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GEORGE ORWELL

1984

“QUEM CONTROLA O PASSADO,


CONTROLA O FUTURO; QUEM
CONTROLA O PRESENTE,
CONTROLA O PASSADO”

Tradução de
RENATA RUSSO BLAZEK
©2021 Copyright Montecristo Editora - versão 17.03.2021
GEORGE ORWELL
1984
“OS MELHORES LIVROS SÃO
AQUELES QUE LHE DIZEM O QUE
VOCÊ JÁ SABE.”
Título Original
Nineteen eightyfour
Supervisão de Editoração/Capa
Montecristo Editora
Tradução
Renata Russo Blazek
Imagem da Capa
montagem sobre imagem de Olga Popova / Shutterstock
ISBN:
978-1-61965-245-3 – Edição Digital

Montecristo Editora Ltda.


e-mail: editora@montecristoeditora.com.br
Louvor

“O maior escritor britânico desde 1945”, The Times


“A coragem e integridade de Orwell brilham em cada página”,
Daily Telegraph
“Qualquer pessoa que queira entender o século XX terá sempre que
ler Orwell”, New York Review of Books
“Um escritor que ainda é brilhantemente contemporâneo... Orwell
disse a verdade”, Christopher Hitchens
“Um escritor que pode – e deve – ser redescoberto em cada época”,
Irish Times
“O olhar incansável de Orwell foi muitas vezes devastadoramente
perceptivo... um homem que olhou para seu mundo com admiração
e escreveu exatamente o que viu, em prosa admirável”, John
Mortimer
“O estilo de prosa inglesa mais claro e atraente deste século”, John
Carey, Sunday Times
“Meu herói”, Margaret Atwood
Sobre o Autor

Eric Arthur Blair (1903-1950), mais conhecido por seu


pseudônimo, George Orwell, nasceu na Índia, onde seu pai
trabalhava para a Administração Pública. Autor, jornalista e ensaísta
político, Orwell foi uma das figuras mais proeminentes e influentes
da literatura do século vinte. Sua obra é marcada por uma
inteligência perspicaz e bem-humorada, uma consciência profunda
das injustiças sociais, uma intensa oposição ao totalitarismo e uma
paixão pela clareza da escrita.
Sua singular alegoria política “A revolução dos bichos”, juntamente
com a distopia “1984”, lhe rendeu fama mundial. A influência de
Orwell na cultura contemporânea, tanto popular quanto política,
perdura até hoje. Vários neologismos criados por ele, assim como o
termo orwelliano — palavra usada para definir qualquer prática
social autoritária ou totalitária — já fazem parte da cultura mundial.
George Orwell se propôs a “fazer da escrita política uma arte”, e
em grande medida este objetivo moldou o futuro da literatura
inglesa ― suas descrições de regimes autoritários ajudaram a
formar um novo vocabulário que é fundamental para a compreensão
do totalitarismo.
Obras de Orwell publicadas pela
Montecristo:
Fascismo e Democracia
Por que Escrevo
A Revolução dos Bichos
1984
SUMÁRIO
GEORGE ORWELL
1984
Louvor
Sobre o Autor

Parte I
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Parte II
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Parte III
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
APÊNDICE
Os princípios da Novilíngua

Bônus
Visões de um futuro totalitário
Parte I

Capítulo 1

Era um dia claro e frio de abril e os relógios badalavam as treze


horas. Winston Smith, com o queixo enfiado no peito afim de se
proteger do forte vento, entrou rapidamente pelas portas de vidro
das Mansões Victory, mas não suficientemente rápido para
impedir que um turbilhão de poeira arenosa entrasse junto com
ele.
O hall de entrada cheirava a repolho cozido e tapetes velhos. Em
uma das extremidades, um cartaz colorido, grande demais para o
ambiente, havia sido colado na parede. Ele retratava
simplesmente um rosto enorme, mais de um metro de largura: o
rosto de um homem de cerca de quarenta e cinco anos, com um
pesado bigode preto e feições robustas e bonitas. Winston foi
direto para as escadas. Não adiantava tentar o elevador. Mesmo
quando tudo corria bem, ele raramente funcionava, e atualmente a
eletricidade vinha sendo cortada durante o dia. Fazia parte das
medidas de economia em preparação para a Semana do Ódio. O
apartamento estava sete andares acima e Winston, que tinha trinta
e nove anos e uma úlcera varicosa acima do tornozelo direito, foi
subindo devagar, parando para descansar várias vezes no
caminho. Em cada andar, em frente à porta do elevador, colado na
parede, o cartaz com o enorme rosto encarava quem passava. Era
uma daquelas imagens arquitetadas para que os olhos o seguissem
sempre que você se movesse. O BIG BROTHER ESTÁ DE
OLHO EM VOCÊ, dizia a legenda na foto.
Dentro do apartamento, uma voz doce lia uma lista de itens que
tinham algo a ver com a produção de ferro gusa. A voz vinha de
uma placa longa e metálica, parecida com um espelho opaco, que
fazia parte da superfície da parede da direita. Winston girou um
interruptor e a voz ficou um pouco mais baixa, embora as
palavras ainda fossem distinguíveis. O volume do instrumento
(chamado de teletela) podia ser abaixado, mas não havia maneira
de desligá-lo completamente. Winston foi até a janela: uma figura
pequena e frágil, a magreza de seu corpo destacada pelo macacão
azul, que era o uniforme do partido. Seu cabelo era bem claro, seu
rosto naturalmente sanguíneo1 e sua pele áspera, devido ao sabão
rudimentar, às lâminas de barbear cegas e ao frio do inverno que
tinha acabado de terminar.
Lá fora, mesmo através da janela de vidro fechada, o mundo
parecia frio. Na rua, pequenos redemoinhos de vento carregavam
pó e papel rasgado em movimento espiral, e embora o sol
brilhasse e o céu estivesse bem azul, parecia não haver cor em
nada, exceto nos cartazes fixados em todos os lugares. O bigode
negro observava cada esquina sem pestanejar. Havia um
imediatamente em frente da casa. O BIG BROTHER ESTÁ DE
OLHO EM VOCÊ, dizia a legenda, enquanto os olhos escuros
olhavam profundamente para o interior do próprio Winston. No
nível da rua, outro cartaz rasgado em uma esquina balançava ao
vento, cobrindo e descobrindo alternadamente a única palavra
SOCING. Ao longe, um helicóptero baixou entre os telhados,
pairou por um instante e saiu novamente em um voo curvo. Era a
ronda policial, bisbilhotando as janelas das pessoas. A polícia,
porém, não importava. Somente a Polícia do Pensamento
importava.
Às costas de Winston, a voz da teletela ainda balbuciava sobre o
ferro-gusa e o pleno cumprimento das metas do Nono Plano de
Três Anos. A teletela recebia e transmitia simultaneamente.
Qualquer som que Winston fizesse e que fosse mais alto do que
um sussurro muito baixo, seria captado por ela, além disso,
enquanto ele permanecesse dentro do campo de visão da placa
metálica, ele poderia ser visto, além de ouvido. Claro que não
havia como saber se você estava sendo observado em um
determinado momento. Tentar entender com que frequência, ou
em que sistema, a Polícia do Pensamento se conectava a cada
indivíduo, era mera especulação. Era até possível que eles
observassem todos o tempo todo. Mas, de qualquer forma, eles
podiam conectar sua escuta sempre que quisessem. Você tinha
que viver - e vivia, pois o hábito se tornou instintivo - na
suposição de que todo som que você emitia era ouvido e, exceto
na escuridão, todo movimento, esmiuçado.
Winston manteve-se de costas para a teletela. Era mais seguro,
apesar de ele saber que até mesmo um dorso poderia revelar
muito. A um quilômetro de distância, o Ministério da Verdade,
seu local de trabalho, se erguia vasto e branco sobre a paisagem
encardida. E então ele pensou com um vago tom de desagrado,
que esta era Londres, a cidade chefe da Faixa Aérea Um e a
terceira província mais populosa de Oceânia. Ele tentou resgatar
alguma memória de infância, procurando se lembrar se Londres
sempre fora assim. Será que sempre existiram estas casas do
século XIX em ruínas, com as paredes laterais escoradas por
vigas de madeira, as janelas remendadas com papelão e os
telhados com chapas de ferro corrugado e aqueles muros malucos
de jardim decrépitos, que se arqueavam para todos os lados? E os
locais bombardeados, onde o pó de gesso flutuava no ar e a relva
crescia sobre os montes de escombros? E os lugares onde as
bombas haviam aberto um espaço maior e onde haviam surgido
colônias sórdidas com moradias de madeira que mais pareciam
galinheiros? Mas não adiantava, ele não conseguia se lembrar:
nada restava de sua infância, exceto uma série de cenas
iluminadas e sem fundo e, na maioria das vezes, ininteligíveis.
O Ministério da Verdade - Miniver, em Novilíngua - era
assustadoramente diferente de qualquer outro objeto à vista. Era
uma enorme estrutura piramidal de concreto branco cintilante,
que se elevava, terraço após terraço, 300 metros no ar. De onde
Winston estava, só era possível ler, em elegantes letras fixadas na
faixada do prédio, os três slogans do Partido:
GUERRA É PAZ
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
IGNORÂNCIA É FORÇA
Dizia-se que o Ministério da Verdade tinha três mil salas acima do
nível do solo e as ramificações correspondentes abaixo.
Espalhados por Londres, havia apenas três outros edifícios de
aparência e tamanho similares. Sua grandiosidade reduzia tanto a
arquitetura circundante que do telhado das Mansões Victory era
possível ver todos os quatro edifícios simultaneamente. Eram as
casas dos quatro Ministérios, nos quais todo o aparato do governo
estava dividido. O Ministério da Verdade, que se ocupava com
notícias, entretenimento, educação e artes plásticas. O Ministério
da Paz, que se ocupava com a guerra. O Ministério do Amor, que
mantinha a lei e a ordem. E o Ministério de Plenitude, que se
ocupava dos assuntos econômicos. Seus nomes, em Novilíngua:
Miniver, Minipaz, Miniamor e Minipleni.
O Ministério do Amor era realmente assustador. Nele não havia
nenhuma janela. Winston nunca entrara no Ministério do Amor e
nunca chegara a menos de meio quilômetro dele. Era um lugar
impossível de entrar, a não ser que se estivesse ali devido a
negócios oficiais, e ainda assim, só passando por um labirinto de
emaranhados de arame farpado, portas de aço e ninhos
escondidos de metralhadoras. Até mesmo as ruas que levavam a
suas barreiras externas eram percorridas por guardas com cara de
gorila em uniformes pretos, armados com cassetetes.
Winston virou-se abruptamente. Ele tinha preparado sua
expressão de otimismo silencioso, que era aconselhável usar
sempre ao encarar a teletela. Ele atravessou a sala, indo para a
pequena cozinha. Ao deixar o Ministério nesta hora do dia, ele
havia sacrificado seu almoço na cantina e estava ciente de que
não havia comida na cozinha, exceto um pedaço de pão escuro,
que tinha que ser guardado para o café da manhã do dia seguinte.
Ele tirou da prateleira uma garrafa de líquido incolor com um
rótulo branco simples onde lia-se GIN VICTORY. O líquido tinha
um cheiro enjoativo e oleoso, como o da aguardente chinesa de
arroz. Winston serviu-se de quase uma xícara de chá, preparou-se
para o impacto e a engoliu como se fosse uma dose de remédio.
Instantaneamente seu rosto ficou vermelho e lágrimas correram
de seus olhos. A bebida era como ácido nítrico, e mais, ao engoli-
la, tinha-se a sensação de ter sido golpeado com um porrete de
borracha na parte de trás da cabeça. No momento seguinte,
porém, a queimação no seu sistema digestivo sumiu e o mundo
começou a parecer mais alegre. Ele pegou um cigarro de um
maço amarrotado da marca CIGARROS VICTORY e o segurou
descuidadamente na vertical, o que fez com que o tabaco caísse
no chão. Já com o cigarro seguinte ele teve mais sucesso. Ele
voltou para a sala de estar e sentou-se em uma pequena mesa que
ficava à esquerda da teletela. Da gaveta da mesa ele tirou um
porta penas, um frasco de tinta e um espesso caderno A4 em
branco, com lombada vermelha e capa marmorizada.
Por alguma razão, a teletela da sala de estar estava em uma
posição incomum. Em vez de ser colocada, como era normal, na
parede do fundo, onde poderia ter uma visão completa da sala,
estava em uma parede lateral, em frente à janela. Por isso, de um
lado da teletela havia uma área na qual Winston estava agora
sentado e que, quando os apartamentos foram construídos,
provavelmente se destinava a abrigar estantes de livros. Ao
sentar-se bem atrás nesta área, Winston ficava fora do alcance de
visão da teletela. Ele podia ser ouvido, é claro, mas enquanto
permanecesse nesta posição, não poderia ser visto. Foi, em parte,
a geografia incomum da sala que lhe sugeriu o que ele estava
prestes a fazer agora.
Mas seu ato também havia sido sugerido pelo livro que ele havia
acabado de tirar da gaveta. Era um livro de uma beleza peculiar.
Seu papel cremoso suave, um pouco amarelado pela idade, era de
um tipo que não era fabricado há pelo menos quarenta anos. Ele
estimava, no entanto, que o livro fosse muito mais antigo que
isso. Ele o tinha visto largado na vitrine de uma pequena loja de
quinquilharias, em um bairro da periferia da cidade (agora ele já
não se lembrava exatamente de que bairro), e tinha sido
imediatamente acometido por um desejo avassalador de possuí-lo.
Os membros do partido não deveriam entrar em lojas comuns
(“negociar no mercado livre”, como era chamado), mas a regra
não era estritamente respeitada porque havia várias coisas, como
cadarços de sapatos e lâminas de barbear, que eram impossíveis
de se conseguir de qualquer outra forma. Ele tinha dado uma
olhada rápida para cima e para baixo na rua e depois tinha entrado
e comprado o livro por dois dólares e cinquenta. Na época, ele
comprou o livro sem qualquer propósito específico. Ele o levou
sorrateiramente para casa em sua maleta. Mesmo sem nada
escrito, o livro era uma posse comprometedora.
A coisa que ele estava prestes a fazer era começar um diário. Isto
não era ilegal (nada era ilegal, já que não havia mais leis), mas se
fosse descoberto era praticamente certo que seria punido com a
morte, ou pelo menos com vinte e cinco anos em um campo de
trabalhos forçados. Winston colocou um bico no porta penas e o
aspirou para que a tinta descesse para a pena. A pena era um
instrumento arcaico, raramente usado até mesmo para assinaturas,
e ele havia adquirido uma furtivamente e com alguma
dificuldade, simplesmente pela sensação de que o belo papel de
textura macia merecia ser escrito com um bico de verdade, em
vez de ser riscado com uma simples caneta. Na verdade, ele não
estava acostumado a escrever à mão. Ele só escrevia notas muito
curtas ou ditava tudo, o que era naturalmente impossível para seu
propósito atual. Ele mergulhou a pena na tinta e depois vacilou
por apenas um segundo. Um tremor passou por suas entranhas.
Marcar o papel foi o ato decisivo. Em pequenas letras
desajeitadas, ele escreveu:
4 de abril de 1984
Ele se recostou na cadeira. Tinha sido tomado por uma sensação
de total impotência. Para começar, ele não tinha certeza se estava
no ano de 1984. Devia ser mais ou menos esta data, pois ele tinha
quase certeza de que sua idade era trinta e nove anos e acreditava
ter nascido em 1944 ou 1945. Mas na atualidade, era impossível
saber a data exata, o mais correto era trabalhar com uma margem
de erro de um ou dois anos.
De repente ele se perguntou: para quem ele estava escrevendo
este diário? Para o futuro, para aqueles que ainda não tinham
nascido. Sua mente se ateve por um momento à data duvidosa na
página e depois se despertou, chocando-se com o termo
DUPLIPENSAMENTO, da Novilíngua. Pela primeira vez, tomou
consciência da magnitude do seu empreendimento. Como seria
possível se comunicar com o futuro? Era praticamente
impossível. Ou o futuro seria parecido com o presente, e nesse
caso não o ouviria, ou seria diferente, e então o que ele tinha a
dizer já não faria mais sentido.
Ele ficou algum tempo olhando estupidamente para o papel. A
teletela tocava agora uma música militar estridente. Era estranho
porque ele não tinha apenas perdido o poder de se expressar, mas
ainda tinha esquecido tudo o que queria dizer. Há semanas ele se
preparava para este momento e nunca lhe passou pela cabeça que
seria necessário mais alguma coisa além de coragem. Escrever
deveria ser fácil. Tudo o que ele tinha que fazer era transferir para
o papel o interminável monólogo que corria inquieto em sua
cabeça há anos. Neste momento, no entanto, até mesmo o
monólogo havia desaparecido. Além disso, sua úlcera varicosa
tinha começado a coçar insuportavelmente. E ele não ousava
coçá-la, porque sempre que a coçava, ela inflamava. O tempo
estava passando. Ele não tinha consciência de nada, exceto da
página branca à sua frente, da coceira no tornozelo, da música da
teletela e de uma leve desorientação causada pelo gin.
De repente, em pânico, ele desatou a escrever, sem ter muita
consciência do que estava colocando no papel. Sua letra pequena,
com caligrafia infantil, foi se esparramando para cima e para
baixo pelas folhas em branco, ignorando as letras maiúsculas no
começo e até mesmo a pontuação das frases no final:
4 de abril de 1984. Ontem à noite teve cinema. Todos eram
filmes de guerra. Um muito bom de um navio cheio de
refugiados sendo bombardeado em algum lugar do
Mediterrâneo. O público se divertiu muito com as cenas
de um homem enorme e gordo que tentava fugir a nado
enquanto era perseguido por um helicóptero, primeiro ele
nadava como um golfinho, depois foi alvejado pelos tiros
vindos do helicóptero, então ele apareceu cheio de
buracos e o mar à sua volta ficou avermelhado e por
último o homem afundou, como se os buracos dos tiros
tivessem deixado a água entrar nele, a audiência gritou
em êxtase quando ele afundou. então veio uma cena de um
bote salva-vidas cheio de crianças com um helicóptero
pairando sobre ele. havia uma mulher de meia idade que
parecia ser judia sentada na proa com um menino de mais
ou menos três anos nos braços. menino gritava de medo e
escondia a cabeça no peito da mãe como se estivesse
tentando se enterrar nela e a mulher colocava seus braços
em volta dele e o confortava embora ela mesma estivesse
pálida de pavor, o tempo todo o cobria o máximo possível
como se ela achasse que seus braços poderiam manter as
balas longe dele. então o helicóptero jogou uma bomba de
20 quilos neles e em um segundo o bote foi para os ares.
então houve uma cena maravilhosa do braço de uma
criança subindo subindo pelos ares um helicóptero com
uma câmera no bico deve tê-lo acompanhado subindo e
houve muitos aplausos nos assentos do partido, mas uma
mulher sentada entre os proletas de repente começou um
alvoroço e gritava que eles não deviam ter mostrado não
na frente de crianças não fizeram direito não na frente de
crianças não fizeram até que a polícia a levou para fora
eu acho que nada aconteceu com ela ninguém se importa
com o que os proletas dizem reações típicas de proletas
eles nunca - -
Winston parou de escrever, em parte porque estava sofrendo de
cãibras. Ele não sabia o que o tinha feito simplesmente derramar
aquele monte de bobagens. Mas o curioso era que enquanto
escrevia, uma memória totalmente diferente veio a sua mente, a
ponto de quase fazê-lo escrevê-la. Foi por causa deste outro
incidente que ele tinha decidido, de repente, voltar para casa e
começar o diário.
Tinha acontecido naquela manhã no Ministério, se é que se pode
chamar algo tão nebuloso de acontecimento.
Eram quase onze horas e no Departamento de Registros, onde
Winston trabalhava, eles estavam tirando as cadeiras das baias de
trabalho e as agrupando no centro do salão em frente à grande
teletela, preparando-se para os “Dois Minutos de Ódio”. Winston
ia para seu lugar em uma das fileiras do meio quando duas
pessoas que ele conhecia de vista, mas com quem nunca tinha
falado, entraram inesperadamente na sala. Uma delas era uma
garota que ele via com frequência nos corredores. Ele não sabia o
nome dela, mas sabia que ela trabalhava no Departamento de
Ficção. Já que ele já a tinha visto algumas vezes com as mãos
sujas de óleo e carregando uma chave inglesa, ele presumia que
ela trabalhava na manutenção de uma das máquinas de escrever
romances. A garota tinha uma aparência ousada, cerca de vinte e
sete anos, cabelo grosso, rosto com sardas e movimentos rápidos
e atléticos. Ela tinha uma faixa escarlate estreita, emblema da
Liga Juvenil Antissexo, enrolada várias vezes na cintura de seu
macacão, apertada o suficiente para realçar a forma de seus
quadris. Winston não gostou dela desde o primeiro momento em
que a viu. Ele sabia a razão. Era por causa da atmosfera de jogos
de hóquei, banhos frios, caminhadas comunitárias e da mente
limpa que a circundava. Ele não gostava de quase nenhuma
mulher, especialmente das jovens e bonitas. Eram sempre as
mulheres, especialmente as jovens, as mais fanáticas adeptas do
Partido, as que engoliam os slogans, que trabalhavam como
espiãs amadoras e denunciavam a falta de ortodoxia. Mas esta
garota em particular lhe deu a impressão de ser mais perigosa do
que a maioria. Uma vez, ao se cruzarem no corredor, ela lhe
lançou um rápido olhar de canto de olho que pareceu trespassá-lo
em cheio e por um momento o encheu de terror. Ele até pensou
que ela poderia ser uma agente da Polícia do Pensamento. É
verdade que isso era muito improvável. Mesmo assim, sempre
que ela estava por perto, ele sentia um mal-estar peculiar, que
misturava medo e hostilidade.
A outra pessoa era um homem chamado O’Brien, membro do
Núcleo do Partido e detentor de algum cargo tão importante e
remoto que Winston tinha apenas uma vaga ideia de sua natureza.
Um silêncio momentâneo tomou conta do grupo de pessoas que
estava redor das cadeiras ao ver a roupa preta de um membro do
Núcleo do Partido se aproximando. O’Brien era um homem
grande, corpulento, de pescoço grosso e rosto grosseiro, bem-
humorado e brutal. Apesar de sua aparência, ele tinha um certo
charme. Ele arrumava os óculos no nariz de um jeito
curiosamente civilizado, que desarmava qualquer pessoa. Era um
gesto que, se alguém ainda pensasse desta forma, lembraria um
nobre do século XVIII oferecendo sua caixa de rapé. Em tantos
anos, Winston talvez tivesse visto O’Brien uma dúzia de vezes.
Ele se sentia profundamente atraído por O’Brien, e não era apenas
porque se intrigava com o contraste entre sua maneira urbana e
seu físico de combatente de elite. A atração estava mais
relacionada a uma crença secreta - ou talvez nem mesmo uma
crença, apenas uma esperança – de que a ortodoxia política de
O’Brien não era perfeita. Algo em seu rosto trazia esta sugestão.
E talvez nem fosse a falta de ortodoxia que estivesse estampada
em seu rosto, mas simplesmente inteligência. Mas de qualquer
forma, ele parecia ser uma pessoa com quem era possível
conversar se, de alguma maneira, fosse possível enganar a teletela
e aproximar-se dele quando estivesse sozinho. Winston nunca
havia se esforçado para verificar este seu palpite: de fato, não
havia como fazer isso. Neste momento O’Brien olhou para seu
relógio de pulso, viu que eram quase onze horas e decidiu ficar no
Departamento de Registros até que os Dois Minutos de Ódio
tivessem terminado. Ele pegou uma cadeira na mesma fila que
Winston, a alguns lugares de distância. Uma mulher pequena de
cabelos ruivos que trabalhava no posto de trabalho ao lado de
Winston estava entre eles. A garota de cabelos escuros estava
sentada exatamente atrás.
No momento seguinte, um discurso horrível e opressivo, como
que saído de uma máquina monstruosa funcionando sem óleo,
explodiu da grande teletela no fundo da sala. Era uma voz de
fazer bater os dentes e arrepiar os cabelos da nuca. O Ódio tinha
começado.
Como sempre, o rosto de Emmanuel Goldstein, o Inimigo do
Povo, apareceu na tela. Aqui e ali foi possível ouvir assobios
vindos da plateia. A pequena mulher de cabelos ruivos deu um
grunhido cheio de medo e repugnância. Goldstein era o renegado
e desertor que, em algum momento há muito tempo (há quanto
tempo, ninguém se lembrava exatamente), havia sido uma das
principais figuras do Partido, quase que tão importante quanto o
próprio Big Brother, e que depois se envolveu em atividades
contrarrevolucionárias, foi condenado à morte e misteriosamente
escapou e desapareceu. Os programas dos Dois Minutos de Ódio
variavam diariamente, mas não havia nenhum em que Goldstein
não fosse a figura principal. Ele era o primeiro traidor, o mais
antigo detrator da pureza do Partido. Todos os crimes
subsequentes contra o Partido, todas as traições, atos de
sabotagem, heresias, desvios, derivavam diretamente de seus
ensinamentos. Ele ainda seguia vivo em algum lugar, tramando
suas conspirações: talvez em algum lugar do além-mar, sob a
proteção de seus patrocinadores, talvez até mesmo – conforme
rumores ocasionais - escondido na própria Oceânia.
O diafragma de Winston se contraiu. Ele nunca conseguia ver o
rosto de Goldstein sem sentir uma mistura dolorosa de emoções.
Era um rosto judeu magro, rodeado por uma auréola felpuda de
cabelos brancos e um pequeno cavanhaque - um rosto inteligente,
mas de alguma forma desprezível, com uma espécie de tolice
senil no fino e alongado nariz, ao final do qual se equilibrava um
par de óculos. Lembrava o rosto de uma ovelha, assim como a
voz, que também parecia de ovelha. Goldstein estava fazendo seu
habitual ataque peçonhento às doutrinas do Partido - um ataque
tão exagerado e perverso que até uma criança duvidaria dele, mas
ainda assim plausível o suficiente para dar aos ouvintes a
sensação alarmante de que outros não tão equilibrados quanto eles
poderiam ser por ele iludidos. Ele estava abusando do Big
Brother, ele estava denunciando a ditadura do partido, exigindo a
negociação da paz imediata com a Eurásia, defendendo a
liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de
reunião, a liberdade de pensamento, ele gritava histericamente
que a revolução havia sido traída - e tudo isso em um rápido
discurso polissilábico que era uma espécie de paródia do estilo
habitual dos oradores do partido, e que continha até mesmo
palavras da Novilíngua: na verdade, mais palavras da Novilíngua
do que qualquer membro do partido usaria normalmente na vida
real. E enquanto isso, a fim de evitar qualquer dúvida em relação
às besteiras cobertas pelo discurso de Goldstein, atrás de seu rosto
na teletela, eram apresentadas imagens intermináveis de marchas
do exército eurasiático – filas e filas de homens de aparência
sólida com rostos asiáticos sem expressão, que surgiam na tela e
depois desapareciam, para serem substituídos por outros
exatamente iguais. O som rítmico e monótono das botas dos
soldados em marcha formava o pano de fundo para a voz violenta
de Goldstein.
Antes mesmo de trinta segundos da exibição do Ódio,
exclamações incontroláveis de raiva já eram proferidas por
metade das pessoas presentes na sala. O rosto satisfeito com
aparência de ovelha na teletela e o poder aterrorizante do exército
eurasiático por trás dele eram demais para serem suportados: além
disso, a visão ou mesmo o pensamento em Goldstein produziam
automaticamente medo e raiva. Ele era um objeto de ódio mais
constante que Eurásia ou Lestásia, pois quando a Oceânia estava
em guerra com uma destas duas potências, geralmente estava em
paz com a outra. Mas o mais estranho era que embora Goldstein
fosse odiado e menosprezado por todos, embora todos os dias, mil
vezes ao dia, em palcos, na teletela, nos jornais e nos livros, suas
teorias fossem refutadas, esmagadas, ridicularizadas, reprimidas e
constantemente vistas como o lixo lamentável que eram, apesar
de tudo isso, sua influência nunca parecia diminuir. Havia sempre
novos tolos esperando para serem ludibriados por ele. Não se
passava um dia sequer sem que espiões e sabotadores, agindo sob
suas ordens, fossem desmascarados pela Polícia do Pensamento.
Ele era o comandante de um vasto exército das sombras, uma
rede oculta de conspiradores dedicados à derrubada do Estado.
Seu nome era supostamente A Irmandade. Havia ainda boatos de
um livro terrível do qual Goldstein seria o autor, um compêndio
de todas as heresias, e que circulava clandestinamente por aí. Era
um livro sem título. As pessoas se referiam a ele, se é que se
referiam, simplesmente como O LIVRO. Mas só se sabia de tais
coisas através de vagos rumores. Nem A Irmandade nem O
LIVRO eram assuntos que um membro comum do Partido
mencionaria se houvesse como evitá-los.
Em um segundo momento, o Ódio virou frenesi. As pessoas se
agitavam em seus lugares e gritavam o mais alto que podiam,
esforçando-se para abafar a voz lamuriosa que vinha da tela. A
mulher franzina de cabelos ruivos estava rosa vivo e sua boca
abria e fechava como a de um peixe fora d’água. Até mesmo o
rosto sério de O’Brien estava enrubescido. Ele se sentava ereto
em sua cadeira, seu poderoso peito inflando-se e tremendo como
se estivesse enfrentando o assalto de uma onda. A mulher de
cabelos escuros atrás de Winston tinha começado a gritar
“Canalha! Canalha! Canalha!” e de repente ela pegou um pesado
dicionário de Novilíngua e o atirou na tela. Ele bateu no nariz de
Goldstein e desviou; a voz seguiu inexorável. Em um momento
de lucidez, Winston notou que estava gritando como os outros e
batendo seu calcanhar violentamente contra sua cadeira. A parte
mais terrível dos Dois Minutos de Ódio não era a obrigatoriedade
em participar mas, pelo contrário, era o fato de ser impossível não
participar. Dentro de trinta segundos qualquer fingimento se fazia
desnecessário. Um ímpeto horrível de medo e revanchismo, um
desejo de matar, de torturar, de esmagar rostos com uma marreta,
parecia fluir através de todo o grupo de pessoas como uma
corrente elétrica, transformando cada um, mesmo contra a sua
própria vontade, em um lunático irritante e histérico. A raiva das
pessoas era ainda um sentimento abstrato, não dirigido, que podia
ser transferido de um objeto para outro como a chama de um
lampião. Desta forma, em um determinado momento, o ódio de
Winston não se voltava mais contra Goldstein, mas, ao contrário,
contra o Big Brother, o Partido e a Polícia do Pensamento; e em
tais momentos, seu coração compactuava com o herege e solitário
homem ridicularizado na tela, o único guardião da verdade e da
sanidade em um mundo de mentiras. E da mesma forma, no
instante seguinte, ele se solidarizava com a opinião das pessoas
sobre o herege e tudo o que se dizia de Goldstein lhe parecia ser
verdade. E nestes momentos, sua aversão secreta ao Big Brother
transformava-se em adoração, e o Big Brother parecia elevar-se
como um protetor invencível e destemido, firme como uma rocha
contra as hordas da Ásia, e Goldstein, apesar de seu isolamento,
sua impotência, e da própria dúvida acerca de sua existência,
parecia um feiticeiro sinistro, capaz, pelo simples poder de sua
voz, de estremecer toda a estrutura da civilização.
Era até possível, em alguns momentos, direcionar o ódio para um
ou para outro de forma voluntária. De repente, com um esforço
violento, como o de alguém que afasta a cabeça do travesseiro
durante um pesadelo, Winston conseguiu transferir seu ódio do
rosto na tela para a garota de cabelos escuros atrás dele.
Alucinações vívidas e belas passaram por sua mente. Nelas, ele a
açoitava até a morte com um cassetete de borracha. Ele a
amarrava nua a uma estaca e a enchia de flechadas, como São
Sebastião. Ele a violentava e cortava sua garganta no momento do
clímax. Então ele entendeu POR QUE a odiava. Ele a odiava
porque ela era jovem, bonita e casta, porque ele queria ir para a
cama com ela, mas nunca o faria, pois ao redor de sua pequena
cintura, que parecia pedir que ele a envolvesse com seus braços,
havia apenas a odiosa faixa escarlate, símbolo agressivo da
castidade.
O Ódio atingiu seu clímax. A voz de Goldstein se transformou em
um verdadeiro balido de ovelha e por um instante seu rosto se
transformou no de uma ovelha. A cara de ovelha se transformou
lentamente na figura de um soldado eurasiático que parecia estar
avançando, enorme e terrível, com sua submetralhadora rugindo e
parecendo saltar para fora da tela, de modo que algumas das
pessoas da fila da frente realmente recuaram para trás em seus
assentos. Mas, no mesmo instante, roubando um suspiro profundo
de alívio de todos, a figura hostil se metamorfoseou no rosto do
Big Brother, de cabelos e bigode pretos, cheio de poder e de
calma misteriosa, e tão grande que quase encheu a tela. Ninguém
ouviu o que o Big Brother dizia. Eram apenas algumas palavras
de encorajamento, palavras que são pronunciadas no alvoroço da
batalha e não são distinguíveis individualmente, mas que
restauravam a confiança pelo simples fato de serem ditas. Então o
Big Brother desapareceu novamente e em seu lugar surgiram os
três slogans do Partido, destacados em letras garrafais:
GUERRA É PAZ
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
IGNORÂNCIA É FORÇA
Mas o rosto do Big Brother parecia permanecer por mais vários
segundos na tela, como se o impacto que tinha causado nos olhos
de todos fosse muito vívido para se dissipar imediatamente. A
pequena mulher de cabelos ruivos tinha se atirado para frente,
sobre as costas da cadeira na sua frente. Murmurando algo
parecido com ‘Meu Salvador!’, ela estendeu os braços em direção
à teletela. Então ela afundou o rosto em suas mãos. Ela
aparentemente estava fazendo uma oração.
Neste momento, todo o grupo de pessoas entrou em um canto
profundo, lento e rítmico de ‘B-B! ...B-B!’ – repetida e
lentamente, com uma longa pausa entre o primeiro ‘B’ e o
segundo - um murmúrio pesado e curiosamente selvagem, ao
fundo do qual se parecia ouvir o estampido dos pés nus no chão e
o rufar de tambores. E foi assim por aproximadamente trinta
segundos. Este era um refrão normalmente ouvido em momentos
de forte emoção. Em parte, era uma espécie de hino à sabedoria e
majestade do Big Brother, mas acima de tudo era ainda um ato de
auto hipnose, a supressão deliberada da consciência por meio de
um som ritmado. As entranhas de Winston pareceram gelar. Ele
não conseguia compartilhar do delírio geral nos Dois Minutos de
Ódio, mas este canto sub-humano de ‘B-B! ...B-B!’ sempre o
enchia de horror. É claro que ele cantava junto: era impossível
fazer outra coisa. Dissimular seus sentimentos, controlar sua
expressão, fazer o que todos os outros estavam fazendo, eram
reações instintivas. Mas houve o intervalo de alguns segundos
durante o qual a expressão de seus olhos possivelmente o traiu. E
foi exatamente nesse momento que a coisa significativa aconteceu
- se é que de fato aconteceu.
Por um momento, seus olhos cruzaram com os de O’Brien.
O’Brien tinha se levantado. Ele havia tirado seus óculos e os
colocava novamente com seu gesto característico. E então, por
uma fração de segundo seus olhos se encontraram e pelo tempo
que levou para acontecer, Winston sabia - sim, ele SABIA!- que
O’Brien estava pensando a mesma coisa que ele. Uma mensagem
inconfundível fora trocada. Era como se suas mentes tivessem se
aberto e os pensamentos tivessem fluído de uma para a outra
através de seus olhos. ‘Eu estou com você,’ O’Brien parecia estar
dizendo a ele. ‘Eu sei exatamente o que você está sentindo. Sei
tudo sobre seu desprezo, seu ódio, sua repugnância. Mas não se
preocupe, eu estou do seu lado’. E então este flash de
comunicação se foi e o rosto de O’Brien voltou a ser tão
inescrutável quanto o de todos os outros.
Isso foi tudo e ele não tinha nem certeza se realmente tinha
ocorrido. Tais incidentes nunca tiveram nenhuma sequela. Tudo o
que eles faziam era manter viva nele a crença, ou esperança, de
que outros além dele próprio fossem inimigos do Partido. Talvez
os rumores das conspirações ocultas fossem verdadeiros afinal de
contas - talvez A Irmandade realmente existisse! Era impossível,
apesar das intermináveis prisões, confissões e execuções, ter
certeza de que A Irmandade não era simplesmente um mito.
Alguns dias ele acreditava nela, outros não. Não havia provas,
apenas pequenas coisas que poderiam significar tanto a sua
existência quanto nada: trechos de conversas ouvidas por acaso,
rabiscos desbotados nas paredes do banheiro – ou até mesmo,
quando dois estranhos se encontravam, um pequeno movimento
da mão que poderia ser um sinal de identificação. Tudo era
suposição: provavelmente ele havia imaginado tudo. Ele tinha
voltado ao seu posto de trabalho sem olhar novamente para
O’Brien. A ideia de dar continuidade a seu contato de uma fração
de segundo sequer lhe passou pela cabeça. Teria sido
inconcebivelmente perigoso, mesmo se ele soubesse como fazer
isso. Por um ou dois segundos eles haviam trocado um olhar
ambíguo e fim da história. Mas mesmo isso era um acontecimento
memorável, considerada a solidão em que se era obrigado a viver.
Winston voltou a si e se endireitou na cadeira. Arrotou. O álcool
subia de seu estômago.
Seus olhos se voltaram novamente para o papel. Ele descobriu
que enquanto se sentara sem fazer nada, seguira escrevendo
automaticamente, como que por impulso. E não era mais a mesma
caligrafia infantil e singela de antes. Sua pena havia deslizado
voluptuosamente sobre o papel liso, escrevendo em belas e
grandes letras maiúsculas – ABAIXO O BIG BROTHER
ABAIXO O BIG BROTHER ABAIXO O BIG BROTHER
ABAIXO O BIG BROTHER ABAIXO O BIG BROTHER
repetidas vezes, preenchendo metade de uma página.
Ele não pôde evitar uma pontada de pânico. Não fazia sentido, já
que escrever estas palavras era tão perigoso quanto o fato de ter
começado o diário, mas por um momento ele foi tentado a
arrancar as páginas escritas e abandonar completamente seu
empreendimento.
Mas ele não arrancou, sabia que era inútil. Se tinha escrito
ABAIXO O BIG BROTHER ou não, não fazia diferença. Se
continuava com o diário, ou se parava com ele, não fazia
diferença. A Polícia do Pensamento o pegaria da mesma forma.
Ele tinha cometido – e teria cometido mesmo que nunca tivesse
tocado a pena no papel - o crime essencial, que continha todos os
outros crimes. Eles o chamavam de Crime de Pensamento. O
Crime de Pensamento não era algo que pudesse ser ocultado para
sempre. Era possível ocultá-lo por algum tempo, até mesmo por
anos, mas mais cedo ou mais tarde eles o pegariam.
Acontecia sempre à noite - as prisões eram feitas invariavelmente
à noite. O puxão repentino que despertava do sono, a mão áspera
sacudindo o ombro, as luzes fortes brilhando nos olhos, o círculo
de rostos severos ao redor da cama. Na grande maioria dos casos,
não havia qualquer julgamento, não havia qualquer relato da
prisão. As pessoas simplesmente desapareciam, sempre durante a
noite. Seus nomes eram retirados dos registros, cada registro, tudo
o que haviam feito, era apagado, suas existências eram negadas e
depois esquecidas. A pessoa era abolida, aniquilada:
VAPORIZADA, era como se dizia.
Por um momento, ele foi tomado por uma espécie de histeria. Ele
começou a escrever num rascunho desordenado e apressado:
eles vão atirar em mim eu não me importo eles vão atirar
na minha nuca, eu não me importo abaixo o big brother
eles atiram sempre na sua nuca eu não me importo abaixo
o Big Brother –
Ele recostou-se novamente em sua cadeira, ligeiramente
envergonhado de si mesmo, e repousou a pena. No momento
seguinte, entrou em pânico. Alguém bateu à porta.
Tão rápido! Ele permaneceu sentado, quieto como um rato, na
tola esperança de que, quem quer que fosse, pudesse ir embora
após uma única tentativa. Mas não, bateram novamente à porta.
Demorar para atender seria a pior opção. Seu coração batia forte
como um tambor, mas seu rosto, por hábito de longa data, não
tinha qualquer expressão. Ele se levantou e caminhou decidido
em direção à porta.

Capítulo 2

Ao segurar a maçaneta da porta, Winston notou que havia


deixado o diário aberto sobre a mesa. ABAIXO O BIG
BROTHER estava escrito por toda parte em letras tão grandes
que poderiam ser lidas de quase qualquer lugar da sala. Era
realmente um erro inconcebivelmente estúpido de se cometer.
Então, mesmo em seu pânico, ele se deu conta de que não quisera
manchar o belo papel cremoso, por isso não fechara o livro ainda
com a tinta fresca.
Ele respirou fundo e abriu a porta. Uma onda quente de alívio
percorreu imediatamente seu corpo. Do lado de fora estava uma
mulher lívida e de aparência maltratada, com cabelos finos e pele
enrugada.
– Oh, camarada! – Ela começou com uma voz monótona e
lamuriosa. – Achei que tinha ouvido você entrar. Você acha que
poderia dar um pulo em casa e dar uma olhada na pia da nossa
cozinha? Ela está entupida e...
Era a Sra. Parsons, a esposa de um vizinho no mesmo andar
(‘Sra.’ era uma palavra desestimulada pelo Partido - todos
deveriam ser chamados de ‘camarada’ - mas com algumas
mulheres era usada por instinto). Ela era uma mulher de cerca de
trinta anos, que parecia muito mais velha. Dava a impressão de
que havia poeira nas dobras de seu rosto. Winston a seguiu pelo
corredor. Estes reparos amadores eram uma irritação quase diária.
As Mansões Victory eram apartamentos antigos, construídos em
1930 ou nesta época, e estavam caindo aos pedaços. O reboco se
soltava frequentemente em placas dos tetos e paredes, o
encanamento se rompia toda vez que as temperaturas caíam
muito, o telhado vazava sempre que nevava, o sistema de
aquecimento normalmente funcionava a meia potência, isso
quando não estava totalmente fechado para economizar. Os
reparos, exceto os que os próprios moradores faziam, tinham que
ser sancionados por comitês remotos, o que era capaz de fazer
com que o conserto de uma janela demorasse até 2 anos.
– É claro que é só porque Tom não está em casa – disse a Sra.
Parsons.
O apartamento de Parsons era maior que o de Winston e sujo de
uma maneira diferente. Tudo tinha um ar de desleixo e
deterioração, como se um grande e violento animal tivesse
acabado de visitar o local. Equipamentos de jogos - tacos de
hóquei, luvas de boxe, uma bola de futebol arrebentada, um par
de shorts suados virados do avesso - estavam espalhados pelo
chão, e sobre a mesa havia uma pilha de pratos sujos e livros de
exercícios físico com orelhas marcando as páginas. Nas paredes
havia faixas escarlate da Liga da Juventude e dos Espiões e um
cartaz em tamanho real do Big Brother. O apartamento tinha
ainda o habitual cheiro de repolho cozido, que se podia sentir em
todo o edifício, mas o odor era ainda acentuado por um cheiro
forte de suor, que se podia sentir logo na primeira inalada, embora
fosse difícil dizer como era o suor de alguém que não estava ali
no momento. Em outro cômodo, alguém com um pente e um
pedaço de papel higiênico batucava a música militar que ainda
emanava da teletela.
– São as crianças – disse a Sra. Parsons lançando um olhar meio
apreensivo para a porta. – Elas não saíram hoje. E, é claro...
Ela tinha a mania de parar suas frases no meio. A pia da cozinha
estava quase transbordando com uma água esverdeada imunda
que cheirava pior do que o cheiro de repolho cozido. Winston
ajoelhou-se e examinou o sifão da pia. Ele odiava usar as mãos e
odiava se curvar, o que muito comumente lhe desencadeava um
acesso de tosse. A Sra. Parsons observava sem ter ideia de como
ajudar.
– É claro que se Tom estivesse em casa, ele arrumaria a pia num
piscar de olhos – disse ela. – Ele adora este tipo de conserto. O
Tom é muito habilidoso com as mãos.
Parsons era colega de trabalho de Winston no Ministério da
Verdade. Ele era um homem gordo, porém ativo, de uma
estupidez paralisante, era um entusiasta imbecil - um daqueles
devotos cegos e dedicados que não questionam, e dos quais
dependia, mais do que da Polícia do Pensamento, a estabilidade
do Partido. Aos trinta e cinco anos, ele tinha acabado de ser
colocado para fora da Liga da Juventude e, antes de se graduar na
Liga da Juventude, ele tinha trabalhado para permanecer nos
Espiões por um ano além da idade estipulada no estatuto. No
Ministério, ele ocupava um posto baixo, para o qual não era
necessário inteligência; por outro lado, ele era uma figura de
destaque no Comitê Esportivo e em todos os outros comitês,
envolvido na organização de caminhadas, passeatas espontâneas,
campanhas de economia e atividades voluntárias em geral. Ele
sempre falava todo orgulhoso, em meio à fumaça de seu
cachimbo, que havia estado no Centro Comunitário
absolutamente todas as noites nos últimos quatro anos. Um cheiro
insuportável de suor, uma espécie de testemunho inconsciente do
esforço físico que fazia, o seguia por onde quer que ele fosse, e
seu odor permanecia até mesmo depois que ele já tinha ido.
– Você tem uma chave inglesa? – disse Winston, tentando
desenroscar o sifão.
– Uma chave inglesa – disse a Sra. Parsons, ficando
imediatamente paralisada. – Não sei, não tenho certeza. Talvez as
crianças ...
Houve um estampido de botas e outro batuque de pente no
momento em que as crianças entravam na sala de estar. A Sra.
Parsons trouxe a chave inglesa. Winston soltou a água e removeu
com repugnância o emaranhado de cabelos que estava
bloqueando o encanamento. Depois ele limpou seus dedos o
melhor que pôde na água fria da torneira e voltou para a outra
sala.
– Mãos ao alto! – gritou uma voz selvagem.
Um bonito garoto de nove anos saltara de trás da mesa e o
ameaçava com uma pistola automática de brinquedo, enquanto
sua irmãzinha, cerca de dois anos mais nova, fazia o mesmo gesto
com um pedaço de madeira. Os dois vestiam calções azuis,
camisas cinzas e lenços vermelhos, que eram o uniforme dos
espiões. Com certa inquietação, Winston levantou as mãos; o
comportamento do menino era tão perverso, que aquilo não
parecia uma brincadeira.
– Você é um traidor! – gritou o garoto. – Você é um criminoso do
pensamento! Você é um espião eurasiático! Vou atirar em você,
vou vaporizá-lo, vou mandar você para as minas de sal!
De repente, os dois pulavam em volta dele, gritando ‘Traidor!’ e
‘Criminoso do pensamento!’, a menina imitando cada movimento
de seu irmão. De alguma forma, aquilo foi um pouco assustador,
como a brincadeira de filhotes de tigre que logo se tornarão
devoradores de humanos. Havia uma espécie de ferocidade
calculista no olhar do menino, uma vontade evidente de bater em
Winston ou chutá-lo, e uma consciência de já ser quase grande o
suficiente para fazê-lo. Mas não era uma pistola verdadeira que o
menino tinha nas mãos, pensou Winston.
Os olhos da Sra. Parsons iam nervosamente de Winston para as
crianças e de volta para Winston. Sob a boa iluminação da sala de
estar, ele notou com interesse que realmente havia poeira nas
dobras de seu rosto.
– Eles fazem tanto barulho – disse ela. – Eles estão desapontados
porque não poderão ver o enforcamento, este é o problema. Estou
muito ocupada para levá-los e Tom não voltará do trabalho a
tempo.
– Por que não poderemos ver o enforcamento? – rugiu o garoto
em sua voz mais alta.
– Queremos ver o enforcamento! Queremos ver o enforcamento!
– cantarolou a garotinha, com sua voz fina.
Winston se lembrou então que alguns prisioneiros eurasianos
julgados por crimes de guerra seriam enforcados no Parque
naquela noite. Isto acontecia mais ou menos uma vez por mês e
era um espetáculo para a população. As crianças sempre faziam
de tudo para serem levadas ao show. Winston se despediu da Sra.
Parsons e saiu pela porta. Ele ainda não tinha dado seis passos no
corredor quando sentiu um golpe doloroso atrás de seu pescoço.
Era como se um arame fervendo tivesse sido espetado nele. Ele se
virou rapidamente, bem a tempo de ver a Sra. Parsons arrastando
seu filho de volta o apartamento enquanto o garoto colocava uma
catapulta no bolso.
– Goldstein! – gritou o menino enquanto a porta se fechava a sua
frente.
Mas o que mais impressionou Winston foi o olhar assustado e de
impotência no pálido rosto da mulher.
De volta ao apartamento, ele passou rapidamente pela teletela e
sentou-se novamente à mesa, ainda esfregando o pescoço. A
música da tela havia parado. Em vez disso, uma disciplinada voz
militar lia, com enorme prazer, uma descrição dos armamentos da
nova Fortaleza Flutuante que havia acabado de ser ancorada entre
a Islândia e as Ilhas Faroe.
Winston ficou pensando como aquela mulher miserável devia
levar uma vida de terror com aquelas crianças. Mais um ou dois
anos e eles a vigiariam noite e dia tentando identificar sinais de
desobediência. Quase todas as crianças daquela época eram
horríveis. O pior de tudo era que organizações como a dos espiões
os transformavam sistematicamente em pequenos selvagens
ingovernáveis, sem qualquer tendência a se rebelar contra a
disciplina do Partido. Pelo contrário, eles adoravam o Partido e
tudo o que estava ligado a ele. As canções, as procissões, os
banners, as caminhadas, os treinamentos com armas falsas, a
declamação de slogans, o culto ao Big Brother - tudo isso era uma
espécie de jogo glorioso para eles. Toda a violência deles era
direcionada contra os inimigos do Estado, os estrangeiros, os
traidores, os sabotadores, os criminosos de pensamento. Era quase
normal que as pessoas com mais de trinta anos tivessem medo de
seus próprios filhos. E com razão, já que dificilmente se passava
uma semana sem que o jornal ‘The Times’ trouxesse o caso de
algum pequeno bisbilhoteiro – geralmente chamado de herói
infantil – que tinha ouvido alguma observação comprometedora
de seus pais e os denunciado à Polícia do Pensamento.
Winston já não sentia mais o ardor da bala da catapulta. Meio
desanimado, ele pegou sua pena, perguntando-se se poderia
escrever algo mais em seu diário. De repente, começou a pensar
novamente em O’Brien.
Anos antes – há quanto tempo mesmo tinha sido isso? Deve ter
sido por volta de sete anos – ele havia sonhado que caminhava
por uma sala escura. E alguém sentado do lado dele dizia ao vê-lo
passar: ‘Vamos nos encontrar na parte clara da sala’. Isso era dito
tranquilamente, quase casualmente – uma colocação, não uma
ordem. Ele caminhava sem parar. O curioso era que na época, as
palavras do sonho não fizeram sentido para ele. Foi só mais tarde,
e aos poucos, que elas começaram a ter um significado. Ele já não
conseguia mais lembrar se tinha tido o sonho antes ou depois de
ter visto O’Brien pela primeira vez, tampouco se lembrava
quando exatamente tinha identificado a voz como sendo de
O’Brien. Mas, de qualquer forma, ele já tinha a identificado. Era
de O’Brien a voz que vinha do escuro em seu sonho.
Winston nunca tinha conseguido ter certeza - mesmo depois do
cruzar de olhos desta manhã ainda era impossível ter certeza - se
O’Brien era um amigo ou um inimigo. Mas isso não parecia ter
grande importância. Havia um elo de entendimento entre eles que
era mais importante do que afeto ou partidarismo. ‘Vamos nos
encontrar onde não há escuridão’, disse ele. Winston não sabia o
que isso significava, apenas que de uma forma ou de outra, se
tornaria realidade.
A voz da tela fez uma pausa. O som de trombeta, claro e belo,
pairava estagnado no ar. A voz estridente continuou:
Atenção! Sua atenção, por favor! Uma notícia de última
hora chegou da frente de Malabar. Nossas forças no sul da
Índia obtiveram uma vitória gloriosa. Estou autorizado a
dizer que o que noticiaremos agora pode significar que a
guerra se aproxima do fim. Aqui está a notícia ...
Más notícias chegando, pensou Winston. Dito e feito. Depois de
uma descrição sangrenta da aniquilação de um exército
eurasiático, com horrendas imagens de mortos e prisioneiros, veio
o anúncio de que, a partir da semana seguinte, a ração de
chocolate seria reduzida de trinta para vinte gramas.
Winston arrotou novamente. O álcool estava se manifestando,
deixando uma sensação ruim. A teletela - talvez para celebrar a
vitória, talvez para apagar a memória da porção reduzida de
chocolate – começou com ‘Oceânia, para você’. As pessoas
deviam levantar-se em sinal de atenção e respeito. No entanto, em
sua posição atual, ele estava invisível.
‘Oceânia, para você’ deu lugar a uma música ambiente. Winston
caminhou até a janela, mantendo as costas para a tela. O dia ainda
estava frio e claro. Em algum lugar distante, um míssil explodiu
com um estrondo seco e ecoou. Nesta época, cerca de vinte ou
trinta destas bombas caía por semana sobre Londres.
Na rua, o vento balançava o cartaz rasgado de um lado para o
outro e a palavra SOCING aparecia e desaparecia. Socing. Os
princípios sagrados da Socing. Novilíngua, duplipensamento, a
mutabilidade do passado. Ele sentiu como se estivesse vagando
nas profundezas do mar, perdido em um mundo monstruoso, onde
ele mesmo era o monstro. Ele estava sozinho. O passado estava
morto, o futuro era inimaginável. Que certeza ele podia ter de que
uma única criatura humana viva estaria agora do seu lado? E
como saber que o domínio do Partido não duraria PARA
SEMPRE? Como resposta, os três slogans estampados no
Ministério da Verdade se mostraram a ele:
GUERRA É PAZ
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
IGNORÂNCIA É FORÇA
Ele tirou uma moeda de vinte e cinco centavos do seu bolso. Ali,
em letras pequenas, porém legíveis, estavam estampados estes
mesmos slogans e, na outra face da moeda, estava a cabeça do
Big Brother. Mesmo da moeda, os olhos o seguiam. Em moedas,
em selos, nas capas dos livros, em faixas, em cartazes e na
embalagem de um maço de cigarros – em todos os lugares. Os
olhos sempre o observavam e a voz sempre o envolvia.
Adormecido ou acordado, trabalhando ou comendo, em áreas
internas ou externas, no banho ou na cama – não havia
escapatória. Nada lhe pertencia, exceto os poucos centímetros que
estavam dentro do seu crânio.
O sol havia se deslocado e já não brilhava mais sobre as janelas
do Ministério da Verdade, que agora pareciam sombrias como as
fendas de uma fortaleza. Seu coração tremia diante do enorme
prédio piramidal. Ele era uma fortaleza, não podia ser invadido.
Nem mesmo mil mísseis o derrubariam. Ele se perguntou mais
uma vez para quem estava escrevendo o diário. Para o futuro,
para o passado - para uma época imaginária. E à sua frente não
havia morte, mas aniquilação. O diário seria reduzido a cinzas e
ele mesmo a vapor. Somente a Polícia do Pensamento leria o que
ele havia escrito antes de apagá-lo da existência e da memória.
Como seria possível apelar para o futuro quando nem um traço de
você, nem mesmo uma palavra anônima rabiscada em um pedaço
de papel, poderia sobreviver fisicamente?
A teletela marcava quatorze horas. Ele tinha que sair em dez
minutos, tinha que estar de volta ao trabalho às catorze e trinta.
Curiosamente, a pressão do horário despertou uma nova agitação
nele. Ele era um fantasma solitário, divulgando uma verdade que
ninguém jamais ouviria. Mas enquanto ele a dissesse, de alguma
forma, a continuidade não seria quebrada. Ele carregava a herança
humana não por se fazer ouvir, mas porque estava se mantendo
são. Ele voltou para a mesa, mergulhou sua pena e escreveu:
Ao futuro ou ao passado, a uma época em que o
pensamento é livre, em que os homens são diferentes uns
dos outros e não vivem sozinhos – a uma época em que a
verdade existe e o que é feito não pode ser desfeito:
Saudações da era da uniformidade, da era da solidão, da
era do Big Brother, da era do duplipensamento!
Neste momento ele pensou que já estava morto. Parecia que
apenas agora, quando tinha começado a formular seus
pensamentos, é que ele havia dado o passo decisivo. As
consequências de cada ato estão dentro do próprio ato em si. Ele
escreveu:
O crime de pensamento não implica na morte: o crime de
pensamento é morte.
Agora que ele sabia que era um homem morto, tornou-se
importante permanecer vivo o maior tempo possível. Dois dedos
de sua mão direita estavam manchados de tinta. Era exatamente o
tipo de detalhe que poderia entregá-lo. Algum dedo duro do
Ministério (provavelmente uma mulher; alguém como a mulher
franzina de cabelo ruivo ou a mulher de cabelo escuro do
Departamento de Ficção) poderia começar a se perguntar por que
ele tinha escrito durante o intervalo do almoço, por que ele tinha
usado uma caneta antiga, O QUE ele tinha escrito - e então
delatá-lo no departamento apropriado. Ele foi ao banheiro e
esfregou cuidadosamente a tinta com o sabão marrom-escuro que
raspou sua pele como lixa, tendo sido bem adequado para o fim
em questão.
Então ele guardou o diário na gaveta. Era inútil pensar em
escondê-lo, mas ele podia ao menos criar algum truque para saber
se o livro tinha sido descoberto ou não. Um cabelo colocado entre
as páginas era óbvio demais. Com a ponta do dedo, ele pegou um
grão de pó esbranquiçado e o colocou sobre o canto da capa, de
onde cairia caso alguém mexesse no diário.

Capítulo 3

Winston estava sonhando com sua mãe.


Ele parou para pensar. Ele devia ter dez ou onze anos de idade
quando sua mãe desapareceu. Ela era uma mulher alta, escultural,
silenciosa, com movimentos lentos e magníficos cabelos lisos. Já
de seu pai, ele não se lembrava tão nitidamente; era moreno e
magro, vestia sempre roupas escuras e finas e usava óculos.
Winston lembrava-se claramente das solas finas dos sapatos de
seu pai. Os dois devem ter sido eliminados do sistema em uma
das primeiras grandes purgas dos anos cinquenta.
Sua mãe estava sentada em algum lugar bem abaixo dele, com
sua jovem irmã nos braços. Ele não se lembrava bem de sua irmã,
exceto que era um bebê pequeno e fraco, sempre quieto, com
olhos grandes e atentos. As duas olhavam para ele. Estavam em
algum lugar subterrâneo – talvez o fundo de um poço ou uma
cova muito profunda - e era um lugar que, mesmo já estando
abaixo dele, se movia ainda mais para baixo. Elas estavam no
salão de baile de um navio que estava afundando e olhavam para
cima através da água escura. O salão ainda tinha ar, elas ainda
podiam vê-lo e ele a elas, mas elas continuavam afundando nas
águas verdes, que mais tarde bloqueariam sua visão para sempre.
Ele estava do lado de fora, na luz e no ar, enquanto elas eram
sugadas até a morte, e elas estavam lá embaixo porque ele estava
aqui em cima. Ele sabia e elas sabiam, esta consciência estava
estampada em seus rostos. Não havia reprovação em seus rostos
nem em seus corações, apenas a ciência de que elas deviam
morrer para que ele pudesse permanecer vivo, e que isto fazia
parte da ordem inevitável das coisas.
Ele não se lembrava do que havia acontecido, mas em seu sonho
sabia que de alguma forma as vidas de sua mãe e sua irmã haviam
sido sacrificadas em seu benefício. Era um daqueles sonhos que,
embora tivesse o cenário característico de um sonho, era a
continuação da vida real, e onde, mesmo depois de acordado,
tinha-se a certeza de que continha fatos e ideias completamente
novos e valiosos. O que subitamente impactou Winston, foi a
ideia de que a morte de sua mãe, há quase trinta anos, havia sido
trágica e dolorosa, de uma forma que atualmente já não era mais
possível. Ele se deu conta de que a tragédia pertencia a tempos
passados, a uma época em que ainda havia privacidade, amor e
amizade, e quando os membros de uma família protegiam uns aos
outros, mesmo sem saber por quê. A memória de sua mãe lhe
partia o coração, pois ela havia morrido amando-o, enquanto ele
ainda era jovem e egoísta demais para amá-la em troca, e porque
de alguma forma, ele não se lembrava como, ela havia se
sacrificado por lealdade a seus princípios e isso não podia ser
mudado. Tais coisas já não podiam mais acontecer atualmente.
Agora havia medo, ódio e dor, mas nenhuma dignidade de
emoção, nenhuma tristeza profunda ou complexa. Era possível
ver tudo isso nos grandes olhos de sua mãe e sua irmã, que
olhavam para cima através da água verde, já fundo na água e
afundando cada vez mais.
De repente, ele estava de pé em um pequeno gramado, em uma
noite de verão, com os raios inclinados do sol dourando o chão. A
paisagem aparecia tão corriqueiramente em seus sonhos, que ele
tinha dúvidas se a tinha visto no mundo real ou não. Em sua
cabeça, ele chamava este local de Campo Dourado. Era um velho
pasto cheio de coelhos, cortado por uma trilha e com alguns
buracos de toupeira aqui e ali. Na sebe falha do lado oposto do
campo, os ramos das árvores balançavam suavemente com a
brisa, suas folhas se agitando como os cabelos de uma mulher.
Em algum lugar próximo, embora fora de vista, havia um riacho
claro e lento, onde pequenos peixes nadavam sob os salgueiros.
A garota de cabelos escuros atravessava o campo, vindo na
direção dele. Em um rápido movimento, ela arrancava suas
roupas e as jogava desdenhosamente de lado. Seu corpo era
branco e macio, mas não despertava nele nenhum desejo, na
verdade ele mal olhava para ela. Ele se admirava mesmo com a
forma como ela havia jogado suas roupas de lado. Sua graça e
descuido, pareciam aniquilar toda uma cultura, todo um sistema
de pensamento, como se o Big Brother, o Partido e a Polícia do
Pensamento pudessem ser todos varridos da existência por um
único e esplêndido movimento. Esse também era um gesto dos
tempos antigos. Winston acordou com a palavra ‘Shakespeare’
em seus lábios.
A teletela tocou um despertador estridente e insuportável, na
mesma toada, por trinta segundos. Eram sete e quinze, hora dos
funcionários do escritório acordarem. Winston arrastou-se nu para
fora da cama – pois um membro do Partido Externo recebia
apenas 3.000 cupons de roupas por ano e um pijama custava 600
cupons – e meteu uma regata suja e um short que estavam sobre
uma cadeira. Os exercícios físicos começariam em três minutos.
Na sequência, foi tomado por um violento acesso de tosse, que
quase sempre o atacava logo após se levantar. Ele esvaziava seus
pulmões de tal forma que só conseguia recomeçar a respirar
deitando-se de costas e respirando bem fundo. O esforço da tosse
fez com que suas veias inchassem e a úlcera varicosa começasse a
coçar.
– Grupo de trinta a quarenta – gritou uma voz feminina aguda e
desagradável. – Grupo de trinta a quarenta! Tomem seus lugares,
por favor. Dos trinta aos quarenta!
Winston saltou para a frente da tela, que já mostrava a imagem de
uma mulher jovem e magra, porém musculosa, vestindo roupa e
sapatos de ginástica.
– Alongando e flexionando os braços – ela falava. – Acompanhem
o meu ritmo! UM, dois, três, quatro! UM, dois, três, quatro!
Vamos lá, camaradas, ponham um pouco de vida nisso! UM, dois,
três, quatro! UM, dois, três, quatro! ...
A dor causada pelo acesso de tosse não tinha feito com que
Winston se esquecesse completamente de seu sonho e os
movimentos rítmicos do exercício o trouxeram de volta à
reflexão. Enquanto ele esticava e flexionava mecanicamente seus
braços e imprimia a seu rosto o olhar de prazer considerado
apropriado durante os exercícios físicos, Winston estava na
realidade lutando para se lembrar do período obscuro de sua
primeira infância. Era extraordinariamente difícil. Tudo o que
ocorrera a partir do final dos anos 50 havia se apagado de sua
mente. A ausência de registros externos que poderiam ser usados
como referência para a memória, fazia com que a nitidez de fatos
de sua própria vida se perdesse. Ele se lembrava de grandes
eventos que provavelmente não tinham acontecido, se lembrava
de detalhes de incidentes sem conseguir recapturar as
circunstâncias em que haviam ocorrido e havia ainda longos
períodos em branco, dos quais ele não lembrava nada. Tudo tinha
sido diferente naquela época. Até mesmo os nomes dos países e
sua forma no mapa eram diferentes. ‘Faixa Aérea Um’, por
exemplo, não tinha este nome naquela época: se chamava
Inglaterra ou Grã-Bretanha, embora Londres, disso ele tinha
quase certeza, sempre se chamara Londres.
Winston definitivamente não se lembrava de seu país sem ser em
estado em guerra, mas era evidente que havia existido um longo
intervalo de paz durante sua infância, porque uma de suas
primeiras lembranças era a de um ataque aéreo que apanhara
todos de surpresa. Talvez tenha sido quando a bomba atômica
caiu sobre Colchester. Ele não se lembrava do ataque em si, mas
se lembrava da mão de seu pai agarrando a sua enquanto eles
desciam apressadamente para algum lugar bem fundo na terra; se
lembrava de descerem uma escada caracol que ressoava sob seus
pés e de um momento em que suas pernas ficaram tão cansadas
que ele começou a chorar e eles tiveram que parar para descansar.
Sua mãe, lenta e sonhadora, ficara bem para trás deles. Ela
carregava sua irmãzinha nos braços – ou talvez fosse apenas um
monte de cobertores, ele já não tinha certeza se sua irmã havia
realmente nascido. Finalmente eles chegaram em um lugar
barulhento e cheio de gente, que era uma estação de metrô.
Havia pessoas sentadas por todo o piso de pedra e também
pessoas abraçadas bem juntas, sentadas umas sobre as outras em
beliches de metal. Winston e seus pais encontraram um lugar no
chão, perto de um homem e uma mulher velhos que estavam
sentados lado a lado em um beliche. O homem usava um bom
terno escuro e um boné de pano preto sobre cabelos muito
brancos: seu rosto era escarlate e seus olhos eram azuis e estavam
cheios de lágrimas. Ele cheirava a gin. O gim parecia exalar de
sua pele no lugar do suor e podia-se ter imaginado que as
lágrimas que brotavam de seus olhos eram também puro gin.
Mas, embora bêbado, estava evidente que ele também passava por
um sofrimento genuíno e insuportável. À sua maneira infantil,
Winston compreendeu que algo terrível, algo que estava além do
perdão e que nunca poderia ser remediado, tinha acabado de
acontecer. Quem sabe alguém que o velho amava – uma pequena
neta, talvez – tivesse sido morto. O velho repetia em pequenos
intervalos: ‘Não devíamos ter confiado neles. Eu disse, não disse,
mãe? Isso é o que dá ter confiado neles. Eu sempre soube. Não
devíamos ter confiado nos desgraçados.’
Mas agora Winston não se lembrava mais, em quais desgraçados
eles não deveriam ter confiado.
Desde então a guerra não cessara, embora a rigor não tenha sido
sempre a mesma guerra. Por meses durante sua infância, houve
batalhas nas ruas de Londres, algumas das quais ele se lembrava
vividamente. Mas era totalmente impossível traçar a história de
todo esse período, dizer quem lutava contra quem, já que todos os
registros escritos e falados faziam menção apenas ao alinhamento
atualmente existente. Neste momento, por exemplo, em 1984 (se
é que realmente era 1984), a Oceânia estava em guerra com a
Eurásia e em aliança com a Lestásia. E não havia qualquer
registro ou declaração que dissesse que estas três potências
tivessem sido algum dia agrupadas de forma diferente. Na
verdade, como Winston bem sabia, a Oceânia estava em guerra
com a Eurásia e em aliança com a Lestásia há apenas quatro anos.
Mas esta era uma informação que ele não deveria possuir e só
tinha porque sua memória não estava sendo adequadamente
controlada. Oficialmente, a mudança nas alianças nunca havia
acontecido. A Oceânia estava em guerra com a Eurásia: portanto
oficialmente, a Oceânia sempre havia estado em guerra com a
Eurásia. O inimigo do momento era sempre considerado um mal
absoluto, de forma que qualquer acordo com ele era impossível,
fosse no passado ou no futuro.
O mais terrível, ele refletiu pela décima milésima vez ao forçar
seus ombros dolorosamente para trás (com as mãos sobre os
quadris, eles estavam girando seus corpos da cintura, um
exercício supostamente bom para os músculos das costas), era
que tudo isso poderia ser verdade. O Partido manipular o passado
e dizer que este ou aquele evento NUNCA ACONTECEU.... Isso
não era mais assustador do que a mera tortura e a morte?
O Partido afirmava que a Oceânia nunca tinha feito uma aliança
com a Eurásia. Ele, Winston Smith, sabia que há quatro anos, a
Oceânia e a Eurásia eram aliadas. Mas onde existia esta
informação? Somente em sua própria mente, que de qualquer
forma deveria ser aniquilada em breve. E se todos os outros
tinham aceitado a mentira imposta pelo Partido, se todos os
registros contassem a mesma história, então a mentira passava a
ser a história e se tornava verdade. O slogan do Partido dizia:
“Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o
presente, controla o passado”. E ainda assim o passado, embora
pudesse ser alterado, nunca havia sido alterado. O que quer que
fosse tido como verdade agora, era a verdade desde sempre e para
sempre. Era bastante simples. Tudo o que era preciso era uma
série interminável de vitórias sobre sua própria memória. Eles
chamavam isso de ‘Controle da realidade’ ou, em Novilíngua, de
‘duplipensamento’.
– Fiquem em pé! – ladrou a instrutora.
Winston baixou seus braços lateralmente e lentamente
reabasteceu seus pulmões com ar. Sua mente mergulhou no
mundo labiríntico do duplipensamento. Saber e não saber; ter
consciência da verdade plena enquanto se contam mentiras
meticulosamente construídas; manter simultaneamente duas
opiniões que se anulam, saber que são contraditórias e acreditar
em ambas; usar lógica contra lógica; repudiar a moralidade
enquanto se pede por ela; acreditar que a democracia é impossível
e que o Partido é o guardião da democracia; esquecer o que é
necessário esquecer, trazer de volta à memória no momento em
que é necessário e depois esquecê-la nova e prontamente; e acima
de tudo, aplicar o mesmo processo ao próprio processo. Essa era a
sutileza máxima: induzir conscientemente a inconsciência e
depois, mais uma vez, ficar inconsciente do ato de hipnose que
você mesmo acabava de realizar. A própria compreensão da
palavra duplipensamento envolvia o uso do duplipensamento.
E então a instrutora chamou novamente a atenção do grupo.
– E agora vamos ver qual de nós consegue tocar os dedos dos pés!
– ela disse com entusiasmo. – Sobre seus quadris, por favor,
camaradas. UM, dois! UM, dois!
Winston detestava este exercício, ele sentia dores desde os
calcanhares até o bumbum e muitas vezes acabava tendo outro
acesso de tosse. A sensação de prazer abandonou suas
meditações. O passado, refletiu ele, não tinha sido simplesmente
alterado, tinha sido, na realidade, destruído. Pois como seria
possível se lembrar até mesmo do fato mais óbvio se o único
registro era a sua própria memória? Ele tentou se lembrar do ano
em que tinha ouvido falar do Big Brother pela primeira vez. Ele
calculou que devia ter sido em algum momento nos anos sessenta,
mas era impossível ter certeza. Na história do Partido, é claro, o
Big Brother figurava como o líder e guardião da Revolução desde
os seus primeiros dias. Suas façanhas tinham sido gradualmente
puxadas para trás no tempo até chegarem ao fabuloso mundo dos
anos quarenta e trinta, quando os capitalistas em suas estranhas
cartolas ainda transitavam pelas ruas de Londres em grandes
carros a motor ou em carruagens com laterais de vidro puxadas
por belos cavalos brilhantes. Não se sabia o quanto desta lenda
era verdadeira e o quanto inventada. Winston não conseguia nem
se lembrar em que data o Partido havia surgido. Ele não
acreditava ter jamais ouvido a palavra Socing antes de 1960, mas
era possível que o termo na Velhilíngua – ‘Socialismo Inglês’
fosse anterior a esta data. Tudo se perdeu. Às vezes, é verdade,
era possível identificar uma mentira. Não era verdade, por
exemplo, como afirmavam os livros de história do Partido, que o
Partido tinha inventado os aviões. Ele se lembrava de aviões já na
sua primeira infância. Mas não se podia provar nada. Nunca
houve nenhuma evidência. Apenas uma vez em toda a sua vida
ele tivera em suas mãos provas documentais inconfundíveis da
falsificação de um fato histórico. E naquela ocasião...
– Smith! – gritou a voz da instrutora através da teletela. – 6079
Smith W.! Sim, VOCÊ! Curve-se mais um pouco, mais para
baixo, por favor! Você consegue fazer melhor do que isso. Você
não está tentando. Curve-se mais, por favor! ASSIM ESTÁ
melhor, camarada. Agora fiquem novamente em pé, o grupo todo!
E me observem.
Um súbito suor quente se espalhou pelo corpo de Winston. Seu
rosto permaneceu completamente impenetrável. Nunca mostre
consternação! Nunca mostre ressentimento! Uma única piscada
de olhos pode lhe entregar. Ele ficou olhando enquanto a
instrutora levantava os braços acima da cabeça e - não se podia
dizer graciosamente, mas com notável eficiência - inclinava-se e
colocava a ponta dos dedos das mãos debaixo dos dedos dos pés.
– ISSO, camaradas! É ASSIM que eu quero ver vocês fazendo.
Vejam novamente! Tenho trinta e nove anos e já tive quatro
filhos. Agora vejam – ela se curvou de novo. – Notem que MEUS
joelhos não estão dobrados. Todos vocês conseguem fazer isso se
quiserem – acrescentou ela enquanto se endireitava. –Qualquer
pessoa com menos de quarenta e cinco anos de idade é
perfeitamente capaz de tocar os dedos dos pés. Nem todos temos
o privilégio de lutar na linha de frente, mas pelo menos todos nós
podemos manter a forma. Lembrem-se de nossos garotos na
frente de Malabar! E os marinheiros nas Fortalezas Flutuantes!
Basta pensar no que ELES têm de suportar. Agora tentem
novamente. Assim está melhor, camarada, MUITO melhor –
acrescentou ela, encorajadora.
Então Winston, com um movimento violento, conseguiu pela
primeira vez em anos, tocar seus dedos dos pés sem dobrar os
joelhos.

