ou o investidor do filme possa fazer
mudanças aleatórias no roteiro). Em geral, uma sequência é composta de várias cenas. Um exemplo
bem comum dessas seqüências são aquelas emocionantes cenas de perseguição, em que o mocinho
vai chegando cada vez mais perto, e a seqüência em geral termina com um acidente ou com a
captura do vilão. Outros exemplos de seqüências de cenas: no filme Os Canhões de Navarone, há
uma seqüência de cenas que termina com a destruição dos canhões; no filme Harry e Sally - Feitos
um para o Outro, a seqüência se materializa no desenrolar das cenas que vão levando ao reencontro
do casal. Outro exemplo de seqüência são aquelas cenas que representam uma corrida contra o
tempo para atingir um determinado objetivo, como acontece com Mozart, em Amadeus, numa
seqüência que retrata seu empenho para terminar a ópera.

79
Voltar ao Sumário

No filme O Fugitivo, a primeira seqüência de cenas, que poderíamos chamar de “O Assassinato


e o Julgamento", ocupa os onze minutos iniciais do filme. Nela vemos a cena do crime, a cena do
processo e depois, a do julgamento. A próxima seqüência, que chamaremos de “A Fuga”, acaba
com o desastre do trem. A seqüência seguinte da “Perseguição” mostra Samuel Gerard, um dos
agentes, em seu encalço e termina com a chegada de Kimble em Chicago. Ao olhar para as cenas
desse filme, percebemos que estão agrupadas em seqüências, sendo que cada uma delas tem uma
correlação com determinada idéia e cenas ações específicas.
Em qualquer dessas seqüências, não seria simples eliminar uma cena sem que isso acarretasse
prejuízo para o ritmo e os elementos dramáticos mais importantes. Cada cena tem sua razão de
ser, e todas nos levam para a cena seguinte. Toda a informação de que precisamos nos é transmitida
de antemão. Por exemplo, ficamos sabendo que Samuel Gerard e um delegado antes de ele aparecer
na cena do interrogatório. Do mesmo modo acontece com Kimble, que se decide a ir para Chicago
procurar "o homem de um braço só”, antes de deixar a cidade.

OBSERVE O RELACIONAMENTO ENTRE AS SUAS CENAS


O número de cenas num roteiro pode variar. Você pode ter um roteiro com 75 cenas ou mesmo
com 100. Algumas de suas cenas poderão ser bem curtas, como, por exemplo, cenas de apresentação
que se passam em um corredor, uma rua ou dentro de um carro. Outras podem ser longas,
chegando a ter de uma a quatro páginas. Não existe, na realidade, um número fixo de cenas.
Entretanto, se você tiver apenas de duas a três cenas em seu roteiro, o que tem em mãos, na
verdade, não é uma mídia cinematográfica, ma sim uma peça de teatro. Por outro lado, se tiver
centenas de cenas, o filme deixará a sensação de que tudo se passa muito rápido, com um
desenvolvimento truncado e sem que haja tempo adequado para a evolução da história.
Observe as cenas do seu roteiro, repare no relacionamento que existe entre elas, e assim
descobrirá o que deve fazer para aumentar o interesse da audiência.

ESCOLHENDO CENAS PARA CONTRASTAR


Como um filme se constitui basicamente de uma sucessão de imagens em movimento, é possível
criar imagens mais impactantes através do relacionamento estabelecido entre duas cenas.
Por exemplo, você pode criar um contraste entre duas cenas usando claro e escuro: a primeira
cena se passa em um PARQUE — A LUZ DO DIA; a cena seguinte se passa em uma RUA — À
NOITE.
O contraste também pode se dar através da mudança de clima entre duas cenas: uma cena de
sexo, íntima, passional é contrastada com outra em que os personagens discutem. Ou uma cena
leve, cômica pode ser seguida por uma cena de violência. No filme Atração Fatal, Alex e Dan estão
na cama, juntos, quando ela pergunta se ele está a fim de alguma coisa agitada. Na cena seguinte,
CORTE PARA: Os dois dançando freneticamente, numa danceteria.

80
Voltar ao Sumário

As cenas podem ser contrastadas pela variação entre uma cena longa, seguida de outra curta,
pela mudança de uma cena de diálogo para outra visual, ou de uma cena interna para outra externa.
O ritmo também pode variar de uma cena para outra: uma cena calma mostrando alguém indo
para a cama, seguida de uma outra que mostra um carro de polícia numa perseguição a outro
veículo. No filme O Fugitivo, há uma seqüência de cenas que se alternam, que mostram Gerard
novamente no encalço de Kimble.
Um determinado tema pode ser contrastado de cena para cena. Você pode passar da cena
frenética de um violento assassinato para uma cena silenciosa no interior de uma capela. Ou de
uma cena que retrate uma acalorada discussão em família para outra em que a família aparece
feliz, reunida em torno da mesa. (Em muitos de seus filmes Woody Allen explora com maestria
essa técnica do contraste entre cenas que retratam diversos tipos de relacionamento familiar).
O contraste de determinado tema pode ser intensificado através do intercutting (técnica que
mescla, intercala duas ou mais cenas contrastantes que foram gravadas em separado). No filme A
Lista de Schlinder, a cena do casamento no campo de concentração é intercalada com a cena de
Schlinder beijando uma mulher em um night club que, por sua vez, é mesclada com a cena do
comandante batendo em Helen, a mulher que ele havia levado para casa.
No filme Cabaré, há também uma cena parecida com essa, em que o som de uma briga num
beco como que reproduz a música e o barulho das conversas e risadas dentro do cabaré. No filme
O Poderoso Chefão, a cena de um batizado é contrastada com a de um assassinato. No segundo
filme desta série, a cena de um desfile é intercalada com a cena de um assassinato, e em O Poderoso
Chefão III, a cena da ópera é intercalada com cenas de outro assassinato.

O QUE PODE DAR ERRADO COM CENAS BEM ESCRITAS?


As cenas que fluem bem não existem de forma isolada, mas fazem parte de uma seqüência de
cenas que conduzem a história em direção ao clímax. Quando um filme parece não fluir bem,
muitas vezes o problema se encontra em cenas que, embora estejam bem-feitas, não estão bem
conectadas com as cenas seguintes. Isto pode ser especialmente fatal quando se trata de filmes
muito longos. Quando as cenas não fluem bem, nem estão bem conectadas entre si ou com a
espinha dorsal da história, um filme de duas horas parece interminável.
Faça uma comparação: Assista alguns filmes como A Lista de Schlinder, Dança com Lobos ou
JFK(todos com três horas de duração) e compare com outros filmes menos longos como O Último
Imperador, Esperança e Glória, A Insustentável Leveza do Ser e Short Cuts — Cenas da Vida.
Embora os últimos quatro tenham seu brilho, parecem muito longos por terem muitas cenas
paradas e descritivas, em vez de ter utilizado seqüências de cenas para gerar momentum. Quando
as cenas seguem por um caminho definido, são bem construídas e têm um rumo certo, o filme
acaba envolvendo a audiência de tal maneira que ela perde a noção do tempo.
Esperança e Glória é um filme particularmente útil para se entende essas relações existentes

81
Voltar ao Sumário

entre cenas. Trata-se de um filme encantador, cheio de estilo, com um charme especial. Contudo,
é um tanto episódico, pois carece de uma força condutora mais significativa. Apesar de ter cenas
individuais muito boas, elas não se integram bem no sentido de conduzir a história ao seu clímax.
Com isso, não se tem a sensação de que o final está se aproximando, e quando o final efetivamente
chega, as pessoas ficam um pouco perplexas, achando que a resolução parece meio arbitrária.
Algumas vezes as cenas não fluem bem por falta de momentum ou de se ter investido mais na
evolução dramática no contexto de uma determinada cena. Em vez de ir evoluindo em direção a
um ponto determinado, a cena é monótona, estática, descritiva. Há cenas que mostram, por
exemplo, um policial dirigindo uma viatura pelas ruas da cidade, uma mulher escrevendo em seu
diário, um homem trabalhando. Em seguida, outra cena mostra o mesmo policial na delegacia, a
mulher saindo de casa para o trabalho e o homem voltando para casa. Embora exista espaço num
filme para cenas desse tipo, ou seja, cenas meramente de exposição ou cuja única finalidade é
revelar algum personagem, se o peso delas superar o das cenas que fazem a história evoluir, o filme
vai parecer estático. Quando o público gosta dos personagens (o que muitas vezes acontece
comigo), pode ser que tenha um pouco mais de paciência com a falta de evolução dramática e de
direção da história. Mas quando os personagens não são simpáticos, um filme de noventa minutos
parece durar três horas.
Para compreender bem este conceito, vamos analisar dois filmes que despertaram bastante
interesse em 1993: O Sol do Paraíso e Vício Frenético. Os cineastas de ambos os filmes são, sem
dúvida, muito talentosos e têm grande potencial. Entretanto, há muitas cenas nesses filmes que
são estáticas, meramente descritivas e repetitivas. O mesmo ocorre com alguns filmes de Robert
Altman e John Cassavetes. Apesar de serem brilhantes em muitos aspectos, geralmente se nota,
em seus filmes, a falta de elementos dramáticos mais fortes que promovam o desenrolar da história.
Quando a gente gosta dos personagens ou do estilo adotado pelo diretor (o que acontece comigo
nesses dois casos), é possível ter um pouco mais de paciência com a natureza episódica das cenas.
Mas, é sempre bom lembrar que uma cena pode trabalhar em vários níveis diferentes. Mesmo
sendo uma cena fortemente voltada para o personagem ou para a história em si, ela pode, ao
mesmo tempo explorar um certo tema e ajudar a construir uma imagem.

APLICAÇÃO
Quando estiver analisando suas próprias cenas, faça as seguintes Perguntas:
■ Existe uma razão de ser para todas as minhas cenas, dentro da história?
■ A maioria das cenas conduz a história em direção ao clímax?
■ Será que dei uma boa estrutura a cada cena isolada, de modo que todas caminhem
numa determinada direção? Será que todas elas fazem sentido, têm algo a dizer?
■ Será que estou dando muitas informações desnecessárias, antes de realmente
introduzir uma cena? Ou estou deixando para introduzir as cenas na última hora?

82
Voltar ao Sumário

■ Será que estou alongando a cena, mesmo depois de já ter mostrado o que queria,
apesar de não haver mais nada a dizer?
■ Estou bem ciente do fato de que as cenas de um filme retratam basicamente imagens?
Estou me lembrando de que é melhor mostrar uma imagem, mostrar os conflitos e emoções, do
que ficar dando informações verbalizadas?
■ O relacionamento entre as cenas é interessante? As minhas cenas são repetitivas,
monótonas? Ou são intensas, emocionantes, dramáticas, com acontecimentos fascinantes?
■ Será que conseguirei prender a atenção do público, não só pelo sentido geral da história,
mas também pelas cenas isoladas que vão pouco a pouco conduzindo ao clímax?
Todo filme cria um certo ritmo visual e consegue chegar a esse ritmo, em grande parte, através
da dinâmica que vai surgindo entre as cenas e também pela interação de uma com outra. O
contraste entre as cenas, sua estrutura, a intensidade de cada uma, e a dinâmica dos personagens,
tudo isso age em conjunto para construir a história através das cenas.
Se as cenas funcionam bem, você está no caminho certo para criar um roteiro que consiga ter
momentum e clareza. Mas isso não basta. Além de movimento seu roteiro também precisa ter
coesão.

83
Voltar ao Sumário

CAPÍTULO 6

CRIANDO UM ROTEIRO COESO

Toda forma de arte busca um senso de unidade. Seja ao ouvir uma música, apreciar uma pintura,
ou ao assistir a um filme, sempre queremos ter essa sensação de que a obra tem unidade, coesão.
Obras de arte de gêneros diferentes conseguem chegar a essa coesão de diferentes formas. A
música, por exemplo, lança mão de motivos e ritmos recorrentes que unificam uma composição.
Não raro um determinado instrumento marca presença em uma sinfonia, tocando sempre uma
mesma melodia. Em certas passagens, os trombones, os trompetes ou os tímpanos se sobressaem
pela repetição de um certo som ou ritmo. Assim, a composição musical adquire um senso de
unidade, pois percebemos que tem começo, meio e fim, sendo essas repetições que nos ajudam a
perceber que ainda se trata da mesma peça musical.
A pintura também costuma recorrer à repetição de cores e formas para alcançar essa coesão.
Mesmo numa peça artesanal, como uma colcha de retalhos, o mesmo tipo de tecido ou o mesmo
formato é usado justamente com essa finalidade. Já na arquitetura, a coesão é obtida pela repetição
do estilo das janelas e dos arcos, por exemplo, ou mesmo através da utilização de luz.
Com os filmes não poderia ser diferente. Eles também precisam passar um senso de unidade e
integração. Os roteiros se tornam coesos pelo uso de recursos como a antecipação, o desfecho, os
temas recorrentes, a repetição e os contrastes.

ANTECIPAÇÃO DE DESFECHO
Todos nós já vimos algum filme de mistério em que a câmera dá um zoom numa faca, que mais
tarde será usada para cometer um crime, ou mesmo onde um personagem faz alguma ameaça que
só será levada a cabo posteriormente. Estes são alguns dos exemplos mais simples de utilização de
dois recursos: a antecipação e o desfecho.
A antecipação é uma pista fornecida sob a forma visual — ou através de um trecho de diálogo
— que costuma ser utilizada para introduzir determinada ação ou passar alguma informação cujo
desfecho só se dará mais para frente na história.
Normalmente vemos a antecipação e o desfecho serem utilizados em filmes de mistério, como
forma de ajudar o público a acompanhar pistas complexas, que conduzirão à solução do caso.
Esses recursos também podem ser utilizados em comédias, onde a apresentação de uma piada
deve ser feita de tal forma a arrancar o máximo possível de risos na platéia.
Bem no início da trilogia de Star Wars são fornecidas importantes informações sobre o pai de
Luke Skywalker. Essas informações só têm um desfecho quando descobrimos que Darth Vader é
o pai dele. Em Tootsie, ficamos sabendo que houve algum problema com a fita de vídeo, e que o

84
Voltar ao Sumário

programa irá ao ar ao vivo. Essa informação tem seu desfecho quando Michael vê nisto a
oportunidade para se desmascarar, bem no clímax do filme.
A maioria dos filmes utiliza alguma forma de antecipação e desfecho. No filme Uma Aventura
na Africa, acompanhe a maneira como Charlie descreve a fortaleza alemã pela qual terão que
passar, antes de torpedear o Louisa, antecipando o perigo a que estarão expostos ao descerem o
rio.
ALNUTT
Se há algum ponto ao longo do rio em que os soldados alemães certamente estarão de olho é
Shona, pois é lá que existe uma travessia de balsa, bem onde desemboca a estrada velha que vem
do sul.
ROSE
Mas eles não podem fazer nada conosco.
ALLNUTT
Não podem, é? Eles têm fuzis, metralhadoras, talvez até canhões. Basta um tirinho nesta nossa
banheira velha, mocinha, que iremos pelos ares, em pedacinhos.
ROSE
Então passaremos por la durante a noite.
ALLNUT
Ah, não. Isto é que não!
ROSE
E por que não?
ALLNUT
Porque as corredeiras começam um pouco depois de Shona, e nem um louco as atravessaria de
dia, quanto mais à noite.
ROSE
Então passaremos durante o dia. Iremos pela margem oposta, e passaremos o mais rápido e o
mais longe possível de Shona.
E foi exatamente isso que eles fizeram, e tudo ocorreu da forma como haviam previsto.
Aqui vemos antecipação e desfecho sendo utilizados da forma mais direta possível. O diálogo
menciona que algo vai acontecer e, mais tarde, aquilo de fato acontece, exatamente como previsto.
Em E o Vento Levou, enquanto deixam uma Atlanta em chamas para trás, Rhett Butler diz a
Scarlett que ela está assistindo à derrota do velho Sul. E mais tarde o filme confirma as palavras
dele.
Em De Volta para o Futuro, vemos algumas formas inusitadas de utilizar a antecipação e o
85
Voltar ao Sumário

desfecho. Esse roteiro extremamente compacto é talvez um dos melhores exemplos de como a
antecipação e o desfecho podem ser usados para dar coesão, humor e tensão a uma história.
Desenvolver o relacionamento entre o presente e o passado exigiu muito cuidado na hora de
escrever o roteiro. Muito do humor e do sentido de coesão da história decorrem dessa atenção aos
detalhes.
Existem vários tipos de antecipações e desfechos em De Volta para o Futuro.
O primeiro tipo de antecipação é de caráter informativo, pois de certa forma introduz o que vai
acontecer e o que se deve esperar. Muitos diálogos giram em torno de como a máquina do tempo
funciona e de como acontecem as viagens através do tempo. É o próprio professor Brown quem
explica:
BROWN
Eu lhe apresento a minha mais nova invenção. Esta é a maior de todas — a que passei minha
vida toda tentando construir... Se meus cálculos estiverem corretos, quando este carro atingir a
velocidade de 140 km/h, você verá algo incrível acontecer.
E tudo acontece exatamente como ele antecipara. Ao atingirem 140km/h, Marty é arremessado
ao passado. Brown fala do capacitor de fluxo, do relógio, e do tipo de combustível que utilizou, o
que virá a causar toda sorte de complicações mais adiante.
MARTY
Ele funciona com gasolina sem chumbo?
BROWN
Infelizmente não. Ele precisa de alguma coisa que forneça muito mais energia...
Então, Brown aponta para um tanque, onde estão desenhados os símbolos de material radioativo.
Plutônio!
MARTY
Plutônio?!
Mais tarde, vai faltar plutônio para levar Marty de volta ao futuro, e Brown começará a ficar
desesperado, quando percebe quanta energia é necessária para fazer a máquina do tempo funcionar.
BROWN
1,21 gigawatts! Como vou gerar toda esta energia?... A única fonte capaz de fornecer esta
quantidade enorme de energia é um raio... Infelizmente, nunca se sabe quando e onde um raio vai
cair.
Isto nos leva ao segundo tipo de antecipação, no qual um objeto ou
informação é apresentado num contexto e o desfecho só ocorre em outro. Esse tipo de antecipação
é muito sutil, e seu desfecho é imprevisível e surpreendente. Primeiro, fornece ao público algum
dado que parece irrelevante, mas que mais tarde se transforma num desfecho, à medida que vamos
86
Voltar ao Sumário

entendendo seu significado.


Em De Volta para o Futuro, observe como importantes informações sobre a torre do relógio são
apresentadas. No início do filme, quando Marty e Jennifer estão planejando passar o fim de
semana juntos, um ativista, que faz uma campanha para salvar a torre do relógio, entrega-lhes um
panfleto, enquanto grita palavras de ordem: “Salvem a torre do relógio! Salvem a torre do relógio!
O panfleto menciona o dia e a hora em que o relógio parou de funcionar, anos atrás, quando foi
atingido por um raio. Jennifer pega o panfleto e o utiliza para outra finalidade. Em vez de
demonstrar interesse pela informação sobre a torre, ela usa o panfleto para escrever seu telefone e
um recado para Marty: “Eu te amo”. Mais tarde, quando está preso no passado, Marty explica por
que é tão urgente que ele retorne ao futuro. Ele usa o bilhete de amor de Jennifer como justificativa.
MARTY
Mas eu não posso ficar preso aqui. O senhor não entende, doutor? Meus compromissos, minha
vida estão em 1985. Preciso voltar para lá de todo jeito! Minha namorada está me esperando...
Olha o que ela escreveu aqui!
Então, ele mostra o panfleto da torre do relógio com o recado de Jennifer. Neste exato momento,
Marty olha para o panfleto e descobre que existe uma maneira de saber quando e onde um raio
cairá. Ele percebe que existe uma forma de conseguir a energia necessária para transportá-lo de
volta para o futuro. O panfleto da torre do relógio fornece a informação sobre onde e quando o
raio vai cair.
Da mesma maneira que um objeto pode ser utilizado como forma de criar antecipação e
desfecho, os diálogos também podem ser usado para trazer à tona alguma informação, que possa
parecer irrelevante num contexto, mas que se torna de grande importância em outro.
Por exemplo, em 1985, o professor Brown menciona uma data histórica — 5 de novembro de
1955:
BROWN
Este foi o dia em que inventei a viagem no tempo... Eu estava em cima do vaso sanitário,
pendurando um relógio, quando escorreguei bati a cabeça na pia e desmaiei. Quando voltei a
mim, tive uma revelação... uma visão. Gastei 30 anos da minha vida e toda minha fortuna para
transformar essa visão em realidade.
Em uma cena posterior, quando Marty chega à porta da casa do professor Brown, em 1955,
contando uma história incrível sobre a invenção de uma máquina de viajar no tempo, ele nota o
band-aid na testa de Brown, e consegue convencer o doutor de que era verdade que o conhecera
em 1985.
MARTY
Dr. Brown... Olha, este galo na sua testa. Eu sei como aconteceu. Foi esta manhã. O senhor caiu
de cima do vaso sanitário e bateu a cabeça na pia. E foi justamente neste momento que o senhor
teve a idéia de fazer o capacitor de fluxo, que é o coração da máquina do tempo!
87
Voltar ao Sumário

Grande parte da informação sobre o relacionamento entre George e Lorraine é apresentada da


mesma forma, como uma informação aparentemente casual no presente, mas que se torna fonte
de motivação para Marty no passado. Lorraine conta como conheceu George, quando ele fora
atropelado pelo pai dela. Ela continua a contar como havia sido o primeiro encontro deles:
LORRAINE
Nunca vou me esquecer.... Foi na noite daquela tempestade terrível... Seu pai me beijou, pela
primeira vez, na pista de dança — e naquele momento percebi que passaria o resto da minha vida
com ele.
Como havia sido o beijo que provocou o casamento, sem beijo não haveria casamento, nem
Marty teria nascido. Para salvar sua própria vida,
era indispensável que Marty conseguisse fazer com que seus pais se encontrassem. Ao perceber
a influência que Marty poderia ter sobre os acontecimentos futuros, o professor Brown antecipa
ainda mais a gravidade da situação.
BROWN
Você não deve sair de casa. Qualquer coisa que fizer pode ter sérias conseqüências sobre os
acontecimentos do futuro.... Marty, com quem mais você esteve hoje, além de mim?
MARTY
Ah, com quase ninguém... Só encontrei meus pais, por acaso...
BROWN
Você interferiu no primeiro encontro dos seus pais... Muito bem, garoto. Fique na cola do seu
pai, e faça de tudo para que ele leve sua mãe ao baile.
Muitas vezes a antecipação e o desfecho podem ser utilizados apenas com finalidade de humor,
para conferir um senso de integração ao roteiro, sem serem, necessariamente, essenciais para a
história. Por exemplo, em 1985, acompanhamos a campanha de Goldie Wilson para prefeito. Em
1955, vemos como Marty plantou a idéia “política” na cabeça de Wilson.
WILSON
Eu vou ser alguém na vida.
MARTY
É isto aí. Quem sabe vai ser prefeito, algum dia.
WILSON
Prefeito.... Esta é uma boa idéia. Posso me candidatar a prefeito!
Joey, irmão de Lorraine, é mencionado no primeiro ato, numa antecipação cujo desfecho —
bem-humorado — se dará somente no segundo ato. No presente, vemos Lorraine preparando um
bolo, para dar vindas a seu irmão, que deveria ser solto da prisão. Infelizmente ainda não será
desta vez que Joey conseguirá obter sua liberdade condicional. No passado, descobrimos por que:
88
Voltar ao Sumário

A MÃE DE LORRAINE
O pequeno Joey adora ficar no seu chiqueirinho. Ele chega a chorar quando tentamos tirá-lo
de lá. Por isso, deixamos ele lá o tempo todo... parece que isto o deixa feliz.
Mesmo a informação aparentemente sem importância de que George, quando jovem, gostava
de escrever histórias de ficção científica, tem seu desfecho na resolução, quando vemos que ele
acaba de publicar o seu primeiro livro.
Note, em todos esses exemplos, que nada é esquecido, nada é desprezado. Todo elemento que é
apresentado e cria uma antecipação tem seu desfecho em algum momento do roteiro. Tudo que
for necessário para o desfecho final da história é apresentado em algum momento, no início.

TEMAS RECORRENTES
Enquanto a antecipação e o desfecho normalmente mantêm relação com a história, os temas
recorrentes tendem a ser mais relacionados com o tema principal. O tema recorrente vem a ser
alguma imagem, ritmo ou som que se repete ao longo do filme, com o propósito de conferir
profundidade e dimensão à linha de ação dramática, e dar mais textura ao tema principal. Precisa
ser repetido, no mínimo, por três vezes, para cumprir sua função. Os que produzem os melhores
efeitos são os temas recorrentes que se repetem por todo o filme, pois ajudam o público a se
concentrar em determinados elementos.
Um dos temas recorrentes mais fáceis de reconhecer nos filmes é, na realidade, o tema sonoro
— como, por exemplo, aquele som que ouvimos, no filme O Tubarão, toda vez que o tubarão se
aproxima. Este som foi apresentado, a princípio, nos três primeiros minutos do filme. É tocado
cada vez que o tubarão se aproxima, com uma única exceção — quando o tubarão atacou Quint,
Matt e Martin pela primeira vez. Isso faz com que a tensão aumente, por antecipação, cada vez que
ouvimos esse som, pois faz com que possamos prever que o tubarão vai atacar de novo. A única
vez em que o som não foi usado, o medo se tornou ainda maior, por ter sido algo inesperado.
Em Os Caça-Fantasmas, vemos o tema recorrente dos leões que mais tarde se transformam no
demônio Zuul. Esta imagem aparece ao longo do filme sob diversos disfarces: como os leões, na
biblioteca, como o cão feroz na geladeira de Dana, e mais tarde como os demônios que dominam
Dana e Louis. Cada vez que vemos essas imagens, as figuras se alteram, ficando ainda mais sinistras.
No final, Dana e Louis se libertam desses demônios, permitindo que os cidadãos de Nova Iorque
vivam em paz.
Em Cocoon, também há um tema recorrente — golfinhos — que, embora seja algo ainda menos
relacionado à história, acrescenta dimensionalidade e textura ao roteiro. No início do filme, nuvens
se formam e algo estranho ocorre no céu, provocando uma reação dos golfinhos, dentro do mar.
Mais tarde, quando os casulos centenários são tirados da água, os golfinhos estão próximos. Os
golfinhos novamente estão por perto, quando os casulos são devolvidos ao mar, no terceiro ato.
Esses animais são usados no filme como uma metáfora. Sua imagem desperta diversas

89
Voltar ao Sumário

associações que costumamos fazer com esta criatura tão dócil, que nos parece ser o mais “humano”
dos animais marinhos. Os golfinhos têm uma linguagem própria e são conhecidos como animais
pacíficos e afáveis. Cercar os habitantes de Antares de golfinhos estabelece uma ligação subliminar
entre estas duas espécies que, embora muito diferentes, possuem qualidades semelhantes.
Influenciados por essa associação, passamos a encarar os habitantes de Antares como seres
extraterrestre amistosos, pacíficos, merecedores de nossa ajuda. Este tema recorrente nos ajuda a
dimensionar os habitantes de Antares e nos dá pistas sobre o que devemos pensar e sentir a respeito
de sua missão.
O roteiro do filme A Testemunha adquire coesão por intermédio de um tema recorrente
relacionado à lavoura: grãos de trigo. Ao longo do filme acompanhamos várias mudanças no uso
dos grãos de trigo produzidos pela lavoura. Essas mudanças simbolizam as alterações por que
passam John Book e toda a comunidade amish, através de imagens que reforçam a simplicidade e
a pureza dessa comunidade ou que ganham uma força dramática adicional por meio de contrastes.
No início do
filme, vemos os amish atravessando a lavoura a pé, enquanto se dirigem
a um enterro. Eles formam uma comunidade rural que vive em harmonia com a terra, como
notamos pelas imagens de quando emergem da
lavoura alta e caminham em direção à casa. Durante a cena do enterro vemos o pão sendo
colocado sobre a mesa. Aqui, o grão de trigo passou por uma transformação, mas continua sendo
natural, íntegro e nutritivo. Na cidade, há uma cena em que Rachel e John Book comem um
cachorro-quente num fastfood. Nessa cena, o grão, fruto da lavoura, foi corrompido, pois foi
processado e alterado em relação à sua forma normal, natural e saudável, da mesma forma como
Rachel e Samuel se deixaram corromper pela cidade. No segundo ato, a cena em que Rachel
esconde munição dentro da farinha demonstra que harmonia e violência agora estão ligadas uma
à outra, devido à presença de John na comunidade. No terceiro ato, os grãos estocados no silo se
transformam em uma arma mortífera, como símbolo supremo da violência que invadiu esta
comunidade pacífica.

REPETIÇÃO E CONTRASTE
Qualquer coisa que repita uma idéia ou imagem num roteiro pode ser considerada uma
repetição. A repetição pode ocorrer através de imagens, diálogos, atributos dos personagens, da
trilha sonora ou do uso de qualquer combinação destes elementos, para manter a audiência
concentrada numa determinada idéia.
Por exemplo, se você estivesse escrevendo uma história sobre um alcoólatra, você poderia
repetir esta informação sobre o personagem de diversas maneiras. De início, poderia mostrar o
personagem bebendo. Em seguida, poderia mostrá-lo curtindo sua ressaca. Noutras cenas, ele
poderia aparecer em uma casa, cercado por garrafas de vinho vazias, ou cambaleando pela rua, ou
pedindo dinheiro para comprar bebida, ou desesperado por causa de seu vício. Recorrendo ao uso

90
Voltar ao Sumário

de diversas imagens e características, e distribuindo-as como um fio que percorre todo o roteiro,
você manteria sua audiência concentrada no seu foco de interesse.
Da mesma forma que a repetição, o contraste também ajuda a manter o foco do roteiro, pois
exige que resgatemos do passado algo que servirá de contraste no futuro. Somente porque já
tínhamos ficado sabendo que os amish são pessoas pacifistas, que se opõem à violência, é que
podemos entender o motivo de a atitude de John Book — no final do terceiro ato, quando ele
esmurra os punks — ter deixado os turistas chocados, pois era uma atitude que decididamente
nada tinha a ver com os amish.
No filme E O Ventou Levou, a primeira e a segunda parte estabelecem contrastes com o estilo
de vida que o vento levou. Vemos os conotes em Four Oaks, antes e depois; em Tara, antes e
depois; do Sr. O'hara, antes e depois; e as mudanças ocorridas com Scarlett, antes e depois da
guerra.
De Volta para o Futuro utiliza os contrastes para fazer humor — desde o filme de Ronald Reagan
dos anos 50, passando pelos diferentes tipos de skate usados no passado e hoje em dia, e as
mudanças ocorridas em Biff, George e Lorraine — contrastando passado e futuro.
Os contrastes ajudam o roteirista a trabalhar os opostos e ajudam a audiência a fazer ligações,
ao mostrar as diferenças entre as diferentes partes da história. O contraste coloca certos detalhes
em destaque, fazendo com que nós os observemos com mais atenção, por que já tivemos contato
com o seu oposto.
Você pode usar os contrastes para mostrar as diferenças entre personagens, cenas, locações,
texturas e energia. Você pode contrastar personagens — mostrando talvez duas pessoas de tipos
completamente diferentes, como Eddie Murphy e Nicky Nolte, em 48 Horas, ou como vemos em
Atração Fatal, contrastando a morena Beth (a esposa) com a loira Alex (a amante).
O filme O Tubarão contrasta a diversão e a trivialidade de uma festa na praia com a morte de
um banhista, instantes depois. Em A Testemunha, o ambiente, os ruídos e a energia frenética da
cidade são contrastados com a vida pacata dos amish, no segundo ato. Uma Aventura na Africa
contrasta dois personagens completamente diferentes — Rose e Allnutt
— que têm um objetivo comum.
Contrastes, repetições, temas recorrentes, antecipações e desfechos são recursos utilizados com
a finalidade de conferir unidade a uma historia, reforçar sua linha temática, e manter o foco da
audiência sobre aquilo que você deseja que ela se concentre.

