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ENGENHARIA REVERSA: CONHECENDO

O DNA DAS SÉRIES


POR QUE
ENGENHARIA REVERSA?

Vários livros sobre roteiro de séries dizem: você precisa


saber qual é o DNA da série que está no ar e para a qual pretende
fazer um roteiro especulativo (spec). Eles estão certos. O processo
de escrever um roteiro de série dramática tem como pré-requisito
conhecer o DNA de criações alheias.
A questão é: como identificar o DNA? O pré-requisito é
essencial, mas, se você não sabe como identificar o DNA da série
para a qual está se candidatando a um lugar na sala de roteiristas,
como é que fica?
Identificar o DNA da série que propõe faz com que você seja
capaz de explicá-lo quando for vender seu projeto para uma
produtora ou um canal.
Escrever roteiro de série dramática é uma atividade criativa
que demanda o domínio de muitos detalhes de estrutura,
desenvolvimento de trama e construção de personagem. Domínio
dos conceitos e domínio da aplicação dos conceitos.
Para entender como outros roteiristas aplicam os conceitos
fundamentais em suas séries, proponho o exercício de engenharia
reversa.
Fazer engenharia reversa facilita a tarefa de aprender quem é
o outro. Aprender é muitas vezes difícil porque implica mudança,
implica fazer as coisas de outro jeito. Aprender a escrever num
formato novo significa sair da zona de conforto.
A proposta é assistir a uma série dramática com um olhar
inocente, se aproximar de roteiros concretizados como nos
aproximamos de um objeto que desconhecemos, mas desejamos
conhecer. É uma oportunidade de dominar o processo e de tornar
mais criativo nosso olhar sobre o trabalho dos outros.
Fazer engenharia reversa de uma série é descrever o que se
vê, sem interpretar, sem usar “pré-conceitos”. Admito que é bastante
difícil. O habitual é assistirmos passivamente às séries de que
gostamos, gravando um ou outro detalhe, sem preocupação em
assimilar o formato.
Quem pretende escrever roteiro de série dramática precisa
assistir a episódios como um exercício de musculação para um lado
do cérebro que está desativado. Porque tendemos a substituir
descrição por interpretação do que os personagens fazem.
Não tem nada demais ter opinião sobre o que os
personagens vivem, nem mesmo usando o bordão “Eu não faria
isso, no lugar dele”. O problema é que, se não identificamos e
descrevemos o que acontece na narrativa dos outros, teremos
dificuldade para descrever o que atores devem fazer e como devem
agir a partir do que descrevemos.
Assistir a séries sem dissertar a respeito. Interpretar só em
função da estrutura narrativa, do desenvolvimento da trama, de
acréscimos ou cortes nos diálogos. Como escreveu Umberto Eco,
no livro Interpretação e superinterpretação, toda obra têm três
intenções: a do autor, a do leitor e a do texto. A do autor nós nunca
saberemos ao certo. Inclusive porque o autor pode ter esquecido o
que pretendia quando escreveu tal ou qual fala. Ou pode se enganar
a respeito.
A do leitor depende de muitas variáveis incluindo horizonte de
leitura, expectativas, conceitos e preconceitos.
Só nos interessa a intenção do texto para entender como
funciona uma série dramática, para dominar o exercício de
engenharia reversa. Porque ela é passível de comprovação. O
roteiro que foi gravado e levado ao ar é a única base importante
para nós na engenharia reversa.
É interessante fazer a engenharia reversa, listando ação por
ação, fala por fala para saber, ao fim, se o deputado Russo, em
House of Cards, é um salafrário ou um multitoxicômano. Ou as duas
coisas, talvez.
Fazendo o exercício de engenharia reversa em Downton
Abbey, posso afirmar que Mary Crawel aparece como uma jovem
preocupada com detalhes menores, como o de guardar ou não
guardar luto total pela morte de um ente próximo. Seguindo no
exercício, no entanto, o roteiro mostra Mary como alguém cujo
senso de justiça a leva a pedir desculpas quando comete um erro,
independentemente da posição social do interlocutor.
O exercício foi feito primeiro assistindo e tomando notas para
só depois ler o roteiro. No caso de Downton Abbey o roteiro está
disponível na internet.
O exercício ajuda a descobrir/identificar qual a escaleta do
roteiro que foi gravada. Para isso, é preciso indicar quem faz o quê,
onde, interagindo com quem e, se possível, como.
A maioria dos roteiristas que frequentam minhas oficinas
acha difícil descrever um ato, cena por cena. A tendência é resumir.
É diferente de buscar descrever de forma sucinta o que cada
personagem faz ou fala. Quem resume escreve o que considera
essencial, não descreve o que aparece na tela.
No caminho para aprender a escrever em qualquer suporte, o
principal é se impregnar da maneira como outros escreveram.
Como os conceitos da narrativa se concretizam em cada
série? Quais ações e falas caracterizam cada personagem?
“Carrie fala ao telefone com David Estes. Carrie larga o carro
no engarrafamento e segue falando no celular com David.”
Isso ocorre no teaser do primeiro episódio de Homeland.
Descrevê-lo é um começo para aprender a fazer um teaser de uma
série de ação.
A descrição acima está completa? Não.
Carrie e David falam sobre o quê? Qual o conflito entre eles
nesse telefonema?
Só saberemos, se quem está descrevendo contar. Quem está
descrevendo só aprenderá a construir um diálogo entre uma agente
e o diretor da CIA — ela, em Bagdá; ele, numa recepção na Casa
Branca —, se identificar o assunto.
Poder-se-ia dizer que basta ler o roteiro para entender como
se faz. No entanto, os roteiros são trabalhados por muitos
profissionais depois que são escritos. Partir do episódio para depois
ler o roteiro é mais enriquecedor. Além disso, não é fácil achar os
roteiros originais que foram ao ar.
O exercício então é assistir ao primeiro episódio de sua série
favorita, ou de qualquer série dramática que preferir, e descrever em
no máximo três linhas o que é mostrado. Seguindo o modelo do
discurso direto: sujeito + predicado + complemento.
Este é um exercício quase zen-budista, muito difícil, na nossa
cultura. A gente adora avaliar, interpretar coisas e não existe nada
errado com isso. A interpretação dos espectadores ajuda, inclusive,
a melhorar nosso trabalho de roteiristas. O problema da
interpretação é que ela não ensina a escrever em um novo formato.
Engenharia reversa ensina. É o mesmo processo pelo qual
um pintor iniciante começa pintando naturezas-mortas, desenhando
modelos nus, indo a museus olhar os mestres, copiando as suas
obras.
Numa das minhas oficinas, um roteirista disse que
engenharia reversa é, na espionagem industrial, pegar o produto do
outro para aprender a fazer um modelo mais avançado ou para usar
em outro meio.
No nosso caso, fazer a engenharia reversa de episódios ou
temporadas tem o objetivo de identificar, com precisão, o
desenvolvimento da trama. É a base para fazer a própria escaleta.
Para ser criativo, é fundamental fazer a engenharia reversa
do maior número possível de primeiros episódios de séries. É ela ―
escrita com sujeito, predicado, complemento ― que nos permite
distinguir entre a atuação dos personagens e os seus papéis.
No entanto, em Downton Abbey, na sequência do banho da
condessa, se O’Brien não fizesse o que fez, a Perda/Ruptura da
primeira temporada teria sido reparada. A ação insignificante, quase
fortuita, de O’Brien teve efeito decisivo sobre a trajetória de Mary, de
Mathew e sobre toda a trama subsequente. A maldade sempre tem
repercussões no drama.
Num primeiro momento, o exercício de engenharia reversa
consiste em anotar personagem e ação. Para isso, é interessante
fazer um quadro de todos os episódios de uma temporada para
saber quais personagens aparecem em cada um deles. Ao final,
teremos uma tabela que poderá esclarecer a importância desses
personagens na reiteração do mundo inconfundível ou na trama.
Minha sugestão é que você tente fazer, em Downton Abbey,
o arco de O’Brien, ou da sra. Pattimore. Em Broadchurch, o arco de
Becca Fisher, a gerente do hotel.
Esse conjunto de atividades amplia nosso repertório de
informações sobre o DNA de cada série.
Um exemplo de engenharia reversa interessante é o do
primeiro ato de Broadchurch. Mesmo uma pessoa bastante atenta
pode deixar passar a frase na tabuleta: love thy neighbor as thyself
(ama a teu próximo como a ti mesmo).
Da primeira vez que assisti à série, não percebi a frase. Da
primeira vez que sentei para assistir com o olhar de engenharia
reversa, vi.
O detalhamento do primeiro ato de Broadchurch, dado como
exemplo na primeira parte deste livro, nos permite observar quantas
cenas são necessárias para a apresentação dos personagens e do
contexto até a Ruptura, que é o momento em que a mãe sabe que
ali está o corpo do filho. É um primeiro ato cheio de tensão.
Além do detalhamento de um ato, cena por cena, é bastante
útil, assistindo como roteirista, identificar quais histórias estão sendo
contadas em cada ato.
No primeiro ato de Scandal, episódio 1 da primeira
temporada, estão rolando duas histórias. A de Quinn e a do bebê.
No segundo, Sully e Casa Branca. No terceiro, Amanda e Casa
Branca.
Depois de vários exercícios parciais de engenharia reversa,
seu olhar estará treinado para:
Localizar como outros roteiristas apresentaram os
personagens.
Identificar qual é a story line, o gênero, a categoria da série.
O tipo de narrativa dominante.
O arco do protagonista.
Quais ações e falas puxaram as tramas para diante.
Como foram conduzidas as duas ou três histórias que
aparecem em cada bloco ou em cada episódio.
Com a prática, você vai conseguir assistir como espectador,
tomando um vinho, uma cerveja, relaxando no sofá e, ao mesmo
tempo, percebendo as nuanças criativas por trás da tela. Pode
acreditar, é muito prazeroso conseguir fazer as duas coisas ao
mesmo tempo.
O exercício de engenharia reversa de séries bastante
conhecidas é a união da teoria com a prática.
Considero o exercício da engenharia reversa aplicado ao
maior número possível de exemplos já realizados o caminho mais
rápido e eficaz para expandir o repertório de quem pretende
escrever séries dramáticas.