Capítulo 4

Com um suspiro profundo e inconsciente que nem mesmo a


proximidade da teletela o impedia de dar quando seu dia de
trabalho começava, Winston puxou o ditógrafo na sua direção,
soprou a poeira de seu bocal e colocou seus óculos. Em seguida,
desenrolou e uniu com clipes os quatro rolos de papel que já
haviam caído do tubo pneumático do lado direito de sua mesa.
Nas paredes da estação de trabalho, havia três orifícios. À direita
do ditógrafo, um pequeno tubo pneumático para mensagens
escritas, à esquerda, um maior para jornais e na parede lateral, ao
alcance dos braços de Winston, uma grande fenda alongada
protegida por uma grade de arame. Esta última era para o descarte
de papel. Fendas similares existiam aos milhares ou dezenas de
milhares em todo o prédio, não apenas em cada sala, mas uma
atrás da outra em cada corredor. Por alguma razão, eram
apelidadas de buracos de memória. Quando um documento
precisava ser destruído, ou até mesmo quando se via um velho
pedaço de papel jogado, era um ato automático jogar o papel no
buraco de memória mais próximo, e então ele seria levado por
uma corrente de ar quente para os enormes fornos que estavam
escondidos em algum lugar no edifício.
Winston examinou as quatro folhas de papel que ele havia
desenrolado. Cada uma continha uma mensagem de apenas uma
ou duas linhas, no jargão abreviado – não Novilíngua de fato, mas
consistindo em grande parte de palavras Novilíngua – usado
internamente no Ministério. Elas diziam:
Times 17.3.84 imprecisões discurso gi África retificar
Times 19.12.83 previsões plano trienal 4° trimestre 83
erros impressão verificar edição atual
Times 14.2.84 retificar malcotado minipleni chocolate
Times 3.12.83 relato ordemdia bb Duplomaisnaobom ref
despessoa reescrever todamente submetersuperv
antearquiv
Com uma leve satisfação, Winston deixou de lado a quarta
mensagem. Era um trabalho complicado e de grande
responsabilidade e era melhor cuidar dele por último. As outras
três eram assuntos rotineiros, embora a segunda provavelmente
significasse olhar tediosamente para uma enorme lista de
números.
Winston pressionou a opção ‘Edições Anteriores’ na teletela e
pediu as edições do The Times que precisaria e que deslizaram
para fora do tubo pneumático após apenas alguns minutos de
espera. As mensagens que ele tinha recebido se referiam a artigos
ou notícias que por algum motivo precisavam ser alterados ou
retificados, conforme a ordem oficial recebida. Por exemplo, no
The Times de 17 de março, o Big Brother, em seu discurso, havia
previsto que a frente do Sul da Índia permaneceria pacífica, mas
que uma ofensiva eurasiática seria lançada em breve no norte da
África. Mas na realidade, no dia seguinte, o Comando Superior
eurasiático lançou sua ofensiva no Sul da Índia e deixou o Norte
da África em paz. Era necessário, portanto, reescrever um
parágrafo do discurso do Big Brother, de modo a fazê-lo prever o
que realmente havia acontecido. Ou ainda, o The Times de 19 de
dezembro havia publicado as previsões oficiais da produção de
várias classes de bens de consumo no quarto trimestre de 1983,
que era também o sexto trimestre do Nono Plano Trienal. A
edição do dia continha uma declaração da produção real que não
casava com as previsões, que estavam grosseiramente erradas. O
trabalho de Winston era retificar os números originais, fazendo-os
concordar com os últimos. Quanto à terceira mensagem, ela se
referia a um erro muito simples que poderia ser corrigido em
alguns minutos. Há pouco tempo, em fevereiro, o Ministério da
Plenitude havia feito uma promessa (‘promessa categórica’, como
se dizia oficialmente) de que não haveria redução da ração de
chocolate durante 1984. Na verdade, como Winston sabia, a ração
de chocolate seria reduzida de trinta para vinte gramas no final
daquela semana. Tudo o que ele tinha que fazer era substituir a
promessa original por um aviso de que provavelmente seria
necessário reduzir a ração de chocolate em algum momento do
mês de abril.
Assim que Winston tratou cada uma das mensagens, ele anexou
as correções feitas no ditógrafo à respectiva cópia da edição do
The Times e as empurrou para dentro do tubo pneumático. Então,
com um movimento quase que inconsciente, ele amassou as
mensagens originais e as anotações que ele mesmo havia feito e
as jogou no buraco de memória para serem devoradas pelas
chamas.
O que acontecia no labirinto invisível dos tubos pneumáticos,
Winston não sabia em detalhes, mas sabia em termos gerais.
Assim que todas as correções necessárias em qualquer número do
The Times tivessem sido coletadas e efetuadas, esse número seria
reimpresso, a cópia original destruída e a cópia corrigida colocada
nos arquivos no lugar da original. Este processo de alteração
contínua era aplicado não apenas a jornais, mas a livros,
periódicos, panfletos, cartazes, filmes, trilhas sonoras, desenhos
animados, fotografias – a todo tipo de literatura ou documentação
que pudesse ter alguma importância política ou ideológica. Dia
após dia e quase minuto após minuto, o passado era atualizado.
Desta forma, cada previsão feita pelo Partido poderia ser
mostrada por provas documentais como sendo correta, nenhuma
notícia ou expressão de opinião que conflitasse com as
necessidades do momento, jamais ficaria registrada. Toda a
história era limpa e reescrita exatamente com a frequência
necessária. Não seria possível em nenhum caso, uma vez que a
retificação tivesse sido feita, provar qualquer falsificação. A
maior seção do Departamento de Registros, muito maior do que
aquela em que Winston trabalhava, era simplesmente composta
por pessoas cujo dever era rastrear e coletar todas as cópias de
livros, jornais e outros documentos que tivessem sido substituídos
e que deveriam ser destruídos. Vários The Times que foram,
devido a mudanças no alinhamento político ou a profecias
equivocadas feitas pelo Big Brother, reescritos uma dúzia de
vezes, ainda podiam ser encontrados nos arquivos com sua data
original e sem que existisse nenhuma outra cópia que o
contradissesse. Os livros também eram retirados de circulação e
reescritos repetidas vezes, sendo invariavelmente reemitidos sem
nenhuma admissão de que qualquer alteração tivesse sido feita.
Mesmo as instruções escritas que Winston recebia, e das quais ele
invariavelmente se livrava assim que tratava, nunca afirmaram ou
insinuaram que um ato de falsificação deveria ser cometido: elas
sempre se referiam a lapsos, erros, impressões erradas ou citações
errôneas, que era necessário corrigir devido ao interesse da
exatidão.
Na verdade, ele pensava que reajustar os números do Ministério
da Plenitude não se tratava de falsificação. Era apenas a
substituição de um disparate por outro. A maior parte do material
com o qual ele lidava não tinha nenhuma ligação com nada no
mundo real, nem mesmo a ligação contida em uma mentira direta.
As estatísticas eram uma fantasia tanto em sua versão original
quanto em sua versão retificada. Na maior parte das vezes,
esperava-se que funcionários como Winston e seus colegas as
tirassem sem qualquer fundamento de suas cabeças. Por exemplo,
o Ministério da Plenitude tinha previsto a produção de cento e
quarenta e cinco milhões de pares de botas para o trimestre. A
produção real tinha sido de sessenta e dois milhões. Winston, no
entanto, reescreveu a previsão como sendo de cinquenta e sete
milhões, de forma a permitir a alegação de que a cota prevista
havia sido superada. De qualquer forma, sessenta e dois milhões
não estavam mais próximos da verdade do que cinquenta e sete
milhões ou do que cento e quarenta e cinco milhões. Muito
provavelmente nenhuma bota tinha sido produzida. Ninguém
sabia quantas tinham sido produzidas e ninguém se importava
com isso. Tudo o que se sabia era que a cada trimestre, no papel,
se produzia um número astronômico de botas, embora a metade
da população da Oceânia seguisse andando descalça. E assim era
com cada classe de fatos registrados, fossem eles grandes ou
pequenos. Tudo se perdera em um mundo de incertezas, no qual
até mesmo a data do ano havia se tornado incerta.
Winston olhou para o outro lado do salão. Na estação de trabalho
diametralmente oposta, um homem pequeno, de aparência
meticulosa e com cavanhaque escuro chamado Tillotson,
trabalhava com empenho, um jornal dobrado nos joelhos e a boca
bem perto do bocal do ditógrafo. Ele parecia tentar manter o que
dizia em segredo entre ele e a teletela. De repente, ele levantou a
cabeça e jogou um olhar hostil na direção de Winston.
Winston mal conhecia Tillotson e não tinha ideia de quais eram
suas responsabilidades. As pessoas do Departamento de Registros
não falavam sobre seu trabalho. Na longa sala sem janelas, com
sua fila dupla de estações de trabalho, uma interminável confusão
de papéis e o murmurar de vozes falando no ditógrafo, havia uma
dúzia de pessoas que Winston nem sequer sabia o nome, embora
ele as visse diariamente pelos corredores ou gesticulando nos
Dois Minutos de Ódio. Ele sabia que na estação de trabalho ao
seu lado, a mulher franzina de cabelos ruivos trabalhava
rastreando e apagando da imprensa os nomes de pessoas que
haviam sido vaporizadas e que, portanto, eram consideradas como
nunca tendo existido. Havia um certo sentido nisto, já que seu
próprio marido havia sido vaporizado alguns anos antes. E em
alguns postos de trabalho mais à frente, uma criatura ineficaz e
sonhadora chamada Ampleforth, com orelhas peludas e um
surpreendente talento com rimas, ocupava-se em produzir versões
falsificadas – chamadas de textos definitivos – de poemas que
haviam se tornado ideologicamente ofensivos, mas que por uma
razão ou outra deveriam seguir constando das antologias. E esta
sala, com seus aproximadamente cinquenta trabalhadores, era
apenas uma subseção na enorme complexidade do Departamento
de Registros. À frente, acima, abaixo, estavam outros enxames de
trabalhadores engajados em uma inimaginável multidão de
trabalhos. Havia as enormes tipografias com seus subeditores,
seus especialistas em tipografia e seus estúdios elaborados para a
falsificação de fotografias. Havia a seção de programas para as
teletelas com seus engenheiros, seus produtores e suas equipes de
atores especialmente escolhidos por sua habilidade em imitar
vozes. Havia os exércitos de funcionários cujo trabalho era
simplesmente elaborar listas de livros e periódicos que deveriam
ser retirados de circulação. Havia os vastos repositórios onde os
documentos corrigidos eram armazenados, e os fornos escondidos
onde as cópias originais eram destruídas. E em algum lugar
anônimo, havia a liderança pensante que coordenava todo o
trabalho e estabelecia as linhas políticas que definiam que um
fragmento do passado fosse preservado, que outro fosse
falsificado e que outro fosse apagado da existência.
O Departamento de Registros era, no fim das contas, apenas um
ramo do Ministério da Verdade, e seu trabalho principal não era
reconstruir o passado, mas fornecer aos cidadãos de Oceânia
jornais, filmes, livros didáticos, programas de telenovela, peças
de teatro, romances - com todo tipo de informação, instrução ou
entretenimento imaginável, de uma estátua a um slogan, de um
poema lírico a um tratado biológico, de um livro de alfabetização
para crianças a um dicionário Novilíngua. E o Ministério não só
tinha que suprir as diversas necessidades do partido, mas também
replicar toda a operação em um nível inferior, em benefício do
proletariado. Havia toda uma cadeia de departamentos separados
que lidavam com literatura, música, teatro e entretenimento para o
proletariado em geral. Neles eram produzidos jornais da pior laia,
quase sem conteúdo, exceto por esporte, crime e astrologia;
romances populares por sensacionais cinco centavos; filmes
repletos de cenas de sexo e canções sentimentais que eram
totalmente compostas por um tipo especial de aparelho conhecido
como versificador. Havia até mesmo uma subseção inteira –
conhecida em Novilíngua por Pornodiv – responsável pela
produção do tipo mais vil de pornografia, que era expedida em
pacotes lacrados e que nenhum membro do Partido, a não ser
aqueles que trabalhavam nela, tinha permissão para ver.
Três mensagens haviam saído do tubo pneumático enquanto
Winston estava trabalhando, mas eram assuntos simples e ele os
tinha resolvido mesmo antes de ser interrompido pelos Dois
Minutos de Ódio. Quando o Ódio acabou, ele voltou a sua estação
de trabalho, tirou o dicionário Novilíngua da prateleira, empurrou
o ditógrafo para o lado, limpou seus óculos e se preparou para
fazer seu principal trabalho da manhã.
O maior prazer na vida de Winston era seu trabalho. A maior
parte dele era uma rotina entediante, mas também incluía
trabalhos tão difíceis e complexos que ele se perdia neles como
quem mergulha em um problema matemático – peças delicadas
de falsificação nas quais não havia nada para guiá-lo, exceto seu
conhecimento dos princípios do Socing e sua intuição do que o
Partido queria que fosse dito. Winston era bom nesse tipo de
coisa. Em uma ocasião, tinha sido confiada a ele a retificação dos
principais artigos do The Times, inteiramente escritos em
Novilíngua. Ele desenrolou a mensagem que havia deixado de
lado antes. Ela dizia:
Times 3.12.83 relato ordemdia bb Duplomaisnaobom ref
despessoa reescrever todamente submetersuperv
antearquiv
Em Velhilíngua (ou inglês padrão) isso significava:
O relatório da ordem do dia do Big Brother no The Times
de 3 de dezembro de 1983 está extremamente
insatisfatório e faz referências a pessoas inexistentes.
Reescreva-o na íntegra e submeta seu rascunho à
autoridade superior antes de arquivá-lo.
Winston leu o artigo em questão. A Ordem do dia do Big Brother,
tinha sido dedicada principalmente a enaltecer o trabalho de uma
organização conhecida como FFCC, que fornecia cigarros e
outros confortos para os marinheiros nas Fortalezas Flutuantes.
Um certo camarada chamado Withers, membro proeminente do
Núcleo do Partido, havia sido destacado para menção especial e
premiado com uma condecoração, a Ordem do Mérito Conspícuo,
Segunda Classe.
Três meses depois, a FFCC havia sido repentinamente dissolvida,
sem qualquer explicação. Era de se supor que Withers e seus
associados estivessem agora em desgraça, mas o assunto não
tinha sido noticiado nem na imprensa nem na teletela. Na
verdade, isso era o esperado, já que era raro levar os infratores
políticos a julgamento ou denunciá-los publicamente.
As grandes purgas envolvendo milhares de pessoas, com
julgamentos públicos de traidores e criminosos do pensamento
que confessaram seus crimes e depois foram executados, eram
shows especiais que não ocorriam com frequência maior do que
uma vez em alguns anos. Normalmente, pessoas que haviam
contrariado o Partido simplesmente desapareciam e nunca mais se
ouvia falar delas. Nunca se ficava sabendo o que havia acontecido
com elas. Em alguns casos, elas poderiam nem mesmo estar
mortas. Talvez umas trinta pessoas conhecidas pessoalmente por
Winston, sem contar seus pais, tinham desaparecido em uma
ocasião ou outra.
Winston coçou seu nariz suavemente com um clipe de papel. Em
sua estação de trabalho, o camarada Tillotson ainda sussurrava
furtivamente sobre seu ditógrafo. Então ele levantou a cabeça
novamente por um instante: lançou mais um olhar hostil. Winston
se perguntava se o camarada Tillotson estava envolvido com o
mesmo trabalho que ele. Era absolutamente possível. Um trabalho
tão complexo nunca seria confiado a uma única pessoa: por outro
lado, entregá-lo a um comitê seria admitir abertamente tratar-se
de um ato de falsificação. Muito provavelmente,
aproximadamente uma dúzia de pessoas deveriam estar no
momento trabalhando em versões distintas do que o Big Brother
realmente tinha dito. E então algum gênio do Núcleo do Partido
selecionaria uma ou outra versão, a reeditaria e iniciaria os
complexos processos de referências cruzadas que seriam
necessários. Então a mentira escolhida passaria para os registros
permanentes e se tornaria verdade.
Winston não sabia por que Withers caíra em desgraça. Talvez
fosse por corrupção ou incompetência. Talvez o Big Brother
estivesse apenas se livrando de um subordinado muito popular.
Talvez Withers ou alguém próximo a ele tivesse sido suspeito de
tendências heréticas. Ou talvez - o que era mais provável - tudo
tivesse simplesmente acontecido porque purgas e vaporizações
eram uma parte necessária da mecânica do governo. A única pista
real estava nas palavras ‘ref despessoa’, que indicavam que
Withers já estava morto. Não se podia simplesmente assumir que
este era o caso quando as pessoas eram presas. Às vezes, elas
eram libertadas e autorizadas a permanecer em liberdade por um
ou até dois anos antes de serem executadas. Muito raramente,
uma pessoa que era tida como morta há muito tempo, fazia uma
reaparição fantasmagórica em algum julgamento público, onde
citava e envolvia centenas de outras pessoas através de seu
testemunho antes de desaparecer, desta vez para sempre. Withers,
no entanto, já era uma DESPESSOA. Ele não existia; nunca havia
existido. Winston decidiu que não bastaria apenas alterar a
direção em que seguia o discurso do Big Brother. Era melhor que
o discurso tratasse de algo totalmente alheio ao seu tema original.
Ele poderia transformar o discurso na denúncia habitual de
traidores e criminosos do pensamento, mas isso seria meio óbvio
demais, já inventar uma vitória na frente ou algum triunfo de
superprodução no Nono Plano Trienal poderia complicar demais
os registros. Ali era necessária uma obra de pura fantasia. Foi
então que surgiu em sua mente, a imagem pronta de um certo
camarada Ogilvy, que havia morrido recentemente em batalha,
em circunstâncias heroicas. Havia ocasiões em que o Big Brother
dedicava a Ordem do Dia a homenagear um humilde membro do
Partido, cuja vida e morte ele apresentava como um exemplo
digno de ser seguido. Hoje, ele deveria homenagear o camarada
Ogilvy. Não que de fato existisse o tal camarada Ogilvy, mas
algumas linhas impressas e algumas fotografias falsas logo o
trariam à existência.
Winston pensou por um momento, depois puxou o ditógrafo para
ele e começou a ditar no estilo familiar do Big Brother; um estilo
ao mesmo tempo militar e pedante e fácil de imitar devido ao
truque de fazer perguntas e depois respondê-las prontamente
(‘Que lições aprendemos com este fato, camaradas? A lição - que
é também um dos princípios fundamentais do Socing - que,’ etc.,
etc., etc.).
Aos três anos de idade, o camarada Ogilvy recusou todos os
brinquedos, exceto um tambor, uma submetralhadora e um
modelo de helicóptero. Aos seis anos - um ano antes do habitual,
por uma flexibilização especial das regras - ele se juntou aos
espiões, aos nove anos ele foi um líder de tropas. Aos onze anos,
denunciou seu tio à Polícia do Pensamento após ter ouvido uma
conversa que lhe parecia ter tendências criminosas. Aos dezessete
anos, foi um organizador distrital da Liga Juvenil Antissexo. Aos
dezenove anos projetou uma granada de mão que foi adotada pelo
Ministério da Paz e que, em seu primeiro teste, matou trinta e um
prisioneiros eurasianos de uma só vez. Aos vinte e três anos, ele
pereceu em ação. Perseguido por aviões a jato inimigos enquanto
sobrevoava o Oceano Índico com importantes envios, ele ancorou
seu corpo à sua pesada metralhadora e saltou do helicóptero nas
águas profundas, com os envios e tudo – um fim, disse o Big
Brother, impossível de se contemplar sem sentir inveja. Então o
Big Brother acrescentou algumas observações sobre a pureza e a
solidez de espírito da vida do camarada Ogilvy. Ele era um
abstêmio total e um não-fumante, não tinha recreações além de
uma hora diária no ginásio, e tinha feito um voto de celibato,
acreditando que o casamento e o cuidado de uma família eram
incompatíveis com uma devoção de vinte e quatro horas por dia
ao dever. Ele não conversava sobre outro assunto que não fossem
os princípios do Socing e tampouco tinha outra meta na vida que
não fosse derrotar o inimigo eurasiático e perseguir espiões,
sabotadores, criminosos do pensamento e traidores em geral.
Winston considerou se deveria conceder ao camarada Ogilvy a
Ordem do Mérito Conspícuo. No final, ele decidiu não a atribuir
devido à desnecessária referência cruzada em que isso implicaria.
Mais uma vez, ele olhou para seu rival na estação de trabalho
oposta. Algo lhe dizia que Tillotson estava ocupado com o
mesmo trabalho que ele. Não havia como saber qual dos dois
trabalhos seria finalmente adotado, mas ele sentiu uma profunda
convicção de que seria seu próprio. O camarada Ogilvy,
inimaginável há uma hora, era agora um fato. Pareceu-lhe curioso
poder criar homens mortos a partir de homens que nunca
existiram. O camarada Ogilvy, que nunca havia existido no
presente, agora existia no passado, e quando o ato de falsificação
fosse esquecido, ele teria existido tão autenticamente e sobre as
mesmas evidências que Carlos Magno ou Júlio César.

Capítulo 5

Na cantina com teto baixo, bem no subsolo, a fila de almoço se


movia lentamente. A sala já estava muito cheia e o barulho era
ensurdecedor. Do balcão vinha o vapor do cozido, com um cheiro
azedo metálico que não superava bem o vapore do Gin Vitória.
Do outro lado da sala havia um pequeno bar, um mero buraco na
parede, onde era possível comprar gin pagando-se dez centavos
pela dose grande.
– Exatamente o homem que eu estava procurando – disse uma
voz atrás de Winston.
Ele se virou. Era seu amigo Syme, que trabalhava no
Departamento de Pesquisa. Talvez ‘amigo’ não fosse exatamente
a palavra certa. Ninguém tinha mais amigos atualmente, tinha
camaradas. Mas havia alguns camaradas cuja companhia era mais
agradável do que a de outros. Syme era um filólogo, um
especialista em Novilíngua. Na verdade, ele era membro da
enorme equipe de especialistas agora engajados na compilação da
Décima Primeira Edição do Dicionário Novilíngua. Ele era uma
criatura minúscula, menor que Winston, com cabelos escuros e
olhos grandes e protuberantes, ao mesmo tempo lamentosos e
sarcásticos, que pareciam examinar seu rosto de perto enquanto
ele falava com você.
– Eu queria perguntar se você tem lâminas de barbear – disse ele.
– Nenhuma! – disse Winston com uma espécie de voz de quem
tem culpa. – Eu tentei em todos os lugares. Elas não existem
mais.
Todos viviam pedindo lâminas de barbear. Na verdade, ele tinha
duas não usadas que guardava como um tesouro. Havia uma
escassez delas há meses. Sempre havia algum artigo necessário
que em algum momento as lojas do Partido não conseguiam
fornecer. Às vezes eram botões, às vezes era lã para cerzir, às
vezes eram cadarços de sapatos; no momento eram lâminas de
barbear. Só era possível obtê-las, quando possível, por meio de
uma busca relativamente furtiva no mercado ‘livre’.
– Estou usando a mesma lâmina há seis semanas – acrescentou
ele mentindo.
A fila deu outra avançada. Quando parou, ele se virou e encarou
Syme novamente. Cada um deles pegou uma bandeja gordurenta
de metal de uma pilha no final do balcão.
– Você foi ver os prisioneiros serem enforcados ontem? –
perguntou Syme.
– Eu estava trabalhando – disse Winston indiferente. – Acho que
vou ver nos filmes.
– Não é a mesma coisa – disse Syme.
Seus olhos zombeteiros fizeram uma leitura do rosto de Winston.
‘Eu o conheço’, os olhos pareciam dizer. ‘Eu vejo através de
você. Sei muito bem por que você não foi ver aqueles prisioneiros
serem enforcados’. Intelectualmente, Syme era venenoso e
ortodoxo. Ele falava com uma satisfação desagradável dos
ataques de helicóptero às aldeias inimigas, dos julgamentos e
confissões de criminosos do pensamento, das execuções nas celas
do Ministério do Amor. Falar com ele era em grande parte uma
questão de afastá-lo de tais assuntos e enredá-lo, se possível, nos
aspectos técnicos da Novilíngua, na qual ele era autoridade
interessada. Winston virou sua cabeça um pouco de lado para
evitar a fiscalização dos grandes olhos escuros.
– Foi um bom enforcamento – disse Syme por fim. – Acho que
estragam tudo quando eles amarram os pés juntos. Eu gosto de
vê-los chutando. E sobretudo, no final, gosto de ver a língua azul
pendurada para fora, e um azul bem brilhante. Esse é o detalhe
que me atrai.
–Próximo, por favor! – gritou o proletário de avental branco que
segurava uma concha.
Winston e Syme empurraram suas bandejas adiante no balcão.
Em cada bandeja foi colocado rapidamente o almoço usual: uma
tigela de metal com cozido rosa acinzentado, um pedaço de pão,
um cubo de queijo, uma caneca de Victory Coffee sem leite e uma
pastilha de sacarina.
– Há uma mesa ali, debaixo daquela teletela – disse Syme. –
Vamos pegar um gin no caminho.
O gin foi servido em canecas de porcelana chinesa sem asa. Eles
seguiram seu caminho através da sala lotada e esvaziaram suas
bandejas em uma mesa de metal, onde em um canto alguém tinha
deixado uma poça de cozido, um líquido imundo que tinha a
aparência de vômito. Winston pegou sua caneca de gin, fez uma
pausa para tomar coragem e engoliu de uma só vez o líquido com
gosto de óleo. Assim que ele secou as lágrimas dos olhos,
descobriu que estava com fome. Ele começou a engolir
colheradas do cozido onde boiavam cubos de algo rosado e
esponjoso, que provavelmente era um preparado de carne.
Nenhum deles voltou a falar até terem esvaziado suas tigelas de
metal. Na mesa à esquerda de Winston, meio atrás de suas costas,
alguém falava rápida e continuamente, uma tagarelice dura quase
como o grasnar de um pato, que se sobrepunha ao alvoroço geral
da sala.
– Como está indo o Dicionário? – disse Winston, levantando sua
voz para superar o barulho.
– Devagar – disse Syme. – Eu estou nos adjetivos. É fascinante.
Ele ficou imediatamente radiante com a menção da Novilíngua.
Empurrou sua tigela de metal para o lado, pegou seu pedaço de
pão em uma mão e seu queijo na outra e se inclinou sobre a mesa
para poder falar sem gritar.
– A Décima Primeira Edição é a edição definitiva – disse ele. –
Estamos colocando a língua em sua forma final, a forma que ela
terá quando ninguém falar nenhuma outra língua. Quando
tivermos terminado, pessoas como você terão que aprender tudo
de novo. Você pensa, ouso dizer, que nosso trabalho principal é
inventar novas palavras. Mas não é nada disso! Estamos
destruindo palavras; dezenas delas, centenas delas, todos os dias.
Estamos reduzindo o idioma até o osso. A Décima Primeira
Edição não conterá uma única palavra que se tornará obsoleta
antes do ano 2050.
Ele mordeu com fome seu pão e engoliu algumas mordidas,
depois continuou falando, com uma espécie de paixão pedante.
Seu fino rosto escuro havia se tornado animado, seus olhos
haviam perdido a expressão zombeteira e eram agora quase como
os de um sonhador.
– É uma coisa linda, a destruição das palavras. Claro que o grande
desperdício está nos verbos e adjetivos, mas há centenas de
substantivos que também podem ser eliminados. Não são apenas
os sinônimos; há também os antônimos. Afinal, qual a
justificativa para a existência de uma palavra que é simplesmente
o oposto de outra palavra? Uma palavra contém seu oposto em si
mesma. Tomemos o termo ‘bom’, por exemplo. Se você tem uma
palavra como ‘bom’, que necessidade existe para uma palavra
como ‘mau’? ‘Desbom’ também serve, aliás é melhor, porque é
exatamente o oposto de ‘bom’, coisa que ‘mau’ não é. Ou ainda,
se você quiser uma versão mais forte de ‘bom’, que sentido há em
ter todo um conjunto de palavras vagas e inúteis como ‘excelente’
e ‘esplêndido’ e todas as outras? ‘Maisbom’ cobre o significado,
ou ‘duplomaisbom’ se você quiser algo ainda mais forte. Claro
que já usamos essas formas, mas na versão final da Novilíngua
não haverá mais nada além disso. No final, toda a noção de
bondade e maldade será coberta por apenas seis palavras - na
realidade, apenas uma palavra. Você não vê a beleza disso,
Winston? A ideia foi originalmente do B.B., é claro – acrescentou
ele como uma reflexão posterior.
Uma espécie de entusiasmo passou pelo rosto de Winston com a
menção do Big Brother. No entanto, Syme identificou
imediatamente uma certa falta de entusiasmo.
– Você não aprecia de verdade a Novilíngua Winston – disse ele
quase triste. – Mesmo quando você escreve em Novilíngua, você
ainda está pensando em Velhilíngua. Eu li alguns desses artigos
que você escreve ocasionalmente no The Times. Eles são
suficientemente bons, mas são traduções. Em seu coração você
ainda prefere a Velhilíngua, com toda sua imprecisão e seus
significados dúbios e inúteis. Você não compreende a beleza da
destruição das palavras. Você sabe que a Novilíngua é a única
língua do mundo cujo vocabulário fica menor a cada ano?
Winston sabia disso, é claro. Ele sorriu, de uma forma que
esperava ser simpática, não se sentindo suficientemente confiante
para falar. Syme deu outra mordida no pão escuro, mastigou-o
rapidamente e continuou:
– Você não vê que o objetivo da Novilíngua é reduzir o alcance
do pensamento? No final, tornaremos literalmente impossível o
Crime de Pensamento, porque não haverá palavras para expressá-
lo. Todo conceito que possa ser necessário, será expresso por
exatamente uma palavra, com seu significado rigidamente
definido e todos os seus significados derivados riscados do mapa
e esquecidos. Já na décima primeira edição, não estamos longe
disso. Mas o processo ainda vai continuar muito tempo depois
que você e eu estivermos mortos. A cada ano, menos palavras e o
alcance da consciência, sempre um pouco menor. Mesmo agora, é
claro, não há razão ou desculpa para cometer Crimes de
Pensamento. É apenas uma questão de autodisciplina, de controle
da realidade. Mas no final não haverá necessidade nem mesmo
disso. A Revolução estará completa quando a linguagem for
perfeita. Novilíngua é Socing e Socing é Novilíngua –
acrescentou ele com uma espécie de satisfação mística. – Já lhe
ocorreu, Winston, que no máximo até o ano de 2050, não haverá
mais nenhum ser humano vivo que poderá entender uma conversa
como a que estamos tendo agora?
– Exceto... – começou Winston duvidosamente, e então ele parou.
A continuação da frase, ‘Exceto o proletariado’, estava na ponta
da língua mas ele se conteve, não se sentindo seguro de que esta
observação não seria de alguma forma não ortodoxa. Syme,
entretanto, adivinhou o que ele estava prestes a dizer.
– Os proletários não são seres humanos – disse ele
descuidadamente. –Provavelmente já em 2050 todo o
conhecimento real da Velhilíngua terá desaparecido. Toda a
literatura do passado terá sido destruída. Chaucer, Shakespeare,
Milton, Byron existirão apenas nas versões Novilíngua e não
apenas se transformarão em algo diferente, mas também em algo
contrário ao que costumavam ser. Até mesmo a literatura do
Partido mudará. Até mesmo os slogans mudarão. Como será
possível ter o slogan ‘liberdade é escravidão’, quando o conceito
de liberdade tiver sido abolido? Todo o clima de pensamento será
diferente. Na verdade, não haverá pensamento na forma como há
agora. Ortodoxia significa não pensar, não precisar pensar.
Ortodoxia é inconsciência.
Qualquer dia destes, pensou Winston com uma convicção
profunda, Syme será vaporizado. Ele é muito inteligente. Ele vê
as coisas com muita clareza e fala com convicção. O Partido não
gosta de pessoas assim. Um dia, ele desaparecerá. Está escrito na
sua cara.
Winston havia terminado seu pão com queijo. Ele se virou um
pouco de lado em sua cadeira para beber sua caneca de café. Na
mesa à sua esquerda, o homem com a voz estridente ainda falava
sem remorsos. Uma jovem mulher que talvez fosse sua secretária
e que estava sentada de costas para Winston, o ouvia e parecia
estar concordando avidamente com tudo o que ele dizia. De
tempos em tempos Winston ouvia alguns comentários como ‘acho
que você está tão certo’ ou ‘eu concordo com você’, proferidos
por uma voz feminina jovem e bastante tola. Mas a outra voz não
parava nem por um instante, mesmo quando a moça estava
falando. Winston conhecia o homem de vista, embora dele,
soubesse apenas que ocupava algum cargo importante no
Departamento de Ficção. Ele era um homem de cerca de trinta
anos, com uma garganta musculosa e uma boca grande e móvel.
Ele jogava a cabeça um pouco para trás e, devido ao ângulo em
que estava sentado, seus óculos refletiam a luz e tudo o que
Winston podia ver eram duas bolas brancas ao invés de olhos. O
mais horrível é que dos ruídos que jorravam de sua boca era
quase impossível distinguir uma única palavra. Apenas uma vez
Winston captou uma frase -’eliminação total e final do
Goldsteinismo’ - vomitada muito rapidamente, tudo de uma só
vez em um só bloco, como uma linha de tipos fundidos uns aos
outros. Todo o resto foi apenas um ruído, um blá blá blá. E ainda
assim, embora não se pudesse realmente ouvir o que o homem
estava dizendo, não se podia ter nenhuma dúvida sobre sua
natureza geral. Ele podia estar denunciando Goldstein e exigindo
medidas estéreis contra os criminosos do pensamento e
sabotadores, ele podia estar se enchendo contra as atrocidades do
exército eurasiático, ele podia estar elogiando o Big Brother ou os
heróis na frente de Malabar - isso não fazia diferença.
Independente de tudo isso, você poderia estar certo de que cada
palavra era pura ortodoxia, puro Socing. Enquanto observava o
rosto sem olhos com a mandíbula se movendo rapidamente para
cima e para baixo, Winston tinha a curiosa sensação de que este
não era um ser humano de verdade, mas uma espécie de boneco.
Não era o cérebro do homem que estava falando, era sua boca. As
coisas que saíam dele consistiam em palavras, mas não era
discurso no verdadeiro sentido: era um barulho pronunciado em
inconsciência, como o grasnar de um pato.
Syme ficou em silêncio por um momento e, com o cabo de sua
colher, desenhava no caldo do cozido. A voz da outra mesa seguia
tagarelando rapidamente, facilmente audível apesar do barulho ao
redor.
– Há uma palavra em Novilíngua – disse Syme –, não sei se você
a conhece; ‘PATOFALA, grasnar como um pato’. É uma daquelas
palavras interessantes que têm dois significados contraditórios.
Aplicada a um adversário, é abuso, aplicada a alguém com quem
você concorda, é elogio.
Sem dúvida, Syme será vaporizado, pensou Winston novamente.
Ele pensou com uma espécie de tristeza, embora sabendo que
Syme não gostava dele, o desprezava e era absolutamente capaz
de denunciá-lo como um criminoso do pensamento se visse
alguma razão para fazê-lo. Havia algo sutilmente errado com
Syme. Algo lhe faltava: discrição, indiferença, uma espécie de
estupidez salvadora. Não se podia dizer que ele não era ortodoxo.
Ele acreditava nos princípios do Socing, venerava o Big Brother,
rejubilava com as vitórias, odiava os hereges não apenas com
sinceridade, mas com uma espécie de zelo inquietante, que não
era visto nos membros comuns do Partido. No entanto, ele sempre
carregou com ele um certo ar que o desonrava. Ele dizia coisas
que seria melhor não dizer, lia muitos livros, frequentava o Café
Castanheira, perseguia pintores e músicos. Não havia nenhuma
lei, nem mesmo uma lei não escrita, que fosse contra frequentar o
Café Castanheira, mas o lugar era de alguma forma de mau
presságio. Os antigos e desacreditados líderes do Partido
costumavam se reunir ali antes de serem finalmente purgados.
Dizia-se que o próprio Goldstein tinha sido visto algumas vezes
lá, há anos e décadas. O destino de Syme não era difícil de prever.
E ainda assim, se Syme compreendesse, mesmo por três
segundos, a natureza das opiniões secretas de Winston, ele o
denunciaria imediatamente para a Polícia do Pensamento. Aliás,
assim como qualquer outra pessoa; mas Syme mais
provavelmente do que a maioria. O zelo não era suficiente. A
ortodoxia era inconsciência.
Syme olhou em volta.
– Aí vem Parsons – disse ele.
Algo no tom de sua voz parecia acrescentar, ‘aquele tolo’.
Parsons, o vizinho de Winston nas Mansões Victory, estava de
fato atravessando a sala - um homem rechonchudo, de estatura
média, com cabelo louro e cara de sapo. Aos trinta e cinco anos
ele já tinha bolsas de acúmulo de gordura no pescoço e na cintura,
mas seus movimentos eram rápidos e juvenis. Sua aparência era a
de um garotinho em tamanho ampliado, de forma que, embora
usasse o macacão padrão, era quase impossível não o imaginar
vestindo o calção azul, a camisa cinza e o lenço vermelho dos
Espiões. Sua imagem logo remetia a uma figura com covinhas
nos joelhos e mangas arregaçadas, mostrando os bracinhos
rechonchudos. Parsons, de fato, usava calções sempre que uma
caminhada comunitária ou qualquer outra atividade física lhe
dava uma desculpa para fazer isso. Ele saudou os dois com um
alegre ‘Hullo, hullo!’ e sentou-se à mesa, deixando no ar um
intenso cheiro de suor. Gotas de suor podiam ser vistas em todo o
seu rosto rosado. Sua capacidade de suar era extraordinária. No
Centro Comunitário era sempre possível saber se ele tinha jogado
Ping Pong apenas pela umidade do cabo da raquete. Syme tinha
feito uma tira de papel com uma longa coluna de palavras e a
estudava com uma caneta entre seus dedos.
– Olhe para ele trabalhando na hora do almoço – disse Parsons
cutucando Winston. – Que interessado, hein? O que você tem aí,
garoto? Algo um pouco inteligente demais para mim, eu espero.
Smith, meu garoto, vou te dizer por que estou atrás de você. É
aquela contribuição que você se esqueceu de me dar.
– Que contribuição é essa? – disse Winston automaticamente
buscando dinheiro em seus bolsos.
Cerca de um quarto do salário de uma pessoa tinha que ser
reservado para assinaturas voluntárias, que eram tão numerosas
que era difícil de controlá-las.
– Para a Semana do Ódio. Você sabe, o fundo casa a casa. Eu sou
tesoureiro do nosso bloco. Estamos fazendo um grande esforço,
vamos fazer um tremendo espetáculo. Eu lhes digo, não será
minha culpa se as velhas Mansões Victory não tiverem o maior
conjunto de bandeiras de toda a rua. Você me prometeu dois
dólares.
Winston encontrou e entregou duas notas amarrotadas e imundas,
que Parsons inseriu em um pequeno caderno, com a caligrafia
simples dos analfabetos.
– A propósito, garotão, – disse ele. – Ouvi dizer que aquele meu
pequeno pestinha lhe acertou com a catapulta ontem. Ele ouviu
um belo sermão por isso. Na verdade, eu disse que lhe tiraria a
catapulta se ele fizesse isso novamente.
– Acho que ele estava um pouco chateado por não ir à execução –
disse Winston.
– Bom, quer dizer, eles têm razão, não é mesmo? São dois
pestinhas malandros, mas que são espertos, são! Só pensam em
Espiões e na guerra, é claro. Sabe o que aquela minha menina fez
no sábado passado, quando a tropa dela estava em uma
caminhada pela Berkhamsted? Ela convenceu outras duas garotas
a irem com ela, se separaram furtivamente do grupo e passaram a
tarde inteira seguindo um homem estranho. Elas se mantiveram
atrás dele por duas horas no meio da floresta e depois, quando
entraram em Amersham, o entregaram à polícia.
– Por que elas fizeram isso? – perguntou Winston um pouco
surpreso. Parsons continuou triunfante:
– Minha filha tinha certeza de que ele era algum tipo de agente
inimigo. Talvez tivesse sido largado de paraquedas. Mas a
questão é esta, garoto: por que você acha que ela desconfiou dele?
Ela viu que ele estava usando um tipo estranho de sapato. Disse
que nunca tinha visto ninguém usando sapatos como aqueles
antes. Então, ele provavelmente era um estrangeiro. Bastante
esperta para uma criança de sete anos, hein?
– O que aconteceu com o homem? – perguntou Winston.
– Ah, é claro que isso eu não sei dizer. Mas eu não ficaria
surpreso se – Parsons fez o movimento de mirar um fuzil e
estalou a língua imitando uma explosão.
– Bom – disse Syme sem desgrudar os olhos de sua tira de papel.
– É claro, não podemos correr riscos – concordou zelosamente
Winston.
– O que eu quero dizer é que há uma guerra acontecendo – disse
Parsons.
E como que para confirmar isto, ouviu-se o soar de uma trombeta,
que emanava da teletela logo acima de suas cabeças. Desta vez,
no entanto, não se tratava da proclamação de uma vitória militar,
mas apenas de um anúncio do Ministério da Plenitude.
– Camaradas! – gritou uma voz jovem e ávida. – Atenção,
camaradas! Temos notícias gloriosas para vocês. Ganhamos a
batalha pela produção! A conclusão do cálculo de itens
produzidos em todas as classes de bens de consumo mostra que o
padrão de vida aumentou em nada menos que 20% em relação ao
ano passado. Esta manhã, por toda a Oceânia, houve
manifestações espontâneas irreprimíveis, quando trabalhadores
marcharam para fora das fábricas e escritórios e desfilaram pelas
ruas com bandeiras expressando sua gratidão ao Big Brother pela
vida nova e feliz que sua sábia liderança nos proporciona. Aqui
estão alguns dos números completos. Alimentos....
A frase ‘vida nova e feliz’ foi repetida várias vezes. Tinha sido
uma das favoritas nos últimos tempos com o Ministério da
Plenitude. Parsons, tendo a atenção atraída pelo chamado da
trombeta, sentou-se e escutou a transmissão com uma espécie de
seriedade estupefata, uma espécie de tédio edificante. Ele não
podia acompanhar os números, mas estava certo de que eles eram,
de alguma forma, um motivo de satisfação. Ele tirou um enorme e
imundo cachimbo que já tinha metade do tabaco queimado. Com
a ração de tabaco em 100 gramas por semana, raramente era
possível encher um cachimbo por completo. Winston fumava um
Cigarro Victory, que ele segurava cuidadosamente na horizontal.
A nova ração só seria válida a partir do dia seguinte e ele só tinha
quatro cigarros. Naquele momento, ele bloqueara seus ouvidos
para os ruídos de fundo e escutava apenas o que vinha da teletela.
Parecia até que haviam feito manifestações para agradecer ao Big
Brother por elevar a ração de chocolate para vinte gramas por
semana. E ainda no dia anterior, refletiu ele, havia sido anunciado
que a ração seria REDUZIDA para vinte gramas por semana. Era
possível que eles pudessem engolir isso depois de apenas vinte e
quatro horas? Sim, eles engoliam. Parsons engoliu facilmente,
com a estupidez de um animal. A criatura sem olhos na outra
mesa engoliu fanaticamente, apaixonadamente, com um desejo
furioso de rastrear, denunciar e vaporizar qualquer um que
sugerisse que na semana passada a ração tinha sido de trinta
gramas. Syme, de uma forma mais complexa, envolvendo um
pensamento duplo, também engoliu a notícia. Será que ele estava
SOZINHO em posse de uma memória?
As estatísticas fabulosas continuaram a sair da teletela. Em
comparação com o ano anterior, havia mais comida, mais roupas,
mais casas, mais móveis, mais panelas, mais combustível, mais
navios, mais helicópteros, mais livros, mais bebês - mais de tudo,
exceto doenças, crime e insanidade. Ano a ano e minuto a minuto,
todos e tudo subiam rapidamente em uma escala crescente. Como
Syme havia feito antes, Winston pegou sua colher brincou com a
poça de molho de cor pálida que respingava da mesa, desenhando
uma longa faixa no líquido. Ele meditava com ressentimento
sobre a textura física da vida. Teria sido sempre assim? A comida
sempre teve este gosto? Ele olhou ao redor da cantina. Uma sala
de teto baixo, apinhada de gente, com suas paredes encardidas
pelo contato de inúmeros corpos; mesas e cadeiras de metal
amassado, colocadas tão próximas umas das outras que você se
sentava com os cotovelos tocando a pessoa ao lado; colheres
tortas, bandejas amassadas, canecas brancas grosseiras; todas as
superfícies gordurosas, sujas em cada fenda; e um cheiro azedo e
composto de gin e café ordinários, cozido metálico e roupas sujas.
Em seu estômago e em sua pele havia sempre uma espécie de
protesto, uma sensação de que você tinha sido desprovido de algo
a que tinha direito. Era verdade que ele não conseguia se lembrar
de nada muito diferente. Em todas as épocas que ele conseguia se
lembrar com exatidão, nunca havia o suficiente para comer, nunca
se tinha tido meias ou roupas íntimas que não estivessem cheias
de buracos, os móveis sempre tinham sido bambos a lascados, as
salas sub aquecidas, os metrôs lotados, as casas sempre caiam aos
pedaços, o pão sempre fora de cor escura, o chá sempre fora uma
raridade, o café sempre tivera um sabor imundo, os cigarros
nunca foram suficientes. Nada era barato e abundante, exceto gin
sintético. E embora tudo piorasse com o envelhecimento do
corpo, não era um sinal de que esta não era a ordem natural das
coisas, se o coração ficava apertado com o desconforto, a sujeira e
a escassez, os invernos intermináveis, as meias grudentas, os
elevadores que nunca funcionaram, a água fria, o sabonete de
areia, os cigarros que se desfaziam, a comida com seus estranhos
gostos malignos? Como se pode concluir que isso é intolerável a
menos que se tenha algum tipo de memória ancestral de que em
algum momento as coisas já foram diferentes?
Ele deu mais uma olhada pela cantina. Quase todos eram feios e
seguiriam sendo feios mesmo se estivessem vestidos com outra
roupa que não fosse o macacão azul, o uniforme. Do outro lado
da sala, sentado a uma mesa sozinho, um homem pequeno e
parecido com um besouro bebia uma xícara de café, seus olhinhos
lançando olhares suspeitos de um lado para o outro. Winston
pensou como era fácil, quando não se olhava em volta, acreditar
que o tipo físico ideal criado pelo Partido – jovens musculosos,
mulheres com peitos grandes, cabelos loiros, cheios de vida,
queimados pelo sol e despreocupados - existia e ainda
predominava. Na verdade, até onde ele podia notar, a maioria das
pessoas na Faixa Aérea Um era pequena, morena e tinha um
aspecto doentio. Era curioso como esse tipo, que se parece com
um besouro, proliferava nos Ministérios: homens baixos e
atarracados, que crescem robustos muito cedo na vida, com
pernas curtas, movimentos rápidos e rostos gordos e
impenetráveis com olhos muito pequenos. Era o tipo que parecia
florescer mais sob o domínio do Partido.
O anúncio do Ministério da Plenitude terminou com mais um soar
de trombeta e deu lugar a uma música metálica. Parsons,
sutilmente agitado pelos resultados numéricos divulgados, tirou
seu cachimbo da boca.
– O Ministério da Plenitude certamente fez um bom trabalho este
ano –disse ele com ares de entendido, balançando a cabeça. – A
propósito, meu velho Smith, suponho que você não tenha
nenhuma lâmina de barbear que possa me dar, não?
– Nem mesmo uma – disse Winston. – Eu mesmo tenho usado a
mesma lâmina há seis semanas.
– Tudo bem... apenas pensei em lhe perguntar, meu rapaz.
– Desculpe – disse Winston.
O tagarela da mesa ao lado, temporariamente quieto durante o
anúncio do Ministério, tinha recomeçado a falar, mais alto do que
nunca. Por alguma razão, Winston de repente se viu pensando na
Sra. Parsons, com seus cabelos ralos e a poeira nas rugas de seu
rosto. Dentro de dois anos aquelas crianças a estariam
denunciando à Polícia do Pensamento. A Sra. Parsons seria
vaporizada. Syme seria vaporizado. Winston seria vaporizado.
O’Brien seria vaporizado. Parsons, por outro lado, nunca seria
vaporizado. A criatura sem olhos com a voz estridente nunca seria
vaporizada. Os homenzinhos com cara de besouro, que se
esgueiravam tão agilmente pelos corredores labirínticos dos
Ministérios, tampouco seriam vaporizados. E a garota de cabelos
escuros, a garota do Departamento de Ficção, também não seria
vaporizada. Parecia a Winston que ele sabia instintivamente quem
sobreviveria e quem pereceria; embora não fosse fácil dizer o que
exatamente deveria ser feito para se sobreviver.
Naquele momento, ele foi arrancado de seu devaneio por um
solavanco violento. A garota da mesa ao lado havia se virado e
estava olhando para ele. Era a garota de cabelos escuros. Ela
olhava para ele com canto de olho, mas com uma intensidade
curiosa. Assim que seus olhares se cruzaram, ela desviou
rapidamente o olhar.
As costas de Winston se encheram de suor. Uma onda de terror
passou por ele. Desapareceu quase que imediatamente, mas
deixou nele uma espécie de inquietação incômoda. Por que ela
estava de olho nele? Por que ela continuava a segui-lo?
Infelizmente ele não conseguia se lembrar se ela já estava à mesa
quando ele chegou ou se tinha se sentado lá depois. Mas no dia
anterior, de qualquer forma, durante os Dois Minutos do Ódio, ela
se sentara imediatamente atrás dele, mesmo não havendo
necessidade aparente de fazê-lo. É bem provável que seu real
objetivo fosse ouvi-lo e ter certeza de que ele gritava alto o
suficiente.
Então seu pensamento anterior foi retomado: provavelmente ela
não era de fato um membro da Polícia do Pensamento, mas
poderia ser um espião amador, o que era ainda mais perigoso. Ele
não sabia há quanto tempo ela estava olhando para ele, talvez
cinco minutos, e seu receio era que suas reações, neste intervalo,
não estivessem perfeitamente sob controle. Era extremamente
perigoso deixar seus pensamentos correrem soltos quando se
estava em qualquer lugar público ou dentro do alcance de uma
teletela. A menor expressão era capaz de entregá-lo. Um tique
nervoso, um olhar inconsciente de ansiedade, o hábito de
murmurar para si mesmo - qualquer coisa que carregasse a
sugestão de se ter algo a esconder. Em todo caso, imprimir uma
expressão imprópria em seu rosto (parecer incrédulo quando uma
vitória era anunciada, por exemplo) era, por si só, uma ofensa
punível. Havia até mesmo uma palavra para isso em Novilíngua:
ROSTOCRIME.
A garota deu novamente as costas para ele. Talvez ela não
estivesse realmente o seguindo, talvez fosse apenas coincidência
que ela tivesse ficado tão perto dele por dois dias seguidos. Seu
cigarro tinha se apagado e ele o colocou cuidadosamente na borda
da mesa. Ele terminaria de fumá-lo depois do trabalho, se pudesse
manter o tabaco dentro dele. Muito provavelmente a garota da
mesa ao lado era um espião da Polícia do Pensamento, e muito
provavelmente ele estaria nas celas do Ministério do Amor dentro
de três dias, mas uma ponta de cigarro não devia nunca ser
desperdiçada. Syme dobrou sua tira de papel e a guardou em seu
bolso. Parsons começara a falar novamente.
– Já contei, meu rapaz – disse ele brincando com a haste de seu
cachimbo –, sobre quando meus dois pestinhas atearam fogo à
saia de uma velha mulher no mercado, porque a viram
embrulhando salsichas em um cartaz do B.B.? Se esgueiraram
atrás dela e, com uma caixa de fósforos, atearam fogo a ela. Eu
acho que ela ficou bem queimada. Pestinhas, não? Mas
afiadíssimos! Eles recebem um treinamento de primeira classe
nos Espiões hoje em dia. Melhor até do que no meu tempo. Qual
você acha que foi a última coisa que eles ganharam dos Espiões?
Cornetas acústicas para ouvir através de buracos de fechadura!
Minha filha trouxe uma para casa outro dia. Experimentou na
porta de nossa sala de estar e contou que ouvia duas vezes mais
do que colocando o ouvido no buraco. Claro que é apenas um
brinquedo. Ainda assim, lhes mostra o caminho certo, não é
mesmo?
Neste momento, a teletela emitiu um apito estridente. Era o sinal
para voltarem ao trabalho. Os três homens puseram-se em pé e
uniram-se aos demais na luta para tomar um elevador. E o tabaco
que restava no cigarro de Winston caiu e se perdeu.
Capítulo 6

Winston estava escrevendo em seu diário:


Foi há três anos. Era uma noite escura, em uma rua
estreita e vicinal perto de uma grande estação de trem.
Ela estava de pé perto de uma porta em um muro, sob um
poste de iluminação que quase não iluminava. Ela tinha
um rosto jovem, carregado com muita maquiagem. Era
realmente aquela maquiagem que me atraía, o rosto
branco como uma máscara e os lábios vermelhos
brilhantes. As mulheres do Partido nunca maquiavam seus
rostos. Não havia mais ninguém na rua e não havia
teletelas. Ela disse dois dólares. Eu...
Mas era muito difícil continuar. Ele fechou os olhos e pressionou
os dedos contra eles, tentando espremer a visão que não parava de
se repetir. Ele tinha uma vontade louca de gritar um monte de
palavrões o mais alto possível. Ou bater sua cabeça contra a
parede, chutar a mesa, jogar o tinteiro da caneta pela janela. Fazer
qualquer coisa violenta, ruidosa ou dolorosa que pudesse apagar a
memória que o atormentava.
Seu pior inimigo, ele refletiu, era seu próprio sistema nervoso. A
qualquer momento a tensão dentro de você podia se traduzir em
algum sintoma visível. Ele lembrou de um homem com quem
havia cruzado na rua há algumas semanas; um homem de
aparência bastante comum, um membro do Partido, que tinha
entre trinta e cinco e quarenta anos, alto e magro, carregando uma
breve mala. Eles estavam a alguns metros de distância quando o
lado esquerdo do rosto do homem se contorceu subitamente por
uma espécie de espasmo. Aconteceu de novo exatamente quando
eles se cruzaram: foi apenas um tremor, um estremecimento,
rápido como um piscar de olhos, mas obviamente frequente. Ele
se lembrou de ter pensado na ocasião: ‘Este pobre diabo está
perdido’. E o que mais assustava era que a ação muito
provavelmente era inconsciente. O perigo mais mortal de todos
era falar durante o sono. Não havia como se precaver contra isso,
até onde ele acreditava.
Ele respirou fundo e continuou a escrever:
Fui com ela pela porta e atravessei um quintal até uma
cozinha no porão. Havia uma cama encostada na parede e
uma lamparina em cima da mesa, com a chama bem
baixa. Ela...
Seus nervos estavam a flor da pele. Ele gostaria de ter cuspido.
Enquanto estava com a mulher na cozinha do porão, ele pensou
em Katharine, sua esposa. Winston era casado ou tinha sido
casado... de qualquer forma: provavelmente ele ainda era casado
porque até onde ele sabia, sua esposa não estava morta. Ele
parecia respirar novamente o ar quente e abafado da cozinha do
porão, com um odor que misturava o cheiro de insetos e roupas
sujas com um cheiro vil e barato, mas mesmo assim sedutor,
porque nenhuma mulher do Partido usava perfume, ou sequer
imaginava usar. Apenas as proletárias usavam perfume. Em sua
mente este cheiro estava diretamente vinculado com fornicação.
Contratar aquela mulher, foi seu primeiro lapso em
aproximadamente dois anos. Ir para a cama com prostitutas era
proibido, é claro, mas era uma daquelas regras que uma vez ou
outra era possível se atrever a quebrar. Era perigoso, mas não era
uma questão de vida ou morte. Ser pego com uma prostituta
poderia significar cinco anos em um campo de trabalhos forçados,
não mais, se você não tivesse cometido outra ofensa. E era
relativamente fácil de se safar, desde que você não fosse pego em
flagrante. Os bairros mais pobres estavam repletos de mulheres
dispostas a se vender. Algumas até podiam ser compradas por
uma garrafa de gin, que os proletários não deveriam beber. Na
verdade, o Partido estava até inclinado a encorajar a prostituição,
como uma saída para instintos que não podiam ser suprimidos. A
mera devassidão não importava muito, desde que fosse furtiva e
sem alegria e envolvesse apenas as mulheres de uma classe
inferior e desprezada. O crime imperdoável era a promiscuidade
entre os membros do Partido. Mas, embora este fosse um dos
crimes que os acusados nas grandes purgas invariavelmente
confessassem, era difícil imaginar que isso de fato acontecesse.
O objetivo do Partido não era apenas impedir que homens e
mulheres desenvolvessem uma cumplicidade que não pudesse ser
controlada. Seu objetivo real, porém oculto, era remover todo
prazer do ato sexual. O inimigo não era tanto o amor, mas
principalmente o erotismo, tanto dentro como fora do casamento.
Todos os casamentos entre membros do Partido tinham que ser
aprovados por um comitê nomeado para esse fim, e - embora este
princípio nunca tenha sido declarado - a permissão era sempre
recusada se o casal passasse a impressão de estar fisicamente
atraído. O único objetivo reconhecido do casamento era gerar
filhos para o serviço do Partido. A relação sexual devia ser vista
como uma operação inferior e repugnante, como fazer uma
lavagem intestinal. Isto nunca foi colocado em palavras, mas de
forma indireta foi incutido em cada membro do partido desde a
infância. Havia até mesmo organizações, como a Liga Juvenil
Antissexo, que defendiam o celibato completo para ambos os
sexos. Todas as crianças deveriam ser geradas por inseminação
artificial (SEMART, em Novilíngua) e educadas em instituições
públicas. Winston sabia que esta proposta não seria levada a cabo,
mas de alguma forma, se enquadrava na ideologia geral do
Partido. O Partido estava tentando matar o instinto sexual ou, se
não o pudesse matar, distorcê-lo e sujá-lo. Winston não sabia por
que isto era assim, mas era algo que lhe parecia natural. E, no que
diz respeito às mulheres, os esforços do Partido foram
amplamente bem-sucedidos.
Ele pensou novamente em Katharine. Deviam ter se passado
nove... dez... quase onze anos desde que eles haviam se separado.
Era curioso como ele raramente pensava nela. Às vezes, ele era
capaz de se esquecer, por dias a fio, que já fora casado. Eles
ficaram juntos por aproximadamente quinze meses. O partido não
permitia o divórcio, mas incentivava a separação nos casos em
que não havia filhos.
Katharine era uma mulher alta, loira, muito ereta e tinha
movimentos esplêndidos. Ela tinha um rosto ousado, penetrante,
um rosto que se poderia chamar de nobre até que se descobrisse
que não havia quase nada por trás dele. Muito cedo em sua vida
de casado, ele notou- embora talvez apenas por conhecê-la mais
intimamente do que conhecia a maioria das pessoas - que ela
tinha sem dúvida a mente mais estúpida, vulgar e vazia que ele já
encontrara. Ela não tinha na cabeça um só pensamento que não
fosse um slogan do Partido e não havia absolutamente nenhuma
imbecilidade dita pelo Partido que ela não engolisse. Em sua
cabeça, Winston a apelidara de ‘A trilha sonora humana’. Apesar
de tudo isso, ele teria suportado viver com ela se não fosse apenas
por uma coisa: sexo.
Sempre que ele a tocava, ela parecia se encolher e enrijecer.
Abraçá-la era como abraçar um boneco de madeira articulado. E o
mais estranho era que mesmo quando ela o apertava contra ela,
ele tinha e sensação de que ao mesmo tempo ela o repelia com
todas as suas forças. Pelo menos essa era a impressão causada
pela rigidez de seus músculos. Ela ficava ali deitada com os olhos
fechados, sem resistir nem cooperar, apenas se SUBMETENDO.
Era extraordinariamente embaraçoso e, depois de um tempo,
horrível. Ainda assim, ele teria suportado viver com ela se
tivessem acordado que eles permaneceriam celibatários. Mas,
curiosamente, era Katharine quem recusava isto. Ela dizia que
eles deveriam fazer uma criança se pudessem. Assim, as relações
continuavam a acontecer, regularmente uma vez por semana,
sempre que não era impossível. Pela manhã, ela até o lembrava do
compromisso que tinham à noite, que tinha que ser feito e não
podia ser esquecido. Ela tinha dois nomes para isso. Um era
‘fazer um bebê’, e o outro era ‘nosso dever para com o Partido’
(sim, ela realmente tinha usado essa frase). Rapidamente Winston
passou a sentir pavor quando chegava o dia marcado. Mas
felizmente nenhuma criança foi concebida e no final ela
concordou em desistir de tentar. Logo em seguida eles se
separaram.
Winston suspirou de forma inaudível. Ele pegou sua caneta
novamente e escreveu:
Ela se jogou na cama e imediatamente, sem qualquer tipo
de preliminares, da maneira mais grosseira e horrorosa
que se possa imaginar, ergueu a saia. Eu...
Ele se viu ali parado sob a luz fraca do lampião, aquele cheiro de
insetos e perfume barato em suas narinas e, em seu coração, uma
sensação de fracasso e ressentimento que, mesmo naquele
momento, estava misturado com o pensamento do corpo branco
de Katharine, congelado para sempre pelo poder hipnótico do
Partido. Por que sempre tinha que ser assim? Por que ele não
podia ter uma mulher sua, em vez destes confrontos corporais
imundos de tempos em tempos? Mas um verdadeiro caso de amor
era algo praticamente impensável. As mulheres do Partido eram
todas iguais. A castidade estava tão profundamente enraizada
nelas quanto a lealdade ao Partido. Enraizada pelo cuidadoso
condicionamento precoce, pelos jogos e pela água fria, pelo que
lhes era incutido na escola, nos Espiões e na Liga Juvenil, por
palestras, desfiles, canções, slogans e música marcial, o
sentimento natural havia sido arrancado delas. A razão de
Winston lhe dizia que deveria haver exceções, mas seu coração
não acreditava nisso. Todas elas eram inconquistáveis, como o
Partido queria que fossem E, mais que ser amado, ele queria era
derrubar aquele muro de virtudes, nem que fosse apenas por uma
vez na vida. O ato sexual bem realizado era rebelião. O desejo era
Crime de Pensamento. Despertar o desejo de Katharine, se ele
tivesse conseguido fazê-lo, teria sido uma sedução, mesmo ela
sendo sua esposa.
Mas o restante da história tinha que ser escrito. Ele escreveu:
Aumentei a intensidade da lamparina. Quando eu a vi na
luz...
Após a escuridão, a luz ainda assim fraca da lamparina pareceu
muito brilhante. Pela primeira vez, ele pôde ver realmente a
mulher. Ele havia dado um passo em direção a ela e depois
parado, cheio de luxúria e terror. Ele tinha consciência do risco
que assumira ao ir até lá. Era possível que os policiais o
apanhassem na saída: na verdade, eles poderiam estar esperando
do lado de fora da porta naquele momento. Se ele fosse embora
sem fazer o que tinha ido fazer ali!...
Isso tinha que ser escrito, tinha que ser confessado. O que ele viu
de repente à luz da lamparina, era que a mulher era VELHA. A
maquiagem era tão pesada e tão espessa que parecia que a
qualquer momento poderia rachar como uma máscara de papelão.
Havia mechas brancas em seu cabelo. Mas o detalhe mais horrível
era que ao se deitar na cama, ela deixara a boca um pouco aberta,
revelando nada além de uma escuridão cavernosa. Ela não tinha
nenhum dente.
Ele escreveu apressadamente, em garranchos:
Quando eu a vi na luz, notei que ela era uma mulher
bastante velha, com pelo menos 50 anos. Mas eu fui em
frente e fiz tudo da mesma maneira.
Ele pressionou novamente os dedos contra os olhos. Ele tinha
finalmente escrito, mas isso não tinha feito diferença. A terapia
não tinha funcionado. A vontade de gritar palavrões a alto e bom
som continuava tão forte quanto antes.

Capítulo 7

‘Se há esperança, escreveu Winston, ela está nos proletários.’


Se houvesse esperança, ela TINHA que estar nos proletários, pois
somente naquele enxame da massa ignorada, que representava
85% da população de Oceânia, poderia ser gerada a força para
destruir o Partido. O Partido não poderia ser derrubado por
pessoas de dentro. Seus inimigos, se é que havia, não tinham
como se unir ou mesmo se identificar mutuamente. Mesmo que a
lendária Irmandade existisse, como era bem possível, era
inconcebível que seus membros pudessem se reunir em número
maior do que dois ou três. Rebelião significava um olhar nos
olhos, uma inflexão da voz e, no máximo, uma palavra sussurrada
ocasionalmente. Mas os proletários, se pelo menos eles tivessem
consciência de sua força, não precisariam conspirar. Bastava que
se levantassem e se agitassem como um cavalo que se sacode para
espantar as moscas. Se eles decidissem, poderiam fazer o Partido
em pedaços no dia seguinte pela manhã. Certamente, mais cedo
ou mais tarde, eles tomariam a decisão de acabar com o Partido. E
apesar de tudo...!
Ele se lembrou de uma ocasião em que caminhava por uma rua
cheia de gente, quando o grito de centenas de vozes femininas
estourou de uma rua lateral, um pouco mais para frente. Era um
grito único de raiva e desespero, um “Oh-o-o-o-oh!” profundo e
barulhento, que soava continuamente como o reverberar de um
sino. Seu coração disparou. Começou! Ele pensou. Um motim!
Os proletários estão finalmente se libertando! Quando ele chegou
ao local, viu uma multidão de duzentas ou trezentas mulheres se
aglomerando em uma barraca de um mercado de rua, com rostos
tão trágicos como se fossem passageiros condenados em um
navio que estava afundando. Mas de repente, o desespero geral se
dividiu em diversas brigas individuais. Aparentemente uma das
bancas estava vendendo caçarolas. Eram panelas de péssima
qualidade, frágeis, mas conseguir uma panela de qualquer tipo era
sempre difícil. Naquele momento, o produto havia se esgotado.
As mulheres bem-sucedidas na aquisição, atropeladas e
empurradas pelas demais, tentavam fugir com suas panelas,
enquanto dezenas de outras gritavam em volta da banca, acusando
o guarda da banca de favoritismo e de ter mais panelas escondidas
em algum lugar. Houve uma nova explosão de gritos. Duas
mulheres enormes, uma delas com o cabelo escorrido, tinham
agarrado a mesma caçarola e estavam tentando arrancá-la uma da
outra. Cada uma puxava de um lado, até que o cabo se soltou.
Winston observou a cena com repugnância. E então ele pensou
assustado por um momento na força aterrorizante que se
manifestara naquele grito de apenas algumas centenas de
gargantas! Por que estas gargantas nunca haviam gritado assim
por alguma coisa que importasse?
Ele escreveu:
Até que se tornem conscientes, eles nunca se rebelarão e
até que tenham se rebelado, não se tornarão conscientes.
O que escrevera, refletiu Winston, poderia ter sido uma
transcrição de um dos livros didáticos do Partido. O Partido
alegava, é claro, ter libertado os proletários da escravidão. Antes
da Revolução eles tinham sido terrivelmente oprimidos pelos
capitalistas, passaram fome e foram açoitados, as mulheres foram
forçadas a trabalhar nas minas de carvão (na verdade, as mulheres
ainda trabalhavam nas minas de carvão), as crianças eram
vendidas para as fábricas aos seis anos de idade. Mas
simultaneamente, fiel aos Princípios do Pensamento Duplo, o
Partido ensinava que os proletários eram seres naturalmente
inferiores, que deveriam ser mantidos, como os animais, em
submissão pela aplicação de algumas regras simples. Na
realidade, muito pouco se sabia sobre os proletários. Não era
necessário saber muito. Enquanto eles continuassem trabalhando
e procriando, suas outras atividades não tinham importância.
Deixados a sua própria sorte, como o gado solto nas planícies da
Argentina, eles haviam retornado a um estilo de vida que lhes
parecia natural, uma espécie de padrão ancestral. Nasciam,
cresciam nas sarjetas, começavam a trabalhar aos doze anos,
passavam pela floração de beleza e desejo sexual, casavam-se aos
vinte anos, chegavam à meia idade aos trinta anos e morriam, em
sua maioria, aos sessenta anos. O trabalho físico pesado, o
cuidado do lar e das crianças, pequenas brigas com os vizinhos,
filmes, futebol, cerveja e, sobretudo, as apostas em jogos,
enchiam o horizonte de suas mentes. Mantê-los sob controle não
era difícil. Alguns agentes da Polícia do Pensamento se
infiltravam entre eles, espalhando falsos rumores e marcando e
eliminando os poucos indivíduos que acreditavam que poderiam
se tornar perigosos; mas não se tentava doutriná-los de acordo
com a ideologia do Partido. Não era desejável que os proletários
tivessem sentimentos políticos fortes. Tudo o que se exigia deles
era um patriotismo primitivo, para o qual se podia apelar sempre
que era necessário aumentar sua carga horária de trabalho ou
reduzir suas rações. E mesmo quando ficavam descontentes,
como às vezes acontecia, seu descontentamento não levava a
lugar algum, pois eram tão desprovidos de ideias gerais, que se
focavam apenas em queixas pequenas e específicas. Não eram
capazes de atentar para problemas maiores. A grande maioria dos
proletários não tinha nem mesmo teletelas em suas casas. A
polícia civil quase não interferia na vida deles. Londres tinha alta
criminalidade, era um mundo à parte, repleto de ladrões,
bandidos, prostitutas, traficantes de drogas e chantagistas de toda
espécie; mas ninguém se importava, já que tudo isso acontecia
entre os próprios proletários. Aos proletários foi permitido seguir
com seu código ancestral em relação às questões morais. O
puritanismo sexual do Partido não era imposto a eles. A
promiscuidade ficava impune, o divórcio era permitido. Por esse
mesmo motivo, até mesmo a adoração religiosa era permitida se
esta fosse a necessidade ou o desejo dos proletários. Eles estavam
abaixo de qualquer suspeita. Como dizia o slogan do Partido:
‘Proletários e animais são livres’.
Winston se abaixou e coçou cuidadosamente sua úlcera varicosa.
Tinha começado novamente a coçar. E então, invariavelmente, ele
voltou a pensar na impossibilidade de saber como tinha sido a
vida antes da Revolução. Ele tirou da gaveta uma cópia de um
livro de história infantil que havia pedido emprestado à Sra.
Parsons e começou a copiar uma passagem no diário:
Antigamente, antes da gloriosa Revolução, Londres não
era a bela cidade que conhecemos hoje. Era um lugar
escuro, sujo e miserável, onde quase ninguém tinha o
suficiente para comer e onde centenas e milhares de
pessoas pobres não tinham sapatos nos pés e nem mesmo
um teto para dormir debaixo. Crianças não mais velhas do
que você, tinham que trabalhar doze horas por dia para
mestres cruéis que as açoitavam com chicotes se
trabalhassem muito devagar e as alimentavam com nada
além de cascas de pão e água. Mas em meio a toda esta
pobreza terrível havia algumas poucas casas grandes e
belas que eram habitadas por homens ricos que tinham
até trinta criados. Estes homens ricos eram chamados de
capitalistas. Eram homens gordos e feios com cara de
maus, como o que está na foto na página oposta. Você
pode ver que eles vestiam um longo casaco preto, que era
chamado de sobretudo e um chapéu esquisito e brilhante
em forma de chaminé, que era chamado de cartola. Este
era o uniforme dos capitalistas e ninguém mais estava
autorizado a usá-lo. Os capitalistas eram donos de tudo
no mundo e todos os outros eram seus escravos. Eles
possuíam todas as terras, todas as casas, todas as fábricas
e todo o dinheiro. Se alguém os desobedecesse, eles
poderiam jogá-lo na prisão, ou poderiam tirar-lhe o
emprego e deixá-lo morrer de fome. Quando qualquer
pessoa comum falava com um capitalista, tinha que fazer
reverências e se curvar diante dele, tirar seu boné e se
dirigir a ele como ‘Senhor’. O chefe de todos os
capitalistas era chamado de Rei, e...
Mas ele conhecia o resto da ladainha. Haveria menção aos bispos
em suas camisas de linho, aos juízes em suas togas ornadas com
pele de arminho, ao pelourinho, ao cepo, à roda, ao chicote, ao
banquete do Prefeito e à prática de beijar o pé do Papa. Havia
também o chamado JUS PRIMAE NOCTIS, que provavelmente
não seria mencionado em um livro didático para crianças. Era a
lei pela qual todo capitalista tinha o direito de dormir com
qualquer mulher que trabalhasse em uma de suas fábricas.
Como era possível saber quanto disso era mentira? PODERIA ser
verdade que o ser humano médio estava melhor agora do que
antes da Revolução. A única evidência contrária era o protesto
mudo em seus próprios ossos, o sentimento instintivo de que as
condições em que se vivia eram intoleráveis e que em algum
outro momento deveriam ter sido diferentes. O que lhe chamava a
atenção é que a vida moderna não era de fato caracterizada por
sua crueldade e insegurança, mas simplesmente por sua
precariedade, sua falta de dignidade, sua indiferença. A vida,
quando se olhava ao redor, não tinha nenhuma semelhança nem
com as mentiras que brotavam das teletelas nem com os ideais
que o Partido tentava alcançar. Mesmo para um membro do
Partido, ela era neutra e apolítica, era uma questão de trabalho em
empregos monótonos, de lutar por um lugar no metrô, de
remendar uma meia desgastada, de conseguir um pouco de
sacarina, de salvar uma bituca de cigarro. O ideal criado pelo
Partido era algo enorme, terrível e brilhante; um mundo de aço e
concreto, de máquinas monstruosas e armas terríveis; uma nação
de guerreiros e fanáticos, marchando em frente em perfeita
unidade, todos pensando igual e gritando os mesmos slogans,
trabalhando, lutando, triunfando, perseguindo; trezentos milhões
de pessoas com a mesma cara. A realidade era cidades decadentes
e sujas, onde pessoas subnutridas se arrastavam em sapatos
furados, em casas remendadas do século XIX que cheiravam
sempre a repolho e esgoto de banheiro. A imagem que Winston
tinha de Londres era de uma cidade grande e em ruínas, com um
milhão de lixeiras, e a esta imagem se misturava a imagem da
Sra. Parsons, uma mulher de rosto enrugado e cabelo fino,
sentindo-se desamparada frente a uma pia entupida com lixo.
Ele se abaixou e coçou novamente o tornozelo. Dia e noite as
teletelas enchiam todos os ouvidos com estatísticas provando que
as pessoas hoje tinham mais comida, mais roupas, melhores
casas, melhores recreações, que viviam mais tempo, trabalhavam
menos horas, eram mais altas, mais saudáveis, mais fortes, mais
felizes, mais inteligentes, mais bem educadas, do que as pessoas
de cinquenta anos atrás. Nada disso poderia ser provado ou
desmentido. O Partido alegava, por exemplo, que na atualidade
40% dos proletários adultos eram alfabetizados; antes da
Revolução, diziam, o número era de apenas 15%. O Partido
alegava que a taxa de mortalidade infantil era agora de apenas
160 por mil, enquanto antes da Revolução era de 300, e assim por
diante. Era como uma única equação com duas incógnitas.
Poderia muito bem ser que cada palavra dos livros de história,
mesmo o que se aceitava sem questionamento, fosse pura
fantasia. Até onde ele sabia, poderia nunca ter havido uma lei
como a JUS PRIMAE NOCTIS, ou qualquer figura como um
capitalista, ou qualquer peça de vestuário como uma cartola.
Tudo se perdeu na névoa. O passado foi apagado, o que foi
apagado foi esquecido, a mentira se tornou verdade. Apenas uma
vez em sua vida ele teve – DEPOIS de ocorrido, era isso que
contava – provas concretas e inconfundíveis de uma falsificação.
Ele a manteve entre em suas mãos por trinta segundos. Deve ter
sido em 1973, de qualquer forma, foi por volta da época em que
ele e Katharine se separaram. Mas o que era realmente relevante
ocorrera sete ou oito anos antes.
A história começou na realidade em meados dos anos sessenta, o
período das grandes purgas em que os líderes originais da
Revolução foram exterminados. Por volta de 1970, mais nenhum
existia, exceto o próprio Big Brother. Nessa época, todos os
demais já haviam sido considerados traidores e
contrarrevolucionários. Goldstein tinha fugido e ninguém sabia
onde estava escondido, e os outros, alguns tinham simplesmente
desaparecido, enquanto a maioria tinha sido executada após
espetaculares julgamentos públicos nos quais eles haviam
confessado seus crimes. Entre os últimos sobreviventes estavam
três homens chamados Jones, Aaronson e Rutherford. Estes três
devem ter sido presos em 1965. Como acontecia frequentemente,
eles tinham desaparecido por um ano ou mais, de modo que não
se sabia se estavam vivos ou mortos e, de repente, apareceram e
foram levados a se incriminar, como era habitual. Eles
confessaram sua cooperação com o inimigo (o inimigo naquela
época também era a Eurásia), o desvio de fundos públicos, o
assassinato de vários membros de confiança do Partido, intrigas
contra a liderança do Big Brother que haviam começado muito
antes de acontecer a Revolução e atos de sabotagem que
causaram a morte de centenas de milhares de pessoas. Depois de
confessar estas coisas, eles foram perdoados, reintegrados no
partido e receberam postos que na verdade eram uma mamata,
mas que pareciam importantes. Os três escreveram longos e
abjetos artigos no The Times, analisando as razões de sua
deserção e prometendo se reparar.
Winston tinha visto os três no Café Castanheira algum tempo
depois de que foram libertados. Ele se lembrou do fascínio
aterrorizado com que, na ocasião, os havia observado pelo canto
do olho. Eram homens muito mais velhos que ele, relíquias do
mundo antigo, quase as últimas grandes figuras remanescentes
dos dias heroicos do Partido. O glamour da luta clandestina e da
guerra civil ainda os envolvia. Embora já naquela época os fatos e
as datas estivessem se tornando cada vez mais incertos em sua
mente, Winston tinha a sensação, de que já conhecia seus nomes
anos antes de conhecer o nome do Big Brother. Mas eles eram
foras da lei, inimigos, intocáveis, condenados com absoluta
certeza à extinção dentro de um ano ou dois. Ninguém que já
tivesse caído nas garras da Polícia do Pensamento jamais escapou
com vida. Eram cadáveres à espera de serem enviados de volta
para a sepultura.
Não havia ninguém em nenhuma das mesas próximas a eles. Não
era sábio nem mesmo ser visto nas proximidades de tais pessoas.
Eles estavam sentados em silêncio diante de copos de gin com
aroma de cravo, que era a especialidade do café. Dos três, a
aparência de Rutherford era a que mais tinha impressionado
Winston. Rutherford já havia sido um famoso caricaturista e seus
desenhos brutais haviam ajudado a inflamar a opinião popular
antes e durante a Revolução. Ainda agora, bem raramente, seus
desenhos eram publicados no The Times. Eles eram uma imitação
de sua forma antiga, mas curiosamente sem vida e pouco
convincentes. Sempre reformulavam temas antigos – favelas,
crianças famintas, batalhas de rua, capitalistas de cartolas –
mesmo nas barricadas, os capitalistas ainda pareciam se agarrar a
suas cartolas, como um esforço sem fim e sem esperança de
voltar ao passado. Ele era um homem monstruoso, com uma juba
com cabelos grisalhos e ensebados, com o rosto gordo e com
cicatrizes, com lábios grossos e brutos. Em algum momento, ele
deve ter sido imensamente forte; agora seu grande corpo estava
flácido, curvado, abaulado, caindo em todas as direções. Ele
estava se degradando a olhos vistos, como uma montanha que
desmorona.
Eram quinze horas, a hora solitária. Winston já não se lembrava
mais como estava a esta hora no café. O lugar estava quase vazio.
Uma música metálica tocava nas teletelas. Os três homens
estavam sentados no seu canto apáticos, sem falar nada. Mesmo
sem ser solicitado, o garçom trouxe novos copos cheios de gin.
Havia um tabuleiro de xadrez sobre a mesa ao lado deles, com as
peças dispostas, mas nenhum jogo foi iniciado. E então, por
talvez meio minuto ao todo, algo aconteceu com as teletelas. A
música que tocavam mudou e o tom da música também. Como se
a música tivesse sido hackeada, foi algo difícil de explicar. Era
uma nota peculiar, estridente, atrevida, zombeteira. Em sua
cabeça, Winston a apelidou de nota amarela. E então uma voz
vinda da teletela começou a cantar:
Debaixo dos galhos da castanheira
Eu o entreguei você e você me entregou:
Lá jazem eles, e aqui jazemos nós.
Debaixo dos galhos da castanheira.
Os três homens não se mexeram. Mas quando Winston olhou
novamente para o rosto arruinado de Rutherford, ele viu que seus
olhos estavam cheios de lágrimas. E pela primeira vez ele notou,
com uma espécie de estremecimento interno, sem saber O QUE o
fez estremecer, que tanto Aaronson quanto Rutherford tinham o
nariz quebrado.
Um tempo depois os três foram novamente presos.
Aparentemente, eles tinham se envolvido em novas conspirações
assim que foram libertados. Em seu segundo julgamento eles
confessaram todos os seus crimes antigos novamente, junto com
uma série de novos crimes. Os três foram executados e seu
destino foi registrado nas histórias do Partido, como um aviso à
posteridade. Cerca de cinco anos depois disto, em 1973, Winston
estava desenrolando um maço de documentos que tinha acabado
de sair do tubo pneumático em sua mesa quando viu um pequeno
papel que evidentemente tinha sido colocado entre os outros e
depois esquecido. No instante em que ele o abriu, percebeu sua
importância. Era meia página do The Times de aproximadamente
de dez anos antes – a metade superior da página, de forma que
continha a data – e trazia uma fotografia dos delegados em
alguma função do Partido em Nova York. No meio do grupo
estavam Jones, Aaronson e Rutherford. Não tinha como se
enganar, seus nomes estavam na legenda na parte inferior da foto.
A questão era que em ambos os julgamentos os três homens
haviam confessado que naquela data haviam estado em solo
eurasiático. Eles haviam voado de um aeroporto clandestino no
Canadá para algum lugar da Sibéria e haviam se reunido com
membros do Estado-Maior Eurasiático, a quem haviam entregue
importantes segredos militares. A data tinha ficado na memória
de Winston porque era o solstício de verão; mas toda a história
devia estar registrada em outros inúmeros lugares também. Havia
apenas uma conclusão possível: as confissões eram mentiras.
Naturalmente, isto não era em si uma descoberta. Mesmo naquela
época, Winston não imaginava que as pessoas que eram
dizimadas nas purgas realmente tivessem cometido os crimes de
que eram acusadas. Mas isto era uma evidência concreta; era um
fragmento do passado abolido, como um osso fóssil que aparece
no estrato errado e destrói uma teoria geológica. Isso era o
suficiente para explodir o Partido, reduzindo-o a átomos, se de
alguma forma isso pudesse ser publicado para o mundo e sua
importância se fizesse conhecida.
Ele tinha seguido com seu trabalho sem interrupções. Assim que
ele viu o que era a fotografia e o que significava, ele a cobriu com
outra folha de papel. Por sorte, quando a desenrolou, ela estava de
cabeça para baixo do ponto de vista da teletela.
Ele colocou seu bloco de rascunho no joelho e empurrou sua
cadeira para trás a fim de se afastar o máximo possível da teletela.
Manter seu rosto sem expressão não era difícil, e até mesmo sua
respiração podia ser controlada, com algum esforço. Mas não
dava para controlar seus batimentos cardíacos, e a teletela era
sensível o suficiente para identificá-los. Ele deixou passar o que
julgou serem uns dez minutos, atormentado o tempo todo pelo
medo de que algum acidente - uma súbita corrente de ar soprando
sobre sua mesa, por exemplo - pudesse traí-lo. Então, sem
descobri-la novamente, ele jogou a fotografia no buraco de
memória, junto com alguns outros papéis de rascunho. Em alguns
minutos, a foto teria se transformado em cinzas.
Isso fora há dez ou onze anos. Se fosse nos dias atuais, ele
provavelmente teria guardado a fotografia. Era curioso que o fato
de a ter mantido em seus dedos lhe parecia fazer a diferença
mesmo agora, quando tanto a fotografia quanto o evento que ela
registrara, eram agora apenas memória. Winston se perguntava se
o poder do Partido sobre o passado era menos forte, apenas por
que uma evidência que já não existia mais JÁ TINHA existido um
dia?
Mas hoje, mesmo que pudesse ressurgir das cinzas, a fotografia
possivelmente nem seria mais uma evidência. Já na época de sua
descoberta, a Oceânia não estava mais em guerra com a Eurásia e
deve ter sido com os agentes da Eurásia que os três mortos
haviam traído seu país. Desde então, houve outras mudanças -
duas, três, ele não conseguia se lembrar de quantas. Muito
provavelmente as confissões tinham sido reescritas inúmeras
vezes até que os fatos e datas originais não tivessem mais o
menor significado. O passado não só mudava, mas mudava
continuamente. O que mais o afligia, dando uma sensação de
pesadelo, era que ele nunca havia entendido claramente, por que a
enorme impostura fora empreendida. As vantagens imediatas de
falsificar o passado eram óbvias, mas o motivo final era
misterioso. Ele pegou sua caneta novamente e escreveu:
Eu entendo COMO. Eu não entendo o PORQUÊ.
Ele se perguntava, como já havia se perguntado muitas vezes, se
ele era um lunático. Talvez um lunático fosse simplesmente uma
minoria de um. Em algum momento foi um sinal de loucura
acreditar que a Terra gira em torno do sol; hoje em dia, é um sinal
de loucura acreditar que o passado é inalterável. Ele poderia estar
SOZINHO nessa crença, e se estivesse sozinho, era então um
lunático. Mas a ideia de ser um lunático não o incomodava muito:
o horror era que ele também pudesse estar errado.
Ele pegou o livro de história infantil e olhou para o retrato do Big
Brother na capa. Os olhos hipnóticos olhavam para os seus. Era
como se alguma força enorme o estivesse pressionando – algo
que penetrava dentro de seu crânio, batendo contra seu cérebro, o
assustando em relação a suas crenças, praticamente o persuadindo
a negar a evidência de seus sentidos. No final, o Partido
anunciaria que dois e dois eram cinco, e ele teria que acreditar
nisso. Era inevitável que eles fizessem essa afirmação mais cedo
ou mais tarde: a lógica de sua posição o exigia. Não apenas a
validade da experiência, mas a própria existência da realidade
externa, fora tacitamente negada por sua filosofia. A heresia das
heresias era de senso comum. E o que era assustador não era que
eles o matariam por pensar de outra forma, mas que poderiam
estar certos. Pois, afinal de contas, como sabemos que dois e dois
são quatro? Ou que a força da gravidade funciona? Ou que o
passado é imutável? Se tanto o passado quanto o mundo externo
existem apenas na mente, e se a própria mente é controlável,
como fazer então?
Mas não! Sua coragem parecia de repente se fortalecer por sua
própria vontade. O rosto de O’Brien, não convocado por nenhuma
associação óbvia, surgiu em sua mente. Ele sabia, com mais
certeza do que nunca, que O’Brien estava do seu lado. Ele estava
escrevendo o diário PARA O’Brien, era como uma carta
interminável que ninguém jamais leria, mas que era endereçada a
uma pessoa em particular e que se fortalecia desse fato.
O Partido lhe havia dito para rejeitar as provas de seus olhos e
ouvidos. Era o comando final deles, o mais essencial. Seu coração
afundou ao pensar no enorme conjunto de poderes contra ele, na
facilidade com que qualquer intelectual do Partido o assolaria em
um debate, nos argumentos sutis que ele não seria capaz de
entender, muito menos de responder. E mesmo assim, ele estava
no direito! Eles estavam errados e ele estava certo. O óbvio, o
bobo e o verdadeiro tinham que ser defendidos. Os truísmos são
verdadeiros, lembrem-se disso! O mundo sólido existe, suas leis
não mudam. As pedras são duras, a água é molhada e os objetos
sem suporte caem em direção ao centro da terra. Com a sensação
de que ele estava falando com O’Brien e de que estabelecia um
axioma importante, ele escreveu:
Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são
quatro. Se isso for aceito, tudo o mais é consequência.