DIFICULDADES PARA DAR UNIDADE AO ROTEIRO


O processo de reescrever muitas vezes prejudica a unidade do roteiro.
Várias discussões em torno dos aspectos que precisam ser reescritos se restringem a algumas
partes do roteiro e não o analisam corno um todo.

91
Voltar ao Sumário

Pode ocorrer do diretor querer mudar a cena do assassinato, sem se dar conta de que, ao alterar
o desfecho, será necessário mudar completamente a antecipação de uma cena anterior. Certa vez,
participei de uma reunião na qual o roteirista, o diretor e o produtor me disseram tinham resolvido
acrescentar um assassinato na primeira cena. No entanto, eles não haviam percebido que isto
alteraria toda a linha de ação dramática, dali para frente. Depois de doze horas tentando encaixar
essa nova cena, sem perder as cenas excelentes que vinham a seguir, acabamos desistindo da
alteração.
Problemas com a unificação do roteiro são particularmente comuns em histórias de mistério e
de espionagem. Muitos executivos se recusam a comprar estes tipos de histórias, por acreditarem
que o público não se interessa por elas, uma vez que não costumam ser sucesso de bilheteria. Na
realidade, quase todos nós gostamos de um bom enigma. O que acontece é que muito poucos
deles são interessantes, pois em geral pistas essenciais são omitidas, ou a apresentação e desfecho
das informações não são bem elaborados, de forma que possamos acompanhar a história.
Pense em Mistério no Parque Gorki, A Garota do Tambor e O Casal Osterman. Nenhum deles
teve bom desempenho comercial. A despeito de terem algumas ações emocionantes e intrigantes
linhas de ação dramática, todos estes filmes tiveram problemas relacionados à falta de clareza de
informações. Antecipações e desfechos inadequados contribuíram para seu fracasso.
Dramas, comédias, filmes de faroeste e de ficção científica também precisam ser muito claros
na maneira como apresentam suas informações. O filme A Missão foi alvo de muitas críticas por
uma apresentação e desfecho falhos no que diz respeito à sua geografia. Ora parecia difícil escalar
a montanha, ora parecia fácil. A antecipação das dificuldades no primeiro ato, e seu desfecho, nas
cenas de batalha do terceiro, não parecem se encaixar.
O mesmo tipo de crítica foi feita com relação a Nascido Para Matar e Sem Saída. Alguns críticos
chegaram a comentar que a A Cor do Dinheiro consistia, na realidade, em dois filmes diferentes,
pois algumas reviravoltas do final nada tinham a ver com a apresentação feita no início. A bem da
verdade todos nós já assistimos a filmes de suspense que, a uma certa altura, nos deixam perdidos,
pela falta de coesão de seus roteiros.
Quando se reescreve um roteiro, uma das coisas mais difíceis é conseguir manter sua unidade.
Como bem demonstram os exemplos citados, muitas vezes nem mesmo profissionais brilhantes
conseguem manter um roteiro coeso. Isto exige uma grande atenção aos detalhes, uma análise
exaustiva e constante visão do roteiro como um todo. Todo esse cuidado, contudo, será bem
recompensado — que o digam o sucesso de crítica de público e o Oscar da Academia.

APLICAÇÃO
O melhor momento para se trabalhar estes elementos e incorporá-los ao roteiro é durante o
processo de reescrita. Muitas vezes um roteirista não percebe que já tem em seu roteiro a semente
para um tema recorrente, ou que a antecipação de algum desfecho pode ser aprofundada, visando
dar maior impacto dramático e mais unidade ao filme. Trabalhar com estes elementos exige uma

92
Voltar ao Sumário

análise exaustiva para ver como eles trabalham dentro da sua história.
Quando começar a reescrever seu roteiro, assegure-se de que todas as antecipações tenham
seus respectivos desfechos e vice-versa. Se já reescreveu o roteiro várias vezes, pode ser que
descubra que alguma antecipação simplesmente sumiu do roteiro, à medida que se passa de uma
revisão para outra. Ou que algum desfecho que você achava que tinha escrito, na verdade nunca
foi, exceto na sua cabeça. Portanto, siga cuidadosamente cada detalhe, para evitar que seu roteiro
tenha pontas soltas.
Procure temas recorrentes que possam ser ampliados. Para fazer isto,é interessante analisar os
objetos que utilizou no roteiro. Será que algum objetos poderia ser usado para criar um tema ou
imagem recorrente? Existe algum som que seja parte integrante da sua história e que possa ser
usado como tema? Numa história de mistério, isto poderia ser, por exemplo, o ruído de um sapato,
o que funciona bem tanto como tema, quanto como antecipação e desfecho. Numa história de
ficção científica criar um ritmo repetitivo, como o som utilizado para se comunicar com os
extraterrestres no filme Contatos Imediatos de Terceiro Grau. No final, pergunte a si mesmo:
■ Tudo que tem desfecho tem antecipação em meu roteiro?
■ Tudo que tem antecipação tem desfecho no roteiro?
■ Descobri maneiras originais para transmitir informações sobre antecipações e desfechos?
Será que nas apresentações e desfechos recorri a certos recursos como mudança de funções,
disfarce de informações ou uso de humor?
■ Será que criei ou sugeri temas que o diretor possa aproveitar para integrar visualmente o
roteiro? Pensei visualmente o meu roteiro repetindo certas imagens que lhe darão um senso de
coesão?
■ Contrastei cenas, personagens, ações ou mesmo imagens, para dar mais dramaticidade e
mais impacto ao meu roteiro?
■ Procurei ver o roteiro como um todo, ao invés de me concentrar nas partes, pelo menos em
uma das vezes em que o reescrevi?
Parte do prazer de reescrever um roteiro está justamente na oportunidade de delinear todos
estes relacionamentos. É uma oportunidade perfeita para expandir imagens e temas, intercalando-
os ao longo do roteiro. Porém, a fim de encontrar essas imagens potenciais, que o ajudarão a dar
mais dimensão à história e ao tema, é necessário explorar as linhas temáticas do roteiro. É preciso
se perguntar: “O que isto realmente significa, e como posso construir sentidos, dramaticamente,
através de imagens? A segunda parte deste livro vai examinar como fazer para elucidar e trabalhar
o tema que está por trás da história.

93
Voltar ao Sumário

PARTE 2

O DESENVOLVIMENTO DA IDÉIA

CAPÍTULO 7
94
Voltar ao Sumário

TRANSFORMANDO SEU ROTEIRO EM ALGO VENDÁVEL

Mesmo que você seja um ótimo escritor e que seu roteiro esteja maravilhoso a pergunta que
todos os produtores e investidores fazem é sempre a mesma: “Será que dará um filme comercial?”.
As pessoas têm diferentes idéias sobre o que significa ser comercial. Muitos produtores pensam
que é só uma questão de saber dourar a pílula.
Eles costumam dizer: “Contrate os artistas certos e você terá um filme comercial.” Outros ainda
afirmam categoricamente: “Se conseguirmos nomes como Meryl Streep, Tom Cruise, Robert
Redford ou Barbra Streisand para o elenco, com certeza o filme será comercial.” Entretanto,
infelizmente não existe uma fórmula para o sucesso, pois todos esses artistas também já tiveram
seus fracassos de bilheteria.
Outros pensam que o sucesso depende do assunto abordado pelo filme. Procuram descobrir
coisas que estejam na moda, e tentam tirar proveito de tudo que está em voga. Depois de Platoon,
tinha-se a impressão de que os filmes sobre o Vietnã estavam em alta. Entretanto, Hanoi Hilton
não confirmou essa hipótese. Depois do filme Jogos de Guerra, muitos apostaram em filmes
relacionados ao mundo da computação. Mas D.A.R.Y.L. , que foi lançado pouco depois, não teve
o mesmo sucesso de bilheteria. Depois do estrondoso sucesso de Guerra nas Estrelas, todos
acharam que o ideal seria investir em filmes espaciais. Mas O Abismo Negro e Piratas das Galáxias
mostraram que este não era bem o caso. Muitos apostam que a solução é fazer a adaptação de
algum romance que esteja entre os mais vendidos e a história automaticamente se transformará
num filme de sucesso. De vez em quando isto pode até dar certo. Mas, infelizmente, também
temos alguns exemplos que mostram bem o contrário. O Resgate do Titanic praticamente provocou
a ruína da Marble Arch Productions. A Fogueira das Vaidades foi um retumbante fracasso de
bilheteria, e até filmes baseados em romances super emocionantes como: Coma e A Garota do
Tambor, tiveram resultados comerciais medíocres.
Que tal então apostarmos em continuações? O sucesso de Rocky, Um Lutador, Rocky II, A
Revanche, Rocky III, O Desafio Supremo e Rocky IV parecia estar garantido. Mas vocês se lembram
do fracasso de Tubarão III? Além do mais, os roteiros das continuações acabam se tornando muito
mais difíceis de serem redigidos. O filme Rambo II, A Missão foi lançado muitos anos depois de
Rambo, Programado para Matar, e seu roteiro precisou ser reescrito dezessete vezes, até se tornar
viável. Raramente as continuações conseguem ser tão boas quanto o filme original. Em geral não
têm o mesmo charme, nem a mesma clareza e originalidade da primeira história. Basta nos
lembrarmos de Os Caça-Fantasmas II, Olha Quem Está Falando Também ou de Tubarão III.
Para cada uma dessas fórmulas para um sucesso fácil, existe uma porção de exemplos que prova
justamente o contrário. Entretanto, existem de fato certos elementos, que passaremos a analisar
agora, que parecem ter uma contribuição decisiva para o sucesso de um filme — mesmo quando
o roteirista não é amigo íntimo de Meryl Streep ou de Robert Redford.
95
Voltar ao Sumário

OS TRÊS FATORES FUNDAMENTAIS PARA O SUCESSO


Uma coisa importante, que se deve ter sempre em mente, é que os filmes que se tornam sucessos
de bilheteria não dependem para isso de um único fator. Na verdade, existem três fatores que
podem ser apontados como responsáveis pelo sucesso de um roteiro, e que talvez seja interessante
analisarmos: 1) o apelo comercial; 2) a criatividade, 3) a estrutura do roteiro.
Se apenas um deles estiver faltando, a probabilidade de fracasso é bem maior. Mesmo que você
consiga vender seu roteiro, o filme certamente não alcançará sucesso de bilheteria.
Nos primeiros seis capítulos deste livro, analisamos a estrutura do roteiro. Se a história não
estiver bem alinhavada, se parecer sem sentido, o roteiro enfrentará sérias dificuldades em qualquer
mercado do mundo.
Com certeza todos nos já vimos roteiros que foram vendidos e produzidos mesmo sem ter uma
estrutura sólida. Alguns deles até se saíram bem na bilheteria. Mas estas são exceções raríssimas.
A maior parte dos grandes sucessos de bilheteria — como Guerra nas Estrelas, De Volta para o
Futuro, O Tubarão, Os Caçadores da Arca Perdida, E.T. — O Extra-Terrestre e Os Caça Fantasmas
— tem uma história muitíssimo bem estruturada. Ao longo dos tempos, uma boa estrutura tem
mostrado ser um elemento essencial para o sucesso de um filme — a despeito de qualquer outro
ingrediente apontado como “infalível" para o sucesso comercial.
Contudo, a estrutura por si só não resolve nada, se não for acompanhada da criatividade do
autor. Quando os produtores falam em criatividade, em geral, querem dizer o seguinte:
“O roteiro mostra algo novo? É original? Tem algo de diferente? É exclusivo?”. Ou podem muito
bem estar querendo saber se a história prende a atenção, se é instigante, ou se a idéia por trás da
história tem apelo suficiente para envolver o espectador.
Muitos dos maiores sucessos comerciais são baseados numa idéia original bem-executada.
Sucessos como Os Caça-Fantasmas, Jogos de Guerra, Por favor, Matem Minha Mulher e E. T. — O
Extra-Terrestre não se inspiraram em filmes passados, pois ninguém havia feito nada parecido até
então. Por outro lado, também, ninguém que tentasse reproduzir suas idéias alcançaria o mesmo
sucesso. Portanto, no quesito criatividade, a menos que você tenha alguma idéia muito especial e
consiga passá-la para o papel com clareza e competência, será muito difícil aprimorar o seu roteiro.
Porém, a criatividade por si só não é tudo. É preciso que haja outros fatores capazes de aumentar
o apelo comercial do roteiro e, ao mesmo tempo, atrair o público.
Na comercialização do roteiro também são levados em conta os aspectos que levam as pessoas
a terem interesse em investir nele, bem como aquilo que faz com que o filme pareça ter uma
razoável chance de sucesso. É claro que ter no elenco dois atores como Meryl Streep e Robert
Redford, como no filme Entre Dois Amores, é sempre uma grande idéia. Apesar de Sidney Pollock
ter tido a idéia de fazer essa adaptação há muito tempo, foi só quando conseguiu contratar esses
atores que sua produção se tornou viável. O apelo comercial também pode ser melhorado através
de outros“pacotes”de opções. Um roteiro dirigido por Peter Barry Levinson ou Oliver Stone, por

96
Voltar ao Sumário

exemplo, tem um apelo maior do que se fosse dirigido por algum novato, ou por um diretor
desconhecido. Do mesmo modo, se o roteiro for produzido por Ed Feldman, Saul Zaentz ou
Richard Zanuck já conta com um elemento importante a seu favor.
No entanto, o apelo comercial não está limitado ao simples fato de se ter nomes famosos
envolvidos no projeto ou de ter que ceder aos caprichos de algum executivo. Há certos fatores
comerciais que podem ser identificados e explicados, pois existem certos conceitos fundamentais
que despertam o interesse das pessoas em assistir a determinado filme. E são justamente esses
fatores que pretendemos buscar e desenvolver em um roteiro, a fim de torná-lo mais comercial.
Em geral as pessoas querem assistir a um filme porque existe nele alguma coisa que lhes fala
mais de perto, que tem para elas um sentido especial. De algum modo, as pessoas se identificam
com os personagens ou com a história. Em outras palavras, o filme consegue estabelecer uma
conexão com o público. “Conexão”, essa seria a palavra fundamental para que o filme tenha apelo
comercial. Existem meios específicos para se estabelecer essa conexão. Compreendê-los poderá
ajudá-lo a desenvolver melhor esses fatores que tornarão seu roteiro mais comercial.

COMO ESTABELECER A CONEXÃO COM O PÚBLICO


UMA IDÉIA DE APELO UNIVERSAL

Muitos dos filmes de maior êxito dramático trazem em si certas idéias que atraem as platéias,
em razão de seu apelo universal. Por trás da história, existe uma idéia que seduz a audiência, que
lhe fala diretamente ao coração. Esta idéia faz com que o público se identifique de imediato com
os personagens e situações ali retratadas, em geral porque o tema tem algo a ver com a própria
condição humana. A idéia transmite o significado dos acontecimentos, o que o escritor pensa das
coisas que aconteceram, do motivo porque aconteceram, o que aprendemos com essas experiências,
sobre suas causas e efeitos e sobre o próprio sentido da vida.
A ideia central pode se basear, por exemplo, no significado de alguma experiência vivida, como
a atração sexual por alguém, algo que pode colocar em risco nossa vida familiar (como no filme
Atração Fatal). Ou em como um ato violento pode ter graves conseqüências, que vão muito além
daqueles que o praticam (como vemos no filme Os Imperdoáveis). Ou quem sabe se baseie em
alguma mensagem que o escritor, em vez de escrever um ensaio literário, acha melhor expressar
através de uma história (talvez a ideia de que a decência humana combinada com oportunidade,
pode nos conduzir a um “Bem Absoluto”, como no filme A Lista de Schlinder).
Muitas vezes essa ideia pode ser transmitida de forma bem simples. Uma das idéias mais comuns
em muitos filmes de sucesso é a do “triunfo da vítima”. Tente se lembrar dos diversos filmes famosos
que já fizeram uso desse conceito: Rocky, Karatê Kid — A Hora da Verdade, Os Caça-fantasmas e
Um Lugar no Coração. Esta é uma idéia que funciona bem porque todos nós gostamos de vencer
as adversidades. Portanto, ao acompanhar a vitória de alguém que passa por uma adversidade no
filme, nós também nos sentimos vitoriosos.

97
Voltar ao Sumário

A “vingança” é um outro tema que tem apelo universal. Você já não teve vontade de se vingar
de alguém? Ora, Dirty Harry ou Charles Bronson podem fazer isso por você. Já ficou com raiva de
algum rival no campo amoroso? Medéia pode vingá-lo, pois como todos nós já fomos de certa
forma traídos alguma vez na vida, conseguimos nos identificar bem com este sentimento. Alguma
vez você já não sentiu raiva da atitude ambígua dos norte-americanos em relação à Guerra do
Vietnã? Rambo reduz este problema à sua expressão mais simples -— e ainda se encarrega de dar
uma lição em todos os responsáveis por trair os veteranos da Guerra do Vietnã.
Outro tema comum, mas dotado de um forte elemento de identificação, é o da “vitória do
espírito humano”. Este tema fez muito sucesso em filmes como Um Lugar no Coração e A Cor
Púrpura. Outros que também podemos citar são os filmes premiados pela Academia, Para Lembrar
um Grande Amor e No Silêncio do Amor.
Por que será que assistimos a todos esses filmes sobre pessoas ricas, que passam outras para
trás, para se tornarem ainda mais ricas? A explicação para isso é muito simples: porque a cobiça é
um sentimento bem humano, que todos nós compreendemos e já sentimos alguma vez na vida,
assim como já sentimos inveja, ciúmes e, o campeão de todos os sentimentos em nossa sociedade
de consumo: o desejo de “ter tudo só para nós”.
Alguns temas são particularmente atrativos para certas faixas etárias. Conhecendo as
características demográficas de sua audiência, você pode se concentrar em temas universais, que
tenham apelo para essa determinada faixa etária. Por exemplo, nos Estados Unidos, cerca de 60%
das pessoas vão ao cinema estão na faixa entre treze e trinta anos de idade.
É por isso que existem tantos filmes sobre “se tornar adulto” questões de “identidade”, como
Negócio Arriscado, Porky's — A Casa do Amor e do Riso, Clube dos 5, e Conta Comigo, que
fizeram sucesso. Até um filme como O Reencontro, que não parecia ter muito apelo comercial,
sensibilizou muita gente por ser um filme que tem a ver com nossas experiências e com questões
de identidade pelas quais passamos em uma certa altura da vida.
Outras experiências, embora menos acessíveis ao público em geral, têm um apelo mais forte
para certas pessoas ou grupos. Envolvem temas como “integridade”, cujo exemplo é o filme O
Homem que Não Vendeu sua Alma, ou então, sobre “resolução e completude”, como nos filmes O
Regresso para Bountiful e Num Lago Dourado, ou sobre “redenção”, como em Ausência de Malícia
e O Veredicto, que mostram um pessoa sendo salva ou redimindo sua reputação.
Dá para notar que todos esses temas têm algo a ver com o lado psicológico ou emocional do ser
humano ou com as diversas fases da vida, como o envelhecimento ou a busca de identidade. Os
melhores escritores são também grandes conhecedores da natureza humana. Observam, lêem a
respeito, sabem interpretá-la. Eles estudam o ser humano com o intuito de compreender o que ele
é capaz de fazer e quais suas motivações. Quanto mais bem descritas e retratadas forem suas
personagens, mais próximas da realidade elas serão, e mais apreciaremos vê-las nas telas.

ENCONTRANDO ATRATIVOS COMERCIAIS


98
Voltar ao Sumário

NAS TENDÊNCIAS DO MOMENTO


Os filmes de maior sucesso têm por trás um tema universal que estabelece uma conexão com a
audiência. Entretanto, muitos desses filmes também conseguem essa façanha por estarem bem
sintonizados com o momento. Você se lembra do filme A Síndrome da China, que foi lançado na
mesma semana do desastre ecológico na Ilha das Três Milhas? O acidente nuclear acabou
colaborando para o sucesso do filme. O filme O Reencontro foi lançado bem na época em que a
geração dos anos sessenta já tinha atingido uma idade em que começava a sentir nostalgia desta
era. O filme Jogos de Guerra foi lançado na mesma época em que começavam a aparecer várias
outras histórias sobre jovens obcecados por computadores. Muitos dos filmes de Silvester Stallone
transmitem o clima político conservador dos anos 80.
Como filmes levam muitos anos para serem rodados e distribuídos, a ideia de que um filme
consiga captar uma certa tendência social parece meio incrível. Para se compreender como isso
ocorre, é preciso entender um pouco como os artistas trabalham.
Os artistas estão sempre à frente seu tempo. Eles percebem as correntes e tendências bem no
início e conseguem descobrir uma maneira de transmitir e expressar, através de seu trabalho,
movimentos ainda latentes, embora já presentes no subconsciente da população.
No início dos anos 80, tanto a política quanto os sitcoms voltaram sua atenção para a questão
do núcleo familiar. Lembre-se, por exemplo, das séries The Cosby Show, Caras e Caretas, The
Jeffersons, Growing Pains e, alguns anos depois, Roseanne e Um Amor de Família.
O que havia eram apenas variações em torno do mesmo tema. Já em meados dos anos 80, à
medida que os filhos da geração dos baby-boomers cresciam e seus pais galgavam posições de
prestígio dentro da indústria cinematográfica, notamos um aumento na produção de filmes sobre
crianças (como Presente de Grego, Olha Quem Está Falando, Mais ou Menos Grávida, Três
Solteirões e um Bebê, Arizona Nunca Mais, Ela Vai Ter Um Bebê, Um Tira no Jardim de Infância,
e mais recentemente, Uma Babá Quase Perfeita).
Nos anos 90, novos temas emergem, tanto na política como na área do entretenimento: o tema
ecológico (como o filme sobre Chico Mendes, Amazônia em Chamas); a nao-violência (Os
Imperdoáveis); as crises existenciais dos jovens dos anos 90 (Caindo na Real); as questões
enfrentadas por quarentões que vivem nas grandes cidades (Grand Canyon — Ansiedade de uma
Geração); ou o desejo de curar velhas feridas que marcaram a geração dos baby-boomers e a
consciência nacional norte americana (Entre o Céu e a Terra).
Dentre os filmes de sucesso, grande parte dos que se baseiam em alguma tendência ou tópico
específico aumenta seu apelo comercial ao enfatizar também o lado pessoal da história.

TORNANDO A HISTÓRIA MAIS PESSOAL


A tentativa de estabelecer uma conexão com o público também possui um lado pessoal que, por
sua vez, é composto por dois elementos: o descritivo e o prescritivo. O elemento descritivo é

99
Voltar ao Sumário

aquele que nos mostra “como esse lado pessoal é de fato". O elemento prescritivo é aquele que
mostra “como gostaríamos que ele fosse”. Para obter sucesso pode tirar partido de qualquer desses
elementos, ou mesmo de ambos.
Os roteiros voltados para esse elemento descritivo mostram, com precisão e realismo, como um
determinado tipo de personagem vai agir e reagir em certas situações. Todos já vimos filmes em
que as reações dos personagens nos parecem bastante “reais”. Ao assistir filmes como Porky's —A
Casa do Amor e do Riso, muitos dizem: “Puxa! É assim mesmo que agem os garotos dessa idade”.
Outro exemplo seria o filme Conta Comigo, que faz um retrato honesto de um grupo de adolescentes
de doze anos mostrando seus medos e inseguranças.
O sucesso de muitos filmes feitos para televisão depende justamente dessa capacidade de se
retratar com precisão os personagens e suas emoções. Quando assistimos a filmes como Cama
Ardente, Para Lembrar um Grande Amor, Heartsounds, Em Busca de Justiça ou Adam; vemos
como tudo soa verdadeiro. Todos esses filmes souberam descrever pessoas com uma precisão
admirável e fizeram sucesso justamente por sua capacidade de reproduzir tão bem as vivências do
público.
Já os filmes prescritivos mostram nossos ideais. Muitos deles são filmes de herói. O herói
raramente tem medos, incertezas, ou inseguranças (coisas que qualquer um de nós sentiria, se
passássemos pela mesma situação). Na verdade, ele age como gostaríamos de agir, se pudéssemos.
Isso faz com que as pessoas se identifiquem com o herói, mesmo sabendo, o tempo todo, que é
algo que não faz parte da realidade.
Esses elementos descritivos e prescritivos podem ser trabalhados de três maneiras diferentes: a
física, a psicológica e a emocional. Quando trabalhamos com personagens específicos, é possível
dar maior profundidade à dimensão descritiva, ao atribuir características físicas ao personagem.
Nesses casos, pergunte a si mesmo: “Numa situação como essa, como meu personagem se pareceria,
se fosse real?” Caso se tratasse de um adolescente de quinze anos, vivendo seu primeiro amor, ele
provavelmente ficaria corado com facilidade, talvez fosse meio desengonçado, usasse óculos ou
mesmo algum penteado “da moda” que não combinaria nada com ele. Psicologicamente, ele
provavelmente seria inseguro ou tentaria imitar algum esportista campeão, por não confiar em
suas próprias qualidades.
Emocionalmente, ele talvez fosse um pouco irritadiço ou bravo, ou do tipo solitário, ou mesmo
daqueles que riem exageradamente.
Se você estiver escrevendo um filme do tipo prescritivo, seu personagem pode ser um líder
estudantil ou um herói do futebol, por exemplo. Fisicamente, ele será alto, forte, bonitão, daquele
tipo que sempre parece maravilhoso, não importa o que esteja vestindo. Psicologicamente, ele
deve ser autoconfiante, não se preocupar com nada e acreditar que é capaz de fazer tudo o que
quiser. Emocionalmente, ele será firme como uma rocha, invulnerável ao medo e à dor. Nada
consegue deixá-lo desconcertado.
Muitos filmes recorrem a esses elementos para estabelecer uma conexão com o público, seja

100
Voltar ao Sumário

criando personagens descritivos e prescritivos, seja criando para o personagem principal um arco
de transformação que evolui do descritivo para o prescritivo, do incerto para o heróico (como nos
filmes Rocky e Karatê Kid). Esta é a razão pela qual os filmes que retratam o "triunfo da vítima”
são tão populares, pois não só trabalham temas universais, que todos podem compreender, como
também conectam o público à trajetória de transformação pessoal de um personagem.

UNINDO PELOS RISCOS


É bem comum ouvir os produtores ou diretores perguntarem ao roteirista: “Mas, afinal, o que
está em jogo aqui?” Se o risco não estiver claro, se não existir uma razão para se preocupar com
destino do personagem, o público não conseguirá fazer a ligação entre a sua própria experiência e
a do personagem.
Os riscos podem ser pensados em termos da própria sobrevivência, ou seja, de tudo o que é
preciso fazer para sobreviver neste mundo. As necessidades básicas envolvem ter o suficiente para
comer e beber, um teto sobre nossas cabeças e uma relativa segurança. Muitos filmes colocam a
satisfação dessas necessidades elementares em perigo, a fim de aumentar o nível de identificação e
preocupação da audiência. Contudo, existem muitas outras coisas que podem ser postas em risco
e que fazem com que a audiência possa estabelecer conexões com o filme nos mais variados níveis.
O famoso psicólogo Abraham Maslow criou uma hierarquia de sete itens para descrever as
necessidades humanas, que explica e esclarece aquilo que nos move, o que buscamos e o que está
em risco quando não conseguimos obter o que desejamos. Muitos filmes de sucesso falam
diretamente a uma ou mais dessas necessidades. São elas:
1 - Sobrevivência. Muitos filmes bons giram em torno do tema sobrevivência. Trata-se de um
instinto básico, comum a todos os animais. Todos nós queremos sobreviver e fazemos coisas
incríveis para conseguir isso. Vários filmes de ação e aventura fazem sucesso pelo fato de que todos
nos identificamos com as situações de vida ou morte neles representadas. O filme Amargo Pesadelo
tem nesse sentido um considerável apelo, devido às situações limítrofes que retrata. Os filmes de
James Bond são outro exemplo notório em que o personagem está sempre enfrentando riscos.
Muitos filmes sobre sequestros ou que mostram mulheres em perigo fazem sucesso por nos
identificarmos com circunstâncias de luta pela sobrevivência.
Uma grande parte do drama fala diretamente a esse instinto de sobrevivência, um instinto
básico que todos compreendemos. Logo, os filmes que mexem com esse instinto costumam dar
certo, pois são essencialmente dramáticos. Neles, o conflito sempre é bem claro, há sempre muita
ação e momentum, e por isso o filme nos envolve e nos conduz a uma total identificação com a
situação ali mostrada.
2 - Proteção e segurança. Uma vez atendidas as necessidades básicas de sobrevivência, as pessoas
lutam para ter um lugar em que possam ter privacidade, segurança e proteção. Poderíamos chamá-
lo de lar ou paraíso, um lugar onde se possa estar a salvo de todos os riscos. Por isso portas são
trancadas à noite, fortalezas são construídas, exércitos montam guarda: para que todos possamos

101
Voltar ao Sumário

nos sentir seguros. Muitos filmes — como Um Lugar no Coração; Minha Terra, Minha Vida\ A
Viagem dos Condenados — lidam com essa busca por segurança e proteção. O mesmo pode ser
dito do seriado de TV O Fugitivo, bem como de inúmeros filmes de faroeste, nos quais os pioneiros
buscam encontrar um paraíso protegido.
3 - Amor e relacionamento. Uma vez que as pessoas já tenham um lar, é natural que queiram se
sentir aceitas por um grupo. Essa necessidade de aceitação pode representar tanto o anseio por
fazer parte de uma família quanto de uma comunidade. O ser humano precisa se relacionar e essa
necessidade é um tema abordado em vários filmes, das mais diferentes maneiras.
Em Um Lugar no Coração, Edna luta para preservar sua família, mas essa família não se restringe
a seus filhos. Nela também estão incluídos Moses, um homem negro; Will, um deficiente visual;
bem como a cidade onde ela morou por tantos anos. Em De Volta para o Futuro, não só a
sobrevivência de Marty, mas também a própria família estão em risco.
Filmes como Porky's —A Casa do Amor e do Riso; Loucademia de Polícia; My Fair Lady, e
mesmo A Testemunha também desenvolvem esse tema da busca de aceitação por determinado
grupo.
Certos filmes falam da busca do par perfeito ou da necessidade de se ter alguém. Outros giram
em torno de histórias voltadas para a formação de uma família e do anseio por calor humano,
aceitação e amor. Vemos isto em muitos sitcoms, como os seriados Cara e Caretas, The Cosby
Show, Os Pioneiros e All in the Family.
4- Apreço e auto-estima. Enquanto a necessidade de amor e relacionamento está ligada a uma
aceitação incondicional por parte de outros, auto-estima e respeito são coisas que precisam ser
conquistadas. As pessoas gostam de ser admiradas e reconhecidas por suas contribuições e
capacidade. Muitas vezes isto significa que a aceitação num grupo se dá em função das coisas que
a pessoa realizou. Podemos notar isso em várias situações, como o respeito conquistado por Luke
Skywalker, no final de Guerra nas Estrelas, ou as várias recompensas que James Bond recebe por
ter êxito em suas missões, ou pela confiança que Celie conquista no final do filme A Cor Púrpura.
Diversas histórias que falam de integridade, tais como Ghandi ou Martin Luther Kingjr, tratam
dessa necessidade, assim como as séries de televisão transmitidas no período da tarde, nas quais a
história em geral giram em torno de como ganhar um prêmio, ou completar com êxito algum
projeto científico, ou mesmo ser aceito como membro de um grupo. Entre os Movies of the Week,
filmes televisionados, encontramos alguns, como The $5,20 an Hour Dream, que também abordam
necessidade de superar discriminações e o desejo de alcançar sucesso e obter reconhecimento.
5 - A necessidade de conhecer e compreender. Todos nós somos curiosos. Temos um instinto
natural de querer saber como as coisas funcionam, como elas se encaixam. Gostamos de tentar
entender as coisas, de adquirir conhecimento que nos permita realizar coisas fantásticas. Lembre-
se de vários filmes sobre viagens no tempo, como De Volta para o Futuro, Um Século em 43
Minutos e A Máquina do Tempo, que mostram alguém tentando encontrar uma forma de viajar
através do tempo.