Durante todo o processo de descobrir como os outros fizeram


suas séries, é importante manter duas perguntas em nossa tela
mental:
Qual a pensata do seriado?
A pensata é concretizada de forma monológica ou dialógica?
Ou seja, existe apenas uma verdade ou o tempo todo o
seriado mostra que as coisas não são tão simples como os
personagens e espectadores esperariam?
No processo de aprender a escrever roteiro para drama,
essas são as duas únicas perguntas que dependem de
interpretação.
Em Ray Donovan:
Mickey Donovan é o canalha da história e deve ser destruído
por Ray Donovan? Ray Donovan é controlador e injusto e Mickey
Donovan quer apenas recuperar a própria família, a sua moda?
Em Scandal:
Republicanos também são gente?
O diabo, como Abby chama o empresário manipulador,
realmente ama seus filhos?
Todo ser humano tem o direito a preservar sua imagem,
desde que tenha dinheiro suficiente para isso?
Mesmo essas perguntas precisam ser comprovadas. Como?
No episódio X, de Scandal, a sequência Y mostra o
empresário texano fazendo tal ação.
No episódio X, de House of Cards, Claire reage à ação de
uma personagem grávida, procurando uma médica que pode mudar
sua própria trajetória na segunda temporada. Ou seja: ação e falas
dos personagens precisam comprovar o dialogismo, o suspense, a
pensata.
O hábito de citar sequências, cenas, atos mantém a mente do
roteirista pronta para escrever, mas pronta também para defender,
divulgar, “vender” sua série ou sua competência para participar de
uma sala de roteiristas.
Não existe DR, ou seja, discussão de relação em roteiro, ou
também, como se diz na linguagem popular, não existe “disse me
disse”. Não existe “achismo” porque roteiro pertence ao gênero
dramático. Não está na ação e nas falas dos personagens, não está
no mundo do roteiro.
O processo que proponho — o de usar a engenharia reversa
para assistir séries que estão no ar como roteirista — tem o objetivo
de identificar marcas de autoria. Não é uma tentativa de crítica. A
crítica, a interpretação, a análise são atividades intelectuais
importantes, mas não são o objetivo deste livro, muito menos do
exercício de engenharia reversa.
Só quando assistimos como roteiristas, observamos como a
narrativa é contada. Se é linear, se vai e volta, se a edição foi feita
para dar a impressão de simultaneidade, qual o ritmo que a direção
e a edição dão à trama... Todas essas são marcas importantes do
“como fazer” que o roteirista não pode deixar passar.
Depois de assistir é importante ler os roteiros. É possível
achar roteiros na internet, mas alguns são versões de originais que
foram muito modificadas. A leitura desses “ensaios”, como exercício
de engenharia reversa, é muito importante para o roteirista. Inclusive
para reforçar a compreensão de que escrita é reescrita.
Um roteirista me perguntou, em uma das minhas oficinas, o
que significa ter “massa crítica” em relação a séries. Significa,
respondi, assistir a muitos pilotos, fazendo engenharia reversa,
lendo os roteiros depois, identificando o DNA de uma por uma das
séries assistidas, sem cair na tentação de ler primeiro as críticas
para depois assistir aos episódios.
Procurarei, nas próximas páginas, listar algumas
observações de engenharia reversa em séries que acompanho. Na
indústria cultural ― e televisão é indústria ― , é fundamental
aprender com bons exemplos alheios.
RAY DONOVAN

É o arco que vai nos dizer quem o personagem é de verdade.