Capítulo 8

De algum lugar no fundo de uma passagem, o cheiro do café


torrado - café verdadeiro, não Café Victory – veio perfumando a
rua. Winston fez uma pausa involuntária. Durante talvez uns dois
segundos ele retornou à sua infância meio esquecida. Então uma
porta bateu, parecendo cortar o cheiro tão abruptamente como se
fosse um som.
Ele já tinha caminhado vários quilômetros pelas ruas e sua úlcera
varicosa latejava. Esta era a segunda vez em três semanas que ele
perdia uma noite no Centro Comunitário: um ato precipitado, já
que com certeza a sua presença no Centro era cuidadosamente
verificada. A princípio, um membro do Partido não tinha tempo
livre e nunca estava sozinho, exceto na cama. Presumia-se que
quando ele não estava trabalhando, comendo ou dormindo deveria
estar participando de algum tipo de recreação comunitária. Fazer
qualquer coisa que sugerisse o gosto pela solidão, mesmo
caminhar sozinho, era sempre perigoso. Havia uma palavra para
isso em Novilíngua: VIDAPRÓPRIA, significava individualismo
e excentricidade. Mas nesta noite, quando ele saiu do Ministério,
o ar ameno do mês de abril o havia tentado. O azul do céu estava
mais morno do que o de qualquer outra noite até então naquele
ano e, de repente, a longa e barulhenta noite no Centro
Comunitário, os jogos chatos e exaustivos, as palestras, a
camaradagem barulhenta regada a gin, pareciam intoleráveis. Por
impulso, ele se afastou da parada de ônibus e se desviou para o
labirinto de Londres, primeiro para o sul, depois para o leste,
depois para o norte novamente, perdendo-se em ruas
desconhecidas e pouco se importando com a direção que ele
seguia.
´Se há esperança’, ele havia escrito no diário, ‘ela está nos
proletários’. As palavras continuavam reverberando em sua
cabeça, uma declaração mista de uma verdade mística e de um
absurdo palpável. Ele estava em algum lugar nas vagas e marrons
favelas a Norte e a Leste do que antes fora a Estação Saint
Pancras. Ele andava por uma rua pavimentada repleta de
pequenos sobrados com portas velhas que davam direto para a rua
e que de alguma forma pareciam buracos de ratos. Havia poças de
água suja aqui e ali no pavimento. Dentro e fora das portas
escuras, e por vielas estreitas que se surgiam de ambos os lados,
as pessoas se aglomeravam aos montes - garotas na flor da idade,
com as bocas rudemente pintadas de batom, e jovens que
perseguiam as garotas, e mulheres gordas e cambaleantes que
exemplificavam como seriam as meninas em dez anos, e velhos
curvados arrastando os pés, e crianças descalças e esfarrapadas
que brincavam nas poças e depois se dispersavam ao ouvir os
gritos de bronca de suas mães. Algo como um quarto das janelas
da rua estavam quebradas ou arrombadas. A maioria das pessoas
nem notava Winston; alguns o olharam com uma espécie de
curiosidade discreta. Duas mulheres enormes com braços
vermelhos cruzados sobre seus aventais conversavam do lado de
fora de uma porta. Winston se aproximou e pôde ouvir trechos da
conversa.
– Sim, eu disse para ela, você está certa, eu disse. Mas se você
estivesse no meu lugar, teria feito o mesmo. É fácil criticar, eu
falei, mas você não tem os mesmos problemas que eu.
– Ah – disse a outra –, você fez bem em falar. Você está
certíssima.
As vozes estridentes pararam de repente. As mulheres o
estudaram em silêncio hostil enquanto ele passava. Mas não foi
exatamente hostilidade; foi apenas uma espécie de cuidado, uma
paralisia momentânea, como na passagem de algum animal
desconhecido. O macacão azul do Partido não era comum de se
ver em uma rua como esta. De fato, não era sensato ser visto em
tais lugares, a menos que se tivesse negócios por lá. A polícia
poderia pará-lo, caso você se deparasse com ela. ‘Posso ver seus
documentos, camarada? O que você está fazendo aqui? A que
horas você saiu do trabalho? Este é seu caminho habitual para
casa?’ - e assim por diante. Não que houvesse alguma regra
contra voltar para casa por um caminho incomum: mas era
evidente que a Polícia do Pensamento ficasse de olho em você
caso soubesse disso.
De repente, a rua inteira se alvoroçou. Gritos de alerta eram
ouvidos vindo de todos os lados. As pessoas entravam correndo
pelas portas de suas casas como lebres. Uma jovem mulher saiu
de uma porta um pouco à frente de Winston, agarrou uma criança
pequena que brincava em uma poça, embrulhou-a em seu avental
e correu de volta, tudo em um só movimento. No mesmo instante,
um homem de terno preto, que havia saído de um beco lateral,
correu em direção a Winston, apontando agitado para o céu.
Ele gritou:
– Vapor! Cuidado, chefe! Bem em cima da sua cabeça! Abaixe-se
rápido!
‘Vapor’ era o apelido que, por alguma razão, os proletários davam
aos mísseis. Winston se jogou no chão com o rosto para baixo. Os
proletários estavam quase sempre certos quando davam um alerta
deste tipo. Eles pareciam possuir algum tipo de instinto que lhes
dizia com vários segundos de antecedência quando um míssil
estava chegando, embora os mísseis supostamente viajassem mais
rápido que o som. Winston protegeu sua cabeça com os braços.
Então ele ouviu um barulho tão alto que fazia o chão tremer e na
sequência sentiu uma chuva de coisas leves sobre as suas costas.
Quando ele se levantou, descobriu que estava coberto com cacos
de vidro da janela mais próxima.
Ele continuou andando. A bomba havia demolido um grupo de
casas 200 metros acima da rua. Uma nuvem de fumaça preta
pairava no céu e, abaixo dela, uma nuvem de pó de gesso, onde
uma multidão já se formava ao redor das ruínas. À sua frente no
meio da rua, Winston viu uma pilha de escombros brancos de
gesso e no meio dela, algo vermelho vivo. Quando se aproximou,
viu que era uma mão humana cortada no pulso. Fora o coto
sangrento, tudo o mais na mão estava completamente branqueado,
a ponto de parecer um molde de gesso.
Ele chutou a coisa para a sarjeta e depois, para evitar a multidão,
entrou em uma rua lateral à direita. Em três ou quatro minutos ele
estava fora da área que a bomba havia afetado e a sórdida
manifestação de vida nas ruas seguia como se nada tivesse
acontecido. Eram quase vinte horas e os estabelecimentos de
bebidas que os proletários frequentavam (que eles chamavam de
‘pubs’) estavam lotados com os clientes. De suas portas vai e vem
encardidas, interminavelmente abertas e fechadas, saía um cheiro
de urina, serragem e cerveja azeda. Em frente à quina saliente de
uma casa, havia três homens muito próximos um do outro, o do
meio segurando um jornal dobrado que os outros dois estudavam
por cima de seu ombro. Mesmo antes de estar suficientemente
perto para ver a expressão em seus rostos, Winston já podia notar
como estavam absortos. Logicamente eles liam uma notícia séria.
Quando Winston chegou a alguns passos deles, o grupo se
separou; dois dos homens pareciam estar violentamente alterados.
Por um momento, eles pareciam estar quase a ponto de sair aos
socos e pontapés.
– Você não está ouvindo o que eu estou falando? Estou dizendo
que há mais de quatorze meses nenhum número terminado em
sete ganhou!
– Ah, sei... tá bom então....
– Não.... tá bom nada! Eu anoto todos os números há mais de dois
anos. Anoto sempre, como um reloginho. Estou dizendo....
nenhum número que termina em sete ganha.
– Sim, DEU o sete sim! Eu posso até te dizer o número....
terminava em quatro zero sete. Foi em fevereiro.... na segunda
semana de fevereiro.
– Fevereiro a sua avó! Tenho tudo anotado! E estou dizendo: não
deu nenhum número terminado em sete.
– Ora, ora, vamos parar com isso! – disse o terceiro homem.
Eles estavam falando sobre a loteria. Winston olhou para trás
depois de andar uns trinta metros. Eles ainda estavam lá
discutindo, com rostos vívidos e apaixonados. A Loteria, com seu
pagamento semanal de prêmios enormes, era o único evento
público ao qual os proletários prestaram realmente atenção. Era
provável que houvesse alguns milhões de proletários para os
quais a Loteria fosse o principal, se não o único motivo para
permanecerem vivos. Era o seu deleite, sua loucura, seu
analgésico, seu estimulante intelectual. No que diz respeito à
Loteria, mesmo as pessoas que mal sabiam ler e escrever
pareciam capazes de cálculos intricados e proezas espantosas de
memória. Havia grupos enormes de homens que ganhavam a vida
simplesmente vendendo sistemas, previsões e amuletos da sorte.
Winston não tinha nada a ver com o funcionamento da loteria,
que era administrada pelo Ministério da Plenitude, mas ele sabia
(na verdade todos do partido sabiam) que os prêmios eram em
grande parte imaginários. Apenas pequenas somas eram
realmente pagas, os ganhadores dos grandes prêmios eram
pessoas que não existiam. Não era difícil fazer isso, já que não
existia qualquer comunicação entre as partes da Oceânia.
Mas se havia esperança, ela estava nos proletários. Era preciso
acreditar nisso. Colocado desta forma, parecia razoável: ao ver as
pessoas passando pela rua, isso se tornava um ato de fé. A rua em
que ele havia entrado era uma descida. Ele tinha a impressão de
que já estivera neste bairro antes e que havia uma rua principal
não muito longe dali. De algum lugar adiante vinham gritos. A
rua fazia uma curva brusca e depois terminava em escadas, que
levavam a um beco logo abaixo, onde alguns feirantes vendiam
verduras e legumes murchos. Neste momento Winston lembrou-
se onde estava. A viela levava até a rua principal e na curva
seguinte, a menos de cinco minutos, estava a loja de
quinquilharias onde ele tinha comprado o livro em branco que
agora era seu diário. E em uma pequena papelaria não muito
distante, ele havia comprado sua caneta tinteiro e seu pote de
tinta.
Ele fez uma pausa por um momento no topo das escadas. No lado
oposto do beco havia um barzinho sujo, cujas janelas pareciam
estar foscas, mas na realidade estavam apenas cobertas de poeira.
Um homem muito velho, curvado, porém ativo, com bigodes
brancos que se movimentavam para frente como os de um
camarão, empurrou a porta vai e vem e entrou. Enquanto Winston
observava, ocorreu-lhe que o velho, que tinha no mínimo oitenta
anos, já estava na meia-idade quando a Revolução aconteceu. Ele
e alguns outros como ele eram os últimos laços que ainda
existiam com o mundo extinto do capitalismo. No próprio partido
não restavam muitas pessoas cujas ideias haviam sido formadas
antes da Revolução. A geração mais velha havia sido dizimada
em sua maioria nas grandes purgas dos anos 50 e 60 e os poucos
que haviam sobrevivido, estavam há muito tempo aterrorizados,
em completa rendição intelectual. Se ainda houvesse alguém vivo
que pudesse dar um relato verdadeiro das condições no início do
século, só poderia ser um proletário. De repente, a passagem do
livro didático que Winston havia copiado em seu diário voltou a
sua mente e uma ideia maluca tomou conta dele. Ele entraria no
pub, se familiarizaria com aquele velho e o entrevistaria. Ele lhe
diria: ‘Conte-me sobre sua vida quando você era um garoto.
Como era naquela época? As coisas eram melhores do que são
agora ou eram piores?’
Apressadamente, para não ter tempo de se apavorar e desistir, ele
desceu os degraus e atravessou a rua estreita. Era uma loucura, é
claro. Como sempre, não havia uma regra definitiva contra falar
com os proletários e frequentar seus bares, mas era uma ação
muito incomum para passar despercebida. Se a polícia aparecesse,
ele poderia simular um desmaio, mas era improvável que
acreditassem nele. Ele empurrou a porta e um cheiro horrível de
cerveja azeda o atingiu no rosto. Ao entrar, o volume das vozes
no pub caiu para metade. Ele podia sentir todos os olhares em
suas costas, fixos em seu macacão azul. Um jogo de dardos que
acontecia no outro extremo da sala se interrompeu por pelo
menos trinta segundos. O velho que ele havia seguido estava de
pé no bar, tendo algum tipo de discussão com o barman, um
jovem grande, robusto, de nariz de adunco, com antebraços
enormes. Mais um grupo de homens com os copos na mão,
observava a cena.
– Eu fui educado, não fui? – disse o velho, endireitando seus
ombros agressivamente. Você está me dizendo que não tem uma
caneca de um quartilho de cerveja nesta espelunca?
– E que diabos é um quartilho? – disse o barman inclinando-se
para frente com as pontas dos dedos sobre o balcão.
– Arre égua! Ele se chama de barman e não sabe o que é um
quartilho! Um quartilho é um quarto de um galão! Daqui a pouco
vou ter que te ensinar o ABC!
– Nunca ouvi falar em quartilho ou galão – disse o barman
rapidamente. Um litro ou meio litro, isso é tudo o que servimos.
Veja os copos na prateleira na sua frente.
– Eu quero um quartilho – persistiu o velho. Tenho certeza de que
você poderia tirar um quartilho para mim! Na época que eu era
jovem não tinha esta coisa de litro.
– Quando você era jovem, nós vivíamos em cima das árvores –
disse o barman olhando para os outros clientes.
Houve um estouro de gargalhadas e o mal-estar causado pela
entrada de Winston desapareceu. O rosto do velho ficou
enrubescido. Ele se virou, resmungando para si mesmo e esbarrou
em Winston. Winston o pegou gentilmente pelo braço.
– Posso lhe oferecer uma bebida? – disse ele.
– Você é um cavalheiro – disse o outro, endireitando os ombros
novamente. Ele parecia não ter notado o macacão azul de
Winston.
– Quartilho! – acrescentou o velho agressivamente ao barman. –
Um quartilho da gelada!
O barman serviu dois meios litros de cerveja marrom-escura em
copos grossos que ele tinha lavado em um balde embaixo do
balcão. A cerveja era a única bebida que se podia comprar em
bares proletários. Os proletários não podiam beber gin, embora na
prática eles conseguissem comprá-lo facilmente. O jogo de dardos
estava novamente a pleno vapor e o grupo de homens no bar tinha
começado a falar de bilhetes de loteria. A presença de Winston
fora esquecida por um momento. Havia uma mesa debaixo da
janela onde ele e o velho poderiam conversar sem medo de serem
ouvidos. Era terrivelmente perigoso, mas de qualquer forma não
havia nenhuma teletela no bar, algo de que ele havia se
assegurado assim que entrara.
– Ele podia ter tirado um quartilho para mim! resmungou o velho
enquanto se assentava atrás do copo. – Meio litro não é o
suficiente. Não me satisfaz. E um litro é demais. Me faz correr
para não me mijar... Sem falar no preço.
– Você deve ter visto grandes mudanças desde que era um jovem
– tentou Winston.
Os olhos azuis pálidos do velho se moveram do alvo de dardos
para o bar e do bar para a porta dos Cavalheiros, como se ele
pensasse nas mudanças que tinham ocorrido dento do pub.
– A cerveja era melhor – disse ele finalmente. – E mais barata!
Quando eu era jovem, a loira gelada, como costumávamos dizer,
custava quatro centavos de dólar por litro. Isso foi antes da
guerra, é claro.
– Que guerra foi essa? – perguntou Winston.
– Tudo é guerra – disse o velho vagamente. Ele pegou seu copo, e
seus ombros se endireitaram novamente. – Um brinde à sua
saúde!
Em sua garganta magra, seu pomo de Adão fez um movimento
surpreendentemente rápido para cima e para baixo e a cerveja
desapareceu. Winston foi para o bar e voltou com mais duas
canecas de meio litro. O velho parecia ter esquecido seu
preconceito em relação a beber um litro inteiro.
– Você é bem mais velho do que eu – disse Winston. – Você já
devia ser adulto antes de eu nascer. Com certeza você se lembra
de como eram os velhos tempos, antes da Revolução. As pessoas
da minha idade não sabem nada de verdade sobre esses tempos.
Tudo o que sabemos é o que podemos ler nos livros, e o que está
escrito nos livros pode não ser verdade. Gostaria de ouvir um
pouco a sua opinião sobre isso. Os livros de história dizem que a
vida antes da Revolução era completamente diferente do que é
agora. Havia a mais terrível opressão, injustiça e a pobreza era
pior do que qualquer coisa que possamos imaginar. Aqui em
Londres, por exemplo, a grande maioria do povo nunca tinha o
suficiente para comer, desde o nascimento até a morte. Metade
deles não tinha nem mesmo sapatos para colocar nos pés. Eles
trabalhavam doze horas por dia, frequentavam a escola apenas até
os nove anos de idade e dormiam em até dez pessoas em um
único cômodo. E enquanto isso, havia algumas poucas pessoas,
apenas alguns milhares - os chamados capitalistas - que eram
ricos e poderosos. Eles eram donos de tudo o que se podia
possuir. Viviam em casas grandes e belíssimas, com trinta
criados, andavam em carros com motor ou em carruagens com
quatro cavalos, bebiam champanhe, usavam cartolas...
O velho homem ficou subitamente radiante.
– Cartolas – disse ele. – Engraçado você falar delas. Pensei nelas
ainda ontem, não sei por quê... Há anos que eu não vejo uma. Os
homens acabaram com elas. A última vez que usei uma foi no
funeral da minha cunhada. E isso foi... bem, eu não consigo dizer
exatamente quando foi, mas deve ter sido há uns cinquenta anos.
Claro que tinha sido alugada apenas para o funeral, você sabe.
– As cartolas não são muito importantes – disse Winston
pacientemente. –A questão é que estes capitalistas, e alguns
advogados e padres e outras pessoas que viviam às suas custas,
eram os senhores da terra. Tudo existia para seu benefício. Vocês,
povo comum e trabalhadores, eram seus escravos. Eles podiam
fazer o que quisessem com vocês. Eles podiam mandar vocês para
o Canadá como gado. Eles podiam dormir com suas filhas, se
quisessem. Podiam ordenar que você fosse açoitado com uma
coisa chamada ‘chicote’. Você tinha que tirar seu chapéu quando
eles passavam. Todo capitalista andava com um bando de lacaios
que...
O velho homem ficou novamente radiante.
– Lacaios! – disse ele. – Está aí uma palavra que fazia tempo que
eu não ouvia. Lacaios! Esse termo me leva de volta no tempo. Me
lembro, ah como eu me lembro, de muitos anos atrás; eu
costumava ir ao Hide Park nos domingos a tarde para ouvir os
discursos daquele pessoal. O Exército da Salvação, os católicos,
os judeus, os índios – tinha todo tipo de pessoas lá. E tinha um
cara... eu não saberia dizer seu nome, mas posso dizer que ele
realmente sabia fazer um discurso. Ele não tinha meias palavras.
Os chamava de ‘Lacaios’, ‘Burgueses lacaios!’, ‘Aduladores da
classe dominante!’, ‘Parasitas’ - esse foi outro quem disse. E
‘hienas’; ele definitivamente os chamava de hienas. É claro que
ele estava falando do Partido Trabalhista, você entendeu.
Winston estava com a sensação de que eles pareciam dois surdos
conversando.
– O que eu realmente gostaria de saber era o seguinte – disse ele.
– Você acha que tem mais liberdade agora do que tinha naquela
época? Hoje você é tratado mais como um ser humano?
Antigamente, as pessoas ricas, as pessoas no topo...
– A Câmara dos Lordes – interrompeu o velho homem, em tom
de quem se recorda.
– A Câmara dos Lordes, se você preferir falar assim. O que eu
queria perguntar é: essas pessoas o tratavam como alguém
inferior, simplesmente porque eles eram ricos e você era pobre? É
verdade, por exemplo, que você tinha que chamá-los de ‘Senhor’
e tirar seu chapéu quando passava por eles?
O velho parecia pensar profundamente. Ele tomou
aproximadamente um quarto de sua cerveja antes de responder.
– Sim – disse ele. – Eles gostavam que você tocasse em seu
chapéu quando encontrava com eles. Demonstrava respeito. Eu
mesmo não concordava muito com isso, mas fazia com
frequência. Pode-se dizer que era assim que tinha que ser.
– E era normal, veja bem, estou perguntando apenas o que li nos
livros de história, era normal que essas pessoas e seus criados
abrissem caminho para eles passarem empurrando as outras
pessoas para fora da calçada, para a sarjeta?
– Um deles me empurrou uma vez – disse o velho. – Eu me
lembro como se fosse ontem. Era noite de Corrida de Barcos –
nas noites de corrida de barcos apareciam vários arruaceiros – e
eu me deparei com um jovem na avenida Shaftesbury. Um
cavalheiro, ele vestia uma camisa, um sobretudo e uma cartola.
Ele ziguezagueava no meio da rua e acidentalmente demos um
encontrão. Ele disse então: ‘Você não olha por onde anda?’. E eu
disse: ‘Ei, você acha que comprou a rua inteira, é? Ele respondeu:
‘Eu torço o seu maldito pescoço se você se meter a besta comigo’.
Eu respondi: ‘Você está bêbado. Eu chamo a polícia e resolvemos
isso em menos de um minuto’. E você não vai acreditar. Ele
colocou a mão no meu peito e me deu um empurrão que quase me
jogou debaixo de um ônibus. Bem, eu era jovem naqueles dias, e
eu teria metido uma no meio da cara dele, mas...
Uma sensação de desamparo tomou conta de Winston. A
memória do velho não era nada além de um monte de detalhes.
Ele podia ficar ali fazendo perguntas o dia todo sem conseguir
obter qualquer informação real. No fim das contas, as histórias do
partido podiam mesmo ser verdadeiras, na verdade, poderiam ser
completamente verdadeiras. Ele resolveu fazer uma última
tentativa.
– Talvez eu não tenha me feito entender – disse ele. – O que eu
estou tentando dizer é o seguinte. Você está vivo há muito tempo;
você viveu metade de sua vida antes da Revolução. Em 1925, por
exemplo, você já era adulto. Você diria, pelo que pode se lembrar,
que a vida em 1925 era melhor ou pior do que é agora? Se você
pudesse escolher, você preferiria viver como vivia naquela época
ou como vive agora?
O velho olhou meditativamente para o alvo de dardos. Então ele
terminou sua cerveja, mais lentamente do que antes. Quando ele
falou, foi com um ar filosófico tolerante, como se a cerveja o
tivesse amadurecido.
– Eu sei o que você espera que eu diga – disse ele. – Você espera
que eu diga que eu gostaria de ser jovem novamente. A maioria
das pessoas diria que gostaria de ser jovem novamente. Temos
saúde e força quando somos jovens. Na minha idade você nunca
está bem. Eu sofro de algo perverso nos meus pés e minha bexiga
é uma piada. Levanto seis, sete vezes por noite para ir ao
banheiro. Por outro lado, há muitas vantagens em ser um homem
velho. A gente já não tem muitas preocupações. Nem quer mais
saber de nada com as mulheres, e isso é excelente. Há quase trinta
anos que eu não tenho mais mulher, sério, de verdade! E nem
queria ter mesmo.
Winston sentou-se de costas para a janela. Não tinha sentido
nenhum seguir desta maneira. Ele estava prestes a comprar mais
cerveja quando o velho se levantou de repente e entrou no urinol
fedorento na sala ao lado. O meio litro extra de cerveja já estava
fazendo efeito. Winston ficou mais um ou dois minutos sentado
olhando para o seu copo vazio e mal notou quando seus pés o
levaram para a rua novamente. Em no máximo vinte anos a
simples pergunta: ‘A vida era melhor antes da Revolução do que
é agora?’ seria impossível de ser respondida. Mas a verdade é que
mesmo na data atual ela já era impossível de ser respondida, já
que os poucos sobreviventes dispersos do mundo antigo eram
incapazes de comparar a época antiga com a atual. Eles se
lembravam de um milhão de coisas inúteis, uma briga com um
colega de trabalho, uma caça a uma bomba de bicicleta perdida, a
expressão no rosto de uma irmã há muito já morta, os
redemoinhos de poeira em uma manhã de vento há setenta anos;
mas todos os fatos relevantes estavam fora do alcance de sua
visão. Eles eram como uma formiga, que pode ver objetos
pequenos, mas não grandes. E quando a memória falhava e os
registros escritos eram falsificados, quando isso acontecia, era
preciso aceitar a afirmação do Partido de que a condição de vida
das pessoas tinha melhorado, porque não existia, e nunca mais
poderia existir, qualquer padrão anterior com o qual a situação
atual pudesse ser comparada.
Neste momento, seus pensamentos foram abruptamente
interrompidos. Ele parou e olhou para cima. Ele estava em uma
rua estreita, com algumas lojinhas escuras, intercaladas por casas.
Imediatamente acima de sua cabeça, ele viu três bolas de metal
desbotadas que pareciam já ter sido douradas um dia. Ele parecia
conhecer o lugar. É claro! Ele estava do lado de fora da loja de
quinquilharias onde ele tinha comprado o diário.
Uma pontada de medo passou por ele. Já tinha sido um ato
suficientemente precipitado comprar o livro em branco e ele tinha
jurado a ele mesmo nunca mais se aproximar daquele lugar. Mas
no instante em que ele permitiu que seus pensamentos
divagassem, seus pés, por vontade própria, o trouxeram
novamente para a loja. Era exatamente para evitar impulsos
suicidas deste tipo que ele tentara se proteger evitando de abrir o
diário. Ao mesmo tempo, ele notou que apesar de já serem quase
vinte e uma horas, a loja ainda estava aberta. Com a sensação de
que ele seria menos suspeito dentro da loja do que parado na
frente dela, ele entrou pela porta. Se questionado, ele poderia
sempre usar a desculpa de que estava tentando comprar lâminas
de barbear.
O proprietário tinha acabado de acender uma lamparina a óleo
que emitia um cheiro impuro, mas amigável. Ele era um homem
de aproximadamente sessenta anos, frágil e curvado, com um
nariz longo e benevolente e olhos suaves distorcidos por óculos
grossos. Seu cabelo era quase branco, mas suas sobrancelhas
eram grossas e ainda escuras. Seus óculos, seus movimentos
suaves e minuciosos e a jaqueta envelhecida de veludo preta que
usava, davam-lhe um certo ar intelectual, como se ele tivesse sido
uma espécie de homem literário, ou talvez um músico. Sua voz
era suave, como se estivesse murchando, e seu sotaque menos
acentuado do que o da maioria dos proletários.
– Eu o reconheci quando ainda estava na rua – disse ele
imediatamente. –Você é o cavalheiro que comprou o álbum de
recordações para moças. Era feito de um belíssimo papel. Era
chamado vergê creme. Não se faz mais um papel assim há... eu
ouso dizer uns cinquenta anos. – Ele espreitava Winston por cima
de seus óculos. – Você gostaria de algo especial? Ou você só está
dando uma olhada?
– Eu estava passando – disse Winston vagamente. – E resolvi
entrar para dar uma olhada. Não procuro nada em particular.
– Que bom - respondeu o dono da loja –, porque eu acho que não
teria como satisfazer o seu desejo – disse ele gesticulando com
sua mão suave de forma a se desculpar. – Você vê, é uma loja
vazia, não tenho mais nada antigo. Aliás, aqui entre nós, o
comércio de antiguidades está quase se extinguindo. Não há mais
demanda nem estoque. Móveis, porcelanas, vidros, tudo foi sendo
quebrado aos poucos. E, claro, o metal foi, em sua maior parte,
derretido. Não vejo um castiçal de latão há anos.
A loja minúscula estava desconfortavelmente cheia, mas não
tinha quase nada de valor. O espaço no piso era muito restrito,
pois ao redor de todas as paredes estavam empilhadas inúmeras
molduras empoeiradas. Na janela havia bandejas com porcas e
parafusos, formões gastos, canivetes com lâminas quebradas,
relógios quebrados que nem sequer pareciam estar em ordem, e
outras porcarias diversas. Apenas em uma pequena mesa no canto
havia algumas coisas que poderiam ser interessantes - caixas de
rapé laqueadas, broches de ágata e similares. Enquanto Winston
caminhava em direção à mesa, se deparou com uma coisa redonda
que brilhava suavemente à luz do lampião e a pegou.
Era um pedaço pesado de vidro, curvo de um lado, plano do
outro, formando quase uma meia lua. Tanto a cor quanto a textura
do vidro tinham uma certa suavidade peculiar, como a da água da
chuva. No seu centro, ampliado pela superfície curva, havia um
objeto estranho, rosado, enrolado, que lembrava uma rosa ou uma
anêmona marinha.
– O que é isso? – perguntou Winston fascinado.
– Isto é um coral – disse o velho. – Deve ter vindo do Oceano
Índico. Eles meio que embutiam ele em vidro. Isso tem pelo
menos uns cem anos. Talvez mais, pelo aspecto que tem.
– É lindo – disse Winston.
– É, é lindo – disse o outro apreciando o objeto.
– Mas hoje em dia não tem muita gente que aprecie este tipo de
objeto – Ele tossiu. – Se você tiver interesse, custa quatro dólares.
Ainda me lembro de quando eu poderia vender algo assim por
oito libras, e oito libras era – bem, não sei disser exatamente
quanto valia, mas posso dizer que era muito dinheiro. Mas quem
se importa com as antiguidades genuínas hoje em dia, mesmo as
poucas que restam?
Winston pagou imediatamente os quatro dólares e enfiou o
cobiçado objeto em seu bolso. O que o atraiu não foi tanto sua
beleza, mas seu aspecto antigo associado ao fato de ter pertencido
a uma época bem diferente da atual. O vidro macio como a água
da chuva era diferente de qualquer outro vidro que ele jamais
havia visto. O objeto era duplamente atraente por sua aparente
inutilidade, embora fosse possível adivinhar que ele fora feito
para ser utilizado como peso de papel. Era muito pesado no bolso,
mas felizmente não fazia muito volume. A posse de um objeto
como este era, para um membro do Partido, algo estranho e até
mesmo comprometedor. Qualquer coisa antiga, e por isso mesmo
qualquer coisa bonita, era sempre levemente suspeita. O velho
tinha ficado visivelmente feliz ao receber os quatro dólares.
Winston percebeu que ele teria aceitado três ou até dois.
– Há outra sala lá em cima que você talvez queira dar uma olhada
– disse ele. – Não tem muita coisa lá, apenas algumas poucas
peças. Iremos com uma outra lamparina, caso queira dar uma
subida.
Ele acendeu outra lamparina e, com as costas curvadas, subiu
lentamente as escadas íngremes e desgastadas, atravessou uma
pequena passagem e entrou em uma sala que não dava para a rua,
mas para um pátio e um mar de chaminés. Winston notou que os
móveis ainda estavam dispostos como se o quarto ainda fosse
habitado. Havia uma faixa de tapete no chão, um ou dois quadros
nas paredes e uma cadeira de braços profunda, ao lado da lareira.
Um relógio de vidro antigo, com um mostrador de doze horas,
fazia tic-tac sobre o parapeito da lareira. Sob a janela, e ocupando
quase um quarto do quarto, estava uma cama enorme com o
colchão ainda sobre ela.
– Vivemos aqui até a morte de minha esposa – disse o velho
quase se desculpando. – Estou vendendo os móveis aos poucos.
Essa é uma linda cama de mogno, ou pelo menos seria se fosse
possível tirar o cupim dela. Mas ouso dizer que você a acharia um
pouco grande demais.
Ele segurava a lamparina no alto, de modo a iluminar toda a sala,
e na luz quente e fraca, o lugar parecia especialmente
convidativo. Pela cabeça de Winston passou imediatamente a
ideia de que provavelmente seria muito fácil alugar o quarto por
alguns dólares por semana, se ele se atrevesse a correr o risco. Era
uma ideia maluca, impossível, feita para ser abandonada assim
que pensada; mas o quarto despertou nele uma espécie de
nostalgia, uma espécie de memória ancestral. Ele teve a sensação
de que sabia exatamente como era sentar-se em uma sala como
esta, em uma cadeira de braços ao lado de uma lareira acessa,
com os pés próximos do fogo e uma chaleira fervendo água;
totalmente sozinho, totalmente seguro, sem ser observado por
ninguém, sem ser perseguido por qualquer voz, sem quaisquer
outros sons a não ser o apito da chaleira e o tique-taque amigável
do relógio.
– Não tem teletela! – Winston não pôde evitar o comentário.
– Ah – disse o velho –, eu nunca tive uma coisa dessas. Muito
caro. E eu nunca senti necessidade disso, de forma alguma.
Aquela é uma bela mesa com abas ali no canto. Embora, é claro,
seja necessário colocar novas dobradiças nela para poder usar as
abas.
No outro canto, havia uma pequena estante de livros e Winston já
havia caminhado em direção a ela. Não continha nada além de
lixo. A caça e destruição dos livros tinham sido feitas nos bairros
populares com o mesmo rigor que em qualquer outro lugar. Era
muito improvável que existisse em qualquer lugar de Oceânia
uma cópia de um livro impresso antes de 1960. O velho homem,
ainda carregando a lâmpada, estava de pé diante de um quadro em
uma moldura de pau-rosa que estava pendurado do outro lado da
lareira, em frente à cama.
– Agora, se por acaso você estiver interessado em gravuras
antigas...– ele começou falando delicadamente.
Winston parou para examinar o quadro. Era uma gravura em aço
de um edifício oval com janelas retangulares e uma pequena torre
na frente. Havia uma grade em volta do edifício e, na extremidade
traseira, havia o que parecia ser uma estátua. Winston olhou para
ela por alguns momentos. Parecia vagamente familiar, embora ele
não se lembrasse da estátua.
– A moldura está presa à parede – disse o velho homem –, mas eu
poderia soltá-la para você, eu acho.
– Eu conheço aquele prédio – disse finalmente Winston. – Agora
é uma ruína. Está no meio da rua, do lado de fora do Palácio da
Justiça.
– É isso mesmo. Do lado de fora dos Tribunais de Justiça. Foi
bombardeado em... ah... há muitos anos. Foi uma igreja por algum
tempo, St. Clement Danes, se chamava. – Ele sorriu desculpando-
se, como se estivesse consciente de que iria dizer algo um pouco
ridículo e acrescentou: – Laranja e limão sem semente, dizem os
sinos de São Clemente!
– O que é isso? – perguntou Winston.
– ‘Laranja e limão sem semente, dizem os sinos de São
Clemente’. Essa era uma rima que cantávamos quando eu era um
menino. Não me lembro como continuava, mas lembro como
acabava: ‘Deite e vá nanar, ou a Cuca vai te pegar’. Era uma
espécie de dança, também, como se fosse uma quadrilha. Todos
estendiam os braços para você passar por baixo e quando a
música chegava em ‘ou a Cuca vai te pegar’ eles baixavam os
braços e te pegaram. A música tinha vários nomes de igreja.
Todas as principais igrejas de Londres estavam na música.
Winston se perguntava de que século era a igreja. Era difícil
determinar a idade de um edifício londrino. Qualquer coisa
grande e impressionante, se era razoavelmente nova na aparência,
era automaticamente reivindicada como tendo sido construída
depois da Revolução, enquanto qualquer coisa que fosse
obviamente de data anterior era atribuída a algum período
obscuro, chamado Idade Média. Os séculos de capitalismo eram
considerados como não tendo produzido nada de valor. Aprender
história com a arquitetura era tão impossível quanto aprendê-la
com os livros. Estátuas, inscrições, pedras memoriais, os nomes
das ruas - qualquer coisa que pudesse dar uma ideia sobre o que
tinha sido o passado havia sido sistematicamente alterada.
– Eu nunca soube que tinha sido uma igreja – disse ele.
– Na verdade, ainda há muitas igrejas – disse o velho –, mas hoje
são usadas com outras finalidades. Espera aí.... como é mesmo
que continuava esta música? Ah! Já sei!
‘Laranja e limão sem semente, dizem os sinos de São Clemente’
Você me deve um vintém, deve sim, dizem os sinos de São
Martim.’
Bom, isso é o máximo que eu consigo lembrar. Um vintém, era
uma pequena moeda, na maior parte das vezes de cobre.
– Onde ficava São Martim? – perguntou Winston.
– São Martim? Ainda está de pé. Fica na Praça da Vitória, ao lado
da galeria de fotos. É um prédio com uma espécie de varanda
triangular e pilares na frente e uma grande escadaria.
Winston conhecia bem o lugar. Era um museu usado para
exposições de propaganda de vários tipos; modelos de bombas,
foguetes e Fortalezas Flutuantes em escala, trabalhos em cera
ilustrando atrocidades inimigas e similares.
–São Martim nos campos, costumava ser chamado assim –
completou o velho homem –, embora eu não me lembre de
nenhum campo naquela área.
Winston não comprou a foto. Teria sido uma compra ainda mais
sem sentido do que a compra do peso de papel, e teria sido
impossível de levar para casa, a menos que fosse tirada da sua
moldura. Mas ele ficou mais alguns minutos conversando com o
velho, cujo nome, ele descobriu, não era Weeks - como se
imaginava pela inscrição na frente da loja - mas Charrington. O
Sr. Charrington, ao que parece, era viúvo, tinha sessenta e três
anos e tinha a loja há trinta anos. Durante todo esse tempo, ele
sempre teve a intenção de alterar o nome na fachada, mas nunca
fez a alteração. Durante todo o tempo do bate papo, o pedaço da
rima infantil que havia sido lembrado continuava a passando pela
cabeça de Winston. Laranja e limão sem semente dizem os sinos
de São Clemente, Você me deve um vintém, deve sim, dizem os
sinos de São Martim! Era curioso, mas quando você cantava isso
para si mesmo, você tinha a impressão de realmente ouvir os
sinos, os sinos de uma Londres perdida que ainda existia em
algum lugar, disfarçada e esquecida. Ele parecia ouvir os sinos
tocando, um atrás do outro, vindo de campanários fantasmas. No
entanto, até onde ele se lembrava, nunca na vida real havia ouvido
os sinos de uma igreja tocando.
Ele se afastou do Sr. Charrington e desceu as escadas sozinho, de
modo a não deixar que o velho o visse reavaliando a rua antes de
sair pela porta. Ele já havia decidido que após um intervalo
adequado - um mês, digamos - ele correria o risco de visitar a loja
novamente. Talvez a visita não fosse mais perigosa do que andar
se esquivando à noite no Centro. A grande loucura tinha sido
voltar aqui depois de comprar o diário sem saber se o dono da loja
era confiável. No entanto...!
Sim, ele pensou novamente. Ele voltaria. Ele compraria mais
quinquilharias bonitas. Ele compraria a gravura de São Clemente,
a tiraria de sua moldura e a levaria para casa escondida sob a
jaqueta de seu macacão. Ele arrancaria o resto dessa rima da
memória do Sr. Charrington. Mesmo o projeto lunático de alugar
o quarto lá em cima, brilhou momentânea e novamente em sua
mente. Durante talvez cinco segundos a exaltação o deixou
descuidado a ponto de ele sair para a rua sem sequer dar uma
olhada pela janela antes. Ele havia até mesmo começado a
cantarolar uma melodia improvisada.
Laranja e limão sem semente, dizem os sinos de São Clemente.
Você me deve um vintém, deve sim, dizem os sinos de São
Martim.
De repente, seu coração pareceu transformar-se em gelo e suas
entranhas, em água. Uma figura de macacão azul vinha descendo
a rua, a menos de dez metros de distância. Era a garota do
Departamento de Ficção, a garota de cabelos escuros. Estava
meio escuro, mas Winston não teve dificuldade em reconhecê-la.
Ela o olhou diretamente no rosto, depois caminhou rapidamente
como se não o tivesse visto.
Por alguns segundos, Winston ficou chocado demais para se
mover. Então, ele se virou para a direita e se afastou rapidamente,
sem notar que estava indo na direção errada. Em todo caso, uma
pergunta estava respondida. Não havia mais dúvidas de que a
garota o estava espionando. Ela deve tê-lo seguido até ali porque
não era possível acreditar que, por mero acaso, ela estivesse
caminhando na mesma noite, pela mesma rua obscura, a
quilômetros de distância de qualquer bairro onde viviam os
membros do Partido. Seria uma enorme coincidência. Se ela era
realmente uma agente da Polícia do Pensamento ou simplesmente
uma espiã amadora acionada por oficialidades, pouco importava.
Já era suficiente que ela o estivesse observando. Provavelmente
ela também o tinha visto entrar no bar.
Caminhar era um esforço enorme. O peso de papel em seu bolso
batia em sua coxa a cada passo e ele já estava quase decidido a
tirá-lo e jogá-lo fora. A pior coisa era a dor na barriga. Durante
alguns minutos ele teve a sensação de que morreria se não
chegasse logo a um banheiro. Mas com certeza não havia
banheiros públicos em um bairro destes. Então o espasmo passou,
deixando uma dor chata para trás.
A rua era um beco sem saída. Winston parou e ficou ali em pé por
alguns segundos se perguntando vagamente o que fazer, depois
deu meia volta e começou a refazer seus passos. Quando ele se
virou, ocorreu-lhe que a garota só tinha passado por ele há três
minutos e que, se corresse, ele provavelmente a alcançaria. Ele
podia continuar seguindo-a até que eles estivessem em algum
lugar tranquilo, e então esmagaria a cabeça dela com um
paralelepípedo. O pedaço de vidro em seu bolso também seria
pesado o suficiente para o trabalho. Mas ele logo abandonou a
ideia, porque naquele momento ele não suportava nem o
pensamento de fazer qualquer esforço físico. Ele não podia correr,
não podia dar um golpe. Além disso, ela era jovem e forte e se
defenderia. Ele pensou também em correr para o Centro
Comunitário e ficar lá até o local fechar, a fim de estabelecer um
álibi parcial para a noite. Mas naquele momento isso também lhe
pareceu impossível. Uma paralisia mortal tinha tomado conta
dele. Tudo o que ele queria era chegar rapidamente em casa,
sentar-se e ficar quieto.
Já eram mais de dez horas da noite quando ele voltou para o
apartamento. As luzes seriam apagadas às onze e meia. Ele foi
para a cozinha e engoliu quase uma xícara inteira de Gin Vitória.
Então ele foi para a mesa no canto, sentou-se e tirou o diário da
gaveta. Mas ele não o abriu logo. Da teletela, uma voz feminina
estridente gritava uma canção patriótica. Ele sentou-se, olhando
fixamente a capa marmoreada do livro, tentando sem sucesso
afastar aquela voz de sua cabeça.
Era sempre à noite que eles vinham te pegar. A coisa certa a fazer
era se matar antes que eles o pegassem. Sem dúvida, algumas
pessoas faziam isso. Muitos dos desaparecimentos tinham sido,
na verdade, suicídios. Mas era preciso muita coragem para se
matar em um mundo onde as armas de fogo ou qualquer veneno
rápido e certo, eram completamente impossíveis de se obter. Ele
pensou com uma espécie de espanto na biologia da dor e do
medo, na traição do corpo humano, que sempre se paralisa e
congela exatamente no momento em que um esforço especial é
necessário. Ele poderia ter silenciado a menina de cabelos escuros
se tivesse agido suficientemente rápido: mas exatamente por
causa da eminência do perigo, ele tinha perdido o poder de agir.
Ele percebeu que em momentos de crise não se luta contra um
inimigo externo, mas sempre contra o próprio corpo. Mesmo
agora, apesar do gin, a dor chata de estômago tornava impossível
o raciocínio lógico. E o mesmo ocorre, ele notou, em todas as
situações aparentemente heroicas ou trágicas. No campo de
batalha, na câmara de tortura, em um navio afundando, as
questões pelas quais se luta são sempre esquecidas, porque o
corpo se expande até ocupar todo o universo, e mesmo quando
não se está paralisado por medo ou gritos de dor, a vida é uma
luta momento a momento contra a fome ou o frio ou a insônia,
contra um estômago ácido ou um dente dolorido.
Ele abriu o diário. Era importante escrever alguma coisa. A
mulher na teletela tinha começado uma nova canção. Sua voz
parecia grudar em seu cérebro como cacos de vidro pontudos. Ele
tentou pensar em O’Brien, para quem, ou por quem, o diário
estava sendo escrito, mas em vez disso começou a pensar nas
coisas que aconteceriam com ele depois que a Polícia do
Pensamento o levasse embora. Não importava se eles o matassem
de imediato. Ser morto era o esperado. Mas antes da morte
(ninguém falava sobre isso, apesar de todos saberem) havia a
rotina da confissão que tinha que ser feita: o rastejar no chão e
gritar por misericórdia, o barulho dos ossos se quebrando, os
dentes arrancados e os tufos de cabelos ensanguentados.
Por que era preciso suportar isso se o fim seria o mesmo? Por que
não era possível simplesmente pular alguns dias ou semanas da
sua vida? Ninguém jamais escapou de ser detido e ninguém
jamais deixou de confessar. Quando você sucumbe ao crime de
pensamento, era certo que em algum momento você seria morto.
Por que então esse horror – que não mudava nada – tinha que
ficar embutido no futuro?
Ele tentou, com um pouco mais de sucesso do que antes,
convocar a imagem de O’Brien. ‘Vamos nos encontrar onde não
há escuridão’, O’Brien havia dito a ele. Ele sabia o que isso
significava, ou achava que sabia. O lugar onde não há escuridão
era o futuro imaginado, que nunca se veria, mas que, de antemão,
se poderia compartilhar misticamente. Mas, com a voz da teletela
incomodando seus ouvidos, ele não podia seguir adiante na sua
linha de raciocínio. Ele colocou um cigarro em sua boca. Metade
do tabaco caiu imediatamente sobre sua língua, um pó amargo
que era difícil de cuspir. O rosto do Big Brother surgiu em sua
mente, apagando o de O’Brien. Assim como havia feito alguns
dias antes, ele tirou uma moeda do bolso e olhou para ela. O rosto
olhava para ele, pesado, calmo, protetor: mas que tipo de sorriso
estava escondido sob o bigode escuro? Como uma condolência,
as palavras voltaram a sua mente:
GUERRA É PAZ
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
IGNORÂNCIA É FORÇA

Notas:
1 As características do rosto sanguíneo são: rostos hexagonais ou losangulares.
Com maçãs destacadas, boca larga e nariz pronunciado
Parte II

Capítulo 1

Lá pelo meio da manhã, Winston deixara seu posto de trabalho


para ir ao banheiro.
Uma figura solitária se aproximava dele, vindo do outro extremo
do longo corredor brilhantemente iluminado. Era a garota de
cabelos escuros. Quatro dias haviam se passado desde a noite em
que ele a encontrou na rua, próximo à loja de quinquilharias.
Quando ela chegou mais perto, ele viu que seu braço direito
estava em uma tipoia, que não era possível ver à distância porque
tinha a mesma cor do macacão que ela usava. Ela provavelmente
tinha prensado sua mão enquanto manuseava um dos grandes
caleidoscópios nos quais as tramas dos romances eram montadas.
Esse era um acidente comum no Departamento de Ficção.
Eles estavam a mais ou menos quatro metros de distância quando
a garota tropeçou e caiu quase que de cara no chão. Ela deu um
grito alto de dor. Deve ter caído bem sobre o braço ferido.
Winston parou por um tempo. A garota começou a se levantar,
ficando de joelhos. O rosto dela estava agora amarelo-leitoso,
destacando sua boca, mais avermelhada do que nunca. Seus olhos
olhavam fixamente os dele, com uma expressão apelativa que
parecia mais medo do que dor.
Um sentimento curioso tomou o coração de Winston. Na sua
frente estava um inimigo que tentava matá-lo; na sua frente,
também estava uma criatura humana, em dor e talvez com um
osso quebrado. Ele já havia instintivamente caminhado em sua
direção para ajudá-la. No momento em que ele a viu cair sobre o
braço enfaixado, foi como se ele tivesse sentido a dor em seu
próprio corpo.
– Você se machucou? – perguntou ele.
– Não é nada. Meu braço. Vai ficar tudo bem em um segundo.
Ela falou como se seu coração estivesse disparado. Ela tinha
empalidecido.
– Você não quebrou nada?
– Não, eu estou bem. Doeu por um momento, só isso.
Ela estendeu sua mão livre para ele e ele a ajudou a levantar. Ela
tinha recuperado um pouco de sua cor e parecia muito melhor.
– Não é nada – repetiu ela logo na sequência. – Eu só dei uma
pequena pancada em meu pulso. Obrigada, camarada!
E com isso ela caminhou na direção em que estava indo, tão
rapidamente como se realmente não tivesse sido nada. O
incidente inteiro não demorou nem meio minuto. Não deixar os
sentimentos aparecerem no rosto era um instinto e, de qualquer
forma, eles estavam em frente a uma teletela quando a coisa
aconteceu. No entanto, tinha sido muito difícil não trair uma
surpresa momentânea, pois nos dois ou três segundos em que ele
a ajudava, a garota tinha colocado discretamente algo em sua
mão. Não havia dúvidas de que ela havia feito isso
intencionalmente. Era algo pequeno e plano. Ao passar pela porta
do banheiro, ele o colocou em seu bolso e o sentiu com as pontas
dos dedos. Era um pedaço de papel dobrado em um quadrado.
Enquanto ele estava no mictório, conseguiu, com um pouco mais
de dedos, desdobrar o papel. É claro que deveria haver uma
mensagem escrita nele. Por um momento, ele foi tentado a levá-lo
para uma das cabines fechadas e lê-lo imediatamente. Mas isso
seria certamente uma loucura, como ele bem sabia. Não havia
lugar mais provável de ter uma vigia constante das teletelas.
Ele voltou para sua estação de trabalho, sentou-se, jogou o
pequeno papel casualmente entre os outros papéis sobre a mesa,
colocou seus óculos e virou o ditógrafo na sua direção. ‘Cinco
minutos’, disse ele mesmo, ‘cinco minutos no mínimo’. Seu
coração batia em seu peito com um som assustador. Felizmente, o
trabalho que ele estava fazendo era apenas rotina, a retificação de
uma longa lista de figuras, não precisando de muita atenção.
O que quer que estivesse escrito no papel, devia ter algum tipo de
significado político. Até onde ele pôde ver, existiam duas
possibilidades. Uma, muito mais provável, era que a garota fosse
uma agente da Polícia do Pensamento, exatamente como ele
temia. Ele não sabia por que a Polícia do Pensamento entregaria
suas mensagens de tal forma, mas talvez eles tivessem suas
razões. O que estava escrito no papel poderia ser uma ameaça,
uma intimação, uma ordem para cometer suicídio, uma armadilha.
Mas havia outra possibilidade mais radical que continuava
invadindo sua mente, embora ele tentasse em vão suprimi-la. Isto
era, que a mensagem não vinha da Polícia do Pensamento, mas de
algum tipo de organização obscura. Talvez a Irmandade existisse,
afinal de contas! Talvez a garota fizesse parte dela! Sem dúvida, a
ideia era absurda, mas ela havia surgido em sua mente no exato
instante em que sentira o pedaço de papel em sua mão. Só alguns
minutos depois é que a outra explicação, mais provável, lhe havia
ocorrido. E mesmo agora, embora seu intelecto lhe dissesse que a
mensagem provavelmente significava morte - ainda assim, não
era isso que ele acreditava, e a esperança irracional persistia, e seu
coração batia, e foi com dificuldade que ele impediu que sua voz
tremesse enquanto murmurava seus textos para o ditógrafo.
Ele enrolou o pacote de trabalho feito e o colocou dentro do tubo
pneumático. Oito minutos haviam se passado. Ele reajustou seus
óculos no nariz, suspirou e puxou o lote de trabalho seguinte em
sua direção, com o bilhete em cima dele. Ele o abriu. Nele estava
escrito, com uma grande caligrafia não irregular:
EU TE AMO.
Durante alguns segundos ele ficou atordoado demais até mesmo
para jogar a coisa incriminatória no buraco da memória. Quando a
jogou, embora conhecesse muito bem o perigo de mostrar muito
interesse, não pôde resistir e o leu novamente, apenas para ter
certeza de que as palavras estavam realmente lá.
Durante o resto da manhã, foi muito difícil trabalhar. Pior do que
ter que focar sua mente em uma série de trabalhos precários, era a
necessidade de esconder sua agitação da teletela. Ele sentiu como
se um fogo estivesse ardendo em sua barriga. O almoço na
cantina quente, lotada e barulhenta era um tormento. Ele esperava
ficar sozinho por algum tempo durante a hora do almoço, mas,
por azar, o imbecil do Parsons despencou ao seu lado, com um
cheiro de suor que quase superava o cheiro metálico do cozido, e
desatou a falar sobre os preparativos para a Semana do Ódio. Ele
estava particularmente entusiasmado com um modelo de papel
machê da cabeça do Big Brother, de dois metros de largura, que
estava sendo feito para a ocasião pela tropa dos Espiões de sua
filha. O irritante era que no meio de tantas vozes, Winston mal
podia ouvir o que Parsons dizia e tinha que pedir constantemente
para que ele repetisse alguma observação fútil. Ele viu a garota
dos cabelos escuros apenas uma vez, em uma mesa com duas
outras meninas, ao fundo da sala. Parecia que ela não o tinha
visto, e ele não olhou naquela direção novamente.
A tarde foi mais tolerável. Logo depois do almoço, chegou um
trabalho delicado e difícil que levaria várias horas e exigia deixar
todo o resto de lado. Consistia em falsificar uma série de
relatórios produzidos dois anos atrás, de modo a lançar o
descrédito sobre um membro proeminente do Núcleo do Partido,
sobre quem, no momento pairavam dúvidas. Este era o tipo de
coisa em que Winston era bom, e por mais de duas horas ele
conseguiu tirar a garota de sua mente por completo. Então a
memória de seu rosto voltou, e com ela um desejo louco e
insuportável de ficar sozinho. Até que ele pudesse ficar sozinho,
era impossível pensar neste novo acontecimento. Aquela noite era
mais uma de suas noites no Centro Comunitário. Ele engoliu
outra refeição insossa na cantina, correu para o Centro, participou
da solene tolice de um ‘grupo de discussão’, jogou duas partidas
de ping-pong, engoliu vários copos de gin e sentou-se por meia
hora para assistir uma palestra intitulada ‘Socing em relação ao
xadrez’. Sua alma se encheu de tédio, mas ele não tinha tido
sequer um impulso para se esquivar de sua noite no Centro. Ao
ver as palavras EU TE AMO, o desejo de permanecer vivo havia
brotado nele e, de repente, a tomada do menor risco lhe pareceu
estúpida. Ele não foi capaz de pensar no acontecimento antes das
vinte e três horas, quando já estava em casa e na cama - na
escuridão, onde estava a salvo até mesmo da teletela, desde que se
mantivesse em silêncio.
Era um problema físico que tinha que ser resolvido: como entrar
em contato com a garota e marcar um encontro. Ele já não
considerava mais a possibilidade de ela estar armando uma
enrascada para ele. Ele sabia disso pois tinha notado a inquietação
inconfundível dela ao lhe entregar o bilhete. Obviamente, ela
também tinha ficado assustada. Nem mesmo a ideia de recusar a
iniciativa da garota lhe passou pela cabeça. Apenas cinco noites
atrás ele havia pensado em esmagar a cabeça dela com um
paralelepípedo, mas agora isso não tinha importância. Ele
imaginou aquele corpo jovem e nu, como ele havia visto em seu
sonho. Ele a havia imaginado uma tola como todas as outras, sua
cabeça recheada de mentiras e ódio, sua barriga cheia de gelo.
Uma espécie de febre o tomou ao pensar que ele poderia perdê-la,
seu corpo jovem e branco poderia fugir dele! O que ele mais
temia era que ela simplesmente mudasse de ideia caso ele não
entrasse em contato com ela rapidamente. Mas a dificuldade
física de se encontrar era enorme. Era como tentar fazer um
movimento no xadrez quando você já estava em xeque. Fosse
qual fosse seu movimento, a teletela o veria. Na verdade, todas as
formas possíveis de comunicação com ela haviam lhe ocorrido
nos cinco minutos que se seguiram à leitura da nota; mas agora,
com tempo para pensar, ele as repassou uma a uma, como se
estivesse colocando instrumentos ordenadamente enfileirados
sobre uma mesa.
Obviamente, o tipo de encontro que acontecera naquela manhã
não poderia ser repetido. Se ela trabalhasse no Departamento de
Registros seria relativamente simples, mas ele tinha apenas uma
ideia muito vaga da localização do Departamento de Ficção no
prédio, e tão pouco tinha algum pretexto para ir até lá. Se ele
soubesse onde ela morava e a que horas ela saía do trabalho, ele
poderia encontrá-la em algum lugar no caminho de casa; mas
tentar segui-la não era seguro, porque isso significaria
vagabundear fora do Ministério, o que seria suspeito. Quanto ao
envio de uma carta através dos correios, estava fora de questão.
Por uma rotina que nem sequer era secreta, todas as cartas eram
abertas em trânsito. Na verdade, poucas pessoas escreviam cartas.
Para as mensagens que ocasionalmente era necessário enviar,
havia cartões postais impressos com longas listas de frases e você
riscava as inaplicáveis, eliminando-as. De qualquer forma, ele não
sabia o nome da garota, muito menos o seu endereço. Finalmente
ele decidiu que o lugar mais seguro era a cantina. Se ele pudesse
encontrá-la em uma mesa sozinha, em algum lugar no meio da
sala, não muito perto das teletelas e com um burburinho suficiente
de conversa por toda parte - se estas condições durassem,
digamos, trinta segundos, poderia ser possível trocar algumas
palavras.
A semana seguinte inteira, foi para Winston como um sonho
inquieto. No dia seguinte, ela não apareceu na cantina até que ele
estivesse saindo, quando a sirene já tinha soado.
Presumivelmente, ela estava trabalhando em um turno posterior.
Eles passaram um pelo outro sem sequer se entreolharem. No dia
seguinte, ela estava na cantina no horário habitual, mas com
outras três garotas e bem embaixo de uma teletela. Então, durante
três dias terríveis, ela simplesmente não apareceu. O corpo e a
mente de Winston pareciam estar aflitos, com uma sensibilidade
insuportável, uma espécie de transparência, que fazia de cada
movimento, cada som, cada contato, cada palavra que ele tinha
que falar ou ouvir, uma agonia. Mesmo durante o sono, ele não
conseguia escapar completamente de sua imagem. Ele não tocou
no diário durante aqueles dias. Se havia algum alívio, era em seu
trabalho, no qual às vezes ele podia se esquecer por dez minutos
dela. Ele não tinha a menor ideia do que havia acontecido com
ela. Não havia nenhuma indagação que ele pudesse fazer. Ela
poderia ter sido vaporizada, poderia ter cometido suicídio,
poderia ter sido transferida para a outra ponta da Oceânia: pior e
mais provável de todas, ela poderia simplesmente ter mudado de
ideia e decidido evitá-lo.
No dia seguinte, ela reapareceu. Ela já não usava mais tipoia e ela
tinha uma faixa de gesso em volta do pulso. O alívio de vê-la foi
tão grande que ele não conseguiu resistir e olhou diretamente para
ela por alguns segundos. No dia seguinte, ele quase conseguiu
falar com ela. Quando ele entrou na cantina, ela estava sentada
em uma mesa bem longe da parede e estava completamente
sozinha. Era cedo e o lugar não estava muito cheio. A fila
avançou até Winston estar quase no balcão, depois parou por uns
dois minutos porque alguém na frente estava reclamando que ele
não tinha recebido sua sacarina. Mas a garota ainda estava
sozinha quando Winston segurou sua bandeja e começou a se
dirigir para a sua mesa. Ele caminhou casualmente em direção a
ela, com os olhos voltados para uma mesa além da dela. Eles
estavam a mais ou menos três metros de distância um do outro.
Ele estaria ao lado dela em mais dois segundos. Então, uma voz
atrás dele chamou:
– Smith! – Ele fingiu não ouvir. – Smith – repetiu a voz, mais
alto.
Não adiantava. Ele se virou. Um jovem de cabeça loira e cara
boba chamado Wilsher, que ele mal conhecia, o convidava com
um sorriso para um lugar vago em sua mesa. Não era seguro
recusar. Depois deste convite, ele não podia simplesmente sentar-
se à mesa com uma garota desacompanhada. Seria muito óbvio.
Ele se sentou com um sorriso amigável. O rosto loiro tolo foi
transportado para dentro dele. Winston teve uma visão dentro de
si mesmo, onde cravava um machado no meio daquela cabeça
loira. Alguns minutos depois, a mesa da garota se encheu.
Mas ela deve tê-lo visto aproximar-se dela, e talvez ela tivesse
entendido a dica. No dia seguinte, ele teve o cuidado de chegar
mais cedo. Ela estava em uma mesa praticamente no mesmo lugar
e novamente sozinha. A pessoa imediatamente à sua frente na fila
era um homem pequeno, rápido, parecido com um besouro, de
rosto plano e olhos minúsculos e suspeitos. Enquanto Winston se
afastava do balcão com sua bandeja, ele viu que o homenzinho
estava indo direto para a mesa da garota. Ele perdeu novamente
as esperanças. Havia um lugar vago em uma mesa mais distante,
mas algo na aparência do homenzinho sugeria que ele estaria
suficientemente atento ao seu próprio conforto para escolher a
mesa mais vazia. Com o coração apertado, Winston o seguiu. Não
adiantaria nada se ele não pegasse a garota sozinha. Neste
momento, ouviu-se um tremendo estrondo. O homenzinho estava
de quatro, sua bandeja havia voado, sopa e café escorriam pelo
chão. Ele começou a se levantar lançando um olhar maligno para
Winston, que ele evidentemente acreditava, teria lhe passado a
perna. Mas estava tudo bem. Cinco segundos depois, com o
coração disparado, Winston estava sentado à mesa da garota.
Ele não olhou para ela. Ele tirou as coisas de sua bandeja e
imediatamente começou a comer. Era muito importante falar pelo
menos uma vez, antes que alguém mais viesse, mas agora um
medo terrível tinha tomado conta dele. Passara uma semana desde
que ela se aproximou dele pela primeira vez. Ela poderia ter
mudado de ideia, ela com certeza tinha mudado de ideia! Era
impossível que este romance desse certo; tais coisas não
aconteciam na vida real. Ele poderia ter desistido completamente
de falar se neste momento não tivesse visto Ampleforth, o poeta
cabeludo, vagando pela sala com uma bandeja, procurando um
lugar para se sentar. À sua maneira, Ampleforth estava conectado
a Winston e certamente se sentaria à sua mesa se o visse. Havia
talvez um minuto para agir. Tanto Winston quanto a moça
estavam comendo sem parar. O que eles estavam comendo era um
cozido fino, na verdade uma sopa, de feijão branco. Em um
murmúrio baixo, Winston começou a falar. Nenhum dos dois
olhou para cima; eles seguiram colocando sopa na boca sem parar
e, entre uma colherada e outra, trocaram as poucas palavras
necessárias em vozes baixas e sem expressão facial.
– A que horas você sai do trabalho?
– Às dezoito e trinta.
– Onde podemos nos encontrar?
– Praça da Vitória, perto do monumento.
– Está cheia de teletelas.
– Não importa se houver uma multidão.
– Algum sinal?
– Não. Não venha até mim até me ver no meio de uma multidão.
E não olhe para mim. Apenas mantenha-se em algum lugar perto
de mim.
– A que horas?
– Às dezenove horas.
– Combinado.
Ampleforth não viu Winston e se sentou em outra mesa. Winston
e a garota não voltaram a falar e, na medida do possível para duas
pessoas sentadas frente a frente na mesma mesa, eles não olharam
um para o outro. A garota terminou seu almoço rapidamente e
saiu, enquanto Winston ficou para fumar um cigarro.
Winston chegou na Praça da Vitória antes da hora marcada. Ele
ficou andando ao redor da base da enorme coluna canelada, no
topo da qual a estátua do Big Brother olhava para o Sul em
direção aos céus onde ele havia derrotado os aviões eurasianos
(ou os aviões lestasianos, segundo a história há alguns anos) na
Batalha da Faixa Aérea Um. Na rua em frente a ela havia uma
estátua de um homem a cavalo que provavelmente representava
Oliver Cromwell. Cinco minutos depois da hora, a garota ainda
não tinha aparecido. Novamente Winston foi tomado por um
terrível medo. Ela não viria, ela havia mudado de ideia! Ele
caminhou lentamente até o lado Norte da praça e teve uma
espécie de prazer pálido ao identificar a Igreja de São Martim,
cujos sinos, quando tinha sinos, diziam ‘Você me deve um
vintém, deve sim’. Então ele viu a garota de pé na base do
monumento, lendo ou fingindo ler um cartaz que subia em espiral
pela coluna. Não era seguro aproximar-se dela até que mais
algumas pessoas se acumulassem por ali. Havia teletelas por
todos os lados. Mas neste momento ouviram-se gritos e veículos
pesados vindo de algum lugar à esquerda. De repente todos
pareciam estar correndo pela praça. A garota agilmente deu a
volta ao redor dos leões e se juntou à correria. Winston seguiu.
Enquanto corria, ele ouviu comentários de pessoas que gritavam
que um comboio de prisioneiros eurasianos estava passando.
Uma densa massa de pessoas já bloqueava o lado Sul da praça.
Winston, que era o tipo de pessoa que normalmente gravita na
borda externa de qualquer tipo de bagunça, empurrou, acotovelou
e se espremeu no caminho em direção ao centro da multidão.
Logo ele estava ao alcance do braço da garota, mas o caminho
estava bloqueado por um enorme proletário e uma mulher quase
igualmente enorme, presumivelmente sua esposa, que parecia
formar uma parede impenetrável de carne. Winston se mexeu de
lado e, com uma violenta força, conseguiu colocar seu ombro
entre eles. Por um momento, sentiu como se suas entranhas
estivessem sendo esmagadas entre os dois quadris musculosos;
mas então ele conseguiu passar, suando um pouco. Ele estava ao
lado da garota. Os dois estavam ombro com ombro, ambos
olhando fixamente para frente.
Uma longa fila de caminhões, com guardas com cara de madeira
armados com submetralhadoras em pé em cada esquina, passava
lentamente pela rua. Nos caminhões, pequenos homens amarelos
em uniformes esverdeados estavam de cócoras, amontoados uns
próximos dos outros. Seus tristes rostos mongóis olhavam para os
lados dos caminhões com total falta de curiosidade.
Ocasionalmente, quando um caminhão chacoalhava, ouvia-se um
tilintar de metal: todos os prisioneiros usavam algemas nos pés.
Caminhões e mais caminhões carregados de rostos tristes
passaram por ali. Winston sabia que eles estavam lá, mas os viu
apenas de vez em quando. O ombro da garota, e seu braço até o
cotovelo, foram pressionados contra o dele. A bochecha dela
estava tão perto que ele quase sentia o seu calor. Ela
imediatamente dominou a situação, assim como havia feito na
cantina. Ela começou a falar com a mesma voz sem expressão de
antes, quase sem mover os lábios, emitindo um mero murmúrio
facilmente abafado pelo barulho das vozes e pelo estrondo dos
caminhões.
– Você pode me ouvir?
– Sim.
– Você consegue tirar folga no domingo à tarde?
– Sim.
– Então escute com atenção. Lembre-se disto. Vá para a estação
de Paddington...
Com uma espécie de precisão militar que o espantou, ela delineou
o caminho que ele deveria seguir. Uma viagem ferroviária de
meia hora; virar à esquerda fora da estação; dois quilômetros ao
longo da estrada: um portão sem a barra superior; uma trilha
através de um campo; uma passagem gramada; um caminho entre
arbustos; uma árvore morta coberta com musgo. Era como se ela
tivesse um mapa dentro de sua cabeça.
– Você consegue se lembrar de tudo? – ela murmurou finalmente.
– Sim.
– Você vira à esquerda, depois à direita, depois à esquerda
novamente. E o portão não tem barra superior.
– Sim. A que horas?
– Cerca de quinze. Talvez você tenha que esperar. Chegarei lá por
outro caminho. Você tem certeza de que se lembra de tudo?
– Sim.
– Então afaste-se de mim o mais rápido que puder.
Ela nem precisa ter dito isso. Mas naquele momento, eles não
conseguiam se livrar da multidão. Os caminhões ainda estavam
passando, as pessoas ainda se saciavam estupefatas. No início,
houve algumas vaias e assobios, mas vieram apenas dos membros
do partido na multidão e logo pararam. A emoção que prevalecia
era simplesmente a curiosidade. Os estrangeiros, sejam da Eurásia
ou da Lestásia, eram como animais estranhos. Nunca eram
literalmente vistos, a não ser sob o disfarce de prisioneiros, e
mesmo como prisioneiros nunca se tinha mais do que um
vislumbre momentâneo deles. Tampouco era sabido o que
acontecia com eles, exceto pelos poucos que eram enforcados
como criminosos de guerra. Os outros simplesmente
desapareciam, presumivelmente em campos de trabalhos
forçados. Os rostos redondos de Mogol tinham dado lugar a
rostos de tipo mais europeu, sujos, barbudos e exaustos. Por cima
de bochechas murchas, olhos olharam para os olhos de Winston,
às vezes com estranha intensidade, e depois se voltavam
novamente para longe. A caravana chegava ao fim. No último
caminhão estava um homem idoso, seu rosto uma massa de
cabelos grisalhos, em pé, com os pulsos cruzados na sua frente,
como se estivesse acostumado a tê-los amarrados juntos. Estava
quase na hora de Winston e a garota se separarem. Mas, no último
momento, enquanto a multidão ainda os cercava, a mão dela
sentiu a dele e lhe deu um aperto breve.
Não foram sequer dez segundos, mas, no entanto, parecia que
suas mãos estavam juntas por muito tempo. Ele teve tempo para
aprender cada detalhe de sua mão. Ele explorou os dedos longos,
as unhas esculpidas, a palma da mão com suas calosidades, a pele
lisa sob o pulso. Apenas de senti-la era como se ele já a tivesse
visto. No mesmo instante, lhe ocorreu que ele não sabia de que
cor eram os olhos da garota. Eles eram provavelmente castanhos,
mas as pessoas com cabelos escuros às vezes tinham olhos azuis.
Virar a cabeça e olhar para ela seria uma loucura inconcebível.
Com as mãos apertadas juntas, invisíveis entre a multidão dos
corpos, eles olhavam firmemente para frente e, ao invés dos olhos
da garota, eram os olhos do prisioneiro idoso que olhavam de luto
para Winston, do meio de um emaranhado de cabelos.