102
Voltar ao Sumário

Muitos filmes sobre cientistas (malucos ou não) também trabalham em cima dessa necessidade,
como Frankenstein e Madame Curie Histórias de detetive nos fascinam, pois retratam bem essa
nossa curiosidade natural de buscar respostas. Chinatown, Relíquia Macabra, e Intriga Internacional
são exemplos de filmes que nos envolvem nessa busca.
6 - A estética. Mesmo sentindo-se confiantes, seguras e amadas, as pessoas sentem necessidade
de encontrar um equilíbrio na vida, um senso de ordem e por isso buscam se ligar a algo capaz de
transcendê-las. Isto pode ser encarado como uma necessidade estética ou espiritual, que muitas
vezes pode levar as pessoas a buscar experiências religiosas (como nos filmes A Canção de
Bernadette e Joana D'Arc), ou experiências com a natureza (como em Os Lobos Nunca Choram),
ou mesmo uma combinação de experiências de caráter artístico e religioso, como no premiado
filme Amadeus.
Esse tipo de necessidade é a mais difícil de se trabalhar, por ser a mais abstrata e talvez a menos
universal. Entretanto, é reconhecidamente uma necessidade humana, e os filmes que conseguem
torná-la palpável, compreensível, costumam fazer sucesso.
7 - Realização pessoal. A necessidade de nos expressar, de dizer que somos, de realizar nosso
talento e habilidades é algo intrinsecamente humano. Quem escreve certamente consegue perceber
isto. Muitos filmes sobre escritores ou atletas que enfrentam dificuldades na luta por uma carreira
fizeram sucesso, pelo fato de que todos nós torcemos para que estas pessoas vençam. No entanto,
a realização pessoal é mais do que a simples busca pelo sucesso, pois está ligada à necessidade de
auto-expressão, quer a pessoa seja ou não publicamente reconhecida ou recompensada pelo que
fez. Uma coisa é a pessoa pintar um quadro na esperança de ficar famosa ou ganhar algum prêmio
por isso; outra, bem diferente, é pintar simplesmente porque a pessoa sente que tem que pintar
aquele quadro, a despeito de qualquer reconhecimento por sua obra.
Em geral pensamos que essa necessidade de realização pessoal está ligada a artistas ou atletas.
Contudo, essa necessidade pode se aplicar a outros tipos de personalidades. Um comediante tem
que ser engraçado, um médico tem que curar, um aviador tem que voar. Estas pessoas se sentem
vivas quando estão fazendo aquilo de que gostam. E este ímpeto que as move, quando mostrado
num filme, sempre é algo que nos faz torcer pelo personagem. Pense em quantos filmes você já
notou esse ímpeto: o sonho de dançar, em Momento de Decisão; o desejo de Kimberly de mostrar
sua capacidade como repórter, em Síndrome da China; e a obstinação por corridas, no filme
Carruagens de Fogo.

AUMENTANDO OS RISCOS
Em qualquer filme, para aumentar o envolvimento, você pode trabalhar com essas necessidades
de diversas maneiras. Você pode aumentar o envolvimento, por exemplo, incluindo situações em
que uma ou mais dessas necessidades corram risco. Note como isso foi feito no filme Um Lugar no
Coração, que lida com vários tipos de necessidade, como proteção, segurança, sobrevivência,
amor, relacionamento e realização pessoal. Quanto mais dessas situações de risco você puder

103
Voltar ao Sumário

introduzir num filme, maiores serão suas chances de fisgar a atenção da audiência, dando-lhes
algo de universal para que se identifique com sua história.
Uma outra forma de aumentar os riscos e o envolvimento é fazer com que, no decorrer da
história, o objetivo perseguido se torne inalcançável, sugerindo ao público que o personagem
jamais conseguirá atingí-lo. Mesmo os objetivos mais concretos, passíveis de serem atingidos,
nunca se alcançam com tanta facilidade. Assim, se nos identificarmos com uma certa necessidade
do personagem e, ao mesmo tempo, tivermos dúvidas de que ele conseguirá satisfazê-la, nossa
tendência é de encarnar a saga ali retratada, o que aprofunda ainda mais o vínculo emocional
entre a audiência e o personagem.
Quanto mais sentirmos a determinação do personagem em atingir determinado objetivo, mais
nos sentiremos ligados a ele. Aumentar os riscos consiste nisto: trabalhar com as várias emoções
que possam estar ligadas à busca de atingir esse objetivo.
Existem muitas emoções envolvidas nessa busca: raiva, medo, alegria, insegurança, desespero e
esperança. Quanto maior o espectro emocional que você atribuir aos seus personagens, mais
próximos eles se tornarão da audiência. Muitos filmes são muito diretos e mostram apenas o
necessário para atingir um determinado objetivo. Em conseqüência, a audiência se sentirá distante
dos personagens, o que dificultará sua identificação com os riscos ali retratados.
Ao unir emoção e ação, os riscos parecerão maiores, pois o público terá maior facilidade de se
identificar com eles.
À medida que você sobe na escala de necessidades, o tipo de filme que pretende fazer se modifica.
Necessidades de sobrevivência requerem filmes orientados para a ação. Esse tipo de necessidade
costuma ser essencial para os filmes de ação e aventura, filmes sobre desastres, filmes de terror, e
para a maioria dos filmes de faroeste. Já os filmes que retratam necessidade de relacionamento e
realização pessoal normalmente possuem um conteúdo emocional maior. Eles tendem a ser mais
relacionais, menos violentos, e muitas vezes incluem uma dose de humor e calor humano.
Necessidades estéticas ou a sede de saber normalmente vão se apoiar mais nos traços filosóficos
dos personagens. Portanto, o filme será mais temático, talvez com mais diálogos, e provavelmente
mais abstrato. O típico personagem desse filme costuma pensar, ponderar e tirar suas conclusões,
o que pode muitas vezes deixar o filme maçante ou muito carregado de diálogos. Entretanto, se
conduzidas com habilidade, essas histórias podem se tornar muito interessantes e até mesmo
fascinantes.

COMO COMUNICAR O TEMA


Uma vez que você já saiba o que deseja dizer, precisa descobrir como irá dize-lo. O tema perde
todo o interesse quando se tenta transmitir seu sentido através de diálogos muito compridos, ou
explicá-lo em palavras, em vez de expressá-lo de forma dramática. Embora algumas linhas de
diálogo, aqui e ali, possam de certa forma ajudar a comunicar tema (sugiro assista de novo ao filme

104
Voltar ao Sumário

Uma Janela para o Amor, para observar como


os diálogos podem expressar o tema da identidade, sem se perder num palavrório sem fim), o
tema encontrará mais expressão se optarmos por alternativas mais cinematográficas.
O tema pode ser revelado através das escolhas que os escritores fazem em suas histórias. Todo
acontecimento traz em si um sentido e de uma certa maneira transmite o que o escritor pensa
sobre o porquê daquilo haver acontecido.
Decidir que um personagem vai ser assaltado, por estar no lugar errado, na hora errada transmite
a idéia de que a vida é algo que escapa à lógica, é puro acaso e coisas assim acontecem. Escolher
personagens que demonstrem compaixão pelos outros transmite a idéia de que você acredita na
possibilidade de um mundo onde existe amor e compreensão. Mostrar personagens cujos caminhos
constantemente se cruzam e se encontram mostra o que você pensa sobre o destino.
O tema também pode ser revelado pelas decisões que seus personagens tomam no decorrer da
história. O fato de um personagem resolver enfrentar o vilão demonstra coragem, integridade e
um certo senso de justiça. Um personagem que, a uma certa altura da história, decide reconstruir
sua vida, sugere temas como transformação e crescimento pessoal. Outros temas como corrupção,
cobiça, covardia e desilusão também podem ser facilmente revelados, através das ações dos
personagens.
Um dos métodos mais eficientes para a comunicação de temas reside na escolha de imagens por
parte do roteirista e, mais tarde, do próprio diretor. Como o filme é uma mídia visual, as imagens
escolhidas contribuem para acrescentar novas camadas de sentido à sua história. Você pode
contrastar imagens de claro e escuro, numa alusão ao tema do bem e do mal; ou contrastar espaços
amplos e apertados, para confrontar as idéias de opressão e liberdade.
Em Amargo Pesadelo, imagens da civilização são contrastadas com imagens da vida primitiva,
procurando mostrar como é dura a vida que os homens enfrentam nesses locais mais isolados.
Já o filme Taxi Driver comunica sua visão da vida por meio da imagem de uma cidade cinzenta
e solitária.
Corpos Ardentes utiliza imagens de calor e fogo, para transmitir a idéia de uma paixão fora de
controle.
Em Atração Fatal, Alex mora num loft em um bairro infernal da cidade. Seu apartamento é um
labirinto de aposentos e colunas, refletindo bem a imagem dos atributos sombrios e esquivos que
constituem sua própria personalidade.
Em O Fugitivo, imagens da cidade como um imenso labirinto mostram como é fácil alguém se
esconder e desaparecer nestes espaços.
Embora seja função do diretor criar a visualização dessas imagens, é função do roteirista criar
um roteiro cinematográfico que possa ser traduzido em imagens.

105
Voltar ao Sumário

A GRANDE QUESTÃO DE COMO TORNAR UM ROTEIRO COMERCIAL


Em seu livro Adventures in the Screen Trade, William Goldman afirma: “No fundo, ninguém
sabe nada’’. É exatamente assim que muitos produtores e executivos se sentem neste ramo, quando
tentam descobrir o que pode ter apelo comercial. Tudo parece ser muito subjetivo. Algumas vezes,
o máximo que conseguem dizer é: “Sei se o filme é comercial quando bato os olhos”.
É evidente que é muito mais fácil perceber se um filme é comercial depois que ele faz sucesso.
Com certeza, não pretendo sugerir que tudo se resume a uma questão de pesquisa, análise, ou
domínio do perfil psicológico do público, para que um filme venha a ter apelo comercial.
Os departamentos de pesquisas dos estúdios estão aí para provar que não é bem assim, uma vez
que não foram poucas as pesquisas que “provaram” que ninguém iria assistir Star Wars ou que E.T.
— O Extra-Terrestre tinha pouquíssimo apelo comercial, ou que eram ínfimas as chances de que
Crocodilo Dundee se saísse bem com o público americano.
Assim, como ninguém sabe ao certo o que assegura o sucesso comerciai de um filme, existe,
infelizmente, uma certa má vontade em se analisar quais são de fato os elementos capazes de
torná-lo comercialmente interessante. Isso às vezes leva roteiristas famosos a dizer que só queriam
se expressar, sem se importar se estão de fato se comunicando com o público. Ou pode levar um
executivo a deixar sobre os ombros do diretor, do roteirista e dos atores toda a responsabilidade,
na esperança de que eles conheçam o suficiente acerca do negócio a ponto de conseguir tornar o
roteiro comercialmente viável. E com tanta gente volvida é fácil um profissional deixar de lado
aquelas suas idéias e intuições preciosas, que poderiam ajudar a fornecer valiosas pistas sobre
possível reação do público.
Em última análise, o tal “apelo comercial” tem muito a ver com o tipo de envolvimento que
cada um tem com o projeto. Caso tenha se apaixonado pela história, ou sinta uma ligação pessoal
mais profunda com o assunto, os personagens ou mesmo sua trajetória, por certo você já deu mn
passo na direção de descobrir o que significa esse tal "apelo comercial”.
No fundo, os executivos que dizem que tudo é subjetivo provavelmente estão certos. Tudo
começa com nosso próprio envolvimento com uma determinada história e com nossa capacidade
de transmitir aos outros o que sentimos e a motivação que nos faz desejar compartilhar essa
história tão especial com o público.

APLICAÇÃO
Descobrir como estabelecer uma conexão com o público costuma ser difícil. Os aspectos que
conferem apelo comercial a um filme nem sempre são claros. Muitas vezes essa dificuldade tem a
ver com o tema, que está confuso ou mal desenvolvido. Ou pode ser que haja vários temas
conflitantes entre si e, nesse caso, o que precisa ser feito, ao reescrever o roteiro, é escolher aquilo
que realmente você deseja dizer.
Uma forma de explorar esses elementos é utilizando uma técnica denominada agrupamento.

106
Voltar ao Sumário

Pense na idéia principal de seu filme: “Um jovem volta ao passado numa máquina do tempo”;
ou “alienígenas chegam à Terra”; ou ainda “Homens caçam um tubarão assassino”. Escreva essa
idéia no centro de um círculo, e comece a imaginar todas as associações que você pode fazer com
ela. Faça um levantamento dos aspectos Pessoais (descritivos e prescritivos). Essa idéia tem algo a
ver com alguma tendência social? O que há de universal nela? Ela o faz se lembrar de outras
histórias?
Se usássemos essa técnica, agrupando idéias ao redor do tema básico do filme O Tubarão,
teríamos um gráfico parecido com este desenhado a seguir.

Conforme seu tema for se tornando mais claro, pergunte a si mesmo:


■ Posso resumir meu tema numa única frase? Minha história contribui para o meu tema e vice-
versa?
■ Para expressar o tema, estou usando mais os personagens e a ação, ou colocando mais ênfase
nos diálogos? Minhas imagens estão ajudando a expandir o tema? Tenho certeza de que não usei
os personagens para “dar algum recado” ao público?
■ Estou disposto a descartar algum tema secundário, se ele conflitar com o tema principal da
107
Voltar ao Sumário

história?
■ Já fiz uma análise das ligações pessoais que tenho com o tema? Tentei imaginar as reações do
público, levando em consideração seu perfil demográfico?
Depois que você começa a entender as prováveis relações entre o público e seu material, entre
sua história e seu tema, ainda terá que explorar mais uma relação, a mais profunda em uma história:
a criação do mito, tema do nosso próximo capítulo.

108
Voltar ao Sumário

CAPÍTULO 8

A CRIAÇÃO DO MITO

As experiências humanas são semelhantes. Como seres humanos, compartilhamos da mesma


jornada de crescimento, desenvolvimento e transformação. No fundo, vivemos as mesmas histórias,
sejam elas relacionadas à busca do par perfeito, à volta ao lar, à busca de realização, à luta por
nossos sonhos e ideais. Qualquer que seja nossa cultura, existem histórias que são universais e que
servem de base para nossas histórias pessoais. As ciladas podem ser diferentes, as reviravoltas da
história podem variar de uma cultura para outras, os personagens podem assumir as mais diversas
formas, mas, na essência, a história é sempre a mesma, derivada das mesmas experiências
intrinsecamente humanas.
Dentre os filmes de maior sucesso, muitos são baseados nessas histórias universais. Eles tratam
dessa jornada comum ao ser humano. E nós nos identificamos com os heróis porque já fomos ou
fizemos algo de heróico algum dia (elemento descritivo) ou porque desejaríamos poder fazer o
que o herói faz (elemento prescritivo). Quando James Bond salva a humanidade, ou Shane salva a
família de um humilde rancheiro das garras de pistoleiros contratados, ou quando os membros da
seita amish salvam John da perseguição de Schaeffer, nós nos identificamos com o personagem e
nosso subconsciente reconhece que a história tem alguma relação com nossa própria vida. São
sempre as mesmas histórias, como nos contos de fadas ou nas histórias da procura de tesouros ou
do príncipe que salva a princesa. E, se repararmos bem, não são muito diferentes da história do
homem das cavernas que enfrenta um enorme bisão, ou à de um escravo romano que conquista a
liberdade graças à sua coragem e habilidade. Estas são nossas histórias — pessoais e coletivas — e
a maioria dos filmes de sucesso incorporam essas experiências universais.
Algumas são histórias de "busca" , que mexem com o nosso desejo de
encontrar algo raro e precioso, como alguém em busca de um tesouro. Essa busca pode estar
voltada para valores externos, como trabalho, relacionamento, sucesso, ou valores internos, como
respeito, segurança, autoexpressão e amor. Mas, no fundo, tudo reflete a mesma busca.
Já outras são histórias de “heróis”. Elas surgem da própria experiência
humana de superar as adversidades, assim como do desejo de realizar coisas grandiosas.
Torcemos pelo herói e nos realizamos quando ele atinge
seu objetivo, por que sabemos que sua caminhada, sob vários aspectos, confunde-se com a
nossa.
Chamamos a estas histórias de mitos. Os mitos são aquelas histórias comuns que encontramos
na base da existência humana. Podem ser encontrados em todas as culturas e em todo tipo de
literatura, desde a mitologia grega até os contos de fada, lendas populares e histórias de caráter

109
Voltar ao Sumário

religioso
O mito é uma história “mais do que verdadeira”. As histórias em geral são verdadeiras porque
foram vividas por alguém, em algum lugar em alguma época, ou seja, são verdadeiras por serem
baseadas em fatos.
Já um mito é mais do que verdadeiro porque, de certa maneira, é vivido por todos nós. É uma
história que tem a ver com todos nós e por isso fala aos nossos corações.
Alguns mitos se originam de histórias verdadeiras que, no entanto, atingem proporções míticas
pelo fato de estarem ligadas a pessoas excepcionais, que parecem ter vivido de uma forma mais
intensa que a maioria dos mortais. Figuras como Martin Luther King Jr, Mahatma Gandhi,Sir
Edmund Hillary e Lord Mountbatten, personificam esse tipo de jornada com a qual nos
identificamos, pois já vivemos experiências semelhantes, ainda que numa escala mais reduzida.
Outros mitos giram ao redor de personagens de faz-de-conta, que conseguem sintetizar para
nós um conjunto de muitas das nossas próprias experiências. Alguns desses personagens de faz-
de-conta se assemelha aos personagens que vemos em nossos sonhos ou podem ser uma fusão de
vários tipos de personagens que já conhecemos.
Em todos os casos, o mito é sempre “uma história oculta dentro de outra história”. Na verdade,
trata-se de um arquétipo universal que nos mostra que a história de Gandhi rumo à independência
da Índia e de Sir Edmund Hillary rumo ao topo do Everest têm muito em comum, em termos de
características dramáticas. E essas mesmas características se repetem nas histórias de Rambo, de
Indiana Jones, de Luke Skywalker e de
tantos outros heróis.
No livro O Herói de Mil Faces, Joseph Campbell traça os elementos que compõem o herói
mitológico. Esses critérios foram aplicados ao filme Guerra nas Estrelas, pelos famosos
conferencistas Chris Vogler e Thomas Schlesinger, bem como em conversas entre Joseph Campbell
e Bill Moyers, no seriado da PBS, The Power of Myth (O Poder do Mito). O mito embutido na
história é a razão pela qual milhões de pessoas assistem a este filme milhões de vezes.
As histórias de heróis mitológicos possuem certas características que são comuns em todas elas.
Todas mostram quem é o herói, o que o herói busca, e como se dá a interação entre história e
personagem de modo a criar uma transformação. A caminhada rumo ao heroísmo é um processo
e este processo universal forma a espinha dorsal de várias histórias específicas, como as da trilogia
de Guerra nas Estrelas.

O HERÓI MITOLÓGICO
1. Na maioria das histórias de heróis, quando o herói é apresentado ao público está inserido
num ambiente mais do que convencional, num mundo rotineiro, fazendo coisas rotineiras.
Geralmente o herói começa como alguém bem comum: alguém inocente, jovem, simples ou
humilde. Em Guerra nas Estrelas, quando vemos Luke Skywalker pela primeira vez, ele está

110
Voltar ao Sumário

entediado por ter que desempenhar sua função, que consistia em arrumar novos droids para
trabalhar. O que ele queria, na verdade, era deixar tudo aquilo e se divertir um pouco. Queria sair
de seu planeta e ir para a Academia, mas não podia.
Esta é a típica apresentação da maioria dos heróis mitológicos. É assim que os heróis nos são
apresentados, antes de receber o seu chamado à aventura.
2. Em seguida, algo de novo acontece na vida do herói. É uma espécie de catalisador que dá o
pontapé inicial na história. Algo como o ataque alemão ao barco African Queen (do filme Uma
Aventura na África) ou o holograma da princesa Leia, em Guerra nas Estrelas. Independentemente
da forma que assuma, é um novo ingrediente que conduz o herói em direção a uma jornada de
extraordinária aventura. Assim, com este chamado à aventura, o desafio está lançado e surge um
novo problema que exige uma solução.
3. Muitas vezes, o herói não quer embarcar na aventura. Ele se recusa a atender a esse chamado,
fica relutante, com medo do desconhecido, inseguro, sentindo-se incapaz de enfrentar o desafio.
Em Guerra nas Estrelas, Luke recebe um duplo chamado à aventura: primeiro, o chamado da
princesa Leia em seu holograma; depois, é Obi-Wan Kenobi quem diz a Luke que precisa de sua
ajuda. Luke, porém, hesita. Ele volta para casa e descobre que os Stormtroopers imperiais
assassinaram sua família e queimaram sua casa. Agora ele tem uma motivação pessoal e está
pronto para embarcar na nova aventura.
4. Em qualquer jornada, o herói normalmente recebe ajuda de alguém. Esta ajuda costuma vir
de onde menos se espera. Em diversos contos de fadas, vemos uma velha senhora, um anão, uma
feiticeira ou um mágico ajudando o herói. O herói só atinge seu objetivo graças a essa ajuda e por
estar disposto a receber o que estas pessoas têm a lhe oferecer.
Vários são os contos de fada nos quais o primeiro e o segundo filhos são enviados para uma
determinada missão, mas recusam ou até mesmo menosprezam a ajuda oferecida. Em geral são
punidos por sua falta de humildade e incapacidade de aceitar auxílio. Então, é enviado o terceiro
filho, o herói. Ele aceita a ajuda oferecida, cumpre sua missão e de quebra conquista o amor da
princesa.
Em Guerra nas Estrelas, Obi-Wan Kenobi é o exemplo perfeito do personagem que ajuda o
herói. Ele ensina a Luke o Caminho da Força; é uma espécie de mentor cujos ensinamentos
continuam, mesmo após sua morte. Essa figura do mentor aparece em quase todas as histórias de
heróis. Ele é uma pessoa que detém conhecimentos, informações e habilidades especiais. Pode ser
o explorador em O Tesouro de Sierra Madre, o psiquiatra em Gente como a Gente, ou Quint, que
sabe tudo sobre tubarões, no filme Tubarão, ou mesmo a Bruxa Boa do Norte, que da para Dorothy
os sapatinhos de rubi em O Mágico de Oz. Em Guerra nas estrelas, Obi-Wan entrega a Luke o
sabre de luz, principal arma de um cavaleiro Jedi. De posse dessa arma, Luke está pronto para
prosseguir e completar seu treinamento.
5. Neste ponto, o herói está pronto a se aventurar por um mundo desconhecido, onde passará
por uma transformação. Esta travessia marca o ponto inicial da transformação do herói, e delimita

111
Voltar ao Sumário

os obstáculos que precisam ser superados para que o herói atinja seu objetivo. Normalmente, isto
ocorre no primeiro ponto de virada da história e conduz ao desenvolvimento do segundo ato.
Em Guerra nas Estrelas, Obi-Wan e Luke precisam de um piloto que os leve até o planeta
Alderan, para que Obi-Wan possa entregar os planos ao pai da princesa Léia. Estes planos são
indispensáveis para a sobrevivência da Aliança Rebelde. A partir daí, a aventura pode começar.
6. Agora, o herói começa a enfrentar vários testes e obstáculos necessários para derrotar o
inimigo e permitir que alcance seus objetivos. Nos contos de fadas, isto significa se livrar de
feiticeiras, enganar demônios, escapar de malfeitores ou enfrentar o mal. Na Odisséia, de Homero,
isto significou ter que cegar o ciclope, fugir do país dos lotófagos, resistir aos encantos das sereias
e sobreviver a um naufrágio.
Em Guerra nas Estrelas, Luke enfrenta incontáveis aventuras: junto com seus companheiros, ele
precisa chegar até a nave Millenium Falcon, escapando por pouco dos stormtroopers, antes de
entrar no hiperespaço. Precisam evitar a todo custo serem capturados na Estrela da Morte, salvar
a princesa, e até sobreviver a um compactador de lixo.
7. Em certo ponto da história, o herói chega ao fundo de poço. É comum ele passar por uma
“experiência próxima da morte”, que o leva a uma espécie de renascimento. Em Guerra nas Estrelas,
Luke parece ter morrido quando, de repente, no compactador de lixo, a serpente o puxa para
baixo. Então, ele acaba se salvando, bem a tempo de pedir ao R2D2 que pare o compactador, antes
que eles sejam esmagados. Normalmente, este é o “momento negro”, que dá lugar ao segundo
ponto de virada, o ponto em que o mal tem que ser confrontado. A partir daí a ação começa
caminhar para o emocionante desfecho.
8. Neste ponto o herói levanta sua espada e toma posse do tesouro.
Ele agora está no comando da situação, embora ainda não tenha completado toda a sua jornada.
Este é o ponto, por exemplo, em que Luke já conseguiu resgatar a princesa e os planos técnicos,
mas onde o confronto final ainda está para começar. Syd Field chama este ponto de “pinça 2”, pois
apresenta uma fala, cena ou sequencia que põe o final do segundo ato em movimento, conduzindo
ao clímax final.
9. O caminho de volta geralmente é uma cena de perseguição. Em muitos contos de fadas, este
é o ponto em que o antagonista persegue o herói, enquanto este se depara com os últimos obstáculos
que precisam ser superados, antes que ele esteja realmente a salvo e livre. Seu desafio é usar o que
aprendeu em sua vida diária. Ele tem que voltar para casa e restaurar seu mundo. Em Guerra nas
Estrelas, vemos Darth Vader numa perseguição feroz, planejando explodir o Planeta Rebelde.
10. Como toda história de heróis é uma história de transformação, temos que ver o herói
transformado ao final, ressurgindo das cinzas para uma nova vida. Ele tem que enfrentar uma
provação suprema, antes de “renascer” como herói, provando assim sua coragem e sendo
transformado. É neste ponto que vemos em muitos contos de fadas o filho do humilde ferreiro se
tornar rei e casar com a princesa. Em Guerra nas Estrelas, vemos que Luke sobrevive e se torna
uma pessoa muito diferente do jovem inocente que era no primeiro ato.
112
Voltar ao Sumário

Este é ponto em que o herói volta para casa e se reintegra à sociedade. Em Guerra nas Estrelas,
Luke destrói a Estrela da Morte e recebe sua recompensa.
Esta é uma clássica “história de herói”. Também podemos chamá-la de missão (quest) ou mito
da missão, pois nela vemos uma pessoa que tem que desempenhar uma determinada missão,
embora a missão em si não seja o verdadeiro tesouro que ela procura. Para Luke, por exemplo, a
verdadeira recompensa é o amor da princesa e o mundo novo e seguro que ele ajudou a criar.
Um mito pode ter muitas variações. Nos filmes de James Bond vemos um exemplo dessa
variação (embora o mito perca muito de sua princundidade, pois o herói não passa por uma
transformação). Outros exemplos dessas variações podem ser observados no filme Tubarão, onde
o tubarão tem que ser morto, ou no filme Um Lugar no Coração, onde Edna tem que superar
obstáculos para assegurar a estabilidade de sua família.
O mito do tesouro é uma outra variação desse tema, pois os elementos permanecem os mesmo,
quer a jornada do herói esteja voltada à caça de um tesouro ou ao desempenho de missão. O herói,
humilde e relutante é chamado para uma aventura. Ele recebe a inesperada ajuda de vários
personagens singulares. Precisa superar uma série de obstáculos e, nesse processo, é transformado
e enfrenta o desafio final, o que exige que ele lance mão de todos os seus recursos, internos e
externos.