Este é um dos efeitos mais importantes de se fazer o arco de
temporada de um personagem específico e fazer isso em várias
séries.
Com Mickey Donovan, serei obrigada a entregar um pouco
mais da trajetória do personagem. Um pouco mais porque o
personagem é tão rico que você vai querer assistir à série toda.
Mickey sai da cadeia, mata o padre, fuma maconha e dança
com a prostituta, atravessa o país lendo Como sumir na América.
Mickey encontra os filhos Ray, Terry, Bunch e Darryl. Acusa
Ray de ter armado contra ele em Hollywood há 20 anos e diz que se
vingou do padre. No final, pergunta pelos netos e quase é agredido
por Ray.
Mickey cheira cocaína com Bunch no escritório da academia
de boxe.
Mickey chega à casa de Ray e diz que quando escreveu as
cartas foi do fundo do coração, que quer reparar as coisas e não
entende por que Ray o odeia. Ele dorme lá e convive com os netos
no dia seguinte.
Mickey toma café da manhã à mesa com Abby e Connor e,
quando Bridget chega, levanta para abraçá-la. Os dois conversam.
Mickey está na sala de Ray e responde a Abby que não quer
incomodá-la com a carona.
Mickey anda pela academia e dá de cara com Ray. Responde
que se divertiu com a família dele à tarde e só quer ter a família de
volta.
Mickey bebe cerveja e fuma maconha com Bunch no
escritório da academia de boxe.
Primeiro, ele mata. Depois, transa. Depois, vai até os filhos.
Em seguida, não segue o desejo do filho que o entregou à polícia de
ficar longe dos netos. Depois usa drogas com o filho dependente
químico.
Isso diz muito sobre o personagem, não diz? A quantidade de
cenas com Mickey e a relevância de suas ações nos dizem também
do seu peso na trama. Ele é o antagonista de Ray porque suas
ações vão sempre de encontro aos desejos e objetivos do
protagonista. É também o personagem que aparece mais vezes.
Depois da grade geral dos personagens e do arco dos
personagens que aparecem em maior número de episódios, é
importante mesclar essas informações que nos darão o
entrelaçamento. A prostituta negra só aparecerá uma vez em Ray
Donovan, contracenando com Mickey. O amigo de Mickey
aparecerá três ou quatro vezes em dois episódios. O marido da
enfermeira... E por aí vai.
Pela minha experiência de escritora, descrever o arco
também informa bastante sobre quem é o roteirista e sobre quem é
o espectador. Vou explicar essa observação que pode parecer
obscura.
Conheço gente muito criativa que adora o personagem de
Mickey Donovan. Acha que ele é engraçado, cheio de vida, bem-
humorado. Conheço gente criativa que abomina Mickey Donovan.
Certa vez, num grupo de discussão de um projeto, perguntei para
quem acha o velho, tão bem defendido por Jon Voight, um
personagem cheio de charme:
“Você tem ou já teve alguém próximo que usasse drogas
pesadas e causasse prejuízo a si mesmo, à família ou aos amigos?”
As pessoas responderam que não.
Fiz a mesma pergunta (separadamente, claro) às pessoas a
quem o personagem incomoda por sua manipulação,
irresponsabilidade, cinismo. Todas já perderam amigos para drogas,
parentes foram passados para trás por drogados, viram
relacionamentos destruídos por gente manipuladora.
A descrição de Mickey Donovan pode contribuir para que o
roteirista se conheça melhor. Isso não tem preço. Arrisco dizer que
detalhar o arco de personagens muito amados ou muito odiados
pode ser tão elucidativo de nós mesmos quanto algumas sessões
de terapia ou um mapa astral benfeito.
THE NEWSROOM

O roteiro do primeiro episódio da série The Newsroom, que


está disponível na internet, tem uma mudança considerável com
relação ao que foi ao ar. São 86 páginas das quais cerca de 20%
apresentam informações que foram usadas em outros episódios da
primeira temporada. Ou seja, foram cortadas no piloto que foi ao ar,
mas foram aproveitadas depois. Lembre-se disso quando for
escrever a sua série dramática.
Os diálogos foram revisados, foram ao ar mais enxutos. O
mais importante é que o evento na universidade nesse roteiro é
citado num diálogo entre dois personagens.
No primeiro episódio o comentário antiamericano de Will, que
horrorizou a “opinião pública” ficcional do seriado, é apresentado, é
mostrado. No roteiro rascunho, a situação é contada, comentada, e
não mostrada.
O que esse exercício de engenharia reversa nos ensina? Até
roteiristas experientes criam cenas e diálogos de comentários, de
narração no lugar de personagens fazendo coisas importantes. A
diferença é que numa sala de roteiristas experientes essa cena foi
cortada.
Ler o roteiro encontrado na internet sem fazer engenharia
reversa do episódio significa desperdiçar oportunidades de aprender
a escrever com quem sabe.
No roteiro/rascunho, vamos chamar assim, Steve é o
namorado de Maggie e Don é o produtor executivo que está saindo.
Aparentemente, os dois personagens se juntaram em um só: na
série, Don é o produtor executivo e o namorado de Maggie.
O roteiro entremeia falas com rubricas descritivas de
emoções e características dos personagens, marcando, inclusive, a
percepção de Neal de que um triângulo amoroso está se formando.
Isso está indicado porque Jim olha e sorri para Maggie, Stevie (o
personagem que vai se fundir com Don) observa a troca de olhares
e não pode fazer nada. Neal perceber isso é marcação de diretor e
é uma estratégia quase literária. Considere-se, porém, que é uma
estratégia de escrita, não uma estratégia narrativa. Esse tipo de
rubrica não vai ser mostrado, não vai aparecer na tela, é indicação
para o diretor e/ou para os atores.
Só na página 45 do roteiro/rascunho começa a aparecer a
história A que é a da redação de TV com a notícia da explosão no
mar da Louisiana. Volta para a história B que é o conflito passado,
mal resolvido, entre Mackensie e Will, e começa a C que seria a das
ameaças. No roteiro que foi levado o ar, o triângulo Jim, Don e
Maggie ficou como história C. As ameaças vão para um episódio
adiante.
No roteiro rascunho há oito páginas de diálogo esclarecendo
a explosão na plataforma de petróleo na Louisiana. Só na página
68, começa a preparação do noticiário. Do roteiro inicial, 16 páginas
foram cortadas. Das 70 páginas restantes, foram enxugadas muitas
falas para dar lugar às oito páginas do evento “antiamericano” do
teaser.
Existe algo no DNA de The Newsroom que é importante para
nós, roteiristas brasileiros. É a capacidade que tem a série de
colocar nuanças dentro de um mesmo partido político, nesse caso, o
republicano.
Nos Estados Unidos, existe uma divisão bem marcada entre
democratas e republicanos e, dizem, os primeiros costumam ter a
simpatia da maioria dos artistas. No entanto, mercado é mercado e
não dá para ignorar uma parcela considerável dos consumidores
norte-americanos. O capitalismo que mantém estúdios, canais,
emissoras não é suicida.
Como ser favorável ao partido democrata (ou sem partido
algum) e construir personagens charmosos, carismáticos, heroicos e
do partido republicanos? Os roteiristas de The Newsroom
conseguem fazer isso seguindo o formato e criando um adversário
republicano que atrai para si as antipatias do protagonista e do
público para quem o Will dá as notícias: o Tea Party.
Em The Newsroom é diferente porque o mundo inconfundível
é o de uma redação de telejornal onde se espera que as pessoas
ganhem muito, deem muito lucro à empresa, mas se mantenham
fiéis à liberdade de expressão. Além de manter um compromisso
com a verdade, claro.
GAME OF THRONES