Capítulo 2

Winston seguiu seu caminho pela trilha sarapintada de sol e


sombra, pisando em poças douradas pelo sol sempre que os ramos
das árvores se separavam. Sob as árvores à esquerda dele, o chão
estava encoberto por uma névoa, com jacintos silvestres. O ar
parecia lhe beijar a pele. Era dia dois de maio. De algum lugar
mais profundo na floresta, vinha o arrulho de pombas.
Ele chegou um pouco adiantado. Não tinha havido dificuldades
na viagem, e a garota era tão obviamente experiente que ele
estava menos assustado do que estaria normalmente.
Aparentemente, ela era confiável para encontrar um lugar seguro.
Em geral não se podia supor que campo era mais seguro do que a
grande cidade de Londres. Não havia teletelas, é claro, mas
sempre havia o perigo de microfones escondidos, através dos
quais sua voz poderia ser captada e reconhecida; além disso, não
era fácil fazer uma viagem sozinho sem chamar a atenção. Para
distâncias de menos de 100 quilômetros não era necessário visto
no passaporte, mas às vezes havia policiais nas estações
ferroviárias, que examinavam os papéis de qualquer membro do
Partido que encontrassem por lá e faziam perguntas incômodas.
Entretanto, nenhum policial havia aparecido, e ao sair da estação
ele se certificou, através de olhares cautelosos para trás, de que
não estava sendo seguido. O trem estava cheio de proletários em
clima de férias por causa das temperaturas agradáveis. O vagão de
madeira onde ele viajou estava lotado por uma única e enorme
família, desde uma bisavó desdentada até um bebê de um mês de
idade, que iria passar uma tarde com os parentes no campo e,
como explicaram voluntariamente a Winston, para comprar um
pouco de manteiga do mercado negro.
O caminho se alargou e em um minuto ele chegou à trilha que ela
havia descrito, uma mera picada de gado no meio do mato. Ele
não tinha relógio, mas ainda não podiam ser quinze horas. Eram
tantos jacintos no chão que era impossível não pisar neles. Ele se
abaixou e começou a colher alguns para passar o tempo, e
também porque gostaria de ter um ramo de flores para presentear
a garota quando se encontrassem. Ele já tinha colhido um grande
buquê de jacintos e sentia seu delicioso perfume quando um som
às suas costas o congelou; o estalido inconfundível de um pé
pisando sobre galhos. Ele continuou colhendo jacintos. Era a
melhor coisa a se fazer. Podia ser a garota ou ele podia ter sido
seguido. Olhar em volta levantaria suspeitas. Ele continuou
colhendo flores. De repente sentiu uma mão leve em seu ombro.
Ele olhou para cima. Era a garota. Ela balançou a cabeça,
avisando que ele devia ficar em silêncio, depois separou os
arbustos e rapidamente abriu caminho ao longo da estreita trilha
para a floresta. Ela claramente já tinha estado lá antes, pois se
esquivava dos trechos pantanosos como que por hábito. Winston
seguiu-a, ainda segurando seu buquê de flores. Sua primeira
sensação foi de alívio, mas enquanto observava o forte corpo
esbelto se movendo à sua frente, com a faixa escarlate apertada o
suficiente na cintura para destacar a curva dos quadris da garota,
pesou sobre ele o sentimento de sua própria inferioridade. Ainda
agora lhe parecia muito provável que, ao final, quando ela se
voltasse e olhasse para ele, ela voltaria para trás. A doçura do ar e
o verde das folhas o assustavam. Já na caminhada da estação, o
sol de maio o fez sentir-se sujo, uma criatura que nunca saía ao ar
livre e que carregava a poluição de Londres nos poros de sua pele.
Ocorreu-lhe que até agora ela provavelmente nunca o tinha visto
à luz do dia, ao ar livre. Eles chegaram na árvore caída que ela
havia mencionado. A garota saltou e forçou os arbustos,
separando-os, apesar de ali não parecer haver qualquer abertura.
Quando Winston a seguiu, ele descobriu que eles estavam em
uma clareira natural, uma pequena área de grama cercada por
plantas altas, que a fechavam completamente. A garota parou e
virou-se.
– Aqui estamos nós – disse ela.
Ele estava de frente para ela, a vários passos de distância. Ele não
ousava se aproximar mais dela.
– Eu não queria dizer nada na trilha – continuou ela –, caso
houvesse um microfone escondido lá. Suponho que não haja, mas
pode haver. Há sempre a chance de um desses canalhas
reconhecer sua voz. Aqui estamos seguros.
Ele ainda não tinha coragem para se aproximar dela.
– Estamos seguros aqui? – repetiu ele estupidamente.
– Sim. Olhe para as árvores.
Eram pequenos freixos, que em algum momento haviam sido
cortados e haviam brotado novamente, criando uma verdadeira
floresta de árvores com troncos finos, nenhum tronco mais grosso
do que um pulso.
– Não há nada grande o suficiente para esconder um microfone.
Além disso, eu já estive aqui antes.
Eles estavam jogando conversa fora. Então, ele criou coragem
para se aproximar dela. Ela estava diante dele totalmente ereta,
com um sorriso no rosto que parecia levemente irônico, como se
ela estivesse se perguntando por que ele era tão lento para agir. Os
jacintos tinham caído em cascata no chão. Pareciam ter caído por
vontade própria. Ele pegou a mão dela.
– Você acredita – disse ele – que, até este momento eu não sabia
de que cor eram seus olhos? – Eles eram castanhos, ele notou, um
tom bastante claro de marrom, com pestanas escuras. – Agora que
você viu como eu realmente sou, ainda pode suportar olhar para
mim?
– Sim, facilmente.
– Tenho trinta e nove anos de idade. Tenho uma esposa da qual
não consigo me livrar. Tenho veias varicosas. Eu tenho cinco
dentes falsos.
– Eu não poderia me importar menos com isso – disse a moça.
No momento seguinte, sem que ele notasse como exatamente
tinha ocorrido, ela estava em seus braços. No início, ele não tinha
nenhum sentimento, a não ser pura incredulidade. O corpo jovem
estava pressionado contra o seu, a massa de cabelos escuros
estava contra seu rosto, e sim! Na verdade, ela tinha virado seu
rosto para cima e ele estava beijando sua boca grande e vermelha.
Ela havia colocado seus braços em torno do pescoço dele, ela o
chamava de querido, tesouro, amor. Ele a puxou para o chão, ela
não resistia a nada, ele podia fazer o que quisesse com ela. Mas a
verdade era que ele não tinha nenhuma sensação física, exceto a
de mero contato. Tudo o que ele sentia era incredulidade e
orgulho. Ele estava feliz por isso estar acontecendo, mas não tinha
nenhum desejo físico. Era muito cedo, sua juventude e beleza o
assustavam, ele estava muito acostumado a viver sem mulheres -
ele não sabia o porquê. A garota se levantou e tirou um jacinto do
cabelo. Ela se sentou contra ele, colocando os braços dele em
volta de sua cintura.
– Não importa, meu amor. Não tem pressa. Temos a tarde inteira.
Este esconderijo não é esplêndido? Encontrei-o quando me perdi
uma vez em uma caminhada comunitária. É possível ouvir
alguém chegando a cem metros de distância.
– Qual é o seu nome? – perguntou Winston.
– Júlia. Eu sei o seu. É Winston. Winston Smith.
– Como você descobriu meu nome?
– Espero ser melhor em descobrir as coisas do que você, meu
amor. Diga-me, o que você achava de mim antes do dia em que
lhe dei o bilhete?
Ele não se sentiu nem um pouco tentado a contar mentiras para
ela. Começar contando o pior era até uma espécie de prova de
amor.
– Eu odiava a sua visão – disse ele. – Eu queria te estuprar e
depois te matar. Há duas semanas, pensei seriamente em esmagar
sua cabeça com um paralelepípedo. Se você realmente quer saber,
eu imaginei que você tinha alguma ligação com a Polícia do
Pensamento.
A garota riu com prazer, evidentemente tomando isto como um
elogio à excelência de seu disfarce.
– A Polícia do Pensamento não! Você não pensou realmente isso,
né?
– Bem, talvez não exatamente isso. Mas por sua aparência geral...
simplesmente porque você é jovem e saudável... você entende...
eu pensei que provavelmente...
– Você pensou que eu era um bom membro do Partido. Pura em
palavras e atos. Banners, procissões, slogans, jogos, caminhadas
comunitárias, tudo isso. E você pensou que se eu tivesse a menor
chance, eu o denunciaria como um criminoso do pensamento e o
mandaria para a morte?
– Sim, algo desse tipo. Muitas garotas são assim, sabe...
– É essa maldita coisa que faz isso – disse ela arrancando a faixa
escarlate da Liga Juvenil Antissexo e atirando-a sobre um galho.
Então, como se tocar sua cintura a tivesse lembrado de algo, ela
colocou a mão no bolso de seu macacão e tirou uma pequena
barra de chocolate. Ela a quebrou ao meio e deu um pedaço para
Winston. Mesmo antes de colocá-la na boca, ele sabia pelo cheiro
que era um chocolate muito incomum. Era escuro e brilhante e
estava envolto em papel prateado. Normalmente, os chocolates
eram foscos e farinhentos, com sabor, até onde se pode descrever
isto, de fumaça de lixo quando queima. Mas ele já havia provado,
uma vez ou outra, chocolate como aquele que ela havia lhe dado.
O cheiro daquele chocolate despertou nele alguma memória que
ele não conseguia reprimir, mas que era poderosa e perturbadora.
– Onde você conseguiu isso? –Disse ele.
– No mercado negro – disse ela indiferente. – Na verdade, quem
me vê acha mesmo que eu sou esse tipo de garota. Eu sou boa em
jogos. Eu era líder de tropas nos Espiões. Faço trabalho
voluntário três noites por semana para a Liga Juvenil Antissexo.
Já passei horas e mais horas colando sua maldita faixa vermelha
por Londres inteira. Sempre carrego uma ponta de um estandarte
nas procissões. Sempre pareço alegre e nunca me esquivo de
nada. Meu conselho é: ‘sempre grite com a multidão’. É a única
maneira de estar seguro.
O pedaço de chocolate derreteu na boca de Winston. O sabor era
maravilhoso. Mas ainda havia aquela memória que estava prestes
a entrar em sua zona de consciência, algo fortemente sentido, mas
que não assumia um formato claro, como um objeto que se vê de
canto de olho. Ele afastou a memória, consciente apenas de que se
tratava de alguma ação que ele gostaria de desfazer, mas não
podia.
– Você é muito jovem – disse ele. – Você deve ser dez ou quinze
anos mais nova do que eu. O que você viu em mim que te atraiu?
– Foi algo em seu rosto. Eu pensei em arriscar. Sou boa em
identificar pessoas que não pertencem ao grupo. Assim que te vi,
soube que estava contra ELES.
ELES, ao que parece, significava o Partido, mais exatamente o
Núcleo do Partido, sobre o qual ela falou com um ódio tão aberto
e zombador que fez Winston sentir-se inquieto, embora ele
soubesse que ambos estavam seguros aqui, se é que era possível
estar seguro em algum lugar. Uma coisa que o espantou sobre ela
foi a forma rude de sua linguagem. Os membros do partido não
deveriam jurar ou praguejar; o próprio Winston muito raramente
o fazia e, ainda assim, nunca em voz alta. Júlia, entretanto,
parecia incapaz de mencionar o Partido, e especialmente o Núcleo
do Partido, sem usar o tipo de palavras que se podia encontrar
pichadas em paredes de becos escuros. Ele não desgostou. Era
apenas um sintoma de sua revolta contra o Partido e todas as suas
metodologias, e de alguma forma parecia natural e saudável,
como o espirro de um cavalo que sente o cheiro de feno ruim.
Eles tinham saído da clareira e caminhavam de novo pela sombra
salpicada, com os braços na cintura um do outro sempre que o
caminho era largo o suficiente. Ele notou o quanto a cintura dela
parecia mais macia agora que a faixa tinha desaparecido. Eles não
falavam, apenas sussurravam. Júlia dizia que fora da clareira era
melhor ir em silêncio. Eles chegaram na borda da pequena
floresta. Ela o deteve.
– Não saia para a área descampada. Pode ter alguém observando.
Ficaremos bem se nos mantivermos atrás dos arbustos.
Eles estavam à sombra de uma árvore de avelãs. A luz do sol,
mesmo sendo filtrada por inúmeras folhas, ainda se sentia quente
em seus rostos. Winston olhou para o campo a frente e, chocado,
o reconheceu lentamente. Ele já tinha visto aquele campo... Um
pasto velho e bem próximo, cortado por uma trilha e com um
buraco de toupeira aqui e outro ali. Na cerca viva falha do lado
oposto do campo, os ramos das árvores balançavam suavemente
com a brisa e suas folhas se agitando em ondas como os cabelos
de uma mulher. Certamente em algum lugar próximo, embora
fora de vista, havia um riacho claro e lento, onde pequenos peixes
nadavam...
– Não tem um riacho em algum lugar perto daqui? – ele
sussurrou.
– É isso mesmo, tem um riacho. Na verdade, ele está na borda do
próximo campo. Nele há peixes enormes. Você pode observá-los
nas piscinas sob os salgueiros, balançando suas nadadeiras.
– É o Campo Dourado – murmurou ele.
– O Campo Dourado
– Nada, deixa para lá, não é nada. Apenas uma paisagem que eu
vejo às vezes em um sonho.
– Olha! – sussurrou Júlia.
Um passarinho pousou em um ramo a menos de cinco metros de
distância, quase na altura de seus rostos. Talvez ele não os tivesse
visto. Estava ao sol, eles à sombra. Ele estendeu suas asas,
colocou-as cuidadosamente no lugar novamente, abaixou a
cabeça por um momento, como se estivesse fazendo uma espécie
de reverência ao sol, e então começou a derramar uma torrente de
canções. No silêncio da tarde, a altura do canto era
impressionante. Winston e Júlia se abraçaram, fascinados. A
música continuava e continuava, minuto após minuto, com
variações surpreendentes, nunca se repetindo, quase como se o
pássaro estivesse mostrando deliberadamente seus dons. Às vezes
ele parava por alguns segundos, esticava e reassentava suas asas,
depois inflava seu peito e novamente estourava em canções.
Winston o observava com uma espécie de reverência vaga. Para
quem, para quê, aquele pássaro estava cantando? Nenhum
companheiro, nenhum rival o observava. O que o fez se sentar
solitário à beira do bosque e derramar sua música no nada? Ele se
perguntava se afinal de contas havia um microfone escondido em
algum lugar próximo. Ele e Júlia haviam falado apenas em
sussurros baixos, e ele não pegaria o que eles haviam dito, mas
pegaria o canto do pássaro. Talvez na outra ponta do instrumento,
algum homem pequeno e com cara de besouro estivesse ouvindo
atentamente a tudo isso. Mas, pouco a pouco, a enxurrada de
música fez com que todas as especulações sumissem de sua
mente. Era como se algo líquido tivesse se derramado sobre ele e
se misturado com a luz do sol que passava pelas folhas. Ele parou
de pensar e apenas sentiu. A cintura da garota era macia e quente
na dobra de seu braço. Ele a girou de forma a ficarem frente a
frente, um peito colado ao outro; o corpo dela parecia se fundir no
dele. Para onde quer que suas mãos se movessem, o corpo dela
cedia. Suas bocas se agarravam; era bem diferente dos beijos
duros que haviam trocado antes. Quando voltaram a separar seus
rostos, os dois suspiravam profundamente. O pássaro se assustou
e fugiu com um tilintar de asas.
Winston colocou seus lábios na orelha dela.
– AGORA –, sussurrou ele.
– Aqui não – sussurrou ela de volta. – Volte para o esconderijo. É
mais seguro.
Rapidamente, com um ranger ocasional de galhos, eles fizeram
seu caminho de volta para a clareira. Uma vez dentro da clareira
protegida pelas árvores, ela se virou e o encarou. Os dois estavam
ofegantes, mas um sorriso havia reaparecido nos cantos de suas
bocas. Ela ficou olhando para ele por um instante, depois
procurou o zíper de seu macacão. E, aí sim! Foi quase como em
seu sonho. Quase tão rápido quanto ele havia imaginado, ela
arrancou suas roupas e, quando as jogou de lado, fez com aquele
mesmo gesto que parecia aniquilar toda uma civilização. O corpo
branco dela brilhava ao sol. Mas por um momento ele não olhou
para o corpo dela; seus olhos estavam fixos naquele rosto de
sardas com seu sorriso tênue e ousado. Ele se ajoelhou diante dela
e pegou suas mãos.
– Você já fez isso antes?
– Claro que sim. Centenas de vezes... bem, muitas vezes, pelo
menos.
– Com membros do Partido.
– Sim, sempre com membros do Partido.
– Com membros do Núcleo do Partido?
– Não, com esses canalhas não. Mas tem muitos que o FARIAM,
se tivessem qualquer chance. Eles não são tão santos quanto
parecem.
Seu coração disparou. Ela já tinha feito um monte de vezes... ele
desejava que já tivessem sido centenas, milhares! Qualquer coisa
que insinuasse corrupção sempre o enchia de uma esperança
selvagem. Quem diria! Talvez o Partido estivesse podre sob a
superfície, seu culto à tenacidade e à abnegação talvez fosse
simplesmente uma farsa que escondia a iniquidade. Se ele
pudesse ter infectado todos eles com lepra ou sífilis, teria feito
isso com muito prazer! Tudo para apodrecer, para enfraquecer,
para minar! Ele a puxou para baixo, de modo que ficassem
ajoelhados cara a cara.
– Ouça. Eu a amo mais quanto maior o número de homens que
você já teve. Você entende isso?
– Sim, perfeitamente.
– Eu odeio pureza, odeio bondade! Eu não quero que exista
nenhuma virtude em nenhum lugar. Eu quero que todos sejam
depravados até os ossos.
– Bom, então eu acho que vamos nos dar bem, querido. Eu sou
depravada até os ossos.
– Você gosta de fazer isso? Não me refiro a mim, quero dizer a
coisa por si só.
–Eu adoro isso.
Isso era tudo o que ele queria ouvir. Não apenas o amor de uma
pessoa, mas o instinto animal, o simples desejo indiferenciado.
Essa era a força capaz de acabar com o Partido. Ele a puxou para
a grama, deitando-a entre os jacintos caídos. Desta vez, não houve
dificuldade. Então, o movimento de subir e descer de seus peitos
foi diminuindo até chegar ao ritmo normal e, numa espécie de
desamparo prazeroso, eles se separaram. O sol parecia ter ficado
mais quente. Ambos estavam sonolentos. Ele procurou os
macacões jogados para o lado e os puxou parcialmente sobre ela.
Quase imediatamente eles adormeceram e dormiram por cerca de
meia hora.
Winston acordou primeiro. Ele se sentou e observou o rosto
sardento, ainda pacificamente adormecido, deitado sobre a palma
da mão de Júlia. Exceto por sua boca, não se podia chamá-la de
bonita. Olhando atentamente notava-se que ela tinha uma ou duas
linhas em volta dos olhos. O cabelo curto e escuro era
extraordinariamente grosso e macio. Ocorreu-lhe que ele ainda
não sabia seu sobrenome ou onde ela morava.
O corpo jovem e forte, agora indefeso durante o sono, despertou
nele um sentimento de piedade e proteção. Mas a ternura sem
sentido que ele havia sentido sob o pé de avelãs enquanto o
pássaro cantava, não havia voltado completamente. Ele puxou o
macacão para o lado e estudou o corpo branco suave dela. Nos
velhos tempos, ele pensou, um homem olhava para o corpo de
uma garota e via que era desejável, e isso era o fim da história.
Mas hoje em dia não se podia ter puro amor ou pura luxúria.
Nenhuma emoção era pura, porque tudo estava misturado com
medo e ódio. O envolvimento deles tinha sido uma batalha, o
clímax, uma vitória. Foi um golpe contra o Partido. Foi um ato
político.
Capítulo 3

– Podemos vir aqui mais uma vez, disse Júlia. É geralmente


seguro usar um esconderijo duas vezes. Mas não por mais um
mês ou dois, é claro.
Assim que ela acordou, seu comportamento mudou. Ela se tornou
atenta e focada no objetivo, vestiu suas roupas, amarrou a faixa
escarlate na cintura com um nó e começou a organizar os detalhes
da viagem de volta para casa. Parecia natural deixar isso com ela.
Ela obviamente tinha uma habilidade prática que faltava a
Winston e também parecia ter um conhecimento exaustivo do
campo ao redor de Londres, adquirido ao longo de inúmeras
caminhadas comunitárias. A rota que ela lhe deu era bem
diferente daquela pela qual ele tinha vindo, e o levou para uma
estação de trem diferente.
– Nunca volte para casa da mesma maneira que você saiu – disse
ela, como se estivesse ensinando um princípio importante.
Ela partiria primeiro e Winston deveria esperar meia hora antes de
segui-la.
Ela tinha indicado um lugar onde poderiam se encontrar depois
do trabalho, quatro noites depois. Era uma rua em um dos bairros
mais pobres, onde havia um mercado a céu aberto que geralmente
era lotado e barulhento. Ela ficaria andando entre as barracas,
fingindo estar procurando cadarços de sapatos ou linha de
costura. Se ela julgasse que a barra estava limpa, ela assoaria o
nariz quando ele se aproximasse; caso contrário, ele passaria por
ela fingindo que não a conhecia. Mas com sorte, no meio da
multidão, seria seguro conversar durante uns quinze minutos e
marcar outro encontro.
– Agora preciso ir –, disse ela assim que ele decorou suas
instruções. – Devo estar de volta às sete e meia. Tenho que
trabalhar duas horas para a Liga Juvenil Antissexo, distribuindo
panfletos, ou algo assim. Não é muito chato? Dá uma limpadinha
aí em mim, por favor. Tenho algum galho no cabelo? Você tem
certeza? Então tchau, meu amor, tchau!
Ela se jogou em seus braços, beijou-o quase de forma selvagem e,
um momento depois, meteu-se no meio das plantas e desapareceu
na floresta quase sem fazer nenhum barulho. E então ele percebeu
que ainda não tinha descoberto seu sobrenome ou endereço.
Entretanto, não fazia diferença, pois seria impossível para eles se
encontrarem em locais fechados ou trocarem qualquer tipo de
comunicação escrita.
Eles acabaram nunca mais voltando para a clareira na floresta.
Durante o mês de maio, houve apenas mais uma ocasião em que
eles realmente conseguiram fazer amor. Foi em outro esconderijo
conhecido por Júlia, o campanário de uma igreja em ruínas, em
um trecho quase deserto do campo, onde uma bomba atômica
havia caído trinta anos antes. Era um bom esconderijo quando se
chegava lá, mas chegar lá era muito perigoso. Fora isso, eles se
encontravam apenas nas ruas, em um lugar diferente todas as
noites e nunca por mais de meia hora. Na rua, geralmente era
possível conversar, por assim dizer. À medida que desciam pelas
calçadas lotadas, não muito próximos e sem nunca se olhar,
conduziam uma conversa curiosa e intermitente, que se acendia e
se apagava como as luzes de um farol, de repente interrompida
pelo silêncio quando se aproximavam de um uniforme do Partido
ou de uma teletela, depois retomada após alguns minutos no meio
de uma frase, depois abruptamente interrompida quando se
separavam no local combinado, continuando quase sem
introdução no dia seguinte. Júlia parecia estar bastante
acostumada a este tipo de conversa, que ela chamava de ‘conversa
a prestação’. Ela também era surpreendentemente hábil em falar
sem mexer os lábios. Apenas uma vez, em quase um mês de
encontros noturnos, eles conseguiram trocar um beijo. Eles
passavam em silêncio por uma rua lateral (Júlia nunca falava
quando eles estavam longe das ruas principais) quando ouviram
um estrondo ensurdecedor, a terra toda estremeceu e o ar
escureceu e, de repente, Winston se viu deitado de lado, ferido e
aterrorizado. Um míssil deve ter caído bem perto deles. De
repente, ele se deu conta do rosto de Júlia a alguns centímetros de
seu próprio rosto, mortalmente pálido, tão branco quanto giz. Até
os lábios dela estavam brancos. Ela estava morta! Ele a apertou
contra si mesmo e se quando notou, estava beijando um rosto
vivo e quente. Mas um pó impedia seus lábios de se tocarem
perfeitamente. Ambos os rostos estavam completamente cobertos
de gesso.
Havia noites em que eles chegavam ao ponto de encontro mas
tinham que passar um pelo outro sem dar qualquer sinal, porque a
polícia fazia guarda na esquina ou um helicóptero sobrevoava a
área. Mesmo que não fosse tão perigoso, ainda assim seria difícil
achar tempo para se encontrar. A semana de trabalho de Winston
era de sessenta horas, a de Júlia era ainda mais longa, e seus dias
livres variavam de acordo com a pressão do trabalho e muitas
vezes não coincidiam. Júlia raramente tinha uma noite
completamente livre. Ela passava uma quantidade surpreendente
de tempo participando de palestras e passeatas, distribuindo
panfletos para a Liga Juvenil Antissexo, preparando faixas para a
Semana do Ódio, fazendo coletas para a campanha de economia e
atividades deste tipo. Ela dizia que o esforço se pagava, era uma
forma de se camuflar. Se você respeitasse as pequenas regras,
você poderia quebrar as grandes. Ela até convenceu Winston a
dispor de mais uma de suas noites, inscrevendo-se para o trabalho
parcial de munição, que era feito voluntariamente por zelosos
membros do Partido. Assim, uma noite por semana, Winston
passava quatro horas de tédio paralisante, parafusando pequenos
pedaços de metal, que provavelmente eram partes de fusíveis de
bombas, em uma oficina cheia de correntes de ar, mal iluminada e
onde o som de marteladas se misturava sombriamente com a
música das teletelas.
Quando eles se encontraram no campanário da igreja, as lacunas
em sua conversa fragmentada foram preenchidas. Era uma tarde
flamejante. O ar na pequena câmara acima dos sinos estava
quente e estagnado e cheirava a excremento de pombo. Eles
conversaram por horas sentados no chão empoeirado e cheio de
galhos, um ou outro deles levantando-se de vez em quando para
dar uma olhada através das seteiras, certificando-se de que não
vinha ninguém.
Júlia tinha vinte e seis anos de idade. Ela vivia em um albergue
com outras trinta garotas (‘Sempre no fedor das mulheres! Como
eu odeio as mulheres!’, disse ela pateticamente) e ela trabalhava,
como ele havia suposto, nas máquinas de escrever romances no
Departamento de Ficção. Ela gostava de seu trabalho, que
consistia principalmente em dirigir e consertar um motor elétrico
potente, porém complicado. Ela não era ‘inteligente’, mas gostava
de usar suas mãos e se sentia em casa com as máquinas. Ela podia
descrever todo o processo de composição de um romance, desde a
diretriz geral emitida pelo Comitê de Planejamento até o retoque
final dado pelo Esquadrão de Reescrita. Mas ela não se
interessava pelo produto final. Ela ‘não se importava muito com
leitura’, ela dizia. Os livros eram apenas uma mercadoria que
tinha que ser produzida, como geleias ou cadarços de botas.
Ela não se lembrava de nada de antes dos anos sessenta e a única
pessoa que ela conhecera que falava com frequência dos dias
anteriores à Revolução, era um avô que havia desaparecido
quando ela tinha oito anos. Na escola, ela havia sido capitã da
equipe de hóquei e tinha ganho o troféu de ginástica por dois anos
consecutivos. Ela havia sido líder de tropa nos Espiões e
secretária da Liga da Juventude antes de se juntar à Liga Juvenil
Antissexo. Ela sempre tinha sido considerada como tendo um
excelente caráter. Tinha até sido escolhida - uma marca infalível
de boa reputação - para trabalhar na Pornodiv, a subseção do
Departamento de Ficção que se tornou pornografia barata para
distribuição entre os proletários. Foi apelidada de Casa da Nojeira
pelas pessoas que lá trabalhavam. Lá ela permaneceu por um ano,
ajudando a produzir livretos em pacotes selados com títulos como
Histórias de Espancamentos ou Uma noite no internato de
meninas, para serem comprados furtivamente por jovens
proletários que acreditavam estar comprando algo ilegal.
– Como são estes livros? – perguntou Winston curioso.
– Oh, um lixo abominável. Eles são realmente chatos. São só seis
histórias, que eles recortam e reaproveitam. É claro que eu só
trabalhava nos caleidoscópios. Nunca fiz parte do Esquadrão de
Reescrita. Não gosto de literatura, querido – nem o suficiente para
isso.
Ele ficou sabendo, com espanto, que todos que trabalhavam na
Pornodiv, exceto os chefes dos departamentos, eram garotas. A
teoria era que os homens, cujos instintos sexuais eram menos
controláveis que os das mulheres, corriam um risco maior de
serem corrompidos pela imundície com que lidavam.
– Eles sequer querem ter mulheres casadas lá – acrescentou ela. –
As garotas devem ser supostamente tão puras! De qualquer
forma, aqui está uma que não é.
Ela teve seu primeiro caso amoroso quando tinha dezesseis anos,
com um membro do Partido de sessenta, que mais tarde cometeu
suicídio para evitar a prisão. ‘Foi melhor assim também’, disse
Júlia, ‘caso contrário teriam arrancado meu nome dele quando ele
confessou’. Desde então, houve vários outros. Ela via a vida de
uma forma bastante simples. Você queria um bom momento;
‘eles’, ou seja, o Partido, queriam impedir que você o tivesse; era
preciso quebrar as regras da melhor forma possível. Ela parecia
pensar que era tão natural que ‘eles’ quisessem roubar seus
prazeres quanto você quisesse evitar ser pego. Ela odiava o
Partido, e dizia isso com palavras duras, mas não fazia críticas
gerais em relação a ele. Exceto quando impactava sua própria
vida, ela não tinha interesse na doutrina do Partido. Ele notou que
ela nunca usava palavras da Novilíngua, exceto aquelas que já
tinham sido aceitas no uso cotidiano. Ela nunca tinha ouvido falar
da Irmandade e se recusava a acreditar em sua existência.
Qualquer tipo de revolta organizada contra o Partido, que estava
fadada a ser um fracasso, lhe parecia uma ideia estúpida. O mais
inteligente era quebrar as regras e permanecer viva ao mesmo
tempo. Ele se perguntava vagamente quantas outras como ela
poderiam existir na geração mais jovem, pessoas que tinham
crescido no mundo da Revolução, não sabendo nada mais além,
aceitando o Partido como algo inalterável, como o céu, não se
rebelando contra sua autoridade, mas simplesmente esquivando-
se dela, como um coelho se esconde de um cão.
Eles não discutiram a possibilidade de se casar. Era muito
improvável para que valesse a pena gastar tempo pensando nisso.
Nenhum comitê jamais aprovaria tal casamento, mesmo que
Katharine, esposa de Winston, pudesse de alguma forma ter se
livrado dele. Seria inútil mesmo se fosse apenas um devaneio.
– Como era sua esposa? – perguntou Júlia.
– Ela era... Você conhece a palavra BENEPENSANTE em
Novilíngua? Significando naturalmente ortodoxo, incapaz de ter
um pensamento ruim?
– Não, eu não conheço a palavra, mas conheço o tipo de pessoa
que a palavra descreve, já é o suficiente.
Ele começou a contar a ela sobre sua vida de casado, mas
curiosamente parecia que ela já conhecia os principais detalhes.
Ela descreveu a ele, quase como se tivesse visto ou sentido, o
enrijecimento do corpo de Katharine quando ele a tocava, o jeito
como ela parecia empurrá-lo para longe com todas as suas forças,
mesmo quando o abraçava firmemente com seus próprios braços.
Com Júlia, ele não achava difícil falar sobre tais coisas. De
qualquer forma Katharine já tinha deixado de ser uma memória
dolorosa há muito tempo; agora era apenas uma memória de mau
gosto.
– Eu teria suportado se não fosse por uma coisa – disse ele.
Ele contou sobre a pequena cerimônia frígida que Katharine o
forçava a realizar todas as semanas na mesma noite.
– Ela odiava, mas nada a fazia parar com isso. Ela costumava
chamá-la... ah... você nunca adivinharia...
– Nosso dever para com o Partido – disse Júlia prontamente.
– Como você sabe disso?
– Eu também fui para a escola, querido. E uma vez por mês tinha
o ‘Conversando sobre Sexo’ para todos com mais de dezesseis. E
no Movimento Juvenil. Eles fazem lavagem cerebral em você por
anos. Eu ouso dizer que em muitos casos funciona. Mas é claro
que não dá nunca para ter certeza. As pessoas são tão hipócritas...
Ela começou a dissertar sobre o assunto. Com Júlia, tudo voltava
para a sua própria sexualidade. Sempre que este tema era de
alguma forma abordado, ela demonstrava grande sabedoria. Ao
contrário de Winston, ela tinha compreendido a essência do
significado do puritanismo sexual do Partido. Não era apenas que
o instinto sexual criava um mundo próprio que saía do controle do
Partido e que, portanto, se possível, tinha que ser destruído. O
mais importante era que a privação sexual induzia a histeria, o
que era desejável porque podia ser transformado em desejo de
guerra e adoração dos líderes. Ela colocou isso da seguinte forma:
– Quando você faz amor está consumindo energia; e depois se
sente feliz e não se importa com nada. Eles não querem que você
se sinta assim. Eles querem que você esteja sempre cheio de
energia. Toda esta marcha para cima e para baixo, aplaudindo e
agitando bandeiras é apenas sexo que azedou. Se você está feliz
consigo mesmo, por que se excitar com o Big Brother e os Planos
Trienais e os Dois Minutos de Ódio e todo o resto das bobagens
deles?
Isso era bem verdade, pensou ele. Havia uma conexão íntima
direta entre a castidade e a ortodoxia política. Pois como o medo,
o ódio e a credulidade lunática que o partido precisava em seus
membros poderiam ser mantidos no tom certo, exceto canalizando
algum instinto poderoso para usá-lo como uma força motriz? O
impulso sexual era perigoso para o partido e o partido o tinha
feito trabalhar a seu favor. Eles tinham pregado um truque
semelhante com o instinto de paternidade. A família não podia
realmente ser abolida e, de fato, as pessoas eram encorajadas a
gostar de seus filhos quase à moda antiga. As crianças, por outro
lado, eram sistematicamente colocadas contra seus pais e
ensinadas a espioná-los e a denunciar seus desvios. A família
havia se tornado, na verdade, uma extensão da Polícia do
Pensamento. Era um dispositivo através do qual todos podiam ser
observados noite e dia por informantes que o conheciam
intimamente.
Abruptamente, sua mente voltou para Katharine. Katharine teria
sem dúvida o denunciado à Polícia do Pensamento se ela não
fosse burra demais para detectar a falta de ortodoxia de suas
opiniões. Mas o que realmente fez com que ele se lembrasse dela
neste momento, foi o calor sufocante da tarde, que fazia com que
o suor neste momento escorresse por sua testa. Ele começou a
contar a Júlia algo que tinha acontecido, ou melhor, que não tinha
acontecido, em outra tarde de verão escaldante, onze anos atrás.
Aconteceu três ou quatro meses depois que se casaram. Eles
haviam se perdido do grupo em uma caminhada comunitária em
algum lugar de Kent. Ficaram apenas alguns minutos atrás dos
outros, mas fizeram uma curva errada, e logo se viram
encurralados na borda de uma velha pedreira de calcário. Era uma
queda de dez ou vinte metros, com pedras no fundo. Não havia
ninguém a quem eles pudessem perguntar o caminho. Assim que
ela percebeu que eles estavam perdidos, Katharine ficou inquieta.
Estar longe da multidão barulhenta de caminhantes, mesmo que
só por um momento, deu a ela um sentimento de estar fazendo
algo errado. Ela queria voltar depressa pelo caminho de onde eles
tinham vindo e começar a procurar na outra direção. Mas neste
momento, Winston notou alguns tufos de flores ornamentais
soltos crescendo nas fendas do penhasco abaixo deles. Um tufo
era de duas cores, magenta e vermelho tijolo, aparentemente
crescendo na mesma raiz. Ele nunca tinha visto nada do tipo antes
e chamou Katharine para vir e olhar para ele.
– Veja, Katharine! Olhe para aquelas flores. Aquela touceira perto
do fundo. Você vê que tem duas cores diferentes?
Ela já tinha se virado para ir embora, mas voltou por um
momento muito a contragosto. Ela até se inclinou sobre a borda
do penhasco para ver para onde ele estava apontando. Ele estava
um pouco atrás de Katharine e colocou sua mão na cintura dela
para estabilizá-la. Neste momento, de repente, lhe ocorreu como
eles estavam completamente sozinhos. Não havia uma criatura
humana em lugar algum, nem uma folha balançando, nem mesmo
um pássaro acordado. Em um lugar como este, o perigo de haver
um microfone escondido era muito pequeno, e mesmo que
houvesse um microfone, ele só captaria sons. Era a hora mais
quente para dormir da tarde. O sol brilhava sobre eles, o suor
fazia cócegas em seu rosto. E ele foi tomado por um
pensamento...
– Por que você não lhe deu um bom empurrão? – disse Júlia. – Eu
teria dado.
– Sim, querida, você teria dado. Eu teria, se naquela época eu
fosse a pessoa que sou agora. Ou talvez eu teria... eu não tenho
certeza.
– Está arrependido de não a ter empurrado?
– Sim. De modo geral, lamento não a ter empurrado.
Eles estavam sentados lado a lado no chão empoeirado. Ele a
puxou para mais perto dele. Ela descansou a cabeça no ombro
dele, o cheiro agradável do cabelo dela camuflando o cheiro de
excremento de pombo. Ela era muito jovem, ele pensou, ela ainda
esperava algo da vida, ela não entendia que empurrar uma pessoa
inconveniente de um penhasco não resolvia nada.
– Na verdade, isso não teria feito diferença – disse ele.
– Então por que você lamenta não ter feito isso?
– Só porque eu prefiro uma resposta positiva a um negativa.
Neste jogo que estamos jogando, não podemos ganhar. Alguns
tipos de fracasso são melhores do que outros, só isso.
Ele sentiu os ombros dela se esgueirarem, discordando. Ela
sempre o contradizia quando ele dizia algo desse tipo. Ela não
aceitava como lei da natureza que o indivíduo fosse sempre
derrotado. De certa forma, ela percebeu que ela mesma estava
condenada, que mais cedo ou mais tarde a Polícia do Pensamento
iria pegá-la e matá-la, enquanto outra parte dela acreditava que de
alguma forma era possível construir um mundo secreto no qual
fosse possível viver conforme sua escolha. Sorte, astúcia e
ousadia era tudo o que era preciso. Ela não entendia que não
havia felicidade, que a única vitória estava no futuro distante,
muito depois da sua morte, que a partir do momento que
declarasse guerra ao Partido, era melhor se imaginar como um
cadáver.
– Nós estamos mortos – ele disse.
– Ainda não estamos mortos – disse Júlia prosaicamente.
– Não fisicamente. Seis meses, um ano... talvez cinco anos. Eu
tenho medo da morte. Você é jovem, então presumivelmente você
deve ter mais medo da morte do que eu. Obviamente, vamos adiá-
la o máximo que pudermos. Mas isso faz muito pouca diferença.
Enquanto os seres humanos forem humanos, a morte e a vida
serão a mesma coisa.
– Ah, besteira! Com quem você prefere dormir, comigo ou com
um esqueleto? Você não gosta de estar vivo? Você não gosta de
sentir: este sou eu, esta é minha mão, esta é minha perna, eu sou
real, eu sou sólido, eu estou vivo! Você não gosta DISTO?
Ela se virou e apertou o peito contra ele. Ele podia sentir seus
seios, maduros mas firmes, através de seu macacão. O corpo dela
parecia estar derramando um pouco de sua juventude e vigor no
dele.
– Sim, eu gosto disso – disse ele.
– Então pare de falar em morrer. E agora ouça querido, temos que
pensar em nosso próximo encontro. Nós deveríamos voltar para a
clareira na floresta. Já faz tempo que não vamos lá. Mas é preciso
ir para lá por um caminho diferente desta vez. Eu já tenho tudo
planejado. Você pega o trem, mas veja, vou desenhar para você.
De seu jeito prático, ela limpou um pequeno quadrado com pó e,
com um galho de um ninho de pombo, começou a desenhar um
mapa no chão.

Capítulo 4

Winston deu uma olhada no pequeno cômodo que ficava em cima


da loja do Sr. Charrington. Ao lado da janela, a enorme cama
estava arrumada com cobertores já gastos e um travesseiro sem
fronha. O relógio antigo, com mostradores de doze horas, fazia
tic-tac em cima da lareira. No canto, na mesa dobrável, o peso de
papel de vidro que ele havia comprado em sua última visita
brilhava suavemente no quarto meio escuro.
Próximo à lareira, estavam um velho fogareiro a óleo, uma panela
e duas xícaras fornecidas pelo Sr. Charrington. Winston acendeu
o queimador e colocou uma panela de água para ferver. Ele tinha
trazido um pacote cheio de Café Victory e algumas pastilhas de
sacarina. Os ponteiros do relógio marcavam dezessete horas e
vinte minutos. Na realidade, já eram dezenove horas e vinte
minutos. Ela chegaria às dezenove e trinta.
Loucura, loucura, seu coração continuava dizendo: loucura
consciente, gratuita, suicida. De todos os crimes que um membro
do Partido podia cometer, este era o mais difícil de ser encoberto.
Na verdade, a ideia tinha vindo a sua mente primeiro na forma de
uma visão, do peso de papel espelhado sobre a mesa dobrável.
Como ele havia previsto, o Sr. Charrington logo concordou em
disponibilizar o cômodo. Ele estava obviamente contente com os
poucos dólares que isso lhe renderia. Nem pareceu chocado ou
ofendido quando ficou claro que Winston queria o cômodo para
encobrir uma relação amorosa. Em vez disso, ele olhou ao longe e
falou, com um ar tão sutil que deu a impressão de ter se tornado
parcialmente invisível. A privacidade, disse ele, era uma coisa
muito valiosa. Todos queriam um lugar onde pudessem estar
ocasionalmente sozinhos. E quando se encontrava este lugar, era
uma cortesia de qualquer outra pessoa que soubesse, guardar esse
conhecimento apenas para si mesmo. Ele ainda acrescentou,
parecendo quase desvanecer-se, que havia duas entradas na casa,
sendo uma delas através do pátio, que dava para uma viela.
Sob a janela, alguém cantava. Winston olhou para fora, protegido
pela cortina de musselina. O sol de junho ainda estava alto no céu
e na área ensolarada abaixo, uma mulher enorme, sólida como um
pilar normando, com antebraços vermelhos e um avental de
tecido bruto amarrado na cintura, andava de um lado para o outro
entre uma tina de lavar roupa e um varal, pendurando uma série
de coisas brancas quadradas que Winston identificou como sendo
fraldas para bebês. Sempre que sua boca não estava cheia de
pregadores, ela cantava com uma voz feminina poderosa e grave:
Era apenas uma fantasia sem fim.
Passou como um dia de abril,
Mas um olhar e uma palavra e os sonhos que
despertaram!
Levaram meu coração de mim!
A música vinha agitando Londres há semanas. Era mais uma das
canções em massa criadas para os proletários por uma subárea do
Departamento de Música. Estas canções eram compostas sem
qualquer intervenção humana, por um instrumento conhecido
como versificador. Mas a mulher estava tão afinada, que estava a
ponto de transformar o terrível lixo em um som quase agradável.
Ele podia ouvir a mulher cantando e arrastando seus chinelos nas
pedras, e ouvia os gritos das crianças na rua, e em algum lugar
distante, um leve barulho de trânsito, e ainda assim o cômodo
parecia curiosamente silencioso, graças à ausência de uma
teletela.
Loucura, loucura, loucura! Ele pensou novamente. Era
inconcebível que eles pudessem frequentar este lugar por mais de
algumas semanas sem serem pegos. Mas a tentação de ter um
esconderijo que fosse verdadeiramente seu, sob um teto e perto,
tinha sido demais para ambos. Durante algum tempo após o
encontro no campanário da igreja, havia sido impossível
organizar novos encontros. O horário de trabalho havia sido
drasticamente aumentado em antecipação à Semana do Ódio.
Ainda faltava mais de um mês para o evento, mas os enormes e
complexos preparativos necessários estavam dando trabalho extra
a todos. Finalmente, os dois tinham conseguido tirar uma tarde
livre no mesmo dia. Eles tinham concordado em voltar para a
clareira na floresta. Na noite anterior, eles se encontraram
rapidamente na rua. Como sempre, Winston mal olhou para Júlia
enquanto eles se falavam um com o outro no meio da multidão,
mas pelo breve olhar que ele lhe deu, pareceu que ela estava mais
pálida do que de costume.
– Está tudo desmarcado – murmurou ela assim que julgou seguro
falar. – Quero dizer, amanhã.
– O que?
– Amanhã à tarde. Eu não posso ir.
– Por que não?
– Ah, a razão de sempre. Começou cedo desta vez.
Por um momento, ele ficou violentamente zangado. Durante este
mês que ele a conhecia, a natureza de seu desejo por ela havia
mudado. No início, havia pouca sensualidade verdadeira nela. A
primeira vez que fizeram amor foi simplesmente um ato de
desejo. Mas depois da segunda vez, foi diferente. O cheiro de seu
cabelo, o gosto de sua boca, a sensação de sua pele, tudo parecia
ter entrado dentro dele ou no ar que o rodeava. Ela havia se
tornado uma necessidade física, algo que ele não só queria, mas
que ele sentia que era seu direito. Quando ela disse que não podia
vir, ele teve a sensação de que ela o estava traindo. Mas
justamente neste momento a multidão os empurrou um contra o
outro e suas mãos se encontraram acidentalmente. Ela deu um
aperto rápido nas pontas dos dedos dele, um aperto que parecia
convidar não ao desejo, mas ao afeto. Ele percebeu que esta
decepção devia ser algo normal e recorrente quando se vivia com
uma mulher; e uma profunda ternura, como ele nunca tinha
sentido por ela antes, de repente se apoderou dele. Ele desejava
que eles fossem casados já há dez anos. Ele desejava estar
andando pelas ruas com ela como eles estavam fazendo agora,
mas abertamente e sem medo, falando de trivialidades e
comprando bobeiras para a casa. Ele desejava, acima de tudo, que
eles tivessem algum lugar onde pudessem estar sozinhos juntos,
sem sentir a obrigação de fazer amor toda vez que se
encontrassem. Não foi exatamente naquele momento, mas em
algum momento no dia seguinte, que ele teve a ideia de alugar o
quarto do Sr. Charrington. Quando ele sugeriu a Júlia, ela
concordou imediata e inesperadamente. Os dois sabiam que isso
era uma loucura. Era como se estivessem intencionalmente se
aproximando de seus túmulos. Enquanto esperava sentado na
beira da cama, ele pensou novamente nas celas do Ministério do
Amor. Era curioso como aquele horror predestinado se afastava e
voltava para sua consciência. Ali em seu futuro estava o horror,
precedendo a morte tão seguramente quanto 99 precede 100. Algo
que não podia ser evitado, mas talvez pudesse ser adiado: e ainda
assim, de vez em quando, por um ato consciente e voluntário,
optava-se por reduzir o tempo até que ocorresse.
Neste momento, ouviu-se um rápido subir de escadas. Júlia entrou
no quarto. Ela carregava uma sacola de ferramentas de lona
grossa marrom, como ele já a tinha visto carregando no
Ministério. Ele foi em sua direção pronto para abraçá-la, mas ela
se desvencilhou apressadamente dele, em parte porque ela ainda
carregava a bolsa de ferramentas.
– Um segundo – disse ela. – Deixe-me mostrar o que eu trouxe.
Você trouxe um pouco daquele café Victory nojento? Achei que
traria. Você pode jogá-lo fora, porque não vamos precisar dele.
Olhe aqui.
Ela se ajoelhou, abriu a sacola e tirou da parte de cima algumas
chaves inglesas e uma chave de fenda. Embaixo havia vários
pacotes de papel limpo. O primeiro pacote que ela passou para
Winston trazia uma sensação estranha e ao mesmo tempo
vagamente familiar. Tinha algo pesado dentro, algo parecido com
areia, que cedia onde quer que se tocasse.
– Não é açúcar, é? – disse ele.
– Açúcar de verdade. Não é sacarina, é açúcar. E aqui está um
pedaço de pão branco de verdade, não nosso maldito pão. E um
pequeno pote de geleia. E aqui está uma lata de leite. Veja! Desta
eu realmente me orgulho. Tive que embrulhar um pouco melhor
porque...
Mas ela não precisava dizer a ele porque tinha precisado
embrulhar bem... O cheiro já enchia a sala, um delicioso cheiro
quente que parecia uma emanação de sua infância, mas com o
qual ainda hoje se podia encontrar ocasionalmente, saindo de
algum lugar até que uma porta se feche, ou se difundindo
misteriosamente em uma rua cheia de gente, sentido por um
instante e depois perdido novamente.
– É café – murmurou ele –, café de verdade!
– É café do Núcleo do Partido. Tem um quilo inteiro aqui – disse
ela.
– Como você conseguiu todas essas coisas?
– É tudo para o Núcleo do Partido. Não tem nada que esses
canalhas não tenham, nada! Mas é claro que garçons e criados
surrupiam algumas coisas e... Olha! Eu também tenho um pacote
de chá.
Winston havia se agachado ao lado dela. Ele abriu um canto do
pacote.
– É chá de verdade! Não folhas de amora silvestre!
– Tem tido muito chá ultimamente. Eles tomaram a Índia, ou
alguma coisa do tipo – disse ela vagamente. Mas escute, querido.
Eu quero que você vire de costas por um minuto. Vá e sente-se do
outro lado da cama. Não se aproxime muito da janela. E não vire
as costas até eu lhe dizer.
Winston olhou abstratamente através da cortina de musselina. No
pátio, a mulher de braços vermelhos ainda andava de um lado
para o outro entre a tina e o varal. Ela tirou mais dois pregadores
da boca e cantou com sentimento profundo:
Dizem que o tempo é a cura,
Dizem que sempre se pode esquecer;
Mas os sorrisos e as lágrimas, tudo isso perdura
Meu coração não para de sofrer!
Parecia que ela conhecia de cor todo aquele besteirol. Sua voz
subia com o ar doce do verão, muito afinada, carregada de uma
espécie de melancolia feliz. A sensação era de que ela teria ficado
absolutamente satisfeita se a noite de junho tivesse sido
interminável e o fornecimento de roupas inesgotável, para ficar lá
por mil anos, pendurando fraldas e cantando porcarias. A Winston
pareceu curioso o fato de nunca ter ouvido um membro do Partido
cantando sozinho e espontaneamente. Teria parecido até meio não
ortodoxo, uma excentricidade perigosa, como falar sozinho.
Talvez fosse apenas quando as pessoas estavam próximas do nível
de fome absoluta que elas tinham algo sobre o que cantar.
– Você pode se virar agora – disse Júlia.
Ele se virou e, por um segundo, quase não a reconheceu. O que
ele realmente esperava, era vê-la nua. Mas ela não estava nua. A
transformação que havia acontecido era muito mais surpreendente
que isso. Ela tinha maquiado o rosto.
Ela deve ter entrado em alguma loja dos bairros proletários e
comprado um conjunto completo de maquiagem. Seus lábios
estavam profundamente avermelhados, suas bochechas coradas,
seu nariz coberto com pó de arroz; havia até mesmo um toque de
algo sob os olhos para torná-los mais brilhantes. A maquiagem
não fora feita com muita habilidade, mas os padrões de Winston
em tais assuntos não eram altos. Ele nunca havia visto ou
imaginado uma mulher do Partido com o rosto maquiado. A
melhora em sua aparência foi surpreendente. Com apenas
algumas pinceladas de cor nos lugares certos, ela havia se tornado
não apenas muito mais bonita, mas acima de tudo, muito mais
feminina. Seu cabelo curto e seu macacão masculinizado apenas
acrescentavam ao efeito. Quando ele a tomou em seus braços,
suas narinas se encheram de um perfume sintético de violetas. Ele
se lembrou da meia luz em uma cozinha de porão e da boca
cavernosa de uma mulher. Era o mesmo perfume que ela havia
usado; mas no momento, parecia não ter importância.
– Perfume também – disse ele.
– Sim, querido, perfume também. E você sabe o que eu vou fazer
agora? Vou pegar em algum lugar um vestido de uma mulher de
verdade e usá-lo, em vez destas porcarias de calças. Vou usar
meias de seda e sapatos de salto alto! Nesta sala eu vou ser uma
mulher, não uma camarada do Partido.
Eles arrancaram suas roupas e subiram na enorme cama de
mogno. Era a primeira vez que ele se despia na presença dela. Até
então, ele tinha tido muita vergonha de seu corpo pálido e magro,
com as veias varicosas se destacando em suas pernas e a mancha
descolorida sobre seu tornozelo. Não havia lençóis, mas o
cobertor sobre o qual eles se deitavam era liso e macio e o
tamanho e a elasticidade da cama surpreenderam aos dois.
– Com certeza está cheia de percevejos mas quem se importa? –
disse Júlia.
Não se viam mais camas de casal, exceto nas casas dos
proletários. Winston, em sua infância, havia dormido
ocasionalmente em uma; Júlia, até onde se lembrava, nunca tinha
estado em uma antes.
Eles adormeceram por um tempo. Quando Winston acordou, os
ponteiros do relógio já marcavam quase nove horas. Ele não se
mexeu, porque Júlia estava dormindo com a cabeça em seu braço.
A maior parte de sua maquiagem havia se transferido para o rosto
de Winston ou para o travesseiro, mas uma leve mancha de rouge
ainda destacava a beleza das maçãs de seu rosto. Um raio
amarelado do sol que se punha pairava sobre o pé da cama e
iluminava a lareira, onde a água fervia na panela. No pátio a
mulher havia parado de cantar, mas os gritos tênues das crianças
na rua ainda podiam ser ouvidos. Ele se perguntava, se no
passado abolido era uma experiência normal deitar na cama
assim, no friozinho de uma noite de verão, um homem e uma
mulher sem roupa, fazendo amor quando eles quisessem, falando
sobre o que eles quisessem, não sentindo nenhuma vontade de se
levantar, simplesmente deitados lá e ouvindo sons pacíficos do
lado de fora. Com certeza nunca havia existido uma época em que
isso fosse corriqueiro. Júlia acordou, esfregou os olhos e se
apoiou no cotovelo para olhar para o fogareiro.
– Metade dessa água já evaporou – disse ela. – Daqui a pouco vou
me levantar e fazer um café. Temos uma hora. A que horas eles
apagam as luzes no seu apartamento?
– Onze e meia.
– No albergue é as onze. Mas você tem que entrar antes disso,
porque... Ei! Sai daí, seu bicho imundo.
De repente ela se virou na cama, pegou um sapato do chão e o
jogou num canto sacudindo seu braço como um menino,
exatamente como ele a tinha visto atirar o dicionário em
Goldstein, na manhã durante os Dois Minutos de Ódio.
– O que foi? – disse ele, surpreso.
– Um rato. Eu o vi colocando seu nariz para fora do painel de
madeira da parede. Tem um buraco lá embaixo. De qualquer
forma, dei um bom susto nele!
– Ratos! – murmurou Winston. – Neste quarto!
– Eles estão por toda parte – disse Júlia indiferente enquanto ela
se deitava novamente. – Nós temos ratos até na cozinha do
albergue. Algumas partes de Londres estão infestadas com ratos.
Você sabia que eles atacam crianças? Sim, eles atacam. Em
algumas dessas ruas, uma mulher não ousa deixar um bebê
sozinho por dois minutos. São os grandes e marrons que atacam.
E o mais desagradável é que os brutos sempre...
– PARE, por favor – disse Winston com os olhos fechados.
– Meu amor! Você está totalmente pálido. O que está
acontecendo? Eles fazem você se sentir mal?
– De todos os horrores do mundo, justamente um rato!
Ela o abraçou com as pernas e os braços e o apertou forte, como
se quisesse tranquilizá-lo com o calor de seu corpo. Ele demorou
um pouco para abrir os olhos. Por algum tempo, ele teve a
sensação de estar de volta em um pesadelo que se repetia de
tempos em tempos em sua vida. Era sempre muito parecido. Ele
estava diante de um muro de escuridão e do outro lado dele havia
algo insuportável, algo terrível demais para ser enfrentado. No
sonho, seu sentimento mais profundo era sempre de decepção,
porque na verdade ele sabia o que estava por trás do muro de
escuridão. Com um esforço mortal, como arrancar um pedaço de
seu próprio cérebro, ele poderia até mesmo arrastar a coisa para
fora do breu. Ele sempre acordava sem descobrir o que era; mas
de alguma forma estava relacionado ao que Júlia vinha dizendo
quando ele a interrompeu.
– Desculpe – disse ele –, não é nada. Eu só não gosto de ratos, só
isso.
– Não se preocupe, querido, não vamos ter estes bichos imundos
aqui. Vou encher o buraco com uns sacos antes de irmos. E da
próxima vez que viermos aqui, trarei um pouco de gesso e
fecharei o buraco direitinho.
Logo o momento negro de pânico já estava esquecido. Sentindo-
se um pouco envergonhado, Winston se sentou apoiando na
cabeceira da cama. Júlia saiu da cama, vestiu seu macacão e fez o
café. O cheiro que subiu da panela era tão poderoso e excitante
que eles fecharam a janela para que ninguém mais o notasse e
começasse a fazer perguntas. Ainda melhor do que o sabor do
café era a textura sedosa dada a ele pelo açúcar, uma coisa que
Winston quase esquecera depois de anos de sacarina. Com uma
mão no bolso e um pedaço de pão com geleia na outra, Júlia
perambulou pela sala, olhando indiferente para a estante de livros,
pensando na melhor maneira de consertar a mesa dobrável,
afundando-se na esfarrapada poltrona com braços para ver se era
confortável e examinando o estranho relógio de doze horas com
uma espécie de diversão resistente. Ela trouxe o peso de papel de
vidro para a cama para analisá-lo sob uma luz mais forte. Ele
tirou-o da mão dela, fascinado, como sempre, pelo aspecto frágil
e de gotas de chuva do vidro.
– O que você acha que é isso? – perguntou Júlia.
– Eu não acho que seja nada; quero dizer, eu acho que nunca foi
usado. É disso que eu gosto. É um pequeno pedaço de história
que eles se esqueceram de alterar. É uma mensagem de cem anos
atrás, se alguém soubesse como lê-la.
– E aquele quadro ali – ela acenou com a cabeça para a gravura
na parede oposta – teria uns cem anos de idade?
– Mais. Duzentos, eu ousaria dizer. Não dá para saber. É
impossível descobrir a idade de qualquer coisa hoje em dia.
Ela foi dar uma olhada.
– Foi aqui que aquele bicho nojento enfiou o nariz para fora –,
disse ela, chutando o painel de madeira imediatamente abaixo do
quadro. – O que é este lugar? Eu já vi isso antes.
– É uma igreja, ou pelo menos costumava ser. Seu nome era São
Clemente Danes.
O fragmento da canção que o Sr. Charrington lhe havia ensinado
voltou à sua cabeça e ele acrescentou meio nostálgico:
– ‘Laranja e limão sem semente, dizem os sinos de São
Clemente.’
Para seu espanto, ela continuou a canção:
Você me deve um vintém, deve sim, dizem os sinos de São
Martim.
Quando verei a cor do meu vintém? Dizem os sinos de Old
Bailey.
– Eu não me lembro como a canção continua, mas de qualquer
forma, lembro que acaba assim: ‘Deite-se e vá nanar, ou a Cuca
vai te pegar’.
Era como se fossem as peças de um quebra cabeça. Mas deve
haver outra linha após ‘os sinos do Old Bailey’. Talvez pudesse
ser reavivada da memória do Sr. Charrington, se ele fosse
consultado da maneira certa.
– Quem te ensinou isso? – disse ele.
– Meu avô. Ele costumava cantar isso para mim quando eu era
uma menina. Ele foi vaporizado quando eu tinha oito anos; de
qualquer forma, ele desapareceu. Fico me perguntando o que era
um limão - acrescentou ela distraidamente. – Eu já vi laranjas.
São uma espécie de fruta amarela redonda com uma casca grossa.
– Eu me lembro de limões – disse Winston. – Eles eram bastante
comuns nos anos cinquenta. Eram tão azedos que só de sentir o
cheiro a gente já suava frio.
– Aposto que atrás deste quadro está cheio de percevejos – disse
Júlia. –Qualquer dia vou tirá-la daí e dar-lhe uma boa limpada.
Acho que já está quase na hora de irmos embora. Vou começar a
tirar esta maquiagem. Que chato! Vou tirar o batom do seu rosto
depois.
Winston ficou mais algum tempo deitado. O quarto começava a
escurecer. Ele se virou em direção à luz e ficou olhando para o
peso de papel de vidro. O mais interessante não era o fragmento
de coral, mas o interior do vidro em si. Tinha uma certa
profundidade e, no entanto, era quase tão transparente quanto o ar.
Era como se a superfície do vidro fosse o arco do céu, cercando
um mundo minúsculo com sua atmosfera completa. Ele tinha a
sensação de que podia entrar nele, e que de fato estava dentro
dele, junto com a cama de mogno e a mesa dobrável e o relógio e
a gravura de aço e o próprio peso de papel. O peso de papel era o
quarto em que ele estava e o coral era a vida dele e de Júlia,
fixada numa espécie de eternidade no coração do cristal.

Capítulo 5
Syme tinha desaparecido. Uma manhã ele não apareceu no
trabalho. Algumas pessoas, sem pensar, comentaram sua
ausência. No dia seguinte, ninguém o mencionou. No terceiro dia,
Winston entrou no vestiário do Departamento de Registros para
ver o quadro de avisos. Um dos avisos trazia uma lista impressa
dos membros do Comitê de Xadrez, do qual Syme participava.
Parecia quase exatamente como antes - nada havia sido riscado -
mas tinha um nome a menos. Era o suficiente. Syme havia
deixado de existir: ele nunca havia existido.
As temperaturas estavam escaldantes. No labirinto dos
Ministérios, as salas sem janelas e climatizadas mantinham sua
temperatura normal, mas lá fora, as calçadas queimavam os pés e
o mau cheiro do metrô nos horários de pico era um horror. Os
preparativos para a Semana do Ódio estavam a pleno vapor e os
funcionários de todos os Ministérios estavam fazendo horas
extras. Procissões, reuniões, desfiles militares, palestras, trabalhos
em cera, exibições de filmes, programas de teletelas, tudo tinha
que ser organizado; stands tinham que ser erguidos, efígies
construídas, slogans inventados, canções escritas, boatos
colocados em circulação, fotografias serem falsificadas. A
unidade de Júlia no Departamento de Ficção tinha sido retirada da
produção de romances e estava pondo uma série de panfletos de
atrocidades em circulação. Winston, além de seu trabalho regular,
passava longas horas todos os dias em arquivos antigos do The
Times, alterando e ornamentando notícias que seriam citadas em
discursos. Tarde da noite, quando multidões de proletários
arruaceiros vagavam pelas ruas, a cidade tinha um ar
curiosamente febril. Os mísseis caíam com mais frequência do
que nunca e às vezes, ao longe, ouviam-se enormes explosões que
ninguém podia explicar e sobre as quais já se escutavam rumores
selvagens.
A nova música que seria o tema da Semana do Ódio (a Canção do
Ódio, como era chamada) já havia sido composta e estava sendo
incansavelmente tocada nas teletelas. Tinha um ritmo selvagem,
de latido, que não podia ser exatamente chamado de música, mas
se assemelhava ao bater de um tambor. Nela, centenas de vozes
rugiam acompanhadas de sons de botinas em marcha, era
aterrorizante. A música tinha virado um hit entre os proletários e
de madrugada, nas ruas, competia com a ainda popular ‘Era
apenas uma fantasia sem fim’. As crianças Parsons a batucavam
dia e noite, insuportavelmente, com um pente e um pedaço de
papel higiênico. As noites de Winston estavam mais cheias do
que nunca. Esquadrões de voluntários, organizados por Parsons,
preparavam a rua para a Semana do Ódio, costurando faixas,
pintando cartazes, erguendo bandeiras nos telhados e colocando
cabos de aço que atravessavam a rua e que serviriam de suporte
para bandeiras. Parsons gabava-se de que só as Mansões Victory
teriam quatrocentos metros de bandeirolas. Ele estava em seu
elemento natural, e tão feliz quanto um passarinho. O calor e o
trabalho físico tinham até lhe dado um pretexto para usar calção e
uma camisa aberta à noite. Ele estava em toda parte ao mesmo
tempo, empurrando, puxando, serrando, martelando,
improvisando, estimulando a todos junto com motes e frases e
exalando de cada dobra de seu corpo o que parecia um
fornecimento inesgotável de cheiro azedo de suor.
Um novo cartaz tinha aparecido de repente em toda Londres. Não
tinha legenda e estampava simplesmente a figura monstruosa de
um soldado eurasiático, de três ou quatro metros de altura,
avançando com o rosto mongol sem expressão e com enormes
botas, uma submetralhadora apoiada em seu quadril. De qualquer
ângulo que você olhasse para o cartaz, o cano da metralhadora,
ampliado pela perspectiva, parecia estar apontado diretamente
para você. A imagem tinha sido colada em cada espaço em
branco, em cada parede, chegando mesmo a superar em número
os retratos do Big Brother. Os proletários, normalmente apáticos
em relação a guerra, estavam vivendo um de seus frenesis
periódicos de patriotismo. Como se para se harmonizar com o
humor geral, os mísseis estavam matando um número maior de
pessoas do que o habitual. Um caiu em um cinema lotado em
Stepney, matando várias centenas de vítimas entre as ruínas. Toda
a população do bairro compareceu a um longo funeral que durou
horas e foi, na verdade, uma reunião para demostrar sua
indignação. Outra bomba caiu sobre um terreno vazio que era
usado como parque infantil e dezenas de crianças foram
explodidas em pedaços. Houve outras manifestações de raiva,
Goldstein foi queimado na efígie, centenas de cópias do cartaz do
soldado eurasiático foram rasgadas e queimadas e várias lojas
foram saqueadas na confusão; então começou a circular o rumor
de que espiões estavam direcionando os mísseis por meio de
controle remoto, e um casal de velhos suspeitos de serem de
origem estrangeira, teve sua casa incendiada e morreu de asfixia.
No quarto sobre a loja do Sr. Charrington, quando conseguiam ir
para lá, Júlia e Winston deitavam-se lado a lado em uma cama
sem lençóis sob a janela aberta, nus por uma questão de frescor. O
rato nunca voltou, mas os percevejos se multiplicaram
horrivelmente com o calor. Isso não parecia importar. Sujo ou
limpo, o quarto era o paraíso. Assim que chegavam, eles
aspergiam tudo com pimenta comprada no mercado negro,
arrancavam suas roupas e faziam amor com seus corpos suados,
depois adormeciam e acordavam para descobrir que os percevejos
tinham se reanimado e estavam se amontoando para o contra-
ataque.
Quatro, cinco, seis... sete vezes eles se encontraram durante o mês
de junho. Winston havia abandonado seu hábito de beber gin a
toda hora. Ele parecia já não precisar mais disso. Ele tinha
engordado, sua úlcera varicosa tinha diminuído, deixando apenas
uma mancha marrom na pele acima do tornozelo, seus acessos de
tosse no início da manhã tinham parado. Viver não era mais
intolerável, ele não tinha mais desejos impulsivos de fazer caretas
para a teletela ou gritar insultos o mais alto que pudesse. Agora
que eles tinham um esconderijo seguro, quase um lar, não parecia
nem mesmo uma dificuldade o fato de eles só poderem se
encontrar de vez em quando e por apenas por algumas horas. O
que importava era que a sala sobre a loja de quinquilharias
existia. Saber que estava ali, inviolada, era quase o mesmo que
estar nela. A sala era um mundo, um cômodo no passado, por
onde animais extintos podiam andar. Winston pensava que o Sr.
Charrington era outro animal extinto. Ele costumava parar para
conversar com o Sr. Charrington por alguns minutos a caminho
do andar de cima. Parecia que o velho nunca, ou raramente, saía
de casa e quase não tinha clientes. Sua existência era como a de
um fantasma, entre a loja minúscula e escura e uma cozinha nos
fundos ainda menor, onde ele preparava suas refeições e onde
tinha, entre outras coisas, um gramofone incrivelmente antigo
com uma enorme corneta. Ele parecia contente com a
oportunidade de conversar. Vagando por entre seu estoque inútil,
com seu longo nariz, seus óculos grossos e seus ombros
arqueados no casaco de veludo, ele tinha mais o aspecto de um
colecionador do que de um comerciante. Com uma espécie de
entusiasmo desgastado, ele mostrava uma ou outra quinquilharia -
uma rolha de porcelana, a tampa pintada de uma caixa de rapé
quebrada, um medalhão com um fio de cabelo de algum bebê
morto há muito tempo - mas nunca pedia que Winston a
comprasse, apenas que a admirasse. Falar com ele era como ouvir
o tilintar de uma caixa de música desgastada. Do fundo de sua
memória, ele havia arrancado mais alguns fragmentos de rimas
esquecidas. Havia uma sobre vinte e quatro pássaros pretos, e
outra sobre uma vaca com um chifre torto, e outra sobre a morte
do pobre Cock Robin.2 ‘Ocorreu-me que você poderia estar
interessado’, ele dizia com uma risadinha tímida sempre que
cantava um novo fragmento. Mas ele nunca conseguia se lembrar
de mais do que algumas linhas de qualquer rima.
Ambos sabiam - de certa forma, nunca haviam deixado de pensar
nisso - que o que estava acontecendo agora não poderia durar
muito. Havia momentos em que a morte iminente parecia tão
palpável quanto a cama em que eles se deitavam e então eles se
apegavam a uma espécie de sensualidade desesperada, como uma
alma amaldiçoada agarrando-se a seu último pedaço de prazer
quando o relógio está a cinco minutos de bater. Mas também
havia momentos em que eles tinham a ilusão não apenas de
segurança, mas de longevidade. Ambos sentiam que enquanto
estivessem de fato naquele quarto, nenhum mal poderia lhes
acontecer. Chegar lá era difícil e perigoso, mas a sala em si era
um santuário. Era como quando Winston olhava para o interior do
peso de papel, com a sensação de que seria possível entrar
naquele mundo vítreo e que uma vez dentro dele, o tempo poderia
ser preso. Muitas vezes eles se entregavam a devaneios de fuga.
Eles seriam felizes para sempre e seguiriam vivendo como
viviam, durante o resto de suas vidas naturais. Ou Katharine
morreria e, através de manobras sutis, Winston e Júlia
conseguiam se casar. Ou eles cometeriam suicídio juntos. Ou eles
desapareceriam, mudariam completamente suas aparências,
aprenderiam a falar com sotaque proletário, conseguiriam
emprego em uma fábrica e viveriam suas vidas sem serem
notados, em um beco sem saída. Tudo isso era um disparate,
como ambos sabiam. Na realidade, não havia como escapar.
Mesmo o único plano que era viável, o suicídio, eles não tinham a
intenção de executar. Agarrar-se a viver um dia por vez e uma
semana após a outra, em um presente que não tinha futuro,
parecia instintivo, assim como os pulmões sempre inspirarão
enquanto houver ar disponível.
Por vezes, também falavam de se envolverem numa rebelião ativa
contra o Partido, mas sem qualquer noção de como dar o primeiro
passo. Mesmo que a fabulosa Irmandade existisse, continuava a
haver a dificuldade de se encontrar o caminho até ela. Ele contou
a Júlia da estranha intimidade que existia, ou parecia existir, entre
ele e O’Brien, e do impulso que às vezes sentia, de simplesmente
procurar O’Brien, anunciar que era o inimigo do Partido e exigir a
sua ajuda. Curiosamente, isto não soou a ela como algo
precipitado de se fazer. Ela estava habituada a julgar as pessoas
pelos seus rostos, e pareceu-lhe natural que Winston acreditasse,
devido a uma única troca de olhares, que O’Brien fosse digno de
confiança. Além disso, ela assumia como certo que todos, ou
quase todos, odiavam secretamente o Partido e quebrariam as
regras se achassem seguro fazê-lo. Mas ela se recusava a acreditar
que existia ou poderia existir uma oposição generalizada e
organizada. Ela dizia que as histórias sobre Goldstein e o seu
exército clandestino eram simplesmente um monte de lixo que o
Partido tinha inventado em seu próprio benefício e em que todos
tinham que fingir acreditar. Por diversas vezes, em comícios e
manifestações espontâneas do Partido, ela tinha pedido o mais
alto possível a execução de pessoas cujos nomes nunca tinha
ouvido e em cujos supostos crimes não acreditava nem
remotamente. Quando ocorriam julgamentos públicos, ela tomava
o seu lugar nos destacamentos da Liga da Juventude que
rodeavam os tribunais de manhã à noite, gritando de tempos em
tempos ‘Morte aos traidores!’. Durante os Dois Minutos de Ódio,
ela sempre superava todos os outros ao gritar insultos para
Goldstein. No entanto, ela tinha apenas uma vaga ideia de quem
era Goldstein e de quais eram suas doutrinas. Ela tinha crescido
na época da Revolução e era muito jovem para se lembrar das
batalhas ideológicas dos anos cinquenta e sessenta. Algo como
um movimento político independente estava fora da sua
imaginação e, em todo o caso, o Partido era invencível. Ele
existiria sempre, e seria sempre o mesmo. Só se podia rebelar
contra ele por desobediência secreta ou, no máximo, por atos
isolados de violência, como matar alguém ou explodir algo.
Em alguns aspectos, ela era muito mais perspicaz que Winston e
muito menos suscetível à propaganda do Partido. Uma vez,
quando em alguma conversa ele mencionou a guerra contra a
Eurásia, ela o surpreendeu dizendo casualmente que, na sua
opinião, a guerra não estava acontecendo. Os mísseis que caíam
diariamente sobre Londres provavelmente eram disparados pelo
próprio governo da Oceânia, ‘só para manter as pessoas
assustadas’. Esta era uma ideia que literalmente nunca havia lhe
ocorrido. Ela também despertou uma espécie de inveja nele,
dizendo-lhe que durante os Dois Minutos de Ódio, sua grande
dificuldade era evitar explodir e rir. Mas ela só questionou os
ensinamentos do Partido quando eles, de alguma forma, tocaram
sua própria vida. Com frequência ela aceitava prontamente a
mitologia oficial, simplesmente porque a diferença entre verdade
e falsidade não parecia importante para ela. Ela acreditava, por
exemplo, ter aprendido na escola, que o Partido tinha inventado o
avião. (Em seus tempos de escola, no final dos anos 50, Winston
lembrava que era apenas o helicóptero que o Partido afirmava ter
inventado; uma dúzia de anos depois, quando Júlia estava na
escola, já estavam reivindicando o avião; mais uma geração e
estariam reivindicando a máquina a vapor também). E quando ele
disse que os aviões já existiam antes de ele nascer e muito antes
da Revolução, o fato pareceu totalmente desinteressante para ela.
Afinal de contas, o que importava quem tinha inventado os
aviões? E foi mais um choque para ele quando, fazendo alguma
observação casual, ele descobriu que ela não se lembrava que a
Oceânia, há quatro anos, estava em guerra com a Lestásia e em
paz com a Eurásia. Era verdade que ela considerava toda a guerra
uma farsa: mas aparentemente ela não havia nem notado que o
nome do inimigo tinha mudado.
– Pensei que estivéssemos sempre em guerra com a Eurásia –
disse ela vagamente.
Isso o assustou um pouco. A invenção dos aviões era muito
anterior ao nascimento dela, mas a mudança do inimigo de guerra
tinha acontecido há apenas quatro anos, quando ela já era adulta.
Ele discutiu isso com ela por talvez quinze minutos. No final, ele
conseguiu forçar a memória dela de volta até que ela se lembrasse
vagamente que em algum momento Lestásia, e não Eurásia, havia
sido o inimigo. Mas a questão ainda lhe pareceu sem importância.
– Quem se importa? – disse ela impacientemente. – É sempre
uma guerra sangrenta atrás da outra, e se sabe que a notícia é
mentira de qualquer maneira.
Às vezes ele falava com ela sobre o Departamento de Registros e
as falsificações absurdas que ele fazia lá. Tais coisas não
pareciam chocá-la. Ela não sentia o abismo se abrir sob seus pés
ao pensar que mentiras se tornavam verdades. Ele contou a ela a
história de Jones, Aaronson e Rutherford e o importante deslize
de papel que uma vez ele havia segurado entre seus dedos. Ela
não se impressionou muito com isso. No início, de fato, ela não
conseguia entender o objetivo da história.
– Eram seus amigos? – ela perguntou.
– Não, eu nunca os conheci. Eles eram membros do Núcleo do
Partido. Além disso, eles eram homens muito mais velhos do que
eu. Eles pertenciam aos velhos tempos, antes da Revolução. Eu
mal os conhecia de vista.
– Então, o que tinha ali para se preocupar? As pessoas são mortas
o tempo todo, não são?
Ele tentou fazê-la entender.
– Este foi um caso excepcional. Não era apenas uma questão de
alguém ser morto. Você percebe que o passado, a partir de ontem,
foi realmente abolido? Se ele sobrevive em qualquer lugar, está
em alguns poucos objetos sólidos sem palavras, como aquele
pedaço de vidro ali. Não sabemos literalmente quase nada sobre a
Revolução e os anos anteriores à Revolução. Cada registro foi
destruído ou falsificado, cada livro foi reescrito, cada quadro foi
repintado, cada estátua e cada rua e cada edifício foram
renomeados, cada data foi alterada. E esse processo continua dia
após dia, minuto após minuto. A história parou. Nada existe,
exceto um presente infinito, no qual o Partido está sempre certo.
Eu sei, claro, que o passado é falsificado, mas eu nunca
conseguiria provar isso, mesmo que eu mesmo tivesse feito a
falsificação. Depois que a coisa foi feita, nenhuma evidência
jamais resta. A única evidência está dentro de minha própria
mente e não tenho certeza se algum outro ser humano compartilha
minhas lembranças. Apenas nesse caso, em toda minha vida, eu
possuía provas concretas reais após o evento - anos depois dele.
– E de que serviu isso?
– Não serviu para nada porque eu joguei fora alguns minutos
depois. Mas se a mesma coisa acontecesse hoje, eu guardaria o
papel.
– Bem, eu não guardaria – disse Júlia. – Estou disposta a correr
riscos, mas apenas por algo que valha a pena, não por um pedaço
de jornal velho. O que você poderia ter feito com ele, mesmo que
o tivesse guardado?
– Talvez não muito. Mas era uma prova. Talvez eu pudesse ter
plantado dúvidas aqui ou ali, supondo que eu ousasse mostrar o
fragmento de jornal para alguém. Não imagino que possamos
alterar nada ainda em nossa própria vida. Mas pode-se imaginar
pequenos pontos de resistência surgindo aqui e ali - pequenos
grupos de pessoas se unindo, e gradualmente crescendo, e até
mesmo deixando alguns registros pelo caminho, para que as
próximas gerações possam continuar de onde paramos.
– Não estou interessada na próxima geração, querido. Eu estou
interessada em NÓS.
– Você é rebelde apenas da cintura para baixo – disse ele.
Ela achou isso brilhantemente espirituoso e, em deleite, jogou
seus braços em volta dele.
Ela não tinha o menor interesse nas ramificações da doutrina
partidária. Sempre que ele começava a falar dos princípios do
Socing, do duplipensamento, da mutabilidade do passado e da
negação da realidade objetiva, e começava a usar palavras de
Novilíngua, ela ficava entediada e confusa e dizia que nunca tinha
prestado atenção a esse tipo de coisa. Sabia-se que tudo isso era
lixo, então por que se preocupar com isso? Ela sabia quando
torcer e quando vaiar, e isso era tudo o que se precisava. Se ele
persistia em falar de tais assuntos, ela tinha o desconcertante
hábito de adormecer. Ela era uma daquelas pessoas que podem ir
dormir a qualquer hora e em qualquer posição. Falando com ela,
ele percebeu como era fácil ter uma aparência de ortodoxia
mesmo sem se ter noção do que significava ortodoxia. De certa
forma, a visão de mundo do Partido se impunha mais facilmente e
com mais sucesso às pessoas incapazes de compreendê-la. Elas
eram facilmente obrigadas a aceitar as violações mais flagrantes
da realidade, porque nunca compreendiam integralmente a
enormidade do que lhes era exigido e não estavam
suficientemente interessadas em eventos públicos para ter
consciência do que estava acontecendo. Por falta de compreensão,
eles permaneciam sãos. Eles simplesmente engoliam tudo, e o que
eles engoliam não lhes fazia mal, porque não deixava nenhum
resíduo, assim como um grão de milho que passa sem ser digerido
pelo corpo de uma ave.

Capítulo 6

Finalmente aconteceu. A mensagem esperada chegou. Parecia que


ele tinha esperado toda a sua vida para que isso acontecesse.
Ele estava andando pelo longo corredor do Ministério e estava
quase no lugar onde Júlia havia colocado o bilhete em sua mão,
quando se deu conta de que alguém maior do que ele vinha
andando logo atrás. A pessoa, quem quer que fosse, deu uma
pigarreada, como um sinal evidente de que ia falar. Winston parou
abruptamente e virou-se. Era O’Brien.
Finalmente, eles estavam frente a frente e parecia que seu único
impulso era fugir. Seu coração batia acelerado. Ele teria sido
incapaz de falar. O’Brien, no entanto, continuou em frente no
mesmo movimento, colocando uma mão amiga por um momento
no braço de Winston, de modo que os dois caminhassem lado a
lado. Ele começou a falar com a peculiar cortesia que o
diferenciava da maioria dos membros do Núcleo do Partido.
– Eu estava esperando uma oportunidade para falar com você –
disse ele. – Outro dia, eu estava lendo um de seus artigos no The
Times. Você tem um interesse acadêmico em Novilíngua, correto?
Winston havia recuperado parte de seu autocontrole.
– Eu não diria acadêmico –, ele respondeu. Sou apenas um
amador. Não é minha especialidade. Nunca tive nada a ver com a
construção real do idioma.
– Mas você escreve Novilíngua de forma muito elegante – disse
O’Brien. – Essa não é apenas minha própria opinião. Eu estava
falando recentemente com um amigo seu, que é certamente um
especialista. Seu nome me foge agora da memória.
Mais uma vez o coração de Winston batia desesperadamente. Era
inconcebível que isto fosse outra coisa que não uma referência a
Syme. Mas Syme não estava apenas morto, ele fora abolido, não
tinha mais personalidade. Qualquer referência a ele que pudesse
ser identificável teria sido mortalmente perigosa. A observação de
O’Brien deve obviamente ter sido feita como um sinal, um
código. Ao compartilhar um pequeno ato de crime de
pensamento, ele havia transformado os dois em cúmplices. Eles
tinham continuado a caminhar lentamente pelo corredor, mas
agora O’Brien parou. Com a simpatia curiosa e desarmante que
ele sempre conseguiu colocar no gesto, ele reposicionou seus
óculos em seu nariz. Então ele continuou:
– O que eu realmente tinha a intenção de dizer, era que em seu
artigo, notei que você usou duas palavras que se tornaram
obsoletas. Mas elas só se tornaram obsoletas há pouco tempo.
Você já viu a décima edição do dicionário de Novilíngua?
– Não, disse Winston. Não sabia que já tinha sido publicada.
Ainda estamos usando a nona no Departamento de Registros.
– Creio que a décima edição ainda demore alguns meses para
circular. Mas alguns exemplares já foram previamente
distribuídos. Eu mesmo tenho um. Talvez você se interesse em
dar uma olhada.
– Muito – disse Winston, entendendo imediatamente onde isto
daria.
– Alguns dos novos desenvolvimentos são muito engenhosos. A
redução do número de verbos - esse é o ponto que lhe atrairá, eu
acho. Deixe-me ver, devo lhe enviar um mensageiro com o
dicionário? Mas receio que eu esqueça, invariavelmente esqueço
coisas desse tipo. Talvez você possa ir buscá-lo em meu
apartamento em algum momento que lhe convenha? Espere.
Deixe-me dar-lhe meu endereço.
Eles estavam em frente a uma teletela. O’Brien apalpou um pouco
distraído dois de seus bolsos e depois tirou deles um pequeno
caderno revestido de couro e uma caneta dourada. Imediatamente
abaixo da teletela, numa posição tal que qualquer um que
estivesse observando na outra ponta do aparelho pudesse ler o que
estava escrevendo, ele rabiscou um endereço, arrancou a página e
entregou-a a Winston.
– Geralmente estou em casa à noite – disse ele. - Se não, meu
funcionário lhe entregará o dicionário.
Então ele foi embora, deixando Winston com o pedaço de papel,
que desta vez não precisava ser escondido. Apesar disso, ele
memorizou cuidadosamente o que estava escrito no papel e,
algumas horas depois, colocou-o no buraco da memória junto
com uma massa de outros papéis.
Eles tinham conversado por no máximo alguns minutos. Aquele
episódio poderia ter apenas um significado. Tinha sido provocado
como uma forma de passar a Winston o endereço de O’Brien. Isto
era necessário porque, a menos que se perguntasse diretamente,
não era possível descobrir onde alguém morava. Não existiam
registros acessíveis desta informação. ‘Se você quiser me ver, é
aqui que eu posso ser encontrado’, era o que O’Brien lhe dizia.
Talvez até houvesse uma mensagem escondida em algum lugar do
dicionário. Mas de qualquer forma, uma coisa era certa. A
conspiração com a qual ele havia sonhado existia, e ele havia
chegado à sua porta de entrada.
Ele sabia que mais cedo ou mais tarde obedeceria à convocação
de O’Brien. Talvez amanhã, talvez depois de muito tempo - ele
não estava certo. O que estava acontecendo era apenas a evolução
de um processo que começara anos atrás. O primeiro passo tinha
sido um pensamento secreto e involuntário, o segundo tinha sido
a abertura do diário. Ele havia passado dos pensamentos às
palavras, e agora das palavras às ações. O último passo era algo
que aconteceria no Ministério do Amor. Ele o havia aceitado. O
fim estava contido no início. Mas era assustador: ou, mais
exatamente, era como sentir a proximidade da morte, como estar
um pouco menos vivo. Mesmo enquanto ele falava com O’Brien,
quando o significado das palavras parecia ter se perdido, uma
sensação de frio tremendo tomara seu corpo. Ele tinha a sensação
de entrar no ambiente úmido de um túmulo, e isso não era muito
acolhedor, apesar de ele sempre saber que o túmulo estava ali e o
esperava.