O MITO DA CURA
Embora o herói mitológico seja o tipo mais comum de mito, também há muitas histórias cujos
mitos envolvem cura. Nestas histórias, em geral encontramos um personagem ferido ou abalado
por algum motivo, que precisa então deixar seu ambiente e ingressar numa jornada em busca de
restaurar sua integridade.
A experiência universal por trás dessas histórias de cura está em nossas necessidades psicológicas
de renovação e equilíbrio. A jornada de um herói rumo ao isolamento não é assim tão diferente de
uma escapada de fim de semana ou de uma viagem para o Havaí, para se afastar de tudo ou mesmo
de uma temporada num Hotel Spa, por algumas semanas, para se curar do stress. Em todos esses
casos, temos algo que está desequilibrado, e a jornada do mito da cura se move na direção da
restauração da nossa integridade.
Essa “ferida” ou desequilíbrio pode assumir várias formas. Pode ser algo físico, emocional ou
psicológico. Normalmente envolve essas três circunstâncias. Nesse processo de isolamento
voluntário, quando a pessoa pode optar por se esconder no meio do mato, num lugar deserto ou
mesmo numa fazenda amish — como no filme A Testemunha — a pessoa restaura sua integridade,
seu equilíbrio e sua capacidade de amar. Nessas histórias, o amor e, ao mesmo tempo, uma força
restauradora e uma recompensa.
Pense em John Book, personagem do filme A Testemunha. No primeiro ato, vemos um homem
frenético, insensível, com medo de assumir compromissos, extremamente crítico e avesso às

113
Voltar ao Sumário

influência femininas em sua vida. Na verdade, John sofre de uma “ferida interna” embora a
desconheça. Quando leva um tiro e passa a sofrer de uma “ferida externa”, é forçado a se afastar de
tudo, o que dá início a seu processo de transformação.
No início do segundo ato, vemos John delirando, à beira da morte. Isto representa um mergulho
no inconsciente, uma passagem do mundo ativo e racional de sua vida como policial, no primeiro
ato, para um mundo misterioso, feminino, mais intuitivo.
Uma vez que o “problema interno” de John consiste justamente na falta de equilíbrio com seu
lado feminino, este delírio dispara o gatilho para um processo de transformação.
Mais tarde, no segundo ato, vemos John começar a mudar. Ele passa de um estilo de vida
altamente independente para uma vida em comunidade em meio a seus anfitriões amish. John
agora madruga para tirar leite das vacas e para ajudar em várias tarefas. Ele usa suas habilidades
de carpinteiro para ajudar na construção do celeiro e para terminar o viveiro dos pássaros. Pouco
a pouco, ele começa a desenvolver um relacionamento com Rachel e seu filho, Samuel. O ritmo da
vida de John muda, torna-se mais lento e com isso ele se torna mais receptivo, aprendendo
importantes lições sobre o amor. No terceiro ato, finalmente descobre que vale a pena lutar pelo
lado feminino, e abre mão de sua arma para salvar a vida de Rachel. Algumas cenas mais tarde,
quando surge uma oportunidade de matar Paul, John opta por uma solução sem violência. Embora
John não tenha “conquistado” uma princesa, ele “conquistou” amor e integridade. No final do
filme, podemos ver que o John Book do terceiro ato é uma pessoa bem diferente do John Book do
primeiro ato. Ele demonstra uma camaradagem diferente com seus companheiros da polícia, está
mais descontraído, e sentimos que, de alguma forma, essa experiência contribuiu para criar um
John Book mais humano, mais completo.

COMBINAÇÃO DE MITOS
Muitas histórias são, no fundo, uma combinação de vários mitos diferentes. Pense, por exemplo,
no filme Os Caça-Fantasmas, uma hilariante comédia sobre três homens que lutam para salvar a
cidade de Nova York dos fantasmas. Agora pense no mito da caixa de Pandora, que conta a história
de uma mulher que liberta todos os tipos de males no mundo, ao abrir uma caixa em que lhe
haviam dito para não tocar. Em Os Caça Fantasmas, o funcionário da Agência de Proteção
Ambiental é uma metáfora de Pandora, pois ao desligar a energia da câmara de contenção
ectoplásmica, ele, sem querer, soltou todos os fantasmas sobre a idade de Nova York. Combine o
mito da caixa de Pandora com uma história de herói e note que temos nossos três heróis lutando
com o Homem Marshmallow. Um deles, inclusive, “conquista a princesa”, o que vemos acontecer
quando Dr. Peter Venkman finalmente consegue as atenções de Dana Barrett. Ao examinar mais
de perto todas essas combinações de mitos, fica evidente que o filme Os Caça-Fantasmas é muito
mais do que uma simples comédia.
Já o filme Tootsie é uma espécie de releitura de várias histórias de Shakespeare, em que uma
mulher tem que se vestir de homem para alcançar determinado objetivo. Estas histórias

114
Voltar ao Sumário

shakespeareanas, por sua vez, buscaram inspiração nos contos de fadas em que o herói se torna
invisível, assume uma nova personalidade ou recorre a algum disfarce para esconder o que
realmente é. Em histórias infantis como As Doze Princesas Bailarinas e Pele de Urso — um conto
dos irmãos Grimm —, o disfarce se torna imprescindível para atingir determinado objetivo.
Combine estes elementos com temas de transformação herói mitológico, onde um herói — como
Michael, do filme Tootsie "tem que superar incontáveis obstáculos para alcançar seu sucesso
profissional e pessoal. Faça essa análise e verá como fica fácil entender por que uma história como
Tootsie nos atrai e encanta tanto.

ARQUÉTIPOS
Os mitos possuem certos personagens que costumamos encontrar em diversas histórias e que
são chamados de arquétipos. Os arquétipos representam um tipo padronizado de personagem, os
“personagens típicos”, que encontramos na jornada do herói. Embora possam assumir as mais
variadas formas, tendem a se enquadrar em certas categorias determinadas.
Ao analisar a jornada do herói mitológico, mencionamos a presença de
personagens que ajudam o herói, dando conselhos ou informações — como
o velho sábio que age como mentor do herói.
A contrapartida feminina do velho sábio é a figura da mãe dedicada Enquanto o velho sábio é
detentor de elevados conhecimentos, a mãe dedicada é conhecida por sua incrível capacidade de
instruir e por sua intuição. Esta figura materna muitas vezes dá ao herói objetos que o ajudarão em
sua jornada. Pode ser um amuleto da sorte ou os sapatinhos que Dorothy recebe da Bruxa Boa do
Norte, no filme O Mágico de Oz. Ou pode ser, como em alguns contos de fadas, um casaco que
deixa o personagem invisível, ou objetos comuns que se tornam extraordinários, como na história
The Courageous Girl, um conto de fadas do Tajiquistão
sobre uma donzela que recebe um pente, uma pedra de amolar e um espelho para ajudá-la a
vencer o demônio.
Muitos mitos contemplam uma figura sombria, um personagem que é o avesso do herói.
Algumas vezes este personagem ajuda o herói em sua jornada; em outras, opõe-se ao herói. Essa
figura pode ser o lado negativo do herói, como o irmão hostil do seriado Cain and Abel, ou as
filhas da madrasta em Cinderela, ou mesmo a menina-ladra do filme A Rainha da Neve. A figura
sombria também pode ajudar o herói, como no caso de uma prostituta que tem um coração de
ouro e salva a vida do herói ou o ajuda a rever a visão que ele tem a respeito das mulheres.
Vários mitos assumem a forma de arquétipos animalescos, que tanto podem ser figuras positivas
como negativas. Na lenda de São Jorge e o dragão, a força negativa é representada pelo dragão, um
animal violento e destruidor, assim como o tubarão do filme Tubarão. Mas há várias histórias em
que os animais ajudam o herói. É comum vermos um burro falante, ou um golfinho que salva o
herói, um unicórnio ou algum outro animal com poderes mágicos.

115
Voltar ao Sumário

O trapaceiro é outro arquétipo bem comum, de caráter negativo e que está sempre promovendo
o caos, perturbando a paz e costuma ser bastante "anarquia. Ele usa de sagacidade e astúcia para
atingir seus objetivos. Pode assumir uma forma tão inocente quanto a de um menino travesso ou
um "garoto mau", o que chega a ser engraçado e até divertido. Porém, normalmente é um vigarista,
como em Golpe de Mestre, ou o próprio demônio, como no filme O Exorcista, onde o padre é
forçado a se valer de todos os seus recursos para vencê-lo
As histórias de Till Eulenspiegel— um anti-herói medieval da tradição oral alemã — e as
novelas picarescas espanholas dos séculos XVI e XVII giram ao redor dessa figura do trapaceiro.
As Aventuras de Tom Sawyer, um dos grandes clássicos da literatura americana, também
trabalha esse tema através da figura de Tom Sawyer, um menino astuto que se tornou um
personagem imortal de Mark Twain. Em todos os países encontramos histórias que giram em
torno desta figura, cuja função primordial é passar a perna nos outros.

MITOS: PROBLEMAS E SOLUÇÕES


Todos crescemos em meio aos mitos. A maioria já ouviu ou leu contos de fadas, quando jovem.
Outros leram histórias da Bíblia ou de outras religiões e culturas. Este repertório de histórias faz
parte de nós e a melhor forma de trabalhá-las é deixar que venham à tona naturalmente, à medida
que você escreve.
Evidentemente, alguns cineastas são melhores que outros quando trabalham com esse tema.
George Lucas e Steven Spielberg têm uma noção bem sólida do mito, e incorporam isso em seus
filmes. Ambos já falaram o quanto amam as histórias de sua juventude e do desejo de levar estas
histórias até o público. Suas histórias recriam o mesmo senso de deslumbramento e emoção dos
mitos. Muito da indispensável dinâmica psicológica está presente em suas histórias, conferindo-
lhes uma profundidade maior, além da esperada num filme de aventura.
São os mitos que conferem profundidade a uma história de herói. Se
o cineasta se concentrar apenas na ação e emoção da trama, é provável que o público não
consiga se ligar na jornada do herói. Contudo, se os movimentos básicos da dinâmica dessa jornada
estiverem evidentes, o filme certamente atrairá uma grande audiência, ainda que de maneira
inexplicável e a despeito da opinião que a crítica tenha sobre ele.
Veja o filme Rambo, por exemplo. Por que uma história violenta e relativamente ingênua como
essa foi tão popular e atraiu tanta audiência? Não creio que tenha sido porque todos concordavam
com sua visão política. O que penso é que Sylvester Stallone é um verdadeiro mestre na arte de
incorporar o mito americano em suas produções. Isto não significa que ele o faça conscientemente;
mas, de alguma maneira ele está em sintonia com esse mito, que passa a integrar suas histórias.
Clint Eastwood também tem uma inclinação para essas histórias de heróis. Ele costuma trabalhar
com os aspectos da aventura e transfomação do mito. Recentemente, seus filmes têm dado mais
ênfase à transformação do herói, o que tem atraído maior atenção da crítica.

116
Voltar ao Sumário

Enfim, todos estes cineastas — Lucas, Spielberg, Stallone e Eastwood


— exploram dramaticamente o herói mitológico, cada um à sua maneira. E todos eles
comprovam o potencial mercadológico do mito.

APLICAÇÃO
A habilidade de estar sempre encontrando oportunidades para conferir maior profundidade
aos temas de um roteiro constitui uma parte importante do trabalho do roteirista. Parte desse
processo consiste justamente em descobrir o mito por trás das histórias de hoje.
Uma boa sugestão para descobrir esses mitos seria ler de novo alguns dos contos dos irmãos
Grimm, ou mesmo contos e lendas do folclore em geral, de todo o mundo, para começar a se
familiarizar com os vários mitos. Com isso você começará a perceber padrões e elementos que
estão ligados à nossa experiência humana.
Leia também Joseph Campbell e obras sobre mitologia grega. Se você se interessa pela psicologia
junguiana, encontrará diversos recursos valiosos em vários livros sobre o assunto. Como a
psicologia junguiana lida com arquétipos, ao estudá-la você encontrará inspiração para muitos
personagens novos.
Com todos esses recursos em mãos, é importante ter em mente que não se deve impor um mito
a uma história. Na verdade, o mito é mais um modelo, um padrão que você deve trazer à tona em
seus roteiros, quando eles parecerem estar apontando na direção de um mito.
Assim, à medida que for escrevendo, pergunte a si mesmo:
■ Há algum mito atuando nesse roteiro? Se existe, quais são os passos que estou explorando
na dinâmica da jornada do herói mitológico? Quais deles parecem estar faltando?
■ Está faltando algum personagem? Será que eu preciso de um mentor? De um velho sábio? De
um feiticeiro? Algum desses personagens ajudaria a dimensionar a jornada do meu herói?
■ Será que eu conseguiria imprimir novas dimensões emocionais ao mito se, logo de início,
apresentasse meu personagem como alguém relutante, ingênuo, simples ou decisivamente um
“anti-herói”?
■ Meu personagem sofre transformações no decorrer de sua jornada?
■ Terei utilizado uma nítida estrutura de três atos para dar sustentação ao mito, usando o
primeiro ponto de virada para que ele entre numa aventura por um mundo desconhecido e o
segundo ponto de virada para criar um “momento negro”, uma reversão de expectativa, ou uma
experiência “próxima da morte”?
Não tenha medo de criar variações em cima do mito, mas não comece pelo mito propriamente
dito. Deixe que ele surja naturalmente da história. O desenvolvimento de mitos é parte do processo
de reescrever
o roteiro. Se você começar pelo mito, descobrirá que o texto se tornará engessado, sem
117
Voltar ao Sumário

criatividade e altamente previsível. Trabalhar com o mito durante o processo de reescrita dará ao
seu roteiro maior profundidade, conferindo-lhe nova vida à medida que você descobre “a história
oculta dentro de outra história”.

118
Voltar ao Sumário

PARTE 3

A CONSTRUÇÃO
DOS PERSONAGENS

119
Voltar ao Sumário

CAPÍTULO 9

DA MOTIVAÇÃO AO OBJETIVO: ENCONTRANDO A


ESPINHA DORSAL DO PERSONAGEM

A maior parte das histórias são relativamente simples, isto é, podem ser contadas em poucas
palavras; têm começo, meio e fim. Por exemplo, no caso de E. T. poderíamos dizer que se trata da
história de um alienígena que foi encontrado aqui na Terra e, depois de algumas aventuras, volta
para sua “casa”. No filme De Volta para o Futuro, Marty volta ao passado 30 anos em uma máquina
do tempo, mas depois consegue finalmente retornar ao presente. Em Tootsie, Michael se disfarça
de mulher, consegue um emprego e, por fim, acaba desmascarando a si mesmo.
O que deixa as histórias mais complexas é a influência dos personagens. São os personagens que
dão credibilidade à história, conferindo-lhe um novo dimensionamento e conduzindo-a por novas
direções. São os personagens, com todas as suas idiossincrasias e desejos, que transformam a
história, que transformam algo simples numa história encantadora, irresistível.
Pense um pouco nos personagens de Rose e Allnutt, do filme Uma Aventura na África, e verá
que se Rose não tivesse responsabilizado os alemães pela morte de seu irmão, se não tivesse ficado
com tanta raiva e se não fosse tão obstinada, talvez o barco Louisa não tivesse sido torpedeado.
Foi o personagem de Rose que mudou o rumo da história. O plano de Allnutt era aguardar
alguns dias, até encontrar alguma maneira mais simples de salvar suas vidas. Já Rose queria se
vingar dos alemães e fazer algo por seu país. Allnutt só concordou com o plano de Rose depois que
a missionária jogou fora todo seu gim e ficou sem falar com ele, ate que ele cedesse. Vemos,
portanto, que foi o personagem de Rose quem fez com que a história tomasse uma nova direção.
O personagem influencia a história sobretudo por que os personagens, e especialmente o
protagonista, sempre têm um objetivo a alcançar. Há sempre alguma coisa que o protagonista
deseja realizar, e é precisamente isso o que dá direção à história.
No começo da história, alguma coisa motiva o personagem a perseguir este objetivo. O
personagem passa, então, a agir de modo a alcançá-lo. No final da maioria dos filmes esse objetivo
é atingido.
Do mesmo modo que a história tem uma estrutura constituída por elementos como a
apresentação, os pontos de virada e o clímax, o personagem também tem uma espinha dorsal ou
estrutura. Essa estrutura do personagem é determinada pela interrelação de três fatores: motiva
ção, ação e objetivo. Para definir com clareza um personagem, precisamos desses três elementos.
120
Voltar ao Sumário

Precisamos deles para saber quem é o personagem, o que ele deseja, por que deseja e o que está
disposto a fazer para alcançar seu objetivo.
Se um desses elementos estiver faltando, a estrutura do personagem ficará confusa e sem foco.
Ficará sem direção. Quando isso acontece, ficamos sem saber para quem devemos torcer ou
mesmo se realmente deveríamos estar torcendo por alguém. Por isso, vamos agora passar a analisar
cada um dos elementos que compõem a espinha dorsal de um personagem.

A MOTIVAÇÃO
Com certeza todos nós já vimos filmes em que não fica bem claro o porquê dos personagens
estarem agindo de uma determinada maneira. Já vimos filmes em que o herói move montanhas
para salvar seu país sem que, no entanto, nos fosse mostrado um único motivo sequer que
evidenciasse seu amor pela pátria.
Também já vimos filmes em que o personagem parece irritado, perde a cabeça ou se apaixona,
sem que haja alguma razão aparente que justifique esses estados de espírito. O que acontece nesses
casos é que a motivação do personagem não está clara ou não é forte o suficiente. E se não sabemos
por que um personagem está tomando determinadas atitudes, fica difícil nos envolvermos com a
história. O resultado disso é fácil de perceber: a história perde momentum e a audiência perde o
interesse.
A motivação é o que impulsiona o personagem numa história. Ela é o elemento catalisador que,
no início da história, faz com que o personagem se envolva na trama. E como qualquer catalisador,
a motivação pode ser de ordem física, expressa por meio de diálogo ou revelada por uma situação.
A motivação física é sempre a que dá maior impulso à trama. No filme O Fugitivo, a fuga de
Richard Kimble força Sam Gerard a começar sua perseguição. No filme Os Imperdoáveis, o fato
de alguns homens terem cortado o rosto de uma prostituta faz Bill Munny buscar vingança. Em
Os Caça Fantasmas, a aparição dos fantasmas leva os caça fantasmas a entrarem em ação.
Acontecimentos desse tipo têm o poder de lançar o personagem principal diretamente para o
centro da história. Ele se vê forçado a participar do que está acontecendo, o que faz de forma clara
e decisiva.
Muitas vezes, a história combina acontecimentos e diálogos para construir uma situação, de
modo a nos fazer perceber a motivação do personagem, apesar de não existir um momento
catalisador específico.
No filme Tootsie, a motivação foi evidenciada pelo esforço de Michael em tentar conseguir
trabalho. Foram seus repetidos fracassos que o levaram a tentar fazer qualquer coisa para resolver
o problema — inclusive se disfarçar de mulher para conseguir um papel feminino, numa novela
de televisão.
Tootsie começa com uma montagem de várias cenas que retratam esse processo de seleção do
elenco:

121
Voltar ao Sumário

INTERIOR DE UM TEATRO, ESCURO


VOZ
Michael...Dorsey, é você?
PULL BACK para focalizar MICHAEL olhando na direção do auditório escuro. Ele é um ator
de uns quarenta anos e está segurando um roteiro.
MICHAEL
Sim, sou eu.
VOZ
Leia o começo da página vinte e três.
MICHAEL (com emoção)
“Você pode imaginar o que significa acordar de manha, em Paris e ver o travesseiro vazio... Ei,
espere um minuto, vista alguma coisa! Kevi está lá embaixo! Pelo amor de Deus, que tipo de
pessoa é você?”
PULL BACK para mostrar um DIRETOR GRANDALHÃO com um toco de charuto no canto
da boca.
DIRETOR
“Sou apenas uma mulher. Não sou a mãe de Felícia, nem a mulher do Kevin...”
VOZ
Obrigado. Já está bom. Estamos procurando alguém um pouco mais velho.
INTERIOR DE OUTRO TEATRO VAZIO — MICHAEL ESTÁ DIANTE DE OUTRO
DIRETOR
,
Michael, vestindo jeans, camiseta e um par de tênis, brinca com um ioiô.
MICHAEL
Mamãe! Papai! Tio Pete! Tem alguma coisa errada com Biscuit! Acho que ele está morto!
VOZ
(vinda do escuro) Obrigado. Obrigado. Estamos procurando alguém mais jovem.
INTERIOR DE UM TERCEIRO TEATRO VAZIO — MICHAEL ESTÁ SOZINHO NO PALCO
Michael, com raiva, bate o roteiro contra a coxa.
MICHAEL
Espera aí, posso começar de novo? Eu não comecei bem...

122
Voltar ao Sumário

VOZ
(vinda do escuro)
Não, não precisa. Estava muito bom. Muito bom mesmo. Só que você não tem a altura que
queremos.
MICHAEL
por favor, escute. Eu posso ficar mais alto. Tenho sapatos plataforma lá em casa. Posso ficar mais
alto alguns centímetros...
VOZ
Não, você não me entendeu. Precisamos de alguém menor do que você.
MICHAEL
Mas eu não sou tão alto assim. Estou usando um sapato plataforma!
Depois de assistir a essa montagem, fica fácil compreender a motivação de Michael. Daí em
diante, não temos mais razão para questionar o que levou Michael a se disfarçar de mulher para
conseguir trabalho.
Há histórias que se baseiam excessivamente na técnica de fazer o personagem explicar sua
própria motivação, em lugar de apenas mostrar essa motivação. Isto ocorre quando não há uma
ação que traga o personagem para dentro da história. Portanto, como não há esta ação específica,
o personagem se vê obrigado a explicar as razões de sua participação. Isso pode funcionar bem em
romances, mas raramente tem bons resultados quando se trata de drama. Se não pudermos ver,
com extrema clareza, o que motivou a entrada de um personagem na história, oferecer ao público
um amontoado de explicações definitivamente não irá nos ajudar.
Há vários métodos que costumam ser usados para relatar a motivação de um personagem, em
vez de mostrá-la. Mas, em geral, esses métodos não são eficazes. Um deles é o do discurso expositivo
e o outro é o do flashback.
Não são poucos os roteiros que atribuem à backstory o papel de prinpal elemento de motivação
das ações de um personagem. Isso significa que
o personagem terá que fazer longos discursos acerca de seu passado, como fora de explicar o
motivo de suas ações no presente. Nesses discursos, ele fala de suas experiências, de seus traumas,
do lugar onde cresceu, contando longas histórias de seus tempos de criança e do relacionamento
com os pais. Ou discorre sobre influências que sofreu de outras pessoas, quando ainda era jovem,
mencionando uma tia querida ou um tio malvado. Ou resolve nos contar de algum problema que
teve há dois anos — ou há quinze anos atrás —, detalhando minuciosamente como chegou à
situação atual.
Esses relatos, em geral, só ajudam a travar o roteiro, pois falam de coisas que não são relevantes
para o problema atual do personagem ou não conseguem mostrar uma motivação atual que seja
forte o bastante para se sobrepor às informações do passado. Muitas vezes o roteirista acha que

123
Voltar ao Sumário

esses discursos ajudam a revelar o personagem, quando, na realidade este se revela muito mais
através das ações que impulsionam a história.
Cenas descritivas, que só se concentram em revelar o personagem, não conseguem dar a esse
personagem o impulso motivacional necessário. E como qualquer peça dramática é muito mais
baseada em imagens do que em diálogos, tudo o que for falado, em vez de mostrado, diminuirá o
impacto dramático das cenas.
Muitas vezes os flashbacks acabam assumindo uma função mais informativa do que dramática.
Em geral, são usados para explicar, para dar informações sobre a backstory ou sobre o próprio
personagem. Não raro o próprio roteirista vai justificar o uso do flashback, dizendo que pretendia
dar mais informações sobre seu personagem ou que “O passado era importante para explicar o
presente”.
Contudo, a utilização dos flashbacks como forma de explicar a motivação do personagem
raramente alcança bons resultados. Isso é verdade por uma série de motivos. Antes de mais nada,
a função da motivação é projetar o personagem para frente e os flashbacks, por sua própria
natureza, param a ação no tempo, pois encontram motivação num passado distante, em vez de
situá-la no momento atual. Se a motivação aconteceu mesmo há muito tempo atrás, o personagem
também deveria estar presente na história desde então. Porém, a verdadeira motivação ocorre no
presente. Pode ser que seja até o último fato de uma série de incidentes que aconteceram, mas a
motivação só ocorre quando o personagem está pronto, pois é algo que acontece agora, é iminente,
é presente.
A ênfase dos flashbacks está nos detalhes e não no momento dramático, uma vez que eles se
concentram mais na psicologia interna do personagem do que naquelas ações presentes que
exigem uma reação. Assim, são feitos para revelar o personagem, mas raramente para motivá-lo.
Porém não devemos concluir por isso que os flashbacks nunca possam se usados. Alguns
flashbacks são de fato necessários, por razões temáticas ou mesmo em função do estilo de um
filme. Em O Beijo da Mulher Aranha, o flashback é um recurso indispensável para quebrar um
pouco o confinamento da cela. A história do filme Conta Comigo é mostrada em flashback, pois
explora temas como identidade e amizade, à medida que um adulto olha para um incidente
fundamental do seu passado.
Os flashbacks do filme O Fugitivo ajudam a desvendar o mistério bem como transmitem à
audiência fatos importantes sobre o assassino. Não obstante, os melhores filmes sempre darão
mais ênfase ao desdobramento da história no presente, como forma mais eficaz de revelar a
motivação dos personagens.
A esta altura é bem provável que você esteja se perguntando: “Certo, vamos admitir que eu não
utilize flashbacks ou longos discursos para explicar a história. Por onde, então, devo começar
minha história? Como faço para encontrar aquela primeira imagem que coloca a história em
movimento?” Uma forma bem comum de esclarecer e destacar a motivação é situar o personagem
num momento de crise, logo no início da história. Nestes momentos os personagens ficam mais

124
Voltar ao Sumário

vulneráveis a tomar um novo rumo. Estão prontos para tudo de novo que possa acontecer, pois de
certa forma seu antigo mundo desmoronou e uma nova história começa a emergir dos escombros.
É justamente isso o que acontece com Edna, no filme Um Lugar no Coração e com Rachel, no
filme A Testemunha. Nós as conhecemos num momento de crise, logo após a morte dos maridos,
quando estão vulneráveis, fragilizadas, precisando de ajuda, no limiar de uma vida nova.
Dentre os melhores filmes, muitas vezes encontramos personagens nessa situação. No filme Os
Caça-Fantasmas, por exemplo, os três parapsicólogos tinham perdido o emprego. Esse momento
de crise, somado ao aparecimento dos fantasmas, foi o que os lançou em uma nova carreira.
Em Guerra nas Estrelas, a Estrela da Morte está prestes a destruir tudo. Este fato é o que
impulsiona a turma do bem a entrar em ação.
A história do filme E o Vento Levou retrata um país no limiar de uma guerra civil. Esta situação
de crise é o que motiva as ações que se seguem.
Para dar certo a motivação tem que estar bem clara, bem destacada. Deve ser mostrada através
de ações, e não de palavras. Além disso, deve levar o personagem à ação, a se envolver na história,
devido a um momento de crise que enfrenta em sua vida. Em síntese, a motivação é o que coloca
o personagem em movimento. No entanto, o que dá direção a esse movimento é outro fator: o
objetivo.

O OBJETIVO
A motivação faz com que o personagem comece a olhar em direção a determinado objetivo.
Existe algo que o personagem principal deseja e é nesse sentido que ele caminha. Assim como a
motivação impele o personagem numa direção específica, o objetivo o carrega em direção ao
clímax.
O objetivo é uma parte essencial do drama. É comum ouvir a pergunta: “Mas, afinal, o que esse
personagem quer?” Sem um objetivo claro em mente, a história fica vaga e se torna extremamente
confusa. Sem ele ficará impossível encontrar a espinha dorsal da história.
É o objetivo que entrelaça o personagem ao clímax da história, o qual, por sua vez, é alcançado
pelo fato de o personagem ter ido atrás de determinado objetivo e de ter conseguido chegar lá.
Porém, não é qualquer objetivo que faz com que isso ocorra. Há três requisitos primordiais que
um objetivo precisa preencher, para que seja eficaz nessa função.
Em primeiro lugar, é preciso que haja alguma coisa em risco na história que seja capaz de
convencer a audiência de que, caso o personagem não consiga atingir seu objetivo, a perda será
muito grande. Se não acreditarmos na mais absoluta necessidade do personagem alcançar seu
objetivo, não seremos capazes de torcer para que isso aconteça. Fica bem claro que aquilo que está
em risco pode ser desde a própria sobrevivência (como em Guerra nas Estrelas), a fatores
relacionados à auto-estima (como em Tootsie) ou mesmo à sobrevivência de alguém (como em
Cocoon). Mas, para isso, precisamos compreender claramente objetivo e acreditar que é essencial

125
Voltar ao Sumário

para o bem-estar do personagem que seja alcançado.


Em segundo lugar, o objetivo do protagonista deve estar em conflito com o objetivo do
antagonista. Este conflito estabelecerá o conflito direto com o objetivo do antagonista. Este conflito
estabelecerá contexto para toda a história e reforçará o personagem principal, que se verá obrigado
a enfrentar um forte oponente. É evidente que alcançar o objetivo não será assim tão fácil, pois
alguém mais estará ali justamente para evitar que isso aconteça.
Em terceiro lugar, o objetivo deve ser algo tão difícil que exija que o personagem passe por
certas transformações para atingi-lo. Ao longo dessa jornada rumo ao seu objetivo, mesmo os
personagens mais fortes, ganharão nova dimensão, passando por uma transformação.
As ações voltadas para esse objetivo acabam por influenciar todos os personagens envolvidos,
exigindo deles suas respectivas contribuições. E a única forma que encontrarão de atingir seus
objetivos será permitindo que as mudanças necessárias ocorram. Cada personagem terá que
descobrir em si mesmo a necessária dose de coragem, talento e determinação. Em outras palavras,
o objetivo será inalcançável se o personagem não passar, por alguma transformação.

A AÇÃO
A força e a sinceridade de um personagem são demonstradas pelos meios que ele usa para
atingir seu objetivo. Se alguém diz que quer alguma coisa, mas nada faz para obtê-la, não está
sendo sincero. Dificilmente haverá quem acredite nessa pessoa, pois carece de credibilidade. O
mesmo acontece com um personagem. Ele deve tomar algumas atitudes para atingir seu objetivo.
Quanto maior for seu empenho, quanto maiores os obstáculos, mais forte o personagem se tornará.
Os obstáculos e as ações assumem as formas mais diversas. As ações variam desde uma simples
investigação (como em Intriga Internacional), uma captura (como em Os Caça Fantasmas), até a
destruição e reconstrução de um lugar (como em E o Vento Levou). Em cada um desses casos, a
ação é clara, dramática, e a cada passo do filme nos leva mais perto do objetivo final.
Se analisássemos as motivações, ações e objetivos de alguns filmes, teríamos o seguinte quadro:

126
Voltar ao Sumário

Nestes filmes, a motivação é clara, a ação tem impacto e o objetivo é suficientemente forte para
levar o personagem a buscar sua realização.

PROBLEMAS QUE OCORREM COM


A ESTRUTURA DOS PERSONAGENS
Um dos problemas mais comuns nos filmes é a falta de motivação ou a motivação pouco clara.
Certamente muitos se lembram de certos filmes em que ficavam o tempo todo se perguntando:
“Por que o personagem

127
Voltar ao Sumário

está assim? Por que não age de outra maneira?”