Assistir a essa série fazendo engenharia reversa do primeiro


episódio é uma experiência fascinante. Mais fascinante ainda
quando se lê o roteiro que está disponível na internet. Por quê?
Porque, mais uma vez (já comentei isso em relação aos roteiros de
Scandal e The Newsroom), o que foi ao ar não corresponde
exatamente ao roteiro que está disponível. Quase tudo está no PDF,
mas falas foram encurtadas, cenas foram simplificadas, outras
foram acrescentadas, atos foram trocados de lugar.
O que acontece com um roteiro pronto, redigido pelo
showrunner, com ou sem o auxílio de colaboradores? Ele é
submetido aos executivos do canal. Aprovado com ou sem
modificações. Depois, é lido pela equipe com o diretor, talvez os
atores. Nessa primeira leitura, cenas podem não funcionar, falas
podem soar falsas.
Quase sempre o que vai ao ar é melhor do que foi escrito.
Claro. Outras autorias são acrescentadas. A do diretor, de seus
assistentes, dos atores.

O primeiro episódio que foi ao ar mostra:


Teaser de sete minutos e meio antes da apresentação fixa,
em forma de engrenagens e reinos, que informa os créditos. No
teaser, veremos o grande problema que se manterá em suspenso
por várias temporadas: os caminhantes brancos, os Outros, os
seres extraordinários.
Depois, no primeiro ato, apresentação de Winterfell, o reino
de Stark.
No roteiro em PDF, depois dos créditos entra a execução do
desertor.
No episódio piloto gravado, em 18 minutos ocorre a
apresentação da capital dos sete reinos com a Ruptura: a morte de
Jon Avery, a “Mão do Rei”. Essa morte terá repercussão fatal sobre
todos os reinos, repercutirá imediatamente sobre os domínios dos
Starks. É uma das melhores demonstrações a que já assisti em TV
da etapa Ruptura, usando os parâmetros da proposta de Propp.
O primeiro episódio tem 60 minutos. Apresenta quatro
famílias que disputam, ou disputarão, os sete reinos.
Os herdeiros exilados aparecem em 33 minutos, ao contrário
do roteiro em PDF em que eles apareceriam logo depois da
execução do desertor. Antes da ruptura, antes da morte da Mão do
Rei.
A aliança entre Ned Stark e Robert Baratheon é testada por
um obstáculo tremendo: uma mensagem enviada pela viúva de Jon
Aryn, irmã da mulher de Ned. Antes de aparecer a decisão de Lord
Stark, a narrativa principal é interrompida pelo casamento da
princesa exilada e o bárbaro Drogo.
Também nesse bloco, o que foi ao ar é melhor do que o que
foi escrito inicialmente, por causa de pequenos ajustes. Ajustes que
tornam a primeira transa de Daenerys e Drogo verossímil. Mais
aquele mundo inconfundível e menos o nosso mundo.
Essas sutilezas de ações e falas de personagens — corta
uma linha aqui, muda uma atitude ali — fazem a competência de um
roteirista, de um showrunner, de um avaliador de roteiro, de um
diretor, de um ator.
Num roteiro de época, especialmente de uma época tão
diferente da nossa, é preciso ser implacável nos cortes. Não
interessa se fica mais romântico ou mais de acordo com a maneira
como nossa época acha que as mulheres devem ser tratadas. Os
roteiristas não estão escrevendo sobre como se comportam e amam
as mulheres de nossa época e sim as de uma época imaginária,
séculos e séculos atrás.
Em seguida, no último bloco, uma pequena cena de
respiração, preparativos de uma caçada e a aliança entre o rei e seu
amigo é reiterada, mas o roteiro nos guarda uma surpresa final.
A cena que fecha o episódio piloto da primeira temporada
reafirma o mundo inconfundível que nos espera nos próximos
episódios. O que um homem não faz por amor numa terra onde
quem tem poder faz o que bem entende?
9MM: SÃO PAULO

Leitura de roteiros de séries é importante para quem quer


entender, dominar, praticar o formato. Infelizmente, ainda é difícil ter
acesso a roteiros de séries dramáticas brasileiras. O produtor
Roberto D’Avila, da Moonshoot, cedeu o primeiro episódio da série
de ação 9mm, de 2009.
Como já destaquei em outros momentos deste livro,
coerência narrativa é fundamental numa série dramática. Um dos
pilares dessa coerência é a dicção dos personagens. Numa série
policial, de ação, como 9mm, o roteirista tem que caracterizar as
diferenças de dicção imediatamente. Nesse caso, o teaser e o
primeiro ato estão assim:
TEASER
INT/MADRUGADA (AMANHECENDO) - CARRO 1
Dois homens, JOTA e URBANO, conversam enquanto dirigem numa
estrada às margens de uma represa.

URBANO
No duro, cara! Ela quis me chupar ali mesmo, debaixo da mesa!

Risadas.

JOTA
E você?

URBANO
A gente tem que ser gentil com as mulheres, né?
(mais risadas).
Mas eu fiz ela engolir tudo, pra aprender (risos leves ...)
Essa mulherada tá abusada demais.
JOTA
É o trabalho delas, né, Urbano...

URBANO
Vocação. Tudo vagabunda, Jota!

Percebe-se que no banco de trás há uma menina, desacordada,


de uns 10, 11 anos. É AMANDA!

JOTA
E essa menina. Não vamos mesmo dar um fim nela?

URBANO
Deixa disso. Ela só está doentinha. Não gostou dos
carinhos da turma, acabou se machucando. Mas ela ainda tem
muito uso. O chefe mandou deixar num hospital e boa.

JOTA
Ou a gente podia nós mesmos brincar de médico com ela antes,
né?

Urbano ri.

URBANO
Com ela eu já brinquei e muito!
2 - CAIU!