Capítulo 7

Winston tinha despertado com os olhos cheios de lágrimas. Júlia


rolou sonolenta para o lado dele, murmurando algo que poderia
ter sido ‘Qual é o problema?’.
– Eu sonhei – ele começou e logo parou.
Era complexo demais para ser colocado em palavras. Havia o
sonho em si, e havia uma memória ligada a ele, que tinha
invadido sua mente poucos segundos após o despertar.
Ele deitou-se com os olhos fechados, ainda encharcado na
atmosfera do sonho. Era um sonho vasto e luminoso, no qual toda
sua vida parecia se expor diante dele como uma paisagem em
uma tarde de verão após a chuva. Tudo tinha ocorrido dentro do
peso de papel de vidro, mas a superfície do vidro era a cúpula do
céu e dentro da cúpula tudo era inundado por uma clara luz suave
na qual se podia ver por longas distâncias. O sonho também
continha – na verdade, de certa forma, este era o sonho – um
gesto feito por sua mãe com os braços, e feito novamente trinta
anos depois pela mulher judia que ele tinha visto no noticiário,
tentando proteger o pequeno filho das balas, antes que o
helicóptero destroçasse os dois.
– Você sabia – disse ele –, que até este momento eu acreditava ter
assassinado minha mãe?
– Por que você a matou? – perguntou Júlia quase dormindo.
– Eu não a assassinei. Não fisicamente.
No sonho, ele havia se lembrado de seu último vislumbre de sua
mãe e, pouco depois de despertar, o conjunto de pequenos eventos
ao redor desta lembrança, tudo havia voltado. Era uma lembrança
que ele devia ter empurrado deliberadamente para fora de sua
consciência durante muitos anos. Ele não estava certo da data,
mas ele não devia ter menos de dez anos, tinha possivelmente
doze, quando aconteceu.
Seu pai havia desaparecido algum tempo antes, quanto antes ele
não conseguia se lembrar. Ele se lembrava melhor das
circunstâncias inquietantes da época: os pânicos periódicos dos
ataques aéreos e os abrigos nas estações de metrô, as pilhas de
escombros por toda parte, as declarações ininteligíveis afixadas
nas esquinas, as gangues de jovens com camisas da mesma cor, as
enormes filas fora das padarias, os intermitentes tiros de
metralhadora à distância - e acima de tudo, lembrava-se de que
nunca havia o suficiente para comer. Ele se lembrava das longas
tardes passadas com outros meninos em latas e pilhas de lixo,
juntando talos de folhas de repolho, cascas de batata, às vezes até
pedaços de casca de pão velho, dos quais eles raspavam
cuidadosamente as cinzas. Lembrava-se também de esperar a
passagem de caminhões que percorriam uma determinada rota e
transportavam ração para o gado, e que, quando sacudiam devido
aos buracos e ondulações da estrada, às vezes deixavam cair
alguns pedaços de bolo de prensa3.
Quando seu pai desapareceu, sua mãe não mostrou nenhuma
surpresa ou dor violenta, mas uma mudança repentina recaiu
sobre ela. Ela parecia ter ficado completamente sem espírito. Era
evidente, até mesmo para Winston, que ela estava esperando por
algo que ela sabia que iria acontecer. Ela fazia tudo o que era
necessário - cozinhava, lavava, consertava, fazia a cama, varria o
chão, limpava a lareira - sempre muito lentamente e fazendo
apenas os momentos essenciais, como o manequim de um artista
que se movimenta por conta própria. Seu corpo grande e formoso
parecia buscar naturalmente a quietude. Por horas a fio, ela se
sentava quase imóvel na cama, amamentando a jovem irmã de
Winston, uma criança minúscula, doente, muito quieta, de dois ou
três anos, com um rosto símio devido à magreza. Às vezes ela
tomava Winston em seus braços e o pressionava contra ela por
muito tempo sem dizer nada. Ele estava ciente, apesar de sua
juventude e egoísmo, que isto estava de alguma forma ligado à
coisa nunca mencionada que estava prestes a acontecer.
Ele se lembrou do quarto onde eles moravam, um quarto escuro e
com cheiro de ambiente fechado, que era praticamente todo
preenchido por uma cama com uma colcha branca. Havia um
fogareiro no guarda fogo e uma prateleira onde ficavam os
alimentos e fora do quarto, na área comum do prédio, havia uma
pia de barro marrom, comum a vários quartos. Ele se lembrava do
corpo escultural de sua mãe dobrando-se sobre o fogareiro para
mexer algo na panela. Acima de tudo, ele se lembrava de sua
constante fome e das ferozes e sórdidas batalhas na hora das
refeições. Ele perguntava repetidamente para sua mãe, porque não
havia mais comida, ele gritava e a agredia (ele até se lembrava
dos tons de sua voz, que começara a engrossar prematuramente e
às vezes se elevava de uma maneira peculiar), ou tentava uma
certa manha em seus esforços para conseguir mais do que sua
parte. Sua mãe estava disposta a dar-lhe mais do que sua parte.
Ela assumia como certo que ele, ‘o menino’, deveria ter a maior
parte; mas por mais que ela lhe desse, ele invariavelmente exigia
mais. A cada refeição ela lhe suplicava para não ser egoísta e para
lembrar que sua irmãzinha estava doente e também precisava de
comida, mas de nada adiantava. Ele gritava de raiva quando ela
parava de lhe servir, ele tentava arrancar a panela e a colher das
mãos dela, ele roubava comida do prato de sua irmã. Ele sabia
que estava passando fome como as duas, mas não podia evitar;
ele até sentia que tinha o direito de fazer isso. A fome clamorosa
em sua barriga parecia justificá-lo. Entre as refeições, se sua mãe
não ficava atenta, ele roubava constantemente comida da
prateleira.
Um dia, foi distribuída uma ração de chocolate. Não havia tal
ração há semanas ou meses. Ele se lembrou muito claramente
daquele pedacinho precioso de chocolate. Era uma barra de duas
onças4 (ainda pesavam em onças naquela época) para os três. Era
óbvio que ela deveria ser dividida em três partes iguais. De
repente, como se estivesse ouvindo outra pessoa, Winston ouviu a
si mesmo exigindo em voz alta que lhe fosse dada a barra inteira.
Sua mãe lhe disse para não ser ganancioso. Houve uma longa e
persistente argumentação acompanhada por gritos, lamentos,
lágrimas, barganhas. Sua irmãzinha, agarrada à mãe com as duas
mãos, exatamente como um macaquinho, ficou olhando por cima
do ombro para ele com olhos grandes e tristes. No final, sua mãe
quebrou três quartos do chocolate e o deu a Winston, dando o
outro quarto para sua irmã. A garotinha pegou-o e o olhou de
forma entorpecida, talvez sem saber o que era. Winston a
observou por um momento. Então, com um pulo rápido e
repentino, ele arrancou o pedaço de chocolate da mão de sua irmã
e correu em direção à porta.
– Winston, Winston! – sua mãe gritou. – Volte! Devolva para a
sua irmã o chocolate dela!
Ele parou, mas não retornou. Os olhos ansiosos de sua mãe
estavam fixos em seu rosto. Neste momento, ele novamente
pensou que algo aconteceria, mas não sabia exatamente o que
estava por vir. Sua irmã, consciente de ter sido roubada de alguma
coisa, tinha dado um lamento débil. Sua mãe a envolveu,
colocando seu braço em volta da criança e pressionou seu rosto
contra o peito dela. Algo neste gesto fez com que ele entendesse
que sua irmã estava morrendo. Ele se virou e fugiu pelas escadas,
com o chocolate derretendo em sua mão.
Ele nunca mais viu sua mãe. Depois de ter devorado o chocolate,
ele se sentiu envergonhado e perambulou pelas ruas por várias
horas, até que a fome o levou de volta para casa. Quando ele
voltou, sua mãe havia desaparecido. Isto já estava se tornando
normal naquela época. Nada havia desaparecido do quarto, exceto
sua mãe e sua irmã. Elas não haviam levado nenhuma roupa, nem
mesmo o sobretudo de sua mãe. Até hoje ele não tinha certeza de
que sua mãe estava morta. Era perfeitamente possível que ela
tivesse sido simplesmente enviada a um campo de trabalhos
forçados. Quanto à irmã dele, ela poderia ter sido levada, como o
próprio Winston, para uma das colônias de crianças sem teto
(chamadas de Centros de Reclamação) que tinham crescido como
resultado da guerra civil, ou ela poderia ter sido enviada para o
campo de trabalhos forçados junto com sua mãe, ou simplesmente
largada em algum lugar para morrer.
O sonho ainda estava vivo em sua mente, especialmente o gesto
envolvente de proteção do braço, no qual todo o seu significado
parecia estar contido. Sua mente voltou a outro sonho de dois
meses atrás. Exatamente como sua mãe havia se sentado na cama
coberta pela colcha suja com a criança agarrada a ela, assim ela
estava sentada no navio que afundava, bem embaixo dele, e se
afogava mais profundamente a cada minuto, sempre olhando para
ele através da água escura.
Ele contou para Júlia a história do desaparecimento de sua mãe.
Sem abrir os olhos, ela se virou e se acomodou em uma posição
mais confortável.
– Parece que você era um sem-vergonha naquela época – disse ela
indistintamente. – Todas as crianças são sem vergonhas.
– Sim. Mas o verdadeiro ponto da história...
Pela respiração dela, era evidente que ela ia dormir novamente.
Ele gostaria de ter continuado a falar de sua mãe. Ele não
supunha, pelo que podia se lembrar dela, que ela tivesse sido uma
mulher incomum, muito menos uma mulher inteligente; e ainda
assim ela possuía uma espécie de nobreza, um tipo de pureza,
simplesmente porque os padrões que ela obedecia eram privados.
Seus sentimentos eram seus e não podiam ser alterados por nada
externo. Não ocorria a ela que uma ação sem efeito, perdia o
sentido. Se você amava alguém, você o amava e, quando você
não tinha mais nada para dar, você ainda lhe dava amor. Quando o
último chocolate se foi, sua mãe havia abraçado a criança em seus
braços. Não adiantava, não mudava nada, não produzia mais
chocolate, não evitava a morte da criança nem a sua própria; mas
parecia natural que ela o fizesse. A mulher refugiada no barco
também tinha coberto o menino com seu braço, o que era tão útil
contra as balas como uma folha de papel. O terrível é que o
Partido tinha persuadido as pessoas de que meros impulsos,
meros sentimentos, não tinham importância, ao mesmo tempo em
que lhes roubava todo o poder sobre o mundo material. Quando
você estava nas mãos do Partido, o que você sentia ou deixava de
sentir, o que você fazia ou se abstinha de fazer, não fazia
literalmente nenhuma diferença. O que quer que tivesse
acontecido, você desaparecia e nem você nem suas ações nunca
mais seriam ouvidas novamente. Você era retirado do curso da
história. E ainda assim, para as pessoas de apenas duas gerações
atrás, isto não parecia tão importante, porque elas não estavam
tentando alterar a história. Elas eram guiadas por lealdades
próprias, que não questionavam. O que importava eram as
relações individuais e um gesto completamente indefeso, um
abraço, uma lágrima, uma palavra dita a um moribundo, poderia
ter valor por si só. De repente lhe ocorreu que os proletários ainda
eram assim. Eles não eram leais a um Partido, a um país ou a uma
ideia, eles eram leais uns aos outros. Pela primeira vez em sua
vida, ele não desprezou os proletários ou pensou neles apenas
como uma força inerte, que um dia surgiria para a vida e
regeneraria o mundo. Os proletários haviam permanecido
humanos. Eles não tinham endurecido por dentro. Agarraram-se
às emoções primitivas, que ele mesmo teve que reaprender por
esforço consciente. E ao pensar nisso, ele se lembrou, sem
aparente relevância, como há algumas semanas ele havia visto
uma mão jazendo caída na rua e a tinha chutado para sarjeta,
como se fosse apenas um talo de repolho.
– Os proletários são seres humanos – disse ele em voz alta. –Nós
não somos humanos.
– Por que não? – disse Júlia, que tinha acordado novamente.
Ele pensou por um tempo.
– Já lhe ocorreu – disse ele –, que a melhor coisa a fazer seria
simplesmente sair daqui antes que seja tarde demais e nunca mais
nos vejamos?
– Sim, querido, já me ocorreu, várias vezes. Mas, mesmo assim,
eu não vou.
– Temos tido sorte –, disse ele, – mas não vai durar muito mais.
Você é jovem. Você parece normal e inocente. Se você se
mantiver afastada de pessoas como eu, poderá permanecer viva
por mais cinquenta anos.
– Não. Eu pensei em tudo. O que você fizer, eu vou fazer
também. E não se desanime. Eu sou muito boa em me manter
viva.
– Podemos ficar juntos por mais seis meses, um ano, não tem
como saber. No final, sabemos que seremos separados. Você
percebe o quanto estaremos completamente sós? Quando nos
apanharem, não haverá nada, literalmente nada, que um de nós
possa fazer pelo outro. Se eu confessar, eles atirarão em você e se
eu me recusar a confessar, eles atirarão em você da mesma forma.
Nada que eu possa fazer ou dizer, ou me impedir de dizer, vai
adiar sua morte por mais do que cinco minutos. Nenhum de nós
saberá sequer se o outro está vivo ou morto. Ficaremos totalmente
sem qualquer tipo de poder. A única coisa que importa é que não
devemos nos trair, embora nem isso possa fazer a mínima
diferença.
– Se você quer dizer confessar – disse ela –, faremos isso, é
praticamente certeza. Todos sempre confessam. Você não pode
evitar. Eles o torturam.
– Não me refiro a confessar. A confissão não é traição. O que
você diz ou faz não importa: só os sentimentos importam. Se eles
pudessem me fazer parar de te amar, isso sim seria uma
verdadeira traição.
Ela pensou por um momento.
– Eles não podem fazer isso – disse ela finalmente. – É a única
coisa que eles não podem fazer. Eles podem fazer você dizer
qualquer coisa... QUALQUER COISA! Mas não podem fazer
você acreditar nisso. Eles não podem entrar em você.
– Não – disse ele um pouco mais esperançoso –, não. Isso é bem
verdade. Eles não podem entrar em você. Se você pode SENTIR
que permanecer humano vale a pena, mesmo quando não pode ter
nenhum resultado, você os venceu.
Ele pensou na teletela com seus ouvidos que nunca dormem. Eles
poderiam espiar você noite e dia, mas se você mantivesse sua
cabeça, ainda poderia enganá-los. Mesmo com toda sua esperteza,
eles nunca haviam dominado o segredo de descobrir o que outro
ser humano estava pensando. Talvez isso fosse menos verdade
quando você estava de fato nas mãos deles. Não se sabia o que
acontecia dentro do Ministério do Amor, mas era possível
adivinhar: torturas, drogas, instrumentos delicados que
registravam suas reações nervosas, desgaste gradual por insônia,
solidão e perguntas persistentes. Os fatos podiam não ser
mantidos em segredo. Eles poderiam ser rastreados por
inquéritos, poderiam ser arrancados de você por tortura. Mas, se o
objetivo não era permanecer vivo, mas permanecer humano, que
diferença isso fazia? Eles não poderiam alterar seus sentimentos
pois, mesmo que você quisesse, nem você mesmo conseguiria
alterá-los. Eles podiam desnudar nos mínimos detalhes tudo o que
você tinha feito, dito ou pensado; mas o coração interior, cujo
funcionamento era misterioso até mesmo para você, permanecia
inexpugnável.
Capítulo 8

Eles tinham feito, tinham feito finalmente!


A sala onde eles estavam de pé era longa e suavemente
iluminada. A teletela estava escura e reduzida a um murmúrio
baixo; a riqueza do tapete azul escuro dava a impressão de se
pisar em veludo. No final da sala, O’Brien estava sentado em uma
mesa sob uma lâmpada em tons de verde, com uma pilha de
papéis em ambos os lados. Ele não se preocupou em levantar a
cabeça quando seu empregado anunciou que Júlia e Winston
estavam entrando.
O coração de Winston estava batendo tão forte que ele tinha
dúvidas se seria capaz de falar. Eles tinham feito isso, tinham
feito finalmente, era tudo o que ele podia pensar. Tinha sido um
ato precipitado ir até lá e pura loucura terem chegado os dois
juntos; embora fosse verdade que eles tinham vindo por caminhos
diferentes e só se encontraram em frente à porta de O’Brien. Mas
apenas para entrar em tal lugar era necessária coragem. Era
apenas em ocasiões muito raras que se viam as moradias do
Núcleo do Partido por dentro, ou até mesmo se entrava no bairro
onde viviam. A atmosfera toda do enorme bloco de apartamentos,
a riqueza e a amplitude de tudo, os cheiros desconhecidos de boa
comida e bom tabaco, os elevadores silenciosos e incrivelmente
rápidos deslizando para cima e para baixo, os criados de camisa
branca correndo de um lado para o outro - tudo era intimidante.
Embora ele tivesse um bom pretexto para ir lá, ele era
assombrado a cada passo pelo medo de que um guarda de
uniforme preto aparecesse de repente da esquina, exigisse seus
documentos e ordenasse que fosse embora. O criado de O’Brien,
no entanto, recebera os dois sem exitar. Ele era um homem
pequeno, de cabelos escuros e casaco branco, com um rosto em
forma de diamante, completamente sem expressão, que poderia
ter sido o de um chinês. A passagem pela qual ele os conduziu
tinha um carpete macio, paredes revestidas com papel de parede
creme e painéis brancos, tudo requintadamente limpo. Isso
também era intimidante. Winston não se lembrava de jamais ter
visto um corredor com paredes que não estivessem sujas pelo
contato de corpos humanos.
O’Brien tinha um pedaço de papel entre os dedos e parecia estar
estudando-o atentamente. Seu rosto sério, voltado para baixo de
forma que se pudesse ver a linha do nariz, parecia ao mesmo
tempo formidável e inteligente. Durante talvez vinte segundos,
ele permaneceu sem se mexer. Então, ele puxou o ditógrafo para
perto e ditou uma mensagem no jargão híbrido dos Ministérios:
‘Itens um vírgula cinco vírgula sete aprovados todamente
pausa sugestão contém item seis duplomais ridícula beira
crimepensar cancelar pausa improsseguir construtiva
anteobter maisveras estimativas maquinário despesas
pausa fim mensagem.’
Ele se levantou deliberadamente de sua cadeira e veio em direção
a eles caminhando silenciosamente pelo tapete. Um pouco da
atmosfera oficial parecia ter se afastado dele junto com as
palavras da Novilíngua, mas sua expressão era mais séria do que
de costume, como se ele não estivesse satisfeito em ser
perturbado. O terror que Winston já sentia foi repentinamente
atingido por uma onda de constrangimento. Parecia-lhe bem
possível que ele tivesse simplesmente cometido um erro estúpido.
Que evidência ele tinha na realidade, de que O’Brien era algum
tipo de conspirador político? Nada além de um cruzar de olhares e
um único comentário equivocado: além disso, apenas suas
imaginações secretas, baseadas em um sonho. Ele não podia nem
mesmo usar o argumento de que tinha vindo pedir o dicionário
emprestado, porque nesse caso a presença de Júlia era impossível
de explicar. Enquanto O’Brien passava pela teletela,
aparentemente pensou em algo. Ele parou, virou-se de lado e
apertou um interruptor na parede. Houve um estalido brusco. A
voz parou.
Júlia emitiu um pequeno som, uma espécie de gritinho de
surpresa. Mesmo em pânico, Winston se surpreendeu demais para
conseguir segurar a língua.
– Você pode desligar – disse ele.
– Sim – disse O’Brien –, nós podemos desligá-lo. Nós temos esse
privilégio.
Ele estava agora em frente aos dois. Sua forma sólida se impunha
sobre os dois e a expressão em seu rosto ainda era indecifrável.
Ele esperava, com severidade, que Winston falasse, mas sobre o
quê? Mesmo neste momento, parecia bem possível que ele fosse
simplesmente um homem ocupado, se perguntando irritado
porque havia sido interrompido. Ninguém falava. Após a parada
da teletela, a sala parecia mortalmente silenciosa. Os segundos
passavam, lentamente. Com dificuldade, Winston manteve os
olhos fixos nos de O’Brien. Então, de repente, aquele rosto
sombrio se abriu no que poderia ter sido o começo de um sorriso.
Com seu gesto característico, O’Brien arrumou seus óculos no
nariz.
– Devo começar a falar ou você começa? – ele perguntou.
– Eu começo – disse Winston prontamente. – Essa coisa está
realmente desligada?
– Sim, tudo está desligado. Estamos sozinhos.
– Viemos aqui porque...
Ele fez uma pausa, percebendo pela primeira vez a falta de
clareza de seus próprios motivos. Como de fato ele não sabia que
tipo de ajuda esperava de O’Brien, não foi fácil dizer porque ele
estava ali. Ele prosseguiu, consciente de que o que ele estava
dizendo soaria fraco e pretensioso:
– Acreditamos que exista algum tipo de conspiração, algum tipo
de organização secreta trabalhando contra o Partido e que você
está envolvido nisso. Queremos nos unir e trabalhar para ela.
Somos inimigos do Partido. Não acreditamos nos princípios do
Socing. Somos criminosos de pensamento. Também somos
adúlteros. Digo isto porque queremos nos colocar à sua
disposição. Se você quiser que nos incriminemos de mais alguma
forma, estamos prontos.
Ele parou e olhou por cima de seu ombro, com a sensação de que
a porta tinha se aberto. E havia. O pequeno criado com rosto
asiático havia entrado sem bater. Winston viu que ele carregava
uma bandeja com decantador e copos.
– Martin é um de nós – disse O’Brien impassível. – Traga as
bebidas para cá, Martin. Coloque-as na mesa redonda. Temos
cadeiras suficientes? Então vamos nos sentar e conversar com
conforto. Traga uma cadeira para você, Martin. Isto são negócios.
Você pode deixar de ser um empregado durante os próximos dez
minutos.
O pequeno homem se sentou à vontade, mas ainda com um ar
servil, o ar de um funcionário desfrutando de um privilégio.
Winston o observava com o canto de seus olhos. Ele percebeu que
o homem vinha desempenhando um papel por toda a sua vida e
que sentia que era perigoso abandonar o papel assumido, mesmo
que por um momento. O’Brien pegou o decantador e encheu os
copos com um líquido vermelho escuro. Ele despertou em
Winston lembranças não muito claras de algo visto há muito
tempo em uma parede ou em uma divisória de madeira - uma
grande garrafa composta de luzes elétricas que pareciam subir e
descer e despejar seu conteúdo em um copo. Visto de cima, o
material parecia quase preto, mas no decantador, brilhava como
um rubi. Tinha um cheiro ácido e adocicado. Ele viu Júlia pegar
seu copo e cheirá-lo com verdadeira curiosidade.
– Chama-se vinho – disse O’Brien com um leve sorriso. – Você
sem dúvida já leu sobre isso nos livros. Receio que não chegue
muito disso a quem não faz parte do Núcleo do Partido.
Seu rosto voltou a assumir um aspecto solene e ele levantou seu
copo:
– Acho que é apropriado começarmos com um brinde. Ao nosso
Líder! A Emmanuel Goldstein!
Winston pegou seu copo com um certo entusiasmo. O vinho era
algo sobre o que ele já havia lido e com que ele já havia sonhado.
Assim como o peso de papel de vidro ou as rimas meio lembradas
do Sr. Charrington, ele pertencia ao passado desaparecido e
romântico, aos velhos tempos, como ele gostava de chamá-lo em
seus pensamentos secretos. Por alguma razão, ele sempre pensou
no vinho como tendo um sabor intensamente doce, como o da
geleia de amora, e um efeito inebriante imediato. Na verdade,
quando ele engoliu o vinho, foi tão diferente do que ele
imaginava que chegou a ser decepcionante. A verdade é que
depois de anos bebendo gin, ele mal conseguiu saborear o vinho.
Ele pousou o copo vazio.
– Então existe mesmo uma pessoa como Goldstein? – disse ele.
– Sim, existe uma pessoa assim e ele está vivo. Onde, eu não sei.
– E a conspiração... a organização? É real? Não é simplesmente
uma invenção da Polícia do Pensamento?
– Não, é real. Nós a chamamos de A Irmandade. Você nunca
aprenderá muito mais sobre A Irmandade, apenas que ela existe e
que você pertence a ela. Voltarei a isso daqui a pouco.
Ele olhou para seu relógio de pulso.
– É insensato até mesmo para os membros do Núcleo do Partido
desligar a teletela por mais de meia hora. Vocês não deveriam ter
vindo aqui juntos, e terão que sair separadamente. Você, camarada
– ele apontou com a cabeça para Júlia – sairá primeiro. Temos
aproximadamente vinte minutos à nossa disposição. Você vai
entender que devo começar fazendo-lhe algumas perguntas. Em
termos gerais, o que você está preparado para fazer?
– Tudo o que pudermos fazer – disse Winston.
O’Brien tinha se virado um pouco em sua cadeira de modo a
encarar Winston. Ele quase ignorou Júlia, parecendo tomar como
certo que Winston podia falar por ela. Por um momento, suas
pálpebras desceram sobre seus olhos. Ele começou a fazer suas
perguntas com uma voz baixa e inexpressiva, como se isso fosse
uma rotina, uma espécie de catecismo, a maior parte das respostas
já era conhecida por ele.
– Vocês estão preparados para dar suas vidas?
– Sim.
– Você está preparado para cometer assassinato?
– Sim.
– Está de acordo em cometer atos de sabotagem que podem
causar a morte de centenas de pessoas inocentes?
– Sim.
– Trair seu país, beneficiando potências estrangeiras?
– Sim.
– Você está preparado para trapacear, forjar, chantagear,
corromper a mente das crianças, distribuir drogas que viciam,
incentivar a prostituição, disseminar doenças venéreas - fazer
qualquer coisa que possa causar desmoralização e enfraquecer o
poder do Partido?
– Sim.
– Se, por exemplo, de alguma forma for de nosso interesse jogar
ácido sulfúrico no rosto de uma criança; você está preparado para
fazer isso?
– Sim.
– Você está preparado para perder sua identidade e viver o resto
de sua vida como garçom ou trabalhador portuário?
– Sim.
– Você está preparado para cometer suicídio se, e quando, nós lhe
ordenarmos que o faça?
– Sim.
– Você está preparado, vocês dois, para se separarem e nunca
mais se verem?
– Não! Não! – interrompeu Júlia.
Pareceu a Winston que muito tempo se passou antes de ele
responder. Por um momento ele pareceu até mesmo ter sido
privado do poder da fala. Sua língua trabalhava sem som,
formando as sílabas primeiro de uma palavra, depois da outra.
Até o momento em que falou, ele não sabia qual palavra iria
dizer.
– Não – disse ele finalmente.
– Você fez bem em me dizer – disse O’Brien. – É necessário que
saibamos tudo.
Ele se virou para Júlia e em um tom mais expressivo,
acrescentou:
– Você entende que mesmo que ele sobreviva, pode ser como uma
pessoa diferente? Talvez sejamos obrigados a dar a ele uma nova
identidade. Seu rosto, seus movimentos, a forma de suas mãos, a
cor de seu cabelo - até mesmo sua voz seria diferente. E você
mesma poderia ser transformada em uma pessoa diferente.
Nossos cirurgiões podem alterar as pessoas além do
reconhecimento. Às vezes, isso é necessário. Às vezes até
amputamos um membro.
Winston não pôde evitar olhar com o canto de olho o rosto
mongol de Martin. Não havia cicatrizes que ele pudesse ver. Júlia
tinha ficado mais pálida, de modo que suas sardas se destacavam,
mas ela enfrentou O’Brien corajosamente. Ela murmurou algo
que parecia ser um consentimento.
– Bom. Então está resolvido.
Havia uma caixa de cigarros prateada sobre a mesa. Com um ar
bastante distraído, O’Brien empurrou-os em direção aos outros,
pegou um ele mesmo, depois se levantou e começou a andar
lentamente de um lado para o outro, como se pudesse pensar
melhor em pé. Eram cigarros muito bons, espessos e bem
embalados, com um papel de uma sedosidade incomum. O’Brien
olhou novamente para seu relógio de pulso.
– É melhor você voltar para sua copa, Martin – disse ele. –
Ligarei novamente a teletela dentro de quinze minutos. Dê uma
boa olhada nos rostos desses camaradas antes de ir. Você vai vê-
los novamente. Eu provavelmente não.
Exatamente como tinham feito na porta da frente, os olhos
escuros do homenzinho fitaram seus rostos. Não havia qualquer
traço de simpatia em seu gesto. Ele estava memorizando seus
rostos, mas não sentia interesse por eles, ou parecia não sentir
nenhum. Ocorreu a Winston que um rosto sintético talvez fosse
incapaz de alterar sua expressão. Sem falar ou se despedir, Martin
saiu, fechando a porta silenciosamente atrás dele. O’Brien estava
andando para cima e para baixo, com uma mão no bolso de seu
macacão preto, a outra segurando seu cigarro.
– Vocês devem entender – disse ele –, que estarão lutando no
escuro. Vocês estarão sempre na escuridão. Vocês receberão
ordens e as obedecerão, sem saber por quê. Mais tarde eu lhes
enviarei um livro onde vocês aprenderão a verdadeira natureza da
sociedade em que vivemos e a estratégia pela qual a destruiremos.
Quando tiverem lido o livro, vocês serão membros de pleno
direito da Irmandade. Mas vocês nunca saberão nada além dos
objetivos gerais pelos quais estamos lutando e das tarefas
imediatas do momento. Eu lhes digo que a Irmandade existe, mas
não posso lhes dizer se ela tem cem ou dez milhões de membros.
Por seus conhecimentos pessoais, vocês não poderão afirmar que
a Irmandade tem nem uma dúzia de membros. Vocês terão três ou
quatro contatos, que serão renovados de tempos em tempos à
medida que desaparecerem. Como este foi seu primeiro contato,
ele será preservado. Quando vocês receberem ordens, elas virão
de mim. Se acharmos necessário nos comunicar com vocês, será
através de Martin. Quando vocês forem finalmente pegos,
confessarão. Isso é inevitável. Mas vocês terão muito pouco a
confessar além de suas próprias ações. Vocês não serão capazes
de trair mais que um punhado de pessoas sem importância.
Provavelmente vocês sequer me trairão. A essa altura eu posso
estar morto ou ter me tornado uma pessoa diferente, com um
rosto diferente.
Ele continuou a se mover para cima e para baixo do tapete macio.
Apesar da grandeza de seu corpo, havia uma graça notável em
seus movimentos. Era perceptível até mesmo no gesto com o qual
ele colocava uma mão no bolso ou manuseava o cigarro. Mais do
que de força, ele passava a impressão de confiança e de uma
compreensão que carregava uma certa ironia. Por mais sincero
que fosse, ele não tinha nada comparável a um fanático. Quando
ele falava de assassinato, suicídio, doença venérea, membros
amputados e rostos alterados, ele tinha um ar tênue de submissão.
‘Isto é inevitável’, sua voz parecia dizer; ‘isto é o que temos que
fazer sem vacilar’. Mas não é isto que faremos quando valer a
pena viver a vida novamente. Uma onda de admiração, quase de
adoração, fluiu de Winston para O’Brien. No momento, ele havia
esquecido a figura sombria de Goldstein. Ao olhar para os
poderosos ombros de O’Brien e seu rosto bruto, tão feio e ao
mesmo tempo tão civilizado, era impossível acreditar que ele
pudesse ser derrotado. Não havia nenhum estratagema que não
estivesse a sua altura, nenhum perigo que ele não pudesse prever.
Até mesmo Júlia parecia estar impressionada. Ela estava deixando
seu cigarro queimar e escutava atentamente. O’Brien continuou:
– Vocês ouviram rumores sobre a existência da Irmandade. Sem
dúvida, vocês formaram suas próprias opiniões dela. Vocês
imaginaram, provavelmente, um enorme submundo de
conspiradores, encontrando-se secretamente nos porões,
rabiscando mensagens nas paredes, identificando uns aos outros
por códigos ou por movimentos especiais da mão. Nada disso
existe. Os membros da Irmandade não têm como se reconhecer
uns aos outros e é impossível para qualquer membro estar ciente
da identidade de mais do que alguns outros. O próprio Goldstein,
se caísse nas mãos da Polícia do Pensamento, não poderia dar-lhe
uma lista completa de membros ou qualquer informação que a
levasse a uma lista completa. Tal lista não existe. A Irmandade
não pode ser dizimada porque não é uma organização no sentido
comum. Nada a mantém unida, exceto uma ideia que é
indestrutível. Você nunca terá nada para sustentá-lo, exceto a
ideia. Você não terá nenhuma camaradagem e nenhum incentivo.
Quando finalmente você for pego, não terá nenhuma ajuda. Nós
nunca ajudamos nossos membros. No máximo, quando é
absolutamente necessário que alguém seja silenciado,
ocasionalmente somos capazes de contrabandear uma lâmina de
barbear para a cela de um prisioneiro. Você terá que se acostumar
a viver sem resultados e sem esperança. Você trabalhará por um
tempo, será pego, confessará e então morrerá. Esses são os únicos
resultados que você jamais verá. Não há nenhuma possibilidade
de que qualquer mudança perceptível aconteça no prazo de nossa
própria vida. Nós somos os mortos. Nossa única vida verdadeira
está no futuro. Participaremos dela como punhados de pó e lascas
de osso. Mas quão distante esse futuro pode estar, não há como
saber. Pode demorar mil anos. No momento, nada é possível,
exceto estender pouco a pouco a quantidade de pessoas sãs. Não
podemos agir coletivamente. Só podemos difundir nosso
conhecimento de indivíduo para indivíduo, geração após geração.
Diante da Polícia do Pensamento, não há outra maneira.
Ele parou e olhou pela terceira vez em seu relógio de pulso.
– Está quase na hora de você partir, camarada – disse ele à Júlia. –
Espere. O decantador ainda está meio cheio.
Ele encheu os copos e levantou seu próprio copo pela haste.
– Ao que devemos brindar desta vez? – disse ele ainda com a
mesma tênue ironia. – À confusão da Polícia do Pensamento? Até
a morte do Big Brother? À humanidade? Ao futuro?
– Ao passado, disse Winston.
– O passado é mais importante – concordou O’Brien em tom
sério.
Eles esvaziaram seus copos e na sequência Júlia se levantou para
ir. O’Brien pegou uma pequena caixa do topo de um armário e lhe
entregou uma pastilha branca, que ele instruiu que ela colocasse
em sua língua. Era importante, disse ele, não sair cheirando a
vinho: os ascensoristas eram muito observadores. Assim que a
porta se fechou atrás dela, ele pareceu esquecer sua existência.
Ele deu um ou dois passos para lá e para cá e depois parou.
– Há detalhes a serem acertados – disse ele. – Presumo que você
tenha um esconderijo de algum tipo.
– Winston explicou sobre o quarto sobre a loja do Sr.
Charrington.
– Por enquanto, isso será suficiente. Mais tarde, providenciaremos
outro para você. É importante mudar o seu esconderijo com
frequência. Enquanto isso, eu lhe enviarei um exemplar de O
LIVRO – Winston notou que até O’Brien parecia pronunciar as
palavras como se estivessem em destaque – o livro de Goldstein,
você sabe, o mais rápido possível. Pode demorar alguns dias até
que eu consiga um. Existem muitos, como você pode imaginar. A
Polícia do Pensamento os caça e os destrói quase tão rápido
quanto nós podemos produzi-los. Isso faz muito pouca diferença.
O livro é indestrutível. Se a última cópia tivesse desaparecido,
poderíamos reproduzi-lo quase palavra por palavra. Você carrega
uma pasta para o trabalho com você? – acrescentou ele.
– Como regra, sim.
– Como é?
– Preta, muito desgastada. Com duas tiras.
– Preta, duas tiras, muito desgastada – bom. Um dia, num futuro
bastante próximo – não posso dar uma data – uma das mensagens
entre seus trabalhos da manhã conterá uma palavra mal impressa
e você terá que pedir uma repetição. No dia seguinte você irá para
o trabalho sem a sua pasta. Em algum momento do dia, na rua,
um homem lhe tocará no braço e dirá: ‘Acho que você deixou cair
sua pasta’. A que ele lhe der, conterá uma cópia do livro de
Goldstein. Você o devolverá dentro de catorze dias.
– Eles ficaram em silêncio por um momento.
– Ainda temos alguns minutos antes de você precisar ir – disse
O’Brien. – Provavelmente voltaremos a nos encontrar. Se é que
vamos nos encontrar de novo.
Winston olhou para ele.
– No lugar onde não há escuridão – disse ele hesitantemente.
O’Brien balançou a cabeça sem parecer surpreso.
– No lugar onde não há escuridão –, disse ele, como se tivesse
reconhecido a alusão. – E nestes últimos minutos, há algo que
você queira dizer antes de partir? Alguma mensagem? Alguma
pergunta?
Winston pensou. Não parecia haver mais nenhuma pergunta que
ele quisesse fazer: ele tampouco sentiu qualquer impulso para
dizer generalidades de alta repercussão. Em vez de qualquer coisa
diretamente ligada a O’Brien ou à Irmandade, surgiu em sua
mente uma espécie de imagem composta do quarto escuro onde
sua mãe havia passado seus últimos dias e o pequeno quarto sobre
a loja do Sr. Charrington e o peso de papel de vidro e a gravura de
aço em sua moldura de madeira. Quase ao acaso, ele disse:
– Você já ouviu uma velha rima que começa com ‘Laranja e limão
sem semente, dizem os sinos de São Clemente’?
Novamente O’Brien acenou com a cabeça. Com uma espécie de
cortesia séria, ele completou a estrofe:
‘Laranja e limão sem semente, dizem os sinos de São
Clemente,
Você me deve um vintém, deve sim, dizem os sinos de São
Martim,
Quando verei a cor do meu vintém? Dizem os sinos de Old
Bailey,
Quando eu casar com a Judith, dizem os sinos de
Shoreditch.’
– Você conhece o último verso! – disse Winston.
– Sim, eu sei o último verso. E agora, receio que esteja na hora de
você ir. Mas espere. É melhor você me deixar lhe dar um destes
comprimidos.
Quanto Winston se levantou, O’Brien estendeu a mão. Seu
poderoso aperto de mão esmagou os ossos da palma da mão de
Winston. Na porta, Winston olhou para trás, mas O’Brien já
parecia estar em processo de tirá-lo da cabeça. Ele estava
esperando com sua mão no interruptor que controlava a teletela.
Além dele, Winston podia ver a escrivaninha com sua lâmpada
em tons de verde e a cesta de arame carregada de papéis. O
incidente estava encerrado. Ocorreu a Winston que, em trinta
segundos, O’Brien estaria de volta ao seu interrompido e
importante trabalho em nome do Partido.

Capítulo 9

Winston estava mole como gelatina, de tão cansado. Mole como


gelatina era a expressão certa. Tinha entrado em sua cabeça
espontaneamente. Seu corpo parecia ter não apenas a consistência
da gelatina, mas sua translucidez. Ele sentia que se levantasse a
mão, seria capaz de ver a luz passar através dela. Todo o sangue e
linfa haviam sido drenados dele por um volume enorme de
trabalho, deixando apenas uma estrutura frágil de nervos, ossos e
pele. Todas as sensações pareciam ser ampliadas. Seu macacão
incomodava seus ombros, o chão fazia cócegas em seus pés, até
mesmo abrir e fechar a mão eram esforços que faziam suas
articulações rangerem.
Ele tinha trabalhado mais de noventa horas em cinco dias. Assim
como todas as outras pessoas do Ministério. Agora estava tudo
acabado e ele não tinha literalmente nada para fazer, nenhum
trabalho do Partido de qualquer tipo, até o dia seguinte de manhã.
Ele podia passar seis horas no esconderijo e outras nove em sua
própria cama. Lentamente, sob os raios suaves do sol da tarde, ele
subiu uma rua suja em direção à loja do Sr. Charrington, atento à
polícia, mas irracionalmente convencido de que esta tarde não
havia perigo de que alguém fizesse qualquer coisa com ele. A
pesada pasta que ele carregava batia contra seu joelho a cada
passo, dando uma sensação de dormência na pele de sua perna.
Dentro dela estava o livro, que ele já tinha recebido há seis dias e
ainda não tinha aberto, nem sequer olhado.
No sexto dia da Semana do Ódio, após as procissões, os
discursos, os gritos, os cantos, as faixas, os cartazes, os filmes, os
trabalhos de cera, o rufar de tambores e o tocar de trombetas, o
estalido de pés marchando, o ranger das esteiras de tanques, o
rugido de aviões em massa, o estouro de armas - após seis dias
disto, quando o grande orgasmo estava estremecendo para seu
clímax e o ódio geral pela Eurásia borbulhava levando a tal
delírio que, se a multidão pudesse pôr as mãos nos 2.000
criminosos de guerra eurasiáticos que seriam enforcados
publicamente no último dia do processo, eles teriam
inquestionavelmente os despedaçado, exatamente neste momento,
havia sido anunciado que a Oceânia não estava em guerra com a
Eurásia. A Oceânia estava em guerra com a Lestásia. A Eurásia
era um aliado.
É claro que não houve qualquer admissão de que alguma
mudança tivesse acontecido. Simplesmente foi levado a
conhecimento, de supetão e para todos de uma só vez, que a
Lestásia, e não a Eurásia, era o inimigo. Winston estava
participando de uma passeata em uma das praças centrais de
Londres no momento em que isso aconteceu. Era noite e os rostos
brancos e os cartazes vermelhos estavam absolutamente
iluminados. A praça estava rodeada com vários milhares de
pessoas, incluindo um grupo de aproximadamente mil crianças
em idade escolar vestindo o uniforme dos Espiões. Em um palco
revestido de panos drapeados vermelhos, um orador do Núcleo do
Partido, um pequeno homem magro com braços
desproporcionalmente longos e uma grande cabeça careca sobre a
qual algumas mechas de cabelo ainda lutavam, discursava para a
multidão.
Semelhante a uma pequena figura de Rumpelstiltskin,5 todo
contorcido de ódio, ele agarrava o microfone com uma mão
enquanto a outra mão, na extremidade de um braço longo e
ossudo, agarrava o ar ameaçadoramente acima de sua cabeça. Sua
voz, metálica devido aos amplificadores, enumerava uma lista
interminável de atrocidades, massacres, deportações, saques,
estupros, torturas de prisioneiros, bombardeios de civis,
propagandas mentirosas, agressões injustas, tratados violados. Era
quase impossível ouvi-lo sem se convencer e depois enlouquecer.
Em alguns momentos a fúria da multidão fervilhava e a voz do
orador era abafada por um rugido selvagem que se elevava
incontrolavelmente de milhares de gargantas. Os gritos mais
selvagens de todos vinham das crianças em idade escolar. O
discurso já tinha talvez uns vinte minutos quando um mensageiro
correu para a plataforma e um pedaço de papel foi colocado nas
mãos do orador. Ele desenrolou e o leu sem parar seu discurso.
Nada se alterou em sua voz ou gestos ou no conteúdo do que ele
estava dizendo, mas de repente, os nomes mudaram. Sem que
qualquer palavra relacionada fosse dita, uma onda imediata de
compreensão se espalhou pela multidão. A Oceânia estava em
guerra com a Lestásia! No momento seguinte, houve uma
tremenda comoção. Os banners e cartazes que decoravam a praça
estavam todos errados! A metade deles tinha os rostos das
pessoas erradas. Tinham sido sabotados! Os agentes de Goldstein
tinham trabalhado! Ouvia-se um burburinho desordenado
enquanto os cartazes eram arrancados das paredes, as faixas
rasgadas em pedaços e pisoteadas. Os Espiões trabalhavam
prodigiosamente subindo nos telhados e cortando os cabos de aço
amarrados às chaminés. Mas, em dois ou três minutos, tudo
acabou. O orador, ainda agarrado ao microfone, com seus ombros
curvados para a frente, sua mão livre socando o ar, prosseguia em
frente com seu discurso. Mais um minuto e os rugidos ferozes de
fúria brotavam novamente na multidão. O ódio continuou
exatamente como antes, apenas o alvo é que agora era outro.
O que impressionara Winston ao relembrar o fato, era que o
homenzinho tinha mudado de um inimigo para o outro no meio de
uma frase, sem fazer sequer uma pausa, nem mesmo quebrar a
sintaxe. Mas, no momento, ele tinha outras coisas com que se
preocupar. Foi durante o momento de desordem, enquanto os
cartazes estavam sendo derrubados, que um homem cujo rosto ele
não viu, bateu em seu ombro e disse:
– Desculpe, acho que você deixou cair sua pasta.
Ele pegou a pasta, sem falar nada. Ele sabia que passariam dias
até que tivesse a oportunidade de olhar dentro dela. No instante
em que a manifestação terminou, ele foi direto para o Ministério
da Verdade, embora já fossem quase onze horas da noite. Todo o
pessoal do Ministério tinha feito o mesmo. As ordens emitidas
pela teletela, chamando-os para seus postos de trabalho, eram
praticamente desnecessárias.
A Oceânia estava em guerra com a Lestásia: a Oceânia sempre
esteve em guerra com a Lestásia. Uma grande parte da literatura
política de cinco anos estava agora completamente obsoleta.
Relatórios e registros de todos os tipos, jornais, livros, panfletos,
filmes, trilhas sonoras, fotografias - tudo tinha que ser retificado à
velocidade da luz. Embora nenhuma diretiva tivesse sido emitida,
sabia-se que os chefes do Departamento pretendiam que dentro de
uma semana nenhuma referência à guerra com a Eurásia, ou à
aliança com a Lestásia, existisse em lugar algum. O trabalho foi
esmagador, ainda mais porque os processos que ele envolvia não
podiam ser chamados por seus verdadeiros nomes. Todos no
Departamento de Registros trabalharam dezoito das vinte e quatro
horas do dia, com duas pausas de três horas de sono. Os colchões
eram trazidos dos porões e colocados pelos corredores: as
refeições consistiam em sanduíches e café Victory, servidos em
carrinhos que os atendentes da cantina empurravam. Cada vez
que Winston saía para uma de suas pausas de sono, ele procurava
deixar sua mesa sem nenhum trabalho pendente, e cada vez que
rastejava de volta com os olhos pegajosos e doloridos, era para
descobrir que outra chuva de rolinhos de papel havia coberto a
mesa como um monte de neve, soterrando em parte o ditógrafo e
transbordando para o chão, de modo que o primeiro trabalho era
sempre colocá-los em uma pilha organizada o suficiente para que
tivesse espaço para trabalhar. O pior de tudo era que o trabalho
não era de forma alguma puramente mecânico. Muitas vezes era
suficiente apenas substituir um nome por outro, mas qualquer
relato detalhado dos eventos exigia cuidado e imaginação. Mesmo
o conhecimento geográfico que se precisava para transferir a
guerra de uma parte do mundo para outra, era considerável.
Já pelo terceiro dia, seus olhos doíam insuportavelmente e seus
óculos precisavam ser enxutos com enorme frequência. Era como
se estivesse lutando com alguma tarefa física esmagadora, algo
que se tinha o direito de recusar e que, no entanto, se estava
neuroticamente ansioso para realizar. Até onde ele tinha tempo
para se lembrar, ele não se incomodava com o fato de que cada
palavra que murmurava no ditógrafo, cada traço de sua caneta,
fosse uma mentira deslavada. Ele estava tão ansioso quanto
qualquer outra pessoa no Departamento para que a falsificação
ficasse perfeita. Na manhã do sexto dia, o gotejamento dos
cilindros diminuiu. Por até meia hora, nada saiu do tubo; depois
mais um cilindro e depois nada mais. Em todos os lugares, mais
ou menos ao mesmo tempo, o trabalho estava se aliviando. Um
suspiro profundo e secreto percorreu o Departamento. Um
poderoso ato, que nunca poderia ser mencionado, havia sido
alcançado. Agora era impossível para qualquer ser humano
provar, através de documentos, que a guerra com a Eurásia havia
existido. Ao meio-dia foi anunciado inesperadamente que todos
os trabalhadores do Ministério estavam livres até o dia seguinte
pela manhã. Winston, ainda carregando a pasta contendo o livro,
que havia ficado entre seus pés enquanto ele trabalhava e sob seu
corpo enquanto dormia, foi para casa, se barbeou e quase
adormeceu no banho, embora a água mal estivesse morna.
Com uma espécie de rangido voluptuoso em suas articulações, ele
subiu a escada para o quarto acima da loja do Sr. Charrington. Ele
estava cansado, mas não mais sonolento. Ele abriu a janela,
acendeu o pequeno fogareiro sujo e colocou água para ferver em
uma panela; para o café. Júlia chegaria em breve: enquanto isso,
ele se ocuparia com o livro. Ele se sentou na poltrona de descanso
e abriu as duas tiras da pasta.
Tratava-se de volume preto pesado, amadoramente encadernado,
sem nome ou título na capa. A impressão também parecia ser
ligeiramente irregular. As páginas estavam desgastadas nas
bordas e se soltavam facilmente, como se o livro já tivesse
passado por muitas mãos. A inscrição na página de título dizia:
A TEORIA E PRÁTICA
DO COLETIVISMO OLIGÁRQUICO
por
Emmanuel Goldstein
Winston começou a ler:
Capítulo I
Ignorância é Força
Ao longo de todo o tempo que se tem registro e
provavelmente desde o final da Era Neolítica, sempre
houve três classes de pessoas no mundo, a Alta, a Média e
a Baixa. Elas foram subdivididas de muitas maneiras,
tiveram inúmeros nomes diferentes e seus números
relativos, bem como sua atitude em relação umas às
outras, variaram de época para época; mas a estrutura
essencial da sociedade nunca se alterou. Mesmo após
enormes revoltas e mudanças aparentemente irrevogáveis,
o mesmo padrão sempre se reafirmou, assim como um
giroscópio sempre volta ao equilíbrio, por mais longe que
seja empurrado de uma forma ou de outra.
Os objetivos desses grupos são totalmente inconciliáveis.
Winston parou de ler, para apreciar o fato de que ele estava
lendo com conforto e segurança. Ele estava sozinho: sem
teletela, sem ouvido no buraco da fechadura, sem qualquer
nervosismo para olhar por cima do ombro ou cobrir a
página com a mão. O ar doce do verão atingia seu rosto.
De algum lugar distante ouviam-se os gritos das crianças:
na própria sala não havia som, exceto o tique taque do
relógio. Ele se afundou mais um pouco na cadeira de
braços e colocou seus pés sobre o parapeito da lareira. Era
um deleite, uma eternidade. De repente, como às vezes se
faz com um livro do qual se sabe que se lerá e relerá cada
palavra, ele o abriu em um lugar diferente e se viu no
Capítulo III. Continuou a ler:
Capítulo III
Guerra é Paz
A divisão do mundo em três grandes superestados é um
evento que poderia ser, e de fato foi, previsto antes de
meados do século XX. Com a absorção da Europa pela
Rússia e do Império Britânico pelos Estados Unidos, duas
das três potências existentes, Eurásia e Oceânia, já
estavam efetivamente em funcionamento. A terceira,
Lestásia, só surgiu como uma unidade distinta depois de
mais uma década de lutas confusas. As fronteiras entre os
três superestados são em alguns lugares arbitrárias, e em
outros oscilam de acordo com a sorte da guerra, mas em
geral seguem linhas geográficas. A Eurásia compreende
toda a parte norte da massa terrestre europeia e asiática,
desde Portugal até o Estreito de Bering. A Oceânia
compreende as Américas, as ilhas atlânticas incluindo as
Ilhas Britânicas, a Australásia e a porção sul da África. A
Lestásia, menor que as outras e com uma fronteira
ocidental menos definida, compreende a China e os países
ao sul, as ilhas japonesas e uma porção grande, mas
oscilante, da Manchúria, Mongólia e Tibete.
Independentemente da combinação, estes três superestados
estão permanentemente em guerra, e assim tem sido nos
últimos vinte e cinco anos. A guerra, no entanto, não é
mais a luta desesperada e aniquiladora que foi nas
primeiras décadas do século XX. É uma guerra de
objetivos limitados entre combatentes que são incapazes
de destruir uns aos outros, não têm nenhuma causa
material para lutar e não estão divididos por nenhuma
diferença ideológica genuína. Isto não quer dizer que a
condução da guerra, ou a atitude prevalecente em relação a
ela, tenha se tornado menos sanguinária ou mais
cavalheiresca. Pelo contrário, a histeria bélica é contínua e
universal em todos os países, e atos como o estupro, o
saque, a matança de crianças, a redução de populações
inteiras à escravidão e represálias contra prisioneiros que
chegam a ser fervidos e enterrados vivos, são considerados
normais e, quando são cometidos pelo próprio lado e não
pelo inimigo, meritórios. Mas num sentido físico, a guerra
envolve um número muito pequeno de pessoas, na maioria
especialistas altamente treinados, e causa
comparativamente poucas baixas. A luta, quando há
alguma, ocorre nas fronteiras etéreas, cujos limites
incertos o homem comum só consegue inferir, ou em torno
das Fortalezas Flutuantes que guardam pontos estratégicos
nas faixas marítimas. Nas regiões habitadas pela
civilização, a guerra não significa mais do que uma
contínua escassez de bens de consumo e o ocasional
impacto de um míssil, que pode causar algumas dezenas de
mortes. De fato, a guerra mudou seu caráter. Mais
exatamente, as razões pelas quais a guerra é travada
mudaram em sua ordem de importância. Motivos que já
estavam presentes, em pequena escala, nas grandes guerras
do início do século XX, tornaram-se agora dominantes e
são conscientemente identificados, gerando ações também
conscientes.
Para compreender a natureza da guerra atual - pois apesar
do reagrupamento que ocorre a cada poucos anos, é
sempre a mesma guerra - é preciso perceber em primeiro
lugar que é impossível que ela seja decisiva. Nenhum dos
três superestados poderia ser definitivamente conquistado
mesmo se os outros dois se unissem em conluio. Eles são
muito parecidos e suas defesas naturais são formidáveis. A
Eurásia é protegida por seus vastos espaços terrestres, a
Oceânia pela imensidão do Atlântico e do Pacífico, a
Lestásia pela fecundidade e produtividade de seus
habitantes. Em segundo lugar, não há mais, em um sentido
material, nada pelo que se lutar. Com o estabelecimento de
economias autônomas, nas quais a produção e o consumo
estão voltados um para o outro, a disputa por mercados,
que era a principal causa de guerras anteriores, chegou ao
fim, enquanto a competição por matérias-primas não é
mais uma questão de vida ou morte. De toda forma, cada
um dos três superestados é tão vasto que pode obter quase
todos os materiais de que necessita dentro de seus próprios
limites. Na medida em que a guerra tem um propósito
econômico direto, ela é uma guerra pela força de trabalho.
Entre as fronteiras dos superestados, e não na posse
permanente de nenhum deles, existe um quadrilátero com
seus vértices em Tânger, Brazzaville, Darwin e Hong
Kong, contendo dentro dele cerca de um quinto da
população da Terra. É pela posse destas regiões
densamente povoadas e da calota de gelo do polo Norte,
que as três potências estão em constante luta. Na prática,
nenhuma potência jamais controla toda a área disputada.
Porções dela estão constantemente mudando de mãos, e é
a chance de aproveitar este ou aquele fragmento por um
golpe repentino de traição, que dita as intermináveis
mudanças de alinhamento.
Todos os territórios disputados contêm minerais valiosos, e
alguns deles produzem produtos vegetais importantes
como a borracha, que em climas mais frios é necessário
sintetizar através de métodos comparativamente mais
caros. Mas acima de tudo, eles contêm uma reserva
infinita de mão-de-obra barata. Qualquer que seja o poder
que controla a África equatorial, ou os países do Oriente
Médio, ou do sul da Índia, ou o Arquipélago da Indonésia,
dispõe também da mão de obra de centenas de milhões
trabalhadores produtivos e mal pagos. Os habitantes destas
áreas, quase que abertamente declarados escravos, passam
continuamente de conquistador para conquistador e são
usados como se fossem carvão ou petróleo na corrida para
se produzir mais armamentos, para capturar mais
territórios, para controlar mais força de trabalho, para
obter mais armamentos, para capturar mais territórios, e
assim por diante indefinidamente. Deve-se notar que a luta
nunca se move realmente para além das fronteiras das
áreas disputadas. As fronteiras da Eurásia fluem entre a
bacia do Congo e a costa norte do Mediterrâneo; as ilhas
do Oceano Índico e do Pacífico são constantemente
capturadas e recapturadas pela Oceânia ou pela Lestásia;
na Mongólia, a linha divisória entre a Eurásia e a Lestásia
nunca é estável; ao redor do Polo, as três potências
reivindicam enormes territórios que, de fato, são em
grande parte unidos e inexplorados: mas o equilíbrio de
poder permanece sempre relativamente uniforme e o
território que forma o coração de cada super-Estado
permanece sempre intocado. Além disso, o trabalho dos
povos explorados em torno da linha do Equador não é
realmente necessário para a economia mundial. Eles não
acrescentam nada à riqueza do mundo, já que o que eles
produzem é usado para fins de guerra, e o objetivo de
travar uma guerra é estar sempre em melhor posição para
travar outra guerra. Por seu trabalho, as populações
escravas permitem acelerar o ritmo da guerra contínua.
Mas se eles não existissem, a estrutura da sociedade
mundial e o processo pelo qual ela se mantém, não seriam
essencialmente diferentes.
O objetivo principal da guerra moderna (de acordo com os
princípios do DUPLIPENSAMENTO, este objetivo é
simultaneamente reconhecido e não reconhecido pelos
cérebros dirigentes do Núcleo do Partido) é utilizar os
produtos da máquina sem elevar o padrão geral de vida.
Desde o final do século XIX, o problema do que fazer com
o excedente de bens de consumo tem estado latente na
sociedade industrial. Atualmente, quando poucos seres
humanos têm sequer o suficiente para comer, este
problema não é obviamente urgente, e poderia não ter se
tornado assim, mesmo que nenhum processo artificial de
destruição estivesse em ação. O mundo de hoje é um lugar
nu, faminto e dilapidado em comparação com o mundo
que existia antes de 1914, em especial se comparado com
o futuro que as pessoas daquele período imaginavam. No
início do século XX, a visão de uma sociedade futura
incrivelmente rica, bem organizada, ordenada e eficiente -
um brilhante mundo antisséptico de vidro e aço e concreto
branco como a neve - fazia parte da consciência de quase
todas as pessoas alfabetizadas. A ciência e a tecnologia
estavam se desenvolvendo em uma velocidade prodigiosa
e parecia natural supor que continuariam se
desenvolvendo. Isto não aconteceu, em parte devido ao
empobrecimento causado por uma longa série de guerras e
revoluções, em parte porque o progresso científico e
técnico dependia do hábito empírico do pensamento, que
não podia sobreviver em uma sociedade estritamente
regimentada. Como um todo, o mundo é hoje mais
primitivo do que era há cinquenta anos. Algumas áreas
atrasadas avançaram, e vários dispositivos, sempre de
alguma forma ligados à guerra e à espionagem policial,
foram desenvolvidos, mas a experiência e a invenção
pararam em grande parte, e a devastação da guerra atômica
da década de cinquenta nunca foi totalmente reparada. No
entanto, os perigos inerentes à máquina ainda estão
presentes. Desde o momento em que a máquina apareceu
pela primeira vez, ficou claro para todas as pessoas que
pensavam, que a necessidade de trabalho humano e,
portanto, em grande parte de desigualdade humana, havia
desaparecido. Se a máquina fosse usada deliberadamente
para esse fim, a fome, o excesso de trabalho, a sujeira, o
analfabetismo e as doenças poderiam ser eliminados
dentro de poucas gerações. E de fato, sem ser usada para
tal fim, mas por uma espécie de processo automático - ao
produzir riqueza que às vezes era impossível não distribuir
- a máquina elevou muito o nível de vida do ser humano
médio ao longo de um período de cerca de cinquenta anos
no final do século XIX e início do século XX.
Mas também ficou claro que um aumento generalizado da
riqueza provocaria a destruição - de fato, de certa forma,
foi a destruição - de uma sociedade hierárquica. Em um
mundo no qual todos trabalhavam poucas horas, tinham o
suficiente para comer, viviam em uma casa com banheiro
e geladeira e possuíam um automóvel ou mesmo um avião,
a forma mais óbvia e talvez a mais importante de
desigualdade já teria desaparecido. Se uma vez se tornasse
geral, a riqueza não conferiria nenhuma distinção. Era
possível, sem dúvida, imaginar uma sociedade na qual a
RIQUEZA, no sentido de bens pessoais e luxos, deveria
ser distribuída uniformemente, enquanto o PODER
permanecesse nas mãos de uma pequena casta
privilegiada. Mas na prática, tal sociedade não poderia
permanecer estável por muito tempo. Pois se o lazer e a
segurança fossem desfrutados por todos da mesma forma,
a grande massa de seres humanos que normalmente é
subjugada pela pobreza, se tornaria alfabetizada e
aprenderia a pensar por si mesma; e quando o tivesse feito,
mais cedo ou mais tarde perceberia que a minoria
privilegiada não tinha função e a varreria para longe. A
longo prazo, uma sociedade hierárquica só era possível
com base na pobreza e na ignorância. Voltar ao passado
agrícola, como alguns pensadores do início do século XX
sonhavam fazer, não era uma solução praticável. Ela
entrava em conflito com a tendência à mecanização, que se
tornara quase instintiva praticamente no mundo todo e,
além disso, qualquer país que permanecesse
industrialmente atrasado estava desamparado no sentido
militar e mais suscetível a ser dominado, direta ou
indiretamente, por seus rivais mais avançados.
Também não foi uma solução satisfatória manter as massas
na pobreza através da restrição da produção de bens. Isto
aconteceu extensivamente durante a fase final do
capitalismo, aproximadamente entre 1920 e 1940.
Admitiu-se que a economia de muitos países se
estagnasse, a terra deixou de ser cultivada, não houve
acréscimo de bens de capital, grande parte da população,
estando impedida de trabalhar, foi mantida semiviva pela
caridade do Estado. Mas isto também implicou em
fraqueza militar e, como as privações que infligia eram
obviamente desnecessárias, tornou inevitável a oposição.
O problema era como manter a indústria girando sem
aumentar a verdadeira riqueza do mundo. As mercadorias
deviam ser produzidas, mas não podiam ser distribuídas.
E, na prática, a única maneira de conseguir isso era através
de uma guerra contínua.
O ato essencial da guerra é a destruição, não
necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do
trabalho humano. A guerra é uma forma de despedaçar, ou
lançar na estratosfera, ou afundar nas profundezas do mar,
materiais que de outra forma poderiam ser usados para
tornar as massas demasiadamente confortáveis e portanto,
a longo prazo, demasiado inteligentes. Mesmo quando as
armas de guerra não são realmente destruídas, sua
fabricação ainda é uma forma conveniente de gastar
energia de mão-de-obra sem produzir nada que possa ser
consumido. Uma Fortaleza Flutuante, por exemplo,
encerra nela a mão-de-obra que construiria várias centenas
de navios de carga. Ao final, ela é assumida como obsoleta
e sucateada, nunca tendo trazido nenhum benefício
material a ninguém, e com mais trabalho ainda outra
Fortaleza Flutuante é construída. Em princípio, o esforço
de guerra é sempre planejado para consumir qualquer
excedente que possa existir após atender às necessidades
básicas da população. Na prática, as necessidades da
população são sempre subestimadas e, como resultado, há
uma escassez crônica da metade das necessidades vitais;
mas isto é visto como uma vantagem. É política deliberada
manter até mesmo os grupos favorecidos em algum lugar
perto das margens da dificuldade, porque um estado geral
de escassez aumenta a importância de pequenos
privilégios e, assim, amplia a distinção entre os grupos.
Pelos padrões do início do século XX, até mesmo um
membro do Núcleo do Partido vive uma vida austera e
laboriosa. No entanto, os poucos luxos de que ele desfruta
- seu grande e bem equipado apartamento, a melhor
textura de suas roupas, a melhor qualidade de sua comida
e bebida e do tabaco, seus dois ou três criados, seu carro
particular ou helicóptero - o colocam em um mundo
diferente de um membro do Partido Exterior, e os
membros do Partido Exterior têm uma vantagem
semelhante em comparação com as massas submersas que
chamamos de proletários. A atmosfera social é a de uma
cidade sitiada, onde a posse de uma porção de carne de
cavalo faz a diferença entre riqueza e pobreza. E, ao
mesmo tempo, a consciência de estar em guerra e,
portanto, em perigo, faz com que a entrega de todo poder a
uma pequena casta pareça a condição natural e inevitável
de sobrevivência.
Conforme será explicado, a guerra realiza a destruição
necessária, mas a realiza de uma forma psicologicamente
aceitável. Em princípio, seria bastante simples desperdiçar
a mão-de-obra excedente do mundo construindo templos e
pirâmides, cavando buracos e fechando-os novamente, ou
até mesmo produzindo grandes quantidades de
mercadorias e depois ateando fogo a elas. Mas isto
proporcionaria apenas a base econômica e não a base
emocional para uma sociedade hierárquica. O que
preocupa aqui não é a moral das massas, cuja atitude não é
importante enquanto elas se mantiverem firmes no
trabalho, mas a moral do próprio Partido. Mesmo o
membro mais humilde do Partido deve ser competente,
empenhado e até inteligente dentro de limites restritos,
mas também é necessário que ele seja um crédulo e
fanático ignorante, cujos sentimentos prevalecentes sejam:
medo, ódio, adulação e triunfo orgíaco. Em outras
palavras, é necessário que ele tenha a mentalidade
apropriada a um estado de guerra. Não importa se a guerra
está realmente acontecendo e, como não é possível uma
vitória decisiva, não importa se a guerra está indo bem ou
mal. Tudo o que é necessário é que um estado de guerra
exista. A diferenciação de inteligência que o Partido exige
de seus membros, e que é mais facilmente alcançada em
uma atmosfera de guerra, é agora quase universal, mas
quanto mais alto se sobe na hierarquia, mais clara ela se
torna. É precisamente no Núcleo do Partido que a histeria
bélica e o ódio ao inimigo são mais fortes. Em sua
capacidade como administrador, é muitas vezes necessário
que um membro do Núcleo do Partido saiba que esta ou
aquela notícia de guerra não é verdadeira, e ele pode
muitas vezes estar ciente de que toda a guerra é espúria e
não está acontecendo, ou está sendo travada com
propósitos bem diferentes dos declarados: mas tal
conhecimento é facilmente neutralizado pela técnica do
DUPLIPENSAMENTO. Assim, nenhum membro do
Núcleo do Partido vacila por um instante em sua crença
mística de que a guerra é real e que está fadada a terminar
vitoriosamente, com a Oceânia se transformando em
mestre inquestionável do mundo inteiro.
Todos os membros do Núcleo do Partido acreditam nesta
conquista vindoura como um artigo de fé. Ela deve ser
alcançada ou pela aquisição gradual de mais e mais
territórios, construindo assim uma preponderância
esmagadora do poder, ou pela descoberta de alguma arma
nova e imbatível. A busca por novas armas continua
incessantemente e é uma das poucas atividades restantes
em que mentes inventivas ou especulativas são
empregadas. Na Oceânia de hoje, a Ciência, no sentido
antigo, praticamente deixou de existir. Em Novilíngua não
há nenhuma palavra para “Ciência”. O método empírico
de pensamento, no qual todas as conquistas científicas do
passado foram fundadas, se opõe aos princípios mais
fundamentais do Socing. E mesmo o progresso
tecnológico; ele só acontece quando seus produtos podem
de alguma forma ser utilizados para a diminuição da
liberdade humana. Em todas as artes úteis, o mundo ou
está parado ou está indo para trás. Os campos são
cultivados com charruas de cavalos enquanto os livros são
escritos por máquinas. Mas em assuntos de importância
vital - ou seja, na verdade, guerra e espionagem policial -
a abordagem empírica ainda é encorajada, ou pelo menos
tolerada. Os dois objetivos do Partido são conquistar toda
a superfície da terra e extinguir de uma vez por todas a
possibilidade do pensamento independente. Há, portanto,
dois grandes problemas que o Partido está preocupado em
resolver. Um é como descobrir o que outro ser humano
está pensando, mesmo contra a sua vontade, e o outro é
como matar várias centenas de milhões de pessoas em
poucos segundos sem dar aviso prévio. Na medida em que
a pesquisa científica ainda continua, este é seu tema. O
cientista de hoje ou é uma mistura de psicólogo e
inquisidor, estudando com verdadeira minuciosidade o
significado de expressões faciais, gestos e tons de voz, e
testando métodos que obriguem a exposição da verdade,
drogas, terapia de choque, hipnose e tortura física; ou é
químico, físico ou biólogo, preocupado apenas com os
ramos de seu tema especial que são relevantes para a
questão da vida. Nos vastos laboratórios do Ministério da
Paz e nas estações experimentais escondidas nas florestas
brasileiras ou no deserto australiano ou em ilhas perdidas
da Antártida, as equipes de especialistas trabalham
incansavelmente. Alguns se preocupam simplesmente em
planejar a logística de guerras futuras; outros concebem
mísseis cada vez maiores, explosivos cada vez mais
poderosos e blindagem cada vez mais impenetrável; outros
procuram por gases novos e mais mortais, ou por venenos
solúveis capazes de serem produzidos em quantidades tais
que destruam a vegetação de continentes inteiros, ou por
vírus de doenças imunes a todos os anticorpos possíveis;
outros se esforçam para produzir um veículo que cave seu
caminho sob o solo como um submarino sob a água, ou
um avião tão independente de sua base como um veleiro;
outros exploram até mesmo possibilidades remotas, como
focalizar os raios solares através de lentes suspensas a
milhares de quilômetros de distância no espaço, ou
produzir terremotos artificiais e maremotos aproveitando o
calor no centro da terra.
Mas nenhum desses projetos chega perto de ser realizado e
nenhum dos três superestados ganha uma vantagem
significativa sobre os outros. O mais notável é que as três
potências já possuem, na bomba atômica, uma arma muito
mais poderosa do que qualquer outra que suas pesquisas
atuais provavelmente descobrirão. Embora o Partido,
como já é seu hábito, reivindique para si a invenção, as
bombas atômicas apareceram pela primeira vez já nos anos
quarenta e foram usadas pela primeira vez em larga escala
cerca de dez anos depois. Nessa época, algumas centenas
de bombas foram lançadas sobre centros industriais,
principalmente na Rússia europeia, na Europa Ocidental e
na América do Norte. O efeito foi convencer os grupos
dominantes de todos os países que mais algumas bombas
atômicas significariam o fim da sociedade organizada e,
portanto, de seu próprio poder. Depois disso, embora
nenhum acordo formal tenha sido feito ou sugerido, não
foram lançadas mais bombas. As três potências continuam
a produzir bombas atômicas e apenas as armazenam para a
oportunidade decisiva que todos eles acreditam que virá
mais cedo ou mais tarde. E enquanto isso, a arte da guerra
permaneceu quase estacionária por trinta ou quarenta anos.
Os helicópteros são mais usados do que eram
anteriormente, os aviões bombardeiros foram largamente
substituídos por projéteis autopropulsionados e o frágil
navio de guerra móvel deu lugar à quase insubmersível
Fortaleza Flutuante; fora isso, houve pouco
desenvolvimento. O tanque, o submarino, o torpedo, a
metralhadora, até mesmo a espingarda e a granada de mão
ainda estão em uso. E apesar dos intermináveis massacres
relatados na imprensa e nas teletelas, as desesperadas
batalhas de guerras anteriores, nas quais centenas de
milhares ou mesmo milhões de homens foram mortos com
frequência em poucas semanas, nunca se repetiram.
Nenhum dos três superestados tenta qualquer manobra que
envolva o risco de uma séria derrota. Quando qualquer
grande operação é empreendida, geralmente é um ataque
surpresa contra um aliado. A estratégia que os três poderes
estão seguindo, ou fingem a si mesmos que estão
seguindo, é a mesma. O plano é, através de uma
combinação de combates, barganhas e golpes oportunos de
traição, adquirir bases que cerquem completamente um
dos estados rivais, e então assinar um pacto de amizade
com esse rival e permanecer em condições pacíficas por
anos para acalmar as suspeitas. Durante este tempo,
mísseis carregados com bombas atômicas podem ser
montados nos pontos estratégicos; finalmente todos eles
serão disparados simultaneamente, com efeitos tão
devastadores que tornarão impossível a retaliação. Será
então o momento de assinar um pacto de amizade com a
potência mundial restante, em preparação para outro
ataque. Este esquema, não é necessário dizer, é um mero
devaneio, impossível de ser realizado. Além disso,
nenhuma luta jamais ocorre, exceto nas áreas disputadas
em torno da linha do Equador e do Polo: nenhuma invasão
do território inimigo é empreendida. Isto explica por que
em alguns lugares as fronteiras entre os superestados são
arbitrárias. A Eurásia, por exemplo, poderia facilmente
conquistar as Ilhas Britânicas, que são geograficamente
parte da Europa, ou por outro lado seria possível que a
Oceânia estendesse suas fronteiras para o Reno ou mesmo
para o Vístula. Mas isto violaria o princípio não
formulado, porém seguido por todos os lados, da
integridade cultural. Se a Oceânia conquistasse as áreas
que antes eram conhecidas como França e Alemanha, seria
necessário ou exterminar os habitantes, uma tarefa de
grande dificuldade física, ou absorver uma população de
cerca de cem milhões de pessoas que, no que diz respeito
ao desenvolvimento técnico, estão aproximadamente no
nível oceânico. O problema é o mesmo para todos os três
superestados. É absolutamente necessário para sua
estrutura que não haja contato com estrangeiros, exceto, de
forma limitada, com prisioneiros de guerra e escravos de
cor. Mesmo o aliado oficial do momento é sempre
considerado com a mais sombria suspeita. Prisioneiros de
guerra à parte, o cidadão médio da Oceânia nunca vê um
cidadão da Eurásia ou de Lestásia e é proibido conhecer
línguas estrangeiras. Se o contato com estrangeiros lhe
fosse permitido, ele descobriria que eles são criaturas
semelhantes a si mesmo e que a maior parte do que lhe foi
dito sobre eles é mentira. O mundo isolado em que ele
vive teria sua vedação rompida e o medo, o ódio e a auto
retidão dos quais sua moral depende, poderiam evaporar.
Portanto, percebe-se de todos os lados que, por mais que
muitas vezes a Pérsia, ou o Egito, ou Java, ou Ceilão
possam mudar de mãos, as principais fronteiras nunca
devem ser atravessadas por nada além de bombas.
Sob isto tudo está um fato nunca mencionado abertamente,
mas que foi tacitamente compreendido e aplicado: isto é,
que as condições de vida em todos os três superestados são
muito parecidas. Na Oceânia, a filosofia predominante é
chamada de Socing, na Eurásia é chamada de
Neobolchevismo, e na Lestásia é chamada por um nome
chinês geralmente traduzido como Veneração a Morte, mas
talvez a melhor tradução fosse Auto Obliteração. Ao
cidadão da Oceânia não é permitido conhecer nada dos
princípios das outras duas filosofias, mas ele é ensinado a
execrá-las como bárbaras atrocidades à moral e ao bom
senso. Na verdade, as três filosofias mal se distinguem e
tampouco os sistemas sociais que elas sustentam podem
ser distinguidos. Por toda parte existe a mesma estrutura
piramidal, o mesmo culto ao líder semidivino, a mesma
economia existente por e para a guerra contínua. Daí
resulta que os três superestados não só não podem
conquistar um ao outro, como tampouco obteriam alguma
vantagem se o fizessem. Pelo contrário, enquanto
permanecerem em conflito, eles se sustentam uns aos
outros, como três feixes de milho. E, como sempre, os
grupos governantes das três potências estão
simultaneamente conscientes e inconscientes do que estão
fazendo. Suas vidas são dedicadas à conquista mundial,
mas eles também sabem que é necessário que a guerra
continue eterna e sem vitória. Enquanto isso, o fato de não
haver perigo de conquista torna possível a negação da
realidade, que é a característica especial do Socing e de
seus sistemas de pensamento rivais. Aqui é necessário
repetir o que foi dito anteriormente, que ao se tornar uma
guerra contínua, ela mudou fundamentalmente seu caráter.
Em épocas passadas, uma guerra, quase por definição, era
algo que mais cedo ou mais tarde chegava ao fim,
geralmente com uma vitória ou derrota inconfundível. No
passado, também, a guerra era um dos principais
instrumentos pelos quais as sociedades humanas eram
mantidas em contato com a realidade física. Todos os
governantes em todas as épocas tentaram impor uma visão
falsa do mundo a seus seguidores, mas não podiam se dar
ao luxo de encorajar qualquer ilusão que prejudicasse a
eficiência militar. Uma vez que a derrota significava a
perda da independência, ou algum outro resultado
geralmente considerado indesejável, as precauções contra
a derrota tinham que ser sérias. Os fatos físicos não
podiam ser ignorados. Em filosofia, ou religião, ou ética,
ou política, dois e dois poderiam ser cinco, mas quando se
estava projetando uma arma ou um avião, tinha que ser
igual a quatro. As nações ineficientes eram sempre, mais
cedo ou mais tarde, conquistadas e a luta pela eficiência
era inimiga das ilusões. Além disso, para ser eficiente, era
necessário ser capaz de aprender com o passado, o que
significava ter uma ideia bastante precisa do que havia
acontecido no passado. Jornais e livros de história sempre
foram, naturalmente, coloridos e tendenciosos, mas uma
falsificação do tipo que é praticada hoje teria sido
impossível. A guerra era uma salvaguarda da sanidade e,
no que diz respeito às classes dirigentes, era
provavelmente a mais importante de todas as salvaguardas.
Embora as guerras pudessem ser ganhas ou perdidas,
nenhuma classe dominante poderia ser completamente
irresponsável.
Mas quando a guerra se torna literalmente contínua, ela
também deixa de ser perigosa. Quando a guerra é
contínua, não existe esforço de guerra. O progresso técnico
pode cessar e os fatos mais palpáveis podem ser negados
ou desconsiderados. Como vimos, as pesquisas que
poderiam ser chamadas de científicas ainda são realizadas
para fins de guerra, mas são essencialmente uma espécie
de devaneio e sua incapacidade de mostrar resultados não
é importante. A eficiência, mesmo a eficiência militar, não
é mais necessária. Nada é eficiente na Oceânia, exceto a
Polícia do Pensamento. Como cada um dos três
superestados é inconquistável, cada um é, na verdade, um
universo separado dentro do qual quase qualquer
perversão do pensamento pode ser praticada com
segurança. A realidade só exerce sua pressão através das
necessidades da vida cotidiana - a necessidade de comer e
beber, de conseguir abrigo e roupas, de evitar engolir
veneno ou cair das janelas dos andares superiores e coisas
do gênero. Entre a vida e a morte, e entre o prazer físico e
a dor física, ainda há uma distinção, mas isso é tudo.
Cortado do contato com o mundo exterior e com o
passado, o cidadão da Oceânia é como um homem no
espaço interestelar, que não tem como saber qual direção é
para cima e qual é para baixo. Os governantes de tal estado
são absolutos, como os Faraós ou os Césares não poderiam
ser. Eles são obrigados a evitar que um número grande e,
portanto, inconveniente, de seus seguidores morra de
fome, e são obrigados a permanecer no mesmo nível baixo
de técnica militar que seus rivais; mas uma vez atingido
esse mínimo, eles podem distorcer a realidade da forma
que quiserem.
A guerra, portanto, se a julgarmos pelos padrões das
guerras anteriores, é meramente uma farsa. É como as
batalhas entre certos animais ruminantes cujos chifres são
colocados em tal ângulo, que são incapazes de se
machucarem uns aos outros. Mas, embora seja irreal, não
é inútil. Ela consome o excedente de bens consumíveis e
ajuda a preservar a atmosfera mental especial que uma
sociedade hierárquica precisa. A guerra, veremos, é agora
um assunto puramente interno. No passado, os grupos
dirigentes de todos os países, embora pudessem
reconhecer seu interesse comum e, portanto, limitar a
destrutividade da guerra, lutaram uns contra os outros e o
vencedor sempre saqueou os vencidos. Atualmente, eles
não lutam de forma alguma uns contra os outros. A guerra
é travada por cada grupo governante contra seus próprios
súditos, e o objetivo da guerra não é fazer ou impedir
conquistas de território, mas manter intacta a estrutura da
sociedade. A própria palavra “guerra”, portanto, tornou-se
enganosa. Seria provavelmente correto dizer que a guerra,
ao se tornar contínua, deixou de existir. A pressão peculiar
que ela exerceu sobre os seres humanos entre a Era
Neolítica e o início do século XX desapareceu e foi
substituída por algo bem diferente. O efeito seria o mesmo
se os três superestados, ao invés de lutarem entre si,
concordassem em viver em paz para sempre, cada um
inviolado dentro de seus próprios limites. Pois, nesse caso,
cada um seria ainda um universo autocontido, livre para
sempre da séria influência do perigo externo. Uma paz que
fosse verdadeiramente permanente seria o mesmo que uma
guerra permanente. Este - embora a grande maioria dos
membros do Partido o entenda apenas superficialmente - é
o significado interno do slogan do Partido: GUERRA É
PAZ.
Winston parou de ler por um momento. Em algum lugar à
distância, um míssil explodiu. A deliciosa sensação de estar
sozinho com o livro proibido em uma sala sem teletela não tinha
perdido sua intensidade. Solidão e segurança eram sensações
físicas, misturadas de alguma forma com o cansaço de seu corpo,
a suavidade da cadeira, o toque da brisa tênue da janela que lhe
tocava na bochecha. O livro o fascinava, ou mais exatamente o
confortava. De certa forma, não lhe dizia nada de novo, mas isso
era parte da atração. Dizia o que ele teria dito, se tivesse sido
possível colocar em ordem seus pensamentos dispersos. Era o
produto de uma mente semelhante à sua, mas enormemente mais
poderosa, mais sistemática, menos dominada pelo medo. Os
melhores livros, ele percebeu, são aqueles que lhe dizem o que
você já sabe. Ele tinha acabado de voltar ao Capítulo I quando
ouviu os passos de Júlia na escada e começou a sair de sua
cadeira para encontrá-la. Ela jogou seu saco de ferramentas
marrom no chão e se jogou em seus braços. Fazia mais de uma
semana que eles não se viam.
– Eu estou com O LIVRO –, disse ele enquanto eles se
desenredavam.
– Ah, você está com ele? Que bom – disse ela sem muito
interesse e quase imediatamente ajoelhou-se ao lado do fogareiro
para fazer o café.
Só voltaram ao assunto depois de meia hora na cama. O fim de
tarde estava fresco o suficiente para que valesse a pena se cobrir
com a colcha. Do pátio, veio o som familiar do canto e do arrastar
de chinelos no chão. A enorme mulher de braços vermelhos que
Winston tinha visto lá em sua primeira visita era quase um objeto
fixo no pátio. Parecia não haver hora do dia em que ela não
estivesse marchando de um lado para o outro entre a tina de água
e o varal, usando a boca alternadamente para carregar pregadores
ou cantar suas canções. Júlia tinha se deitado de lado e parecia já
estar a ponto de adormecer. Winston esticou a mão para alcançar
o livro que estava no chão e sentou-se contra a cabeceira da cama.
– Temos que ler o livro – disse ele. – Você também. Todos os
membros da Irmandade têm que lê-lo.
–Você lê – disse ela com os olhos fechados. – Leia em voz alta.
Essa é a melhor maneira. Então você pode me explicar à medida
que for lendo.
Os ponteiros do relógio marcavam seis, ou seja, dezoito horas.
Eles tinham três ou quatro horas pela frente. Ele encostou o livro
contra seus joelhos e começou a ler:
Capítulo I
Ignorância é Força
Ao longo de todo o tempo que se tem registro e
provavelmente desde o final da Era Neolítica, sempre
houve três classes de pessoas no mundo, a Alta, a Média e
a Baixa. Elas foram subdivididas de muitas maneiras,
tiveram inúmeros nomes diferentes e seus números
relativos, bem como sua atitude em relação umas às
outras, variaram de época para época; mas a estrutura
essencial da sociedade nunca se alterou. Mesmo após
enormes revoltas e mudanças aparentemente irrevogáveis,
o mesmo padrão sempre se reafirmou, assim como um
giroscópio sempre volta ao equilíbrio, por mais longe que
seja empurrado de uma forma ou de outra.
– Júlia, você está acordada? – disse Winston.
– Sim, meu amor, estou ouvindo. Vá em frente. É maravilhoso.
Ele continuou lendo:
Os objetivos desses grupos são totalmente inconciliáveis.
O objetivo da classe mais Alta é permanecer onde está. O
da classe do Meio é mudar de lugar com a Alta. O objetivo
da Baixa, quando eles têm um objetivo, - pois é uma
característica permanente das pessoas da classe mais baixa
serem esmagadas por sua carga excessiva de trabalho a
ponto de não ter consciência de qualquer coisa que esteja
fora de seu dia a dia - é abolir todas as distinções e criar
uma sociedade na qual todos os homens sejam iguais.
Assim, ao longo da história, uma luta que é a mesma em
seus contornos principais se repete uma e outra vez.
Durante longos períodos, a classe Alta parece estar
seguramente no poder, mas mais cedo ou mais tarde, chega
sempre um momento em que perde ou a crença em si
mesma, ou sua capacidade de governar eficientemente, ou
ambos. Então é derrubada pela classe do Meio, que alista a
classe Baixa ao seu lado, fingindo estar lutando por
liberdade e justiça. Assim que atinge seu objetivo, a classe
Média empurra a classe Baixa de volta para sua antiga
posição de servidão e se posiciona na classe Alta. Então,
um novo grupo do Meio se separa de um dos outros
grupos, ou de ambos, e a luta começa de novo. Dos três
grupos, apenas a classe Baixa nunca é sequer
temporariamente bem-sucedida em alcançar seus
objetivos. Seria um exagero dizer que ao longo da história
não houve nenhum progresso de tipo material. Ainda hoje,
em um período de declínio, o ser humano médio está
fisicamente melhor do que há alguns séculos atrás. Mas
nenhum avanço na riqueza, nenhuma suavização das
maneiras, nenhuma reforma ou revolução jamais
aproximou a igualdade humana um milímetro sequer. Do
ponto de vista da classe Baixa, nenhuma mudança
histórica jamais significou muito mais do que uma
mudança no nome de seus mestres.
No final do século XIX, a recorrência deste padrão havia
se tornado óbvia para muitos observadores. Surgem então
escolas de pensadores que interpretam a história como um
processo cíclico e afirmam mostrar que a desigualdade é a
lei inalterável da vida humana. Esta doutrina, é claro,
sempre teve seus adeptos, mas na forma como foi
apresentada agora, teve uma mudança significativa. No
passado, a necessidade de uma forma hierárquica de
sociedade havia sido a doutrina especificamente da classe
Alta. Ela foi pregada por reis e aristocratas e por seus
parasitas, os sacerdotes, advogados e afins, e de maneira
geral, esta doutrina foi amenizada por promessas de
compensação num mundo imaginário além do túmulo. A
classe do meio, enquanto lutava pelo poder, sempre tinha
feito uso de termos como liberdade, justiça e fraternidade.
Agora, porém, o conceito de fraternidade humana
começou a ser atacado por pessoas que ainda não estavam
em posições de comando, mas esperavam estar em breve.
No passado, o Meio tinha feito revoluções sob a bandeira
da igualdade, mas estabeleceu uma nova tirania assim que
a antiga foi derrubada. Os novos grupos do Meio, na
verdade, proclamaram sua tirania de antemão. O
socialismo, uma teoria que surgiu no início do século XIX
e foi o último elo de uma corrente de pensamento que
remontava às rebeliões de escravos da antiguidade, ainda
estava profundamente infectado pelo Utopismo de eras
passadas. Mas em cada variante do Socialismo que surgiu
a partir de aproximadamente 1900, o objetivo de
estabelecer a liberdade e a igualdade foi cada vez mais
abertamente abandonado. Os novos movimentos que
surgiram em meados do século, Socing na Oceânia,
Neobolchevismo na Eurásia, Veneração a Morte, como é
comumente chamado, na Lestásia, tinham o objetivo
consciente de perpetuar a falta de liberdade e a
desigualdade. Estes novos movimentos, é claro, cresceram
a partir dos antigos e tendiam a manter seus nomes e a
propagar sua ideologia da boca para fora. Mas o objetivo
de todos eles era deter o progresso e congelar a história em
um determinado momento. O balanço do pêndulo deveria
acontecer mais uma vez e depois parar. Como de costume,
a classe Alta deveria ser derrubada pela classe Média, que
se tornaria então a Alta; mas desta vez, por estratégia
consciente, a Alta seria capaz de manter sua posição
permanentemente.
As novas doutrinas surgiram em parte devido ao acúmulo
de conhecimento histórico e ao crescimento do senso de
história, que quase não existia antes do século XIX. O
movimento cíclico da história era agora inteligível, ou
parecia sê-lo; e se era inteligível, então era alterável. Mas a
causa principal, subjacente foi que, já no início do século
XX, a igualdade humana havia se tornado tecnicamente
possível. Ainda era verdade que os homens não eram
iguais em seus talentos nativos e que as funções tinham
que ser especializadas de forma a favorecer alguns
indivíduos em detrimento de outros; mas não havia mais
nenhuma necessidade real de distinção de classes ou de
grandes diferenças de riqueza. Em épocas anteriores, as
distinções de classe não só eram inevitáveis, mas
desejáveis. Desigualdade era o preço da civilização. Com
o desenvolvimento da produção de máquinas, no entanto,
o caso foi alterado. Mesmo que ainda fosse necessário que
os seres humanos fizessem diferentes tipos de trabalho,
não era mais necessário que eles vivessem em diferentes
níveis sociais ou econômicos. Portanto, do ponto de vista
dos novos grupos que estavam a ponto de tomar o poder, a
igualdade humana não era mais um ideal a ser perseguido,
mas um perigo a ser evitado. Em épocas mais primitivas,
quando uma sociedade justa e pacífica não era de fato
possível, tinha sido bastante fácil acreditar nisso. A ideia
de um paraíso terrestre no qual os homens deveriam viver
juntos em um estado de fraternidade, sem leis e sem
trabalho bruto, havia assombrado a imaginação humana
por milhares de anos. E esta visão tinha tido uma certa
influência até mesmo sobre os grupos que de fato lucraram
com cada mudança histórica. Os herdeiros das revoluções
francesa, inglesa e americana haviam acreditado em parte
em suas próprias frases sobre os direitos do homem,
liberdade de expressão, igualdade perante a lei e afins, e
até mesmo permitido que sua conduta fosse influenciada
por eles em certa medida. Mas na quarta década do século
XX, todas as principais correntes de pensamento político
eram autoritárias. O paraíso terreno havia sido
desacreditado exatamente no momento em que se tornou
realizável. Cada nova teoria política, seja qual for seu
nome, levou de volta à hierarquia e à regimentação. E no
endurecimento geral das perspectivas que se instalaram
por volta de 1930, práticas que haviam sido abandonadas
há muito tempo, em alguns casos por centenas de anos -
prisão sem julgamento, uso de prisioneiros de guerra como
escravos, execuções públicas, tortura para extrair
confissões, uso de reféns e deportação de populações
inteiras - não só se tornaram comuns novamente, mas
foram toleradas e até mesmo defendidas por pessoas que
se consideravam iluminadas e progressistas.
Foi somente após uma década de guerras nacionais,
guerras civis, revoluções e contrarrevoluções em todas as
partes do mundo, que o Socing e seus rivais surgiram
como teorias políticas totalmente elaboradas. Mas elas
haviam sido prefiguradas pelos vários sistemas,
geralmente chamados totalitários, que haviam surgido no
início do século, e os principais contornos do mundo que
iriam emergir do caos prevalecente haviam sido óbvios por
muito tempo. Que tipo de pessoas controlariam este
mundo, era igualmente óbvio. A nova aristocracia era
formada pela maioria dos burocratas, cientistas, técnicos,
representantes sindicais, especialistas em publicidade,
sociólogos, professores, jornalistas e políticos
profissionais. Estas pessoas, cujas origens estavam na
classe média assalariada e nas classes altas da classe
trabalhadora, tinham sido moldadas e reunidas pelo mundo
estéril da indústria monopolista e do governo centralizado.
Em comparação com a mesma classe em épocas passadas,
estes eram menos avarentos, menos tentados pelo luxo,
mais famintos por puro poder e, acima de tudo, mais
conscientes do que estavam fazendo e mais intencionados
a esmagar a oposição. Esta última diferença foi crucial.
Em comparação com o que existe hoje, todas as tiranias do
passado não tinham convicção e eram ineficientes. Os
grupos dirigentes sempre foram infectados, até certo
ponto, por ideias liberais e se contentavam em deixar
pontas soltas em todos os lugares, em considerar apenas o
ato ostensivo e em não se interessar pelo que seus súditos
estavam pensando. Até mesmo a Igreja Católica da Idade
Média era tolerante com os padrões modernos. Parte da
razão para isto era que no passado nenhum governo tinha o
poder de manter seus cidadãos sob constante vigilância. A
invenção da impressão, porém, facilitou a manipulação da
opinião pública, e o filme e o rádio levaram o processo
adiante. Com o desenvolvimento da televisão e o avanço
técnico que tornou possível receber e transmitir
simultaneamente no mesmo instrumento, a vida privada
chegou ao fim. Cada cidadão, ou pelo menos cada cidadão
suficientemente importante para ser monitorado, podia ser
mantido durante vinte e quatro horas por dia sob os olhos
da polícia e ouvindo a propaganda oficial, com todos os
outros canais de comunicação fechados. A possibilidade
de impor não apenas a obediência total à vontade do
Estado, mas a uniformidade total de opinião sobre todos os
assuntos, existia agora pela primeira vez.
Após o período revolucionário dos anos 50 e 60, a
sociedade se reagrupou, como sempre, em classe Alta,
Média e Baixa. Mas a nova classe Alta, ao contrário de
todos os seus precursores, não agiu por instinto, mas sabia
o que era necessário para salvaguardar sua posição. Há
muito se havia percebido que a única base segura para a
oligarquia é o coletivismo. Riqueza e privilégio são mais
facilmente defendidos quando são possuídos em conjunto.
A chamada “abolição da propriedade privada” que ocorreu
em meados do século significou, com efeito, a
concentração da propriedade em muito menos mãos do
que antes: mas com esta diferença, os novos proprietários
eram um grupo, em vez de uma massa de indivíduos.
Individualmente, nenhum membro do Partido possui nada,
exceto pequenos pertences pessoais. Coletivamente, o
Partido possui tudo na Oceânia, porque controla tudo e
dispõe dos produtos como achar conveniente. Nos anos
que se seguiram à Revolução, foi possível assumir esta
posição de comando quase que sem oposição, porque todo
o processo foi representado como um ato de coletivização.
Sempre se havia assumido que se a classe capitalista fosse
expropriada, o Socialismo deveria seguir: e
inquestionavelmente os capitalistas haviam sido
expropriados. Fábricas, minas, terras, casas, transportes -
tudo lhes havia sido retirado: e como estas coisas não eram
mais propriedade privada, elas deveriam ser propriedade
pública. O Socing, que nasceu do movimento socialista
anterior e herdou sua fraseologia, de fato realizou o
principal item do programa socialista; com o resultado,
previsto e pretendido de antemão, de que a desigualdade
econômica se tornou permanente.
Mas os problemas de perpetuação de uma sociedade
hierárquica vão mais fundo do que isso. Há apenas quatro
maneiras pelas quais um grupo governante pode perder o
poder. Ou ele é conquistado de fora, ou governa de forma
tão ineficiente que as massas se revoltam, ou permite que
um grupo Médio forte e descontente venha a existir, ou
perde sua própria autoconfiança e vontade de governar.
Estas causas não operam isoladamente e, como regra,
todas as quatro estão presentes em algum grau. Uma classe
dominante que pudesse se precaver contra todas elas
permaneceria no poder permanentemente. Em última
instância, o fator determinante é a atitude mental da
própria classe governante.
Depois de meados do século atual, o primeiro perigo na
realidade desapareceu. Cada uma das três potências que
agora dividem o mundo é de fato inconquistável e só
poderia se tornar conquistável através de lentas mudanças
demográficas que um governo com amplos poderes pode
facilmente evitar. O segundo perigo, também, é apenas
teórico. As massas nunca se revoltam por vontade própria,
e nunca se revoltam apenas porque são oprimidas. De fato,
desde que não lhes seja permitido ter padrões de
comparação, elas nem sequer se dão conta de que são
oprimidas. As crises econômicas recorrentes em épocas
anteriores eram totalmente desnecessárias e não são mais
permitidas, mas outros deslocamentos igualmente grandes
podem e acontecem sem resultados políticos, porque não
há como o descontentamento se tornar articulado. Quanto
ao problema da superprodução, que está latente em nossa
sociedade desde o desenvolvimento da técnica das
máquinas, ele é resolvido pelo dispositivo da guerra
contínua (ver Capítulo III), que também é útil para elevar a
moral pública até o nível necessário. Do ponto de vista de
nossos atuais governantes, portanto, os únicos perigos
reais são o surgimento de um novo grupo de pessoas
capazes, subempregadas, famintas de poder, e o
crescimento do liberalismo e do cepticismo em sua própria
categoria. O problema, ou seja, é educativo. É um
problema de moldar continuamente a consciência tanto do
grupo dirigente quanto do grande grupo executivo que se
encontra imediatamente abaixo dele. A consciência das
massas só precisa ser influenciada de forma negativa.
Dado este contexto, é possível inferir, caso ainda se
conheça, a estrutura social geral da Oceânica. No ápice da
pirâmide vem o Big Brother. O Big Brother é infalível e
todo-poderoso. Todo sucesso, toda conquista, toda vitória,
toda descoberta científica, todo conhecimento, toda
sabedoria, toda felicidade, toda virtude, são originados
diretamente de sua liderança e inspiração. Ninguém jamais
viu o Big Brother. Ele é um rosto nos grandes cartazes,
uma voz na teletela. Podemos estar certos de que ele nunca
morrerá e a data de seu nascimento já é algo incerto. O Big
Brother é o disfarce que o Partido usa para se exibir para o
mundo. Sua função é agir como um ponto de foco de
amor, medo e reverência, emoções que são mais
facilmente sentidas em relação a um indivíduo do que em
relação a uma organização. Abaixo do Big Brother vem o
Núcleo do Partido, seus números limitados a seis milhões,
ou pouco menos de 2% da população da Oceânia. Abaixo
do Núcleo do Partido vem o Partido Externo que, se o
Núcleo do Partido é descrito como o cérebro do Estado,
pode ser justamente definido com as mãos. Abaixo disso
vêm as grandes massas iletradas, a quem costumamos
chamar de ‘os proletários’, que são talvez 85 por cento da
população. Nos termos de nossa classificação anterior, os
proletários são a classe Baixa: como a população escrava
das terras equatoriais que passam constantemente de
conquistador para conquistador, não são uma parte
permanente ou necessária da estrutura.
Em princípio, a filiação a estes três grupos não é
hereditária. O filho dos pais do Núcleo do Partido
teoricamente não nasce no Núcleo do Partido. A admissão
em qualquer um dos ramos do Partido é feita por exame,
aos dezesseis anos de idade. Também não há
discriminação racial ou qualquer preferência de uma ou
outra província. Judeus, negros, sul-americanos de puro
sangue indígena são encontrados nas camadas mais altas
do Partido e os administradores de qualquer área são
sempre escolhidos dentre os habitantes daquela área. Em
nenhuma parte de Oceânia os habitantes têm a sensação de
serem uma população colonial governada por uma capital
distante. A Oceânia não tem capital e seu chefe titular é
uma pessoa cujo paradeiro ninguém conhece. Não há
qualquer forma de centralização, exceto pelo fato de Inglês
ser sua principal LÍNGUA FRANCA6 e Novilíngua, sua
língua oficial. Seus governantes não são mantidos juntos
por laços de sangue, mas pela adesão a uma doutrina
comum. É verdade que nossa sociedade é estratificada, e
muito rigidamente estratificada, no que à primeira vista
parecem ser linhas hereditárias. Há muito menos
movimento entre os diferentes estratos do que havia no
capitalismo ou mesmo na era pré-industrial. Entre os dois
ramos do Partido há algum intercâmbio, mas apenas o
suficiente para garantir que os fracos sejam excluídos do
Núcleo do Partido e que os membros ambiciosos do
Partido Externo se elevem, a fim de se tornarem
inofensivos. Os proletários, na prática, não estão
autorizados a serem admitidos no Partido. Os que possuem
mais dons e que se transformarão possivelmente em
núcleos de descontentamento, são simplesmente marcados
pela Polícia do Pensamento e eliminados. Mas esta
estratificação não é necessariamente permanente, nem é
uma questão de princípio. O Partido não é uma classe, no
velho sentido da palavra. Ele não visa transmitir poder a
seus próprios filhos; e se não houvesse outra forma de
manter as pessoas mais hábeis no topo, ele estaria
perfeitamente preparado para recrutar toda uma nova
geração dentre o proletariado. Nos anos cruciais, o fato de
o Partido não ser um órgão hereditário foi essencial para
neutralizar a oposição. O tipo mais antigo de socialista,
que havia sido treinado para lutar contra algo chamado
‘privilégio de classe’, assumiu que o que não é hereditário
não pode ser permanente. Ele não viu que a continuidade
de uma oligarquia não precisava ser física, nem parou para
refletir que as aristocracias hereditárias sempre tiveram
curta duração, enquanto organizações adotivas, como a
Igreja Católica, poderiam durar centenas ou milhares de
anos. A essência do governo oligárquico não é a herança
de pai para filho, mas a persistência de uma certa visão de
mundo e de um certo modo de vida, impostos pelos mortos
aos vivos. Um grupo governante é um grupo governante,
desde que possa nomear seus sucessores. O partido não
está preocupado em perpetuar seu sangue, mas em
perpetuar-se a si mesmo. QUEM exerce o poder não é
importante, desde que a estrutura hierárquica permaneça
sempre a mesma.
Todas as crenças, hábitos, gostos, emoções, atitudes
mentais que caracterizam nosso tempo são realmente
concebidas para sustentar a mística do Partido e impedir
que a verdadeira natureza da sociedade atual seja
percebida. A rebelião física ou qualquer movimento
preliminar em direção à rebelião, não é possível no
momento. Dos proletários nada se deve temer. Deixados a
si mesmos, eles continuarão de geração em geração e de
século em século, trabalhando, se procriando e morrendo,
não apenas sem qualquer impulso de rebelião, mas sem o
poder de compreender que o mundo poderia ser diferente
do que é. Eles só poderiam se tornar perigosos se o avanço
da técnica industrial tornasse necessário educá-los melhor;
mas, como a rivalidade militar e comercial não é mais
importante, o nível de educação popular está realmente
apenas declinando. As opiniões que as massas têm, ou não
têm, são tidas como indiferentes. Elas podem ter liberdade
intelectual porque não têm intelecto. Em um membro do
Partido, por outro lado, nem mesmo o menor desvio de
opinião sobre o assunto mais insignificante pode ser
tolerado.
Um membro do Partido vive do nascimento à morte sendo
observado pela Polícia do Pensamento. Mesmo quando
está sozinho, ele nunca pode ter certeza de que está
sozinho. Onde quer que esteja, dormindo ou acordado,
trabalhando ou descansando, em seu banho ou na cama,
ele pode ser inspecionado sem aviso e sem saber que está
sendo inspecionado. Nada do que ele faz é indiferente.
Suas amizades, seu tempo livre, seu comportamento para
com sua esposa e filhos, a expressão de seu rosto quando
está sozinho, as palavras que ele murmura durante o sono,
mesmo os movimentos característicos de seu corpo, são
todos minuciosamente analisados. Não apenas qualquer
delito, mas qualquer excentricidade, por menor que seja,
qualquer mudança de hábitos, qualquer nervosismo que
possa representar uma luta interior, certamente será
detectado. Ele não tem liberdade de escolha em nenhuma
direção, seja ela qual for. Por outro lado, suas ações não
são reguladas por lei ou por qualquer código de
comportamento claramente formulado. Em Oceânia, não
há lei. Pensamentos e ações, que quando detectados
significam morte certa, não são formalmente proibidas, e
as purgas, detenções, torturas, prisões e vaporizações sem
fim não são infligidas como punição por crimes que
realmente foram cometidos, mas são meramente a
eliminação de pessoas que talvez possam cometer um
crime em algum momento no futuro. Um membro do
Partido não só é obrigado a ter as opiniões certas, mas
também os instintos certos. Muitas das crenças e atitudes
que lhe são exigidas nunca são claramente declaradas, e
não poderiam ser declaradas sem expor as contradições
inerentes ao Socing. Se ele for uma pessoa naturalmente
ortodoxa (em Novilíngua um benepensante), ele saberá em
todas as circunstâncias, sem pensar, qual é a verdadeira
crença ou a emoção desejável. Mas de qualquer forma, um
treinamento mental elaborado, ao qual ele é submetido
ainda na infância e que o expõe às palavras e conceitos de
crimeinterrupção, negribranco e duplipensamento, faz com
que ele não queira e não seja capaz de pensar muito
profundamente em qualquer assunto, seja ele qual for.
Espera-se que um membro do Partido não tenha emoções
particulares e nenhum respaldo de entusiasmo. Ele deve
viver em um contínuo frenesi de ódio aos inimigos
estrangeiros e traidores internos, de triunfo sobre as
vitórias e de desvalorização de si mesmo frete ao poder e à
sabedoria do Partido. Os descontentamentos produzidos
por sua vida nua e insatisfatória são deliberadamente
exteriorizados e dissipados por dispositivos como o Dois
Minutos de Ódio, e as especulações que poderiam
possivelmente induzir a uma atitude céptica ou rebelde são
eliminadas de antemão por sua disciplina interior
adquirida desde cedo. A primeira e mais simples etapa da
disciplina, que pode ser ensinada até mesmo às crianças
pequenas, é chamada, em Novilíngua, de
crimeinterrupção. Crimeinterrupção é a faculdade de parar
de supetão, como que por instinto, no limiar de qualquer
pensamento perigoso. Inclui o poder de não compreender
analogias, de não perceber erros lógicos, de interpretar mal
os argumentos mais simples se forem contrários ao
Socing, e de se aborrecer ou repelir qualquer linha de
pensamento capaz de conduzir a uma direção herética.
Crimeinterrupção, em resumo, significa estupidez
protetora. Mas a estupidez não é suficiente. Pelo contrário,
a ortodoxia no sentido pleno exige um controle tão
completo sobre os próprios processos mentais, quanto o de
um contorcionista sobre seu corpo. A sociedade oceânica
repousa, atualmente, na crença de que o Big Brother é
onipotente e que o Partido é infalível. Mas, como na
realidade o Big Brother não é onipotente e o partido não é
infalível, há a necessidade de uma flexibilidade
desesperada, de momento em momento, no tratamento dos
fatos. A palavra-chave aqui é negribranco. Como tantas
palavras da Novilíngua, esta palavra tem dois significados
mutuamente contraditórios. Aplicada a um oponente,
significa o hábito de afirmar impudentemente que o preto
é branco, em contradição com os fatos simples. Aplicada a
um membro do Partido, significa uma lealdade de desejo
em dizer que o preto é branco quando a disciplina do
Partido assim exige. Mas significa também a capacidade
de ACREDITAR que o negro é branco, e mais, de SABER
que o negro é branco, e de esquecer que já se acreditou no
contrário. Isto exige uma contínua alteração do passado,
possibilitada pelo sistema de pensamento que realmente
abrange todo o resto, e que é conhecido em Novilíngua
como DUPLIPENSAMENTO.
A alteração do passado é necessária por duas razões, uma
das quais é secundária e, por assim dizer, preventiva. A
razão secundária é que o membro do Partido, assim como
o proletário, tolera as condições atuais em parte porque
não tem padrões de comparação. Ele deve ser separado
do passado, assim como deve ser separado de países
estrangeiros, porque é necessário que ele acredite que está
melhor que seus antepassados e que o nível médio de
conforto material está constantemente aumentando. Mas
de longe a razão mais importante para o reajuste do
passado é a necessidade de salvaguardar a infalibilidade do
Partido. Não é apenas que discursos, estatísticas e registros
de todo tipo devem ser constantemente atualizados a fim
de mostrar que as previsões do Partido foram, em todos os
casos, corretas. É também que nenhuma mudança na
doutrina ou no alinhamento político pode jamais ser
admitida. Pois mudar a mente, ou mesmo a política, é uma
confissão de fraqueza. Se, por exemplo, a Eurásia ou a
Lestásia (qualquer que seja) é o inimigo atual, então esse
país deve ter sido sempre o inimigo. E se os fatos dizem o
contrário, então os fatos devem ser alterados. Assim, a
história é continuamente reescrita. Esta falsificação
cotidiana do passado, realizada pelo Ministério da
Verdade, é tão necessária à estabilidade do regime quanto
o trabalho de repressão e espionagem realizado pelo
Ministério do Amor.
A mutabilidade do passado é o princípio central do Socing.
Argumenta-se que eventos passados não têm existência
objetiva, mas sobrevivem apenas em registros escritos e
em memórias humanas. O passado é o que quer que os
registros e as lembranças digam que é. E como o Partido
está em pleno controle de todos os registros e no controle
igualmente pleno das mentes de seus membros, segue-se
que o passado é o que quer que o Partido deseje que seja.
Segue-se também que embora o passado seja alterável, ele
nunca foi alterado em nenhuma instância específica. Pois
quando foi recriado em qualquer forma necessária no
momento, então esta nova versão é o passado, e nenhum
passado diferente jamais poderá ter existido. Isto é válido
mesmo quando, como muitas vezes acontece, o mesmo
evento tem que ser alterado sigilosamente várias vezes no
decorrer de um ano. Em todos os momentos o Partido está
na posse da verdade absoluta, e claramente ela nunca pode
ter sido diferente do que é agora. Verá que o controle do
passado depende acima de tudo do treinamento da
memória. Garantir que todos os registros escritos
concordem com a ortodoxia do momento é apenas um ato
mecânico. Mas também é necessário LEMBRAR que os
eventos aconteceram da maneira desejada. E se for
necessário reorganizar as memórias ou alterar os registros
escritos, então é preciso ESQUECER que alguém o tenha
feito. O truque de fazer isso pode ser aprendido como
qualquer outra técnica mental. É aprendido pela maioria
dos membros do Partido e certamente por todos os que são
inteligentes, assim como pelos ortodoxos. Em Velhilíngua,
é chamado, muito francamente, de ‘controle da realidade’.
Em Novilíngua, é chamado de DUPLIPENSAMENTO,
embora DUPLIPENSAMENTO também compreenda
muito mais.
DUPLIPENSAMENTO é o poder de manter e aceitar
duas crenças contraditórias simultaneamente em sua
mente. O intelectual do Partido sabe em que direção suas
memórias devem ser alteradas; ele sabe, portanto, que
está manipulando a realidade; mas pelo exercício de
DUPLIPENSAMENTO ele também se satisfaz
acreditando que a realidade não está sendo violada. O
processo tem que ser consciente, ou não seria realizado
com precisão suficiente, mas também tem que ser
inconsciente, ou traria junto um sentimento de falsidade e,
portanto, de culpa. DUPLIPENSAMENTO está no
coração do Socing, uma vez que o ato essencial do Partido
é usar o ato consciente mantendo a firmeza de propósito
com total honestidade. Dizer mentiras deliberadas
enquanto realmente acredita nelas, esquecer qualquer fato
que se tenha tornado inconveniente, e então, quando
necessário, retirá-lo do esquecimento pelo tempo que for
preciso, negar a existência da realidade objetiva ao mesmo
tempo que se conhece intimamente a realidade que se nega
- tudo isso é imprescindível. Até mesmo para usar a
palavra DUPLIPENSAMENTO, é necessário exercer o
DUPLIPENSAMENTO. Pois ao usar a palavra se admite
que se está adulterando a realidade; mas por um novo ato
de DUPLIPENSAMENTO se apaga este conhecimento; e
assim por diante indefinidamente, com a mentira sempre
um passo à frente da verdade. Por fim, é por meio do
DUPLIPENSAMENTO que o Partido tem sido capaz - e
até onde sabemos pode ser capaz por mais milhares de
anos - de prender o curso da história.
Todas as oligarquias do passado caíram do poder ou
porque se engessaram ou porque amoleceram. Ou se
tornaram estúpidas e arrogantes, não se ajustaram às
mudanças das circunstâncias e foram derrubadas; ou se
tornaram liberais e covardes, fizeram concessões quando
deveriam ter usado a força, e mais uma vez foram
derrubadas. Eles caíram, ou seja, ou pela consciência ou
pela inconsciência. É uma conquista do Partido ter
produzido um sistema de pensamento no qual ambas as
condições podem existir simultaneamente. E em nenhuma
outra base intelectual o domínio do Partido poderia ser
permanente. Para governar e para continuar governando, é
preciso ser capaz de deslocar o sentido da realidade. Pois o
segredo da governabilidade é combinar a crença na própria
infalibilidade com o Poder de aprender com os erros do
passado.
Não é preciso dizer que os praticantes mais sutis do
DUPLIPENSAMENTO são aqueles que inventaram o
DUPLIPENSAMENTO e sabem que ele é um enorme
sistema de trapaça mental. Em nossa sociedade, aqueles
que têm o melhor conhecimento do que está acontecendo
são também aqueles que estão mais distantes de ver o
mundo como ele é. Em geral, quanto maior a
compreensão, maior a ilusão; quanto mais inteligente,
menos sanidade. Uma ilustração clara disto é o fato de que
a histeria da guerra aumenta de intensidade à medida que
se sobe na escala social. Aqueles cuja atitude em relação à
guerra é mais próxima do racional são os povos dos
territórios disputados. Para essas pessoas, a guerra é
simplesmente uma calamidade contínua que leva seus
corpos para um lado e para o outro como uma onda no
mar. Qual dos lados está ganhando é uma questão de
completa indiferença para eles. Eles estão conscientes de
que uma mudança de soberania significa simplesmente
que estarão fazendo o mesmo trabalho que faziam antes,
só que para novos mestres, que os tratam da mesma
maneira que os antigos. Os trabalhadores ligeiramente
mais favorecidos, que chamamos de proletários, estão
apenas intermitentemente conscientes da guerra. Quando é
necessário, eles podem ser levados a um frenesi de medo e
ódio, mas quando deixados por conta própria, são capazes
de esquecer por longos períodos que a guerra está
acontecendo. É dentro do Partido, e sobretudo do Núcleo
do Partido, que se encontra o verdadeiro entusiasmo de
guerra. A crença na conquista mundial é maior juntamente
àqueles que sabem que ela é impossível. Esta ligação
peculiar de opostos – conhecimento com ignorância,
cinismo com fanatismo - é uma das principais marcas
distintivas da sociedade oceânica. A ideologia oficial
abunda em contradições, mesmo quando não há nenhuma
razão prática para elas. Assim, o Partido rejeita e difama
todos os princípios que o movimento socialista
originalmente defendia, e opta por fazer isso em nome do
Socialismo. Ele prega um desprezo pela classe
trabalhadora que nunca foi visto em séculos passados e
veste seus membros com um uniforme que já foi
característico dos trabalhadores manuais e foi, por esta
razão, adotado. Ele enfraquece sistematicamente a
solidariedade da família e chama seu líder por um nome
que apela diretamente ao sentimento de lealdade familiar.
Mesmo os nomes dos quatro Ministérios pelos quais
somos governados exibem uma espécie de impudência em
sua inversão deliberada dos fatos. O Ministério da Paz se
preocupa com a guerra, o Ministério da Verdade com
mentiras, o Ministério do Amor com tortura e o Ministério
da Abundância com fome. Estas contradições não são
acidentais, nem resultam de hipocrisia comum; são
exercícios deliberados de DUPLIPENSAMENTO. Pois é
somente conciliando as contradições que o poder pode ser
retido indefinidamente. De nenhuma outra forma o ciclo
antigo poderia ser quebrado. Se a igualdade humana deve
ser evitada para sempre - se a classe mais Alta quiser
manter seu lugar permanentemente - então a condição
mental predominante deve ser a insanidade controlada.
Mas há uma questão que, até este momento, quase
ignoramos. É: POR QUE a igualdade humana deve ser
evitada? Supondo que a mecânica do processo tenha sido
corretamente descrita, qual é o motivo deste enorme e bem
planejado esforço para congelar a história em um
determinado momento?
Aqui chegamos ao segredo central. Como vimos, a mística
do Partido, e sobretudo do Núcleo do Partido, depende do
DUPLIPENSAMENTO. Mas mais profundo do que isso é
o motivo original, o instinto nunca questionado que
primeiro levou à tomada do poder e depois trouxe à
existência o DUPLIPENSAMENTO, a Polícia do
Pensamento, a guerra contínua e todas as outras
parafernálias necessárias. Este motivo realmente consiste...
Winston tomou consciência do silêncio, como se se
conscientizasse de um novo som. Ele tinha a impressão de que
Júlia já estava muito quieta há algum tempo. Ela estava deitada de
lado, nua da cintura para cima, com a mão servindo de almofada
para a bochecha e uma mecha escura de cabelo lhe caindo sobre
os olhos. O peito dela subia e descia lenta e regularmente.
– Júlia.
Nenhuma resposta.
– Júlia, você está acordada?
Nenhuma resposta. Ela estava dormindo. Ele fechou o livro,
colocou-o cuidadosamente no chão, deitou-se e puxou a colcha
sobre os dois.
Ele ainda não havia, pensou, aprendido o último segredo. Ele
entendeu ‘COMO’; ele não entendeu ‘O PORQUÊ’. O Capítulo I,
assim como o Capítulo III, não lhe havia dito nada que ele não
soubesse, havia apenas sistematizado o conhecimento que ele já
possuía. Mas depois de lê-lo, ele sabia melhor do que antes que
não estava louco. Estar em uma minoria, mesmo que fosse uma
minoria, não fazia dele um louco. Havia verdades e havia
inverdades, e se você se agarrava à verdade mesmo contra o que o
mundo inteiro acreditava, você não estava louco. Um raio
amarelo do sol que se punha passava pela janela e chegava até o
travesseiro. Ele fechou os olhos. O sol em seu rosto e o corpo
macio da garota tocando seu próprio corpo lhe deu um sentimento
forte e sonolento de confiança. Ele estava seguro, tudo estava
bem. Ele adormeceu murmurando ‘Sanidade não é estatística’,
com a sensação de que esta observação continha uma profunda
sabedoria.