Depois da exibição do filme A Costa do Mosquito, muitas pessoas na platéia se perguntaram
por que a mulher de Allie fica com ele, sem nem ao menos protestar pelas ações que ele tomou.
Depois de ter assistido ao ao filme A Missão, algumas pessoas se perguntaram o porquê de a
missão ter sido tão importante para os nativos. “Por que eles estariam dispostos a
morrer por ela?
Muitas vezes as respostas para a questão da motivação estão no próprio filme, mas a audiência
não consegue compreendê-las. O filme passa depressa demais, não ouvimos direito todos os
diálogos, ou não compreendemos a relação existente entre um fato e outro, que explicaria a
motivação.
Freqüentemente a motivação precisa ser mostrada mais de uma vez, para que a audiência possa
captá-la. Em grande parte, a motivação só fica bem clara quando é mostrada através de ação,
imagem e de diálogo.
Pode ser bem difícil incorporar num filme a informação relativa à motivação. Apresentar a
história, o personagem e, ao mesmo tempo, criar uma imagem dramática de abertura requer uma
cuidadosa integração de vários elementos. Muitas vezes a motivação do personagem acaba ficando
um pouco distorcida nesse processo. E muito difícil saber dosar o quanto da backstory e o quanto
de exposição serão necessários para que a audiência se envolva com a história. A tendência dos
roteiristas novatos é de pecar pelo excesso. Já os veteranos costumam pecar pelo oposto, deixando
de fora alguma imagem ou diálogo que teriam feito toda a diferença.
Os problemas com a estrutura do personagem estão mais frequentemente relacionados com
sua motivação e ações do que com o objetivo em si. O objetivo em geral é bem claro. Entretanto,
às vezes, o personagem não age de modo suficiente a atingir seu objetivo.
Quando vamos ao cinema, queremos assistir a uma boa historia e veros personagens agindo,
em vez de só falarem. Entretanto, alguns personagens são passivos. Isto até pode dar certo em
parte do filme, mas se um personagem principal permanecer passivo durante a maior parte do
filme, certamente perderemos o interesse por ele. Se um personagem não se importa o bastante
em se esforçar para alcançar seu objetivo, nós também não nos importaremos com ele. Mais ou
menos lá pela metade do roteiro senão ainda antes, o personagem tem que começar a agir sobre a
história em vez de ser uma mera vítima dela.
Há certos filmes em que a passividade do personagem principal nos dá uma sensação de que
sua história corre em paralelo à história central do filme. Isto em parte acontece no filme A Manhã
Seguinte com Jane Fonda. A história do filme era relacionada ao assassinato: “Quem foram os
autores do crime? Por que mataram? Serão eles capturados? Conseguirão incriminar Alexandra?”
— essas seriam as perguntas esperadas. No entanto, o filme se volta essencialmente para a história
de um personagem e as ações de Alexandra não foram capazes de provocar um clímax.
Isso criou uma série de problemas que vieram à tona de muitas formas nas várias revisões. A

128
Voltar ao Sumário

história dos assassinos, que se passa nos bastidores, tinha bastante movimento, mas só vemos
alguns relances dessa história, uma vez que a informação sobre os assassinos assume a forma de
um enredo secundário de menor importância. Uma vez que a ênfase maior foi colocada sobre o
personagem principal e sua respectiva transformação, durante a maior parte do filme
acompanhamos muito pouca ação do personagem, apesar de que o problema exigia muito mais
ação para se chegar a alguma solução. O personagem principal acabou sendo mais uma vítima
passiva da linha de ação dramática do que um sujeito ativo, alguém que tivesse provocado o
assassinato, ou descoberto alguma informação importante, ou mesmo levado alguém a confessar
o crime. E como o personagem não foi capaz de fazer com que o clímax acontecesse, a relação
entre a estrutura da história e a estrutura do personagem ficou enfraquecida.
A intenção do filme A Manha Seguinte parece ter sido a de criar um tipo diferente de filme. O
roteirista (James Hicks) não seguiu a estrutura padrão das histórias de detetive/mistério/assassinato,
em que uma mulher se vê envolvida numa investigação por um policial do tipo machão, e assim o
mistério acaba sendo solucionado. E, de fato, algumas das escolhas deste filme foram bem sucedidas,
o que fica evidenciado pelas críticas entusiasmadas acerca da brilhante atuação e do incrível arco
de transformação do personagem encenado por Jane Fonda.
No entanto, este filme, como muitos outros, nos mostra que o roteirista precisa pesar bem tudo
aquilo que resolve fazer. Um filme de peso precisa de uma história cuja estrutura seja bem nítida,
sem, contudo, ser previsível. Precisa integrar o enredo principal e os enredos secundários. E precisa
também que a motivação, a ação e o objetivo, ou seja, que a espinha dorsal do personagem seja
bem clara e concisa.

APLICAÇÃO
A primeira tarefa de quem reescreve um personagem é ter a certeza de que conseguiu criar um
personagem marcante, intenso. O que costuma acontecer em muitos roteiros é que há informação
demais, e isso acaba encobrindo a verdadeira motivação, a ação, e o objetivo do personagem.
Trazer à tona essa espinha dorsal do personagem, deixando-a mais clara, faz parte de um processo
que consiste em desconstruir certos aspectos e construir outros.
Se achar, por exemplo, que seu roteiro tem muita palavra e pouca ação, ao reescrevê-lo, comece
por eliminar todas as partes que lhe pareçam muito dissertativas. Procure todos os trechos em que
os personagens passam a impressão de estarem tentando se explicar. Em seguida, localize os
trechos de diálogo em que os personagens fazem longos discursos, numa tentativa de traçar sua
backstory através de um perfil psicológico. Procure eliminar todas essas partes do roteiro.
Em seguida, verifique os flashbacks. Se algum deles for mais explicativo do que dramático,
elimine-o também.
Agora, olhe para o que restou de sua história. Há algum elemento catalisador nítido que motive
o personagem a se engajar na história? Caso não haja, veja se é possível criar um momento de crise
que force seu personagem a entrar em ação. Procure mostrar esse ponto crítico visualmente.

129
Voltar ao Sumário

Localize, então, as cenas de ação que integram a sua história. Pelo fato de haver cortado aquelas
passagens muito dissertativas, é possível que você tenha ficado com pouca ação para trabalhar. Se
isso tiver mesmo acontecido, reveja as passagens que você eliminou, e procure ver se há nelas
algumas ações descritas ou implícitas, que possam ser dramaticamente representadas por seus
personagens. Caso haja, substitua as passagens que havia cortado por essas cenas de ação.
Em seguida, analise o objetivo de seu personagem. O objetivo é apresentado logo no primeiro
ato? Está bem claro? Quando o personagem atinge seu objetivo, conseguimos perceber que a
história terminou? O clímax e o objetivo se confundem (como quase sempre acontece)? Existem
objetivos bem definidos tanto na estrutura do enredo principal quanto dos enredos secundários?
Todos estes objetivos estão bem resolvidos lá pelo final do roteiro?
Uma vez que você tenha analisado as imagens e ações que integram sua história, reveja as partes
que foram removidas. Dentro das passagens dissertativas, ou até mesmo nos flashbacks, pode
haver informações pertinentes que não possam ficar de fora do roteiro. Se nestas passagens você
tiver diálogos muito longos, procure reduzir o que realmente interesse a uma linha ou duas. Em
vez de reintroduzir toda a informação de que precisa em uma única cena, fazendo assim com que
a cena fique muito verbal e acabe atrapalhando o desenrolar da história, distribua sua informação
por vários pequenos trechos do roteiro, principalmente ao longo do primeiro e segundo atos. Se
algumas dessas falas estiverem sendo usadas para revelar traços do personagem, procure substituir
o diálogo por uma imagem ou ação que demonstre essa característica.
Trazendo à tona a espinha dorsal de sua história e dos personagens, ao remover excesso de
informação que as encobria, ficará bem mais fácil perceber o que está atrapalhando o desenrolar
da história e o que é preciso fazer para lhe dar mais clareza e ação.
Finalmente, pergunte a si mesmo o seguinte, com relação ao seu roteiro:
■ Meu personagem é motivado por ações ou palavras? O momento em que ele entra na história
está bem claro? Conseguimos perceber por que ele começa a agir?
■ Qual o objetivo do meu personagem? Este objetivo é forte o suficiente para levá-lo a agir ao
longo dos três atos?
■ Meu personagem é mais ativo ou passivo na busca de seu objetivo? A ação responde ao que
é pedido pela linha de ação dramática da minha história? Se o filme for de aventura, estou
recorrendo a ações suficientemente intensas e dramáticas? Se for um filme mais relacional, será
que eu consegui encontrar formas mais sutis de conduzir a ação?
■ Caso eu tenha resolvido introduzir alguns flashbacks, backstory ou diálogos longos em meu
roteiro, será que eles são de fato absolutamente essenciais? Será que procurei cortar ou condensar
este material, na medida do possível?
■ Será que eu poderia traçar a espinha dorsal de meu personagem em poucas palavras? Estão
bem claros, no roteiro, os pontos de intersecção entre a espinha dorsal da história e do personagem?
Muitos roteiros, principalmente os de roteiristas novatos, pecam pelo excesso de informações.

130
Voltar ao Sumário

Uma vez que o excesso de informação é removido, o roteiro imediatamente recobra sua energia e
o que parecia ser um roteiro sem vida começa a exibir sinais de vitalidade.
Motivação, ação e objetivo são os elementos que dão movimento e direção a um roteiro. Mas
existe ainda um outro elemento que precisamos acrescentar e que é a parte vital do drama: o
conflito.

131
Voltar ao Sumário

CAPÍTULO 10

PROCURANDO O CONFLITO

É comum um roteirista ouvir certos palpites do tipo: “Faça um roteiro mais intenso!”, “Precisa
ter mais impacto!”, “O roteiro está muito monótono, sem graça!”. Normalmente, o que de fato a
pessoa está tentando lhe dizer é que falta conflito em seu roteiro.
O conflito é a base do drama, pois o drama é essencialmente feito de conflito. Os romances
podem ser mais interiorizados, suaves e amenos; os poemas, mais floreados, etéreos e
contemplativos; mas o drama, não. O drama precisa do ranger de dentes, do impacto, da luta. Isto
vale para qualquer forma de drama, seja um filme de aventura, uma comédia romântica, um sitcom
ou um filme de ficção científica, pois o conflito é o elemento chave de qualquer peça dramática.
O drama nunca fala de pessoas que se dão bem umas com as outras. Nele, os personagens
nunca evitam os confrontos. Um bom drama mostra os personagens num relacionamento
dinâmico que enfatiza suas diferenças. Eles se confrontam, discutem, lutam bravamente, recorrem
à persuasão e procuram impor seus pontos de vista e suas decisões sobre pessoas que não pensam
da mesma maneira.
O conflito acontece quando dois personagens têm, ao mesmo tempo, objetivos mutuamente
excludentes. Se um vencer, o outro perde. Ao longo da história, acompanhamos a luta dos dois,
protagonista e antagonista, para alcançar seus objetivos. Outros personagens também entrarão em
conflito com ambos, dando origem a uma série de conflitos de relacionamento, em cenas isoladas.
O conflito assume formas e extensões variadas. Existem tipos diferentes de conflitos, e alguns
deles são mais apropriados para o drama do que outros. Lutas, discussões e carros em perseguições
não são a única forma de expressar conflito. Os bons roteiros apresentam, ao longo da história,
conflitos de diversos tipos, expressos de várias formas.
Há cinco tipos de situações de conflito que podem ser encontradas nas histórias: o conflito
interior, o conflito relacional, o social, o situacional e o cósmico. Alguns são mais fáceis de trabalhar
do que outros alguns se adaptam melhor ao gênero dramático.

O CONFLITO INTERIOR
Quando um personagem não está seguro de si mesmo, de seu modo de agir, ou não sabe bem
o que quer, está passando por um conflito interior. Conflitos interiores funcionam melhor nos
romances, onde é comum vermos um personagem fazer certas confidências ao leitor,

132
Voltar ao Sumário

compartilhando suas inseguranças e incertezas. Porém, tendem a ser bem mais problemáticos
quando se trata de drama.
Alguns filmes tentam expressar o conflito interior lançando mão de certos recursos, como um
narrador ou trechos dissertativos. Porém, todo cuidado é pouco, pois isso pode deixar a história
excessivamente verbal.
Muitas vezes o personagem expressa seu conflito fazendo confidências a um outro personagem.
Este expediente pode ser bom, se for usado com parcimônia. Entretanto, para que funcione bem,
esse conflito interno deve ser projetado para fora, sobre outra pessoa. No filme Tootsie, há um
diálogo curto em que Michael se abre com Jeff, seu companheiro de quarto, sobre os problemas
que está tendo ao encarnar seu personagem, Dorothy:
MICHAEL
Puxa! Eu só queria parecer mais bonita. Eu sinto que ela (Dorothy) é uma pessoa tão bonita.
Talvez, se eu melhorasse o penteado, algo mais suave...
Perceba como esta confidência é breve. Michael poderia ter continuado a falar de seus
sentimentos e incertezas para Jeff. No entanto, seu conflito interno quase que imediatamente se
transforma num conflito relacional, à medida que Michael e Jeff têm que se confrontar com a nova
situação criada pela figura de Dorothy.
O telefone toca e Jeff se inclina para atender
MlCHAEL
Não atenda!
JEFF
Mas, por cluê?
MlCHAEL
Pode ser para Dorothy.
JEFF
Você deu a eles este número?
MlCHAEL
Eu tive que dar! O pessoal da novela precisava saber aonde me encontrar, caso haja alguma
mudança de horário nas gravações.
JEFF
Vou atender e ver do que se trata.
MlCHAEL
Não! Não quero que eles pensem que Dorothy vive com um homem. Não ficaria bem!
JEFF
133
Voltar ao Sumário

Mas, e se for para mim? Pode ser algo importante! Atenda como se fosse a Dorothy.
MlCHAEL
Mas eu não posso fazer isso! E se for a Sandy?
JEFF
Mas e se for a Diane? Como é que vou explicar uma mulher aqui?
O telefone pára de tocar. Michael volta para a mesa.
MICHAEL
Está bem. Desculpe. Vamos instalar uma secretária eletrônica.
JEFF
(levanta-se e pega seu casaco)
Isto vai levar três dias. Olha, eu não reclamei, quando você fazia papel de Cyrano de Bergerac e
inventava de fincar aquela espada sofá, bem debaixo do meu braço. Também não disse nada
quando você enchia sua camisa com cuecas para fazer uma corcunda, e saía correndo e declamando,
como se estivesse no campanário da igreja.
O que eu não consigo entender é por que eu deveria ficar aqui, fingindo que esta não é a minha
casa, só porque você não é “aquele tipo de garota".
E depois disso, Jeff sai.
Aqui temos um ponto fundamental para o uso do conflito interno: ele sempre deve ser projetado
sobre alguém ou algum objeto. Ao projetá-lo para fora, sobre alguém, o conflito se torna um
conflito relacional e poderemos acompanhar mais facilmente o drama que se desenrola.
Por exemplo, se estou frustrada com meu emprego, ao chegar em casa, chuto meu cachorro e o
cachorro me morde. Dessa forma, o conflito foi projetado para fora e passou a ser um conflito
entre mim e o cachorro.

CONFLITO RELACIONAL
A maior parte dos conflitos se baseia nos objetivos mutuamente excludentes de dois personagens:
o protagonista e o antagonista. No filme A Testemunha, o conflito concentra-se essencialmente
em John Book e Paul Schaeffer. Em Os Caça Fantasmas, Dr. Peter Venkman e o homem da Agência
de Proteção Ambiental entram em conflito sobre como tratar o problema dos fantasmas, no centro
de contenção. No filme O Passado não Perdoa, o conflito principal se passa entre WilI Munny e o
xerife. Já em O Silêncio dos Inocentes o conflito fica entre Clarice Starling (simbolizando o
empenho do FBI em descobrir o responsável pelos assassinatos em série) e o assassino, que procura
permanecer incógnito.
O maior conflito em Uma Aventura na África se da entre Rose e Allnut, cujas opiniões divergem
sobre que rumo tomar, depois da morte do irmão de Rose. Este conflito é o que faz a história

134
Voltar ao Sumário

caminhar. Rose dá início ao conflito, quando sugere que eles façam um torpedo e se vinguem dos
alemães, por haver matado seu irmão e destruído o vilarejo.
ALLNUTT
Mas de que diabos estamos falando? Nao há nada por aqui para torpedear. O único barco neste
rio é o African Queen.
ROSE
Não é não!
ALLNUTT
0 quê?
ROSE
Existe algo que podemos torpedear, sim.
ALLNUTT
E o que seria isso por acaso, senhorita?
ROSE
O Louisa.
ALLNUTT
Não fale besteira, por favor! Você jamais vai conseguir fazer isso! Honestamente falando, é
impossível. Já te falei que não tem como descermos este rio.
ROSE
Mas o Splenger conseguiu.
ALLNUTT
Numa canoa, senhorita sabe-tudo, numa canoa!
ROSE
Se um alemão conseguiu, nós também podemos conseguir.
E, assim, Rose acaba vencendo o conflito, e eles partem atrás do Louisa.
Naturalmente, surgem outros conflitos ao longo da história: o conflito sobre o fato de Allnutt
beber, sobre quem iria dormir na chuva, sobre como passar pelas corredeiras, entre outros. E com
o desenrolar da história, aumenta o conflito e a ameaça por parte dos alemães, à medida que Rose
e Allnutt resolvem seus próprios conflitos e acabam se apaixonando.

CONFLITO SOCIAL
Muitos dos filmes feitos para a televisão e dos filmes em exibição nos cinemas tratam de conflitos
entre uma pessoa e um grupo social. Este grupo pode ser uma estrutura administrativa, um
135
Voltar ao Sumário

governo, uma gangue de bandidos, a família, uma empresa, um exército ou até um país. Lembre-se
de quantos desses filmes já viu, que retratam um pobre diabo em luta contra um sistema: Os
Gritos do Silêncio, que mostra Dith Pran contra o Khmer Vermelho; Guerra nas Estrelas, sobre a
luta de Luke, da Princesa Leia e Han Solo contra o Império do Mal; Entre Dois Amores, onde parte
do conflito se passa entre as colônias e a administração inglesa. Sempre que o tema tiver algo a ver
com justiça, corrupção ou opressão, é bem provável que tenhamos um conflito de caráter social.
Na maior parte dos conflitos sociais, uma ou duas pessoas representam, na verdade, um grupo
maior. No filme Uma Aventura na África embora Rose não fosse capaz de lutar contra a nação
alemã, tinha condições de lutar contra algo que simbolizava a Alemanha — o barco “Louisa".
No filme E o Vento Levou, a guerra e aqueles “malditos ianques” ameaça os objetivos de Scarlett,
pois a guerra poderia, a qualquer tempo, matar seu grande amor, Ashley Wilkes. Mas também
houve pessoas específicas em vários momentos, que personificaram o conflito. Rhett Butler não
deu dinheiro para que Scarlett salvasse Tara; a Feira de Caridade de Atlanta não quis deixá-la
dançar e, por fim, um soldado ianque tenta roubá-la. Esses conflitos menores dão dimensão e foco
ao conflito maior. Se o conflito permanecer apenas entre uma pessoa e um grupo corre o risco de
se tornar um pouco abstrato. Em decorrência disso, é bem provável que a
história comece com um conflito social, mas logo fica mais específica,
colocando um personagem contra outro.
No filme Tubarão, o conflito que começa entre o chefe de polícia Martin Brody e as autoridades
locais — mostrando Martin versus um grupo — rapidamente se torna mais específico, passando a
ser um conflito entre o chefe Martin e o prefeito Vaughn — mostrando Martin versus Vaughn.
Este conflito ocupa a primeira metade do filme, antes do emocionante conflito entre homem versus
fera, que ocupa a segunda metade.
Esta cena começa logo depois do primeiro ataque de tubarão, que matou um banhista. Larry
Vaughn, o prefeito, entra, cercado de vários
cidadãos.
VAUGHN
0 que está acontecendo aí, Lenny?
HENDRICKS
Houve um ataque de tubarão esta manhã, em South Chop. Foi fatal. Temos que interditar a
praia.
Hendricks continua a fazer sinais para que interditem a praia. Vaughn, Ben Meadows, Dr.
Santos, o médico legista e mais dois vereadores que os acompanhavam trocam entre si olhares
horrorizados; mas a impressão que se tem é que não é a notícia do ataque o que os assusta.
VAUGHN
Martin, com que autoridade você está pretendendo fechar a praia?

136
Voltar ao Sumário

MARTIN
Por acaso não tenho autoridade suficiente?
MEADOWS
Tecnicamente você precisaria obter uma autorização da defesa civil ou de uma sessão
extraordinária da Câmara de Vereadores.
VAUGHN
Vamos seguir a lei. Nós só estamos preocupados de que você esteja se precipitando um pouco.
O que você está fazendo é muito sério. E este é seu primeiro verão aqui.
MARTIN
Então me explique, por que não estou entendendo.
VAUGHN
O que estou tentando lhe dizer é que Amity é uma cidade de veraneio. Precisamos arrecadar
dinheiro nas férias de verão. Se os turistas nao puderem nadar aqui, irão para Cape Cod ou Long
Island.
MARTIN
E por causa disso vamos deixar um bufê de banhistas à disposição do tubarão?
MEADOWS
Ora, nem mesmo temos certeza de que foi de fato um tubarão.
MARTIN
O que mais poderia ter sido?
VAUGHN (para o Dr. Santos)
Não pode ter sido a hélice de um barco?
DOUTOR SANTOS
Possivelmente...sim. Um acidente de barco.
VAUGHN
Um desses malucos irresponsáveis bebe demais e sai nadando sem querer para alto mar, um
barco pesqueiro vem e ...
MARTIN
Mas doutor, foi o senhor quem me disse que tinha sido um tubarão!
DOUTOR SANTOS
Eu estava errado. Teremos que corrigir o laudo.
VAUGHN

137
Voltar ao Sumário

Tudo é meio psicológico, de qualquer forma. Se alguém gritar “barracuda, ninguém dá bola.
Mas experimente gritar “tubarão”. Imediatamente todo mundo entre em pânico. Acho que todos
estamos de acordo: a última coisa de que precisamos é de pânico nesta época do feriado de 4 de
julho.
A esta altura, o conflito já está bem claro — a integridade de Martin e sua genuína preocupação
com a segurança dos banhistas versus as autoridades locais, que se preocupavam apenas com os
lucros da temporada de verão.

CONFLITO SITUACIONAL
Nos anos 70, foram feitos muitos filmes sobre catástrofes que colocavam os personagens diante
de situações de vida ou morte. Apesar de as situações criarem suspense e tensão, muito do conflito
ainda mantinha um caráter relacional. Em filmes como Aeroporto, O Destino do Poseidon, Inferno
na Torre, Terremoto e mesmo Somente Deus por Testemunha, a situação se torna uma panela de
pressão, colocando em ebulição vários conflitos relacionais, à medida que os personagens divergem
quanto à melhor maneira de se salvarem. Vemos surgir em cada cena diferentes pontos de vista.
Algumas pessoas entram em pânico, outras assumem a liderança da situação e tentam persuadir
o grupo a segui-las. Geralmente esses conflitos tendem a se individualizar ainda mais, devido a
situações que mostram membros de uma família tendo que decidir sobre abandonar ou não o
marido ou a esposa agonizante, ou crianças que resolvem desobedecer aos pais, ou ainda situações
complicadas como a de antigos conflitos familiares que vêm à tona com o calor dos acontecimentos.
Sem a ajuda desses conflitos relacionais, o conflito situacional não se sustentaria por muito
tempo. Nos casos de catástrofes como um furacão, uma tempestade de neve, um incêndio, ou um
navio naufragando, o conflito só se manteria durante a situação em si. Porém, como acontece com
os outros tipos de conflito, para manter o envolvimento do público,o conflito situacional precisa
ser visto sob um ângulo mais pessoal, mais relacional.

CONFLITO CÓSMICO
Mais raramente o conflito costuma se passar entre um personagem e deus ou o demônio, ou
mesmo qualquer outra criatura invisível. Não nos referimos aqui a um deus ou demônio
humanizado, como no filme O Homem que Vendeu a Alma. Num caso como esse, o conflito é
relacional, e não cósmico, pois se trata, na realidade, de um conflito entre dois seres humanos.
O conflito cósmico é aquele que acontece entre um personagem humano e uma força
sobrenatural. Rei Lear, de Shakespeare, luta com forças desse tipo. Saliere, no filme Amadeus,
declara guerra contra Deus por ter criado uma pessoa brilhante como Mozart. Jó (o personagem
bíblico, que também dá nome ao filme) questiona e discute com Deus.
Porém, em todas essas ocasiões, o conflito sempre acaba sendo projetado sobre os seres humanos.
Saliere está bravo com Deus, mas desconta sua raiva em Mozart. O Rei Lear fica indignado contra

138
Voltar ao Sumário

a injustiça divina, embora a causa imediata de seus problemas sejam suas duas filhas, que tramam
contra ele. Quanto a Jó, podemos dizer que, ao mesmo tempo em que ele questiona a Deus, também
discute com seus amigos.
Para que possamos acompanhar o desenrolar do conflito, é preciso que o personagem materialize
o conflito cósmico, projetando seus problemas em relação a esses seres invisíveis nos seres humanos
que atravessam seu caminho.

PROBLEMAS COM O CONFLITO


Em função do conflito pode surgir uma série de problemas no roteiro. As vezes temos conflitos
demais, o que atrapalha a percepção de qual é o assunto principal da história. Outras vezes, quando
existem muitos antagonistas no roteiro, o protagonista tem que lutar contra tantos oponentes que
o foco acaba se perdendo. Há ainda a hipótese de o conflito se modificar de uma parte para outra
do roteiro. E também há casos em que, apesar de haver cenas isoladamente muito boas e até
mesmo envolventes, não existe um conflito capaz de alinhavar uma cena à outra, dando assim
coesão a história.
Os problemas relacionados ao conflito são particularmente relevantes no caso de adaptações de
romances, pois a maior parte dos romances são narrativos e nos revelam a psicologia do personagem.
Com isso, ficamos sabendo como ele pensa e quais são seus sentimentos e valores. Sabemos como
ele reage em face de diferentes problemas e quais são suas inseguranças, obsessões e preocupações.
Embora tudo isso faça com que a leitura e os personagens fiquem muito interessantes, causa uma
série de problemas para o processo de adaptação desse material para o cinema.
Na maior parte dos romances, o conflito é interior, e não um conflito de caráter relacional.
No caso de uma narrativa épica, por exemplo, teremos uma infinidade de conflitos. Em outros
casos simplesmente é impossível transpor o conflito principal para o cinema, por ser muito abstrato
ou intelectual, ou mesmo por não ter apelo suficiente para grandes audiências.
O que frequentemente acontece é que o filme acaba ficando mais narrativo do que dramático,
sem um conflito bem definido do começo ao fim. Esse caráter narrativo se sobressai de muitas
maneiras.
Certos filmes recorrem a um narrador, o que é uma técnica eminentemente literária. Essa
técnica pode ser notada nas reflexões de Charlie, no filme A Costa do Mosquito; no narrador que
relembra o passado em Conta Comigo (uma adaptação de um conto de Stephen King chamado O
Corpo, que está no livro As Quatro Estações), e pelo narrador que aparece bem no início do filme
Entre Dois Amores. Foi utilizada com a finalidade de preencher certas lacunas que seriam difíceis
de expressar dramaticamente.
Se o personagem principal não tiver um oponente à sua altura, a história perde em dramaticidade
e assume um caráter mais narrativo. Perceba a diferença comparando as cenas do filme A Costa
do Mosquito em que Allie está em conflito com o missionário, com as cenas mais narrativas, que

139
Voltar ao Sumário

mostram monólogos de Allie, ou cenas em que ele está viajando, chegando ou partindo.
Em muitos filmes baseados em livros, em vez de o conflito evoluir gradativamente do começo
ao fim, ele apenas se modifica de um ato para outro. Você se lembra do filme Entre Dois Amores,
onde o conflito começa, no primeiro ato, essencialmente entre Bror e Karen, mas no segundo ato
passa a se desenvolver entre Karen e Denys?
Quando o conflito relacional não se firma ao longo da história, alguns diretores se voltam para
o tema em busca de coesão. Tanto o filme Entre Dois Amores como A Costa Do Mosquito são
filmes temáticos, cujos temas permanecem inalterados ao longo dos três atos, ainda que o conflito
se modifique. Entretanto, o uso do tema como instrumento de coesão apenas reforça ainda mais o
caráter narrativo, em vez de destacar o aspecto dramático da história.
Descobri que um dos meios de adaptar livros para o cinema é verificar se é possível converter
enredo principal em enredo secundário e vice-versa. Como nos livros o enredo principal geralmente
se desenvolve em torno da vida interior de um personagem, podemos transformar este enredo
principal num enredo secundário. Os enredos secundários de cunho mais relacional podem ser
trabalhados, criando assim uma linha relacional mais forte que atravessa todo o roteiro.
Quando trabalhei na adaptação de Christy, o best-seller que inspirou uma série de TV, tive que
enfrentar esse tipo de problema. O principal foco desse romance de 500 páginas era mostrar
Christy em busca de Deus e de sua identidade. Ao longo do livro, esse tema é trabalhado através
da história dessa moça que vai para os montes Apalaches, em 1912, para lecionar numa escola. Lá
enfrenta problemas de relacionamento com os alunos da escola, com um padre que também era
médico, e com uma rixa antiga que ameaçava o estilo de vida e as pessoas daquela comunidade.
No romance, a rixa é um mero enredo secundário que atravessa toda a história. Ao reelaborar
a estrutura do livro, trouxemos a rixa para o centro do palco, pois era ela que imprimia mais
movimento à história. Entretanto, no livro, Christy é mais uma observadora do que uma participante
da rixa. Sabíamos que ela precisaria ter uma participação maior na solução desse conflito. Para que
isso acontecesse, cruzamos a linha de dois enredos secundários, a linha do enredo da rixa com a
do enredo dos alunos da escola. Com isso, trouxemos à tona vários movimentos da história que,
no livro, estão mais implícitos do que explícitos. Combinamos algumas cenas e personagens do
livro, colocando muitas vezes Christy como elemento catalisador, em vez de usar para isto outros
personagens secundários do livro. Ao fazer com que Christy participasse mais de perto da rixa,
pudemos enfatizar também temas como o perdão, o compromisso com as pessoas da comunidade
e a sua busca de si mesma e de Deus. Christy estreou na primavera de 1994. Justamente por ser um
seriado, haveria uma séria de conflitos que poderiam ser transformados em algo mais específico
ou relacional.
Na adaptação, ser fiel a um livro frequentemente nos obriga a mexer um pouco na estrutura da
história, contrabalançando de modo mais dramático o enredo principal e os enredos secundários.
Isso significa trazer à tona alguns conflitos que estavam apenas implícitos no livro. Significa
também reordenar algumas cenas, de modo que o conflito fique bem evidente, em cada ato.

140
Voltar ao Sumário

Finalmente, significa ainda que é preciso trabalhar constantemente cada cena, adicionando-lhe
novas camadas para que a linha do conflito fique bem clara por toda a história.