PRIMEIRO INTERVALO
3 INT/DIA (MANHÃ) - CARRO DE HORÁCIO NA MARGINAL 3
Ele sozinho no carro. O skyline da Berrini passando na
janela. Ele põe um CD com sua música tema (a escolher)
Ele chega numa entrada de favela, devagar. A mesma represa
de antes ao fundo.

4 EXT/DIA(MANHÃ)- BEIRA DA REPRESA (MESMA DA CENA 2) 4


Eduardo comanda a cena do crime. Começa com insert/fotos do
cadáver e da situação geral, de policiais em torno do
corpo, cercados por moradores.

5 INT/DIA (MANHÃ)- CARRO DE HORÁCIO (MESMA ESTRADA


DAS CENAS 5
1 E 2)
Horácio chega na represa. Vê ao longe um aglomerado de
pessoas e alguns carros de polícia quase na margem.
Contorna e para o carro num campinho.
Acende um cigarro.
Ele passa perto de carro e vê Eduardo comandando a cena do
crime.
Quando Eduardo olha para ele, ele vai embora.

8 EXT/DIA (MANHÃ) - BEIRA DA REPRESA (MESMA DA CENA 2)


8
Eduardo e Luisa se aproximam do corpo caído.
Luisa se agacha e fotografa detalhes.
3P e Tavares estão próximos e comentam.
3P
Meu, eu acho que já vi essa mina.

TAVARES
Chamar esse avião de “mina” é até
pecado...

3P
Pecado é matar uma mulher dessa.

EDUARDO
(ignorando as bobagens dos
colegas e dizendo a Luisa)
Já dá para dizer alguma coisa?

Entram inserts de imagem com detalhes do corpo.


2.
LUÍSA
Leves manchas no pescoço, sinais de ter sido amarrada pelos
pulsos e pernas... É estranho... Mas nos pulsos
parece haver cicatrizes mais antigas, sob os machucados
atuais...

TAVARES
Amarradinha você não gosta, não?

LUÍSA
(irritada e falando para Eduardo)
A perícia do IML vai dar um quadro mais completo.
Tavares ri.

3P
Meu, acho que é a Fabia Cabral,do Casa dos Famosos.

TAVARES
Ih. A Fabia foi pro paredão...
Um carro de reportagem chega cantando pneu..

EDUARDO
Já chegaram os urubus.

LUISA (CONT’D)
Demorou...
Um repórter, MESQUITA, sai do carro, seguido por um câmera
já com a câmera ligada.

REPÓRTER MESQUITA
Delegado, a morta é mesmo Fabia Cabral, do Casa dos Famosos?

EDUARDO
Pô, qual é Mesquita? Tá fazendo bico para a Revista Caras?
Eduardo sai andando e Mesquita vai atrás.
Horacio olha ao longe toda a situação.

9 EXT/DIA (MANHÃ)- DHPP - FACHADA 9


DHPP. Plano externo. Eduardo, Luisa, Tavares e 3P entram
nas escadas.

10 INT/DIA - DHPP - SALA INVESTIGADORES - NUM CANTO. 10


Luísa com AMANDA, uma menina de 11 anos.

LUÍSA
Pode falar comigo... passou, viu? Não vai acontecer mais nada de
mau.
Luísa passa a mão no cabelo dela, maternalmente.
A menina olha pra frente, esquivando-se.

LUÍSA (CONT’D)
Nós vamos pegar o teu pai, Amanda, e ele nunca mais vai te
fazer mal. Agora você está protegida.
Eduardo chega na sala, e faz um gesto chamando Luísa.
Ela tenta passar a mão no cabelo da menina de novo, mas ela
não deixa, agressiva.
Luísa chega para falar com Eduardo. Tavares e 3P se
Aproximam.

LUÍSA (CONT’D)
É o caso de ontem à noite.

EDUARDO
A mulher morta dentro de casa pelo ex-marido bêbado.
Insert de fotos da mãe, morta, e do PAI, ADAMASTOR.
Fotos tipo RG.

LUÍSA (CONT’D)
E não é só isso. A filha foi deixada no hospital ontem à
noite. O pai deve tê-la deixado lá. Eu já suspeitava e o médico
confirmou. Ela tem apenas 11 anos, e sofreu abuso sexual.

Todos olham consternados para a menina, sozinha num canto.

TAVARES
Filho da puta!

EDUARDO
É mais comum do que a gente imagina...

3P
Não entendo com um pai pode fazer isso com a filha.

LUISA
O filho da puta matou a mãe e estuprou a filha... Os vizinhos viram
ele fugir, nervoso, antes de a mulher ser encontrada morta. A filha
está em estado de choque.
A menina sozinha num canto.

11 INT/DIA - CASEBRE 11
ADAMASTOR (o pai, identificado pela foto mostrada acima),
chora, abraçado numa garrafa de cachaça.

12 INT/DIA - DHPP - SALA DOS INVESTIGADORES 12


Estão todos na sala. Inclusive ZELITA (50 anos) a escrivã.
Num canto, além da menina num banquinho, podemos ter um
suspeito preso na corrente (sem dar muito destaque a isso).
Eduardo ainda conversa sobre o caso da menina.

EDUARDO
A menina vai ficar sob guarda provisória do Juizado de Menores?

LUÍSA
Vai. E vou ficar por perto.
EDUARDO
Temos que achar o canalha que fez isso. Notícias do Horácio?

LUÍSA
Pra variar, não.

EDUARDO
Bom, tudo bem, dá uma força pra menina. Mas e o caso da modelo?

TAVARES
Já temos um primeiro resultado, chefe. Aliás, resultado de
primeira.
Tavares olha na direção da entrada do Salão, onde 3Ps
aguarda com uma mulher, linda, gostosíssima.

TAVARES (CONT’D)
É a melhor amiga da Fabia. Era, né? A gente trouxe ela pro senhor
consolá-la... (risinho)
Eduardo não dá bola.

EDUARDO
Luísa, vem comigo interrogar a moça.
Eles saem. Luisa dá uma última olhada para a menina, sozinha.

13 EXT/DIA - PORTA DE IGREJINHA CRENTE 13


Horacio (até aqui ninguém disse o nome dele, não sabemos
quem é o personagem, pode ser um matador. Pelo início
parece ter algo a ver com a morte de Fabia) se aproxima de
igrejinha crente. Lá dentro, cantoria, poucas pessoas. Ele
para na porta.

14 INT/DIA - IGREJINHA CRENTE 14


Horácio caminha lentamente entre as cadeiras. Algumas
pessoas à sua volta se incomodam com sua presença, saem de
perto. Ele fica vendo o culto, que termina. Ele vê uma
mulher e vai até ela. O nome dela é JOANA, e mais à frente,
na série, saberemos que se trata da ex-mulher de Horácio.
Nessa cena ficará ambígua qual a relação entre eles.