Capítulo 10

Quando acordou Winston, teve a sensação de ter dormido por


muito tempo, mas ao olhar para o relógio antigo, viu que eram
apenas vinte e trinta. Ele continuou deitado se espreguiçando por
um tempo e depois ouviu o habitual canto vindo do pátio abaixo:
Era apenas uma fantasia sem fim.
Passou como um dia de abril,
Mas um olhar e uma palavra e os sonhos que
despertaram!
Levaram meu coração de mim!
A canção parecia ter mantido sua popularidade. Ela ainda era
ouvida por toda parte. Havia sobrevivido à Canção do Ódio. Júlia
acordou com o som, se espreguiçou e saiu da cama.
– Estou com fome – ela falou. Vamos fazer mais um pouco de
café. Droga! O fogareiro apagou e a água está fria.
Ela pegou o fogareiro e o sacudiu.
- Não tem óleo nele.
– Acho que podemos conseguir um pouco com o velho
Charrington.
– O engraçado é que eu tinha certeza de que estava cheio. Vou me
vestir – acrescentou ela. – Parece que esfriou.
Winston também se levantou e se vestiu. A voz infatigável
continuou cantando:
Dizem que o tempo é a cura,
Dizem que sempre se pode esquecer;
Mas os sorrisos e as lágrimas, tudo isso perdura
Meu coração não para de sofrer!
Enquanto ele prendia o cinto de seu macacão, ele foi até a janela.
O sol devia ter se posto atrás das casas; ele não estava mais
brilhando no pátio. O piso estava molhado como se tivesse
acabado de ser lavado e ele tinha a sensação de que o céu também
tinha sido lavado, de tão fresco e pálido que era o azul que se via
entre as chaminés. A mulher marchava incansavelmente de um
lado para o outro, cantando e caindo em silêncio e pendurando
mais e mais fraldas. Ele se perguntava se ela ganhava a vida
lavando roupa ou se era apenas escrava de vinte ou trinta netos.
Júlia parou ao lado dele; juntos, eles olhavam com uma espécie
de fascínio para a figura robusta abaixo. Ao olhar para a mulher
em sua atitude cotidiana, seus braços grossos se aproximando do
varal, suas poderosas nádegas salientes, ele percebeu pela
primeira vez que ela era bonita. Nunca antes havia lhe ocorrido
que o corpo de uma mulher de cinquenta anos, explodido até
dimensões monstruosas pela gravidez, depois endurecido, áspero
pelo trabalho, pudesse ser belo. Mas era assim, e afinal, pensou
ele, por que não? O corpo sólido e sem contornos, como um bloco
de granito e pele vermelha e áspera, tinha a mesma relação com o
corpo de uma menina, que o cinórrodo7 para a rosa. Por que o
fruto deveria ser inferior à flor?
– Ela é linda – ele murmurou.
– Ela tem facilmente um metro de quadril – disse Júlia.
– Esse é o seu estilo de beleza – disse Winston.
Ele abraçou a cintura esbelta de Júlia circundada com facilidade
por seus braços. Do quadril até o joelho, toda ela estava contra o
dele. De seus corpos, jamais viria alguma criança. Essa era a
única coisa que eles jamais conseguiriam fazer. Somente de boca
em boca, de mente em mente, eles podiam passar o segredo. A
mulher lá embaixo não tinha mente, só tinha braços fortes, um
coração quente e uma barriga fértil. Ele se perguntava a quantos
filhos ela tinha dado à luz. Poderiam facilmente ser quinze. Ela
tinha tido sua floração momentânea, talvez um ano, de beleza
como uma rosa selvagem e, de repente, tinha inchado como uma
fruta fertilizada e crescido dura, vermelha e áspera e então sua
vida tinha se transformado em lavar, esfregar, cerzir, cozinhar,
varrer, polir, consertar, esfregar, lavar, primeiro para os filhos,
depois para os netos, por mais de trinta anos sem parar. No final,
ela ainda cantava. A reverência mística que ele sentia por ela
estava de alguma forma misturada com o aspecto do céu pálido e
sem nuvens, estendendo-se por trás das chaminés por uma
distância interminável. Era curioso pensar que o céu era o mesmo
para todos, tanto na Eurásia quanto na Lestásia quanto em
Oceânia. E as pessoas debaixo do céu também eram muito
semelhantes, - em todo o mundo, centenas de milhares de milhões
de pessoas assim, pessoas que ignoravam a existência umas das
outras, mantidas separadas por muros de ódio e mentiras, e ainda
assim quase exatamente as mesmas pessoas – pessoas que nunca
haviam aprendido a pensar, mas que estavam guardando em seus
corações, barrigas e músculos o poder que um dia iria derrubar o
mundo. Se houvesse esperança, ela estava nos proletários! Sem
ter lido o livro até o final, ele sabia que essa seria a mensagem
final de Goldstein. O futuro pertencia aos proletários. E será que
ele poderia ter certeza de que quando chegasse a hora deles, o
mundo que construiriam não seria tão estranho para ele, Winston
Smith, quanto o mundo do Partido? Sim, porque ao menos seria
um mundo de sanidade. Onde há igualdade, pode haver sanidade.
Cedo ou tarde isso aconteceria, a força se transformaria em
consciência. Os proletários eram imortais, era impossível duvidar
disso ao se olhar para aquela figura corajosa no pátio. No final, o
despertar deles viria. E até que isso acontecesse, embora
pudessem ser mil anos, eles permaneceriam vivos mesmo com
todas as adversidades, como pássaros, passando de corpo a corpo
a vitalidade que o Partido não compartilhava e não podia matar.
– Você se lembra – disse ele – do pássaro que cantou para nós
naquele primeiro dia à beira do bosque?
– Ele não estava cantando para nós – disse Júlia. – Ele estava
cantando para agradar a ele mesmo. Nem mesmo isso. Ele estava
apenas cantando.
Os pássaros cantavam, os proletários cantavam, o Partido não
cantava. Em todo o mundo, em Londres e Nova York, na África e
no Brasil, e nas terras misteriosas e proibidas além das fronteiras,
nas ruas de Paris e Berlim, nas aldeias da planície sem fim da
Rússia, nos bazares da China e do Japão - em todos os lugares
havia a mesma figura sólida e inconquistável, tornada monstruosa
pelo trabalho e pela procriação, trabalhando desde o nascimento
até a morte e ainda cantando. Desses poderosos lombos, um dia
viria uma raça de seres conscientes. Vocês eram os mortos, o
futuro era deles. Mas você poderia compartilhar desse futuro se
mantivesse a mente viva, assim como eles mantinham o corpo
vivo, e transmitisse a doutrina secreta de que dois mais dois são
quatro.
– Nós somos os mortos – disse ele.
– Nós somos os mortos – disse Júlia com toda a propriedade.
– Vocês são os mortos – disse uma voz metálica por trás deles.
Eles se desmancharam. As entranhas de Winston pareciam ter se
transformado em gelo. Ele podia ver o branco ao redor da íris dos
olhos de Júlia. Seu rosto estava amarelo leitoso. A mancha de
rouge que ainda estava em cada osso do rosto se destacava
nitidamente, quase como se não estivesse relacionada com a pele
por baixo.
– Vocês são os mortos – repetiu a voz metálica.
– Veio de trás do quadro – respirou Júlia.
– Veio de atrás do quadro – disse a voz. – Fiquem exatamente
onde vocês estão. Não façam nenhum movimento até que seja
ordenado.
Estava começando, finalmente estava começando! Eles não
podiam fazer nada, a não ser ficar olhando um para o outro. Não
lhes ocorreu nada; correr pela vida ou sair da casa antes que fosse
tarde demais. Era impensável desobedecer a voz de metálica da
parede. Houve um estalido como se uma lingueta tivesse se
soltado e um barulho de vidro se quebrando. O quadro tinha caído
no chão, descobrindo a teletela atrás dele.
– Agora eles podem nos ver – disse Júlia.
– Agora nós podemos ver vocês - disse a voz. – Fiquem em pé no
meio da sala. Costas com costas. Coloquem suas mãos atrás da
cabeça. Não toquem um no outro.
Eles não estavam se tocando, mas parecia que ele podia sentir o
corpo de Júlia tremendo. Ou talvez fosse apenas o seu próprio
tremor. Ele até conseguia fazer seus dentes pararem de bater, mas
seus joelhos estavam fora de controle. De baixo vinha um som de
passos com botas, tanto dentro quanto fora da casa. O pátio
parecia estar cheio de homens. Alguma coisa estava sendo
arrastada pelo piso de pedras. O canto da mulher havia parado
abruptamente. Ouviu-se um barulho longo de algo rolando, como
se a tina de água tivesse sido atirada pelo pátio, e depois uma
confusão de gritos de raiva que terminaram em um grito de dor.
– A casa está cercada – disse Winston.
– A casa está cercada – disse a voz.
Ele ouviu Júlia ranger os dentes.
– Suponho que devemos nos despedir – disse ela.
– Vocês devem se despedir – disse a voz.
E então outra voz bem diferente, uma voz fina e culta que
Winston teve a impressão de ter ouvido antes, falou:
– E a propósito, já que estamos falando sobre o assunto, ‘Deitem
se para nanar, ou a Cuca vai lhes pegar’!
Algo bateu na cama atrás de Winston. A ponta de uma escada
tinha sido brutalmente apoiada na janela e tinha estourado a
estrutura. Alguém estava subindo pela janela. Havia passadas de
botas subindo as escadas. A sala estava cheia de homens sólidos
de uniforme preto, com botas com biqueira de aço nos pés e
cassetetes nas mãos.
Winston não estava mais tremendo. Mesmo seus olhos mal se
mexiam. Só uma coisa importava; ficar quieto, ficar quieto e não
dar qualquer motivo para lhe baterem! Um homem com uma
papada lisa de lutador, na qual a boca era apenas uma fenda,
parou em frente a ele balançando o cassetete entre o polegar e o
dedo indicador, meditativamente. Winston o olhou nos olhos. A
sensação de nudez, de alguém que tinha as mãos atrás da cabeça e
o rosto e o corpo totalmente expostos, era quase insuportável. O
homem projetava para fora da boca a ponta de uma língua branca,
lambia o lugar onde seus lábios deveriam estar, e seguia adiante.
Ouviu-se mais uma vez o barulho de vidro quebrando. Alguém
pegou o peso de papel de vidro da mesa e o arremessou,
espedaçando-o na pedra da lareira.
O fragmento de coral, uma pequena crosta rosa como um enfeite
de um bolo, rolou pelo tapete. Como era pequeno, pensou
Winston, como sempre foi pequeno! Um arfar e um baque vieram
de atrás dele, e ele recebeu um chute violento no tornozelo que
quase o fez perder o equilíbrio. Um dos homens havia socado o
plexo solar8 de Júlia, dobrando-a como uma régua de bolso. Ela
se debatia no chão, lutando para respirar. Winston não ousou virar
sua cabeça nem mesmo por um milímetro, mas às vezes o rosto
lívido e ofegante de Júlia vinha dentro do alcance da visão dele.
Mesmo em seu terror, era como se ele pudesse sentir em seu
próprio corpo a dor mortal que, no entanto, era menos urgente do
que a luta de Júlia para recuperar o fôlego. Ele sabia como era; a
dor terrível e agonizante que estava ali o tempo todo, mas que
ainda não podia ser sofrida, porque antes de tudo era necessário
ser capaz de respirar. Então dois dos homens a ergueram pelos
joelhos e ombros e a carregaram para fora da sala como um saco.
Winston teve um vislumbre de seu rosto, de cabeça para baixo,
amarelo e contorcido, com os olhos fechados e ainda com uma
mancha de rouge em ambas as bochechas; e esta foi a última vez
que ele a viu.
Ele ficou mortalmente parado. Ninguém havia batido nele ainda.
Pensamentos que vinham de livre vontade, mas que pareciam
totalmente desinteressantes, começaram a passar por sua mente.
Ele se perguntava se eles tinham pego o Sr. Charrington. Ele se
perguntava o que eles haviam feito com a mulher no pátio. Ele
notou que mal queria urinar, e sentiu uma leve surpresa, porque já
faziam duas ou três horas que tinha urinado. Ele notou que o
relógio na lareira marcava nove horas, ou seja, vinte e uma. Mas a
luz parecia muito forte. A luz já não deveria estar mais fraca às
vinte e uma horas de uma noite de agosto? Ele se perguntou se
afinal ele e Júlia haviam confundido o horário – tinham dormido a
noite inteira e pensaram que eram vinte e trinta quando, na
verdade, já eram oito e meia da manhã seguinte. Mas ele não
prosseguiu com esse pensamento. Não era interessante.
Ouviram-se mais passos, no corredor, desta vez mais leves. O Sr.
Charrington entrou na sala. O comportamento dos homens de
uniforme negro tornou-se subitamente mais moderado. Algo
também havia mudado na aparência do Sr. Charrington. Seus
olhos olharam para os fragmentos do peso de papel de vidro.
– Pegue esses cacos – disse ele bruscamente.
Um homem abaixou-se para obedecer. O leve sotaque de
proletário havia desaparecido; Winston de repente percebeu de
quem era a voz que ele havia ouvido há alguns instantes na
teletela. O Sr. Charrington ainda vestia seu velho casaco de
veludo, mas seu cabelo, que antes era quase branco, havia ficado
preto. Ele também não estava usando seus óculos. Ele lançou a
Winston um único olhar aguçado, como se estivesse verificando
sua identidade, e depois não lhe deu mais atenção. Ele ainda era
reconhecível, mas não era mais a mesma pessoa. Seu corpo tinha
se endireitado e parecia ter crescido mais. Seu rosto havia sofrido
apenas pequenas mudanças que, no entanto, o tinham
transformado completamente. As sobrancelhas negras estavam
menos grossas, as rugas tinham desaparecido, todas as linhas do
rosto pareciam ter se alterado; até mesmo o nariz parecia mais
curto. Era o rosto alerta e frio de um homem de cerca de trinta e
cinco anos. Ocorreu a Winston que, pela primeira vez em sua
vida, ele estava olhando conscientemente para um membro da
Polícia do Pensamento.

Notas:
2 O texto aqui refere-se a 3 Canções de Ninar britânicas. O termo vinte e quatro
pássaros pretos é uma linha da canção ‘Sing a Song of Sixpence’e é,
originalmente, escrito como quatro e vinte pássaros pretos; o termo vaca do chifre
torto, é uma linha da canção ‘This is the house that Jack buit’, ou ‘Esta é a casa
que Jack construiu’, em português; a terceira canção chama-se originalmente
‘Who killed Cock Robin’, ou ‘Quem matou Cock Robin’.
3 Bolo de prensa, ou Oil cake, é a massa sólida que resta dos alimentos após
serem prensados, neste caso, para fazer ração para o gado.
4 Duas onças correspondem a aproximadamente 56,7 gramas.
5 Rumpelstiltskin é o principal personagem de um conto de fadas de origem
alemã. Trata-se de um duende, cujo nome a rainha desconhece, e que, em troca de
serviços prestados à rainha, quer levar seu bebê, o herdeiro real, como forma de
pagamento. A rainha pede que ele não leve seu filho e ele promete que deixaria o
bebê, caso a rainha descobrisse o seu nome. Já no final do prazo dado à rainha,
ela descobre o nome do duende, que se contorce de raiva e desaparece.
6 Língua franca ou língua de contato é a língua que um grupo multilíngue de
seres humanos intencionalmente adota ou desenvolve para que todos consigam
sistematicamente comunicar-se uns com os outros. Essa língua é geralmente
diferente de todas as línguas naturais faladas pelos membros do grupo.
7 O cinórrodo é um pseudofruto das roseiras. Suas formas e cores variam de
acordo com a espécie da planta, podem ser arredondadas ou alongadas, as cores
podem variar em tons de verde, laranja, vermelho ou roxo. Em algumas
variedades podem ser consumidas.
8 O plexo solar, também conhecido como plexo celíaco, é uma complexa rede de
neurônios que no corpo humano está localizada atrás do estômago e embaixo do
diafragma perto do tronco celíaco na cavidade abdominal.
Parte III

Capítulo 1

Ele não sabia onde estava. Presumivelmente estava no Ministério


do Amor, mas não era possível ter certeza. Ele estava em uma
cela sem janelas, com paredes de porcelana branca cintilante.
Lâmpadas ocultas enchiam-no com luz fria e havia um zumbido
baixo e constante que ele supunha ter algo a ver com o
fornecimento de ar. Um banco ou prateleira, largo o suficiente
para sentar-se, dava a volta por toda a parede, exceto onde havia a
porta e na extremidade oposta à porta, onde havia um vaso
sanitário de madeira sem assento. Havia quatro teletelas, uma em
cada parede.
Winston tinha uma dor de barriga chata. Estava lá desde que o
tinham metido na van fechada e o levado embora. Mas ele
também estava com fome, com um tipo de fome que corroía e que
não era saudável. Poderiam ter passado vinte e quatro horas desde
a última vez que comera, poderiam ser trinta e seis. Ele ainda não
sabia, e provavelmente nunca saberia, se tinha sido preso de
manhã ou à noite. Desde que fora preso, ele não tinha sido
alimentado.
Ele sentou-se o mais quieto possível no banco estreito, com as
mãos cruzadas no joelho. Ele já havia aprendido a sentar-se
quieto. Se você fazia movimentos inesperados, eles gritavam com
você pela teletela. Mas o desejo por comida o estava dominando.
O que ele gostaria, acima de tudo, era um pedaço de pão. Ele
achava que poderia haver algumas migalhas de pão no bolso de
seu macacão. Era até possível - ele pensava isso porque de vez em
quando algo parecia fazer cócegas em sua perna - que talvez
houvesse ali um pedaço de crosta considerável de pão. No final, a
tentação de descobrir superou seu medo; ele enfiou uma mão em
seu bolso.
– Smith! – gritou uma voz da teletela. – 6079 Smith W.! Nas
celas, mãos fora dos bolsos!
Ele se sentou imóvel novamente, com as mãos cruzadas no
joelho. Antes de ser trazido para este lugar, ele tinha sido levado
para outro lugar, que deveria ser uma prisão comum ou um
presídio temporário utilizado pela polícia. Ele não sabia dizer
quanto tempo passou lá; certamente pelo menos algumas horas;
sem relógios e sem luz do dia, era difícil avaliar. Era um lugar
barulhento e malcheiroso. Eles o haviam colocado em uma cela
semelhante àquela em que ele estava agora, mas extremamente
suja e lotada, com dez ou quinze pessoas. A maioria deles eram
criminosos comuns, mas havia alguns prisioneiros políticos entre
eles. Ele havia se sentado em silêncio contra a parede, empurrado
por corpos sujos, muito preocupado com o medo e a dor na
barriga para se interessar muito pelo seu entorno, mas ainda
notando a espantosa diferença de comportamento entre os
prisioneiros do Partido e os outros. Os prisioneiros do Partido
estavam sempre em silêncio e aterrorizados, mas os criminosos
comuns pareciam não se importar com ninguém. Gritavam
insultos aos guardas, reagiam agressivamente quando seus
pertences eram apreendidos, escreviam palavras obscenas no
chão, comiam comida contrabandeada que surgia de esconderijos
misteriosos em suas roupas e até gritavam para a teletela quando
ela tentava restabelecer a ordem. Por outro lado, alguns deles
pareciam ter um bom relacionamento com os guardas, chamando-
os por apelidos e tentando lhes passar cigarros pelo olho mágico
da porta. Os guardas também trataram os criminosos comuns com
certa tolerância, mesmo quando tinham que lidar com eles de
forma mais bruta. Falava-se muito sobre os campos de trabalhos
forçados, para os quais a maioria dos prisioneiros esperava ser
mandada. Ele ouviu que estava ‘tudo em ordem’ nos campos,
desde que se tivesse bons contatos e se conhecesse os caminhos.
Havia suborno, favoritismo e extorsão de todo tipo, havia
homossexualidade e prostituição, havia até mesmo álcool ilegal
destilado de batatas. As posições de confiança eram dadas apenas
aos criminosos comuns, especialmente os gângsteres e os
assassinos, que formavam uma espécie de aristocracia. Todos os
trabalhos sujos eram feitos pelos políticos.
Havia uma constante entrada e saída de prisioneiros de todo tipo:
traficantes de drogas, ladrões, bandidos, vendedores do mercado
negro, bêbados, prostitutas. Alguns dos bêbados eram tão
violentos que os outros prisioneiros tinham que se unir para detê-
los. A enorme ruína de uma mulher, com cerca de sessenta anos
de idade, grandes peitos caídos e grandes cachos de cabelos
brancos que haviam se desfeito em suas lutas, chutava e gritava
enquanto era carregada por quatro guardas que a seguravam pelos
pés e mãos. Eles arrancaram as botas com as quais ela vinha
tentado chutá-las e a jogaram no colo de Winston, quase
quebrando seus ossos da coxa. A mulher ergueu o tronco e os
insultou com um grito de ‘Bastardos fdp’! Então, percebendo que
ela estava sentada em algo irregular, deslizou dos joelhos de
Winston para o banco.
– Perdão, querido – disse ela. – Eu não queria me sentar em cima
de você, mas os sem vergonha me jogaram. Eles não sabem como
tratar uma dama, não é mesmo?
Ela fez uma pausa, deu uma palmadinha no peito e arrotou.
– Perdão – disse ela – Esta não sou eu, não exatamente.
Ela se inclinou para frente e vomitou copiosamente no chão.
– É melhor assim – disse ela inclinando-se para trás com os olhos
fechados. – Nunca seguro, esse é meu lema. Coloque para fora
enquanto ainda está fresco no estômago.
Ela se reanimou, se virou para dar uma outra olhada em Winston
e pareceu imediatamente se interessar por ele. Ela colocou seu
enorme braço no ombro dele e o puxou para perto, baforando
cerveja e vômito em seu no rosto.
–Qual é o seu nome, querido? – disse ela.
– Smith – disse Winston.
– Smith? – disse a mulher. – Engraçado. Meu nome também é
Smith – acrescentou ela sentimentalmente. – Eu poderia ser sua
mãe!
Winston pensou que ela poderia mesmo ser sua mãe. Ela tinha a
idade e o porte físico compatíveis e era provável que as pessoas
mudassem um pouco depois de vinte anos em um campo de
trabalhos forçados.
Ninguém mais tinha falado com ele. Era surpreendente como os
criminosos comuns ignoravam os prisioneiros do Partido. ‘Os
políticos’, eles os chamavam de ‘os políticos’, com uma espécie
de desprezo desinteressado. Os prisioneiros do Partido pareciam
aterrorizados em falar com qualquer pessoa e, sobretudo, em falar
uns com os outros. Apenas uma vez, quando duas mulheres
membros do Partido foram pressionadas juntas no banco, ele
ouviu em meio ao barulho de vozes, algumas palavras sussurradas
apressadamente e, em particular, uma referência a algo chamado
‘sala 101’, que ele não entendeu.
Ele poderia ter sido levado para lá há duas ou três horas. A dor
contínua em sua barriga nunca desaparecera, mas às vezes ela
melhorava e às vezes piorava, e seus pensamentos se expandiam
ou se contraíam de acordo. Quando piorava, ele pensava apenas
na dor em si e em seu desejo por comida. Quando melhorava, o
pânico tomava conta dele. Houve momentos em que ele pensou
nas coisas que lhe aconteceriam com tanta clareza, que seu
coração disparou e sua respiração parou. Ele sentiu pancadas de
cassetetes nos cotovelos e de botas com biqueira de ferro nas
canelas; ele se viu rastejando no chão, gritando por misericórdia
através de dentes quebrados. Ele mal pensava em Júlia. Ele não
conseguia fixar sua mente nela. Ele a amava e não a trairia; mas
isso era apenas um fato, tão conhecido por ele quanto ele
conhecia as regras da aritmética. Ele não sentia amor e mal se
perguntava o que estava acontecendo com ela. Ele pensava com
mais frequência em O’Brien, com uma esperança cintilante.
O’Brien deveria saber que ele tinha sido preso. A Irmandade, ele
havia dito, nunca tentou salvar seus membros. Mas havia a lâmina
de barbear; eles mandariam a lâmina de barbear se pudessem.
Talvez houvesse cinco segundos antes que o guarda pudesse
entrar correndo na cela. A lâmina o dilaceraria com uma espécie
de frieza ardente, cortando até o osso os dedos que a segurassem.
Tudo voltava ao seu corpo doente, que se encolhia tremendo à
menor dor. Ele não tinha certeza de que usaria a lâmina de
barbear mesmo se tivesse a chance. Era mais natural viver
momento a momento, aceitando mais dez minutos de vida,
mesmo com a certeza de que havia torturas no final deles.
Ele tentou calcular algumas vezes o número de azulejos nas
paredes da cela. Deveria ter sido fácil, mas ele sempre perdia a
conta em algum momento. Mas era mais frequentemente ele se
perguntar onde estava e que horas eram. Ora ele afirmava com
segurança que a luz brilhava lá fora, ora que estava escuro como
breu. Ele sabia instintivamente que neste lugar as luzes nunca
seriam apagadas. Era o lugar sem escuridão: então ele entendeu
por que O’Brien parecia reconhecer a alusão. No Ministério do
Amor, não havia janelas. Sua cela poderia estar no coração do
edifício ou encostada em uma parede externa; poderia estar dez
andares abaixo do solo ou trinta acima dele. Ele se moveu
mentalmente de lugar em lugar e tentou determinar, pela sensação
de seu corpo, se ele estava empoleirado no ar ou enterrado
profundamente no subsolo.
Ouviram-se passos do lado de fora. A porta de aço se abriu com
um estrondo. Um jovem oficial, uma figura com um uniforme
preto que parecia brilhar com couro polido, e cujo rosto pálido e
sério era como uma máscara de cera, entrou pela porta. Então fez
um movimento para que os guardas do lado de fora trouxessem o
prisioneiro que eles estavam conduzindo. O poeta Ampleforth foi
lançado para dentro da cela. A porta se fechou novamente.
Ampleforth fez um ou dois movimentos incertos de um lado para
o outro, como se tivesse alguma ideia de que havia outra porta
para sair, e então começou a andar para um lado e para o outro da
cela. Ele ainda não havia notado a presença de Winston. Seus
olhos perturbados estavam olhando para a parede cerca de um
metro acima do nível da cabeça de Winston. Ele estava sem
sapatos; dedos grandes e sujos saiam pelos buracos de suas meias.
Ele também estava há vários dias sem se barbear. Uma barba rala
cobria seu rosto até as maçãs, dando-lhe um ar de brutalidade, que
não combinava com seu jeito fraco e movimentos nervosos.
Winston se despertou levemente de sua letargia. Ele tinha que
falar com Ampleforth, mesmo se arriscando a ouvir um grito da
teletela. Era até possível que Ampleforth fosse o portador da
lâmina de barbear.
– Ampleforth – disse ele.
Nenhum grito saiu da teletela. Ampleforth fez uma pausa
levemente assustada. Seus olhos se focaram lentamente em
Winston.
– Ah, Smith! – disse ele. – Você também!
– Por que você está preso?
– Para dizer a verdade – ele se sentou desajeitadamente no banco
em frente a Winston. – Há apenas uma ofensa, não há? – disse
ele.
– E você a cometeu?
– Aparentemente sim.
Ele colocou a mão na testa e pressionou suas têmporas por um
momento, como se estivesse tentando se lembrar de algo.
– Estas coisas acontecem – ele começou vagamente. – Consegui
me lembrar de uma coisa - uma coisa possível. Foi, sem dúvida,
uma indiscrição. Estávamos produzindo uma edição definitiva
dos poemas de Kipling. Permiti que a palavra ‘Deus’ ficasse no
final de uma linha. Não pude evitar – acrescentou ele quase
indignado, levantando o rosto para olhar para Winston. – Era
impossível mudar a linha. Você sabia que existem apenas doze
rimas para esta palavra em toda a língua inglesa? Durante dias, eu
procurei uma solução em minha mente. Não HAVIA outra rima.
A expressão em seu rosto mudou. O aborrecimento desapareceu e
por um momento ele pareceu quase satisfeito. Uma espécie de
calor intelectual, a alegria do pedante que descobriu algum fato
inútil, brilhou através da sujeira e dos cabelos despenteados.
– Já lhe ocorreu – disse ele –, que toda a história da poesia inglesa
foi determinada pelo fato de a língua inglesa carecer de rimas?
Não, esse pensamento em particular nunca havia ocorrido a
Winston. Nem lhe pareceu muito importante ou interessante,
dadas as circunstâncias.
– Você sabe que momento do dia é agora? – ele perguntou.
Ampleforth parecia assustado novamente.
– Eu mal tinha pensado nisso. Eles me prenderam... pode ter sido
há dois dias... talvez três.
Seus olhos analisaram as paredes, como se ele esperasse
encontrar uma janela em algum lugar.
– Não há diferença entre noite e dia neste lugar. Não vejo como se
pode calcular o tempo.
Eles falaram aleatoriedades por alguns minutos, depois, sem
razão aparente, um grito da teletela mandou que se calassem.
Winston sentou-se em silêncio, com as mãos cruzadas.
Ampleforth, grande demais para sentar-se confortavelmente no
banco estreito, inquietou-se de um lado para o outro, apertando
suas mãos primeiro ao redor de um joelho, depois ao redor do
outro. A teletela gritava para que ele ficasse quieto. O tempo
passou. Vinte minutos, uma hora - foi difícil avaliar. Mais uma
vez, ouviu-se um barulho de botas do lado de fora. As entranhas
de Winston se contraíram. Logo, muito em breve, talvez em cinco
minutos, talvez agora, o barulho das botas significaria que sua vez
havia chegado.
A porta se abriu. O jovem oficial de aparência fria entrou na cela.
Com um breve movimento da mão, ele indicou Ampleforth.
– Sala 101 – disse ele.
Ampleforth marchou desajeitado entre os guardas, seu rosto
vagamente perturbado, mas incompreensível.
Parecia já ter passado muito tempo. A dor na barriga de Winston
havia reaparecido. Sua mente continuava em looping nos mesmos
pensamentos, como uma bola caindo de novo e de novo na
mesma série de buracos. Ele tinha apenas seis pensamentos. A
dor na barriga; um pedaço de pão; o sangue e os gritos; O’Brien;
Júlia; a lâmina de barbear. Então suas entranhas se contraíram
novamente ao ouvir mais uma vez o som de pesadas passadas se
aproximando. Quando a porta se abriu, trouxe junto uma onda de
ar com um fortíssimo cheiro de suor. Parsons entrou na cela. Ele
estava usando calções cáqui e uma camisa esportiva.
Desta vez Winston ficou assustado, esquecendo-se de sua própria
prisão.
– VOCÊ por aqui! – disse ele.
Parsons olhou para Winston sem demonstrar interesse nem
surpresa, mas apenas miséria. Ele começou a andar de forma
agitada para cima e para baixo, evidentemente incapaz de ficar
quieto. Cada vez que ele endireitava seus joelhos rechonchudos,
ficava claro que estavam tremendo. Seus olhos estavam bem
abertos, olhando fixamente, como se ele não pudesse se impedir
de olhar para algo a meia distância.
– Por que você está preso? – disse Winston.
– Crime de Pensamento! – disse Parsons.
O tom de sua voz implicava imediatamente numa admissão
completa de sua culpa e uma espécie de horror, incrédulo que tal
palavra pudesse ser aplicada a ele mesmo. Ele fez uma pausa em
frente a Winston e começou avidamente a apelar para ele:
– Você não acha que eles vão atirar em mim, acha, velho amigo?
Eles não atiram em você se você não tiver realmente feito nada -
apenas pensamentos, que você não pode evitar? Eu sei que eles
fazem uma audiência justa. Ah, eu confio neles em relação a isso!
Eles vão conhecer meu histórico, não é mesmo? VOCÊ sabe que
tipo de pessoa eu era. Não era um mau sujeito, seguia um bom
caminho. Não era inteligente, é claro, mas perspicaz. Eu sempre
dei o meu melhor para o Partido, não foi? Vou sair em cinco anos,
você não acha? Ou quem sabe em dez anos? Um cara como eu
poderia se tornar muito útil em um campo de trabalho. Eles não
atirariam em mim por ter saído da linha apenas uma vez, né?
– Você é culpado? – perguntou Winston.
– Claro que sou culpado! – choramingou Parsons com um olhar
servil para a teletela. – Você não acha que o Partido prenderia um
homem inocente, acha?
Sua cara de sapo ficou mais calma e até assumiu uma expressão
um pouco hipócrita.
– O crime de pensamento é uma coisa terrível, velho – disse ele
sentenciosamente. – É traiçoeiro. Ele pode se apoderar de você
sem que você sequer saiba. Você sabe como ele se apoderou de
mim? Durante meu sono! Sim, isso é um fato. Lá estava eu,
trabalhando, tentando fazer minha parte - nunca soube que tinha
alguma coisa ruim em minha mente. E então comecei a falar
durante o sono. Você sabe o que eles me ouviram dizer?
Ele abaixou sua voz, como alguém que, por razões médicas, é
obrigado a proferir uma obscenidade.
– Abaixo o Big Brother! Sim, eu disse isso! Disse uma e mais
outra vez, ao que parece. Aqui entre nós, meu velho, fico feliz
que eles tenham me pegado antes de eu ir mais longe. Você sabe o
que vou dizer a eles quando eu for a tribunal? ‘Obrigado’, eu vou
dizer, ‘obrigado por me salvar antes que fosse tarde demais’.
– Quem lhe denunciou? – perguntou Winston.
– Foi minha filhinha – disse Parsons com uma espécie de orgulho
triste. – Ela ouviu pelo buraco da fechadura. Ouviu o que eu disse
e no dia seguinte foi direto para a polícia. Muito inteligente para
uma criança de sete anos, não é? Eu não guardo nenhum rancor
por isso. Na verdade, estou orgulhoso dela. Mostra que eu a criei
com o espírito certo, de qualquer forma.
Ele fez mais alguns movimentos bruscos para cima e para baixo,
várias vezes, olhando com um certo desespero para o vaso
sanitário. De repente, ele abaixou seu calção.
– Desculpe, meu velho – disse ele. Não posso evitar. É a
ansiedade.
Ele meteu seu grande traseiro na privada. Winston cobriu o rosto
com as mãos.
– Smith! – gritou a voz da teletela. – 6079 Smith W! Descubra
seu rosto. Nenhum rosto coberto nas celas.
Winston descobriu seu rosto. Parsons usou a privada em alto e
bom som e também abundantemente. Então descobriu que a
descarga estava com defeito e a cela fedeu abominavelmente por
horas depois disso.
Parsons foi removido. Mais prisioneiros chegaram e se foram
misteriosamente. Uma mulher foi levada à ‘Sala 101’ e Winston
notou, que ela pareceu murchar e mudar de cor quando ouviu as
palavras. Chegou um momento em que, se ele tivesse sido levado
para lá de manhã, então já seria de tarde; ou se ele tivesse sido
levado de tarde, então seria meia-noite. Havia seis prisioneiros na
cela, homens e mulheres. Todos estavam muito quietos. Em frente
ao Winston, sentou-se um homem sem queixo e dentuço, parecido
com um roedor grande e inofensivo. Suas bochechas gordas e
manchadas eram tão grandes que era difícil não acreditar que ele
tinha reservas de comida escondidas ali. Seus olhos cinzentos e
pálidos olhavam timidamente os rostos um a um e se desviavam
rapidamente sempre que cruzavam com os olhos de alguém.
A porta se abriu e outro prisioneiro, cuja aparência provocou um
arrepio momentâneo em Winston, foi trazido para a cela. Ele era
um homem comum, de aparência mesquinha, que poderia ter sido
um engenheiro ou técnico de algum tipo. Mas o mais
surpreendente era a magreza de seu rosto. Era praticamente um
crânio. Era tão magra que a boca e os olhos pareciam
desproporcionalmente grandes; e os olhos pareciam cheios de um
ódio assassino e ainda não saciado de alguém ou alguma coisa.
O homem sentou-se no banco a uma pequena distância de
Winston. Winston não olhou para ele novamente, mas o rosto
atormentado e esquelético era tão vívido em sua mente como se
estivesse diante de seus olhos. De repente, ele percebeu o que
estava acontecendo. O homem estava morrendo de fome. O
mesmo pensamento parecia ocorrer quase que simultaneamente a
todos na cela. Havia uma agitação muito tênue ao redor do banco.
Os olhos do homem sem queixo se voltavam para o homem com
cara de caveira, depois se desviavam culpados e depois eram
arrastados de volta por uma atração irresistível. Ele começou a se
agitar em seu assento. Por fim, ele se levantou, andou
desajeitadamente pela cela, colocou a mão no bolso de seu
macacão e, com um ar envergonhado, estendeu um pedaço de pão
sujo para o homem com cara de caveira.
Um rugido furioso e ensurdecedor saiu da teletela. O homem sem
queixo saltou, recuando. O homem com cara de caveira colocou
rapidamente suas mãos atrás das costas, como se demonstrasse
para todo mundo que recusava o presente.
– Bumstead! – bramiu a voz. – 2713 Bumstead J.! Largue esse
pedaço de pão!
O homem sem queixo deixou o pedaço de pão cair no chão.
– Permaneça de pé onde está – disse a voz. – Fique de frente para
a porta. Não faça nenhum movimento.
O homem sem queixo obedeceu. Suas grandes bochechas gordas
tremiam incontrolavelmente. A porta se abriu. Quando o jovem
oficial entrou e se afastou para o lado, por trás dele emergiu um
guarda baixo e troncudo, com braços e ombros enormes. Ele se
posicionou em frente ao homem sem queixo, e então, a um sinal
do oficial, desferiu um golpe espantoso, com toda a força de seu
corpo, na boca do homem sem queixo. A força do golpe quase o
atirou ao chão. Seu corpo foi lançado através da cela, atingindo a
base da privada. Por um momento, ele ficou deitado como se
estivesse atordoado, com o sangue escuro escorrendo de sua boca
e nariz. Um choramingar ou gemer muito tênue, que parecia
inconsciente, emanou dele. Então, ele se virou e se apoiou nas
mãos e joelhos. Em meio a uma corrente de sangue e saliva, as
duas metades de uma dentadura caíram de sua boca.
Os prisioneiros ficaram bem quietos, com as mãos cruzadas sobre
os joelhos. O homem sem queixo voltou ao seu lugar. A pele de
um lado de seu rosto escurecia. Sua boca inchara e era agora uma
massa cor de cereja sem forma, com um buraco negro no meio.
De tempo em tempo um pouco de sangue pingava no peito de seu
macacão. Seus olhos cinzentos ainda observavam rosto por rosto,
mais culpados do que nunca, como se estivesse tentando
descobrir o quanto os outros o desprezavam por sua humilhação.
A porta se abriu. Com um pequeno gesto, o oficial indicou o
homem de cara de caveira.
– Sala 101 – ele disse.
Ouviu-se um suspiro e um turbilhão ao lado de Winston. O
homem, na verdade, tinha se atirado de joelhos no chão, com as
mãos juntas.
– Camarada! Oficial! – ele gritou. – Você não precisa me levar
para aquele lugar! Eu já não lhe contei tudo? O que mais você
quer saber? Não há nada que eu não confesse, nada! Apenas me
diga o que é e eu confessarei imediatamente. Escreva e eu
assinarei - qualquer coisa! Não a sala 101!
– Sala 101 – disse o oficial.
O rosto do homem, já muito pálido, tornou-se de uma cor que
Winston não teria acreditado ser possível. Era definitivamente,
incontestavelmente, uma tonalidade de verde.
– Faça qualquer coisa comigo! – gritou ele. – Você vem me
matando de fome há semanas. Acabe com isso e me deixe morrer.
Atire em mim. Me enforque. Me sentencie a vinte e cinco anos.
Há mais alguém que você quer que eu entregue? Basta dizer
quem é e eu lhe direi o que você quiser. Não me importa quem é
ou o que você fará com ele. Eu tenho mulher e três filhos. O
maior deles não tem seis anos de idade. Você pode pegar todos
eles e cortar suas gargantas diante dos meus olhos e eu ficarei de
braços cruzados apenas vendo. Mas não a Sala 101!
– Sala 101– disse o oficial.
O homem olhou freneticamente para os outros prisioneiros, como
se pudesse colocar outra vítima em seu próprio lugar. Seus olhos
se fixaram no rosto esmagado do homem sem queixo. Então
lançou um braço magro na direção dele.
– É esse que você deveria estar levando, não eu! – gritou ele. –
Você não ouviu o que ele disse depois que bateram nele. Dê-me
uma chance e eu lhe direi cada palavra. É ELE que está contra o
Partido, não eu.
Os guardas deram um passo adiante. A voz do homem elevou-se
a um grito.
– Você não o ouviu! – repetiu ele. – Algo deu errado com a
teletela. É a ele que você quer. Leve-o, não a mim!
Os dois guardas robustos se abaixaram para pegá-lo pelos braços.
Mas exatamente neste momento ele se atirou no chão da cela e
agarrou uma das barras de ferro que suportava o banco. Ele
começou então a emitir um uivo sem palavras, como um animal.
Os guardas o agarraram para soltá-lo, mas ele se agarrou com
uma força espantosa. Durante talvez vinte segundos, eles o
puxaram. Os prisioneiros permaneceram sentados e quietos, com
as mãos cruzadas nos joelhos, olhando diretamente para frente. O
uivo parou; o homem não tinha mais fôlego para nada, exceto
para se agarrar. Depois, ouviu-se um tipo diferente de choro. Um
pontapé da bota de um guarda havia quebrado os dedos de uma de
suas mãos. Eles o puseram de pé.
– Sala 101– disse o oficial.
O homem foi levado para fora, caminhando cambaleante, com a
cabeça baixa, sustentando a mão esmagada, sem forças para lutar.
Muito tempo se passou. Se era meia-noite quando o homem com
cara de caveira foi levado, agora já era de manhã: se foi de
manhã, já era de tarde. Winston estava sozinho e tinha estado
sozinho por horas. A dor de sentar-se no banco estreito era tal,
que muitas vezes ele se levantava e caminhava, sem ser reprimido
pela teletela. O pedaço de pão ainda estava onde o homem sem
queixo o havia deixado cair. No início, ele precisava se esforçar
muito para não olhar para ele, mas agora a fome dava lugar à
sede. Sua boca estava pegajosa e tinha um gosto ruim. O zumbido
e a luz branca constante provocavam uma espécie de fraqueza,
uma sensação de vazio dentro de sua cabeça. Ele se levantava,
porque não suportava a dor em seus ossos e logo se sentava de
novo, porque estava muito tonto para conseguir permanecer em
pé. Sempre que suas sensações físicas estavam um pouco sob
controle, o terror voltava. Às vezes, com uma esperança
desvanecida, ele pensava em O’Brien e na lâmina de barbear. Era
de se pensar que a lâmina de barbear poderia chegar escondida
em sua comida, se alguma vez ele fosse alimentado. Mais
vagamente, ele pensava em Júlia. Em algum outro lugar, ela
talvez estivesse sofrendo muito mais do que ele. Ela poderia estar
gritando de dor neste momento. Ele pensou: ‘Se eu pudesse salvar
Júlia duplicando minha própria dor, será que eu o faria? Sim, eu o
faria’. Mas essa era uma decisão meramente intelectual, tomada
porque ele sabia que deveria tomá-la. Ele não a sentia. Neste
lugar não se sentia nada, exceto dor e pressentimento de dor.
Além disso, era possível, quando você estava realmente sofrendo,
desejar por alguma razão que sua própria dor aumentasse? Mas
essa pergunta ainda não tinha resposta.
As passadas de botas se aproximaram novamente. A porta se
abriu. O’Brien entrou.
Winston começou a se levantar. O choque da visão o havia feito
esquecer de todas as cautelas. Pela primeira vez em muitos anos,
ele se esqueceu também da presença da teletela.
– Eles também lhe pegaram – gritou ele.
– Eles me pegaram há muito tempo – disse O’Brien com uma
ironia leve, quase arrependida. Ele deu um passo para o lado. De
trás dele surgiu um guarda de peito largo com um longo cassetete
preto na mão.
– Você sabia, Winston – disse O’Brien. – Não engane a si mesmo.
Você sabia, você sempre soube.
Era verdade, foi então que ele percebeu que ele sabia, ele sempre
soube. Mas não havia tempo para pensar nisso. Ele só tinha olhos
para o cassetete na mão do guarda. Ele podia atingi-lo em
qualquer lugar; na cabeça, na ponta da orelha, na parte superior
do braço, no cotovelo...
O cotovelo! Ele caiu de joelhos, quase paralisado, apertando o
cotovelo atingido com sua outra mão. Tudo havia explodido em
luz amarela. Inconcebível, inconcebível que um golpe pudesse
causar tal dor! A luz amarela sumia e então ele podia ver os dois
olhando para ele. O guarda estava rindo de suas contorções. Uma
pergunta, neste momento, foi respondida. Nunca, por qualquer
razão na Terra, se poderia desejar um aumento da dor. De dor,
você poderia desejar apenas uma coisa: que ela parasse. Nada no
mundo era tão ruim quanto a dor física. Diante da dor não há
heróis, não há heróis, ele pensou repetidamente enquanto se
contorcia no chão, apertando inutilmente seu braço esquerdo
atingido.