APLICAÇÃO
No último capítulo, falamos sobre a relação entre motivação, ação e objetivo. Podemos agora
acrescentar mais um elemento a essa estrutura: o conflito.
Quando estiver definindo um conflito, procure expressar com clareza tanto o objetivo do
protagonista quanto do antagonista, em termos que possam de fato mostrar por que estão em
conflito. Por exemplo, se fôssemos traçar a linha dessa estrutura ao longo do filme A Testemunha,
teríamos o seguinte:
MOTIVAÇÃO AÇÃO OBJETIVO CONFLITO
John Book é chamado Ele se esconde na Provar que Paul é o John quer desmascarar
para descobrir quem é fazenda dos amish e assassino. Paul.
o assassino. procura um meio de

Paul é descoberto Primeiro Paul tenta Para matá-lo, antes que Paul quer matar John
por John. matar John; depois, John revele que ele é o antes que ele o entreg-
tenta encontrá-lo e vai assassino. ue à polícia.
atrás de John
Por este gráfico, dá para perceber que o objetivo de John é diametralmente oposto ao de Paul.
Portanto, quanto mais claro se puder mostrar essa relação de oposição, mais intenso ficará o
conflito.
Ao trabalhar o conflito, procure formas de expressá-lo com força visual e emocional. Segundo
o método Stanislavski, o ator é ensinado a verbalizar o superobjetivo (isto é, o objetivo principal)
de determinado personagem em termos dramáticos, que possam ser representados. Por exemplo,
se o objetivo do personagem em uma cena fosse obter certa informação, uma das alternativas do
ator seria simplesmente se expressar, dizendo: “Eu vou tentar conseguir essa informação”. No
entanto, isso soa muito fraco, e não expressa o objetivo de modo suficientemente dramático em
termos de ação. Portanto, seria melhor dizer: "Eu vou arrancar dele tudo que puder, não importa
como!” Isto sim nos dará uma cena dramaticamente muito mais forte.
Uma vez que o objetivo do protagonista e do antagonista estiverem claramente definidos e
verbalizados, demonstrando de forma inequívoca por que ambos estão em conflito, comece a
trabalhar com os outros personagens. Você pode passar nuances do conflito através de cenas de
conflitos secundários travados entre personagens principais e coadjuvantes. Por exemplo, se o
antagonista for um membro da Máfia, você pode criar um conflito entre ele e seu motorista em
alguma das cenas. Talvez discutam sobre o que fazer com outro mafioso (um quer matá-lo, o outro
quer apenas obter informações). Ou pode ser que o chefão da Máfia e seu alfaiate discordem
acerca de um terno. Ou pode ser ainda que a mulher do chefão comece a suspeitar de alguma coisa

141
Voltar ao Sumário

que o mafioso não quer que ela descubra.


Na maior parte dos roteiros, existem muitas cenas que oferecem várias oportunidades desse
tipo, e que podem ser trabalhadas.
Concluindo, ao analisar a questão do conflito no seu roteiro, faça as seguintes perguntas:
■ Quem é o protagonista? Quem é o antagonista? Qual é o tipo de conflito que se passa entre
eles? Trata-se de um conflito relacional, social, situacional ou cósmico? Será que exprimi a maior
parte do conflito de forma relacional?
■ Como eu expresso o conflito? Além de diálogos, estou utilizando também imagens e ação para
mostrar esse conflito?
■ Recorri à técnica de criar conflitos secundários entre os personagens, para dar mais impacto
à cena?
■ Existe um conflito principal que defina a questão central da história? Ele tem a ver com a linha
de ação da história e também com a estrutura do personagem?
O conflito pode ser usado para expressar um jogo de poder, desentendimentos, diferenças de
pontos de vista, atitudes e ideologias opostas, bem como o objetivos globais divergentes. Embora
um único conflito deva figurar no centro da história, lembre-se de criar conflitos secundários ao
longo de cada cena. Eles tornarão sua história mais interessante, pois lhe darão mais impacto e
dimensionalidade.

142
Voltar ao Sumário

CAPITULO 11

CRIANDO PERSONAGENS BEM DIMENSIONADOS

Os críticos adoram acabar com um filme, dizendo que o personagem não evolui ao longo da
história. A evolução de um personagem é fator essencial para uma boa história. À medida que o
personagem vai passando da motivação para o objetivo, algo deve acontecer nesse processo. Um
personagem bem construído ganha alguma coisa através de sua participação na história, assim
como a própria história também se enriquece por seu envolvimento.
Já comentamos anteriormente como Rose, personagem do filme Uma Aventura na África,
muda a direção da história, graças à sua personalidade, obstinação e determinação. Vimos que
esse mesmo tipo de dinâmica entre personagem e história se passa com Edna, no filme Um Lugar
no Coração, com Martin e Matt em Tubarão e com Oskar no filmei Lista de Schindler.
Todos esses personagens entram na história como personagens bem dimensionados, não como
estereótipos. E todos se tornam ainda mais dimensionais à medida que a história e os outros
personagens vão interagindo com eles — dando-lhes conselhos, ensinando-lhes coisas,
confrontando-os, pressionando-os ou influenciando-os. Essa capacidade de evoluir e se transformar
tem tudo a ver com o fato de se tratarem de personagens tão fantásticos e bem dimensionados, que
nos dão a impressão de serem maiores do que a própria vida.
Com certeza todos já tivemos oportunidade de nos deparar com personagens estereotipados,
que em regra são definidos por suas características físicas. Esses personagens, na verdade, são
unidimensionais. Normalmente podem ser descritos por uma ou duas palavras: a loira burra; o
detetive Machão; o salva-vidas musculoso; a modelo sensual. Muitas vezes esses personagens tem
apenas um papel secundário na história, e servem como uma espécie de enfeite para a cena. Mas,
também pode acontecer de tipos como esses estarem nos papéis principais, caso que restringe
bastante o filme, por eles terem dimensões tão limitadas. Personagens bem construídos são bem
mais amplos, mais próximos da realidade. Conseguimos ver seus diferentes lados. Entendemos a
forma como eles pensam. Vemos o modo como agem. Conseguimos captar suas emoções através
de suas reações.
A propósito, os pensamentos, as ações e as emoções podem ser definidos como as três dimensões
do personagem.
A maioria dos filmes subestima uma ou duas dessas dimensões e costuma destacar mais apenas
uma delas, criando assim um personagem-tipo. Um personagem-tipo é aquele definido por apenas
uma dessas dimensões. James Bond é um personagem-tipo. Ele é um herói e, como todo herói, é

143
Voltar ao Sumário

definido por ações. Sabemos muito pouco sobre suas atitudes (exceto que ele gosta de dormir com
mulheres bonitas). Seu lado emocional é irrelevante, praticamente inexistente. Ninguém jamais
verá James Bond chorar, sentir medo, demonstrar insegurança, ficar bravo, ou ser qualquer coisa
diferente de uma pessoa fria, impassível.
Todos já tivemos contato com outros personagens-tipo: a viúva chorosa que é pura emoção; o
acadêmico arrogante, todo filosófico; o salvador da pátria que é só ação.
No entanto, cada dimensão de um personagem é composta por outras subdivisões. Os
pensamentos, por exemplo, são compostos pela filosofia do personagem, seus valores, atitudes e
pontos de vista. As ações do personagem são compostas não apenas por suas ações propriamente
ditas, mas também daquelas decisões que levam a uma ação. As emoções abrangem o perfil
emocional do personagem, bem como suas reações emocionais. Embora em qualquer personagem
bem construído uma dessas dimensões possa ser mais preponderante, cada uma delas dará sua
contribuição para criar um personagem tridimensional.

FILOSOFIA/ATITUDES
A filosofia é a característica mais difícil de se retratar. Os personagens que são definidos
principalmente por sua filosofia se tornam abstratos, tagarelas, indulgentes e normalmente
enfadonhos. Não obstante, todo personagem dimensional tem uma filosofia, pois certamente
acredita em algo: talvez numa religião, na defesa dos direitos da mulher, na liberação homossexual
ou em Deus, na família ou em qualquer outra coisa desse tipo. Suas crenças vão afetar suas ações.
Um personagem que acredita na liberação homossexual, por exemplo, pode fazer parte de
passeatas, ser um veemente defensor dessa causa ou mesmo um homossexual praticante. Portanto,
sua filosofia vai assumindo uma forma dramática por meio das ações desse personagem.
Os personagens também têm uma atitude em relação à vida. Podem ser cínicos, decididos,
desligados ou agressivos. Uma coisa é certa: todo bom personagem assume uma atitude diante da
vida, quer seja uma atitude saudável ou neurótica; uma atitude confiante ou insegura; a atitude de
quem vê a vida através de lentes cor-de-rosa ou cinza. E essa atitude afetará diretamente as ações
que ele tomará e a forma como se relacionará com outros personagens.
Só conhecemos realmente um personagem por intermédio de suas ações e atitudes, e não
através de sua filosofia. Quando a filosofia e as ações conflitam, o que temos, na verdade, é um
personagem hipócrita. Se eu digo que amo a humanidade, mas, logo em seguida, ajo de forma
diferente, mantendo todo mundo à distância e me esforçando para tornar insuportável a vida dos
outros, é evidente que o que me define de fato são as minhas ações e atitudes, pois a minha filosofia
não passa de palavras vazias.
É bem mais fácil representar a atitude do que a filosofia de um personagem, pois a atitude pode
ser expressa com mais facilidade através da ação. Não é tão difícil assim demonstrar compaixão,
amor, aceitação ou cinismo. O grande perigo que encontramos tanto em termos de filosofia quanto
de atitude é o de fazer com que o personagem tente traduzir essa dimensão em palavras, em vez

144
Voltar ao Sumário

de representá-la.

DECISÕES/AÇÕES
A ação é a essência do drama. Em se tratando de literatura, podemos nos concentrar nos
sentimentos, atitudes e crenças dos personagens. Mas não no caso de uma peça dramática, onde o
foco é sempre a ação. A ação é composta de duas partes: a decisão de agir e a ação propriamente
dita.
Quando assistimos a um filme, normalmente só notamos a ação. No entanto, é a decisão de agir
que nos ajuda a compreender como funciona a mente do personagem. O momento da decisão —
aquele momento em
que o personagem decide se vai ou não puxar o gatilho, dizer “sim" para uma incumbência, ou
se envolver num relacionamento — é em geral um momento importante de revelação do
personagem.
Em Tootsie, vemos uma cena bem cômica, em que Michael se vê obrigado a tomar uma decisão
rápida. Ele está esperando Sandy, pois vai levá-la para jantar. Enquanto espera, vê “um lindo
vestido” no closet de Sandy, que parece feito sob medida para Dorothy. Então, ele decide prová-lo
e, justo nessa hora, Sandy entra no quarto. A situação corre o risco de ser mal interpretada, a
menos que Michael decida agir rapidamente:
SANDY
(abrindo a porta)
Michael, não temos que sair para jantar. Podemos comer aqui mesmo.
Ela vê Michael com as calças abaixadas e estranha a situação.
Michael dá um pulo, tentando se cobrir e procurando alguma coisa para dizer.
MICHAEL
Sandy...Eu...Eu quero você!
SANDY
(surpresa)
Você me deseja?
MICHAEL
(se move em direção a ela, com a calça nos tornozelos, braços abertos) Eu te quero, Sandy!
E Michael arranca risos da platéia com sua presença de espírito.
Já John Book, no filme A Testemunha, decide não fazer amor com Rachel, na noite da construção
do celeiro, e essa decisão é um dos momentos poderosos do filme. Rose, em Uma Aventura
naÁfricay decide permitir que Allnutt durma a seu lado, para se proteger da chuva, e essa decisão

145
Voltar ao Sumário

marca o início da mudança em seu relacionamento com ele. No filme O


fugitivo, acompanhamos o personagem de Sam Gerard em ação, decidindo o que fazer e como
fazer ao longo de todo o filme.
As decisões devem levar a ações específicas. Os personagens devem agir
na história. A função do personagem principal é levar a história para frente através de suas
ações. Há várias maneiras de um personagem ser ativo, em vez de passivo. Ele pode procurar algo,
investigar um crime, descobrir a verdade, passar a perna em alguém, planejar uma estratégia,
modificar outros personagens ou a si mesmo, criar uma nova situação, manipular alguém, vingar-
se de alguém ou corrigir alguma injustiça cometida. Qualquer que seja a ação escolhida, o
importante é que ela seja capaz de levar a história adiante, que o personagem tenha que tomar uma
série de medidas para colocá-la em prática e que isto afete o desenrolar da história.
Há certas histórias em que o personagem é muito passivo no começo.
A história vai acontecendo e ele é levado de um lado para o outro pela história. Quando isso
acontece, é indispensável que o personagem principal, a uma certa altura, assuma o controle da
situação. Em algum ponto, e certamente antes da metade da história, o protagonista precisa
começar a agir. Trocando em miúdos, o protagonista precisa começar a fazer a história acontecer,
e não simplesmente ficar à mercê dela.

PERFIL EMOCIONAL /REAÇÕES EMOCIONAIS


Normalmente em uma história as emoções são deixadas meio de lado. Ou muitas vezes limitam-
se apenas a algumas lágrimas, expressões de raiva e coisas do tipo. Contudo, os personagens têm
um perfil emocional que os define tanto quanto suas atitudes. Uma atitude cínica pode dar origem
a um perfil emocional marcado pelo desespero, depressão ou por uma fuga da vida. Ou pode
resultar num personagem rabugento, amargo ou furioso. Já uma atitude positiva pode resultar
num personagem que está sempre com um sorriso no rosto, de bem com a vida, uma pessoa
otimista, acessível e disposta a ajudar os outros. Da mesma forma, um personagem dominado por
uma atitude de isolamento pode ser frio, distante, ter um coração duro, ser hostil e vingativo.
Os personagens são definidos por seu perfil emocional e suas reações emocionais surgem a
partir dessa definição. Situações excepcionais provocam reações emocionais também excepcionais.
Um personagem normalmente alegre pode ficar furioso diante de uma injustiça praticada. Um
personagem desesperado pode ser tocado pelo amor, fazendo despertar uma série de reações
emocionais totalmente diferentes. Certos filmes mostram personagens com um espectro emocional
muito limitado. Raramente conseguimos perceber como Karen Blixen se sente no filme Entre
Dois Amores. Na maior parte do tempo, seja durante o incêndio em sua fazenda, seja quando ela
se divorcia de Bror, suas reações são racionais. Ela tende mais a discutir uma situação do que a
chorar, ficar brava ou com medo. Porém, em circunstâncias excepcionais, mesmo suas reações
usuais se alteram. Quando Denis a leva para seu primeiro passeio de avião, sobrevoando aquele

146
Voltar ao Sumário

pedaço maravilhoso da África, ela se volta para trás, segura a mão dele com carinho e os olhos
marejados de lagrimas, e sussurra um emocionado: “obrigada”.
No extremo oposto, encontramos um personagem como Tess McGill, em Uma Secretária de
Futuro, que tem um amplo espectro emocional. No decorrer do filme ela demonstra desapontamento,
raiva, determinação, ansiedade e alegria. Suas reações emocionais nos cativam e nos levam para
dentro de seu personagem e do filme.
Assim como muitos filmes deixam de fora da história o momento em que um personagem
decide pôr em pratica determinada ação, também deixam de fora o momento que mostraria a
reação emocional que essa ação provoca. Os filmes frequentemente mostram apenas as ações e
reações impactantes e seus efeitos sobre os personagens. Muitas vezes vemos um personagem
completamente destruído, mas não conseguimos perceber as reações emocionais que fariam com
que pudéssemos entendê-lo melhor. Os sentimentos dos personagens despertam a empatia da
audiência, fazem com que nos identifiquemos com o personagem. As emoções fazem com que o
público se envolva com a história e sinta-se na pele do personagem, vivendo com ele suas emoções.

A CADEIA DIMENSIONAL
Essas três dimensões geram uma cadeia dimensional que ajuda a definir os personagem em
todos os níveis. A filosofia do personagem inspira determinadas atitudes perante a vida. Essas
atitudes geram certas decisões que, por sua vez, geram certas ações. Essas ações nascem do perfil
emocional do personagem, que o predispõe a fazer determinadas coisas e não outras. Ele também
reage emocionalmente de uma certa maneira, em resposta às ações dos demais personagens.

O ARCO DE TRANSFORMAÇÃO DO PERSONAGEM


Nos bons filmes encontramos no mínimo um personagem que se transforma no decorrer da
história. Os produtores sempre perguntam: “Como esse personagem cresce? Como ele evolui?”
Eles reconhecem o fato de que uma história impactante, com personagens fortes, tem potencial
para influenciar e transformar o protagonista. Nem todo filme precisa ter um arco de transformação,
embora a maioria dos melhores filmes mostrará as transformações de pelo menos um dos
personagens no decorrer da história. Esse personagem normalmente é o protagonista. Lembre-se
das transformações que acontecem nos filmes Os Imperdoáveis, Atração Fatal e O Piano. Às vezes
são os personagens coadjuvantes que mudam, enquanto o protagonista permanece a inalterado.
Em De Volta para o Futuro, Marty é essencialmente a mesma pessoa do início ao fim do filme; já
seus pais — George e Lorrain McFly — transformam-se em pessoas totalmente diferentes.
A transformação de um personagem pode ser extrema, levando-a a ocupar uma posição
diametralmente oposta à que ocupava a princípio, ou ele pode simplesmente passar para uma
posição intermediária. Por exemplo, um personagem inflexível pode sofrer uma alteração completa,
tornando-se, no final do filme, uma pessoa espontânea, extrovertida. Ou pode, por outro lado,
soltar-se só um pouco, mantendo ainda um certo senso de disciplina. O arco de transformação de
147
Voltar ao Sumário

um personagem pode ser representado da seguinte forma:


POSIÇÃO INICIAL POSIÇÃO MODERADA POSIÇÃO EXTREMA
No filme De Volta Para o Se a transformação tivesse sido Aqui torna-se o oposto: confi-
Futuro, George Mcfly começa moderada, George ficaria mais ante, forte, atraente, ativo; com
como um nerd, um cara tímido, confiante, mas não teria virado Biff a seu dispor.
controlado por Biff. a mesa com Biff.

POSIÇÃO INICIAL POSIÇÃO MODERADA POSIÇÃO EXTREMA


No filme Uma Aventura na Se Rose tivesse passado para Aqui ela torna-se espontânea,
África, Rose é uma solteirona uma posição moderada, ela amável, mais aberta, casa-se.
tensa e inflexível. continuaria a ser um pouco
inflexível, mas teria seus mo-
mentos de espontaneidade.
O arco de transformação de um personagem pode ser bem sutil. Em O Fugitivo, a transformação
do agente Sam Gerard é apenas de atitude. Pouco a pouco, no decorrer do filme, nós o observamos
passar de uma posição de indiferença do tipo “Estou pouco ligando se Richard Kimble é inocente
ou não”, para uma posição de consideração e respeito, à medida que ele começa a se esforçar para
encontrar o homem de um braço só e capturar o assassino.
Em A Lista de Schindler, a mudança de uma posição mais materialista para uma posição mais
humana acontece de forma velada, à medida que Oskar Schindler vai lentamente mudando sua
atitude em relação a Amon Goethe, aos alemães, aos judeus e em relação a si mesmo. No final do
filme algo de profundo acontece, quando ele grita: “Eu poderia ter feito mais!” Os personagens
precisam de ajuda para mudar. Eles recebem essa ajuda por influencia da própria história e de
outros personagens. As vezes, um personagem funciona como o elemento catalisador para as
mudanças que ocorrerão em outros personagens. Em De Volta para o Futuro, não é Marty quem
precisa passar por mudanças, mas sim seus pais. Marty ocupa mesma posição ao longo de toda a
história, mas é um forte elemento catalisador para as extraordinárias transformações sofridas por
seus pais. Em Guerra nas Estrelas, a Princesa Leia sofre transformações muito pequenas no
decorrer da trama. Ela mantém sua posição original, mas sua presença e influência provocam
alterações em Han Solo e em Luke Skywalker.
Em outras histórias, ambos os personagens se transformam. Em Uma Aventura na Áfiica, Rose
se torna uma pessoa mais aberta e espontânea
enquanto Allnutt, um beberrão sem compromisso com nada, torna-se sóbrio e mais relacional.
Ambos percorrem todo o arco de sua transformação. Em Tootsie, Michael Dorsey se torna um
homem melhor por ter vivido na pele de uma mulher.
Transformar um personagem exige um certo tempo; não é algo que acontece em umas poucas
páginas. Normalmente são necessários três atos inteiros para criar uma transformação total. É um
processo que acontece passo a passo, aonde a transformação vai sendo construída lentamente, a
cada momento. Esses momentos mostram de diversas formas as alterações que vão acontecendo.

148
Voltar ao Sumário

Acompanhamos as decisões que um personagem toma e como essas decisões vão se modificando
com o decorrer da história. Percebemos novas reações emocionais diante de situações inéditas. E
observamos também as novas ações que o personagem aprende a ter, em consequência das
exigências da história e de sua interação com os demais personagens.
Para entender um pouco mais essa transformação, vamos observar passo a passo as mudanças
que marcam o arco de transformação de Rose, no filme Uma Aventura na Africa. Nós poderíamos
esquematizá-las da
seguinte forma:
A atitude de Rose em relação a Allnutt e a atitude dele em relação a ela começam pela mais
completa indiferença.
ROSE
(Indiferente)
Bom dia, Sr. Allnutt
ALLNUTT
Bom dia, senhorita...
Por um momento, Allnutt observa Rose de forma totalmente casual e indiferente.
Por esta apresentação, podemos notar que não há qualquer traço de amor entre o mal-educado
Allnutt e a bem comportada Rose.
Quando o irmão de Rose morre e Allnutt volta para ver o que acontecera com eles, o
relacionamento já se modifica um pouco. Rose fica agradecida pelo retorno de Allnutt e por ele
ajudá-la a enterrar seu irmão.
ALLNUTT
Sabe de uma coisa, enquanto eu cavo essa cova, você deveria ir juntando suas coisas, moça...
Assim, podemos nos mandar daqui…
ROSE
Nos mandar daqui?
ALLNUTT
Os alemães podem voltar a qualquer momento.
ROSE
Mas por que voltariam? Não deixaram pedra sobre pedra.
ALLNUTT
Ah, eles vão voltar sim. Atrás do African Queen...
ROSE

149
Voltar ao Sumário

E para onde iremos?


ALLNUTT
Tô pensando, moça, em como podemos encontrar algum lugar sossegado, atrás de alguma ilha!
Aí podemos parar ali um pouco e discutir o que vamos fazer.
ROSE
(uma pausa, e em seguida, uma decisão rápida)
Está certo, vou aprontar minhas coisas.
(...)
Obrigado, Sr. Ailnutt.
ALLNUTT
A senhorita faria o mesmo por mim, moça.
Pensando no que havia acabado de dizer, começa a se perguntar, literalmente, se ela realmente
faria o mesmo por ele.
O próximo grande passo no desenvolvimento dessa relação acontece em sua primeira noite, no
barco. Rose está dormindo sob um toldo e ALlnutt, na proa do barco. Começa a chover. Para se
proteger da chuva, Ailnutt tenta silenciosamente ir para debaixo do toldo, sem acordar Rose. Mas
ela acorda e imagina o pior a respeito dele. Allnutt recua. Neste instante começam a cair muitos
raios, seguidos por um trovão estrondoso. Rose, desconcertada e arrependida, começa a entender
o que havia se passado.
ROSE
Sr. Allnurt. Saia da chuva, entre aqui.
ALLNUT
Desculpe se a assustei.
ROSE
Tudo bem, Sr. Allnutt.
Ele vira de costas e tenta se acomodar... Alnutt se espreme no pouco espaço ainda seco, fazendo
o possível para não se encostar nela, tentando se proteger da chuva. Apoiada num dos cotovelos,
ela o observa com uma ternura estranha, calma e virginal. Respingos de chuva caem no rosto de
Allnutt. Delicadamente, mas de uma forma completamente desprovida de sentimentos, como se
ele não passasse de um objeto ou bichinho horroroso que ela não quisesse ver molhado, Rose puxa
a ponta do tapete em que está deitada, para protegê-lo da chuva.
À medida que descem o rio, Allnutt percebe que Rose está seriamente determinada a torpedear
o Louisa. Quando se embriaga, ele a chama de “solteirona magricela, maluca e carola”, o que apenas
reforça sua determinação. Na manha seguinte, Rose joga fora todas as bebidas de Allnutt. Ela está

150
Voltar ao Sumário

furiosa com ele... e Allnutt tenta melhorar seu humor. Faz a barba, tenta puxar prosa, mas ela só
quebra seu silêncio e se torna amável novamente, quando ele finalmente concorda com seu plano
de atacar o barco Louisa.
Durante esse movimento ao longo do arco, vemos que eles tiveram uma tremenda discussão,
mas conseguiram superá-la. O relacionamento dos dois se modifica novamente. Agora eles têm o
mesmo propósito e estão prontos para desempenhar sua missão.
No final do primeiro ato, Rose e Allnutt estão bastante mudados. Eles já pediram desculpas um
ao outro, já se ajudaram mutuamente, e a emoção da aventura começa a dar vida nova a Rose.
No decorrer do segundo ato, podemos notar vários momentos que mostram as mudanças em
seu relacionamento: o primeiro beijo, a primeira vez que Rose chama Allnutt de “querido”, as
aventuras e preocupações que eles compartilham.
Logo depois que passam por Shona e atravessam as corredeiras em segurança, Allnutt e Rose
festejam, dando origem a um outro ponto de virada em seu relacionamento:
ALLNUTT
Conseguimos! Conseguimos!
ROSE
Hip, hip, hurra!
ALLNUTT
Com certeza pregamos uma peça neles desta vez, hein, garota? Eu não acreditava que fosse
possível. Puxa, nós mostramos a eles!
ROSE
Hip, hip, hurra!
Charlie a beija. Um silêncio embaraçoso se segue.
ROSE
Eu pilotei bem o barco?
ALLNUTT
Claro, mais que bem, garota. Bem, estamos ficando sem combustível. Melhor atracar em algum
lugar.
E o plano deles continua a correr bem até que encalham num banco de areia, e tudo parece
perdido.
ALLNUTT
Quer saber a verdade?
ROSE

151
Voltar ao Sumário

Com certeza.
ALLNUTT
Com certeza
ROSE
Mesmo que fizéssemos a maior força, jamais conseguiríamos desencalhar esse barco.
ALLNUT
Sem chance.
Ele passa a mão no rosto dela. Lemamente ela compreende, e nós também, que sua única
preocupação é com a morte.
ALLNUT
Não se fazem mais mulheres como você.
E já bem no final da história, quando eles estão prestes a serem executados pelos alemães, a
transformação se completa:
ROSE
O senhor pode nos enforcar juntos, por favor?
ALLNUTT
Um momento aí, capitão. Podemos fazer um último pedido?
CAPITÃO
Qual seria?
ALLNUTT
Poderia nos casar?
CAPITÃO
O quê?!
ALLNUTT
Nós queremos nos casar. Capitães de navios podem fazer casamentos, não podem?
CAPITÃO
Hum, hum.
ROSE
Oh, Charlie, que idéia maravilhosa!
CAPITÃO
Que besteira é essa?

152
Voltar ao Sumário

ALLNUTT
Ah, Capitão, vem cá. Só levaria um minuto e significaria tanto para a moça.
CAPITÃO
Bem, se vocês querem. Por que não?
E então o capitão casa os dois.
CAPITÃO
Eu os declaro marido e mulher. Continuem com a execução.
No momento seguinte, o convés é arremessado para cima, ocorre um forte deslocamento de ar,
ouve-se um ruído impressionante e os dois são atirados na água.
ALLNUTT
Que aconteceu?
ROSE
Conseguimos, Charlie, conseguimos!
ALLNUTT
Mas, como?
Rose mostra um destroço flutuando, onde se vê escrito: African Queen.
ALLNUTT
Bem, eu vou... Tudo bem com você, Sra. Allnutt?
ROSE
Maravilhosamente bem. E com você, Sr. Allnutt?
ALLNUTT
Muito bem, para um velho homem casado.
ROSE
Estou totalmente perdida, Charlie. Para que lado fica a costa sul?
ALLNUTT
Na direção em que estamos nadando, garota.
Note como o filme espaça os momentos de transformação ao longo do arco. Nada acontece de
forma abrupta. As mudanças ocorrem à medida que cada personagem é confrontado com as
exigências da situação, na proporção em que seus propósitos se chocam e depois se tornam um só,
e à medida que um precisa do outro para atingir seu objetivo. Cada personagem sofre a influência
do outro e reage através de novas ações e emoções. Eles eram uma pessoa no início do filme e
outra quando o filme terminou.

153
Voltar ao Sumário

Uma Aventura na Africa é um excelente exemplo de uma história que influencia os personagens
e de personagens que influenciam a história. É claro, coerente e realista. Em virtude disso, vamos
nos envolvendo passo a passo com as mudanças que ocorrem em Rose e Allnutt.

PROBLEMAS PARA CRIAR UM PERSONAGEM DIMENSIONAL


Tempos atrás, trabalhei com um roteirista que escreveu um dos filmes de sucesso da temporada
de 1985. Ele trabalhava em outro roteiro que era bastante complexo, difícil e que possuía como
protagonista uma mulher, descrita como “uma bela loira, de longas pernas”. À medida que eu
analisava o roteiro, logo se tomou evidente que ele havia criado um belo de um estereótipo, sem a
dimensionalidade ou originalidade presentes em seus personagens masculinos. Isto me surpreendeu
um pouco, pois sabia que ele era um excelente roteirista, bem como era um
homem muito bem casado, liberado, e tinha uma esposa bem sucedida profissionalmente.
Quando ele chegou na reunião, antes mesmo que eu tivesse a oportunidade de tecer comentários
sobre essa personagem, começou a me falar de sua frustração com relação a ela. Ele já fizera de
tudo, mas simplesmente não conseguia fazê-la dar certo. E me explicava que não era “daquele tipo
de homem”, insistindo que via as mulheres como pessoas dimensionais e completas, que amava
sua esposa e que várias de suas melhores amizades eram mulheres. Apesar de tudo isso, ele não
estava conseguindo dar vida a este personagem em especial, e me garantiu que era capaz de criar
personagens bem melhores do que este.
Quando começamos a trabalhar no personagem, eu disse a ele que havia se colocado num beco
sem saída com a descrição que fizera dela. Uma vez que ele a descrevera fisicamente de forma
estereotipada, não havia jeito de fazê-la se libertar do estereótipo.
Sugeri que mudássemos a descrição do personagem. Em vez de descrevê-la por sua beleza,
tentamos uma abordagem parecida com a que ele havia usado para os personagens masculinos.
Eles eram descritos pelas roupas que usavam, por seu caráter (ou pela falta dele), por suas atitudes,
ou pelos traços de desespero ou esperança em seus rostos. Então, conseguimos fazer com que
aquele personagem se tornasse mais dimensional, tão logo criamos uma descrição mais realista
para ele.
Criar personagens dimensionais não é nada fácil. O roteirista encontra várias armadilhas e
ciladas pelo caminho. Às vezes, cai na tentação de buscar inspiração para seus personagens em
outros filmes, e não na vida real. Já li mais de um roteiro que descreve um personagem como um
“tipo Harrisson Ford, na pele daquele personagem que ele faz no filme Os Caçadores da Arca
Perdida", ou “um tipo James Bond, representado por Roger Moore”.
Outras vezes, o autor omite um aspecto do personagem — como sua filosofia ou suas reações
emocionais — por ser algo que não está tão patente ou não pode ser tão facilmente reconhecido
como uma ação. Como os filmes que eles assistem costumam destacar mais um aspecto do que os
outros, isso os leva a pensar que as demais dimensões não sejam importantes Criar personagens

154
Voltar ao Sumário

dimensionais exige muita observação da vida real. Os melhores escritores são aqueles que parecem
estar sempre prestando atenção aos pequenos detalhes, a peculiaridades dos personagens, e
escutando um certo ritmo que cada um deles tem. Eles fazem de tudo para ultrapassar a barreira
dos estereótipos e expandir sua compreensão humana. Além disso, respeitam profundamente seus
personagens, dando-lhes plena liberdade para encontrar uma grande diversidade de pensamentos,
ações e emoções.