JOANA
(agressiva)
Este lugar não é pra ti

HORÁCIO
Pensei que fosse pra todo mundo

JOANA
Não comigo aqui.
(saindo)
Mas quem sabe entre você e Ele ainda tem jeito..

HORÁCIO
Amém.
Horacio a vê saindo. O pastor vem até ele e lhe põe a mão
no ombro, sorrindo.

PASTOR
Bem-vindo, irmão.

15 INT/DIA - AGÊNCIA AFRODITE - SALÃO 15


Ambiente meio brega, meio trash. Modelos bonitas, mas
vulgares. Lê-se, atrás da recepcionista, o logo “Afrodite”.
Tavares e 3P conversam.

TAVARES
Isso é que é Missão mais que Possível! A dica da amiga gostosa da
morta gostosa foi quente. Te mete aí com a mulherada.

3P
Rapaz. Eu adoro o meu trabalho!
3P sai.
16 INT/DIA - AGÊNCIA AFRODITE - RECEPÇÃO DA SALA DE
DÁCIO 16
Tavares entra na recepção. Lá está Jota que o encara duro.

TAVARES
Polícia.

JOTA
Tô cagando.

TAVARES
Então te limpa lá fora. Mas, primeiro, chama o teu chefe.

Os dois continuam se encarando, em silêncio. Jota faz menção


de revistar Tavares, mas ele reage, dando uma chave de
braço rápida no capanga.

TAVARES (CONT’D)
Quer ver meu distintivo, eu acho.
Tá aqui, ó!
(Tavares saca o revólver
e enfia o cano na boca
de Jota.)
Suave, neném, suave... (ele simula sexo oral com a arma). )
Ahhh, isso...

Urbano entra na sala. Tavares toma um susto, aponta a arma


para Urbano, mas ele apenas se senta ao fundo.

URBANO
Não fica tão nervoso não, meu senhor.

TAVARES
Você é o Dácio?
URBANO
Não. Não sou. Mas eu posso chamá-lo. Mas antes largue a
arma. O Dácio odeia violência.

Tavares empurra Jota. Após um instante guarda a arma.

TAVARES (CONT’D)
E então, agora dá chamar o teu padrinho?

URBANO
Melhorou. Sobre o que queres falar?

TAVARES
Escuta, mano. Se essa palhaçada não acabar já, eu vou começar a
tratar o sr. Dácio Freitas como suspeito principal do assassinato de
Fabia Cabral.

URBANO
Jota, pergunte ao Dácio se ele quer vir.

Jota sai. Urbano e Tavares ficam se encarando.

URBANO
Eu se fosse você, tomava mais cuidado. Ninguém consegue ser
polícia o tempo todo.

TAVARES
Qual é, está me ameaçando, mano?

Depois de um breve instante, surge, por um painel lateral,


Dácio, com shorts, tênis e camiseta.

DÁCIO
Podem parar com o conflito! Oficial, perdão pelos meus
assessores. Eles estão aqui para garantir minha segurança Você
entende, não? Entre, por favor!

16 B - INT. DIA - ESCRITÓRIO DE DÁCIO


Eles entram no escritório de Dácio. Grande, iluminado, e
bem decorado.

DÁCIO
Sente-se por favor. Em que posso ajudá-lo?

TAVARES
O senhor é responsável pela morte de Fabia Cabral?

DÁCIO
O senhor deve estar brincando? Fabia era a minha modelo mais
lucrativa! Já tinha sido mais, é verdade. Quando me procurou, a
fama de ex-Casa dos Famosos ainda tinha algum gás. Mas, mesmo
assim, ela me dava bastante lucro.

TAVARES
O senhor sabe que facilitação de prostituição é crime?

DÁCIO
Eu tenho noções de direito. Fiz alguns anos de faculdade. Também
são crimes o assassinato, o abuso
de poder.... (Dácio frisa o termo abuso de poder).

TAVARES
Não entendi

DÁCIO
Nem eu. Investigador...

TAVARES
Tavares!
DÁCIO
Investigador Tavares, eu sou um homem de negócios bastante
ocupado. Promovo eventos, forneço modelos para fotos e festas,
tenho uma agenda cheia.

TAVARES
O senhor esqueceu de mencionar seus sites de pornografia.

DÁCIO
É verdade. Ingressei no setor de entretenimento adulto há algum
tempo. Como disse, sou um homem ocupado.

Dácio se levanta e estende a mão para Tavares. Ele não responde.

TAVARES
Quer dizer que a Fabia não fazia programa?

DÁCIO
(recolhendo a mão estendida)
Sou empresário, não babá. Não sou responsável pela vida das
minhas modelos. Agora me diga. O senhor tem algo concreto ou
veio aqui só para se meter na minha vida?

Tavares em silêncio.

DÁCIO
Bem, respeito sua curiosidade. Muitos homens de sua idade
gostariam de conhecer minha agência. Pois pode passear à
vontade, viu? E toma meu cartão... Se gostar de alguma
menina me ligue...
Dácio dá o cartão e chega bem próximo a Tavares:

DÁCIO
Mas nunca mais interrompa o meu treino!
Dácio se vira, Tavares fica quieto, entre humilhado e irritado.

17 INT/DIA - AGÊNCIA AFRODITE - SALÃO 17


Tavares anda por corredores da agência e cruza com várias
modelos.
Entra no salão principal e vê 3P que está de altas
conversas com uma modelinho linda (que mais à frente
descobriremos - junto com 3P - que tem 16 anos). 3P está
bem íntimo.
Tavares faz gesto chamando 3P para ir embora

3P
(para modelinho, brincalhão)
Então, eu tenho que ir, mas vou te dar um mole, hein?
(os dois riem).

Tavares chega e praticamente o puxa de lá. 3P ainda tenta


dar o telefone.

3P
Ó meu celular... Se você me ligar,
capaz até de eu falar contigo, hein?

A menina sorri para 3P, que é levado por Tavares.

18 INT/DIA - AGÊNCIA AFRODITE - SALA DE GINÁSTICA DE


DÁCIO 18
Dácio, Urbano e Jota estão na sala de ginástica ao lado do
escritório de Dácio.

DÁCIO
Vocês não me disseram que esse crime não ia chegar a mim?

URBANO
E não chegou, patrão! Isso aí é só investigação de rotina.
DÁCIO
Ainda não entendo como vocês deixaram a Fabia morrer.

JOTA
O cliente que era doidão. Enforcou demais a mina.

URBANO
Nos só limpamos a barra do cara.

DÁCIO
Bom que o cara era juiz. Ao menos agora ele me deve essa.

JOTA
E não tem como chegar ao senhor, não, patrão.

Pausa. Urbano ajuda o patrão a preparar um aparelho.

URBANO
Me preocupa mais o caso da menina. Ela estava na mesma
festa, se machucou um pouco, mas foi coisa de rotina. Eu nem
pensei que ia dar problema. Mas ontem o bostinha do pai dela
matou a mãe. E agora a menina está na polícia.