Capítulo 2
Ele estava deitado em algo que parecia uma cama de camping,
exceto por estar mais alto do chão e por ele estar preso, de forma
que não podia se mover. Uma luz que parecia mais forte do que o
normal estava apontada diretamente para seu rosto. O’Brien
estava de pé ao seu lado, olhando para ele atentamente. Do outro
lado estava um homem de avental branco, segurando uma seringa
hipodérmica.
Mesmo depois que seus olhos se abriram, ele analisou o ambiente
apenas gradualmente. Ele teve a impressão de nadar até esta sala,
vindo de um mundo bem diferente, uma espécie de mundo
subaquático muito abaixo dele. Há quanto tempo ele estava lá
embaixo, ele não sabia. Desde o momento em que o prenderam,
ele não tinha visto escuridão nem luz do dia. Além disso, suas
memórias não eram contínuas. Houve momentos em que a
consciência, mesmo o tipo de consciência que se tem no sono,
cessou e, depois de um intervalo em branco, foi retomada. Mas se
os intervalos eram de dias ou semanas ou apenas segundos, não
havia como saber.
Com aquele primeiro golpe no cotovelo, o pesadelo havia
começado. Mais tarde, ele percebeu que tudo o que tinha
acontecido até então era apenas um interrogatório preliminar, um
interrogatório de rotina, ao qual quase todos os prisioneiros eram
submetidos. Havia uma longa gama de crimes - espionagem,
sabotagem e outros semelhantes - que todos tinham que confessar
ao longo deste percurso. A confissão era uma formalidade,
embora a tortura fosse real. Quantas vezes ele havia sido
espancado, quanto tempo os espancamentos tinham durado, ele
não conseguia se lembrar. Havia sempre cinco ou seis homens de
uniforme preto sobre ele simultaneamente. Às vezes eram
punhos, às vezes eram cassetetes, às vezes eram barras de aço, às
vezes eram botas. Houve momentos em que ele rolou pelo chão,
tão sem vergonha quanto um animal, contorcendo seu corpo para
um lado e para o outro num esforço sem fim e sem esperança de
se esquivar dos chutes, atraindo assim simplesmente mais e ainda
mais chutes, em suas costelas, na barriga, nos cotovelos, nas
canelas, na virilha, nos testículos, no osso na base da coluna
vertebral. Houve momentos em que isso seguiu até que o mais
cruel, perverso e imperdoável lhe parecesse ser o fato de ele não
conseguir se forçar a perder a consciência, e não o fato de que os
guardas continuassem batendo nele. Houve momentos em que sua
coragem o abandonou de tal forma que ele começou a gritar por
misericórdia mesmo antes do início da surra, quando a simples
visão de um punho fechado pronto para golpeá-lo era suficiente
para fazê-lo vomitar uma confissão de crimes reais e imaginários.
Houve outros momentos em que ele começou com a
determinação de não confessar nada, quando cada palavra tinha
que ser forçada a sair dele entre urros de dor, e houve momentos
em que ele tentou de forma débil comprometer-se, dizendo a si
mesmo: ‘Eu vou confessar, mas ainda não. Devo resistir até que a
dor se torne insuportável. Mais três chutes, mais dois chutes, e
então eu lhes direi o que eles querem’. Às vezes ele era espancado
até mal poder ficar de pé, depois era jogado como um saco de
batatas no chão de pedra de uma cela, deixado para se recuperar
por algumas horas, e então levado para fora e espancado
novamente. Houve também períodos mais longos de recuperação.
Ele se lembrava deles vagamente, porque eles eram gastos
principalmente no sono ou no estupor. Ele se lembrava de uma
cela com uma cama de tábuas, uma espécie de prateleira
pendurada na parede, e uma pia de metal, e de refeições com sopa
quente e pão e às vezes café. Ele se lembrava de um barbeiro rude
que chegava para fazer sua barba e cortar seu cabelo e de homens
diretos, insensíveis, de aventais brancos, sentindo seu pulso,
avaliando seus reflexos, virando suas pálpebras para cima,
passando dedos agressivos por seu corpo em busca de ossos
quebrados, e lhe dando agulhadas no braço para fazê-lo dormir.
Os espancamentos tornaram-se menos frequentes e se tornaram
principalmente uma ameaça, um horror ao qual ele poderia ser
enviado de volta a qualquer momento se suas respostas fossem
insatisfatórias. Seus interrogadores agora não eram malfeitores
em uniformes pretos, mas intelectuais do Partido, pequenos
homens com movimentos rápidos e óculos reluzentes, que
trabalhavam nele revezando-se em períodos que duravam - ele
achava, não tinha certeza - dez ou doze horas o turno. Estes novos
interrogadores cuidavam para que ele estivesse em constante dor
leve, mas seu objetivo principal não era a dor. Eles esbofeteavam
seu rosto, torciam suas orelhas, puxavam seus cabelos, faziam-no
ficar de pé sobre uma perna, recusavam permitir que urinasse,
jogavam luzes brilhantes e fortes em seu rosto até que de seus
olhos corresse água; mas o objetivo disto era simplesmente
humilhá-lo e destruir seu poder de argumentação e raciocínio. Sua
verdadeira arma era o questionamento impiedoso que continuava,
hora após hora, fazendo-o tropeçar, criando armadilhas,
distorcendo o que ele dizia, condenando-o a cada mentira e
autocontradição até que ele começasse a chorar tanto de vergonha
quanto de fadiga nervosa. Às vezes ele chorava meia dúzia de
vezes em uma única sessão. Na maioria das vezes, eles gritavam
abusivamente com Winston e a cada hesitação, ameaçavam
entregá-lo novamente aos guardas; mas às vezes mudavam de
tom, chamavam-no de camarada, apelavam para ele em nome do
Socing e do Big Brother, e perguntavam-lhe com tristeza se ainda
agora ele não tinha lealdade suficiente ao Partido para desejar
desfazer o mal que ele havia feito. Quando seus nervos estavam
em farrapos após horas de interrogatório, até mesmo este apelo
poderia reduzi-lo a lágrimas chorosas. No final, as vozes
persistentes o destroçaram mais completamente do que as botas e
os punhos dos guardas. Ele se tornou simplesmente uma boca que
proferia, uma mão que assinava, o que quer que se exigisse dele.
Sua única preocupação era descobrir o que eles queriam que ele
confessasse e então confessar rapidamente, antes que o bullying
começasse de novo. Ele confessou o assassinato de membros
eminentes do Partido, a distribuição de panfletos reacionários,
desvio de fundos públicos, venda de segredos militares,
sabotagem de todo tipo. Ele confessou que era, desde 1968,
espião a serviço do governo de Lestásia. Ele confessou que era
um crente religioso, um admirador do capitalismo e um
pervertido sexual. Ele confessou que havia assassinado sua
esposa, embora ele soubesse, e seus interrogadores provavelmente
também, que sua esposa ainda estava viva. Ele confessou que
durante anos esteve em contato pessoal com Goldstein e foi
membro de uma organização secreta que incluiu quase todas as
pessoas que ele conhecia. Era mais fácil confessar tudo e implicar
a todos. Além disso, em certo sentido, tudo era verdade. Era
verdade que ele tinha sido inimigo do Partido, e aos olhos do
Partido não havia distinção entre o pensamento e a ação.
Havia também lembranças de outro tipo. Elas surgiam em sua
mente desconexas, como imagens com escuridão à sua volta.
Ele estava em uma cela que poderia ser tanto escura quanto clara,
porque ele não podia ver nada, exceto um par de olhos. Perto
dele, algum tipo de instrumento fazia tic-tac lenta e regularmente.
Os olhos se tornaram maiores e mais luminosos. De repente ele
flutuou para fora de seu assento, mergulhou nos olhos e foi
engolido.
Ele estava amarrado em uma cadeira rodeado por mostradores,
sob luzes ofuscantes. Um homem de avental branco lia os
mostradores. Ouviram-se passadas de botas do lado de fora. A
porta se abriu. O oficial com cara de cera entrou, seguido por dois
guardas.
– Sala 101– disse o oficial.
O homem de avental branco não se virou. Ele também não olhou
para Winston; ele olhava apenas para os mostradores.
Winston deslizava por um grande corredor, um quilômetro de
largura, cheio de glória, com luzes douradas, às gargalhadas e
gritando confissões o mais alto que podia. Estava confessando
tudo, mesmo as coisas que ele havia conseguido conter sob
tortura. Contava toda a história de sua vida a um público que já a
conhecia. Com ele estavam os guardas, os outros interrogadores,
os homens de aventais brancos, O’Brien, Júlia, Sr. Charrington,
todos juntos pelo corredor e às gargalhadas. Alguma coisa terrível
que estava prevista no futuro tinha de alguma forma sido ignorada
e não tinha acontecido. Tudo estava bem, não havia mais dor, o
último detalhe de sua vida fora esclarecido, compreendido,
perdoado.
Ele se levantou da cama de tábua acreditando ter ouvido a voz de
O’Brien. Durante todo o seu interrogatório, embora nunca o
tivesse visto, tinha tido a sensação de que O’Brien estava sempre
ao seu lado, fora do seu campo de visão. Era O’Brien que
conduzia tudo. Era ele que mandava os guardas atacarem Winston
e que os impedia de o matar. Era ele quem decidia quando
Winston deveria gritar de dor, quando deveria ter um descanso,
quando deveria ser alimentado, quando deveria dormir, quando as
drogas deveriam ser injetadas em seu braço. Era ele quem fazia as
perguntas e sugeria as respostas. Era ele o mandante, era ele o
protetor, era ele o inquisidor, era ele o amigo. E uma vez –
Winston não se lembrava se estava em sono induzido por drogas
ou em sono normal ou mesmo num momento de vigília – uma
voz murmurara no seu ouvido: ‘Não se preocupe, Winston; você
está sob minha guarda. Há sete anos que lhe vigio. Agora chegou
a hora da verdade. Vou lhe salvar, vou lhe tornar perfeito’. Ele
não tinha certeza se era a voz de O’Brien; mas sabia que era a
mesma voz que lhe tinha dito há sete anos em outro sonho:
‘Vamos nos encontrar onde não há escuridão’.
Ele não se lembrava de seu interrogatório ter terminado. Ele
lembrava de um período de escuridão e depois a cela, ou sala, na
qual ele agora estava, tinha se materializado gradualmente ao seu
redor. Ele estava deitado de costas, quase completamente ereto,
incapaz de se mover. Seu corpo estava preso em todos os pontos
essenciais. Até mesmo a parte de trás de sua cabeça estava presa
de alguma forma. O’Brien estava olhando para ele triste e
seriamente. Seu rosto, visto por baixo, parecia grosseiro e
desgastado, com bolsas sob os olhos e linhas cansadas do nariz ao
queixo. Ele era mais velho do que Winston havia pensado; ele
tinha talvez quarenta e oito ou cinquenta anos. Sob sua mão,
havia um mostrador com uma alavanca em cima e figuras ao
redor de uma circunferência.
– Eu lhe disse – disse O’Brien –, que se nos encontrássemos
novamente, seria aqui.
– Sim – disse Winston.
Sem qualquer aviso, exceto um leve movimento da mão de
O’Brien, uma onda de dor inundou seu corpo. Foi uma dor
assustadora, porque ele não podia ver o que estava acontecendo e
tinha a sensação de que algum ferimento mortal estava sendo
feito nele. Ele não sabia se isso estava realmente acontecendo ou
se o efeito era produzido eletricamente; mas uma força tracionava
seu corpo, arrancando-o da forma, as articulações sendo
lentamente dilaceradas. Embora a dor tivesse trazido suor à sua
testa, o pior de tudo era o medo de que sua espinha dorsal
estivesse prestes a quebrar. Ele pressionou seus dentes e respirou
com força pelo nariz, tentando ficar em silêncio o máximo de
tempo possível.
– Você está com medo – disse O’Brien observando seu rosto –, de
que a qualquer momento algo vá quebrar. Seu medo especial é
que seja sua espinha dorsal. Você tem um quadro mental vívido
das vértebras se despedaçando e o fluido espinhal gotejando para
fora delas. Isso é o que você está pensando, não é, Winston?
Winston não respondeu. O’Brien puxou de volta a alavanca no
mostrador. A onda de dor recuou quase tão rapidamente quanto
havia começado.
– Isso foi quarenta – disse O’Brien. – Você pode ver que os
números neste mostrador chegam a cem. Por favor, durante nossa
conversa, lembre-se de que tenho sob meu comando o poder de
infligir dor em você a qualquer momento e na intensidade que eu
escolher. Se você me contar qualquer mentira, ou tentar prevaricar
de qualquer forma, ou mesmo cair abaixo de seu nível habitual de
inteligência, você vai gritar instantaneamente de dor. Você
entendeu?
– Sim – disse Winston.
O’Brien tornou-se menos severo em seus modos. Ele arrumou
seus óculos pensativamente e deu um ou dois passos para cima e
para baixo. Quando ele falou, sua voz foi gentil e paciente. Ele
tinha o ar de um médico, um professor, até mesmo um padre,
ansioso para explicar e persuadir, ao invés de punir.
– Estou tendo problemas com você, Winston – disse ele –, mas
você é um problema que vale a pena. Você sabe perfeitamente o
que está acontecendo com você. Sabe há anos, embora tenha
lutado contra isto. Você está mentalmente transtornado. Sofre de
uma memória defeituosa. Você é incapaz de se lembrar de eventos
reais e se convence de que se lembra de outros eventos que nunca
aconteceram. Felizmente, é curável. Você nunca se curou disso,
porque não fez esta opção. Houve um pequeno esforço da
vontade, mas você não estava disposto a fazer. Mesmo agora,
estou bem ciente, você está agarrado à sua doença sob a
impressão de que é uma virtude. Vamos agora a um exemplo.
Neste momento, com quem a Oceânia está em guerra?
– Quando fui preso, a Oceânia estava em guerra com Lestásia.
– Com a Lestásia. Bom. E a Oceânia sempre esteve em guerra
com a Lestásia, não é verdade?
Winston suspirou. Ele abriu sua boca para falar e depois não
falou. Ele não conseguia tirar os olhos do mostrador.
– A verdade, por favor, Winston. SUA verdade. Diga-me o que
você acha que se lembra.
– Lembro que até apenas uma semana antes de eu ser preso, nós
não estávamos em guerra com a Lestásia. Estávamos em aliança
com eles. A guerra era contra a Eurásia. Tinha durado quatro
anos. Antes disso...
O’Brien o interrompeu fazendo um movimento com a mão.
– Outro exemplo – disse ele. – Há alguns anos, você teve um
delírio muito sério. Você acreditava que três homens, três
membros do partido chamados Jones, Aaronson e Rutherford, que
foram executados por traição e sabotagem depois de fazer a
confissão mais completa possível, não eram culpados dos crimes
de que foram acusados. Acreditava ter visto provas documentais
inconfundíveis provando que as confissões deles eram falsas.
Havia uma certa fotografia sobre a qual você teve uma
alucinação. Você acreditava que realmente a tivera em suas mãos.
Era uma fotografia, algo parecido com isto.
Um recorte longo de jornal apareceu entre os dedos de O’Brien.
Durante talvez cinco segundos ele esteve dentro do ângulo de
visão de Winston. Era uma fotografia e não havia dúvida de sua
identidade. Era A fotografia. Era outra cópia da fotografia de
Jones, Aaronson e Rutherford na festa em Nova York, que ele
havia tido em suas mãos há onze anos e destruído prontamente.
Por apenas um instante ela estava diante de seus olhos, depois
estava novamente fora de seu ângulo de visão. Mas ele tinha
visto, sem dúvida, ele tinha visto! Ele fez um esforço desesperado
e agonizante para libertar a metade superior de seu corpo. Era
impossível mover-se sequer um centímetro em qualquer direção.
Naquela hora, ele havia até esquecido o mostrador. Tudo o que
ele queria era segurar a fotografia novamente em seus dedos, ou
pelo menos vê-la.
– Ela existe! – ele gritou.
– Não – disse O’Brien.
Ele atravessou a sala. Havia um buraco de memória na parede
oposta. O’Brien levantou a grade. Sem ser notado, o frágil pedaço
de papel foi girando pela corrente de ar quente; logo ele teria
desaparecido nas chamas. O’Brien afastou-se da parede.
– Cinzas – disse ele. – Cinzas sequer identificáveis. Poeira. Não
existe. Esta foto nunca existiu.
– Existiu sim! Ela existe sim! Ela existe na memória. Eu me
lembro disso. Você se lembra disso.
– Eu não me lembro – disse O’Brien.
O coração de Winston se afundou. Isso era duplipensamento. Ele
tinha um sentimento mortal de impotência. Se ele tivesse certeza
de que O’Brien estava mentindo, isso não teria importado. Mas
era perfeitamente possível que O’Brien tivesse realmente
esquecido a fotografia. E se fosse assim, ele já teria esquecido que
não se lembrava dela, e esquecido o ato de esquecer. Como se
podia ter certeza de que não era um simples truque? Talvez aquele
desequilíbrio na mente pudesse realmente acontecer: esse foi o
pensamento que o derrotou.
O’Brien estava olhando para ele de forma especulativa. Mais do
que nunca, ele tinha o ar de um professor que se esforçava com
uma criança rebelde, porém promissora.
– Há um slogan do Partido que trata do controle do passado –
disse ele. –Repita, por favor.
– Quem controla o passado, controla o futuro: quem controla o
presente, controla o passado – repetiu Winston obedientemente.
– Quem controla o presente, controla o passado – disse O’Brien
acenando com a cabeça em aprovação lenta. – É sua opinião,
Winston, que o passado tem existência real?
Novamente o sentimento de impotência recaiu sobre Winston.
Seus olhos se viraram para o mostrador. Ele não só não sabia se
‘sim’ ou ‘não’ era a resposta que o salvaria da dor; ele nem
mesmo sabia qual resposta ele acreditava ser a verdadeira.
O’Brien deu um sorrisinho.
– Você não é nenhum metafísico, Winston – disse ele. – Até este
momento, você nunca havia considerado o significado da
existência. Vou colocar de forma mais precisa. Será que o passado
existe concretamente no espaço? Existe em algum lugar ou noutro
lugar, um mundo de objetos sólidos, onde o passado ainda está
acontecendo?
– Não.
– Então, onde existe o passado, se é que ele existe?
– Em registros. Está anotado.
– Nos registros. E ...?
– Na mente. Nas memórias humanas.
– Na memória. Muito bem, então. Nós, o Partido, controlamos
todos os registros e todas as memórias. Então, controlamos o
passado, não é mesmo?
– Mas como você pode impedir que as pessoas se lembrem das
coisas? – gritou Winston novamente esquecendo
momentaneamente o mostrador. – É involuntário. Está fora do
próprio controle delas. Como você pode controlar a memória?
Você não pôde controlar a minha.
Os modos de O’Brien se tornaram austeros novamente. Ele
colocou sua mão no mostrador.
– Pelo contrário – disse ele –, VOCÊ não a controlou. Foi isso
que o trouxe até aqui. Você está aqui porque falhou em
humildade, em autodisciplina. Você não aceitaria a submissão,
que é o preço da sanidade. Você preferiu ser um lunático, uma
minoria de um. Somente a mente disciplinada pode ver a
realidade, Winston. Você acredita que a realidade é algo objetivo,
externo, que existe por si só. Você também acredita que a
natureza da realidade é auto evidente. Quando você se ilude ao
pensar que vê algo, você assume que todos os outros veem a
mesma coisa que você. Mas eu lhe digo, Winston, que a realidade
não é externa. A realidade existe na mente humana e em nenhum
outro lugar. Não na mente individual, que pode cometer erros e
logo perece: somente na mente do Partido, que é coletiva e
imortal. O que quer que o Partido considere verdade, é a verdade.
É impossível ver a realidade, a não ser olhando através dos olhos
do Partido. Esse é o fato que você tem que reaprender, Winston. É
preciso um ato de autodestruição, um esforço da vontade. Você
deve se humilhar antes de se tornar são.
Ele parou por um momento, como se para assimilar o que ele
tinha dito.
– Você se lembra – continuou ele –, de ter escrito em seu diário,
‘A liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são
quatro’?
– Sim – disse Winston.
O’Brien, de costas para Winston, ergueu a mão esquerda com o
polegar escondido e os quatro dedos estendidos.
– Quantos dedos eu estou mostrando, Winston?
– Quatro.
– E se o Partido diz que não são quatro, mas cinco... então
quantos?
– Quatro.
A palavra terminou em um suspiro de dor. A agulha do mostrador
tinha disparado até cinquenta e cinco. Todo o corpo de Winston se
encheu de suor. O ar rasgou seus pulmões e ele voltou a emitir
gemidos profundos que, mesmo apertando os dentes, ele não
conseguia evitar. O’Brien o observava, os quatro dedos ainda
estendidos. Ele puxou a alavanca para trás. Desta vez, a dor foi
apenas ligeiramente aliviada.
– Quantos dedos, Winston?
– Quatro.
A agulha subiu para sessenta.
– Quantos dedos, Winston?
– Quatro! Quatro! O que mais posso dizer? Quatro!
A agulha deve ter subido novamente, mas ele não olhou para ela.
O rosto sério e austero e os quatro dedos encheram sua visão. Os
dedos se levantaram diante de seus olhos como pilares, enormes,
borrados e parecendo vibrar, mas inconfundivelmente quatro.
– Quantos dedos, Winston?
– Quatro! Pare, pare! Como você pode continuar? Quatro!
Quatro!
– Quantos dedos, Winston?
– Cinco! Cinco! Cinco!
– Não Winston, isso não vai levar a nada. Você está mentindo.
Você ainda acha que são quatro. Quantos dedos, por favor?
– Quatro! Cinco! Quatro! Qualquer coisa que você queira.
Apenas pare com isso, pare com a dor!
De repente ele estava sentado com o braço de O’Brien em volta
de seus ombros. Ele talvez tivesse perdido a consciência por
alguns segundos. As faixas que prendiam seu corpo à cama
estavam soltas. Ele sentia muito frio, tremia incontrolavelmente,
seus dentes tilintavam, as lágrimas rolavam por seu rosto. Por um
momento ele se agarrou a O’Brien como um bebê, curiosamente
confortado pelo braço pesado ao redor de seus ombros. Ele tinha
a sensação de que O’Brien era seu protetor, que a dor era algo que
vinha de fora, de alguma outra fonte, e que era O’Brien quem o
salvava disso.
– Você é um aprendiz lento, Winston – disse O’Brien gentilmente.
– Como posso evitar isso? – ele choramingou. – Como posso não
ver o que está na frente dos meus olhos? Dois e dois são quatro.
– Às vezes, Winston. Às vezes são cinco. Às vezes, são três. Às
vezes são todos de uma só vez. Você deve se esforçar mais. Não é
fácil ficar são.
Ele deitou Winston na cama. As faixas em seus membros foram
novamente apertadas, mas a dor havia diminuído e os tremores
haviam parado, deixando-o apenas fraco e frio. O’Brien fez um
sinal com a cabeça para o homem de avental branco, que tinha
ficado imóvel durante todo o procedimento. O homem de avental
branco curvou-se e olhou atentamente nos olhos de Winston,
sentiu seu pulso, encostou uma orelha em seu peito, bateu aqui e
ali, depois acenou com a cabeça para O’Brien.
– Mais uma vez – falou O´Brien.
A dor fluía pelo corpo de Winston. A agulha devia estar em
setenta ou setenta e cinco. Desta vez ele tinha fechado os olhos.
Ele sabia que os dedos ainda estavam lá e ainda eram quatro.
Tudo o que importava era de alguma forma permanecer vivo até
que o espasmo terminasse. Ele já não sabia mais se estava ou não
gritando. A dor diminuiu novamente. Ele abriu seus olhos.
O’Brien tinha puxado a alavanca para trás.
– Quantos dedos, Winston?
– Quatro. Suponho que sejam quatro. Eu veria cinco, se pudesse.
Estou tentando ver cinco.
– O que você deseja: me persuadir de que você vê cinco ou
realmente ver cinco?
– Realmente vê-los.
– Novamente – disse O’Brien.
Talvez a agulha marcasse oitenta ou noventa. Winston não
conseguia lembrar o porquê da dor. Atrás de suas pálpebras
cerradas, uma floresta de dedos parecia estar se movendo em uma
espécie de dança, entrando e saindo, um desaparecendo atrás do
outro e reaparecendo novamente. Ele estava tentando contar os
dedos, mas não conseguia se lembrar por quê. Ele sabia apenas
que era impossível contá-los, e que isso se devia de alguma forma
à misteriosa identidade entre o cinco e o quatro. A dor cessou
novamente. Quando ele abriu os olhos, foi para descobrir que
ainda estava vendo a mesma coisa. Inúmeros dedos, como árvores
em movimento, ainda dançavam em todas as direções,
atravessando para um lado e depois voltando para o outro. Ele
fechou os olhos novamente.
– Quantos dedos eu estou mostrando, Winston?
– Eu não sei. Eu não sei. Você vai me matar se fizer aquilo
novamente. Quatro, cinco, seis... com toda honestidade, eu não
sei.
– Melhor – falou O´Brien.
Uma agulha espetou o braço do Winston. Quase no mesmo
instante, um calor curativo e feliz se espalhou por todo seu corpo.
A dor já estava meio esquecida. Ele abriu os olhos e olhou com
gratidão para O’Brien. Ao ver o rosto pesado e sério, tão feio e
tão inteligente, seu coração parecia se revitalizar. Se ele pudesse
se mover, teria estendido uma mão e a teria colocado no braço de
O’Brien. Ele nunca o havia amado tão profundamente como neste
momento, e não apenas porque ele havia suprimido a dor. A velha
sensação, de que não importava se O’Brien era um amigo ou um
inimigo, tinha voltado. O’Brien era uma pessoa com quem se
podia conversar. Talvez ser compreendido fosse mais importante
do que ser amado. O’Brien o havia torturado até o limite da
loucura e, em pouco tempo, ele o enviaria para a morte. Isso não
fazia diferença. Em um sentido mais profundo que a amizade,
eles eram íntimos: em algum lugar, embora as palavras reais
pudessem nunca ser ditas, havia um lugar onde eles podiam se
encontrar e conversar. O’Brien estava olhando para ele com uma
expressão que sugeria que o mesmo pensamento poderia estar
passando também por sua cabeça. Quando ele falava, era em um
tom simples e conversador.
– Você sabe onde você está Winston? – ele perguntou.
– Eu não sei. Eu diria que estou no Ministério do Amor.
– Você sabe há quanto tempo você está aqui?
– Eu não sei. Dias, semanas, meses.... acho que são meses.
– E por que você acha que trazemos pessoas para este lugar?
– Para fazer com que confessem.
– Não, esta não é a razão. Tente novamente.
– Para puni-las.
– Não! – exclamou O’Brien. Sua voz havia mudado
extraordinariamente e seu rosto havia se tornado de repente
austero e animado. – Não! Não apenas para extrair sua confissão,
não para puni-lo. Tenho que dizer por que o trouxemos para cá?
Para curá-lo! Para deixá-lo são! Será que você vai entender
Winston, que ninguém que trazemos para cá jamais sai daqui sem
que esteja curado? Não estamos interessados naqueles crimes
estúpidos que você cometeu. O Partido não está interessado no
ato explícito: o pensamento é tudo o que nos interessa. Nós não
destruímos simplesmente nossos inimigos, nós os mudamos. Você
entende o que quero dizer com isso?
Ele se curvava sobre Winston. Seu rosto parecia enorme, por
causa de sua proximidade, e horrivelmente feio, por ser visto de
baixo. Além disso, ele estava cheio de uma espécie de exaltação,
uma intensidade lunática. Novamente o coração de Winston se
encolheu. Se fosse possível, ele teria se afundado mais ainda na
cama. Ele estava certo de que O’Brien estava prestes a girar o
mostrador por pura arbitrariedade. Neste momento, no entanto,
O’Brien se afastou. Ele deu um ou dois passos para cima e para
baixo. Então ele continuou com menos veemência:
– A primeira coisa para você entender é que neste lugar não há
martírios. Você já leu sobre as perseguições religiosas do passado.
Na Idade Média, houve a Inquisição. Foi um fracasso. Ela se
propôs a erradicar a heresia, mas terminou perpetuando-a. Para
cada herege que ardia na fogueira, milhares de outros se erguiam.
Por que isso aconteceu? Porque a Inquisição matou seus inimigos
ao ar livre, e os matou enquanto ainda não tinham se arrependido:
de fato, matou-os porque não se arrependeram. Os homens
estavam morrendo porque não abandonavam suas verdadeiras
crenças. Assim, toda a glória pertencia à vítima e toda a vergonha
ao Inquisidor que a queimara. Mais tarde, no século XX, havia os
totalitaristas, como eram chamados. Havia os nazistas alemães e
os comunistas russos. Os russos perseguiram a heresia de forma
mais cruel do que a Inquisição havia feito. E eles imaginavam que
haviam aprendido com os erros do passado; eles sabiam, de
qualquer forma, que não se deve fazer mártires. Antes de expor
suas vítimas a um julgamento público, eles se propunham
deliberadamente a destruir sua dignidade. Eles os desgastavam
pela tortura e pelo isolamento até que ficassem desprezíveis,
amedrontados, confessando o que lhes era mandado, cobrindo-se
de injúrias, acusando-se e protegendo-se um atrás do outro,
suplicando por misericórdia. E, no entanto, após apenas alguns
anos, a mesma coisa havia acontecido novamente. Os homens
mortos haviam se tornado mártires e sua degradação havia sido
esquecida. Mais uma vez, por que foi assim? Em primeiro lugar,
porque as confissões que tinham feito eram obviamente
extorquidas e falsas. Nós não cometemos erros desse tipo. Todas
as confissões que aqui são proferidas, são verdadeiras. Nós as
tornamos verdadeiras. E acima de tudo, não permitimos que os
mortos se levantem contra nós. Você deve parar de imaginar que a
posteridade o justificará, Winston. A posteridade nunca ouvirá
falar de você. Você será retirado da corrente da história. Nós o
transformaremos em gás e o despejaremos na estratosfera. Nada
restará de você, nem um nome em um registro, nem uma memória
em um cérebro vivo. Você será aniquilado tanto no passado
quanto no futuro. Você nunca terá existido.
Então por que se preocupar em me torturar? – pensou Winston,
com uma amargura momentânea. O’Brien parou, como se
Winston tivesse proferido o pensamento em voz alta. Seu grande
rosto feio se aproximou, com os olhos um pouco estreitados.
– Você está pensando que – disse ele –, já que pretendemos
destruí-lo completamente para que nada do que você diz ou faz
possa fazer diferença, por que nos damos ao trabalho de
interrogá-lo primeiro? Era isso que você estava pensando, não
era?
– Sim – falou Winston.
O’Brien deu um discreto sorriso.
– Você é uma falha no padrão, Winston. Você é uma mancha que
deve ser eliminada. Não lhe disse agora mesmo que somos
diferentes dos perseguidores do passado? Não nos contentamos
com a obediência negativa, nem mesmo com a submissão mais
abjeta. Quando finalmente você se rende a nós, deve ser por sua
livre vontade. Nós não destruímos o herege porque ele resiste a
nós: enquanto ele resistir, nunca o destruiremos. Nós o
converteremos, capturaremos sua mente interior, nós o
remodelaremos. Queimamos todo mal e toda ilusão dele; o
trazemos para nosso lado, não na aparência, mas genuinamente,
de coração e alma. Fazemos dele um de nós antes de matá-lo. É
intolerável para nós que um pensamento errado exista em
qualquer parte do mundo, por mais secreto e impotente que ele
seja. Mesmo no instante da morte, não podemos permitir qualquer
desvio. Antigamente o herege caminhava para a estaca ainda
herege, proclamando sua heresia, exultando nela. Até mesmo a
vítima das purgas russas podia trazer a rebelião presa dentro de
sua mente enquanto caminhava pelo corredor esperando a bala.
Mas nós tornamos o cérebro perfeito antes de estourá-lo. O
comando dos velhos déspotas era ‘Não o farás’. O comando dos
totalitaristas era ‘Tu deverás’. Nosso comando é ‘TU ÉS’.
Ninguém que trazemos para este lugar jamais se destaca contra
nós. Todos são lavados. Mesmo aqueles três miseráveis traidores
em cuja inocência você acreditou um dia - Jones, Aaronson e
Rutherford - no final, nós os derrubamos. Eu mesmo tomei parte
no interrogatório deles. Eu os vi gradualmente desgastados,
chorando, rastejando - e no final não foi com dor ou medo, apenas
com penitência. Quando terminamos com eles, eles já eram
apenas cascas de homens. Não havia mais nada neles, exceto
tristeza pelo que haviam feito e amor ao Big Brother. Era tocante
ver como eles o amavam. Eles imploravam para serem fuzilados
rapidamente, para que pudessem morrer enquanto suas mentes
ainda estavam limpas.
Sua voz havia crescido quase sonhadora. A exaltação, o
entusiasmo lunático, ainda estava em seu rosto. Ele não está
fingindo, pensou Winston, ele não é um hipócrita, ele acredita em
cada palavra que diz. O que mais o oprimia era a consciência de
sua própria inferioridade intelectual. Ele observava a forma
pesada, porém graciosa, caminhando de um lado para o outro,
entrando e saindo do alcance de sua visão. O’Brien era um ser
maior do que ele em todos os sentidos. Não havia nenhuma ideia
que ele tivesse, ou pudesse ter, que O’Brien não tivesse há muito
tempo conhecido, examinado e rejeitado. Sua mente CONTINHA
a mente de Winston. Mas nesse caso, como poderia ser verdade
que O’Brien estava louco? Tinha que ser ele, Winston, que estava
louco. O’Brien parou e olhou para ele. Sua voz tinha se tornado
austera novamente.
– Não imagine que você vai se salvar, Winston, por mais que se
renda completamente a nós. Ninguém que uma vez se tenha
desviado é poupado. E mesmo se escolhêssemos deixá-lo viver o
termo natural de sua vida, mesmo assim você nunca escaparia de
nós. O que acontece com você aqui é para sempre. Entenda isso
de antemão. Nós o esmagaremos até o ponto em que não haverá
mais volta. Coisas acontecerão com você, das quais você não
poderia se recuperar, nem se vivesse mil anos. Nunca mais você
será capaz de um sentimento humano comum. Tudo estará morto
dentro de você. Nunca mais você será capaz de amar, ou de ter
uma amizade, uma alegria de viver, um riso, uma curiosidade,
coragem ou integridade. Você será oco. Nós lhe espremeremos até
ficar vazio e então lhe encheremos com nós mesmos.
Ele fez uma pausa e um sinal para o homem de avental branco.
Winston sabia que algum aparelho pesado estava sendo colocado
atrás de sua cabeça. O’Brien havia se sentado ao lado da cama, de
modo que seu rosto estava quase no mesmo nível do de Winston.
– Três mil – disse ele falando por cima da cabeça de Winston ao
homem de avental branco.
Duas almofadas macias, que pareciam ligeiramente úmidas,
foram fixadas nas têmporas de Winston. Ele tremeu. A dor estava
a caminho, um novo tipo de dor. O’Brien colocou uma mão
tranquilizadora, quase gentilmente, sobre a dele.
– Desta vez não vai doer – disse ele. – Mantenha seus olhos fixos
nos meus.
Neste momento houve uma explosão devastadora, ou o que
parecia uma explosão, embora ele não estivesse certo de que tinha
havido algum ruído. Sem dúvida, houve um clarão de luz
ofuscante. Winston não foi ferido, apenas prostrado. Embora ele
já estivesse deitado de costas quando a coisa aconteceu, ele tinha
a curiosa sensação de ter sido derrubado, indo parar naquela
posição. Um terrível golpe sem dor o havia atingido. Algo
também havia acontecido dentro de sua cabeça. Quando seus
olhos recuperaram o foco, ele se lembrou quem ele era e onde
estava, e reconheceu o rosto que estava olhando para dentro dele
mesmo; mas em um ou outro lugar havia grandes manchas de
vazio, como se um pedaço tivesse sido retirado de seu cérebro.
– Não vai demorar – disse O’Brien. – Olhe nos meus olhos. Com
que país a Oceânia está em guerra?
Winston pensou. Ele sabia o que significava Oceânia e que ele era
um cidadão da Oceânia. Ele também se lembrava da Eurásia e da
Lestásia; mas quem estava em guerra com quem ele não sabia. Na
verdade, ele nem sabia que havia uma guerra.
– Eu não me lembro.
– A Oceânia está em guerra com a Lestásia. Você se lembra disto
agora?
– Sim.
– A Oceânia sempre esteve em guerra com a Lestásia. Desde o
início de sua vida, desde o início do Partido, desde o início da
história, a guerra tem continuado sem interrupção, sempre a
mesma guerra. Você se lembra disso?
– Sim.
– Há onze anos, você criou uma lenda sobre três homens que
haviam sido condenados à morte por traição. Você fingiu que
tinha visto um pedaço de papel que os provou inocentes. Nenhum
pedaço de papel assim jamais existiu. Você o inventou e, mais
tarde, passou a acreditar nele. Agora você se lembra do momento
em que o inventou. Você se lembra disso?
– Sim.
– Agora há pouco mostrei os dedos da minha mão para você.
Você viu cinco dedos. Você se lembra disso?
– Sim.
O’Brien levantou os dedos de sua mão esquerda, com o polegar
escondido.
– Há cinco dedos aqui. Você vê cinco dedos?
– Sim.
E ele os viu, por um instante fugaz, antes que o cenário de sua
mente mudasse. Ele viu cinco dedos e não havia deformidade.
Então tudo estava novamente normal, e o velho medo, o ódio e a
perplexidade voltaram a se aglomerar. Mas houve um momento -
ele não sabia quanto tempo, talvez trinta segundos - de certeza
luminosa, quando cada nova sugestão de O’Brien tinha
preenchido um pedaço de vazio e se tornado verdade absoluta, e
quando dois e dois poderiam ter sido três tão facilmente quanto
cinco, se isso fosse necessário. Mas antes de O’Brien ter baixado
sua mão, este momento tinha desaparecido; embora ele não
pudesse recapturá-lo, ele podia se lembrar, como alguém se
lembra de uma experiência vívida de algum período da vida
quando se era, de fato, uma pessoa diferente.
– Você percebe agora – disse O’Brien, – que qualquer forma é
possível.
– Sim – disse Winston.
O’Brien se levantou com um ar satisfeito. À sua esquerda,
Winston viu o homem de avental branco quebrar uma ampola e
puxar o êmbolo de uma seringa para trás. O’Brien virou-se para
Winston com um sorriso. Quase da maneira antiga, ele reassentou
seus óculos no nariz.
– Você se lembra de escrever em seu diário – disse ele –, que não
importava se eu era um amigo ou um inimigo, já que eu era pelo
menos uma pessoa que o entendia e com quem você podia
conversar? Você estava certo. Eu gosto de conversar com você.
Sua mente me atrai. Parece a minha própria mente, exceto pelo
fato de que você é louco. Antes de encerrarmos a sessão, você
pode me fazer algumas perguntas, se quiser.
– Qualquer pergunta que eu queira?
– Qualquer coisa.
Ele viu que os olhos de Winston estavam atentos ao mostrador.
– Ele está desligado. Qual é sua primeira pergunta?
– O que você fez com Júlia? – disse Winston.
O’Brien sorriu novamente.
– Ela o traiu, Winston. Imediatamente... sem reservas. Raramente
vi alguém vir até nós tão prontamente. Você dificilmente a
reconheceria se a visse. Toda a sua rebeldia, seu engano, sua
loucura, sua mente suja - tudo foi queimado por ela. Foi uma
conversão perfeita, um caso de livro didático.
– Você a torturou?
O’Brien deixou isto sem resposta.
– A próxima pergunta – disse ele.
– O Big Brother existe?
– É claro que ele existe. O Partido existe. O Big Brother é a
encarnação do Partido.
– Ele existe da mesma maneira que eu existo?
– Você não existe – disse O’Brien.
Mais uma vez, a sensação de impotência o dominou. Ele sabia, ou
podia imaginar, os argumentos que provaram sua própria
inexistência; mas eles eram um disparate, eram apenas um jogo
de palavras. A afirmação: ‘Você não existe’ não continha um
absurdo lógico? Mas de que servia dizer isso? Sua mente se
enrugou ao pensar nos argumentos loucos e sem resposta com os
quais O’Brien o destruiria.
– Eu acho que existo – disse ele cansado. – Estou consciente de
minha própria identidade. Eu nasci e vou morrer. Eu tenho braços
e pernas. Ocupo um ponto particular no espaço. Nenhum outro
objeto sólido pode ocupar o mesmo ponto simultaneamente.
Nesse sentido, o Big Brother existe?
– Não tem importância. Ele existe.
– Será que o Big Brother alguma vez morrerá?
– É claro que não. Como ele poderia morrer? Próxima pergunta.
– A Irmandade existe?
– Isso, Winston, você nunca saberá. Se escolhermos libertá-lo
quando tivermos terminado nosso trabalho com você e se você
viver até os noventa anos de idade, ainda assim você nunca saberá
se a resposta a essa pergunta é Sim ou Não. Enquanto você viver,
este será um enigma não solucionado em sua mente.
Winston ficou em silêncio. Seu peito subiu e desceu um pouco
mais rápido. Ele ainda não havia feito a primeira pergunta que lhe
veio à mente. Ele tinha que perguntar, e mesmo assim era como
se sua língua não a proferisse. Havia um traço de diversão no
rosto de O’Brien. Até mesmo seus óculos pareciam ter um brilho
irônico. Ele sabe, pensou Winston de repente, ele sabe o que eu
vou perguntar! E pensando na pergunta, as palavras explodiram
de sua boca:
– O que há na sala 101?
A expressão no rosto de O’Brien não mudou. Ele respondeu
secamente:
– Você sabe o que está na sala 101, Winston. Todos sabem o que
está na Sala 101.
Ele levantou um dedo para o homem de avental branco.
Evidentemente, a sessão estava no final. Uma agulha foi espetada
no braço de Winston. Ele caiu quase que instantaneamente em
sono profundo.

Capítulo 3

– Há três etapas em sua reintegração – disse O’Brien. – Há


aprendizado, compreensão e aceitação. Está na hora de você
entrar na segunda etapa.
Como sempre, Winston estava deitado de costas. Mas
ultimamente suas amarras estavam mais frouxas. Eles ainda o
seguravam na cama, mas ele podia mexer um pouco os joelhos e
podia virar a cabeça de um lado para o outro e levantar os braços
até o cotovelo. O mostrador também tinha se transformado em
algo menos terrível. Ele podia evitar dores se fosse
suficientemente rápido: era principalmente quando demonstrava
estupidez que O’Brien puxava a alavanca. Às vezes eles
passavam por uma sessão inteira sem o uso do mostrador. Ele não
conseguia se lembrar de quantas sessões já haviam feito. Todo o
processo parecia se estender por um tempo longo e indefinido –
semanas, possivelmente – e os intervalos entre as sessões
poderiam ter sido às vezes dias, às vezes apenas uma ou duas
horas.
– Enquanto você está aí deitado – disse O’Brien –, muitas vezes
você se perguntou e chegou inclusive a me perguntar - por que o
Ministério do Amor deveria gastar tanto tempo com alguém tão
problemático quanto você. E quando você estava livre, ficou
intrigado com o que era essencialmente a mesma pergunta. Você
podia compreender a mecânica da Sociedade na qual você vivia,
mas não os motivos intrínsecos. Você se lembra de escrever em
seu diário: ‘Eu entendo COMO’, Não entendo POR QUE’? Foi
quando você pensou no ‘porquê’ que duvidou de sua própria
sanidade. Você leu O LIVRO, o livro de Goldstein, ou partes dele,
pelo menos. Ele lhe disse algo que você já não soubesse?
– Você leu? – disse Winston.
– Eu escrevi o livro. Ou seja, eu colaborei para escrevê-lo.
Nenhum livro é produzido individualmente, como você sabe.
– É verdade, o que ele diz?
– Como descrição, sim. O programa que ele apresenta é um
disparate. O acúmulo secreto de conhecimento, uma difusão
gradual do esclarecimento, em última análise uma rebelião
proletária, a derrubada do Partido. Você mesmo previu que isso
era o que ele diria. Tudo isso é um disparate. Os proletários nunca
se revoltarão, nem em mil anos nem em um milhão. Eles não
podem. Não preciso lhe dizer a razão: você já sabe. Se você em
algum momento já alimentou algum sonho de insurreição
violenta, você deve abandoná-lo. Não há como o Partido ser
derrubado. A regra do Partido é para sempre. Faça disso o ponto
de partida de seus pensamentos.
Ele chegou mais perto da cama.
– Para sempre – repetiu ele. E agora vamos voltar à questão de
‘como’ e ‘por quê’. Você entende bem COMO o Partido se
mantém no poder. Agora me diga POR QUE nos apegamos ao
poder. Qual é o nosso motivo? Por que devemos querer o poder?
Continue, fale – acrescentou ele enquanto Winston permanecia
em silêncio.
No entanto, Winston não falou, permaneceu mais um momento
em silêncio. Um sentimento de cansaço o havia dominado. O
fraco e louco brilho de entusiasmo tinha voltado ao rosto de
O’Brien. Ele sabia de antemão o que O’Brien diria. Que o partido
não buscava o poder para seus próprios fins, somente para o bem
da maioria. Que buscou o poder porque os homens na massa eram
criaturas covardes e frágeis, que não podiam suportar a liberdade
ou enfrentar a verdade, e que deviam ser governados e
sistematicamente iludidos por outros que eram mais fortes do que
eles mesmos. Que a escolha para a humanidade estava entre
liberdade e felicidade, e que, para a grande maioria da
humanidade, a felicidade era melhor. Que o partido era o eterno
guardião dos fracos, uma seita dedicada a fazer o mal para que o
bem prevalecesse, sacrificando sua própria felicidade à dos
outros. O terrível, pensou Winston, o terrível é que quando
O’Brien dissesse isto, ele acreditaria. Você podia ver isso em seu
rosto. O’Brien sabia de tudo. Mil vezes melhor que Winston, ele
sabia como o mundo era realmente, em que degradação a massa
de seres humanos vivia e por quais mentiras e barbaridades o
Partido os mantinha ali. Ele tinha compreendido tudo, pesado
tudo, e não fazia diferença: tudo era justificado pelo propósito
final. O que você pode fazer, pensou Winston, contra o lunático
que é mais inteligente que você, que dá a seus argumentos uma
audiência justa e depois simplesmente persiste em sua loucura?
– Você está nos governando para nosso próprio bem– disse ele
fracamente. Você acredita que os seres humanos não estão aptos a
governar a si mesmos e por isso...
Ele começou e quase gritou. Uma onda de dor atravessou seu
corpo. O’Brien tinha empurrado a alavanca do mostrador até
trinta e cinco.
– Isso foi estúpido, Winston, estúpido! – disse ele. –Você deveria
pensar melhor antes de dizer uma coisa dessas.
Ele puxou a alavanca para trás e continuou:
– Agora vou lhe dizer a resposta à minha pergunta. É o seguinte.
O Partido busca o poder inteiramente para seu próprio bem. Nós
não estamos interessados no bem dos outros; estamos
interessados apenas no poder. Não em riqueza ou luxo ou vida
longa ou felicidade: somente poder, puro poder. O que significa
poder puro, você logo entenderá. Somos diferentes de todas as
oligarquias do passado, na medida em que sabemos o que estamos
fazendo. Todos os outros, mesmo aqueles que se assemelhavam a
nós mesmos, eram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e os
comunistas russos se aproximaram muito de nós em seus
métodos, mas nunca tiveram a coragem de reconhecer seus
próprios motivos. Eles fingiam, talvez até acreditassem, que
haviam tomado o poder contra a sua vontade e por um tempo
limitado e que ali, virando a esquina, havia um paraíso onde os
seres humanos seriam livres e iguais. Nós não somos assim.
Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de
renunciar a ele. O poder não é um meio, ele é um fim. Não se
estabelece uma ditadura para salvaguardar uma revolução; faz-se
a revolução para estabelecer a ditadura. O objetivo da perseguição
é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objeto do
poder é o poder. Agora você está começando a me entender?
Winston foi atingido, como já havia sido atingido antes, pelo
cansaço do rosto de O’Brien. Era forte, carnudo e brutal, cheio de
inteligência e uma espécie de paixão controlada, diante da qual
ele se sentia desamparado; mas estava cansado. Tinha olheiras
sob os olhos e a pele flácida nas maçãs do rosto. O’Brien
inclinou-se sobre ele, aproximando deliberadamente o rosto
desgastado.
– Você está pensando – disse ele –, que meu rosto está velho e
cansado. Você está pensando que eu falo de poder e, no entanto,
não sou capaz de impedir a decadência do meu próprio corpo.
Você não consegue entender, Winston, que o indivíduo é apenas
uma célula? O cansaço da célula é o vigor do organismo. Você
morre quando corta as unhas?
Ele se afastou da cama e começou a andar para um lado e para o
outro novamente, com uma mão no bolso.
– Nós somos os sacerdotes do poder – disse ele. – Deus é poder.
Mas no momento o poder é apenas uma palavra para você. Está
na hora de você ter uma ideia do que significa poder. A primeira
coisa que você deve perceber é que o poder é coletivo. O
indivíduo só tem poder na medida em que ele deixa de ser um
indivíduo. Você conhece o slogan do Partido: ‘Liberdade é
escravidão’. Já lhe ocorreu que ela é reversível? ‘Escravidão é
liberdade’. Sozinho, livre, o ser humano é sempre derrotado.
Deve ser assim, porque todo ser humano está condenado a morrer,
o que é o maior de todos os fracassos. Mas se ele se submeter
completa e totalmente, se ele sair de sua identidade, se ele se
fundir ao Partido para que ele seja o Partido, então ele é todo-
poderoso e imortal. A segunda coisa para você aprender é que o
poder é poder sobre os seres humanos. Sobre o corpo, mas acima
de tudo, sobre a mente. Poder sobre a matéria – ou realidade
externa, como você diria – não é importante. O nosso controle
sobre a matéria já é absoluto.
Por um momento, Winston ignorou o mostrador. Ele fez um
esforço violento para se levantar para a posição sentada e
conseguiu simplesmente contorcer seu corpo dolorosamente.
– Mas como vocês podem controlar a matéria? – ele explodiu. –
Vocês não controlam nem o clima nem a lei da gravidade. E há
doenças, dor, morte...
O’Brien fez um movimento com a mão mandado que ele se
silenciasse.
– Nós controlamos a matéria porque controlamos a mente. A
realidade está dentro da cabeça. Você aprenderá por etapas,
Winston. Não há nada que não possamos fazer. Invisibilidade,
levitação - qualquer coisa. Eu poderia flutuar deste piso como
uma bolha de sabão se quisesse. Eu não desejo, porque o Partido
não deseja. Você deve se livrar dessas ideias do século XIX sobre
as leis da natureza. Nós fazemos as leis da Natureza.
– Mas vocês não as fazem! Vocês não são sequer mestres deste
planeta. E a Eurásia e a Lestásia? Vocês ainda nem as
conquistaram.
– Isso não tem importância. Vamos conquistá-las quando nos
convier. E se não o fizermos, que diferença isso faz? Podemos
eliminá-las da existência. A Oceânia é o mundo.
– Mas o mundo em si é apenas um grão de areia. E o homem é
pequeno e impotente! Há quanto tempo ele existe? Há milhões de
anos a Terra estava desabitada.
– Besteira. A Terra é tão velha quanto nós, não é mais velha.
Como ela poderia ser mais velha? Nada existe, exceto através da
consciência humana.
– Mas as rochas estão cheias de ossos de animais extintos -
mamutes e mastodontes e enormes répteis que viveram aqui
muito antes de se ouvir falar do homem.
– Você já viu esses ossos, Winston? Claro que não. Os biólogos
do século XIX os inventaram. Antes do homem, não havia nada.
Depois do homem, se ele pudesse ser extinto, não haveria nada.
Fora do homem, não há nada.
– Mas o universo inteiro está fora de nós. Olhe para as estrelas!
Algumas delas estão a um milhão de anos-luz de distância. Elas
estarão fora do nosso alcance para sempre.
– O que são as estrelas? – disse O’Brien indiferentemente. Elas
são pedacinhos de fogo a alguns quilômetros de distância.
Poderíamos alcançá-las, se quiséssemos. Ou poderíamos apagá-
las. A Terra é o centro do universo. O sol e as estrelas giram em
torno dela.
Winston fez outro movimento convulsivo. Desta vez, ele não
disse nada. O’Brien continuou como se estivesse respondendo a
uma objeção falada:
– Para certos propósitos, é claro, isso não é verdade. Quando
navegamos no oceano, ou quando prevemos um eclipse, muitas
vezes achamos conveniente assumir que a Terra contorna o Sol e
que as estrelas estão a milhões e milhões de quilômetros de
distância. Mas e daí? Você acha que está além de nós, produzir
um sistema duplo de astronomia? As estrelas podem estar
próximas ou distantes, de acordo com a nossa necessidade. Você
acha que nossos matemáticos são indiferentes a isso? Você
esqueceu o duplipensamento?
Winston se encolheu de volta na cama. O que quer que ele tenha
dito, a resposta rápida sempre o golpeava como um cassetete. E
mesmo assim ele sabia, ele SABIA que estava no caminho certo.
A crença de que nada existe fora de nossa própria mente -
certamente havia alguma forma de demonstrar que era falsa... Isso
não teria sido exposto há muito tempo como uma falácia? Havia
até mesmo um nome para ela, que ele havia esquecido. Um leve
sorriso torceu os cantos da boca de O’Brien, que olhava para ele.
– Eu lhe disse, Winston – disse ele –, que a metafísica não é seu
ponto forte. A palavra que você está tentando pensar é
‘solipsismo’.9 Mas você está enganado. Isto não é solipsismo.
Solipsismo coletivo, se você quiser. Mas isso é uma coisa
diferente: na verdade, a coisa oposta. Tudo isso é uma digressão –
acrescentou ele em um tom diferente. – O verdadeiro poder, pelo
qual temos de lutar noite e dia, não é o poder sobre as coisas, mas
sobre os homens.
Ele fez uma pausa e por um momento assumiu novamente seu ar
de professor questionando um aluno promissor:
– Como um homem faz valer seu poder sobre outro, Winston?
Winston pensou.
– Fazendo ele sofrer – ele disse.
– Exatamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não é suficiente. A
menos que ele esteja sofrendo, como você pode ter certeza de que
ele está obedecendo à sua vontade e não à dele? O poder está em
infligir dor e humilhação. O poder está em despedaçar as mentes
humanas e juntá-las novamente em novas formas à sua própria
escolha. Você começa a ver agora, que tipo de mundo estamos
criando? É exatamente o oposto das estúpidas utopias hedonistas
que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo,
traição e tormento, um mundo onde se atropela e se é atropelado,
um mundo que fica MAIS impiedoso à medida que se
desenvolve. O progresso em nosso mundo será o progresso em
direção a mais dor. As antigas civilizações afirmavam que eram
baseadas no amor ou na justiça. A nossa é fundada no ódio. Em
nosso mundo não haverá emoções, exceto medo, raiva, triunfo e
auto humilhação. Tudo o mais será destruído, tudo. Já estamos
acabando com os hábitos de pensamento de antes da Revolução.
Cortamos os laços entre crianças e pais, entre homem e homem e
entre homem e mulher. Ninguém ousa mais confiar em uma
esposa, um filho ou um amigo. Mas no futuro não haverá mais
esposas e nem amigos. Os filhos serão tirados de suas mães ao
nascer, assim como se tira os ovos de uma galinha. O instinto
sexual será erradicado. A procriação será uma formalidade anual,
como a renovação de um cartão de racionamento. Aboliremos o
orgasmo. Nossos neurologistas estão trabalhando nisso agora.
Não haverá lealdade, exceto lealdade para com o Partido. Não
haverá amor, exceto o amor ao Big Brother. Não haverá risos,
exceto o riso do triunfo sobre um inimigo derrotado. Não haverá
arte, não haverá literatura, não haverá ciência. Quando formos
onipotentes, não teremos mais necessidade da ciência. Não haverá
distinção entre beleza e feiura. Não haverá curiosidade, não
haverá deleite no curso da vida. Todos os prazeres concorrentes
serão destruídos. Mas sempre - não se esqueça disto, Winston -
sempre haverá a embriaguez do poder, sempre crescente e cada
vez mais sutil. Sempre, a cada momento, haverá a emoção da
vitória, a sensação de pisotear um inimigo que está desamparado.
Se você quer uma imagem do futuro, imagine um carimbo de bota
em um rosto humano – para sempre.
Ele fez uma pausa como se esperasse que Winston falasse.
Winston tentava se encolher ainda mais na cama. Ele não
conseguia dizer nada. Seu coração parecia estar congelado.
O’Brien continuou:
– E lembre-se de que é para sempre. O rosto estará sempre lá para
ser carimbado. O herege, o inimigo da sociedade, estará sempre
lá, para que possa ser derrotado e humilhado de novo. Tudo o que
você sofreu desde que está em nossas mãos - tudo isso continuará,
e pior ainda. A espionagem, as traições, as prisões, as torturas, as
execuções, os desaparecimentos jamais cessarão. Será um mundo
de terror, tanto quanto um mundo de triunfo. Quanto mais o
Partido for poderoso, menos tolerante será: quanto mais fraca for
a oposição, mais apertado será o despotismo. Goldstein e suas
heresias viverão para sempre. A cada dia, a cada momento, eles
serão derrotados, desacreditados, ridicularizados, humilhados e,
no entanto, sempre sobreviverão. Este drama que eu vivi com
vocês durante sete anos, será vivido geração após geração, sempre
de forma mais sutil. Sempre teremos o herege aqui à nossa mercê,
gritando de dor, despedaçado, desprezível - e no final totalmente
penitente, salvo de si mesmo, rastejando aos nossos pés por sua
própria vontade. Esse é o mundo que estamos preparando,
Winston. Um mundo de vitória após vitória, triunfo após triunfo:
uma pressão sem fim sobre o nervo do poder. Você está
começando, posso ver, a perceber como será esse mundo. Mas, no
final, você fará mais do que compreendê-lo. Você o aceitará, o
acolherá, se tornará parte dele.
Winston havia se recuperado o suficiente para falar.
– Você não pode – disse ele fraco.
– O que você quer dizer com isto, Winston?
– Você não poderia criar um mundo como o que acabou de
descrever. É um sonho. É impossível.
– Por quê?
– É impossível fundar uma civilização baseada no medo, no ódio
e na crueldade. Ela jamais perduraria.
– Por que não?
– Não teria vida. Iria se desintegrar. Cometeria suicídio.
– Bobagem. Você tem a impressão de que o ódio é mais exaustivo
do que o amor. Por que deveria ser? E se fosse, que diferença isso
faria? Suponhamos que optemos por nos desgastar mais
rapidamente. Suponhamos que aceleremos o ritmo da vida
humana até os homens ficarem senis aos trinta anos. Ainda assim,
que diferença isso faria? Você não consegue entender que a morte
do indivíduo não é a morte? O Partido é imortal.
Como de costume, a voz tinha feito com que Winston se sentisse
desamparado. Além disso, ele estava com medo de que, se
persistisse em sua discordância, O’Brien puxasse a alavanca do
mostrador novamente. E mesmo assim, ele não podia ficar calado.
Frágil, sem argumentos, sem nada para apoiá-lo, exceto seu
horror inarticulado do que O’Brien havia dito, ele voltou ao
ataque.
– Não sei, não me importo. De alguma forma você vai falhar.
Alguma coisa o derrotará. A vida lhe derrotará.
– Nós controlamos a vida, Winston, em todos os seus níveis. Você
está imaginando que existe algo chamado natureza humana, que
será ultrajado pelo que fazemos e se voltará contra nós. Mas nós
criamos a natureza humana. Os homens são infinitamente
maleáveis. Ou talvez você tenha voltado à sua velha ideia de que
os proletários ou os escravos irão surgir e nos derrubar. Tire isso
de sua mente. Eles são incapazes, como os animais. A
humanidade é o Partido. Os outros estão fora, são irrelevantes.
– Não me importa. No final, eles vão lhe derrotar. Mais cedo ou
mais tarde eles o verão como você é, e então o arrebentarão em
pedaços.
– Você vê alguma evidência de que isso está acontecendo? Ou
qualquer razão pela qual isso deveria acontecer?
– Não. Eu apenas acredito nisso. Eu SEI que você vai falhar. Há
algo no universo - não sei, algum espírito, algum princípio - que
você nunca irá superar.
– Você acredita em Deus, Winston?
– Não.
– Então qual é este princípio que nos derrotará?
– Eu não sei. O espírito do Homem.
– E você se considera um homem?
– Sim.
– Se você é um homem, Winston, você é o último homem. Sua
espécie está extinta; nós somos os herdeiros. Você entende que
você está SOZINHO? Você está fora da história, você é
inexistente.
Sua maneira mudou e ele disse mais severamente:
– E você se considera moralmente superior a nós, com nossas
mentiras e nossa crueldade...
– Sim, eu me considero superior.
O’Brien não falou nada. Duas outras vozes estavam falando.
Após um momento, Winston reconheceu uma delas como sendo
sua. Era uma gravação da conversa que ele teve com O’Brien, na
noite em que ele entrou para a Irmandade. Ele se ouviu
prometendo mentir, roubar, forjar, assassinar, incentivar o
consumo de drogas e a prostituição, disseminar doenças venéreas,
jogar ácido no rosto de uma criança. O’Brien fez um pequeno
gesto de impaciência, como se dissesse que a manifestação
dificilmente valeria a pena. Então ele virou um interruptor e as
vozes pararam.
– Levante-se dessa cama – disse ele.
As amarras estavam soltas. Winston desceu da cama e ficou em
pé, meio cambaleante.
– Você é o último homem – disse O’Brien. – Você é o guardião do
espírito humano. Você se verá como você é. Tire suas roupas.
Winston soltou o cordão que mantinha seu macacão fechado. O
zíper já tinha estourado há muito tempo. Ele não conseguia se
lembrar se em algum momento desde sua prisão ele havia tirado
toda a roupa. Debaixo do macacão, seu corpo estava coberto com
trapos amarelados imundos, reconhecíveis apenas como os restos
de sua roupa íntima. Ao baixá-los até o chão, ele viu que havia
um espelho de três lados no fundo da sala. Ele se aproximou do
espelho e parou. Então soltou um grito involuntário.
– Continue – disse O’Brien. – Fique de pé entre os espelhos. Você
terá também a vista lateral.
Ele havia parado porque estava assustado. Algo semelhante a um
esqueleto curvado e acinzentado estava vindo em sua direção. Sua
aparência real era assustadora, ainda mais pelo fato de ele saber
que era ele mesmo. Ele se aproximou do espelho. O rosto da
criatura parecia estar protuberante, por causa de sua postura
curvada. Era como o rosto de um infrator desesperado, com olhos
ferozes e atentos que se destacavam abaixo de uma testa larga que
se unia a uma cabeça careca, um nariz torto e maçãs do rosto
feridas. As bochechas estavam murchas e enrugadas, a boca tinha
um aspecto de esgotamento. Certamente era seu próprio rosto,
mas lhe parecia que havia mudado mais do que ele havia mudado
por dentro. As emoções que este rosto registrava seriam
diferentes daquelas que ele sentia. Ele tinha ficado parcialmente
careca. Em um primeiro momento ele pensou que sua pele tinha
ficado cinza, mas era apenas o couro cabeludo que estava cinza.
Exceto por suas mãos e um círculo em seu rosto, seu corpo estava
todo cinza, com sujeira velha e incrustrada. Aqui e ali, sob a
sujeira, havia as cicatrizes vermelhas das feridas, e perto do
tornozelo a úlcera varicosa era uma massa inflamada com flocos
de pele descascando. Mas verdadeiramente assustadora era a
magreza de seu corpo. Suas costas estavam tão magras que as
costelas pareciam ser de um esqueleto; as pernas tinham afinado,
de modo que os joelhos eram mais grossos que as coxas. Ele viu
agora o que O’Brien queria dizer com ‘ter a vista lateral’. A
curvatura da coluna vertebral era espantosa. Os ombros finos
estavam curvados para frente, formando uma cavidade no peito, o
pescoço esguio parecia estar se dobrando sob o peso do crânio.
Num palpite, ele teria dito que era o corpo de um homem de
sessenta anos, sofrendo de alguma doença maligna.
– Você às vezes pensa – disse O’Brien – que meu rosto, o rosto de
um membro do Núcleo do Partido, é velho e desgastado. O que
você pensa de seu próprio rosto?
Ele agarrou o ombro de Winston e o girou, de modo a colocá-lo
de frente para ele.
– Olhe em que condição você está! – disse ele. – Veja esta sujeira
por todo o seu corpo. Olhe para a sujeira entre os dedos dos seus
pés. Olhe para essa ferida nojenta em sua perna. Você sabia que
você fede como uma cabra? Provavelmente você já deixou de
notar isso. Olhe para sua magreza. Você vê? Eu posso fazer meu
polegar e meu indicador se encontrarem ao redor de seu bíceps.
Eu poderia partir seu pescoço como uma cenoura. Você sabe que
perdeu vinte e cinco quilos desde que está em nossas mãos? Até o
seu cabelo está caindo em punhados. Veja! Ele agarrou a cabeça
de Winston e arrancou um tufo de cabelo. Abra sua boca. Faltam
nove, dez, onze dentes. Quantos você tinha quando veio para cá?
E os poucos que lhe restam estão caindo da sua boca. Olhe aqui!
Ele segurou um dos dentes da frente restantes de Winston entre
seu polegar e seu indicador. Winston sentiu uma pontada de dor
em sua mandíbula. O’Brien tinha arrancado o dente mole pela
raiz. Ele o jogou longe na cela.
– Você está apodrecendo – disse ele. – Você está caindo aos
pedaços. O que você é? Um saco de sujeira. Agora vire-se e olhe
novamente para aquele espelho. Você vê aquela coisa de frente
para você? Este é o último homem. Se você é humano, isso é a
humanidade. Agora vista-se de novo.
Winston começou a se vestir com movimentos lentos e rígidos.
Até agora ele não tinha notado quão magro e fraco ele estava.
Apenas um pensamento lhe veio à mente: que ele devia estar
neste lugar há mais tempo do que havia imaginado. Então, de
repente, enquanto arrumava os trapos miseráveis em seu corpo,
foi vencido por um sentimento de piedade por seu corpo em
ruínas. Antes que ele soubesse o que estava fazendo, desmoronou
em um banquinho que ficava ao lado da cama e explodiu em
lágrimas. Ele estava consciente de sua feiura, sua falta de
graciosidade, um feixe de ossos em roupa suja sentado chorando
sob a implacável luz branca: mas ele não conseguia se controlar.
O’Brien colocou uma mão sobre seu ombro, quase que
gentilmente.
– Não durará para sempre – disse ele. – Você pode escapar disso
quando quiser. Tudo depende de você mesmo.
– Você conseguiu! – soluçou Winston. – Você me reduziu a este
estado.
– Não, Winston, você se reduziu a isso. Isto é o que você aceitou
quando se colocou contra o Partido. Estava tudo contido naquele
primeiro ato. Não aconteceu nada que você não tenha previsto.
Ele fez uma pausa e depois continuou:
– Nós vencemos você, Winston. Nós lhe quebramos. Você já viu
como está seu corpo. Sua mente está no mesmo estado. Acho que
não pode ter restado muito orgulho em você. Você foi chutado,
açoitado e insultado, gritou de dor, rolou no chão em seu próprio
sangue e vômito. Você gritou por misericórdia, traiu a todos e a
tudo. Você consegue pensar em uma única degradação pela qual
não passou?
Winston havia parado de chorar, embora as lágrimas ainda
escorressem de seus olhos. Ele olhou para O’Brien.
– Eu não traí a Júlia – disse ele.
O’Brien olhou para ele pensativamente.
– Não – disse ele –, não; isso é realmente verdade. Você não traiu
a Júlia.
A peculiar reverência por O’Brien, que nada parecia ser capaz de
destruir, inundou novamente o coração de Winston. Que
inteligente, pensou ele, que inteligente! Nunca O’Brien deixou de
compreender o que lhe foi dito. Qualquer outra pessoa na Terra
teria respondido prontamente que ele HAVIA traído Júlia. Pois o
que Winston sabia e que eles não tinham arrancado sob tortura?
Ele lhes havia contado tudo o que sabia sobre ela, seus hábitos,
seu caráter, sua vida passada; ele havia confessado nos mínimos
detalhes tudo o que havia acontecido em seus encontros, tudo o
que ele havia dito a ela e ela a ele, suas compras no mercado
negro, seus adultérios, suas vagas conspirações contra o Partido,
tudo. E, no entanto, no sentido em que ele se referia, ele não a
havia traído. Ele não havia deixado de amá-la; seus sentimentos
em relação a ela haviam permanecido os mesmos. O’Brien tinha
entendido o que ele queria dizer, sem a necessidade de
explicação.
– Diga-me – ele disse –, quando eles atirarão em mim?
– Pode demorar muito tempo – disse O’Brien. – Você é um caso
difícil. Mas não perca a esperança. Todos são curados, mais cedo
ou mais tarde. No final, vamos atirar em você.

Capítulo 4

Ele estava muito melhor. Engordava e se tornava mais forte a


cada dia, se é que seria apropriado falar de dias.
A luz branca e o zumbido eram os mesmos de sempre, mas a cela
era um pouco mais confortável do que as outras em que ele havia
estado. Havia um travesseiro e um colchão na cama de tábua, e
um banco para se sentar. Eles haviam lhe dado um banho e lhe
permitiam lavar-se com bastante frequência em uma bacia de
metal. Eles até tinham lhe dado água morna para que se lavasse.
Deram roupa de baixo nova e um macacão limpo. Tinham tratado
sua úlcera varicosa com pomada calmante. Tinham arrancado o
restante de seus dentes e lhe dado uma dentadura nova.
Semanas ou meses devem ter se passado. Agora teria sido
possível até estimar o tempo que passava, se ele tivesse se
interessado por isso, já que estava sendo alimentado em intervalos
que pareciam ser regulares. Ele estava recebendo, julgava ele, três
refeições nas vinte e quatro horas; às vezes, ele se perguntava se
as recebia de noite ou de dia. A comida era surpreendentemente
boa, com carne a cada três refeições. Ele chegou até mesmo a
receber um maço de cigarros. Ele não tinha fósforos, mas o
guarda que nunca falava e que trazia sua comida, acendia seu
cigarro. A primeira vez que ele tentara fumar, se sentira enjoado,
mas ele perseverou e fez o maço durar bastante tempo, fumando
meio cigarro após cada refeição.
Eles tinham lhe dado uma lousa branca com um toco de lápis
amarrado no canto. No início, ele não a usou. Mesmo quando ele
estava acordado, estava completamente entorpecido. Muitas vezes
ele ficava deitado de uma refeição até a outra quase sem mexer, às
vezes dormindo, às vezes acordado em devaneios vagos, nos
quais era muito difícil abrir os olhos. Ele já tinha se acostumado a
dormir com uma luz forte no rosto. Parecia não fazer diferença,
exceto que os sonhos eram mais coerentes. Ele sonhou muito
durante todo esse tempo, e sempre teve sonhos felizes. Ele estava
no Campo Dourado, ou estava sentado entre enormes ruínas
gloriosas e iluminadas pelo sol, com sua mãe, Júlia e O’Brien –
sem fazer nada, apenas sentado ao sol, falando de coisas
pacíficas. Os pensamentos que ele tinha quando estava acordado
eram, em sua maioria, sobre seus sonhos. Ele parecia ter perdido
sua capacidade intelectual, agora que o estímulo da dor havia sido
removido. Ele não estava entediado, ele não tinha desejo de
conversar ou de se distrair. Simplesmente estar sozinho, não ser
espancado ou interrogado, ter o suficiente para comer e estar
limpo já era completamente satisfatório.
Aos poucos ele começou a passar menos tempo dormindo, mas
ainda assim não sentiu nenhuma vontade de sair da cama. Ele só
se preocupava em ficar quieto e sentir a força voltando a seu
corpo. Ele se apalpava aqui e ali, tentando ter certeza de que não
era uma ilusão, que seus músculos estavam mesmo crescendo
mais arredondados e sua pele mais esticada. Finalmente ficou
claro que ele estava engordando; suas coxas agora eram
definitivamente mais grossas do que seus joelhos. Depois disso,
apesar de relutante no início, ele começou a se exercitar
regularmente. Em pouco tempo ele já conseguia caminhar três
quilômetros, medidos pelo tamanho aproximado da cela, e seus
ombros arqueados estavam crescendo mais retos. Ele tentou
exercícios mais elaborados, e ficou surpreso e humilhado ao
descobrir o que não podia fazer. Ele não conseguia se exercitar
mais do que uma simples caminhada, não conseguia segurar seu
banquinho com um braço esticado, não conseguia ficar de pé
sobre uma perna só sem cair. Ele se agachou nos calcanhares e
descobriu que, com dores agonizantes na coxa e na panturrilha,
tudo o que ele podia fazer era se levantar e ficar de pé. Deitou-se
de barriga para baixo e tentou levantar seu peso com as mãos. Era
inútil, ele não conseguia se erguer um centímetro. Mas depois de
mais alguns dias - mais algumas refeições -, até mesmo essa
façanha foi realizada. Ao final ele conseguiu fazer seis flexões
rapidamente. Ele começou a ficar realmente orgulhoso de seu
corpo e a nutrir uma crença intermitente de que seu rosto também
estava voltando ao normal. Somente quando ele conseguiu
colocar a mão em seu couro cabeludo é que ele se lembrou do
rosto arruinado que havia olhado para ele do espelho.
Sua mente se tornou mais ativa. Ele se sentou na cama de tábuas,
com as costas contra a parede e a lousa em seus joelhos, e
começou a trabalhar deliberadamente na tarefa de se reeducar.
Ele tinha se rendido. Disso não havia dúvida. Na realidade, como
ele notou naquele momento, ele estava pronto para se render
muito antes de ter tomado a decisão. Desde o momento em que
ele entrara no Ministério do Amor - e sim, mesmo durante
aqueles minutos em que ele e Júlia ficaram impotentes enquanto a
voz metálica da teletela lhes dizia o que fazer - ele tinha
compreendido a frivolidade, a superficialidade de sua tentativa de
se colocar contra o poder do Partido. Ele sabia agora que durante
sete anos a polícia do Pensamento o observava como um besouro
sob uma lupa. Não havia nenhum ato físico, nenhuma palavra
falada em voz alta, que eles não tivessem notado, nenhuma linha
de pensamento que eles não tivessem sido capazes de inferir. Até
mesmo a mancha de poeira esbranquiçada na capa de seu diário,
eles tinham cuidadosamente substituído. Tinham tocado trilhas
sonoras para ele, mostraram-lhe fotografias. Algumas delas eram
fotografias de Júlia e dele mesmo. Sim... ele não podia mais lutar
contra o Partido. Além disso, o Partido estava no direito. Devia
ser assim; como poderia o cérebro imortal e coletivo estar
enganado? Por qual padrão externo você poderia verificar seus
julgamentos? A sanidade era estatística. Era apenas uma questão
de aprender a pensar como eles pensavam. Somente isso!
Ele pegou o lápis grosso e desajeitado em seus dedos. Ele
começou a anotar os pensamentos que lhe vinham à cabeça. Ele
escreveu primeiro em maiúsculas grandes e desajeitadas:
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
Depois, quase sem uma pausa, ele escreveu embaixo:
DOIS MAIS DOIS SÃO CINCO
Mas então veio uma espécie de teste. Sua mente, como se
estivesse evitando algo, parecia incapaz de se concentrar. Ele
tinha consciência de que sabia o que viria em seguida, mas não
conseguia se lembrar o que era. Quando se lembrou, foi apenas
através de um raciocínio conscientemente, o conceito não veio de
forma automática. Ele escreveu:
DEUS É PODER
Ele aceitou tudo. O passado era alterável. O passado nunca havia
sido alterado. A Oceânia estava em guerra com a Lestásia. A
Oceânia sempre esteve em guerra com a Lestásia. Jones,
Aaronson e Rutherford eram culpados dos crimes dos quais
tinham sido acusados. Ele nunca tinha visto a fotografia que
provava que eles não tinham culpa. Ela nunca tinha existido, ele a
inventara. Ele se lembrava de recordar-se de coisas contrárias,
mas eram lembranças falsas, produtos de autoengano. Como tudo
isso era fácil! Apenas rendição, e tudo o mais se seguiu. Era como
nadar contra uma corrente que o puxava para trás por mais que
você lutasse e de repente decidir dar meia volta e se deixar levar
pela corrente, ao invés de nadar contra ela. Nada havia mudado,
exceto sua própria atitude: o que era predestinado tinha
acontecido de qualquer forma. Ele mal sabia por que havia se
rebelado. Tudo era fácil, exceto...
Ele podia aceitar qualquer coisa como sendo verdade. As
chamadas leis da natureza eram um disparate. A lei da gravidade
era um disparate. ‘Se eu quisesse’, tinha dito O’Brien, ‘eu poderia
flutuar deste piso como uma bolha de sabão’. Winston resolveu o
problema. ‘Se ele PENSA que flutua do chão e se eu
simultaneamente PENSO que o vejo fazer isso, então a coisa
acontece’. De repente, como destroços submersos que eclodem à
superfície da água, o pensamento irrompeu em sua mente: ‘Isso
não acontece de verdade. Nós imaginamos. É uma alucinação’.
Ele reprimiu o pensamento instantaneamente. A falácia era óbvia.
Pressupunha que em algum lugar, fora de si mesmo, havia um
mundo ‘real’ onde coisas ‘reais’ aconteciam. Mas como poderia
haver um mundo assim? Que conhecimento temos de qualquer
coisa, salvo através de nossas próprias mentes? Todos os
acontecimentos estão na mente. O que quer que aconteça em
todas as mentes, realmente acontece.
Ele não teve dificuldade em se desfazer da falácia e não corria o
risco de sucumbir a ela. Ele percebeu, contudo, que isso nunca
deveria ter ocorrido com ele. A mente deveria desenvolver um
ponto cego sempre que um pensamento perigoso se apresentasse.
O processo deveria ser automático, instintivo.
CRIMINTERRUPÇÃO, era o nome disso em Novilíngua.
Ele começou a trabalhar para se exercitar em criminterrupção. Ele
se fez algumas proposições - ‘o Partido diz que a Terra é plana’,
‘o Partido diz que o gelo é mais pesado que a água’ - e treinou-se
para não ver ou não entender os argumentos que as contradiziam.
Não foi fácil. Era preciso grandes poderes de raciocínio e
improvisação. Os problemas aritméticos levantados, por exemplo,
por uma afirmação como ‘dois e dois são cinco’ estavam além de
sua compreensão intelectual. Era necessária também uma espécie
de atletismo mental, uma capacidade de fazer o uso mais delicado
da lógica num momento e, no seguinte, estar inconsciente dos
erros lógicos mais grosseiros. A estupidez era tão necessária
quanto a inteligência, e tão difícil de ser alcançada.
Durante todo o tempo, em uma parte de sua mente, ele se
perguntava quando eles iriam atirar nele. ‘Tudo depende de você
mesmo’, tinha dito O’Brien; mas ele sabia que não havia nenhum
ato consciente dele que pudesse fazer isso acontecer mais rápido.
Poderia ser daqui a dez minutos ou dez anos. Eles poderiam
mantê-lo por anos em solitária, poderiam mandá-lo para um
campo de trabalho, poderiam libertá-lo por algum tempo, como às
vezes faziam. Era perfeitamente possível que, antes que ele fosse
baleado, todo o drama de sua prisão e interrogatório fosse
novamente decretado. A única coisa certa é que a morte nunca
viria no momento esperado. A tradição - a tradição não falada,
mas que de alguma forma você conhecia, embora nunca tivesse
ouvido falar - era que eles atiravam por trás; sempre na parte de
trás da cabeça, sem aviso, enquanto você caminhava por um
corredor entre uma cela e outra.
Um dia – se bem que ‘um dia’ pode não ser a expressão mais
correta, pois poderia igualmente acontecer no meio da noite -
portanto, certa vez ele teve um estranho e feliz devaneio. Ele
estava andando pelo corredor, esperando pela bala. Ele sabia que
ela estava chegando a qualquer momento. Tudo estava resolvido,
suavizado, reconciliado. Não havia mais dúvidas, não havia mais
argumentos, não havia mais dor, não havia mais medo. Seu corpo
estava saudável e forte. Ele andava com facilidade, com alegria
em seus movimentos e com uma sensação de caminhar sob a luz
do sol. Ele não estava mais nos estreitos corredores brancos do
Ministério do Amor, estava na enorme passagem iluminada pelo
sol, um quilômetro de largura, pela qual ele se vira caminhar
quando teve o delírio induzido pelas drogas. Ele estava no Campo
Dourado, seguindo a trilha no velho pasto. Ele podia sentir a
macia relva sob seus pés e a suave luz do sol em seu rosto. À
beira do campo estavam os olmos, levemente agitados, e em
algum lugar além disso estava o riacho onde os peixes nadavam
nas águas verdes sob os salgueiros.
De repente, ele teve uma crise de horror. Sentia o suor em sua
espinha dorsal. E ouviu a si próprio gritando em voz alta:
– Júlia! Júlia! Júlia, meu amor! Júlia!
Por um momento ele tinha tido uma alucinação avassaladora de
sua presença. Ela parecia não estar apenas com ele, mas dentro
dele. Era como se ela tivesse entrado através da pele dele.
Naquele momento ele a havia amado muito mais do que nunca,
muito mais do que quando estavam juntos e livres. Ele também
sabia que em algum lugar ela ainda estava viva e precisava da
ajuda dele.
Ele se deitou na cama e tentou se recompor. O que ele havia
feito? Quantos anos ele havia acrescentado à sua servidão com
aquele momento de fraqueza?
A qualquer momento, ele esperava ouvir as passadas das botas lá
fora. Eles não deixariam tal explosão ficar impune. Eles saberiam
agora, se não soubessem antes, que ele estava quebrando o acordo
que havia feito com eles. Ele obedecia ao Partido, mas ainda
assim odiava o Partido. Até então ele vinha escondendo uma
mente herética sob uma aparência de conformidade. Mas agora,
ele havia recuado um passo: na mente ele havia se rendido, mas
esperava manter o coração interior inviolado. Ele sabia que estava
errado, mas preferia estar errado. Eles iriam entender isso -
O’Brien entenderia isso. Tudo tinha sido agora confessado
naquele único grito tolo.
Ele teria que começar tudo de novo. Poderia levar anos. Ele
passou uma mão sobre o rosto, tentando se familiarizar com sua
nova forma. Havia sulcos profundos nas bochechas, as maçãs do
rosto estavam nítidas, o nariz achatado. Além disso, depois da
última vez que viu seu copo no espelho, ele recebeu um novo
conjunto completo de dentes. Não era fácil preservar a
impenetrabilidade quando não se sabia como era seu rosto. Em
todo caso, o mero controle das características não era suficiente.
Pela primeira vez ele percebeu que se você quer manter um
segredo, você também deve escondê-lo de si mesmo. Você deve
saber o tempo todo que ele está lá, mas até que seja necessário,
você nunca deve deixá-lo emergir em sua consciência em
qualquer forma que possa ser nomeado. A partir de agora, ele não
deveria apenas pensar direito; ele deveria sentir-se bem, sonhar
direito. E durante todo o tempo ele deveria manter seu ódio preso
dentro dele como uma bola de matéria que, apesar de fazer parte
dele, não tinha nenhuma ligação com o restante dele, uma espécie
de cisto.
Um dia, eles decidiriam atirar nele. Não se podia dizer quando
isso aconteceria, mas seria possível adivinhar alguns segundos
antes. Era sempre por trás, andando por um corredor. Dez
segundos seriam suficientes. Nesse tempo, o mundo dentro dele
poderia se virar. E de repente, sem uma palavra pronunciada, sem
qualquer sinal em sua passada, sem a mudança de uma linha em
seu rosto - de repente a camuflagem cairia e bang! As baterias de
seu ódio se recarregariam. O ódio o encheria como uma enorme
chama crepitante. E quase no mesmo instante bang! Viria a bala,
tarde demais ou cedo demais. Eles estourariam seu cérebro em
pedaços antes que pudessem recuperá-lo. O pensamento herético
ficaria impune, sem arrependimento, fora do alcance deles para
sempre. Eles teriam feito um buraco em sua própria perfeição.
Morrer odiando-os, isso era liberdade.
Ele fechou os olhos. Foi mais difícil do que aceitar uma disciplina
intelectual. Era uma questão de se degradar, de se mutilar. Ele
tinha que mergulhar na mais imunda das sujeiras. Qual era a coisa
mais horrível e repugnante de todas? Ele pensou no Big Brother.
O rosto enorme (em sua cabeça era enorme, porque ele sempre o
via em cartazes de um metro de largura), com seu pesado bigode
preto e os olhos que o seguiam de um lado para o outro, parecia
flutuar em sua mente por sua própria vontade. Quais eram seus
verdadeiros sentimentos em relação ao Big Brother?
Ouviu-se um pesado som de botas na passagem. A porta de aço se
abriu em um estrondo. O’Brien entrou na cela. Atrás dele estavam
o oficial com cara de cera e os guardas de uniforme negro.
– Levante-se – disse O’Brien. – Venha aqui.
Winston ficou de pé em frente a ele. O’Brien pegou os ombros de
Winston entre suas mãos fortes e o olhou de perto.
– Você pensou em me enganar – disse ele. – Isso foi estúpido.
Levante-se, endireite-se. Olhe-me no meu rosto.
Ele fez uma pausa e continuou num tom mais gentil:
– Você está melhorando. Intelectualmente, há muito pouco de
errado com você. É apenas emocionalmente que você não está
progredindo. Diga-me, Winston – e lembre-se, sem mentiras;
você sabe que eu sempre sei quando você está mentindo – diga-
me, quais são seus verdadeiros sentimentos em relação ao Big
Brother?
– Eu o odeio.
– Você odeia-o. Ótimo. Então chegou a hora de você dar o último
passo. Você deve amar o Big Brother. Não basta obedecê-lo: você
deve amá-lo.
Ele soltou Winston com um pequeno empurrão em direção aos
guardas.
– Sala 101 – disse ele.