APLICAÇÃO
Quando estiver trabalhando novamente um personagem, algo que ajuda muito é começar pelo
arco de transformação. Comece se perguntando quais são as habilidades e características de que o
protagonista precisa para alcançar seu objetivo. Por exemplo, Rose, personagem do filme Uma
Aventura na Africa, precisará adquirir mais espontaneidade, engenhosidade, coragem,
determinação e amor, para vir a ser a mulher que se torna no final do filme. Agora observe o ponto
de partida do seu personagem e estude, dentre estas características que ele tem logo no início,
quais terão que se modificar ou ser adquiridas à medida que a história evolui.
Agora imagine como o personagem fará para chegar a essas mudanças necessárias. O que
precisa acontecer na história para que isso se concretize? Como as demais personagens podem
ajudar o protagonista nessa caminhada?
Então, pergunte a si mesmo: há mostras da filosofia desse personagem ao longo da história?
Essa filosofia é expressa por ações, em vez de falas? Dá para perceber claramente as atitudes do
personagem? Sabemos como ele se sente em relação aos outros personagens e em relação à situação
em si? Estas atitudes levam o personagem a certas ações?
Se você quer que seu personagem desperte empatia, verifique suas reações emocionais e a
maneira como você mostra ao público seu perfil emocional. Tente ampliar o espectro emocional
do personagem. Alguns psicólogos dizem que todas as emoções se enquadram em uma das
seguintes categorias: loucura, tristeza, alegria e medo. No entanto, dentro dessas categorias existem
muitas outras emoções como raiva, fúria, frustração, irritação, encantamento, arrebatamento, ou
mesmo sentimentos como ficar paralisado de medo ou ter uma descarga de adrenalina diante de
algum perigo. Procure encontrar maneiras de expandir as emoções dos personagens além do
habitual medo, raiva e paixão.
Observe as ações de seus personagens. Elas desempenham um papel ativo ou passivo na história?
Essas ações ajudam a história a caminhar e também a definir os personagens?
Há personagens que gostam de jogar golfe. Outros gostam de tricotar, ler ou de colecionar
pequenos objetos Alguns têm tiques nervosos. Outros têm certas manias, como mania de limpeza,
seja tirando o pó de tudo, polindo maçanetas ou lavando a mãos o tempo todo. Detalhes como
esses ajudarão a expandir e revelar seu personagem, enquanto mantêm o foco nas ações necessárias
para que a história avance.

155
Voltar ao Sumário

Quando estiver analisando especificamente as dimensões e transformações no seu roteiro,


pergunte a si mesmo:
■ Será que estou travado por causa de estereótipos? Será que defini algum personagem de
forma unidimensional, em vez de criar um personagem tridimensional?
■ Qual é o arco de transformação do protagonista? Será que dei aos meus personagens tempo
suficiente para que suas mudanças aconteçam? Estas mudanças são verossímeis?
■ Quais são as influências exercidas sobre os personagens principais que os ajudam a mudar?
Existe algum personagem catalisador? Existe algum relacionamento amoroso? A história força as
mudanças do personagem?
■ Dá para ver claramente, através de imagens e ações, como as influências da história e dos
demais personagens criam toda a transformação que acontece? Será que essa transformação ajuda
a expressar, ao mesmo tempo, o tema e a história?
Prestar atenção à dimensionalidade e à transformação ajudará você a criar personagens que o
público dificilmente esquecerá. E ao enfatizar esses elementos, você também estará aumentando a
identificação com o público e a viabilidade comercial do filme.

156
Voltar ao Sumário

CAPÍTULO 12

A FUNÇÃO DOS PERSONAGENS

Muitos roteiros parecem não sair do lugar, ficam meio confusos ou muito pesados. Às vezes isto
pode ser um problema da história que está meio confusa, inconsistente ou mal estruturada. Mas
normalmente é um problema do personagem. Pode ser que o roteiro tenha simplesmente
personagens demais e não dê para saber muito bem o que cada um deles está fazendo ali. Mesmo
que você goste deles, não parecem ser necessários para o desenrolar da trama. Os personagens
começam a trombar uns nos outros, confundindo a história e ficamos sem saber para onde voltar
nossa atenção ou a quem devemos acompanhar.
Num filme de cerca de três horas de duração só podemos absorver uma certa quantia limitada
de personagens. Ter muitos deles ao mesmo tempo seria demais para nós, como se tivéssemos
assistindo a um circo com três picadeiros. Simplesmente não saberíamos para onde olhar. Em
geral, um filme comporta apenas cerca de seis a sete personagens principais. Na maioria dos casos
encontramos de três a cinco. Entre eles estão incluídos o protagonista, seu parceiro amoroso e,
talvez, de um a dois personagens coadjuvantes. Em filmes como O Reencontro, Quando os Jovens
se Tornam Adultos, O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas, Clube dos Cinco ou Sete Homens
e um Destino, você geralmente encontrará de cinco a sete personagens. Dificilmente verá mais do
que isso.
E evidente que isso nos conduz à seguinte questão: “o que devemos cortar?” É bem provável que
você tenha seus personagens favoritos, bem como aqueles que são únicos e memoráveis. Lamento
lhe dizer que favorito não é um critério válido para o nosso trabalho. Normalmente, quando
chegamos a ponto de ter que cortar alguns personagens, torna-se fundamental investigar as
funções de cada personagem.
Em tese, todo personagem deveria ter um papel essencial a desempenhar no filme. Eles
contribuem com algo específico para a produção como, por exemplo, fornecer alguma pista para
uma investigação, ser o parceiro amoroso de alguém, dar profundidade ou acrescentar sabedoria
à historia ou simplesmente ser um personagem cuja função seja dar importância ao personagem
principal (como uma secretária ou um guarda-costas). No entanto, todos devem ter uma boa
razão para estar na história.
É bem verdade que há vários personagens que desempenham mais de uma função. Pode haver
um personagem que seja ao mesmo tempo o parceiro amoroso de alguém, um elemento catalisador
na história e também um confidente. No entanto, na maioria dos casos, não haverá diversos
personagens desempenhando a mesma funçao, pois se vários tiverem a mesma função, o efeito de
157
Voltar ao Sumário

cada um deles se dissipará. Assim, repetir o mesmo tipo de personagem significa que o escritor
não terá tempo suficiente para dar dimensionalidade a todos eles.
Em geral, podemos dividir as funções dos personagens em cinco categorias: personagens
principais, coadjuvantes, personagens que dão dimensão à história, personagens temáticos e
personagens que dão importância a outros.

PERSONAGENS PRINCIPAIS
São aqueles que praticam a ação. Cabe a eles a responsabilidade de levar a história adiante.
Portanto, os personagens principais são sempre o foco da atenção do filme. São eles que fornecem
subsídio para o conflito principal e são suficientemente interessantes para prender nossa atenção
por cerca de três horas.
O personagem principal é o protagonista, ou seja, aquele em torno do qual a história gira.
Espera-se que o público o acompanhe ao longo do filme, torça por ele, emocione-se com ele,
enfim, que ele desperte a empatia do publico. Quase sempre se trata de uma figura positiva. Ele é
o herói da história como James Bond, Luke Skywalker, Ripley do filme Alien, o 8º Passageiro e
Oskar Schindler. Porém, o fato de ser o herói não significa que o personagem seja perfeito, que não
tenha suas falhas. Podemos até chegar a sentir raiva do protagonista, ou não gostar de certas
características dele, mas certamente é ele quem prende nossa atenção. É alguém feito para ser
visto.
De quando em quando, o protagonista pode ser um personagem do tipo negativo. A Honra do
Poderoso Prizzi, Amadeus, E o Vento Levou são exemplos de filmes cujos protagonistas não
necessariamente despertam nossa empatia ou são simpáticos. Mesmo assim eles conseguem nos
envolver na história. Vemos a história a partir do seu ponto de vista.
Para que haja conflito dramático, o protagonista precisa enfrentar a oposição de alguém que
vem a ser o antagonista. Em regra, ele é a pessoa que luta contra o herói. Mozart foi o antagonista
de Salieri; Darth Vader, o antagonista de Luke Skywalker, Paul Schaeffer, do filme A Testemunha,
é o antagonista de John Book.
Algumas vezes o antagonista é composto de uma combinação de personagens. No filme Os
Caça Fantasmas o antagonista é representado por todos os fantasmas. Em Tubarão, o antagonista
é simbolizado pelas autoridades e líderes da cidade. Nesses casos, o antagonista pode ser
representado por um grupo de personagens coadjuvantes, cuja função é impedir que o protagonista
alcance seu objetivo.
Em geral o protagonista tem alguém por quem ele se interessa. A função desse personagem é
dar dimensão e profundidade ao personagem principal.
No filme Tootsie, por exemplo, a beleza, a fragilidade, a feminilidade de Julie, o relacionamento
dela com os filhos, tudo isso serviu para fazer com que Michael deixasse de ser um machão
insensível e se tornasse um amigo atencioso. Por outro lado, a perspectiva singular de Michael

158
Voltar ao Sumário

também forçou uma mudança na vida de Julie.

PERSONAGENS COADJUVANTES
Os personagens principais não fazem a história sozinhos. Eles precisam de ajuda para alcançar
os seus objetivos. Na verdade precisam de personagens coadjuvantes que fiquem contra ou a favor
deles — pessoas que lhes passem informações, que os escutem, os aconselhem, que os incentivem
ou não, que os forcem a tomar decisões, que os confrontem, enfim, que os ajudem a ganhar vida.
Uma das funções que o personagem coadjuvante costuma ter é a de ser um confidente. Não
raro encontramos um confidente nas peças, particularmente, naquelas encantadoras comédias
inglesas do século XVIII,nas quais sempre tem uma criada a quem a nossa heroína conta seus
segredos mais íntimos. A heroína confia nessa pessoa, contando-lhe quem ama, seu medo do
primeiro encontro, seus ciúmes e preocupações. Em seus ombros, a heroína chora, sorri, e se apoia
em busca de ajuda para montar uma estratégia que a ajude a conquistar o amor de sua vida.
Já nos filmes, a figura do confidente costuma ser bem menos interessante. Não precisa ser
necessariamente assim, mas, lamentavelmente a idéia que se tem do confidente é de um personagem
em quem o protagonista confia, e não alguém a quem ele revele a si mesmo. Isso faz com que o
roteiro fique muito verbal, tomando o lugar do velho e bom drama.
Muitas vezes o confidente também é usado como pretexto para passar informações para a
audiência. Em decorrência disso, as cenas em que ele aparece normalmente ficam muito lentas,
repletas de monólogos e usadas como uma ocasião em que se fala tudo aquilo que é considerado
difícil de mostrar dramaticamente.
No entanto, o confidente não precisa ser uma figura monótona. Pense nele mais como uma
pessoa a quem o protagonista se revela, e não alguém com quem ele simplesmente fale. Na verdade
esse é um personagem confiável em cuja presença o protagonista pode ser ele mesmo. Em vez de
simplesmente falar e ouvir, o confidente representa uma oportunidade para que o protagonista
chore, ria, exponha seu lado mais vulnerável, revelando assim outras dimensões de si mesmo.
No filme Tudo por Uma Esmeralda, Glória (a editora e confidente) e Joan discutem sobre suas
atitudes perante os homens e a preparação de Joan por sua irmã. Mas note como se desenrola essa
discussão: não através de uma cena chata de diálogo, mas com humor e jogando com as emoções.
Joan se encontra com sua editora, Glória, em um bar. Juntos analisam os homens, clientes habituais,
que se encontram ali naquele momento.
GLORIA
Chato..., chato..., triste..., um fracassado, um grande fracassado..., aborrecido..., duvidoso...,
desesperado... Ah... Muito alegre!... Oh, olha aquele ali, o senhor comedor. Eu costumava sair com
ele. Um palhaço completo! Espera! Espera!... Da uma olhada naquele ali, que tal?
JOAN

159
Voltar ao Sumário

Bem, não é bem...


GLORIA
Então quem? Jesse?
JOAN
Talvez seja uma bobagem. Mas acredito que existe alguém pra mim por aí...
E uns poucos minutos mais tarde, depois de dar a novela a GLÓRIA, Joan a conta sobre sua
preocupação com sua irmã, Elaine:
GLORIA
Sei o quanto tem trabalhado e que está transtornada por sua irmã. Como ela anda? tem notícias
dela?
JOAN
De Elaine? Falei com ela semana passada. Ainda está na Colombia.
GLORIA
Já encontraram o corpo do marido dela?
JOAN
Apenas um... pedaço
GLORIA
Como ela tem levado a vida?
JOAN
Ela está se recuperando. Elaine sempre supera.
Nessa cena a exposição é mínima. É mostrada a atitude de Joan quanto aos homens e a situação
de sua irmã, mas o foco da cena é ativo. Ficamos sabendo sobre a animação do bar e a ação de Joan
ao entregar a Gloria sua nova novela e as emoções que envolvem esse momento. Existe um motivo
dramático que vai além da merda exposição e a cena torna-se essencialmente relacional: expressa
a amizade entre Joan e Gloria.
Às vezes, quem assume esse papel é um parceiro, podendo até mesmo ser um outro protagonista.
Nos filmes Butch Cassidy, 48 Horas e Máquina Mortífera temos parceiros que também são
confidentes. Em muitas séries feitas para a televisão, parceiros ou pessoas que trabalham juntas
desempenham esse papel quando necessário, mesmo que sua principal função seja a de tocar a
ação adiante. (Observe a figura de alguns confidentes, como o comandante e o Major Kira em
jornada nas Estrelas — Deep Space Nine — 1ª temporada, Dr. Mark Sloane e seu filho detetive em
Diagnóstico: Homicídio, ou a relação de confidência entre Jessica e pessoas de sua família em
Assassinato por Escrito.
Outra função importante que um personagem assume é a de ser um elemento catalisador. O

160
Voltar ao Sumário

elemento catalisador é aquela pessoa que fornece alguma informação ou dá causa a algum
acontecimento que leva o protagonista a agir. No filme A Testemunha, Samuel desempenha essa
função.
É ele quem presencia o assassinato e conta tudo ao detetive John. Em função disso, John Book
consegue levar a investigação em frente.
Em Tootsie, o elemento catalisador é Sandy, uma vez que é ela quem conta a Michael sobre o
papel na telenovela.
O catalisador também pode ser um personagem secundário. No filme O Fugitivo, o prisioneiro,
que está no ônibus que se dirigia ao presídio, e começa a tossir, atacando o guarda em seguida, é o
elemento catalisador, pois é ele o responsável pelo acidente que possibilitou a fuga de Richard
Kimble. Às vezes, é esse personagem que fornece a pista que leva à solução do crime.
Ele também pode provocar uma transformação no protagonista. Nesse caso, o elemento
catalisador pode ser um terapeuta, um dos pais, ou mesmo um amigo do protagonista que o
confronta, provocando essa mudança. Pode ainda ser um policial que prende o protagonista ou o
juiz que profere a sentença, levando o protagonista a mudar de vida.
Quase toda a história tem um elemento catalisador, pois o protagonista não pode fazer tudo
sozinho. Todo protagonista precisa de ajuda para dar um impulso inicial na história e não permitir
que ela deixe de avançar.
Quando estiver criando um personagem desse tipo, é importante que faça dele uma figura
ativa, que ajude no desenrolar da história por meio de suas ações, e não de diálogos.

PERSONAGENS QUE DÃO DIMENSÃO À HISTÓRIA


Se a história fosse simplesmente linear e o protagonista alcançasse seu objetivo apenas com
uma pequena ajuda de alguns personagens catalisadores, o filme começaria a perder o interesse.
Sempre tem que haver certos personagens que dão uma certa dimensionalidade não só à história
mas também aos personagens principais. Isso não significa que esse personagem necessariamente
seja dimensional, mas sim que o filme se torna mais dimensional em função de sua presença.
Todos nós já assistimos a algum filme sério, que tinha um personagem engraçado que lhe dava
um certo toque de humor. A função desse personagem era trazer um pouco de humor, tomar a
história mais leve, dando à audiência uma oportunidade de liberar um pouco da tensão. Se você
já leu Shakespeare, com certeza se lembrará de que mesmo nas histórias mais profundas, sempre
havia algum personagem que provocava o riso na platéia. O exemplo mais evidente é o personagem
Falstaff em Henrique IV partes I e II. Nas tragédias shakespearianas, temos o porteiro do castelo
em Macbeth, a criada em Romeu e Julieta e o bobo da corte em Rei Lear.
Muitos filmes recorrem a personagens que desempenham essa função. Em Guerra nas Estrelas,
os hilários personagens R2D2 e C3P0, sempre dizendo “estamos perdidos”, são responsáveis pelo
humor. Também havia o exótico Chewabacca, chamado de tapete ambulante, diferente de tudo

161
Voltar ao Sumário

que você já possa ter visto.


Mesmo nas comédias, o humor geralmente se concentra sobre um personagem coadjuvante
que nos faz rir, como o professor Brown em De Volta para o Futuro.
Em muitas histórias, temos um personagem que contrasta com o protagonista. No filme A
Testemunha, Daniel é o personagem que contrasta com John Book. Talvez você se lembre da cena
em que Rachel e seu pretendente estão sentados na varanda, pouco à vontade um com outro,
tomando limonada. Agora, contraste essa cena com outras, como aquela em que John e Rachel
dançam juntos num celeiro, ou aquela em que John conta piadas no café da manhã, ou mesmo a
paixão entre John e Rachel no começo do terceiro ato. A presença de Daniel faz com que o
personagem de John adquira mais leveza, nos deixando mais conscientes de certas características
de John e dando-lhe mais dimensionalidade.
No primeiro esboço do roteiro de A Testemunha, a irmã de John, Elaine, teria essa função de
ser contrastada com a personagem de Rachel. Seu personagem era o de uma dona de casa
desorganizada, bagunceira, sempre na defensiva. Rachel ficaria hospedada na casa dela, e haveria
uma cena em que Rachel limparia a casa com a ajuda das crianças, contrastando assim sua
personalidade organizada e disciplinada com a sempre bagunceira Elaine.
Em Tootsie, vemos contrastes entre os personagens de Sandy e Julie, e entre Michael e Ron,
especialmente porque Michael trata Sandy de um modo muito parecido como Ron trata Julie.
Também há contraste na atitude de Sandy em relação à Dorothy Michels (Sandy não gosta dela),
bem como na atitude de Julie em relação à Dorothy (que quer ser sua melhor amiga). O contraste
que existe entre Sandy e Julie ajuda a expandir o tema do amor e da amizade, assim como o das
figuras femininas no filme, que ajudam a dar dimensionalidade e fazer o contraste com Dorothy.
Os personagens que assumem essa função nos ajudam a enxergar os personagens principais de
maneira mais clara, em virtude das diferenças que notamos entre eles. Eles aumentam a
profundidade da história. Como as cores em uma pintura, eles acrescentam textura e foco, lançando
luz sobre certas características sutis dos demais personagens.

PERSONAGENS TEMÁTICOS
Existe uma série de personagens cuja função primordial é comunicar e expressar o tema de um
filme. Embora possam ser encontrados em qualquer gênero de filme — seja de aventura, mistério,
comédia, ou drama — é nos filmes voltados para determinado tema, tal como E o Vento Levou,
Amadeus e Tootsie, que encontraremos muitos personagens desse tipo. Nesses filmes, o diretor
tem algo específico que deseja transmitir. A inspiração por trás do filme não é tanto a fascinação
pela história ou pelos personagens, mas pela própria ideia em si. O tema pode falar sobre amor e
amizade, como em Tootsie; sobre mediocridade e genialidade, como em Amadeus; ou sobre o
estilo de vida no velho sul, como no filme E o Vento Levou. Porém, o que dá ímpeto à história é
sempre o tema.

162
Voltar ao Sumário

Para comunicar o tema, o diretor conta com a ajuda dos personagens. Em muitas histórias
tematicamente complexas, um dos personagens ocupa uma posição de equilíbrio, para se certificar
de que o tema seja bem explicado e interpretado.
Há certos filmes que exigem a presença desse personagem de equilíbrio, pois podem dar margem
a má interpretação. Filmes que tratam de temas ligados ao homossexualismo, por exemplo, às
vezes precisam contrabalançar personagens homossexuais com personagens heterossexuais
marcantes. Do contrário, o filme corre o risco de ser mal visto por apresentar uma perspectiva
muito reduzida da realidade. Em filmes como Corações Desertos, Meu Querido Companheiro ou
Filadélfia, esses personagens de equilíbrio ajudam a história a ter apelo para um público mais
amplo.
Filmes nos quais as minorias ganham importantes papéis de caráter negativo também precisam
ser contrabalançados por papéis positivos. O filme O Ano do Dragão foi duramente criticado pela
forma que retratou os asiáticos, pois não havia sequer um personagem asiático de caráter positivo.
A trama de Uma Escola Muito Louca, que mostra um rapaz branco passando-se por negro para
conseguir uma bolsa de estudos destinadas à minorias étnicas, também dava margem à má
interpretação. Mesmo um filme como A Cor Púrpura foi criticado por apresentar figuras masculinas
unidimensionais, por passar uma imagem desequilibrada dos homens negros.
Para manter o equilíbrio nesses filmes normalmente basta mostrar um personagem que
represente o outro lado da moeda. No filmei A Cor Púrpura bastariam uns dois personagens de
homens negros mais positivos e bem dimensionados, para contrabalançar a imagem negativa de
Mister e Harpo. Um vilão que represente uma minoria pode ser contrabalançado por um
personagem positivo que represente essa mesma minoria. Sem isso, filmes desse tipo podem dar
margem à má interpretação ou coisa pior: protestos, cartas de reclamação e até mesmo um projeto
frustrado.
Alguns personagens temáticos dão dimensão ao tema, ao mostrar diferentes pontos de vista,
ajudando assim a comunicar a complexidade da idéia. Na verdade, poderíamos dizer que eles
representam a voz de algum grupo. No filme A Testemunha, por exemplo, Eli é a voz da não
violência da seita Amish, em seus diálogos com Samuel sobre as mazelas e os problemas da
violência. Em Os Imperdoáveis, Will Munny, com uma reação em vez de um diálogo, representa a
voz da não violência, ao reagir diante do entusiasmo de Scofield Kid em se tornar um matador
profissional. No filme A Lista de Schindler, Izthak Stern é a voz da sabedoria, comunicando uma
clara percepção do bem e do mal.
É importante não levar essa técnica muito ao pé da letra. A intenção não é fazer desses
personagens uns tagarelas. Na verdade, eles devem comunicar a idéia que defendem através de
atitudes, ações, e ocasionalmente, através de alguns diálogos.
Outro personagem que também cumpre essa função de comunicar o tema é aquele que transmite
o ponto de vista do roteirista. Nesse caso, o roteirista escolhe um personagem para dizer aquilo
que ele quer na história. Num certo sentido, esse personagem é o alter ego do roteirista. Em Guerra

163
Voltar ao Sumário

nas Estrelas, esse personagem provavelmente é Obi-Wan-Kenobi ou Yoda, no segundo filme da


trilogia, O Império Contra-ataca. Qualquer atitude ou filosofia que o roteirista pretenda comunicar
pode ser facilmente passada por meio desses dois tipos de personagens.
Nem sempre é importante para a audiência perceber quem é o personagem que carrega o ponto
de vista do roteirista. No entanto, se você for o roteirista e tiver algo específico a dizer, então
escolha um personagem que possa fazer isso para você. Terá de ser um personagem coadjuvante
com quem você se identifique. Se você tivesse certas atitudes que gostaria de comunicar com
relação a tubarões, por exemplo, provavelmente escolheria alguém como Matt, do filme O Tubarão.
Stern provavelmente é o personagem que carrega o ponto de vista do roteirista, no filme A Lista
de Schindler. Já em Amadeus, provavelmente é o sacerdote que escuta as confissões de Salieri.
Muitas vezes esse personagem específico torna-se essencial para a história que está sendo
contada, pois ela depende dele para que a mensagem que o roteirista quer transmitir ao público
fique bem clara. Se você estiver trabalhando com algum material polêmico, onde não haja uma
divisão bem clara entre o certo e o errado, o público precisará de ajuda para saber o que pensar da
mensagem transmitida, para que possa entender a trama complexa.
Um tempo atrás eu trabalhei com um filme para televisão que tratava da questão do controle de
armas. Eis um tema bem controvertido onde encontramos poucas respostas claras. Por um lado,
vivemos numa sociedade violenta; diversos cidadãos já passaram pela experiência de serem
assaltados ou atacados e desejaram ter uma arma naquele momento, para se proteger, Já outros,
que tinham armas, acabaram matando alguém da família por engano ou mesmo tendo que
conviver com a culpa de terem assassinado um ser humano, ainda que fosse um assaltante. Como
se vê, não há respostas fáceis para esse tema.
Quando os roteiristas com quem eu trabalhava escreveram o roteiro sobre esse tema, quiseram
mostrar diferentes pontos de vista, sem, contudo, deixar o filme muito verbal ou voltado para a
mensagem. Ao mesmo tempo, correram o risco de não passar nenhuma visão sobre o tema, pois
se preocuparam demais em não ser preconceituosos.
Para resolver o problema, discutimos suas posições sobre o tema e tentamos esclarecer
exatamente o que eles pensavam sobre o assunto. Então, colocamos isso no papel: “Quando a
sociedade não resolve o problema da violência, os indivíduos tentam resolvê-lo pessoalmente. No
entanto, a despeito do que esse indivíduo faça, nada lhe trará uma resposta clara sobre o assunto,
pois se trata de um problema que deve ser resolvido pela sociedade. Uma vez que eles concordaram
com o que havíamos escrito, escolhemos um personagem secundário para transmitir essa
mensagem. Se o público estivesse em busca de alguma orientação sobre o tema, poderia encontrá-
la nesse personagem. Do contrário, correriam o risco de ver o filme como uma mera descrição do
problema, que não oferecia resposta alguma.
Há certos roteiros que lidam com materiais “incríveis”, como temas sobrenaturais, OVNIS,
premonições, reencarnação, etc. Em muitos casos, a maioria do público não acredita nessas coisas,
talvez por ceticismo. Assim, para que o roteiro seja bem aceito pelo público, é importante escolher

164
Voltar ao Sumário

um personagem que represente o ponto de vista da audiência. Quem sabe um cético, que diga
tudo o que a audiência pensa, logo no início da história. Assim, à medida que esse personagem for
mudando seu ponto de vista ao longo da história, o mesmo acontecerá com aquelas pessoas céticas
que assistem ao filme. Isso não significa necessariamente que a história tenha que converter essas
pessoas em novos adeptos do tema, mas apenas que precisa suspender temporariamente sua
descrença durante o filme, para que elas possam se identificar com o personagem e se envolverem
no desenrolar da história.
A minissérie inspirada no best-seller de Shirley MacLaine, Minhas Vidas, fez isso particularmente
bem. A história trata de sua busca espiritual em vidas passadas e outras reencarnações, um tema
não muito popular. No entanto, havia diversos personagens que retratavam eventuais pontos de
vista do público, que iam desde Jerry à Bella Abzug e a própria Shirley, satisfazendo céticos de
todos os tipos. Para aqueles que acreditam no tema, havia o personagem de David, além de alguns
peruanos e até mesmo Shirley, depois de convertida. Dessa forma, qualquer que fosse a posição
que você defendesse, poderia encontrar alguém com quem se identificar no filme, alguém que
representasse o seu ponto de vista.

PERSONAGENS QUE DÃO IMPORTÂNCIA A OUTROS


Existem certos personagens secundários cuja finalidade é dar peso e brilho a outros, numa
demonstração do poder, prestígio e importância do protagonista ou do antagonista. Guarda-
costas, secretárias, assistentes, homens de confiança, enfim, pessoas que cercam homens e mulheres
poderosas, nos ajudam a entender quem é importante no enredo. A quantidade desses personagens
que você vai precisar dependerá muito do que é necessário para comunicar a idéia de poder.
A maioria dos homens poderosos, e os vilões em particular, estão sempre cercados por guarda-
costas, um motorista, e provavelmente um assistente. Porém, tenha cuidado. Se acrescentar gente
demais, em vez de peso você terá uma grande confusão. Por outro lado, se tiver muito pouca gente,
você terá menos glamour. Caso você precise de muitas pessoas para comunicar essa idéia, sempre
poderá dar ao personagem mais uma função. Por exemplo, o motorista pode ser também um
confidente. Uma amante, por exemplo, também pode ser um elemento catalisador que conduz a
história em direção ao desfecho.
Às vezes será necessário se concentrar em certos personagens desse grupo. Isso pode ser feito
ao se atribuir certas características facilmente reconhecíveis a um ou dois personagens, enquanto
os outros permanecerão sem destaque em meio ao grupo de pessoas que circundam o personagem
principal. Muitas vezes um personagem se sobressai em função de seu tamanho, de características
étnicas ou por alguma outra característica específica.
Em regra, os personagens costumam desempenhar mais de uma função. No entanto, qualquer
que seja o número de funções que eles desempenhem, é essencial que tenham um lugar definido
e uma contribuição específica a dar para a história. Deixar clara a função de um personagem é algo
que ajuda a dar foco para a história. Também ajuda a cortar personagens que sejam desnecessários.

165
Voltar ao Sumário

Isso já salvou muitos roteiros, que pareciam confusos e travados, e que ganharam um novo foco,
apenas por ter deixado clara a função de cada personagem.