JOTA
E o pai ainda está ameaçando nos denunciar por pedofilia.

DÁCIO
Quem é mesmo essa menina?

URBANO
Chama Amanda. Ela nunca viu o senhor, não, patrão.

DÁCIO
Então, no máximo, vai chegar a você.

URBANO
No máximo.

DÁCIO
Ah bom...

Instante de silêncio. Urbano hesita, mas pede.

URBANO
Eu só queria autorização para resolver isso.

DÁCIO
É realmente necessário?

JOTA
Chegar no Urbano não vai ser difícil, chefe. Tem sêmem dele na
mina.

DÁCIO
Eu já lhe disse para não ficar curtindo no trabalho!

URBANO
Foi só uma vez chefe. Não se repetirá.

DÁCIO
Bem, vou lhe dar uma chance. Pode resolver. Mas faça em total
discrição. Não quero mais ser obrigado a receber policial em meu
escritório.

URBANO
Pode deixar patrão. Vamos pegar o pai e a menina, mas sem
vestígio algum. Eu já tenho gente minha atrás dele.

DÁCIO
Ótimo. Pois policial aqui eu só aguento se o cara for meu sócio.

19 INT/DIA - DHPP - SALA PRINCIPAL 19


Luisa com Amanda, o agente do Juizado de Menores ao lado
delas.

AMANDA
Eu não quero ir para o juizado.

LUISA
Não se preocupe. Lá eles vão te dar carinho.

AMANDA
Lá eles vão conseguir me achar logo, logo.

LUISA
Não se preocupe. Já temos boas pistas para prender o seu pai.

AMANDA
(falando cabisbaixa e mais baixo)
Eu não estou falando dele...

O agente do Juizado interrompe a conversa pegando na mão de


Amanda.
Luisa fica meio desnorteada, mas ainda sem entender o que
Amanda quis dizer.
Amanda é levada. Luisa olha.
Eduardo chega.

EDUARDO
Luisa, Você já fez o que podia para proteger essa menina.

FIM DO PRIMEIRO ATO

Os dois grupos de personagens estão bem marcados:


policiais, de um lado, bandidos, de outro. História A, o assassinato
da modelo, B, a trama de pedofilia. No próximo ato vai aparecer a
história C que é a da detetive Luisa e seus problemas
domésticos/policiais. O que desejo destacar aqui não são essas
marcas.
Transcrevo essas páginas do roteiro original porque os
diálogos têm um ritmo de acordo com o gênero, cada fala “puxa” a
narrativa para a frente, informa coisas importantes, mostra contexto,
planta perguntas que precisam ser respondidas. Luisa não fala
como Tavares, Jota não fala como Urbano, Joana não fala como
Horácio, Amanda não fala como a modelo de 16 anos.
Num roteiro como esse, o que Luisa fala e como Luisa fala
não podem ter o mesmo tom do que Joana fala e de como Joana
fala.
Isso parece óbvio, mas é um dos óbvios mais difíceis de
praticar da vida de um escritor. Dicção de personagem depende
muito de conhecimento técnico, de fazer todo o dever de casa antes
de começar a escrever ― story line, sinopse geral, sinopse de
episódios, arco da temporada, arco dos personagens... ― mas
depende muito de empatia também.
O teaser mostra dois bandidos sem escrúpulos, não é
mesmo? Ocultação de cadáver para livrar cliente assassino e
pedofilia não são atestado de bom caráter.
Um dos bandidos, no entanto, diz que a mulherada está
abusada por uma delas ter praticado sexo oral nele, debaixo da
mesa. O outro suaviza dizendo que é o trabalho dela, mas Urbano
repisa: “tudo vagabunda!”. Essa diferença de tom, um mais
agressivo com mulheres, outro entendendo as circunstâncias, não é
uma diferença profissional ou moral. Os dois são bandidos. É uma
diferença de personalidade, diferença de construção de
personagem.
Às vezes fico no Facebook lendo os comentários das
pessoas sobre questões sociais, morais, sexuais e acho
extraordinário constatar as pequenas diferenças de tom que estão
marcadas no que escrevem. Isso considerando o tipo de ambiente
que é o FB. Mesmo quando o ser humano finge ser feliz o tempo
todo ou finge acreditar que está coberto de razão, as marcas da
personalidade estão ali. Essa é a dicção de cada um.
Só muita empatia permite observar a dicção na vida e só a
experiência contínua de escrever dentro do formato permite
transferir isso para o roteiro.
A leitura de um roteiro policial como 9mm, infelizmente fora
do ar, permite distinguir essas diferenças rápido. Porque a série de
especialista apresenta temas muito fortes que obrigam o roteirista a
avançar, avançar, avançar, distinguir, distinguir, distinguir. O
suspense vem da ação, não da falta de marcas entre os
personagens.
TWISTED

Twisted é uma série interessante de observar na engenharia


reversa, porque pode-se explorar as possibilidades do formato
independentemente do cenário. A primeira observação: Twisted é
uma série teen? O piloto pode ser encarado assim.
O que identifica uma série como teen é o fato de o mundo
inconfundível ser de adolescentes (escola, família da qual
dependem, primeira transa, festas, esportes) e tudo o mais que
jovens americanos de classe média alta vivem.
Adolescentes dependem dos pais. Nessa série, a mãe de
Denian é muito bonita. O diretor da escola, que admite o
adolescente de volta, apesar dos protestos da comunidade escolar,
é sensível à beleza dela. A mãe ser bonita faz sentido para essa
narrativa. Em outra, que demandasse outro tipo de mãe, não faria
diferença.
Twisted usa uma estratégia narrativa inusitada que é a de
apresentar um episódio especial no qual um narrador em off faz um
apanhado de tudo o que aconteceu de significativo até ali. Essa
estratégia já foi usada em O assassinato de Roger Ackroyd, de
Agatha Christie. Será o narrador desse episódio o verdadeiro
assassino ou é apenas um adolescente metido a detetive?
Essa estratégia está combinada com outra que é a de passar
o bastão da suspeita para mais de um dos personagens. Típico das
narrativas de mistério.
Voltando à teoria geral da narrativa: ficção é a atividade de
selecionar e combinar aspectos da vida real para produzir um efeito.
Na poética de séries, é preciso selecionar e combinar para provocar
efeitos fortes o bastante a fim de manter a atenção do espectador
durante cinco atos por noite, uma vez por semana, durante 13 ou 24
semanas no ano.
A primeira temporada de Twisted acaba com uma informação
bombástica que nos remete a uma afirmação feita por Danny Desai
desde o início: ele precisava proteger Jo. De quê? Só saberemos na
segunda temporada e isso nos manterá ligados à série.
UNDER THE DOME

