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Argumento: quando a história começa a tomar forma

[do site Tertúlia Narrativa]

Uma das dúvidas que mais recebemos na Tertúlia é a respeito de argumentos. Como devem ser,
pedidos de exemplos, que formatação usar, o número de páginas...
A verdade é que o argumento cinematográfico é um documento de trabalho (e venda) do
roteirista, por isso mesmo é muito mais difícil encontrar exemplos online, quase tão difícil quanto
pintores disponibilizando os rascunhos de seus quadros.
Como ferramenta de trabalho do roteirista, ele é mais solto do que um roteiro, sem tantas regras.
Para alguns ele é realizado após a sinopse e para outros profissionais, ele é o início do processo
de escrita, sendo a sinopse e a logline realizadas depois. Os dois métodos são válidos. O
argumento pode ser realizado antes da sinopse e da logline, pois muitas vezes é no argumento
que a ideia toma forma, deixando o campo das abstrações. Uma logline pode ser escrita apenas
com um personagem e uma premissa em mente, mas no argumento é necessário desenvolver o
enredo, sua estrutura, escolher quais informações serão entregues ou não ao público. Uma
mesma logline na mão de diferentes profissionais resultaria em argumentos distintos.
O argumento é mais detalhado do que uma sinopse e é mais dramático. A leitura do argumento
já deve inspirar no leitor as emoções, os sentimentos, as reviravoltas que existiram no seu roteiro.
Ele deve ter uma leitura agradável, engajadora, sem burocracias, que mostre o tom do seu roteiro
e que fisgue o leitor. Por isso mesmo, pela grande capacidade de um argumento bem escrito em
instigar e persuadir, que ele é utilizado como apresentação de um roteiro ou como ferramenta
para venda.
Todo argumento deve ser escrito em prosa e no tempo presente. Ele é um texto corrido com sua
história como se estivesse sendo contada para alguém, com os detalhes que são importantes
para a compreensão geral, apresentação dos personagens, as situações que eles enfrentam, tudo
com começo, meio e fim. O argumento deve conter obrigatoriamente todas as sequências, mas
não necessariamente todas as cenas. Não são todos os roteiristas que trabalham com um
argumento cena-a-cena, e como veremos a frente às vezes a limitação de tempo não permite um
argumento tão detalhado. Mas o argumento não deve ter uma preocupação excessiva com a
construção das cenas.
Então, o argumento deve ser uma viagem agradável pela história do roteiro, deve passar pelos
personagens e situações da forma e ordem em que elas aparecerão no roteiro. Pela
característica mais próxima ao conto, o argumento pode ser mais poético, conter certas
abstrações que não cabem ao roteiro. De qualquer forma, procure não ser abstrato demais, pois
isso dificultará a escrita do roteiro.
Cada uma das etapas que um roteirista passa até chegar ao roteiro tem como função aprofundar
ou explicitar uma questão da história, e ao argumento cabe desenvolver o enredo, o plot. Por
isso, o argumento é escrito, pensado e desenvolvido em cima dos beats. Nessa etapa eles são
mais importantes do que as cenas propriamente ditas. Então, se eu tenho um beat importante
para minha história e ele está em um diálogo, como alguém revelando algo para alguém, esse
beat deve estar presente na minha escrita do argumento, não é comum se colocar o diálogo em
si, mas fazer menção a ele de forma indireta. Veja no exemplo abaixo de O iluminado.
Apesar de não existir uma formatação precisa para o argumento, os diálogos não costumam ir
de forma discriminada como lemos em contos ou romances (com dois pontos, travessão etc.).
Eles vão diluídos na própria prosa como citações ou textos corridos.
Abaixo, as três primeiras páginas do argumento de O Iluminado de Stanley Kubrick.
Alguns roteiristas gostam de trabalhar com divisões sutis na escrita do argumento. Então alguns
vão escrever cenas como parágrafos. Cada novo parágrafo do argumento seria equivalente a uma
nova cena no roteiro. Essa formatação costuma deixar o argumento extenso. Outros preferem
trabalhar com os parágrafos equivalentes a sequências. Mesmo que mude o tempo ou o local, se
as cenas que se sucedem têm uma mesma função dramática, elas estão compreendidas em um
só parágrafo. Não existe certo ou errado em argumento, é uma questão de gosto, estilo e de
facilitar a cadência e o ritmo da leitura.
Também existe controvérsia a respeito do tamanho de um argumento. Lá fora, alguns dizem que
deve ter até 60 páginas. Outros dizem que deve ter uma página. No Brasil costuma vigorar o
padrão de 1 página de argumento para 10 páginas de roteiro. Isso quer dizer que para um roteiro
de 90 páginas, você teria aproximadamente 9 páginas de argumento. Mas não é uma norma,
argumentos entre 3 e 5 páginas também são comuns.
Como não existe uma convenção a respeito disso, o ideal é ter em mente qual a função do seu
argumento. No caso, usar a proporção de 1 para cada 10 páginas é uma boa métrica para um
argumento de processo de escrita, pensando como um rascunho para o seu trabalho de
roteirização, isso te dará um argumento bem detalhado e facilitará os processos de escaleta e
roteirização. Mas talvez não seja muito bom para um argumento que tem como propósito
apresentar seu roteiro, ser incluso em um projeto de venda ou em um concurso, por exemplo.
Argumentos de venda costumam ser mais eficazes se forem mais curtos. Nesses casos, observe
as próprias solicitações, é interessante ficar atento às exigências de cada um especificamente. A
ANCINE, por exemplo, no seu edital de Desenvolvimento em 2017, pedia argumentos de no
máximo 100 linhas, fosse para um longa ou para o argumento geral de uma temporada de série.
Então, tome cuidado, o argumento pode ter tamanhos distintos, mas deve-se manter a sua
essência em qualquer uma delas: contar a sua história, desenvolver o enredo e incluir os beats
mais importantes.
Mantenha simples e atrativo!

PS: Não confunda o Argumento americano, chamado de treatment, com o tratamento brasileiro. Apesar da
tradução literal de treatment ser tratamento, o termo é um falso cognato, o termo americano é referente
ao processo de argumento. O nosso tratamento é uma versão de um roteiro escrito, assim cada processo
de escrita seria um novo tratamento, um equivalente ao termo americano draft. O erro é tão comum que o
livro Por dentro do roteiro, de Tom Stempel, tem uma edição da tradução brasileira inteira com este erro de
tradução, nomeando os argumentos de diversos filmes citados no livro como tratamentos.

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