PROBLEMAS COM AS FUNÇÕES DOS PERSONAGENS


Nos anos oitenta, um dos críticos que assistiu ao filme The Cotton Club disse que nele havia
personagens demais, o que fazia com que não conseguisse diferenciá-los nem se lembrar se já os
tinha visto antes. Em qualquer filme mais longo, isso se torna um problema, pois o filme precisa
de uma grande quantidade de personagens. No entanto, o público precisa saber identificar quem
é importante e o que esses personagens centrais oferecem à história. O papel do roteirista é
exatamente este: manter a atenção do público e ao mesmo tempo criar personagens de fundo que
trarão textura ao filme.
Pense na quantidade de informação que você precisa receber nos primeiros vinte minutos de
um filme. Os personagens precisam ser apresentados. O público precisa aprender seus nomes,
aprender a identificá-los, e ter uma noção de qual é a contribuição de cada um deles para a história.
Durante o processo em que você escreve e reescreve seu roteiro, definir o foco da história e
deixar claras as funções dos personagens é, sobretudo, uma questão de cortar, combinar e lapidar
personagens. Uma vez que o filme entre em produção, isso se torna um problema do elenco.
Filmes como Loucademia de Polícia, Platoon, O Franco-Atirador ou Gandhi precisam de vários
personagens. Os personagens principais precisam ser contrastados com os personagens de fundo,
que dão ambientação ao filme. Normalmente, os problemas desse tipo são resolvidos pelo elenco,
através de um cuidadoso trabalho de diferenciação dos personagens.
A forma mais rápida de identificar um personagem é através de características étnicas.
Provavelmente, peso e altura vêm em seguida. A voz do personagem e o estilo de roupas que usa
também ajudam a audiência a captar detalhes que vão diferenciando um personagem do outro.
Em Platoon e Loucademia de Polícia todos esses recursos foram usados. O filme Platoon também
diferenciou personagens através da medonha cicatriz no rosto de Barnes, assim como por meio de
tatuagens, atitudes e expressões corporais.
No entanto, o elenco não pode resolver todos os problemas e com certeza poderá fazer muito
pouco se o roteirista não deixar bem claras as funções dos personagens. Em todos esses filmes que
citamos, o roteirista prestou muita atenção em qual era a função de cada personagem e de que
forma isso contribuía para a história. Em cada um deles, o roteirista nos deu uma boa idéia do que
se tratava a história, de quem era importante, do por que eram importantes, e de quem deveríamos
acompanhar de perto para entender a história.

APLICAÇÃO
Para um roteirista, é sempre difícil cortar ou modificar personagens de que gosta. No entanto,
o trabalho de reescrever o roteiro muitas vezes significa ser implacável. Quando estiver trabalhando

166
Voltar ao Sumário

o roteiro com o intuito de esclarecer as funções dos personagens, verá que quase sempre algum
personagem favorito precisará ser cortado ou combinado com outro.
Quando começar seu trabalho de reescrita do roteiro, procure os personagens e esclareça suas
principais funções no roteiro. Dá para saber quem é o personagem principal? O protagonista está
no controle da ação? Ele atinge o clímax da história?
Se você tiver vários protagonistas, assegure-se de que a história seja compartilhada entre eles ou
que um dos protagonistas se destaque um pouco mais do que os outros. No filme Os Caça
Fantasmas, o Dr. Peter Venkman (Bill Murray) se destaca mais. Em Guerra nas Estrelas, é Luke
Skywalker quem recebe mais destaque do que Han Solo e até mesmo do que a princesa Leia. Em
Tubarão, Martin recebe mais destaque do que Quint e Matt.
Agora, identifique seu antagonista. Quem se opõe ao protagonista na história? Se houver vários
personagens ou situações com essa função, deixe bem claro qual é o principal deles e assegure-se
de que o antagonista participe de todo o roteiro.
Você tem algum confidente na história? Caso tenha, as cenas em que ele aparece ficaram muitos
verbais, cheias de diálogo, ou você conseguiu encontrar formas de mostrar as coisas que queria,
em vez de dizê-las?
Você tem vários personagens na mesma função? Se tiver, terá que cortá-los ou combiná-los.
Existe alguma função que esteja faltando? Talvez você esteja precisando de um outro elemento
catalisador ou quem sabe o público esteja sentindo dificuldade de entender o tema pela falta de
um personagem temático.
O protagonista está recebendo ajuda de personagens coadjuvantes? Será que eles realmente
estão ajudando o protagonista ou simplesmente vagando em torno dele?
Você tem algum personagem que retrata seu ponto de vista? Caso tenha, você o manteve mais
ativo e dramático do que simplesmente verbal? O seu ponto de vista está contribuindo para a
história, ou não passa de uma mensagem que você está tentando impor ao roteiro?
Você está lidando com um material que dê margem a más interpretações? Se for esse o caso,
você incluiu pelo menos um personagem de equilíbrio, para contrabalancear um pouco a situação
e assim proteger a si mesmo?
Seu filme tem humor? Há algum personagem que tenha essa função de aliviar o roteiro? Você
recorre ao humor para aliviar um pouco a tensão, deixar o material mais leve ou para divertir um
pouco mais a audiência?
Conte quantos personagens estão recebendo atenção ao longo da história . Se você precisar
identificar mais do que sete deles, comece a procurar formas de cortá-los, para que possa
acompanhar a história e a trajetória dos personagens de forma mais fácil.
Ao revisar as funções de seus personagens, pergunte a si mesmo:
■ Dá pra identificar com facilidade quem são o protagonista e o antagonista? Caso tenham

167
Voltar ao Sumário

vários antagonistas, há algum deles que se destaca mais que os outros?


■ Quem são meus personagens coadjuvantes? De que forma eles contribuem para a história?
Caso você tenha personagens temáticos, deu a eles outras funções ou os deixou encarregados
apenas de passar uma mensagem?
■ Você tem personagens catalisadores que ajudam na dinâmica da ação?
■ Cada personagem tem uma função na história? Caso existam vários personagens com a
mesma função, dá pra você combiná-los? Existe alguma função faltando na sua história?
Vários filmes já foram um fracasso simplesmente porque tinham personagens demais, sem uma
função clara na história. Um grande roteiro é sempre limpo, claro e fácil de acompanhar. Os
personagens recebem atenção porque tem uma função a desempenhar e cada personagem tem um
motivo para estar na história.

168
Voltar ao Sumário

PARTE 4

ESTUDO DE CASO

169
Voltar ao Sumário

CAPÍTULO 13

A CAMINHO DO OSCAR: UM ESTUDO DE CASO —


REESCRITA DO ROTEIRO DE A TESTEMUNHA

Todos os roteiros passam por uma série de dificuldades durante o longo processo em que são
escritos, vendidos e transformados em filme. No caso de escritores mais experientes, com um
roteiro razoavelmente viável e bons contatos, esse processo leva em média cerca de cinco anos. Já
para autores novatos normalmente demora mais. Estatisticamente falando, o primeiro e até mesmo
o segundo roteiro escritos raramente encontram comprador. A maioria dos roteiristas precisa
fazer de cinco a dez roteiros, até aprender todas as manhas necessárias. Uma vez que tenha
dominado a arte de escrever roteiros e que tenha tido oportunidade de demonstrar isso claramente,
ainda assim o roteirista terá que aprender a “vender” seus roteiros. Isso inclui ter (e fazer) bons
contatos, aprender a “arrumar encontros” (e até aprender a “inventar almoços”), e manter sempre
uma atitude positiva. Neste ramo, todos têm que pagar um preço. Os mais bem-sucedidos são
aqueles que, além de talentosos e dispostos a pagar esse preço, são muito, muito pacientes.
O caso do filme A Testemunha não foi uma exceção. Cerca de cinco anos se passaram entre a
criação do roteiro e o lançamento do filme. E ele seguiu um caminho sinuoso, pois o desenrolar
dessa história remonta ao início dos anos 70.

OS ANTECEDENTES
O sucesso de A Testemunha se deve às idéias de três autores consagrados: Pamela Wallace, Earl
Wallace e William Kelley. Os três dividem os créditos pela história, enquanto o roteiro para cinema
foi escrito por Earl Wallace e William Kelley.
Pamela Wallace já tinha publicado quatro romances, quando leu uma notícia no Los Angeles
Times que a deixou intrigada. A reportagem contava de um incidente no qual um grupo de
adolescentes havia apedrejado uma carruagem de um amish, atingindo e matando um bebê.
Inspirando-se nessa reportagem, ela idealizou um romance, em cuja história uma mulher amish
vinha a Los Angeles e testemunhava um assassinato. A idéia do romance não foi adiante, mas Earl
achava que talvez desse um bom roteiro de cinema. Quando a Associação dos Roteiristas entrou
em greve, em 1980, Pamela sugeriu que tentassem escrever um roteiro baseado nessa história.
Earl já era um roteirista de sucesso, tendo trabalhado como editor para a história da famosa
série de TV Gunsmoke e do filme A Conquista do Oeste. Além disso, fazia parte da equipe de

170
Voltar ao Sumário

roteiristas da minissérie The Winds of War. Partindo da idéia de Pamela, ele levou cerca de seis
semanas para escrever seu primeiro rascunho. Quando terminou, notou que a história era muito
parecida com uma história que William Kelley escrevera para A Conquista do Oeste, e decidiu
convidá-lo para escrever esse roteiro em parceria com ele.
Do mesmo modo que Pamela, William Kelley se interessava pelos adeptos da seita amish. Ele já
havia estudado em um seminário agostiniano, que ficava próximo ao condado de Lancaster, na
Pensilvânia, onde tivera a oportunidade de observá-los mais de perto. Ficara muito impressionado
com sua honestidade, franqueza e sua defesa de uma postura a favor da não-violência. Eles eram
excelentes homens de negócios, hábeis carpinteiros e grandes conhecedores de cavalos. Desde
aquela época, William havia se familiarizado com o modo de vida deles e com seu caráter
irrepreensível.
Alguns anos após ter deixado o seminário, Kelley se tornou um escritor, tendo publicado três
romances, antes de se dedicar a escrever roteiros para televisão.
Em 1972 ele apresentou à rede de televisão ABC a idéia de um seriado piloto, de duas horas de
duração, chamado Jededias. A história falava de um bispo amish que vai de carroça de Lancaster,
na Pensilvânia até Lancaster, na Califórnia, para fundar uma nova comunidade amish.
A rede ABC encomendou o roteiro, mas não o produziu. Biil aproveitou esta idéia e escreveu,
em 1975, um episódio para a série de TV Gunsmoke intitulado The Pig Man. A história era sobre
uma comunidade semelhante à dos amish, que ele chamou dc Simonites. Richter, um pistoleiro,
defende uma moça dessa comunidade que foi atacada por quatro irmãos. Nessa luta, ele mata um
dos irmãos e é ferido. Então, é levado para a comunidade, para que seu ferimento fosse tratado.
Chegando lá, acaba se apaixonando.
Gunsmoke foi cancelado antes que este episódio pudesse ser filmado. Mas o produtor de
Gunsmoke, John Mantley, logo se tornou produtor da minissérie Conquista do Oeste. Ele pediu a
Bill que reescrevesse a história, que acabou se tornando uma das principais linhas de ação dramática
dessa minissérie. Ele fez pequenas alterações nos personagens para introduzir essa linha de ação
no roteiro que, finalmente, foi exibido na televisão em 1977.
Como Earl e Bill já tinham trabalhado juntos em Gunsmoke e na minissérie A Conquista do
Oeste, eles se conheciam bem, eram roteiristas experientes, e estavam ambos sintonizados com a
idéia. A idéia da parceria se revelou uma combinação perfeita.

VENDENDO O ROTEIRO
Uma vez pronto o roteiro, um produtor, Edward Feldman, garantiu, por US$ 22.000, um
contrato de opção para comprá-lo. Esta opção, porém, não significava que o roteiro seria produzido.
Como Feldman tinha um contrato que assegurava à Twentieth Century-Fox o direito de preferência,
ofereceu o roteiro a eles. No entanto, o roteiro não despertou interesse.
Feldman pediu então a Harrison Ford que o lesse. Harisson Ford gostou do roteiro e demonstrou

171
Voltar ao Sumário

interesse em levar adiante o projeto. Devido a este interesse, a Paramount Studios decidiu comprar
o roteiro.
A esta altura, a equipe de criação de Ed Feldman, o diretor executivo de desenvolvimento,
David Bombyk, e os roteiristas Bill Kelley e Earl Wallace começaram a procurar diretores para o
filme. Queriam que Peter Weir dirigisse o filme, mas ele não estava disponível, pois seu nome
estava na lista dos cotados para dirigir A Costa do Mosquito. Muitos candidatos foram analisados,
mas nenhum parecia adequado para o projeto. Um deles chegou a dizer que o roteiro ficaria melhor
com um “final engraçado". Outro não tinha a menor noção de qual abordagem adotaria na direção
do filme, e dizia que "descobriria isso mais tarde”. Como a produção de A Costa do Mosquito foi
adiada por um ano, Peter Weir ficou disponível para o trabalho. Após a primeira reunião com
Peter, todos concordaram que seu nome era o melhor. Peter tinha um ponto de vista que desejava
incorporar ao roteiro. Ele estava interessado no aspecto pacifista da história, e queria trabalhar o
tema da não-violência. Ele via muitas maneiras de mostrar o choque cultural entre os amish e a
polícia. Além disso, gostava do fato desta ser uma situação “peculiarmente americana". Seu nome
parecia ter sido mesmo uma boa escolha.
A equipe de criação parecia particularmente bem equilibrada. Todos eram profissionais
experientes e cada um deles tinha uma perspectiva própria de como contribuir para o filme. Ed
Feldman já havia produzido vários filmes e programas de televisão, entre eles Uma Janela para o
Céu (partes I e II), Sonhos do Passado, O Último Casal Casado, O Rapto do Menino Dourado.
Também tinha experiência com relações públicas e uma boa noção sobre “o que faz de um filme
um sucesso comercial”.
Peter Weir estava mais interessado no tema. Desejava transmitir uma mensagem sobre a não-
violência, e queria criar um certo clima para isso, adotando uma abordagem mais lírica para o
roteiro.
A experiência adquirida por Bill, em seus tempos de seminário, o ajudou a perceber a dimensão
espiritual do filme, bem como a apreciar e entender os amish. Earl, com sua prática como editor,
pensava mais no enredo. E o co-produtor, David Bombyck, se encarregou de assegurar a coerência
do enredo, concentrando-se na espinha dorsal da história e garantindo que tudo se encaixasse
como deveria.
A Paramount Studios estava muito interessada no projeto, pois achava que A Testemunha seria
um forte candidato para receber indicações ao Oscar nas categorias de Melhor Roteiro Original e
Melhor Diretor, com grandes chances de receber ainda outras indicações.
Agora, o verdadeiro processo de reescrita começava.

MUDANÇAS NO PONTO DE VISTA


No plano original do livro de Pamela, e nos primeiros esboços do roteiro do filme A Testemunha,
a história era mais centrada em Rachel que em John. Nos primeiros rascunhos, muitos dos

172
Voltar ao Sumário

momentos de emoção são dela não de John. Sua backstory é revelada com mais clareza no primeiro
ato, quando ficamos sabendo de uma tradição dos amish, segundo a qual uma viúva deve voltar a
se casar dentro de um ano após o falecimento do marido. Rachel, porém, queria mais tempo.
Então, ela decide visitar sua
irmã em Baltimore, como forma de ter mais tempo para decidir se deve
mesmo se casar com Daniel, além de resolver certas dúvidas que tinha a respeito do modo de
vida amish.
Nos primeiros esboços, Rachel é o foco do ponto de virada do primeiro enredo secundário. À
medida que cuida dos ferimentos de John, vai se sentindo cada vez mais atraída por ele. O roteiro
descrevia uma mulher que enfrentava uma forte atração por John. Ela fica confusa com intensidade
física da situação. Com o desenrolar da história, vemos Rachel claramente se apaixonando por
John. No segundo ponto de virada Rachel confronta John, pedindo a ele que fique. Esta cena de
amor, que era particularmente forte a princípio, foi objeto de muita discussão, Earl queria mostrar
John e Rachel fazendo amor; Bill queria mostrar apenas um beijo apaixonado. Peter concordava
com o beijo, mas não queria que fosse apaixonado. No final, a cena de amor foi filmada por inteiro,
mas apenas o beijo permaneceu, após a edição.
Durante o processo de reescrever o roteiro, o foco da história volta-se mais para John Book, e
acaba se tornando mais a história dele. No primeiro ponto de virada do filme, embora vejamos
algo da reação de Rachel , a câmera mostra muito mais a reação de John, quando este percebe que
Rachel passou a noite em claro para cuidar dele. No segundo ponto de virada, existe apenas uma
linha de diálogo sobre John ficar ou não ficar, e esta questão jamais é realmente confrontada.
Outras mudanças de ponto de vista foram introduzidas, procurando suavizar o relacionamento
entre Rachel e John. Nos primeiros esboços, Rachel era muito mais mal-humorada e briguenta.
Algumas dessas cenas
chegaram a ser filmadas, mas não foram aproveitadas, pois tornavam Rachel uma personagem
irritante e mandona.
Algumas cenas foram acrescentadas para amenizar o relacionamento, a cena que eles dançam,
bem como a cena do café da manhã foram incorporadas ao segundo ato. Isso contrabalanceou os
cortes feitos no primeiro ato. criando, ao mesmo tempo, fases adicionais no desenvolvimento do
relacionamento entre os dois, no segundo ato.
Todas essas mudanças de ponto de vista redirecionaram o foco do
filme em John Book, mas também serviram para reforçar a linha do relacionamento entre John
e Rachel.

CENAS QUE FORAM CORTADAS


Grande parte do processo de reescrever um roteiro consiste em dar equilíbrio ao filme. Muitas

173
Voltar ao Sumário

vezes isso nos obriga a cortar algumas das melhores cenas. Alguns cortes são feitos durante a fase
em que o roteiro está sendo reescrito; outros, durante o processo de edição.
Uma das cenas favoritas de Bill se passava entre Rachel e a irmã de John, Elaine. Era uma cena
em que Rachel passa a noite na casa de Elaine, para que John pudesse continuar a interrogar
Samuel na manhã seguinte. No roteiro, a cena mostra que Rachel acorda cedo e começa a limpar
a casa de Elaine (que precisava mesmo de uma boa faxina). Elaine fica furiosa com isto, interpretando
a atitude de Rachel como uma crítica à sua competência como dona de casa.
Era uma cena bem escrita. Tinha conflito e contrastava bem os personagens de Rachel e Elaine,
acrescentando-lhes dimensionalidade. Mas pouco acrescentava à história. Como tinham que
passar logo para o segundo ato, essa era uma cena que poderia perfeitamente ser cortada, sem
prejudicar a linha de ação dramática.
Cortes importantes também foram feitos na backstory de John. Quando assistimos ao filme,
ficamos sabendo que John Book é um policial encarregado de esclarecer o assassinato. Sabemos
que o homem assassinado (Zenovich) era um policial que trabalhava sob disfarce. Sabemos que
John achava que o assassino fosse algum desocupado que ficava pelas ruas, como Coalmine, que
costumava aparecer sempre no bar Happy Valley.
A backstory que foi refeita, quando o roteiro foi reescrito, e depois cortada, era bem mais
complexa do que isso. Um dos esboços do roteiro tinha mais informações relacionadas a John.
Mostrava que a função de John, no departamento de polícia, era investigar a própria corrupção
policial, o que fazia dele alguém impopular em meio a seus colegas. Também ficamos sabendo que
ele era um idealista. O roteiro também mencionava que o parceiro de John, Carter, tinha um
encontro marcado com Zenovich, mas chegou atrasado e por isso, achava que sua irresponsabidade
de certa forma contribuíra para a morte do colega.
Havia também informações adicionais sobre a droga PCP e como isso estava relacionado ao
assassinato. Quem confiscaria a droga, quando,
e o envolvimento de Paul, McAfee e Fergie no caso também foram questões discutidas, e até um
esboço chegou a ser feito. No entanto, a maior parte desse material foi cortado durante o processo
de ediçáo.
A maioria dos cortes, especialmente os que foram feitos no primeiro ato, tinham por objetivo
conduzir a história o mais rápido possível para a fazenda dos amish. Foram cortadas todas as
informações que parecessem meramente explicativas, todos os detalhes que não fossem
indispensáveis para a apresentação e a resolução. Além dessas, qualquer cena cujo único objetivo
fosse revelar um personagem, sem contribuir diretamente para a história, também foi eliminada.
A despeito dessas cenas serem muito ricas em detalhes, o diretor Peter Weir e o editor Thom
Noble decidiram que era essencial que a apresentação fosse rápida, de forma que o desenrolar da
história na fazenda dos amish pudesse começar sem demora.

174
Voltar ao Sumário

CENAS QUE FORAM ALTERADAS


Muitas cenas foram modificadas por influência dos atores. Peter Weir e Harrison Ford discutiam
cada cena. Freqüentemente saiam juntos e conversavam sobre idéias que acrescentariam algo a
uma cena, ou lhes dariam mais textura. Peter sugeriu a cena em que os personagens dançam
juntos, no segundo ato, mas foi Harrison quem escolheu a canção e desenvolveu essa idéia.
Harrison, que certa vez havia tentado ser contratado para um comercial da Maxwell House,
acrescentou ao roteiro sua famosa frase: “Que delícia de café, meu amor.” A frase serviu para
intensificar o contraste entre o estilo de vida amish e o mundo da cidade e das propagandas.
A cena da construção do celeiro sofreu várias alterações em relação ao roteiro inicial.
Originalmente essa seqüência tinha cortes para uma cena em que Carter era torturado e morto.
Peter queria eliminar a cena de Carter, pois acreditava que o impacto emocional seria maior se
descobríssemos sobre sua morte ao mesmo tempo que John Book. Ele queria fazer da cena da
construção do celeiro uma cena longa. Para enfatizar seu lirismo, reduziu a intensidade dos
conflitos entre John, Rachel e Daniel.
O roteiro original mantinha o incidente mencionado no jornal Los Angeles Times acerca dos
punks que mataram um bebê amish. Em um dos esboços o incidente foi alterado: agora um
caminhão colidia com uma carruagem amish. No filme, a cena mudou de novo: alguns punks
desacatam os amish e levam um murro de John Book.
O terceiro ato sofreu consideráveis mudanças. A maioria delas foi feita depois que a equipe de
filmagem chegou na locação, no condado de Lancaster.
No filme, três homens perseguem John: Paul Schaeffer, McFee e Fergir. Peter achou que poderia
criar mais tensão deixando apenas McFee na cena. Ele sugeriu que Fergie fosse morto durante a
cena do assassinato de Carter, como forma de justificar sua ausência. Bill, ao contrário, achava que
era essencial que todos os três homens estivessem presentes, pois só um deles não representaria
uma grande ameaça a John. Depois de muita discussão, chegaram a um consenso: usariam os três
homens.
Mas como eles seriam mortos? Em um dos primeiros esboços, McFee seria morto por uma
mula enfurecida. Isto foi vetado por Peter, que perguntou: “Como vamos fazer para que a mula dê
um coice na hora certa?” Peter começou a buscar alternativas nas fazendas amish, e teve a idéia de
usar um silo para a cena do assassinato. Isto era mais fácil de sugerir do que fazer, porque é
impossível filmar dentro de um silo. Além disso, os silos deles não funcionam dessa forma, não
basta abrir a porta de armazenagem e enchê-los de grãos. Porém, acreditando que poucas pessoas
da audiência teriam conhecimento sobre os mecanismos de um silo amish, o grupo encontrou
uma solução: decidiram construir um silo de acordo com as necessidades da história. Fergie foi
morto dentro do silo e McFee do lado de fora. Sobrou apenas Paul.
A cena do assassinato de Paul sofreu inúmeras modificações. Uma das primeiras idéias era que
Samuel atirasse nele. A idéia foi rapidamente descartada, pois acharam que a audiência não veria
com bons olhos o fato de uma criança cometer um assassinato. Decidiram então que Rachel
175
Voltar ao Sumário

mataria Paul. Depois, mudaram de idéia novamente: Rachel tocaria o sino, chamando a atenção
da comunidade. Porém, cada uma dessas soluções fazia de Rachel, e não do protagonista John
Book, o personagem que provocava o clímax.
A uma certa altura ficou decidido que os amish cercariam Paul, fazendo um cordão de isolamento
entre ele e John. Mas nos ensaios isto não deu certo. Finalmente, surgiu uma solução — Samuel
tocaria o sino e os amish apareceriam, para “servir de testemunha” do fato.

A FASE DE EDIÇÃO
Thom Noble ganhou um Oscar na categoria de Melhor Edição. Ele não foi o primeiro editor a
trabalhar no filme. Outro já havia tentado antes, mas houve um desentendimento sobre os rumos
que a edição estava tomando. Então, Thom foi convidado para assumir o trabalho de edição.
Muitos dos cortes aqui mencionados foram feitos por Thom. Ele e Peter concordavam que a
história tinha se que passar rapidamente da apresentação na fazenda dos amish para as cenas na
cidade, retornando, então, à fazenda. Isso implicava em cortar todas as cenas do primeiro ato que
não fossem absolutamente essenciais para a história. Também era imprescindível que a história
continuasse em movimento no segundo ato. Foi a habilidade de Thom em enxugar a história,
mantendo, ao mesmo tempo, o ritmo e o lirismo, que fez do filme um sucesso. Como disse Bill
Kelley: “Thom pegou o ritmo certo, e isto fez toda a diferença.”

RESUMO
Perguntei a Bill se, em sua opinião, havia alguma área em que ele achava que os roteiristas
tivessem se perdido. Ele mencionou que havia lutado por três pontos, tendo sido vitorioso em dois
deles. Achava que seriam necessários três homens, e não apenas um, para ir atrás de John, no
terceiro ato. Também insistiu naquela cena em que Eli confronta Rachel, pós ela ter dançado com
John. Essas duas cenas fizeram parte do filme. Porém, ele queria explorar mais a despedida de
John e Rachel, no final do filme. Sugeriu que Rachel desse a John o chapéu de seu marido, o que
seria um presente e também uma forma de reconhecer que havia um relacionamento entre eles.
Bill também achava que essa troca de presentes poderia sugerir que eles voltariam a se ver no
futuro. Mas Peter optou por rodar a cena como uma despedida não verbal.
O processo de reescrever o roteiro desse filme foi único em alguns aspectos. Não houve
desentendimentos sérios entre equipe de criação. Ed Feldman e David Bombyk estavam decididos
a proteger a integridade do roteiro. Portanto, a maioria das alterações apenas enxugava a história
ou lhe dava mais textura, em vez de alterá-la. Cerca de noventa por cento do roteiro original
permaneceu basicamente inalterado, mesmo depois de ser bastante reescrito. Os primeiros esboços
do roteiro já estavam bem estruturados e claros, de modo que a maioria das mudanças que
precisavam ser feitas foi muito mais criativa do que estrutural.
O filme foi um grande sucesso de crítica e de público. Rendeu cerca de US$ 100 milhões só nas

176
Voltar ao Sumário

exibições em cinemas, sem contar os direitos provenientes da exploração em vídeo, que aumentaram
consideravelmente essa soma. Quase todas as resenhas sobre o filme foram favoráveis. Ele recebeu
oito indicações ao Oscar, tendo sido vencedor nas categorias de Melhor Roteiro Original e Melhor
Edição.
Isso era de se esperar, se considerarmos que o filme já começou com um roteiro muito bom e
viável. Os três atos são intensos, bem delimitados, com pontos de virada que nos conduzem de um
ato para outro. O uso de obstáculos e reversões de expectativa, além das seqüências de cenas, dão
momentum à história. As linhas de ação dos personagens, assim como suas funções, são claramente
definidas. O tema também é bem trabalhado, através de imagens, contrastes e motivos.
A equipe de criação tinha uma experiência considerável no ramo cinematográfico e soube fazer
bom uso dela em proveito do filme. A grande habilidade de Peter Weir na sua maneira de dirigir
o filme aliada à extrema competência de Thom Noble em editar e concentrar o foco da história
contribuiu para criar um dos cinco melhores filmes de 1985.

177
Voltar ao Sumário

EPÍLOGO

Não faltam bons roteiros em Hollywood. Muitos roteiristas escrevem bons roteiros, com
histórias interessantes e personagens inesquecíveis. Mas existem pouquíssimos roteiros magníficos.
Um roteiro magnífico salta aos olhos. É como um murro na boca do estômago: quando você vê
um roteiro assim, fica nocauteado. Foi justamente isso que aconteceu com o filme A Testemunha.
A Paramount Pictures sabia que o filme tinha um roteiro muito bom. Mesmo antes de ser rodado,
eles já imaginavam que pudesse ser indicado para o Oscar, na categoria de Melhor Roteiro Original.
Em toda minha carreira como consultora, apenas três vezes me deparei com roteiros tão enxutos
e perfeitos quanto esse, que minha única recomendação foi: “Não mexa em absolutamente nada”.
Transformar um bom roteiro num roteiro magnífico requer a combinação de um amplo
conjunto de habilidades. O roteirista tem que encontrar uma nova abordagem para o assunto,
sendo original, incomparável e criativo; saber o que interessa à audiência, como contar uma boa
história. E precisa saber como estruturar e executar sua história de forma que faça sentido.
Este livro se concentrou no processo de criação de roteiros porque a maioria dos filmes fracassa
por razões estruturais. Quando lemos as críticas, vemos que raramente elas criticam o elenco, a
direção ou até mesmo o assunto. Em geral, o que criticam são os defeitos estruturais dos filmes:
uma linha de ação pouco clara, a falta de motivação dos personagens, enredos secundários
desencontrados, excesso de personagens, um final que não se coaduna com o início, muitas
questões que terminam sem resposta. Todos esses problemas podem ser corrigidos. Se algo não
ficou bom na primeira tentativa de escrever o roteiro, isso pode ser corrigido durante o processo
de reescrita.
O que pretendi fazer neste livro foi analisar os conceitos fundamentais que tornam um roteiro
viável. Entendendo a arte de escrever, você estará em melhor posição para resolver os problemas
que surgirem e para perceber se aquilo que está escrevendo está ficando bom ou não. Quer você
seja um roteirista, um produtor ou um diretor, trabalhar com estes conceitos poderá facilitar o
processo de escrever e reescrever um roteiro, levando-o a produzir um filme melhor e mais bem
integrado. A arte de como aprimorar um bom roteiro é também um processo. Um processo no
qual a arte e a técnica de escrever se fundem, criando a magia do cinema.

178
Voltar ao Sumário

LINDA SEGER

Em 1981, a Dra. Linda Seger praticamente criou e definiu a carreira de consultora de roteiros,
quando começou a desempenhar esse trabalho, com base em um método de análise de roteiros
que havia desenvolvido para seu projeto de dissertação.
Desde então, já trabalhou como consultora em mais de 2.000 roteiros, dentre eles 50 longas-
metragens e 35 projetos para televisão. Entre seus clientes estão a TriStar Pictures, William Kelley,
Ray Bradbury, Linda Lavin, Tony Bill, Suzanne de Passe, bem como produtores e escritores dos
seis continentes.
A Bossa Nova Editora já lançou duas obras da autora: Como Criar Personagens Inesquecíveis e
A Arte da Adaptação: Como Transformar Fatos e Ficção em Filme. Como Aprimorar um Bom
Roteiro é a terceira obra publicada no Brasil.
Outras obras da autora que serão lançadas em português pela Bossa Nova Editora:
Advanced Screenwriting. Raising your Script to the Academy Award Level (Os Segredos de um
Grande Roteiro)
From Script to Screen: The Collaborative Art of Filmmaking (Do Roteiro para a Tela: O Trabalho
Conjunto para a Produção de Filmes).

179

Você também pode gostar