Under the Dome é baseada num livro de Stephen King, autor


com muitos títulos em torno do mais forte tipo de terror. O horror que
nos habita.
Esse terror é tema da série. Se trancados numa redoma,
como lidaremos com nossos segredos? Com as oportunidades de
fazer o mal e de defender o que desejamos? Aliás, a temporada
começa e acaba com esta pensata: “Até que ponto um ser humano
com poder é capaz de ir para proteger seus segredos?”.
Só teremos a resposta quando assistirmos ao último episódio
da temporada que, evidentemente, deixará mais expectativa para a
próxima.
Nessa série, o forte é o mistério, portanto, o roteiro precisa
caprichar para não entregar as respostas de uma vez só.
Na obra de Stephen King, existe uma metáfora recorrente
(para usar uma expressão querida dos estudiosos da narrativa).
Essa metáfora poderia ser resumida como: o que o personagem
está disposto a sacrificar para resistir ao Mal e fazer o que é certo?
Stephen King é um escritor épico e de terror. Faz parte do
drama épico, o drama que conta a história de um herói. Under the
Dome pode se inserir na categoria ficção científica, mas a narrativa
está presa ao gênero terror épico que lhe deu origem.

Em cada ato de cada episódio da série, os personagens são


submetidos ao embate entre as duas premissas: “em caso de
necessidade, do que somos capazes para defender nossos
segredos e nossos desejos” versus “o que cada um está disposto a
sacrificar para resistir ao mal e fazer o que é certo”.
As mortes, as traições, a violência ocorrem em função desse
embate. A narrativa é puxada para a frente em função desse
embate. As cenas engraçadas, os diálogos fofos entre personagens
que podem ter um envolvimento amoroso, tudo vai passar por esse
escrutínio.
Uma coisa me chamou a atenção na engenharia reversa de
Under the Dome. Uma frase que me pareceu forçada: “ser um
político é pior do que ser um criminoso”.
A frase me parecer forçada é interpretação da minha parte,
claro. Ocorre que leio Stephen King há muitos anos. Sei que o autor
tende a tecer com cores fortes as trilhas de chefetes locais e do
perigo que eles representam. Stephen King não gosta do que o
poder faz com as pessoas, em especial as pessoas comuns que
acham que estão protegidas do terror causado por elas mesmas.
O parágrafo interpretativo acima se propõe a nos manter
alertas com relação à tendência, humana, compreensível, de
colocar personagens para defenderem nossas teses. No caso de
Under the Dome, a frase não compromete nem de longe a série, o
mistério, a tensão da narrativa. No entanto, é bom evitar
propaganda de pontos de vista. Num roteiro, o mais importante é
sempre a história que se conta.
SCANDAL

Para escrever um episódio de uma série que já está no ar, é


preciso, além de dominar o formato, reconhecer a necessidade de
escrever várias vezes até acertar a mão. Na internet, existe um
primeiro episódio de Scandal, ainda sem esse título, com 95% do
roteiro que foi ao ar em abril de 2012.
No primeiro trecho que foi modificado ― e se Shonda Rhimes
muda o texto dela, todo mundo deve aprender a mudar também ―,
Olivia Pope mantém um diálogo com os sequestradores como se
fosse uma pessoa próxima a eles. É interessante porque a dicção é
correta, mas as falas não são apropriadas.
Num roteiro, é importante que a dicção do personagem
esteja de acordo com o contexto e isso vai depender das falas. No
roteiro de 2010, Olívia está negociando a paz entre dois bandidos
russos como se estivesse enquadrando duas pessoas de sua
equipe. A personagem é mandona, é controladora, impõe sua
vontade com suavidade e firmeza. Essa é a dicção. Mas faz parte
de suas atribuições se meter na vida de dois bandidos que não são
seus clientes? Lógico que não.
Por que isso caiu? Não temos como saber, a menos que
perguntemos, num próximo livro, diretamente a Shonda Rhimes. O
que podemos inferir é que caiu porque estava sobrando. Porque não
tinha sentido Olívia (que não se chamava Pope; nem o seriado tinha
título ainda) negociar acordos pessoais entre adversários.
Outra passagem que caiu no mesmo roteiro foi o momento
em que Olivia desmascara o currículo de Quinn, diz que ela não
estudou em Yale, diz que a origem de Quinn é “trash” etc. etc...
“Trash” nós traduziríamos como lixo, mas no contexto não é
exatamente lixo, é mais “sem pedigree” ou, como diria uma
pedagoga superpreconceituosa que eu conheço, “sem berço”.
Nesse trecho, quase um monólogo, uma fala de 136 palavras, Liv
explicita para Quinn por que a contratou. Diz que poderia ter
contratado alguém bem-criado, com um bom currículo de Yale ou
qualquer outra faculdade da Ive League, mas, em vez disso,
contratou Quinn.
No roteiro que foi ao ar, Hulk explica a Quinn porque Olivia a
escolheu:
HULK: Você era como um cachorro de rua e Olivia a acolheu.
Todos nessa equipe precisam de conserto e é isso o que Liv faz,
conserta coisas.
Provoca mais simpatia quando o protagonista é elogiado por
outro personagem do que quando o próprio esfrega suas qualidades
na face do mundo.
Lendo muitos roteiros, como leio, e identificando as
mudanças, por que assisto primeiro e leio depois, faço a
recomendação para mim mesma: evitar a armadilha de achar que
pode fazer melhor do que gente mais experiente. Depois evitar a
armadilha de achar que não será preciso refazer roteiros.
Especialmente diálogos.
Outra coisa que destaco na primeira temporada de Scandal é
o arco de temporada de Olivia e o de Fitz.
A story line traz um problema tremendo, quase
intransponível, nos Estados Unidos. Uma mulher solteira, negra,
tendo como profissão livrar clientes de escândalos e envolvida num
adultério com o presidente da República, branco e casado.
No seriado, também o presidente da República e seu staff
são republicanos e aí os roteiristas pegam um pouco mais pesado,
como quando Cyrus diz que furou a fila de adoção porque é um
republicano ou quando Olivia o acusa de ser um monstro e ele
responde: sou um monstro, mas sou o seu monstro.
O arco de Olivia vai do primeiro ao último episódio mostrando
o quanto o trabalho é importante para ela, o quanto ela luta para
garantir sua competência profissional, mas, no quesito amor, ela vai
e volta, com viradas emocionantes.
Na engenharia reversa da temporada inteira, observo que
existe uma história A, que é a da profissão de Olivia ― com casos
A, B, C, em alguns episódios, já que esta é uma série de
especialista, também. Existe uma história B, que é a do amor de
Olivia, história essa que envolve a Casa Branca. E a história C varia.
Essa é uma estrutura complexa que, para se manter rodando,
demanda muita competência autoral e coerência narrativa.

LEVANTANDO
SUA
PRÓPRIA SÉRIE

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