Capítulo 5

Em cada etapa de sua prisão ele sabia, ou parecia saber, onde ele
estava no prédio sem janelas. Possivelmente, havia pequenas
diferenças na pressão do ar. As celas onde os guardas o haviam
espancado estavam abaixo do nível do solo. A sala onde ele havia
sido interrogado por O’Brien estava no alto, perto do telhado.
Este lugar de agora ficava muitos metros abaixo do nível do solo,
tão fundo quanto era possível ir.
Era maior do que a maioria das celas em que ele havia estado.
Mas ele mal reparou no seu entorno. Tudo o que ele notou foi que
havia duas pequenas mesas bem na sua frente, cada uma coberta
com um tecido verde. Uma estava apenas a um metro ou dois
dele, a outra estava mais distante, perto da porta. Ele estava
amarrado em uma cadeira, tão apertado que não conseguia mover
nada, nem mesmo sua cabeça. Uma espécie de almofada prendia
sua cabeça por trás, forçando-o a olhar diretamente para a frente.
Por um momento ele ficou sozinho, depois a porta se abriu e
O’Brien entrou.
– Você me perguntou uma vez – disse O’Brien – o que havia no
sala 101. Eu lhe disse que você já sabia a resposta. Todos sabem.
A coisa que está no Sala 101 é a pior coisa do mundo.
A porta se abriu novamente. Entrou um guarda, carregando algo
feito de arame, uma caixa ou algum tipo de cesta. Ele a colocou
sobre a mesa mais distante. Winston não conseguia ver o que era
exatamente esta coisa, por causa da posição em que O’Brien
estava parado.
– A pior coisa do mundo – disse O’Brien – varia de indivíduo
para indivíduo. Pode significar ser enterrado vivo, ou morrer por
fogo, ou por afogamento, ou por empalação, ou por cinquenta
outros tipos de mortes. Há casos em que é uma coisa bastante
trivial, nem mesmo fatal.
Ele havia se movido um pouco para um lado, de modo que
Winston tinha uma visão melhor da coisa sobre a mesa. Era uma
gaiola de arame com uma alça em cima para transportá-la. Fixado
à frente dela, estava algo que parecia uma máscara de esgrima,
com o lado côncavo para fora. Embora estivesse a três ou quatro
metros dele, ele podia ver que a gaiola estava dividida
longitudinalmente em dois compartimentos e que havia algum
tipo de criatura em cada um deles. Eram ratos.
– No seu caso – disse O’Brien –, a pior coisa do mundo são os
ratos.
Uma espécie de tremor premonitório, um medo de algo que ele
não sabia exatamente o que, passou por Winston assim que viu a
gaiola pela primeira vez. Mas, neste momento, ele entendeu o
significado da máscara presa em frente a ela. Suas entranhas
pareciam ter se liquefeito.
– Você não pode fazer isso – gritou ele em voz alta e apavorada. –
Você não pode, você não pode! É impossível.
– Você se lembra – disse O’Brien – do momento de pânico que
costumava ocorrer em seus sonhos? Havia um muro de escuridão
à sua frente e um som crepitante em seus ouvidos. Havia algo
terrível no outro lado do muro. Você sabia o que era, mas não
ousava trazer abertamente para sua consciência. Do outro lado do
muro havia ratos.
– O’Brien! – disse Winston, fazendo um esforço para controlar
sua voz. –Você sabe que isto não é necessário. O que você quer
que eu faça?
O’Brien não deu uma resposta direta. Quando ele falou, foi como
um professor de escola, como ele às vezes fazia. Ele olhou ao
longe, como se estivesse se dirigindo a um público em algum
lugar atrás de Winston.
– A dor por si só – disse ele – nem sempre é suficiente. Há
ocasiões em que um ser humano se destacará contra a dor, mesmo
até a morte. Mas para todos há algo insuportável - algo que não
pode ser contemplado. A coragem e a covardia não estão
envolvidas. Se você está caindo de uma altura, não é covardia
agarrar uma corda. Se você submergiu de águas profundas, não é
covardia encher seus pulmões de ar. É apenas um instinto que não
pode ser destruído. É o mesmo com os ratos. Para você, eles são
insuportáveis. Eles são uma forma de pressão que você não pode
suportar, mesmo que desejasse. Você fará o que é exigido de
você.
– Mas o que é isso, o que é isso? Como posso fazer isso se não sei
o que é?
O’Brien pegou a gaiola e a levou para a mesa mais próxima. Ele a
colocou cuidadosamente sobre o pano verde. Winston podia ouvir
o sangue pulsando em seus ouvidos. Ele tinha a sensação de estar
sentado em total solidão. Ele estava no meio de uma grande
planície vazia, um deserto plano repleto de luz do sol, através do
qual todos os sons, vindos de distâncias imensas, chegavam nele.
Mas a jaula com os ratos não estava a dois metros de distância
dele. Eram enormes ratazanas. Elas estavam na idade em que o
focinho de um rato cresce bruto e feroz e seu pelo é marrom em
vez de cinza.
– O rato – disse O’Brien ainda se dirigindo ao seu público
invisível –, embora seja um roedor, é carnívoro. Você com certeza
sabe disso. Você também já deve ter ouvido o que acontece nos
bairros pobres desta cidade. Em algumas ruas, uma mulher não
ousa deixar seu bebê sozinho em casa, nem mesmo por cinco
minutos. Os ratos certamente irão atacá-lo. Em pouco tempo, eles
comerão sua carne, chegando até os ossos. Eles também atacam
pessoas doentes ou moribundas. Eles demonstram uma
inteligência surpreendente para identificar um ser humano
desamparado.
Houve uma explosão de guinchos vindos da jaula. Parecia para
Winston que vinham de longe. Os ratos estavam lutando; eles
tentavam se atirar uns contra os outros através da divisória. Ele
ouviu também um profundo gemido de desespero. Isso também
parecia vir de fora dele.
O’Brien pegou a gaiola e, ao fazê-lo, pressionou algo dentro dela.
Houve um clique afiado. Winston fez um esforço frenético para
se soltar da cadeira. Era inútil; cada parte dele, até mesmo sua
cabeça, era mantida imóvel. O’Brien moveu a gaiola para mais
perto. Estava a menos de um metro do rosto de Winston.
– Apertei a primeira alavanca – disse O’Brien. – Vou explicar
como esta jaula funciona. A máscara vai encaixar sobre sua
cabeça, não deixando nenhuma saída. Quando eu apertar esta
outra alavanca, a porta da gaiola deslizará para cima. Estes brutos
famintos se atirarão para fora dela como balas. Você já viu um
rato saltando pelo ar? Eles saltarão para o seu rosto e o furarão,
indo parar diretamente dentro dele. Às vezes eles atacam os olhos
primeiro. Às vezes, eles escavam as bochechas e devoram a
língua.
A gaiola estava mais próxima; ela estava se aproximando.
Winston ouviu vários gritos estridentes que pareciam estar vindo
de cima de sua cabeça. Mas ele lutou furiosamente contra seu
pânico. Pensar, pensar, mesmo tendo apenas uma fração de
segundo - pensar era a única esperança. De repente, o cheiro de
mofo dos brutos atingiu suas narinas. Havia uma violenta
convulsão de náusea dentro dele, e ele quase perdeu a
consciência. Tudo tinha ficado negro. Por um instante ele ficou
louco, um animal gritando. No entanto, ele saiu da escuridão
agarrado a uma ideia. Havia uma, e apenas uma maneira de se
salvar. Ele deveria interpor outro ser humano, o CORPO de outro
ser humano, entre ele e os ratos.
A circunferência da máscara era agora suficientemente grande
para bloquear a visão de qualquer outra coisa. A porta de arame
estava a alguns palmos de seu rosto. Os ratos sabiam o que viria.
Um deles estava pulando para cima e para baixo, o outro, um
velho avô escamoso dos esgotos, levantou-se, com suas patas
rosadas contra a gaiola, e farejou ferozmente o ar. Winston podia
ver os bigodes e os dentes amarelos. Novamente o pânico negro
tomou conta dele. Ele se sentia cego, impotente, enlouquecido.
– Era uma punição comum na China Imperial – disse O’Brien
como sempre, didaticamente.
A máscara estava se fechando em seu rosto. O arame roçava sua
bochecha. E então – não, não era alívio, apenas esperança, um
pequeno fragmento de esperança. Tarde demais, talvez tarde
demais. Mas de repente ele havia compreendido que no mundo
inteiro havia apenas UMA pessoa para quem ele podia transferir
seu castigo - UM corpo que ele podia colocar entre ele e os ratos.
E ele gritava freneticamente, uma e outra vez.
– Faça isso à Júlia! Faça isso à Júlia! A mim não! Júlia! Não me
importa o que você faça com ela. Arranquem-lhe o rosto,
devorem-na até os ossos. A mim não! Júlia! Eu não!
Ele estava caindo para trás, em enormes profundidades, para
longe dos ratos. Ele ainda estava amarrado na cadeira, mas havia
caído pelo chão, pelas paredes do edifício, pela terra, pelos
oceanos, pela atmosfera, pelo espaço exterior, pelos abismos entre
as estrelas - sempre longe, longe, longe dos ratos. Ele estava a
anos-luz de distância, mas O’Brien ainda estava ao seu lado.
Havia ainda o toque frio do arame contra sua face. Mas através da
escuridão que o envolvia, ele ouviu outro clique metálico, e sabia
que a porta da gaiola havia se fechado e não se aberto.

Capítulo 6

O Café Castanheira estava quase vazio. Um raio de sol inclinado


atravessava uma janela caindo sobre as mesas poeirentas. Era a
hora solitária dos quinze. Uma música metálica emanava das
teletelas.
Winston sentou-se em seu canto habitual, olhando para um copo
vazio. De vez em quando ele olhava de relance para um enorme
rosto na parede oposta que o observava. O BIG BROTHER
ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ, dizia a legenda. Sem ser solicitado,
um garçom veio e encheu seu copo com Gin Victory e ainda
adicionou algumas gotas de outra garrafa com um cano através da
rolha. Era aroma de sacarina com cravo-da-índia, a especialidade
do café.
Winston estava escutando a teletela. No momento, apenas música
saía dela, mas havia a possibilidade de que a qualquer momento
houvesse um boletim especial do Ministério da Paz. As notícias
da frente africana eram inquietantes ao extremo. Ele tinha se
preocupado com isso o dia todo. Um exército eurasiático (a
Oceânia estava em guerra com a Eurásia: a Oceânia sempre
estivera em guerra com a Eurásia) estava se movendo para o sul
em uma velocidade assustadora. O boletim do meio-dia não havia
mencionado nenhuma área definida, mas era provável que a foz
do Congo já fosse um campo de batalha. Brazzaville e
Leopoldville estavam em perigo. Não era preciso olhar para o
mapa para ver o que significava. Não se tratava apenas de perder
a África Central: pela primeira vez em toda a guerra, o próprio
território da Oceânia estava ameaçado.
Uma emoção violenta, não exatamente de medo, mas uma espécie
de excitação indiferenciada, se inflamou nele e depois
desapareceu novamente. Ele deixou de pensar sobre a guerra.
Nesses dias, ele não conseguia fixar sua mente em nenhum
assunto por muito tempo. Ele pegou seu copo e o esvaziou em um
gole. Como sempre, o gin o fez estremecer e até recuar um pouco.
Aquela coisa era horrível. Os cravos e a sacarina já eram ruins o
suficiente e não conseguiam disfarçar aquele cheiro oleoso; e o
pior de tudo era que o cheiro do gin, que habitava com ele noite e
dia, estava indissociavelmente misturado em sua mente com o
cheiro daqueles...
Ele nunca os nomeou, mesmo em seus pensamentos, e na medida
do possível ele nunca os visualizou. Eles eram algo de que ele
estava meio consciente, pairando perto de seu rosto, um cheiro
que se agarrava a suas narinas. Quando o gin voltou, ele arrotou
através dos lábios roxos. Ele tinha engordado mais desde que eles
o soltaram e tinha recuperado sua cor antiga - de fato, mais do
que recuperado. Suas feições tinham engrossado, a pele do nariz e
das maçãs do rosto era grosseiramente vermelha, até mesmo o
couro cabeludo calvo era de um rosa profundo. Um garçom, mais
uma vez sem ser solicitado, trouxe o tabuleiro de xadrez e a
edição atual do The Times, com a página aberta no desafio de
xadrez. Então, vendo que o copo de Winston estava vazio, ele
trouxe a garrafa de gin e o encheu. Não havia necessidade de
fazer pedidos. Eles conheciam seus hábitos. O tabuleiro de xadrez
estava sempre esperando por ele, sua mesa de canto estava
sempre reservada; mesmo quando o lugar estava cheio, ela era
dele, já que ninguém se importava em ser visto sentado perto
dele. Ele nem sequer se preocupava em contar suas bebidas. Em
intervalos irregulares, eles apresentavam um papel sujo que
diziam ser a conta, mas ele tinha a impressão de que eles sempre
lhe cobravam a menos. Não teria feito diferença se tivesse sido ao
contrário. Ele atualmente tinha sempre muito dinheiro. Agora ele
tinha um emprego, uma mamata, mais bem pago do que seu
antigo emprego havia sido.
A música da teletela parou e uma voz começou a falar. Winston
levantou a cabeça para ouvir. No entanto, não era boletim da
frente de batalha. Era apenas um breve anúncio do Ministério da
Plenitude. No trimestre anterior, parecia que a cota do Décimo
Plano trienal para cadarços havia sido superada em 98 por cento.
Ele examinou o desafio do xadrez e posicionou as peças. Foi um
final complicado, envolvendo um par de cavaleiros. ‘Branco joga
e faz mate em duas jogadas’. Winston olhou para o retrato do Big
Brother. Branco sempre faz mate, ele pensou com uma espécie de
misticismo nebuloso. Sempre, sem exceção, é tão arranjado. Em
nenhum problema de xadrez, desde o início do mundo, o negro
jamais venceu. Isso não simbolizava o eterno e invariável triunfo
do Bem sobre o Mal? O rosto enorme o olhava de volta, cheio de
poder calmo. O branco sempre faz mate.
A voz na teletela fez uma pausa e acrescentou em um tom
diferente e muito mais grave: ‘Atenção, aguarde um aviso
importante às quinze e trinta. Quinze e trinta! Esta notícia é de
maior importância. Tome cuidado para não perdê-la. Quinze e
trinta!’ A música metálica voltou a tocar.
O coração de Winston disparou. Era o boletim da frente; seu
instinto lhe dizia que uma notícia ruim estava por vir. Durante
todo o dia, com pequenos surtos de excitação, a ideia de uma
derrota esmagadora na África havia entrado e saído de sua mente.
Ele parecia realmente ver o exército eurasiático se aglomerando
através da fronteira, até então nunca quebrada, e desabando na
ponta da África como uma coluna de formigas. Por que não tinha
sido possível flanqueá-los de alguma forma? Os contornos da
costa da África Ocidental se destacaram vividamente em sua
mente. Ele pegou o cavaleiro branco e o moveu pelo tabuleiro.
ALI era o lugar certo. Mesmo enquanto via a horda negra
correndo para o sul, ele viu outra força, misteriosamente montada,
de repente plantada em sua retaguarda, cortando suas
comunicações por terra e mar. Ele sentiu que, se quisesse, traria
essa outra força à existência. Mas era necessário agir
rapidamente. Se eles pudessem controlar toda a África, se
tivessem campos de aviação e bases submarinas no Cabo, isso
dividiria a Oceânia em dois. Poderia significar qualquer coisa:
derrota, colapso, a redivisão do mundo, a destruição do Partido!
Ele respirou fundo. Uma extraordinária mistura de sentimentos -
mas não era exatamente uma mistura; ao contrário, eram
sucessivas camadas de sentimento, das quais não se podia dizer
qual era a camada mais comprometida - lutou dentro dele.
O espasmo passou. Ele colocou o cavaleiro branco de volta em
seu lugar, mas não conseguiu, naquele momento, se dedicar ao
estudo sério do desafio do xadrez. Seus pensamentos vaguearam
novamente. Quase inconscientemente, ele traçou com o dedo na
poeira sobre a mesa:
2+2=5
‘Eles não podem entrar em você’, ela tinha dito. Mas eles podem
entrar em de você. ‘O que acontece com você aqui é PARA
SEMPRE’, tinha dito O’Brien. Isso era a mais pura verdade.
Havia coisas, seus próprios atos, dos quais você nunca poderia se
recuperar. Algo foi morto em seu peito: queimado, cauterizado.
Ele a havia visto, tinha até falado com ela. Não havia perigo
nisso. Ele sabia, como que instintivamente, que eles agora quase
não se interessavam por seus atos. Ele poderia ter combinado de
encontrá-la uma segunda vez se qualquer um deles tivesse
querido. Na verdade, foi por acaso que eles se encontraram. Foi
no Parque, em um dia vil, em março, quando a terra estava dura
como ferro e toda a grama parecia morta e não havia um broto em
lugar algum, exceto alguns crocos, que tinham aflorado apenas
para serem desmembrados pelo vento. Ele andava
apressadamente com as mãos geladas e os olhos lacrimejantes
quando a viu a menos de dez metros de distância. Ele percebeu
imediatamente que ela havia mudado de alguma forma não muito
bem definida. Eles quase passaram um pelo outro sem um sinal,
então ele se virou e a seguiu, não muito avidamente. Ele sabia que
não havia perigo, que ninguém se interessaria por ele. Ela não
falava. Ela caminhou na diagonal, atravessando o gramado, como
se tentasse se livrar dele, então pareceu resignar-se a tê-lo ao seu
lado. Eles estavam em meio a uns arbustos sem folhas, inúteis
tanto para esconder-se quanto para se proteger do vento. Eles
pararam. Estava um frio terrível. O vento assobiava através dos
galhos e inquietava os ocasionais crocos, já com aparência
desgastada. Ele colocou seu braço em volta da cintura dela.
Não havia teletela, mas deviam existir microfones escondidos:
além disso, eles podiam ser vistos. Não importava, nada
importava. Eles poderiam ter se deitado no chão e ter feito
AQUILO se quisessem. Sua carne congelou de horror só de
pensar nisso. Ela não teve qualquer reação ao enlace de seus
braços; ela nem mesmo tentou se desvencilhar. Agora ele sabia o
que havia mudado nela. Seu rosto dela estava mais pálido e havia
uma longa cicatriz, parcialmente escondida pelos cabelos, na testa
e na têmpora; mas essa não foi a mudança. A mudança era que
sua cintura havia se tornado mais grossa e, de uma maneira
surpreendente, havia endurecido. Ele se lembrou de como uma
vez, após a explosão de um míssil, ajudou a tirar um cadáver de
algumas ruínas, e ficou surpreso não só pelo incrível peso da
coisa, mas por sua rigidez e dificuldade de manuseio, o que fez
com que parecesse mais pedra do que carne. Era assim agora o
corpo dela. Ocorreu-lhe que a textura de sua pele seria bem
diferente do que já havia sido.
Ele não tentou beijá-la, nem eles se falaram. Ao caminharem de
volta pela grama, ela olhou diretamente para ele pela primeira
vez. Foi apenas um olhar momentâneo, cheio de desprezo e
antipatia. Ele se perguntava se era uma aversão surgida no
passado ou inspirada por seu rosto inchado e pela água que o
vento continuava fazendo escorrer de seus olhos. Eles se sentaram
em duas cadeiras de ferro, lado a lado, mas não muito perto um
do outro. Ele viu que ela estava prestes a falar. Ela moveu
desajeitadamente seu sapato alguns centímetros e esmagou
deliberadamente um galho. Seus pés pareciam ter ficado mais
largos, ele notou.
– Eu o traí – ela disse cruamente.
– Eu a traí – disse ele.
Ela lhe deu outro olhar rápido de aversão.
– Às vezes, ela disse, eles ameaçam você com algo - algo que
você não pode suportar, nem mesmo pensar. E então você diz:
‘Não faça isso comigo, faça com outra pessoa, faça com Fulano
de tal’. E pode ser que você mais tarde pesnei que foi apenas um
truque e que você apenas falou para fazê-los parar e não
realmente com intenção. Mas isso não é verdade. No momento
em que isso acontece, você está falando sério. Você acha que não
há outra maneira de se salvar e você está pronto para se salvar
dessa forma. Você QUER que isso aconteça com a outra pessoa.
Você não quer saber o que o outro está sofrendo. Você só se
preocupa consigo mesmo.
– Você só se preocupa consigo mesmo – ele repetiu.
– E depois disso, você não sente mais o mesmo em relação à
outra pessoa.
– Não – disse ele –, você não sente mais o mesmo.
Não parecia haver mais nada a dizer. O vento colou seus
macacões finos contra seus corpos. Quase de imediato, tornou-se
embaraçoso sentar-se ali em silêncio: além disso, estava muito
frio para ficar parado. Ela disse algo sobre ter que pegar o metrô e
se levantou para ir.
– Temos nos encontrar novamente – disse ele.
– Sim – disse ela –, temos que nos encontrar de novo.
Ele seguiu irresolutamente por um tempo, meio passo atrás dela.
Eles não voltaram a falar. Ela não tentou realmente afastá-lo, mas
caminhou a uma velocidade tal que impediu que ele se
mantivesse lado a lado com ela. Ele havia decidido que a
acompanharia até a estação do metrô, mas de repente este
processo de seguir no frio lhe pareceu inútil e insuportável. Ele
estava dominado por um desejo não tanto de fugir de Júlia, mas
de voltar para o Café Castanheira, que nunca tinha parecido tão
atraente como neste momento. Ele teve uma visão nostálgica de
sua mesa de canto, com o jornal e o tabuleiro de xadrez e o copo
sempre cheio de gin. Acima de tudo, estaria quente lá dentro. No
momento seguinte, não totalmente por acaso, ele se deixou
separar dela por um pequeno emaranhado de pessoas. Ele fez uma
tentativa sem convicção de alcançá-la, depois foi mais devagar,
virou-se e andou na direção oposta. Depois de cinquenta metros,
olhou para trás. A rua não estava lotada, mas ele já não conseguia
distingui-la. Ela poderia ser qualquer uma de uma dúzia de
figuras apressadas que ele via. Talvez o seu corpo espesso e
rígido não fosse mais reconhecível por trás.
‘No momento em que isso acontece’, ela tinha dito, ‘você quer
mesmo dizer isso’. Ele tinha falado sério. Ele não apenas o havia
dito, ele o desejara. Ele desejara que ela, e não ele, fosse entregue
ao...
Alguma coisa mudou na música que emanava da teletela. Uma
nota rachada e zombeteira, uma nota amarela, começou a tocar. E
então – talvez não estivesse acontecendo, talvez fosse apenas uma
memória tomando a aparência do som – uma voz estava
cantando:
‘Debaixo dos galhos da castanheira
Eu entreguei você e você me entregou’
As lágrimas brotaram em seus olhos. Um garçom que passava
notou que seu copo estava vazio e voltou com a garrafa de gin.
Ele pegou seu copo e o cheirou. As coisas ficavam mais horríveis
a cada bocado que ele bebia. Mas o gim havia se tornado o
elemento em que ele mergulhava. Era sua vida, sua morte e sua
ressurreição. Era o gin que o afundava em estupor a cada noite e o
gin que o reavivava a cada manhã. Quando ele acordava,
raramente antes de onze horas, com as pálpebras coladas e a boca
ardendo e as costas que pareciam estar quebradas, seria
impossível até mesmo levantar-se da horizontal se não fosse pela
garrafa e pela xícara de chá ao lado da cama durante a noite. Ao
meio-dia, ele se sentava com o rosto vidrado, a garrafa à mão,
ouvindo a teletela. Das quinze até a hora de fechar, ele era como
parte da instalação do Castanheira. Ninguém mais se importava
com o que ele fazia, nenhum alarme o acordava, nenhuma teletela
o instruía.
Ocasionalmente, talvez duas vezes por semana, ele ia a um
escritório empoeirado e de aparência esquecida no Ministério da
Verdade e fazia um pequeno trabalho, ou o que era chamado de
trabalho. Ele havia sido nomeado para um subcomitê de um
subcomitê que brotou de um dos inúmeros comitês que lidavam
com pequenas dificuldades que surgiram na compilação da
Décima Primeira Edição do Dicionário Novilíngua. Eles estavam
empenhados em produzir algo chamado Relatório Interino, mas o
que eles realmente estavam relatando, Winston ainda não havia
descoberto com clareza. Tinha algo a ver com a questão de se as
vírgulas deveriam ser colocadas dentro ou fora dos parênteses.
Havia outros quatro membros no comitê, todos pessoas
semelhantes a ele. Tinha dias em que eles se reuniram e logo se
dispersaram novamente, admitindo francamente uns aos outros
que não havia realmente nada a ser feito. Mas em outros dias, eles
se empenhavam ao seu trabalho quase avidamente, fazendo um
tremendo espetáculo em escrever suas atas e redigir longos
memorandos que nunca foram terminados - quando a discussão
sobre o que eles supostamente estavam discutindo crescia de
forma complicada e obscura, com regateios sutis sobre definições,
enormes digressões, brigas, ameaças, até mesmo, para apelar para
uma autoridade superior. E de repente a vida se esvaia deles e eles
se sentavam em volta da mesa olhando uns para os outros com
olhares longínquos, como fantasmas desaparecendo no amanhecer
ao cantar do galo.
A teletela ficou em silêncio por um momento. Winston levantou a
cabeça novamente. O boletim! Mas não, eles estavam apenas
mudando a música. Ele tinha o mapa da África de cor na cabeça.
O movimento dos exércitos era um diagrama: uma flecha preta
rasgando verticalmente para o sul e uma flecha branca
horizontalmente para o leste, através da cauda da primeira. Como
que para tranquilizar, ele olhou para a face imperturbável no
retrato. Era concebível que a segunda flecha nem sequer
existisse?
Seu interesse murchou novamente. Ele bebeu outro gole de gin,
pegou o cavalo branco e tentou uma jogada. Xeque. Mas
evidentemente não foi a jogada certa, porque...
Sem ser requisitada, uma memória veio a sua mente. Ele viu um
quarto iluminado por velas com uma grande cama com colcha
branca, e ele mesmo, um garoto de nove ou dez anos, sentado no
chão, sacudindo uma caixa de dados, e rindo com entusiasmo.
Sua mãe estava sentada em frente a ele, também rindo.
Deve ter sido cerca de um mês antes de ela desaparecer. Foi um
momento de reconciliação, em que a fome incômoda em sua
barriga foi esquecida e seu afeto anterior por ela ressurgiu
temporariamente. Ele se lembrava bem daquele dia, era um dia de
muita chuva, a água escorria pelo vidro da janela e a luz dentro de
casa era muito fraca para se ler. O tédio das duas crianças no
quarto escuro e apertado tornou-se insuportável. Winston chorou
e resmungou, fez exigências fúteis por comida, tirou tudo do
quarto do lugar e chutou o revestimento de madeira das paredes
até que os vizinhos reclamassem batendo na parede, enquanto a
criança mais nova chorava sem parar intermitentemente. No final,
sua mãe disse: ‘Agora seja bonzinho e eu lhe comprarei um
brinquedo. Um lindo brinquedo - você vai adorar’; e então ela
saiu na chuva e foi a uma pequena loja de artigos em geral que
abria esporadicamente por perto e voltou com uma caixa de
papelão, um jogo chamado ‘Snakes & Ladders’.10 Ainda
conseguia se lembrar do cheiro do papelão úmido. Era um
brinquedo miserável. O tabuleiro estava rachado e os minúsculos
dados de madeira estavam tão mal cortados que dificilmente
paravam em um número. Winston olhou para a coisa de forma
amuada e sem interesse. Mas então sua mãe acendeu um pedaço
de vela e eles se sentaram no chão para jogar. Logo ele ficou
muito animado e gargalhava enquanto os pinos dos jogadores
subiam esperançosos pelas escadas e depois desciam pelas
serpentes novamente, quase até o ponto de partida. Eles jogaram
oito vezes, ganhando quatro vezes cada um. Sua irmãzinha, muito
jovem para entender o que era o jogo, havia se sentado apoiada
em um travesseiro, rindo porque os outros estavam rindo. Durante
uma tarde inteira eles foram novamente felizes juntos, como eram
antes, quando Winston era menor.
Ele expulsou esta lembrança de sua mente. Era uma memória
falsa. Ocasionalmente as lembranças falsas o perturbavam. Elas
não importavam se ele soubesse o que eram. Algumas coisas
tinham acontecido, outras não tinham acontecido. Ele voltou-se
para o tabuleiro de xadrez e pegou o cavalo branco novamente.
Quase no mesmo instante, ele caiu sobre o tabuleiro com um
ruído. Ele pulou como se um alfinete o tivesse espetado.
Uma chamada de trombeta estridente tinha enchido o ar. Era o
boletim! A vitória! Sempre era um sinal de vitória quando uma
chamada de trombeta precedia a notícia. Uma espécie de onda
elétrica percorreu o café. Até mesmo os garçons tinham parado e
ficado atentos para ouvir a notícia...
A chamada de trombeta havia provocado um enorme volume de
ruído. Uma voz animada já tagarelava na teletela, e desde o
início, era praticamente abafada pelo som de aplausos do exterior.
A notícia tinha corrido pelas ruas como mágica. Ele ouvia a
teletela apenas o suficiente para perceber que tudo acontecera
como ele havia previsto; uma vasta armada marítima havia
montado secretamente um golpe repentino na traseira do inimigo,
a flecha branca rasgando a cauda da preta. Fragmentos de frases
triunfantes eram ouvidas em meio ao barulho: ‘Vasta manobra
estratégica’ – ‘coordenação perfeita’ – ‘rota total’ – ‘meio milhão
de prisioneiros’ – ‘desmoralização completa’ – ‘controle de toda a
África’ – ‘trazem a guerra a uma distância mensurável de sua
vitória final’ – ‘a maior vitória da história humana’ – ‘vitória,
vitória, vitória’!
Sob a mesa, os pés de Winston mexiam-se convulsivamente. Ele
não tinha se mexido de seu assento, mas em sua mente estava
correndo, correndo rapidamente, estava com as multidões do lado
de fora, gritando alegre. Ele olhou novamente para o retrato do
Big Brother. O colosso que transpõe o mundo! A rocha contra a
qual as hordas da Ásia se atiraram em vão! Ele pensou como há
dez minutos - sim, apenas dez minutos – seu coração ainda não se
sentia seguro quando se perguntava se as notícias da frente seriam
de vitória ou de derrota. Ah, era mais do que um exército
eurasiático que havia perecido! Muito havia mudado nele desde
aquele primeiro dia no Ministério do Amor, mas a mudança final,
indispensável, curativa, nunca havia acontecido, até este
momento.
A voz da teletela ainda ladrava sua história de prisioneiros e
saque e matança, mas os gritos do lado de fora já haviam
diminuído um pouco. Os garçons estavam voltando ao seu
trabalho. Um deles se aproximou com a garrafa de gin. Winston,
sentado em um sonho feliz, não notou que enchiam seu copo. Ele
não estava mais correndo ou torcendo. Ele estava de volta ao
Ministério do Amor, com tudo perdoado, sua alma branca como a
neve. Ele estava em praça pública, confessando tudo, entregando
todos. Estava andando pelo corredor branco com a sensação de
caminhar sob a luz do sol, e um guarda armado às costas. A bala,
há muito esperada, estava entrando em seu cérebro.
Ele olhou para o enorme rosto. Quarenta anos haviam sido
necessários para ele aprender que tipo de sorriso estava escondido
sob o bigode escuro. Ó mal-entendido cruel e desnecessário! Ó
teimoso, auto exilado obstinado do peito amoroso! Duas lágrimas
perfumadas de gin escorriam ao lado de seu nariz. Mas estava
tudo bem, tudo estava bem, a luta estava terminada. Ele havia
conquistado a vitória sobre si mesmo. Ele amava o Big Brother.

Notas:
9 Solipsismo é a concepção filosófica de que, além de nós, só existem as nossas
experiências. O solipsismo é a consequência extrema de se acreditar que o
conhecimento deve estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais,
não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o
conhecimento objetivo de algo para além deles.
10 Snakes and ladders, conhecido originalmente como Moksha Patam, é um
antigo jogo de tabuleiro indiano para dois ou mais jogadores. É jogado em um
tabuleiro de jogo com quadrados numerados e gradeados. Uma série de “escadas”
e “cobras” são retratadas no tabuleiro, cada uma conectando dois quadrados de
tabuleiro específicos. O objetivo do jogo é navegar pela peça do jogo, de acordo
com os números dos dados, desde o início (quadrado inferior) até o final
(quadrado superior), auxiliado pela subida de escadas, mas dificultado pela queda
de cobras.
APÊNDICE

Os princípios da Novilíngua

Novilíngua era a língua oficial da Oceânia e tinha sido concebida


para atender às necessidades ideológicas do Socing, ou do
Socialismo Inglês. No ano de 1984 ainda não havia ninguém que
usasse a Novilíngua como seu único meio de comunicação, seja
na fala ou na escrita. Os principais artigos do ‘The Times’ eram
escritos neste idioma, mas este era um TOUR DE FORCE11, que
só podia ser realizado por um especialista. Esperava-se que a
Novilíngua tivesse finalmente substituído a Velhilíngua (ou o
inglês padrão, como é chamado) por volta do ano 2050. Enquanto
isso, a Novilíngua ganhava terreno de forma constante, todos os
membros do Partido tendendo a usar cada vez mais suas palavras
e construções gramaticais em seu discurso cotidiano. A versão em
uso em 1984, e incorporada na Nona e Décima Edições do
Dicionário Novilíngua, era provisória e continha muitas palavras
supérfluas e formações arcaicas que seriam suprimidas mais
tarde. É com a versão final, aperfeiçoada, como encarnada na
Décima Primeira Edição do Dicionário, que estamos preocupados
aqui.
O objetivo da Novilíngua não era apenas fornecer um meio de
expressão para a visão de mundo e hábitos mentais próprios dos
devotos do Socing, mas tornar impossível todos os outros modos
de pensamento. A intenção era que quando a Novilíngua tivesse
sido adotada de uma vez por todas e a Velhilíngua esquecida, um
pensamento herético - isto é, um pensamento divergente dos
princípios do Socing - fosse literalmente impensável, pelo menos
na medida em que o pensamento depende das palavras. Seu
vocabulário foi construído de forma a dar expressão exata e
frequentemente muito sutil a todos os significados que um
membro do Partido poderia desejar expressar corretamente,
excluindo todos os outros significados e também a possibilidade
de chegar a eles por métodos indiretos. Isto foi feito em parte pela
invenção de novas palavras, mas principalmente pela eliminação
de palavras indesejáveis e pela remoção de palavras que restaram
de significados pouco ortodoxos, e na medida do possível, de
todos os significados secundários. Para dar um único exemplo. A
palavra ‘Livre’ ainda existia em Novilíngua, mas só poderia ser
usada em afirmações como ‘Este cão está livre de piolhos’ ou
‘Este campo está livre de ervas daninhas’. Ele não podia ser
usado em seu antigo sentido de ‘politicamente livre’ ou
‘intelectualmente livre’, pois a liberdade política e intelectual não
existia mais nem mesmo como conceito, e por isso não tinha mais
nome. Além da supressão de palavras definitivamente heréticas, a
redução do vocabulário era considerada como um fim em si
mesma, e nenhuma palavra que pudesse ser dispensada poderia
sobreviver. A Novilíngua foi concebida não para ampliar, mas
para RESTRINGIR a gama de pensamentos, e este propósito foi
indiretamente auxiliado pela redução ao mínimo da escolha de
palavras.
A Novilíngua foi criada com base na língua inglesa como a
conhecemos agora, embora muitas frases da Novilíngua, mesmo
sem conter palavras recém-criadas, dificilmente seriam
inteligíveis para alguém de nossos dias que fala inglês. As
palavras da Novilíngua foram divididas em três classes distintas,
conhecidas como vocabulário A, vocabulário B (também
chamado de palavras compostas) e vocabulário C. Será mais
simples discutir cada classe separadamente, mas as peculiaridades
gramaticais do idioma serão tratadas na seção dedicada ao
vocabulário A, uma vez que as mesmas regras se aplicam a todas
as três categorias.
O VOCABULÁRIO A. O vocabulário A consistia nas palavras
necessárias para os negócios da vida cotidiana - coisas como
comer, beber, trabalhar, vestir-se, subir e descer escadas, andar de
veículo, fazer jardinagem, cozinhar e afins. Era composto quase
inteiramente de palavras que já possuíamos como BATER,
CORRER, CACHORRO, ÁRVORE, AÇÚCAR, CASA, CAMPO
- mas, em comparação com o vocabulário inglês atual, tinha
pouquíssimas palavras, com seus significados definidos de forma
muito mais rígida. Todas as ambiguidades e nuances de
significado tinham sido expurgadas delas. Até era possível, uma
palavra de Novilíngua desta classe era simplesmente um som
curto, expressando exclusivamente UM conceito claramente
definido. Teria sido bastante impossível utilizar o ‘vocabulário A’
para fins literários ou para discussões políticas ou filosóficas. O
seu objetivo era apenas expressar pensamentos simples e
propositados, geralmente envolvendo objetos concretos ou ações
físicas.
A gramática da Novilíngua apresentava duas peculiaridades
notáveis. A primeira delas era uma intercambialidade quase
completa entre as diferentes partes do discurso. Qualquer palavra
na língua (em princípio, isto se aplicava até mesmo a palavras
muito abstratas como SE ou QUANDO) podia ser usada ou como
verbo, substantivo, adjetivo ou advérbio. Entre verbo e
substantivo, quando tinham a mesma raiz, nunca havia nenhuma
variação, esta regra por si só levou à destruição de muitas formas
arcaicas. A palavra PENSAMENTO, por exemplo, não existia na
Novilíngua. Seu lugar foi ocupado por PENSAR, que era
utilizada tanto como substantivo quanto como verbo. Nenhum
princípio etimológico fora adotado para isso: em alguns casos o
substantivo original foi escolhido para assumir ambos os
significados, em outros casos, o verbo. Mesmo quando um
substantivo e um verbo com significados semelhantes não
estavam ligados etimologicamente, um ou outro deles era
frequentemente suprimido. Não havia, por exemplo, uma palavra
como CORTAR, sendo seu significado suficientemente coberto
pelo substantivo-verbo FACA. Os adjetivos eram formados pela
adição do sufixo -OSO ao substantivo-verbo, e os advérbios pela
adição de -MENTE. Assim, por exemplo, VELOCIDADOSO
significava ‘rápido’ e VELOCIDADEMENTE significava
‘rapidamente’. Alguns de nossos adjetivos atuais, tais como
BOM, FORTE, GRANDE, PRETO, MACIO, foram mantidos,
mas em número muito reduzido. Havia pouca necessidade deles,
já que praticamente todas as necessidades de adjetivos poderiam
ser conseguidas adicionando-se o sufixo -OSO a um substantivo-
verbo. Nenhum dos advérbios atualmente existentes foi mantido,
exceto por alguns poucos que já terminavam em -MENTE: a
terminação -MENTE era invariável. A palavra BEM, por
exemplo, foi substituída por BENEMENTE.
Além disso, qualquer palavra - isto novamente aplicado em
princípio a toda palavra no idioma - poderia ser negativada pela
adição do prefixo DES-, ou poderia ser reforçada pelo prefixo
MAIS-, ou, para maior ênfase ainda, DUPLOMAIS. Assim, por
exemplo, DESFRIO significava ‘quente’, enquanto MAISFRIO e
DUPLOMAISFRIO significavam, respectivamente, ‘muito frio’ e
‘demasiadamente frio’. Também era possível, como no inglês
atual, modificar o significado de quase qualquer palavra através
de prefixos como ANTE-, PÓS-, SOBRE-, SUB-, etc. Através de
tais métodos, foi possível promover uma enorme redução do
vocabulário. Dada, por exemplo, a palavra BOM, não havia
necessidade de uma palavra como MAU, uma vez que o
significado exigido era igualmente bem - na verdade, melhor -
expresso por DESBOM. Tudo o que era necessário, nos casos em
que duas palavras formavam um par natural de opostos, era
decidir qual delas deveria ser suprimida. ‘Escuro’, por exemplo,
poderia ser substituído por DESCLARO, ou CLARO por
DESESCURO, de acordo com a preferência.
A segunda característica marcante da gramática Novilíngua era
sua regularidade. Todas as inflexões seguiam as mesmas regras.
Assim, em todos os verbos, o pretérito e o particípio eram iguais.
O passado de ROUBAR era, assim como o particípio,
ROUBADO. Esta regra era aplicada a todo o idioma, sendo as
demais formas, como ROUBOU, abolidas. Todos os plurais eram
feitos acrescentando-se -S ou -ES, conforme o caso. Os plurais de
ANEL, PEDAL, AVIÃO eram ANELS, PEDALS, AVIÃOES. A
comparação de adjetivos era feita acrescentando-se um sufixo,
formas irregulares e O/A MAIS foram suprimidas.
As únicas classes de palavras que ainda era permitido flexionar de
forma irregular eram os pronomes relativos, os pronomes
demonstrativos e os verbos auxiliares, com algumas exceções.
Estas classes de palavras continuaram seguindo seu antigo uso no
inglês. Também houve certas irregularidades na formação de
palavras, decorrentes da necessidade de uma fala rápida e fácil.
Uma palavra que era difícil de pronunciar, ou que poderia ser
ouvida incorretamente, era considerada uma palavra ruim e,
portanto, por causa da eufonia, letras extras eram inseridas na
palavra ou uma formação arcaica era mantida. Mas esta
necessidade se fez sentir principalmente em conexão com o B
vocabulário. Mais à frente neste ensaio será esclarecido POR
QUE tanta importância foi dada à facilidade de pronúncia.
O VOCABULÁRIO B. O vocabulário B consistia em palavras
que tinham sido construídas deliberadamente para fins políticos:
ou seja, palavras que não só tinham em todos os casos uma
implicação política, mas que se destinavam a impor uma atitude
mental desejável à pessoa que as usava. Sem uma compreensão
completa dos princípios do Socing era difícil usar essas palavras
corretamente. Em alguns casos, elas podiam ser traduzidas para a
Velhilíngua, ou mesmo para palavras retiradas do vocabulário A,
mas isso geralmente exigia uma longa paráfrase e sempre
envolvia a perda de certos tons exacerbados. As palavras B eram
uma espécie de abreviação verbal, muitas vezes empacotando
toda a gama de ideias em algumas sílabas, e ao mesmo tempo
sendo mais precisas e eficazes do que a linguagem comum.
As palavras B eram todas palavras compostas. Consistiam em
duas ou mais palavras, ou pedaços de palavras, unidos de forma a
facilitar sua pronúncia. O amálgama resultante era sempre um
substantivo-verbo declinado de acordo com as regras comuns.
Para tomar um único exemplo: a palavra BOMPENSAR, que
significa, algo como ‘ortodoxia’ ou, se usada como um verbo,
‘pensar de forma ortodoxa’. Com as devidas declinações formava:
substantivo-verbo, BENEPENSAR; particípio passado,
BENEPENSADO; gerúndio, BENEPENSANDO; adjetivo,
BENEPENSIVO; advérbio, BENEPENSADAMENTE;
substantivo verbal, BENPENSADOR.
As palavras B não eram construídas sobre nenhum plano
etimológico. As palavras que as compunham podiam ser qualquer
parte da frase e podiam ser colocadas em qualquer ordem e
abreviadas de qualquer forma que as tornasse fáceis de
pronunciar, desde que indicasse sua derivação. Na palavra
CRIMEPENSAR (crime de pensamento), por exemplo, o
PENSAR estava na segunda posição, enquanto em
PENSAPOLÍCIA (Polícia do Pensamento) estava em primeiro
lugar, e a palavra ‘pensar’ tinha perdido o ‘r’. Devido à grande
dificuldade em garantir a eufonia, as formações irregulares eram
mais comuns no vocabulário B do que no vocabulário A. Por
exemplo, as palavras MINIVERDAD, MINIPAZ e MINIAMOR,
quando adjetivadas, eram respectivamente, MINIVERO,
MINIMANSO e MINIAMORE, já que as palavras –
VERDADOSO, –PAZOSO e –AMOROSO eram um pouco
estranhas de se pronunciar. Em princípio, porém, todas as
palavras B podiam ser declinadas, e todas eram declinadas
exatamente da mesma maneira.
Algumas das palavras B tinham significados altamente sutis,
pouco inteligíveis para quem não dominava a língua como um
todo. Considere, por exemplo, uma frase tão típica de um artigo
de referência do ‘Times’ como VELHIPENSADOR
DESVENTRESENTEN SOCING. A versão mais curta que se
poderia fazer disto em Velhilíngua seria: ‘Aqueles cujas ideias
foram formadas antes da Revolução não podem ter uma
compreensão emocional completa dos princípios do socialismo
inglês’. Mas esta não é uma tradução adequada. Para começar, a
fim de entender o significado completo da frase Novilíngua citada
acima, seria necessário ter uma ideia clara do significado de
SOCING. E, além disso, somente uma pessoa completamente
fundamentada em Socing poderia apreciar toda a força da palavra
VENTRESENTIR, o que implicava uma aceitação cega e
entusiasta difícil de imaginar hoje; ou da palavra
VELHIPENSADOR, que estava inextricavelmente misturada
com a ideia de maldade e decadência. Mas a função especial de
certas palavras da Novilíngua, das quais VELHIPENSADOR era
uma, não era tanto expressar significados, mas destruí-los. Estas
palavras, necessariamente poucas em número, tiveram seus
significados estendidos até conterem dentro de si pilhas inteiras
de palavras que, como estavam suficientemente cobertas por um
único termo abrangente, podiam agora ser eliminadas e
esquecidas. A maior dificuldade enfrentada pelos compiladores
do Dicionário Novilíngua não era inventar novas palavras, mas,
tendo-as inventado, certificar-se do que elas significavam: ou
seja, certificar-se de qual era a gama de palavras que elas
cancelavam com sua existência.
Como já vimos no caso da palavra LIVRE, às vezes, palavras que
antes tinham um significado herético foram mantidas por
conveniência, expurgando-se delas apenas os significados
considerados indesejáveis. Inúmeras outras palavras como
HONRA, JUSTIÇA, MORALIDADE,
INTERNACIONALISMO, DEMOCRACIA, CIÊNCIA e
RELIGIÃO tinham simplesmente deixado de existir. Algumas
poucas palavras novas as abrangeram, as cobriram e acabaram
assim por aboli-las. Todas as palavras que se agrupavam em torno
dos conceitos de liberdade e igualdade, por exemplo, estavam
contidas na única palavra CRIMEPENSAR, enquanto todas as
palavras que se agrupavam em torno dos conceitos de
objetividade e racionalismo estavam contidas na única palavra
VELHIPENSAR. Uma precisão maior teria sido perigosa. O que
era necessário em um membro do Partido era uma perspectiva
semelhante à do antigo hebreu que sabia, sem saber muito mais,
que todas as nações, exceto a sua, adoravam ‘falsos deuses’. Ele
não precisava saber que esses deuses eram chamados de Baal,
Osíris, Moloque, Astarote e afins: provavelmente quanto menos
ele soubesse sobre eles, melhor seria para sua ortodoxia. Ele
conhecia Jeová e os mandamentos de Jeová: ele sabia, portanto,
que todos os deuses com outros nomes ou outros atributos eram
falsos deuses. Da mesma forma, o membro do partido sabia o que
constituía uma conduta correta e, em termos extremamente vagos
e generalizados, ele sabia que tipos de desvios eram possíveis.
Sua vida sexual, por exemplo, era inteiramente regulada pelas
duas palavras Novilíngua SEXOCRIME (imoralidade sexual) e
BENESEXO (castidade). SEXOCRIME cobria todos os delitos
sexuais, quaisquer que fossem. Cobria fornicação, adultério,
homossexualidade e outras perversões e, além disso, relações
sexuais normais praticadas para seu próprio bem. Não havia
necessidade de enumerá-los separadamente, já que todos eram
igualmente culpáveis e, por princípio, todos puníveis com a
morte. No vocabulário C, que consistia em palavras científicas e
técnicas, poderia ser necessário dar nomes especializados a certas
aberrações sexuais, mas o cidadão comum não tinha necessidade
delas. Ele sabia o que significava BENESEXO, ou seja, relações
sexuais normais entre homem e mulher, com o único propósito de
gerar filhos, e sem prazer físico por parte da mulher: tudo mais
era SEXOCRIME. Em Novilíngua, raramente era possível seguir
um pensamento herético além da percepção de que era herético:
além desse ponto, as palavras necessárias eram inexistentes.
Nenhuma palavra no vocabulário B era ideologicamente neutra.
Muitos eram eufemismos. Tais palavras, por exemplo, como
CAMPOALEGRIA (campo de trabalhos forçados) ou MINIPAZ
(Ministério da Paz, ou seja, Ministério da Guerra) significavam
quase exatamente o oposto do que pareciam significar. Algumas
palavras, por outro lado, demonstraram uma compreensão franca
e desdenhosa da verdadeira natureza da sociedade oceânica. Um
exemplo era o ALIMENTAPROLETA, que significava o
entretenimento e as notícias espúrias que o Partido distribuía para
as massas. Outras palavras, novamente, eram ambivalentes, tendo
a conotação ‘boa’ quando aplicadas ao Partido e ‘ruim’ quando
aplicadas a seus inimigos. Mas, além disso, havia um grande
número de palavras que à primeira vista pareciam ser meras
abreviações e que derivavam sua cor ideológica não de seu
significado, mas de sua estrutura.
Na medida em que podia ser elaborado, tudo o que tinha ou
poderia ter significado político de qualquer tipo foi encaixado no
vocabulário B. O nome de cada organização, grupo de pessoas,
doutrina, país, instituição e edifício público era invariavelmente
abreviado de forma rotineira; ou seja, uma única palavra,
facilmente pronunciada, com o menor número de sílabas e que
preservaria a derivação original. No Ministério da Verdade, por
exemplo, o Departamento de Registros onde Winston Smith
trabalhava, chamava-se DEREG, o Departamento de Ficção
chamava-se DEFIC, o Departamento de Teleprogramas chamava-
se DETEL, e assim por diante. Isto não foi feito somente com o
objetivo de economizar tempo. Mesmo nas primeiras décadas do
século XX, as palavras e frases telescópicas haviam sido uma das
características da linguagem política; e havia sido notado que a
tendência de usar abreviações deste tipo era mais marcada em
países e organizações totalitárias. As palavras NAZI, GESTAPO,
COMINTERN, INPRECORR, AGITPROP eram exemplos
típicos. No início a prática havia sido adotada como instintiva,
mas em Novilíngua ela era usada com um propósito consciente.
Percebeu-se que, ao abreviar um nome, reduzia-se e sutilmente
alterava-se seu significado, eliminando a maioria de outras
associações indesejáveis que poderiam ser estabelecidas com ele.
As palavras COMUNISMO INTERNACIONAL, por exemplo,
remetiam a um quadro composto de fraternidade humana
universal, bandeiras vermelhas, barricadas, Karl Marx e a
Comuna de Paris. A palavra COMINTERN, por outro lado,
sugeria apenas uma organização bem articulada e um corpo
doutrinário bem definido. Ela se refere a algo quase tão
facilmente reconhecido e tão limitado em propósito, como uma
cadeira ou uma mesa. COMINTERN é uma palavra que pode ser
pronunciada quase sem pensar, enquanto COMUNISMO
INTERNACIONAL é uma expressão longa, que pode remeter a
outros conceitos e que exige mais tempo e reflexão de quem a
pronuncia. Da mesma forma, as reflexões provocadas por uma
palavra como MINIVER são menos e mais controláveis que as
provocadas pela expressão MINISTÉRIO DA VERDADE. Isto
explica não só o hábito de abreviar sempre que possível, mas
também o cuidado quase exagerado que foi tomado para tornar
cada palavra facilmente pronunciável.
Em Novilíngua, a eufonia pesava mais do que qualquer
consideração depois da exatidão de significado. A regularidade da
gramática sempre foi sacrificada em prol da melodia quando
parecia necessário. E com razão, já que o que era necessário,
sobretudo para fins políticos, eram palavras curtas e de
significado inconfundível que podiam ser pronunciadas
rapidamente e que despertavam o mínimo de ecos na mente do
orador. As palavras do vocabulário B até ganharam força por
serem quase todas muito parecidas. Quase sempre estas palavras
– BOMPENSAR, MINIPAZ, ALIMENTAPROLETA,
SEXOCRIME, CAMPOALEGRIA, SOCING,
VENTRESENTIR, PENSAPOLÍCIA, e inúmeras outras - eram
palavras curtas, com a tonicidade distribuída igualmente entre a
primeira e a última sílabas. O uso delas encorajava discursos
longos, ao mesmo tempo ritmados e monótonos. E era exatamente
isso o que se pretendia. A intenção era fazer da fala, e
especialmente da fala sobre qualquer assunto não
ideologicamente neutro, algo independente da consciência. Para
os propósitos da vida cotidiana era sem dúvida necessário, ou às
vezes necessário, refletir antes de falar, mas um membro do
Partido chamado a fazer um julgamento político ou ético deveria
ser capaz de colocar as opiniões corretas tão automaticamente
quanto uma metralhadora que atira. Seu treinamento o capacitava
para tanto, a linguagem era seu instrumento de trabalho
praticamente infalível e a textura das palavras, ásperas,
intencionalmente feias e relacionadas ao espírito Socing, o
ajudavam ainda mais no processo.
Assim como o fato de se ter pouquíssimas palavras para escolher.
Em relação ao nosso próprio, o vocabulário da Novilíngua era
minúsculo, e novas formas de reduzi-lo estavam sendo
constantemente analisadas. A Novilíngua, de fato, diferia da
maioria das outras línguas na medida em que seu vocabulário
diminuía a cada ano, ao invés de crescer. Cada redução de palavra
era um ganho, já que quanto menores as opções, menor a tentação
de se pensar. No final das contas, esperava-se fazer um discurso
articulado a partir da laringe sem envolver os centros cerebrais
superiores. Este objetivo era claramente admitido na palavra
Novilíngua PATOFALA, que significa ‘grasnar como um pato’.
Como várias outras palavras no vocabulário B, PATOFALA era
ambivalente no significado. Contanto que as opiniões formuladas
no discurso fossem ortodoxas, isso não implicava nada além de
elogios, e quando o ‘The Times’ se referia a um dos oradores do
Partido como um DUPLOMAISBOM PATOFALOSO, ele estava
fazendo um elogio caloroso e valoroso.
O VOCABULÁRIO C. O vocabulário C era suplementar aos
outros e consistia inteiramente de termos científicos e técnicos.
Estes se assemelhavam aos termos científicos em uso hoje e
tinham sido construídos a partir das mesmas raízes, mas o
cuidado habitual foi tomado para defini-los rigidamente e
despojá-los de significados indesejáveis. Eles seguiam as mesmas
regras gramaticais que as palavras nos outros dois vocabulários.
Pouquíssimas das palavras C tinham termos em comum tanto com
o discurso cotidiano quanto com o discurso político. Qualquer
trabalhador científico ou técnico podia encontrar todas as palavras
que precisava na lista dedicada à sua própria especialidade, mas
ele raramente tinha mais do que uma breve ideia das palavras
presentes nas outras listas. Apenas poucas palavras eram comuns
a todas as listas e não havia vocabulário que expressasse a
Ciência como um hábito da mente, ou um método de pensamento,
independentemente de seus ramos particulares. Na verdade, não
havia nenhuma palavra para Ciência, já que qualquer significado
que ela pudesse ter já estaria suficientemente coberto pela palavra
SOCING.
Como visto nos vocabulários anteriores, é possível avaliar que em
Novilíngua a expressão de opiniões não ortodoxas era quase
impossível. Claro que era possível proferir heresias de um tipo
muito grosseiro, uma espécie de blasfêmia. Seria possível, por
exemplo, dizer que O BIG BROTHER É DESBOM. Mas esta
afirmação, que para um ouvido ortodoxo era apenas um absurdo
evidente, não poderia ser sustentada por argumentos
fundamentados, porque as palavras necessárias não estavam
disponíveis. As ideias contrárias ao Socing só podiam ser
expostas de forma vaga e sem palavras e só podiam ser nomeadas
em termos amplos, não definidos, que agrupavam e condenavam
grupos inteiros de heresias. De fato, só era possível usar a
Novilíngua para fins não ortodoxos traduzindo-se ilegitimamente
algumas das palavras de volta para Velhilíngua. Por exemplo,
TODOS OS HOMENS SÃO IGUAIS era uma frase possível em
Novilíngua, mas seu significado em Velhilíngua seria o
equivalente a TODOS OS HOMENS SÃO RUIVOS. A frase não
continha um erro gramatical, mas expressava uma inverdade clara
- ou seja, que todos os homens têm o mesmo tamanho, peso ou
força. O conceito de igualdade política não existia mais e este
significado secundário havia sido expurgado da palavra IGUAL.
Em 1984, Velhilíngua ainda era o meio normal de comunicação e
por isso, existia teoricamente o perigo de que, ao se usar as
palavras da Novilíngua, se pudesse lembrar de seus significados
originais. Na prática, evitar isso não era difícil para pessoas bem
treinadas em DUPLIPENSAMENTO, mas dentro de algumas
gerações até mesmo a possibilidade de tal lapso teria
desaparecido. Uma pessoa crescendo com a Novilíngua como sua
única língua não saberia mais que IGUAL já teve o significado
secundário de ‘politicamente igual’ ou que LIVRE já significou
‘intelectualmente livre’; tampouco uma pessoa que nunca tinha
ouvido falar de xadrez, poderia conhecer os significados
secundários de RAINHA e TORRE. Haveria muitos crimes e
erros que estariam além de seu poder de cometer, simplesmente
porque não tinham nome e eram, portanto, inimagináveis. E era
de se prever que, com o passar do tempo, as características que
distinguiam a Novilíngua se tornariam cada vez mais evidentes –
suas palavras sendo cada vez mais reduzidas, seus significados
cada vez mais rígidos e a chance de colocá-las em usos
impróprios sempre menor.
Quando a Velhilíngua tivesse sido substituída de uma vez por
todas, a última ligação com o passado teria sido cortada. A
história já tinha sido reescrita, mas fragmentos da literatura do
passado sobreviviam aqui e ali, imperfeitamente censurados, e
enquanto se mantivesse o conhecimento da Velhilíngua, era
possível lê-los. No futuro, tais fragmentos, mesmo que
conseguissem sobreviver, seriam ininteligíveis e intraduzíveis.
Seria impossível traduzir qualquer texto da Velhilíngua para a
Novilíngua, a menos que ele se referisse a algum processo técnico
ou a alguma ação muito simples do dia a dia, ou já tivesse
tendência ortodoxa (BENEPENSANTE seria a expressão em
Novilíngua). Na prática, isto significava que nenhum livro escrito
antes de aproximadamente 1960 poderia ser traduzido como um
todo. A literatura pré-revolucionária só poderia ser submetida à
tradução ideológica - isto é, alteração tanto no sentido quanto na
linguagem. Veja, por exemplo, a conhecida passagem da
Declaração de Independência: CONSIDERAMOS ESTAS VERDADES
COMO EVIDENTES POR SI MESMAS, QUE TODOS OS HOMENS SÃO CRIADOS
IGUAIS, DOTADOS PELO CRIADOR DE CERTOS DIREITOS INALIENÁVEIS, QUE
ENTRE ESTES ESTÃO A VIDA, A LIBERDADE E A PROCURA DA FELICIDADE.
QUE A FIM DE ASSEGURAR ESSES DIREITOS, GOVERNOS SÃO INSTITUÍDOS
ENTRE OS HOMENS, DERIVANDO SEUS JUSTOS PODERES DO
CONSENTIMENTO DOS GOVERNADOS; QUE, SEMPRE QUE QUALQUER FORMA
DE GOVERNO SE TORNE DESTRUTIVA DE TAIS FINS, CABE AO POVO O
DIREITO DE ALTERÁLA OU ABOLI-LA E INSTITUIR NOVO GOVERNO…
Teria sido completamente impossível transformar isto em
Novilíngua, mantendo o sentido do original. O mais próximo a
que se poderia chegar seria suprimir toda a passagem,
substituindo-a por uma única palavra: CRIMEPENSAR. Uma
tradução completa só poderia ser uma tradução ideológica, pela
qual as palavras de Jefferson seriam transformadas em um
discurso de louvou ao governo absoluto.
Grande parte da literatura do passado já estava, de fato, sendo
transformada dessa forma. Considerações de prestígio tornaram
desejável preservar a memória de certas figuras históricas, ao
mesmo tempo em que alinhavam suas conquistas com a filosofia
do Socing. Vários escritores, tais como Shakespeare, Milton,
Swift, Byron, Dickens e alguns outros estavam, portanto, em
processo de tradução: quando a tarefa tivesse sido concluída, seus
escritos originais, com tudo mais que sobrevivesse da literatura
do passado, seriam destruídos. Estas traduções eram um negócio
lento e difícil e não se esperava que fossem concluídas antes da
primeira ou segunda década do século XXI. Havia também
grandes quantidades de literatura meramente utilitária - manuais
técnicos indispensáveis e similares - que tinham que ser tratadas
da mesma maneira. Foi principalmente para dar tempo ao
trabalho preliminar de tradução, que a adoção final da Novilíngua
havia sido fixada para uma data tão tardia como 2050.

Notas:
11 Trata-se de um grande esforço, uma proeza ou façanha para se atingir algo
melhor do que o ótimo, algo que dificilmente será feito no mesmo padrão por
outra pessoa. É um termo muito utilizado no âmbito artístico.
Bônus

Espero que tenha gostado deste livro. Leia também as obras de


não ficção de Orwell.
Como bônus na seção a seguir você encontra um artigo que
consta do livro Fascismo e Democracia.

OBRAS FILOSÓFICAS DA
MONTECRISTO EDITORA

Meditações de Marco Aurélio


A Arte de ter Razão por Arthur Schopenhauer
Estoicismo, Guia Definitivo por St. George Stock
Ciropédia por Xenofonte
Utopia por Thomas More
Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres por Diógenes
Laércio
Andar a Pé por Henry David Thoreau
Carta a Meneceu sobre a felicidade por Epicuro
Epicuro, Cartas e Princípios por Epicuro
O Dever do Advogado por Ruy Barbosa
Os Sermões por Padre António Vieira
Como bônus, abaixo, você encontra um artigo que consta do livro
Fascismo e Democracia.

Visões de um futuro totalitário

c. 1942

A luta pelo poder entre os partidos republicanos espanhóis é uma


coisa infeliz e distante que eu não tenho nenhum desejo de reviver
nesta data. Menciono isso apenas para dizer: não acredite em
nada, ou quase nada, do que você leu sobre assuntos internos do
Governo. É tudo, de qualquer fonte, propaganda partidária – ou
seja, mentiras. A ampla verdade sobre a guerra é bastante simples.
A burguesia espanhola viu sua chance de esmagar o movimento
operário, e a tomou, auxiliada pelos nazistas e pelas forças
reacionárias em todo o mundo. É duvidoso que mais do que isso
venha a ser estabelecido.
Lembro-me de dizer uma vez a Arthur Koestler,20 “A história
parou em 1936”, no qual ele acenou com a cabeça em
entendimento imediato. Ambos estávamos pensando no
totalitarismo em geral, mas mais particularmente na Guerra Civil
Espanhola. No início da vida eu tinha notado que nenhum evento
era relatado corretamente em um jornal, mas na Espanha, pela
primeira vez, vi reportagens de jornais que não tinham nenhuma
relação com os fatos, nem mesmo a relação que está implícita em
uma mentira comum. Vi grandes batalhas noticiadas onde não
havia brigas, e o silêncio completo onde centenas de homens
haviam sido mortos. Vi tropas que haviam lutado bravamente
denunciadas como covardes e traidoras, e outros que nunca
haviam visto um tiro disparado serem saudados como os heróis de
vitórias imaginárias; e vi jornais em Londres vendendo essas
mentiras e intelectuais ávidos construindo superestruturas
emocionais sobre eventos que nunca haviam acontecido. Vi, de
fato, a história ser narrada não em termos do que aconteceu, mas
do que deveria ter acontecido de acordo com várias “linhas
partidárias”. Mas de certa forma, por mais horrível que tudo isso
tenha sido, não foi importante. Tratava-se de questões secundárias
– a saber, a luta pelo poder entre o Comintern21 e os partidos de
esquerda espanhóis, e os esforços do governo russo para impedir
a revolução na Espanha. Mas o quadro geral da guerra que o
governo espanhol apresentou ao mundo não era inverídico. As
principais questões eram o que ele dizia que eram. Mas, quanto
aos fascistas e seus defensores, como poderiam chegar tão perto
da verdade quanto isso? Como eles poderiam mencionar seus
verdadeiros objetivos? Sua versão da guerra era pura fantasia e,
nas circunstâncias, não poderia ter sido de outra forma. A única
linha de propaganda aberta aos nazistas e fascistas era a de se
representarem como patriotas cristãos salvando a Espanha de uma
ditadura russa.
Isso envolvia fingir que a vida na Espanha governamental era
apenas um longo massacre (vide the Catholic Herald ou o Daily
Mail – mas estas eram brincadeiras de criança em comparação
com a imprensa fascista continental), e envolvia exagerar
imensamente a escala da intervenção russa. Da enorme pirâmide
de mentiras que a imprensa católica e reacionária de todo o
mundo construiu, deixe-me tomar apenas um ponto – a presença
na Espanha de um exército russo. Todos os partidários devotos de
Franco acreditavam nisso; as estimativas de sua força chegaram a
meio milhão. Agora, não havia um exército russo na Espanha.
Pode ter havido um punhado de aviadores e outros técnicos,
algumas centenas no máximo, mas não havia um exército na
Espanha. Alguns milhares de estrangeiros que lutaram na
Espanha, para não mencionar milhões de espanhóis, foram
testemunhas disso. Bem, seu testemunho não causou nenhuma
impressão nos propagandistas franquistas, nem um deles havia
colocado os pés na Espanha oficial. Simultaneamente, essas
pessoas se recusaram totalmente a admitir o fato da intervenção
alemã ou italiana, ao mesmo tempo em que a imprensa alemã e
italiana se gabavam abertamente das façanhas de seus
“legionários”. Escolhi mencionar apenas um ponto, mas na
verdade toda a propaganda fascista sobre a guerra estava neste
nível.
Este tipo de coisa é assustador para mim, pois muitas vezes me dá
a sensação de que o próprio conceito de verdade objetiva está
desaparecendo do mundo. Afinal de contas, as chances são de
que essas mentiras, ou de qualquer forma mentiras semelhantes,
passem para a história. Como será escrita a história da Guerra
Espanhola? Se Franco permanecer no poder, seus indicados
escreverão os livros de história, e (para manter meu ponto
escolhido) que o exército russo que nunca existiu se tornará um
fato histórico, e as crianças da escola aprenderão sobre ele
gerações a partir de então. Mas suponha que o fascismo seja
finalmente derrotado e que algum tipo de governo democrático
seja restaurado na Espanha num futuro próximo; mesmo assim,
como se escreverá a história da guerra? Que tipo de registros
Franco terá deixado para trás? Suponha até mesmo que os
registros mantidos pelo Governo sejam recuperáveis – mesmo
assim, como se deve escrever uma história verdadeira da guerra?
Pois, como eu já assinalei, o Governo também tratou
extensivamente de mentiras. Do ponto de vista antifascista, pode-
se escrever uma história amplamente verdadeira da guerra, mas
seria uma história partidária, não confiável em todos os pontos
menores. No entanto, afinal, algum tipo de história será escrito, e
depois que aqueles que realmente se lembrarem da guerra
estiverem mortos, ela será universalmente aceita. Portanto, para
todos os fins práticos, a mentira terá se tornado verdade.
Eu sei que é moda dizer que a maior parte da história registrada é
mentira de qualquer forma. Estou disposto a acreditar que a
história é, na maioria das vezes, imprecisa e tendenciosa, mas o
que é peculiar à nossa própria época é o abandono da ideia de que
a história poderia ser verdadeiramente escrita. No passado, as
pessoas mentiram deliberadamente, ou coloriram
inconscientemente o que escreviam, ou se esforçaram para obter a
verdade, sabendo bem que deveriam cometer muitos erros; mas
em cada caso eles acreditavam que “os fatos” existiam e eram
mais ou menos detectáveis. E na prática havia sempre um corpo
considerável de fatos que teria sido aceito por quase todos. Se
você olhar a história da última guerra, por exemplo, na
Encyclopaedia Britannica, verá que uma quantidade respeitável
do material é extraída de fontes alemãs. Um historiador britânico
e um alemão discordariam profundamente sobre muitas coisas,
mesmo sobre os fundamentos, mas ainda haveria aquele conjunto,
por assim dizer, de fato neutro sobre o qual nenhum deles
desafiaria seriamente o outro. É apenas esta base comum de
concordância, com sua implicação de que os seres humanos são
todos uma espécie de animal, que o totalitarismo destrói. A teoria
nazista de fato nega especificamente que tal coisa como “a
verdade” existe. Não existe, por exemplo, uma coisa como
“ciência”. Existe apenas a “ciência alemã”, a “ciência judaica”,
etc. O objetivo implícito desta linha de pensamento é um mundo
de pesadelo no qual o Líder, ou algum grupo governante, controla
não apenas o futuro, mas o passado. Se o Líder diz acerca que tal
evento, ‘Nunca aconteceu’ – bem, nunca aconteceu. Se ele diz
que dois e dois são cinco – bem, dois e dois são cinco. Esta
perspectiva me assusta muito mais do que as bombas – e
depois de nossas experiências dos últimos anos isso não é uma
afirmação frívola.
Mas será talvez infantil ou mórbido aterrorizar-se com visões de
um futuro totalitário? Antes de escrever o mundo totalitário como
um pesadelo que não pode se tornar realidade, basta lembrar que
em 1925 o mundo de hoje teria parecido um pesadelo que não
poderia se tornar realidade. Contra esse mundo fantasmagórico
mutável no qual o preto pode ser branco amanhã e o clima de
ontem pode ser mudado por decreto, na realidade existem apenas
duas salvaguardas. Uma é que por mais que você negue a
verdade, a verdade continua existindo, por assim dizer, nas suas
costas, e você consequentemente não pode violá-la de forma a
prejudicar a eficiência militar. A outra é que enquanto algumas
partes do mundo permanecerem inconquistáveis, a tradição liberal
pode ser mantida viva. Deixe o fascismo, ou possivelmente até
uma combinação de vários fascismos, conquistar o mundo inteiro,
e essas duas condições não existem mais. Nós na Inglaterra
subestimamos o perigo deste tipo de coisa, porque nossas
tradições e nossa segurança passada nos deram a crença
sentimental de que tudo vem bem no final e a coisa que você mais
teme nunca realmente acontece. Nutridos durante centenas de
anos em uma literatura na qual a Direita invariavelmente triunfa
no último capítulo, acreditamos meio a meio que o mal sempre se
derrota a si mesmo a longo prazo. O pacifismo, por exemplo, é
fundado em grande parte nesta crença. Não resista ao mal, e ele se
destruirá de alguma forma. Mas por que deveria? Que provas
existem de que o faz? E que exemplo existe de um estado
industrializado moderno em colapso, a menos que seja
conquistado do exterior pela força militar?
Considere, por exemplo, a reinstituição da escravidão. Quem
poderia ter imaginado há vinte anos que a escravidão voltaria à
Europa? Bem, a escravidão foi restaurada sob nossos narizes. Os
campos de trabalho forçado em toda a Europa e no norte da
África, onde poloneses, russos, judeus e prisioneiros políticos de
todas as raças labutam na construção de estradas ou na drenagem
de pântanos para suas rações brutas, são simples escravidão
bárbara. O máximo que se pode dizer é que a compra e venda de
escravos por indivíduos ainda não é permitida. De outras formas –
a desagregação de famílias, por exemplo – as condições são
provavelmente piores do que eram nas plantações americanas de
algodão. Não há razão para pensar que este estado de coisas
mudará enquanto durar qualquer dominação totalitária. Não
entendemos todas as suas implicações, porque, à nossa maneira
mística, sentimos que um regime fundado na escravidão deve
entrar em colapso. Mas vale a pena comparar a duração dos
impérios de escravos da antiguidade com a de qualquer estado
moderno. As civilizações fundadas na escravatura duraram por
períodos tais como quatro mil anos.
Quando penso na antiguidade, o detalhe que me assusta é que
aquelas centenas de milhões de escravos sobre cujas costas a
civilização repousava geração após geração não deixaram para
trás nenhum registro. Nós nem sequer sabemos seus nomes. Em
toda a história grega e romana, quantos nomes de escravos são
conhecidos por você? Eu posso pensar em dois, ou possivelmente
três. Um é Espártaco22 e o outro é Epicteto.23 Além disso, na sala
romana do Museu Britânico há um frasco de vidro com o nome
do fabricante inscrito no fundo, “Felix fecit”. Tenho uma imagem
mental viva do pobre Félix (um gaulês de cabelo vermelho e uma
gola de metal ao redor do pescoço), mas na verdade ele pode não
ter sido um escravo; assim, há apenas dois escravos cujos nomes
eu definitivamente conheço, e provavelmente poucas pessoas
podem se lembrar de mais. Os demais caíram em completo
silêncio.
Esta coleção foi publicada pela primeira vez em 2020 pela
Penguin de Londres, para comemorar 70 anos da morte de George
Orwell.

Notas:
20 Arthur Koestler (Budapeste, 5 de setembro de 1905 — Londres, 1 de março
de 1983) foi um jornalista, escritor, e ativista político judeu húngaro radicado no
Reino Unido. Refugiado em Viena, matriculou-se na Escola Politécnica, mas
abandonou os estudos para juntar-se aos pioneiros sionistas na Palestina. De volta
à Europa, dedicou-se principalmente ao jornalismo, através do qual adquiriu
enorme experiência humana, política e social. Em 1929, como correspondente
dos jornais do grupo Ullstein, de Berlim, mudou-se para Paris e, em 1931,
tornou-se o único jornalista a participar da expedição polar do conde Zeppelin.
Nesse mesmo ano, ingressou no Partido Comunista da Alemanha. No ano
seguinte, Koestler esteve na União Soviética e, em 1936, foi enviado a Madrid,
pelo New Chronicle, para cobrir a Guerra Civil Espanhola. Tendo participado
ativamente da defesa de Málaga, foi preso pelas tropas de Francisco Franco e
condenado à morte, sendo salvo por intervenção inglesa.
21 Comintern, a Internacional Comunista (do inglês Communist International)
ou (Komintern) (do alemão Kommunistische Internationale) ou também
conhecida como Terceira Internacional (1919-1943), foi uma organização
internacional fundada por Vladimir Lenin, para reunir os partidos comunistas de
diferentes países.
22 Espártaco (em latim: Spartacus; ca. 109 a.C. – ca. 71 a.C.) foi um gladiador
de origem trácia, viveu na República romana e foi o líder da mais célebre revolta
de escravos na Roma Antiga, conhecida como “Terceira Guerra Servil”, “Guerra
dos Escravos” ou “Guerra dos Gladiadores”. Espártaco liderou, durante a revolta,
um exército rebelde que contou com quase 40 mil ex-escravos. Acabou por
perder a guerra contra as legiões de Crasso, membro do primeiro triunvirato. O
corpo de Espártaco nunca foi encontrado pelo comandante romano.
23 Epicteto (Hierápolis, 55 – Nicópolis, 135) foi um filósofo grego estoico que
viveu a maior parte de sua vida em Roma, como escravo a serviço de Epafrodito,
o cruel secretário de Nero que, segundo a tradição, uma vez lhe quebrou uma
perna. Apesar de sua condição, conseguiu assistir as preleções do famoso estoico
Caio Musônio Rufo. De sua obra se conservam o Encheiridion de Epicteto e as
Diatribes ambos editados por seu discípulo Lúcio Flávio Arriano. Ver mais em
https://www.estoico.com.br/tag/epicteto/

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